Popper-karl-conjecturas-e-refutacoes.pdf

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CONJECTURASEREFUTAÇÕES

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FUNDAÇAO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CONSELHO D IR E T O R Abílio M achado Filho A m adeu Cury Aristides Azevedo Pacheco Leão Isaac Kerstenetzky José Carlos de A lm eida Azevedo José Carlos Vieira de Figueiredo José Ephim M indlin José Vieira de Vasconcellos Reitor: José Carlos de Alm eida Azevedo Vice-Reitor: Luiz Otávio Moraes de Sousa Carm o ED ITO R A UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CONSELHO ED ITO R IA L Afonso Arinos de Melo Franco A rnaldo M achado Cam argo Filho C ândido Mendes de Almeida Carlos Castello Branco G eraldo Severo de Souza Ávila H eitor A quino Ferreira Hélio Jaguaribe Josaphat M arinho José Francisco Paes L andim Miguel Reale O ctaciano Nogueira Tércio Sam paio Ferraz Júnior V am ireh Chacon de A lbuquerque N ascim ento Vicente de Paulo B arretto Presidente: Carlos H enrique C ardim

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Conjecturas e Refutações Coleção Pensamento Científico DQ, Acb

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Biblioteca João Batista Bertbier

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Este livro ou p arte dele não pode ser reproduzido sob nenhum a form a sem autorização por escrito do Editor. Impresso no Brasil Editora Universidade de Brasília Cam pus Universitário — Asa N orte 70910 Brasília — Distrito Federal Conjectures a n d R efutations, de Karl R. Popper First published 1963 by R outledge & Kegan Paul Lim ited 39 Store Street Londres, WC1E 7DD, G rã-B retanha Copyright c Karl R. Popper 1963, 1965, 1969, 1972 T ad u ção da Q u arta Edição, revista, 1972

Conjecturas e Refutações (O Progresso do Conhecimento Científico ) V-' ■*. ■ '■ Nr"*.•

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Popper, Karl Raymund, 1902 —

P831c

Conjecturas e refutações. Trad, de Sérgio Bath. lia, Editora Universidade de Brasília.

Brasí­

449p. (Coleção Pensamento Científico, 1) Título original: Conjectures and refutations: the growth of scientific knowledge.

1. Ciência — Metodologia 2. Conhecimento — Teoria 3. Metodologia I. Título II. Série. CDU - 001.8 165

SU M Á R IO Prefácios

17

IN T R O D U Ç Ã O

27

As origens do conhecim ento e da ignorância

31

C O N JEC TU RAS

59

r l .| Ciência: conjecturas e refutações Apêndice: Alguns problem as da filosofia da ciência

63 89

2. A natureza dos problem as filosóficos e suas raízes científicas ^ S \T r ê s pontos de vista sobre o conhecim ento hum ano w 1- A ciência de Galileu novam ente atraiçoada 2. O que está em jogo 3. Prim eiro ponto de vista: a explicação definitiva pelas essências 4. Segundo ponto de vista: as teorias como instrum entos iç Crítica do ponto de vista instrum entalista 6} Terceiro ponto de vista: conjecturas, a verdade e a realidade 4. Rum o a um a teoria racional da tradição

95 125 125 127 131 135 138 141 147

5. Retorno aos pré-socráticos 161 Apêndice: Conjecturas históricas: a opinião de H eráclito sobre a m udança 179 6. N ota sobre Berkeley — um precursor de M ach e de Einstein

193

7. Crítica e cosmologia de Kant 1. Kant e o iluminismo 2. A cosmologia new toniana de K ant 3. A “C rítica” e o problem a cosmológico 4. O espaço e o tem po 5. A “Revolução de C opérnico” de K ant 6. A doutrina da autonom ia

203 204 205 205 206 207 209

8. O status da ciência e da metafísica 1. K ant e a lógica da experiência 2. O problem a da irrefutabilidade das teorias filosóficas

211 211 219

9. Por que os cálculos lógicos e aritm éticos são aplicáveis à realidade?

227

10. V erdade, racionalidade e a expansão do conhecim ento científico 1. A expansão do conhecim ento: teorias e problem as 2. T eoria da verdade objetiva: correspondência com os fatos

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241 241 248

3. V erdade e conteúdo: verossim ilhança versus probabilidade 4. C onhecim ento contextuai e progresso científico 5. Três condições p ara a expansão do conhecim ento A pêndice: U m a assertiva não em pírica presum ivelm ente falsa porém de elevada p ro babilidade form al

254 263 266

REFUTAÇÕES

277

y ^ ll A A distinção entre ciência e m etafísica 1. Introdução 2. Meu ponto de vista. 3. P rim eira teoria de C arnap sobre a ausência de sentido 4. C arnap e a linguagem da ciência 5. T estabilidade e significação —q6. P robabilidade e indução 12. A linguagem e o problem a das relações entre corpo e m ente 1. Introdução 2. As q u atro funções principais d a linguagem 3. Um conjunto de teses 4. O argum ento da m áquina 5. A teoria causal da denom inação 6. Interação 7. Conclusão 13. N ota sobre o problem a das relações entre corpo e m ente 14. A uto-referência e significação na linguagem ordinária 15. Que é a dialética? 1. A dialética explicada 2. A dialética hegeliana 3. A dialética depois de Hegel Previsão e profecia nas ciências sociais A opinião pública e os princípios liberais ÍL O m ito da opinião pública 2. Os perigos da opinião pública 3. Os princípios liberais: um conjunto de teses 4. A teoria liberal do livre debate 5. As form as da opinião pública Alguns problem as práticos: a censura e os m onopólios de publicidade Algumas ilustrações políticas 8. Sum ário 18. U topia e violência 19. A história do nosso tem po: um a visão otim ista 20. H um anism o e razão

275

Exemplos num éricos Linguagens artificiais e form alizadas N ota histórica sobre a verossimilhança (1964) Algumas indicações adicionais sobre a verossim ilhança (1968) Novas observações sobre os pré-socráticos, especialm ente Parm enides Os pré-socráticos: unidade ou novidade?

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281 283 286 292 301 308 323 323 325 325 326 327 328 329 331 335 343 343 354 361 367 379 379 381 382 383 384 385 385 386 387 397 411

Apêndices:

419

Notas técnicas

421

1. O conteúdo em pírico 2. P robabilidade e o rigor dos testes 3. Verossim ilhança

4. 5. 6. 7. 8. (1968) 9.

421 424 428

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433 435 435 438 441 449

Dedicado a F. A von Hayek

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“Experiência é o nome que todos damos a nossos erros’ Oscar Wilde

“Todo o nosso problem a consiste em fazer com que nossos erros sejam tão breves quanto possível!...”

John A rchibald Wheeler ¥

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Prefácio Os textos que com põem este livro — ensaios e conferências — constituem variações em torno de um tem a m uito simples: a tese de que podem os aprender com os erros que com etem os. Desenvolvem um a teoria do conhecim ento e do seu progresso: um a teoria da razão que atribui aos argum entos racionais a função m odesta - mas im portante — de criticar nossas tentativas, m uitas vezes equivo­ cadas, de resolver os problem as com que nos defrontam os. E um a teoria da ex­ periência que reserva p ara nossas observações o papel igualm ente modesto e quase igualm ente im portante de experim entos que podem ajudar-nos a identificar erros. Em bora acentue nossa falibilidade, não se resigna a um a atitude de ceticismo, e n ­ fatizando tam bém o fato de que o conhecim ento pode crescer, de que a ciência pode progredir — justam ente porque aprendem os com nossos erros.

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Nosso conhecim ento — em particular o conhecim ento científico — progride por meio de antecipações justificadas (ou não), “palpites”, tentativas de soluções, por meio de conjecturas, enfim . Conjecturas que são controladas pelo espírito crítico; isto é, por refutações, que incluem testes rigorosam ente críticos. Elas p o ­ dem vencer esses testes, mas nunca são justificadas de m odo positivo: não se pode dem onstrar que sejam verdades seguras, ou mesmo “prováveis” (no sentido do cál­ culo probabilístico). O exam e crítico das nossas conjecturas tem im portância decisiva: põe em evidência nossos erros e nos leva a com preender as dificuldades do problem a que pretendem os solucionar. É assim que nos fam iliarizam os com os problem as e podemos propor soluções mais m aduras: por si m esm a, a refutação de um a teoria — isto é, de qualquer tentativa séria de solucionar nossos problem as — constitui sempre um passo que nos aproxim a da verdade. Desta form a, aprendem os com os erros. À m edida que aprendem os com os erros cometidos, nosso conhecim ento aum enta — em bora possa acontecer que não tenham os consciência (ou segurança) disso. Como nosso conhecim ento cresce, não há razão p ara desesperar da razão. E como nunca podemos saber com certeza, não podemos tam bém adotar um a atitude autoritária, pretensiosa ou orgulhosa em relação ao que sabemos. Dentre as teorias que sustentamos, algum as são m uito resistentes às críticas e, num determ inado m om ento, parecem constituir um a m elhor aproxim ação da verdade: estas podem ser descritas — ju ntam ente com os resultados dos testes a elas aplicados — como a “ciência” daquela época. Mas, como nenhum a teoria pode ser justificada de form a positiva, a racionalidade da ciência reside essencialmente no

seu caráter crítico e progressivo — no fato de que podemos debater sua pretensão de solucionar problem as m elhor do que as explicações competitivas. Em poucas palavras, esta é a tese fundam ental desenvolvida neste livro, que é aplicada a m uitos tem as — de problem as de filosofia e da história das ciências físicas e sociais a problem as históricos e políticos. E essa tese central que dá unidade ao livro; a variedade dos assuntos torna aceitável a sobreposição de alguns capítulos. Revisei, aum entei e reescrevi a m aior parte deles, mas evitei alterar o caráter distintivo das conferências e exposições feitas pelo rádio. Não teria sido difícil libertá-las do estilo narrativo característico do conferencista, mas acho que os leitores preferirão tolerar esse estilo a sentir que o autor não os trato u com confiança. M antive algum as repetições, de m odo que cada capítulo se sustenta por si mesmo. Como contribuição p ara os críticos potenciais deste livro incluí, como c a ­ pítulo final, um a crítica a ele que contém p arte essencial do argum ento (que o leitor não enco n trará em nenhum a outra seção do livro). Excluí todos os trabalhos que pressupõem fam iliaridade com aspectos técnicos nos campos da lógica, da teoria da p robabilidade, etc. Nos A pêndices, contudo, reuni algum as notas téc­ nicas que poderão ser úteis aos que se interessam por essas coisas. Os Apêndices e quatro dos capítulos vão publicados aqui pela prim eira vez. P ara evitar equívocos, quero deixar bem claro que uso sem pre os termos “lib eral” , “liberalism o” , etc. no sentido em que são em pregados, de m odo geral, na Inglaterra (mas não necessariam ente nos Estados Unidos): “lib eral”, p ara m im , não é o sim patizante de um determ inado partido político, m as aquele que valoriza a liberdade individual e que é sensível aos perigos intrínsecos de todas as form as do poder e da autoridade. K .R .P . Berkeley, Califórnia, prim avera de 1962

Prefácio à Segunda Edição Esta nova edição apresenta, além de um a revisão geral do texto, um a q u a n ­ tidade considerável de m aterial histórico acum ulado desde que a prim eira edição foi publicada. Procurei m an ter a paginação, sempre que possível, de m odo que as referências à prim eira edição concordarão quase sem pre com a segunda edição. Houve tam bém um acréscimo à parte final do capítulo 5, e mais um A pêndice (6). Alan Musgrave contribuiu m uito p ara aperfeiçoar o livro. No m eu prefácio original procurei sintetizar a tese deste volume num a frase — a afirm ativa de que podem os aprender com os erros que com etem os. Valeria a pena talvez acrescentar algum as palavras aqui. M inha tese im plica que todo o nos­ so conhecim ento aum enta exclusivamente por meio da correção dos nossos erros. Por exemplo: o que conhecemos hoje como “retroalim entação negativa” (“negative feed -b a c k ”) é apenas um a aplicação particular do m étodo genérico de aprendizado por meio dos erros. ^ A parentem ente, p ara em pregar esse m étodo precisamos ter algum objetivo em vista: erram os quando nos afastamos dele. (Um term ostato retroalim entado depende da existência de um objetivo — um a tem p eratu ra determ inada — que precisamos escolher previaínente.) C ontudo, em bora seja necessário selecionar um objetivo antes de aplicar o m étodo do aprendizado pelo erro, isto não quer dizer que nossos objetivos não se subordinem , por sua vez, ao m étodo em pregado: eles podem ser substituídos, e m uitos o são. (Da m esma form a, podemos alterar o te r­ m ostato, escolhendo, pelo m étodo das tentativas, a tem p eratu ra mais apropriada p a ra um certo fim .) E nosso sistema de objetivos não só m uda mas tam bém se desenvolve, de m odo m uito sem elhante à form a como cresce o conhecim ento. K .R .P . Penn, Buckingham shire, janeiro de 1965

Prefácio à Terceira Edição Além de num erosas alterações de pequena m onta, o texto teve vários acrés­ cimos, entre eles um a exposição mais clara sobre o que penso a respeito da teoria da verdade de Tarski. H á tam bém alguns novos Apêndices. K. R . P. Penn, B uckingham shire, abril de 1968

Prefácio à Edição Brasileira Contra a* Indução (Uma A rgum entação Dentre M uitas) I Muitos anos atrás — em 1954 —, escrevi um trabalho, “T he Aim of Scien­ ce” !, publicado pela prim eira vez em inglês e alem ão em dezem bro de 1957. Esse trabalho continha, entre outras coisas, um a refutação do ponto de vista m antido por grandes homens como Isaac Newton e Max Bprn, de que a teoria de Newton pode ser derivada das leis de Kepler, seja por meio de um a argum entação indutiva seja de um a argum entação dedutiva. Na época, não dei m uita ênfase à refutação do m ito histórico de que a teoria de Newton é resultado da indução, pois pensava haver destruído a teoria da indução vinte anos antes; e era otim ista o suficiente p a ra acreditar que toda resis­ tência ainda proveniente dos defensores da indução deveria desaparecer em breve. (C ontudo, critiquei de m odo até certo ponto circunstanciado a então corrente teoria da indução probabilística de C arnap, com o resultado de que ele a a b a n ­ donou; e a últim a m aneira como ele defendeu a indução foi com pletam ente diversa da famosa teoria que desenvolvera no seu volumoso porém , na m inha opinião, in ­ defensável livro Logical Foundations o f Probability.) Desde então, os indutivistas tom aram algum alento, em parte porque não tenho mais respondido as suas argum entações, que foram todas claram ente re ­ futadas em várias partes de meus escritos anteriores. N ão mais as respondi porque pensava, como ainda penso, que o assunto já havia sido definido há m uito tem po e que era portanto entediante. II T odavia, pode ser bom agora repetir aqui, de m odo m uito breve, um a das mais interessantes argum entações contra o indutivism o. Por indução quero dizer um a argum entação tal que, dadas algum as prem is­ sas em píricas (singulares ou particulares), leva a um a conclusão universal, a um a teoria universal, seja com um a certeza lógica, seja “probabilisticam ente” (no sen­ tido em que este term o é utilizado no cálculo de probabilidades). A argum entação que desejo reenunciar aqui é m uito simples. 1. Publicado pela primeira vez em Rativo, vol. i, n.° I,_dezembro de 1957. Uma versão revisada constitui agora o capítulo 5 do meu Objective Knowledge, Oxford University Press, 5.a impressão, 1979, pp. 191-205. A presente reenunciação do argumento contra a indução, implícito neste trabalho, foi escrita em abril de 1980.

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24

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

M uitas teorias que, como a de Newton, pensava-se serem resultado da in ­ dução são n a realidade inconsistentes em relação a suas supostas premissas in d u ­ tivas (parciais). Mas, sendo isto verdade, então a indução rui, em todos os seus aspectos relevantes. Isso q uanto à indução não probabilística. No que respeita à argum entação indutiva probabilística: segundo o cálculo de probabilidades, se nos forem dadas algum as premissas indutivas consistentes, então qualq u er conclusão inferida que seja inconsistente com as mesmas somente poderá ter, em relação a elas, um a probabilidade igual a zero.

PREFÁCIOS

25

Mas desde que as supostas premissas indutivistas são, em term os estritos, in ­ consistentes em relação às supostas conclusões indutivistas, seria m uito errôneo falar, nesse caso, de um a inferência indutiva, ou de um a relação de indução probabilística. V Esta espécie de situação é tradicional na história da ciência. A relação entre a teoria new toniana da gravitação e aquela de Einstèin é um outro exem plo m uito im portante e sim ilar de um tal caso. VI

III

A teoria de Newton indubitavelm ente deveu m uito às teorias de Galileu e de Kepler; tan to , que o próprio Newton as considerou como sendo premissas indutivas (parciais). A teoria de Galileu sobre a queda dos corpos continha um a constante, g, a constante da aceleração. Segundo a teoria de N ewton, g não é um a constante, mas um a variável que depende (a) da massa do corpo atraente (no caso de Galileu, a T erra), e (b) da distância do centro de massa. C onseqüentem ente, a teoria de Galileu é inconsistente em relação à de New­ ton. Evidentem ente, na suposição de que somente observamos os corpos em queda livre próxim os à superfície da T erra, o que determ ina que todos eles estejam a quase a m esm a distância do centro da T e rra; podem os explicar porque g {er­ roneam ente) parece ser um a constante. A situação em relação às leis de Kepler é bastante sim ilar. P ara qualq u er sistema de dois corpos dos quais um é m uito pesado, e o outro de peso desprezível, podemos derivar as três leis de Kepler da teoria de New­ ton e conseqüentem ente explicá-las. Mas, desde que Kepler form ulou suas leis para um sistema de m uitos corpos consistindo do som atório de vários planetas, elas são, do ponto de vista da teoria de Newton, inválidas. Assim, essas leis não poderiam constituir um sistema seja parcial seja total de premissas (indutivas ou dedutivas) da teoria de Newton. Isso q u an to a um a derivação indutiva ou dedutiva da teoria de Newton a p artir d a teoria de Kepler e da de Galileu. IV Evidentem ente, toi um êxito decisivo da teoria de Newton poder explicar as teorias de Kepler e Galileu; isto é, que essas teorias pudessem ter sido deduzidas da de Newton segundo certas suposições sim plificadoras (e, em termos estritos, falsas).

Que eu saiba, nenhum a resposta séria foi d ad a a esta argum entação, até agora, especialm ente por p arte dos defensores das atuais teorias probabilísticas da indução. K a rlR . Popper n h rild e 1980

Introdução

“Deixarei contudo que o pouco que aprendi seja conhecido, de m odo que alguém m elhor do que eu possa adivinhar a verdade, provando e refutando meus erros com seu trabalho. Isso me d ará prazer, pois terei sido um meio p ara trazer à luz a verdade” . A lbrecht Dürer “Posso alegrar-m e agora até mesmo com a dem onstração de que um a teoria que estimo é falsa — isso constituiria tam bém um êxito científico” . John Carew Eccles

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As Origens do Conhecimento e da Ignorância*

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Segue-se, portanto, que a verdade se manifesta...” Benedictus de Spinoza

“Todo homem traz consigo os critérios... para distinguir... a verdade das aparências”.

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John Locke

“...é impossível pensar em algo que não tenhamos anteriormente sentido, através de nossos sentidos interiores ou exteriores”. David H um e

Tem o que o título desta conferência possa ser criticado, pois em bora as ex­ pressões “origens do conhecim ento” e “origens do e rro ” estejam corretas, a expres­ são “origens da ignorância” é um caso diferente. “A ignorância é algo negativo: é a ausência de conhecim ento. Mas, de que m aneira pode a ausência de algo ter a l­ gum a origem?” 1 Esta pergunta me foi feita por um amigo quando lhe confiei o título que havia escolhido para esta conferência. Pressionado, surpreendi-m e im ­ provisando um raciocínio p ara explicar que o curioso efeito lingüístico do título era na verdade intencional. Disse-lhe que esperava, pelo enunciado do título, cham ar atenção p ara um a série de doutrinas filosóficas não registradas, e especialm ente (além da doutrina que afirm a que a verdade é evidente) para a teoria da cons­ piração, que in terpreta a ignorância não como a m era ausência de conhecim ento, mas como a ação de um a força sinistra, origem de influências im puras e maléficas que pervertem nossa m ente e nos impõem o hábito de resistir ao conhecim ento.

* Annual Philosophical Lecture da British Academy de 20 de janeiro de 1960. Publicada pela primeira ve’ nos Proceedings o f the British Academy (46, 1960) e separadamente pela Oxford University Press, em

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’artes e Spinoza foram além, afirmando que o erro, além da ignorância, é “negativo” — uma de conhecimento e até mesmo do uso apropriado da nossa liberdade (Descartes, Princípios, I, bém a Terceira e a Quarta Meditações', vide também a Ética de Spinoza (11,35) e Princípios ' Descartes (1,15). Esses filósofos se referem, contudo (por ex.: na Ética, 11,41), à “causa” do erro), como o faz Aristóteles (M et. 1046a — 30/35; vide também Met. 1052a — 1 e 35).

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES 32

N ão estou bem certo se a explicação tranqüilizou as apreensões do m eu am igo, mas certam ente o silenciou. N ão sei se poderia dizer o mesmo deste a u ­ ditório, m an tid o em silêncio pelas norm as que regem este encontro. Espero, con­ tudo, tê-lo tranqüilizado o suficiente p ara poder com eçar pelo outro extrem o, ou seja, pelas origens do conhecim ento. Mais adiante, retornarei à questão das origens da ignorância e tam bém à “teoria da conspiração”. I

O problem a que pretendo exam inar nesta conferência (e espero não apenas exam inar m as tam bém resolver) pode ser descrito como um dos aspectos da velha disputa entre as escolas de filosofia britância e continental — a disputa entre o em ­ pirism o de Bacon, Locke, Berkeley, H um e e Mill e o racionalism o clássico ou in ­ telectualism o de Descartes, Spinoza e Leibniz. Nessa disputa, a escola britânica in ­ sistia em que a origem fundam en tal de todo conhecim ento está na observação, e n ­ quanto a escola continental insistia em que sua origem reside na intuição intelec­ tual de idéias claras e distintas. M uitas destas questões estão ainda hoje bastante vivas. O em pirism o, que ainda é a d o u trin a dom inante na In glaterra, não só conquistou os Estados Unidos, m as é hoje tam bém largam ente aceito no próprio continente europeu como a ver­ dadeira teoria do conhecim ento científico. O intelectualism o cartesiano, infeliz m ente, tem sido dem asiadam ente distorcido pelas várias formas do irracionalism o m oderno.

AS ORIGENS DO CONHECIMENTO E DA IGNORÂNCIA

33

a noção de que a verdade é o mesmo que a utilidade) estão intim am ente ligados às idéias autoritárias e totalitárias. (Cf. L et the People Think, 1941, pág. 77). O bviam ente, a posição de Russell está sujeita a discussão. Alguns filósofos recentes têm desenvolvido a doutrina da im potência essencial e da irrelevância, na prática, de toda filosofia genuína — incluindo po rtan to (pode-se supor) a epis­ temologia. Esses mesmos filósofos afirm am que, por sua p ró p ria natureza, a fi> losofia não pode ter conseqüências significativas e, p o rtan to , não pode influenciar a ciência e a política. Creio, no entanto, que as idéias são coisas perigosas e pode­ rosas, e que mesmo os filósofos têm algum as vezes produzido idéias. N a m inha opinião, esta nova doutrina da im potência da filosofia é largam ente rejeitada pelos fatos. Com efeito, a situação é m uito simples. A crença de um liberal — crença na possibilidade do im pério das leis, da justiça igualitária, dos direitos fundam entais e na sociedade livre — pode conviver facilm ente com o reconhecim ento de que os juízes não são oniscientes e com etem erros; que a justiça absoluta jam ais se realiza plenam ente. Mas a crença na possibilidade do im pério das leis, da justiça e da liberdade certam ente não resistirá à aceitação de um a epistemologia que propugne a inexistência de fatos objetivos, não só neste caso particu lar mas em qualquer outro; e que diga que o juiz não pode com eter erros factuais um a vez que não pode estar equivocado a respeito dos fatos, da m esma form a como não pode ter certeza deles.

III

N esta conferência, procurarei dem onstrar que as diferenças entre as escolas em pirista e racionalista são em verdade bem menos expressivas do que as sem e­ lhanças, e que am bas estão erradas. Sustento que estejam erradas em bora eu m es­ m o seja um em pirista e um racionalista. Mas acredito que, em bora tan to a razão como a observação desem penhem funções im portantes, essas funções pouco se as­ sem elham às que seus defensores clássicos lhes atrib u íam . Mais precisam ente, procurarei d em onstrar que nem a observação nem a razão podem ser descritas como fontes do conhecim ento, no sentido em que até hoje têm sido definidas. II

Nosso problem a pertence à teoria do conhecim ento, ou epistemologia, que tem a reputação de ser o cam po da filosofia p u ra mais abstrato, mais rem oto e com pletam ente irrelevante. H um e, por exem plo, um dos maiores pensadores neste cam po, predisse que, tendo em vista o caráter rem oto e o nível de abstração do as­ sunto, bem como a irrelevância, na p rática, de alguns de seus resultados, nenhum leitor os aceitaria por m ais de um a hora. A atitude de K ant era diferente. Segundo ele, a pergunta “Que posso sa ­ ber?” estava entre as três mais im portantes que um hom em podia propor a si m es­ m o. Em bora m ais próxim o de H um e em term os de tem peram ento filosófico, Bertra n d Russell parece concordar com K ant neste ponto. Penso que Russell tem razão em a trib u ir à epistem ologia conseqüências práticas para a ciência, a ética e mesmo a política. Russell, de fato, afirm a que o relativismo epistemológico (ou seja, a idéia de que não existe a verdade objetiva) e o pragm atism o epistemológico (ic*

O grande movim ento de liberação que com eçou n a Renascença e desem ­ bocou, após as vicissitudes da Reform a e das guerras religiosas e revolucionárias, nas sociedades livres (nas quais os povos de língua inglesa têm o privilégio de viver) inspirou-se, d u ran te todo o seu desenrolar, em um otimismo epistemológico sem paralelo: num a visão extrem am ente otim ista do poder do hom em de discernir a verdade e adquirir conhecim ento. No centro desta nova visão otim ista da possibilidade do conhecim ento está a doutrina de que a verdade é evidente. A verdade pode encontrar-se velada, mas pode revelar-se. Se não se revelar por si só, poderem os revelá-la, em bora isto nem sempre seja fácil. Mas, quando a verdade nua se apresenta diante de nós, podemos vê-la, distingui-la da falsidade e saber que é a verdade. O nascim ento da ciência e da tecnologia m odernas inspirou-se nesta epis­ temologia otim ista, cujas figuras mais proem inentes foram Bacon e Descartes. Esses filósofos ensinavam que não havia necessidade de apelar p ara a autoridade em as­ suntos relacionados com a busca da verdade porque cada hom em traz consigo as fontes do conhecim ento: seja na sua capacidade de percepção pelos sentidos, que pode utilizar ao observar cuidadosam ente a natureza, seja no poder de intuição in ­ telectual — que em pregará para distinguir a verdade da falsidade, recusando-se a aceitar qualquer idéia que não seja clara e distintam ente percebida pelo intelecto. O hom em pode conhecer: logo pode ser livre. E esta a fórm ula que explica a ligação entre o otimismo epistemológico e as idéias liberais.

34

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Existe tam bém a ligação oposta. A descrença no poder da razão hum ana, na capacidade do hom em de discernir a verdade, está quase sem pre ligada à des­ confiança no próprio hom em . Assim, o pessimismo epistemológico está histori­ cam ente ligado à dou trin a da depravação do hom em ; tende a gerar a necessidade de tradições fortes e de um a autoridade poderosa que poderia salvar o hom em da sua loucura e m aldade. (Em O Grande Inquisidor (Os Irm ãos K aram azov), de Dostoievski, há um im pressionante esboço desta teoria do autoritarism o e um a des­ crição do ônus daqueles que estão investidos de autoridade). O contraste entre pessimismo e otim ismo epistemológicos pode ser consi­ derado o mesmo que existe entre o tradicionalism o e o racionalism o epistem oló­ gicos. (Estou utilizando o últim o term o no seu sentido mais am plo, de m aneira a opô-lo ao irracionalism o e a fazê-lo ab arcar não só o intelectualism o cartesiano mas tam bém o em pirism o). De fato, podemos in terp retar o tradicionalism o como a crença de que, na ausência de um a verdade objetiva e discernível, temos a escolher entre a autoridade da tradição e o caos; en quanto o racionalism o, obviam ente, sem pre reivindicou o direito da razão e do em pirism o de criticar e rejeitar qualquer tradição e qualq u er autoridade, considerando-as baseadas na irracionalidade mais com pleta, no preconceito ou em circunstâncias acidentais.

IV

E inquietante observar que mesmo um estudo abstrato como a epistemologia p u ra não é, na verdade, tão puro quanto se possa pensar (e como acreditava Aris­ tóteles), que as idéias nela contidas podem ser em grande p arte motivadas e incons­ cientem ente inspiradas por ideais políticos ou sonhos utópicos. Este fato deve cons­ tituir um a advertência ao epistem ologista. Mas, que pode ele fazer? Como epistem ologista, tenho apenas um interesse: descobrir a verdade sobre os problem as da epistem ologia e verificar se esta verdade se coaduna ou não com m inhas idéias políticas. Mas não me estarei deixando influenciar inconscientem ente pelos meus próprios ideais e crenças políticas? Acontece que não sou só um em pirista e uúi racionalista, mas tam bém um liberal (no sentido britânico do term o); mas, justam ente porque sou um liberal, sinto que há coisas mais im portantes do que subm eter as várias teorias do liberalis­ mo a um agudo exam e crítico. E nquanto engajado num exam e crítico deste tipo, descobri a função de cer­ tas teorias epistemológicas (sobretudo das diversas formas de otimismo episte­ mológico) no desenvolvimento das idéias liberais. V i-me forçado a rejeitá -las por se terem revelado insustentáveis. Esta experiência pessoal serve p ara ilustrar a afir­ m ação de que ideais e esperanças não influenciam necessariam ente nossas con­ clusões; que, na busca da realidade, talvez seja m elhor com eçar pela crítica de nos­ sas crenças m ais enraizadas. T al procedim ento poderá parecer um plano perverso, mas não p ara aqueles que não tem em a verdade e desejam descobri-la. V Ao exam inar a epistem ologia otim ista inerente a certas idéias liberais, des­ cobri um certo núm ero de doutrinas que, em bora im plicitam ente aceitas, pelo que sei não têm sido explicitam ente discutidas ou mesmo percebidas pelos filósofos e historiadores. Já m encionei a mais im portante dessas doutrinas, que afirm a que a

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verdade é evidente. A teoria da conspiração, um a curiosa ram ificação da anterior, é a mais estranha do grupo. Como os senhores estarão lem brados, por “doutrina da verdade evidente” refiro-me à visão otim ista de que a verdade é sempre reconhecível quando colocada diante de nós: se ela não se revelar por si só, precisará apenas ser desvelada ou des­ coberta. Depois disso, não haverá mais necessidade de argum entos adicionais. Recebemos olhos para ver a verdade, e a “luz n a tu ra l” da razão para poder enxer­ gá-la. Essa doutrina constitui o âm ago dos ensinam entos de Descartes e Bacon. Descartes baseou sua epistemologia otim ista na im portante teoria da veracitas Dei: aquilo que distinguimos claram ente como sendo a verdade será de fato verdadeiro; do contrário, Deus nos estaria enganando. Logo, a autenticidade de Deus forço­ sam ente torna a verdade evidente. Em Bacon encontram os um a doutrina sem elhante, que pode ser descrita como a doutrina da veracitas naturae: a autenticidade da natureza. A natureza é um livro aberto, e quem o ler com a m ente pura, não o interp retará erradam ente. Só incorrerá em erro quem tiver a m ente d eturpada. Este últim o com entário dem onstra que a doutrina da verdade m anifesta sus­ cita a necessidade de se explicar a falsidade. O conhecim ento, ou seja, a posse da verdade, não necessita ser explicado. Mas, como podemos incorrer em erro se a verdade é evidente? Pode-se responder assim: incorremos em erro pela recusa pecaminosa de enxergar a verdade evidente; porque nossas m entes abrigam p re ­ conceitos inculcados pela educação, pela tradição e outras influências maléficas que perverteram nossas m entes originalm ente puras e inocentes. A ignorância pode resultar da ação de forças que conspiram para nos m anter ignorantes e para p e r­ verter nossas mentes, enchendo-as de falsidade e cegando nossos olhos para que não possam enxergar a verdade evidente. Tais preconceitos e tais forças são, portanto, as fontes da ignorância. A teoria da conspiração é bastante conhecida, na form a m arxista, como a conspiração da im prensa capitalista que perverte e suprim e a verdade, incutindo falsas ideologias no espírito dos trabalhadores. Entre elas estão, obviam ente, as doutrinas religiosas. É surpreendente a pouca originalidade da teoria m arxista. O sacerdote m alvado e fraudulento em penhado em p erp etu ar a ignorância do povo era um a figura típica do século XVII e, tem o, constituir um a das inspirações do liberalismo, a qual rem onta à crença protestante na ação conspiratória da Igreja de Roma e tam bém à opinião dos dissidentes que tinham pontos de vista semelhantes em relação à Igreja estabelecida. (Já tive a ocasião de expor a pré-história desta crença a p a rtir de C rítias, tio de Platão; vide m eu livro Open Society, cap. 8, seção ii). Esta crença curiosa num a conspiração é a conseqüência quase inevitável da visão otim ista de que a verdade, e, portanto, a virtude, só prevalecerão se lhes for dada um a oportunidade. “Deixem a verdade lu tar contra a falsidade; quem já viu a verdade levar a pior num a luta aberta e livre?” (Areopagitica. Com pare com o provérbio francês: La vérité triom phe toujours). Assim, quando a V erdade de M il­ ton levou a pior, concluiu-se necessariam ente que o encontro não havia sido livre:

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

se a verdade evidente não prevalece, deve ter sido suprim ida m aliciosam ente. O b ­ servamos que um a atitude tolerante, baseada na convicção otim ista no triunfo da verdade, pode ser abalada facilm ente, tornar-se um a teoria da conspiração difícil de conciliar com a atitude tolerante. (Vide J. W. N. W atkins sobre M ilton, em The Listener de 22 de janeiro de 1959). Não afirm o que a teoria da conspiração jam ais se baseou na verdade, mas sim que é essencialm ente um m ito, da mesma form a como o é tam bém a teoria da verdade evidente. O fato é que a verdade é freqüentem ente difícil de ser encontrada e se perde novam ente com grande facilidade. Crenças errôneas têm a capacidade supreendente de sobreviver m ilhares de anos, com ou sem a ajuda de um a ação conspiratória, desafiando a própria experiência. Sob este aspecto, a história da ciência, e sobretudo da m edicina, nos fornece bons exemplos, entre os quais podemos citar, de fato, a própria teoria da conspiração no seu sentido mais am plo. Refiro-me à visão errônea de que os acontecim entos malignos resultam sempre da vontade de algum a força m aléfica determ inada. Diversas formas desta crença sobrevivem ain ­ da hoje. P ortanto, a epistemologia otim ista de Bacon e Descartes não pode ser ver­ dadeira. O mais estranho é que essa falsa epistemologia constituiu a m aior ins­ piração de um a revolução intelectual e m oral sem paralelo na história. Ela incitou o hom em a pensar por si mesmo; deu-lhe a esperança de que, através do conhe­ cim ento, poderia libertar a si e aos outros da servidão e da m iséria; possibilitou a ciência m oderna; tornou-se a base da luta contra a censura e a supressão do livre pensam ento; a base da consciência não conform ista, do individualism o e de um novo senso de dignidade do hom em ; suscitou a exigência da educação universal e o novo ideal de um a sociedade livre; fez o hom em sentir-se responsável por si mesmo e pelos outros, pronto a m elhorar não só suas condições individuais de vida como tam bém as da hum anidade. Este é bem o caso de um a m á idéia que inspirou m uitas boas idéias. VI T al epistem ologia falsa, no entanto, teve tam bém conseqüências desastrosas. A teoria da verdade evidente — segundo a qual a verdade será vista por todos que assim desejarem — constitui a base de quase todas as formas de fanatism o. De fato, só a m aldade mais depravada pode levar à recusa de se enxergar a verdade eviden­ te; só conspiram p a ra suprim ir a verdade aqueles que têm motivo p ara tem ê-la. Mas essa teoria não só gera fanáticos — convictos de que todos aqueles que não enxergam a verdade devem estar possuídos pelo dem ônio — mas pode levar tam bém ao autoritarism o, em bora talvez não tão d n etam en te quanto a episte­ m ologia pessimista. Isso acontece simplesmente porque a verdade, via de regra, não se m anifesta por si só; aquilo que supostam ente é a verdade evidente precisa não só de constantes interpretações e afirmações mas tam bém de reinterpretaçoes e reafir­ mações. E preciso que praticam ente todo dia algum a autoridade se pronuncie sobre a verdade, estabelecendo sua evidência — autoridade que pode fazê-lo a r ­ b itrária e cinicam ente.

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Muitos epistemologistas, portanto, abandonarão decepcionados sua posição otim ista para construir um a im ponente teoria au to ritária baseada num a episte­ m ologia pessimista. VII Platão tem um papel decisivo na pré-história da doutrina da veracitas Dei de Descartes (que afirm a que a intuição intelectual não nos ilude porque Deus é autêntico e tam bém não nos engana; em outras palavras, nosso intelecto é um a fonte de conhecim ento porque Deus tam bém o é). Essa doutrina tem um a longa história, que podemos acom panhar pelo menos a p artir de Hom ero e Hesíodo. Consideramos n atu ral que os sábios e os filósofos façam referência às fontes do seu conhecim ento. Por isso, talvez nos surpreendam os ao descobrir que esse hábito se originou nos poetas gregos. De fato, eles se referem às fontes dos seus conhecim entos, que têm natureza divina — as musas. Conforme observa Gilbert M urray, em The Rise o f The Greek Epic (terceira edição, de 1924, pág. 96), “os bardos gregos devem sempre o que podemos cham ar de sua inspiração e tam bém seu conhecim ento das coisas às musas. As musas estão presentes e conhecem tu d o ... Hesíodo sempre explica que depende delas para ad q uirir conhecim ento. O utras fontes de conhecim ento são de fato reconhecidas... porém , no m ais das vezes, ele consulta as m usas... como o faz tam bém Hom ero p ara assuntos como o catálogo do exército grego” . Como esta citação dem onstra, os poetas costum avam afirm aria existência de fontes divinas — garantidoras da veracidade de suas histórias — não só para sua inspiração como tam bém para seu conhecim ento. Os filósofos H eráclito e Parm ênides pensam da m esma form a. H eráclito. aparentem ente, considera-se um profeta “que fala com palavras delirantes, ... pos­ suído pelo deus” — por Zeus, fonte de toda sabedoria (DK2, B 92, 32; cf. 93, 41, 64, 50). Parm ênides, por sua vez, pode ser considerado o elo de ligação entre Hom ero ou Hesíodo, de um lado, e Descartes, do outro. Sua estrela-guia e inspiradora é a deusa Diké, descrita por H eráclito (DK, B 28) como a guardiã da ver­ dade. O próprio Parm ênides a descreve como guardiã e possuidora das chaves da verdade, a fonte de todo o seu conhecim ento. Contudo, Parm ênides e Descartes têm mais em com um do que a doutrina da veracidade divina. A divina guardiã da verdade, por exemplo, afirm a a Parm ênides que, p ara distinguir a verdade da fa l­ sidade, deve-se recorrer apenas ao intelecto, excluindo totalm ente a visão, audição e palato. (Cf. H eráclito, B 54, 123; 88 e 126 sugerem transform ações inobserváveis produzindo opostos observáveis). Até mesmo o princípio da sua teoria física (que. como Descartes, ele baseia na teoria intelectualista do conhecim ento) é o de Des­ cartes: a impossibilidade do vazio absoluto, a necessária plenitude do universo. No lon de Platão encontram os um a distinção precisa entre a inspiração divina — o delírio divino do poeta — e as fontes divinas ou origens do conhecim en­ to verdadeiro. (O tem a é desenvolvido de modo m ais com pleto no Phaedrus, es­ pecialm ente a p artir de 259e; em 275b-c, como m e fez n o tar H arold Cherniss,

2 — DK = Diels —Kranz, Fragmente der Vòrsokratiker.

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Platão chega mesmo a insistir na distinção entre questões de osigem e de veraci­ dade). Platão adm ite que os poetas sejam inspirados, mas nega qualquer au to ri­ dade divina sobre o conhecim ento das coisas que alegam possuir. Não obstante, a doutrin a da origem divina do conhecim ento tem um papel decisivo na famosa teoria da anamnesis de Platão, que em certa m edida outorga a todo hom em o aces­ so às fontes divinas do conhecim ento. (O conhecim ento de que tra ta essa teoria é o conhecim ento da natureza ou da essência das coisas, e não de fatos históricos em particular). De acordo com o M eno de Platão (81b-d) não há n ad a que nossa alm a im ortal já não saiba antes de nascermos; como todas as naturezas são semelhantes, nossa alm a é sem elhante a todas as naturezas: conhece-as a todas e, portanto, conhece todas as coisas. (Vide tam bém Phaedo 79d; República, 611d; Leis, 899d). Ao nascer, esquecemos; mas podemos recobrar a m em ória, e recuperar o co­ nhecim ento que já tínham os, ainda que só parcialm ente: ao ver de novo a verdade, nós a reconhecem os. Por isso, todo conhecim ento é re-conhecim ento — a recor­ dação da essência, da verdadeira natureza que já conhecíam os (Phaedo, 72 em diante; 75e). Essa teoria im plica que nossa alm a perm anece num estado divino de onisciência en quanto participa do m undo divino das idéias, essências ou naturezas, a n ­ te do nascim ento. Este corresponde à queda do estado de graça, do estado natural ou divino em que tudo conhecemos; tal seria, p o rtanto, a causa e a origem da nossa ignorância. (Aí poderia estar a base da idéia de que a ignorância é um pecado, ou que está pelo menos relacionada com o pecado; vide Phaedo, 76d). E óbvio que há um vínculo estreito entre a teoria da anamnesis e a doutrina da verdade evidente; mesmo no nosso estado de privação e esquecim ento, se virmos a verdade não poderem os deixar de reconhecê-la como tal. P ortanto, o resultado da anamnesis é a restauração da verdade ao estado do que não é esquecido nem oculto (alethes): a verdade como algo m anifesto. E o que Sócrates dem onstra num a bela passagem do M eno, ajudando um jovem e inculto servo a “reco rd ar” a prova de um caso especial do teorem a de Pitágoras. Eis aí, sem dúvida, um a epistemologia otim ista, e a raiz do cartesianismo. Ao que parece, no M eno Platão tinha consciência do caráter altam ente otim is­ ta da sua teoria, pois a descreve como um a d o u trina que provoca nos homens o desejo de ap render, de expandir-se, de descobrir. No entanto, Platão deve ter-se desapontado, pois na R epública (e tam bém no Phaedrus) vamos encontrar o início de um a epistemologia pessimista. Na fa ­ mosa analogia dos prisioneiros da caverna (514) o filósofo m ostra que o m undo da nossa experiência é apenas um a som bra, um reflexo do m undo real; ainda que um dos prisioneiros pudesse escapar da caverna p ara ver o m undo da realidade, e n ­ fren taria dificuldades quase insuperáveis p ara entendê-lo — sem m encionar as dificuldades que teria em transm itir sua experiência aos outros prisioneiros, retidos na obscuridade. Os obstáculos que surgem no processo de com preensão do m undo real são quase sobre-hum anos; só uns poucos (na m elhor das hipóteses) podem a l­ cançar o estado divino de entendim ento da realidade — o estado divino de co­ nhecim ento genuíno, de episteme. Essa é u m a teoria pessimista, no que se refere a quase toda a hum anidade, pois ensina que só uns poucos eleitos podem alcançar a verdade. Contudo, com

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relação a esses poucos, é um a visão mais extraordinariam ente otim ista do que a doutrina da verdade evidente. As conseqüências autoritárias e tradicionalistas dessa teoria tão pessimista aparecem desenvolvidas plenam ente nas Leis. Encontram os portanto em Platão a prim eira transição do otimismo para o pessimismo na teoria do conhecim ento. C ada um a dessas concepções constitui o fundam ento de um a das duas filosofias do Estado e da sociedade diam etralm ente opostas: de um lado, o racionalism o utópico, antitradicionalista, anti-autoritário, revolucionário, do tipo cartesiano; de outro, o tradicionalism o autoritário. O que podemos tam bém associar com a idéia de que a queda do hom em , no sentido epistemológico, aceita um a interpretação pessimista, além da explicação otim ista da doutrina da anamnesis. Na interpretação pessimista, a queda condena todos os m ortais — ou quase todos — à ignorância. Creio que é possível discernir na analogia da caverna (e ta l­ vez tam bém na história da queda da cidade, quando os homens negligenciaram as Musas e seus ensinam entos divinos — vide R epública, 546d) um eco de form a mais antiga, m uito interessante, dessa idéia: a doutrina de Parm ênides, segundo a qual as opiniões dos m ortais são m eras ilusões, o resultado de convenções equivocadas (o que pode provir da doutrina de Xenófanes de que todo conhecim ento hum ano é um a espécie de trabalho de adivinhação e suas próprias teorias são, na m elhor das hipóteses, semelhantes à verdade).* As convenções equivocadas são lingüísticas: consistem em designar com nomes o que não existe. A m esm a idéia da queda epistem ológica do hom em talvez possa ser encontrada, como sugeriu Karl R einhardt, nestas palavras da divindade que m arcam a transição da verdade p ara a opinião ilusória.34 “Mas aprenderás tam bém como a opinião ilusória. Confundida com a realidade, forçava sua presença /em toda p a rte ... Vou falar-te agora sobre este m undo que parece /integralm ente verdadeiro: Depois disso, nunca mais te deixarás desviar /pelas opiniões dos m ortais”. Portanto, em bora a queda afete todos os hom ens, a verdade pode ser re ­ velada aos eleitos por um ato de graça — até mesmo a verdade a respeito do m u n ­ do irreal das ilusões, opiniões, noções e decisões convencionais dos homens — o m undo irreal da aparência, destinado a ser aceito (e aprovado) como real. A revelação experim entada por Parm ênides e sua convicção de que uns poucos poderiam alcançar a certeza tanto sobre o m undo im utável da realidade eterna, como sobre o m undo cam biante e irreal das aparências e ilusões, consti­

3 — 0 fragmento de Xenófanes a que aludimos aqui é DK,B 35, citado no cap. 5, xii. Sobre a idéia da semelhança da verdade vide o cap. 10 e os apêndices 6 a 8. 4 — Vide Karl Reinhardt, Parmenides, 2.a edição, pág. 26; vide também págs. 5-11 (texto de Par­ mênides, DK, B 1: 31-32 — as duas primeiras linhas); a terceira linha é Parmênides, DK, B8:60, cf. Xenófanes, B 35; a quarta linha é Parmênides, DK, B 8: 61.

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tuíram duas das principais inspirações da filosofia de Platão: um tem a ao qual ele sem pre retornava, oscilando entre a esperança, o desespero e a resignação.

F undam entalm ente, esse procedim ento é p arte da indução de Bacon.

V III

E o seguinte o contorno geral da teoria da indução de B acon: o filósofo traça um a distinção, no N ovum O rganum , entre o m étodo verdadeiro e o m étodo falso. O nom e que dá ao prim eiro. liinterpretatio naturae” , é traduzido geralm ente por “interpretação da n atu reza” ; sua denom inação do m étodo falso “anticipatio m entis” costum a ser traduzida como “antecipação da m en te” . Em bora essas traduções sejam óbvias, são tam bém enganosas. N a m inha opinião, o que Bacon quer dizer com liinterpretatio naturae” é o ato de ler (ou m elhor, de soletrar) o livro da natureza. N um a passagem famosa do I I Saggiatore, seção 6, de que fui lem brado am avelm ente por M ário Bunge, Galileu se refere ao “grande livro que temos diante dos olhos — isto é, o universo”; vide, a este propósito, o Discurso de Descartes, seção 1.

Mas o que nos interessa aqui é a epistem ologia otim ista de Platão — a teoria da anamnesis do M eno. N a m inha opinião, ela contém não só os germes do intelec­ tualism o de Descartes mas tam bém as sementes da teoria da indução de Aristóteles e especialm ente de Bacon. Com efeito, o escravo de Meno é ajudado pelo interrogatório judicioso de Sócrates, a recordar ou recap tu rar o conhecim ento esquecido que sua alm a possuía no estado de onisciência pré-natal. T rata-se do famoso m étodo socrático, m e n ­ cionado no Theaetetus como a arte de p arteira ou m aiêutica (à qual Aristóteles aludia ao dizer, na M etafísica, 1078b 17-33 — vide tam bém 987bl — que Sócrates tinha sido o inventor do m étodo indutivo). Proponho que Aristóteles, e Bacon tam bém , por “in d ução” queriam desig­ nar não só o ato de inferir leis universais de casos particulares observados, mas o m étodo que em pregam os p ara chegar ao ponto em que podemos intuir ou perceber a essência ou natureza genuína de um a coisa.5 Como vimos, porém , esse é p re ­ cisam ente o objetivo da m aiêutica socrática: ajudar-nos na anam nesis. Esta últim a consiste em poder ver a natureza genuína ou essência das coisas, que conhecíamos antes de nascer, até o m om ento da nossa queda do estado de graça. Assim, os o b ­ jetivos tanto da m aiêutica como da indução são os mesmos. Incidentalm ente, Aris­ tóteles ensinava que o resultado de um a indução - a intuição de um a essência — deveria ser expressado pela definição daquela essência. Exam inem os agora mais detidam ente os dois procedim entos, A maiêutica de Sócrates consiste essecialmente em propor perguntas para destruir os preconceitos, as falsas crenças (que se revestem m uitas vezes da form a de idéias tradicionais ou atraentes), as falsas respostas, im buídas de segurança e ignorância. Sócrates não pretende saber n ad a. Sua atitude é descrita deste m odo por Aristóteles: “ ... p ro ­ pun h a questões mas não adiantava respostas, confessando que não as conhecia” . (Sofista El., 183b 7 cf. Theaetetus, 150-cd, 157c, 161b). Portanto, a maiêutica socrática não é um a arte que ensine algum a crença, mas busca apenas pu rg ar ou lim par k alm a das falsas crenças (cf. a alusão à A m phidrom ia, no Theaetetus 160 e), do conhecim ento ap aren te, dos preconceitos. Faz isso ensinando-nos a pôr em dúvida nossas próprias convicções.

5 — Por. “indução” (epagoge), Aristóteles queria indicar pelo menos duas coisas diferentes — que às vezes aparecem associadas entre si. Em primeiro lugar, um método pelo qual “somos levados a intuir o princípio geral” {Anal. Pr. 67a 22; sobre a anamnesis no Meno; An. Post., 71a 7); além disso {Tópicos 105a 13, 156a 4, 157a 34; Anal. Posteriora 78a 35; 81 b 5), um método destinãdo a aduzir provas (par­ ticulares) positivas, em vez de evidência crítica ou contra-exemplos. O primeiro método me parece ser o mais antigo, aquele que podemos associar melhor a Sócrates e sua maiêutica. O segundo parece ter tido origem numa tentativa de sistematizar a indução logicamente ou, como diz Aristóteles {Anal. Priora, 68b 15), de construir um silogismo válido “que parta da indução”; este último, para ser válido, precisa naturalmente ser um silogismo de indução completa ou perfeita (com a enumeração completa dos casos). A indução ordinária, no sentido do segundo método aqui mencionado, não passa de uma forma debilitada (e inválida) desse silogismo válido. (Vide meu livro Open Society, nota 33, Cap. 11).

IX

Em inglês m oderno o term o interpretation, “in terp retação ” , tem um sentido decididam ente subjetivista ou relativista. Q uando nos referimos à interpretação do “Concerto do Im p erad o r” por R udolf Serkin querem os dizer que há vários modos de executar aquela peça — um deles, o de Serkin. N aturalm ente, não queremos insinuar que a interpretação de Serkin não é a m elhor, a mais genuína, a mais próxim a das intenções de Beethoven. Mas, em bora seja impossível conceber um a m elhor execução do “C oncerto” , ao usar o term o “in terp retação ” deixamos e n ten ­ der que há outras m aneiras de executá-lo, ficando em aberto a questão de saber quais dessas m aneiras são “verdadeiras” . Poderíamos falar em “leitu ra” como sinônimo de “in terp retação ”, não só porque o sentido das duas palavras é sem elhante m as tam bém porque “leitu ra” e “ler” passaram por m odificação análoga à de “in terp retação ” e “in te rp re ta r”. C on­ tudo, no caso de “leitu ra” a palavra pode ser usada nos dois sentidos. N a frase “li a carta de João”, o sentido é o tradicional, não subjetivista; mas em “m inha leitura dessa passagem é m uito diferente” , temos outro .sentido, que é posterior, subjetivis­ ta ou relativista. O que pretendo dizer é que o sentido de “in te rp re ta r” (não no sentido de “trad u zir”) modificou-se exatam ente do mesmo m odo, com a exceção de que o sen­ tido original (“leitura em voz alta p ara benefício dos que não podem ler por si m es­ m os”) praticam ente se perdeu. Hoje, até mesmo a frase “o juiz precisa in terp retar a lei” significa que ele tem um a certa latitude ao interpretá-la; m as no tem po de Bacon o significado seria o de que o juiz tem o dever de ler a lei como ela está enunciada, expondo-a e aplicando-a da única form a correta. Interpretatio juris (ou legis) ou tem esse significado ou quer dizer “a exposição da lei p ara os leigos” (Bacon, De A ugm entis VI, xlvi; T . Manley, The Interpreter: ... Obscure Words and Terms Used in the Lawes o f this Realm , 1672). O intérprete legal não tem qualquer latitude: na m elhor das hipóteses teria a m argem concedida ao trad u to r ju ram entado que devesse traduzir um docum ento legal. Por isso a tradução “interpretação da n atu reza” é errônea e deveria ser subs­ tituída por fórm ula como “a (verdadeira) leitura da n atu reza”, análoga a “a (ver­ dadeira) leitura da lei”. Entendo que Bacon quis dizer “lendo o livro da natureza como ele está escrito” ou, m elhor ainda, “soletrando o livro da natu reza” (“spelling

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out the hook o f N ature"). O ponto essencial é que a frase deve sugerir que se evite qualquer “in terp retação ” (no sentido m oderno); em especial, não deve conter q u a l­ quer sugestão no sentido de in terp retar o que se m anifesta na natureza à luz de causas não evidentes, ou de hipóteses — isto seria um a anticipatio m en tis, no dizer de Bacon. (A m eu juízo é um erro atrib u ir a Bacon o ensinam ento de que seu m étodo indutivo pode levar a hipóteses ou conjecturas: a indução baconiana leva a conhecim entos seguros, não a conjecturas),

Podemos agora ver mais claram ente, nesta epistem ologia otim ista, que o es­ tado do conhecim ento é o estado n atu ral (puro) do ser hum ano, a situação do olho inocente que pode perceber a verdade; o estado da ignorância se origina na injúria sofrida pelo olho inocente, du ran te a queda do estado de graça — um a injúria que pode ser rem ediada em p arte pela purificação. Podemos ver tam bém mais cla­ ram ente por que razão essa epistemologia, não só na form a proposta por Descartes como na sugerida por Bacon, é essencialmente um a d o utrina religiosa, apresentan­ do a autoridade divina como fonte de todo conhecim ento.

Q uanto ao sentido de anticipatio m entis, bastará citar Locke: “Os homens se entregam às prim eiras antecipações da sua m ente” (Conduct Underst., 26). Esta é, praticam ente, um a tradução das palavras de Bacon; deixa bem claro que “a n ­ ticipatio ” significa “preconceito” ou mesmo “superstição” . Podemos lem brar ta m ­ bém a frase “anticipatio d eo ru m ", que significa ter idéias prim itivas ou supersti­ ciosas sobre os deuses. P ara elucidar o assunto ainda m elhor, a palavra “prejudice” (preconceito) deriva de um term o legal; de acordo com o O xford English D ictio­ nary, foi Bacon que introduziu n a língua inglesa o verbo “to preju d g e", usado no sentido de “prejulgar adversam ente” — isto é, violando o dever do juiz.

Poder-se-ia dizer que, encorajado pelas divinas “essências” ou “naturezas” de Platão, e pela oposição helénica tradicional entre a verdade da natureza e o engano da convenção, na sua epistem ologia, Bacon substituiu “Deus” por “N atureza”. Essa pode ser a razão por que precisamos purificar-nos antes de nos aproxim arm os da deusa N atura: um a vez purificada nossa m ente, até mesmo nossos sentidos, que nem sempre m erecem confiança (e que Platão considerava totalm ente im puros), se tornam límpidos. As fontes do conhecim ento precisam ser m antidas puras porque qualquer im pureza poderá transform á-las em fontes da ignorância. X

Assim, os dois m étodos são: 1) “a leitura do livro aberto da n atureza” , que leva ao conhecim ento ou episteme\ e 2) “o preconceito da m ente que prejulga erroneam ente a natureza, e possivelmente a julga m al” , levando à doxa, às opiniões e a um a leitura im própria do livro da natureza. Este últim o m étodo, rejeitado por Bacon, é na verdade um a “in terp retação ” , no sentido m oderno da palavra. Corres­ ponde ao m étodo da conjectura ou da hipótese (incidentalm ente, sou um advogado convicto deste m étodo). Como podem os preparar-nos p ara ler o livro da natureza adequadam ente, do m odo verdadeiro? A resposta de Bacon é: elim inando da nossa m ente todas as antecipações, conjecturas, preconceitos (Nov. O rg., i, 68, 69). H á várias coisas que podem ser feitas a fim de “lim p ar” nossa m ente. Devemos livrar-nos de todos os tipos de “ídolos” , as falsas crenças aceitas de m odo geral, que distorcem nossas o b ­ servações (Nov. Org., i, 97). Mas precisamos tam bém — como Sócrates — p ro ­ curar todos os tipos de contra-exem plos p ara destruir os preconceitos que temos a respeito do que constitui a verdadeira natureza ou essência do que pretendem os conhecer. Como Sócrates, precisamos p re p a ra r nossa alm a, pela purificação do in ­ telecto, p ara fazer face à luz eterna das essências ou naturezas (cf. S. Agostinho, Civ. Dei, V III, 3). Nossos preconceitos im puros precisam ser exorcizados pela in ­ vocação de contra-exem plos (Nov. Org. ii, 16).

A despeito do caráter religioso das suas respectivas epistemologias, as críticas de Bacon e de Descartes ao preconceito e às crenças tradicionais que alim entam os im pensadam ente são sem dúvida antiautoritárias e antitradiçionalistas, pois exigem que rejeitemos todas as nossas crenças, com exceção daquelas cuja verdade podemos pessoalmente perceber. Essas críticas pretendiam seguram ente dirigir-se contra a autoridade e a tradição; eram parte de um a guerra contra a autoridade que era m oda naqueles tempos — contra a autoridade de Aristóteles e a tradição das escolas. Os homens não têm necessidade dessas autoridades, já que podem p e r­ ceber a verdade por si mesmos. N ão creio porém que Bacon e Descartes ten h am tido êxito na tentativa de liberar da autoridade suas respectivas epistemologias; não tanto porque elas apelavam afinal para um a autoridade religiosa — a natureza, ou Deus — mas sobretudo por um a razão ainda mais profunda.

Só depois de lim par deste m odo nossa alm a podemos com eçar o trabalho de soletrar diligentem ente o livro aberto da natureza, a verdade m anifesta.

A despeito das suas tendências individualistas, aqueles filósofos não ousaram fazer apelo a nosso julgam ento crítico; possivelmente porque pensavam que isso levaria ao subjetivismo e à arbitrariedade. Com efeito, quaisquer que tenham sido as razões disso, não foram capazes de deixar de pensar em termos de autoridade, por mais qu e pretendessem fazê-lo. A única coisa que conseguiram foi substituir um a autoridade — Aristóteles, ou a Bíblia — por o u tra. Um apelou p ara a a u ­ toridade dos sentidos; o outro para a autoridade do intelecto.

T endo em vista tudo o que dissemos, acho que a indução baconiana (e ta m ­ bém aristotélica) é, fundam entalm ente, a mesma m aiêutica socrática: o preparo da m ente pela “lim peza” dos preconceitos, a fim de perm itir o reconhecim ento da ver­ dade evidente — a leitura do livro aberto da natureza.

Isso significa que ambos deixaram sem solução o grande problem a: como podemos adm itir que nosso conhecim ento é hum ano (absolutam ente hum ano) sem aceitar por im plicação, ao mesmo tem po, que ele é feito de arb itrariedade e de caprichos individuais?

O m étodo cartesiano da dúvida sistem ática é tam bém fundam entalm ente o mesmo processo de destruição de todos os falsos preconceitos, p ara chegar à base sólida d a verdade evidente.

No entanto, esse problem a tinha sido considerado e resolvido há muitos anos; prim eiro, aparentem ente, por Xenófanes e depois por Dem ócrito e Sócrates (o Sócrates da Apologia e não o do M eno). A solução consiste em perceber que

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

todos podem os e rrar, individual ou coletivam ente, e que erram os com freqüência, mas que a p rópria idéia do erro e da falibilidade hum ana im plica um a outra idéia — a da verdade objetiva, p adrão que utilizamos para avaliar as afirm ativas que fazemos. Por isso a dou trin a da falibilidade não deve ser considerada como parte de epistem ologia pessimista: ela im plica que podemos buscar a verdade, a verdade objetiva, em bora m uitas vezes dela nos afastemos am plam ente; im plica tam bém que, se é verdade que respeitam os a verdade, precisamos procurá-la com persistên­ cia, identificando nossos erros com a aplicação de um a crítica racional incansável, e de perene autocrítica. Erasmo de R otterdam tentou reviver a im portante doutrina socrática do “conhece a ti mesmo e adm ite o pouco que conheces” . Mas a advertência de Só­ crates foi varrida pela crença na verdade evidente e pelo novo surto de autocon­ fiança exem plificado e ensinado, de diferentes modos, por Lutero e Calvino, Bacon e Descartes. A esse propósito, é im portante perceber a diferença existente entre a dúvida cartesiana e a dúvida de Sócrates, Erasmo ou M ontaigne. Sócrates duvida do conhecim ento e da sabedoria do hom em e perm anece firm e na sua rejeição de qualquer pretensão ao conhecim ento ou à sabedoria; Descartes duvida de tudo, m as term ina com um conhecim ento absolutam ente certo: descobre que sua dúvida universal o levaria a duvidar de Deus, o que é absurdo. Tendo provado portanto, que a dúvida universal é absurda, conclui que podem os conhecer com segurança; que podem os ser sábios, desde que tracem os um a distinção, à luz n atu ral da razão, entre as idéias claras e distintas — que se originam em Deus — e todas as outras idéias, originadas na nossa im aginação im pura. A dúvida cartesiana é sim plesm en­ te um instrum ento m aiêutico que perm ite estabelecer um critério de verdade e, por conseguinte, um processo p ara alcançar o conhecim ento e a sabedoria. Para o Sócrates da Apologia, contudo, a sabedoria consistia na percepção das nossas li­ mitações; no conhecim ento do pouco que cada um de nós conhece. Foi essa dou trin a da falibilidade hum ana essencial que Nicolau de Cusa e Erasmo de R otterdam (que se refere a Sócrates) reviveram; foi essa doutrina “h u m an ista” (que se contrapõe à d outrina otim ista em que se baseou M ilton, a d o u trin a de que a verdade prevalecerá) que N icolau e Erasmo, M ontaigne, Locke e V oltaire, seguidos por John S tuart Mill e B ertrand Russell, tom aram como base p ara a pregação da tolerância. “Em que consiste a tolerância?” pergunta Voltaire no Dicionário Filosófico', e responde: “É um a conseqüência necessária da nossa hum anidade. Somos todos falíveis e propensos ao erro; devemos perdoar-nos m u tu am en te nossa insensatez. Esse é o prim eiro princípio do direito n a tu ra l”. Mais recentem ente, a d o u trin a da falibilidade foi adotada como base da teoria da lib er­ dade política — isto é, da liberdade da coerção (Vide F. A. Hayek, The Constitution o f Liberty, em especial págs. 22 e 29). XI Bacon e Descartes erigiram a observação e a razão como novas autoridades, dentro de cada indivíduo. Ao fazer isso, dividiram o hom em em duas partes — um a porção superior, sede da autoridade com relação à verdade (as observações, p ara Bacon; o intelecto, p ara Descartes) e um a parte inferior, que representa o

AS ORIGENS DO CONHECIMENTO E DA IGNORÂNCIA

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nosso ser ordinário — o velho Adão que há em todos nós. Sem dúvida, somos “nós mesmos” os responsáveis pelos erros, já que a verdade é evidente — devemos culpar nossa negligência, nossos preconceitos, nossa obstinação: somos a fonte da nossa própria ignorância. O hom em foi dividido assim num a parte h u m an a, fonte das suas opiniões falíveis (doxa), dos erros e da ignorância; e um a p arte super-hum ana — os sen­ tidos ou o intelecto — fonte do conhecim ento verdadeiro (epistem e), cuja a u to ­ ridade sobre nós é quase divina. Mas não podemos aceitar essa explicação. Sabemos que a física de Descar­ tes, em bora adm irável sob m uitos aspectos, estava errad a; contudo, ela se baseava em idéias reputadas claras e distintas — que, p o rtanto, deveriam ser verdadeiras. Q uanto à autoridade dos sentidos como fontes do conhecim ento, já os antigos — como .Xenófanes e H eráclito, antes mesmo de Parm ênides — sabiam que os sen­ tidos não m erecem confiança. É o que pensavam tam bém D em ócrito e Platão. É estranho que esse ensinam ento da antiguidade tenha sido praticam ente ignorado pelos em piristas m odernos, inclusive os fenom enalistas e os positivistas; contudo, essa lição não foi levada em conta na m aior parte dos problem as propos­ tos pelos positivistas e fenom enalistas e nas soluções que oferecem . A razão é sua crença de que não são nossos sentidos que erram , m as “nós mesmos” que erram os na interpretação do que é “d ad o ” aos sentidos. Estes dizem a verdade, mas nós podemos errar — por exem plo, quando traduzim os n um a linguagem convencional, artificial e im perfeita o que nos dizem. Nossa descrição lingüística é defeituosa, porque é tingida por preconceitos. Assim, a linguagem h u m ana era culpada. Mas depois se descobriu que ela tam bém nos era “d a d a ”, num sentido im portante: que incorporava a sabedoria e a experiência de m uitas gerações e que não devia ser responsabilizada pelo m au uso que dela fizéssemos. Desta form a a linguagem se tornou um a autoridade verídica, que não nos podia enganar. Se caímos em tentação e usamos a linguagem em vão, somos culpados pelos problem as que isso provoca. A linguagem é um deus cium en­ to que não tolera que suas palavras sejam tom adas em vão, lançando o pecador na confusão e na obscuridade. Pondo a culpa em nós e na nossa linguagem (ou no uso im próprio que dela fazemos) é possível sustentar a autoridade divina dos sentidos (e mesmo da própria linguagem ). Mas isso só é possível ao custo da am pliação do hiato entre essa a u ­ toridade e nós mesmos: entre as fontes puras das quais podemos obter um co­ nhecim ento autêntico da N atura, deusa genuína, e nossos seres im puros e culpados — um hiato entre Deus e o hom em . Como indiquei anteriorm ente, a idéia da ver­ dade da natureza que penso poderm os discernir em Bacon se origina nos gregos; é parte da oposição clássica entre a natureza e a convenção (que, segundo Platão, devemos a Píndaro), perceptível em Parm ênides e identificada por ele, por alguns sofistas (Hípias, por exemplo) e em parte pelo próprio Platão como um a oposição entre a verdade divina e o erro hum ano (ou mesmo a falsidade). Depois de Bacon — e devido a sua influência — a idéia de que a natureza é divina e verdadeira e que todo erro ou falsidade se deve ao caráter enganoso das convenções hum anas continuou a desem penhar um papel im portante, não só na história da filosofia, da ciência e da política, mas tam bém na história das artes visuais. Isso pode ser visto,

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por exem plo, nas interessantes teorias de Constable sobre a natureza, a veracidade, o preconceito e a convenção, citadas por E. H . G om brich em A rt and Illusion. E desem penhou tam bém um a função na história da literatu ra, e mesmo na da m úsica.

