REVISÕES & ENSAIOS
SEMIOLOGIA DO CRESCIMENTO DEFICIENTE: ROTEIRO DIAGNÓSTICO EDUARDO MARCONDES
A Pediatria tem sido definida como a parte da Medicina que estuda o ser humano em crescimento e desenvolvimento, desde o nascimento até a adolescência inclusive. A ciência que estuda o crescimento (auxologia) é, pois, integrante da própria doutrina pediátrica e a vigilância do crescimento e desenvolvimento da criança a mais importante ação do pediatra. Do ponto de vista social, a estatura dos indivíduos de uma comunidade é um bom indicador do estado de saúde de toda a população, índice melhor, segundo Tanner, do que o produto bruto nacional. Estatura é status, o cartão de visita biológico do indivíduo. A vantagem em ser alto é notada desde o nascimento (recém-nascidos grandes têm menor índice de morbidade e mortalidade do que recém-nascidos pequenos), até a adultícia, pois se verificou coeficiente de correlação significante entre estatura e níveis de desempenho. A baixa estatura pode ser considerada, pois, um desastre biológico na vida do indivíduo, justificando uma das mais freqüentes queixas dos pais ao pediatra: "meu filho não cresce". Muitas vezes, o desconhecimento dos pais sobre a ampla variação normal do crescimento e a tendência incontrolável de
comparar crianças sem considerar os fatores constitucionais, étnicos e sociais, fazem que uma criança seja considerada de baixa estatura pelos pais, quando na verdade, não o é. Nesses casos, cabe ao pediatra a tarefa de convencer os pais de que estão errados, evitando, assim, erros alimentares (alimento dado à força a fim de favorecer o crescimento), educacionais (sempre existe a possibilidade da criança reagir desfavoravelmente à preocupação dos pais o que pode gerar vários distúrbios) e terapêuticos (uso abusivo de medicamentos, com ênfase em hormônios). Vê-se, portanto, que a baixa estatutra, verdadeira ou falsa, é sempre um problema importante. Deve o pediatra preparar-se para o manejo adequado do problema, com ênfase nos aspectos semiológicos e terapêuticos. O objetivo dessa revisão é oferecer ao leitor um roteiro semiológico para o estudo de crianças portadoras de crescimento deficiente, o que envolve as seguintes etapas: Etapa l
— reconhecimento da presença de distúrbio do crescimento
Etapa II — observação clínica (anamnese e exame físico) Etapa III — auxograma Etapa IV — exames subsidiários
Instituto da Criança "Prof. Pedro de Alcantara" do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Unidade de Endocrinologia e Distúrbios do Crescimento. 1 Professor Titular de Pediatria Aceito para publicação em 12 de julho de 1982.
Não se pretende nesta revisão descrever os quadros clínicos das doenças que evoluem
com baixa estatura: tal propósito transformaria este artigo num livro de Pediatria, tendo em vista o elevado número de entidades envolvidas no crescimento deficiente de uma criança. De qualquer modo, há textos que descrevem suscintamente as principais causas de baixa estatura 2 ' 3 ' 4 6 1 3 . Em resumo, esta revisão tem como objetivo principal mostrar um caminho na abordagem do paciente de baixa estatura, atualizando publicações anteriores 6 e 7. Nunca será demais lembrar que a vigilância do crescimento estatura! (propósito desta revisão) é uma parte apenas da Pediatria Preventiva: não basta que a criança se transforme em um adulto de estatura normal, é necessário que esse adulto seja também feliz e útil à sociedade.
Etapa l A etapa l diz respeito ao reconhecimento da presença de distúrbio do crescimento e envolve aspectos conceituais. O que vem a ser a baixa estatura? O Instituto da Criança "Prof. Pedro de Alcântara" do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo adota um critério bio estatístico na conceituação do crescimento normal e de seus distúrbios: conhecendo-se a estatura normal para uma determinada idade e um determinado sexo, pode-se estabelecer um critério conceituai. O referencial de normalidade é o conhecido estudo antropométrico realizado em Santo André, Estado de São Paulo. A metodologia e os resultados finais referentes a estatura e peso já foram publicados 8 6 1 2 . Por outro lado, as normas atualmente vigentes no Instituto da Criança para a caracterização do crescimento físico e para o diagnóstico e classificação dos distúrbios do crescimento também já foram publicadas por "Pediatria" (S. Paulo) 9 : nesta publicação, o leitor encontrará as tabelas para estatura e peso, para recém-nascidos e de 3 a 239 meses de idade, para crianças de sexo masculino e de sexo feminino, nos percentis 2,5; 5,0; 10,0; 15,0; 20,0; 25,0; 35,0; 50,0; 65,0; 75,0; 80,0; 85,0; 90,0; 95,0 e 97,5. Vale lembrar, contudo, os conceitos essenciais sobre o crescimento normal e seus distúrbios com deficiência.
