Por Uma Epistemologia Da Pesquisa Educacional

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Damião Bezerra Oliveira

CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA E DAS CIÊNCIAS DO CONHECIMENTO PARA UMA EPISTEMOLOGIA DA PESQUISA EDUCACIONAL

Damião Bezerra Oliveira1

1 Introdução Com o objetivo de apresentar um esboço das questões2 que configuram ou podem configurar uma epistemologia da pesquisa educacional, discutiremos neste ensaio, inicialmente algumas compreensões do que seja epistemologia, teoria do conhecimento e gnosiologia para em seguida mostrar de que modo esses domínios de reflexão filosófica se relacionam entre si e com as ciências que estudam o conhecimento. Refletiremos, no tópico seguinte, sobre a relação da filosofia com as ciências físico-naturais e com as humanas, a fim de aclarar o estatuto epistemológico das ciências da educação enquanto pertencentes, majoritariamente, às humanidades. Por fim e com base nos argumentos desenvolvidos nos tópicos anteriores, passar-se-á a tratar mais detidamente de como se constituiria uma epistemologia da pesquisa educacional, 1

Professor de Filosofia da Educação na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bacharel e Licenciado em Filosofia e Especialista e Mestre em Educação. E-mail: [email protected]

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Visa-se com o ensaio mais provocar a discussão e explicitar as questões e menos tentar respondê-las, tendo em conta as dificuldades inerentes e mesmo em razão da impossibilidade de tratar exaustivamente delas nos limites de um artigo.

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Contribuições da Filosofia e das Ciências do Conhecimento para uma Epistemologia...

de que modo se relaciona com a filosofia e com as ciências do conhecimento, especialmente ao assumir-se enquanto epistemologia da prática na qual o professor faz-se pesquisador e agente de transformação social. Na apropriação crítica e reflexiva do sentido das fontes textuais e na sua análise e interpretação, foram aplicados procedimentos de análise reflexiva e lógica, tanto na explicação como nos comentários que integram o ensaio, de acordo com as recomendações metodológicas de Reboul (2000) e Folscheid e Wunenburger (1999) para as produções filosóficas. 2 A Epistemologia e as Ciências do Conhecimento O que se pode pretender discutir com o tema epistemologia da pesquisa educacional? Cabe, inicialmente, fazer alguns esclarecimentos sobre o uso do termo epistemologia, que etimologicamente é bastante simples: compõe-se de epistêmê (ciência) e logos (razão, discurso, estudo). Na filosofia de tradição inglesa, epistemologia possui, desde meados do século XIX, um sentido amplo, na medida em que se identifica à teoria do conhecimento ou à gnosiologia. Entre os franceses, os termos gnosiologia e teoria do conhecimento não são usualmente sinônimos de epistemologia. Os italianos adotam com freqüência, gnosiologia e teoria do conhecimento como termos equivalentes, e só eventualmente os identifica à epistemologia (ABBAGNANO, 2000, p. 183). Pode-se dizer, pois, que somente os ingleses usam freqüentemente a palavra epistemologia para se referir, genericamente, à teoria do conhecimento na sua totalidade, sem discernir entre reflexão geral a respeito do conhecimento e uma preocupação particular com as especificidades do conhecimento científico. 380

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No entanto, parece legítimo distinguir epistemologia de teoria do conhecimento ou gnosiologia, caso se seja guiado pelo critério de maior extensão e radicalidade das preocupações do último tipo de reflexão que assume ocupar-se de questões fundamentais, tais como: o que é conhecimento? O sujeito pode conhecer? Quais são as fontes do conhecimento? Que tipo de relação existe entre sujeito e objeto do conhecimento? Quais os critérios possíveis para determinar a verdade ou falsidade de um juízo ou teoria? (HESSEN, 1987; MOSER; MULDER; TROUT, 2004). Em qualquer que seja o caso, não parece plausível admitir a independência da epistemologia dos problemas gerais da gnosiologia que convergem, pela sua própria natureza, com as preocupações ontológicas, na medida em que é impossível pensar o conhecimento humano sem correlacioná-lo com o que existe. Se a etimologia revela, sem ambigüidade, que a epistemologia é um discurso ou teorização cujo objeto é a ciência - entendida, em sentido forte, como conhecimento universal e necessário -, há uma variedade considerável de usos e compreensões da palavra, que inclui ainda a sua identificação com a lógica3 ou mais restritamente uma aproximação com a metodologia científica. Entretanto, o pensar filosófico ao se questionar sobre o conhecimento, mobiliza interrogações, temas e conceitos que pertencem a diferentes partes em que, convencionalmente, divide-se a disciplina filosofia, como: ontologia ou metafísica, lógica, filosofia da linguagem e antropologia filosófica.

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Por vezes, a referência à lógica restringe-se aos elementos formais do conhecimento que sustentariam as justificativas da investigação cientifica.

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Além do interesse claro da filosofia pelas questões fundamentais relativas ao conhecimento da realidade, outros domínios do saber - os denominados científicos - também têm dedicado esforços à explicação “empírica” de diversos aspectos psicológicos, fisiológicos, neurológicos, sociais, culturais e históricos do conhecimento, mantendo, portanto, importantes relações com a discussão filosófica. Bunge (2002) divide a epistemologia em filosófica e científica. Identifica esta última à psicologia cognitiva cujo objeto não se circunscreveria à esfera estritamente psicológica, mas incluiria os aspectos sociais envolvidos nos processos de conhecimento. Se a classificação de Bunge puder ser considerada, então o termo epistemologia não teria, sem qualquer adjetivação, um sentido claramente filosófico. A psicologia – para ficar com o exemplo – poderia legitimamente, reivindicar para si, o estatuto de ciência do conhecimento (epistemologia 4 ). Um argumento foi sustentado com rigor por Husserl, conforme Kelkel e Schérer (1982), de acordo com o qual, uma teoria do conhecimento naturalista, que se pretenda científica, no sentido das ciências físico-naturais, não poderia se constituir em fundamento do conhecimento “empírico”, pois ela mesma careceria de uma fundamentação que lhe deve ser logicamente anterior. Assim, critica-se veementemente o denominado reducionismo psicológico ou psicologismo que é a tentativa de se colocar uma teoria psicológica como fundamento infundado de si mesma e das demais disciplinas científicas. 4

A psicologia de Piaget, por exemplo, trata do desenvolvimento ontogenético do conhecimento em suas diversas fases (sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto, operatório formal), num curso que vai do menos para o mais abstrato. Essa reflexão da gênese e evolução psicológica (psicologia genética) ampara-se em alguns pressupostos gerais a respeito do conhecimento e foi denominada “epistemologia genética”.