I D É I A S

ou seja

X II Pode-se atrib u ir a estranha idéia de que é possível decidir sobre a veracidade de um a afirm ação averiguando-se suas fontes — isto é, sua origem — a algum erro de lógica que precisa ser esclarecido? Será que não podemos explicá-la em termos de crenças religiosas ou em termos psicológicos — fazendo referência, talvez, à auto rid ad e patern a? Penso que é possível discernir, de fato, um erro de lógica ligado à analogia que existe entre o sentido de nossas palavras, termos ou conceitos e a veracidade de nossas assertivas ou proposições (veja o quadro). É fácil perceber que o sentido de nossas palavras tem algum a ligação com sua história ou origem . C onsideradas logicam ente, as palavras são símbolos conven­ cionais; em term os psicológicos, são símbolos cujo significado é estabelecido pelo uso, pelo costum e, ou por associação. Logicam ente, o significado é estabelecido por um a decisão inicial — algo como um a definição ou convenção prim ária, um a es­ pécie de contrato social originário; psicologicam ente, estabelece-se o significado quando aprendem os a usar as palavras pela prim eira vez, quando começamos a form ar os prim eiros hábitos e associações. H á um certo fundam ento na anedota do estudante que reclam a do artificialism o desnecessário da língua francesa, que cham a o pão de “p a in ”, enquanto o vernáculo prefere cham á-lo, mais n atu ralm en ­ te, de “p ão ” . O estudante queixoso com preende perfeitam ente o convencionalismo do uso lingüístico, mas expressa o sentim ento de que as convenções originais (para ele) deveriam ser m antidas. Seu único equívoco consiste em esquecer que pode haver m ais de um a convenção original. Mas, quem já não com eteu im plicitam ente o mesmo erro? Quase todos já tom am os consciência da surpresa que sentimos ao verificar que n a França até mesmo as crianças de pouca idade falam francês fluen­ tem ente. Como é de esperar, sorrimos da nossa própria ingenuidade; mas não sorrimos do policial que descobre que o nom e verdadeiro de “Samuel Jones” é “John Sm ith” — em bora haja aí, sem dúvida algum a, um últim o vestígio da crença m ágica de que é possível adq u irir poder sobre um a pessoa, um deus ou um espírito conhecendo seu verdadeiro nome (de posse dessa inform ação podemos convocá-lo). H á p o rtan to um sentido fam iliar, e logicam ente defensável, na afirm ativa de que a acepção “g en u ín a” ou “ap ro p riad a” de um term o representa sua signi­ ficação original: se o com preendem os, isto se dá porque o aprendem os corretam en­ te, de um a autoridade verdadeira — alguém que tinha conhecim ento da lin ­ guagem . Isso m ostra que o problem a do significado das palavras está relacionado com o problem a da origem ou da fonte autorizada, do uso que fazemos delas. A situação é diferente com respeito ao problem a da verdade de um a asser­ tiva factual — de um a proposição. Q ualquer um pode com eter um erro de fato — mesmo em assuntos sobre os quais deveria ser um a autoridade, como a própria idade, ou a cor de um objeto que acabou de ser visto, clara e distintam ente. Q uanto às origens, um a afirm ativa pode ter sido falsa no m om ento em que foi feita e com preendida pela prim eira vez.

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AS ORIGENS DO CONHECIMENTO E DA IGNORÂNCIA

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

A FIRM ATIVAS, PRO PO SIÇÕ ES OU TEO R IA S

DESIGNAÇÕES, TERM OS OU CO NCEITOS

podem ser form uladas com PALAVRAS

ASSERTIVAS que podem ser

SIGNIFICATIVAS

VERDADEIRAS e sua

SIGNIFICAÇÃO

VERACIDADE pode ser reduzida, por meio de

DEFINIÇÕES

DERIVAÇÕES a PROPOSIÇÕES PRIM ITIVAS

CON CEITO S INDEFINIDOS

a tentativa de estabelecer (e não de reduzir) por esses meios SUA SIGNIFICAÇÃO

SUA VERACIDADE leva a um a situação de regresso infinito

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Se refletirm os assim sobre a diferença entre os modos como a significação das palavras e a verdade das afirm ativas se relacionam com suas origens, não se­ remos m uito tentados a pensar que o problem a da origem pode ter grande relevân­ cia p a ra a questão do conhecim ento ou da verdade. H á, contudo, um a analogia p ro fu n d a entre significação e verdade; e existe um ponto de vista filosófico — cham ei-o de “essencialismo” — que procura vincular a significação com a verdade de form a tão próxim a que a tentação de tratá-las da mesm a m aneira se torna quase irresistível. P ara explicar isso em poucas palavras, podemos exam inar um a vez mais nosso q uadro de idéias, observando a relação entre os dois lados. De que m odo estão esses dois lados ligados entre si? No lado esquerdo, e n ­ contrarem os a palavra “Definições” . Mas um a definição é um tipo de afirm ativa, julga m en to ou proposição — portanto, um a das coisas que aparecem no lado direito do q uadro. (O que, incidentalm ente, não prejudica a sim etria do quadro, pois as derivações tam bém transcendem o que aparece com a palavra “derivação”: da m esm a form a como um a definição é form ulada por um tipo p articular de seqüência de assertivas, em lugar de um a só afirm ativa). O fato de que as definições — que aparecem no lado esquerdo do quadro — são afirm ativas sugere que de a l­ gum a form a elas podem estabelecer um vínculo entre os dois lados. Esse relacionam ento é p arte da doutrina filosófica que cham ei de “essen­ cialism o”, segundo a qual (especialm ente na versão de Aristóteles) a definição c o n ­ siste n a afirm ativa da natureza (ou essência inerente) da coisa definida. Ao mesmo tem po, a definição indica o sentido de um term o — da palavra que designa aquela essência. (Por exem plo: Descartes — e K ant tam bém — sustenta que a palavra “corpo” indica o que é essencialmente extenso). Além disso, Aristóteles e todos os outros essencialistas sustentavam que as definições constituem princípios, isto é, proposições prim itivas que não podem ser derivadas de outras proposições (por exemplo: “todos os corpos são extensos”) e que form am a base, ou p arte da base, de q ualquer dem onstração, constituindo as­ sim o fundam ento de toda ciência. (Cf. Open Soçiety, especialm ente as notas 27 a 33, cap. 11). Note-se que em bora esse entendim ento seja um a p arte im portante do credo essencialista, está livre de referências às “essências”, o que explica o motivo por que foi aceito por alguns opositores nom inalistas do essencialismo, como Hobbes ou, por exem plo, Schlick (vide E rkenntnislehre, deste últim o, 2 .a edição, 1925, pág. 62).

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qualidade de decisões sobre determ inadas convenções, possam ser influenciadas pelo conhecim ento que temos dos fatos e tam bém , por outro lado, criem in stru ­ mentos que podem influenciar a form ação de nossas teorias e p o rtanto a evolução do nosso conhecim ento dos fatos). Ao perceberm os que as definições jam ais co n ­ tribuem com q u alquer conhecim ento factual sobre a “n atu reza”, ou a “natureza das coisas” , percebem os tam bém a quebra do vínculo lógico entre o problem a da origem e o da verdade factual — vínculo que alguns filósofos essencialistas p ro ­ curaram estabelecer. X III Deixarei de lado agora todas essas reflexões em grande parte históricas p ara debruçar-m e sobre os problem as em si e sua solução. Esta parte da presente conferência poderia ser descrita como um ataque contra o empirismo ilustrado pelo seguinte enunciado clássico de H um e: “Se eu perguntar por que acreditas em um ponto factual determ in ad o ... precisarás darme algum a razão; razão que será algum outro fato, relacionado com o prim eiro. Contudo, como não é possível continuar assim in infinitum , precisarás p a ra r em a l­ gum fato que se apresente a nossa m em ória, ou a nossos sentidos; ou então p re ­ cisarás adm itir que tua crença não tem qualquer fundam ento». (Enquiry Concerning H um an Understanding, V, I; Selby-Bigge, pág. 46). O problem a da validade do em pirism o pode ser form ulado, em poucas palavras, da seguinte form a: será a observação a fonte ultim a do nosso conheci­ m ento da natureza? Caso contrário, quais as fontes desse conhecim ento? São indagações que perm anecem de pé — o que quer que tenha dito a res­ peito de Bacon e mesmo que tenha conseguido fazer com que os baconianos e outros em piristas se sintam pouco atraídos pelos aspectos da sua filosofia, que tive ocasião de com entar. O problem a da fonte do nosso conhecim ento foi reform ulado recentem ente do seguinte modo: se faço um a afirm ativa, é preciso que a justifique; o que sig­ nifica que preciso ser capaz de responder a um a série de perguntas: “Como sei o que sei? Quais são as fontes da m inha afirm ativa?” O que, p ara o em pirista, corres­ ponde à pergunta: “Quais são as observações (ou m em órias de observações) que es­ tão por baixo dessa afirm ativa?” De m inha parte, considero essa série de indagações m uito pouco satisfatória.

Penso que temos agora os meios à nossa disposição para explicar a lógica do ponto de vista de que problem as de origem podem decidir questões de verdade fac­ tual; com efeito, se as origens podem d eterm inar o significado verdadeiro de um term o ou um a palavra, podem tam bém d eterm inar a verdadeira definição de um a idéia im p o rtan te e, em conseqüência, pelo menos alguns dos “princípios” básicos — que descrevem a essência ou natureza das coisas, jazendo sob nossas dem onstrações e p o rtan to sob nosso conhecim ento científico. Pareceria haver, assim, fo n tes de autoridade para nosso conhecim ento. Precisamos levar em conta, no entanto, que o essencialismo se equivoca ao sugerir que as definições acrescentam ao nosso conhecim ento fa c tu a l (em bora, na

Para com eçar, a m aior parte das nossas afirm ativas não se baseiam em o b ­ servações, mas em outros tipos de fonte: “Li num jo rn a l” ou “Li na Enciclopédia B ritânica” são respostas mais plausíveis e mais definidas á pergunta a respeito de como viemos a saber de algum a coisa do que “Foi o que observei” ou “Sei o que digo porque fiz um a observação neste sentido no ano passado”. R esponderá o em pirista: “Mas, de que form a o jo rn al ou a Enciclopédia Britânica obtiveram aquela inform ação?” Não há dúvida de que, se desenvolvermos suficientem ente nossa investigação, chegaremos a algum relato das observações de

filia Senador Pinh- ; 50

9 9 1 0 0 - cBr^ECTüáA^ eHiIÍfStações^ ^

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testem unhas (‘sentenças protocolares’ ou ‘afirm ativas básicas’). Indubitavelm ente, os livros se baseiam em grande p arte em outros livros. Um historiador, por exem ­ plo, tra b a lh a rá com docum entos. Em últim a análise, porém , os outros livros ou docum entos consultados se baseiam em observações. Se não fosse assim, precisa­ riam ser descritos .como poesia, invenções ou m entiras, mas nunca como teste­ m unhos. E nesse sentido que nós, em piristas, dizemos que a observação é a fonte últim a do conhecim ento”.

H á um a razão simples que explica por que motivo essa tediosa seqüência de perguntas nunca chega a um a conclusão satisfatória. E a seguinte: cada teste­ m unha fará sem pre uso, no seu relato, do conhecim ento de pessoas, lugares, coisas, usos lingüísticos, convenções sociais etc. Jam ais se lim itará apenas ao que seus olhos viram e ao que seus ouvidos ouviram , especialm ente se seu relato tiver algum a utilidade p ara justificar um a afirm ativa de im portância. Isso, como é n atu ral, levantará sem pre novas questões a respeito das fontes dos elementos do seu co­ nhecim ento que não derivam im ediatam ente da observação direta.

Esta é a explicação dos em piristas (e a que m e dão alguns amigos positivis­ tas). Procurarei dem onstrar que é tão pouco válida quanto a de Bacon; que a res­ posta à indagação a respeito das fontes do conhecim ento vai contra o em pirista; e, finalm ente, que toda a questão das fontes últim as — às quais precisaríam os apelar, como p a ra um trib u n al superior ou um a autoridade suprem a — deve ser rejeitada porque se baseia num equívoco.

Por isso o program a recom endado, que consistiria em perseguir cada co­ nhecim ento até sua fonte últim a de observação, é logicam ente impossível, pois leva a um a situação de regresso infinito, constituindo um processo sem fim. (A doutrina de que a verdade é evidente elim ina esta dificuldade, o que pode explicar por que ela é tão atraente).

P rim eiram ente, pretendo m ostrar que se nos dermos ao trabalho de in te r­ rogar os redatores do jo rn al e seus correspondentes sobre a fonte consultada, n u n ­ ca chegarem os às observações de testem unhas indicadas pelo em pirista. Desco­ brirem os que cada pequeno passo que derm os nesse sentido se desdobrará — como um a bola de neve que se desloca, aum entando de volume e de velocidade. Tom em os como exem plo o tipo de afirm ativas a respeito das quais as pes­ soas razoáveis aceitarão como suficiente a resposta “Li num jo rn a l” . A dm itam os, por hipótese, a afirm ativa de que “o presidente decidiu regressar à capital alguns dias antes do previsto” . Vamos supor que alguém duvide dessa notícia, ou por qualq u er motivo considere necessário investigar sua veracidade. Que poderá fazer? Se tiver um am igo n a Presidência, n ad a mais fácil do que cham á-lo pelo telefone; se o am igo confirm ar a notícia, n ad a m ais será necessário. Em outras palavras, se isso for possível, o investigador p ro curará exam inar o próprio fa to que f o i afirm ado, em vez de identificar a fonte da notícia. Contudo, de acordo com a teoria em pirista, a afirm ativa “Li num jo rn a l” é apenas o p ri­ m eiro passo num processo de justificação que nos deverá levar à fonte últim a da in ­ form ação. Q ual será, p o rtan to , o próxim o passo? H á pelo menos dois passos. Um deles consistiria na reflexão de que “Li num jo rn a l” é tam bém u m a afirm ativa, o que nos levaria a indagar: “Q ual a fonte do se conhecim ento de que leu essa inform ação n um jornal, e não a ouviu pelo rádio, por exem plo?” O outro consistiria em ind ag ar quais as fontes da notícia publicada pelos jornais. A resposta à prim eira p erg u n ta poderia ser “Soube na notícia esta m an h ã, e n u n ca ouço rádio de m a n h ã ” — o que provocaria m uitas outras p erg u n ­ tas, que não exam inarem os aqui. A segunda indagação podería provocar de algum editor a seguinte explicação: “Soubemos d a notícia, n a redação do jornal, por meio de um telefonem a recebido d a Presidência” . O ra, p a ra seguir com o m étodo re ­ com endado pelos em piristas, deveríamos perguntar: “Quem recebeu esse telefo­ nem a?” Mas, ao receber o relato d a sua observação, teríam os que perguntar-lhe: “Q ual a fonte do seu conhecim ento de que a inform ação transm itida telefonica­ m ente à redação do jornal foi d ad a de fato por um funcionário da Presidência?” E assim por dian te.

Quero m encionar, incidentalm ente, o fato de que esse argum ento está es­ treitam ente associado a um outro, que diz que toda observação im plica algum a in ­ terpretação, à luz do nosso conhecim ento teó rico ,6 ou que o conhecim ento baseado puram ente na observação, sem influência de qualquer teoria, seria de todo infértil e fútil — caso fosse possível. O que há de mais m arcante no program a em pirista de indagação de todas as fontes — além do seu caráter tedioso — é o m odo como viola o senso com um . Com efeito, se temos algum a dúvida sobre determ inada afirm ativa, o procedim ento norm al consistirá em testá-la, em lugar de indagar pela sua fonte; se encontrarm os confirm ação independente, poderem os aceitar a afirm ativa sem nos preocuparm os mais com o problem a das fontes envolvidas. N aturalm ente haverá casos em que a situação será diferente. O teste de um a afirm ativa histórica, por exem plo, nos levará sem pre de volta às fontes — em bora, via de regra, não nos conduza ao relatório de testem unhas diretas. Como é óbvio, nenhum historiador aceitará acriticam ente a evidência docum ental. H á problem as de genuinidade, de distorção, bem como problem as relacionados com a reconstrução de fontes anteriores. H á tam bém , naturalm ente, problem as como o de saber se o escritor presenciou os acontecim entos que n arra. Este, contudo, não é um problem a característico do historiador, que poderá preocupar-se com a fidedignidade de um relato mas que dificilm ente se preocupará em saber se o autor de um docum ento testem unhou ou não os acontecim entos ali tratados — mesmo que adm ita que esses acontecim entos poderiam ser “observa­ dos” . U m a carta contendo a declaração “O ntem , m udei m inha opinião sobre esse assunto” pode ser um a prova histórica de grande valor, em bora as m udanças de opinião não sejam eventos observáveis (e mesmo que possamos conjecturar, à luz de outras provas, que o escritor não está dizendo a verdade). As testem unhas diretas só são im portantes no trib u n al, onde podem ser questionadas. Como os advogados sabem m uito bem , as testem unhas erram com

6 — Vide meu livro Logic o f Scientific Discovery, último parágrafo da seção 24 e o novo apêndice X, ( 2 ).

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

freqüência — um fato que já foi investigado experim entalm ente, com resultados m arcantes. As vezes, testem unhas ansiosas por descrever acontecim entos a que as­ sistiram exatam ente como eles ocorreram cometem muitos erros, especialm ente se esses acontecim entos foram rápidos e excitantes. Se um evento qualquer sugere a l­ gum a interp retação atraen te, ela contribuirá quase sempre para distorcer a lem ­ brança do que foi presenciado. O ponto de vista de H um e sobre o conhecim ento histórico era diverso. No Treatise (I, III, iv; Selby-Bigge, pág. 83) ele escreve: “... acreditam os que César foi assassinado no Senado, nos idos de m arço ... porque este é o testem unho u n â ­ nim e dos historiadores, que concordam com a atribuição dessa oportunidade e local precisos p a ra o acontecim ento. Alguns caracteres e algum as letras são p e r­ cebidos pelos nossos sentidos ou retidos na nossa m em ória; caracteres que lem ­ bram os ter sido usados como sinais de determ inadas idéias — idéias que existiam ou na m ente dos que presenciaram im ediatam ente aquele acontecim ento e dele as receberam de form a direta, ou dos que as derivaram do testem unho de outros, e estes de outros a in d a ... até chegarm os aos que presenciaram o evento” . (Vide ta m ­ bém E n q u iry, X; Selby-Bigge, pág. 111). Parece-m e que esse ponto de vista levará ao regresso infinito descrito acim a. O problem a consiste, natu ralm en te, em saber se podemos aceitar o “testem unho unânim e dos historiadores” ou se esse testem unho deve ser rejeitado por apoiar-se em fontes com uns m as espúrias. O apelo aos “caracteres e ... letras percebidos pelos nossos sentidos ou retido na nossa m em ória” não pode ter im portância p ara este ou qu alq u er outro problem a relevante da historiografia”. XIV Mas quais são, nesse caso, as fontes do nosso conhecim ento? A resposta, creio, é a seguinte: há muitos tipos de fontes para o nosso co ­ nhecim ento, n en h u m dos quais tem autoridade. Podemos dizer que um determ inado jornal constitui um a fonte de co nhe­ cim ento — ou a Enciclopédia B ritânica; que certos artigos publicados no “Physical Review ", a respeito de um problem a de física, têm m aior autoridade, e possuem mais claram ente o característico de fo n te , do que um artigo sobre o mesmo p ro ­ blem a que encontram os num jo rn al ou na Enciclopédia. Mas seria um equívoco dizer que a fonte do artigo do “Physical R eview ” consiste integralm ente (ou mesmo em p arte) de observações. Essa fonte pode ser a descoberta de inconsistência em outro artigo ou o descobrim ento do fato de que um a hipótese, proposta em outro trab alh o , pôde ser testada de d eterm inada form a. Todas essas descobertas, que nad a têm a ver com a observação, constituem “fontes” — no sentido de que todas acrescentam nosso conhecim ento. N ão pretendo negar, natu ralm en te, que os experim entos podem acres­ centar o nosso conhecim ento de m odo im portante. Mas eles não representam fontes últim as: precisam sem pre ser testados; como no caso do exemplo da notícia pu blicada pelos jornais, via de regra, não questionam os os testem unhos de um a ex­ periência; contudo, se temos razão de dúvida sobre os resultados proclam ados, podem os repeti-la, ou pedir a alguém que a repita.

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O erro fundam ental da teoria filosófica sobre as fontes últim as do conhe­ cim ento consiste no fato de que ela não distingue com suficiente clareza a origem da validade do conhecim ento. Admitimos que, no caso da historiografia, as duas questões podem às vezes coincidir. A validade de um a afirm ativa histórica pode ser testável exclusivamente (ou principalm ente) à luz da origem de certas fontes. De m odo geral, porém , as duas questões são diferentes: não testamos a validade de um a assertiva ou de um a inform ação procurando identificar sua fonte ou sua origem e sim, de form a m uito mais direta, exam inando criticam ente o que foi afir­ m ado — o próprio conteúdo da assertiva. Assim, a questão colocada pelo em pirista “Como sabes? Q ual a fonte da tua afirm ativa?” não é apropriada; ela não está apenas enunciada de m odo inexato ou relaxado, mas é inteiram ente errônea na sua conceituação, solicitando um a respos­ ta autoritária. XV Pode-se dizer que os sistemas epistemológicos tradicionais resultam de res­ postas “sim ” ou “n ã o ” dadas a indagações a respeito das fontes do nosso conheci­ m ento. Eles nunca contestam a form ulação dessas perguntas ou disputam sua legitim idade; as perguntas são consideradas perfeitam ente naturais e ninguém lhes atribui nada de errado. O que é m uito interessante, porque essas perguntas têm espírito claram ente autoritário; são com paráveis à questão tradicional da teoria política “Quem deve governar?” , que solicita tam bém um a resposta au to ritária — “os m elhores” ,“os mais sábios” , “o povo” ou “a m aioria” (e sugere, incidentalm ente, algum as a lte r­ nativas bastante tolas, tais como: “Q uais devem ser nossos governantes: os capitalis­ tas ou os trabalhadores?” ; indagação análoga à seguinte: “Q ual é a fonte últim a do nosso conhecim ento: o intelecto ou os sentidos?”). Essa questão política está e n u n ­ ciada erroneam ente e provoca respostas paradoxais (como procurei m ostrar no cap. 7 de O pen Society). Deve ser substituída por um a p ergunta totalm ente diversa, as­ sim como: “De que m odo podemos organizar nossas instituições políticas de form a que os governantes m aus e incom petentes não possam causar m uito dano?” Penso que só alterando a pergunta, deste m odo, podemos ter algum a esperança de chegar a um a teoria razoável a respeito das instituições políticas. A indagação sobre as fontes do nosso conhecim ento pode ser substituída de m odo sem elhante. Ela foi sem pre proposta com o espírito de quem pergunta:' “Quais são as melhores fontes do nosso conhecim ento — as mais seguras, gue não nos levarão ao erro — às quais nos devemos dirigir, em caso de dúvida, em .última instância?” Proponho aceitarm os que essas fontes ideais não existem — da mesma formo como não existem governantes ideais —, todas as nossas “fontes” podem , em certas ocasiões, induzir-nos em erro. Proponho-me p o rtan to a substituir a pergunta a respeito das fontes do nosso conhecim ento por um a o u tra, inteiram ente diversa. “De que form a podemos esperar a identificação e a elim inação do erro?” A questão sobre as fontes do nosso conhecim ento, como tantas outras p e r­ guntas de índole au toritária, é genética: quer saber qual é a origem do conhecim en­ to im aginando que o conhecim ento possa ser legitim ado pelo seu pedigree. A idéia subjacente é a da nobreza do conhecim ento “racialm ente p u ro ” , sem m ácula,

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derivado da m ais alta autoridade — se possível do próprio Deus. Tais são as noções metafísicas (m uitas vezes inconscientes) que existem por trás da pergunta. O subs­ titutivo que proponho — “De que modo podemos esperar a detecção do erro?” — deriva do ponto de vista de que não existem fontes de conhecim ento puras e a b ­ solutam ente seguras, de que a origem ou a pureza do conhecim ento não deve ser confundida com sua validade ou veracidade. E um ponto de vista que rem onta a Xenófanes: ele sabia que nosso conhecim ento não passa de opinião, conjectura — doxa e não epistem e — conform e podemos perceber lendo seus versos (DK. B. 18 e 34): “Os deuses não nos revelaram desde o princípio T odas as coisas; mas, com o tem po, Se buscarm os poderem os aprender, conhecê-las m elhor. A verdade certa, contudo, ninguém jam ais a conheceu Nem a conhecerá: a dos deuses O u a de todas as outras coisas. Mesmo se por acaso alguém pronunciasse o nom e Da verdade ú ltim a, não poderia reconhecê-la Nessa rede tecida com opiniões”. C ontudo, a questão tradicional a respeito das fontes autoritárias do co­ nhecim ento continua a ser repetida — m uitas vezes pelos próprios positivistas e outros filósofos que pensam revoltar-se contra a autoridade. Creio que a resposta ap ropriada à questão alternativa que propus seria: “Podemos ter a esperança de detectar e elim inar o erro criticando as teorias e opiniões alheias e — se treinarm os p ara isso — as nossas próprias”. (Este últim o ponto é sem dúvida altam ente desejável, mas desnecessário: se não puderm os criticar nossas próprias teorias e opiniões, haverá quem o faça por nós). Essa res­ posta sintetiza a visão do que sugiro cham arm os de “racionalism o crítico”: um p o n ­ to de vista, um a atitu d e e um a tradição que devemos aos gregós. É m uito diferente do “racionalism o” e do “intelectualism o” > da escola de Descartes e tam bém m uito diferente da epistem ologia de K ant. C ontudo, é um a posição que, no cam po da ética e do conhecim ento m oral, foi ab ordada por K ant com o seu princípio da autonom ia. Este principio expressa a percepção do filósofo de que não devemos aceitar o com ando de um a autoridade — por mais sublim e que seja — como basef da ética. Sem pre que defrontam os um com ando dado por um a autoridade devemos julgar, criticam ente, se obedecê-lo será um ato m oral ou im oral. A autoridade poderá ter o poder de obrigar-nos a obedecer-lhe; porém , como temos a capaci­ dade de escolher, a responsabilidade últim a pela ação nos pertence. O bedecer ou não u m a ordem é um a decisão crítica que tom am os — como tam bém o é a subm is­ são a qualq u er autoridade. K ant transportou essa idéia, com ousadia, para o terreno da religião: “... qualq u er que seja a form a com que a divindade se revele a nós, ain d a ... que se apresente em pessoa, somos nós m esm os... que precisamos ju lg ar se nos é lícito ou não aceitá-la com o Deus e ad o rá-la” .7* 7 — Immanuel Kant, A Religião Dentro dos Limites da Razão Pura, 2.a edição inglesa, 1794, 4.° cap., parte II, § 1, primeira nota. Esta passagem é reproduzida de forma mais completa no cap. 7 do presente livro.

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T endo em vista essa afirm ativa corajosa, parece estranho que, na sua fi­ losofia da ciência, K ant não tenha adotado a m esm a atitude de racionalism o crítico, de busca crítica do erro. Tenho a certeza de que o motivo foi sua aceitação da autoridade da cosmologia de Newton — devido ao êxito quase Incrível com que ela superou os testes m ais rigorosos. Se esta interpretação está correta, o racionalis­ mo crítico (e tam bçm o em pirism o crítico) que preconizo constituirá um simples retoque final na filosofia crítica de Kant — graças a Einstein, que nos m qstrou como a teoria de Newton pode perfeitam ente estar errad a, a despeito do seu g ra n ­ de êxito. Por isso m inha resposta às perguntas “Como sabes? Qual é a fonte ou a base da tua afirm ativa? Que observações te levaram a ela?” seria: “N ão sei; m inha afir­ m ativa é simplesm ente um a opinião. Não im porta sua fonte — ou fontes; há m uitas fontes possíveis e posso não ter consciência de um a boa p arte delas; de q u a l­ quer m odo, as origens e os pedigrees têm pouco a ver com a verdade. Mas, se estás de fato interessado no problem a que procurei resolver com a afirm ativa que fiz, podes ajudar-m e criticando-a com toda a severidade de que fores capaz. Se puderes conceber um teste experim ental p ara refutar o que disse, terei satisfação em te ajudar a refutá-lo, o m elhor que possa” . Estritanqente, essa resposta 8 só será apropriada se a pergunta for dirigida a um a afirm ativa científica (e não histórica). Se a conjectura for histórica, as fontes (no sentido de fontes não finais) entrarão, como é n atu ral, na discussão crítica sobre a validade. C ontudo, fundam entalm ente m inha resposta seria a m esm a, con­ form e vimos. XVI Creio ter chegado o m om ento de form ular os resultados epistemológicos des­ ta discussão. Vou fazê-lo sob a form a de dez teses: 1. Não há “fontes últim as” do conhecim ento. T oda fonte, todas as sugestões são bem -vindas; e todas as fontes e sugestões estão abertas ao exam e crítico. Exceto no cam po da história, exam inam os ordinariam ente os próprios fatos em vez de exam inar as fontes da nossa inform ação. 2. A verdadeira questão epistemológica não tem a ver com fontes: p erg u n ­ tamos se a afirm ativa feita é verdadeira — isto é, se concorda com os fatos. (A obra de Alfred Tarski dem onstra que podemos operar com a idéia da verdade objetiva, no sentido da correspondência com os fatos, sem nos envolvermos com antinom ias). É o que tentam os descobrir, na m edida em que isso é possível, exam inando ou tes­ tando a própria afirm ativa — diretam ente ou pelo exam e ou teste das suas conseqüências. 3. Com respeito a esse exam e, todos os tipos de argum entos podem ser relevantes. Um procedim ento típico consiste em exam inar se nossas teorias são

8 — Esta resposta e quase todo o conteúdo da presente seção XV foram retirados, com pequenas al­ terações, de um trabalho que publiquei pela primeira vez no The Indian Journal o f Philosophy, 1, n.° 1, 1959.

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coerentes com as observações que fazemos. Mas podemos exam inar tam bém , por exem plo, se nossas fontes históricas têm consistência m útua ou interna.

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m etria, tem um lado im portante e outro sem im portância. O lado esquerdo, que contém palavras e significados, não é im portante; o lado direito, sim, pois contém teorias e problem as relacionados com sua veracidade. As palavras só têm utilidade como instrum entos para a form ulação de teorias; os problem as verbais devem ser evitados a todo custo.

4. Do ponto de vista da q uantidade e da qualidade, sem dúvida algum a a fonte mais im portante do nosso conhecim ento — além do conhecim ento inato — é a tradição. A m aior p arte do que sabemos aprendem os pelo exemplo, por ouvir contar, lendo livros, aprendendo a criticar, a receber e aceitar a crítica, a respeitar a verdade.

10. T oda solução d ad a a um problem a levanta novos problem as; principal m ente quando o problem a original é profundo e a solução apresentada é corajosa.

5. O fato de que a mais im portante fonte do nosso conhecim ento é a tr a ­ dição condena o antitradicionalism o por fútil. Mas isso não nós deve levar a um a atitude tradicionalista: todo o conhecim ento tradicional (e tam bém o conhecim en­ to inato) está aberto ao exam e crítico; se necessário, poderá ser abandonado. C on­ tudo, sem a tradição o conhecim ento seria impossível.

Q uanto mais aprendem os sobre o m undo, quanto mais profundo nosso conhecim ento, mais específico, consciente e articulado será nosso conhecim ento do que ignoram os — o conhecim ento da nossa ignorância. Essa, de fato, é a principal fonte da nossa ignorância: o fato de que nosso conhecim ento só pode ser finito, mas nossa ignorância deve necessariam ente ser infinita.

6. O conhecim ento não parte do nada — de um a tabula rasa — como ta m ­ bém não nasce da observação; seu progresso consiste, fundam entalm ente, na m odificação do conhecim ento precedente. Em bora algumas vezes possamos p ro ­ gredir graças a um a observação casual (em arqueologia, por exemplo), a signifi­ cação das descobertas que fazemos depende em geral do seu poder de m odificar as teorias precedentes.

Podemos ver um relance da vastidão do que ignoram os ao contem plar os céus: em bora a simples dim ensão do universo não constitua a causa mais séria da nossa ignorância sobre ele, é um a dessas causas. Em Foundations o f M athem atics (pág. 291), num a passagem encantadora, F.P. Ramsey escreveu: “Divirjo de alguns amigos que atribuem grande im portância ao tam anho físico (do universo). Não me sinto absolutam ente hum ilde diante da vastidão do espaço. As estrelas podem ser grandes, mas não pensam nem am am — qualidades que me im pressionam bem mais do que o tam anho. N ão acho vantajoso pesar quase cento e vinte quilos” . Sus­ peito que os amigos de Ramsey concordariam com ele sobre a insignificância do simples tam anho físico; mas im agino tam bém que se sentiam hum ildes diante da vastidão do espaço porque viam nela um símbolo da sua ignorância.

7. As epistemologias otimistas e pessimistas estão igualm ente equivocadas. A analogia pessimista da caverna, de Platão, é verdadeira: não a estória otim ista da anamnesis (em bora devamos adm itir que todos os homens, como os outros anim ais e até mesmo as plantas, possuem conhecim ento inato). Mas, em bora o m undo das aparências seja de fato um m undo de sombras projetadas nas paredes da caverna onde vivemos, todos procuram os constantem ente alcançar a realidade; e em bora ela esteja profundam ente oculta, como disse Dem ócrito, podemos ex­ plorar a p rofundidade. Não há um critério da verdade à nossa disposição (o que pode conduzir ao pessimismo), mas temos acesso a critérios que, se tivermos sorte, poderão levar-nos a reconhecer o erro e a falsidade. A clareza e a distinção não constituem critérios da verdade, mas a obscuridade e a confusão podem indicar o erro. Da m esm a form a, a coerência, não pode por si mesm a estabelecer a vW lade, mas a incoerência e a inconsistência revelam a falsidade. Q uando reconhecemos nossos erros, eles próprios nos dão um aviso cpie pode ajudar-nos a encontrar um a via de escape da obscuridade da caverna.

Acredito que valeria a pena ten tar aprender algo sobre o m undo, mesmo que, ao fazê-lo, descobríssemos apenas que não sabemos m uita coisa. Esse estado de ignorância conhecida poderia ajudar-nos, em m uitas das nossas dificuldades. Vale a pena lem brar que, em bora haja um a vasta diferença entre nós no que respeita aos fragm entos que conhecemos, somos todos iguais no infinito da nossa ig n o rân ­ cia. XVII H á um a últim a questão que desejo levantar.

8. Nem a observação nem a razão são autoridades. A intuição intelectual e a im aginação são m uito im portantes, mas não oferecem segurança: podem in ­ dicar-nos coisas com m uita clareza mas podem tam bém induzir-nos em erro. São indispensáveis como as fontes principais das nossas teorias; mas a m aioria dessas teorias são falsas, de q ualquer form a. A função mais im portante da observação e do raciocínio (e mesmo da intuição e da im aginação) é ajudar-nos no exam e crítico dessas conjecturas ousadas com as quais podemos explorar o desconhecido. 9 9. E m bora a clareza seja valiosa por si m esm a, o mesmo não acontece com a exatidão ou a precisão: não tem sentido procurarm os um nível de precisão m aior do que o problem a que enfrentam os está a exigir. A precisão da linguagem é um fantasm a; os problem as relativos ao significado e à definição das palavras na ver­ dade não têm im portância. Por isso nosso quadro de idéias, a despeito da sua si-

Se procurarm os bem , encontrarem os m uitas vezes um a idéia verdadeira, que merece ser conservada, num a teoria filosófica que precisamos rejeitar porque é falsa. Será que encontrarem os algum a idéia assim em um a das teorias sobre as fo n ­ tes últim as do nosso conhecim ento? Creio que sim; e sugiro irmos buscá-la nas duas idéias principais subjacentes à doutrina de que a fonte de todo o nosso conhecim ento é sobrenatural. N a m inha opinião, a prim eira dessas idéias é falsa, mas a segunda é verdadeira. A prim eira idéia, falsa, a de que precisamos justificar nosso conhecim ento, ou nossas teorias, por iqeio de razões positivas — isto é, capazes de dem onstrá-las, ou pelo menos de m ostrar que são altam ente prováveis; de qualquer form a, por

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razões m elhores do que a de que resistiram à crítica. Esta idéia im plica, penso, que precisamos apelar p ara um a fonte últim a ou au to ritária de conhecim ento ver­ dadeiro; o que deixa em aberto ainda a natureza dessa autoridade — que pode ser h u m an a (como a observação ou a razão) ou sobre-hum ana (e p o rtan to sobrena­ tural). A segunda idéia, cuja im portância vital foi acentuada por Russell, é a de que nenhum a autoridade hum an a pode estabelecer a verdade por decreto; d e ­ vemos, p o rtan to , sujeitar-nos à verdade, que está acima da autoridade hum ana. T om adas em conjunto, essas duas idéias levam quase que im ediatam ente à conclusão de que as fontes das quais deriva nosso conhecim ento precisam ser sobre­ hum anas — um a conclusão que tende a encorajar a assunção da verdade pelo hom em e o uso da força contra os que se recusam a adm iti-la. Alguns que rejeitam (como é justo) essa conclusão não rejeitam tam bém , in ­ felizm ente, a prim eira idéia — a crença na existência de fontes últim as do co­ nhecim ento. Em vez disso, rejeitam a segunda idéia — a tese de que a verdade está colocada acim a da autoridade hu m an a. Dessa form a, põem em perigo a idéia da objetividade do conhecim ento e dos padrões com uns de crítica ou de racionalidade. Penso que o que devemos fazer é ab an donar a idéia das fontes últim as do conhecim ento, adm itindo que todo conhecim ento é hum ano — que se mescla com nossos erros, preconceitos, sonhos e esperanças; o que podemos fazer é buscar a verdade, mesmo que ela esteja fora do nosso alcance. Podemos adm itir que nossa busca é m uitas vezes inspirada, mas precisamos ficar em g u arda contra a crença (por mais p rofunda que seja) de que nossa inspiração tem algum a autoridade — divina ou não. Se adm itirm os que em toda a província do conhecim ento não há qualquer au toridade que possa escapar à critica, por mais que tenham os penetrado no reino do desconhecido, poderem os reter sem perigo a idéia de que a verdade es­ tá situada além da autoridade h u m ana. E devemos retê-la, porque sem essa idéia não pode haver padrões objetivos de investigação, crítica das nossas conjecturas, busca do desconhecido ou procura do conhecim ento.

Conjecturas

“Não poderia haver m elhor destino p ara qualquer ... teoria do que o de in ­ dicar o cam inho para um a teoria mais abrangente na qual ela continue a viver, como um caso lim ite.” A lbert Einstein

1. Ciência: Conjecturas e Refutações* “O Senhor T u rn b u ll tinha previsto conseqüências nefastas, ... e agora fazia tudo o que podia efetivar suas próprias profecias.” A n th o n y Trollope I Q uando recebi a lista dos participantes deste curso, e percebi que tinha sido convidado a m e dirigir a colegas filósofos, im aginei, depois de algum as hesitações e consultas, que os senhores prefeririam que falasse sobre os problem as que mais me interessam e os desenvolvimentos com os quais estou m ais fam iliarizado. Decidi, portanto, fazer algo que jam ais havia feito antes: um relato do m eu trabalho no cam po da filosofia da ciência desde o outono de 1919, quando comecei a lu tar com o seguinte problem a: “Quando pode um a teoria ser classificada com o científicaV \ ou “Existe u m critério para classificar um a teoria como científica?” N aquela época, não estava preocupado com as questões “Q uando é ver­ dadeira um a teoria?” ou “Q uando é aceitável um a teoria?” Meu problem a era outro. Desejava traçar um a distinção entre a ciência e a pseudo ciência, pois sabia m uito bem que a ciência freqüentem ente comete erros, ao passo que a pseudociência pode encontrar acidentalm ente a verdade. Conhecia, evidentem ente, a resposta mais com um dad a ao problem a: a ciência se distingue da pseudociência — ou “m etafísica” — pelo uso do m étodo e m ­ pírico, essencialmente indutivo, que decorre da observação ou da experim entação. Mas essa resposta não me satisfazia. Pelo contrário, form ulei m uitas vezes m eu prpblem a como a procura de um a distinção entre o m étodo genuinam ente em ­ pírico e o não em pírico ou mesmo pseudo-em pírico — isto é, o m étodo que, em ­ bora se utilize da observação e da experim entação, não atinge padrão científico. Um exemplo deste m étodo seria a astrologia, que tem um grande acervo de evidên­ cia em pírica baseada na observação: horóscopos e biografias.

* Conferência feita erti Peterhouse, Cambridge, no verão de 1953, como parte de curso sobre a evolução e as tendências da filosofia inglesa contemporânea, organizado pelo British Council; publicado original­ mente sob o título “Philosophy o f Science: a Personal Report”, in ‘British Philosophy in Mid-Century edit. C. A. Mace, 1957.

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Mas, como não foi o exemplo citado que me levou ao m eu problem a, creio que seria oportuno descrever brevem ente o clim a em que ele surgiu e os exemplos que o estim ularam . Após o colapso do Im pério A ustríaco, a Á ustria havia passado por um a revolução: a atm osfera estava carregada de slogans e idéias revolu­ cionárias; circulavam teorias novas e freqüentem ente extravagantes D entre as que me interessavam , a teoria da relatividade de Einstein era sem dúvida a mais im p o r­ tante; outras três eram a teoria da história de M arx, a psicanálise de Freud e a «psicologia individual» de Alfred Adler. Popularm ente, falavam-se m uitas coisas absurdas sobre essas teorias, so­ bretudo a da relatividade (como acontece ainda hoje), mas tive sorte com as pessoas que me introduziram a elas. Todos nós — o pequeno grupo de estudantes ao qual pertencia — vibram os ao tom ar conhecim ento dos resultados da observação de um eclipse em preendida por Eddington, em 1919, a prim eira confirm ação im portante da teoria da gravitação de Einstein. Foi um a experiência m uito im portante para nós, com influência d u rad o u ra sobre o m eu desenvolvimento intelectual. N aquela época, as três outras teorias que mencionei eram tam bém a m ­ plam ente discutidas no meio estudantil. Eu mesmo tive um contato pessoal com Al­ fred Adler e cheguei a cooperar com ele em seu trabalho social entre as crianças e os jovens dos bairros proletários de V iena, onde havia estabelecido clínicas de orientação social. D urante o verão de 1919, comecei a me sentir cada vez mais insatisfeito com essas três teorias — a teoria m arxista da história, a psicanálise e a psicologia in ­ dividual; passei a ter dúvidas sobre seu status científico. Meu problem a assumiu, prim eiram ente, um a form a simples: “O que estará errado com o m arxism o, a psicanálise e a psicologia individual? Por que serão tão diferentes da teoria de New­ ton e especialm ente da teoria da relatividade?” P ara to rn ar claro esse contraste, devo explicar que, naquela época, poucos afirm ariam acred itar na verdade contida na teoria da gravitação de Einstein. O que m e incom odava, po rtan to , não era o fato de duvidar da veracidade daquelas três teorias; tam bém não era o fato de que considerava a física m atem ática mais exata do que as teorias de natureza psicológica ou sociológica. O que me p reo ­ cupava, p o rtan to , não era, pelo menos naquele estágio, o problem a da veracidade, da exatidão ou da m ensurabilidade. Sentia que as três teorias, em bora se apresen­ tassem como ram os da ciência, tinham de fato mais em com um com os mitos p rim i­ tivos do que com a p rópria ciência, que se aproxim avam mais da astrologia do que da astronom ia. Percebi que m eus amigos adm iradores de M arx, Freud e Adler im pres­ sionavam-se com um a série de pontos comuns às três teorias, e sobretudo com sua aparente capacidade de explicação. Essas teorias pareciam poder explicar p ra ti­ cam ente tudo em seus respectivos cam pos. O estudo de qualquer um a delas p a ­ recia ter o efeito de um a conversão ou revelação intelectual, abrindo os olhos para um a nova verdade, escondida dos ainda não iniciados. Uma vez abertos os olhos, podia-se ver exemplos confirm adores em toda p arte: o m undo estava repleto de verificações da teoria. Q ualquer coisa que acontecesse vinha confirm ar isso. A ver­ dade contida nessas teorias, portanto, parecia evidente; os descrentes eram n iti­ dam ente aqueles que não queriam vê-la: recusavam-se a isso p ara não en trar em

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conflito com seus interesses de classe ou por causa de repressões ainda não an a li­ sadas, que precisavam urgentem ente de tratam ento. O mais característico da situação parecia ser o fluxo incessante de confir­ mações, de observações que «verificavam» as teorias em questão, ponto que era e n ­ fatizado constantem ente: um m arxista não abria um jornal sem encontrar em cada página evidência a confirm ar sua interpretação da história. Essa evidência era detectada não só nas notícias, mas tam bém na form a como eram apresentadas pelo jornal — que revelava seu preconceito de classe — e sobretudo, é claro, naquilo que o jornal não m encionava. Os analistas freudianos afirm avam que suas teorias eram constantem ente verificadas por “observações clínicas” . Q uanto a Adler, fiquei m uito im pressionado por um a experiência pessoal. C erta vez, em 1919, informei-o de um caso que não me parecia ser particularm ente adleriano, mas que ele não teve qualquer dificuldade em analisar nos termos da sua teoria do sentim ento de inferioridade, em bora nem mesmo tivesse visto a criança em questão. Ligeiram ente chocado, perguntei como podia ter tan ta certeza. “Porque já tive mil experiências desse tip o ” — respondeu; ao que não pude deixar de retrucar: “Com este novo caso, o núm ero passará então a mil e u m ...” O que queria dizer era que suas observações anteriores podiam não m erecer m uito mais certeza do que a últim a; que cada observação havia sido exam inada à luz da «experiência anterior», somando-se ao mesmo tem po às outras como confir­ m ação adicional. Mas, perguntei a m im mesmo, que é que confirm ava cada nova observação? Simplesmente o fato de que cada caso podia ser exam inado à luz da teoria. Refleti, contudo, que isso significava m uito pouco, pois todo e qualquer caso concebível pode ser exam inado à luz da teoria de Freud e de Adler. Posso ilus­ trar esse ponto com dois exemplos m uito diferentes de com portam ento hum ano: o do hom em que joga um a criança na água com a intenção de afogá-la e o de quem sacrifica sua vida na tentativa de salvar a criança. Ambos os casos pord èm ser ex­ plicados com igual facilidade, tanto em termos freudianos como adlerianos. Segun­ do Freud, o prim eiro hom em sofria de repressão (digamos, algum com ponente do seu complexo de Édipo) enquanto o segundo alcançara a sublim ação. Segundo Adler, o prim eiro sofria de sentim ento de inferioridade (gerando, provavelm ente, a necessidade de provar a si mesmo ser capaz de com eter um crime), e o mesmo havia acontecido com o segundo (cuja necessidade era provar a si mesmo ser capaz de salvar a criança). Não conseguia im aginar qualquer tipo de com portam ento hum ano que am bas as teorias fossem incapazes de explicar. Era precisam ente esse fato — elas sempre serviam e eram sempre confirm adas — que constituía o mais forte argum ento em seu favor. Comecei a perceber aos poucos que essa força aparente era, na verdade, um a fraqueza. Com a teoria de Einstein, a situação era extraordinariam ente diferente. Tom em os um exemplo típico — a predição de Einstein, confirm ada havia pouco por Eddington. A teoria gravitacional de Eins­ tein havia levado à conclusão de que a luz devia ser atraíd a pelos corpos pesados (como o Sol), exatam ente como ocorria com os corpos m ateriais. Calculou-se p o r­ tanto que a luz proveniente de um a estrela distante, cuja posição aparente estivesse próxim a ao Sol, alcançaria a T erra de um a direção tal que a estrela pareceria estar ligeiram ente deslocada p ara longe do Sol. Em outras palavras, as estrelas próximas ao Sol pareceriam ter-se afastado um pouco dele e entre si. Isso não pode ser n o r­ m alm ente observado, pois as estrelas se tornam invisíveis d u ran te o dia, ofuscadas pelo brilho irresistível do Sol; d u ran te um eclipse, porém , é possível fotografá-las. Se a mesm a constelação é fotografada du ran te um eclipse, de dia e à noite, pode-se m edir as distâncias em am bas as fotografias e verificar o efeito previsto.

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O mais im pressionante neste caso é o risco envolvido num a predição desse tipo. Se a observação m ostrar que o efeito previsto definitivam ente não ocorreu, a teoria é sim plesm ente refutada: ela é incom patível com certos resultados passíveis da observação; de fato, resultados que todos esperariam antes de E in stein .1 Essa situação é bastante diferente da que descrevi anteriorm ente, pois tornou-se evidente que as teorias em questão eram compatíveis com o com portam ento hum ano ex­ trem am ente divergente, de m odo que era praticam ente impossível descrever um tipo de com portam ento que não servisse p ara verificá-las. D urante o inverno de 1919-1920, essas considerações me levaram a co n ­ clusões que posso agora reform ular da seguinte m a n e ira . (1) É fácil obter confirm ações ou verificações para quase toda teoria — des­ de que as procurem os. (2) As confirm ações só devem ser consideradas se resultarem de predições arriscadas; isto é, se, não esclarecidos pela teoria em questão, esperarm os um acon­ tecim ento incom patível com a teoria e que a teria refutado. (3) T o d a teoria científica “b o a ” é u m a proibição: ela proíbe certas coisas de acontecer. Q uanto m ais um a teoria proíbe, m elhor ela é. (4) A teoria que não for refutada por qualquer acontecim ento concebível não é científica. A irrefutabilidade não é um a virtude, como freqüentem ente se pensa, mas um vício. (5) T odo teste genuíno de um a teoria é um a tentativa de refutá-la. A pos­ sibilidade de testar u m a teoria im plica igual possibilidade de dem onstrar que é fa l­ sa. H á, porém , diferentes graus na capacidade de se testar um a teoria: algumas são m ais “testáveis” , m ais expostas à refutação do que outras; correm , por assim dizer, m aiores riscos. (6) A evidência confirm adora não deve ser considerada se não resultar de um teste genuíno da teoria; o teste pode-se apresentar como um a tentativa séria porém m alograda de refu tar a teoria. (Refiro-me a casos como o da “evidência corroborativa”). (7) Algum as teorias genuinam ente “testáveis”, quando se revelam falsas, continuam a ser sustentadas por adm iradores, que introduzem , por exemplo, algum $ suposição auxiliar ad hoc, ou rein terp retam a teoria ad hoc de tal m aneira que ela escapa à refutação. T a l procedim ento é sempre possível, mas salva a teoria da refutação apenas ao preço de destruir (ou pelo menos aviltar) seu p adrão cien­ tífico. (Mais tard e passei a descrever essa operação de salvam ento como um a “dis­ torção convencionalista ' oxi um “estratagema convencionalista. ”) Pode-se dizer, resum idam ente, que o critério que define o status científico de um a teoria é sua capacidade de ser refutada ou testada.

1 — Há aqui uma ligeira simplificação, pois cerca de metade do efeito Einstein pode ser deduzido a partir da teoria clássica, desde que se assuma uma teoria balística da luz.

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II Posso exem plificar o que acabo de afirm ar com a ajuda das diversas teorias já m encionadas. A teoria da gravitação de Einstein satisfazia nitidam ente o critério da “refu tabilidade” . Mesmo se, naquela época, nossos instrum entos não nos p e r­ m itiam ter plena certeza dos resultados dos testes, existia claram ente a possibili­ dade de refutar a teoria. A astrologia não passou no teste. Os astrólogos estavam m uito im pres­ sionados e iludidos com aquilo que acreditavam ser evidência confirm adora — ta n ­ to assim que pouco se preocupavam com qualquer evidência desfavorável. Além disso, tornando suas profecias e interpretações suficientem ente vagas, eram capazes de explicar qualquer coisa que possivelmente refutasse sua teoria se ela e as p ro ­ fecias fossem mais precisas. Para escapar à falsificação, destruíram a “testabilid ad e” de sua teoria. É um truque típico do adivinhador fazer predições tão vagas que dificilm ente falham : elas se tornam irrefutáveis. Apesar dos esforços sérios de alguns de seus fundadores e seguidores, a teoria m arxista da história tem ultim am ente adotado essa m esm a prática dos adivi­ nhadores. Em algum as de suas form ulações anteriores (como, por exemplo, na análise de M arx sobre o caráter da “revolução social vin d o u ra”), as predições eram “testáveis” e foram refu tad as.23Mas em vez de aceitar as refutações, os seguidores de M arx reinterpretaram a teoria e a evidência p ara fazê-las concordar entre si. Sal­ varam assim a teoria da refutação, mas ao preço de ad o tar um artifício que a to r­ nou de todo irrefutável. Provocaram , assim, um a “distorção convencionalista” des­ truindo-lhe as anunciadas pretensões a um padrão científico. As duas teorias psicanalíticas pertencem a o u tra categoria, por serem sim ­ plesm ente não /'testáveis,<’ e irrefutáveis. N ão se podia conceber um tipo de com por­ tam ento hum ano capaz de contradizê-las. Isso não significa que Freud e Adler es­ tivessem de todo errados. Pessoalmente, não duvido da im portância de m uito do que afirm am e acredito que algum dia essas afirmações terão um papel im portante num a ciência psicológica “testável” . C ontudo, as “observações clínicas” , da mesma m aneira que as confirmações diárias encontradas pelos astrólogos, não podem mais ser consideradas confirmações da teoria, como acreditam ingenuam ente os analis­ tas. 3 Q uanto à epopéia freudiana do Ego, Superego e Id, não se pode reivindicar para ela um padrão científico mais rigoroso do que o das estórias de Hom ero sobre o O lim po. Essas teorias descrevem fatos, m as à m aneira de mitos: sugerem fatos psicológicos interessantes, mas não de m aneira “testável” .

2 — Vide, por exemplo, meu livro Open Society and Its Enemies, cap. 15, seção iii, e as notas 13 e 14. 3 — As “observações clínicas”, como qualquer tipo de observação, são interpretações empreendidas à luz das teorias {v\áe, a seguir, as seções ive seguintes); por esta razão, podem parecer sustentar as teorias à luz das quais foram interpretadas. Mas o verdadeiro apoio a uma teoria só pode ser obtido através de observações empreendidas como testes (“tentativas de ref&táção’7> para os quais os critérios de refutação devem ser estabelecidos anteriormente: deve-se definir que situações observáveis refutariam a teoria se fossem realrrTÇbte observadas. Mas, que resultados clínicos poderiam refutar satisfatoriamente não só um diagnóstico analítico em particular mas a própria psicanálise? Os analistas têm discutido critérios e con­ cordado com eles? Não existirá, ao contrário, toda uma série de conceitos analíticos como, por exemplo, o conceito de “ambivalência” (não estou sugerindo que esse conceito não exista) que tomariam difícil, se não impossível, chegar a um acordo sobre tais critérios? Além disso, que progresso tem sido

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Ao mesmo tem po, percebi que alguns desses mitos podem desenvolver-se e tornar-se “testáveis” . C om preendi que, historicam ente, todas — ou quase todas — as teorias científicas se originaram em mitos; que um m ito pode conter im portantes antecipações de teorias científicas. Como exemplos, citaria a teoria da evolução por erros e acertos, de Empédocles, e o m ito de Parm ênides sobre o universo im utável, onde n a d a jam ais acontece. Se adicionarm os m ais um a dim ensão ao universo vi­ sualizado por Parm ênides, teremos o universo de Einstein (no qual, tam bém , nada jam ais acontece, pois, em term os de q u atro dimensões, tudo está determ inado e estabelecido desde o início). Acreditava, portanto, que, se um a teoria passa a ser considerada não científica, ou «metafísica», nem por isso será definida como «ab­ surda» ou “sem sentido”. 4 Mas não se poderá afirm ar que esteja sustentada por evidência em pírica (na acepção científica), em bora possa facilm ente ser um “resul­ tado d a observação” em sentido lato. (Havia um grande núm ero de outras teorias com este mesmo caráter pré ou pseudocientífico, algum as das quais, infelizmente, tão influentes quanto a teoria m arxista d a história. Pode-se citar, como exem plo, a interpretação racista da his­ tória — o u tra daquelas impressionantes teorias que tudo explicam , e que atuam como revelações sobre as m entes fracas.) Assim, o problem a que eu procurava resolver propondo um critério de «refutabilidade» não se relacionava com o sentido ou significado, a veracidade ou a aceitabilidade. T ratava-se de traçar um a linha (da m elhor m aneira possível) entre as afirm ações, ou sistemas de afirm ações, das ciências em píricas e todas as outras afirm ações, de caráter religioso, metafísico ou simplesmente pseudocientífico. Anos mais tard e, possivelmente em 1928 ou 1929, cham ei este m eu prim eiro problem a de “problem a da d e m a r c a ç ã o O critério da “refu tab ilid ad e” é a solução p a ra o problem a da dem arcação, pois afirm a que, p ara serem classificadas como cien­ tíficas, as assertivas ou sistemas de assertivas devem ser capazes de en trar em con­ flito com observações possíveis ou concebíveis.

feito na tentativa de avaliar até que ponto as expectativas e teorias (conscientes ou inconscientes) aceitas pelo analista podem influenciar as “respostas clinicas” do paciente? (Sem mencionar as tentativas cons­ cientes de influenciar o paciente, propondo interpretações, etc.). Anos atrás, criei a expressão “efeito de Édipo” para denominar a influência exercida por uma teoria, expectativa ou predição sobre o acon­ tecimento previsto ou descrito: vale lembrar que a seqüência de acontecimentos casuais que levaram ao parricídio de Édipo começou com a predição desse evento por um oráculo. Esse é um tema caracterís­ tico, que se repete com freqüência em mitos desse tipo, mas que, talvez não por acidente, não tem atraído o interesse dos analistas. (O problema dos sonhos confirmadores sugeridos pelo analista é dis­ cutido por Freud, por exemplo, em Gesammelte Schriften, III, 1925, onde o autor afirma, na página 314: “Do ponto de vista da teoria analítica, nenhuma objeção pode ser feita à afirmativa de que a maioria dos sonhos usados durante uma análise... devem sua origem à sugestão (do analista)”. Freud afirma ainda, surpreendentemente, que “não há nada neste fato que possa prejudicar a confiabilidade dos resultados obtidos”. 4 — 0 caso da astrologia, uma típica pseudociência dos nossos dias, pode ilustrar esse ponto. Os aristotélicos e outros racionalistas, até a época de Newton, a criticavam por um motivo errado — a asser­ ção, hoje aceita, de que os planetas influenciam os acontecimentos terrestres (“sublunares”). De fato, a teoria da gravitação de Newton, e especialmente a teoria lunar das marés, são, historicamente, deri­ vações do conhecimento astrológico. Newton, ao que parece, relutava em aceitar uma teoria da mesma família da que afirmava, por exemplo, que as epidemias de gripe eram causadas por uma “influência” astral. Galileu, por sua vez, chegou a rejeitar a teoria lunar das marés, sem dúvida pela mesma razão. Além disso, o receio que tinha de Kepler pode ser facilmente explicado pelo seu receio em relação à as­ trologia.

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III Hoje sei, é claro, que esse critério de demarcação — ó critério de “testabilidade” ou “refu tabilidade” — está longe de ser óbvio; ainda hoje seu significado é raram ente com preendido. N aquela época, em 1920, ele me pareceu quase trivial, em bora resolvesse um problem a intelectual que m e havia preocupado p ro fu n d am ente, e tivesse conseqüências práticas óbvias (políticas, por exem plo). Mas não havia percebido ainda todas as suas implicações ou sua im portância filosófica. Q uando o expliquei a um colega, estudante do D epartam ento de M atem ática (hoje um conhecido m atem ático na Inglaterra), ele sugeriu que o publicasse. Isso me pareceu absurdo, pois estava convencido de que o problem a, tendo em vista a sua im portância para m im , já havia decerto preocupado numerosos cientistas e filó­ sofos, que certam ente já teriam chegado à m inha solução, um tanto óbvia. O trabalho de W ittgenstein e o m odo como foi recebido m ostraram que não era bem assim; por isso publiquei .minhas idéias treze anos depois, sob a form a de um a crítica ao critério de significação de W ittgenstein. W ittgenstein, como todos sabem , procurou dem onstrar, em seu Tractatus (vide, po r exem plo, as proposições 6.53; 6.54 e 5), que as proposições filosóficas ou metafísicas, como são cham adas, são na verdade falsas proposições, ou pseudoproposições, sem sentido ou significado. T oda proposição genuína (ou significativa) deve ser função da verdade de proposição elem entar ou “atom ística” , que descreva “fatos atôm icos”, isto é, fatos que em princípio podem ser verificados pela obser­ vação. Em outras palavras, as proposições significativas são totalm ente redutíveis a proposições elem entares ou atom ísticas, afirm ações simples descrevendo qm pos­ sível estado de coisas que podem em princípio ser estabelecidas ou rejeitadas pela observação. Se cham arm os um a afirm ação de “afirm ativa resultante da obser­ vação” , ou porque im plica de fato um a observação ou porque m enciona algo que pode ser observado, teremos de dizer (de acordo com o Tractatus, 5 e 4.52), que toda proposição genuína deve ser um a função da verdade de afirm ativa resultante da observação, e dela dedutível. Q ualquer outra proposição aparente será um a pseudoproposição sem significado; não passará de um conjunto de palavras desar­ ticuladas, sem sentido algum . Essa idéia foi utilizada por W ittgenstein p ara um a caracterização da ciência em oposição à filosofia. Podemos 1er (por exem plo, em 4.11, onde a ciência natural assume um a posição oposta à filosofia): “A totalidade das proposições verdadeiras corresponde a toda a ciência n atu ral (ou a todas as ciências natu rais)” . Isso sig­ nifica que as proposições pertencentes ao cam po da ciência são dedutívek das afir­ mações verdadeiras derivadas da observação, e podem ser verificadas por elas. Se pudéssemos conhecer todas as afirm ações verdadeiras derivadas da observação, saberíamos tudo o que pode ser afirm ado pela ciência n atu ral. Isso nos leva a um critério de dem arcação grosseiro, p ara a verificação de teorias. P ara torná-lo um pouco menos grosseiro, podem os acrescê-lo da seguinte afirm ação: “As asserções que podem recair no cam po da ciência são aquelas ve­ rificáveis por afirm ações derivadas da observação; elas coincidem , ainda, com a categoria que com preende todas as assertivas genuínas ou significativas” . Segundo esta visão, p o rtanto, há um a coincidência da verificabilidade, do significado e do caráter científico.

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Pessoalm ente, n unca me interessei pelo problem a do significado: ele sempre me pareceu um problem a apenas verbal, um típico pseudoproblem a. Estava só in ­ teressado no problem a de dem arcação, ou seja, na procura de um critério para definir o caráter científico das teorias. Foi só esse interesse que me fez perceber im ediatam ente que p a ra a verificação de teorias de W ittgenstein o critério da sig­ nificação deveria funcionar tam bém como um critério de dem arcação; que, como tal, era com pletam ente inadequado, mesmo se não levássemos em conta os prcu blemas devidos ao conceito duvidoso de “significado”. De fato, o critério de d em ar­ cação de W ittgenstein — p ara utilizar m inha term inologia neste contexto — é o da verificabilidade, da capacidade de deduzir a teoria de afirmações derivadas da o b ­ servação. Mas esse critério é ao mesmo tem po m uito restrito e m uito am plo: exclui da ciência p raticam ente tudo o que a caracteriza, ao mesmo tem po que deixa de excluir a astrologia. N enhum a teoria científica pode ser deduzida de afirmações derivadas da observação, ou descrita como função da verdade nelas contida. Em diversas ocasiões dem onstrei o que acabo de expor aqui a seguidores de W ittgenstein e m em bros do Círculo de Viena. Em 1931-32, resumi m inhas idéias num livro um tan to extenso (que foi lido por vários m em bros do Círculo, mas n u n ­ ca publicado, em bora p arte dele tenha sido incorporado ao m eu livro Logic o f ScientificD iscovery), em 1933, publiquei um a carta escrita ao editor da revista Erkenntnis na qual tentei condensar em duas páginas m inhas idéias sobre os pro­ blemas de dem arcação e in d u ç ã o .5 Nessa carta e em outros trabalhos, descrevi o problem a de significado como um pseudoproblem a, em contraste com o da d em ar­ cação. Os m em bros do Círculo, no entanto, classificaram m inha contribuição como um a proposta p ara substituir o critério de significado p ara verificação por um critério de significado p ara d eterm inar a “refu tab ilid ad e” — o que efetivam ente es­ vaziava m inhas proposições de q ualquer sentido.5* De n ad a ad ian taram meus protestos, em bora afirmasse que estava tentando resolver não o pseudoproblem a de significado, mas o problem a da dem arcação.

5 — Meu livro Logic o f Scientific Discovery (1959, 1960, 1961) normalmente referido aqui como L. Sc D., foi traduzido de Logik der Forschung (1934) com uma série de notas e apêndices adicionais, in­ clusive (nas páginas 312-314) a carta do Editor da Erkenntnis mencionada no texto, publicada pela primeira vez em Erkenntnis, 3, 1933, páginas 426 e seguintes. No que diz respeito ao livro nunca publicado, mencionado acima, vide o trabalho de R. Carnap “Üeber Protókollstaze” {As Proposições Protocolares), em Erkenntnis, 3, 1952Apáginas 215 a 228, onde, a partir da página 223, o autor apresenta um esboço da minha teoria, que aceita e chama de “procedi­ mento B , dizendo: Partindo de ponto de vista diferente do de Neurath (que desenvolveu o que Carnap denomina, na página 223, “procedimento A”), Popper desenvolveu o “procedimento B” como parte de seu sistema”. Após uma minuciosa descrição da minha teoria dos testes, Carnap resume suas idéias: “Após comparar os diversos argumentos aqui discutidos, parece-me que a segunda forma de linguagem, com o procedimento B — na forma descrita aqui — é a mais adequada de todas as formas de linguagem científica atualmente defendidas... na teoria do conhecimento”. O trabalho de Carnap contém o pri­ meiro relato publicado sobre minha teoria dos testes críticos. (Vide também minhas observações críticas em L. Sc. D., nota 1, seção 29, página 104, onde a data 1933 deve ser corrigida para 1932; e no Cap. 11 deste livro). 5 ~ P exemplo de Wittgenstein de uma pseudoproposição sem significado é o seguinte: “Sócrates é idêntico . Obviamente, a afirmação “Sócrates não é idêntico” também não tem significado. Logo, a negação de qualquer afirmativa sem significado também não terá significado, e a de uma afirmação com significado, será sentido. Mas, como observei em L.Sc.D. (p. ex. nas páginas 38 e seguintes) e, mais tarde, em minhas críticas, a negação de uma afirmação “testável” {ou seja, passível de ser refutada), não será necessariamente "testável”. Pode-se imaginar a confusão que surge quando se considera a “testabihdade” como um critério de significado e não de demarcação.

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M inhas críticas a respeito da verificação tiveram , contudo, algum resultado: levaram rapidam ente os filósofos verificacionistas do sentido e do sem-sentido à mais com pleta confusão. O riginalm ente, a proposta que considerava a verifica­ bilidade como critério de significado era pelo menos clara, simples e eficaz, o que não acontecia com as modificações e substituições introduzidas. ^ Devo dizer que, hoje, as próprias pessoas que particip aram do processo percebem isso. Mas, como sou norm alm ente c ita d a como um a delas, desejo salientar que, em bora tenha criado a confusão, jam ais participei dela. Não propus a refutabilidade ou a testabilidade como critérios de significado. Em bora possa me considerar culpado por haver in ­ troduzido ambos os termos na discussão, não os introduzi na teoria do significado. As críticas ao m eu alegado ponto de vista se difundiram m uito e alcançaram êxito. 'Mas ainda não encontrei nenhum a crítica às m inhas idéias.8 A testabilidade, por enquanto, tem sido largam ente aceita como critério de dem arcação.

IV Discuti o problem a da dem arcação detalhadam ente porque acredito que sua solução dá um a chave para a m aioria dos problem as fundam entais da filosofia da ciência. Mais adiante, relacionarei alguns desses problem as, mas apenas um deles — a indução — poderá ser discutido am plam ente aqui. Interessei-me pelo problem a da indução em 1923. E m bora ele esteja in ti­ m am ente ligado ao problem a de dem arcação, d u ran te cinco anos não fiz um a avaliação com pleta dessa ligação.

