PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO / PUC-SP APRENDIZADO DEMOCRÁTICO: PRÁTICA PEDAGÓGICA INTEGRADA A UM CURRÍCULO EMANCIPATÓRIO
RENATA AQUINO RIBEIRO,
[email protected] Doutoranda em Educação: Currículo / PUC-SP INTRODUÇÃO A ONG Projeto Guri iniciou, no primeiro semestre de 2008, um trabalho de capacitação de seus educadores sociais na área de educação a distância (EAD). O projeto de formação destes educadores foi dividido em diversas etapas a cargo de diferentes perfis de formadores com experiência em EAD. Este é um relato da experiência de planejamento e execução do curso “EAD em Projetos Socioculturais - Tecnologia e gestão educacional: aplicação em projetos musicais/sociais”. Aos formadores, foi sugerido um currículo prescrito a partir do próprio tema do curso. A entrada dos educadores sociais em uma nova área, a educação a distância, junto a uma abertura para experimentação dentro de módulos do curso, gerou novas perspectivas de estudo curricular e expansão de temas relacionados ou não à área de educação a distância. Realizou-se um processo de democratização do aprendizado, envolvendo aluno e professor em um mesmo processo de descoberta e reconstrução do currículo em uma dimensão emancipatória.
Figura 1 – O início do Guri Online.
METODOLOGIA Durante o primeiro semestre de 2008, a disciplina Teoria do Currículo do mestrado em Educação: Currículo da PUC-SP trouxe a oportunidade de conhecer e desvendar as várias facetas do currículo dentro e fora da escola. Ao examinar temas como a história do currículo, o conceito de currículo oculto e diversos outros aspectos da ciência do currículo, pareciam-me várias as possibilidades de aplicações dos temas estudados em contextos inovadores. A oportunidade de experimentar a inovação no currículo apresentou-se em uma experiência junto ao Projeto Guri. Proposta em abril e maio de 2008 e realizada no mês de junho do mesmo ano, a experiência de um curso para educadores sociais do Projeto Guri foi um campo fértil de experimentação para os conceitos apreendidos de currículo. Os educadores sociais são um público pouco privilegiado na educação formal. Seu público é formado por jovens e adultos à margem do sistema educativo tradicional ou carentes de ofertas além da escola pública das periferias das grandes cidades. Outro grande público dos educadores sociais é o chamado jovem institucionalizado, parte de organismos sociais governamentais ou não que se responsabilizam pela educação formal do aluno. No caso específico dos educadores sociais objeto deste estudo, a Fundação Casa é a instituição responsável por esse jovem institucionalizado. Dispersos em uma malha descentralizada de contatos por instituições ou cooperativas de ensino, os educadores sociais gravitam por várias organizações que os integram em projetos pontuais ou permanentes. A organização não-governamental Projeto Guri reúne os educadores sociais que são o foco deste estudo. Por não ser parte do governo, o Projeto Guri tem uma flexibilidade na realização de seus projetos educacionais coerente com os objetivos da instituição de privilegiar a integração social de jovens através da música do aprendizado crítico. O papel do Projeto Guri no curso dos educadores sociais foi delimitado, no entanto, por uma interação com o governo do estado de São Paulo. A Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo, órgão financiador do Projeto Guri e principal apoiador do projeto de formação dos educadores sociais, delimitou as necessidades do curso e o padrão de educação a ser esperado pelos formadores sociais. Assim, o curso vivia entre a flexibilidade e maleabilidade do currículo “social” do Projeto Guri e a expectativa de apresentar resultados e entrar em um padrão educacional esperado pela Secretaria de Cultura do Governo do Estado. O histórico dos cursos de educação a distância do Projeto Guri começou com a pesquisa de Susana Kruger, aluna do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo e gerente de projetos educacionais do Projeto Guri. A ONG tem cursos de música e projetos sociais em diversos pólos no estado de São Paulo, incluindo na Fundação Casa, mas também procurava estender sua atuação para a educação a distância. O objetivo era complementar os cursos nos pólos assim como compartilhar conhecimento entre os educadores sociais participantes das iniciativas do Projeto Guri. Foram escolhidos, para esta missão, 16 formadores, alguns alunos e ex-alunos do Programa em Educação: Currículo. Um site do Projeto Guri para cursos online foi criado e agregou professores e alunos em diversos ambientes. A Sala dos Formadores foi o ponto de partida para que os professores se encontrassem e trocassem idéias sobre seus cursos. A base do ambiente online foi o software Moodle e os professores são chamados de “tutores” ou “formadores”. O currículo do curso foi definido em reunião prévia entre os formadores e a gerente de projetos educacionais do Projeto Guri. Tendo em mente o objetivo de apresentar aos participantes a educação a distância, o currículo prescrito deveria localizar-se dentro do tema do curso, que era também restrito a educação a distância. O público de educadores sociais, no entanto, vive diversos temas relacionados a educação cotidianamente que se apresentam por si só um desafio. Deste modo, propôs-se o primeiro obstáculo. Como discutir educação com educadores sociais levando em conta que no seu cotidiano estão temas como redução da maioridade penal e música nas escolas além de diversas outras controvérsias? Como sair do papel de “tutor” para o de professor de um currículo democrático e transformador de um público em necessidade de mudança? Para procurar responder a esses desafios, foi essencial a leitura das obras de Michael Apple, tais como “Ideologia e Currículo” e “Escolas Democráticas”. Foi através da idéia de aprendizado democrático, uma oportunidade de dividir o poder da formação do currículo entre alunos e professores, que se deu a experiência do curso “EAD e Projetos Socioculturais” no Projeto Guri. Também foram essenciais para consulta as notas de aula da disciplina “Teoria do Currículo”, realizada pela professora Mere Abramowicz na PUC-SP no primeiro semestre de 2008. Memórias dos alunos que já passaram por experiências diversificadas de aplicação do currículo, descritas no livro “Quando a universidade vai à escola pública”, organizado por Mere Abramowicz, também inspiraram o trabalho no Projeto Guri. Assim, recuperar essa experiência também é a oportunidade de recuperar uma trajetória no estudo do currículo de uma proposta de escolarização diferenciada da tradicional.