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Ainda que a psicologia do conhecimento descreva o que acredita ser a gênese e o curso psicológico do conhecimento; mesmo que apresente as suas experimentações e métodos minuciosamente, isso seria insuficiente enquanto fundamentação e justificativa, mesmo quando o psicólogo acredita explicar a gênese psicológica da lógica. Com isso se quer argumentar a favor da importância da epistemologia enquanto campo filosófico por excelência, não substituível pelos estudos científicos, como ocorreu com a antiga filosofia da natureza que perdeu a relevância com a solidificação das ciências naturais. O mesmo teria ocorrido com os estudos filosóficos a respeito do psiquismo que se teriam transformado em informações históricas sem maior relevância, em função dos estudos científicos comportamentais da psicologia, baseados no método experimental, terem conseguido a sua autonomia frente à filosofia (GOLDMANN, 1986). Em todo caso, é possível argumentar que a ciência não tem conseguido apresentar uma explicação dos seus fundamentos epistemológicos- usando os seus métodos de investigação e os seus “jogos próprios de linguagem”. Berger e Luckmann (2002) mostram as especificidades de uma sociologia do conhecimento que precisa se debruçar, para se constituir, sobre fenômenos sociais, históricos e institucionais nos quais são inseparáveis subjetividade e objetividade O que está em jogo não é algo como uma psicologia social ou uma sociologia psicológica, mas antes a aceitação de uma sociologia compreensiva e fenomenológica. O conhecimento é entendido pela sociologia do conhecimento em consonância com tal compreensão geral dos objetos sócio-históricos tratados pela sociologia. 383

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Apesar dos possíveis encontros entre a sociologia do conhecimento e a epistemologia enquanto reflexão filosófica, elas se dedicam a questões de diferentes ordens. Para a sociologia, categorias como verdade, realidade, conhecimento, crença e justificativa, relação sujeito/objeto enquanto ocorrências sociais possuem um sentido pré-teórico e cotidiano, isentos enquanto tais de questionamentos semelhantes ao levantados pela filosofia. Berger e Luckmann (2002) escapam ao que Husserl denominou - conforme Kelkel e Schérer (1982) - de reducionismo, no caso a uma espécie de sociologismo, ao descartarem qualquer pretensão de fazer da sociologia do conhecimento uma teoria de fundamentação e justificativa do conhecimento em geral ou da própria sociologia. Ao se referirem ao que consideram o problema da sociologia do conhecimento, Berger e Luckmann (2002, p. 11), destacam em que esse se distingue dos questionamentos filosóficos acerca do tema. Partem do pressuposto amplamente aceito cotidianamente de que: (...) A realidade é construída socialmente e que a sociologia do conhecimento deve analisar o processo em que este fato ocorre. Os termos essenciais nestas afirmações são “realidade” e “conhecimento”, termos não apenas correntes na linguagem diária, mas que têm atrás de si uma longa história de investigação filosófica. Não precisamos entrar aqui na discussão das minúcias semânticas nem do uso cotidiano ou do uso filosófico desses termos. Para a nossa finalidade será suficiente definir “realidade” como uma qualidade pertencente a fenômenos... independente da nossa própria volição... e definir “conhecimento” como a certeza de que os fenômenos são reais e possuem características específicas.

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Eis um pressuposto que se mantém no domínio da própria sociologia ao aceitar a manifestação do fenômeno da imediaticidade da vida social, anterior, portanto, à própria construção teórica das ciências sócio-históricas. Com isso, no entanto, não se anula a pertinência de um discurso propriamente filosófico, que não se confunde nem com as crenças do senso comum nem com a descrição e compreensão propriamente científica: O homem da rua habita um mundo que é “real” para ele, embora em graus diferentes, e “conhece” com graus variáveis de certeza, que este mundo possui tais ou quais características. O filósofo, naturalmente, levantará questões relativas ao status último tanto desta “realidade” quanto deste “conhecimento”. Que é real? Como se conhece? (BERGER; LUCKMANN, 2002, p. 11, itálicos no original).

A gnosiologia justificar-se-ia como um tipo de reflexão não totalmente superada pelas ciências, por se basear em problemas anteriores aos considerados pertinentes pelos discursos científicos ou por colocar em questão os fundamentos dos conhecimentos instituídos socialmente. À sociologia do conhecimento pode interessar estudar o subuniverso do conhecimento científico, a cultura comunitária dos pesquisadores, os valores e crenças que subjazem à prática de investigação. Sob esse aspecto, caberia à sociologia da ciência explicá-la como prática social e institucional nas suas especificidades e ao lado de outras. Na condição de objeto de conhecimento sociológico, a ciência é uma instituição como qualquer outra, a cultura da prática científica é um subuniverso no interior da sociedade amplamente tomada, como as dos feiticeiros, poetas, astrólogos, mafiosos etc. 385