7 _ O exemplo mais recente do modo como a história desse problema pode ser mal interpretada e o trabalho de A. R. White “Notas Sobre Significado e Verificação”, em Mind, 63, 1954, páginas 66 e seguintes. O artigo de J. L. Evans em Mind, 62, 1953, páginas 1 e seguintes, criticado por White, é na minha opinião excelente e altamente perceptivo. Compreensivelmente, nenhum dos autores consegue reconstruir essa história. (Pode-se encontrar algumas sugestões no meu livro Open Soaety and Its Enemies, Cap. 11, notas 46, 51 e 52; há uma análise mais completa no Cap. 11 deste livro). g _ Em L. Sc. D., discuti certas objeções plausíveis que continuaram entretanto a ser levantadas, sem qualquer referência às minhas respostas. Uma delas é a argumentação de que a refutação de uma lei natural é tão impossível quanto sua verificação. A resposta é que essa objeção confunde dois níveis de análise completamente diferentes (como acontece com a afirmação de que demonstrações matemáticas são impossíveis, pois por mais vezes que se repita a correção, não podemos ter certeza de que não te­ nhamos* deixado de notar um erro). No primeiro nível, há uma assimetria lógica: uma única asserção — sobre, por exemplo, o periélio de Mercúrio — pode formalmente refutar as leis de Kepler, mas estas não poderão ser formalmente verificadas por afirmativas isoladas, qualquer que seja seu número. A ten­ tativa de minimizar essa assimetria só poderá resultar em confusão. No outro nível de análise, podemos hesitar em aceitar uma assertiva qualquer, mesmo a mais simples assertiva derivada da observação, podemos mostrar que toda assertiva envolve uma interpretação à luz de teorias e é, portanto, incerta. Isso não afeta a assimetria fundamental, mas é de grande importância: antes de Harvey, a maioria dos que dissecavam o coração faziam observações errôneas — justamente aquelas que desejavam fazer. Não pode haver observação totalmente segura, livre dos perigos da interpretação errônea. (Esse é um dos motivos pelos quais a teoria da indução não funciona). A “base empírica consiste quase sempre em uma miscelânea de teorias de menor grau de universalidade (de “efeitos reproduzíveis”). De qualquer modo, independentemente da base que o investigador aceite (arriscadamente), ele só poderá testar sua teoria tentando refutá-la.

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A proxim ei-m e do problem a da indução através de H um e, cuja afirm ativa de que a indução não pode ser logicam ente justificada eu considerava correta. H um e arg u m en ta que não pode haver argum entos lógicos válidos 910que nos p e r­ m itam afirm ar que “aqueles casos dos quais não tivemos experiência algum a as­ sem elham -se àqueles que já experim entam os anterior m en te”, Conseqüentem ente, “m esm o após observar um a associação constante ou freq u en te de objetos, não tem os m otivo para inferir algo que não se refira a u m objeto que já experim en­ tam os”.10 Como a experiência ensina que os objetos que se associam constan­ tem ente a outros objetos perm anecem assim associados, H um e afirm a, a seguir: “Poderia renovar m inha p ergunta da seguinte form a: por que, dessa experiência, tiramos conclusões que vão além dos casos anteriores, dos quais já tivemos expe­ riência?” Em outras palavras, a tentativa de justificar a p rática da indução ap elan ­ do p a ra a experiência deve levar a um regresso infinito. Como resultado, podemos dizer que as teorias nunca podem ser inferidas de afirm ações derivadas da obser­ vação, ou racionalm ente justificadas por elas. Considero a refutação da inferência indutiva de H um e clara e conclusiva. Mas sua explicação psicológica da indução em term os de costum e ou hábito me deixa to talm ente insatisfeito. Tem -se notado com freqüência que essa explicação de H um e é pouco satis­ fatória em term os filosóficos. Sem dúvida, contudo, ela pretende ser um a teoria psicológica e não filosófica, pois procura d ar um a explicação causal a um fato psicológico — o fa to de que acreditam os em leis, em assertivas que afirm am a regularidade de certos eventos, ou em certos tipos de eventos constantem ente as­ sociados — afirm ando que este fato é devido ao (isto é, constantem ente associado ao) hábito ou costum e. Mas essa reform ulação da teoria de H um e é ainda insatisfatória, pois o que acabo de descrever como um “fato psicológico” pode ser descrito como um costume ou h ábito — o costum e ou hábito de acreditar em leis e eventos regulares; de fato, não é m uito surpreendente nem esclarecedor ouvir a explicação de que tal costume ou hábito é devido (ou associado) a um hábito ou costume diferente. Só quando nos lem bram os de que as palavras “costum e” e “h áb ito ” são usadas por H um e, como tam bém na linguagem corrente, não só p a ra descrever com portam entos regulares mas sobretudo p a ra teorizar sobre sua origem (atribuída à repetição freqüente) é que podem os reform ular sua teoria psicológica de m aneira m ais satisfatória. Po­ demos afirm ar então que, com o acontece com qualquer outro hábito, nosso hábito de acreditar em leis é produto da repetição fre q ü e n te — da observação repetida de que coisas de um a certa natureza associam-se constantem ente a coisas de outra natureza.

9 — Hume não usa o termo “lógico”, mas sim “demonstrativo” — terminologia que, creio, tende a causar equívoco. As duas citações seguintes foram retiradas do Treatise o f Human Nature, tomo 1, parte III, seções vi e xii. (A ênfase é do próprio Hume). 10 — Esta citação e a seguinte foram do loc. cit. seção vi. Vide também o Enquiry Concerning Human Understandmg, do mesmo autor, seção IV, parte II, e o Abstract, editado em 1938 por J.M. Keynes e P. Sraffa, página 15, citado em L. Sc. D., no novo apêndice* VII, texto da nota 6.

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Como já indicado, essa teoria genético-psicológica está incorporada á lin ­ guagem ordinária, e por isso não é tão revolucionária qu an to acreditava H um e: é de fato um a teoria psicológica extrem am ente popular — p arte do “senso com um ” poderiam os dizer. Contudo, a despeito da m inha p rofunda adm iração por H um e e pelo senso com um , estava convencido do erro dessa teoria psicológica; convencido de que podia ser refutada com base em argum entos pu ram en te lógicos. Estava convencido de que a psicologia de H um e — que é a psicologia p o ­ p u lar — estava errad a em pelo menos três pontos: (a) o resultado típico da re ­ petição; (b) a gênese dos hábitos; e especialm ente (c) o caráter daquelas experiên­ cias e tipos de com portam ento que podem ser descritos como “acreditar num a lei”, ou “esperar um a sucessão ordenada de eventos”. (a) O resultado típico da repetição — por exem plo, da repetição de um trecho m usical difícihexecutado ao piano — é que os movimento^ que inicialm ente necessitavam de atenção são afinal executados autom aticam ente. Podemos dizer que o processo se torna radicalm ente abreviado e deixa de ser consciente: torna-se “fisiológico” . Esse processo, longe de criar a crença nu m a lei, ou a expectativa de um a sucessão de eventos aparentem ente baseados n um a lei, pode, pelo contrário, iniciar-se com um a crença consciente e destruí-la, tornando-a supérflua,. Ao a p re n ­ dermos a an d ar de bicicleta, podemos com eçar com a certeza de que, p ara evitar um a queda, devemos voltar a roda p ara a direção em que am eaçam os cair; essa certeza poderá ser útil p ara guiar nossos movimentos. Depois de algum a prática, podemos esquecer a regra: não precisamos mais dela,. Por outro lado, se é verdade que a repetição cria expectativas inconscientes, estas só se tornam conscientes a p artir do m om ento em que algo sai errado (não percebem os as batidas do relógio, mas notarem os o silêpcio, se o relógio p arar). (b) H ábitos e costumes, via de regra, não se originam n a repetição. Mesmo os hábitos de an d ar, falar e com er em horas determ inadas têm início antes de que a repetição possa ter um papel im portante. Podemos dizer que só m erecem o nome de “hábitos” ou “costum es” a p a rtir do m om ento em que a repetição exerce seu papel típico; não podemos afirm ar, no entanto, que a práticas em questão se originam de inúm eras repetições. (c) A crença num a lei não corresponde precisam ente ao com portam ento que revela a expectativa de um a sucessão de eventos aparentem ente baseados num a lei; contudo, as duas coisas estão suficientem ente interligadas p ara que sejam tratadas em conjunto: podem talvez resultar, excepcionalm ente, da m era re ­ petição de impressões dos sentidos (como no caso do relógio que deixa de fu n ­ cionar). Estava disposto a adm itir isso, mas norm alm ente, e na m aioria dos casos, elas não podem ser explicadas dessa m aneira. Como adm ite H um e, um a única o b ­ servação pode ser suficiente p ara criar um a expectativa ou um a crença — fato que ele procura explicar como resultado de um hábito indutivo, form ado por inúm eras longas seqüências repetitivas que experim entam os em período anterior da nossa v id a .11 Mas isso era apenas um a tentativa de explicar fatos desfavoráveis que am eaçavam a teoria; um a tentativa m alograda, pois esses fatos podem ser obser­ vados em filhotes de anim ais e bebês. “Seguramos um cigarro aceso perto do fo11 — Treatise, seção xiii; seção xv, regra 4.

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cinho de cachorrinhos” , relata F. Bãge. “Eles aspiraram um a vez e fugiram ; nada podia induzi-los a reto rn ar à origem daquele cheiro. Alguns dias mais tarde, apenas ao ver um cigarro ou mesmo um pedaço de papel branco enrolado, re a ­ giam , fugindo e espirrando .12 Se procurarm os explicar casos como esse postulan­ do inúm eras longas seqüências repetitivas prévias não só estaremos fantasiando mas tam bém esquecendo de que na cu rta vida dos filhotes deve haver tem po não só para a repetição mas tam bém p ara m uita novidade e, conseqüentem ente, o con­ trário da repetição. Mas não são apenas certos fatos em píricos que negam apoio às idéias de H um e; há tam bém argum entos decisivos de natureza puram ente lógica contrários à sua teoria psicológica. A idéia central da teoria de H um e é a da repetição baseada na similaridade (ou sem elhança”). Essa idéia é usada de m aneira m uito pouco crítica; somos levados a pensar nas gotas de água a corroer a pedra; seqüências de eventos inques­ tionavelm ente sem elhantes im pondo-se a nós vagarosam ente, como o funcionam en­ to de um relógio. Mas devemos n o tar que, num a teoria psicológica como a de H um e, só se pode adm itir que tenha efeito sobre o indivíduo aquilo que p ara ele se caracteriza como um a repetição, baseada em sim ilaridade que só ele poderá id en ­ tificar. O indivíduo deve reagir às situações como se fossem equivalentes; deve con­ siderá-las similares; deve interpretá-las como repetições. Podemos presum ir que os cachorrinhos m ostraram , pela sua resposta — sua m aneira de agir ou reagir — que haviam reconhecido ou interp retad o a segunda situação como repetição da p ri­ m eira: esperavam a presença do elem ento principal: o cheiro desagradável. A situação foi percebida por eles como um a repetição, pois reagiram a ela antecipan­ do sua sim ilaridade à situação anterior. Essa crítica aparentem ente de caráter psicológico tem um a base puram ente lógica, que pode ser sintetizada no seguinte argum ento, bastante simples (aciden­ talm ente, o mesmo com que comecei m inha crítica): o tipo de repetição im agi­ nado por H um e jam ais pode ser perfeito; os casos que ele expõe não são casos de sim ilaridade perfeita; são apenas casos de sem elhança. Logo, são repetições apenas se consideradas, de u m ponto de vista em particular (aquilo que sobre m im tem o efeito de um a repetição poderá não ter o mesmo efeito sobre um a aranha). Mas isso significa que, por motivos lógicos, deve haver sem pre um ponto de vista — um sis­ tem a de expectativas, antecipações, presunções ou interesses — antes que possa existir q u alq u er repetição; o ponto de vista, conseqüentem ente, não pode ser m eram ente resultado da repetição. (Vide tam bém o apêndice* X, (1), em L. Sc. D.). P ara os objetivos de um a teoria psicológica que explique a origem das nossas crenças é preciso, p o rtan to , substituir a idéia ingênua de eventos que são sem elhan­ tes pela idéia de eventos aos quais reagimos interpretando-os como sem elhantes. Mas, se é assim (e não consigo ver nenhum m odo de evitá-lo) então a teoria psi­ cológica da indução proposta por H um e leva a um regresso infinito, precisam ente análogo ao que foi descoberto pelo próprio H um e e usado por ele p ara d erru b ar a12 12 F. Bage, “Zur Entwicklung, etc:”, Zeitschrift f. Hundeforschung, 1933; D Ratz, Animais and Men, cap. VI, nota.

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teoria lógica da indução. N a verdade, que pretendem os explicar? No exemplo dos cachorrinhos, queremos explicar um tipo de com portam ento que pode ser descrito como o reconhecim ento ou a interpretação de um a situação como repetição de outra; claram ente, não podemos esperar explicá-la apelando p ara repetições a n ­ teriores, pois percebemos que tais repetições anteriores devem ter im plicado ta m ­ bém outras repetições, de m odo que o mesmo problem a ressurge sempre: o p ro ­ blem a de reconhecer ou interpretar um a situação como repetição de um a outra. De m odo mais conciso, podemos dizer que vemos a sim ilaridade como o resultado de um a resposta que envolve interpretações (as quais podem não ser adequadas), antecipações e expectativas (que podem nunca se m aterializar). E impossível portanto explicar antecipações ou expectativas como o resultado de m uitas repetições — conform e sugerido por H um e. Com efeito, mesmo a prim eira repetição (como a vemos) precisa estar baseada naquilo que p ara nós é sim ilaridade — e portanto expectativa — precisam ente o tipo de coisa que queríam os explicar. O que dem onstra que a teoria psicológica de H um e nos leva a um a situação de regresso infinito. Penso que H um e nunca aceitou plenam ente sua própria análise. Tendo rejeitado a idéia lógica da indução, ele foi obrigado a en frentar o seguinte p ro ­ blem a: como podemos efetivam ente alcançar o conhecim ento de que dispomos, como um fato psicológico, se a indução é um procedim ento logicam ente inválido e racionalm ente injustificável? H á duas respostas possíveis: 1) chegamos ao conhe­ cim ento por m étodo não indutivo (resposta com patível com um certo racionalismo); 2) chegamos ao conhècim ento pela repetição e a indução — por conseguinte, por m étodo logicam ente inválido e racionalm ente injustificável, pelo que todo o conhecim ento aparente não passa de um a m odalidade de crença, baseada no hábito (resposta que im plicaria a irracionalidade até mesmo do conhecim ento cien­ tífico, levando à conclusão de que o racionalism o é absurdo e deve ser a b an d o ­ nado). Não exam inarei aqui as tentativas im em oriais — que voltaram à m oda — de resolver o problem a afirm ando que em bora a indução seja logicam ente inválida se entendem os por “lógica” a lógica dedutiva, ela possui seus próprios padrões lógicos, o que se pode com provar com o fato de que todos os homens razoáveis a utilizam natu ra lm en te: a grande realização de H um e consistiu justam ente em des­ truir essa identificação errônea da questão factual — quid fa c til — com a questão da validade ou da justificação — quid ju risl (Vide o ponto 13 do apêndice ao presente cap.) Ao que parece, H um e nunca considerou seriam ente a prim eira alternativa. Depois de rejeitar a explicação lógica da indução pela repetição, o filósofo “n e ­ gociou” com o bom senso perm itindo o retornó da idéia de que a indução se baseia na repetição, revestida de explicação psicológica. O que propus foi recusar essa teoria de H um e, explicando a repetição (para nós) como conseqüência da nossa in ­ clinação p ara esperar regularidades, da busca de repetições, em vez de explicar tal inclinação pelas próprias repetições. Fui levado portanto, por considerações puram ente lógicas, a substituir a teoria psicológica da indução pelo ponto de vista seguinte: em vez de esperar pas­ sivamente que as repetições nos im ponham suas regularidades, procuram os de

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m odo ativo im por regularidades ao m undo. T entam os identificar sim ilaridades e interpretá-las em term os de leis que inventam os. Sem nos determ os em premissas, dam os um salto p ara chegar a conclusões — que podemos precisar pôr de lado, caso as observações não as corroborem . T ratava-se de um a teoria baseada em processo de tentativas — de conjec­ turas e. refu ta çõ es. Um processo que perm itia com preender por que nossas tentativas de im p o r interpretações ao m undo vinham , logicam ente, antes da observação de sim ilaridades. Como havia razões lógicas p ara agir assim, pensei que esse proce­ dim ento poderia ser aplicado tam bém ao cam po científico; que as teorias cientí­ ficas não eram um a composição de observações mas sim invenções — conjecturas apresentadas ousadam ente, p ara serem elim inadas no caso de não se ajustarem às observações (as quais raram en te eram acidentais, sendo coligidas, de m odo geral, com o propósito definido de testar um a teoria p rocurando, se possível, refutá-la).

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V A crença de que a ciência avança da observação p ara a teoria é ainda aceita tão firm e e am plam ente que m inha rejeição dessa idéia provoca m uitas vezes reação de incredulidade. Já fui até acusado de ser insincero — de negar aquilo de que ninguém pode razoavelm ente duvidar. N a verdade, porém , a crença de que podemos com eçar exclusivamente com observações, sem qu alq u er teoria, é um absurdo, que poderia ser ilustrado pela es­ tória absurda do hom em que se dedicou d u ran te toda a vida à ciência n atu ral — anotando todas as observações que pôde fazer, legou-as a um a sociedade científica p ara que as usasse como evidência indutiva. Uma anedota que nos deveria m ostrar que podem os colecionar com vautageni insetos, por exemplo, mas não observações.



H á um q u arto de século, procurei cham ar a atenção de um grupo de es­ tudantes de física, em V iena, p ara este ponto, com eçando um a conferência com as seguintes instruções: “T om em lápis e papel; observem cuidadosam ente e anotein o que puderem observar” . Os estudantes quiseram saber, n aturalm ente, o que d e ­ veriam observar: “Observem — isto é um absurdo!”1314 De fato, não é mesmo h a ­ bitual usar dessa form a o verbo “observar” . A observação é sem pre seletiva: exige um objeto, um a tarefa definida, um ponto de vista, um interesse especial, um problem a. P ara descrevê-la é preciso em pregar um a linguagem apropriada, im ­ plicando sim ilaridade e classificação — que, por sua vez, im plicam interesses, p o n ­ tos de vista e problem as.

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suas necessidades, a tarefa e as expectativas do m om ento que fornecem um ponto de vista; no caso do cientista, são seus interesses teóricos, o problem a que está in ­ vestigando, suas conjecturas e antecipações, as teorias que aceita como pano de fundo: seu quadro de referências, seu “horizonte de expectativas” . O problem a “Que vem em prim eiro lugar: a hipótese (H) ou a observação (O)?” pode ser solucionado; como tam bém se pode resolver o problem a “Que vem em prim eiro lugar: a galinha (G) ou o ovo (O)?” (A resposta ad eq u ad a à prim eira pergunta é “Uma hipótese an terio r”; a resposta apro p riad a à segunda é ‘TJm ovo an terior” . É verdade que qualquer hipótese particu lar que adotem os será sem pre precedida de observações — por exemplo, as observações que ela se destina a ex­ plicar. Contudo, essas observações pressupõem a adoção de um quadro de referên­ cias — um a teoria. Se as observações “iniciais” têm algum a significação, se p ro ­ vocaram a necessidade de um a explicação, dando origem assim a um a hipótese, é porque não podiam ser explicadas pelo quadro teórico precedente, o antigo h o ­ rizonte de expectativas. Aqui não corremos o perigo de en contrar um regresso in ­ finito: se recusarmos a teorias e mitos cada vez mais primitivos, chegarem os fin alm ente a expectativas inconscientes e inatas. É claro que a teoria das idéias inatas é absurda; mas todos os organismos têm reações ou respostas inatas — entre elas, respostas adaptadas a acontecim entos im inentes. Podemos descrever essas respostas como “expectativas” sem im plicar que tais “expectativas” sejam im inentes. Assim, o bebê recém -nascido “tem a expec­ tativa” de ser alim entado (bem como — poderíam os dizer tam bém — a expectativa de ser protegido e am ado). T endo em vista a relação estreita entre a expectativa e o conhecim ento, podemos falar mesmo, de m odo m uito razoável, em “conhecim ento in ato ”: um conhecim ento que não é válido “a p rio ri” — um a expectativa inata, por mais forte e específica que seja, pode constituir um equívoco (o bebê recém -nascido pode ser abandonado e m orrer de fome). Nascemos, portanto, com expectativas — com um “conhecim ento” que, em bora não seja válido a p r i o r i é psicológica ou geneticam ente apriorístico — is­ to é, anterior a toda a experiência derivada da observação. Uma das mais im p o r­ tantes dessas expectativas é a de encontrar regularidades — ela está associada à in ­ clinação inata p ara localizar regularidades — ou à necessidade de encontrar re ­ gularidades —, como podemos perceber pelo prazer que a criança sente em satis­ fazer esse impulso. Esta expectativa “instintiva” de encontrar regularidades, que é psicologi­ cam ente a priori, corresponde estreitam ente à “lei da causalidade” que K ant con­ siderava um a parte do nosso equipam ento m ental, válida a priori. Poder-se-ia dizer que K ant deixou de traçar a distinção entre as form as de pensar e de reagir psi­ cologiam ente apriorísticas e , as crenças válidas a p rio n . N ão creio, porém , que seu equívoco tenha sido tão elem entar — de fato, a expectativa de encontrar regula­ ridades é apriorística não só psicologicamente mas tam bém logicam ente; em termos lógicos, é anterior a toda a experiência derivada da observação, precedendo, como vimos, o reconhecim ento das semelhanças; e toda observação envolve o reconhe­ cim ento do que é sem elhante e do que não o é. Mas, a despeito de ser logicam ente apriorística, neste sentido, a expectativa não é válida a prion. Ela pode falhar:

Katz escreveu 14: “Um anim al fam into divide o am biente em objetos comestíveis e não comestíveis. Um anim al que foge enxerga cam inhos p ara a fuga e esconderijos... De m odo geral, os objetos m u d a m ... de acordo com as necessidades do an im al” . Poderíam os acrescentar que só dessa fo rm a — relacionando-se com necessidades e interesses — podem os objetos ser classificados, assemelhados ou diferenciados. A m esm a regra se aplica tam bém aos cientistas. Para o anim al são

13 — Vide a seção 30 de L. Sc. D. 14 — Katz, loc. cit.

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poderíam os facilm ente construir um am biente (que seria letal) de tal form a caó­ tico, em com paração com nosso am biente ordinário, que nos fosse totalm ente im ­ possível enco n trar nele quaisquer regularidades. (Todas as leis naturais poderiam co ntinuar válidas; am bientes desse tipo foram usados p ara experiências com anim ais, conform e indicado na próxim a seção.) Assim, a resposta de K ant a H um e estava quase certa: a distinção entre um a expectativa válida a priori e um a outra genética e logicam ente anterior à obser­ vação, sem ser contudo válida a priori, é de fato bastante sutil. K ant, porém , foi m uito longe na sua dem onstração. P rocurando dem onstrar como o conhecim ento é possível, propôs um a teoria que tinha a conseqüência inevitável de condenar ao êxito nossa busca de conhecim ento — o que é evidentem ente um erro. K ant tinha razão ao dizer que “nosso intelecto não deriva suas leis da natureza, mas impõe suas leis à n a tu reza” . Ao im aginar porém que essas leis fossem necessariam ente ver­ dadeiras ou que necessariam ente teríam os êxito em impô-las à natureza, ele se enganou. 15 M uitas vezes a natureza resiste com êxito, forçando-nos a rejeitar nos­ sas leis — o que não nos im pede de ten tar outras vezes. Para sum arizar esta crítica lógica da psicologia da indução de H um e p o ­ demos considerar a idéia de construir um a m áquina de indução. Posta num universo sim plificado essa m áquina poderia, pela repetição, “ap ren d er” as leis vigentes nesse m undo — ou mesmo “form ulá-las” . Se é possível construir tal m á ­ quina (não tenho dúvida de que isso é possível) pode-se argüir que m inha teoria es­ tá equivocada — de fato, se um a m áquina pode praticar a indução na base da repetição, não há razão lógica p ara que não possamos fazer o mesmo. O argum ento parece convincente, mas é falso. Ao construir um a m áquina de indução precisarem os, como seu arquiteto, decidir a priori em que consiste seu “universo” — que coisas devem ser consideradas “sem elhantes” ou “iguais” ; que m odalidade de “leis” desejamos que a m áquina “descubra”. Em outras palavras, precisamos incorporar à m áquina um quadro de referências que determ ine o que é relevante e interessante no seu “m u n d o ” — a m áquina funcionará então na hase de princípios seletivos “inatos” . Os problem as da sim ilaridade serão solucionados para a m áq u in a pelos seus fabricantes, que lhe d arão um a “in terp retação ” do m undo. VI Nossa inclinação p ara procurar regularidades e para im por leis à natureza leva ao fenôm eno psicológico do pensamento^ dogmático ou, de m odo geral, do com portam ento dogm ático: esperamos encontrar regularidades em toda parte e tentam os descobri-las mesmo onde elas não existem; os eventos que resistem a essas tentativas são considerados como “ruídos de fu n d o ” ; somos fiéis a nossas expec­ tativas mesmo quando elas são inadequadas — e deveríamos reconhecer a derrota. * ™ "V Kant acreditava que a dinâmica de Newton fosse válida a priori. (Vide seu livro Fundamentos Metafísicos da Ciêncm Natural, publicado entre a primeira e a segunda edições da Crítica da Razão ura.) Contudo, se podemos explicar a valida de da teoria de Newton, como pensava, pelo fato de que nosso intelecto impõe suas leis à natureza, o que se segue, na minha opinião, é que esse esforço do intelecto tera exito necessariamente — o que torna difícil entender por que motivo o conhecimento a priori corno o de Newton, é tão difícil de alcançar. No cap. 2, especialmente na seção X, e também nos caps. 7 e 8 deste livro o leitor encontrará uma exposição mais ampla desta crítica.

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Esse dogm atism o é, em certa m edida, necessário: corresponde a um a exigência de situação que só pode ser tra ta d a pela aplicação das nossas conjecturas ao universo; além disso, ele nos perm ite ab o rd ar um a boa teoria em estágios, por aproximações — se aceitam os a derrota com m u ita facilidade podem os deixar de descobrir que estivemos m uito perto do cam inho certo. Está claro que essa atitude dogm ática que nos leva a g u ard ar fidelidade às prim eiras impressões indica um a crença vigorosa; por outro lado, um a atitude crítica, com a disponibilidade p ara alterar padrões, adm itindo dúvidas e exigindo testes, indica um a crença mais fraca. O ra, de acordo com o pensam ento de H um e e com a concepção popular, a força de um a crença resulta da repetição, devendo portanto crescer com a experiência, apresentando-se sem pre m aior nas pessoas menos prim itivas. Mas o pensam ento dogm ático, o desejo incontrolado de im por regularidades e o prazer m anifesto com ritos e a repetição per se caracterizam os primitivos e as crianças; a grande experiência e m atu rid ad e criam algum as vezes um a atitude de cautela e de crítica, em vez do dogm atism o. M encionaria aqui um ponto de concordância com a psicanálise. Esta afirm a que os neuróticos interpretam o m undo de acordo com um m odelo pessoal fixo, que não é facilm ente abandonado, e cujas raízes podem rem ontar às prim eiras fases da infância. Um m odelo ou esquem a adotado m uito cedo se m antém e «erve como padrão interpretativo p ara toda experiência nova, verificando-a, por assim dizer, e contribuindo p ara enrijecê-la. Esta é um a desçrição do que cham ei de “atitude dogm ática” , por com paração com a atitude crítica que tem em com um com ela a facilidade da adoção dç um; sistema de expectativas — um m ito, talvez; hipótese ou conjectura —, mas que estará sem pre p ro n ta a m odificá-lo, a corrigi-lo e até mesmo a abandoná-lo. Estou inclinado a achar que a m aioria das neuroses pòdem ser devidas ao não desenvolvimento da atitude crítica — a um dogm atism o enrijecido (e não natural); à resistência às exigências de adaptação de certas in te r­ pretações e respostas esquem áticas. Resistência que em si pode ser explicada, em alguns casos, por um a injúria ou um choque que provocou m edo e o aum ento da necessidade de segurança, analogam ente ao que acontece quando ferimos um m em bro, que depois temos m edo de usar — o que o enrijece. (Pode-se até mesmo argum entar que o caso do m em bro é não só analógico à resposta dogm ática mas um exemplo desse tipo de resposta.) Em qualquer caso concreto, a explicação precisará levar em conta o peso das dificuldades envolvidas nos ajustam entos neces­ sários — dificuldades que podem ser consideráveis, especialm ente num m undo complexo e cam biante: experiências feitas com anim ais nos ensinam que variando as dificuldades impostas, podemos provocar vários graus de com portam ento neurótico. Identifiquei muitos outros vínculos entre a psicologia do conhecim ento e campos psicológicos afastados (na concepção geral): por exem plo, a arte e a música. Na verdade, m inhas idéias sobre a indução tiveram origem num a conjec­ tu ra a respeito da evolução da polifonia ocidental. Mas essa é um a outra estória, de que vou poupá-los. VII M inha crítica lógica da teoria psicológica e as considerações correspondentes (a m aior parte das quais datam de 1926/27, quando preparei um a tese intitulada

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“O H ábito e as Crenças nas Leis” 1617) podem parecer um tanto afastadas do cam po da filosofia da ciência. Mas a distinção entre o pensam ento crítico e o dogm ático nos traz de volta ao problem a central. Com efeito, a atitude dogm ática está cla­ ram ente relacionada com a tendência p ara verificar nossas leis e esquemas, buscan­ do aplicá-los e confirm á-los sem pre, a ponto de afastar as refutações, enquanto a atitude crítica é feita de disposição p ara modificá-los — a inclinação no sentido de testá-los, refutando-os se isso for possível. O que sugere a identificação da atitude crítica com a atitude científica e a atitude dogm ática com a que descrevi q u ali­ ficando-a de pseudocientífica. Acho tam bém que geneticam ente a atitude pseudocientífica é mais p ri­ mitiva do que a científica, e anterior a ela: é um a atitude pré-científica. Esse caráter prim itivo e essa precedência têm tam bém seu aspecto lógico. Com efeito, a atitude crítica não se opõe propriam ente à atitude dogm ática; sobrepõe-se a ela: a crítica deve dirigir-se contra as crenças prevalecentes, que exercem grande influên­ cia e que necessitam um a revisão crítica — em outras palavras, ela se dirige contra as crenças dogm áticas. A atitude crítica requer — como “m atéria-p rim a”, por as­ sim dizer — teorias ou crenças aceitas mais ou menos dogm aticam ente. A ciência com eça, portanto, com os mitos e a crítica dos mitos; não se origina num a coleção de observações ou na invenção de experim entos, mas sim na discussão crítica dos m itos, das técnicas e práticas m ágicas. A tradição científica se distingue da tradição pré-científica por apresentar dois estratos; como esta últim a, ela lega suas teorias, mas lega tam bém com elas, um a atitude crítica com relação a essas teorias. As teorias são transferidas não como dogmas mas acom panhadas por um desafio p ara que sejam discutidas e se possível aperfeiçoadas. Essa tradição é helénica e rem onta a Tales, fun d ad o r da prim eira escola (digo, deliberadam ente, da prim eira escola, e não da prim eira escola filosófica) a não se preocupar fu n ­ dam entalm ente com a preservação de um d o g m a .^ A atitude crítica, tradição de livre debate sobre as teorias p ara identificar seus pontos fracos e aperfeiçoá-las, é um a atitude razoável e racional. Em prega ex­ tensam ente a observação e os argum entos verbais — mas a prim eira é função dos segundos. A descoberta do m étodo crítico pelos gregos provocou, inicialm ente, a esperança enganosa de que ele levaria à solução de todos os grandes problem as do passado; de que estabeleceria o conhecim ento certo; de que ajudaria a. provar nos­ sas teorias, a justificá-las. Essa esperança não passava de um resíduo da m en tali­ dade dogm ática: na verdade, nada pode ser justificado ou provado (fora do cam po da m atem ática e da lógica). A exigência de provas racionais p ara o conhecim ento científico revela u m a falha na separação que seria preciso m an ter entre a am pla região da racionalidade e o cam po estreito da certeza racional; é um a exigência irrazoável, que não pode ser atendida. No en tan to , o argum ento lógico, o raciocínio lógico dedutivo, continua a exercer um a função de grande im portância na abordagem crítica; não porque nos perm ite provar nossas teorias ou inferi-las de afirm ativas derivadas da observação, 16 — Tese não publicada, submetida ao Instituto de Educação de Viena, em 1927, sob o título “Ge­ wohnheit und Gesetzerlebnis' . 17 — Nos caps. 4 e 5 deste livro o leitor encontrará comentários adicionais sobre o tema.

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mas porque é impossível descobrir as implicações dessas teorias (para poder criticálas efetivam ente) em pregando exclusivamente o raciocínio dedutivo. Como disse, a crítica é um a tentativa de identificar os pontos fracos das teorias — pontos que, de modo geral, só vamos encontrar nas suas conseqüências lógicas mais rem otas. É aí que o raciocínio puram ente lógico desem penha um papel im portante. H um e tinha razão ao acentuar o fato de que nossas teorias não podem ser inferidas validam ente do que podemos conhecer como verdadeiro — nem de obser­ vações nem de qualquer outra coisa. Sua conclusão era a de que nossa crença nes­ sas teorias é irracional. Se “crença” significa neste caso a incapacidade de pôr em dúvida as leis naturais e a constância das regularidades que a natureza nos oferece, H um e estava certo: esse tipo de fé dogm ática tem um a base “fisiológica”, por assim dizer, e não racional. Contudo, se o term o “crença” é em pregado p ara denotar nossa aceitação crítica das teorias científicas — um a aceitação tentativa, com bi­ nada com um a disposição p ara rever a teoria se conseguirmos refutá-la experim en­ talm ente —, H um e não tinha razão neste ponto. Com efeito, não há n ad a de ir ­ racional na aceitação de um a teoria, como nada há de irracional na admissão de teorias bem testadas, para fins práticos — nenhum outro tipo de com portam ento é mais facionai. Vamos adm itir que aceitam os deliberadam ente a tarefa de viver neste m u n ­ do desconhecido, ajustando-nos a ele tanto quanto possível, aproveitando as op o r­ tunidades que nos oferece; e que queremos explicá-lo, se possível (não será preciso presum ir esta possibilidade) e na m edida da nossa possibilidade, com a ajuda de leis e de teorias explicativas. Se essa é nossa tarefa, o procedim ento mais racional é o m étodo das tentativas — da conjectura e da refutação. Precisamos propor teo­ rias, ousadam ente; tentar refutá-las; aceitá-las tentativam ente, se fracassarm os. Deste ponto de vista, todas as leis e teorias são essencialm ente tentativas, conjecturais, hipotéticas — mesmo quando não é mais possível duvidar delas. Antes de refutar um a teoria não temos condição de saber em que sentido ela precisa ser m odificada. A afirm ativa de que o sol continuará a se levantar e a se pôr um a vez cada vinte e quatro horas é, proverbialm ente, um conhecim ento “estabelecido pela indução, além de qualquer dúvida razoável”. E curioso n o tar que ainda hoje usamos esse exemplo, que serviu tam bém nos dias de Aristóteles e de Pítias de Massália — o grande viajante que ganhou reputação de m entiroso devido à sua des­ crição de Tule, com o m ar gelado e o “sol da m eia-noite” . O m étodo das tentativas não se identifica sim plesm ente com o método crítico ou científico — o processo de conjecturas e refutações. O prim eiro é e m ­ pregado não só por Einstein mas — de form a m ais dogm ática — pela am eba; a diferença reside não tanto nas tentativas mas na atitude crítica e construtiva as­ sum ida com relação aos erros. Erros que o cientista procura elim inar, consciente e cuidadosam ente, na tentativa de refutar suas teorias com argum entos penetrantes — inclusive o apelo aos testes experim entais mais severos que suas teorias e engenho lhe perm item prep arar. A atitude crítica pode ser descrita como um a tentativa consciente de su b ­ m eter nossas teorias e conjecturas, em nosso lugar, à “luta pela sobrevivência”, em que os mais aptos triunfam . Ela nos dá a possibilidade de sobreviver à elim inação de um a hipótese inadequada — quando um a atitude mais dogm ática levaria à nos-

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sa elim inação. (H á um a estória tocante a respeito de com unidade indiana que desapareceu por causa da sua crença na santidade da vida — inclusive a vida dos tigres.)

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m em bros de ligas contra a vacinação e seguidores da astrologia. É inútil discutir com eles: não posso obrigá-los a aceitar os mesmos critérios de indução válida nos quais acredito — o código científico” . Essa passagem deixa bem claro que a “mdução válida” é usada aq u i como critério de demarcação separando a ciência da pseudo ciência.

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E óbvio, porém , que a regra da “indução válida” não chega a ser metafísica: ela simplesmente não existe. N ão há regra que possa g aran tir um a generalização inferida de observações verdadeiras, por m aior que seja sua regularidade. (O próprio Born não acredita na verdade da física new toniana, a despeito do seu êxito, em bora acredite que ela se baseia na indução.) Por outro lado, o êxito da ciência não se fundam enta em regras indutivas mas depende da sorte, do engenho dos cientistas e das regras puram ente dedutivas do raciocínio crítico.

Adotam os assim a teoria mais apta a nosso alcance, elim inando as que são menos aptas. (Por “a p tid ão ” não qupro dizer apenas “utilid ad e” , mas tam bém ver­ dade; vide os caps. 3 e 10 deste livro.) N a m inha opinião, este procedim ento nada tem de irracional, nem precisa de m aior justificação racional. V III Voltemo-nos agora da crítica lógica da psicologia da experiência p ara nosso problem a real: o problem a da lógica da ciência. E m bora algum as das coisas que com entei aqui possam ajudar-nos, na m edida em que elim inaram certos precon­ ceitos em favor da indução, o tratam ento a que me proponho do problem a lógico da indução independe totalm ente da crítica que fizemos, e de todas as conside­ rações psicológicas expostas. Desde que o leitor não aceite dogm aticam ente o alegado fato psicológico de que fazemos induções, poderá esquecer tudo o que dis­ se, com a exceção de dois pontos de lógica: m inhas observações sobre a testabilidade ou refutabilidade como critério de dem arcação e a crítica lógica feita por H um e à indução. Do que disse aqui é óbvio que havia um a estreita ligação entre os dois problem as que me interessavam então: a dem arcação e a indução — ou o m étodo científico. Era fácil entender que o m étodo da ciência é a crítica, isto é, as te n ­ tativas de refutação. C ontudo, levei alguns anos p ara perceber que os dois p ro ­ blem as (o da dem arcação e o da indução) num certo sentido eram um só.

Poderia, portanto, sintetizar da seguinte form a algum as das m inhas con­ clusões:

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18 — Oxford, 1949, pãg. 7.

1) A indução — isto é, a inferência baseada em grande núm ero de observações — é um m ito: não é um fato psicológico, um fato da vida corrente ou um procedim ento científico.

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2) O m étodo real da ciência em prega conjecturas e salta p ara conclusões genéricas, às vezes depois de um a única observação (conform e o dem onstram H um e e Born).

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3) A observação e a experim entação repetidas funcionam na ciência como testes de nossas conjecturas ou hipóteses — isto é, como tentativas de refutação. 4) A crença errônea na indução é fortalecida pela necessidade de termos um critério de dem arcação que — conform e aceito tradicionalm ente, e equivo­ cadam ente — só o m étodo indutivo poderia fornecer.

P erg u n tav a-me por que tantos cientistas acreditam na indução; descobri que isso se devia ao fato de acreditarem que a ciência n atu ral se caracteriza pela indução: um m étodo que tem início em longas seqüências de observações e ex­ periências e nelas se baseia. A creditavam que a diferença entre a ciência genuína e a especulação m etafísica ou pseudocientífica dependia exclusivamente do em prego do m étodo indutivo. Pensavam, portanto (para usar m inha própria term inologia) que só o m étodo indutivo fornecia um critério de demarcação satisfatório. Encontrei recentem ente um a interessante form ulação dessa crença num notável livro de filosofia, escrito por um grande físico — N atural Philosophy o f Cause and C hance, de Max B o rn .18 Escreve o autor: “A indução nos perm ite generalizar um certo núm ero de observações, sob a form a de regra geral: a de que a noite segue o dia, por exem plo... Mas, em bora na vida quotidiana não tenham os um critério definido de validade p ara a indução, ... a ciência desenvolveu um código ou norm a p ara sua aplicação” . Born não revela o conteúdo desse código da indução mas salienta que “não há um argum ento lógico” que apoie sua aceitação; trata-se de “um a questão de fé” , pelo que o autor se inclina a qualificar a indução de “princípio m etafísico” . Por que razão a crença de que deve existir um código de regras indutivas válidas? A resposta fica clara quando o autor se refere ao “grande núm ero de pessoas que ignoram ou rejeitam a regra da ciência, entre as quais os

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5) A concepção de tal m étodo indutivo, como critério de verificabilidade, im plica um a dem arcação defeituosa.

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6) Se afirm arm os que a indução nos leva a teorias prováveis (e não certas) nada do que precede se altera fundam entalm ente. (Vide em especial o cap. 10 deste livro.)

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Se é verdade, como sugeri, que o problem a da indução é apenas um exempio ou um a faceta do problem a da dem arcação, a solução dad a a este últim o deverá solucionar tam bém o prim eiro. É esta a m inha opinião, em bora a conclusão possa não parecer im ediatam ente óbvia.

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Para um enunciado sucinto do problem a da indução podemos reto rn ar a Born, que escreve: “... não há observação ou experim entação, por mais extensas, que possam proporcionar a não ser um núm ero finito de repetições”. P ortanto, “a proposição de um a lei — B depende de A — transcende sem pre a experiência.

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C ontudo, fazemos todo o tem po esse tipo de afirm ativa, baseando-nos às vezes em fun dam entação m uito lim itad a” . 19 Em outras palavras, o problem a lógico da indução se origina (a) na des­ coberta de H um e (tão bem expressa por Born) de que é impossível justificar um a lei pela observação ou por meio de experiências, um a vez que ela “transcende sem ­ pre a experiência” ; (b) no fato de que a ciência enuncia e usa leis todo o tem po. (Como H um e, Born se im pressiona com a “fundam entação lim itad a” em que se pode basear um a lei — isto é, o pequeno núm ero de observações.) A crescenta­ ríamos tam bém o princípio do em pirism o, (c) o fato de que na ciência só a obser­ vação e a experiência podem decidir a respeito da aceitação ou rejeição das afir­ mativas, inclusive das leis e teorias.

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X Assim se soluciona o problem a da indução. C ontudo, n ad a parece menos necessário do que um a solução tão simples p ara problem a filosófico tão antigo. W ittgenstein e seus discípulos sustentavam que não existem problem as filosóficos genuínos;21* de onde se conclui que eles não podem ser solucionados. N a m inha geração há outras pessoas que acreditam na existência de tais problem as e se aproxim am deles com respeito; às vezes porém parecem respeitá-los demais, acreditando talvez que sejam insolúveis ou que constituem um tab u . Essas pessoas ficam chocadas e horrorizadas diante da alegação de que pode haver um a solução simples, clara e lúcida para qualquer um desses problem as. Se algum a solução é possível, ela deve ser profunda — ou, pelo menos, com plicada.

Esses três princípios parecem à prim eira vista contradizer-se — nisso consiste o problem a lógico da indução.

De qualquer m odo, estou ainda à espera de um a crítica simples, lúcida e clara à solução que propus pela prim eira vez em 1933, na carta ao editor de Erkenntnis 22, reproduzida mais tarde em The Logic o f Scientific Discovery. i

D iante dessa contradição, Born abandona o princípio do em pirism o (da m esm a form a como K ant e m uitos outros antes dele, inclusive B ertrand Russel) em favor do que denom ina de “princípio m etafísico” — um princípio metafísico que não chega sequer a form ular, descrevendo-o vagam ente como um “código”, ou “reg ra” . Incidentalm ente, jam ais encontrei q ualquer enunciado desse princípio que parecesse promissor e respeitável.

Como é n atu ral, é possível inventar novos problem as relacionados com a in ­ dução, diferentes dos que form ulei e solucionei (sua form ulação representou já um bom passo p ara a solução). Mas ainda não encontrei qualquer reform ulação do problem a que não possa ser solucionada facilm ente a p a rtir da velha solução que propus. Vamos exam inar aqui algum as dessas reform ulações.

Mas na verdade os princípios (a) a (c) não se chocam . E o que podemos p e r­ ceber quando entendem os que a aceitação de um a lei ou teoria pela ciência é apenas ten ta tiva; isso quer dizer que todas as leis e teorias são simples conjecturas, ou hipóteses (posição que cham o às vezes de “hipotetism o”); podemos rejeitar q u a l­ quer lei ou teoria com base em novas evidências, sem que isso im plique o descarte da antiga evidência que nos levou originalm ente a a c e itá-la.20 O princípio do em pirism o (c) pode ser preservado de form a integral, pois o destino de um a teoria — sua aceitação ou rejeição — é decidido pela observação e pela experim entação: pelo resultado de testes. E nquanto um a teoria resiste aos tes­ tes mais rigorosos que podemos conceber, ela é aceita; quando isso deixa de acon­ tecer, ela é rejeitada. Mas a verdade é que as teorias nunca são inferidas d ire ta ­ m ente da evidência em pírica. N ão há nem um a indução psicológica nem um a in ­ dução lógica. Só a falsidade de um a teoria pode ser inferida da evidência em pírica, inferência que é puram ente dedutiva. H um e dem onstrou que não é possível inferir um a teoria de afirm ativas derivadas da observação; mas isso não afeta a possibilidade de refutar um a teoria por meio de afirm ativas desse tipo. É o pleno reconhecim ento dessa possibilidade que torna perfeitam ente clara a relação entre as teorias e as observações. Isso resolve o problem a da alegada contradição entre os princípios (a), (b) e (c); e resolve tam bém o problem a da indução proposto por H um e.

Uma indagação que se pode fazer é a seguinte: como “saltam os” de um a afirm ativa derivada da observação p ara um a teoria? Em bora a pergunta pareça ser mais psicológica do que filosófica, é possível respondê-la de form a até certo ponto positiva sem invocar a psicologia. Podemos dizer, em prim eiro lugar, que o “salto” não se dá a p artir de um a afirm ativa d e ­ rivada da observação, mas de um a situação-problem a; a teoria precisa perm itir a explicação das observações que criaram o problem a (isto é: precisa perm itir sua dedução da teoria, ju n tam en te com outras teorias aceitas e outras afirm ativas derivadas da observação — conjunto a que cham am os de ^‘condições iniciais”). Isso significa que há um núm ero m uito grande de possíveis teorias — “boas” e “m ás” —, o que parece indicar que nossa pergunta não foi ainda respondida. Por outro lado, fica bem claro que, quando propusem os nossa pergunta, tínham os em m ente mais do que chegamos a p erg u n tar (“De que form a saltamos de um a afirm ativa derivada da observação para um a teoria?”). A parentem ente, o que queríam os p erg u n tar era: “Como saltamos de um a afirm ativa derivada da o b ­ servação para um a “òoa” teoria?” A resposta seria: “Saltando prim eiro p ara um a teoria qualquer; depois, testando essa teoria, p ara ver se ela é boa ou m á — isto é, aplicando reiteradam ente o m étodo crítico, de m odo a elim inar m uitas teorias inadequadas e inventando m uitas teorias novas” . N em todos são capazes disso, mas não há outro meio.

19 — Natural Philosophy o f Cause and Chance, pág. 6. 20 — Não duvido de que Born e outros concordassem com a afirmativa de que as teorias só são aceitas tentativamente. Mas a crença difundida na indução demonstra que as implicações mais amplas deste ponto de vista raramente são percebidas.

21 — Wittgenstein ainda pensava assim em 1946. 22 — Vide nota anterior sobre o assunto, neste mesmo cap.

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H á outras perguntas que são tam bém propostas. Já se disse que o problem a original da indução é o da sua justificação — como justificar a evidência indutiva. Se responderm os alegando que a cham ada “inferência indutiva” é sempre inválida — que p o rtan to não pode ser justificada — surge im ediatam ente um novo p ro ­ blem a: como justificar o m étodo das tentativas. A resposta será: esse m étodo eli­ m ina as teorias falsas por meio de afirm ativas derivadas da observação; sua ju s­ tificação é a relação p uram ente lógica da dedutibilidade que nos perm ite afirm ar a falsidade de assertivas universais se aceitam os a verdade de afirm ativas singulares. O u tra p ergunta que tam bém se ouve é a seguinte: por que razão é razoável preferir afirm ativas que não foram refutadas a outras que puderam ser refutadas? Tem havido respostas bastante peculiares a essa pergunta — por exemplo, respostas pragm áticas. Do ponto de vista pragm ático, porém , o problem a não existe, já que as teorias falsas m uitas vezes são eficazes; assim, por exemplo, m uitas das fórm ulas usadas em engenharia e em navegação são reconhecidam ente falsas, mas como oferecem excelentes aproxim ações e são fáceis de usar são em pregadas com toda confiança por pessoas que não ignoram sua falsidade. A única resposta correta, portanto, é a mais direta: porque estamos sem pre buscando a verdade (em bora nunca possamos ter a certeza de havê-la encontrado) e porque a falsidade das teorias refutadas é conhecida ou aceita, enquanto as teorias ainda não refutadas podem ser verdadeiras. Aliás, não é verdade que te ­ nham os preferência por todas as teorias não refutadas — somente por aquelas que, à luz da nossa avaliação crítica, parecem m elhores do que suas concorrentes: as que resolvem nossos problem as, foram bem testadas e a respeito das quais pensamos (m elhor dito: conjecturam os ou esperamos, tendo em vista outras teorias aceitas provisoriam ente) que continuarão resistindo à experim entação. Já se afirm ou tam bém que o problem a da indução é o seguinte: “Por que é razoável acred itar que o futuro repetirá o passado?” Uma resposta satisfatória a essa pergunta deveria deixar claro que essa crença é efetivam ente razoável. Respondo que é sem dúvida razoável acreditar que o futuro diferirá m uito do passado sob vários pontos de vista; por outro lado, é perfeitam ente razoável agir com base na prem issa de que ele repetirá o passado em m uitos aspectos; que as leis que foram bem testadas continuarão em vigor (não temos um a premissa m elhor na qual pudéssemos basear nossa conduta). No entanto, é tam bém razoável adm itir que es­ sa conduta nos criará às vezes problem as sérios, porque algum as das leis nas quais hoje temos confiança podem não merecê-la. (Lembrem-se do “sol da meia-noite”!) Poder-se-ia mesmo dizer que, a julgar pela nossa experiência passada e pelo co­ nhecim ento científico geral de que dispomos, o futuro não será como o passado possivelmente na m aior parte dos aspectos. A água algum as vezes não m atará a sede e o ar sufocará aqueles que o respirarem . Uma solução aparente para esta contradição é afirm ar que o futuro se assem elhará ao passado no sentido de que as leis naturais não se alterarão — mas essa não é um a resposta elucidativa, porque só nos referim os a um a “lei n a tu ra l” quando estamos convencidos de que observamos um a regularidade im utável; se descobrirmos algum a alteração na form a como ela se m anifesta não continuarem os a cham á-la de “lei n a tu ra l” . Como é n atu ral, nossa busca pelas leis n aturais indica que esperamos encontrá-las; acreditam os que elas existem . Mas nossa crença em q ualquer lei n atu ral específica só pode ter como fu n ­ dam ento o fracasso das tentativas críticas feitas para refutá-la.

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Creio que aqueles que form ulam o problem a da indução em termos da razoabilidade das nossas crenças têm toda a razão em não se satisfazerem com um desespero cético da razão, hum eano ou pós-hum eano. Precisamos com efeito re ­ jeitar o ponto de vista de que a crença na ciência é tão irracional quanto a crença nas práticas mágicas prim itivas — que os dois tipos de crença im plicam a mesma aceitação de um a “ideologia to tal” — tradição ou convenção baseada na fé. Mas precisamos ter todo o cuidado se form ulam os nosso problem a, como H um e, em termos da razoabilidade das nossas crenças. N a verdade, deveríamos dividir o problem a em três partes — o conhecido problem a da dem arcação (como distinguir a ciência da m ágica prim itiva); o problem a da racionalidade do procedim ento crítico ou científico (e o papel exercido pela observação); finalm ente, o problem a da racionalidade da nossa aceitação das teorias, p ara fins práticos e científicos. Tivemos a ocasião de propor soluções aqui p a ra esses três problem as. É necessário ter cuidado tam bém p ara não confundir o problem a da r a ­ zoabilidade do procedim ento científico e da aceitação (tentativa) dos resultados desse procedim ento — isto é, das teorias científicas — com o problem a da r a ­ cionalidade ou não da crença na eficácia desse pro ced im en to . N a p rática, na inves­ tigação cientítica, essa crença é inevitável e razoável, já que não existe alternativa m elhor. Ela é injustificável, porém , num sentido teórico, como dem onstrei (na seção V). Além disso, se pudéssemos provar, com base em argum entação lógica de caráter geral, que a busca científica tem grande probabilidade de êxito, não p o ­ deríam os com preender a razão por que o êxito foi sem pre m uito raro, na longa his­ tória dos esforços hum anos dirigidos para o conhecim ento do m undo. O utra m aneira de propor o problem a da indução é fazê-lo em termos probabilísticos. Se T é um a teoria e E a evidência em seu favor, podem os indagar a probabilidade de T , em função de E = P(T, E). H á quem acredite que o problem a da indução pode ser form ulado assim: como arm ar um cálculo de probabilidade que nos perm ita estim ar a probabilidade de qualquer teoria (T), à luz da evidência em pírica disponível (E). Seria possível dem onstrar que P(T ,E ) cresce com a acum ulação da evidência em pírica E, alcançando valores elevados — valores pelo menos maiores do que 1/2. Em The Logic o f Scientific Discovery expliquei por que acredito que essa abordagem seja fundam entalm ente e rrô n e a .23 Para to rn ar isso bem claro, in ­ troduzi um a distinção entre probabilidade e grau de confirm ação (ou corrobúração) — o term o “confirm ação” tem sido de tal form a usado, e abusado, nos ú l­ timos tempos, que decidi abandoná-lo aos verificacionistas, passando a usar ex­ clusivamente a expressão “g ra u .d e corroboração” ; já o term o “probabilidade é m elhor em pregado em alguns dos muitos sentidos que satisfazem o conhecido cál­ culo de probabilidade — axiom atizado, por exem plo, por Kaynes, Jeffreys e por mim mesmo. N aturalm ente, a escolha da term inologia não será decisiva, desde que não se presum a, de form a acrítica, que o “grau de corroboração deve ser ta m ­ bém um a probabilidade — isto é, que precise satisfazer o cálculo de probabilidade. 23

23 — L. Sc. D., cap. X, especialmente seções 80 a 83; e também a seção 34. Vide também minha nota sobre “Um Conjunto de Axiomas Independentes para a Probabilidade”, m Mtnd, N.S. 47, 1938, pág. 275).

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No m eu livro expliquei por que razão nos interessamos por teorias que apresentam um grau de corroboração elevado. Expliquei tam bém por que seria um erro concluir daí que estamos interessados em teorias altam ente prováveis, lem ­ brando que a probabilidade de um a afirm ativa (ou de um conjunto de afirm ativas) é tan to m aior q uanto menos ela inform ar; é o inverso do seu conteúdo ou poder dedutivo — e, por conseguinte, da sua capacidade de explicação. Por isso, toda afirm ativa interessante e poderosa terá necessariam ente um a probabilidade re ­ duzida — e vice-versa. Assim, um a afirm ativa de alta probabilidade terá pouco in ­ teresse científico, porque dirá pouco, terá pouca capacidade de explicação. Em bora procurem os teorias com um grau elevado de corroboração, como cientistas não es­ tamos interessados em teorias de alta probabilidade, mas sim em explicações; isto é: queremos teorias poderosas e improváveis .24 Q ponto de vista oposto — de que a ciência procura a alta probabilidade — é um desenvolvimento característico do verificacionismo: se não podemos verificar um a teoria, ou certificar-nos dela por meio da indução, voltamo-nos p ara a probabilidade como um a espécie de Ersatz, de substituição da certeza, na esperança de que a indução poderá nos dar pelo menos um a certa g aran tia. Exam inei os dois problem as da dem arcação e da indução de form a exten­ siva. C ontudo, como estou procurando relatar o trabalho que realizei neste cam po, terei que acrescentar, num apêndice, algum as palavras sobre outros problem as aos quais me dediquei entre 1934 e 1953. Fui levado à m aior parte desses problem as pela tentativa de exam inar quais seriam as conseqüências das soluções apresentadas aos dois problem as básicos — da dem arcação e da indução. O tem po não me p e r­ m ite continuar a n arrativa, nem contar-lhes como os antigos problem as deram origem a novos problem as. Como não posso sequer d ar início aqui a um exame desses novos problem as, terei que lim itar-m e a fazer um a lista deles, com algumas palavras de explicação. Contudo, mesmo um a lista simples como esta poderá ter sua utilidade, servindo p ara d ar um a idéia da fertilidade do m étodo que em ­ preguei. Ilustrará a aparência que têm nossos problem as e poderá m ostrar quantos problem as existem, convencendo-nos assim de que não é necessário que nos preocupem os em saber se os problem as filosóficos existem realm ente, ou em saber em que consiste a filosofia. Por im plicação, essa lista contém um a desculpa pela m inha falta de disposição para rom per com a antiga tradição que consiste em te n ­ tar resolver os problem as com a ajuda de argum entos racionais, em m inha in ca­ pacidade de p articip ar plenam ente de certos desenvolvimentos, tendências e in ­ clinações da filosofia contem porânea. 24* 24 — Uma definição probabilística (vide nota seguinte) de C (T,E) — isto é, do grau de corroboração (de uma teoria T, relacionada com a evidência E) — que satisfaz as exigências indicadas em L. Sc. D., seções 82 e 83, é a seguinte: C (T,E) = E (T,E) (1 + P (T) P (T,E) onde E (T,E) = (P (E,T) — P(E)) / (P (E,T) T P (E)) mede, de modo não aditivo, b poder explicatório de T com relação a E: Note-se que C(T,E) não é uma probabilidade, pode ter valor entre —1 (refutação de T por E) e C (T,T) 4* + 1. Afirmativas T enunciadas como leis e que não podem ser verificadas não chegam a alcançar C (T, E) = q (T,T), com base na evidência empírica E. C (T,T) é o grau de corroborabilidade de T, igual ao grau de testabüidade, ou ao conteúdo de T. Devido às exigências implicadas pelo ponto (6), no fim da seção I, acima, não creio porém que seja possível for­ malizar completamente a idéia da corroboração (ou, como costumava dizer antes, da confirmação). Acrescentado em 1955: Vide também minha nota “Grau de Confirmação”, no British Journal for the Phtlosophy o f Science, 5, 1954, pág. 143. Consegui simplificar a definição da seguinte forma: C (T,E) = (P (E,T) - P (E) / (P (E,T) - P (E,T) + P (E)) Vide também o B.J.P.S., 6, 1955, pág. 56.

Apêndice ALGUNS PROBLEM AS DA FILOSOFIA DA CIÊN CIA Os prim eiros três itens desta lista de problem as adicionais se relacionam com o cálculo de probabilidade.

(1) Teoria probabilística baseada na frequência. Q uando escrevi The Logic o f Scientific Discovery, estava interessado em desenvolver um a teoria da p ro b a ­ bilidade consistente, como ela é em pregada na ciência: quer dizer, um a teoria probabilística estatística, baseada na freqüência. Mas em preguei tam bém outro conceito, que denom inei “probabilidade lógica” . Senti a necessidade de generalizar — de chegar a um a teoria form al da probabilidade que perm itisse diferentes in ter­ pretações: a) como um a teoria da probabilidade lógica de afirm ativas relacionadas com determ inada evidência, incluindo um a teoria da probabilidade lógica absoluta — isto é, da m edida da probabilidade de um a afirm ativa baseada em evidência zero; b) como um a teoria da probabilidade de eventos de qualquer conjunto de eventos. Para solucionar esse problem a, elaborei um a teoria bastante simples, que perm ite um certo núm ero de interpretações adicionais, podendo ser usada como um cálculo do conteúdo, de sistemas dedutivos ou de classes (de álgebra booleana); ou ainda como cálculo de inclinações (propensities). 25

25 — Vide minha nota em Mind, loc. cit. O sistema axiomático que aparece ali para a probabilidade elementar (não contínua) pode ser simplificado da seguinte forma (“x” denota o complemento de x; “xy” denota a intersecção ou conjunção de x e y): (Al) P (A2) P (A3) P (Bl) P (B2) P

(xy) > P (yx) (x (yz)) > P ((xy) z) (xx) ^ P (x) (x) > p (Xy) (xy) + P (xy)= P (x)

(B3) (x) (Ey) (P (y) # O e P (xy) = P (x) P (y)

comutação associação tautologia monotonia adição multiplicação

(Cl) Se P (y) * O, então P (x,y) = P (xy)/P (y) (C2) Se P (y) O, então P (x,y) = P (x,x) = P (y,y) = definição da probabilidade relativa.

O axioma C2 é válido, nessa forma, só para a teoria finitista; pode ser omitido, desde que estejamos preparados para aceitar uma condição tal como P (y) 4 O na maior parte dos teoremas sobre a pro­ babilidade relativa. Para a probabilidade relativa, A l) — (B2) e (Cl) —(C2) é o suficiente; (B3) não é

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(2) O problem a da interpretação da probabilidade em termos de incli­ nações teve origem no m eu interesse pela teoria quântica. Acredita-se geralm ente que a teoria q u ântica precisa ser in terp retad a estatisticam ente; não há dúvida de que a estatística é um instrum ento essencial p ara os testes em píricos. Neste ponto, porém , considero que os perigos da teoria do significado que se baseia na testa bilidade se tornam bastante claros. Em bora os testes da teoria sejam estatísticos, e em bora a p ró p ria teoria (por exem plo, a equação de Schr^dinger) possa im plicar conseqüências estatísticas, não é necessário dar-lhe um a significação estatística: pode-se ter exemplos de inclinações {propensities) objetivas (semelhantes a forças generalizadas) e de “cam pos de inclinações” {fields o f propensities), mensuráveis por processos estatísticos sem que em si mesmos eles tenham caráter estatístico. (Vide o últim o parág rafo do cap. 3 deste livro). (3) A estatística é em pregada de m odo geral, nesses casos, em testes e m ­ píricos de teorias que, em si mesmas, não precisam ser puram ente estatísticas — o que levanta o problem a da refutabihdade das afirmativas estatísticas, tratad o (mas não de form a com pletam ente satisfatória) na edição de 1934 de The Logic o f Scientific Discovery. Descobri mais tarde, porém , que naquele livro se encontram , prontos p ara ser usados, todos os elementos necessários para elaborar um a solução satisfatória; alguns exemplos que forneci perm item a caracterização m atem ática de um a classe de infinitas seqüências casuais que são, num certo sentido, as sequências mais curtas do seu tipo. 26

necessário. Para a probabilidade absoluta, (Al) —(B3) é necessário e suficiente: sem (B3) não será pos­ sível, por exemplo, derivar a definição do absoluto em termos de probabilidade relativa, P ( x ) = P (x,

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nem seu corolário mais fraco (x) (Ey) (P (y) * O e P (x) = P (x, y» do qual (B3) é. o resultado imediato. Assim,(B3), como todos os outros axiomas, com a possível exceção de (C2), expressa parte do sentido desejado dos conceitos envolvidos, e não devemos considerar 1 P(x) ou 1 P(x, y), que são deriváveis de (Bl), com (B3) ou com (Cl), “convenções não essenciais” (como Carnap e outros já sugeriram). Acrescentado em 1955: Desenvolvi mais tarde um sistema de axiomas para a probabilidade relativa que pode ser aplicado a sistemas finitos ou infinitos (no qual a probabilidade ab­ soluta pode ser definida como na penúltima fórmula acima). Os axiomas são: (Bl) P (x,z) > P (xy,z) (B2) Se P (y,y) ^ P (u,y), então P (x,y) + P(x,x) = P (y,y) (B3) P (xy,z) = P (x,yz) P (y,z) (Cl) P (x,x) - P (y,y) (Dl) Se ((u) P (x,u) = P (y,u), então P (w,x) = P (w,y) (El) (Ex) (Ey) (Eu) (Ew) P (x,y) = P (u,w)

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(4) H á um certo núm ero de problem as adicionais relacionados com a in te r­ pretação do form alism o de um a teoria quântica. N um dos capítulos de The Logic o f Scientific Discovery critiquei a interpretação “oficial” — e ainda estou conven­ cido de que m inha crítica é válida, exceto num ponto: um exem plo que usei, e r­ radam ente (na seção 77). Mas, desde que escrevi aquele texto, Einstein, Podolski e Rosen publicaram um experim ento m ental que pode substituir m eu exemplo — em bora a tendência desses autores (determ inista) seja bem diferente da m inha. A m eu ver, a crença de Einstein no determ inism o (que tive a oportunidade de debater com ele) não tem fundam ento e é infeliz: enfraquece sua crítica que, deve-se e n ­ fatizar, é bastante independente do seu determ inism o. (5) Q uanto ao problem a do determ inism o propriam ente dito, tenho p ro ­ curado dem onstrar que mesmo a física clássica, que é determ inista num certo sen­ tido prim a facie, pode ser interp retad a erroneam ente se usada p ara sustentar um a visão determ inista do m undo físico, no sentido de Laplace. (6) Sob esse aspecto, posso m encionar tam bém o problem a da sim plicidade — a sim plicidade de um a teoria, que procuro relacionar com seu conteúdo. Podese m ostrar que a sim plicidade de um a teoria, como é habitualm ente cham ada, está associada à im probabilidade lógica e não à probabilidade, como m uitas vezes se tem suposto. Isso, de fato, nos perm ite deduzir, a p a rtir da teoria da ciência es­ boçada acim a, a razão pela qual é sempre vantajoso testar as teorias mais simples em prim eiro lugar. Elas são as que m elhor se subm etem a testes severos: um a teoria simples tem sempre m aior grau de testabilidade do que um a m ais com plicada. 27 (Creio, contudo, que isso não resolve todos os problem as a respeito da sim plicidade. Vide tam bém o cap. 10, seção xviii.) (7) O problem a do caráter ad hoc de um a hipótese, e dos graus que esse caráter pode assumir, está intim am ente ligado ao problem a m encionado acim a. Pode-se m ostrar que a m etodologia da ciência (assim como sua história) se torna inteligível num m aior nível de detalham ento se presum irm os que o objetivo da ciência é obter teorias explicativas de caráter ad hoc o menos acentuado possível: ao contrário da Teoria “m á ”, a “b o a ” teoria não tem caráter ad hoc. Por outro lado, pode-se m ostrar que as teorias probabilísticas d a indução im plicam inadver­ tidam ente (porém necessariam ente) um a regra inaceitável: usa-se sempre a teoria de caráter ad hoc m ais acentuado, isto é, a que transcende o menos possível a evidência disponível. (Vide tam bém m eu trabalho. “The A im o f Science”, m e n ­ cionado em nota, mais adiante.) (8) Um problem a im portante é o dos estratos de hipóteses explicativas e das relações entre eles, que encontram os nas ciências de m aior desenvolvimento teórico. Afirma-se com freqüência que a teoria de Newton pode ser induzida ou mesmo deduzida das leis de Kepler e Galileu. Pode-se dem onstrar porém que a teoria de Newton (inclusive a teoria do espaço absoluto) contradiz, em term os estritos, a de Kepler (mesmo se nos restringirm os ao problem a dos dois co rp o s,28 ignorando a

Esse sistema é um pouco melhor do que o publicado em B. J. P. S., 6, 1955, pág. 56. O “postulado 3” é chamado aqui “D l”. Acrescentado em 1961: Um tratamento bastante completo de todas estas questões poderá ser encontrado nos novos apêndices de L. Sc. D. 26 — Vide L. Sc. D., pág. 163 (seção 55) e especialmente o nóvo apêndice x vt.

