Rs31 Conexao Arqueologia

  • June 2020
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conexão brasilis CONEXÃO BRASILIS

SEGREDOS road rage ROAD RAGE

AMAZÔNIA

DA

ANTIGA O

Pesquisas nos maiores sítios arqueológicos da América do Sul estão revolucionando o que se definia como o passado da Amazônia précolonial. Parte do cotidiano dos caboclos locais, eles escondem mistérios sobre os antigos habitantes da nossa terra POR

80 • Rolling Stone Br asil, Abril, 2009

MÔNICA TRINDADE CANEJO FOTOS MAURÍCIO DE PAIVA

dia amanhece com o cheiro de café recém-coado e o barulho das batedeiras manuais de açaí, vindos das pequenas casas de madeira enfileiradas na beira. Era preciso esperar ainda algumas horas enquanto a vazante recolhia as águas do rio Araramã e deixava a margem finalmente exposta. Desço do nosso barco e caminho pela única rua, uma espécie de trapiche de madeira, que compõe a Vila Tessalônica, uma comunidade a seis horas do centro da cidade de Afuá, na região do Arquipélago do Marajó, no Pará. Uma mulher me chama e, enquanto aponta um local, me fala: “Venha ver a greguinha”. Aproximo-me da beira enlameada e, sob uma grande árvore, vejo, ainda semienterrada, uma urna funerária. Apenas uma parte aflora à superfície. Neste pedaço, desenhos incisos realmente se assemelham a volutas gregas, caprichosamente traçadas em relevo. Uma peça arqueológica produzida pelos índios marajoaras, que ocuparam a área entre os anos 450 d.C. e 1350 d.C. Além da greguinha, várias outras urnas se exibem cada vez que o rio baixa. Para os moradores da Vila Tessalônica, esta convivência com o passado remoto já faz parte de suas vidas. Seu Joaquim Ferreira tem 70 anos, um bigode ralo e branco, e nos conta que foi um dos primeiros a se mudar para o local, há mais de 40 anos. “Nessa época, tinha muito mais vasilhas. Hoje existe pouca peça inteira, à mostra, a maioria foi quebrando com a força da água.” Com a voz tranquila, ele me fala sobre a fantasia que muitos têm de que as urnas eram potes usados para se guardar ouro. Mas ele sabe que o objetivo era outro. “Elas serviam para agasalhar os mortos.” A vila – um pequeno alinhamento de casas, com uma igreja evangélica e um posto médico – está postada às margens do rio Araramã. E inocentemente plantada sobre um aterro funerário, onde possivelmente se realizavam ritos sagrados. O fato é que, por todo o Arquipélago do Marajó, esses vestígios da passagem do homem antes da chegada dos europeus são imensos. Quando boa parte das ilhas

conexão brasilis CONEXÃO BRASILIS

SEGREDOS road rage ROAD RAGE

AMAZÔNIA

DA

ANTIGA O

Pesquisas nos maiores sítios arqueológicos da América do Sul estão revolucionando o que se definia como o passado da Amazônia précolonial. Parte do cotidiano dos caboclos locais, eles escondem mistérios sobre os antigos habitantes da nossa terra POR