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É tomando por fundamentação argumentos sociológicos que definem a ciência como a instituição social que ela é realmente, que se costuma equiparar o conhecimento científico a qualquer outro circulante no interior da sociedade e se diz, também, não ser demarcável em relação aos demais subuniversos cognoscentes enquanto prática social. A sociologia do conhecimento, como reconhece Berger e Luckmann (2002), não se interessa, realmente, por questões de fundamentação do conhecimento e da sua justificação lógica; atém-se ao fato de existir diferentes tipos de conhecimento, daí porque se torna compreensível a equiparação, sem demarcação essencial, das múltiplas modalidades de saber circulantes na sociedade que se organizam em espaços institucionalizados em torno de subuniversos de sentido. Acrescente-se à psicologia e à sociologia, a história da ciência, para qual o empreendimento científico é visto como um conjunto de teorias que emergem no tempo, seja ele entendido enquanto processo de continuidade, acumulativo e progressivo, ou interpretado através da imagem de pontos descontínuos ou ainda como constituído pela tensão dialética entre continuidade e descontinuidade (PÉCHEUX; FICHANT, 1977). Essas teorias históricas, por sua vez, podem ser consideradas em suas conexões com os acontecimentos globais que marcam os diferentes momentos históricos -história externalista -; ou compreendidas como um universo independente, autônomo que podem ser interpretadas por seus próprios enunciados - história internalista. (JAPIASSU, 1982). Sabe-se da relevância da dimensão histórica de toda prática social, tendo em vista a impossibilidade de entender o sentido dos empreendimentos humanos observando apenas o 386

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estado presente. Contudo, a história, também, por si mesma, é incapaz de fundamentar o conhecimento. A gênese temporal, o ponto de emergência, jamais representa uma origem na qual se flagraria a gênese do sentido, o fundamento do que existe. O aspecto factual não funda a “questão de direito”, o ser não justifica o dever-ser. Ao psicologismo e sociologismo deve-se juntar, portanto, o historicismo como mais um reducionismo epistemológico quando pretende fundamentar o conhecimento cientificamente. Tendo em vista, pois, a polissemia usual e institucional do termo epistemologia e as suas complexas relações com as ciências humanas que tomam o conhecimento como objeto de investigação, far-se-á uma escolha metodológica para dar continuidade à reflexão que limite a imprecisão conceitual. Adotar-se-á o significado mais restrito de epistemologia 5, ligado à sua etimologia, pois, por definição, ela toma por objeto de interesse reflexivo, um tipo bem específico de conhecimento humano: o científico, em diversas das suas dimensões6 , e a abordagem será, fundamentalmente, de caráter filosófico. 3 A Relação da Filosofia com as Ciências Frente a essa primeiríssima aproximação ao conceito de epistemologia e das suas relações com algumas ciências do conhecimento no âmbito das humanidades, uma grande questão 5

Outra forma de se referir ao mesmo significado seria falar de “Filosofia da Ciência” e “Teoria da Ciência”, desde que não se interprete a palavra “teoria” como científica, pois neste caso ter-se-ia uma metaciência, uma ciência da ciência.

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A epistemologia é uma reflexão crítica do conhecimento científico, embora, por vezes, ela possa interessar-se por seus aspectos factuais e históricos (gênese e desenvolvimento das teorias); não deixa de oscilar entre o ser o dever-ser da pesquisa científica, sendo, assim, tentada a um exercício de prescrição a respeito desse tipo de investigação e atividade cognoscente humana.

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epistemológica já se põe: como entender o que se pode considerar enquanto condições necessárias para que determinado saber seja tido por conhecimento cientifico? Como saber, pois, que objeto deve ser legitimamente tomado para a reflexão epistemológica? Portanto, caberia preliminarmente como tarefa da epistemologia, estabelecer critérios definidores da cientificidade, e a partir deles, poder-se-ia delimitar os domínios do campo científico em relação às demais formas de conhecimento. O pressuposto da questão consiste na admissão da heterogeneidade dos conhecimentos e certa descontinuidade entre eles, assim como uma possível hierarquização axiológica deles. O cumprimento de tal tarefa exigiria o estabelecimento, em algum nível de abstração conceitual, da unidade da ciência. Eis, pois, um obstáculo difícil de superar, pois cada vez mais o que se ressaltam são as diferenciações no interior do próprio campo científico em ciências físico-naturais, ciências humanas, ciências formais etc. Apesar da unidade pressuposta, é a ausência de unidade de inteligibilidade da ciência que se revela efetivamente em fenômenos como a impossibilidade de comunicação suficiente entre as diferentes comunidades. Em casos especiais, a comunicação falha mesmo dentro de grupos de pesquisadores, entre às áreas e no interior de campos mais restritos e até mesmo numa mesma disciplina7 . Este último fato vem à tona em determinadas circunstâncias críticas, quando os pressupostos tácitos de acordo da comunidade científica perdem o seu caráter dogmático (KUHN, 1978). 7

Seria difícil afirmar o que se pode tomar como uma mesma disciplina, tal o grau de especialização do saber.

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Por outro lado, a fragmentação levada a efeito em virtude da especialização crescente da ciência, não facilita a tarefa de estabelecer teoricamente a delimitação de fronteiras cognoscentes, daí porque a epistemologia que se propõe a tal empreendimento tem se debatido com dificuldades quase insuperáveis. Isso não significa, entretanto, que não se reconheça tacitamente a existência de cisões no interior das ciências, mas que não se consegue estabelecer critérios precisos e consensuais, para além dos próprios campos disciplinares, capazes de traçar um mapa lógico dos conhecimentos. Não há um super jogo de linguagem epistemológico ou científico pelo qual todos os demais jogos sejam equiparáveis ou mensuráveis. A despeito de todas essas dificuldades aqui apenas mencionadas, Goldmann (1986) ressalta que antes da fragmentação disciplinar no âmbito da “positividade” científica, há uma primeira tentativa de demarcação de fronteiras entre ciência e filosofia com a constituição da modernidade científica. A filosofia da natureza vai perdendo sentido, e os vários ramos das ciências físicas vão se multiplicando e adquirindo autonomia em relação à filosofia: “um domínio de conhecimento incorpora-se à ciência positiva na medida em que se libera de toda ingerência filosófica” (p. 15, itálicos no original). A filosofia passa a representar um obstáculo ao desenvolvimento da ciência, de acordo com o significado que esta foi adquirindo no âmbito da física, instituída em modelo a ser seguido por qualquer saber que almeje a cientificidade e a garantia dos seus procedimentos. Para além da unidade que seria fundada no modelo metodológico da física, assiste-se a marcha da fragmentação do conhecimento concomitantemente à libertação das ciências 389

