Resenha do capítulo 2 (Processos de Transformação da Sociedade e do Estado) do livro Teoria Materialista do Estado de Joachim Hirsch Discente: Rayane Brasil Barbosa A crise dos anos 70 provocou diversas mudanças no cenário internacional. A União Soviética se desfez e os Estados Unidos tiveram a sua hegemonia questionada por novos players como o Japão, a China e a Europa Ocidental. Dentre os países recentemente industrializados, alguns parecem alcançar ou se aproximar da posição das antigas metrópoles, enquanto outros, como os latino-americanos, sofreram mais intensamente os abalos da crise econômica e suas consequências. Muitos Estados Nacionais estão se decompondo em diversos grupos cujos interesses conflitantes geram cada vez mais conflitos e guerras civis. Países e regiões do mundo estão lutando contra a periferização e tentando reformular as suas relações com outros países face à ascensão de novos agentes hegemônicos. Esta é uma das principais razões para as recentes explosões de nacionalismo, de racismo e de fundamentalismo. O que conhecemos hoje como "Nova Ordem Mundial" parece muito mais uma desordem global crescente. Muito do que as teorias do sistema internacional versavam hoje pode não se aplicar mais na prática. Está ficando cada vez mais difícil falar de "Primeiro" ou de "Terceiro Mundo" como partes delimitadas do sistema global. Não que o "Terceiro Mundo" e suas condições de produção e vida estejam deixando de existir. Na verdade é a relação entre os países capitalistas centrais e a periferia que torna-se mais complexa e instável. Suas fronteiras tornaramse muito mais permeáveis e seus papéis no sistema internacional muito menos engessados. O desmantelamento da antiga ordem mundial também provocou desordem nas tradicionais ideias da teoria política. Por exemplo, a teoria das relações internacionais falha em explicar a nova situação "pós-hegemonia", a qual acompanhou o declínio econômico, no que diz respeito ao colapso das antigas superpotências. O keynesianismo perdeu sua posição dominante no campo da teoria econômica. A conjuntura nos mostra que o mercado não resolve todos os problemas da sociedade nem tampouco a existência de um aparelho de poder estatal centralizado é um requisito suficiente para a estabilidade e o desenvolvimento da sociedade. Diante desse cenário, temos que perguntar se há algumas estruturas teóricas novas que sejam capazes de explicar a nova conjuntura econômico-social pós nova ordem mundial e suprir as deficiências de todas as abordagens tradicionais. A Teoria da Regulação parece surgir como uma solução. Teoria que foi desenvolvida como uma reação à crise econômica mundial da década de 70, ela foi considerada um instrumento de correção das falhas nas teorias econômicas existentes. A Teoria da Regulação foi inicialmente desenvolvida por alguns cientistas franceses, especialmente nas universidades de
Paris e Grenoble, assim como no círculo do Centre d'Etudes Prospectives d'Economie Mathématique Appliquées à la Planification (CEPREMAP), que se ocuparam do exame crítico das concepções dominantes da teoria econômica e da política econômica (Waringo, 1998). A teoria da regulação contribui para o entendimento das atuais mudanças estruturais do capitalismo. A globalização pode ser interpretada como uma reestruturação neoliberal do capitalismo global, ou seja, um meio de reorganizar as bases do capitalismo mundial após a crise dos anos 70. Essa reestruturação precisa alcançar um amplo raio, tanto nas relações sociais como nos sistemas políticos. O seu objetivo principal é dissolver as estruturas políticas e as relações de classe, que são as características do capitalismo "fordista" pós-guerra. Entretanto, é importante ressaltar que esse processo não é fruto de nenhuma lógica econômica ou trajetória histórica construída por atores diversos no decorrer do tempo. Foi uma decisão estratégia política deliberada, tomada pelos setores internacionalizados do capital, em conjunto com governos neoliberais. O objetivo desses grupos era dar início à um processo de racionalização global e sistêmico — com base na internacionalização, na desregulação e na flexibilização —, do qual se esperava o restabelecimento da rentabilidade do capital. Á respeito da estrutura teórica da Teoria da Regulação, pode-se afirmar que ela é uma reflexão sobre a crise do capitalismo mundial ocorrida nos anos 70 e sobre a reorganização conexa das estruturas internacionais de dominação e dependência entre os países. Historicamente, os países que se tornaram internacionalmente hegemônicos são aqueles que no sentido político e social puderam construir um contexto de acumulação e regulação sólido, articulando-o internacionalmente para que ele não dependa de outros países, mas outros países dependam dele, de tal maneira que ele conseguisse obter um crescimento econômico autônomo, constante e sólido. A dominação econômica internacional se caracteriza por criar, dentro do país, um contexto de acumulação e regulação que está tão conectado a nível internacional que o país correspondente pode ser temporariamente o destino de todos os fluxos de mercadorias, dinheiro e capital, obtendo pioneirismo tecnológico e sendo mais competitivo na produção dos gêneros mais importantes de sua época. Assim, estes países têm o poder de determinar, a nível mundial, as normas de produção, de trabalho, de tecnologia e de consumo, que fazem com que os recursos econômicos de outros países tornem-se a base de sua própria expansão. E foi desse modo que, na primeira metade do século, os Estados Unidos foram capazes de desenvolver um tipo de sociedade capitalista único e novo (conhecida como “Fordismo Global”), que lhe assegurou um longevo período de crescimento, uma superioridade da produtividade da mão de obra e do domínio tecnológico. Entretanto, foi a organização da sociedade em termos econômicos, sociais e políticos que elevou à níveis astronômicos a competitividade do país. E as outras nações tiveram que se adaptar à essa nova realidade. Não é à toa que o século XX é chamado de “Século Americano”.