80 • Rolling Stone Br asil, Abril, 2009

MÔNICA TRINDADE CANEJO FOTOS MAURÍCIO DE PAIVA

dia amanhece com o cheiro de café recém-coado e o barulho das batedeiras manuais de açaí, vindos das pequenas casas de madeira enfileiradas na beira. Era preciso esperar ainda algumas horas enquanto a vazante recolhia as águas do rio Araramã e deixava a margem finalmente exposta. Desço do nosso barco e caminho pela única rua, uma espécie de trapiche de madeira, que compõe a Vila Tessalônica, uma comunidade a seis horas do centro da cidade de Afuá, na região do Arquipélago do Marajó, no Pará. Uma mulher me chama e, enquanto aponta um local, me fala: “Venha ver a greguinha”. Aproximo-me da beira enlameada e, sob uma grande árvore, vejo, ainda semienterrada, uma urna funerária. Apenas uma parte aflora à superfície. Neste pedaço, desenhos incisos realmente se assemelham a volutas gregas, caprichosamente traçadas em relevo. Uma peça arqueológica produzida pelos índios marajoaras, que ocuparam a área entre os anos 450 d.C. e 1350 d.C. Além da greguinha, várias outras urnas se exibem cada vez que o rio baixa. Para os moradores da Vila Tessalônica, esta convivência com o passado remoto já faz parte de suas vidas. Seu Joaquim Ferreira tem 70 anos, um bigode ralo e branco, e nos conta que foi um dos primeiros a se mudar para o local, há mais de 40 anos. “Nessa época, tinha muito mais vasilhas. Hoje existe pouca peça inteira, à mostra, a maioria foi quebrando com a força da água.” Com a voz tranquila, ele me fala sobre a fantasia que muitos têm de que as urnas eram potes usados para se guardar ouro. Mas ele sabe que o objetivo era outro. “Elas serviam para agasalhar os mortos.” A vila – um pequeno alinhamento de casas, com uma igreja evangélica e um posto médico – está postada às margens do rio Araramã. E inocentemente plantada sobre um aterro funerário, onde possivelmente se realizavam ritos sagrados. O fato é que, por todo o Arquipélago do Marajó, esses vestígios da passagem do homem antes da chegada dos europeus são imensos. Quando boa parte das ilhas

HOMEM DA AMAZÔNIA Esqueleto encontrado no sítio Hatahara, em Iranduba, AM, em 2007. De acordo com testes, ele tem entre 1000 e 1200 anos; Ao lado, ruínas de Paricatuba, AM, onde pesquisadores investigam vestígios arqueológicos, como objetos de cerâmica Rolling Stone Br asil, Abril, 2009 • 81

AMAZÔNIA ANTIGA passou a ser ocupada por fazendas que investiam em pecuária bufalina, com a chegada dos robustos búfalos de chifres tristonhos, muitas peças passaram a ser encontradas. Durante 15 dias, fomos com nosso barco visitando diversas dessas localidades. Em todas, fragmentos de cerâmica iam avisando que, por ali, passou alguém num passado remoto. Mas essa não é uma realidade exclusiva do Marajó. Ela se repete por toda a região. Durante quatro anos, o fotógrafo Maurício de Paiva perseguiu esse tema, acompanhando pesquisadores pela Amazônia brasileira. Foi à Santarém, Manaus, subiu o rio Negro, desceu o Solimões, embrenhou-se pelo Amapá, dormiu em redes, sentou-se à mesa do caboclo para comer açaí com farinha de tapioca. E, além de ganhar alguns quilos e trocar o tom pálido de pele por um bronzeado caboclo em cada viagem, compreendeu por que as pesquisas estão revolucionando o que até poucos anos se definia como o passado da Amazônia précolonial.

1

SEGREDOS ANTIGOS

A

prende-se na escola que essa era uma região de solo pobre, de florestas intocadas, o “inferno verde”. Um lugar onde o homem nunca foi muito bem-vindo, com exceção de um ou outro grupo indígena, daqueles que coletavam algumas frutas, caçavam alguns animais e iam logo embora, 2 com medo da Cobra Grande. E que é assim mesmo que deve ser, uma floresta eternamente imaculada. A questão só começou a ser revista nos anos 80, com o inicio dos estudos da norte-americana Anna Roosevelt. Especialmente nos últimos 15 anos, a intensificação das pesquisas de campo está provando que havia não só muita gente em toda a Amazônia brasileira como essas pessoas estavam organizadas em sociedades sofisticadas, com complexas redes de intercâmbio cultural e econômico. Para começar, vestígios arqueológicos comprovam a passagem do homem na Serra dos Carajás e em Monte Alegre, no Pará, há cerca de 11.200 anos. Nas áreas litorâneas, onde grandes aterros formados por cascas de moluscos e ossos – chamados de sambaquis – dão conta da presença humana, estima-se que ocupações tenham existido há mais de 5.500 anos. Em alguns lugares, os indícios deixados nos fazem pensar até que ponto de sofisticação chegava o conhecimento desse homem ancestral. No estado do Amapá, por exemplo, cerca de 20 sítios arqueológicos formados por alinhamentos de pedras, que podem passar dos 3 metros de altura, intrigam pesquisadores e moradores. Conhecidas desde o final do século 19, essas estruturas são únicas no Brasil e praticamente não foram estudadas até 2005, quando Mariana Petry Cunha e João Darcy Saldanha começaram sua pesquisa. O jovem casal, vindo do Rio Grande do Sul, tem dedicado especial atenção a certo sítio, no município de Calçoene. Bem ali, um tantinho acima da linha do Equador, é impossível fugir do calor. Mas eles não largam as enxadas. É importante escavar ao redor das rochas para descobrir se existem enterramentos ou utilitários de cerâmi82 • Rolling Stone Br asil, Abril, 2009