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das amarras filosóficas; aos poucos o ideário paradigmático de ciência sai do campo meramente físico e se estende às ciências da vida e às humanidades, constituindo a ideologia cientificista: O cientificismo tentou estender essa afirmação às ciências biológicas e humanas, preconizando uma biologia mecanicista, uma psicologia behaviorista, uma história empírica e uma sociologia descritiva e coisificante (GOLDMANN, 1986, p. 15-16).

Assim, ao mesmo tempo em que as ciências procuram uma autonomia relativamente à filosofia, perseguem, em conjunto, regras garantidoras de unidade ideológica, encontráveis no ideário cientificista e quantitativo, sintetizado, na noção de método, amplamente discutida pela filosofia moderna em obras inaugurais desse período da história, como o Discurso do Método e o Novum Organum. Haverá, por conseqüência, uma importante mudança de estatuto do discurso filosófico com a emergência dos saberes científicos a partir do século XVII, quando se iniciou a Revolução Científica Moderna que não incluirá de início, como se sabe, o campo das humanidades, pois este só passará a reivindicar o estatuto de cientificidade no século XIX. Deve-se destacar que se a partir do século XVII vai se enfraquecendo a possibilidade de uma filosofia da natureza em sentido forte, no XIX, será a vez dos antigos domínios da reflexão filosófica no campo humano se constituírem em ciência, o que obrigará mais uma vez a filosofia a se situar na totalidade cultural. Em tal contexto, caberá ao discurso filosófico como uma das suas principais tarefas, o estabelecimento dos fundamentos da ciência. O cientificismo germina enquanto parte desse discurso de fundamentação epistemológica. Entretanto, a abstrata idéia de que todas as disciplinas científicas, apesar das 390

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diferenciações superficiais com relação aos objetos, compartilhariam de uma unidade formal, bem cedo receberá severas críticas, embora esse ideário instituído ainda mantenha muito do seu vigor. Não é de hoje, portanto, que se verificam as dissidências epistemológicas questionando as pretensões do cientificismo. Argumenta-se, por exemplo, que a ausência de homogeneidade dos objetos de investigação das ciências fragiliza a prescrição de método único, de uma linguagem comum da pesquisa ou mesmo de um conjunto unívoco de regras que, formariam o que se poderia chamar de uma “racionalidade científica” em contraposição às outras formas de “racionalidade”, como a filosófica. Apesar disso, na sua constituição inicial e durante boa parte da sua história, as ciências humanas adotarão os valores epistemológicos das ciências naturais, representados pelos postulados quantitativos. É em concorrência com estes que surgirão propostas mais qualitativas já no século XIX, embora o cientificismo continue mantenha parte considerável do prestígio. Aos poucos às críticas ao cientificismo ganham força e as ciências humanas procuram um caminho metodológico e epistemológico próprio. O reducionismo quantitativo que se opusera aos procedimentos qualitativos clássicos sofre abalos. Juntamente com a recuperação do valor epistemológico da qualidade, da idéia de compreensão dos objetos contingentes e idiossincráticos, impermeáveis à explicação quantitativa, a filosofia volta a se aproximar das ciências humanas, de modo marcante na atualidade. Reconhecem-se, hoje, os potenciais hermenêuticos e heurísticos do pensamento filosófico, não apenas como impulso 391

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e motivação pré-científicos - que deverão ser esclarecidos e subsumidos pela ciência na sua positividade quantitativa e empiricidade experimentalista -, mas também como reflexão capaz de compreender validamente o universo humano. Uma questão que mantém a sua importância na reflexão epistemológica é a que se interroga sobre a compreensão do tipo de relação que deve existir entre a racionalidade filosófica e a científica. As ciências naturais e as humanas devem se relacionar de forma idêntica com a filosofia? Para Goldmann (1986), o tipo de relação que as ciências físico-naturais mantêm com a filosofia não pode ser repetido pelas ciências histórico-sociais, pois é insuficiente a identificação formal dos objetos desses dois grupos, assim como dos métodos. O homem está no centro das ciências humanas, ao contrário das ciências naturais, de modo que, se é verdade que: [...] A filosofia traz... realmente verdades sobre a natureza do homem, toda tentativa de eliminá-la falseia necessariamente a compreensão dos fatos humanos. Nesse caso, as ciências humanas devem ser filosóficas para serem científicas “(GOLDMANN, 1986, p. 16, itálicos no original).