27 — Ibid., seções 41 a 46. Vide também cap. 10, seção xviii. 28 — As contradições mencionadas foram observadas, no caso do problema de vários corpos, por P. Duhem, The Aim and Structure o f Physical Theory (1905; traduzido para o inglês por P.P. Wiener,

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atração m ú tu a entre os planetas) e a de Galileu, em bora, obviam ente, aproxi­ mações dessas d u as teorias possam ser deduzidas da de Newton. Mas é evidente que, p artin d o de premissas consistentes, um a inferência dedutiva ou indutiva não pode levar a conclusão que contradiga essas teorias. Essas considerações nos p e r­ m item analisar as relações lógicas entre estratos de teorias, assim como a idéia de aproxim ação em seus dois sentidos: (a) a teoria x é um a “aproxim ação” da teoria y; e (b) a teoria x é um a “boa aproxim ação dos fatos”. (Vide tam bém o cap. 10.)

(9) A d o u trin a do operacionalismo, ou seja, de que os conceitos teóricos devem ser definidos em term os de m edição de operações, suscita um a série de problem as interessantes. C ontra essa d o u trin a, pode-se m ostrar que a m edição pressupõe a existência de teorias. N ão há m edição sem teoria, e nenhum a operação pode ser satisfatoriam ente descrita em term os não teóricos. As tentativas de fazer isso são sem pre circulares; por exem plo: p a ra descrever a m edição do com prim en­ to, precisa-se de u m a teoria (rudim entar) do calor e da m edição da tem peratura; esta, no en ta n to im plica o uso de m edidas de com prim ento. A análise do operacionalismo revela a necessidade de um a teoria geral de medição; um a teoria que não considere ingenuam ente a prática da m edição como “d a d a ” , m as que analise sua função nos testes de hipóteses científicas. Isso pode ser realizado com a ajuda da doutrin a dos graus de testabilidade. A d o u trin a do behaviorismo, isto é, de que as teorias devem ser form uladas em term os de com portam entos prováveis, um a vez que todas as afirm ativas resul­ tantes de testes descrevem com portam entos, está intim am ente ligada ao o p era­ cionalism o, colocando-se em paralelo com ele. Mas essa inferência é tão pouco válida q uanto a d a d o u trin a fenom enológica que afirm a que as teorias devem ser form uladas em term os de observações prováveis, um a vez que todas as afirm ativas resultantes de testes são obtidas m ediante a observação. Essas doutrinas são sem pre form as da teoria do sentido baseada na verificabilidade, isto é, do indútivism o. O instrum entalism o, d o u trin a que in terp reta as teorias científicas como ins­ trum entos práticos destinados a finalidades tais como a previsão de acontecim entos im inentes, está tam bém relacionada intim am ente com o operacionalism o. É inegável que as teorias podem ser usadas desse m odo; o instrum entalism o, contudo, afirm a que elas são m elhor com preendidas como instrum entos; tenho procurado dem onstrar que essa visão é errônea com parando as diversas funções das fórm ulas da ciência p u ra e aplicada. Nesse contexto, pode-se igualm ente resolver o problem a da função teórica, isto é, não prática, das previsões. (Vide o cap. 3, seção 5.)

1954). No caso do problema de dois corpos, as contradições surgem em relação à terceira lei de Kepler, que pode ser reformulada da seguinte forma: “Considere-se um conjunto qualquer S de dois corpos, de maneira que um dos corpos possua massa igual à do nosso Sol; então, a ^/T ^ = constante, para qual­ quer conjunto S.” Essa teoria contradiz nitidamente a de Newton, que dá, para unidades adequada­ mente definidas, /T% = mQ + m j (onde m0 = massa do Sol = constante, e n q = massa do segun­ do corpo, que varia segundo o corpo que o problema considere). “aV T ^ = constante”, contudo, é uma aproximação excelente, desde que a massa variável do segundo corpo seja sempre desprezível em com­ paração com a do nosso Sol. (Vide também meu trabalho “The Aim of Science ”, Ratio, 1, 1957, págs. 24 e seguintes; a seção 15 do pós- escrito ao meu livro Logic o f Scientific Discovery.)

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É interessante analisar, do mesmo ponto de vista, a função da língua como instrum ento. Ao em preender essa análise, descobrimos im ediatam ente que usamos a linguagem descritiva para fa la r sobre o m undo, o que fornece novos argum entos em favor do realismo. Acredito que o operacionalism o e o instrum entalism o devem ser substituídos pelo “teoricism o” , se assim o posso cham ar: o reconhecim ento de que operamos sempre dentro de um a com plexa estrutura de teorias; que nosso objetivo não é sim ­ plesm ente encontrar correlações, m as sim explicações. (10) O próprio problem a da explicação. Tem -se afirm ado com freqüência que a explicação científica é a redução do desconhecido p ara o que passamos a conhecer. Se nos referimos à ciência p ura, nenhum a afirm ação poderia estar mais longe da verdade. Pode-se afirm ar, sem paradoxo, que, ao contrário, a explicação científica é a redução do conhecido p ara o desconhecido. N a ciência p u ra, em oposição a um a ciência aplicada que a considere como “d a d a ” ou “conhecida”, a explicação é sem pre a redução de certas hipóteses a outras de m aior grau de universalidade; de fatos ou teorias “conhecidos” a suposições que ainda conhecemos m uito pouco, e que precisam ser testadas. Neste contexto, são exemplos de grande interesse a análise do grau de capacidade explicativa e da relação entre a expli­ cação genuína e fraudulenta, assim como entre a explicação e a previsão. (11) Isso me leva ao problem a da relação entre explicação nas ciências naturais e explicação histórica (que, de m aneira estranha, é logicam ente um tanto análogo ao problem a da explicação na ciência pu ra e aplicada); e ao vasto núm ero de problem as no cam po da m etodologia das ciências sociais, especialm ente os da predição histórica, historicismo e determ inism o histórico, e relativismo histórico. Eles estão, por sua vez, ligados aos problem as de ordem mais genérica do d e te r­ minismo e do relativismo, inclusive os problem as de relativismo lingüístico. 29 (12) Um outro problem a é a análise do que é conhecido como “objetividade científica”. T enho tratad o desse problem a em diversas oportunidades especialm en­ te em relação à crítica da “sociologia do conhecim ento”, como é c h a m a d a .2930 (13) Uma m odalidade p articular de solução p ara o problem a da indução deve ser novam ente m encionada, (vide seção iv, acim a), pois m erece um a adver­ tência. (Soluções deste tipo são apresentadas, via de regra, sem um a form ulação clara do problem a que se propõem a resolver.) A visão a que me refiro pode ser descrita assim: prim eiram ente, pressupõe-se que ninguém duvida seriam ente de que somos capazes, de fa to , de induções bem sucedidas. (M inha sugestão de que is­ so é um m ito, e de que os casos aparentes de indução, quando analisados com cuidado, revelam-se como aplicações do m étodo das tentativas é tra ta d a com o des­ prezo que recebem as sugestões com pletam ente irrazoáveis.) Afirma-se, então, que o papel de um a teoria da indução é descrever e classificar nossos planos de ação ou

29 — Vide meu livro Poverty o f Historicism, 1957, seção 28 e notas 30 a 32; e o apêndice ao segundo volume de Open Society (adicionado à quarta edição, de 1962). 30 — Poverty o f Historicism, seção 32; L. Sc. D., seção 8; Open Society, cap. 23 e apêndice ao segundo volume (quarta edição). Os trechos são complementares.

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procedim entos indutivos e possivelmente discernir os mais eficazes e seguros; q u a l­ quer outra justificativa estará deslocada. A visão a que me refiro se caracteriza, por­ tanto , pela alegação de que a distinção entre o problem a factual de descrever a m an eira pela qual argum entam os indutivam ente (quid fa cti}) e o de justificar nos­ sos argum entos indutivos {quid, juris}) está deslocada. Afirma-se igualm ente que a justificação necessária é irrazoável, pois não podemos esperar que argum entos in ­ dutivos sejam “válidos” no mesmo sentido que o são os argum entos dedutivos: a in ­ dução sim plesm ente não é dedução; é irrazoável exigir dela um a conform idade aos padrões da validade lógica — isto é, dedutiva. Devemos, julgá-la, portanto, segun­ do seus próprios padrões — padrões indutivos — de razoabilidade. Considero essa defesa da indução um equívoco. Ela não só confunde um m ito com um fato, e o fato alegado com um p ad rão de racionalidade, como ta m ­ bém pro p ag a um princípio que pode ser usado p ara defender qualquer dogm a contra qualquer crítica. Além disso, engana-se q uanto ao “status” da lógica form al ou “ded u tiv a” . Está tão eng an ad a q uanto aqueles que viam nela a sistematização das “leis de p ensam ento” factuais, ou seja, psicológicas. Defendo a posição de que a indução não se to rn a válida a p a rtir do m om ento em que decidimos adotar suas regras com o p ad rão , ou decretam os que devem ser aceitas; a indução é válida p o r­ que adota e incorpora as regras pelas quais a verdade é transm itida de premissas (logicam ente mais fortes) p a ra conclusões (logicam ente mais fracas), e pelas quais a falsidade é retransm itida das conclusões p ara as premissas. Essa retransm issão faz da lógica form al o Organon da crítica racional — isto é, da refutação. Aos que sustentam a visão que estou criticando, pode-se fazer um a conces­ são no seguinte ponto: ao arg u m en tar das premissas para a conclusão (a “direção dedu tiv a”), passamos da veracidade, certeza ou probabilidade das premissas p ara a correspondente propriedade da conclusão; por outro lado, se argum entam os da conclusão p a ra as premissas (num a “direção ind u tiva”), passamos da falsidade, in ­ certeza, im possibilidade ou im probabilidade da conclusão p ara a correspondente propriedade das premissas; em conform idade com o que acabo de afirm ar, deve-Se adm itir que certos critérios (especialm ente o da certeza), aplicáveis na direção dedutiva, não se aplicam aos argum entos na direção indutiva. Mesmo essa concep­ ção se volta, contudo, no final das contas, contra aqueles que sustentam a visão que critico; há aí um a presunção errônea de que é possível argum entar na direção in ­ dutiva, em bora não se chegue a um a certeza, mas sim a um a probabilidade de nos­ sas “generalizações” . Essa suposição, contudo, é errônea com relação a todas as idéias intuitivas de probabilidade que já foram sugeridas. Esta é um a lista de apenas alguns dos problem as da filosofia da ciência que encontrei no estudo de dois problem as férteis e fundam entais, cuja história p ro ­ curei relatar a q u i.31

2. A Natureza dos Problemas Filosóficos e suas Raízes Científicas* i Foi com algum a hesitação que decidi tom ar como ponto de p artid a para es­ ta conferência a situação atual da filosofia inglesa, pois acredito que a função do cientista e do filósofo é solucionar problem as científicos ou filosóficos e não falar sobre o que ele e outros filósofos estão fazendo ou deveriam fazer. Q ualquer te n ­ tativa honesta e dedicada de resolver um problem a científico ou filosófico, mesmo que não tenha bons resultados, parece-m e m ais im portante do que um debate sobre problem a como a natureza da ciência ou da filosofia. Mesmo se nos dirigir­ mos a esta últim a questão de form a mais precisa (indagando, por exemplo, qual o caráter dos problem as filosóficos), m inha inclinação seria não d ar m uita im p o rtân ­ cia a esse exercício: acho que ele tem pouco peso, ainda quando com parado com um problem a m enor da filosofia — como o de saber se toda discussão e toda crítica devem p artir sem pre de “prem issas” ou “suposições” que perm anecem em si m es­ mas fora do d e b a te .*1 Q uando disse que a indagação sobre o caráter dos problem as filosóficos é mais apropriada do que a pergunta “Que é a filosofia?”, quis insinuar um a das razões da futilidade da atual controvérsia a respeito da natureza da filosofia: a crença ingênua de que existe de fato um a entidade que podemos cham ar de “fi­ losofia” ou de “atividade filosófica” , com um a “n atu reza” , essência ou caráter determ inado. A idéia de que a física, a biologia e a arqueologia existem por si m es­ mas, como campos de estudo ou “disciplinas” distinguíveis entre si pela m atéria que investigam, parece-m e resíduo da época em que se acreditava que qualquer teoria precisava p a rtir de um a definição do seu próprio c o n te ú d o .2 N a verdade não é possível distinguir disciplinas em função da m atéria de que tratam ; elas se distin­ guem um as das outras em parte por razões históricas e de conveniência adm inis­ * Pronunciamento na qualidade de presidente do Grupo de Filosofia da Ciência da Sociedade Britânica para a História da Ciência (hoje conhecido como Sociedade Britânica para a Filosofia da Ciência). Publicado pela primeira vez no The British Journal for the Phüosophy o f Science, 3, 1952.

3 1 — 0 item (13) foi adicionado em 1961. Entre 1953, quando proferi a conferência, e 1955, quando revi seu texto impresso, para as correções tipográficas, a lista do apêndice cresceu consideravelmente; outras contribuições recentes, que tratam temas não incluídos na lista, estão neste volume (especialmen­ te no cap. 10) e em outros livros meus (vide os novos apêndices de L. Sc. D. e do segundo volume de Open Society, este último, adicionado à quarta edição de 1962). Vide também meu trabalho “Proba­ bility Magic, or Knowledge out o f Ignorance", em Dialectica, 11, 1957, pp. 354-374.

1 — Trata-se de um problema menor, na minha opinião, porque pode ser resolvido facilmente, com â rejeição da doutrina (“relativista”) que dá origem a essa indagação. A resposta, portanto, será negativa (vide o apêndice ao vol. 2o de Open Society, acrescentado à 4a edição do livro, de 1962). 2 — Este é o ponto de vista que chamei de “essencialista” (cf. por exemplo os caps. 2 e 11 de Open Society, e a seção 10 de The Poverty o f Historicism).

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trativa (como a organização do ensino e do corpo docente), em p arte as teorias que form ulam os p ara solucionar nossos problem as têm a ten d ên cia3 de se desenvol­ ver sob a form a de sistemas unificados. Mas essa classificação e essas distinções são superficiais e têm relativam ente pouca im portância. Estudam os problem as, não matérias: problem as que podem ultrapassar as fronteiras de qualquer m atéria ou disciplina. Em bora esse fato possa parecer óbvio p ara algum as pessoas, ele é tão im p o r­ tante p a ra a presente discussão que vale a pena ilustrá-lo com um exemplo. N ão é preciso dizer que os problem as estudados pelos geólogos — como a avaliação da possibilidade de en co n trar petróleo ou urânio num a determ inada região — p re ­ cisam ser resolvidos com a assistência de certas teorias e técnicas classificadas o r­ dinariam ente como m atem áticas, físicas e quím icas. E menos evidente porém que mesmo um a ciência “fu n d am en tal”, como a física atôm ica, pode ter a necessidade de em pregar u m a investigação geológica — técnicas e teorias geológicas — p ara resolver problem a relacionado com suas teorias m ais abstratas: por exemplo, o problem a representado pelo teste de predições da estabilidade ou instabilidade relativa dos átom os com núm ero atôm ico p ar ou ím par. Estou pronto a adm itir que m uitos problem as “pertencem ” de algum a fo r­ m a a u m a das disciplinas tradicionais, em bora sua solução envolva as disciplinas mais diversas. Os dois problem as que m encionei, por exem plo, “pertencem ” à geologia e à física, respectivam ente. C ada um deles tem origem n um a discussão que é característica d a tradição d a disciplina em causa — da discussão de algum a teoria, ou de testes em píricos relacionados com essa teoria; e as teorias, ao co n ­ trário dos assuntos, podem constituir um a disciplina (que poderíam os descrever como um a constelação de teorias, um tanto “soltas”, que sofrem constantes d e ­ safios, alterações e crescim ento). Mas isso não afeta m eu argum ento no sentido de que a classificação das disciplinas tem relativam ente pouca im portância; que es­ tudam os problem as, não disciplinas. Mas, haverá problem as filosóficos? A posição atual da filosofia inglesa — m eu ponto de p a rtid a — se origina, creio, na doutrina de Ludwig W ittgenstein, que responde negativam ente a essa perg u n ta — todos os problem as genuínos se­ riam científicos; os alegados problem as filosóficos não passariam de pseudoproblem as e as alegadas teorias ou proposições filosóficas seriam pseudoteorias e pseudoproposições: não falsas (se o fossem, suas negações constituiriam verdadeiras proposições ou teorias) mas simples com binações de palavras sem sen tid o ,45não mais significativas do que o balbucio inconseqüente de um a criança que não apren d eu ain d a a falar. 5 3 — Tendência que pode ser explicada pelo princípio de que as explicações teóricas são tão mais satis­ fatórias quanto melhor apoiadas por provas independentes, porque só sendo muito abrangente pode uma teoria encontrar apoio em provas independentes. 4 — “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros” é um excelente exemplo de uma expressão despida de sentido, na acepção técnica de Russell e Wittgenstein, embora tenha cer­ tamente sentido no contexto de Animal Farm de Orwell. É interessante que Orwell considerou a pos­ sibilidade de introduzir uma linguagem, de uso obrigatório, em que a frase “Todos os homens são iguais” deixaria de ter sentido — na acepção técnica de Wittgenstein. 5 — Como Wittgenstein descreveu seu próprio Tractatus como carente de sentido (vide a nota seguinte), ele admitiu — pelo menos por implicação — a diferença entre falta de sentido relevante e irrelevante, o que não afeta seu ponto de vista principal, que estou examinando aqui, a respeito da inexistência de problemas filosóficos. (Nas notas de Open Society,especialmente as de n.°s 26, 46, 51 e 52, do cap. 11, c leitor encontrará um exame de outras doutrinas de Wittgenstein).

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Em conseqüência, a filosofia não poderia conter nen h u m a teoria. De acordo com W ittgenstein, sua verdadeira natureza não seria a de u m a teoria, mas sim a de um a atividade. A função d a filosofia genuína seria desm ascarar os absurdos fi­ losóficos e ensinar as pessoas a falar de m odo que faça sentido. Meu plano consiste em tom ar essa d o u trin a 6 de W ittgenstein como ponto de p artid a. Procurarei explicá-la (na seção II); defendê-la, até certo ponto; e criticá-la (na seção III). Nas seções IV a X I apresentarei exemplos extraídos d a história das idéias científicas. Antes de desenvolver m eu plano desejo reafirm ar a convicção de que os filósofos devem filosofar — devem ten tar resolver problem as filosóficos, em vez de falar sobre a filosofia. Se a d o utrina de W ittgenstein fosse verdadeira, ninguém poderia filosofar, nesse sentido. Se pensasse assim, ab an d o n aria a filosofia. A con­ tece porém que não só estou profundam ente interessado em certos problem as fi­ losóficos (não me im porta m uito se é “correto” cham á-los assim) m as alim ento a es­ p erança de poder contribuir — um pouco, e m ediante m uito trabalho — p a ra a sua solução. A única desculpa que posso d a r por estar aqui falando a respeito da filosofia, em vez de filosofar, é a esperança de que, ao cum prir o program a que me propus p a ra o preparo desta conferência, poderei enco n trar um a oportunidade p ara filosofàr. II Desde a ascensão do hegelianism o tem havido um a perigosa separação entre a ciência e a filosofia. A credito que com razão os filósofos têm sido acusados de “filosofar sem conhecim ento factu al” e seus sistemas têm sido descritos com o “sim ­ ples fantasias, e até mesmo fantasias im becis” . 7 E m bora o hegelianism o ten h a sido a influência predom inante no continente europeu e na Inglaterra, a oposição a Hegel e o desprezo pelo seu caráter pretensioso n u nca désapareceram com pletam ente. O hegelianism o foi derru b ad o por um filósofo que — como Leibniz, B er­ keley e K ant — tin h a um sólido conhecim ento da ciência e especialm ente da m atem ática: B ertrand Russell.

6 — Há uma falha que se pode perceber desde logo nessa doutrina: ela própria é uma teoria filosófica que pretende ter sentido e ser verdadeira. É possível porém que esta crítica seja um pouco vulgar, po­ dendo ser rebatida de duas formas, pelo menos: 1) afirmando que não tem sentido enquanto doutrina, mas sim qua atividade (é o que alega Wittgenstein; no fim do seu Tractatus Logico-Philosophicus ele afirma que quem compreendeu bem o livro deve perceber que não tem sentido, rejeitando-o como se afasta uma escada depois de usá-la para atingir uma certa altura); 2) afirmando que não se trata de uma doutrina filosófica, mas sim empírica, enunciando o fato histórico de que todas as aparentes “teorias” propostas pelos filósofos não se ajustam às regras inerentes à linguagem em que são formuladas (sendo, portanto, agram atiçais); que não é possível corrigir esse defeito e que todas as tentativas de enunciá-las com propriedade levaram à perda do seu caráter filosófico (revelando-as, por exemplo, como truísmos empíricos ou falsas proposições). Penso que estes dois contra-argumentos resgatam a doutrina da sua alegada inconsistência, tornando-as assim resistentes ao tipo de crítica mencionado nes­ ta nota (vide também a segunda próxima nota). 7 — Essas duas citações não são de um crítico científico; ironicamente, constituem a caracterização, pelo próprio Hegel, da filosofia natural do seu predecessor e ex-amigo Schelling. Cf. Open Society, nota 4 (e texto) do cap. 2.

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Russell é tam bém o auto r da classificação, estreitam ente relacionada çom a süa fam osa Teoria dos T ip o s, que fundam enta a visão da filosofia de W ittgenstein: a classificação (criticada no cap. 14) das expressões lingüísticas em: 1) afirm ativas verdadeiras 2) afirm ativas falsas 3) expressões desprovidas de sentido, entre as quais seqüências de palavras sem elhantes a proposições: as “pseudoproposições”. Russell em pregou essa distinção p a ra resolver o problem a dos paradoxos lógicos que tin h a descoberto. P ara isso era essencial distinguir mais especialm ente entre 2) e 3). Poderíam os dizer, usando a linguagem o rdinária, que um a afirm ativa falsa como t “3 vezes 4 é igual a 173” ou ‘‘Todos os gatos são bois” não tem sentido. Mas Russell reservou a qualificação “desprovida de sentido” p ara afirm ativas do tipo que é preferível não descrever sim plesm ente como “afirm ativas falsas” (com efeito, a negativa de um a proposição falsa, que tenha sentido, será sempre ver­ dadeira ; m as a negação prim a fa cie da pseudoproposição “Todos os gatos são iguais a 173” é: “alguns gatos não são iguais a 173” — o u tra pseudoproposição, tão insatisfatória q u an to a prim eira. As negativas de pseudo-afirmativas são tam bém pseudo-afirm ativas, da mesma form a como as negativas de proposições válidas (verdadeiras ou falsas) são sem pre proposições válidas (falsas ou verdadeiras, res­ pectivam ente). Foi essa distinção que perm itiu a Russell elim inar os paradoxos (que para ele eram pseudoproposições sem sentido). Mas W ittgenstein foi além: movido pos­ sivelmente pela sensação de que os filósofos (em esçecial os filósofos hegelianos) es­ tavam propondo algo m uito sem elhante aos paradoxos da lógica, usou a distinção de Russell p ara denunciar toda filosofia como sendo~estritamente sèm sen tid o . Em conseqüência, não poderia haver problem as filosóficos genuínos. Todos os supostos “problem as filosóficos” poderiam ser classificados em q u atro catego­ rias8 9: 1) os p u ram en te lógicos ou m atem áticos, que deveriam ser solucionados por meio de proposições lógicas ou m atem áticas; 2) os factuais, a serem respondidos com algum a afirm ativa de ciência em pírica; 3) os que com binam 1 e 2; 4) pseudoproblem as sem sentido, tais como: “Todos os gatos são iguais a 173?” “Sócrates é idêntico?” ou “Existirá um Sócrates invisível, intocável e aparentem ente impossível de ser conhecido?” A idéia de W ittgenstein de errad icar a filosofia (e a teologia) com a ajuda de um a adap tação da teoria dos tipos de Russell era engenhosa e original (ainda mais radical do que o positivismo do Com te, do qual se aproxirpa m uito). 9 Essa idéia inspirou um a vigorosa escola contem porânea de analistas da linguagem que h e r­ d aram sua crença de que não existem problem as filosóficos genuínos; de que tudo 8 -- Wittgenstein Continuava sustentando a doutrina da inexistência de “problemas filosóficos”, com a argumentação aqui descrita, quando o vi pela última vez (em 1946, presidindo u ^ tempestuoso encon­ tro do Clube de Ciências Morais de Cambridge, na oportunidade da apresentação de um trabalho que escrevi sobre “Existem problemas filosóficos?’’); como nunca vi nenhum dos seus manuscritos inéditos, circulados particularmente por alguns dos seus alunos, fico a imaginar se chegou a alterar o que des­ crevo aqui como sua “doutrina”. Sobre este ponto, contudo — a parte mais fundamental do que en­ sinou, e de maior influência — encontrei seu ponto de vista inalterado. 9 — Cf. nota 51 (2), cap. 11. Open Society.

A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

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que o filósofo pode fazer é desm ascarar e dissolver os quebra-cabeças lingüísticos propostos pela filosofia tradicional. M eu ponto de vista pessoal sobre o assunto é o de que só continuarei a me interessar pela filosofia enquanto tiver problem as filosóficos genuínos p a ra resolver. Não com preendo a atração que pode ter um a filosofia sem problem as. N a tu ra l­ m ente, sei que há m uitas pessoas que fazem declarações sem sentido; que caiba a alguém a tarefa (desagradável) de desm ascarar essas pessoas é concebível, porque a falta de sentido pode ser perigosa. Acredito porém que algum as pessoas já disseram coisas sem m uito sentido e que desrespeitavam a gram ática — no entanto extre­ m am ente interessantes e excitantes, mais valiosas talvez do que certas coisas com sentido ditas por outros. Poderia exem plificar com o cálculo diferencial e o integral que, especialm ente na sua form a inicial, eram sem dúvida paradoxais e absurdos pelos critérios de W ittgenstein. Esses dois tipos de cálculo alcançaram , depois de cem anos de grandes esfor­ ços, um a fundam entação razoável — mas ainda hoje necessitam de algum a elu ­ cidação. 10 A esse propósito, vale a pena lem brar que foi justam ente o contraste e n ­ tre a ap arente precisão absoluta da m atem ática e o caráter vago e im preciso da linguagem filosófica que im pressionou profundam ente os prim eiros seguidores de W ittgenstein. Se tivesse surgido então um W ittgenstein, usando suas arm as contra os pioneiros do cálculo, e conseguisse elim inar sua falta de sentido (o que queriam os críticos da época — inclusive Berkeley, que fundam entalm ente tin h a toda r a ­ zão), um dos desenvolvimentos mais fascinantes e filosoficamente m ais im portantes da história do pensam ento teria sido estrangulado no nascedouro. W ittgenstein escreveu: “É preciso silenciar a respeito daquilo sobre o que não se pode fa la r”. Se m e lem bro bem , foi Erwin Schrõdinger que retrucou: “Mas é justam ente quando vale a pena falar!” A história do cálculo o dem onstra bem — como talvez a história da teoria do próprio Schrõdinger . Não há dúvida de que todos devemos trein ar p a ra falar do m odo m ais claro, preciso, simples e direto que nos for possível. A credito porém que não h á um a só obra clássica da ciência ou da m atem ática — qualquer livro que m ereça ser lido — onde não se possa encontrar m uitas pseudoproposições sem sentido (e o que alguns cham ariam de “tautologias”), m ediante a aplicação habilidosa da análise lingüística. Acredito tam bém que mesmo a adaptação original feita por W ittgenstein da teoria de Russell se baseia num erro lógico. Do ponto de vista da lógica m oderna não parece haver mais qualquer justificativa p ara falar em pseudoproposições (ou 10 — Aludo à recente construção, por G. Rreisel, de uma seqüência limitada e monótona de racionais, cujos termos podem ser computados, mas que não possui um limite computável — contrariando assim o que parece ser a interpretação prima facie do clássico teorema de Bolzano eWeierstras, mas em concor­ dância aparente com as dúvidas de Brouwer sobre esse teorema. 10a — Depois da publicação deste trabalho, Schrõdinger disse-me não se lembrar de ter feito essa ob­ servação, e que acreditava não ser o autor da frase; mas admitiu que gostava dela. Mais tarde, descobri o verdadeiro autor: meu velho amigo Franz Urbach. 11 — Antes de Max Born propor sua famosa interpretação probabilística, alguns autores pensavam que a equação de ondas de Schrõdinger era desprovida de sentido (não é essa contudo minha opinião;.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

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erros de tipo ou categoria) nas linguagens ordinárias, que cresceram n atu ralm ente (ao contrário do que acontece com os cálculos artificiais), desde que as regras con­ vencionais do costum e e d a g ram ática sejam observadas. Pode-se mesmo dizer que o positivista que nos afirm a, com um ar de iniciado, que estamos usando palavras sem sentido ou exprim indo coisas sem sentido não sabe literalm ente o que diz — está apenas repetindo o que ouviu de outras pessoas, que se encontravam na m esma situação. Mas isso im plica um a questão técnica que não posso tra ta r aqui. (Ela é desenvolvida, porém , nos caps. 11 a 14 deste livro.) III Prom eti dizer algum a coisa em defesa do ponto de vista de W ittgenstein. O que p retendo dizer é, prim eiro, que há m uitos escritos filosóficos (especialm ente da escola hegeliana) que podem ser criticados com justiça por constituírem m ero palavrório sem sentido; em segundo lugar, que esse tipo de publicação irrespon­ sável foi reprim ido — pelo pienos d u ran te algum tem po — pela influência de W it­ tgenstein e dos analistas da linguagem (em bora provavelm ente a influência mais saudável nesse sentido tenha sido a de Russell que, com a clareza e o encanto in ­ com paráveis do seu estilo, dem onstrou o fato de que a sutileza do conteúdo é com ­ patível com a lucidez e a singeleza do estilo). Estou p rep arad o p a ra conceder mais ainda. P ara defender parcialm ente as idéias de W ittgenstein, aceito as duas teses seguintes: A p rim eira é a de que toda filosofia — especialm ente toda “escola filosófica” — pode degenerar de tal form a que seus problem as se tornem praticam ente indiferenciáveis de “pseudoproblem as” , e seu jargão praticam ente indistinguível de um ling u ajar destituído de q ualquer sentido. Conform e procurarei dem onstrar, es­ ta é u m a conseqüência da cum ulatividade e da falta de ab ertu ra do pensam ento filosófico; a degeneração das escolas filosóficas, de seu lado, é u m a conseqüência da crença errônea de que é possível filosofar sem ser a isso obrigado po r problem as sur­ gidos fo ra do cam po da filosofia — na m atem ática, por exem plo, na cosmologia, política, religião ou n a vida social. Em outras palavras, m inha prim eira tese é de que os problem as filosóficos genuínos têm sem pre raízes em problem as urgentes fo ra do cam po da filo so fia , e m orrem se perdem essas raízes. Nos esforços que fazem p a ra resolvê-los, os filósofos podem seguir o que parece a alguns um a téc­ nica ou m étodo filosófico, um a chave segura p ara o êxito filosófico. 12 N a verdade, porém , não existem tais m étodos ou técnicas. Aliás, n a filosofia os m étodos têm pouca im portância: desde que produza resultados susceptíveis de discussão r a ­ cional, qualquer m étodo é legítim o. O que im porta não é o m étodo ou as técnicas, mas a sensibilidade aos problem as e um a paixão ardorosa pela sua solução: como diziam os gregos, o dom de m aravilhar-se com o m undo. 12 — É interessante notar que os imitadores sempre se inclinaram a acreditar que o “mestre” que lhes serve de modelo usava um método ou truque secreto. Diz-se que nos dias de J.S.Bach alguns músicos acreditavam que ele tinha uma fórmula secreta para construir temas de fuga. E também interessante observar que todas as filosofias que se tornaram moda ofereceram a seus discípulos uma espécie de método para alcançar resultados filosóficos. Foi o que aconteceu com o essencialismo de Hegel, que en­ sinava como elaborar ensaios sobre a essência, a natureza ou idéia de qualquer coisa — a alma, o universo ou a universidade; o mesmo se pode dizer a respeito da fenomenologia de Husserl, do existen­ cialismo e da análise da linguagem.

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A NATUREZA DOS PROBLEMAS fI l Os Ô f Íc Ò^E fuW slk^ífeS C lB j® F IC A S

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H á pessoas que sentem a necessidade de resolver um problem a — p a ra elas um determ inado problem a se torna algo real, de que precisam se lib e ra r.13 Essas pessoas podem d a r um a contribuição à filosofia m esm o que se p rendam a um m étodo ou técnica p articu lar. H á outros porém que não sentem tal necessidade, não têm qualquer problem a sério ou urgente para resolver, m as que ainda assim form ulam exercícios nos métodos que estão em m oda — p a ra eles a filosofia é um a aplicação (um a técnica ou visão especial) e não um a procura. São eles que levam a filosofia p ara um pân tan o de pseudoproblem as e charadas verbais, form ulando pseudoproblem as como se fossem problem as reais (perigo reconhecido por W itt­ genstein) ou persuadindo-nos a nos concentrarm os n a tarefa sem fim e sem sentido de desm ascarar o que tom am (com ou sem razão) por pseudoproblem as ou “charada$” (arm adilha em que caiu W ittgenstein). M inha segunda tese é a de que o m étodo prim a fa c ie usado no ensino da filosofia pode produzir um a filosofia que atenda à descrição de W ittgenstein. Por “m étodo prim a fa c ie usado no ensino da filosofia” (aparentem ente o único m étodo) quero dizer o convite ao estudante (que adm itim os não estar inform ado sobre a his­ tória das idéias m atem áticas, cosmológicas e outras idéias científicas e políticas) p a ra ler as obras dos grandes filósofos, como por exem plo Platão, Aristóteles, Des­ cartes, Leibniz, Locke, Berkeley, K ant e Mill. Q ual o efeito dessas leituras? Um m undo novo, de abstrações extraordinariam ente vastas e sutis, se abre diante do leitor — abstrações de nível m uito elevado e difícil. Sua m ente é exposta a idéias e argum entos que parecem às vezes não só difíceis de com preender mas tam bém irrelevantes — porque o estudante não consegue identificar sua relevância. No e n ­ tanto, ele sabe que são grandes filósofos e que esse é o estilo da filosofia. Fará p o r­ tanto um esforço p ara ajustar sua m ente ao que pensa (erradam ente, como vamos ver) serem seus pontos de vista. O estudante te n ta rá usar aquela" estranha lin ­ guagem , seguir as espirais tortuosas da argum entação apresentada,chegando talvez a se am arrar nos seus nós. Alguns aprenderão esses truques de form a superficial; outros com eçarão a se deixar fascinar. Mas considero digno de respeito aquele que, depois desse esforço, chega ao que se poderia descrever como a conclusão de W itt­ genstein: “A prendi o jarg ão tão bem quanto qu alq u er o u tra pessoa: um a lin ­ guagem inteligente e atrativa. N a verdade, perigosam ente cativante, porque a ver­ dade simples é que se tra ta de um a tem pestade num copo d ’água — um m onte de absurdos”. A m eu ver há um grande equívoco nessa conclusão; contudo, é a conclusão quase inescapável do m étodo prim a fa cie de ensinar filosofia, que descrevi. N ão nego, n atu ralm en te, que alguns estudantes m uito bem dotados podem encontrar nas obras dos grandes filósofos m uito m ais do que o exem plo sugere — e sem se deixar iludir. De m odo geral, contudo, a possibilidade que tem o estudante de des­ cobrir os problem as extrafilosóficos (m atem áticos, científicos, m orais e políticos) que inspiraram os grandes filósofos é bem reduzida. G eralm ente esses problem as só podem ser identificados pelo estudo da história das idéias científicas, especialm ente da m atem ática e das ciências, d u ran te o período em questão; o que pressupõe, por sua vez, considerável fam iliaridade com a m atem ática e a ciêilcia. Só ao com preen­ der a situação das ciências em determ inada época, o estudante entenderá que os grandes filósofos daquela época p ro curaram resolver problem as concretos e u rgen­ 13 — Aludo aqui a uma observação do professor Gilbert Ryle, que afirma na pág. 9 dò seu livro Con­ cept o f Mind\ “Fundamentalmente, estou procurando eliminar do meu sistema alguns distúrbios.”

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

tes, que não podiam ser afastados. E só assim poderá ter um quadro diferente das grandes filosofias — q uadro que lhe m ostrará como ós aparentes absurdos têm um sentido. T en tarei ilustrar essas duas teses com exemplos. Antes, porém , vou sum arizar m inhas idéias sobre o assunto e “ajustar as contas” com W ittgenstein. M inhas duas teses correspondem à afirm ativa de que como a filosofia tem raízes profundas em problem as não filosóficos, o julgam ento negativo dé W ittgens­ tein é de m odo geral apropriado, na m edida em que se aplica a filosofias que es­ queceram suas raízes extrafilosóficas; e na m edida em que essas raízes são facilm en­ te esquecidas pelos filósofos que “estudam ” filosofia, em vez dè serem forçados à atividade filosófica pela pressão de problem as não filosóficos. R esum iria da seguinte form a m inha opinião sobre a d o u trina de W ittgens­ tein : talvez seja verdade, de m odo geral, que não existem problem as filosóficos “puro s” ; na verdade, q uanto mais puro um problem a filosófico m ais se perde sua significação original, m aior o risco de que sua discussão degenere num verbalismo vazio. Por outro lado, existem não só problem as científicos genuínos m as tam bém problem as filosóficos genuínos. Mesmo q uando a análise revela que esses problem as contêm com ponentes factuais, não é preciso classificá-los como científicos. Por outro lado, ainda quando podem ser solucionados com meios exclusivamente ló ­ gicos, não precisam ser qualificados como p uram ente lógicos ou tautológicos. H á situações análogas na física, por exem plo, onde o problem a de explicar as séries de linhas espectrais (com o em prego de um a hipótese sobre a estrutura atôm ica) pode ser solucionado m ediante cálculos m atem áticos. O que tam bém não quer dizer que se trate de um problem a de m atem ática p u ra, e não de física. E perfeitam ente ju s­ tificável d enom inar um problem a de “físico” se ele se relaciona com teorias e outros problem as discutidos tradicionalm ente pelos físicos (como o problem a da consti­ tuição da m atéria), mesmo que os meios em pregados p ara solucioná-lo sejam p u ram en te m atem áticos. Como vimos, a solução de problem as pode ultrapassar as fronteiras de m uitas ciências. Da m esm a form a, um problem a pode ser chám ado de “filosófico” , apropriad am en te, se verificarmos que em bora tenha surgido, por exem plo, no cam po da teoria atôm ica, se relaciona màis estréitam ente com as teorias e os problem as discutidos pelos filósofos do que com as teorias que interes­ sam atu alm en te os físicos. Por outro lado, não im porta absolutam ente que m étodos em pregam os para solucionar um problem a. A cosmologia, por exem plo, terá sem pre grande interesse filosófico, em bora se tenha aliado, em p arte da m etodologia que em prega, com o que poderíam os ch am ar mais precisam ente de “física” . A firm ar que a cosmologia pertence à ciência é p edante e resulta claram ente de um dogm a epistemológico (filosófico, p ortanto). Da mesma form a, não há razão p ara que se nêgué a um problem a solucionável por meios lógicos o atributo “filosófico” : ele pode m uito bem ser tipicam ente filosófico, físico ou biológico. A análise lógica desem penhou um a função considerável na teoria especial da relatividade, de Einstein; em p arte foi is­ so que tornou essa teoria filosoficam ente interessante, dando origem a um a am pla gam a de problem as filosóficos correlatos. A d o u trin a de W ittgenstein resulta da tese de que todas as afirm ativas genuínas (e p o rtan to todos os problem as genuínos) podem ser classificadas em urna

A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

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de duas classes exclusivas: as afirm ativas factuais (sintéticas “a posteriori”), p e rte n ­ centes às ciências em píricas, e as afirm ativas lógicas (analíticas “a p rio ri,f), p erten ­ centes exclusivamenté à lógica form al ou à m atem ática. Em bora extrem am ente valiosa para um a descrição superficial, essa dicotom ia simples é simples dem ais p ara m uitos pro p ó sito s.1415 Feita sob encom enda, por assim dizer, p ara excluir a existência dos problem as filosóficos, não consegue chegar a esse resultado; mesmo se a aceitarm os podemos sem pre alegar que os problem as factuais, lógicos ou h í­ bridos, em certas circunstâncias, podem ser filosóficos. IV Volto-me agora p ara o m eu prim eiro exem plo: Platão e a crise do a tomismo original grego. M inha tese é que a d o utrina filosófica central de Platão, a cham ada teoria das form as ou idéias, não pode ser entendida ad equadam ente exceto dentro de um contexto extrafilosõfico 15 — mais especialm ente, o contexto da situação problem a da ciência g re g a 16, em p articular no que se refere à noção de m atéria resultante do descobrim ento do caráter irracional da raiz q u a d ra d a de dois. Se m inha tese está correta, a teoria de Platão até hoje não foi perfeitam ente com­ preendida . (N aturalm ente, é duvidoso que um a “ perfeita com preensão” seja pos­ sível algum dia). Um a conseqüência m ais im portante seria a de que ela não pode

14 — Já numa tese defendida em 1934, tive a oportunidade de mostrar que uma teoria como a dé Newton pode ser interpretada como factual ou como consistindo em definições (no sentido de Poincaré e Eddington); que a interpretação adotada por um físico se manifesta na atitude que assume com respeito aos testes que dão resultados contrários à teoria (e não propriamente no que afirma). Observei também que há teorias nãoi analíticas que não podem ser testadas (e portanto não a posteriori), mas que exer­ ceram grande influência no desenvolvimento científico (exemplos são a teoria atômica original ou a teoria inicial da ação pelo contato). Chamei essas teorias não testáveis de “metafísicas”, asseverando que tinham sentido. O dogma da dicotomia simples foi atiçado recentemente, com argumentos bastante diferentes, por F.H. Heinemann (Proc. o f the X th Intern. Congress o f Philosophy, Fase. 2, 629, Amsterdam, 1949), W.V. Quine e Morton G. White. Note-se, de outro ponto de vista, que aquela dicotomia se aplica com precisão só às linguagens formalizadas, o mesmo podendo não acontecer com respeito às lin­ guagens que precisamos empregar antes de qualquer formalização, isto é, às linguagens nas quais todos os problemas tradicionais foram concebidos. 15 — Em Qpen $ociety and Its Enemies procurei explicar com alguma minúcia outra origem extrafilosófica da mesma doutrina — sua origem política. Examinei igualmente (vide nota 9, cap. 6 da 4a ediçâó revista de 1962) o problema a que me dirijo efn particular nesta seção — embora de um ponto de vista algo diferente. A nota mencionada e esta seção se sobrepõem ehi certa medida, mas também se suplementam amplamente. Algumas referências relevantes (especialmente a Platão) omitidas aqui serão encontradas na nota. ív 16 — Alguns historiadores negam que se possa usar apropriadamente o termo “ciência” aplicando-o a qualquer desenvolvimento anterior ao século XVI, ou mesmo ao século XVII. Contudo, independen­ temente do fato de que devemos evitar controvérsias a respeito de denominação, creio que não pode haver mais nenhuma dúvida sobre a extraordinária semelhança (para não falar em identidade) entre os objetivos, os interesses, as atividades, a argumentação e os métodos de Galileu e Arquimedes; de Copérnico e Platão, Kepler e Aristarco (o “Copérnico” da Antiguidade). Qualquer dúvida sobre a observação científica e os cálculos dos ahtigoá — baseados ná observação — foi eliminada pela descoberta de novos fatos relativos à história da astronomia pré-helênica. Podemos agora comparar não só Tico e Hiparco, mas Hansen (1857) e Cidenas, da Caldéia (314 a.C.), cujos cálculos das “constantes para o movimento do Sol e da Lua” são assemelháveis, sem exceção, aos dos melhores astrônomos do século dezenove. (Vide J.K. Fotheringham, “The Indebtedness of Greek to Chaldean Astronomy”, The Observatory, 1928, 51, n.° 653).

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

ser en ten d id a por filósofos treinados de acordo com o m étodo prim a fa cie, já des­ crito — a não ser que fossem inform ados especialm ente, ad hoc, dos fatos relevan­ tes (que precisariam aceitar n um a base de autoridade — isto é, abandonando o m étodo p rim a fa c ie de estudo da filosofia). Parece provável!7 q u e a teoria das form as de Platão esteja intim am ente as­ sociada, n a sua origem e no seu conteúdo, à teoria pitagórica de que todas as coisas são, essencialm ente, núm eros. Os porm enores dessa associação, bem como o re ­ lacionam ento entre o atom ism o e o pensam ento de Pitágoras e seus discípulos, ta l­ vez não sejam bastante conhecidos; falarei, p o rtanto, um pouco sobre o assunto, d a m aneira com o o vejo atualm ente. Ao que parece, o fun d ad o r da ordem ou seita pitagórica estava p ro fu n ­ dam ente im pressionado com duas descobertas: a de que um fenôm eno n a aparência p u ram en te qualitativo, como a h arm onia m usical, dependia de razões num éricas — 1:2 ; 2:3 ; 3:4 ; e a de que o ângulo “reto ” refletia as razões num éricas 3:4:5 ou 5:12:13 (os lados de um triângulo retângulo). Essas duas descobertas teriam levado Pitágoras à generalização algo fantástica de que todas as coisas são, em essência, núm eros ou proporções; de que o núm ero é a razão (logos = razão), a essência racional das coisas, d a sua natureza real. E m bora seja um a idéia fantástica, ela teve algum a utilidade. Uma das suas aplicações de m aior êxito foi às figuras geom étricas simples — quadrados, triâ n ­ gulos retangulares e isósceles — e a alguns sólidos simples, como as pirâm ides. O tratam en to de alguns desses problem as geom étricos se baseava no cham ado gnom on. Podemos explicá-lo assim: se indicam os um q u ad rad o por meio de quatro pontos, •

A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

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+











Vemos im ediatam ente que cada núm ero d a seqüência de núm eros ím pares 1,3,5 ,7 ... form a o gnom on de um q u ad rad o , e que as somas U 1 + 3, 1 + 3 + 5, 1 + 3 + 5 + 7 ... são núm eros quadrados; se n é o lado de um quad rad o (isto é, o núm ero de pontos que corresponde ao seu lado), a área corres­ pondente (o núm ero total de pontos = n 2) será igual à soma dos prim eiros n n ú ­ meros ím pares. O mesmo com relação aos triângulos equiláteros: a figura seguinte pode ser considerada um triângulo em crescim ento (para baixo), m ediante o acréscimo sucessivo de linhas horizontais de pontos:

• •

• •

#

• • • • Neste caso, cada gnom on é a últim a linha horizontal de pontos; cada elem ento da seqüência 1,2,3,4 ... é um gnom on. Os “núm eros triangulares” são as somas 1 + 2 ; 1 + 2 + 3; 1 + 2 + 3 + 4 ..., isto é, as somas dos prim eiros n núm eros naturais. Se colocarmos dois triângulos lado a ladot



isso pode ser interp retad o como o acréscimo de três pontos a um ponto original, situado no lado esquerdo superior. Esses três pontos — que constituem o prim eiro gnom on — seriam indicados assim: teremos um paralelogram a com o lado horizontal n + l e e outro lado, n, contendo n ( n + 1) pontos. Como esse paralelogram a consiste em dois triângulos isóceles, seu núm ero é 2(1 + 2 + ... + n ), de m odo que chegamos à equação #



A crescentando um segundo g n o m o n , com outros cinco pontos, chegaríam os à seguinte figura:

(1) 1 + 2 + ... + n — l_ n(n 4, 1) e po rtan to 2 (2)
17 — Se podemos confiar no famoso relato de Aristóteles, na sua Metafísica.

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A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

CONJECTURAS Ë REFUTAÇÕES

T eríam os tam bém “núm eros oblongos” — isto é, núm eros correspondentes a figuras oblongas retangulares, das quais a mais simples é a seguinte: #

que podemos ter, nesse m undo de som bras, são opiniões inseguras e preconceituosas (doxa) dos falíveis m o r ta is ^ , em lugar da epistem e. Nesta sua interpretação do Q uadro de Oposições, Platão recebeu a influência de Parm ênides, o pensador cujo desafio provocou o desenvolvimento da teoria atom ística de D em ócrito.

' , •



§









%

# • m • • com os núm eros oblongos 2 + 4 4- 6 ...; o g nom on de um oblongo é um núm ero p ar e os núm eros oblongos são somas dos núm eros pares. Esse raciocínio foi estendido aos sólidos. Assim, por exemplo, chegou-se aos núm eros piram idais, som ando os prim eiros núm eros triangulares. C ontudo, a aplicação mais im p o rtan te foi às figuras olanas. ou “form as” — que se acreditava serem caracterizadas por u m a seqüêncía ap ro p riada de núm eros, e, p o rtanto pelas razões dos núm eros sucessivos da seqüência. Em outras palavras, as “form as” eram consideradas núm eros, ou razões entre núm eros. Por outro lado, qualidades ab stra­ tas, como a harm onia e a retidão, eram vistas tam bém como núm eros. Desse m odo se chegou à teoria geral de que os núm eros são as essências racionais de todas as coisas. Parece provável que o desenvolvimento desse ponto de vista foi influenciado pela sem elhança dos diagram as de pontos com constelações, tais como a do Leão, do Escorpião ou da Virgem . Se o Leão, por exem plo, é um arranjo de pontos, ele deve ter um núm ero. Desta form a a d o u trin a pitagórica parece associada à crença de que os núm eros, ou ^form as” , são figuras celestiais das coisas.

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vi ■

A teoria de Pitágoras, com seus diagram as feitos de pontos, contém sem dúvida a sugestão de um atom ism o m uito prim itivo. É difícil avaliar em que m e­ dida a teoria atom ística de Dem ócrito foi influenciada pelo pensam ento pitagórico. Suas influências principais parecem ter vindo dos eleatas: Parm ênides e Zeno. O problem a básico dessa escola de pensam ento (e de Dem ócrito) era o da com preen­ são racional da m udança. (Neste ponto divirjo da interpretação de C ornford e outros.) Parece-m e que esse problem a vem de H eráclito — p o rtan to , do pensam en­ to jónico e não do pitagórico *9 e que contínua a ser o problem a fundam ental da filosofia da natureza. Parm ênides pode não ter sido um físico (como seus grandes predecessores jónicos), mas há razão p ara considerá-lo como o pai da física teórica: elaborou um a teoria antifísica181920 — não a-física, como disse Aristóteles —, que foi contudo o prim eiro sistema hipotético-dedutivo, o princípio de um a longa série de sistemas desse tipo, teorias físicas cada vez mais aprim oradas. Via de regra, esse aprim o­ ram ento se tornava necessário devido à consciência de que o sistema anterior era refutado por alguns fatos da experiência em pírica. Essa refutação em pírica das conseqüências de um sistema dedutivo levava a um esforço dirigido à sua recons­ trução e assim a novas teorias, aperfeiçoadas, as quáis qúase sem pre exibiam claram ente m arcas da sua origem , das teorias originárias e da experiência que as refutou.

Um dos elem entos principais dessa antiga teoria era o cham ado “Q uadro de Oposições” , que se baseava na distinção entre núm eros pares e ím pares. Esse quadro continha conceitos como os seguintes:

Essas experiências ou observações eram a princípio m uito cruas, tornando-se contudo cada vez mais sutis, à m edida que as teorias se tornavam gradualiriehtè

UM ÍM PA R M ASCULINO REPOUSO D ETER M IN A D O

18 — A distinção platônica entre episteme e doxa deriva de Xenófanes (a verdade e a conjectura, ou aparência), por meio de Parmênides. Platão percebia claramente que todo o conhecimento do mundo visível, o mundo cambiante das aparências, consiste na doxa; ele é tingido pela incerteza, mesmo quan­ do utiliza ao máximo a episteme, conhecimento da pura matemática e das “formas” definidas — ainda quando interpreta o mundo cambiante com a ajuda de uma teoria do mundo invisível, (cf. Crátilo, 439b, República, 476d, e em especial Timeu, 29b, onde essa distinção é aplicada às partes da teoria do próprio Platão que chamaríamos hoje de “física”, “cosmologia” ou, de modo mais geral, “ciência na­ tural”. Segundo o filósofo, elas pertencem ao reino da doxa — a despeito do fato de que ciência = scientia = episteme). Um ponto de vista diferente sobre as relações entre o pensamento de Platão e o de Parmênides é Ô de Sir David Ròss, Plato’s Theory o f Ideas, Oxford, 1951, pág. 164.

M U ITO S , PAR FEM IN IN O MUDANÇA IN D ETERM IN A D O

QUADRADO RETO D IR EITO LUZ BOM

O BLONGO CURVO ESQUERDO OBSCURIDADE MAU

Esse estranho quad ro nos dá um a idéia de como funcionava a m ente p i­ tagórica — porque não só as “form as” de figuras geom étricas eram consideradas como núm eros, em sua essência, m as tam bém idéias abstratas como a justiça e, n atu falm en te, a harm onia e a saúde, a beleza è o conhecim ento. É interessante n o tar que o q uadro pitagórico foi adotado por Platão com m uito pequenas a lte­ rações. A versão mais antiga da fam osa teoria das “form as” ou das “idéias” , de Platão, poderia ser descrita, em linhas gerais, como a doutrina de que o lado “b o m ” do Q uadro de Oposições constitui um universo invisível — um m undo de realidade superior, povoado pelas form as im utáveis e determ inadas de todas as coisas; de que a verdade e o conhecim ento seguro {episteme = scientia — ciência) só se podem dirigir a esse universo real e constante, de que o m undo visível de tra n s­ form ação e fluxo em que vivemos e m orrem os — o m undo da geração e d a des­ truição, da experiência — não passa de um reflexo ou cópia: é um universo ex­ clusivam ente de aparências, onde não há lugar p ara o verdadeiro conhecim ento. O

19 — No seu livro Parmênides (1916; segunda edição, 1959, pág. 220), Karl Reinhardt diz, com muito vigor: “A história da filosofia é a história dos seus problemas. Quem quiser explicar Heráclito precisará dizer em primeiro lugar qual era o seu problema”. Concordo inteiramente e acredito que o problema de Heráclito era o problema da transformação das coisas — mais precisamente, da identidade (e nâõidentidade) das coisas, durante sua mutação (vide Open Society, cap. 2). Se aceitarmos a evidência apontada por Reinhardt sobre o estreito relacionamento entre as idéias de Heráclito e as de Parmênides, este ponto de vista sobre o problema de Heráclito faz com que o sistema de Parmênides se torne uma tentativa para resolver a questão dos paradoxos da mudança, considerando toda mudança irreal, Gornford e seus discípulos acompanham a doutrina de Burnet de que Parmênides foi um pitagórico (dissi­ dente) — o que pode ser verdade, mas a evidência nesse sentido não prova que ele nao teve também um professor jónico (vide cap. 5 deste livro). 20 — Platão, Theaetetus, 181a; Sèxtus Empiricus, Adv. Mathem. (Bekker), X.46, pág. 485, 25.

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

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aptas a in te rp re ta r as observações mais grosseiras. No caso da teoria de Parm ênides, o choque com a observação era tão óbvio que pareceria talvez fantasioso des­ crevê-la como o prim eiro sistema hipotético-dedutivo da ciência física. Podemos descrevê-la, p o rtan to , como o derradeiro antecessor dos sistemas dedutivos físicos — cuja refutação provocou o surgim ento da p rim eira teoria física sobre a m atéria: a teoria atom ística de Dem ócrito. A teoria de Parm ênides é simples: p ara ele é impossível entender racio n alm ente a m u d an ça ou o m ovim ento; daí a conclusão de que não há realm ente m ud an ça — ela é apenas aparente. Mas, antes de sentirmos superioridade diante de teoria tão irrem ediavelm ente irrealista, precisamos tom ar conhecim ento do sério problem a que ela apresenta. Se um a coisa “X ” se m odifica, obviam ente deixa de ser a m esm a coisa “X ” . Por outro lado, não podem os dizer que “X ” se m odifica sem im plicar que continua a existir d u ran te o processo de m udança: que é a m es­ m a coisa “X ” , no princípio e no fim daquele processo. Parece que estamos diante de um a contradição: que a idéia de que um a coisa pode m u d ar é impossível; p o r­ tan to , que a m u d an ça é impossível. T u d o isso soa m uito filosófico e abstrato. A verdade, porém , é que a dificul­ dade indicada sem pre se fez sentir no desenvolvimento da física. 21 Um sistema determ inístico como a teoria do cam po de Einstein poderia até mesmo ser descrito como um a versão em q u atro dimensões do universo tridim ensional im utável de Parm ênides — num certo sentido, no universo com pacto em quatro dimensões de Einstein n ad a m uda: todas as coisas perm anecem no seu locus quadridim ensional. As m udanças se to rn am u m a espécie de “m ud ança ap aren te”; é “só” o observador que desliza pelo seu world-line, tornando-se consciente, sucessivamente, dos d i­ ferentes loci no curso da sua linha — isto é, da sua vizinhança espaço-tem poral... P ara deixar este novo Parm ênides, voltando ao velho criador da física teórica, poderíam os parafrasear sua teoria dedutiva mais ou menos assim: 1) Só o que é existe. 2) O que não é não existe. 3) O não-ser (o vazio) não existe.

A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

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6) O m ovim ento é impossível, pois não há nenhum espaço vazio, que pudes­ se ser percorrido. As conclusões 5) e 6) obviam ente contradiziam os fatos. Assim, Demócrito argum entava a p artir da falsidade das conclusões p a ra chegar às premissas: 6’) O m ovim ento existe (portanto ele é possível). 5’) O m undo é form ado de partes: não é uno, porém , vário. 4’) P ortanto o m undo não pode ser co m p acto .22 3’) O vazio (ou não-ser) existe. Neste ponto, p o rtan to , a teoria precisaria ser m odificada. Com relação ao ser ou à pluralidade das coisas existentes (em contraposição ao vazio), Demócrito adotou a teoria de Parm ênides: os átomos eram indivisíveis porque com pactos; não havia nenhum vazio no seu interior.

O que há de im portante nessa teoria é o fato de que ela explica racionalm ente as m udanças: o m undo consiste em espaço vazio, povoado de átom os. Os átomos não se alteram : são, em m in iatu ra, universos com pactos, na concepção de Parm ênides. 23 T oda m u dança corresponde a um rearran jo dos átomos no espaço; assim, toda m udança é u m m ovim en to . Como o único tipo de novidade relacio­ nado com esse ponto de vista tem a ver com a distribuição no espaço,24, será pos­ sível, em princípio, prever todas as alterações fu tu ra s a ocorrer no m undo, desde que possamos predizer o m ovim ento de todos os átom os (ou, p ara usar term inologia m oderna, de todos os pontos-de-m assa). A teoria da m udança de Dem ócrito teve enorm e im portância no desenvol­ vim ento da ciência física; foi aceita parcialm ente por Platão, que preservou em boa parte a concepção atom ística — em bora explicasse a m ud an ça não pelo conceito de átomos que se m ovim entam sem se m odificar, m as por outras “form as”, in d epen­ dentes da m udança e do m ovim ento. Mas foi condenada por Aristóteles, que e n ­ sinou 25 que a m udança era sem pre o desenvolvimento de potencialidades inerentes das substâncias essencialmente im utáveis. A teoria de Aristóteles passou a preva­

4) O m undo é com pacto. 5) O m undo não tem com ponentes: é um só bloco (porque é com pacto).

21 — 0 que se pode comprovar lendo Identity and Reality, de Emile Meyerson, um dos estudos filo­ sóficos mais interessantes sobre o desenvolvimento das teorias físicas. Hegel (seguindo Heráclito — ou o relato de Aristóteles sobre suas idéias) admitiu que o fato da mudança (que ele considerava contradi­ tório) prova a existência de contradições neste mundo, refutando assim a “lei da contradição” — isto é, o princípio de que nossas teorias precisam evitar a contradição a qualquer custo. Hegel e seus seguidores — especialmente Engels, Lenin e outros marxistas — começaram a enxergar “contradições” em toda parte, denunciando as filosofias que sustentavam a “lei da contradição” como “metafísicas” — termo usado para denotar que essas filosofias ignoravam o fato de que o mundo muda. Vide o cap. 15 deste livro.

22 — A inferência que nos leva da existência do movimento à do vazio não é válida; da mesma forma, a inferência feita por Parmênides da impossibilidade do movimento, a partir do caráter compacto do mundo, também não é válida. Platão parece ter sido o primeiro a notar, ainda que pouco claramente, que num mundo compacto o movimento circular ou em vórtice é possível, desde que haja um meio fluido. (As folhas de chá se movem na xícara com o movimento circular do próprio chá). Esta idéia, apresentada a princípio timidamente no Timeu (onde o espaço aparece “preenchido”, 52e), constituirá a base do cartesianismo e da teoria do “éter luminífero”, aceita até 1905. (Vide também nota 44, adian­ te). 23 — A teoria de Demócrito admitia também átomos compactos maiores, mas a grande maioria deles era de tamanho muito reduzido, invisíveis. 24 — Vide The Poverty o f Historicism, seção 3. 25 — Inspirado pelo Timeu de Platão (55), onde as potencialidades dos elementos são explicadas pelas suas propriedades geométricas (portanto, pelas formas substanciais) dos sólidos correspondentes.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

lecer — m as se revelou pouco fé rtil2627; a teoria m etafísica de Dem ócrito, de que toda m u d an ça precisa ser explicada pelo m ovim ento, constituiu a base tácita da in ­ vestigação, na física, até os nossos dias — e é ainda parte da filosofia da física, a despeito de ter sido ultrapassada pela pró p ria física e tam bém pelas ciências sociais e biológicas. N o sistema de Newton en tram em cena, além de pontos-de-m assa, forças de intensidades e direções variáveis. É verdade que as forças new tonianas podem ser explicadas como sendo devidas ao m ovim ento (ou dele dependentes); isto é, es­ tariam condicionadas à posição cam biante das partículas. Contudo, elas não são idênticas às m odificações na posição das partículas — devido à lei do inverso dos quadrados, essa dependência não é linear. Com Faraday e Maxwell, os campos de forças cam biantes são tão im portantes quanto as partículas atôm icas m ateriais. O fato de que a concepção m oderna do átom o adm ite que ele seja um a entidade com posta é m enos im portante — do ponto de vista de D em ócrito, o que c h a ­ m am os de “partículas elem entares” seriam os verdadeiros “átom os” (com a exceção de que essas partículas são tam bém susceptíveis a m udanças). Chegamos, assim, a um a situação m uito interessante: a filosofia, que procurava um a explicação r a ­ cional p ara a m u d an ça, serve à ciência d u ran te m ilhares de anos, sendo u ltrap as­ sada pelo desenvolvimento da p rópria ciência — fato que passa praticam ente in a d ­ vertido pelos filósofos, ocupados em negar a existência de problem as filosóficos. A teoria de D em ócrito foi um a realização m aravilhosa, que proporcionou um a base teórica p a ra explicar a m aior p arte das propriedades da m atéria, co­ nhecidas em piricam ente (e já discutidas pelos jónicos), tais como a compressibilidade, a dureza e a resistência, a rarefação e a condensação, a coerência, a desin­ tegração, a com bustão e m uitas outras. Mas a teoria só era im portante como ex­ plicação do fenôm eno experim ental. Em prim eiro lugar, ela estabelecia o princípio m etodológico de que um a teoria ou explicação dedutiva precisa “respeitar os fe­ nôm enos” ; 27 isto é, ajustar-se à experiência. Em segundo lu g a r, m ostrava que um a teoria pode ser especulativa, baseando-se no princípio fundam ental (de Parm ênides) de que o m undo com preendido pelo intelecto é diferente do m undo da ex ­ periência prim a fa c ie — conform e é visto, ouvido, provado, cheirado e to c a d o ;28 que, contudo, um a teoria especulativa pode aceitar o “critério” em pirista de.que é o visível que vai decidir a aceitação ou rejeição de um a teoria sobre o invisível. 29 Esta posição continua a ser fundam en tal p a ra todo o desenvolvimento da física; continua a conflitar com as tendências filosóficas “relativista” e “positivista” . 30

26 — A pouca fertilidade da teoria “essencialista” da substância está ligada ao seu antropomortismo; de fato, como Locke viu bem, as substâncias derivam sua plausibilidade da experiência do homem: um ser idêntico que no entanto muda e se desenvolve. Mas, embora possamos aceitar o fato de que a subs­ tância aristotélica tenha desaparecido da física, não há nada de mal — como diz o professor Hayek em pensar antropomorficamente a respeito do homem; não há qualquer razão filosófica, ou apriorística, para que essa idéia desapareça da psicologia. 27 — Vide a sexta nota do cap. 3 deste livro. 28 — Cf. Demócrito, Diels, frag. 11 (cf. Anaxágoras, Diels, frag. 21 e também frag. 7). 29 — Cf. Sextus Empiricus, Adv. Mathem. (Bekker), vii, 140, pág. 221, 23B. 30 — “Relativista” no sentido do relativismo filosófico, como por exemplo o da doutrina do homo men­ sura de Protágoras. Infelizmente, ainda é necessário enfatizar que a teoria dé Einstein nada tem em comum com esse relativismo filosófico. O termo “positivista” denota tendência como a de Bacon, por exemplo; a teoria da primitiva Royal Society (teoria mas não a prática, afortunadamente); e, no nosso tempo, as idéias de Mach (que se opôs à teoria atômica) e dos teoristas dos dados sensoriais.

A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

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Além disso, a teoria de D em ócrito levou aos prim eiros êxitos do m étodo da exaustão (precursor do cálculo da integração); o próprio A rquim edes reconheceu que Dem ócrito foi o prim eiro a form ular a teoria sobre o volume dos cones e das p irâm id es.31 O elem ento m ais fascinante da teoria de D em ócrito talvez seja sua doutrina da quantização do espaço e do tem po. Refiro-m e à d o utrina — que u l­ tim am ente tem sido m uito discutida 32* — de que há um a distância m ínim a e um intervalo de tem po mínimo:, isto é, que há distâncias no espaço e no tem po — elementos tais de extensão e de tem po (o a m e r é s ^ de D em ócrito, cliferente do seu “átom o”) que não poderia haver menores. 7 ..’

' v ii

; /

Q atom ism o de D em ócrito foi desenvolvido e exposto sob a form a de res­ posta d e ta lh a d a 34 aos argum entos minuciosos dos seus predecessores eleáticos — Parm ênides e Zeno. A. doutrina das distâncias atôm icas e dos intervalos de tem po de Demócrito resulta em especial, de form a direta, dos argum entos de Zeno — ou, m ais p reci­ sam ente, da rejeição das suas conclusões. C ontudo, em tudo o que conhecemos de Zeno não há nenhum a alusão à descoberta dos irracionais, que tem im portância decisiva p ara o assunto. N ão sabemos d a ta r a prova da irracionalidade da raiz q u ad rad a de 2, ou sua divulgação. Em bora haja um a tradição que atribui a Pitágoras (no sexto século antes de Cristo), e em bora alguns au to res35 a cham em de “teorem a de Pitágoras” , não pode haver m uita dúvida de que essa descoberta não foi feita, e certam ente não foi divulgada, até o ano 450 antes de Cristo — provavelm ente não antes de 420. É incerto se Dem ócrito a conhecia; hoje, inclino-m e a pensar que não — que o título das duas obras perdidas de Demócrito, Peri A logón G ram m ón kai Nastón,

31 — Cf. Diels, frag. 155, que precisa ser interpretado à luz de Arquimedes (ed. Heiberg) II 2, pág. 428. Vide também o importante artigo de S. Luria, “Die Infinitesimalmethode der antiken Atomisten” (Quellen & Studien zur Gesch. d. Math., B, 2, Heft 2, 1932, pág. 142). 32 — Cf. A. March, Natur und Erkenntnis, Viena, 1948, pág. 193. 33 Cf. S. Luria, opus cit., em especial a partir das páginas 148 e 172. A. T. Nicols argumenta, em “Indivisible Lines” (Class. Quarterly, XXX, 1936, 120), que “duas passagens, uma de Plutarco, a outra de Simplício, mostram por que Demócrito “não podia acreditar em linhas indivisíveis”; o autor não examina, porém, o ponto de vista oposto, de Luria (1932), que considero muito mais convincente — es­ pecialmente se recordamos que Demócrito tentou refutar Zeno (vide a nota seguinte). Qualquer que tenha sido a opinião de Demócrito a respeito das distâncias atômicas, ou indivisíveis, Platão parece ter acreditado que o atomismo de Demócrito precisava ser revisto à luz da descoberta dos irracionais. Con­ tudo, Heath {Greeh Mathematics, 1, 1921, pág. 181), referindo-se a Simplício e a Aristóteles, declara também acreditar que Demócrito não ensinou a existência de linhas indivisíveis. 34 — Essa resposta pormenorizada foi preservada no trabalho de Aristóteles Sobre a Geração e a Corrupção, 316a, 14 e segs. — uma passagem muito importante que foi a princípio qualificada como refletindo a posição de Demócrito (por I . Hammer Jensen, em 1910), e depois examinada cuidadosamente por Luria, que diz (pág. 135, opus cit.) a respeito de Parmênides e de Zeno: “Demócrito toma emprestada sua argumentação dedutiva, mas chega a conclusões opostas”. 33 — Cf. G. H. Hardy e E. M. Wright, Introduction to the Theory o f Numbers, 1938, págs. 39 e 42, onde encontramos uma observação histórica muito interessante sobre a prova de Teodoro, conforme o Theaetetus de Platão. Vide também o artigo de A. Wasserstein, “Theaetetus and the History of the Theory of Numbers”, Classical Quarterly, 8, N. S., 1958, págs. 165-79 — o melhor exame desse ponto que conheço.