DIAGNÓSTICO ESTATURA NORMAL = estatura localizada entre os percentis 2,5 e 97,5 BAIXA ESTATURA = estatura inferior ao percentil 2,5 SITUAÇÃO DE VIGILÂNCIA = estatura localizada entre os percentis 2,5 e 10 CLASSIFICAÇÃO SEGUNDO RELAÇÃO PESO/ESTATURA (IE = idade estatura e IP = idade peso) BAIXA ESTATURA PROPORCIONADA = IE e IP próximas BAIXA ESTATURA DESPROPORCIONADA = IE superior a IP IE inferior a IP BAIXA ESTATURA DISTORCIDA = inadequacidade de considerar a relação altura/peso em virtude da presença de graves deformidades CLASSIFICAÇÃO SEGUNDO PROPORÇÕES CORPÓREAS SEGMENTARES (SS = segmento superior e SI = segmento inferior) RELAÇÃO SS/SI NORMAL (patologia do esqueleto possivelmente ausente) RELAÇÃO SS/SI ANORMAL (patologia do esqueleto possivelmente presente): — relação SS/SI diminuída = encurtamento da coluna — relação SS/SI aumentada = encurtamento dos membros inferiores (micromelia): — micromelia rizomélica — micromelia mesomélica — micromelia acromélica CLASSIFICAÇÃO SEGUNDO A(S) CAUSA(S) ETIOLÓGICA(S) PRÊSENTE(S) 01 — de causa familiar 02 — doenças genéticas (gêmeas ou cromossômicas) 03 — doenças neuroendócrinas
04 05 06 07
— — — —
08 09 10 00
— — — —
doenças do esqueleto doenças da nutrição doenças sistêmicas baixa estatura ao nascer (também referido como baixo peso ao nascer) carência psicossocial outras causas a esclarecer não esclarecido
A partir das tabelas, foram obtidas as curvas de crescimento, instrumento indispensável para o diagnóstico da estatura da criança e acompanhamento evolutivo de seus distúrbios eventuais. As figs. 1 e 2 constituem os impressos utilizados atualmente pelo Instituto da Criança. Como resultado da etapa l, a criança que se apresenta ao consultório do pediatra por ser portadora de crescimento físico insuficiente (por enquanto na opinião dos pais), poderá ser enquadrada em uma das seguintes alternativas: 1 — a criança tem estatura normal 2 — a criança tem estatura normal, porém se encontra em situação de vigilância 3 — a criança é portadora de baixa estatura A alternativa 1 ocorre com grande freqüência no consultório do pediatra: a família acha que o filho é baixo, mas ele não o é! Tudo se deve ao despreparo dos pais na avaliação da estatura de seu filho e cabe ao pediatra esclarecê-los, tarefa nem sempre fácil, tal a ansiedade dos mesmos. Nesses casos, o problema clínico da criança encerrase ao nível da etapa l, sobretudo se a análise de duas ou três medidas da estatura revela velocidade normal do crescimento (permanência no mesmo canal, constate-se no gráfico). Se estão presentes as alternativas 2 (vigilância) ou 3 (baixa estatura), dá-se prosseguimento ao estudo do caso, passando-se então para a etapa II.
Etapa II A etapa II é a feitura da observação clínica da criança com crescimento deficiente. Basicamente, não difere da cuidadosa observação clínica que integra todo e qualquer
atendimento pediátrico de bom nível: justifica-se, contudo, atenção especial para alguns aspectos, As famílias nas quais há uma criança que implacavelmente se transformará em um adulto de baixa estatura, necessitam de especial compreensão e apoio por parte do pediatra desde o primeiro momento, vale dizer, desde a feitura da observação clínica da criança que é, na verdade, o primeiro momento formal da relação pediatra/família. Cuidado, pois!.
ANAMNESE "A história do paciente revela mais do que os níveis do hormônio do crescimento" *. Os seguintes aspectos são relevantes.