Goldmann deixa implícito que a cientificidade das ciências humanas é plausível, embora deva diferir do modelo existente no âmbito das ciências físico-naturais. Esse diferencial é constituído no tipo de relação mantida com a filosofia enquanto se ocupa com o homem. Deve desinteressar às ciências humanas o rompimento com as suas raízes, de modo que a denominação de ciências filosóficas, a elas aplicável, funcionaria como uma espécie de sinônimo pelo qual algo de essencial se explicitaria. A questão é, pois, em que sentido as ciências humanas são filosóficas? Por que as ciências naturais não podem ser filosóficas? 392

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Historicamente o ideal de racionalidade científica procurou diferenciar-se da racionalidade filosófica, em função dos objetos essenciais e do método racional especulativo cultivado na filosofia violarem, o que legitimamente pode ser conhecido como fenômeno pela ciência que se apresenta de acordo com os critérios quantitativos em consonância com os seus procedimentos, raciocínios e justificativas. Além das questões concernentes a maior exatidão e rigor lógico no enquadramento do objeto e no uso do método quantitativo das “ciências duras”, as fontes escritas e os discursos ditos em linguagem natural nas humanidades - com toda a sua polissemia e abertura - contrapõem-se ao ideal de cálculo lógico, expresso na frase já célebre de Galileu de que a natureza é “um livro escrito em caracteres matemáticos”. As mediações simbólicas qualitativas, imprecisas, mesmo quando os sentidos apresentam-se solidificados pela tradição e expressos nas experiências dialógicas comuns, são objetos impensáveis enquanto constitutivos da ciência no seu próprio plano de existência e expressão. Seguindo-se o paradigma das ciências naturais, os fenômenos humanos precisariam ser necessariamente, reduzidos a uma densidade quantitativa, ainda que em detrimento da sua profundidade de sentidos, se quiserem - como se coisas fossem – constituírem-se em objeto do saber científico. Tudo isso coere com os ditames ontológicos formais e os princípios gnosiológicos pelos quais, a partir de Galileu, deixa de fazer sentido uma hierarquização qualitativa dos espaços, porque a natureza deixa de esconder mistérios, encantos ou maravilhas a serem interpretados de modos variados. Tudo se explica em função da redução das grandezas aos critérios uniformes da geometria. Daí porque tudo passa a ser reduzido 393

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aos “caracteres” matemáticos. Tudo o mais poderia ser desprezado por carecer de sentido. O homem e as ciências humanas teriam que se render à lógica do conhecimento científico como preço a pagar para atingir o estatuto de cientificidade. Trata-se, pois, do pressuposto metodológico cuja base é o processo de opacidade e exteriorização da subjetividade e, conseqüentemente, da sua coisificação a fim de que, reificada ela possa ser objeto do conhecimento. Eis o caminho a que conduziria o processo de naturalização das ciências humanas em nome de uma objetividade e neutralidade que retirariam do homem os componentes de autoconsciência da imanência do ser para si em nome da auto-alienação de uma consciência objetivada e esquecida de que antes de ser resultado, ela é processo aberto. Goldmann deplora o distanciamento entre o conhecimento científico e o filosófico. Relativamente às ciências humanas, não fala apenas num tipo de conexão da ciência e da filosofia, na qual a primeira fosse objeto para a reflexão gnosiológica ou axiológica da segunda. Tratar-se-ia de uma relação mais profunda em que a própria ciência se fizesse filosófica, crítica, acrescentamos por nossa conta. Japiassu (1982) ao refletir sobre as pretensões de as ciências humanas se transformarem em ciência, segundo um modelo canônico, estrutural-funcionalista, argumenta haver incompatibilidade entre a idéia de humanidade e tal ideal de ciência. O autor afirma a respeito das ciências humanas: O que pretendemos denunciar são algumas das suas ilusões, entre as quais se destacam duas: a de serem ciências e a de serem humanas. Porque tudo indica que, em nossos dias, sua pretensa cientificidade é

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proporcional à sua desumanidade: quanto mais “científicas” se tornam, menos humanas se revelam. E na medida em que se tornam humanas, perdem o seu caráter científico. Toda desgraça das ciências humanas reside no fato de terem que lidar com um objeto que fala (JAPIASSU, 1982, p. 9, itálicos e aspas no original).

Tal desumanidade de que fala Japiassu, é motivada, em grande parte, pelo abandono da tradição humanista do pensamento filosófico. Nas ciências físico-naturais, o abandono do humanismo deu-se, especialmente pela superação do antropomorfismo e do desencantamento do natural. A natureza física perde quaisquer características humanas, divinas e teleológicas, embora a matéria viva mantenha-se resistindo a inteira mecanização, lançando mão ainda de argumentos e raciocínios de ordem filosófica e teológica8 . Talvez não fosse correto falar da ausência total da filosofia na constituição das ciências físico-naturais, se ainda entendemos a lógica e as suas operações formais como fazendo parte da filosofia, pelo menos pelas questões de fundo que podem suscitar para além da rigidez dogmática do seu aspecto propriamente operacional. Fora a contribuição da lógica e da epistemologia no que possam ter de filosófico restaria no plano antropológico e ético, essa ligação da filosofia com as ciências da vida. De resto, a relação seria extrínseca e se fixaria nas conseqüências dos usos e aplicações dos saberes para a existência.

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É possível de verificar o que se diz, ainda hoje, nas discussões em tono da pesquisas biológicas, especialmente, no que diz respeito ao conceito de vida.

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Em qualquer que seja o caso, a relação aqui da filosofia é, em maior ou menor grau, de exterioridade, de reflexão sobre ou em torno das ciências físico-naturais. No caso das ciências humanas, a relação pode ser, também, de reflexão, mas caso se possa concordar com Goldmann, ela deve ocorrer de modo profundo, por imbricamento, de modo que filosofia e ciência se impliquem pela esfera subjetiva, objetiva e “metodológica”. Na crítica realizada por Japiassu aos caminhos antihumanistas das ciências humanas, o autor usa a metáfora de “morte” para designar as conseqüências de uma recusa por parte dessas ciências às contribuições antropológicas da filosofia. No entendimento das ciências da educação, aplicar-seão como sendo próprio a elas, o que se falou antes a respeito das ciências humanas, tendo em vista que o objeto de estudo de ambos os grupos de ciências é o homem, especialmente aquilo que o caracteriza fortemente: a possibilidade de se determinar pela educação. O que poderia, pois, caracterizar, epistemologicamente, a educação como objeto das pesquisas da pedagogia ou das ciências da educação? Que tipo de racionalidade mostra-se mais adequada aos discursos que constituem os saberes e fazeres que compõem esse campo teórico-prático? Eis algumas das questões que podem interessar a uma epistemologia da pesquisa educacional. 4 Epistemologia da Pesquisa Educacional Coerente com a fragmentação científica tornou-se habitual a divisão institucional e disciplinar da epistemologia, em: epistemologia da física, epistemologia da biologia, epistemologia da química etc, que dependem, é claro, dos questionamentos gerais de uma teoria do conhecimento ou gnosiologia enquanto reflexões filosóficas. 396