1. Vila Tessalônica, no Arquipélago do Marajó, no Pará; 2. O chileno Manuel Arroyo em um sítio escola em Iranduba; 3. Eduardo Góes Neves, um dos mais respeitados pesquisadores da Amazônia; 4. Rotina: na casa de um morador, urna funerária Guarita, encontrada em Altazes, AM

3

4 ca, para avaliar se o local era de uso cotidiano ou sagrado. Numa espécie de círculo formado por grandes rochas, uma delas, com um orifício ao centro, desperta curiosidade: sua inclinação está relacionada ao solstício de dezembro. Uma espécie de marcador do tempo que demonstra os conhecimentos astronômicos de seus construtores. “Este sítio é a transformação de algo tão efêmero como a observação da natureza em uma estrutura sólida e duradoura”, afirma João Darcy Saldanha. O casal de arqueólogos foge como o diabo da cruz de uma aparentemente óbvia, porém extremamente perigosa, associação com Stonehenge, o famoso sítio arqueológico na Grã-Bretanha. Mesmo porque suas pesquisas ainda estão na fase de coleta de dados, longe de conclusões.

No Amapá estão ainda muitos outros sítios, com cerâmicas de diferentes tradições culturais. As urnas funerárias conhecidas como Maracá e Cunani, por exemplo, têm um impressionante desenho antropomorfo, que revela elaborada riqueza cultural. Mas é mais um caso onde as pesquisas ainda não trouxeram muitas pistas. Seguindo na direção oeste, subindo o lendário Amazonas, os estudos estão mais adiantados. Na Amazônia Central, que inclui Manaus e arredores, o número de pesquisadores é bem mais significativo. Eles vêm de São Paulo, Minas Gerais, Argentina, Itália, Estados Unidos, entre outros cantos do mundo. O ponto de convergência de todos é o Projeto Amazônia Central, ou, simplesmente, PAC. E, por trás dessa sigla, há um nome reconhecido no meio acadêmico nacional e internacional: Eduardo Góes Neves. Ou, simplesmente, Edu. A primeira vez em que tentamos algum contato com Edu, não foi muito fácil. Ele nunca estava de bobeira em sua sala no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, o MAE. Um dia num congresso no exterior, no outro em campo, ou numa banca examinadora. Até que, finalmente, ele próprio nos ligou do aeroporto, quando já embarcava para mais uma viagem, e conseguimos marcar uma reunião. Foi ele quem primeiro nos alertou para o grande dilema da sua profissão: “A arqueologia tem uma crise de identidade constante, ela se pergunta muitas coisas a todo momento”. Continua difícil achá-lo disponível, mas com a chance de conhecer melhor o trabalho que ele iniciou fica claro que ali se encontra muito mais do que um professor universitário. Em uma área que envolve profissionais realmente comprometidos e – por que não? – apaixonados, é como se Edu fosse um personagem à parte. Ele mesmo conta, em suas aulas no MAE, que era um jovenzinho aventureiro quando se embrenhou na Amazônia pela primeira vez. Sua intenção era testar, em campo, teorias vigentes. Longe de qualquer comprovação, ele se deparou com evidências de que muito do que se pensava estava errado. A partir daí, precisou criar suas próprias teorias e viabilizar novas formas de se pesquisar. Foi como se abrisse portas para dezenas de outros pesquisadores de várias partes do mundo. Em 1995, criou em parceria com os colegas norte-americanos Michael Heinckenberg e James Petersen o audacioso PAC. Hoje, com pouco mais de 40 anos, o doutor em arqueologia pela Universidade de Indiana (EUA) é uma referência mundial. Mas, se ele passa mais horas em assentos de avião do que em sua própria cama, há um lugar onde ele parece mais em casa que em qualquer outro: na Amazônia. Durante o dia, assume a direção da Kombi branca pelas estradas de terra, discute hipóteses em diferentes idiomas com colegas de todo o mundo, dá entrevistas a jornalistas afoitos e ainda supervisiona o trabalho nos chamados