A Teoria da Regulação destaca que o capitalismo não pode ser caracterizado como uma estrutura homogênea e estável e que não existem leis objetivas que regem o seu desenvolvimento histórico. Pode-se atestar que, historicamente, o capitalismo já assumiu formações sociais variadas. O objetivo fundamental da Teoria da Regulação foi desenvolver uma estrutura para a análise das diversas formações históricas do capitalismo, seu desenvolvimento, suas crises e transformações. Dentro deste contexto, a questão fundamental da Teoria da Regulação é: como pode o capitalismo — formada por grupos com interesses antagônicos que lutam entre si — ser estável? Isso não pode ser explicado por meros mecanismos econômicos. O que precisa ser explicado, sobretudo, é por que e como indivíduos se submetem a relações sociais exploradoras que tornam possível a acumulação do capital? Além disso, é preciso explicar por que o conflito de classes não destrói todo o sistema. Para isso é faz necessário analisar as normas de comportamento social, das instituições sociais e dos valores sociais estabelecidos. A Teoria da Regulação versa sobre as formas heterogêneas de apresentação do capitalismo na história, as quais foram investigadas no tempo e no espaço, suas inter-relações e seus processos de crise e desenvolvimento. Ela parte do pressuposto de que cada uma dessas formações é caracterizada por um relacionamento complexo entre um "regime de acumulação", de um lado, e, de outro, um "modo de regulação". Para Lipietz (1985), conceitua-se regime de acumulação como um modo de produção determinado que garanta, "por períodos mais extensos, as relações de correspondência entre as condições materiais de produção e seu desenvolvimento (isto é, o volume de capital invertido, a estrutura do aparelho produtivo segundo setores, bem como as normas de produção), com o seu consumo social (gastos de consumo dos assalariados e outras classes, consumo coletivo, consumo induzido por medidas "sociais" estatais)". Por conseguinte, Lipietz (1985) define o modo de regulação como "a totalidade de formas institucionais, redes, normas explícitas e implícitas que asseguram a compatibilidade das relações no marco de um regime de acumulação, tanto em correspondência com o estado das relações sociais, como também transcendendo a sua natureza conflitiva". Apesar de não ser um ator autônomo, o Estado é o centro da regulação, porque a concentração das relações sociais de poder e de classe está nas instituições que o formam e nas quais os compromissos sociais estão enraizados. A estrutura concreta do Estado e seu modo de funcionamento são elementos constitutivos do modo de acumulação e regulação, historicamente correspondente, e se transforma com estes. Cada formação histórica capitalista adquire sua estabilidade transitória através da conformação de um modo de acumulação que seja compatível com o modo de regulação. O resultado é um modo socialmente determinado de desenvolvimento, sempre caracterizado por regularidades e leis próprias. É preciso destacar que o regime de acumulação e o modo de
regulação não formam uma relação de causalidade simples. Um não deriva do outro, nem um dá origem ao outro. Mas um regime de acumulação estável só pode se estabelecer quando se impõe simultaneamente um contexto de regulação correspondente. Ambos devem ser vistos como o resultado de confrontações e lutas sociais em diferentes planos da sociedade, cujo desenlace não pode ser pré-determinado objetivamente, mas depende da força, das estratégias e das conquistas dos atores em jogo. Dessa forma, é possível uma configuração de diferentes regimes de acumulação e de modos de regulação. Regimes de acumulação e modos de regulação não se encontram em uma relação causal ou funcional, mas em uma "relação de articulação". Eles devem ser considerados como o nexo entre complexos contextos de ação e práticas relativamente independentes. Regimes de acumulação e modos de regulação envolvem dinâmicas específicas próprias, as quais não se restringem apenas a relações funcionais. Isso significa que as sociedades capitalistas são condicionalmente estáveis e por um período limitado. As crises "seculares" do capitalismo são causadas pela desarticulação dos modos de acumulação e regulação, e é principalmente esse processo que limita a valorização do capital nas condições econômicas, técnicas e sócio-políticas dadas, em conformidade com aquela formação. A solução para uma crise de maior porte consiste numa reorganização eficaz — exigida pela luta política e social — dos modos de acumulação e regulação. Dadas as diferentes condições de acumulação e regulação, cada formação histórica tem sua forma de crise