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Diante do anteriormente argumentado, pode-se dizer que uma epistemologia da pesquisa educacional precisaria examinar com cuidado os objetos, métodos de pesquisa, conceito de verdade e a linguagem próprios às ciências da educação, assim como o tipo de relação que elas podem manter com a filosofia. No caso da pesquisa educacional, há que se considerar a complexidade epistemológica derivada do fato de ela se relacionar, de algum modo, com a totalidade das ciências humanas e mesmo com determinados domínios da biologia e da fisiologia. Na divisão institucional dos conhecimentos que compõem as chamadas ciências da educação ou pedagogia, pode se apontar, entre outras: psicologia9 , sociologia, história, antropologia, economia, estatística, lingüística e biologia, sem contar as disciplinas mais atentas aos fenômenos educacionais formais e sem estatuto epistemológico definido por buscar os seus fundamentos teórico-metodológicos nas primeiras, como: didática, avaliação educacional, teoria do currículo e política educacional. No interior da pesquisa educacional circulam os questionamentos epistemológicos próprios as ciências humanas nas suas relações com as ciências físico-naturais, assim àqueles relativos às conexões entre ciência e filosofia. A pedagogia já esteve intrinsecamente irmanada à filosofia no estudo dos diversos aspectos da educação e do ensino, a ponto de se constituir com métodos de reflexão e organização do discurso em tudo próximos do jogo expressivo da linguagem filosófica. 9

Ela mesma com estatuto epistemológico não muito bem definido com relação a distinção entre ciências humanas e físico-naturais, e mais ainda nos seus encaminhamentos teórico-metodológicos.

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Pensar em pedagogia consistia em refletir sobre os ideais da educação, nos objetivos humanos que ela deveria atingir, enfim, o discurso era fortemente “especulativo” e subsumia os componentes espaço-temporais, os contextos empíricos e factuais em que as práticas educativas se efetivam (CAMBI, 1999). Cambi (1999, p. 22), numa discussão epistemológica acerca do deslocamento da ênfase de uma história da pedagogia para uma história da educação, destaca o lugar privilegiado da filosofia nos séculos XVIII, XIX e grande parte do XX, na constituição da história das idéias pedagógicas. Enfatiza, ao mesmo tempo, o distanciamento da pedagogia “[...] das contribuições das ciências, sobretudo das humanas, para o conhecimento dos processos formativos (em primeiro lugar, psicologia e sociologia)”. Somente na segunda metade do século XX, ainda segundo Cambi, a pedagogia irá ampliar o seu horizonte cognoscente, e passará a se constituir interdisciplinarmente, merecendo destaque especial na produção dessa mudança epistemológica as contribuições das ciências humanas. Não se pode esquecer, no entanto, as influências da filosofia moderna sobre a pedagogia, ocorrem de modo particular, na proposta de entrelaçamento entre fins educacionais – que devem continuar pautados em valores éticos – e os meios que precisam buscar auxílio no ideal de método, objeto marcante da reflexão filosófica moderna. Mais do que assumir a importância do método como instrumento a serviço de fins éticos, a pedagogia almejou transformar-se em ciência. O cientificismo visitou o ideal epistemológico da pedagogia no sentido de constituí-la enquanto ciência nos moldes da física, no final do século XX quando se 398

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tentou transformar a pedagogia em pedologia. Com a criação de tal disciplina procurava-se superar o conceito de pedagogia como teoria prática, arte educativa. A base da pedagogia científica assim proposta seria a psicologia experimental. Ainda que a psicologia assuma o posto de principal base nessa redefinição epistemológica, a filosofia continuará mantendo relevantes diálogos com a pedagogia, mas deixará de quase confundir-se com essa, como se fosse uma espécie de teoria ética ou educacional a orientar a vida prática, especialmente aplicada nas ações de formação moral pedagogicamente orientada. Partindo dessas complexas relações da educação com as ciências, particularmente com as ciências humanas, a proposta de uma epistemologia da pesquisa educacional terá que colocar para si, no seu domínio particular, questionamentos de resolução difícil. Como delimitar a pesquisa educacional em relação às pesquisas em disciplinas como a sociologia, a psicologia, a história, a antropologia cultural? E a filosofia da educação, como se coloca epistemologicamente em relação às ciências da educação e à filosofia em geral? Considerando a extensão do conceito de educação e o fato de o fenômeno educacional identificar-se, sob muitos aspectos, com a existência humana na sua totalidade, então uma epistemologia da pesquisa educacional deparar-se-á com problemas que transcendem qualquer ciência particular que se dedique a estudar o homem enquanto educável. Além disso, há uma ambigüidade na construção “pesquisa educacional”, pois parece pressupor um objeto de conhecimento unitário, determinado, a educação, e um campo de saber igualmente unificado que se preocuparia em investigálo. Sabe-se, no entanto, ser a educação um objeto de tal 399