sítios-escolas, onde estudantes têm a oportunidade de participar de escavações. À noite, deitado numa rede, acende uma lanterna para manter a leitura em dia. Mas, mesmo que um de seus principais mentores não esteja presente, o PAC mantém-se firme graças ao esforço de um número cada vez maior de pessoas interessadas em desvendar os segredos da Amazônia, pesquisadores de diferentes disciplinas, que criam uma complexa rede de informação em variados ramos da ciência. E todos esbarram em alguém que é fundamental para o bom andamento do trabalho: o velho e bom caboclo. Caminhando entre os mamoeiros, Pedro Gomes Dias observa o efeito da chuva, que há vários dias caía sem descanso, encharcando o solo, para a alegria das plantas, e obstruindo as estradas, para a tristeza dos produtores rurais. Pedro é um bom exemplo desse homem que hoje ocupa a Amazônia. Agricultor, mora com a família no entorno do sítio arqueológico do Laguinho, em Iranduba, a 25 km de Manaus. Sua

reno rochoso como céus enevoados. Não sabemos se os habitantes podem andar pela cidade alargando as galerias das minhocas e as fendas em que se insinuam raízes: a umidade abate os corpos e tira toda a sua força; convém permanecerem parados e deitados, de tão escuro. De Argia (...), daqui de cima, não se vê nada, há quem diga: ‘está lá embaixo’ e é preciso acreditar; os lugares são desertos. À noite, encostando o ouvido no solo, às vezes se ouve uma porta que bate”. Calvino não estava pensando em arqueologia quando poetizou sobre os mortos. Mas foi essa mesma visão que atraiu Cláudio Roberto Cunha para os braços da arqueologia. Cláudio era um jovem taxista que conduzia arqueólogos de barco durante um sítio-escola. No ano seguinte, ofereceram-lhe uma ferramenta para ajudar na escavação. Foi a deixa que ele esperava. Seu pensamento, quase uma brincadeira, é que, a cada 10 centímetros escavados, dez anos de vida se revelam. Escavar 1 metro é como desvendar a história de toda

É COMUM ENCONTRAR URNAS FUNERÁRIAS NAS CASAS LOCAIS, COMO PEÇAS DE DECORAÇÃO OU UTENSÍLIOS DOMÉSTICOS. ESTAS PESSOAS ESTÃO DESRESPEITANDO O PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO? casa, construída com madeira tirada da floresta, como todas por ali, fica numa área elevada constituída por montículos, aterros recheados de cacos de cerâmica. Ele tem sua própria versão a respeito dos cacos: “Os pais da gente falavam, quando encontravam as cabecinhas, que era coisa dos indígenas, era o passado que era passado de pai pra filho”.

P

edro planta mandioca, laranja, cria cabeças de gado. E seu principal ganha-pão é o mamão, que vende para mercados em Manaus. Mas os cientistas nem ligam para a fruta. Seus olhos estão voltados para o chão: os 6 mil pés de mamão de Pedro estão fincados numa terra escura e fértil, que esconde mais do que raízes. É a Terra Preta Arqueológica, a TP. Um solo classificado como antrópico, já que foi produzido pelo homem, por dejetos orgânicos deixados ao longo dos séculos. Onde há TP, houve ocupação humana por longo tempo. Quanto maior o espaço ocupado por ela, maior o número de pessoas que ali viveu. Quanto mais profunda, maior o tempo em que essa comunidade se estabeleceu. Hoje, a TP é um solo de alto valor comercial, já que é riquíssimo em matéria orgânica, e tanto pode ser procurado para quem deseja estabelecer uma plantação quanto por empresas de paisagismo, que comercializam essa terra para o uso em jardins. Ela também tem instigado pesquisadores que acreditam na hipótese de reproduzi-la intencionalmente para recuperar áreas de solos degradados. Compreender como, exatamente, ela se formou, significaria um grande avanço em locais onde o solo não oferece condições de agricultura. Mas, para os arqueólogos, ela tem outro valor. Na obra As Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino escreveu: “O que distingue Argia das outras cidades é que no lugar de ar existe terra. As ruas são completamente aterradas, os quartos são cheios de argila até o teto, sobre as escadas pousam outras escadas em negativo, sobre os telhados das casas premem camadas de ter-