Crescimento em si mesmo — Claro está que deficiência do crescimento físico é a queixa dos pais. Interrogar sobre a idade da criança por ocasião da detecção do problema, se desde o nascimento ou se a partir dessa ou daquela idade. Se há medidas da estatura anteriores, tanto melhor: o gráfico do crescimento mostrará o início da desaceleração do crescimento e a intensidade do mesmo: caso contrário, apelar para comparação com outras crianças. Foi observado alterações das proporções corpóreas? Em que pese a baixa estatura atual, o ganho mensal em centímetros velocidade é satisfatório? Situações ilustrativas: — baixa estatura ao nascer (grupo 07) — de termo: desnutrição fetal (mau prognóstico) pré-termo: prematuridade (bom prognóstico, possível normalização da estura em 12 meses) — baixa estatura com boa velocidade de crescimento todo o tempo (permanência no mesmo canal): crescimento deficiente de causa familiar, grupo 01 (bom prognóstico, possível estatura final satisfatória através do estirão da puberdade) — crescimento deficiente após 18 a 24 meses com desaceleração progress! vá: hipopituitarismo (grupo 03)
Desenvolvimento neuropsicomotor — O crescimento deficiente pode ou não evoluir com atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, com ênfase na deficiência mental: por isso, o conhecimento do desenvolvimento da criança é de importância na elucidação da etiología da doença presente, Eventualmente serão solicitados testes para aferição da inteligência da criança: se isso não for possível, o pediatra utilizará as informações contidas nos quadros 1 e 2. Comparação com outras crianças da família (irmãos, primos) é útil e a análise do desempenho escolar é fundamental. Situações ilustrativas: — deficiência mental moderada: desnutrição (grupo 05), carência psicossocial (grupo 08) — deficiência mental grave: hipotireoidismo (grupo 03), algumas mucopolissacaridoses, como, por exemplo, gargulismo (grupo 04),
História alimentar — Não há crescimento normal sem a ingestão de dieta normal, com ênfase no aporte protéico-calórico, de vitamina D e de ferro. Um cuidadoso inquérito alimentar, atual e pregresso, é fundamental na anamnese de crianças com crescimento deficiente: note-se que, no Brasil, uma das causa mais freqüente de baixa estatura na população infantil é a distrofia protéico-calórica (ou desnutrição) associada à carência psicossocial. É especialmente importante a investigação da alimentação no primeiro ano de vida, pois carências importante nessa época da vida, ainda que superadas, podem deixar como seqüela o atraso no crescimento estatural. Qual a alimentação no período neonatal? O aleitamento materno foi suficiente? O eventual complemento foi adequado? As refeições de sal foram bem aceitas? A vitamina D foi ministrada? Além das características da dieta, urge investigar a ocorrência de manifestações relativas ao aparelho digestivo que poderiam comprometer a incorporação de nutrientes, ainda que a dieta fosse normal. Assim, anorexia, vômitos, diarréia e obstipação intestinal devem ser cuidadosamente investigados (início, término, intensidade). Dinâmica das relações intrafamiliares e estímulação ambiental — Se a alimentação é o combustível do corpo, a estimulação é do espírito e ambos são indispensáveis para o crescimento normal. Está plenamente aceito que crianças submetidas a agravos emocionais e/ou marginalizadas do ponto de vista biopsicossocial têm crescimento físico deficiente, além do reconhecido prejuízo do desenvolvimento emocional. A criança rejeitada, não amada, superprotegida, abandonadar,castigada e muitas outras situações, ostensivas ou veladas, cresce deficientemente e cabe ao pediatra detectar todas essas condições, não só através de inquérito pertinente mas também — e sobretudo — observando o relacionamento dos pais com a criança durante o próprio atendimento. O mau relacionamento entre mãe e pai ou entre irmãos deve ser pesquisado. Baixa estimulação ambiental é condição observada em relação a crianças institucionalizadas com ênfase nas creches sendo importante lembrar, que é crescente o número de crianças de baixa idade, que permanecem de quatro a oito horas diárias em creches, eventualmente sem nenhuma esti-