própria e particular. De acordo com a Teoria da Regulação, o sistema capitalista global é idealizado como um complexo composto de relações nacionais de reprodução, com os seus próprios modos de acumulação e regulação. Essas formações nacionais constituem um essencial ponto de partida para a análise do sistema mundial, porém não é possível afirmar que o capitalismo global se resume à soma das formações nacionais. As formações nacionais são importantes pelo fato de que somente a esse nível as relações sociais entre os indivíduos e as classes, em suas instituições, se associam entre si de modo a formar um equilíbrio dos compromissos sociais e das estruturas de tomada de decisão política; sem isso, a continuidade da reprodução de capital e das relações de classe não pode ser garantida. Nas formações nacionais encontra-se uma clara dinâmica das relações internacionais originada nos processos de desenvolvimento e crise. Entretanto, a estabilidade das formações nacionais depende do grau de êxito com o qual modos específicos de acumulação e regulação se vinculam à estrutura do mercado mundial e à divisão internacional do trabalho, o que torna possíveis a acumulação de capital e o crescimento econômico. A ligação da acumulação e da regulação "nacionais" com a "internacional", dependem dos processos e conflitos sociais que acontecem em nível nacional, e estes dependem das variáveis internacionais políticas e econômicas. Portanto, para Lipietz (1987) o capitalismo global deve ser analisado como uma parte do processo em diferentes níveis e com diferentes atores, entre eles os Estados nacionais, as
empresas, as organizações e instituições nacionais e internacionais. O sistema capitalista mundial é uma aglomeração complexa de modos de acumulação e regulação nacionais, contendo um espaço distinto para os desenvolvimentos nacionais (MISTRAL, 1986, p.172). A Teoria da Regulação entende o sistema capitalista global não como um modelo hierárquico homogêneo no tempo e no espaço, ou uma simples relação centro/periferia, mas muito mais como uma rede variável. Os movimentos internacionais do capital são modificados constantemente pelas formações nacionais, isto é, através de seus regimes específicos de acumulação e modos de regulação, bem como do equilíbrio das forças sociais e políticas expressas dentro delas. As discrepâncias entre formações capitalistas nacionais são indispensáveis à acumulação global e estão permanentemente arraigadas no seio deste processo. Desse modo, o desenvolvimento do capitalismo global precisa ser altamente desequilibrado, e o sistema capitalista internacional é caracterizado por relações de desigualdade, de dominação e de dependência. No decorrer da história, alguns países alcançaram uma posição hegemônica, pois conseguiram desenvolver um modo adequado de acumulação e regulação e o ajustaram ao sistema internacional, garantindo assim, um crescimento econômico forte e contínuo. Esse fato os coloca em uma posição privilegiada que os possibilita estabelecer normas de produção, tecnologia, divisão do trabalho e consumo numa forma transregional, permitindo-lhes fazer com que o potencial econômico de outros países se torne condição de sua própria expansão. Por isso que a força militar, o tamanho ou a riqueza em recursos não são suficientes para a dominação internacional. Outras variáveis como as relações internas sociais e políticas e a conjunto de forças de classe, são mais importantes. A imposição de um "modelo de crescimento" à comunidade internacional produz dependência não apenas econômica, mas também política e cultural, e isso resiste a pressões substantivas de concorrência e submissão em outros países. A dependência econômica pode ser descrita como uma incoerência estrutural entre, de um lado, o modo de acumulação e regulação, no âmbito interno, assim como na sua conexão com as condições do mercado mundial, e, de outro, o padrão de reprodução do capital e a divisão de trabalho existentes. Por fim, é importante ressaltar alguns dos pontos principais que a Teoria da Regulação e a teoria materialista do Estado podem explicar em relação ao sistema mundial capitalista e à sua dinâmica: 1)
A estrutura e o desenvolvimento do sistema nacional capitalista são definidos pela contradição entre o processo de acumulação global e a forma política do Estado-nação, a qual é fundamental para a sua regulação. O sistema de regulação internacional é, por esse motivo, fragmentado e fraco. Essa contradição torna-se mais evidente quando o processo de globalização e internacionalização se torna cada vez mais intensificado. Quanto mais a