uma vida. Em 2009, Cláudio, aos 33 anos, completa uma década de trabalhos no PAC. E explica que isso mudou sua própria visão de mundo: “Achar uma peça de 2 mil anos é um mistério, como a vida. A arqueologia mudou o modo como eu vejo a natureza, olho para a mata, como vejo um ser humano”. É este ser humano o que esses profissionais estão buscando quando vêm com suas espátulas e pincéis, desbastando os perfis terrosos. Eles vislumbram a vida latente deixada ao longo dos séculos abaixo do chão onde crescem mandiocas e mamões. Jaz ali, impressa nas escavações de TP, a história de pessoas reais. Ou, nas palavras de Cláudio: “Você passa por momentos que as pessoas viveram antes, que estão intactos, selados na unidade”. Utensílios domésticos, sobras do jantar, objetos ritualísticos. Resquícios de uma comunidade que se congelou por séculos em paredes de terra. Até mesmo o próprio homem está presente, na forma de esqueletos impressionantemente preservados. Com estes vestígios, é possível investigar atentamente como se construía este dia-a-dia. Um único esqueleto pode falar sobre seu sexo, a idade ao morrer, a dieta, a estatura. Sorrisonildo, batizado assim pelos participantes do sítio-escola de 2007, realizado no sítio Hatahara, também em Iranduba, é um desses esqueletos. Uma acertada alcunha quando observamos que tem ótimos dentes para quem viveu antes da chegada dos dentistas. Sem mudar da cômoda posição fetal em que descansa há mil anos, Sorrisonildo nos conta que se alimentava à base de mandioca, não de milho. É que a mandioca, ao contrário do milho, não possui sílica, uma substância que facilita a formação de cárie. É assim, indo fundo em cada detalhe, que cientistas de diferentes formações acadêmicas vão trabalhando em conjunto. Um botânico procura sinais de agricultura. Ao seu lado, um especialista em solos vai descobrindo a composição química do terreno. No laboratório, uma historiadora da arte restaura e compara peças de cerâmica. Rolling Stone Br asil, Abril, 2009 • 83

AMAZÔNIA ANTIGA 1

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VESTÍGIOS INVESTIGADOS 1. Em Lauro Sodré, arqueólogos e moradores interagem; 2. Urna funerária com forma humana dos Guarita, grupo indígena que habitou a Amazônia Central entre os séculos IX e XVI

Hoje, sabe-se que a Amazônia brasileira guarda os maiores sítios arqueológicos de toda a América do Sul. A grande preocupação é como preservá-los. A maioria, cerca de 90%, ainda não recebeu a visita de um arqueólogo, não foi registrada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não consta em nenhuma tese de mestrado. É comum encontrar grandes urnas funerárias dentro das casas locais, utilizadas como se fossem peças de decoração. Estas pessoas estão desrespeitando o patrimônio cultural brasileiro? A legislação prevê, desde 1961, que todo artefato arqueológico é de propriedade da União, portanto está proibida toda forma de comercialização. Mas a verdade é que a preciosidade dessas peças está além do alcance oficial. E, enquanto entidades competentes não se dispõem a guardar os artefatos, é o próprio caboclo que faz as vezes de guardião do tesouro.