mulação. A marginalização social própria de crianças faveladas e abandonadas não pode ser esquecida e certamente é fator muito importante no atendimento prestado por hospitais públicos à clientela indigente ou simile. Período neonatal em especial — Estatura ao nascer já foi comentado anteriormente e obviamente o peso também é importante. Anoxia neonatal pode ser causa de crescimento deficiente e por isso é indispensável pesquisar o tipo de parto, se chorou ao nascer ou se foram necessárias manobras de reanimação, dificuldades respiratórias perinatais, duração e intensidade da ictericia própria do recém-nascido e — como já referido — alimentação no período. Lembre-se que a desnutrição fetal é causa importante de crescimento deficiente e de mau prognóstico. Passado mórbido — Todas as doenças pregressas relevantes devem ser anotadas e assinaladas no gráfico de crescimento o que possibilitará uma eventual correlação entre as mesmas e o prejuízo do crescimento. Neste item enquadra-se proeminentemente o grupo 06 (nanismo visceral) com ênfase nas doenças do aparelho respiratório (sobretudo asma brônquica rebelde), do aparelho renal (nanismo renal) e do aparelho digestivo com defeito da digestão e/ou absorção (nanismo celíaco). Intercurrências significativas no primeiro ano de vida podem determinar a perda do "impulso para crescer": gastrenterites repetidas, por exemplo. Infecções crônicas (infecção de vias urinarias, tuberculose, esquistossomose) eventualmente evoluem apresentando como dado clínico único (ou principal) a deficiência de crescimento. Antecedentes familiares — Em adição ao interesse pela ocorrência de doenças de caráter familiar, importante em qualquer tipo de atendimento, a anamnese da criança com crescimento deficiente deve incluir dados sobre a estatura de familiares: sugere-se, se possível, a obtenção concreta da estatura dos pais, irmãos e avós e indagação a respeito de tios e primos. Tais dados permitem avaliar, ainda que grosseiramente, o papel da herança para o crescimento da criança em estudo (Quadro 3). Importante, também, a consangüinidade entre os pais.
— Acondroplasia — Síndroma de Hurler (gargulismo, MPS-I) — Progéria
Medicamentos utilizados — Tendo em vista que certos tratamentos prescritos para estimular o crescimento da criança podem determinar baixa estatura final por causa de aceleração da idade óssea, bem como a ação deletéria sobre o crescimento da cortisona e seus derivados, mister se faz um levantamento de todos os medicamentos potencialmente lesivos para o crescimento recebidos pela criança em estudo. Idade da menarca — Se for o caso.
EXAME FÍSICO O exame físico há de ser completo, no geral e no especial. O reconhecimento de sinais indicativos da presença de tais ou quais doenças integrantes do grupo 06 (nanismo visceral, decorrência principalmente de doenças dos aparelhos cardiorrespiratório, digestivo, renal e hematopoiético), não serão analisados nesta revisão que se restringe aos aspectos mais específicos do crescimento físico. Inspeção geral da criança — Interesse especial para as alterações da forma do corpo como um todo e para o exame da fisionomia da criança. Muitas doenças comprometedoras do crescimento são diagnosticadas pela inspeção da criança e não cabe, nas dimensões deste capítulo, a descrição de cada uma delas. Situações ilustrativas: — Síndroma de Down — Hipotireoidismo
Antropometría — Peso, estatura, envergadura, perímetros cefálico e torácico, segmento inferior (distância púbis-chão) e segmento superior (estatura-segmento inferior) são as medidas antropométricas indispensáveis, A morfología geral e a relação peso/estatura permitem detectar algumas situações, como por exemplo: — baixa estatura familiar (grupo 01) e hipopituitarismo (grupo 03) = baixa estatura proporcionada. — desnutrição (grupo 05) = baixa estatura desproporcionada com idade peso inferior à idade altura. — hipotireoidismo (grupo 03) = baixa estatura desproporcionada com idade peso superior à idade altura. — raquitismo (grupo 05) e osteogênese imperfeita (grupo 04) = baixa estrutura distorcida, impraticável o relaciomentó entre estatura e peso, A relação segmento superior/segmento inferior (SS/SI) é muito importante: seu valor ao nascimento é 1,7 com progressiva diminuição até atingir o valor 1,0 em torno dos sete ou oito anos de idade para não mais se modificar. A relação SS/SI permite detectar algumas situações, como por exemplo: — Hipopituitarismo (grupo 03) = relação SS/SI normal em relação à idade cronológica. — Hipotireoidismo (grupo 03) = relação SS/SI diminuída em relação à idade cronológica. — Doença de Morquio (grupo 04) = relação SS/SI diminuída em relação à idade cronológica. — A condroplasia (grupo 04) = relação SS/SI aumentada em relação à idade cronológica (micromelia rizomélica).