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amplitude que transcende qualquer ciência única e que, seria expressão mais adequada falar não em uma pedagogia, mas em “ciências da educação”. Pode-se perguntar, ainda, se a identificação das ciências da educação com a pedagogia é justificável e sob que aspectos o fenômeno educacional determina o sentido de um conjunto de pesquisas em que os processos culturais, políticos, sociais, psicológicos e escolares de ensino-aprendizagem são essenciais. Dado o quadro acima, a situação pode tornar-se ainda mais complexa, pois não seria descabido, falar de epistemologia de história da educação, da sociologia da educação, da psicologia da educação, como particularidades de uma epistemologia geral das ciências sociais e humanas. A Filosofia da educação, enquanto tal poderia contribuir com uma epistemologia da educação, mas não se assumiria com o mesmo estatuto de “ciência da educação”, pois simplesmente não pode ser considerada uma ciência. Como é comum na epistemologia a busca de auxílio na história da ciência, aqui também adquire importância, o referirse à história da pesquisa educacional, para entender o itinerário que seguem as ciências da educação enquanto vão se constituindo ou não em campos específicos de saber. Além disso, há interrogações de fundo que devem ser levantadas, como: que compreensões de verdade se podem verificar na pesquisa educacional, especialmente na contemporaneidade?Qual o lugar concedido ao método? Que tipo de linguagem se aceita na expressão das teorias? Que valores éticos, políticos e educacionais são vistos positivamente? Como se pensa a relação sujeito-objeto? Essas questões não serão aqui discutidas por excedem os objetivos desse artigo que se propõe esboçar um quadro de 400

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dificuldades sem discuti-los exaustivamente. Apesar disso, o tema/ problema a seguir merece ser mais bem explicitado em função da centralidade que adquiriu nos discursos educacionais atuais. 4.1 Epistemologia da Prática O termo epistemologia entrou em circulação nos meios acadêmicos e cada vez mais amplia o seu campo de polissemia. Qualquer referência ao conhecimento, independente da sua natureza e do seu contexto, parece merecer a adjetivação de epistemológico. Dentre os usos mais comuns, um vem ganhando um lugar de destaque, especialmente nas pesquisas sobre profissionalização do professor, formação e saberes docentes necessários à sua prática nas instituições educativas, especialmente nos espaços de sala de aula: trata-se da expressão “epistemologia da prática”. Essa noção relaciona-se, ainda, com a idéia do professorpesquisador ou reflexivo, caracterizado por incluir entre as suas preocupações profissionais, o exercício de autoconhecimento, o estudo e a reflexão da sua própria prática nas suas especificidades e contingências (GERALDI; FIORENTINI; PEREIRA, 1998). Assim como o saber acadêmico produzido pelo pesquisador universitário é contraposto ao saber “concreto” do professor prático-reflexivo, parece caber a suposição de que a epistemologia da prática concerne a esse último, assim como a epistemologia nos moldes canônicos, interessa-se pelos conhecimentos científicos, validados nos procedimentos institucionais bem estabelecidos e por isso mais valorizados nos meios acadêmicos. 401

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Interessa à epistemologia da prática, como parece evidente, refletir sobre a prática docente enquanto é feita de saberes (GAUTHIER ET AL, 1998). A partir de tal pressuposto, procura-se entender que saberes são importantes ou indispensáveis à prática docente, como eles se constituem, se elaboram e se refazem nas dinâmicas de sala de aula. Que procedimentos são mais adequados a constituição desse saber? Como podem ser justificados? De que modo se relacionam com os conhecimentos construídos segundos padrões científicos canônicos? (TARDIF, 2002). Uma das características de uma epistemologia da prática parece ser o seu caráter fortemente prescritivo, na medida em que se pretende menos fazer uma crítica “desinteressada” do conhecimento e mais apontar quais saberes importam ao professor e devem constar no seu repertório profissional efetivo em relação ao reservatório 10 mais amplo de saberes disponíveis. Gauthier et al (1998, p. 29) destaca no reservatório de saberes, uma espécie de taxionomia na qual são apresentados, num quadro, seis tipos de saber: disciplinares (a matéria), curriculares (o programa), das ciências da educação, da tradição pedagógica (o uso), experienciais (a jurisprudência particular) e da ação pedagógica (o repertório de conhecimentos do ensino ou a jurisprudência pública validada)11 . O reservatório enquanto um conjunto potencial amplo de saberes passíveis de apropriação inclui o próprio repertório, que é a manifestação mais importante da efetivação da ação profissional, a ponto de ganhar o estatuto de “conhecimento 10

As definições de reservatório e repertório de saberes encontram-se em Gauthier (1998).

11

Transcrição de um quadro (identificado como figura 1) da obra citada.

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do ensino” que transcende a mera prática individual e idiossincrática; ganha o estatuto de saber validado, através da discussão pública e argumentada, por uma espécie de racionalidade retórica ou jurídica (daí a idéia de jurisprudência pública). Tardif (2002, p. 63) apresenta um quadro semelhante ao anteriormente descrito, ao qual denomina “os saberes dos professores”. Estabelece, em seguida, como critérios de classificação taxionômica, “as fontes sociais de aquisição” e “os modos de integração” dos saberes “no trabalho docente”. Os saberes dos professores são então classificados em: 1) pessoais 2) de formação escolar pré-profissional 3) de formação profissional para o exercício do magistério 4) de programas do livro didático do professor 5) experiência profissional na escola e sala de aula. As fontes de aquisição incluem as mais diferentes situações formais, informais e não formais de socialização, aprendizagem e formação em diferentes instituições sociais. Todos são passíveis de serem mobilizados no trabalho docente e podem influenciar a prática docente. Considerando a amplitude dos saberes docentes como foi aqui apenas ilustrado para a finalidade da argumentação desenvolvida, pode-se supor que aquilo que se chama de epistemologia da prática, lança mão de disciplinas sociológicas, como: sociologia das profissões que tem, por sua vez, relações íntimas com a sociologia do trabalho e sociologia do conhecimento; conta-se, ainda com auxílios da psicologia cognitiva, da história e também da epistemologia filosófica. Em todas as profissões, como medicina, advocacia, engenharias, administração e magistério, há uma séria discussão 403