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

deveria ser traduzido como Sobre as Linhas Ilógicas e os Corpos Compactos (Á to m o s) 36 — esses dois livros não deviam conter qualquer referência à descoberta da irracionalidade. 37

diretam ente, já que são invisíveis, e que na verdade não contamos núm eros ou unidades naturais, mas m edim os — isto é, contam os unidades visíveis arbitrárias. C ontudo, p a ra eles essas medições revelavam, indiretam ente, as razões verdadeiras das unidades naturais: os núm eros naturais.

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M inha crença em que Dem ócrito não estava consciente do problem a dos núm eros irracionais se baseia no fato de que não há vestígio de qualquer defesa da sua teoria contra o golpe que ela recebeu com aquela descoberta — golpe que foi tão letal p a ra o atom ism o, como p ara o pensam ento pitagórico. Essas duas teorias se fu ndam entavam , de fato, n a d o u trin a de que toda m edida pode ser reduzida a núm eros puros. Assim, a distância entre dois pontos atômicos quaisquer precisa consistir em um certo núm ero de distâncias atôm icas — por isso todas as distâncias são com ensuráveis. Mas isso é impossível, mesmo na hipótese mais simples da dis­ tância entre os ângulos de um q u ad rad o , devido à incom ensurabilidade da d ia ­ gonal d com o lado a . O term o “incom ensurável” não é m uito feliz. O que se quer dizer é que não há um a razão de núm eros naturais. Por exemplo: o que pode ser provado, no caso da diagonal do q u ad rad o unitário, é que não existem dois núm eros naturais, n e m, cuja razão, n / m , seja igual á sua diagonal. “Incom ensurabilidade” não significa p o rtan to incom parabilidade por m étodos geométricos ou pela m edição , m as incom parabilidade pelos processos aritm éticos de contagem com núm eros naturais — inclusive o m étodo caracteristicam ente pitagórico de com parar razões de núm eros naturais (incluindo, n atu ralm en te, a contagem de unidades de extensão). Retornem os, por um m om ento, às características deste m étodo do^ núm eros naturais e suas razões. A ênfase pitagórica no N úm ero foi frutífera, do jponto de vista do desenvolvimento de idéias científicas, o que se costum a expressar com freqüência — mas vagam ente — com a afirm ativa de que Pitágoras deu início à m edição num érica científica. O que pretendo acentuar aqui é que p ara os pitagóricos isso era contagem , não medição: a contagem de núm eros, essas essências ou “naturezas” invisíveis. Eles sabiam que não podem os contar esses pequenos pontos 36 — Em vez de Sobre as Linhas Irracionais e os'Átomos (On Irrational Lines and Atoms), como traduzi na nota 9, cap. 6, de Open Society (2.a edição). O sentido provável desse título, considerando a pas­ sagem de Platão mencionada na nota seguinte, levaria à tradução “On Crazy Lines and Atom s” (Cf. H. Vogt, Bibl. Math., 1910, 10, 147 — contra quem Heath argumenta, em op. cit., 156, na minha opinião sfcm grande êxito — e S. Luria, opus cit., pág. 168, onde se sugere, de modo convincente, que De insec. lin. 968b 17 (Arist.) e De comm. notit., 38,2, pág. 1078 (Plut.) contêm vestígios do trabalho de De­ mócrito. De acordo com essas fontes, o argumento de Demócrito era o seguinte: se as linhas são infi­ nitamente divisíveis, são compostas por uma infinidade de unidades últimas, todas elas relacionadas en­ tre si como oo:oo isto é, são todas “não comparáveis” (sem uma proporção). De fato, se considerarmos as linhas como classes de pontos, o número cardinal (potência) relativo a todos os pontos de uma linha será o mesmo (segundo o ponto de vista moderno), sejam as linhas finitas ou infinitas. Esse fato já foi qualificado de “paradoxal” (por exemplo, por Bolzano) — e poderia perfeitamente ser chamado de “irrazoável” (em inglês, crazy) por Demócrito. Note-se que, segundo Brouwer, mesmo na teoria clássica de Lebesgue a medida, de um continuum leva fundamentalmente ao mesmo resultado; Brouwer afirma que todos os continua clássicos têm medida zero, de modo que a inexistência de uma proporção pode ser expressada por 0 :0 .0 resultado de Demócrito (e sua teoria do ameres) pareeta inescapável, na medida em que a geometria se baseia no método aritmético de Pitágoras — isto é, na contagem de pontos. 37 — Isso estaria de acordo com o fato, mencionado na nota citada de Open Society, de que o termo alogos só muito mais tarde parece ter sido usado com o sentido de “irracional”; ao aludir ao título de Demócrito, na República (534d), Platão usa alogos na acepção de “irrazoável” — nunca o utiliza como sinônimo de arrhétos.

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Daí o fato de que o m étodo de Euclides p a ra provar o cham ado “T eorem a de Pitágoras” (Euclides, 1, 47), segundo o qual se a é o lado de um triângulo oposto a seu ângulo reto entre b e c, (1) a 2 - b 2 + c2, é um m étodo estranho ao espírito da m atem ática pitagórica. Parece agora geralm ente aceito que esse teorem a já era conhecido dos babilônios, que o haviam dem onstrado geom etricam ente. C ontudo, nem Pitágoras nem Platão parecem ter conhecido a prova geom étrica de Euclides (que usa diferentes triângulos com base e altura com uns); conhecida a fórm ula (1), o problem a p ara o qual ofereceram soluções, o problem a aritm ético de encontrar soluções integrais p a ra os lados dos triângulos retângulos, ppde ser solucionado facilm ente pela fórm ula (2) a = m 2 + n2

b = 2mn

c = m ^H -n^

(onde m e n são núm eros naturais e m >n). Mas a fórm ula (2) era aparentem ente desconhecida por Pitágoras e mesmo por Platão — é o que depreendem os da tra d iç ã o 38 segundo a qual Pitágoras propôs outra fórm ula: (3) a = 2n (n + 1) + 1

b = 2 n ( n + l)

c = 2n + 1

(obtida da fórm ula (1) m ediante m = n + 1), que pode ser depreendida do gnom on dos núm eros quadrados, m as que é menos geral do que (2), pois falha, por exem plo, no caso de 17:8:15. A Platão, que parece ter aperfeiçoado a fórm ula p itag ó rica39, atribui-se um a outra fórm ula que tam bém não tem aplicação geral. Para m ostrar a diferença entre o m étodo pitagórico, aritm ético, e o geo­ m étrico, pode-se m encionar a prova de Platão de que o quad rad o construído com a diagonal do quadrado unitário (isto é, o q u adrado com lado 1 e área de m edida 1) tem área que é o dobro da do quadrado unitário (isto é, um a área de m edida 2). Essa prova consiste em desenhar um q u adrado com a seguinte diagonal:

m ostrando em seguida que o desenho pode ser am pliado assim :

38 — Prodi Diadochi in Primum Euclidis Elementorum Librum Commentarn, ed. Friedlein, Leipzig, 1873, págs. 487, 7-21. 39 — Por Proclus, op. cit., págs. 428, 21-429, 8.

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

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A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

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Essa prova usa apenas a aritm ética dos núm eros naturais — p ortanto, métodos puram ente pitagóricos. Não precisamos questionar a tradição segundo a qual ela foi descoberta pelos pitagóricos; m as é improvável que a descoberta tenha sido feita pelo próprio Pitágoras, ou que tenha sido feita num a época rem ota: Zeno e D em ócrito não parecem tê-la conhecido. Além disso, como destruiu a base do pensam ento pitagórico, é razoável presum ir que não foi concebida m uito antes de aquela ordem ter atingido o ápice da sua influência — pelo menos não antes de que estivesse perfeitam ente estabelecida. A p a rtir desse ponto chegamos a um resultado por contagem . Mas a transição da prim eira figura p ara a segunda não pode ser provada válida pela aritm ética dos pontos — e tam bém não pelo m étodo das razões. É o que dem onstra a fam osa prova da irracionalidade da diagonal, isto é, da raiz q u ad rad a de 2, que se presum e ter sido bem conhecida por Platão e Aris­ tóteles. Consiste em m ostrar que a premissa = n /m — isto é, de que ^ 2 é igual à razão de quaisquer dois núm eros naturais, n e m — leva a um absurdo. Observamos, inicialm ente, que é possível adm itir que (2) dos dois núm eros naturais, n e m , um só é par. Com efeito, se ambos fossem pares, poderíam os sempre cancelar o fator 2, obtendo dois outros núm eros naturais, n ’ e m ’, tais que n /m — n /m , dos quais n ’ou m \ seria p ar. O ra, elevando (1) ao qu ad rado, temos: (3) 2 = n 2/ m 2 e daí: (4) 2 m 2 = n 2 logo:

A tradição de que a descoberta foi feita dentro da ordem , mas m antida em segredo, parece-m e bastante plausível, e poderia ser apoiada pela consideração de que o term o antigo p ara “irracional” (arrhétos, “im pronunciável” ou “não mencionável”) insinua um segredo. De acordo com essa tradição, o m em bro da escola que revelou o segredo foi m orto pela sua tra iç ã o .40 De qualquer m odo, não há m uita dúvida de que a percepção de que existem m agnitudes irracionais (n a tu ra lm ente, não eram concebidas como núm eros) e de que sua existência podia ser dem onstrada m inou a fé que dava consistência à ordem pitagórica, destruindo a esperança de que fosse possível derivar a cosmologia, ou mesmo a geom etria, da aritm ética dos núm eros naturais. V III Foi Platão que percebeu isso; foi ele que, nas Leis, acentuou a im portância da descoberta nos termos m ais vigorosos, denunciando os com patriotas por não en ten ­ derem suas implicações. Estou seguro de que toda a sua filosofia — especialm ente a teoria das “form as” ou “idéias” — sofreu a influência desse fato. Platão se situava m uito perto dos pitagóricos e dos eleatas; em bora pareça ter sentido an tipatia com relação a Dem ócrito, ele próprio era um a espécie de atom ista. O ensinam ento atomístico constituiu um a das tradições da sua A cade­ m ia .41 Isso não nos supreenderá se levarmos em conta a estreita relação que há entre as idéias pitagóricas e atomísticas. T udo isso foi am eaçado pela descoberta dos núm eros irracionais.

(5) n é p ar. Assim, deve haver um núm ero n atu ral a, que faça com que (6) ti = 2a; de (3) e (6) extraím os (7) 2 m ^ = n^ = 4a^ portanto: (8) m2 = 2a.2

Penso que a principal contribuição platônica à ciência teve suas raízes na percepção do problem a dos irracionais, na m odificação das idéias pitagóricas e atomísticas que ele precisou prom over p ara salvar a ciência de um a situação catas­ trófica. Platão percebeu que a teoria puram ente aritm ética da natureza estava derrotada; que era necessário criar um novo m étodo m atem ático p ara descrever e explicar o m undo — por isso incentivou o desenvolvimento de um m étodo geo­ m étrico autônom o, que daria frutos nos Elem entos de Euclides — um pensador que seguiu a linha platônica.

pelo que: (9) m é par.

Está claro que (5) e (9) contradizem (2). Assim, a premissa de que há dois núm eros n aturais, n e m, cuja razão é igual a 1Í2, leva a um a conclusão absurda. Por conseguinte, l f 2 não é um a razão, mas um núm ero “irracional”.

40 — 0 delator seria um certo Hipaso, figura que aparece com pouca nitidez na penumbra da história. Diz-se que esse Hipaso morreu no mar (cf. Diels). Vide também o artigo de A. Wasserstein, já men­ cionado. 41 — Vide S. Luria, especialmente a respeito de Plutarco, Loc. cit.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Quais são os fatos históricos? T entarei relacioná-los em poucas palavras: 1) N a form a como se m anifestam em Dem ócrito, tanto as idéias atomlsticas como as pitagóricas se baseiam fundam entalm ente na aritm ética — isto é, na con­ tagem . 2) Platão acentuou o caráter catastrófico da descoberta dos irracionais. 3) Ele m andou escrever no portão da sua A cadem ia: “N ão E n trará Nesta Casa Q uem N ão Souber G eom etria” . Mas, de acordo com Aristóteles, que foi seu alu n o 42, e tam bém de acordo com Euclides, a geometria tra ta tipicam ente dos in ­ comensuráveis ou irracionais, em contraposição à aritm ética, que tra ta dos n ú ­ meros “pares e ím pares” — quer dizer, dos núm eros inteiros e suas relações. 4) Pouco tem po depois da m orte de Platão, sua escola produziu um a obra — os Elem entos de Euclides — que teve com o um de seus efeitos principais libertar a m atem ática da prem issa “aritm ética” da com ensurabilidade e da racionalidade. 5) O próprio Platão contribuiu p ara esse desenvolvimento — especialm ente no cam po da geom etria sólida. 6) Mais especialm ente, ele elaborou, no T im eu, um a versão geom étrica da teoria atom lstica, que em sua origem era p u ram ente aritm ética: versão que co n ­ cebia partículas elem entares (os famosos corpos platônicos) a p artir de triângulos que incorporavam as raízes q uadradas irracionais de dois e de três. Em quase todos os outros aspectos, Platão preservou as idéias pitagóricas, bem como algumas das idéias m ais im portantes de D em ócrito.43 Procurou, ao mesmo tem po, elim inar o conceito de “vazio” de Dem ócrito, porque percebeu 44 que o m ovim ento é possível mesmo num m undo “com pacto” , desde que seja concebido como vórtices num fluido. G uardou, portanto, algum as das idéias mais fundam entais de Parm ênides. 45 7) Platão encorajou a construção de modelos geométricos do m undo, es­ pecialm ente m odelos que explicassem os movimentos planetários. A credito que a geom etria de Euclides não pretendia ser um exercício de geom etria p u ra (como

42 - An. Post., 76b9; Meta/., 983a20, 1061M; Epinomis, 990d. 43 — Platão aceitou a teoria dos vórtices, de Demócrito, (Diels, fragm. 167, 164; cf. Anaxágoras, Diels 9, 12 e 13) e sua teoria do que chamaríamos hoje de fenômenos gravitacionais (Diels, 164; Anaxágoras, 12, 13, 15 e 2), a qual foi ligeiramente modificada por Aristóteles e rejeitada depois por Galileu. 44 — A passagem mais clara a este respeito é a do Timeu, 80c, onde se diz que nem no caso do âmbar friccionado nem no da “pedra heracliana” (magneto) há de fato qualquer atração: “não existe o vazio; as coisas deslizam umas sobre as outras”. Por outro lado, Platão não foi muito claro sobre esse ponto, pois suas partículas elementares (excetuadas o cubo e a pirâmide) não podem ser aproximadas sem deixar algum espaço entre si (vazio?), como observou Aristóteles em De Caelo, 306b5.'Vide também o Timeu, 52e. 45 — A reconciliação do atomismo e da teoria do plenum (“a natureza rejeita o vácuo”), por Platão, tem a maior importância para a história da física, até os nossos dias. Influiu fortemente em Descartes, tornou-se a base da teoria do éter e da luz e, portanto,em última análise, da mecânica ondulatória de Broglie e de Schrodinger. através de Huyghens e Maxwell. Vide meu relatório em A tti d. Congr. Intem. deFilos (1958), 2, 1960, pág. 367.

A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

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hoje se im agina, de m odo geral), mas sim o organon de um a teoria do m undo. De acordo com este ponto de vista, os Elem entos não são um “com pêndio de geo­ m etria”, m as um a tentativa de resolver sistem aticam ente os principais problem as da cosmologia platônica — o que conseguiu com tal êxito que, um a vez solucio­ nados, aqueles problem as desapareceram e foràm quase esquecidos. D eixaram um vestígio, contudo, em Proclus, que escreveu: “Alguns têm im aginado que o assunto dos vários livros (de Euclides) dizem respeito ao cosmos, tendo por objetivo ajudarnos n a contem plação do universo e na sua teorização” . T odavia, nem mesmo Proclus m enciona nesse contexto o problem a m ais im portante — os irracionais (em bora se refira a ele em outras passagens). Mas o m esmo Proclus ap o n ta, co r­ retam ente, que os Elem entos culm inam com a construção dos poliedros regulares “cósmicos” ou “platônicos” . Desde Platão e Euclides46, m as não antes deles, a geom etria aparece, em lugar da aritm ética, como o instrum ento fundam ental de todas as explicações e descrições físicas, na teoria da m atéria e na cosm ologia.47*

IX Esses são os fatos históricos, que contribuem m uito p a ra dem onstrar m inha tese principal: o m étodo prim a fa cie usado no ensino da filosofia não pode levar à com preensão dos problem as que inspiraram Platão, como tam bém não pode levar à apreciação do que se pode qualificar com justiça sua m aior realização filosófica — a teoria geom étrica do m undo. Ao se voltarem de Aristóteles p ara Platão, os grandes físicos da Renascença — Copérnico, Galileu, Kepler, G ilbert — p re te n ­ deram com isso substituir as substâncias ou potências aristotélicas, qualitativas, por um m étodo geom étrico da cosmologia. Com efeito, isso foi, em grande p arte, o que o Renascim ento significou, em termos científicos: o ressurgim ento do m étodo geom étrico, em que se basearam Euclides, A ristarco, A rquim edes, Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes, Newton, Maxwell e Einstein. Podemos qualificar esse desenvolvimento propriam ente como filosófico} Não será na verdade um capítulo da física — um a ciência factual — e da m atem ática pu ra — que para os seguidores de W ittgenstein é um ram o da lógica tautológica? Creio que neste ponto podemos perceber claram ente por que a realização platônica foi filosófica — em bora apresente tam bém com ponentes físicos, lógicos, híbridos e até mesmo sem qualquer sentido; por que sua física e filosofia da n a ­ tureza pelo menos em parte resistiram ao tem po, e continuarão a resistir.

46 — Uma exceção seria o reaparecimento de métodos aritméticos na teoria quântica, isto é, na teoria do sistema periódico de órbitas eletrônicas baseado no princípio da exclusão de Pauli — uma inversão da tendência platônica para geometrizar a aritmética. A respeito da tendência moderna para a “aritmetização da geometria” (que não é característica de todos os trabalhos geométricos modernos), ou da análise, vale notar que apresenta pouca semelhança com a abordagem pitagórica, pois emprega conjun­ tos, ou sequências infinitas, de números naturais — e não os próprios números naturais. Só os que se limitam ao emprego dos métodos “construtivos”, “finitistas” ou “ii^tuicionistas” poderiam alegar que suas tentativas de reduzir a geometria à teoria dos números se aproximam das idéias pitagóricas ou préplatônicas. Um passo importante nesse sentido foi tomado recentemente, ao que parece, pelo mate­ mático alemão E. de Wette. 47 — Vide G. F. Hemens, Proc. o f the Xth. Intem. Congress o f Philosophy (Amsterdam, 1949), Fase 2, 847, a propósito da influência de Platão e de Euclides.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

O que encontram os em Platão e nos seus predecessores é a construção deliberada, a invenção de um a nova abordagem do m undo e do conhecim ento a respeito do m undo. A bordagem que transform a um a idéia originalm ente teológica, a idéia de explicar o m undo visível por u m m u ndo invisível que é postulado, 48 no instrum ento fu n d am en tal da ciência teórica. Essa idéia foi form ulada explicitam ente por A naxágoras e por Dem ócrito 49 como o princípio da investigação da natureza da m atéria ou de um corpo; a m atéria visível deveria ser explicada por um a hipótese a respeito dos invisíveis, sobre um a estrutura invisível, pequena demais para poder ser vista. Com Platão, essa idéia é conscientem ente aceita e generalizada: o m undo visível das m udanças é explicável, em últim a análise, pelo m undo invisível das “form as” (“substâncias” , “naturezas” ou “essências” — isto é, figuras geom étricas) im utáveis. Esta concepção da estrutura invisível da m atéria é física ou filosófica? Se um físico apenas age com fundam ento nessa teoria, se a aceita — talvez inconscien­ tem ente — aceitando os problem as tradicionais do seu cam po de estudo, indicados pela situação-problem a que o confronta, e se, ao agir assim, elabora um a nova teoria específica sobre a estrutura da m atéria, não diria que é um filósofo. Mas, se ele reflete sobre a teoria e, por exem plo, a rejeita (como Berkeley e M ach), p re ­ ferindo ad o tar um a física positivista e fenom enológica, e não um a física teórica e até certo ponto teológica, então é um filósofo. Da m esm a form a, os que elab o ­ raram conscientem ente a abordagem teórica, form ulando-a explicitam ente — transferindo assim os m étodos hipotético e dedutivo da teologia p ara a física — eram filósofos, em bora fossem tam bém físicos, na m edida em que atu aram com base nos seus próprios preceitos, tentando fo rm ular teorias efetivas sobre a es­ tru tu ra invisível da m atéria. Mas não m e dem orarei na questão do rótulo filosófico — esse problem a, que é o de W ittgenstein, tem a ver com o uso lingüístico; é um pseudoproblem a, que aliás já deve estar aborrecendo o leitor. Desejaria, no entanto, acrescentar algum as palavras a respeito da teoria platônica das form as, ou idéias — o ponto 6 d a lista de fatos históricos reproduzida acim a. A teoria de Platão sobre a estrutura da m atéria pode ser encontrada no Tim eu; tem um a sem elhança pelo menos superficial com a teoria m oderna dos sólidos, que os considera como cristais: os corpos físicos são compostos por p a rtí­ culas elem entares invisíveis, de diferentes form as — responsáveis pelas propriedades m acroscópicas d a m atéria visível. As form as das partículas elem entares são d e te r­ m inadas, por sua vez, pelas figuras planas que constituem seus lados — as quais, finalm ente, se com põem de dois triângulos elem entares: o m eio-quadrado (ou triângulo isósceles retan g u lar), que incorpora a raiz quadrada de dois; e o triângulo retan g u lar sem i-equilátero, que incorpora a raiz quadrada de três am bos ir ­ racionais.

48 — Cf. a explicação homérica sobre o mundo visível em torno de Tróia com a ajuda do mundo in­ visível do Olimpo. Com Demócrito, a idéia perde uma parte do seu caráter teológico (que ainda é bas­ tante forte em Parmênides, e menos em Anaxágoras) para reavê-lo com Platão — perdendo-o pouco depois. 49 — Vide Anaxágoras, frags. B4 e 17, Diels-Kranz.

A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

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Esses dois triângulos podem ser descritos como cópias50 de “form as” ou “idéias” imutáveis, o que significa que figuras especificam ente geométricas são a d ­ m itidas no céu das form as-núm eros aritméticas concebido por Pitágoras. Não há m uitas dúvidas de que a razão para isso é a tentativa de solucionar a crise do atom ism o incorporando os irracionais aos elem entos de que o m undo está construído. Pode-se vencer, assim, a dificuldade relacionada com a existência de distâncias irracionais. Por que Platão escolheu justam ente esses dois triângulos? Em outra o p o r­ tu n id a d e ,51 m anifestei m eu ponto de vista (um a conjectura) de que Platão acreditava possível obter todos os outros irracionais som ando aos núm eros racionais os m últiplos da raiz q u ad rad a de dois e da raiz q u ad rad a de três. 52534Sinto-me agora mais seguro de que essa doutrina (equivocada, conform e dem onstraria Euclides) es­ tá im plicada n a passagem crucial do T im eu a este respeito, na qual Platão afirm a claram ente: “Todos os triângulos derivam de dois triângulos, cada um dos quais tem um ângulo reto ” ; e prossegue na especificação desses dois triângulos origi­ nários: o m eio-quadrado e o sem i-equilátero. No contexto, porém , a afirm ativa só pode significar que todos os triângulos podem ser compostos m ediante combinações desses dois — um ponto de vista que equivale à teoria errônea da com ensurabilidade refativa de todos os núm eros irracionais com somas dos núm eros racionais com a raiz qu ad rad a de dois e de três. 55 Mas Platão não pretendia possuir um a prova da teoria em questão. Ao con­ trário, o filósofo afirm ava adm itir os dois triângulos como princípios, “de acordo com um ponto de vista que com bina a conjectura provável com a necessidade”. Mais adiante, depois de explicar que aceita o triângulo sem i-equilátero como o seu segundo princípio, diz: “A razão disso é um a história por dem ais longa; mas se a l­ guém exam inar o assunto, e conseguir provar essa propriedade (im agino que a propriedade de que todos os outros triângulos podem ser compostos por esses dois), a vitória será sua, o que reconhecerei de boa vontade” . 54 A linguagem aqui é um tanto obscura, e a razão provável disso é que Platão tin h a consciência de que lhe faltava um a prova da sua conjectura (errônea) relativa aos dois triângulos “o ri­ ginários” — prova que ele esperava fosse fornecida por alguém .

50 — Vide Open Society, nota 15, cap. 3, a respeito do processo pelo qual os triângulos são impostos ao espaço (a “mãe”) pelas idéias (os “pais”); ao admitir triângulos irracionais no seu paraíso de formas divinas, Platão está admitindo o que é “indeterminável”, no sentido pitagórico — o que pertence ao lado mau do Quadro de Oposições. É no Parmênides (130b-e) que Platão declara pela primeira vez que coisas “más” podem precisar ser aceitas — admissão atribuída ao próprio Parmênides. 51 — Em Open Society, na nota citada. 52 — 0 que significa que todas as distâncias geométricas (magnitudes) seriam comensuráveis com uma de três “medidas” (ou uma soma de duas ou de todas elas), relacionadas entre si do seguinte modo: 1 : \J2 : \f3. Parece provável que Aristóteles chegou mesmo a acreditar que todas as magnitudes geo­ métricas são comensuráveis com uma de duas medidas — 1 e \Í2 , pois escreve (Metafísica, 1053a 17): “A diagonal e o lado de um quadrado e todas as magnitudes (geométricas) são medidas por duas (medidas)”. 53 — Na nota 9, cap. 6, de Open Society, conjecturei igualmente que a aproximação deTT*poiV^ + N/1 encorajou Platão a essa concepção equivocada. 54 — As duas citações são do Timeu, 53 c/d e 54 a/b.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

A obscuridade dessa passagem teve ap arentem ente um estranho efeito: o enunciado platônico de um a escolha de triângulos que introduz irracionais no seu m undo de form as escapou à atenção de quase todos os com entaristas — a despeito da ênfase d ad a pelo filósofo à irracionalidade, em outras passagens. Por sua vez, is­ so pode explicar por que a teoria das form as pôde parecer a Aristóteles fu n d am en ­ talm ente igual à teoria pitagórica das form as-núm eros; 55 por que o atom ism o de Platão parecia a Aristóteles sim plesm ente um a variação m enor do atom ism o de D em ócrito. 56 A despeito de adm itir a associação da aritm ética com “os pares e os ím pares” , e a da geom etria com os irracionais, Aristóteles não parece ter consi­ derado seriam ente o problem a dos irracionais. P artindo da interpretação do T im eu que identifica o espaço de Platão com a m atéria, parece ter aceito natu ralm en te o program a platônico de reform a da geom etria — esse program a já tinha sido executado em p arte por Eudoxus, antes do ingresso de Aristóteles na A cadem ia; por outro lado, seu interesse no cam po da m atem ática era apenas superficial: ele nunca alude, por exem plo, à inscrição existente no portão da Academ ia.

55 — Penso que nossa observação pode elucidar em parte o problema representado pelos dois “prin­ cípios” famosos de Platão — “a unidade” e “a díade indeterminada”. A interpretação seguinte desenvol­ ve sugestão apresentada por van der W iden {De Ideegetallen van Plato, 1941, pág. 132), defendida brilhantemente por Ross {Plato's Theory o f Ideas, pág. 201) contra as críticas do próprio van der Wieleii. Admitamos que a “díade indeterminada” é uma linha reta ou distância, não devendo contudo ser interpretada como unidade de distância (com efeito, não teria sido medida de nenhuma forma). Admita­ mos também que um ponto (limite, “unidade”, monas) é colocado sucessivamente em posições tais que divida a díade de acordo com a proporção 1: n (sendo n qualquer número natural). Podemos então descrever a “geração” dos números como segue. Para n = 1, a díade é dividida em duas partes, com a razão 1:1 — o que pode ser interpretado como a “geração da duplicidade, a partir da unidade” (1:1 = 1) e da díade, já que dividimos esta última em duas partes iguais. Depois de “gerar” o número 2, po­ demos dividir a díade de acordo com a razão 1:2 (a maior das seções seguintes, como antes, segundo a razão ltl) , gerando portanto três partes iguais e o número 3. Em geral, a “geração” de um número n provoca uma divisão da díade conforme a razão 1: n; com isso, a geração dó número n + 1. Em cada fase a “unidade” intervém novamente como o ponto que introduz um limite, forma ou medida na díade indeterminada, para criar outro número. Esta observação pode reforçar a argumentação de Ross çontra van der W iden. Compare com os trabalhos de Toeplitz, Stenzel e Becker em Quellen & Studien z. Gesch. d. Math., 1, 1931. Nenhum desses trabalhos, porém, menciona qualquer geometrização da arit­ mética. Note-se que embora esse procedimento “gere” (pelo menos no primeiro caso) somente a série dos números naturais, ele contém um elemento geométrico — a divisão de uma linha, primeiro em duas partes iguais e, em seguida, em duas partes segundo uma determinada proporção — 1: n. Os dois tipos de dívisao requerem métodos geométricos e o segundo exige, mais especialmente, um método como o da teoria das proporções de Eudoxus. Na minha opinião, Platão começou a se perguntar por que não dividir a díade também na proporção 1 : e 1: y3. Deve ter sentido que assim se afastaria do método pelo qual os números naturais eram gerados — o processo seria ainda menos “aritmético”, exigindo es­ pecificamente métodos “geométricos”. Contudo, ele “geraria”, em lugar dos números naturais, elemen­ tos lineares na proporção l : \ f 2 e / l : s 3, que podem ser idênticos às “linhas atômicas” {Metafísica, 992al9 com os quais os triângulos atômicos eram construídos. Ao mesmo tempo, a caracterização da díade como “indeterminada” seria muito apropriàda, tendo em vista a atitude pitagórica (cf. Filolaos, Diels, frags. 2 e 3) com relação ao irracional. Admitindo que este ponto de vista esteja correto, pode­ riamos conjecturar que Platão se aproximou gradualmente da posição de que os irracionais são nú­ meros, pois a) são comparáveis com os números {Met. 1021a 4) e b) tanto os irracionais como os nú­ meros naturais são “gerados” por processos similares, essencialmente geométricos. Contudo, quando se chega a esse ponto de vista, mesmo os triângulos irracionais do Timeu se tornam “números” (caracte­ rizados por proporções numéricas, embora irracionais). Nesse ponto, porém, a contribuição peculiar de Platão, e a diferença entre sua teoria e a de Pitágoras, podem ficar indistinguíveis — o que explicaria a razão por que ela não foi percebida nem mesmo por Aristóteles (que suspeitava tanto da “geometri­ zação“ como da “arítmetizaçãp”). 56 — Luria mostrou que esse foi o ponto de vista de Aristóteles {op. cit.).

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NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

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Em resum o, parece provável que a teoria das form as de Platão e tam bém sua teoria da m atéria tenham sido reform ulações de teorias dos seus predecessores — respectivam ente os pitagóricos e Demócrito —, à luz da percepção de que os irracionais exigiam que a geom etria passasse à frente da aritm ética. Ao encorajar essa em ancipação, Platão contribuiu p ara o desenvolvimento do sistema de Euclides, a teoria dedutiva mais im portante e de m aior influência já elaborada. A dotando a geom etria como um a teoria do m undo, iria proporcionar a Aristarco, Newton e Einstein as ferram entas intelectuais que eles utilizaram . A calam idade do atomismo grego se transform ou, assim, num a realização m om entosa. Mas os in ­ teresses científicos de Platão foram em parte esquecidos: hoje, a situação-problem a da ciência que deu origem a seus problem as filosóficos é pouco com preendida. Sua m aior contribuição, a teoria geom étrica do m undo, influenciou-nos de tal modo que a adm itim os im plicitam ente, sem reflexão. X Um exem plo isolado nunca é suficiente. Como segundo exem plo escolhi, dentre m uitas possibilidades interessantes, K ant. Sua Crítica da Razão Pura é um dos livros mais difíceis já escritos. K ant escreveu-o às pressas, 57 p ara tra ta r de um problem a que, como procurarei dem onstrar, era não apenas insolúvel mas tam bém m al concebido. Contudo, não se tratava de um pseudoproblem a, m as sim de um problem a inescapável, provocado pela situação da ciência no seu tem po. O livro foi escrito adm itindo que o leitor conhecesse algo da dinâm ica es­ trelar de Newton, e que tivesse pelo menos um a idéia geral a respeito dos seus predecessores — Copérnico, Tycho Brahe, Kepler e Galileu. Não é fácil p ara o intelectual contem porâneo, que o espetáculo do êxito científico tornou blasé, perceber o significado da teoria de Newton, não só para K ant, m as para qualquer pensador do século dezoito. Depois das ousadas tentativas com que os antigos tinham abordado o enigm a do universo, sucederam -se longos períodos de decadência e de recuperação, seguidos por um grande sucesso: a des­ coberta, por Newton, do segredo há tanto procurado. Sua teoria geom étrica, m odelada em Euclides, foi recebida a princípio com grandes hesitações, mesmo pelo seu fo rm u lad o r.5859 O motivo era a força gravitacional da atração, que parecia “oculta” , exigindo algum a explicação. Contudo, em bora não se tivesse encontrado nenhum a explicação plausível (e Newton desprezava as hipóteses ad hoc) todas es­ sas relutâncias tinham desaparecido m uito antes de K ant propor sua im portante contribuição à teoria new toniana, 78 anos depois dos Principia. $9 N enhum árbitro q u alificad o 60* podería ter ainda qu alq u er dúvida de que Newton tinha razão. Sua teoria fora testada pelas medições mais rigorosas, com

57 — Temia morrer antes de completar o trabalho. 58 — Vide as cartas de Newton a Bentley, 1693. 59 — A chamada hipótese Kant-Laplace, publicada por Kant em 1755. 60 — Tinha havido, é verdade, algumas críticas muito pertinentes (especialmente de Leibniz e Berkeley) mas, tendo em vista o êxito da teoria, acreditava-se (a meu ver apropriadamente) que os críticos não tinham percebido seu sentido central. Não podemos esquecer que ela permanece de pé ainda hoje, com pequenas modificações, como uma excelente primeira aproximação (ou, à vista de Kepler, como uma segunda aproximação).

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

resultados sem pre corretos. T in h a perm itido a previsão de desvios m uito pequenos das leis de Kepler, levando a novas descobertas. N um a época como a nossa, em que as teorias se sucedem rapidam ente, e todo estudante já ouviu dizer que a concepção de Newton foi substituída pela de Einstein, é difícil im aginar a convicção inspirada pela teoria de Newton — o sentim ento de distensão e liberação que ela produzia. N a história do pensam ento tinha acontecido um evento insólito, que nao se re ­ petiria facilm ente: um sonho secular da h u m anidade se havia concretizado, com a obtenção de conhecim ento — real, certo, indubitável e dem onstrável. Era um a m anifestação d a divina scientia ou episteme, e não apenas da doxa, a opinião dos hom ens. Assim, p ara K ant a teoria de Newton era simplesmente verdadeira; a crença na sua verdade durou um século depois da m orte de K ant. Até m orrer, o filósofo aceitou o que ele e todos os seus contem porâneos acreditavam ser um fato, um a p arte da scientia ou epistem e. A princípio, aceitou-a sem questioná-la: o período de “dorm ência dogm ática” , de que foi despertado por H um e. H um e ensinara que não podia haver conhecim ento seguro de leis universais, ou epistem e: tudo o que sabíamos tínham os conhecido por meio da observação, que só se podia aplicar a casos singulares — assim, todo conhecim ento teórico era inseguro. C ontudo, havia um fato (ou o que aparecia como um fato) a desafiar essa afirm ativa — a epistem e alcançada por Newton. H um e despertou Kant p ara o quase-absurdo daquilo de que ele nunca duvidara. Ali estava um problem a que não podia ser desprezado. De que form a teria podido Newton chegar àquele conhecim ento — conhecim ento geral, preciso, m atem ático, dem onstrável e indubitável, como a geom etria euclidiana, e contudo capaz de d ar um a explicação causal a fatos observados? Surgiu assim o problem a central da Crítica: “Como é possível haver ciência n a tu ra l p u ra ? ” Por “ciência n atu ral p u ra ” {scientia, episteme) K ant queria dizer sim plesm ente a teoria de Newton. Infelizm ente, não o diz de m odo explícito; por isso um estudante que leia sua prim eira C rítica, de 1781 e 1787, não poderá des­ cobri-lo por si mesmo. Mas a referência fica clara nos Fundam entos Metafísicos da Ciência N atural, de 1786, onde o filósofo form ula um a dedução a priori da teoria de Newton — vide em especial os oito teorem as da Segunda P arte Principal, com seus adendos, especialm ente o de n .° 2, n ota 1, parágrafo 2. K ant expõe a teoria de Newton no quinto p arágrafo da “N ota Geral Fenom enológica”, final. A referên­ cia fica clara tam bém n a “Conclusão” da Crítica da Razão Prática, de 1788, onde a m enção aos “céus estrelados” é explicada, no fim do segundo parágrafo, por um a referência ao caráter a priori da. nova astronom ia. Kant afirm a, ali, que Newton nos deu “um a visão da estru tu ra do universo que perm anecerá im utável em todos os tem pos; em bora haja esperança de que essa visão se am pliará sem pre, pela o b ­ servação co n tin uad a, não se precisará jam ais tem er um recuo” . E m bora a Crítica não tenha sido bem escrita, apresentando m uitas im p er­ feições gram aticais, o problem a de que tratava não era um simples quebra-cabeça lingüístico. Tratava-se do conhecim ento: como teria sido possível a N ew ton alcan­ çá-lo? A questão era inescapável 61 e tam bém insolúvel, porque o fato aparente — 61 — Ainda em 1909 o problema perturbava Poincaré.

A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS E SUAS RAÍZES CIENTÍFICAS

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a episteme que se teria alcançado — não era um fa to . Como sabemos agora, ou acreditam os saber, a teoria de Newton não passa de um a m aravilhosa conjectura, um a excelente aproxim ação da realidade; insólita, de fato, m as não como verdade divina, apenas como invenção do gênio hum ano. N ão era epistem e, mas do xa . Portanto, o problem a de K ant desaparece, e com ele suas m aiores perplexidades. A solução proposta por K ant para esse problem a insolúvel consistia no que ele cham ava, com orgulho, sua “revolução de Copérnico” da epistem ologia. O conhecim ento — episteme — era possível porque não somos meros receptores pas­ sivos de dados sensoriais, que processamos ativam ente. Ao assimilá-los, nós os o r­ ganizamos num cosmos — o universo da natureza. Com esse processo, impomos ao m aterial que se apresenta a nossos sentidos as leis m atem áticas que participam do nosso mecanism o de assimilação e organização. Nosso intelecto não descobre leis universais na natureza, mas prescreve suas próprias leis, im pondo-as à natureza. Essa teoria é um a estranha m istura de verdade e de absurdo. É tão absurda quanto o falso problem a que procura resolver — vai m uito longe, pois foi con­ cebida p ara ir longe dem ais. De acordo com a teoria de K ant, a “ciência natu ral p u ra ” não só é possível mas (em bora ele não o perceba, e contrariam ente à sua in ­ tenção) resulta necessariamente do nosso equipam ento m ental. Com efeito, se o fato de termos alegadam ente alcançado a episteme pode ser explicado pelo fato de que nosso intelecto legisla e im põe à natureza suas próprias leis, então o prim eiro desses dois fatos não pode ser m ais contingente d o que o segundo. 62 O problem a passa a ser, assim, por que nenhum a outra pessoa descobriu o que Newton pôde descobrir. Por que razão nosso mecanismo de processam ento dos dados da obser­ vação não funcionou antes de Newton? Esta é, naturalm ente, um a conseqüência absurda da idéia de K ant. Não bastaria, contudo, desprezá-la, e afastar seu problem a como um pseudoproblem a. De fato, podemos perceber um elem ento de verdade na sua concepção (e um reajuste m uito necessário a algum as noções de H um e), se reduzimos o problem a às dimensões justas. Sua indagação — sabemos agora, ou acreditam os saber — d e ­ veria ter sido a seguinte: “Como é possível que certas conjecturas tenham êxito?” D entro do espírito da “revolução de C opérnico” , nossa resposta deveria ser mais ou menos assim: “Porque não somos receptores passivos dos dados sensoriais, mas sim organismos ativos; porque nem sempre reagimos ao am biente instintivam ente, mas algum as vezes com consciência, livremente; porque podem os inventar mitos, es­ tórias, teorias; porque temos sede de explicação, um a curiosidade insaciável, um desejo de conhecer; porque não só inventam os estórias e teorias, m as as testamos p ara ver se funcionam , e como funcionam ; porque fazendo um grande esforço e com etendo m uitos erros podemos às vezes, com sorte, en contrar um a estória, um a explicação que “respeita os fenôm enos” — quem sabe, elaborando um m ito sobre “invisíveis”, como os átomos ou as forças gravitacionais, que explica o visível. P o r­ que o conhecim ento é um a aventura com idéias. É bem verdade que somos nós que produzim os essas idéias — não é o m undo que as produz; elas não refletem apenas sensações ou estímulos repetidos. Neste ponto, K ant tinha razão. C ontudo, somos 62 — Um requisito muito importante que qualquer teoria do conhecimento precisa satisfazer, para ser adequada, é o de não explicar demais. Qualquer teoria não histórica que tente explicar por que mn&a certa descoberta tinha de ser feita é inadequada, porque não poderia explicar por que a descoberta não foi feita um pouco antes.

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mais ativos e mais livres do que o filósofo foi capaz de im aginar — observações sem elhantes ou situações am bientais similares não produzem as mesmas explicações em pessoas diferentes, como a teoria de K ant pode im plicar. Nem o fato de que criam os nossas teorias e procuram os im po-las ao m undo explica o sucesso dessas teo ria s.63 N a verdade, a esm agadora m aioria das nossas teorias e idéias estão des­ tinadas ao insucesso: não resistem aos testes, e são rejeitadas, pois a experiência as refu ta. N a lu ta pela sobrevivência que é a sua com petição, só um as poucas alcan ­ çam a vitória. 64

3. Três Pontos de Vista sobre o Conhecimento Humano*

XI 1. A Ciência de Galileu N ovam ente Atraiçoada. Poucos sucessores de K ant parecem ter entendido claram ente a situação problem a precisa que deu origem à obra daquele filósofo. Havia dois problem as dian te de K ant: a dinâm ica celestial de Newton e os padrões absolutos da fra te r­ nidade h u m an a e da justiça proclam ados pelos revolucionários franceses — como disse K ant, “os céus estrelados no alto e a lei m oral dentro de m im ” . Mas os “céus estrelados” raram en te são entendidos como alusão a Newton. A p artir de Fichte, 65* m uitos copiaram o “m étodo” de K ant e o estilo difícil de algum as porções da sua Crítica. A m aior parte desses im itadores, ignorando os interesses e os problem as originais de K ant, ten taram em vão explicar a dificuldade em que o filósofo in a d ­ vertidam ente se deixou envolver. Precisamos tom ar cuidado p ara não confundir as sutilezas sem sentido e relevância dos im itadores com os problem as genuínos do pioneiro. E preciso não es­ quecer que esse problem a, em bora não seja em pírico no sentido ordinário do te r­ m o, se to rn a inesperadam ente factual num certo sentido (K ant cham ou esses fatos de “transcendentais”), por se ter originado em um exemplo aparente, em bora irreal, de scientia ou episteme. Penso que deveríamos considerar seriam ente a sugestão de que a resposta d ad a por K ant, em bora seja parcialm ente absurda, co n ­ tin h a o núcleo de um a verdadeira filosofia da ciência.

Houve um a vez um cientista famoso, cham ado Galileu Galilei, que foi ju l­ gado pela Inquisição e obrigado a renunciar a suas idéias. Isso provocou um a grande excitação; por mais de duzentos e cinqüenta anos o episódio continuou a levantar indignação — m uito tem po depois de a opinião pública ter alcançado a vitória e a Igreja com eçado a tolerar a ciência. Mas esta é um a história m uito antiga, que já deve ter perdido interesse. A parentem ente, a ciência de Cralileu não tem m ais inimigos; sua existência é b as­ tante segura. A vitória — alcançada há m uitos anos — foi definitiva e tudo está tranqüilo no fro n t. Por isso adotam os hoje um a posição distendida a respeito do caso, com preendendo os dois lados da disputa, porque aprendem os finalm ente a pensar em termos históricos. E ninguém presta atenção ao im portuno que não con­ segue esquecer um a velha rixa. Afinal, de que se tratava? Do estatuto atribuído ao “sistema do m u n d o ” de Copérnico que, entre outras coisas, explicava o m ovim ento diurno do Sol como um movim ento aparente, devido à rotação da T e r r a .1 A Igreja estava pro n ta a adm itir que o novo sistema era m ais simples do que o antigo: um instrum ento mais con­ veniente p ara os cálculos e previsões dos astrônom os, que a reform a do calendário do Papa Gregório utilizou na p rática. N ão se objetava a que Galileu ensinasse sua teoria m atem ática, desde que deixasse claro que ela tin h a apenas valor instrum en­ tal — de que não passava de um a “suposição” , p a ra usar as palavras do cardeal B elarm ino,2 ou “hipótese m atem ática” — um a espécie de tru q u e m atem ático “in* Publicado originalmente em Contemporary British Philosophy, 3.a série, ed. H. D. Lewis, 1956. 1 — Acentuo o movimento diurno (em lugar do anual) porque era precisamente a teoria do movimento diurno que se chocava com a Bíblia — Josué, 10, 12 — e também porque a explicação dada a esse movimento é um dos principais exemplos que usarei em seguida. (Esta explicação, naturalmente, é muito mais antiga do que Copérnico — mais antiga ainda do que Aristarco — e tinha sido redescoberta, repetidamente, por Oresme, para dar um exemplo).

63 — Aplicando a observação da nota anterior, nenhuma teoria pode explicar por que nossa busca de teorias explicativas tem êxito. Uma explicação exitosa deve guardar, para qualquer teoria válida, a probabilidade zero — admitindo que a medida dessa probabilidade seja, aproximadamente, a razão en­ tre as hipóteses explicativas “bem sucedidas” e todas as hipóteses que poderiam ser formuladas. 64 — As idéias principais desta “resposta” foram elaboradas em L. Sc. D. 65 — Cf. Open Society, nota 58, cap. 12.

2 — “... Galileo será prudente”, escreveu o Cardeal Belarmino (que fora um dos inquisidores contra Giordano Bruno) “se falar hipoteticarhente, ex suppositione ...; é próprio dizer que descrevemos melhor as aparências admitindo que a Terra se move e o Sol está parado, em vez de falar em excêntricos e epiciclos; não há nenhum perigo nisso, e é só o que o matemático exige”. (Cf. H. Grisar, Gaiüeistudien, 1882, Apêndice ix). Embora essa passagem faça de Belarmino um dos fundadores da epistemologia que Osiandro havia sugerido anteriormente e que passarei a chamar dê “instrumentalismo”, o próprio Belarmino — ao contrário de Berkeley — não era um instrumentalista convicto, como demonstram outros trechos da carta. Apenas considerava o instrumentalismo uma das maneiras de lidar com hi­ póteses científicas inconvenientes. Pode-se afirmar o mesmo de Osiandro.

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ventado e adotado p ara abreviar e facilitar os cálculos”.^ Em outras palavras, não havia objeções enq u an to Galileu concordasse com A ndré O siandro, que afirm ara, no prefácio ao De Ftevolutionibus de C opérnico: “As hipóteses nao precisam ser verdadeiras, nem parecidas com a verdade; basta que nos perm itam fazer cálculos que estejam de acordo com nossas observações” .

de que a aceitação da veracidade da ciência new toniana im plicava renunciar à afirm ação de que descobrira o m undo real, oculto pelas aparências — era, de fato, um a teoria verdadeira da natureza, mas a natureza, do m odo como se revela a nos­ sas m entes assimiladoras, constitui precisam ente o universo dos fenômenos. Mais tarde, certos pragm atistas fu n d am en taram sua filosofia na concepção de que a idéia do conhecim ento “p u ro ” é errônea; que só existe conhecim ento instrum ental: o conhecim ento é poder, e a verdade, utilidade.

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O próprio Galileu, obviam ente, estava disposto a enfatizar a superioridade do sistema de Copérnico como instrum ento de cálculo. Ao mesmo tem po, Galileu conjecturava (e acreditava mesmo) que o sistema era um a descrição verdadeira do m undo, o que p a ra ele (e p ara a Igreja) era o aspecto mais im portante da questão. De fato, ele tin h a boas razões p ara acreditar na veracidade da teoria, pois havia observado pelo telescópio que Jú p iter e suas luas form avam um modelo em m i­ n iatu ra do sistema solar descrito por Copérnico (segundo o qual os planetas eram luas do Sol). Além disso, se Copérnico estava correto, os planetas mais próximos do Sol (e só estes) deveriam apresentar fases, do mesmo m odo que a nossa lua; e Galileu observou com seu telescópio as fases de Vénus. A Igreja relutava em contem plar a verdade de um Novo Sistema do M undo que parecia contradizer um trecho do Antigo T estam ento. Este, no entanto, dificil­ m ente seria o motivo principal; um a razão m ais profunda foi claram ente exposta pelo bispo Berkeley, cerca de cem anos mais tarde, em sua crítica de Newton. N a época de Berkeley, o sistema do m undo de Copérnico havia-se desenvol­ vido p a ra form ar a teoria da gravitação de Newton, que Berkeley considerava um sério com petidor da religião. Estava convencido de que o declínio da fé e da a u ­ toridade religiosa seria o resultado de um a interpretação correta d ad a pelos livres pensadores” à nova ciência, cuja eficácia provaria a capacidade do intelecto de desvendar os segredos do universo — a realidade oculta pelas aparências — sem o auxílio de revelações divinas. Berkeley acreditava que essa in terpretação da nova ciência era errônea. Analisou com total im parcialidade e grande agudeza filosófica a teoria de Newton; após um exam e crítico dos conceitos, estava convencido de que a teoria não re ­ presentava m ais do que um a “hipótese m atem ática” , ou seja, um instrum ento con­ veniente p ara calcular e prever fenômenos ou aparências; nao podia ser conside­ rad a um a descrição verdadeira da realidade 4. Os físicos m al tom aram conhecim ento da crítica de Berkeley que foi aco­ lhida, no en tan to , pelos filósofos céticos e religiosos. Como arm a, revelou-se um verdadeiro “boom erang” : nas mãos de H um e, tornou-se um a am eaça a qualquer crença e a todo conhecim ento, hum ano ou revelado. Nas mãos de K ant, que acreditava firm em ente em Deus e na veracidade da ciência new toniana, desenvol­ veu-se até form ar a d o u trin a da im possibilidade do conhecim ento teórico de Deus; 3 — Citação retirada da crítica a Copérnico publicada por Bacon em Novum Organum, II, 36. Na citação seguinte (retirada de De Revolutwnibus), traduzi o termo “verisimilis por parecido com a ver­ dade” — ele certamente não poderia ser traduzido por “provável”, pois a questão gira em torno da in­ dagação sobre se o sistema de Copérnico é semelhante, em sua estrutura, ao mundo, ou semelhante à verdade. A questão dos graus de certeza ou probabilidade não surge aqui. Sobre o importante problema da Verossimilhança, vide também o cap. 10, especialmente as seções iii, x e xiv; e o apêndice 6. 4 — Vide também o cap. 6.

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Com algum as exceções brilhantes 56*, os físicos perm aneceram indiferentes com relação a esses debatei filosóficos (que se m ostraram totalm ente inconclusivos). Fiéis à tradição de Galileu, dedicaram -se à busca da verdade como ele a havia com preendido. Isso durou até recentem ente e hoje é p arte da história. A tualm ente, a visão da ciência física fu ndada por O siandro, o cardeal B elarm ino e o bispo Berkeley 6 venceu a disputa sem gastar nenhum outro cartucho; sem mais debate sobre a questão filosófica, e sem apresentar outros argum entos, a visão instrum entalista (como a cham arei aqui) tornou-se um dogm a aceito. A dotada pela m aioria dos físicos teóricos (em bora não por Einstein e Schrõdinger), pode ser considerada hoje a “visão oficial” da teoria física, tendo sido incorporada ao ensino dessa disciplina. 2. O Que Está em Jogo T udo isso parece um a grande vitória do pensam ento filosófico crítico sobre ó “realismo ingênuo” dos físicos. Duvido, no entanto, de que essa interpretação es­ teja correta. Poucos dos cientistas que aceitaram a visão instrum entalista do cardeal Belarmino e do bispo Berkeley percebem que ad o taram um a teoria filosófica.

5 As mais importantes são: Mach, Kirchhof, Hertz, Duhem, Poincaré, Bridgman e Eddington todos representando diversas correntes do instrumentalismo. 6 — Em seus conhecidos trabalhos Sózein ta phainómena (Ann de philos. chrétienne, année 79, tom. 6, 1908, n.os 2 a 6), Duhem reivindica para o instrumentalismo uma descendência muito mais ilustre e antiga do que pode ser provado. De fato, o postulado de que os cientistas devem explicar os fatos obser­ vados com suas hipóteses, em lugar de “violentá-los, procurando fazer com que caibam nas suas teo­ rias (Aristóteles, De Caelo, 293a25; 296b6; 297a4; b24 e seguintes; Met 1073b37, 1074al) tem pouco a ver com a tese instrumentalista (de que nossas teorias só podem fazer isso). Esse postulado, contudo, é essencialmente o mesmo que afirma que devemos “respeitar os fenômenos”, ou “salvá-los” (dia-sózein ta phainómena). Essa expressão parece estar ligada ao ramo astronômico da tradição platônica. (Vide especialmente o trecho muito interessante sobre Aristarco em De Facie in Orbe Lunae, de Plutarco, .923a; vide também 933a, para a “confirmação da causa” pelos fenômenos, e, na edição de Cherniss do trabalho de Plutarco, a nota a na pág.168. Além disso, os comentários de Simplício sobre o De Caelo, onde encontramos a expressão, p. e. nas páginas 497 1.21, 506 1.10 e 488 1.23f, na edição de Heiberg, em comentários sobre De Caelo 293a4 e 292M0.) Podemos aceitar o relato de Simplício sobre Eudoxus, que, influenciado por Platão, dedicou-se à tarefa de desenvolver um sistema geométrico abstrato de es­ feras rotativas para explicar o fenômeno observável dos movimentos planetários, ao qual não atribuiu realidade física. (Parece haver alguma semelhança entre esse programa e o do Epinomis, 9901, onde o estudo da geometria abstrata — da teoria dos irracionais, 990d — 991b — é descrito como requisito preliminar da teoria planetária; outro requisito é o estudo do número — isto é, dos números pares e ímpares, 990c.) Isso não significa, contudo, que Platão ou Eudoxus aceitaram uma epistemòlogia instrumentalista: possivelmente se restringiram consciente e sabiamente a um problema preli­ minar.

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T am b ém não percebem que rom peram com a tradição de Galileu. Pelo contrário, m uitos acreditam ter m antido a filosofia à distância; em todo caso, a m aioria nem sequer dem onstra interesse no assunto. Como físicos, estão interessados: (a) no dom ínio do form a lism o m atem ático, isto é, no instrum ento, e (b) nas suas apli­ cações. Pensam que, tendo excluído deste m odo tudo o mais, estão livres das fi­ losofias sem sentido. Essa m esm a atitude inflexível, contudo, não lhes perm ite con­ siderar seriam ente a visão científica de Galileu, em bora sem dúvida tenham ouvido falar de M ach.7 P o rtan to , a vitória da filosofia instrum entalista dificilm ente pode ser atrib u íd a à consistência de seus argum entos. Como foi possível então essa vitória? Até onde percebo, pela coincidência de dois fatores: (a) as dificuldades na in terpretação do form alism o da teoria quântica, e (b) o êxito espetacular de suas aplicações práticas. (a) Em 1927, Niels Bohr, um dos m aiores pensadores no cam po da física atôm ica, introduziu o cham ado princípio da com plem entaridade, que resulta na “ren ú n cia” de in terp retar a teoria atôm ica como a descrição de algo. Bohr obser­ vou que só podem os evitar certas contradições (que am eaçam interpor-se entre o form alism o e suas diversas interpretações) lem brando que o form alism o, como tal, é autoconsistente, e que cada caso p articu lar de sua aplicação (ou cada tipo de caso) é consistente com ele. As contradições surgem apenas da tentativa de incluir em um a única interpretação o form alism o e mais de um caso, ou tipo de caso, de aplicação experim ental. Segundo Bohr, é fisicam ente impossível com binar em um a única experiência duas aplicações conflitantes. Logo, o resultado de cada experiên­ cia é consistente com a teoria, estabelecido por ela sem am bigüidade. Isso, disse Bohr, é o m áxim o que podemos obter. Devemos renunciar à intenção e mesmo à esperança de obter sem pre m ais; a física só é consistente se não procurarm os in te r­ p re ta r ou com preender suas te o ria s.8 A filosofia instrum entalista, portanto, foi usada ad hoc p ara que a teoria pudesse escapar a certas contradições que a am eaçavam . Foi usada com espírito defensivo — p a ra salvar a teoria existente; por essa razão, acredito, esse princípio perm anece com pletam ente estéril dentro da física. Em vinte e sete anos nada produziu além de algum as discussões filosóficas e argum entos p ara confundir os críticos (especialm ente Einstein). Não acredito que os físicos teriam aceito tal princípio aà hoc se tivessem com preendido seu caráter ad hoc\ que se tratava de um princípio filosófico — p a r­ te da filosofia da ciência de Belarm ino e Berkeley. Lem braram -se, contudo, do precedente “princípio da correspondência” de Bohr, que tivera extrem a utilidade, esperando (em vão) resultados sem elhantes.

7 — Parecem esquecer, contudo, que Mach foi levado pelo seu instrumentalismo a combater a teoria atômica — um exemplo típico do obscurantismo do instrumentalismo, assunto tratado na seção 5. 8 — Já expliquei o “princípio da complementaridade” de Bohr da maneira como o interpreto após anos de esforço. Sem dúvida, pode-se afirmar que minha formulação do problema é insatisfatória. Neste caso, estou em boa companhia, pois Einstein se refere a ele como “o princípio da complementaridade de Bohr, que não consegui formular claramente, ... não obstante o grande esforço que fiz para isso”. Cf. Albert Einstein: Philosopher-Scientist, ed. por P. A. Schilpp, 1949, pág. 674.

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b) Em vez de resultados devidos ao princípio d a com plem entaridade, outros resultados, m ais práticos, foram obtidos, no cam po d a física atôm ica — alguns deles com repercussões retum bantes. N ão há dúvida de que os físicos tinham toda razão em in terp retar essas aplicações exitosas como corroboração das suas teorias. Estranham ente, eles a tom aram tam bém como confirm ação do credo instrum en­ talista. Isso, naturalm ente, era um erro. O ponto de vista instrum entalista afirm a que as teorias são apenas instrum entos; o ponto de vista de Galileu é o de que elas não são só instrum entos, mas tam bém — principalm ente — descrições do m undo ou de certos aspectos do m undo. Está claro que nesse desacordo até mesmo um a prova dem onstrando que as teorias são instrum entos (adm itindo que fosse possível “provar” tal coisa) não poderia ser usada p ara apoiar qualquer dos lados, já que as duas posições concordavam sobre este ponto. Se m inha m aneira de ver o problem a está correta, pelo menos aproxim a­ dam ente, os filósofos — mesmo os filósofos instrum entalistas — não têm razão para se orgulhar da sua Vitória. Ao contrário, deveriam reexam inar seus argum entos. C oitt efeito, pelo menos p ara os que, como eu, não aceitam o instrum entalism o, há m uito ainda a resolver neste assunto. A questão, do m eu ponto de vista, é a seguinte: Um dos ingredientes mais im portantes da civilização ocidental é o que poderia cham ar de “tradição racionalista”, que herdam os dos gregos: a tradição do livre debate — não a discussão por si m esm a, m as na busca da verdade. A ciência e a filosofia helénicas foram produtos dessa tradição, 9 do esforço p ara com preender o m undo em que vivemos; e a tradição estabelecida por Galileu correspondeu ao seu renascim ento. Dentro dessa tradição racionalista, a ciência é estim ada, reconhecidam ente, pelas suas realizações práticas, mais ainda porém pelo conteúdo inform ativo e a capacidade de livrar nossas mentes de velhas crenças e preconceitos, velhas cer­ tezas, oferecendo-nos em seu lugar novas conjecturas e hipóteses ousadas. A ciência é valorizada pela influência liberalizadora que exerce — um a das forças mais poderosas que contribui para a liberdade hum ana. De acordo com a visão da ciência que estou procurando defender aqui, isso se deve ao fato de que os cientistas têm ousado (desde Tales, D em ócrito, o Tim eu de Platão e Aristarco) criar mitos, conjecturas e teorias que contrastam d ra m a ­ ticam ente com o m undo da experiência quotidiana, em bora sejam capazes de ex­ plicar alguns dos seus aspectos. Cralileu presta hom enagem a Aristarco e a Copérnico precisam ente porque ousaram ultrapassar o m undo conhecido dos nossos sen­ tidos. Escreve:10 “N ão posso exprim ir com o vigor necessário m inha adm iração ilim itada pela grandeza desses homens que conceberam (o sistema heliocêntrico), considerando-o v erd adeiro..., em oposição violenta à evidência dos sen tidos...” Esse 9 — Vide o cap. 4. 10 ~ É o que afirma Salviati, várias vezes, praticamente sem qualquer variação, no Terceiro Dia de Oò Dois Sistemas Principais.

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é o testem unho dado por Galileu sobre o efeito liberalizador da ciência. Essas teorias seriam im portantes mesmo que não passassem de exercícios para nossa im aginação. C ontudo, são mais do que isso, como nos revela o fato de que as su b ­ metem os a testes rigorosos, procurando delas deduzir algum as das regularidades do m undo conhecido da experiência o rdinária — isto é, tentando explicar essas re ­ gularidades. As tentativas de explicar assim o conhecido pelo desconhecido — como as descrevi em o u tra oportunidade 11 — estenderam im ensam ente o reino do conhecido; elas acrescentaram aos fatos do m undo quotidiano o ar invisível, os a n ­ típodas, a circulação do sangue, os m undos do telescópio e do microscópio, da eletricidade e dos isótopos que nos m ostram em porm enor os movimentos da m atéria dentro dos organismos vivos. N ão são apenas instrum entos: testem unham a conquista intelectual do m undo por nossa m ente. Mas há um outro m odo de ver tudo isso. Para alguns, a ciência não passa de um a form a glorificada de m ecânica, m uito útil — constituindo porém um perigo p ara a “cu ltu ra v erdadeira”, am eaçando-nos com o dom ínio pelos semianalfabetos. P ara os que têm essa opinião, não se deve jam ais citar a ciência ju n ­ tam ente com a literatu ra, as artes e a filosofia. As descobertas científicas não pas­ sam de invenções m ecânicas; suas teorias são instrum entos que não podem revelar e não nos revelam um novo m undo, por trás do m undo da nossa experiência. O m undo físico é superficial: não tem qualquer profundidade. O m undo é só o que parece ser. Apenas as teorias científicas não são o que parecem . Uma teoria cien­ tífica não explica o m undo, nem o descreve: é apenas um instrum ento. N ão pretendo que o m oderno instrum entalism o se reduza a isso — em bora tenha feito, penso, um bom resumo de p arte da sua fundam entação filosófica original. Hoje, um com ponente m uito mais im portante é o surgim ento e a afir­ m ação do m oderno “m ecânico” ou engenheiro. 12 Creio, porém , que não se deve situarão tem a entre um racionalism o crítico e aventureiro — o espírito das des­ cobertas — e um credo estreito e defensivo, segundo o qual não podemos nem precisamos ap ren d er sobre o m undo mais do que já sabemos: credo que, além de tudo, é incom patível com a avaliação da ciência como um dos maiores feitos 'do es­ pírito hum ano. São essas as razões por que tentarei defender, neste trabalho, pelo menos em parte, o ponto de vista de Galileu sobre a ciência, contra a visão instrum entalista. N ão posso sustentá-lo integralm ente; há um aspecto que os instrum entalistas fi­ zeram bem em atacar — a noção de que podemos alcançar pela via científica um a explicação jfltim a do m u n d o ; por meio de essências. A força e o interesse filosófico \a lis m o residem justam ente nessa oposição ao aristotelismo — ao que Tesseiicialismo”. Precisarei assim exam inar e criticar duas visões do ^im ano — o essencialismo e o instrum entalism o, opondo-lhes o que

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TRÊS PONTOS DE VISTA SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO

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denom inarei de terceira visão, isto é, o que perm anece do ponto de vista de Galileu depois d a elim inação do essencialismo ou, mais precisam ente, depois de se adm itir o que era justificável na crítica instrum entalista.

3. Primeiro Ponto de Vista: A Explicação D efinitiva Pelas Essências O essenciàlismo, o prim eiro dos três pontos de vista sobre a teoria científica que vamos exam inar aqui, é parte da filosofia da ciência de Galileu. Dentro dessa filosofia há três elementos ou doutrinas que nos interessam . O essencialismo é ju s­ tam ente a p arte da filosofia de Galileu que não pretendo defender: consiste num a com binação das doutrinas 2) e 3). São essas as três doutrinas a que me refiro: 1) O cientista procura um a teoria verdadeira, que descreva o m undo (es­ pecialm ente suas regularidades ou “leis”) e explique os fa to s observáveis. (O que significa que um a descrição desses fatos precisa ser deduzida da teoria em conjun­ ção com çertas afirm ativas — as cham adas “condições iniciais”). Esta é um a doutrina que aceito, e que form ará p arte da “terceira visão”. 2) O cientista é capaz de dem onstrar a verdade dessas teorias além de qual­ quer dúvida razoável. A m eu ver, esta segunda doutrina precisa ser corrigida. T udo o que o cien­ tista pode fazer é testar suas teorias, elim inando as que não resistem aos testes mais rigorosos que pode conceber. Mas ele nunca terá a certeza de que novos testes (ou mesmo um a nova discussão teórica) não o levará a m odificar ou a rejeitar sua teoria. Neste sentido, todas as teorias são e perm anecem hipóteses: são conjecturas (<doxa), em contraposição ao conhecim ento indubitável {epistem e). 3) As melhores teorias, as verdadeiram ente científicas, descrevem as “essên­ cias” das coisas — sua “natureza essencial”, realidades que existem por trás das aparências. Essas teorias não necessitam explicações adicionais, nem são suscep­ tíveis de tais explicações — são em si mesmas explicações últimas. Encontrá-las é o objetivo final do cientista. Esta terceira doutrina (juntam ente com a segunda) constitui o que cham ei de “essencialismo”. Acredito que seja um erro. O que os filósofos da ciência instrum entalista — de Berkeley a M ach, Duhem e Poincaré — têm em com um é o seguinte: todos afirm am que p ara a ciên­ cia física explicar não é um objetivo, pois a ciência não pode descobrir “a essência oculta das coisas”. O argum ento indica que o que têm em m ente ao fazer essa o b ­ servação é o que cham ei de explicação d efin itiva M Alguns, como M ach e Ber-

\^cap. 1, ponto 10, bem como o penúltimo parágrafo do cap. 6. a ciência natural não é episteme indubitável (scientia) levou ao ponto de Ij/mé (técnica, arte, tecnologia,) enquanto a visão adequada, a meu juízo, é a liões, conjecturas) controladas pela discussão crítica e também pela techné

1° f Histoncism, i e ii.

bem como Open Society and Its Enemies, vol. 1, cap.