Avaliação do estado nutricional — Refere-se em especial ao grupo 05. Caracterizar o estado nutricional da criança, confirmando a presença de eutrofia ou distrofia: nesse caso, procurar sinais indicativos das três mais freqüentes distrofias por carência que podem comprometer o crescimento, desnutrição, raquitismo e anemia. Estabelecer diagnósticos de acordo com os critérios rotineiros, cuja análise mais detalhada escapa aos objetivos desta revisão. Avaliação do desenvolvimento pubertário — No sexo masculino, engloba o exame de genitais, pêlos pubianos, pêlos axilares, pêlos faciais, volume testicular e timbre da voz. No sexo feminino, mamas, pêlos pubianos e pêlos axilares. O exame dos genitais em especial é indispensável para a avaliação da idade genital que, por sua vez, tem um significado clínico muito importante, simile ao da idade óssea. Sabe-se que quanto mais tarde o aparecimento da puberdade, maiores as oportunidades de uma estatura final normal: assim, idade genital atrasada melhora o prognóstico de crianças portadoras de crescimento deficiente porém capazes de usufruir o estirão da puberdade (nada adianta o atraso da idade genital em crianças acondroplásicas). Exame do esqueleto — Evidentemente a nível de exame clínico (estudo radiológico integra a etapa IV). É importante o reconhecimento de alterações das proporções corpóreas gerais (cabeça, tronco e membros), de curvaturas anômalas da coluna, dos sinais de raquitismo (fontanelas amplas, bossa frontal, rosário raquítico, alargamento epifisário, curvaturas diafisárias), da presença de exostoses (pela palpação dos membros), das dismorfias de crânio e tórax e das curvaturas decorrentes de fraturas. Outros dados — O exame da denticão pode ser útil na caracterização global do atraso do crescimento. Idade dentária atrasada é comum no raquitismo e no hipotireoidismo: anomalias dos dentes é observada na Doença de Ellis-Van Creveld, na osteogênese imperfeita. Opacificação da córnea é encontrada com muita freqüência no gargulismo. Várias doenças cromossômicas evoluem com alterações da implantação e morfologia dos pavilhões auriculares, micrognatia, palato em
ogiva (estreito e alto), bem como, alterações das pregas palmares. Pressão arterial elevada pode ser o único dado clínico presente em crianças com nanismo renal, além da baixa estatura. Recordemos as alternativas dois e três em função da etapa l, respectivamente criança em situação de vigilância e criança portadora de baixa estatutra. No caso da criança estar em vigilância, poderão ocorrer as seguintes subalternativas ao final da etapa li: — criança em vigilância com: velocidade de crescimento normal anamnese e exame físico normais conduta — observação — criança em vigilância com: velocidade de crescimento em desaceleração e/ou anamnese e exame físico anormais conduta — iniciar etapa III Se a alternativa ao final da etapa I é a presença de baixa estatura, a conduta é iniciar a etapa III independente das conclusões da etapa II.
Etapa III É o auxograma, método gráfico de expressar os diferentes aspectos do crescimento e que na opinião do autor é um excelente meio de triar os casos. O método proposto consiste num sistema biotipológico aberto que se fundamenta no princípio das variações individuais em torno de medidas médias estabelecidas para cada idade e cada sexo. Trata-se de um sistema de coordenadas cartesianas em cuja abscissa se encontram os meses ou anos de idade e na ordenada a idade cronológica (1C), idade altura (IA), idade peso (IP), idade óssea (10), idade mental (IM) e idade genital (IG). Verifica-se, assim, que todas as unidades habituais dos parâmetros do crescimento (kg, cm, número de dentes, relações corpóreas, desenvolvimento sexual) são substituídas por uma única referência: o tempo. Quanto à obtenção dos dados, IA, IP e IG são decorrência do exame físico da criança. A 10 só pode ser obtida, é claro, pela radiografia de mãos e punhos. Quanto à IM, se possível, deverá ser obtida através da aplicação de testes psicométricos, ou então
pelo próprio pediatra, de modo superficial porém válido, pela observação da conduta da criança, pelas informações da mãe e — se for o caso — pela escolaridade. O pediatra valer-se-á das informações contidas nos quadros 1 e 2. Dada a importancia da IO e da IM no dignóstico diferencial dos diferentes tipos de nanismo, convém apresentar alguns aspectos importantes referentes às mesmas. Em relação à idade óssea, recomenda-se ao leitor o estudo de recente revisão do autor à respeito 10. IDADE ÓSSEA (IO)