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epistemológica que oscila em torno das conexões entre teoria de base e aplicações ou teoria e prática. A epistemologia, evidentemente, na medida em que se interessa por esse conhecimento disciplinar de base, acadêmico, mais fortemente teórico, terá algo a dizer aos profissionais. Uma epistemologia da prática seria um tipo de estudo interessado no saber na medida em que é apropriado e modificado nas tarefas profissionais, no efetivo savoir-faire, que exige sempre soluções improvisadas,interpretações pessoais, por vezes criativas, do que se aprendeu ou experimentou em outras situações, em um nível qualquer de abstração. Sob esse aspecto recusa-se a antiga racionalidade produtiva e dogmática para a qual o saber profissional fazia-se por procedimentos rígidos, instruções fechadas a serem aplicadas segundo esquemas habituais, adquiridos em função da repetição das experiências. Procuram-se conceder à racionalidade profissional determinações mais flexíveis, menos técnicas, pois esse tipo de práxis era pouco criativo; busca-se inspiração em uma racionalidade prática, que valoriza a ação, a interação lingüística ou mesmo, num primeiro momento, a reflexão pessoal, a capacidade de problematização das soluções dadas, a sensibilidade para levantar novas hipóteses e aplicá-las às situações problemáticas. A racionalidade técnica sempre esteve interessada na aplicação do conhecimento enquanto resultado bem estabelecido, teoria validada segundo métodos rigorosos. Retirava do “aplicador”, daquele que se apropriava do conhecimento, a autonomia crítica para propor ou modificar as instruções derivadas da teoria. 404

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É a prática que exigirá do profissional, habilidades de um pesquisador, de um sujeito-reflexivo capaz de perceber situações problemáticas e, de acordo com elas, produzir um novo conhecimento prático, adequado as contingências do cotidiano de trabalho. Para a epistemologia da prática é relevante entender como o conhecimento vai sendo apropriado pelo profissional, individualmente e nas suas relações sociais de trabalho: tratase de entender a recontextualização do saber a fim de atingir objetivos práticos. No caso do magistério o que determina a discussão são as ocorrências de ensino-aprendizagem, os objetivos do ensino, as formas de avaliação etc. O professor-reflexivo, capaz de pensar a sua prática enquanto agente racional, sujeito de conhecimento, precisaria ser, não apenas um pesquisador do que faz, mas um epistemólogo a pensar a respeito de um fazer no qual os atos cognoscentes são essenciais. 5 Considerações Finais Uma epistemologia da pesquisa educacional precisa levar em conta as complexas questões implicadas no campo epistemológico, a começar pela definição mesmo do que se pode considerar como próprio a esse tipo de reflexão em suas relações como as ciências humanas que se interessam pelo estudo do conhecimento, seja como fenômeno psicológico, sociológico, antropológico ou histórico. A própria filosofia relaciona-se diferentemente com as ciências humanas e as físico-naturais. De modo que as ciências da educação, por se identificarem, majoritariamente às humanidades, mantêm vínculos profundos com o pensamento 405

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filosófico, compartilhando, inclusive, o gosto pela abertura e crítica permanente dos seus resultados e métodos. A possibilidade de falar de ciências filosóficas ou de uma presença da filosofia no seio das ciências explica-se em função de certo fracasso da epistemologia em estabelecer demarcações dos campos de conhecimento, a partir de critérios seguros e fixados dogmaticamente que cumpram suficientemente e com rigor tal tarefa. Apesar de institucionalmente haver a circunscrição dos domínios cognoscentes e de historicamente se reconhecer um paulatino processo de autonomia da racionalidade científica em relação à filosófica, a ciência ainda não foi capaz de falar de si e explicitar as suas mais profundas razões de seu próprio lugar. Embora importe às ciências da educação um discurso reflexivo e teórico a respeito do seu sentido de prática teórica, interessa-lhe de modo muito especial considerar os significados das teorias educacionais enquanto instrumentos a serviço dos meios e finalidades formativas visando, por vezes, a transformação da sociedade em maior ou menor grau. Neste sentido, poder-se-ia acolher os ensinamentos que advêm da segunda tese de Marx a respeito de Feuerbach, de acordo com a qual: “A questão de saber se cabe ao pensamento uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade, o poder, o caráter terreno de seu pensamento” (MARX e ENGELS, 1986). Uma característica saliente das ciências da educação é a sua vocação prática, de modo que as teorias tendem a transcender o nível da mera descrição, explicação ou interpretação dos fenômenos. Em vista disso, uma epistemologia educacional acaba se convertendo em “epistemologia da prática” ou mesmo em uma “epistemologia da práxis”. 406

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Tal epistemologia não se preocupa em refletir sobra o mero fazer teórico: não interessa somente os critérios de cientificidade, os valores epistemológicos como rigor, generalidade, simplicidade e elegância das teorias, mas especialmente o tipo de uso que educadores e trabalhadores fazem dos saberes, como redefinem e recontextualizam as teorias na prática. Uma epistemologia da pesquisa educacional relacionase preferencialmente com uma filosofia da práxis12 , mas também com as ciências, como a sociologia do conhecimento, a sociologia das profissões e a psicologia da aprendizagem. O conhecimento é visto, primordialmente, como prática sócio-histórica, circule ele no âmbito escolar ou não; tal conhecimento materializa-se e ganha sentido em ações curriculares variadas, envolvendo professores e alunos, mas também outros tipos de personagens em diversos espaços sociais. Uma epistemologia da pesquisa educacional não pode deixar de fora das suas preocupações ou reservar um lugar periférico às destinações educacionais dos conhecimentos, a sua pedagogização ou mesmo didatização, seja no âmbito do currículo ou da formação de professores.

12

Na literatura sobre a epistemologia da prática, fala-se mais de uma razão prática, especialmente em sentido aristotélico (GAUTHIER, 1998). Contudo, nas ciências da educação está bem solidificada a compreensão de conhecimento em consonância com os postulados da filosofia da práxis (dialética).

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