Carla Gibertone Carneiro, educadora ligada ao PAC, coordena uma equipe que visita as comunidades num extenso trabalho de educação patrimonial. Mas como explicar a um morador que é importante guardar uma peça feita por um índio que ninguém nem sequer sabe dizer o nome? Ela explica que a primeira barreira é a questão da identidade cultural. “Essas pessoas não se identificam com os índios, elas não se reconhecem como descendentes deles.” E, de certa forma, não descendem mesmo. Se formos generalizar, o morador atual da Amazônia se identifica mais com seus ascendentes nordestinos, a maioria vinda nos tempos agitados da extração da borracha. O morador remoto, este que fez a cerâmica encontrada, ninguém sabe realmente para onde foi. É provável que, com a chegada dos colonizadores europeus, tenha migrado para outros territórios,

Pele bronzeada pelos muitos anos de sol paraense, cabelos escuros e jeito atlético, Denise é uma gaúcha de pouco sorriso. Mas que se mostra à vontade com os moradores do Marajó, enquanto se senta para tomar café e entra numa prosa com os caboclos sobre visagens. Pode-se dizer também que conhece como ninguém a arqueologia no Marajó. É dela a surpreendente tese de que os desenhos coloridos que decoram as cerâmicas marajoaras são uma espécie de escrita. Complexas combinações de sinais que, na verdade, representariam narrativas míticas. Em cada peça decorada, um conjunto de desenhos conta a história de uma pessoa, talvez de um clã. Um código que hoje é um enigma, mas que, em seu tempo, era compreendido por uma sociedade. Tanto se fala sobre as ricas culturas inca, maia, asteca, e, de repente, alguém ensina que aqui mesmo no Brasil um grupo indígena précolombiano chegou a um grau de sofisticação tão elevado que possuía escrita própria. Naquela manhã na Vila Tessalônica, onde me mostraram a greguinha, não compreendi sua real importância. No caminho de volta, enquanto o barco serpenteava vagaroso pelas águas escuras do rio Araramã, observei em silêncio suas margens tomadas pela mata fechada, com altos açaizeiros espetados aqui e acolá. Só então me dei conta de que toquei com meus dedos um objeto sagrado. Uma peça moldada por mãos hábeis de alguém que viveu há séculos, talvez um milênio, para agasalhar o corpo de outra pessoa, num ritual de respeito e devoção. Quem foram esses antigos habitantes do Brasil? Para que deuses elevavam suas vozes? Com que nomes batizavam seus filhos? Que mensagens inscreveram no barro cozido dessas urnas? Segredos guardados por tantos anos, enterrados numa terra que hoje é pisada pelos pés de outros homens. Outros homens que têm, por sua vez, os próprios segredos para zelar.

A GRANDE PREOCUPAÇÃO É COMO PRESERVAR OS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS DA AMAZÔNIA. CERCA DE 90% DELES NÃO RECEBERAM A VISITA DE UM ARQUEÓLOGO, NÃO FORAM REGISTRADOS PELO IPHAN

N

a comunidade de santa rita da valéria, em Parintins, Amazonas, a chuva derruba terra dos barrancos, deixando à mostra apliques de vasilhas com formas de cabeças de pessoas ou animais, chamadas de caretinhas. Uma manhã, enquanto fotografava, Maurício de Paiva conversou com um morador, de nome Marciano, um pescador, pai de oito filhos e fã de Amado Batista, que contou ter cerca de 300 caretinhas guardadas e que prefere mantê-las num balde a deixar que sejam vendidas ou que se percam. Com a presença cada vez mais assídua de pesquisadores, a população já está conscientizada de que o comércio é ilegal. Mas o desafio é que eles compreendam que esses objetos são importantes para sua própria cultura.

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sido dizimado por epidemias ou assimilado pelas missões religiosas e se desagregado socialmente. Não basta aos educadores usarem o discurso da herança cultural. É necessário compreender como esses moradores exercem seus próprios sistemas de valores e estabelecer um diálogo, em que tanto se ensina quanto se aprende. O que Carla definiu como um trabalho para a vida toda. Essa lida constante com os atuais moradores faz parte da rotina de todo bom arqueólogo. Quando terminamos nossa viagem pelo Arquipélago do Marajó, fomos atrás de Denise Pahl Schaam, atual presidente da Associação Brasileira de Arqueologia. “Pesquisadores não se atêm apenas a achar peças e fragmentos e dizer: ‘A h, uma urna funerária!’ Um sítio se pesquisa, se convive, para especificar outras ideias e pensamentos.”

O livro Arqueologia na Amazônia - Entornos (Ed. DBA), com imagens de Maurício de Paiva e textos da jornalista Mônica Trindade Canejo e do arqueólogo Eduardo Góes Neves, será lançado em setembro deste ano.

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