RESULTADOS O APRENDIZADO DEMOCRÁTICO Experienciar o aprendizado democrático é um desafio que une alunos e professores em uma mesma perspectiva de familiarização do conteúdo educacional de modo inovador e construtivo. A primeira dimensão que se deve ter em mente ao falar de aprendizado democrático é a cidadania. Não é possível existir um aprendizado democrático sem entender o que esse conceito envolve. Em um mundo cada vez mais marcado pela dominação econômica, o conceito de cidadania enfrenta diversos desafios. Quando se fala de cidadania em educação, o problema é ainda maior. De acordo com Apple: “Um exemplo é que estamos transformando a educação em uma mercadoria que se compra. O próprio significado de democracia está agora ligado ao consumo. O que antes era um conceito e uma prática políticos, baseados no diálogo coletivo e na negociação, é agora um conceito inteiramente econômico. Sob a influência do neoliberalismo, o próprio significado de cidadania está sendo transformado radicalmente. O cidadão é agora simplesmente o consumidor. O mundo é visto como um vasto supermercado”. (APPLE, 2006, P. 255) O trabalho do Projeto Guri caracteriza-se por desafiar toda essa lógica do consumo dentro de uma perspectiva bem mais abrangente do que é ser cidadão, ter consciência política e construir sua identidade humana. Assim, um trabalho em educação jamais pode se der dentro da perspectiva mercadológica, mas sim da prática política, da negociação e do diálogo coletivo conforme propostos por Apple. Como um resultado dessa abordagem, o aprendizado democrático foge de uma perspectiva tecnicista e centralizadora a que muitos currículos em educação a distância têm se caracterizado. O aprendizado tecnicista é ahistórico, apolítico e coloca escola em papel secundário. O professor passa a ser um mero realizador de tarefas curriculares enquanto o aluno é um receptor passivo do conteúdo. A sociedade é desvinculada da escola e o papel comunitário da instituição é reduzido. No aprendizado tecnicista, o conhecimento ainda é imposto e dogmático, cobrado binariamente dos alunos. É uma relação autoritária entre aluno e professor. O aprendizado democrático é crítico, histórico e político. Resgata o papel da escola e do professor como ser ativo diante do mundo, assim como o aluno. O conhecimento construído é socialmente significativo. Essa postura democrática é a característica de um currículo mais crítico, historicamente determinado e politizado. O surgimento do que se pode chamar de aprendizado democrático foi a década de 60 nos EUA. Ao enfrentar uma realidade de grandes mudanças sociais, numa época em que havia o racismo, o desemprego e a violência urbana, floresciam a contracultura, o questionamento dos valores tradicionais e o resultado era examinar também o papel da escola. Esta realidade não está nada longe do contexto vivido hoje pelos educadores sociais do Projeto Guri. A educação se encontra dividida entre aspectos fundamentais de manutenção da cultura estabelecida, e do status quo, enquanto ao mesmo tempo também é parceira da inovação, é responsável pelos questionamentos sociais. Os professores, por sua vez, também se encontram divididos no reforço a estes papéis. A capacidade que os professores têm de serem agentes de mudança na sociedade estão descritas na obra “Os Professores como Intelectuais” de Henry Giroux (2005). Os professores devem levar em conta que repassar um currículo que é um rol de conteúdos não possui efeito crítico discernível. O currículo precisa ser polissêmico e interdisciplinar. O ser humano é um ser temporalizado, histórico. Dentro desse novo paradigma crítico, devem ser levadas em conta as facetas do aprendizado democrático, conscientizador, coletivo e emancipador. Tal descrição do aprendizado segue o já descrito por Paulo Freire em sua “Pedagogia da Autonomia”, em que a reflexão da ação na ação, a práxis do educador, apresentam seu valor essencial. A similaridade de todos esses pontos com a experiência de Educação a Distância do Projeto Guri se mostra no seu resultado emancipatório. Os alunos devem contribuir com seu espírito crítico, mesmo depois que saem do seu tempo de aprendizado podem ter apreendido um pouco dessa nova realidade da EAD mas, terão que renovar seus conhecimentos cada vez mais. A concepção de educação aqui, então, refere-se a algo ainda mais completo. É a idéia de uma educação plena, ato de conhecimento, de politização, compromisso ético e experiência estética, conforme definido pela professora Mere Abramowicz. A importância do diálogo e a visão do ser humano como um criticamente comunicativo, capaz de transformar a realidade, deve ser levada em conta como questão central. O professor, por sua vez, é um mediador, desenvolve o gosto pela pesquisa no aluno. É o agente da ética da educação. O aluno é ativo, crítico, curioso, criativo e construtor de conhecimento, realiza seu trabalho coletivamente.