H ~~ Este Ponto já se prest u algumas vezes a confusão, pois a crítica instrumentalista dirigida contra as explicações (definitivas) ioi enunciada por alguns por meio da fórmula de que o objetivo da ciência é a descrição, não a explicação. Por descrição o que se queria dizer era a descrição do mundo empírico ordinário; o que a fórmula expressava, indiretamente, era o fato de que as teorias que não descrevem naquele sentido não passam de instrumentos convenientes para ajudar-nos na descrição dos fenômenos ordinários.

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é o testem unho dado por Galileu sobre o efeito liberalizador da ciência. Essas teorias seriam im portantes mesmo que não passassem de exercícios para nossa im aginação. C ontudo, são mais do que isso, como nos revela o fato de que as su b ­ m etem os a testes rigorosos, procurando delas deduzir algum as das regularidades do m undo conhecido da experiência o rdinária — isto é, tentando explicar essas re ­ gularidades. As tentativas de explicar assim o conhecido pelo desconhecido — como as descrevi em o u tra oportunidade 1112 — estenderam im ensam ente o reino do conhecido; elas acrescentaram aos fatos do m undo quotidiano o ar invisível, os a n ­ típodas, a circulação do sangue, os m undos do telescópio e do microscópio, da eletricidade e dos isótopos que nos m ostram em porm enor os movimentos da m atéria dentro dos organismos vivos. N ão são apenas instrum entos: testem unham a conquista intelectual do m undo por nossa m ente. Mas há um outro m odo de ver tudo isso. Para alguns, a ciência não passa de um a form a glorificada de m ecânica, m uito útil — constituindo porém um perigo para a “cu ltu ra v erdadeira”, am eaçando-nos com o dom ínio pelos semianalfabetos. P ara os que têm essa opinião, não se deve jam ais citar a ciência ju n ­ tam ente com a literatu ra, as artes e a filosofia. As descobertas científicas não pas­ sam de invenções m ecânicas; suas teorias são instrum entos que não podem revelar e não nos revelam um novo m undo, por trás do m undo da nossa experiência. O m undo físico é superficial: não tem q ualquer profundidade. O m undo é só o que parece ser. A penas as teorias científicas não são o que parecem . Uma teoria cien­ tífica não explica o m undo, nem o descreve: é apenas um instrum ento. N ão pretendo que o m oderno instrum entalism o se reduza a isso — em bora tenha feito, penso, um bom resumo de p arte da sua fundam entação filosófica original. Hoje, um com ponente m uito mais im portante é o surgim ento e a afir­ m ação do m oderno “m ecânico” ou engenheiro. 12 Creio, porém , que não se deve situarão tem a entre um racionalism o crítico e aventureiro — o espírito das des­ cobertas — e um credo estreito e defensivo, segundo o qual não podemos nem precisamos ap ren d er sobre o m undo mais do que já sabemos: credo que, além de tudo, é incom patível com a avaliação da ciência como um dos maiores feitos do es­ pírito hum ano, São essas as razões por que tentarei defender, neste trabalho, pelo menos em parte, o ponto de vista de Galileu sobre a ciência, contra a visão instrum entalista. N ão posso sustentá-lo integralm ente; há um aspecto que os instrum entalistas fi­ zeram bem em atacar — a noção de que podemos alcançar pela via científica um a explicação últim a do m u n d o ; por meio de essências. A força e o interesse filosófico do instrum entalism o residem justam ente nessa oposição ao aristotelismo — ao que ch a m e i13 de “esseiicialismo” . Precisarei assim exam inar e criticar duas visões do conhecim ento hum ano — o essencialismo e o instrum entalism o, opondo-lhes o que

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denom inarei de terceira visão, isto é, o que perm anece do ponto de vista de Galileu depois d a elim inação do essencialismo ou, mais precisam ente, depois de se adm itir o que era justificável na crítica instrum entalista.

3. Primeiro Ponto de Vista: A Explicação D efinitiva Pelas Essências O essenciàlismo, o prim eiro dos três pontos de vista sobre a teoria científica que vamos exam inar aqui, é parte da filosofia da ciência de Galileu. D entro dessa filosofia há três elementos ou doutrinas que nos interessam . O essencialismo é ju s­ tam ente a parte da filosofia de Galileu que não pretendo defender: consiste num a com binação das doutrinas 2) e 3). São essas as três doutrinas a que m e refiro: 1) O cientista procura um a teoria verdadeira, que descreva o m undo (es­ pecialm ente suas regularidades ou “leis”) e explique os fa to s observáveis. (O que significa que um a descrição desses fatos precisa ser deduzida da teoria em conjun­ ção com certas afirm ativas — as cham adas “condições iniciais”). Esta é um a d o u trina que aceito, e que form ará parte da “terceira visão” . 2) O cientista é capaz de dem onstrar a verdade dessas teorias além de qual­ quer dúvida razoável. A m eu ver, esta segunda doutrina precisa ser corrigida. T udo o que o cien­ tista pode fazer é testar suas teorias, elim inando as que não resistem aos testes mais rigorosos que pode conceber. Mas ele nunca terá a certeza de que novos testes (ou mesmo um a nova discussão teórica) não o levará a m odificar ou a rejeitar sua teoria. Neste sentido, todas as teorias são e perm anecem hipóteses: são conjecturas (doxa), em contraposição ao conhecim ento indubitável (epistem e). 3) As melhores teorias, as verdadeiram ente científicas, descrevem as “essên­ cias” das coisas — sua “natureza essencial” realidades que existem por trás das aparências. Essas teorias não necessitam explicações adicionais, nem são suscep­ tíveis de tais explicações — são em si mesmas explicações últimas. Encontrá-las é o objetivo final do cientista. Esta terceira doutrina (juntam ente com a segunda) constitui o que chamei de “essencialismo”. Acredito que seja um erro. O que os filósofos da ciência instrum entalista — de Berkeley a M ach, Duhem e Poincaré — têm em com um é o seguinte: todos afirm am que p ara a ciên­ cia física explicar não é um objetivo, pois a ciência não pode descobrir “a essência oculta das coisas” . O argum ento indica que o que têm em m ente ao fazer essa o b ­ servação é o que cham ei de explicação definitiva.14 Alguns, como M ach e Ber-

11 — Vide Apêndice ao cap. 1, ponto 10, bem como o penúltimo parágrafo do cap. 6. 12 — A consciência de que a ciência natural não é episteme indubitável (scientia) levou ao ponto de vista de que seria apenas techné (técnica, arte, tecnologia,) enquanto a visão adequada, a meu juízo, é a de que consiste em doxai (opiniões, conjecturas) controladas pela discussão crítica e também pela techné experimental. Vide cap. 20. 13 - Vide a seção 10 de Poverty o f Historicism, bem como Open Society and Its Enemies, vol. 1, cap. 3, seção vi; vol. 2, cap. 11, seções i e ii.

14 — Este ponto já se prest u algumas vezes a confusão, pois a critica instrumentalista dirigida contra as explicações (definitivas) ioi enunciada por alguns por meio da fórmula de que o objetivo da ciência é a descrição, não a explicação. Por descrição o que se queria dizer era a descrição do mundo empírico ordinário; o que a fórmula expressava, indiretamente, era o fato de que as teorias que não descrevem naquele sentido não passam de instrumentos convenientes para ajudar-nos na descrição dos fenômenos ordinários.

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keley, pensam assim porque não acreditam que as coisas físicas tenham um a essên­ cia; M ach, porque não aceita a própria noção de essência; Berkeley, porque só acredita nas essências espirituais: p a ra ele Deus é a única explicação essencial do m undo. D uhem parece pensar, lem brando K an t15, que existem essências, porém não são perceptíveis pela ciência hum an a (em bora possamos, de algum m odo, nos aproxim ar delas); d a m esm a form a que Berkeley, ele acha que as essências podem ser reveladas pela religião. Mas todos esses filósofos estão de acordo em que a ex­ plicação científica (definitiva) é impossível. Da inexistência de um a essência oculta que pudesse ser descrita pelas teorias científicas eles concluem que essas teorias (as quais claram ente não descrevem nosso m undo ordinário da experiência com um ) nad a descrevem — são meros instrum entos.16 O que pode aparecer como cres­ cim ento do conhecim ento teórico não é mais do que um aperfeiçoam ento ins­ trum en tal. Os filósofos instrum entalistas rejeitam , portanto, a terceira doutrina — a dou trin a das essências. (T am bém a rejeito, mas por razoes algo diferentes.) Ao mesmo tem po, recusam obrigatoriam ente a segunda doutrina; de fato, se a teoria é apenas um instrum ento, não pode ser verdadeira (pode, sim, ser conveniente, sim ­ ples, econôm ica, poderosa, etc.). F reqüentem ente cham am as teorias de “h ip ó ­ teses” , em bora não em preguem o term o no sentido em que o utilizo: de que se pode conjecturar que um a teoria é verdadeira — que é um a afirm ação descritiva, em ­ bora talvez falsa (mas pretendem dizer que as teorias não são seguras). Escreve Osiandro: “E a respeito da utilidade das hipóteses ninguém deve esperar que surja algo seguro da astronom ia; n ada disso poderá originar-se jam ais dessa ciência”. O ra, concordo inteiram ente em que não se pode ter certeza das teorias (que são sem pre refutáveis); concordo mesmo em dizer que são instrum entos, mas não que isso justifique não term os certeza sobre elas. A razão correta, a m eu ver, é simples­ m ente a de que nossos testes não podem ser exaustivos. H á assim um a área de co n ­ cordância considerável entre meus opositores instrum entalistas e o ponto de vista que defendo a respeito da segunda e da terceira doutrinas. Com relação à prim eira dou trin a, no en tan to , o desacordo é total. V oltarei mais adiante a falar a respeito desse desacordo. N a presente seção procurarei criticar a doutrin a essencialista da ciência; farei isso em linhas algo diferentes das dos argum entos usados pelos instrum entalistas, que não posso aceitar. Com efeito, seu argum ento de que não pode haver “essências ocultas” se baseia na convicção de que não pode haver nada oculto (ou de que se há algo ocul­ to, só pode ser conhecido por meio da revelação divina). O que disse na últim a seção terá deixado claro que não posso aceitar um argum ento que leva à rejeição do papel da ciência na descoberta d a rotação da T erra, dos núcleos atômicos, da radiação cósmica e das “radio-estrelas” . Estou pronto p o rtan to a conceder aos essencialistas que há m uito oculto da nossa percepção, e que poderem os descobrir m uito do que nos está oculto. (Discor­ do p ro fundam ente do espírito do dictum de W ittgenstein: “O enigm a não existe”). Não preten d o criticar os que procuram com preender a “essência do m u n d o ”. A 15 — Cf. carta escrita por Kant a Reinhold, 12-5-1789, na qual declara que a “essência real” ou “na­ tureza” de uma coisa (por exemplo, da matéria) é inacessível ao conhecimento humano. 16 — Vide o cap. 6.

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doutrina essencialista que contesto é apenas a doutrina de que a ciência busca um a explicação definitiva — isto é, um a explicação que, essencialmente, pela sua própria natureza, não possa ser am pliada, que não exija explicações adicionais. Fica claro, p ortanto, que m inha crítica do essencialismo não visa estabelecer a inexistência das essências; procura simplesmente m ostrar o papel obscurantista desem penhado pela idéia das essências na filosofia da ciência de Galileu (até M ax­ well, que se inclinava a aceitá-las, mas cujas investigações destruiram sua crença). Em outras palavras, m inha crítica tenta dem onstrar que, existam ou não as essên­ cias, a crença nelas não nos ajuda de nenhum m odo; na verdade, pode prejudicarnos; por isso não há qualquer razão para que o cientista presum a sua existência. 17 Pode-se dem onstrar isso, creio, com um exem plo simples — a teoria newtoniana da gravidade.

A interpretação essencialista dessa teoria é devida a Roger C otes.171819 Segun­ do Cotes, Newton descobriu que todas as partículas de m atéria possuem gravidade, isto é, um a força inerente de atração da m atéria, bem como inércia, um poder inerente de resistência a qualquer alteração no seu m ovim ento (poder de m anter a direção e a velocidade do m ovim ento). Como tanto a gravidade quanto a inércia são inerentes à m atéria, segue-se que devem ser estritam ente proporcionais à q u a n ­ tidade de m atéria que compõe um corpo; daí a lei da proporcionalidade da massa inerte e em gravitação. Como a gravidade se irrad ia de todas as partículas, che­ gamos à “lei do quadrado da atração ”: em outras palavras, as leis da dinâm ica new toniana apenas descrevem em linguagem m atem ática a situação devida às propriedades inerentes da m atéria: descrevem a natureza essencial da m atéria. Como a teoria de Newton descrevia deste m odo a natureza essencial da m atéria, podia explicar o com portam ento da m atéria pelo processo da dedução m atem ática. De acordo com Cotes, porém , ela não exige explicações adicionais, nem pode dá-las — pelo menos dentro do cam po da física. A única possível ex­ plicação adicional é a de que Deus atribuiu à m atéria essas propriedades essên­ cias. 19

17 — Esta crítica é portanto francamente utilitarista, e poderia ser descrita como instrumentalista... O que me interessa aqui é o problema do m étodo__que é sempre um problema de adequação de meios a fins. Minha crítica ao essencialismo, isto é, à doutrina da explicação definitiva, tem sido objetada com a observação de que eu próprio (talvez de forma inconsciente) funciono com a idéia de uma essência da ciência,(ou do conhecimento humano)-, explicitado, meu argumento seria o seguinte: O fato de que não podemos conhecer, ou buscar, coisas como as essências ou naturezas é um fato que pertence à essência ou à natureza da ciência humana (ou do conhecimento humano). Respondi, por implicação, em L. Sc. D., seções 9 e 10, antes mesmo de que a objeção fosse levantada — na verdade, antes de descrever ou atacar o essencialismo. Vale notar ainda que seria possível admitir que certos objetos que fabricamos — os relógios, por exemplo — tivessem uma “essência”, isto é, um “propósito”. Como a ciência é uma atividade imbuída de propósito (é um método), poderia portanto ser concebida como tendo uma “essên­ cia”, mesmo que negássemos que os objetos naturais têm essências (negativa que, no entanto, não está implícita na crítica que faço ao essencialismo). 18 — Prefácio de R. Cotes à segunda edição dos Principia de Newton. 19 — Há uma teoria essencialista do tempo e do espaço (semelhante a esta teoria da matéria), que devemos ao próprio Newton.

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A concepção essencialista da teoria de Newton e ra r de m odo geral, sua in ­ terpretação “oficial” até as últim as décadas do século dezenove. Está claro que era um a in terp retação obscurantista, pois im pedia a colocação de indagações fr u tí­ feras, tais como: “qual é a causa da gravidade? ou “será possível explicar a g ra ­ vidade deduzindo a teoria de Newton, ou um a boa aproxim ação dela, de um a teoria m ais geral (que pudesse ser testada independentem ente)?” É elucidativo constatar que o próprio Newton não considerava a gravidade um a p ropriedade essencial da m atéria (em bora considerasse a inércia essencial, como a extensão — acom panhando Descartes). Newton parece ter recebido de Des­ cartes a noção de que a essência de um a coisa é necessariam ente um a sua p ro ­ priedade verdadeira ou absoluta — isto é, um a propriedade que não depende da existência de outras coisas, tal como a extensão ou o poder de resistir a m udanças no seu m ovim ento, e não um a propriedade “relacional” , isto é, um a propriedade que, como a gravidade, determ ina as relações (interações espaciais) entre os corpos. Por isso ele sentia claram ente o caráter incom pleto da sua teoria, e a necessidade de explicar a gravidade, tendo observado:20 “A dm itir que a gravidade seja inata, inerente e essencial à m atéria, de form a que os corpos possam agir entre si à dis­ tâ n c ia ... é p a ra m im um absurdo tão grande que não acredito que alguém que tenha a faculdade de pensar com com petência sobre assuntos filosóficos possa nele re c a ir.” É interessante ver que Newton condenou nessa passagem, antecipadam ente > a m aior p arte dos seus seguidores. Sente-se a tentação de dizer que p ara estes as propriedades que ap renderam na escola pareciam essenciais (e até mesmo eviden­ tes), em bora o mesmo não acontecesse com Newton, com sua form ação cartesiana, p ara quem elas precisavam de explicação (chegando mesmo a parecer quase p a ­ radoxais).

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pulsos uns sobre os outros?” pode ser feita (conform e Leibniz viu em prim eiro lugar), e é mesmo um a indagação m uito fértil (Acreditam os agora que isso é pos­ sível devido a certas íorças elétricas repulsivas). Mas o essencialismo cartesiano e newtoniano poderia ter evitado essa pergunta, especialm ente se Newton tivesse tido êxito ao tentar explicar a gravidade. Acho que esses exemplos deixam claro que a crença nas essências (seja ver­ dadeira ou falsa) pode criar obstáculos ao pensam ento — à postulação de p ro ­ blemas novos e férteis. Além disso, ela não pode ser p arte da ciência (mesmo se e n ­ contrássemos, por sorte, um a teoria que descrevesse as essências, nunca poderíam os ter certeza da sua adequação). Contudo, um a crença que conduz com p ro b ab i­ lidade ao obscurantism o não é decerto um a dessas crenças extracientífícas (tais como a fé no poder da discussão crítica) que um cientista precisa aceitar. Concluo assim m inha crítica do essencialismo. 4. Segundo Ponto de Vista: As Teorias como Instrum entos A visão instrum entalista tem grandes atrativos: é m odesta e m uito simples, especialm ente quando com parada com o essencialismo. De acordo com o essencialismo podemos distinguir entre: i) o universo da realidade essencial; ii) o universo dos fenômenos observáveis; e iii) o universo da linguagem descritiva e da representação simbólica. Representare; cada um desses universos por um quadrado:

No en tan to , Newton era um essencialista, que se havia esforçado por encon­ tra r u m a explicação definitiva aceitável da gravidade procurando deduzir a “lei do q u a d ra d o ” da prem issa de um impulso m ecânico — o único tipo de ação causal adm itida por Descartes, pois podia ser explicada pela extensão, essa propriedade essencial de todos os corpos. 21 Newton, porém , fracassou. Se não fosse isso, p o ­ deriam os ter certeza de que teria im aginado que o seu problem a tinha sido fin alm ente resolvido — que encon trara um a explicação definitiva p ara a gravidade 22* — e teria com etido um erro. A pergunta: “por que os corpos podem produzir im ­

20 — Carta a Richard Bentley, 25-2-1693, e também a carta de 17 de janeiro. 21 — Newton tentou explicar a gravidade pela ação por contato cartesiana (precursora de uma action at vamshing distances). Sua Opticks (Qu. 31) mostra que ele de fato considerava que “... aquilo que chamo atração pode ser executado pelo impulso” (antecipando assim a explicação da gravidade por Lesage como um “efeito de guarda-chuva” numa chuva de partículas). 22 — Newton foi um essencialista, para quem a gravidade era inaceitável como explicação definitiva; mas era crítico demais para aceitar até mesmo suas próprias tentativas de explicá-la. Na mesma si­ tuação, Descartes teria presumido a existência de algum mecanismo de impulsão, propondo o que chamaria de “hipótese”. Newton, porém, aludindo criticamente a Descartes, acentuou que pretendia “argumentar com base em fenômenos, sem conceber hipóteses (arbitrárias ou ad hoc).” (Qu. 28) Como é natural, ele não podia evitar todo o tempo o emprego de hipóteses, e sua Opticks contém muitas es­ peculações ousadas. Contudo, sua rejeição explícita e reiterada do método das hipóteses deixou uma im­ pressão duradoura; e Duhem a usou para apoiar a concepção do instrumentalismo.

A função das teorias poderia ser descrita da seguinte m aneira: a e b são fenômenos, A e B são âs realidades correspondentes, que existem por trás das aparências; (X e f i são as descrições ou representações simbólicas dessas realidades. E são as propriedades essenciais de A e B; £ é a teoria que descreve E. O ra, a p artir de £ e d e £ f podemos ded u zir/?, o que significa que podem os explicar, com a ajuda da nossa teoria, por que a leva a b (é causa de b). Pode-se representar o instrum entalism o, com esse esquem a, simplesmente om itindo (i) — o universo das realidades por trás das várias aparências, (fi des­ creverá diretam ente a e/ 3 descreverá diretam ente b. £ não descreverá nada: será só um instrum ento para ajudar-nos a deduzir j 3 de Of. O que pode ser expresso dizen­

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do — como o fez Schlick, seguindo W ittgenstein — que um a teoria ou lei universal não é p ropriam ente um a afirm ativa, mas “um a regra, ou conjunto de instruções, p ara derivar um as afirm ativas singulares de o u tra s.” 23 Esse é o ponto de vista instrum entalista. P ara com preendê-lo m elhor p o ­ demos to m ar m ais um vez a dinâm ica new toniana como exem plo: a e b são duas posições de dois focos luminosos (ou duas posições do planeta M arte); c( e / i são as fórm ulas correspondentes; £ é a teoria fortalecida pela descrição geral do sistema solar (por um “m odelo” do sistema solar). N ada corresponde a £ no m undo (no universo ii): entidades como forças atrativas, por exem plo, simplesm ente não exis­ tem . As forças propostas por Newton não são entidades que determ inam a ace­ leração dos corpos: são apenas instrum entos m atem áticos cuja função consiste em perm itir-nos d e d u z i r ^ d e (£. Sem dúvida temos aqui um a sim plificação atraente, um a aplicação radical da “navalha de O ckham ” . Mas, em bora essa sim plicidade tenha provocado a con­ versão de m uitos cientistas e filósofos ao instrum entalism o (por exemplo: M ach), está longe de ser o argum ento mais forte em seu favor. O argum ento mais forte dado por Berkeley em apoio do instrum entalism o se baseava na filosofia da linguagem nom inalista, segundo a qual a expressão “força de a tra ç ã o ” não teria sentido, já que forças desse tipo não podem ser observadas. O que observamos são m ovim entos, não suas alegadas “causas” , ocultas. Para B er­ keley isso seria suficiente p a ra dem onstrar que a teoria de Newton não pode ter qualq u er conteúdo inform ativo ou descritivo. O ra, este argum ento de Berkeley pode talvez ser criticado pela teoria do sig­ nificado intoleravelm ente estreita que im plica; se a aplicássemos de form a consis­ tente, todas as palavras referentes a disposições não teriam sentido. N ão só as “fo r­ ças de a tra ç ã o ” new tonianas seriam desprovidas de significado, m as tam bém outras palavras e expressões como “quebrável” (que pode ser quebrado, diferente de “q u e b ra d o ”), ou “eletro co n d u to r” (que pode conduzir eletricidade, diferentç de; que está conduzindo eletricidade). De fato, “quebrável” e “eletrocondutor” não são nomes de qualq u er coisa observável; precisariam p o rtanto ser tratados em ig u al­ dade de condições com as “forças” new tonianas. C ontudo, seria naturalm ente e m ­ baraçoso qualificar todas essas expressões como carentes de sentido — e do ponto de vista do instrum entalism o isso é desnecessário: tudo o que precisamos é um a análise do sentido dos term os referentes a disposições — o que revelará que pos- v suem um sentido. Do ponto de vista instrum entalista, porém , não têm um sentido descritivo: sua função não seria referir eventos, ocorrências, “incidentes” , ou des­ crever fatos; seu significado se lim itaria à permissão ou licença que nos dão p ara extrair inferências ou p a ra arg u m en tar a p a rtir de certas questões de fato para outras. As afirm ativas que não dizem respeito a disposições, e descrevem fatos o b ­ serváveis (“sua p erna está q u e b ra d a ”) seriam como o dinheiro, que tem valor im ediato; as assertivas que concernem disposições (incluindo as leis científicas) seriam como instrum entos de crédito, que criam direitos resgatáveis em dinheiro. 23 — Vide a análise e crítica desse ponto de vista em L. Sc. D., especialmente na nota 7 da seção 4; e também na nota 51, cap. 11 de Open Society. A idéia de que afirmativas universais podem funcionar dessa forma pode ser encontrada na Logic de Mill, Livro II, cap. III, 3: “Toda inferência parte de par­ ticulares para particulares”. Vide também G. Ryle, The Concept o f Mind (1969), cap. V, pág. 121 para uma formulação mais cuidadosa e crítica do mesmo ponto de vista.

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B astará avançar m ais um passo na m esma direção p a ra chegarm os a um a r ­ gum ento instrum entalista que é m uito difícil de criticar — se não impossível: nosso problem a — saber se a ciência é descritiva ou instrum ental — ficará exposto então como um p seu d oproblem a.24* Esse passo consiste sim plesm ente em não só a trib u ir sentido — sentido ins­ trum ental — aos term os e expressões referentes a disposições, mas em adm itir ta m ­ bém que têm um sentido descritivo. Os termos como “quebrável” , que se referem a disposições (no caso, a disposição de quebrar ou de ser quebrado) seguram ente des­ crevem algum a coisa: de fato, dizer que um a coisa é “quebrável” é descrevê-la como um a coisa que pode ser q uebrada. Contudo, dizer que algo é quebrável, ou solúvel, é descrever de m odo p articular, com um m étodo diferente do que está im ­ plicado na afirm ativa de que algo está quebrado, ou dissolvido. Se não fosse assim, não usaríam os o sufixo “ ável”. A diferença é exatam ente esta: ao usar termos dessa natureza descrevemos o que pode acontecer à coisa em questão, em determ inadas circunstâncias. Da mesma form a, as descrições em term os de disposição são des­ crições, sem dúvida, em bora tenham um a função p u ram ente instrum ental: pode-se dizer a* seu respeito que constituem um caso em que o conhecim ento é poder — o poder de prever. Q uando Galileu disse, referindo-se à T e r r a ,“e, contudo, se m ove”, fez, sem dúvida, um a afirm ativa descritiva; mas o sentido ou função dessa afir­ m ativa é exclusivamente instrum ental, lim itada à ajuda que presta na dedução de certas afirm ativas não referentes a disposições. De acordo com este argum ento, por conseguinte, a tentativa de dem onstrar que as teorias têm um sentido descritivo, além do seu sentido instrum ental, é produto de um erro de concepção — todo o problem a — o ponto de discordância entre Galileu e a Igreja — seria, na verdade, um pseudoproblem a. Já se alegou, em apoio dessa tese de que Galileu foi condenado por um pseudoproblem a, que à luz de um sistema de física logicam ente m ais avançado o problem a de Galileu de fato perde 6 sentido. Ouve-se m uitas vezes a afirm ativa de que o princípio geral de Einstein deixa claro que não tem sentido falar em m o ­ vimento absoluto, mesmo no caso da rotação — podem os escolher o sistema que quisermos para postulá-lo como sendo (relativam ente) fixo. Por isso, o problem a de Galileu se desvaneceria, precisam ente pelas razões que avançam os acim a: o co­ nhecim ento astronôm ico não pode ser senão o conhecim ento de como os astros se com portam , o poder de descrever e prever nossas observações — ora, como estas devem ser independentes da nossa escolha do sistema de coordenadas, percebemos mais claram ente por que o problem a de Galileu não podia ser real. Não pretendo criticar o instrum entalism o nesta seção, ou replicar a seus argum entos — exceção feita do últim o, relacionado com a relatividade geral. T rata-se de um argum ento baseado num equívoco. Do ponto de vista da relati­ vidade geral faz m uito sentido — mesmo em termos absolutos — dizer que a T erra tem um m ovim ento de rotação: ela tem um m ovim ento de rotação precisam ente no mesmo sentido em que um a roda de bicicleta ta m b ém o te m : com relação a qual24 — Até aqui não pude encontrar nos trabalhos que conheço sobre o assunto essa modalidade par­ ticular do argumento instrumentalista; se lembrarmos porém o paralelismo existente entre problemas relativos ao sentido de uma expressão e aqueles relacionados com sua veracidade veremos que ele corres­ ponde estreitamente à definição de “verdade” de William James — que a entende como “utilidade”.

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quer sistem a de inércia local que for escolhido como referência. Com efeito, a relatividade descreve o sistema solar de tal m odo que dessa descrição podemos deduzir que qualquer observador, situado em qualquer corpo em m ovim ento, suficientem ente afastado (a Lua, outro planeta ou um a estrela fora do sistema), observaria a T e rra g irando e poderia deduzir dessa observação que seus habitantes estariam percebendo um m ovim ento ap aren te diurno do Sol. Está claro que esse é precisam ente o significado da expressão “a T e rra tem um m ovim ento de ro tação ” que estávam os discutindo; p arte da questão consistia em saber se o sistema solar é um sistema como o de Jú p iter e suas luas, apenas m aior; e se pareceria tal sistema, visto de fora. Em todos esses pontos, Einstein apóia Galileu sem qualquer ambigüidade. Meu argum ento não deve ser interpretado como admissão de que todo o problem a pode ser reduzido a um a questão relativa a observações, ou a possíveis observações. S eguram ente, tanto Galileu q u an to Einstein p ro curaram , entre outras coisas, deduzir o que um possível observador veria; contudo, esse não é o problem a principal que confrontaram . Ambos investigaram os sistemas físicos e seus m ovi­ mentos — só o filósofo instrum entalista afirm a que o que estudaram , ou “p re te n ­ deram realm en te” estudar, não eram sistemas físicos, mas apenas os resultados de observações possíveis — que seus cham ados “sistemas físicos”, que pareciam cons­ titu ir os respectivos objetos de estudo, eram , na realidade, meros instrum entos para prever observações. 5. Crítica do Ponto de Vista Instrum entalista. Já vimos que o argum ento de Berkeley depende da aceitação de um a certa filosofia da linguagem — talvez convincente à prim eira vista, mas não necessa­ riam ente verdadeira. Além disso, depende do problem a do significado,25 co­ nhecido pelo seu caráter vago e que não oferece m uitas esperanças de solução. A posição se torn a ainda mais desesperada quando consideram os alguns desenvol­ vimentos recentes da argum entação de Berkeley, conform e expostos sum ariam ente na seção precedente. Procurarei, portan to , forçar um a decisão inequívoca para o nosso problem a m ediante abordagem diferente — fazendo um a análise da ciência, em lugar de fazer um a análise da linguagem . A crítica que proponho ao ponto de vista instrum entalista pode ser sinte­ tizada como segue: O instrum entalism o pode ser enunciado como a tese de que as teorias cien­ tíficas — as teorias das cham adas “ciências p u ras” — não passam de regras de com putação (ou de inferência), que têm fu n dam entalm ente o mesmo caráter das regras de com putação das cham adas “ciências aplicadas” . Poder-se-ia mesmo fo r­ m ulá-la como a tese de que “ciência p u ra ” é um a denom inação equivocada, pois toda ciência é “ap licad a” . M inha resposta aos instrum entalistas consiste em dem onstrar que há d i­ ferenças profundas entre as teorias “p u ras” e as regras aplicáveis à com putação tec25 — A respeito do problema do significado vide meus dois livros, L. Sc. D. e Open Society, bem como os caps. 1, 11, 13 e 14 desta obra.

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nológica; que o instrum entalism o pode propiciar um a descrição perfeita dessas regras, m as não é capaz de explicar a diferença existente entre elas e as teorias. Des­ ta form a, o instrum entalism o perde sua sustentação. A análise das m uitas diferenças funcionais que há entre as regras de com ­ putação (relacionadas com a navegação, por exemplo) e as teorias científicas (como a de Newton) é um tem a interessante. As relações lógicas que podem existir entre as teorias e as regras de com putação não são simétricas e diferem das que se aplicam a várias teorias, bem como das que se referem a várias regras de com putação. O m odo como as regras de com putação são experim entadas é diferente da m aneira como as teorias são testadas. A habilidade exigida p ara a aplicação das regras de com putação é bem diferente da que é necessária p ara sua discussão (teórica) e para a determ inação (teórica) dos limites da sua aplicabilidade. Estas são apenas a l­ gum as indicações, m as que podem ser suficientes p ara m ostrar a direção e a força do argum ento. Vou explicar agora um desses pontos com um grau m aior de detalhe, p o r­ que ele pode dar origem a um argum ento sem elhante ao que em preguei contra o essencialismo: trata-se do fato de que as teorias são testadas por meio de tentativas de refutação (que nos ensinam m uito); mas não há n ad a que corresponda a essas tentativas, no caso das regras tecnológicas de com putação. Não é simplesm ente pela sua aplicação, ou experim entação, que se testa um a teoria, mas aplicando-a a casos m uito especiais — casos em que ela deve produzir resultados diferentes daqueles que esperaríam os sem a teoria em questão, ou à luz de outras teorias. Em outras palavras, procuram os escolher p ara nossos testes os casos cruciais, em que esperaríam os a teoria falh ar se não fosse verdadeira. Esses casos são “cruciais” no sentido de Bacon: indicam encruzilhadas de duas ou mais teorias. De fato, alegar que sem a teoria em questão esperaríam os resultados diferentes im plica que nossa expectativa poderia resultar de algum a outra teoria, possivelmente anterior — por menos clara que seja nossa consciência desse fato. Mas, enquanto Bacon acreditava que um a experiência crucial pode dem onstrar ou verificar um a teoria, diremos que ela pode na m elhor das hipóteses r e f u t á - l a . 26 T rata-se de um a tentativa de refutação; se essa tentativa não for bem sucedida, dizemos que a teoria foi corroborada pela experiência — corroboração que é tanto m aior quanto menos esperado, ou menos provável, o resultado da experiência.2627 Poder-se-ia objetar à concepção desenvolvida aqui — de acordo com Duhem;28 — que em cada teste não é só a teoria sob investigação que está envol­ vida, mas tam bém todo o sistema de nossas teorias e premissas — de fato, mais ou menos a totalidade do nosso conhecim ento —, de m odo que nunca podemos ter certeza de qual dessas premissas foi refutada. Mas essa crítica não leva em conta o fato de que se tom arm os cada um a das duas teorias que vão ser testadas por um a 26 — Na sua famosa crítica das experiências cruciais, Duhem (in Aim and Structure o f Physical Theory) consegue demonstrar que as experiências cruciais nunca podem provar uma teoria, mas não consegue demonstrar que essas experiências não podem refutá-la. 27 — 0 grau de corroboração aumentará portanto com a improbabilidade dos casos de corroboração. Vide meu trabalho “Degree o f Confirmation", Brit.Jour. Phil. Sei., 5, pág. 143, incluído agora entre os apêndices de L. Sc. D.; vide também o cap. 10 deste livro. 28 — Loc. cit.

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experiência crucial, ju n ta m e n te com todo o restante do nosso conhecim ento (como é necessário), decidirem os a respeito de dois sistemas que diferem apenas a respeito das duas teorias em questão. A crítica não considera tam bém que não afirm am os a refutação de um a das teorias como tal, mas da teoria acrescentada de todo o res­ tante do nosso conhecim ento — partes do qual poderão ser responsabilizadas, no futuro, pelo insucesso da experiência, graças a outras experiências cruciais. Po­ demos assim caracterizar mesmo um a teoria que está sendo investigada como aquela p arte de um am plo sistema p ara qual podemos ter um a alternativa em m ente, ainda que pouco precisa, e p ara a qual estamos procurando conceber testes cruciais. No que diz respeito aos instrum entos e regras de com putação não encon­ trarem os n ad a que seja suficientem ente sem elhante. E bem verdade que um ins­ trum ento pode apresentar um defeito, ou tornar-se obsoleto; mas não faz sentido dizer que subm etem os um instrum ento aos testes mais rigorosos que podemos co n ­ ceber, p ara rejeitá-lo caso não passe nesses testes; um a aeronave, por exemplo, pode ser “testada até a destruição”; mas esse teste rigoroso não tem por objetivo rejeitar todas as aeronaves a que for subm etido, pela sua destruição, m as sim obter inform ações (isto é, testar um a teoria), de m odo a utilizá-la dentro dos limites da sua aplicabilidade (ou seja, dentro de um a m argem de segurança). P ara os objetivos instrum entais relacionados com a aplicação p rática, um a teoria pode continuar sendo em pregada m esm o depois da sua refutação — dentro dos limites da sua aplicabilidade, é claro; inform ado de que a teoria de Newton é dem onstradam ente falsa, um astrônom o não hesitará em aplicá-la, dentro dos limites em que pode ser aplicada. Podemos às vezes ficar desapontados ao verificar que a gam a de aplicabi­ lidade de um instrum ento ê m enor do que esperávamos; isso porém não nos leva a rejeitar aquele instrum ento — trata-se de um a teoria ou de um aparelho. Por outro lado, esse desapontam ento significa que conseguimos nova inform ação pela re ­ futação da teoria segundo a qual aquele instrum ento podia ser aplicado a' um a gam a m ais am pla. Conform e vimos, mesmo as teorias — na m edida em que são instrum entos ~~ não podem ser refutadas. A interpretação instrum entalista não poderá p o rtanto explicar os testes reais, que são tentativas de refutação, e não irá além da assertiva de que diferentes teorias têm diferentes gam as de aplicação. Por outro lado, ela não pode tam bém explicar o progresso científico. Em vez de dizer (como afirm o) que a teoria de Newton foi refu tad a por meio de experiências cruciais que não refu taram a teoria de Einstein, e que portan to esta últim a é m elhor do que a de Newton, o instrum entalista coerente terá que repetir, a respeito do seu “novo” p o n ­ to de vista, as palavras de Heisenberg: “segue-se que não declaram os mais: a m ecânica de Newton é falsa... Em vez disso, usamos a seguinte form ulação: a m ecânica clássica... é “co rreta” onde quer que seus conceitos possam ser aplica­ dos” . 29 29 — Vide W. Heisenberg, Dialectica, 2, 1948, pág. 333. O instrumentalismo de Heisenberg não é consistente, e há muitas observações antiinstrumentalistas que lhe podem ser atribuídas. O artigo que citamos aqui pode ser qualificado como uma tentativa radical de provar que sua teoria quântica leva necessariamente a uma Filosofia instrumentalista, e portanto ao resultado de que a teoria física nunca poderá ser unificada, nem tornada coerente.

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“C orreta” , aqui, significa “aplicável” ; p o rtanto, a assertiva significa apenas que “a m ecânica clássica é aplicável onde quer que seus conceitos podem ser aplicados” — o que não é dizer m uito. De qualquer form a, a verdade é que, ao negligenciar a refutação, e acentuar a aplicação, o instrum entalism o é um a filo ­ sofia tão obscurantista quanto o essencialismo. De fato, só pelas tentativas de re ­ futação pode a ciência ter esperança no progresso. Só pelo exam e de como suas várias teorias respondem à experim entação podemos distinguir entre as teorias m elhores e as menos boas, e encontrar um critério de progresso científico (vide o cap. 10). P ortanto, um simples instrum ento de previsão não pode ser refutado. O que nos parece às vezes como um a refutação não passa de advertência, acau telan d o -nos sobre os limites da sua aplicabilidade. É por isso que o ponto de vista instrum en­ talista pode ser usado ad hoc p ara salvar um a teoria científica am eaçada por con­ tradições — como fez Bohr (se está certa m inha interpretação, do seu princípio da com plem entaridade). Se as teorias são apenas instrum entos p ara previsão, não precisamos rejeitar nenhum a teoria em particu lar, mesmo quando deixamos de acreditar na consistência da interpretação física do seu enunciado form al. Em sum a, podemos afirm ar que o instrum entalism o não pode explicar a im portância que representa p ara a ciência pu ra a experim entação rigorosa mesmo das implicações m ais rem otas das suas teorias; não tem condições de justificar o in ­ teresse que o cientista puro tem pela veracidade e falsidade das teorias. C o n trastan­ do com a atitude altam ente crítica do cientista puro, a posição do instrum entalis­ mo (como a da ciência aplicada) é com placente no que concerne o êxito das suas aplicações. Por isso o instrum entalism o pode ser responsável pela recente estag­ nação da teoria quântica (escrito antes da refutação da paridade). 6. Terceiro Ponto de Vista: Conjecturas, a Verdade e a Realidade. Nem Bacon nem Berkeley acreditavam que a T e rra tinha um m ovim ento de rotação; hoje, todos acreditam nisso, inclusive os físicos. O instrum entalism o é adotado por Bohr e H eisenberg exclusivamente como um meio p ara resolver certas dificuldades especiais surgidas no cam po da teoria q uântica. Esse motivo não é suficiente. É sempre difícil in terp retar as teorias mais recentes, que às vezes deixam perplexos seus próprios criadores, como aconteceu com Newton. Maxwell, por exem plo, a princípio se inclinava no sentido de in te r­ pretar sua teoria do ponto de vista do essencialismo — em bora ela tenha co n tri­ buído mais do que qualquer outra para o declínio do essencialismo. Einstein inicialm ente teve um a visão instrum entalista da relatividade, aplicando um a es­ pécie de análise operacional ao conceito de sim ultaneidade — que contribuiu para a presente m oda instrum entalista mais do que qualquer outra coisa; mais tarde, porém , se arrependeu. 30* Confio em que os físicos não tard arão a perceber que o princípio da com ­ plem entaridade é ad hoc e (o que é mais im portante) que sua única função é evitar

30 — Quando este texto foi composto, Einstein estava ainda vivo, e pretendia enviar-lhe uma cópia. Minha observação se refere a uma conversa que tivemos em 1950.

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a crítica e im pedir a discussão das interpretações físicas, em bora a crítica e o debate sejam urgentem ente necessários p ara reform ar qualquer teoria. A p artir desse m om ento, deixarão de pensar que o instrum entalism o lhes é imposto pela pró p ria estru tu ra da teoria física contem porânea. De q ualquer form a, o instrum entalism o não é mais aceitável do que o essencialismo, como procurei dem onstrar. E não é necessário aceitar um ou o outro, porque há um terceiro ponto de v ista.31 Esse terceiro ponto de vista não é espantoso nem chega sequer a su rp reen ­ der. Preserva a dou trin a de Galileu de que o cientista busca um a descrição ver­ dadeira do m undo, ou de alguns dos seus aspectos, e um a explicação verdadeira dos fatos observáveis, com binando-a com o conceito (que não encontram os em Galileu) de que em bora esses perm aneçam como objetivos do trabalho científico, nunca se pode saber com certeza se os resultados das investigações feitas são ver­ dadeiros, em bora algum as vezes se possa com provar com razoável segurança que um a d eterm inada teoria é fa lsa .32 Pode-se form ular o terceiro ponto de vista a respeito das teorias científicas em poucas palavras, dizendo que elas são conjecturas genuínas, altam ente in fo r­ mativas, que, em bora não verificáveis (isto é: passíveis de ser provadas) resistem a testes rigorosos. São tentativas sérias de descobrir a verdade. Sob este aspecto, as hipóteses científicas são exatam ente como a famosa conjectura de G oldbach a propósito da teoria dos núm eros. G oldbach pensou que ela pudesse ser verdadeira o que pode acontecer, embora não saibam os, e talvez nunca cheguemos a saber se de fa to é verdadeira ou não. Vou lim itar-m e aqui a m encionar só uns poucos aspectos desse “terceiro ponto de vista” os que os distinguem do essencialismo e do instrum entalism o. Em prim eiro lugar, o essencialismo: Os essencialistas consideram o m undo ordinário como um conjunto de aparências, por trás das quais existe um m undo real. É um a concepção que re ­ jeitam os ao ad q u irir consciência do fato de que p m undo de cada um a das nossas teorias pode ser explicado por outros m undos, que por sua vez são descritos por novas teorias num nível mais elevado de abstração, de generalidade e de testabilidade. A dou trin a que postula um a realidade essencial entra em colapso ju n ­ tam ente com a da explicação definitiva. Uma vez que, de acordo com nosso tercei to ponto de vista, as novas teorias científicas são, como as anteriores, conjecturas genuínas, elas constituem tentativas autênticas de descrever esses m undos. Por isso somos levados a considerá-los a todos (inclusive nosso m undo ordinário) como igualm ente reais — m elhor ainda, talvez, como aspectos ou estratos igualm ente reais do m undo real (se, ao olhar num m icroscópio, alteram os sua m agnificação, veremos vários aspectos ou estratos da

31 — Cf. seção v do cap. 6. 32 - Cf. a discussão deste ponto na seção v, acima, e em L. Sc. D. (passim); vide também o cap. 1 des­ te livro e os fragmentos de Xenófanes mencionados ao fim do cap. 5

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m esma realidade, com pletam ente diversos e todos igualm ente reais). É um erro, portanto, dizer que m eu piano, na form a como o percebo, é real, mas que suas moléculas e átomos são apenas “construções lógicas” (ou qualquer outra expressão que denote sua irrealidade); da m esma form a, é um equívoco dizer que a teoria atôm ica dem onstra que o piano do m eu m undo ordinário é só um a aparência — d o utrina que é perfeitam ente insatisfatória, pois os átomos podem ser explicados tam bém como distúrbios, ou estruturas de distúrbios, num cam po quântico de for­ ças (ou possivelmente de probabilidades). Todas essas conjecturas têm igual direito a descrever a realidade, em bora algum as sejam m ais conjecturais do que outras. Por isso não devemos, por exemplo, descrever só as cham adas “qualidades prim árias” de um corpo (tais como sua form a geom étrica) como reais, co n trastan ­ do-as como faziam outrora os essencialistas — com “qualidades secundárias” (tais como a cor). De fato, a extensão e mesmo a form a dos corpos já se tornaram objetos de explicação, em termos de teorias de grau de abstração mais elevado — teorias que descrevem um estrato mais profundo da realidade: forças e campos de forças, relacionados com as qualidades prim árias da m esm a form a como os essen­ cialistas acreditavam que estas estavam relacionadas com as secundárias. E as qualidades secundárias, como as cores, são tão reais quanto as prim árias — em bora nossas experiências com as cores não se confundam com as propriedades de cor dos objetos físicos, exatam ente como nossas experiências com as form as geom étricas precisam ser distinguidas das propriedades de form a geom étrica das coisas físicas. Do nosso ponto de vista os dois tipos de qualidades são igualm ente reais — esta é a conjectura que fazemos. Assim tam bém as forças e os cam pos de forças, a despeito do seu caráter indubitavelm ente hipotético ou conjectural. Todos esses vários níveis são igualm ente reais num determ inado sentido da palavra “real” ; há contudo um outro sentido em que poderíam os dizer que os níveis mais elevados e mais conjecturais são mais reais — a despeito de serem mais con­ jecturais. Isso porque, de acordo com as nossas teorias, são mais estáveis em in ten ­ ção, m ais perm anentes, no mesmo sentido em que um a mesa, um a árvore ou um a estrela são mais reais do que qualquer um dos seus aspectos particulares. Mas, não é justam ente esse caráter conjectural ou hipotético das nossas teorias que nos leva a não atrib u ir realidade aos m undos que descrevem? Não -deveríamos (em bora consideremos a fórm ula de Berkeley — “ser é ser percebido” - por demais estreita) cham ar de “reais” só aquelas situações descritas por afir­ mativas verdadeiras, evitando d ar esse qualificativo às situações associadas a con­ jecturas — que, afinal, podem ser falsas? Essas indagações nos levam de volta à dis­ cussão da doutrina instrum entalista, que, com sua asserção de que as teorias são meros instrum entos, procura negar a alegação de que haja q u alquer coisa de real no m undo que descrevem. Aceito o ponto de vista, im plícito na teoria clássica da v erdade33, de que só devemos dizer que um a situação é real se a afirm ativa que a descreve é verdadeira. 33 — Vide A. Tarski, Concept o f Truth (Der Wahrheitsbegriff, etc., Studia Philosophica, 1935, texto da nota 1: “verdadeiro = de acordo com a realidade”). A tradução inglesa consta de Logic, Semantics, Metamatkematics, de A. Tarski, 1956, pág. 153; a tradução enuncia a fórmula asám: “true = corres­ ponding with reality" (prefiro: “true - in agreement with reality"). As observações seguintes (e também o penúltimo parágrafo antes daquele a que se refere esta nota) foram acrescentadas ao texto numa ten-

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Seria um grave erro, no entanto, concluir que a incerteza de um a teoria — isto é, caráter conjectural e hipotético — dim inui sua pretensão de descrever a realidade. T o d a assertiva a equivale à afirm ativa de que a é real. Q uanto ao caráter conjec­ tural de a, é preciso não esquecer, que, antes de mais nad a, um a conjectura pode ser verdadeira, e descrever um a situação real; em segundo lugar, se for falsa, co n ­ tra d ita rá algum a situação real (descrita pela sua negação verdadeira). Além disso, se testarm os nossa conjectura, e conseguirmos refutá-la, perceberem os claram ente a existência de um a realidade, contra a qual ela se chocou. P ortanto, nossas refutações indicam os pontos onde tocamos a realidade , por assim dizer. Nossas teorias m elhores e mais recentes correspondem sem pre à tentativa de incorporar todas as refutações num determ inado cam po, explicando-as de m odo mais simples — o que quer dizer, do m odo mais facilm ente testável (como procurarei dem onstrar em The Logic o f Scientific Discovery, seções 31 a 46). Se não souberm os como testar um a teoria poderem os ter dúvidas sobre se haverá algum a realidade do tipo (ou do nível) que a teoria pretende descrever; se souberm os positivam ente que ela não pode ser testada, nossa dúvida crescerá — poderem os suspeitar que seja um mito, um a fábula. Mas, se um a teoria é testável, isso im plica que eventos de um certo tipo podem ocorrer; assim, essa teoria a fir­ mará algo sobre a realidade. Por isso exigimos que quanto mais conjectural for um a teoria, m aio r seja sua testabilidade. As conjecturas estáveis se referem , p o r­ tanto, à realidade. Seu caráter incerto ou conjectural faz com que nosso conhe­ cim ento sobre a realidade que procuram descrever seja tam bém incerto ou conjec­ tu ral. E em bora só se possa conhecer com segurança aquilo que é certam ente real, é um erro pensar que só é real o que é conhecido como tal. Não somos oniscientes; não há dúvida de que há m uita coisa real que não conhecemos. Esse é o velho e n ­ gano de Berkeley (enunciado como “ser é ser conhecido '), que ainda perm eia o instrum entalism o. As teorias são nossas invenções, nossas idéias — não se impõem a nós, são instrum entos de pensam ento que fabricam os. Os idealistas o percebem m uito bem . Algumas dessas teorias podem chocar-se com a realidade; quando isso'acontece, ficamos sabendo que há um a realidade: algo nos avisa que nossas idéias podem es­ tar erradas. Por isso o realista tem razão. Concordo p o rtan to com o essencialismo no que diz respeito à noção de que a ciência é capaz de descobertas reais, e tam bém à noção de que ao descobrir novos m undos o intelecto triunfa sobre nossa experiência sensorial. Mas não incorro no erro de Parm ênides — negar realidade a tudo que é colorido, variado, singular, indeterm inado e indescritível. Como acredito que a ciência pode fazer descobertas reais, uno-m e a Galileu contra o instrum entalism o. Adm ito, sem dúvida, que nossas descobertas são contativa de responder a uma crítica amigável que me foi comunicada privadamente pelo professor Alexan­ dre Koyré, a quem fico muito agradecido. Não creio que, se aceitarmos a sugestão de que “de acordo com a realidade” seja equivalente a “verdadeiro”, estejamos correndo sério perigo de trilhar um ca­ minho que leve ao idealismo. Não proponho definir “real” com a ajuda dessa equivalência. Mesmo que o fizesse, aliás, não há razão para crer que uma definição necessariamente determina o estado ontológico do termo definido. O propósito da equivalência deve ser ajudar-nos a perceber que o caráter hipotético de uma afirmativa (isto é, nossa incerteza a respeito da sua veracidade) implica que estamos tentando fazer suposições a respeito da realidade.

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jecturais; m as o mesmo se pode dizer das explorações geográficas. As conjecturas de Colombo a respeito das terras que descobriu estavam equivocadas; e Peary só podia conjecturar (na base de teorias) que havia chegado ao pólo. Mas esses elementos de cónjectura não fazem com que suas descobertas tenham sido menos reais ou menos significativas. H á um a distinção im portante entre dois tipos de previsão científica — dis­ tinção que o instrum entalism o não pode fazer, e que está associada ao problem a da descoberta científica. T rata-se da distinção entre a previsão de eventos de tipo conhecido e de novos tipos de eventos (o que os físicos cham am de “novos efeitos”). Parece-me que o instrum entalism o só pode explicar as descobertas da prim eira categoria. Se entendem os que as teorias são instrum entos de previsão, precisamos adm itir que seu objetivo pode ser determ inado previam ente, como acontece com outros instrum entos. As previsões do segundo tipo só podem ser com preendidas perfeitam ente como descobertas. Acredito que nossas descobertas são guiadas pela teoria, nesses casos e quase sempre; não acredito que as teorias resultem de descobertas “devidas à observa­ ção”, pois a própria observação tende a ser orientada pela teoria. Mesmo as des­ cobertas geográficas (Colombo, Franklin, os dois N ordenskjõld, N ansen, W egener e a expedição Kon-Tiki de H eyerdahl) são m uitas vezes em preendidas com o objetivo de testar um a teoria. Não se lim itar a fa zer previsões, mas criar novas situações, para novos tipos de testes — esta é um a função das teorias que o instrum entalism o não pode explicar sem o abandono das suas características mais im portantes. O contraste mais interessante entre o instrum entalism o e nosso proposto “terceiro ponto de vista” talvez seja o que diz respeito à rejeição instrum entalista da função descritiva dos termos abstratos, e das palavras que denotam disposições. D outrina que revela, aliás, um vestígio essencialista — a crença de que os eventos, ocorrências ou “incidentes” (diretam ente observáveis) devem ser, num certo sen­ tido, mais reais do que as disposições (que não o seriam ). Sobre esse ponto, a terceira concepção é diferente. Acho que a m aior parte das observações são mais ou menos indiretas; é duvidoso que a distinção entre in ­ cidentes diretam ente observáveis e aquilo que só pode ser observado de form a in ­ direta nos leve a algum lugar. Não posso deixar de pensar que é um erro denunciar como ocultas as forças new tonianas (“causas de aceleração”) e ten tar afastá-las, em troca de acelerações. De fato, as acelerações não podem ser observadas de modo mais direto do que as forças; e refletem da m esma m aneira determ inadas dispo­ sições: a afirm ativa de que a velocidade de um corpo sofreu aceleração nos indica que a velocidade desse corpo, daqui a um segundo, será m aior. Na m inha opinião, todos os universais refletem disposições. “Q uebrado” , neste particular, não difere m uito de “quebrável ’ — considerando, por exemplo, como um médico decide se um osso está ou^aão quebrado. N ão diríam os que um vidro está “qu eb rad o ” se todos os seus pedaços se fundissem no m om ento em que fossem reunidos: o critério que determ ina o “estar q u eb rad o ” consiste no com por­ tam ento sob determ inadas condições. Da mesma form a, “verm elho’ reflete um a disposição -- um objeto é vermelho se reflete um certo tipo de luz — ele parecerá verm elho” em determ inadas condições. Até mesmo “parecer vermelho reflete um a

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disposição — descreve a disposição de um corpo p ara fazer com que seus obser­ vadores concordem em que é vermelho. H á, sem dúvida, graus de disposição — “capaz de conduzir eletricidade” tem um g rau m aior do que “conduzindo eletricidade ag o ra” — que, no entanto, reflete tam bém um a disposição. Esses graus correspondem estreitam ente ao caráter conjectural ou hipotético das teorias. N ão tem sentido, contudo, rejeitar a re a ­ lidade das disposições, mesmo que rejeitemos a realidade de todos os universais e de todas as situações, inclusive incidentes, lim itando-nos a utilizar aquele significado do term o “re a l” que, do ponto de vista do uso corrente, é mais estreito e mais seguro: cham aríam os de “reais” só os corpos físicos que não são pequenos ou g ra n ­ des dem ais (ou que não estão distantes dem ais), de m odo que podem ser facilm ente vistos e m anipulados.

4. Rumo a uma Teoria Racional da Tradição*

Mesmo assim perceberíam os — como escrevi há vinte a n o s3435 — que: “T o d a descrição em prega ... universais; toda afirm ativa tem um caráter de um a teoria, u m a hipótese. A assertiva “Eis aqui um copo d ’ág u a” não pode ser verificada com pletam ente pela experiência sensorial, porque os universais que nela aparecem não podem ser correlacionados com q u alq u er experiência sensorial em p articu lar. U m a “experiência im ed iata” é única: ela é “dada im ediatam ente” um a só vez. Com a palavra “copo”, por exem plo, denotam os certos corpos físicos que têm um determ inado com portam ento que se m anifesta de fo rm a sem elhante a leis ; com a palavra “ág u a ” acontece o mesm o. N ão creio que pudéssemos usar um a linguagem que não tivesse universais. E o uso dos universais nos obriga a afirm ar — por conseguinte, a conjecturar (pelo menos) a respeito d a realidade das disposições, em bora não a respeito das que fos­ sem definitivas e inexplicáveis, isto é, das essências. Podemos expressar isso dizendo que a distinção h ab itu al entre “term os observacionais” (ou “não teóricos”) e “te r­ mos teóricos” é enganosa, já que todos os termos são teóricos em algum a m edida, em bora alguns sejam mais teóricos do que outros — da m esma form a como dis­ semos que todas as teorias são conjecturais, em bora algum as o sejam mate do que outras.

No título desta conferência deve-se enfatizar a expressão “rum o a ”: de fato, não pretendo enunciar um a teoria com pfeta, mas apenas explicar, com exemplos, sò tipo de indagação a que um a teoria da tradição deveria responder, form ulando sum ariam ente algum as idéias que podem ser úteis p ara a sua elaboração. A título de introdução pretendo contar como m e interessei por este tem a e dizer por que acredito na sua im portância, descrevendo algum as atitudes possíveis a seu respeito. Sou um racionalista especial. Não estou certo de que m eu racionalism o será aceito pelos que me lêem; é o que veremos. Interesso-me m uito pelo m étodo cien­ tífico. Depois de estudar du ran te algum tem po os m étodos das ciências naturais, achei que seria interessante estudar tam bém os m étodos das ciências sociais; foi quando deparei pela prim eira vez com o problem a da tradição. No cam po da política, da teoria social, etc., os anti-racionalistas costum am sugerir que esse é um problem a que não pode ser abordado por qualquer tipo de teoria racional: sua atitude consiste em aceitar a tradição como um dado. É preciso adm iti-la; não se pode racionalizá-la: a tradição desem penha função im portante na sociedade e o que se deve fazer é com preender seu significado e aceitá-la.

Se estamos em penhados, porém , em conjecturar a respeito da realidade das torças e dos cam pos de forças (ou pelo menos preparados p ara isso), não há motivo por que não devêssemos conjecturar que um dado tem um a inclinação, ou dis­ posição (propensity) p ara cair sobre um dos seus lados; que essa inclinação pode ser alterad a, se interferirm os com o dado; que inclinações desse tipo podem m udar constantem ente; que podem os operar com campos de disposições (fields oj propensities), ou entidades que determ inam disposições. Uma interpretação da p ro b a ­ bilidade dentro dessas linhas poderia oferecer-nos um a nova interpretação física da teoria quân tica — diferente da interpretação puram ente estatística, que devemos a Born — em bora estejamos de acordo com ele em que as afirm ativas probabilísticas só podem ser testadas em piricam ente. 55 Essa interpretação talvez pudesse ajudarnos um pouco nos nossos esforços p ara resolver as graves dificuldades surgidas na teoria qu ân tica, que hoje parecem pôr em perigo a tradição de Galileu.

O nom e mais im portante associado a esse ponto de vista and-racionalista é o de E dm und Burke que, como sabemos, lutou contra as idéias da Revolução F ra n ­ cesa; sua arm a m ais efetiva foi a análise da im portância desse poder irracional que conhecemos como “trad ição ” . M enciono Burke porque não creio que tenha sido jam ais refutado adequadam ente pelos racionalistas; estes tendem a ignorar suas críticas, perseverando na atitude antitradicionalista sem responder ao desafio. Sem dúvida há um a hostilidade tradicional entre o racionalism o e o tradicionalism o. Os racionalistas se inclinam a adotar a posição seguinte: “N ão me interesso pela tradição. Prefiro julgar tudo na base dos m éritos próprios, descobrindo as respec­ tivas vantagens e desvantagens independentem ente de qualquer tradição. Quero julgar com m eu próprio cérebro, e não com os cérebros de outras pessoas, que viveram há m uito tem p o .”

34 — Vide L. Sc. D., fim da seção 25, bem como o cap. 1 do presente volume. 35 — A respeito da teoria da probabilidade baseada nas disposições (propensities) vide meus trabalhos in Observatian and Interpretation, ed. S. Kõrner, 1957, pág. 65, e também no B.J.P.S., 10, 1959, pág. 25.

* Conferência pronunciada na Terceira Conferência Anual da Associação da Imprensa Racionalista, em Magdalen College, Oxford, 26 de julho de 1948 (sob a presidência do Professor A.E. Heath). Pu­ blicada pela primeira vez em The Rationalist Annual, 1949.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

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O fato de que o racionalista que diz essas coisas está ele próprio ligado a um a “tradição racionalista” , que tradicionalm ente repete tais alegações, m ostra que o assunto não é tão simples.

N aturalm ente poderia d a r exemplos colhidos em outros cam pos, além do científico, p ara dem onstrar que não é só na ciência que a tradição é im portante. Vejamos a música: quando estava na Nova Zelândia recebi discos norte-am ericanos do “R equiem ” de M ozart; ao ouvi-los, percebi o que significava a falta de tradição — tinham sido gravados sob a direção de um m aestro obviam ente pouco fam iliar com a tradição m ozartiana. O resultado foi devastador. N ão pretendo d em o rar-me nessa exem plificação: quis d ar essas ilustrações p ara deixar bem claro que ao desenvolver o tem a da tradição científica ou racional não a considero necessa­ riam ente a única ou a mais im portante.

O presidente desta conferência nos disse que não precisamos preocupar-nos com a reação anti-racionalista, que é m uito fraca, se não negligível. Na m inha opinião, porém , existe um a reação anti-racionalista de tipo m uito sério, entre pes­ soas inteligentes, que está associada a este problem a particular. Um bom núm ero de pensadores de renom e fizeram do problem a da tradição um a arm a para atacar 0 racionalism o. Poderia d a r o exemplo de M ichael O akeshott, um historiador de C am bridge, pensador originai, que recentem ente atacou o racionalism o no Cambridge Journal. 1 Discordo em grande parte dessa crítica, mas sou obrigado a adm itir que o ataque foi poderoso. Q uando foi lançado, não havia m uito que se pudesse co n ­ siderar um a defesa adequada contra seus argum entos. Existem algum as respostas, mas duvido da sua adequação — este é um dos motivos por que acho que o assunto tem grande im portância. O u tra coisa que me induziu a escolher este tem a foi m inha própria expe­ riência pessoal a m udança de am biente social por que passei. Cheguei à I n ­ glaterra vindo de Viena; pude verificar que a atm osfera neste país é m uito diferen­ te daquela em que tinha crescido. Ouvimos do doutor J. A. C. Brown 2 algumas observações interessantes sobre a im portância do que cham a de “atm osfera” de um a fábrica. Estou seguro de que ele concordaria em que essa atm osfera tem algo a ver com a tradição. M udei-me da atm osfera ou tradição continental para a in ­ glesa, e mais tarde, d u ran te algum tem po, p ara a da Nova Zelândia. Essas m u d a n ­ ças sem dúvida me estim ularam a refletir sobre o assunto, procurando investigá-lo mais profundam ente. Certos tipos de tradição de g rande im portância são locais; não podem ser transplantados facilm ente. Essas tradições são delicadas, sendo difícil restaurá-las quando se perdem . Estou pensando na tradição científica, pela qual tenho um in ­ teresse especial. Sei que é m uito difícil transplantá-la dos poucos lugares onde ela deitou raízes firmes. H á dois mil anos essa tradição foi destruída na Grécia e levou m uito tem po a reviver. Tentativas recentes p ara transplantá-la da Inglaterra p ara alguns lugares no além -m ar não tiveram grande êxito. N ada é mais m arcante do que a inexistência de um a tradição de pesquisa em alguns países de outros co n ­ tinentes: iniciá-la onde ela falta representa um a lu ta duríssim a. (Quando p arti da Nova Zelândia, o Reitor da Universidade prom oveu um extenso levantam ento sobre a questão da pesquisa científica; em conseqüência, fez um excelente discurso, em que criticava a Universidade por ter negligenciado as atividades de investigação. Mas seria ingênuo pensar que esse discurso prom overá o estabelecim ento de um a tradição de pesquisa científica na Nova Zelândia — o que seria um em preendim en­ to m uito difícil. Pode-se convencer as pessoas de que um a tradição é necessária, mas isso não quer dizer que ela irá nascer, e que florescerá. 1 — Artigo republicado em Rationalism in Politics and Other Essays, de M. Oakeshott, 1962, págs. 1 -3 6 . 2 — Alusão à conferência sobre “Comportamento Racional e Irracional em Grupos Industriais”, de que foi publicado um sumário em The Literary Guide, outubro de 1948.

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Entenda-se que só há duas atitudes fundam entais a respeito da tradição. Uma consiste em aceitá-la acriticam ente, m uitas vezes sem ter consciência sequer do que significa. Pode acontecer que não consigamos escapar deste perigo — com freqüência não chegamos a perceber que estamos sendo tocados por um a tradição. Ao usar m eu relógio no pulso esquerdo não preciso ter consciência de que obedeço a um a tradição. Todos os dias fazemos centenas de coisas sob a influência de tradições das quais não temos consciência. Mas, se não sabemos que nosso com por­ tam ento reflete um a tradição só podemos aceitá-la acriticam ente. A outra possibilidade consiste em assumir atitude crítica — o que pode resultar na aceitação, na rejeição ou talvez num a conciliação. E preciso porém conhecer e com preender um a tradição antes de criticá-la; antes de poder dizer: “Rejeito a tradição por motivos racionais.” Não creio, todavia, que possamos livrarnos inteiram ente da influência da tradição. N a verdade, essa “liberação” não passa de m udança — de um a tradição para outra. Podemos contudo liberar-nos dos tabus de um a tradição — não pelo seu afastam ento, mas pela aceitação crítica. Libertam o-nos de um tab u ao refletir sobre ele, perguntando-nos se devemos aceitá-lo ou recusá-lo. Para isso, é preciso em prim eiro lugar perceber a tradição claram ente; entender de m odo geral qual pode ser a função e o significado das tradições. Por isso o problem a é tão im portante que nós, racionalistas — pessoas prontas a contestar e a criticar tudo, inclusive, espero, sua própria tradição racionaiista. Pessoas capazes de tudo questionar, pelo m enos m entalm ente; que não se subm etem cegam ente a qualquer tradição. Deveria dizer que na nossa valiosa tradição racionalista (que os racionalistas m uitas vezes aceitam acriticam ente) há alguns pontos que deveríamos contestar: por exemplo, a idéia m etafísica do determ inism o. Aqueles que discordam do d e te r­ m inism o são geralm ente objeto de suspeitas por p arte dos racionalistas, temerosos de que, ao aceitar o indeterm inism o, estejamos obrigados a aceitar a doutrina do livre arbítrio, envolvendo-nos assim no debate teológico a respeito da alm a e da graça divina. Costumo evitar a m enção ao livre arbítrio, porque não tenho m uita certeza sobre o que significa; suspeito mesmo que nossa intuição possa desviar-nos do que é a vontade livre do hom em . Penso, contudo, que o determ inism o é um a teoria insustentável por m uitas razões; não temos qu alq u er m otivo p ara aceitá-la. Com efeito, acredito que é im portante livrar-nos do elem ento determ inista da tradição racionalista: ele não só é insustentável como nos cria m uitos problem as. Por isso é im portante perceber que o indeterm inism o — isto é, a negativa do d eter­ minismo — não nos envolve necessariam ente em q u alq u er d o utrina relativa à nossa “vontade”, ou à “responsabilidade”.