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regulação do processo global de acumulação se torna problemática, a migração internacional aumenta e as características ecológicas são ameaçadoras, menor a habilidade do modelo Estado-nação para lidar com isso. Ao mesmo tempo, esse modelo político está baseado no modo capitalista de produção e nas relações capitalistas de classe e não pode, portanto, ser superado enquanto estes existirem; o desenvolvimento das estruturas hegemônicas internacionais com base na análise da hegemonia dos Estados Unidos e das causas de seu declínio. No caso do Japão e de alguns países europeus, eles foram capazes não apenas de copiar o modelo norte-americano, como também de desenvolver tipos diferentes de fordismo. Nesse caso, tratava-se de tipos de economia altamente regulada pelo Estado, que eram muito diferentes entre si, mas que operavam dentro da estrutura do fordismo global. Isso possibilitou a acelerada internacionalização do capital, que se tornou possível dentro da estrutura desse regime. A estabilidade das estruturas hegemônicas internacionais e das relações de dependência é temporária, isso porque são baseadas em regimes específicos de acumulação e em modelos de regulação. Só é considerada hegemônica uma nação que seja capaz de desenvolver um modelo social superior e em seguida torna-lo dominante internacionalmente, obrigando as nações dependentes à se desenvolverem dentro desse modelo. A hegemonia ultrapassa o domínio econômico, político ou militar Porém, uma vez estabelecida, é uma relação que assegura benefícios mútuos, se a nação hegemônica estiver disposta à ceder em alguns pontos. a crise do fordismo coincidiu com a crise da regulação internacional, e que seu colapso intensificou os processos de crise nas esferas nacionais. O colapso da regulação internacional fordista foi causado pelo fato de a hegemonia norteamericana estar enfraquecida e, simultaneamente, pelo fato de a internacionalização do capital estar crescendo sob a hégide do fordismo global. Disso conclui-se que a solução da atual crise dependerá do restabelecimento de um sistema relativamente estável de regulação internacional. as principais razões para o crescimento das desigualdades internacionais e a óbvia falência dos conceitos de desenvolvimento tradicionais são, entre outras, o fim da hegemonia fordista, a pluralização do capitalismo e o colapso da regulação internacional. Esse cenário pode ser explicado pelo crescimento acelerado da competição internacional e pelo enfraquecimento dos Estadosnação no que tange as políticas domésticas econômicas e sociais independentes e, até então, não existe poder capaz de garantir uma ordem econômica internacional estável;
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as razões para o pequeno número de casos de sucesso entre os países anteriormente pertencentes ao Terceiro Mundo, principalmente aqueles situados na Ásia Oriental (Tigres Asiáticos), têm seu fundamento não na força da sua economia, mas nas condições culturais específicas e nas estruturas sociais, como, por exemplo, um Estado forte, equipado com um alto grau de autonomia relativa face a todas as classes sociais, e que seja capaz de organizar efetivamente a sociedade como um todo, bem como de executar uma reforma agrária, que impacta diretamente nas relações de classes. Por outro lado, o fracasso do projeto desenvolvimentista dos países latino-americanos, não pode ser explicado somente pelos efeitos negativos do intervencionismo e do protecionismo estatais ou, ainda, pela dependência econômica de países desenvolvidos. Do mesmo modo, mais importantes são as estruturas sociais internas e as deturbadas relações de poder, tais como a predominância de uma oligarquia agrária, uma administração de Estado fraca, privatizada e corrupta, uma estrutura social pós-colonial altamente segmentada, tradições religiosas, etc.
Em conclusão, é importante reafirmar que a Teoria da Regulação compreende o sociedade internacional não como uma hierarquia estável, mas como uma rede complexa e mutável de formações sociais, e estas são caracterizadas por modos de acumulação e regulação particulares. As estruturas sociais internas e as relações de poder têm relação direta com a posição de cada país dentro do sistema mundial, e, por sua vez, essa posição influencia fortemente o desenvolvimento do seu próprio modo de acumulação e regulação. Dado o fato de que a relação entre acumulação e regulação, tanto na esfera nacional como na internacional, é sobreposta pela crise, não é viável que a estrutura do sistema capitalista mundial se mantenha estável além de um certo tempo. As crises seculares do capitalismo, necessariamente crises de hegemonia, modificam toda a estrutura da dependência.