CONCLUSÕES PRÁTICA PEDAGÓGICA A partir da concepção de aprendizado democrático, realizaram-se as atividades do curso “EAD em Projetos Socioculturais”. As professoras realizaram dois dias de atividades presenciais com os educadores sociais do Projeto Guri e quatro módulos de cursos a distância subseqüentes. No primeiro dia de atividade presencial, os alunos discutiram o conceito de EAD em diversos tipos de abordagem. Do panorama histórico passando pelo de comunidades de prática, o aprendizado democrático também foi apresentado como um caminho de prática pedagógica. Criar e compartilhar conhecimento em rede foi o tema de um primeiro momento presencial. Uma apresentação também mostrou o aprendizado democrático em termos de prática pedagógica. O objetivo do módulo de projeto, portanto, é o de exercitar essa prática pedagógica de criação e compartilhamento do conhecimento. Dentro do ambiente do curso, os alunos participavam de sua sala do curso e podiam interagir via e-mails ou mensagens instantâneas. Um blog, uma ferramenta a mais dentro do ambiente, passa a centralizar o conhecimento adquirido em torno de projetos. Quais os projetos de relevância para os educadores sociais do Projeto Guri? O currículo oculto aqui é o centro da discussão. A realidade em que estes educadores estão inseridos e o público com que trabalham geraram os temas principais a serem trabalhados tanto no primeiro momento presencial quanto nos módulos subseqüentes. Três temas foram destaque em movimentação no curso, apesar de não estarem diretamente relacionados com a EAD. Redução da maioridade penal, educação musical nas escolas e “hora do café” trouxeram o livre pensamento dos educadores alunos do curso e mostraram o alto nível de conscientização política e democrática de um público tão diverso, tão ativo e capaz de estabelecer vínculos permanentes. Os testemunhos de amizade e familiaridade da “hora do café”, apesar de não fazerem parte do currículo prescrito, pavimentaram o caminho para a prática de aprendizado democrático, o blog. O blog é por si só, um exercício de compartilhamento do conhecimento. Os alunos produzem seus textos, norteados ou não por uma pergunta, e é aberta aos colegas a possibilidade de comentá-los e sugerir elaborações ou críticas. Com uma experiência extensa em blogs, como jornalista de tecnologia aplicada à educação, apresentei aos alunos o blog inicialmente por um módulo extra no ambiente do curso, o módulo de leitura do Yahoo! Busca Educação. A partir daí, os alunos se familiarizaram com o conceito de blog e com a aplicação da tecnologia a projetos musicais e sociais na educação. Este aprendizado é trabalho em progresso, um “currículo da vida”, pois a intenção é aumentar a capacidade crítica e comunicativa do educador social, um profissional tão importante na sociedade. O Projeto Guri se comprometeu com este público ao trazê-lo para o mundo da EAD com o compromisso de criticidade e autenticidade que caracterizam o trabalho da instituição. O resultado pode ser visto no progresso dos alunos nos fóruns e nas ferramentas do curso. Não é apenas o resultado de uma prática pontual mas de uma experiência maior de aprendizado democrático que mostra a evolução destes alunos-professores, capazes de mudar o mundo com tão pouco e fazer tanto por todos.
BIBLIOGRAFIA APPLE, M. e BEANE, J. (orgs.) Escolas democráticas. 2. ed. São Paulo, São Paulo: Cortez, 2001. ABRAMOWICZ, M. (org.) Quando a universidade vai à escola pública. 1 ed. São Paulo, São Paulo: Lúmen, 2004. APPLE, M. Ideologia e Currículo. 3 ed. São Paulo, São Paulo, Artmed, 2005 GIROUX, H. Os Professores como Intelectuais. 1 ed. São Paulo, São Paulo, Artmed, 1997. Portal Yahoo! Busca Educação. http://www.yahoo.com.br/buscaeducacao Acesso em junho de 2008 Portal Guri Online http://www.gurionline.com.br/cursos Acesso em junho de 2008 Portal Guri Online http://www.gurionline.com.br/ead Acesso em junho de 2008
Figura 2 – O perfil da formadora.