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O utro elem ento da tradição racionalista que devemos questionar é a idéia do observacionalism o — de que conhecemos o m undo porque o exam inam os, com olhos e ouvidos bem abertos, anotando o que vemos e ouvimos — essa seria a m atéria-p rim a do conhecim ento. T rata-se de um preconceito que tem raízes profundas; um a idéia que im pede a com preensão do m étodo científico. Voltarei a este ponto m ais adiante. Como introdução, basta. Farei agora um breve sum ário do papel de um a teoria da tradição. U m a teoria sobre a tradição precisa ser um a teoria sociológica, porque a tradição é obviam ente um fenôm eno social. M enciono isso porque desejo exam inar brevem ente a fu n ç ã o das ciências sociais teóricas, que tem sido m al in te r­ p retad a com m uita freqüência. P ara poder explicar em que consiste, na m inha opinião, a função básica da ciência social, gostaria de com eçar pela descrição de um a teoria, aceita por muitos racionalistas, que na m inha opinião leva exatam ente ao objetivo oposto ao da ciência .social — o que cham arei de “teoria conspiratória da sociedade” . T rata-se de teoria mais prim itiva do que quase todas as m o d ali­ dades do teísmo; lem bra a teoria da sociedade de H om ero, que concebia os poderes divinos de tal form a que o que quer que acontecesse na planície de T róia refletia sem pre as várias conspirações urdidas no O lim po. A “teoria conspiratória da so­ ciedade” corresponde a um a versão desse teísmo — da crença em divindades cujos caprichos governam o m undo. Deriva do gesto de quem abandona Deus p ara depois p erg u n tar quem deve tom ar o seu posto; da sua substituição por grupos e hom ens poderosos — sinistros grupos de pressão, responsabilizados por todos os males que nos afligem . A “teoria conspiratória da sociedade” é m uito difundida, e contém m uito pouca verdade. Só quando os que a sustentam chegam ao poder ela se torna um a explicação de coisas que acontecem realm ente (um exemplo do que denom inei “efeito de É dipo”). Assim, quando H itler chegou ao poder, como acreditava no m ito da conspiração dos Sábios de Sião, tentou um a contraconspiração. Mas o in ­ teressante é que as conspirações desse tipo nunca — ou quase nunca — se desertvolvem conform e previsto pelos conspiradores. Essa observação já insinua qual é o verdadeiro objetivo de um a teoria social, Como disse, H itler tram o u um a conspiração que fracassou. Fracassou por quê? Não apenas p orque outras pessoas conspiraram contra H itler, m as sim plesm ente porque um a das coisas mais m arcantes da vida social é que nada tem exatam ente os resul­ tados previstos. As coisas sem pre acontecem de m odo um pouco diferente do es­ perado. Quase nunca conseguimos produzir na vida social precisam ente o efeito a l­ m ejado — é com um .receberm os um “troco” inesperado. N aturalm ente, agimos tendo em m ente determ inados objetivos; no en tanto, ao lado desses objetivos (que podem os ou não atingir), há sem pre um a série de conseqüências não desejadas que acom panham nossas ações. N orm alm ente, essas conseqüências não podem ser elim inadas. Explicar por que isso acontece é a principal tarefa da ciência social. Vou d ar um exem plo m uito simples. Digamos que alguém precise vender sua casa, n u m a pequena vila. Pouco antes houve quem comprasse um a o u tra casa, porque precisava enco n trar m oradia com urgência. Surge agora um vendedor: ele verá que, em condições norm ais, não en contrará oferta igual à do com prador que precisou com prar u m a casa sem elhante. O simples fato de que alguém quer vender

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sua casa abaixa o preço de m ercado daquela casa. Q uem deseja vender algum a coisa deprim e o m ercado com prador; quem quer com prar algo contribui para elevar o preço do que quer com prar. Isso só acontece, naturalm ente, em m ercados pequenos e livres — mas é o que Çende a acontecer em qualquer econom ia de m er­ cado. Seria desnecessário provar que quem quer vender algo não tem em geral a intenção de deprim ir o seu preço no m ercado, e vice-versa. Aí está um exemplo típico das conseqüências não desejadas a que me referi. O que descrevi é típico de todas as situações sociais — sem pre há indivíduos que fazem coisas, que querem coisas, que têm determ inados objetivos em vista. Na m edida em que essas pessoas agem no sentido em que desejam , alcançando os fins a que se propõem , não se coloca nenhum problem a p ara as ciências sociais — exceto o problem a de saber se seus objetivos e impulsos podem ser explicados socialm ente, por certas tradições, por exem plo. Os problem as característicos das ciências sociais só aparecem em função do nosso desejo de conhecer as conseqüências não a lm e­ jadas das nossas ações — especialm ente as conseqüências que queremos evitar. Desejamos prever não só as conseqüências diretas do que fazemos, mas tam bém as conseqüências indiretas e não desejadas. Por que razão? O u por curiosidade cien­ tífica ou porque queremos estar preparados para enfrentá-las — p ara evitar que se tornem m uito graves. (O que significa, por sua vez, novas ações, e conseqüentem ente novos efeitos imprevistos). Acho que quem se aproxim a das ciências sociais com um a teoria conspi­ ratória já pronta abandona a possibilidade de chegar a atender o papel dessas ciên­ cias; presum e que é possível explicar praticam ente tudo na vida social perguntando “quem o quis assim” — quando, na verdade, a função real das ciências sociais3 è explicar o que ninguém deseja — um a guerra, um a depressão. A revolução leninista e especialm ente a revolução e a guerra de H itler são exceções: resultaram efe­ tivam ente de conspirações, mas tam bém do fato de que os teóricos da conspiração chegaram ao poder — tendo fracassado, significativam ente, na tentativa de con­ sum ar as conspirações que idealizaram . O objetivo da teoria social é explicar como se realizam as conseqüências não alm ejadas das nossas intenções e das nossas ações; que tipos de efeitos ocorrem quando se age de um a m aneira ou de outra, em determ inada situação social. De modo mais especial, sua função é analisar a existência e o funcionam ento de ins­ tituições (como a polícia, as empresas, as escolas, os governos) e as coletividades (Estados, Inações, classes e outros grupos). Quem aceita a teoria conspiratória acredita que as instituições podem ser com preendidas perfeitam ente como o re ­ 3 — No debate que se seguiu à conferência, fui criticado por rejeitar a teoria conspiratória; houve quem afirmasse que KarI Marx tinha revelado a enorme importância que tem a conspiração capitalista para a compreensão da sociedade. Ao responder, disse que devia ter mencionado minha dívida para com Marx, um dos primeiros críticos da teoria da conspiração e um dos primeiros a analisar as conseqüências não almejadas das ações voluntárias das pessoas que agem dentro do contexto de certas situações sociais. Marx disse, clara e incisivamente, que o capitalista está tão enredado na situação social (ou “sistema social ) quanto o trabalhador; que não pode deixar de agir como age. O capitalista é tão pouco livre quanto o trabalhador — os resultados das suas ações são em grande parte não intencionais. Mas a ver­ dadeira abordagem científica de Marx (embora, a meu ver, muito determinista) foi abandonada pelos seus discípulos recentes, os marxistas vulgares, que propõem uma teoria conspiratória da sociedade em termos bastante populares, que não tem mais seriedade do que o mito dos Sábios de Sião aceito por Goebbels.

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sultado da deliberação consciente e atribui às coletividades um a espécie de “p e r­ sonalidade g ru p a i” , tratando-as como agentes conspiradores, como se fossem in ­ divíduos. C ontrariam ente a essa concepção, o teorista social deve reconhecer que a persistência das instituições e coletividades cria um problem a a ser resolvido ta m ­ bém em term os de um a análise das ações sociais dos indivíduos e seus efeitos sociais não p retendidos. A função de um a teoria da tradição pode ser vista igualm ente dessa form a: só m uito raram en te as pessoas deliberam criar um a tradição; mesmo nesses casos, é provável que não o consigam. Por outro lado, pessoas que nunca sonharam em criar u m a tradição podem chegar a isso, sem ter jam ais tal intenção. D eparam os assim com um dos problem as básicos da teoria da tradição: saber como surgem as tradições e, o que é mais im portante, como elas se m antêm , na qu ali­ dade de conseqüências (possivelmente não deliberadas) de ações hum anas. O utro problem a, mais im portante, é saber qual a função da tradição na vida social. T erá ela algum a função racionalm ente compreensível (como o que acontece com as escolas, a polícia, as lojas, a bolsa de valores e outras instituições sociais)? Poderem os analisar as funções da tradição? Este talvez seja o objetivo mais im p o rtan te da teoria. Pretendo ab o rd ar o tem a analisando um a tradição em p a r­ ticular — a racional ou científica —, de form a exem plificativa, usando depois essa análise com outros propósitos. Meu objetivo principal será traçar um paralelo entre as teorias que tam os em função da nossa atitude racional ou crítica, depois de subm etê-las a (de m odo geral, as hipóteses científicas) e as crenças, atitudes e tradições em — considerando, por outro lado, o m odo como um as e outras nos orientam m undo, especialm ente na nossa vida social.

acei­ testes geral neste

Já se discutiu m uito o que cham am os de tradição científica. M uita gente já especulou a respeito dessa coisa estranha que aconteceu de algum a form a num lugar da G récia, no sexto e no quinto séculos antes de Cristo — a invenção da filosofia racional. Alguns pensadores m odernos afirm am que os filósofos gregos foram os prim eiros a com preender o que acontece na natureza: pretendo dem ons­ trar que essa explicação não é satisfatória. Os prim eiros filósofos gregos ten taram de fato entender o que acontecia na natureza — m as o mesmo faziam antes deles os primitivos, com os mitos que inven­ tavam . Como caracterizar então esse tipo prim itivo de explicação que foi substi­ tuído pelos padrões dos filósofos helénicos — os fundadores da nossa tradição cien­ tífica? P ara explicá-lo de m odo grosseiro, ao sentir a aproxim ação de um a tem pes­ tade, os prim itivos pré-científicos diziam: “Zeus está zangado!” E quando viam o m ar encapelado, com entavam : “Poseidon está irritado!” Esse tipo de explicação era considerado satisfatório antes de a tradição racionalista im por novos padrões de ex­ plicação. Q ual era a diferença decisiva entre esses padrões? Não se pode dizer que as novas teorias introduzidas pelos filósofos gregos fossem com preendidas mais facilm ente do que as antigas teorias. Acho que é m uito m ais fácil com preender a afirm ativa de que Zeus está zangado do que u m a explicação científica de um a tem ­ pestade; a assertiva de que Poseidon está irritad o me parece m uito mais simples e compreensível do que u m a explicação das vagas em termos da fricção do ar sobre a superfície do m ar.

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Creio que a inovação que os prim eiros filósofos gregos introduziram foi mais ou menos a seguinte: eles com eçaram a discutir esses assuntos. Em vez de aceitar a tradição religiosa acriticam ente, como algo inalterável, passaram a contestá-la e chegavam mesmo a inventar às vezes um novo m ito, p ara substituir um m ito tradicional. Temos que adm itir que as novas estórias que propuseram , em lugar das antigas, eram fundam entalm ente mitos — exatam ente com as explicações abandonadas. Mas tinham duas coisas interessantes. Em prim eiro lugar, não eram apenas repetições ou rearranjos das velhas es­ tórias — continham alguns elementos novos. Não que isso fosse em si um a grande vantagem . Mas a segunda coisa, a principal, era o fato de que constituíam um a nova tradição — a adoção de atitude crítica com relação aos mitos, de discuti-los; de não só n a rra r os m itos antigos mas tam bém questioná-los. Ao contar um m ito esses filósofos se dispunham a ouvir o que os outros pensavam — adm itindo, p o r­ tanto, a possibilidade de que tivessem um a explicação m elhor. Isso era algo que não acontecia até então: surgia portanto um novo processo de form ular indagações. Juntam ente com a explicação — o m ito — colocava-se a pergunta: “H averá um a explicação m elhor?”. O utro filósofo poderia responder: “Sim ” ; ou então: “N ão sei, mas tenho um a explicação m uito diferente, que é igualm ente boa. Como as duas não podem ser verdadeiras, deve haver algo de errado aí. N ão podem os aceitar as duas explicações, e não temos qualquer motivo p a ra preferir um a delas. Como querem os conhecer m elhor o assunto, precisamos discuti-lo para verificar se nossas explicações realm ente satisfazem, tendo em vista o que sabemos, e se podem ser aplicadas a algum a outra coisa que não levamos em consideração.” Defendo a tese de que o que cham am os de “ciência” se distingue dos antigos mitos não só por ser diferente deles, mas por vir acom panhada de um a tradição de segunda ordem — a de discutir criticam ente o m ito. Antes, só havia a tradição de prim eira ordem : um a estória era transm itida. Agora, continuava a haver n a tu ra lm ente um a estória a ser transm itida, mas com ela se com unicava tam bém algo como um texto de acom panham ento: “Passo-te esta tradição, mas deves dizer-me o que pensas dela. Reflete: talvez possas dar-m e um a explicação d istin ta.” Essa tradição de segunda ordem era a atitude crítica e analítica: algo novo, que é o fundam ental da tradição científica. Se com preenderm os isso, teremos um a atitude com pletam ente diferente a respeito de muitos problem as relacionados com m étodo científico. Com preenderem os que, num certo sentido, a ciência produz mitos — tanto quanto a religião. Poderá surgir a objeção: “Mas os mitos científicos são m uito diferentes dos religiosos!” C ertam ente são diferentes. Mas, por quê? Porque quando adotam os essa atitude crítica, os nossos mitos se tornam diferentes: eles se m odificam , p ara fornecer um a explicação cada vez m elhor do m undo — das várias coisas que podemos observar. Passam a nos desafiar a observar coisas que nunca observaríamos sem tais mitos ou teorias. Nos debates críticos então levantados surgiu, pela prim eira vez, algo como a observação sistemática. Ao receber um m ito, acom panhado pela pergunta silen­ ciosa e tradicional — “Que tens a dizer sobre isso? Podes criticar o que contei?” — as pessoas o aplicavam às várias coisas que ele alegadam ente deveria explicar, tais como o m ovim ento dos planetas. E diziam, por exemplo: “N a m inha opinião esse m ito não é m uito bom , porque não explica os m ovimentos observáveis dos planetas” . Assim, são os mitos, ou as teorias, que nos levam à observação siste-’

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m ática, o rien tan d o -a — observação em preendida com o propósito de investigar sua veracidade. Deste ponto de vista, o desenvolvimento das teorias científicas não deveria ser considerado o resultado da acum ulação de observações; pelo contrário, as observações — e sua acum ulação — devem ser vistas como conseqüência do desenvolvimento* das teorias científicas. A isso cham ei a teoria do refletor — o p o n ­ to de vista de qüe é a própria ciência que projeta luz sobre novas coisas — ela não soluciona problem as, m as, ao fazê-lo, cria novos problem as; não só se beneficia com a observação, m as conduz a novas observações.

T udo isso quer dizer que um jovem cientista que deseja fazer descobertas receberá um m au conselho se alguém lhe disser: “Observe o que existe à sua volta”. A orientação correta seria: “Procure saber o que se discute hoje na ciência. Des­ cubra onde estão surgindo dificuldades e se interesse pelos desacordos — essas são as questões que você deve a b o rd a r.” Em outras palavras, deve-se estudar a situaçãoproblem a atual; isto é: é preciso explorar a linha de investigação associada a todo o desenvolvimento pregresso da ciência — seguir a tradição científica. Este é um ponto simples e decisivo, que contudo m uitas vezes não é suficientem ente percebido pelos racionalistas — não podemos com eçar da estaca zero; precisamos utilizar o que nossos antecessores fizeram . Se começarmos do zero, não ultrapassarem os o ponto ao qual Adão e Eva conseguiram chegar (ou o hom em de N eanderthal). N a ciência, querem os fazer progresso, o que significa que precisamos subir nos ombros dos nossos predecessores. Precisamos desenvolver um a certa tradição. Do ponto de vista do que queremos como cientistas — com preensão, previsão, análise, etc. — o m undo em que vivemos é extrem am ente complexo; estaria tentado a dizer que é infinitam ente complexo, se*a frase tivesse sentido. N ão sabemos onde e como com eçar nossa análise deste m undo. N ão há sabedoria capaz de nos esclarecer sobre isso — mesmo a tradição científica não nos ajuda neste p articu lar: ela só nos aponta onde e como outras pessoas com eçaram , e até onde chegaram . Diz-nos que outros já construíram um quadro teórico — talvez não m uito bom , mas que fu n ­ ciona m ais ou menos, servindo como um a espécie de rede, de sistema de coorde­ nadas com a ajuda do qual podemos indicar as várias com plexidades do m undo. Nós o em pregam os verificando-o e criticando-o: é assim que nosso conhecim ento progride.

Se procurarm os deste modo novas observações, com o objetivo de explorar a veracidade dos nossos mitos, não nos espantarem os ao descobrir que, assim tes­ tados, eles m u d am de caráter, tornando-se com o tem po mais realistas, ajustandose m elhor aos fatos observados. Em outras palavras, sob a pressão da crítica os mitos são forçados a se a d a p ta r à tarefa de nos fornecer um quadro mais detalhado do m undo em que vivemos. Isso explica por que os mitos científicos, sob a pressão da crítica, se to rn am tão diferentes dos mitos religiosos. Penso contudo que d e ­ vemos deixar bem claro que na sua origem continuam a ser mitos ou invenções; não são o que acreditam alguns racionalistas, adeptos da teoria da observação sensorial: digestos de observações. Este é um ponto m uito im portante, que vale a pena repetir: as teorias cientificas não resultam da observação; são, de m odo geral, produtos da nossa capacidade de form ular m itos, e de testes. Os testes se apoiam em p a rte na observação, daí a im portância que esta tem ; mas sua função não é produzir teorias: tem um papel a desem penhar na crítica e na rejeição de teorias — desafia-nos a produzir novos m itos, novas teorias que podem resistir a testes b a ­ seados na observação. Só com preenderem os a im portância da tradição p ara a ciên­ cia se entederm os isso. Proponho que os que pensam de m odo contrário, e acreditam que as teorias científicas derivam da observação, comecem a observar im ediatam ente, aqui m es­ m o, d a n d o -me os resultados científicos da sua observação. Isso poderá parecer pouco justo, pois não há n ad a de notável p a ra ser observado aqui e agora. 'Con­ tudo, mesmo que passemos toda a nossa vida de caderno de notas na m ão, regis­ tran d o tudo o que puderm os observar, se a Real Sociedade receber em doação esse caderno pod erá preservá-lo como curiosidade, mas não como fonte de conhecim en­ to. 4 No en tan to , encontrarem os objetos p ara o nosso interesse científico se nos for dito: “Eis aqui algum as teorias form uladas por cientistas. Essas teorias indicam que tais e tais coisas poderiam ser observadas em tais e tais condições. Vejamos se é possível observá-las. “Em outras palavras: se selecionarmos nossas observações tendo em vista os problem as científicos e a situação geral da ciência num d e te r­ m inado m om ento, poderem os d ar um a contribuição efetiva à ciência. N ão quero ser dogm ático e negar que haja exceções, tais como as cham adas “descobertas casuais” — em bora m uitas vezes até mesmo essas descobertas sejam devidas à in ­ fluência de teorias. N ão digo que as observações só têm im portância quando as­ sociadas a teorias, m as qiíero salientar qual é o procedim ento m ais im portante para o desenvolvimento científico.

4 — Vide cap.l, seção iv.

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E necessário tom ar consciência de que, dos dois modos priiicipais com que se pode explicar o desenvolvimento científico, um tem pouca im portância e o outro é m uito im portante. O prim eiro explica a ciência pela acum ulação do conhecim en­ to; como um a biblioteca ou m useu em expansão: à m edida que mais livros são acum ulados, o conhecim ento acum ulado aum enta. O outro tem a ver com a crítica: cresce por um processo que é mais revolucionário do que a simples a c u ­ m ulação — um m étodo que destrói, altera tudo — inclusive seu instrum ento mais im portante, a linguagem em que são form ulados nossos m itos e teorias. E interessante n o tar que o prim eiro m étodo, o cum ulativo, é m uito menos im portante do que se pensa. N a ciência há m uito menos acum ulação de conhe­ cim ento do que um a transform ação revolucionária de teorias científicas. Este é um ponto m uito interessante, porque à prim eira vista poderíam os pensar que a tr a ­ dição fosse mais im portante para o crescimento cum ulativo do conhecim ento do que p ara o processo revolucionário. É exatam ente o contrário: se a ciência se pudesse desenvolver pela m era acum ulação, a perda da tradição científica não representaria m uito, porque seria sempre possível recom eçar a acum ulação. Algo se perderia, mas a perda não seria grave. C ontudo, como a ciência progride principalm ente pela tradição de alterar seus mitos tradicionais, precisamos co ­ m eçar com algum a coisa: se não houver nada p ara transform ar, não chegaremos a parte algum a. Precisamos portanto de pontos de p artid a p a ra a ciência: novos mitos e um a nova tradição que nos leve a alterá-los criticam ente. Mas esses inícios são m uito raros. Da invenção da linguagem descritiva — o m om ento em que o hom em se hum anizou, poderíam os dizer — ao início da ciência passou m uito tem ­ po. D urante esse período, a linguagem — futuro instrum ento científico — se desenvolveu, ju n tam en te com o m ito — toda linguagem in c o rp o ra e preserva

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inúm eros m itos e teorias, até mesmo na sua estrutura gram atical — e com a tr a ­ dição, que usa a linguagem p ara descrever fatos, explicá-los e discutir sobre eles. (V oltarem os a esse p o n to .) Se a tradição desaparecesse, não se teria podido iniciar o processo de acum ulação: faltaria o instrum ento apropriado. Depois de exem plificar com a função da tradição num campo especial — ó científico —, tra ta re i agora, com um certo atraso, do problem a da teoria so­ ciológica da tradição. Q uero referir-m e o u tra vez ao Dr. J.A .C . Brown, que m e precedeu hoje: ele disse m uitas coisas relevantes p a ra o assunto; por exemplo: disse que q u ando falta disciplina num a fábrica “os operários ficam ansiosos e a te rro ­ rizados” . N ão p retendo discutir a necessidade da disciplina — esse não é o m eu tema. Mas poderia form ulá-lo d a seguinte form a: se os trabalhadores naO tèn* nada a que se ater, com portam -se com ansiedade e terror. O u, de m odo mais geral: sem ­ pre que nos encontram os em am biente n a tu ra l Ou social a respeito do qual sabemos tão pouco que não podem os prever o que vai acontecer, nos tornam os ansiosos e aterrorizados. Isso acontece porque se não podem os prever o que acontecerá — por exem plo, com o as pessoas se com portarão — não nôs é possível reagir racionalm en­ te. Isso acontece seja em am biente n atu ral ou social. A disciplina pode aju d ar as pessoas a encontrar seu cam inho num a d e te r­ m in ad a sociedade; m as estou certo de que o Dr. Brown concordará em que ele é só um a das coisas que pode ter esse efeito; há outras, especialm ente instituições e tradições, que podem d a r às pessoas um a idéia clara sobre o que esperar, e como agir. Isso é m uito im portante: o que cham am os de “vida social” só existe quando podem os saber com confiança que certas coisas e certos acontecim entos têm d e te r­ m in ad a form a, e não podem ser diferentes. Neste p articu lar, é compreensível o papel desem penhado pela tradição na nossa vida. Se o m undo social não apresentasse um coeficiente elevado de ordem , grande núm ero de regularidades às quais nos podemos ajustar, viveríamos ansiosos, frustrados e aterrorizados. A simples existência de tais regularidades talvez seja m ais im p o rtan te do que seus m éritos e dem éritos peculiares. Necessárias enquanto regularidades, elas são transm itidas como tradições — sejam ou não racionais, necessárias, boas, belas, etc. A vida social exige a tradição. Por isso, a criação de tradições tem um a função sem elhante à criação de teorias. As teorias científicas são instrum entos com os quais procuram os im por a l­ gum a ordem ao caos em que vivemos, de m odo a torná-lo racionalm ente predi* zível. N ão quero fazer esta afirm ativa como um pronunciam ento filosófico de g ra n ­ de profu n d id ad e — estou apenas dizendo qual é um a das funções práticas das teorias. Da m esm a form a, a criação de tradições (como de boa p arte das nossas leis) tem a m esm a função: im por um a certa ordem , e previsibilidade, ao m undo social em que vivemos. N ão seria possível agir racionalm ente se não tivéssemos idéia de como o m undo responderia a nossas ações. T o d a ação racional presum e um sistema de referências que reage de m odo pelo menos parcialm ente previsível. Da mesma form a como a invenção de m itos e teorias tem um a função no cam po da ciência social — ajudar-nos a o rd en ar os eventos da natureza —, a criação de tradições cria ordem n a sociedade. A analogia vai m ais longe: é preciso lem brar que a grande im portância dos mitos, no m étodo científico, consistia na sua capacidade de tornar-se objetos de

RUMO A UMA TEORIA RACIONAL DA TRADIÇÃO

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crítica: de poder sofrer m odificações. Assim tam bém as tradições têm a im portante função dupla de não só criar um a certa ordem ou estru tu ra social,m as tam bém de nos d ar algo p ara criticar e alterar. Este é um ponto decisivo p ara os racionalistas e os reformistas sociais. Destes últim os, m uitos acham que seria possível “lim par a tela” do m undo social (como diria Platão), p artindo p a ra a construção de um novo m undo, sem nad a aproveitar do antigo. Esta é um a idéia sem sentido, impossível de pôr em prática. Se construirm os um m undo novo a p a rtir do n ad a não há razão p ara crer que seria um m undo feliz. Não há motivo p ara pensar que um m undo artificialm ente planejado seria m elhor do que o m undo que temos p ara viver. Por que razão seria m elhor? Um engenheiro não cria um m otor apenas com planos; ele o desenvolve a p artir de modelos anteriores, que m odifica constantem ente. Se o m undo social em que conhecemos desaparecesse, com suas tradições, substituído por um m undo novo artificialm ente concebido, não tardaríam os a precisar reajustá-lo. O ra, se esses reajustes são necessários, por que não com eçar reajustando o m undo em que vivemos? N ão im porta como ele é, e onde devemos com eçar. Será m uito m ais r a ­ zoável aceitar o que temos, p ara fazer as alterações possíveis — deste m odo teremos certeza pelo menos a respeito das dificuldades e dos defeitos a corrigir. Saberemos, q uando menos, que há certas coisas que são más, e precisam ser m udadas. No brave new world concebido como um projeto inteiram ente novo passará algum tem po até que possamos perceber o que ele tem de errado. Além disso, a idéia da “limpeza da tela” (que está associada a um a tradição racionalista equivocada) é impossível; se fos­ se possível praticá-la, elim inando a tradição, seríamos elim inandos com ela — nós e todas as nossas idéias e planos p ara o futuro. Com efeito, os planos não têm qualquer sentido num vácuo social, mas somente dentro de um conjunto de tradições e instituições — mitos, poesia e valores — que nascem da sociedade em que vivemos, fora da qual perdem a sig­ nificação. Assim, um a vez desaparecida a tradição, o próprio incentivo p ara refazer o m undo desaparecerá tam bém . No cam po da ciência, por exem plo, haveria um a perda trem enda se disséssemos: “N ão estamos fazendo m uito progresso. A b an ­ donemos todos os conhecim entos científicos já acum ulados p ara recom eçar de novo.” O racional seria corrigir e revolucionar esses conhecim entos. Pode-se criar um a nova teoria, mas ela será criada p ara solucionar os problem as que a antiga teoria não pôde resolver. Exam inam os brevem ente a função da tradição na vida social. Os resultados desse exame podem ajudar-nos a responder à indagação sobre como surgem as tradições, como são transm itidas e como se tornam estereotipadas — conseqüências não deliberadas de ações hum anas. Podemos entender agora por que razão as pessoas não só procuram aprender as leis do seu am biente n atu ral (ensinando-as a outras pessoas, m uitas vezes sob a form a de mitos) mas tam bém as tradições do a m ­ biente social; por que as pessoas (especialm ente as crianças e os prim itivos) têm a inclinação de aderir a tudo o que possa representar um a uniform idade na sua vida. Por isso aceitam os mitos e as uniform idades do seu próprio com portam ento — em prirriêiro lugar, porque tem em a irregularidade e a m ud an ça: em segundo lugar, porque desejam causar aos outros um a impressão de racionalidade e previsibili­ dade, na esperança talvez de levar os outros a agir da m esm a form a. T endem assim a criar tradições e a reafirm ar as tradições que encontram , ajustando-se c u id a ­ dosam ente a elas e insistindo — com ansiedade — em que os outros ajam do m es­ mo m odo. E assim que surgem e persistem os tabus tradicionais.

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Isto explica em p arte a intolerância altam ente em ocional que caracteriza todo tradicionalism o — um a intolerância contra a qual os racionalistas sempre se levantaram , justificadam ente. C ontudo, vemos agora que ao atacar a tradição em si m esm a os racionalistas com etiam um erro. Podemos dizer, talvez, que o que realm ente queriam era substituir a intolerância dos tradicionalistas por nova tradição — u m a tradição de tolerância. Q ueriam , de m odo m ais geral, substituir o respeito aos tabus pela atitu d e que consiste em considerar criticam ente as tradições existen­ tes, sopesando seus m éritos e dem éritos, sem esquecer o m érito que representa o fato de serem tradições estabelecidas. Mesmo que se term ine por rejeitar um a tradição, p a ra substituí-la por o u tra m elhor (que acreditam os ser m elhor) p reci­ samos ter consciência do fato de que toda crítica social — e todo aperfeiçoam ento social — precisa relacionar-se com um quadro de tradições sociais, em que algum as são criticadas com a ajuda de outras — da m esm a form a como todo progresso cien­ tífico precisa ser feito dentro de um contexto de teorias científicas, algum as das quais são criticadas com a ajuda de outras. M uito do que dissemos aqui a respeito das tradições poderia ser aplicado às instituições — de fato, as instituições se assemelham sob m uitos pontos de vista às tradições. C ontudo, parece desejável (em bora possivelmente não m uito im portante) preservar a diferença que podemos enco n trar no em prego ordinário dessas duas palavras. T erm inarei esta conferência procu rando salientar as semelhanças e as diferenças entre esses dois tipos de entidades sociais. N ão creio que seja boa prática distinguir os term os “trad ição ” e “instituição” m ediante definições form ais,5 mas é preciso explicar o seu uso com exemplos. N a verdade, já o fiz, m encionando escolas, a polícia e a bolsa de valores como insti­ tuições sociais; o interesse pela investigação científica, a atitude crítica do cientista, a tolerância ou intolerância do tradicionalista — ou do racionalista —, como tradições. As instituições têm de fato m uito em com um com as tradições: entre outras coisas, precisam ser analisadas pelas ciências sociais em term os de indivíduos — suas ações, atitudes, crenças, expectativas e inter-relações. Mas podemos dizer que nos inclinam os a falar em instituições sem pre que um grupo observa um con­ ju n to de norm as, p u executa determ inadas funções sociais prim a fa cie (por exem ­ plo: ensinar, policiar ou vender), p ara servir a determ inados propósitos sociais prim a fa c ie (por exem plo: a propagação do conhecim ento, a defesa contra a violência ou a fom e); falam os em “tradições” principalm ente p ara descrever certa uniform idade de atitudes ou de com portam entos, objetivos, valores ou gostos. As tradições possivelmente estejam associadas m ais de perto às pessoas, suas p referên­ cias, medos e esperanças, do que as instituições. Assumem um a posição in te r­ m ediária, por assim dizer, entre as pessoas e as instituiçoesk, em termos de teoria social. Essa diferença pode ser elucidada fazendo referência ao que tenho cham ado de “am bivalência das instituições sociais” — o fato de que em certas circunstâncias um a instituição social pode funcionar de m odo que contrasta m arcadam ente com sua função “ap ro p ria d a ” ou prim a fa cie. Dickens escreveu m uito sobre a perversão dos internatos-; já tem acontecido que em lu g ar de proteger a população contra a violência, um a força policial a am eace e agrida. Da m esm a form a, a instituição da

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Vide uma crítica dessa prática no cap. 11 de The Open Society and its Enemies.

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oposição parlam en tar, que tem como um a das suas funções p n m a fa cie im pedir o governo de m alversar os recursos públicos, funciona em alguns países de outra for­ m a, como instrum ento p a ra a divisão proporcional de despojos. A am bivalência das instituições sociais está relacionada com seu caráter — com o fato de que executam certas funções prim a fa cie e só podem ser controladas por pessoas (fa­ líveis). Essa am bivalência pode sem dúvida ser m uito reduzida por meio de “freios” institucionais cuidadosam ente organizados, mas é impossível elim iná-la com ple­ tam ente. O funcionam ento das instituições — e das fortalezas — depende das pes­ soas que as servem. O m elhor que podemos fazer p ara assegurar o controle insti­ tucional é dar um a m aior oportunidade àquelas pessoas (se existirem) que p reten ­ dam dirigi-las p ara sua função social “a p ro p riad a”. Neste ponto as tradições podem exercer um a função im portante in term e­ diando entre pessoas e instituições. É bem verdade que as tradições tam bém podem ser pervertidas. H á algo como a am bivalência institucional que descrevi que ta m ­ bém as ataca. C ontudo, como seu caráter é menos instrum ental do que o das ins­ tituições, essa am bivalência as afeta menos. Por outro lado, são quase tão im pes­ soais quanto as instituições — menos pessoais e m ais predizíveis do que os indiví­ duos que conduzem as instituições. Talvez se possa dizer que o funcionam ento “apro priado” das instituições, no longo prazo, depende sobretudo de tais tradições: são elas que dão às pessoas (que chegam e vão) um a base e um a segurança de propósitos que lhes perm ite resistir à corrupção. A tradição pode projetar algo da atitude pessoal do seu fundador m uito além da sua vida pessoal. Do ponto de vista do em prego típico dos dois term os, pode-se dizer que um a das conotações do term o “trad ição ” é a alusão a im itação como sua origem ou o m odo como é transm itida. Essa conotação está ausente do term o “instituição um a instituição pode ou não originar-se na im itação; pode ou não continuar exis­ tindo por meio da im itação. Vale n o tar que algum as das coisas que conhecemos como “tradições” podem ser descritas tam bém como “instituições” — especialm ente como instituições daquela sociedade, ou daquele grupo social em que a tradição é geralm ente seguida. Poderíam os dizer, portanto, que a tradição racionalista, ou a adoção de um a atitude crítica, é institucional entre os cientistas (ou que a tradição de não pisar o adversário caído é — ou quase — um a instituição inglesa). Da m es­ m a form a, podemos dizer que, em bora transm itida tradicionalm ente, q u alquer lín ­ gua falada por um povo é um a instituição — mas a prática de usar o “tu ” em vez de “você” , por exemplo, é um a tradição (em bora possa ser institucional, dentro de determ inado grupo). Alguns dos pontos em que toquei aqui podem ser exem plificados adicionalm ente, se considerarm os certos aspectos dessa instituição social que é a linguagem . K. Bühler distinguiu três aspectos na função prim ordial da linguagem — < l co­ municação: 1) a função expressiva, destinada a m anifestar os pensam entos e emoções de quem fala; 2) a função de estímulo ou sinalização, destinada a p ro ­ vocar certas reações em quem ouve (por exemplo, as respostas lingüísticas); e 3) a função descritiva. Esses três aspectos são separáveis na m edida em que cada um deles de m odo geral está acom panhado pelo precedente, m as não precisa fazer-se acom panhar do sucessivo. Os dois prim eiros se aplicam tam bém a linguagens anim ais, mas o terceiro parece ser caracteristicam ente hum ano. É possível (e na m inha opinião necessário) acrescentar um quarto aspecto, especialm ente im portante do nosso ponto de vista — a função argum entativa ou

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explicativa, relacionada com a apresentação e com paração de argum entos e ex­ plicações.67 U m a certa linguagem pode ter as três prim eiras funções, m as não a q u a rta — por exem plo, a linguagem usada por um a criança que se encontra ainda n a fase de só “ n o m ear” as coisas. 7 N aturalm ente, como a linguagem enquanto ins­ tituição tem todas essas funções, ela pode ser am bivalente. Pode ser usada, por exem plo, p a ra ocultar emoções ou pensam entos tan to qu an to p ara expressá-los; ou p a ra reprim ir um argum ento, em vez de estim ular a discussão. H á diferentes tradições associadas a cada um a dessas funções — por exem plo, de m odo m a rc a n ­ te, n a Itália e n a Ing laterra (onde temos a tradição do understatem ent) a propósito da função expressiva. Isso é realm ente im p o rtante no concernente às duas funções caracteristicam ente hum anas da linguagem — a descritiva e a arg u m entativa. Com respeito à prim eira, podem os dizer que a linguagem é um “veículo da verdade , em bora possa ser tam bém um veículo da falsidade. Sem um a tradição que trabalhe contra essa am bivalência, em favor do uso da linguagem com o objetivo da des­ crição correta (pelo menos nos casos em que não haja um a forte razão p ara m en ­ tir), a função descritiva da linguagem desaparecerá, porque as crianças não chegariam a aprendê-la. Talvez mais valiosa ainda é a tradição que trab alh a con­ tra a am bivalência associada à função argum entativa — contra o m al uso da lin ­ guagem que consiste na utilização de pseudo-argum entos e de propaganda. E a tradição e a disciplina do falar e do pensar com clareza — a tradição da crítica e da razão. Os inimigos m odernos da razão querem destruir essa tradição, destruindo e pervertendo a função argum entativa da linguagem e possivelmente tam bém a fu n ­ ção descritiva: voltando-se rom anticam ente p a ra suas funções emotivas — a expres­ siva (fala-se m uito hoje em “expressão”) e talvez a sinalizadora. Sentimos essa te n ­ dência, de form a m uito clara, em certos tipos atuais de prosa, de poesia e de fi­ losofia — u m a filosofia que não argum enta porque não lida com problem as sus­ ceptíveis de discussão. Os novos inimigos da razão são às vezes antitradicionalistas, em busca de m étodos inovadores e eficazes de auto-expressão ou de “com unicação” , como tam bém podem ser tradicionalistas que exaltam a sabedoria da tradição lingüística. Nos dois casos sabemos que têm im plícita um a teoria da linguagem que só leva em conta a prim eira e talvez a segunda das suas funções — na p rática o que fazem é preconizar a fuga. da razão e da grande tradição da responsabilidade in ­ telectual.

5. Retomo aos Pré-Socráticos* “Back to M ethuselah”, de Shaw, pro p u n h a um program a progressista com ­ parado com “De Volta a T ales” ou “De Volta a A naxim andro” — o que Shaw nos oferecia era um aprim oram ento inesperado da nossa vida; algo que se podia sentir pairando no ar, pelo menos na época em que escrevia. Tem o n ad a ter a oferecer que esteja atualm ente p airando no ar; na verdade, proponho o retorno à racio­ nalidade franca e simples dos pré-socráticos. O nde está essa tão discutida “r a ­ cionalidade” dos pré-socráticos? Em p arte, na sim plicidade e ousadia das in d a ­ gações que form ulavam ; de acordo com a m inha tese, está sobretudo na atitude crítica que, como procurarei dem onstrar, foi desenvolvida originalm ente pelos p e n ­ sadores irônicos. As perguntas que os pré-socráticos procuravam responder eram fu n d am en ­ talm ente cosmológicas, mas havia tam bém questões relativas à teoria do conhe­ cim ento. Acredito que a filosofia precisa reto rn ar à cosmologia e à simples teoria do conhecim ento. H á pelo menos um problem a filosófico pelo qual todos os h o ­ mens pensantes se interessam : o problem a de como com preender o m undo onde vivemos (e, portanto, a nós mesmos, que fazemos p arte dele, e nosso próprio co­ nhecim ento). Creio que toda ciência é cosmológica; p ara m im o interesse da fi­ losofia reside, não menos que o da ciência, exclusivam ente na sua ousada tentativa de acrescentar ao conhecim ento que temos do m undo, e à teoria a respeito desse conhecim ento. Interesso-me por W ittgenstein, por exem plo, não por causa da sua filosofia lingüística, m as porque o Tractatus é um tratad o de cosmologia (em bora grosseiro) e sua teoria do conhecim ento está estreitam ente associada à sua cos­ mologia. A m eu ver, tanto a ciência quanto a filosofia deixam de ser atraentes a p a r­ tir do m om ento que desistem dessa busca — quando se tornam especialidades e deixam de ver e adm irar os enigmas do m undo. A especialização pode ser um a grande tentação para o cientista, mas p ara o filósofo é um pecado m ortal.

6 —^ Compare com o cap. 12. O motivo por que considero a função argumentativa igual à explicativa não pode ser examinado aqui; fundamenta-se na análise lógica da explicação e no seu relacionamento com a dedução (ou argumento). 7 — Um mapa comum é também exemplo de descrição não argumentativa — embora possa ser usado para apoiar um argumento, dentro de linguagem argumentativa.

* Oração do presidente da Sociedade Aristotélica, pronunciada na sessão do dia 13 de outubro de 1958. Publicada pela primeira vez nos Proceedings o f the Aristotelian Society, N.S. 59, 1958-9. As notas e o apêndice foram acrescentados na presente versão impressa.

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II Falo, neste trab alh o , como am ador, um am ante d a esplêndida estória dos p ré -socráticos. N ãô sou especialista nem perito: sinto-m e totalm ente deslocado quando um entendido no assunto se põe a discutir sobre quais as palavras ou ex­ pressões que H eráclito teria ou não usado. Porém , quando u m entendim ento subs­ titui u m a b onita estória, baseada nos textos m ais antigos que conhecemos, por o u tra que não tem sentido, (pelo menos p ara m im ), sinto que mesmo um am ador pode levantar-se p ara defender um a antiga tradição. Exam inarei, p o rtanto, os a r ­ gum entos apresentados pelos entendidos, e sua consistência. É um a ocupação inofensiva; e se algum entendido ou qualq u er o u tra pessoa se der ao trabalho de refu tar m inha crítica, sentir-m e-ei grato e h onrado. I T ra ta re i das teorias cosmológicas dos p ré -socráticos, mas apenas na m edida em que se relacionam com o desenvolvimento do problem a da m u d a n ça , e na m ed id a era que são necessárias p ara com preender a visão — p rática e teórica dos p ré -socráticos com rçlàção ao problem a do conhecim ento. E de fato interessante observar como sua prática e teoria do conhecim ento se ligam às perguntas cosmológicas e teológicas que p ro punham . Sua teoria do co­ nhecim ento não se fundam entava em perguntas assim: “Como posso saber que isto é um a laran ja?”; ou: “Como posso saber que o objeto que neste m om ento percebo é um a laran ja?” P artia de problem as como: “De que fnodo podemos saber que o m undo é feito de água?” ; ou: “Como podemos saber se o m undo está repleto de deuses?” ; ou ainda: “Como podemos aprender algum a coisa sobre os deuses?” H á um a crença generalizada (rem otam ente atribuível, creio, à influência de Francis Bacon), de que se deve estudar os problem as da teoria do conhecim ento em relação ao conhecim ento de um a laranja, e não do cosmos. Discordo dessa crença, e um dos objetivos principais do presente trab alho é expor alguns dos motivos que me levaram a tal posição. É bom lem brar que nossa ciência ocidental — parece não haver o u tra — não começou colecionando observações sobre laranjas, más» sim form ulando teorias ousadas sobre o m undo. III A epistem ologia em pirista tradicional e a historiografia tradicional da ciên­ cia foram p ro fundam ente influenciadas pelo m ito de Bacon de que toda ciência com eça por observações p a ra depois proceder vagarosa e cautelosam ente à fo r­ m ulação de teorias. Estudando-se os p ré -socráticos mais antigos, aprendesse que os fatos são m uito diferentes. Encontram os idéias ousadas e fascinantes, algum as das quais são antecipações estranhas e mesmo surpreendentes de resultados m odernos, enq u an to outras são totalm ente errôneas; mas a m aioria dessas idéias, e as m e­ lhores, n ad a têm a ver com a observação. Tom em os por exemplo algum as das teorias sobre a form a e a posição da T erra. Sabemos que Tales afirm ou: “a T erra é sustentada pela água, sobre a qual navega como um navio; quando dizemos que houve um terrem oto, o m undo foi estrem ecido pelo m ovim ento da á g u a .” Sem

1 — Com prazer, registro que o Sr. G. S. Kirk de fato respondeu ao meu discurso. Vide o apêndice a este capítulo.

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dúvida, Tales havia observado terrem otos e o balanço de um navio, antes de chegar à sua teoria. Mas seu propósito era explicar a sustentação ou suspensão da T erra e os terrem otos pela conjectura de que a T erra flutuava sobre a água; para essa con­ jectu ra (que, de m aneira tão estranha, antecipa-se à teoria m oderna dos deslizes continentais), não poderia encontrar fundam ento em suas observações. Não devemos esquecer que a função do m ito de Bacon é explicar a razão pela qual as asserções científicas são verdadeiras, afirm ando que a observação é a “fo n te verdadeira ’ do conhecim ento científico. A p a rtir do m om ento que perce­ bemos que todas as asserções científicas são hipóteses, suposições ou conjecturas, e que (inclusive as conjecturas de Bacon) se têm m ostrado falsas, o m ito de Bacon passa a ser irrelevante. N ão tem sentido argum entar que as conjecturas da ciência — tanto as que já foram refutadas quanto as que ainda aceitam os — se fu n d am en ­ tam na observação. De qualquer m odo, a bela teoria de Tales sobre os terrem otos e a suspensão da T erra, inspirou-se, quando menos, num a analogia em pírica ou derivada da o b ­ servação, em bora não diretam ente nesta últim a. Porém , nem mesmo isto se pode dizer, apropriadam ente, a propósito de outra teoria, proposta por um im portante discípulo de Tales — A naxim andro. Com efeito, a teoria de A naxim andro sobre a suspensão da T erra ainda é altam ente intuitiva, em bora não se utilize mais de analogias associadas à observação; podemos descrevê-la como “co n tra -observa­ cional” . De acordo com A naxim andro, “A T e rra ... não está sustentada por n ada, perm anecendo estacionária porque está situada a um a distância igual de todas as demais coisas. Sua form a é... como a de um tam b o r... C am inham os sobre um a das superfícies planas, enquanto a outra está situada do lado oposto.” O ta m ­ bor, obviam ente, é um a analogia derivada da observação. Mas a idéia da livre sus­ pensão da T erra no espaço e a explicação de sua estabilidade não têm analogia em todo o cam po dos fatos observáveis. N a m inha opinião, a idéia de A naxim andro é um a das mais ousadas, re ­ volucionárias e portentosas de toda a história do pensam ento. Abriu cam inho para as teorias de Aristarco e Copérnico. Mas o passo dado por A naxim andro foi ainda mais difícil e audacioso que o de Aristarco e Copérnico. Ao visualizar a T erra li­ vrem ente suspensa em pleno espaço, e afirm ar que ela “perm anece imóvel devido à eqüidistância ou ao equilíbrio” (como diz Aristóteles, parafraseando A naxim an­ dro), a teoria antecipa até certo ponto a própria concepção de Newton de forças gravitacionais im ateriais e invisíveis 2 IV Como chegou A naxim andro a essa notável teoria? C ertam ente não m ediante observações, mas pela razão. Ela é um a tentativa de solucionar um problem a para

2 — 0 próprio Aristóteles entendia Anaximandro dessa maneira; ele faz uma caricatura da sua teoria “engenhosa porém falsa” descrevendo a situação de um homem igualmente faminto e sedento, mas situado à mesma distância tanto da comida como da bebida, e portanto incapaz de se mover. {De Caeto, 295b32. Essa idéia tornou-se conhecida com o nome de “o asno de Buridan”.) Na concepção de Aris­ tóteles, o homem é mantido em equilíbrio por forças de atração imateriais e invisíveis, semelhantes às de Newton; é interessante observar que este caráter “animista” ou “oculto” das forças foi fortemente (em­ bora erroneamente) sentido como um defeito pelo próprio Newton e por seus oponentes, como Berkeley.

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

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o qual Tales, seu m estre, fundador da Escola M ilesiana ou Jónica já havia proposto um a solução. Gonjecturo, portanto, que A naxim andro chegou à sua teoria pela crítica da teoria de Tales. Creio que m inha conjectura pode apoiar-se na consi­ deração da estru tu ra da teoria de A naxim andro.

que se situam do mesmo lado da T erra, enquanto não há nad a do outro p ara m a n ­ ter o equilíbrio. Parece que A naxim andro solucionou essa objeção com outra teoria audaciosa — a teoria da natureza oculta do Sol, da L ua e dem ais corpos celestes.

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Possivelmente, A naxim andro argum entou contra a teoria de Tales (segundo a qual a T e rra flu tu a sobre água) de acordo com as seguintes linhas: a explicação de Tales pertence a um certo tipo de teoria que, quando consistentem ente desen­ volvida, leva a um regresso infinito. Se explicamos a posição estável da T erra pela suposição de que está suspensa sobre a água — flutuando no oceano (Okeanos) — não precisarem os explicar a estabilidade do oceano por um a hipótese análoga? Mas isso significaria enco n trar um a prim eira sustentação p ara o oceano, e um a segunda sustentação p a ra a prim eira. Esse m étodo de explicação é insatisfatório: p rim ei­ ram ente, solucionamos o problem a criando um outro análogo; em segundo lugar, pode-se perceber (este é um motivo menos form al e mais intuitivo) que em q u a l­ quer sistema desse tipo, form ado por suportes e apoios, qualquer falha pode levar ao colapso de toda a construção. Sentimos assim, intuitivam ente, que a estabilidade do m undo não pode estar g aran tid a por um sistema de apoio e suportes. A naxim andro, por outro lado, apela p ara a sim etria in tern a ou estrutural do m undo, que assegura que não há direção preferencial p a ra os colapsos. Aplica o princípio de que quando não existem d i­ ferenças não pode haver m udança. Dessa m aneira, explica a estabilidade da T erra pela distância igual que a separa de todas as demais coisas. A parentem ente, este era o argum ento de A naxim andro. E im portante n o tar que ele elim ina, em bora não m u ito conscientem ente ou de m aneira m uito coerente, a idéia da direção absoluta — o sentido absoluto de “para cim a” ou “p ara baixo” . Isso não só é contrário a q ualquer experiência,m as tam bém singularm ente difícil de ser com preendido. Ao que parece, Anaximenes ignorou esse fato e o próprio A naxim andro não o com preendeu plenam ente. De fato, a idéia da equidistância de todas as coisas deveria ter levado à concepção da T erra como um globo. Más ele acreditava que a form a da T erra correspondia à de um tam bor, com superfícies planas superior e inferior. No entanto, o com entário “Cam inham os sobre um a das superfícies planas, enq u an to a outra está situada do lado oposto” contém a insi­ nuação de que não há superfície superior absoluta, mas de que, ao contrário, a superfície sobre a qual cam inham os é a que podemos considerar superior. Que im pediu A naxim andro de chegar à teoria de que a T erra é um globo e não um tam bor? N ão pode haver m uita dúvida: pela experiência da observação, ele ap rendeu que a superfície da T e rra é de m odo geral p lana. P ortanto, foi um argum ento especulativo e crítico, a discussão crítica e abstrata da teoria de Tales, que quase o levou à verdadeira teoria sobre o form ato da T erra; e a experiência da observação que o desencam inhou. V H á um a objeção evidente à teoria da sim etria de A naxim andro, segundo a qual a T e rra é equidistante das demais coisas no espaço. Pode-se perceber facil­ m ente a assim etria do universo pela existência do Sol e da Lua, e especialm ente pelo fato de que às vezes ambos não estão m uito distantes um do outro, de m aneira

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Ele visualiza as bordas de duas imensas rodas de carruagem girando em torno da T erra: um a delas é 27 vezes m aior que a T erra; a outra, 18 vezes. Cada um a dessas bordas (ou tubos circulares) está cheia de fogo e tem um respiradouro através do qual ele pode ser visto. A esses dois orifícios denom inam os,respectiva­ m ente, Sol e L ua. O resto da roda é invisível, presum ivelm ente por ser escuro (ou nevoento) e distante. As estrelas fixas (e supostam ente os planetas) são tam bém orifícios em rodas mais oróxim as da T erra que as do Sol e da Lua. As rodas das es­ trelas fixas giram em torno de um eixo com um (que hoje cham am os o eixo da T erra) e form am um a esfera em seu redor, de m aneira a satisfazer grosseiram ente o postulado da equidistância da T erra. Isso faz de A naxim andro tam bém o fu n ­ dador da teoria das esferas.(Sobre a relação entre esta e as rodas ou círculos, vide Aristóteles, De Caelo, 289bl0 a 290M 0). VI Não há dúvida de que as teorias de A naxim andro são críticas e especulativas e não em píricas: consideradas como modos de enxergar a verdade, suas especu­ lações abstratas è críticas foram mais úteis do que a experiência da observação ou a analogia. Um discípulo de Bacon podería argum entar, contudo, que essa é ex atam en­ te a razão pela qual A naxim andro não era um cientista. Precisam ente por isso, falamos em filosofia, e não em ciência grega antiga. Todos sabem que a filosofia é especulativa. Todos sabem tam bém que a ciência só aparece quando o m étodo es­ peculativo é substituído pelo m étodo da observação, e a dedução pela indução. Esse argum ento consiste obviam ente na tese de que as teorias, por definição, são científicas se têm origem em observações, ou nos cham ados “procedim entos in ­ dutivos” . A credito, no entanto, que poucas teorias físicas podem ser definidas desse m odo. T am bém não vejo qual a im portância da origem em relação a esse p ro ­ blem a. O mais im portante de um a teoria é sua capacidade de explicar, de enfren­ tar crítica e testes. A questão da origem, de como se chegou à teoria — seja por “procedim ento indutivo” , como dizem alguns, ou pela intuição — pode ser ex­ trem am ente interessante p ara um biógrafo ou p ara quem inventou a teoria, mas pouco tem a ver com seu padrão ou caráter científico. VII Q uanto aos p ré -socráticos, sustento que há um a continuidade perfeita entre suas teorias e os desenvolvimentos posteriores da física. A m eu ver, pouco im porta que sejam cham ados de filósofos, pré-cientistas ou cientistas. Mas a verdade é que a teoria de A naxim andro abriu cam inho para as teorias de Aristarco, Copérnico, Kepler e Galileu. Ela não apenas “influenciou” os pensadores posteriores; “influên­ cia” é um a categoria m uito superficial. Diría, mais apropriadam ente, que a realização de A naxim andro tem valor intrínseco, como um a obra de arte. Além disso, possibilitou realizações posteriores, inclusive as dos grandes cientistas m en ­ cionados.

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Mas as teorias de A naxim andro não são falsas, e portanto não científicas? Adm ito que sejam falsas; mas o mesmo acontece com m uitas teorias, baseadas em inúm eras experiências e aceitas até recentem ente pela ciência m oderna; em bora reconhecidas como falsas, ninguém pensaria em negar seu caráter científico. (Um exem plo seria a teoria de que as propriedades quím icas típicas do hidrogênio p e r­ tencem a um só tipo de átom o — o mais leve de todos.) Já houve historiadores da ciência que tendiam a considerar não científica (ou mesmo supersticiosa) qualquer teoria que não fosse mais aceita na época em que escreviam; essa atitude, no en ­ tanto, é insustentável. U m a teoria falsa pode ser um a realização tão im portante quan to um a teoria verdadeira. Além disso, m uitas teorias falsas têm sido mais úteis na busca da verdade do que algum as teorias menos interessantes que são ainda aceitas. As teorias falsas, de fato, podem ser úteis de diversas m aneiras; podem sugerir, por exem plo, modificações mais ou menos radicais, ou então estim ular a crítica. A teoria de Tales de que a T erra flutua sobre a água reapareceu de form a m odificada em Anaxim enes, e, em época mais recente, na teoria de W egener sobre os deslizes continentais. Já dem onstrei a m aneira pela qual a teoria de Tales es­ tim ulou a crítica de A naxim andro. A teoria de A naxim andro, de m odo sem elhante, sugeriu um a teoria m o ­ dificada — a visão do globo terrestre livrem ente suspenso no centro do universo, rodeado por esferas nas quais estavam m ontados os corpos celestes. Estim ulando a crítica, levou tam bém à teoria de que o brilho da L ua se deve ao reflexo da luz; à teoria de Pitágoras sobre um fogo central; por fim, ao sistema de m undo heliocên­ trico de Aristarco e Copérnico. V III Acredito que os milesianos, assim como seus antecessores orientais, que viam o m undo como u m a tenda, o concebiam como um a espécie de m orada — a m o ­ rad ia de todas as criaturas, o nosso lar. N ão havia, p o rtanto, necessidade de p e r­ gu n tar qual a sua utilidade, mas sim de investigar sua arq u itetu ra. As qúestões sobre sua estru tu ra, desenho e m aterial de construção constituíam os três p ro ­ blem as principais da cosmologia m ilesiana. H avia tam bém o interesse especulativo na origem do m undo: a questão da cosmogonia. Parece-m e que o interesse cosmológico dos milesianos excedia m uito o interesse cosmogônico, especialm ente se considerarm os a forte tradição cosmogênica, e a tendência quase irresistível de descrever um a coisa contando como foi feita (portanto de apresentar um relato cosmológico em form a cosmogônica). O interesse cosmológico, em com paração com o cosmogônico, deve ser m uito forte, se a apresentação de um a teoria cosmológica se liberta mesmo em parte, dos ornam entos d a cosmogonia. A credito que Tales foi o prim eiro a discutir a arq u itetu ra do cosmos — sua estrutura, p la n ta e m aterial de construção. Em A naxim andro encontram os respos­ tas p a ra as três questões. Já m encionei brevem ente sua resposta à questão da es­ tru tu ra . Q uanto ao problem a d a p lan ta do m undo, ele tam bém a estudou e ex­ plicou, como indica a afirm ativa tradicional de que foi o prim eiro a elaborar um m ap a do m undo. A naxim andro tam bém tinha, obviam ente, um a teoria sobre o m aterial de construção — o “a peiron”: “infinito”, “ilim itado” “sem fo rm a” . No m undo concebido por A naxim andro, ocorria todo tipo de m udanças. O fogo necessitava de ar e de orifícios p a ra ventilação — que às vezes perm aneciam

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fechados (“obstruídos”), o que o ab afav a5: tal era sua teoria dos eclipses e das fases da Lua. Os ventos eram responsáveis pelas m udanças clim áticas34 . Havia tam bém vapores, que resultavam da secagem da água e do ar e causavam os ventos e os sols­ tícios do Sol e da Lua. Temos aqui a prim eira insinuação do que viria a seguir: o problem a geral da m u d a n ça , que se tornou o problem a central da cosmologia grega e levou por fim, com Lêucipo e Dem ócrito, à teoria geral da m udança, aceita pela ciência m oderna até quase o início do século XX. (Só foi rejeitada após o fracasso do modelo do éter de Maxwell, um acontecim ento histórico pouco notado até 1905 ) O problem a geral da m udança é um problem a filosófico; nas mãos de Parmênides e Zenão quase se tornou um problem a lógico. De que m aneira é possível a m udança, em termos lógicos? Como pode algo m u d ar sem perder sua identidade? Se perm anecer no mesmo estado, não sofrerá um a m udança; se perder sua id en ­ tidade, não será mais aquilo que sofreu a m udança. IX A m eu ver, a história excitante do desenvolvimento do problem a da m u d a n ­ ça corre o risco de ficar totalm ente soterrada pela crescente acum ulação de m i­ núcias da crítica textual. O bviam ente, é um a história que não pode ser relatada, em toda a sua extensão, num trabalho curto como este. R esum indo-a ao m áxim o é o que se segue: Segundo A naxim andro, nosso m undo, nosso edifício cósmico é apenas um em infinidade de m undos — sem limites no espaço e no tem po. Esse sistema de m u n ­ dos é eterno e está em m ovim ento. Não há, p o rtan to , necessidade de explicar o m ovim ento, de oferecer um a teoria geral de m u dança (no sentido do problem a e da teoria gerais da m udança que vamos encontrar em H eráclito; vide a seguir), mas sim de explicar as m udanças ordinárias que ocorrem em nosso m undo. As m udanças mais óbvias — do dia p ara a noite, dos ventos e do clim a, das estações, da época de cultivo para a de colheita, do crescim ento das plantas, anim ais e pes­ soas — estão ligadas ao contraste de tem peraturas, à oposição entre o frio e o calor, o seco e o úm ido. Afirma-se que “as criaturas vivas foram geradas pela um idade evaporada pelo sol” . O calor e o frio tam bém contribuem p ara a gênese do m undo: 3 — Não sugiro que o abafamento do fogo se devesse ao bloqueio dos poros de entrada de ar; de acordo com a teoria do flogístico, por exemplo, o fogo poderia ser abafado pela obstrução de orifícios de saída do ar. Mas não quero atribuir a Anaximandro a teoria do flogístico ou uma antecipação das idéias de Lavoisier. 4 — Na forma como esta conferência foi originalmente publicada, este trecho prosseguia assim: “e de fato por todas as demais mudanças dentro do edifício cósmico”. Baseava-me em Zeller, que escrevera (apelando para o testemunho de Meteor, de Aristóteles, 353b6); “Ao que parece, Anaximandro explica o movimento dos corpos celestes pelas correntes de ar responsáveis pelo movimento giratório das esferas estelares.” (Phil. d. Griechen, 5.a edição, vol. I, 1892, p.223; vide também p. 220, n.° 2; Aristarchus, de Heath, 1913, p. 33; e a edição de Lee de Meteoreologica, 1952, p. 125.) Porém, não devia ter inter­ pretado “correntes de ar” como “vento”, especiaímente porque Zeller deveria ter usado a palavra “vapores” (as “correntes de ar” são evaporações resultantes de um processo de secagem). Em duas ocasiões, inseri “vapores e” antes de “vento”, e “quase” antes de “todos”, no segundo parágrafo da seção ix; no terceiro parágrafo da seção ix, substituí “ventos” por “vapores”. Fiz essas mudanças para fazer face à crítica de G. S. Kirk, na página 332 de seu artigo (discutida no apêndice deste capítulo).

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são tam bém responsáveis pelos vapores e ventos, concebidos por sua vez como agen­ tes de quase todas as dem ais m udanças. Anaxim enes, discípulo e sucessor de A naxim andro, desenvolveu essas idéias d etalh ad am en te. Como A naxim andro, interessou-se pela oposição entre o calor e o frio, a u m idade e a secura; explicou a transição entre esses opostos por um a teoria da condensação e da rarefação. Como A naxim andro, acreditava no m ovim ento eterno e na ação dos ventos; parece provável que tenha chegado a um dos dois pontos de discordâpcia com A naxim andro m ediante a crítica da noção de que o apeiron, em bora am orfo e totalm ente sem limites, pode ter m ovim ento. Substituiu o apeiron pelo ar — ta m ­ bém am orfo e quase ilim itável, porém , de acordo com a antiga teoria dos vapores de A naxim andro, capaz de m ovim entar-se e de ser o principal agente do m ovim en­ to e da m u d an ça. Um a unificação de idéias sem elhantes foi prom ovida pela teoria de Anaxim enes de que “o Sol é constituído de terra, e se aquece devido à rapidez do seu m ovim ento” . A substituição da teoria ab strata do apeiron sem limites pela teoria do ar, menos abstrata e mais razoável, pode ser eq u ip arad a à substituição da ousada teoria de A naxim andro sobre a estabilidade da T erra pela idéia mais razoável de que “o achatam ento da T e rra é responsável pela sua estabilidade, pois e la ... cobre o ar subjacente como um a ta m p a ” . Logo, a T erra flutua no ar da m es­ m a m aneira que a tam p a de um a panela suspensa pelo vapor; a pergunta e a res­ posta de Tales são renovadas e o argum ento de A naxim andro, que m arcou época, não é com preendido. Anaxim enes é eclético, sistem atizador, em pirista, um hom em de senso com um . Dos três grandes milesianos, é o que menos produziu idéias re ­ volucionárias, o que possui o espírito menos filosófico. Os três milesianos viam o m undo como nossa m oradia. Nela havia m ovi­ m ento e m u d an ça, calor e frio, fogo e um idade. Havia fogo na lareira; sobre o fogo, um a caldeira com água. A casa, um tanto sujeita a correntes de ar, estava exposta aos ventos, m as era nossa residência, representando um a certa segufãjiça e estabilidade. P ara H eráclito, no entanto, a casa estava pegando fogo. N a concepção de H eráclito, não há estabilidade no m undo. “T udo está em fluxo, n ad a perm anece em repouso.” Tudo está em fluxo, até mesmo as vigas, a m adeira, o m aterial de que é feito o m undo: a terra e as pedras, o bronze de um a caldeira — tudo está em fluxo. As vigas apodrecem , a terra é levada e soprada pelas chuvas e pelos ventos, as próprias rochas quebram e se desfazem, o caldeirão de bronze adquire um a p átin a verde. Como disse Aristóteles, “em bora nossos sentidos não o percebam , todas as coisas estão em m ovim ento o tem po todo”. Aqueles que não sabem disso acreditam que só o combustível queim a, enquanto o vaso dentro do qual ele queim a (cp. DK, A 4) perm anece im utável, pois não vemos o vaso queim ar. No entan to ele tam bém queim a; é comido pelo fogo que abriga. Não vemos nossos filhos crescerem , m udarem e envelhecerem , mas é o que acontece. N ão há corpos sólidos. As coisas na verdade não são objetos: são processos, estão em fluxo. São como o fogo, um a cham a que, em bora tenha form a definida, é um processo; um a corrente de m atéria, um rio, todas as coisas são cham as: o fogo é o próprio m aterial de construção do nosso m undo; a estabilidade aparente se deve apenas às leis e m edidas às quais estão sujeitos os processos em nosso m undo.

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Esse, creio, é o relato de H eráclito; sua “m ensagem ” , a “palavra verdadeira” (logos) que todos devem ouvir: “Ouvindo não a m im , m as ao relato verdadeiro, a sabedoria consiste em adm itir que todas as coisas são um a só: um fogo eterno, flam ejando e m orrendo em graus diferentes” . Sei m uito bem que, hoje, a interpretação tradicional da filosofia de H e­ ráclito, reform ulada acim a, geralm ente não é aceita. Mas os críticos não a subs­ tituíram por nada — isto é, por n ad a que tenha interesse filosófico. N a seção se­ guinte discutirei brevem ente esta nova interpretação. Agora, quero apenas e n ­ fatizar que, ao apelar p a ra o pensam ento, a palavra, o argum ento, a razão e ao observar que vivemos num m undo de coisas cujas m udanças escapam aos nossos sentidos (em bora saibamos que elas m udam ), a filosofia de H eráclito criou dois novos problem as — o problem a da m udança e do conhecim ento. Problem as que se to rnaram urgentes na m edida em que seu próprio relato das m udanças era de difícil com preensão. Mas isso, creio, se deve ao fato de que ele via, com mais clareza que seus antecessores, as dificuldades envolvidas n a p rópria idéia da m u ­ dança. T oda m udança, de fato, é a m udança de algum a coisa: a m udança pres­ supõe algo que m uda. Pressupõe ainda que, d u ran te a m udança, essa coisa deve perm anecer a m esm a. Podemos dizer que um a folha verde m uda quando a m a ­ relece, mas não podemos afirm ar que houve m udança se a substituirm os por um a folha am arelada. O princípio de que aquilo que m u d a retém sua identidade é es­ sencial à idéia da m udança. C ontudo, o que m u d a deve tom ar-se algo diferente: era verde, tornou-se am arelado; era úm ido, tornou-se seco; era quente, tornou-se frio. P ortanto, toda m udança é a transição de um a coisa p ara outra que possui, de certa form a, qualidades opostas (como observaram A naxim andro e A naxi­ menes). Ao m ú d ar, contudo, a coisa deve perm anecer idêntica a si própria. Esse é o problem a da m udança, que levou H eráclito a um a teoria que (an ­ tecipando-se parcialm ente a Parm ênides) distingue entre as aparências e a reali­ dade. “A verdadeira natureza das coisas prefere esconder-se. Uma harm onia in ­ visível é mais forte do que um a harm onia ap a re n te .” E m sua aparência (e p ara nós) as coisas são opostas, m as na verdade (e p ara Deus) são iguais. “A vida e a m orte, estar desperto ou adorm ecido, a juventude e a velhice, tudo é o m esm o... pois o contrário de um a coisa é a o u tra; e a o utra, invertida, é a p rim eira... O cam inho que leva p ara cim a e o que leva p ara baixo são o m esm o... O bem e o m al são idênticos... Para Deus, tudo é freio, bom e justo, mas os homens presum em que algum as coisas são injustas e que outras são ju stas... N ão pertence à natureza ou caráter do hom em possuir o conhecim ento verdadeiro, e sim à n a ­ tureza d ivina.” Assim, verdadeiram ente (em Deus) os opostos se identificam : só p ara o hom em parecem não ser idênticos. Todas as coisas são, n a verdade, um a só parte do processo do m undo, essa cham a eterna. Essa teoria da m udança apela p ara a razão, o logos: a “palavra verdadeira”. Para H eráclito, n ad a é m ais real do que a m u dança. Contudo, sua doutrina da unidade do m undo, da identidade dos opostos, da aparência e da realidade, am eaça sua concepção da realidade da m udança.