IO é o índice de desenvolvimento esquelético. Está relacionada com o crescimento físico (peso e altura) maturidade sexual, dentição, desenvolvimento mental etc. Depende do sexo, raça, fatores nutricionais e hormonais, bem como do órgão efetor, o próprio osso. A velocidade de ossificação é um traço hereditário: estudos de gêmeos, irmãos comuns e primos e de duas gerações, valorizam a influência genética. Afirma-se que a velocidade de maturação é herdada autossomicamente e que há uma relação básica geneticamente controlada entre a maturação física e a esquelética, relação que pode, entretanto, ser mascarada e modificada pelos fatores ambientais. O método é digno de confiança para comparar a IO evolutiva, mas de valor duvidoso na avaliação de uma única radiografia. O fato da IO ser determinada por comparação com padrões preestabelecídos, e de serem esses geralmente os apresentados por Greulich & Pyle 5, faz que seja de validade duvidosa a aplicação dos resultados em crianças não americanas. Sendo, no momento, impossível a confecção de um Atlas a partir de casuística brasileira, a alternativa seria a determinação dos desvios da IO de crianças normais brasileiras em relação ao Atlas de Greulich e Pyle e obtenção de fatores de correção. Os seguintes dados podem ser considerados na prática diária n: — quanto ao desvio em relação ao Atlas de Greulich & Pyle — zero meses: lactentes de ambos os sexos, pré-escolares e escolares de sexo feminino
menos seis meses: pré-escolares e escolares de sexo masculino quanto ao desvio-padrão da média — seis meses: lactentes de ambos os sexos doze meses: pré-escolares e escolares de ambos os sexos
IDADE MENTAL (IM) — Vide quadros 1 e 2 Para a realização de uma auxograma afere-se a idade mental da criança em estudo geralmente através dos testes de Gesell e de Terman-Merrill, embora muitos outros testes pudessem ser igualmente empregados. Falar-se de psicometria, ou seja, de "medidas" psicológicas é hábito comum mas não totalmente correto, pois se as medidas físicas têm unidades próprias (centímetros, gramas, segundos), não existem tais unidades psíquicas: usa-se, então, o padrão de tempo (idade) para base de comparação psicológica, tomando a posição de determinada criança em relação a grande grupo de crianças da mesma idade submetidas às mesmas provas. Sabe-se também que a realização da criança não é invariável; muitos fatores podem interferir na execução dos testes: doença, cansaço, ansiedade, medo, mau aprendizado escolar pouca simpatia entre examinado e examinador, negativismo voluntário por parte da criança etc. Nas crianças pertencentes à faixa etária de 1 a 42 meses (três anos e meio) aplica-se o teste de Gesell, que estuda as realizações da criança em quatro setores: motor, adaptativo, linguagem e pessoal-social. Para as crianças acima de três anos costuma-se aplicar o teste de Terman-Merrill, que é baseado no de Binet-Simon, e estuda ampla faixa de idade: desde os dois anos até o adulto superior. O teste de Terman-Merrill contém grande número de provas verbais e dependentes de escolaridade, o que poderá ocasionar um relativo falseamento da IM no estudo de crianças de meio sócio-econômico inferior ou com problemas específicos de linguagem. O examinador deverá avaliar na prática, contando com sua experiência profissional, se para um determinado caso será necessário outro teste. Relações recíprocas entre os elementos do auxograma (Fig, 3)
Figura 3 — Alguns auxogramas (não se cogitou da IG tendo em vista a idade dos pacientes). A — Em a: auxograma hipotético de uma criança normal ideal, porém, Irreal, isto é, altura, peso, maturidade óssea e idade mental rigorosamente ao nível de 1C. Na realidade, a normalidade é uma linha quebrada, com pequenos desvios em relação à 1C, tal como representado em b. B — Auxograma de um paciente do sexo feminino com nanismo primário (Reg. 419.550). Em a: configuração típica. Em b: IP > IA provavelmente porque a paciente estava iniciando a puberdade. C — Auxograma de um paciente do sexo masculino com nanismo pituitario (Reg. 807.277). Notar IA = IP praticamente, 10 < 1C (abaixo do valor correspondente a — 1,96 s da média esperada para 1C, conforme a tabela à pág. 64) e IM próxima de 1C. O — Auxograma de um paciente de sexo feminino com nanismo hipotireoidiano (Reg. 745.355). Notar IP > IA, 10 < 1C (abaixo do valor correspondente a — 1,96 s da média esperada para 1C conforme tabela à pág. 65) e IM muito atrasada que é um dos dados mais conspicuos do hipotireoidismo. E — Auxograma de um paciente do sexo masculino com nanismo carencial por má nutrição proteica (Reg. 818.727). Em a: à admissão, notar IP < IA; neste caso, IO está ligeiramente acima de IA e não entre IA e IP como era esperado. Em b: após cura clínica, notar prre/u/zo do crescimento e desenvolvimento residuais. F — Auxograma de um paciente de sexo feminino portadora de acondroplasia (Reg. 852.875). IP < IA o que indica obesidade, fato comum nesta condição quando o paciente pertence a famílias de bom. nivel sócio-econômico como é o caso presente. 10 abaixo do valor correspondente a — 1,96 s da média esperada para a 1C, conforme tabela à pág. 65. O aspecto geral do auxograma lembra hipotireoidismo, não fosse IM = 1C que afasta completamente este diagnóstico. G — Auxograma de um paciente de sexo feminino portadora de gargulismo (Reg. 748.444). Note-se que o perfil é também compatível com hipotireoidismo, pois estão presentes os seus dados básicos: IP > IA, IO < 1C (abaixo do valor correspondente a — 1,96 s da média esperada para 1C, conforme tabela à pág. 64) e IM muito atrasada. Convém lembrar que hipotireoidismo apresenta mucopolissacaridúria secundária e que, do ponto de vista clínico, é diagnóstico diferencial de gargulismo.
1C vs. IA A relação entre 1C e IA é a medida da intensidade da baixa estatura: quanto mais vertical a linha que une os pontos correspondentes, mais grave é o nanismo. Isso permite uma visualização muito boa do ponto de vista gráfico da evolução do caso, conforme a "verticalização" ou "horizontalização" da referida linha,
IA vs. IP As relações entre a altura e o peso do paciente propiciam informações valiosas: IA = IP: é a criança proporcionada, encontradiço na baixa estatura familiar e nos casos de hipopituitarismo, esses podendo eventualmente evoluir com IA>IP, mas com diferença pouco pronunciada. IA>IP: é a situação característica de problema nutricional, seja primário seja secundário (doença celíaca, mucoviscidose, diarréia crônica de variada etiología). Nesses casos, o paciente, além da baixa estatura, apresenta-se emagrecido: nos doentes com má nutrição proteica primária, a diferença entre IA e IP pode ser muito acentuada, por exemplo, 1C = 2 anos, IA = 18 meses e IP = 4 meses. IA
IA e IP vs. IO Considere-se o intervalo entre IA e IP como sendo o "espaço somático", em relação ao qual a IO pode-se localizar acima, no mesmo nível e abaixo. Acima e bem acima, ao nível de 1C, corresponde à baixa estatura familiar, que não apresenta nenhum dado anormal além da baixa estatura: acima, mas não tão acima como referido antes, com atraso não desprezível em relação à 1C, pode corresponder aos hipopituitários. No mesmo nível, configura-se a situação típica da desnutrição primária, quase sem exceção. Finalmente, abaixo (podendo ser muito abaixo), é a situação que costuma ser encontrada no hipotireoidismo. As relações entre a idade somática (IA e IP) e a 10 têm um valor prognóstico. Considere-se IA e IP como crescimento (C) e IO como maturidade (M). Normalmente, C e M
são tão bem balanceados que podem ser considerados aspectos do mesmo processo, apresentando uma velocidade equivalente, isto é, a uma unidade de ganho de altura, por exemplo, corresponde uma unidade de ganho de maturação, no mesmo tempo decorrido. Todos os processos capazes de perturbar o crescimento e desenvolvimento da criança, que evoluem com atraso equivalente de C e M, determinam a conservação do potencial de crescimento, visto que M cessa tarrfbém, à espera de que C possa superar os agravos. No caso contrário, atraso de C com M processando-se normalmente, ocorre, por assim dizer, "perda de tempo" para C, visto o progredir de M determinar uma diminuição do tempo útil de crescimento.
1C vs. IM A IM desempenha o importante papel de contribuir para a divisão da baixa estatura em dois grandes grupos, a saber: o que evolui com rebaixamento intelectual e o grupo que apresenta desenvolvimento intelectual normal. Hipotireoidismo, desnutrição (primária principalmente), algumas mucopolissacaridoses (com ênfase em gargulismo) e algumas doenças do grupo das alterações cromossômicas são os principais exemplos do grupo que apresenta IM muito baixa. Na desnutrição, a localização mais habitual da IM é entre os parâmetros somáticos e a idade cronológica.
1C vs. IG Somente a partir de 10 anos de idade cronológica é que se cogita de valorizar atraso da IG. Em crianças de baixa estatura de causa familiar, sem nenhuma doença associada, o atraso da IG é fator de melhora do prognóstico quanto à estatura final: nessas crianças, quanto mais tarde a puberdade, maiores as oportunidades de uma altura final satisfatória. Claro está que, em meninas, a idade da menarca é considerada conjuntamente com a IG. O avanço de IG, que caracteriza os quadros de puberdade precoce (muitas vezes associado ao avanço da IO), representa certamente piora do prognóstico quanto à estatura final.
No estudo dos casos, ao final da etapa III poderá estar esclarecida a etiología do crescimento deficiente. Em caso contrário, passa-se para etapa IV.
Etapa IV A etapa IV será cogitada em duas circunstâncias: 1) tentativa de elucidação diagnóstica. 2) documentação do caso, Em relação à primeira, Sills u, no estudo de 185 crianças com fracasso do crescimento, afirma que em 2.607 estudos laboratoriais realizados, somente 34 (1,4%) foram úteis na elucidação etiológica do caso, sendo 1,0% ao nível de confirmação e apenas 0,4% ao nível de elucidação. Assim, concordamos que nenhum exame laboratorial ou radiológico deve ser solicitado sem alguma indicação clínica, desaconselhando-se enfaticamente as "baterias de exames e testes". A determinação da idade óssea, recorde-se, faz parte da etapa III com vista à construção do auxograma: obrigatório, pois, no estudo de todas as crianças cujo estudo atinge a etapa III. Aceita-se que 20 a 30% das crianças portadoras de nanismo não terão seu caso elucidado quanto à etiología. Em relação à segunda circunstância, claro está que se justifica a realização de tais ou quais exames com vista ao ensino e à investigação, em centros universitários. Apresenta-se no quadro 4 alguns exames subsidiários importantes para a elucidação do tipo de nanismo apresentado por crianças sem diagnóstico etiológico após a etapa III: tais exames são considerados ao nível de 1.a e 2.a linhas. O ponto de partida é um determinado conjunto de sinais e sintomas. Apresenta-se, em seguida, um roteiro que se resume o exposto anteriormente. Note-se que há três terminais: 1) esclarecimento familiar (o que inclui a própria criança conforme sua idade) em relação a crianças com crescimento normal; 2) criança em observação: cuidados gerais e orientação familiar quando a criança está em vigilância com exame clínico normal e velocidade de crescimento normal ou então quando a criança é portadora de baixa estatutra com diagnóstico não elucidado e
3) tratamento etiológico se for o caso: cuidados gerais e orientação familiar para as crianças cujo problema está definitivamente esclarecido. Se for lembrado que a maior parte das crianças com grave deficiência de crescimento não são passíveis de tratamento etiológico, conclui-se que a observação continuada da criança, os cuidados gerais e a orientação familiar constituem a verdadeira linha de ação do pediatra na abordagem do problema, sem prejuízo de um pequeno contingente de casos realmente tratáveis do ponto de vista etiológico. Em relação à criança em vigilância com velocidade de crescimento normal, elas podem usufruir o estirão da puberdade e atingir estatura final mínima satisfatória (1,50m para o sexo feminino e 1,60m para o sexo masculino): urge defender essas crianças de ações iatrogênicas, orgânicas e psíquicas. Por outro lado, a baixa estatura psicossocial assume gradativamente um papel muito importante na nosología pediátrica e é lamentável que muitos pediatras resistam à evidência dos fatos e insistam na busca de causas orgânicas da baixa estatura, através de agressiva investigação laboratorial, menosprezando a ação deletérica sobre o crescimento exercida pelo ambiente adverso. Finalmente, nunca será demais lembrar que a principal causa da baixa estatura da população infantil brasileira encarada como um todo é a desnutrição, associada com freqüência às agressões de variada patologia infecciosa. O tratamento dessa condição, sabemos todos, não é problema médico, mas sim social e econômico, pendente da política do poder público na acepção mais abrangente que a palavra política puder comportar.
Endereço para correspondência: Instituto da Criança Hospital das Clínicas Av. Dr. Enéias de Carvalho Aguiar n.° 647 São Paulo — SP — CEP 05403 Brasil
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