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De fato, a m ud an ça é um a transição entre dois opostos. P ortanto, se na ver­ dade os opostos são idênticos, em bora pareçam diferir, a m udança em si m esm a poderia ser apenas aparente. Se na verdade, e p ara Deus, todas as coisas são um a só, na verdade não há m udança real. Esta conseqüência foi derivada por outros) do m onoteísta Xenófanes, que disse a pre no mesmo lugar, nunca se move. Não diferentes lugares, em m om entos diversos... m ortais, no corpo ou na m en te” .

Parm ênides, aluno (pace Burnet e respeito do Deus único: “Ele está sem ­ seria próprio que se deslocasse p ara N ão se assemelha absolutam ente aos

Parm ênides, discípulo de Xenófanes, ensinou que o m undo real era uno e perm anecia sem pre no mesmo lugar, sem qualquer m ovim ento. Não era apro­ priado que se deslocasse p ara diferentes lugares, em m om entos diversos; e não se parecia à im agem que dele tinham os m ortais. Era um a unidade, sem divisão, sem com ponentes, hom ogêneo e imóvel. O m ovim ento era impossível nesse m undo — na verdade, a m u d an ça era inexistente: o m undo das transform ações era ilu ­ sório. Parm ênides baseou sua teoria sobre a realidade im utável em algo como a prova lógica — prova que pode ser form ulada a p a rtir de um a única premissa: “o que não é não é ” . Dela podem os inferir que o nada — o que não é — não existe; o que Parm ênides in terp reta como significando que o vácuo não existe. O m undo es­ tá repleto: consiste em um só bloco, sem divisões — pois qualquer divisão em partes im plicaria a separação dessas partes pelo vazio. Nesse m undo com pacto, o m ovi­ m ento é impossível. Essa era a “verdade com pleta” que a deusa revelara a P a r­ mênides. Só a crença ilusória na realidade dos opostos — na existência não só do que é , mas tam bém do que não é — pode levar à ilusão de um m undo de m udanças. A teoria de Parm ênides pode ser descrita como a prim eira teoria hipotéticodedutiva do m undo. Os atom istas a consideraram assim; afirm aram que, um a vez que o m ovim ento não existe, ela é refu tad a pela experiência. Aceitando a validade do argum ento de Parm ênides, inferiram a falsidade de sua premissa a p artir da falsidade da conclusão a que chegara Parm ênides. Mas isso significava que o nada — o vácuo ou espaço vazio — existe. C onseqüentem ente, não havia mais neces­ sidade de presum ir que “o que é ” — aquilo que ocupa espaço — não possui partes diferentes, pois elas seriam separadas pelo vácuo. Existem, portanto, m uitas partes, cada qual “p le n a ”: há, no m undo, partículas “plenas” , separadas pelo espaço vazio e capazes de m ovim entar-se nele. C ada p arte é “p len a”, una, indivisível e im utável. P ortanto, existem os átom os e o vácuo. Os atom istas chegaram , assim, a um a teoria da m udança que dom inou o pensam ento científico até 1900. Segundo ela, toda m udança, especialm ente de caráter qualitativo, deve ser explicada pelo m ovim ento espacial de pequenas partes im utáveis de m atéria — átom os m o vim en­ tando-se no vácuo. O próxim o passo im portante da cosmologia e da teoria da m udança ocorreu quando Maxwell, ao desenvolver certas idéias de Faraday, substituiu-as pela teoria as intensidades variáveis dos cam pos.

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X Fiz um esboço da história da teoria da m u dança dos p ré -socráticos, da m aneira como a entendo. Estou consciente, é claro, de que m inha história (baseada em Platão, Aristóteles e na tradição doxográfica), en tra em conflito, em m uitos pontos, com a visão de alguns entendidos ingleses e alemães, especialm ente com a de G.S. Kirk e J.E . Raven, expressa em seu livro The Presocratic Philosophers, de 1957. O bviam ente, não posso exam inar aqui detalhadam ente seus argum entos, e m uito menos suas exegeses m inuciosas de vários trechos, alguns dos quais relevantes para com preender as diferenças entre sua intrepretação e a m inha. (Vide. p. e., a discussão de Kirk e Raven sobre a questão de saber se há um a referência a Heráclito em Parm ênides.) Desejo afirm ar, contudo, que exam inei os argum entos apresentados e con sidero-os pouco convincentes e freqüentem ente inaceitáveis. M encionarei apenas alguns pontos sobre H eráclito (em bora haja outros p o n ­ tos igualm ente im portantes, como os com entários sobre Parm ênides). H á qu aren ta anos B urnet criticou a visão tradicional segundo a qual a doutrina fundam ental é a de que todas as coisas estão em fluxo. Seu argum ento principal (discutido por m im extensam ente na nota 2 do 2.° capítulo de m eu livro Open Society), é que a teoria da m udança não era inédita, e só um a nova m en ­ sagem poderia justificar a urgência com que fala H eráclito. Esse argum ento é reiterado por Kirk e Raven, que escreveram (pág. 186 e seguintes): Todos os pensadores p ré -socráticos, no entanto, estavam impressionados pelo próprio predom ínio da m udança em nosso m undo de experiências” . Sobre essa atitude, afirmei em Open Society: “Aqueles que sugerem ... que a d o utrina do fluxo univer­ sal não era in éd ita... são, a m eu ver, testem unhas inconscientes da originalidade de H eráclito, pois não percebem hoje, transcorridos 2.400 anos, seu aspecto p rin cip al.” Em poucas palavras, não percebem a diferença entre a m ensagem dos milesianos (“há fogo na casa”) e a de H eráclito (“a casa está pegando fogo”) — um tanto mais prem ente. Pode-se encontrar um a resposta im plícita a essa crítica na página 197 do livro de Kirk e Raven: “H eráclito acreditava realm ente que um a pedra ou um cal­ deirão de bronze estavam passando por m udanças invisíveis do seu m aterial? T a l­ vez, mas n ad a se pode encontrar nos fragm entos existentes que sugira tal coisa.” Será verdade? Os fragm entos existentes de H eráclito sobre o fogo (Kirk e Raven, fragm . 220-2) são interpretados pelos próprios autores da seguinte m aneira: “O fogo é a form a arquetípica da m a té ria .” Não estou certo do significado da palavra “arqu etípica” nesse trecho (especialm ente tendo-se em vista o fato de que podemos ler, um pouco adiante: “Não há cosmogonia em H eráclito”). Porém , independen­ tem ente do significado da palavra, um a vez adm itido que H eráclito afirm a, nos fragm entos, que toda m atéria, de algum a m aneira (arquetipicam ente ou não) é fogo, deve-se adm itir tam bém a afirm ação de que toda m atéria, tal como o fogo, é um processo; esta é precisam ente a teoria que Kirk e Raven alegam não existir em H eráclito. Im ediatam ente após afirm ar que “n ad a se pode encontrar nos fragm entos existentes” que sugira que H eráclito acreditava em m udanças contínuas e invisíveis, Kirk e Raven fazem o seguinte com entário metodológico: “N ão se pode enfatizar dem asiadam ente a afirm ação de que (nos textos) anteriores a Parm ênides, e na sua

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prova aparente de que os sentidos são com pletam ente falhos... só se pode aceitar afastam entos im portantes do senso com um quando há evidência poderosa em seu favor” . A intenção desse com entário é insinuar que a doutrina de que os corpos (de qualquer substância) passam por m udanças constantes e invisíveis representa um afastam ento im portante do senso com um , que não se esperaria encontrar em H eráclito. Segundo H eráclito, contudo, “Aquele que não esperar pelo inesperado não o perceberá: p a ra ele, o inesperado será impossível de ser detectado, e inabordável” (DK, B 18). De fato, m uitos argum entos invalidam a últim a afirm ação de Kirk e Raven. M uito antes de Parm enides, encontram os, em A naxim andro, Pitágoras, Xenófanes e sobretudo H eráclito, idéias m uito afastadas do senso com um . De fato, a sugestão de que devemos testar a historicidade das idéias atribuídas a H eráclito — como tam bém daquelas atribuídas a Anaximenes — usando como padrão o “senso com um ” , é um tanto surpreendente (qualquer que seja o sentido da expres­ são neste contexto). A sugestão, de fato, co ntraria não só a notória obscuridade e o estilo o racular de H eráclito, confirm ados por Kirk e Raven, mas tam bém seu g ra n ­ de interesse na antinom ia e no paradoxo. Por fim, contradiz igualm ente a d o u ­ trina (a m eu ver um tanto absurda) que Kirk e Raven atribuem a H eráclito (a ê n ­ fase é m inha): “ ...to d o tipo de m udança n atu ral (e presum ivelm ente os terrem otos e grandes incêndios) é regular e equilibrada; e causa desse equilíbrio é o fo g o , elem ento constituinte de todas as coisas, ta m b ém denom inado logos'. Mas, por que razão seria o fogo a “causa” de um equilíbrio — seja “desse equilíbrio” ou de q u a l­ quer outro? O nde se encontram essas afirm ações em Heráclito? Se esta tivesse sido, de fato, a filosofia de H eráclito, não vejo razão p ara me interessar por ela; ela es­ taria m uito mais afastada do senso com um do que a inspirada filosofia atribuída pela tradição a H eráclito, e que é rejeitada, em nom e do senso com um , por Kirk e Raven. Mas o fato decisivo é que, obviam ente, essa filosofia inspirada é, pelo que sabemos, verdadeira^. Com sua intuição incom um , H eráclito viu que as coisas são processos; que nossos corpos são cham as; que “um a pedra ou caldeirão de bronze... passa invariavelm ente por m udanças invisíveis” . Kirk e Raven afirm am (pág. 197, nota 1; o argum ento parece um a resposta a Melissus): “C ada vez que o dedo es­ frega o m etal, desprende um a quan tid ad e invisível do m aterial; quando isso não acontece, que razão há p ara acreditar que o m etal continua a m udar? A razão é que o vento erode o m etal, e sem pre há vento; pela oxidação — isto é, um a queim a vagarosa — ele se transform a de m odo invisível em ferrugem : o m etal antigo tem aparência diferente da do novo, assim como um velho não se confunde com um a crian ça” (DK, B 88). Como dem onstram os fragm entos existentes, era esse o e n ­ sinam ento de H eráclito. Sugiro que o princípio m etodológico de Kirk e Raven de que “só se pode aceitar afastam entos im portantes do senso com um quando há evidência poderosa

5 — Isso confirma que de qualquer maneira a teoria faz sentido. Espero que o texto tenha deixado claro que apelei para a verdade de maneira a: (a) mostrar que minha interpretação pelo menos faz sentido; e (b) refutar os argumentos de Kirk e Raven (discutidos mais adiante no mesmo parágrafo) de que a teoria é absurda. Uma resposta a G. S. Kirk, demasiadamente longa para ser incluída aqui (embora se refira a este trecho) pode ser encontrada no apêndice a este capítulo).

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em seu favor” seja substituído pelo princípio mais claro e im portante de que os afastamentos im portantes da tradição histórica só podem ser aceitos quando há evidência poderosa em seu favor. Esse é, de fato, um- princípio universal da his­ toriografia, sem o qual a história seria impossível. Princípio que é, contudo, constantem ente violado por Kirk e Raven: quando, por exemplo, p ro ­ curam to rn ar suspeitas as evidências de Platão e Aristóteles, usando argum entos parcialm ente circulares e que (como acontece com o argum ento do senso com um ) contradizem suas próprias afirm ações. Q uanto à afirm ativa de que “Platão e Aris­ tóteles não ten taram seriam ente com preender seu significado p ro fundo” (referindose a H eráclito), posso apenas dizer que a filosofia de Platão e Aristóteles possui, a m eu ver, significado e profundidade reais. E um a filosofia digna de um grande filósofo. Quem, senão H eráclito, foi o grande pensador que observou pela prim eira vez que os homens são cham as e as coisas processos? Devemos acreditar que essa grande filosofia foi u m “exagero posterior a H eráclito” (pág. 197) sugerido a Platão “talvez especialmente por C ratilo”? Quem foi esse filósofo desconhecido — talvez o m aior e mais audacioso dos pensadores p ré -socráticos? Q uem , senão Heráclito? XI A história antiga d a filosofia grega, especialm ente de Tales a Platão, é es­ plêndida: quase boa dem ais para ser verdadeira. Em cada geração encontram os pelo menos um a nova filosofia, um a nova cosmologia de im pressionante origi­ nalidade e profundidade. Como foi isso possível? C ertam ente não há explicação para originalidade e a genialidade, mas pode-se ten tar com preendê-las. Q ual era o segredo dos antigos? Sugiro que a tradição — a tradição da discussão crítica. Procurarei expor o problem a de m aneira m ais clara. Em todas ou quase todas as civilizações encontram os o ensino religioso e cosmológico; em m uitas so­ ciedades há escolas. Todas as escolas, sobretudo as prim itivas, possuem, ao que parece, estrutura e função características. Longe de fom entar a discussão crítica, assumem a tarefa de divulgar um a doutrina definida e preservá-la, p u ra e im u ­ tável. A função da escola é passar adiante, à geração seguinte, a doutrina do seu fundador e prim eiro m estre; para isso é extrem am ente im portante m anter a doutrina inviolada. Esse tipo de escola jam ais adm ite idéias novas. As idéias ino­ vadoras são consideradas heréticas e geradoras de cismas; o m em bro da escola que ten tar m udar a doutrina será expulso como herético. Via de regra, o herético alega que a sua é a verdadeira doutrina. Nem o próprio inovador, portanto, adm ite estar inovando; ele acredita estar retornando à verdadeira ortodoxia, que teria sido p e r­ vertida. Dessa m aneira, todas as m udanças de d o u trina são sub-reptícias; apresen­ tam-se sempre como reform ulações dos ensinam entos verdadeiros do mestre: de suas próprias palavras, seu significado e intenção genuínos. E claro que num a escola desse tipo não encontrarem os um a história de idéias, nem m aterial para ela. N ão se adm ite, de fato, a novidade das idéias; tudo é atribuído ao mestre. Só conseguiremos reconstruir um a história de cismas, e talvez a história da defesa de certas doutrinas contra os heréticos. Obviamente, nesse tipo de escola não pode haver qualquer discussão r a ­ cional. Pode haver argum entos contra dissidentes e heréticos, ou contra escolas

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concorrentes; de m odo geral, porém , a dou trina é defendida m ediante assertivas, dogm as e condenações — não com argum entos.

Isso sugere, a m eu ver, que Tales fundou a nova tradição de liberdade — baseada em novo relacionam ento entre m estre e aluno — criando um tipo de escola totalm ente diferente da de Pitágoras. Ao que parece, ele não só tolerava a crítica como instituiu a tradição de que a crítica deve ser tolerada.

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Sob esse aspecto, a Escola Italiana, fu ndada por Pitágoras, constitui um exem plo im po rtan te dentre as escolas filosóficas gregas. C om parada com a Escola Jónica ou com a de Elea, assemelhava-se a um a ordem religiosa, apresentando um m odo de vida característico e um a doutrina secreta. V erdadeira ou não, a estória de um dos seus m em bros, Hipaso de M etaponto, aíogado por ter revelado o segredo da irracionalidade de certas raízes q u a ­ dradas, é característica do clima que cercava a Escola de Pitágoras. Mas essa era um a exceção entre as escolas filosóficas gregas. Deixando-a de lado, podem os dizer que o caráter da filosofia grega, e das suas escolas filosóficas, é nitidam ente diferente do tipo dogm ático descrito. Já dem onstrei isso com um exemplo: a história do problem a da m udança que relatei é a história de um debate crítico, de um a discussão racional. Idéias novas eram expostas como tal, resultando de crítica aberta. Se realm ente há m udanças sub-reptícias, são poucas. Ao invés da anonim idade, temos um a história de idéias e daqueles que as geraram . Esse é um fenôm eno singular, ligado intim am ente à im pressionante lib er­ dade e criatividade da filosofia grega. Como explicá-lo? O que há a explicar é o surgim ento de um a tradição, que perm ite e estim ula a discussão crítica entre várias escolas e, o que é ainda mais surpreendente, dentro de cada escola. De fato, não encontram os em parte algum a, excetuando-se os seguidores de Pitágoras, um a es­ cola dedicada à preservação de determ inada do utrina. Em lugar disso, observamos m udanças, novas idéias, modificações e crítica aberta ao m estre. (Em Parm ênides, pode-se mesmo observar, em período mais antigo, um fenôm eno extrem am ente interessante: um filósofo a expor duas doutrinas, um a,das quais afirm a ser a verdadeira, e a outra, falsa. No entanto, não se lim ita a criticar e condenar a d o u trin a falsa; ao invés disso, ele a apresenta como a m elhor des­ crição possível da opinião ilusória dos m ortais e do m undo das aparências — a m elhor descrição que um m ortal é capaz de fazer.) Como e quando foi fund ad a essa tradição crítica? O problem a merece um a consideração séria. Podemos ter certeza do seguinte: Xenófanes, que levou a tradição jónica p ara Elea, estava plenam ente consciente de que seus ensinam entos eram p u ram ente conjecturais, e que outros mais sábios poderiam vir após ele. Retornarei a esse ponto na próxim a seção. Ao p ro cu rar os prim eiros sinais dessa nova atitude crítica, essa liberdade de pensam ento, retornam os à crítica feita por A naxim andro a respeito de Tales. Tem os aqui um fato m uito interessante: A naxim andro critica seu mestre e co n ­ terrâneo, um dos Sete Sábios, fundador da Escola Jónica. Segundo a tradição, ele era aproxim adam ente quatorze anos mais jovem do que Tales, e deve ter desenvol­ vido sua crítica e novas idéias enquanto o m estre ainda vivia. (Ao que parece, m orreram com pouco tem po de diferença.) Nas fontes históricas não encontram os qualquer vestígio de dissenção, contenda ou cisma.

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Prefiro im aginar que Tales fez mais ainda. T enho dificuldade em conceber um relacionam ento entre m estre e aluno no qual o m estre apenas tolera a crítica, deixando de estim ulá-la ativam ente. A m eu ver, um aluno treinado em atitude dogm ática jam ais ousaria criticar um dogm a (especialm ente de um sábio famoso), de form a aberta. Parece-m e um a explicação mais fácil presum ir que o mestre tenha estim ulado a atitude crítica — talvez não desde o princípio, mas depois de ter ficado impressionado com a pertinência de algum as perguntas feitas pelo aluno, sem intenção crítica. De qualquer m aneira, a conjectura de que Tales estim ulou ativam ente a crítica de seus pupilos explicaria o fato de que a atitude crítica diante da doutrina do mestre tornou-se p arte da tradição da Escola Jónica. Gosto de im aginar Tales como o prim eiro mestre a dizer a seus discípulos: “E assim que vejo as coisas — como creio que elas são. Procurem aperfeiçoar meus ensinam entos” . Os que acharem que não é apropriado atrib u ir essa atitude não dogm ática a Tales devem lem brar que, apenas duas gerações mais tarde, encontrarem os um a atitude sem e­ lhante form ulada clara e conscientem ente nos fragm entos de Xenófanes. Resta, de qualquer form a, o fato histórico de que os jônios estabeleceram a prim eira escola na qual os discípulos criticavam os mestres, geração após geração. Não há m uitas dúvidas de que a tradição de crítica filosófica grega teve sua origem principal na iônia. Foi um a inovação im portantíssim a, que representou um rom pim ento com a tradição dogm ática que perm ite um a só doutrina nas escolas — substituindo-a pela tradição que adm ite um a pluralidade de doutrinas, todas em busca da verdade m ediante a discussão crítica. Essa inovação levou, quase necessariam ente, à tom ada de consciência de que nossas tentativas de encontrar a verdade nunca são definitivas, e sem pre podem ser aprim oradas; que nosso conhecim ento é conjectural: consiste em suposições, hipóteses, e não em verdades certas e definitivas; de que a crítica e a discussão/ crítica são os únicos meios que temos para nos aproxim arm os da verdade. Levou, assim, à tradição de crítica livre e conjecturas audaciosas que criou a atitude r a ­ cional ou científica, e, com esta, a civilização ocidental, a única baseada na ciência (em bora, é claro, não só na ciência). Essa tradição racionalista não proíbe m udanças audazes nas doutrinas. Pelo contrário, estim ula a inovação e a considera um êxito, um aprim oram ento, desde que se baseie no resultado de um a discussão crítica das doutrinas precedentes. A própria ousadia da inovação é adm irada, pois pode ser controlada pela severidade do exame crítico a que é subm etida. Por isso, as m udanças de doutrina, longe de ocorrerem sub-repticiam ente, são passadas adiante com as doutrinas mais antigas e os nomes dos inovadores. Assim, o m aterial para um a história das idéias torna-se parte da tradição ensinada. Pelo que sei, a tradição racionalista ou crítica foi inventada um a só vez. Perdeu-se após dois ou três séculos, provavelm ente devido ao surgim ento da

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d o u trin a da epistem e, de Aristóteles: o conhecim ento certo e dem onstrável — desenvolvimento da distinção traçad a pelos eleáticos e por H eráclito entre a ver­ dade certa e as m eras suposições; mas foi redescoberta e conscientem ente revivida d u ran te a R enascença, especialm ente por G alileu Galilei.

Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem desenhar e esculpir como os homens, os cavalos fariam seus deuses como cavalos; os bois como um boi: cada um deles daria form a ao corpo das suas divindades conform e a imagem da sua própria espécie.

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Os deuses não nos revelaram , desde o princípio, todas as coisas, mas, no curso do tem po, procurando, podemos aprender, conhecê-las m elhor... X II Supomos que essas coisas são como a verdade. Passo agora a m eu últim o e mais im portante argum ento: a tradição racionalista, da discussão crítica, representa o único meio praticável p ara expandir o conhecim ento conjectural ou hipotético. N ão há outra m aneira. Mais especifi­ cam ente, não há um processo que comece pela observação ou pela experiência. No desenvolvimento da ciência, as observações e experiências têm apenas a função de argum entos críticos; desem penham essa função ao lado de o u tra, a de argum entos n ã o -observacionais. É um papel im portante, mas o significado das observações e experiências depende inteiram ente da sua capacidade de criticar teorias. Segundo a teoria do conhecim ento esboçada aqui, há, de m odo geral, só duas m aneiras de um a teoria ser superior a outras: explicar m elhor; e poder ser tes­ tad a m elhor — isto é, ser discutida de m aneira m ais com pleta e crítica, à luz de tudo que conhecem os, de todas as objeções em que podemos pensar, especialm ente de testes experim entais ou de observação designados p ara criticá-la. H á apenas um ingrediente de racionalidade em nossas tentativas de co­ nhecer o m undo: o exam e crítico das teorias. Em si mesmas, as teorias são supo­ sições. N ão sabemos; supomos. Se alguém me perg u n tar “Como você sabe?”, m inha resposta será “N ão sei, apenas proponho um a suposição. Se está interessado no m eu problem a, ficarei grato se criticar m inha suposição; e se m e oferecer contrapropos­ tas, deverei criticá-las igualm ente” . Essa, acredito, é a verdadeira teoria do conhecim ento (que desejo subm eter à crítica do leitor): a verdadeira descrição de um a p rática que surgiu na iônia e es­ tá in corporada à ciência m oderna (em bora m uitos cientistas ainda acreditem no m ito da indução de Bacon): a teoria de que o conhecim ento se processa através de conjecturas e refutações. G alileu e Einstein foram duas das figuras mais importanjtes a perceberem que não existia o procedim ento indutivo; com preenderam claraínente aquilo que considero a verdadeira teoria do conhecim ento. Os antigos, contudo, tam bém o sabiam . Por incrível que pareça, vamos en contrar o claro reconhecim ento e a for­ m ulação dessa teoria quase im ediatam ente após o início da prática da discussão crítica. Sob esse aspecto, os indícios mais antigos que conhecem os são os de Xenófanes. A presentarei aqui cinco deles, num a ordem que sugere que a audácia da sua crítica e a gravidade dos problem as de que trato u o to rnaram consciente de que todo o nosso conhecim ento é suposição; que, procurando o “melhor” conhecim ento, poderem os encontrá-lo em tem po. Aqui estão os cinco fragm entos (DK, B 16 e 15; 18; 35; e 34) da obra de Xenófanes: “Os etíopes dizem que seus deuses têm o nariz achatado e são negros; os trácios, que os seus têm olhos azuis e cabelos ruivos.

Com respeito à verdade segura, ninguém a conheceu, nem a conhecerá, nem a respeito dos deuses, nem sobre tudo o que falamos. Mesmo se por acaso p ro n u n ­ ciássemos a verdade definitiva, não a reconheceríam os — pois tudo é um a tram a de opiniões” P ara m ostrar que Xenófanes não estava só, reproduzo aqui dois ditos de H eráclito (DK, B 78 e 80), que já citei anteriorm ente em outro contexto. Ambos exprim em o caráter conjectural do conhecim ento hum ano; o segundo faz referên­ cia à sua ousadia, à necessidade de antecipar, com coragem , o que não sabemos: “Não pertence à natureza do hom em possuir o conhecim ento verdadeiro, mas à natureza divina... Quem não espera o inesperado não o perceberá; p ara ele o inesperado será impossível de ser detectado, e inabordável” M inha últim a citação será de passagem fam osa de Dem ócrito (DK, B 117): “Mas, na verdade, n ad a sabemos por ter visto; a verdade está oculta na p ro fu n d id ad e.” Desta form a, a atitude crítica dos p ré -socráticos prenunciou e preparou o racionalism o ético de Sócrates: sua crença em que a busca da verdade, pela discus­ são crítica, era um m odo de vida — o m elhor que ele conhecia.

Apêndice CONJECTURAS HISTÓ RICA S: A O PIN IÃ O DE H E R Á C L IT O SOBRE A MUDANÇA*

N um artigo intitulado “Popper a Propósito da Ciência e dos Pré-Socráticos” (M in d , NS 69, julho de 1960, págs. 318 a 339), o Senhor G.S. Kirk respondeu ao desafio e à crítica contidos em conferência que pronunciei na Sociedade Aristotélica sobre o tem a: “Retorno aos Pré-Socráticos” . C ontudo, o artigo em questão não se dirige principalm ente à m inha crítica; procura descobrir como e por que caí vítim a de um a atitude “com relação à m etodologia científica” que está fu n d am en ­ talm ente errad a, e que m e levou a afirm ativas equivocadas a respeito dos présocráticos, baseando-m e em princípios errôneos de historiografia. Um contra-ataque desse tipo poderia seguram ente ter m érito e interesse in ­ trínsecos. O fato de que o senhor Kirk adotou esse procedim ento dem onstra de qualquer form a que há pelo menos dois pontos sobre os quais estamos de acordo: nossa divergência fundam ental é filosófica; e a atitude filosófica que adotam os pode ter um a influência decisiva sobre nossa interpretação d a evidência histórica — por exem plo, no que diz respeito à evidência relativa aos pré-socráticos. O ra, o senhor Kirk não aceita m inha atitude filosófica, como eu não aceito a sua. Por isso acha, justificadam ente, que deve d ar as razões pelas quais rejeita a m inha posição. Não creio, contudo, que tenha conseguido fazer o que pretendia, simples­ m ente porque sua concepção do que pensa ser m eu ponto de vista e as conclusões devastadoras que deriva dessa concepção não estão relacionadas com o que realm ente penso f conform e dem onstrarei. H á outra dificuldade ainda. O m étodo de con tra-ataq u e escolhido tem um inconveniente peculiar: não se presta facilm ente ao desenvolvimento do debate *392 *) Este apêndice, resposta ao artigo de Mind, foi publicado em parte sob o título: “Kirk a Propósito de Heráclito — o Fogo como Causa do Equilíbrio”, na mesma revista, N.S. 72, julho de 1963, págs. 386 a 392. Quero agradecer ao editor de Mind pela permissão para reproduzir aqui todo o artigo, conforme* lhe foi submetido originalmente.

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sobre os pontos de crítica específicos levantados na m inha conferência. Por exem ­ plo: Kirk não explica claram ente que pontos aceita (se é que aceita algum deles) e quais os que rejeita; em lugar disso, a aceitação e a rejeição ficam submersas na rejeição genérica do que supõe ser m inha “atitude com relação à metodologia cien­ tífica” e de algum as conseqüências dessa atitude im aginária.

I M inha prim eira tarefa será dem onstrar a alegação de que a m aneira como Kirk tra ta a “atitu d e com relação à m etodologia científica* atrib u íd a á m im se baseia am plam ente em incom preensões e interpretações errôneas do que tenho es­ crito, bem como nu m a concepção p opular equivocada, de caráter indutivista, a respeito da ciência n a tu ra l — tem a exam inado extensam ente no m éu livro The Logic o f Scientific Discovery. Kirk m e apresenta, corretam ente, como oponente do dogm a indutivista sus­ tentado por m uitas pessoas — a idéia de que a ciência tem como ponto de p artid a a observação, p a ra chegar, pela indução, a generalizações, e por fim a teorias. Seu erro consiste em acreditar que pelo fato de ser um oponente do indutivismo tenha de ser um discípulo do intuicionism o, e que m inha abordagem se deva à tentativa de defender um a filosofia da intuição — que ele cham a “filosofia tradicional” — contra o em pirism o m oderno. N a verdade, em bora não acredite na indução, não acredito tam bém na intuição. Aliás, os indutivistas tendem a pensar que a intuição é a única alternativa possível p ara a indução, mas nisso se equivocam : há outras aproxim ações, além dessas duas. A m inha poderia ser descrita apropriadam ente como um em pirism o crítico. No entan to , Kirk me atribui um intuicionism o quase cartesiano, ao des­ crever a situação da seguinte form a (pág. 319): “A filosofia do tipo tradicional presum ia que as verdades filosóficas tivessem conteúdo m etafísico e que pudessem ser apreendidas pela intuição — o que foi negado pelos positivistas do Círçtílo de Viena. Ao discordar destes últimos, Popper afirm ava sua crença em algo não m uito diferente da concepção clássica do papel da filosofia.” O que quer que se com ente a esse respeito, há seguram ente um a “filosofia tradicional” — a de Descartes e Spinoza, por exem plo — que considera a “intuição” como fonte do conhecim ento; mas sem pre me opus a e la .1 A p a rtir desse ponto, Kirk escreve “intuição”, no sen­ tido em que uso o term o aqui, várias vezes entre aspas, e outras tantas sem aspas — contudo, ao que parece, sempre sob a impressão (e certam ente criando essa im ­ pressão) de que me está citando, ao me atribuir idéias intuicionistas: idéias que nunca defendi. Com efeito, a única vez que a palavra “intuição” aparece no texto da m in h a conferência2, é usada num contexto ao mesmo tem po antiindutivista e antiintuicionalista. Falando sobre o caráter científico de um a teoria, disse (itálico

1 — Kirk cita, a páginas 322, L. Sc D. (pág. 32); contudo, lendo-se o que precede aquela minha re­ ferência a Bergson, veremos que a admissão de que toda descoberta contém um “elemento irracional” (além de outros elementos) — uma “intuição criadora” —, não é irracionalista ou intuicionista, no sen­ tido de qualquer “filosofia tradicional”. Vide também a introdução do presente volume. 2 ■— Ocorrem também referências casuais, em que a palavra é empregada sem sentido técnico, quase depreciativamente.

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acrescentado): “O mais im portante de um a teoria é sua capacidade de explicar, de enfrentar crítica e testes. A questão da origem, de como se chegou à teoria — seja por procedim ento in d u tivo *, como dizem alguns, ou pela intuição... tem pouco a ver com seu p adrão ou caráter científico.” Kirk cita essa passagem e a discute. Mas o fato indiscutível ali indicado — de que nem acredito na indução nem na intuição — não o im pede de me atribuir constantem ente um ponto de vista intuicionista. E o que faz, por exemplo, na pas­ sagem citada acim a; ou na pág. 324, ao exam inar a questão de saber se é aceitável m inha alegada “premissa de que a ciência tem seu ponto de p artid a em intuições” (em bora afirm e que ela tem seu ponto de p artid a em problem as); ou ainda na pág. 326, quando pergunta: “Devemos portanto inferir, com Popper, que a teoria de Tales deve ter-se baseado n um a intuição não-em pírica?” Mas o m eu ponto de vista é m uito diferente. N ão digo que a ciência parte de intuições, mas sim de problem as; que de m odo geral chegamos a um a nova teoria, tentando resolver problem as; que esses problem as aparecem nas tentativas que fazemos p ara com preender o m undo da nossa “experiência” (“experiência” que consiste em grande parte de expectativas ou teorias, e tam bém em p arte em co­ nhecim ento derivado da observação — em bora ache que não existe conhecim ento derivado da observação pura, sem mescla de teorias e de expectativas). Alguns desses problem as — dos mais interessantes — surgem da crítica consciente de teorias aceitas até então acriticam ente, ou da crítica consciente de um a teoria precedente. Um dos objetivos principais que procurei alcançar em m eu trabalho sobre os p ré -socráticos era a sugestão de que a teoria de A naxim andro pode p e r­ feitam ente ter-se originado num a tentativa de crítica às idéias de Tales; essa pode ter sido a origem da tradição racionalista, que identifico com a tradição da discus­ são crítica. Não acredito que essa concepção seja m uito sem elhante à filosofia in tu i­ cionista tradicional. Fiquei surpreso ao descobrir que Kirk sugere que o erro da m inha abordagem pudesse ser explicado como o equívoco de um filósofo espe­ culativo sem fam iliaridade suficiente com a prática científica, ao dizer, por exem ­ plo, na pág. 320: “Parece possível que sua concepção da ciência não resulte de um a observação objetiva do m odo como trabalham os cientistas, m as que tenha resul­ tado ela própria de um a aplicação inicial da teoria desenvolvida por Popper — um a “intuição” relacionada de perto com as dificuldades atuais da filosofia e com ­ p arad a posteriorm ente com o procedim ento científico real” .3 Seria de esperar que mesmo um leitor sem grande conhecim ento científico tivesse percebido que pelo menos alguns dos meus problem as se originaram no cam po das ciências físicas, e que m inha fam iliaridade com a prática e a investigação científicas não é in tei­ ram ente de segunda m ã o . O tipo de discussão crítica a que me refiro é, n aturalm ente, um a discussão em que a experiência desem penha um papel m uito im portante: apelam os constan­ tem ente p ara a observação e a experim entação como testes das nossas teorias. No entanto, Kirk chega ao extrem o (na pág. 332; itálico acrescentado) de m encionar

3 — Kirk coloca a palavra “intuição” entre aspas, sugerindo assim que eu esteja empregando “intuição” nesse sentido especial.

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“a tese de Popper de que todas as teorias científicas se baseiam inteiram ente em in ­ tuições Como a m aior p arte dos filósofos, estou acostum ado a ver meus pontos de vista distorcidos e caricaturizados. Tem os aí, porém , algo diferente de um a c a ­ ricatu ra (que sem pre se apoia num a sem elhança reconhecível com o original): n enhum dos m eus amigos, críticos e opositores, em piristas ou positivistas, jam ais me atacou por sustentar ou reviver um a epistemologia intuicionista; ao contrário, de m odo geral eles afirm am que m inha teoria do conhecim ento não se afasta de m odo significativo da que subscrevem. Do que segue veremos que Kirk apresenta várias conjecturas sobre o con­ teúdo da m inha filosofia e sua origem ; mas não parece ter consciência do caráter conjectural dessas construções. Ao contrário, acredita haver evidência textual a sustentá-las. De fato, diz que m inha “atitude de m etodologia científica... formou-se ao escrever o prefácio de 1958 de The Logic o f Scientific Discovery, num a reação contra as tentativas do Círculo de Viena de basear toda a verdade científica e fi­ losófica (52c) n a verificação experim ental” (pág. 319). Seria desnecessário com entar a descrição errônea da filosofia de W ittgenstein e do Círculo de Viena. Contudo, como se tra ta de um historiador da filosofia que tece com entários sobre o que es­ crevi, creio oportuno esvaziar um m ito histórico a esse respeito. No prefácio a que Kirk se refere, não disse um a só palavra sobre a origem do m eu ponto de vista e da m inha atitu d e. N a verdade, n ad a poderia ter escrito nas linhas indicadas por Kirk, p orque a realidade é bem diversa. Uma parte dessa estória, publicada pela p ri­ m eira vez em 1957, o Senhor Kirk poderia encontrar num a conferência que pronunciei em C am bridge, recolhida agora neste volume, sob o título “Ciência: C onjecturas e R efutações” ; nesse trabalho contei como se desenvolveu m inha atitu d e de reação contra as tentativas de M arx, Freud e Adler — nenhum dos quais foi positivista, ou pertenceu ao Círculo de Viena. Parece improvável que essa in ­ com preensão inexplicável por p arte do Senhor Kirk se deva à obscuridade heracliana do m eu estilo: de fato, a fazer um a com paração com o “R etorno aos, PréSocráticos” (pág. 318), descreve o mesmo prefácio de 1958, a que se refere a pas­ sagem acim a, qualificando-o de “form ulação mais lú cida”.

O utro exem plo da interpretação errônea de The Logic o f Scientific Dis­ covery é tam bém inexplicável — pelo menos p ara quem tenha lido aquele livro até a pág. 61 (para não m encionar as págs. 274 ou 276), onde me refiro ao problem a da verdade e à teoria da verdade de Alfred Tarski. Kirk declara que “Popper ab an d o n a o conceito da verdade científica absoluta” (pág. 320). Ele não parece ver que, quando afirm o que não temos condições de saber se até mesmo um a teoria científica bem corroborada é verdadeira ou não, estou na verdade presum indo um “conceito de verdade científica absoluta” — exatam ente como alguém que diz “N ão consegui alcançar o objetivo” aceita um “conceito absoluto de objetivo”, cuja existência é presum ida independentem ente de ser ele alcançado ou não. É surpreendente encontrar essas incompreensões tão óbvias, e citações ocasionalm ente equivocadas, em trab alh o escrito por um em inente estudioso, his­ toriad o r da filosofia. Elas tornam desnecessária um a defesa filosófica dos meus pontos de vista reais a respeito da ciência.

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II Posso voltar-me agora p a ra um ponto mais relevante — a história dos présocráticos. Vou dedicar-m e, nesta seção, a esclarecer dois dos erros de Kirk a res­ peito do m étodo histórico que utilizei e da m inha concepção do m étodo da his­ tória, de m odo geral. N a seção seguinte tocarei nas nossas divergências reais.

1) Kirk discute, na pág. 325, um a observação que fiz p ara confessar m inha falta de com petência no que se refere à análise lingüística dos textos. A passagem em questão reza: “ ... sinto-me totalm ente deslocado quando um entendido no as­ sunto se põe a discutir sobre quais as palavras ou expressões que H eráclito teria ou não u sado.” C om entando esse trecho, Kirk exclam a: “Como se as palavras ou expressões que H eráclito teria ou não usado não fossem relevantes p ara avaliar o que p e n ­ sava!” O ra, nunca disse que esse aspecto não era relevante. Confessei apenas que não havia estudado bastante os usos lingüísticos de H eráclito (e outros autores) parame sentir em condições de discutir o trabalho realizado nesse cam po por eruditos como, por exem plo, B urnet, Diels, R einhardt ou, mais recentem ente, Vlastos e o próprio Kirk. Mas Kirk prossegue, dizendo: “Essas ‘palavras e expressões’, com outros fragm entos verbatim dos próprios p ré -socráticos, constituem ‘os textos m ais antigos de que dispom os’, e não os relatos de Platão, Aristóteles e dos doxógrafos, como Popper parece acre d ita r... Deveria ser óbvio, mesmo p ara um ‘am ad o r’, que a reconstrução do pensam ento présocrático deve basear-se, ao mesmo tem po, na tradição mais recente e nos frag ­ m entos existentes.” Não posso im aginar como pude induzir Kirk a pensar que essas coisas, não são “óbvias” — mesmo p ara este am ador. Ele poderia ter observado a freqüência com que cito, traduzo e discuto aqueles fragm entos (m uito mais do que os relatos de Platão e de Aristóteles, em bora concordem os, agora, que estes tam bém são relevantes), tanto em “R etorno aos Pré-Socráticos ”, como em Open Society, onde examinei m uitos dos fragm entos existentes de H eráclito. Kirk faz referência a esse livro na pág. 324. Por que, então, interpreta aquela m inha frase, na pág. 325, como se manifestasse desinteresse por esses fragm entos, ou pelo seu status histórico? 2) P ara exem plificar o m odo insatisfatório como Kirk responde às m inhas críticas, cito agora a p arte final da sua resposta (pág. 339), em que diz: “Mais espantoso ainda, (Popper) aplica o critério da verdade possível como tese da historicidade de um a teoria. N a pág. 16, observa que “a sugestão de que testemos a historicidade das idéias de H eráclito ... pelos padrões do senso com um ” é um tanto surpreendente. Não será o caso de considerarm os o teste que propõe m uito mais surpreendente?” Mas o ponto decisivo é, n aturalm ente, que essa fi­ losofia inspirada (isto é, o hom em visto como um a cham a, etc.) é verdadeira, tanto q u an to sabem os.” A isso se pode responder simplesmente que nem disse, nem deixei im plicado que a verdade, ou a possível verdade de um a teoria, é um “teste” da sua histori-

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cidade. (O que se pode ver, a p a rtir das páginas 16 e 17 da-m inha conferência, e no segundo parág rafo da seção vii; incidentalm ente, terá Kirk esquecido sua tese de que abandonei a idéia da verdade?)' Por outro lado, ao pôr “teste” entre aspas, in ­ dicando assim que em preguei o term o nesse contexto, ou nesse sentido, Kirk claram ente faz u m a falsa atribuição. T u d o o que disse, ou deixei im plicado, é que a verdade da teoria sobre a m udança tradicíonalm ente (e apropriadam ente) atrib u íd a a H eráclito dem onstra que essa atribuição pelo menos dá sentido à fi­ losofia de H eráclito — mas não com preender o significado da filosofia atribuída a H eráclito por Kirk. Incidentalm ente, creio que um princípio im portante e até mesmo evidente d a historiografia e da interpretação das idéias e o de procurar sem pre a trib u ir a um pensador um a teoria interessante e verdadeira, em lugar de um a teoria falsa e sem interesse, desde, naturalm ente, que a evidência histórica a isso nos autorize. N ão se tra ta decerto de um critério, ou de um “teste”, m as, quem não o fizer provavelm ente não com preenderá um grande pensador como foi H e­ ráclito. III A divergência mais im portante entre Kirk e m im , no que diz respeito aos p ré -socráticos, tem a ver com a interpretação de H eráclito. Neste ponto acho que, talvez de form a inconsciente, Kirk quase aceitou meus dois argum entos, que dis­ cutirei adiante. De m odo geral, m inha aproxim ação a H eráclito pode ser descrita com as palavras de Karl R einhardt: “A história da filosofia é a história dos seus problem as. Para explicar H eráclito é preciso dizer prim eiro qual era seu p roblem a” .4 M inha resposta a esse desafio consistiu em dizer que o problem a de H eráclito era o problem a da m udança — o problem a geral contido na indagação: “Como é possível a m u d ança?” “Como é possível que um a coisa m ude sem perder sua identidade?”. (Vide “Retorno aos P ré-Socráticos”, seções viii e ix.) A credito que a grande m ensagem de H eráclito estava associada à descoberta desse problem a tão estim ulante — descoberta que levou à solução de Parniênides de que a m ud an ça é logicam ente impossível; e, mais tarde, à teoria de Lêucipo e de D em ócrito, relacionada com a prim eira, de que as coisas na verdade não m u d am intrinsecam ente, em bora m odifiquem a posição que ocupam no vazio. É a seguinte a solução p ara esse problem a que, seguindo Platão, Aristóteles e os fragm entos, atribui a H eráclito: não há n ada que seja im utável; o que vemos como u m a coisa na verdade é um processo. N a realidade, um a coisa m aterial se as­ sem elha a u m a cham a — que parece ser m aterial, m as não o é: é um processo, um fluxo; a m atéria transita por ela; é como um rio.

4 — K. Reinhardt, Parmênides, 2.a ed., 1959, pag. 220. Não posso mencionar esse livro sem manifes­ tar a enorme admiração que tenho por ele, embora me sinta levado, hesitantemente, a discordar da sua tese fundamental: de que Parmênides não só deu origem ao seu problema independentemente de Heráclito, mas que o precedeu, transmitindo-lhe aquele problema. Creio, porém, que Reinhardt apresenta razões muito poderosas para apoiar o ponto de vista de que um desses dois filósofos dependeu do outro. Poderia dizer, talvez, que minha tentativa de “localizar” o problema de Heráclito (por assim dizer) pode ser vista como um esforço para responder ao desafio de Reinhardt, reproduzido aqui. (Vide também a seção vi do cap. 2.)

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Assim, todas as coisas aparentem ente estáveis constituem fluxos; algumas delas — as que têm aparência de clara estabilidade — estão em fluxo invisível. Desta form a, a filosofia de H eráclito prep ara o cam inho p ara a distinção esta­ belecida por Parm ênides entre a aparência e a realidade. Para que tenha o aspecto de um a coisa estável, o processo (a realidade, por trás da coisa) precisa ser regular, sem elhante a um a lei — m edido. Assim, a lâm ­ pada cuja cham a é estável precisa suprim i-la com um a m edida definida de óleo. Não parece improvável que a idéia de um processo m edido, sem elhante a um a lei, tenha sido desenvolvida por H eráclito a p artir de sugestões dos milesianos — em es­ pecial de A naxim andro — a respeito do sentido das m udanças cósmicas periódicas (tais como a noite e o dia, possivelmente tam bém as m arés, as fases da lua, e es­ pecialm ente as estações do ano). Essas regularidades podem m uito bem ter con­ tribuído p ara a concepção de que a aparente estabilidade das coisas, e mesmo do cosmos, pode ser explicada como um processo “m ed id o ” — regido por lei. 1 ) 0 prim eiro dos dois pontos principais a respeito dos quais critiquei a in ­ terpretação de H eráclito por Kirk é o seguinte: Kirk sugeriu que H eráclito não acreditava que “um a pedra, ou um caldeirão de bronze... estivessem sempre so­ frendo alterações invisíveis”. (Seria contrário ao senso com um acred itar nisso). A longa discussão que Kirk dedica à m inha crítica (pág. 334) chega por fim à seguin­ te afirm ativa: “Neste ponto o argum ento se torna algo rarefeito. Concordo, no entanto, que é teoricam ente possível que certas m udanças invisíveis da nossa experiência — por exem plo, a oxidação gradual do ferro, citada por Popper — tenham im pres­ sionado H eráclito fortem ente, levando-o a afirm ar que tudo estivesse em processo de m udança, visível ou não. N ão creio, porém , que os fragm entos contenham nenhum a sugestão neste sentido” (pág. 336). N ão creio que o argum ento precise tornar-se rarefeito em nenhum m om en­ to; por outro lado, m uitos fragm entos sugerem a teoria que atribui a H eráclito. Mas, antes de citá-los, preciso reiterar um a pergunta que form ulei na m inha con­ ferência: se o fogo é por assim dizer o protótipo ou m odelo estrutural (ou “formaarq u étip o ”) da m atéria, como querem Kirk e Raven, que pode isso significar senão que as coisas m ateriais são como cham as — p ortanto, são processos? N ão quero dizer, n aturalm ente, que H eráclito usou um term o abstrato como “processo” , mas conjecturo que aplicou sua teoria não só à m atéria em abs­ trato, ou “à ordem do m undo como um todo”, como diz Kirk (pág. 335), mas ta m ­ bém a coisas concretas, isoladas; coisas que podem ser com paradas a cham as isoladas e concretas. Q uanto aos fragm entos, há, em prim eiro lugar, os que se referem ao sol. Parece-m e bastante claro que H eráclito considerava o sol um a coisa, ou talvez mesmo um a nova coisa, cada dia; veja-se, por exem plo, DK, B 6, onde se lê: 5 “O Sol é novo cada d ia ” — em bora isso talvez quisesse dizer apenas que, como um a lâm pada, ele volta a se acender cada dia. B 99 diz: “Se não houvesse o Sol, seria noite, a despeito de todas as outras estrelas.” (Vide tam bém B 26, e m inha obser­ 5 - Diels-Kranz. Vide B 51 m Vlastos, AJP 76, 1955, pág. 348.

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vação acim a a respeito de lâm padas e m edidas, com parando com B 94.) E B 125: “Se n ão for ag itad a, a cerveja se decom põe” — o m ovim ento, o processo, é indis­ pensável p a ra a existência d a coisa que, sem ele, deixa de existir. Diz B 51: “O que lu ta consigo mesm o se com prom ete consigo mesmo; h á um vínculo, um a harm onia, provocada pelo m ovim ento de reto m o d a m o la, pela tensão, com o acontece com o arco e com a lira ”. E a tensão, a força ativa, a lu ta inerente (um processo) que fazem com que o arco e a lira sejam o que são — só enquanto a tensão é m a n ­ tid a, en q u an to a oposição das suas partes se m antém eles continuam a ser o que são. É verdade que H eráclito am ava as generalizações e abstrações; prossegue, assim, p a ra u m a generalização im ediata que pode ter pretendido situar escala cós­ m ica, como em B 8: “Os opostos concordam ; da discordância resulta a m elhor h a r­ m o n ia” (vide tam bém B 10). Mas isso não significa que deixa de ver as coisas sim ­ ples — a lira, a lâm p ad a, a cham a, o rio (B 12, 49a): “São águas diferentes que ban h am os que en tram no mesmo rio ... Entram os e não entram os no mesmo rio. Somos e não somos” . C ontudo, antes de ser símbolos dos processos cósmicos, os rios são realidades concretas; além disso, são símbolos de coisas concretas — inclusive do hom em . E m ­ bora a afirm ativa “Somos e não somos” (que, incidentalm ente, Kirk e Raven preferem não atrib u ir a H eráclito) seja, num certo sentido, um a abstração e g e­ neralização m uito am pla, cósmica talvez, pretende ser tam bém um apelo m uito concreto a todos os homens: é um m em ento mori, como tantos outros fragm entos que nos relem bram que a vida se torna a m orte, e a m orte, a vida. (Por exemplo: B 88, 20, 21, 26, 27, 62, 77.) Se B 49a se aproxim a de u m a vasta generalização, B 90 se afasta da idéia cósmica e geral do fogo que consome (e m orre) p ara chegar a um ponto particular: “T u d o se troca pelo fogo e o fogo por tudo, como as m ercadorias são trocadas pelo ouro e este pelas m ercadorias” . Assim, q uando Kirk p ergunta (pág. 336): “Podemos dizer que a conclusão de que todas as coisas, separadam ente, estão em fluxo perm anente decorre de m odo necessário de qualq u er raciocínio seguido por H eráclito?”, a resposta é e n ­ faticam ente afirm ativa, na m edida em que podemos dizer de algum a coisa que “decorre necessariam ente” de um “raciocínio” , neste cam po perm eado pela conjec­ tu ra e a interpretação. Tom em os por exem plo B 126: “O que é frio se torna quente; o que é quente se to rn a frio; o que é úm ido se torna seco; e que é seco, úm ido”. E um a afirm ativa que pode perfeitam ente ter um significado cósmico, referir-se às estações, à m ud an ça cósmica. Mas, como duvidar de que se aplica a coisas concretas, in d i­ viduais, e as m udanças que sofrem — e, incidentalm ente, a nós mesmos e a nossas alm as —, sobretudo se querem os atrib u ir a H eráclito “senso com um ”, o que quer que isto signifique? 6

6 — Parece que Kirk não compreendeu minha crítica ao seu apelo ao “senso comum”. Critiquei o pon­ to de vista de que há, nessa matéria, um padrão claro de senso comum a que o historiador pudesse apelar; sugeri (mas apenas sugeri) que minha interpretação de Heráclito talvez lhe atribua tanto senso

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Mas as coisas não estão apenas em fluxo — estão em fluxo invisível. É o que lemos em B 88: “E sempre um a só e m esma coisa estar vivo e m orto; estar acordado e desperto; ser jovem e velho. Porque um a coisa se transform a na outra, e a outra volta a ser a p rim eira.” Assim, nossos filhos crescem — como sabemos, de m odo in ­ visível; mas os pais tam bém se transform am , de algum m odo, nos seus filhos (vide B 20, 21, 26, 62 e 90). Tom em os B 103: “N um círculo, o começo e o fim são o m esm o” (A identidade dos opostos — opostos que se fundem invisivelmente; vide tam bém B 54, 65, 67, 126). B 46 nos m ostra que H eráclito percebe que essas m udanças podem de fato 5er invisíveis e que, p o rtan to , sabe tam bém que a visão e a observação são e n ­ ganosas: “... a visão é enganosa” B 54: “A harm onia invisível é m ais forte do que a visível” (vide tam bém B 8 e 51) B 123: “A natureza am a ocultar-se” (vide tam bém B 56 e 113). Não tenho a m enor dúvida de que qualquer um desses fragm entos ou todos eles podem ser explicados de form a diversa. C ontudo, eles m e parecem d ar apoio àquilo que, de qualquer form a, é razoável supor — e que recebe apoio igualm ente de Platão e Aristóteles (em bora a evidência por p arte deste últim o se tenha tornado suspeita, especialm ente depois do trabalho im portante de H arold Cherniss, n in ­ guém acredita — H arold Cherniss menos ainda — que essa evidência perdeu total m ente o crédito, inclusive a que se apoia em Platão e nos “fragm entos”). 2) O últim o ponto da m inha resposta — m eu segundo e principal arg u m en ­ to a respeito de H eráclito — tem a ver com o sum ário da sua filosofia que encon­ tram os em Kirk e Raven (pág. 214), sob o título “Conclusão” . Citei um a parte dessa conclusão na m inha conferência, dizendo que achava “absu rd a” a doutrina ali atrib u íd a a H eráclito; e p ara deixar claro o que consi­ derava “absurdo”, usei ênfase. T rata-se da d o u trin a, alegadam ente heracliana, de que as m udanças naturais de todos os tipos (portanto, presum ivelm ente, tam bém os terrem otos e incêndios) são regulares e equilibradas; que a causa desse equilíbrio é o fogo, a substância com um das coisas, tam bém ch am ad a seu logos. N ão tenho objeções a que se atrib u a a H eráclito a concepção da m udança governada por leis, ou a doutrina, talvez mais duvidosa, de que a regra, ou re ­ gularidade, é o logos das coisas; ou ainda a idéia de que o fogo é a substância com um das coisas. P areciam -me contudo absurdas as doutrinas: a) de que todas as m udanças (m udanças de todos os tipos) fossem “equilibradas”, no mesmo sentido em que m uitos processos im portantes podem ser assim qualificados: o fogo de um a lâm pada ou a sucessão das estações; b) de que o fogo fosse a causa desse equilíbrio; e c) de que a substância com um das coisas — o fogo — fosse tam bém conhecida como o seu logos.

comum quanto a de Kirk, talvez mais. Sugeri igualmente que Heráclito seria a última pessoa cujas afir­ mativas devessem ser avaliadas por padrões de senso comum que não fossem os seus próprios. A “gutta cavat” de Ovídio — uma mudança invisível — não é também senso comum? Alan Musgrave chamou-me a atenção para um complicado argumento relacionado com a mudança invisível que podemos encontrar em Lucrécio — De Rer. Nat., i, 265-321 —, que pode ter sido a fonte de Ovídio.

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Além disso, não podia enco n trar vestígio dessas doutrinas nos fragm entos de H eráclito ou em q u alq u er das fontes antigas, como Platão e Aristóteles. O nde, então, a fonte dessa “conclusão” — isto é, a fonte dos três pontos acim a indicados, que expressam a visão geral de Kirk sobre a filosofia de H eráclito, e que dão cor tão forte à sua in terpretação dos fragmentos? R elendo o capítulo de Kirk e Raven sobre H eráclito só pude localizar um a pista: as d o utrinas às quais objeto aparecem form uladas em prim eiro lugar na pág. 200, com referência ao fragm ento que classificam sob o núm ero 223. O ra, trata-se do fragm ento DK, B 64: “É o raio que dirige todas as coisas”. Por que razão esse fragm ento levaria Kirk a atrib u ir a H eráclito as doutrinas em questão? N ão bastará a explicação de que o raio era o instrum ento de Zeiis? De fato, de acordo com H eráclito, DK B 32 = KR 231: “U m a coisa — a única coisa sábia — exige e não exige ser conhecida pelo nom e de Zeus” . (Parece explicação suficiente p a ra DK B 64. N ão ê necessário associar esse fragm ento com DK B 41 = KR 230, o que só poderia reforçar m inha in terp retação.) Nas páginas 200 e 434 encontram os a interpretação de Kirk e Raven, que é mais elaborada: o raio é identificado com o fogo; atribui-se-lhe um a “capacidade de d ireção” ; sugere-se que o fogo “reflete a divindade” ; por fim , propõe-se sua identificação com o logos. Q ual é a fonte desta in terpretação algo excessiva de um fragm ento tão curto e simples? N ão pude encontrá-la entre as fontes antigas — os próprios fragm entos, Platão ou Aristóteles. O único vestígio que localizei foi um a interpretação de H ipólito — Kirk e Raven o descrevem, na pág. 2 do seu livro, como “um teólogo de R om a, do terceiro século d a nossa e ra ” (quase seis séculos depois de Platão) — que “atacou as heresias cristãs, acusando-as de reviver a filosofia do paganism o” . Ao que parece, H ipólito, que era um bispo cism ático, não só acusava a heresia noética de rep resentar “um renascim ento da teoria de H eráclito” , mas contribui tam bém , com seus ataques, p ara a respectiva elim inação. H ipólito é a fonte tam bém de B 64, um belo fragm ento sobre o raio; ele o cita, aparen tem en te, porque quer interpretá-lo como estando associado in tim a­ m ente à heresia noética. Nessa tentativa, identifica o ráio com o fogo, com o fogo divino ou eterno; atribui-lhe um a “capacidade de direção” providencial (como Kirk e Raven) e com prudência ou razão (o logos de Kirk e Raven); por fim, afirm a que o fogo de H eráclito era “a causa da econom ia cósm ica”, ou do “governo econô­ m ico” ou “d ireção” que m antém o equilíbrio do m undo. (Kirk e Raven dizem que o fogo seria “a causa desse equilíbrio”. ) ?

7 — A terceira dessas identificações de Hipólito poderia de fato encontrar base textual. Num artigo publicado em Hermes, 77, 1942, Karl Reinhardt conjectura que havia um fragmento, aludido por Hipólito, falando em “pur phronimon” ou “pur Phronoun”. Não tenho condições de avaliar os argu­ mentos de Reinhardt, embora não me pareçam muito convincentes. Contudo, esse alegado fragmento se ajustaria bem à minha interpretação: como acredito que Heráclito queria dizer que nós — nossas al­ mas — são chamas, as expressões “fogo pensante” ou “fogo com um processo mental” seriam perfei­ tamente aceitáveis. Mas só uma interpretação cristã — ou cristã herética — falaria em “fogo providen-

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Assim, a doutrina que considerei inaceitável atrib u ir a H eráclito parece ser a interpretação que dá Kirk a o u tra interpretação através da qual H ipólito pode ter tentado dem onstrar o caráter semicristão dos ensinam entos de H eráclito — pos­ sivelmente, como sugere Karl R einhardt, p ara lidar com certas doutrinas heréticas, noéticas, como a de que o fogo tem poderes divinos ou providenciais. Em bora Hipólito possa ser um a boa fonte, quando cita H eráclito, está claro que não pode ser levado m uito a sério quando interpreta H eráclito. Considerando o caráter duvidoso das fontes usadas, não surpreende que não tivesse podido com preender o sum ário final ou “conclusão” de Kirk e Raven. C on­ tinuo a achar que a doutrina ali atribuída a H eráclito é absurda — especialm ente as palavras que salientei em itálico. Tenho a certeza, por outro lado, de que esta m inha reação não é isolada. Contudo, referindo-se à passagem da m inha conferên­ cia onde exam ino sua “conclusão”, considerando-a “ab su rd a”, Kirk escreve (na pág. 338): “Popper está sozinho quando afirm a que essa interpretação de H eráclito é ‘absu rd a’.’ .No entanto, se exam inarm os cuidadosam ente sua própria apresen­ tação, veremos que ele quase me dá razão, pois deixa de repetir quase todas as palavras a que dei ênfase, por me parecerem absurdas (além das palavras “m u d a n ­ ças de todos os tipos”); om ite, em especial, a afirm ativa de que a causa desse equilíbrio é o fo g o (bem como, “que f o i tam bém cham ado de seu logos”.) Na pág. 338, Kirk sugere agora que esta é “a interpretação de H eráclito” que eu havia qualificado de absurda. Parece concordar, por exem plo, com a in te r­ pretação dada em Open Society, onde sugeri que o logos pode ser a lei da m u d a n ­ ça. Além disso, em bora objete fortem ente a que se descreva o fogo (como o fazem Kirk e Raven, e tam bém H ipólito) como causa do equilíbrio do m undo, não rejeito um a interpretação que ponha um a certa ênfase no equilíbrio, ou na m u ­ dança equilibrada. De fato, se as coisas m ateriais, aparentem ente estáveis, são na realidade processos como â cham a, precisam queim ar vagarosa e sistem aticam ente. Como a cham a de um a lâm pada, ou à do sol, elas “não ultrapassarão sua m edida” — não levitarão sem controle, como um a conflagração. Vale lem brar que é um processo, um m ovim ento que im pede a decomposição da cerveja, sua separação e desintegração; não é qualquer tipo de movim ento que tem tal efeito, mas só, por exemplo, os movimentos circulares, medidos. P ortanto, é a m edida que pode ser qualificada de causa do equilíbrio do fogo, da cham a e das coisas — desses proces­ sos e m udanças que parecem estáveis, que são responsáveis pela preservação das coisas. A m edida, a regra, a m udança de acordo com leis, o logos (e não o fogo) são a causa do equilíbrio — especialm ente o equilíbrio do fogo sob controle, como no caso do sol, da lua e da nossa alm a. Está claro que, de acordo com este ponto de vista, a m aior p arte da m udan ça eq uilibrada precisa ser invisível: deve ser inferida pela razão, pela reconstrução do processo que faz com que as coisas aconteçam (talvez por isso o term o logos.)

ciai”. Quanto à “causa” de Hipólito, Reinhardt diz explicitamente que não se trata de uma noção heracliana. O fogo como causa do equilíbrio do mundo só aparecería sob a forma de conflagração no Dia do Julgamento Final, como um equilíbrio de justiça. Mas Kirk não aceita que tal conflagração sejâ parte dos ensinamentos de Heráclito.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Este pode ter sido perfeitam ente o cam inho que levou H eráclito à sua nova epistem ologia, com a distinção im plícita entre realidade e aparência, e a descon­ fiança com relação à experiência sensorial. Foi o que (juntam ente com as dúvidas de X enófanes) levou possivelmente Parm ênides, mais tarde, à com paração da “ver­ dade com pleta” (o logos invariante) com a opinião ilusória, o pensam ento falível dos m ortais. Surgiu assim, pela prim eira vez, o contraste claro entre um intelec­ tualism o ou racionalism o (sustentado por Parm ênides) e um em piricism o ou sensorialismo (que ele atacou, mas que foi o prim eiro a form ular). Com efeito, Parm ênides ensinou (B 6:5) que a horda dos m ortais falíveis, sem pre dúplices a respeito das coisas, com idéias errantes (B 6:6) no seu coração, consideram o ser e o não-ser como a m esm a coisa, e, ao mesmo tem po, como coisas diversas. C o n tra eles dizia o filósofo (B 7): “N unca acontecerá que as coisas inexistentes existam . Deves evitar percorrer esse cam inho: não deixa que a experiência ou o hábito estabelecido im ponha li­ m ites à tu a busca. N ão perm ite que teu òlho vendado, teu ouvido surdo ou mesmo tu a língua vagueiem por essa estrada. Que só a razão decida a respeito do a rg u ­ m ento, tantas vezes contestado, que te expus p ara m ostrar onde está a falsidade.” Esse o intelectualism o e o racionalism o de Parm ênides, que contrasta com a ênfase no sentido dos pobres e falíveis m ortais — que pensam , errônea e conven­ cionalm ente, que existe luz e noite, calor e frio; que essa com binação determ ina o estado físico ou ‘n a tu reza ” dos seus órgãos sensoriais ou do seu corpo; natureza que os transform a em pensam ento. Esta doutrin a de que não há nada no intelecto que se equivoca (no “pensam ento equivocado” ou “errôneo” de B 6:6) que não tenha estado previam ente nos órgãos sensoriais equivocados é citada por Parm ênides da seguinte form a (B 16): “O conhecim ento surge nos hom ens, em qualquer m om ento, como a com ­ binação dos órgãos sensoriais, que m uito erram . N a verdade, essas duas coisas são a m esm a: o que pensa, e a com binação que representa a natureza dos órgãos de p e r­ cepção. Q que prevalece nessa m istura se transform a em pensam ento, em todos os hom ens.” ® Essa teoria anti-sensorialista do conhecim ento logo depois se tornou um a teoria pró-sensorialista p raticam ente sem q ualquer alteração, exaltando os órgãos sensoriais (desprezados por Parm ênides) como fontes mais ou menos autorizadas do conhecim ento. O que contei aqui reflete, até certo ponto, um a idealização; por outro lado, é conjectural. Procurei apenas m ostrar como as teorias e os problem as lógicos e epistemológicos podem ter surgido no curso de um a discussão crítica sobre teorias e problem as cosmológicos. 8 — (Nota do tradutor) Em inglês: For as, at any one time, is the much — erring senseorgans mixture,/So does knowledge appear in men. For these two are the same thing:/That which thinks, and the mixture which makes up the sense-organs nature./ What in this mixture prevails beccomes thought, in each man and all”. O significado desse passagem e a minha tradução (que deve ser comparada com Empédocles B 108) são examinados mais extensamente no apêndice 8, no fim deste livro — especialmente nas seções 6-10.

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Que algum a coisa, dentro dessas linhas gerais ten h a de fato acontecido parece-m e mais do que um a simples conjectura.

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6. N ota sobre Berkeley — um Precursor de M ach e de Einstein* “T in h a somente um a idéia m uito vaga a respeito do Bispo Berkeley, mas ficava-lhe grato por nos ter defendido de um a premissa inicial incontestável.” Sam uel Butler I O objetivo desta nota é relacionar as idéias de Berkeley, no cam po da fi­ losofia da física, que têm um a aparência m arcadam ente m oderna. São quase todas idéias redescobertas e reintroduzidas no debate sobre a física contem porânea por Ernst M ach e H einrich Hertz, bem como por outros filósofos e físicos, alguns deles influenciados por M ach — como B ertrand Russell, Philip Frank, R ichard von Mises, Moritz Schlick*1 , W erner Heisenberg, etc. Preciso explicar antes de mais nada que discordo dessas idéias positivistas. N a verdade, adm iro Berkeley, em bora não concorde com ele. Mas o objetivo desta nota não é criticar Berkeley — essa crítica estará lim itada a algum as observações, curtas e incom pletas, na seção v.2 Berkeley escreveu um único livro (De M o tu ) dedicado exclusivamente à filosofia da ciência física; mas há passagens em m uitos dos seus escritos em que idéias sem elhantes e suplem entares são desenvolvidas.3 * Publicada pela primeira vez no The British Journal fo r the Philosophy of Science, 4, 1953. 1 — Sob a influência de Wittgenstein, Schlick propôs uma interpretação instrumentalista das leis universais que equivalia praticamente às “hipóteses matemáticas” de Berkeley; vide Naturwissenschaften, 19, 1931, págs. 151 e 156. 2 — Desenvolvi melhor essas idéias no cap. 3, especialmente na seção 4. 3 — Além de DM (De Motu, 1721), citarei TV (Essay Towards a New Theory of Vision, 1709); Pr (Treatise Concerning the Principles o f Human Knowledge, 1710); HP (Three Dialogues Between Hylas and Philonous, 1713); Ale (Alciphron, 1732); An (The Analyst, 1734); e S (Siris, 1744). Tanto quanto eu saiba, não há uma tradução inglesa de DM que elucide o que Berkeley pretendia dizer; o editor da mais recente edição das suas Obras se dá ao trabalho de depreciar esse ensaio, altamente original e sob muitos aspectos singular.

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E ncontrarem os o núcleo das idéias de Berkeley sobre a filosofia da ciência no seu Criticism o f N ew ton ’s Dynamics (a m atem ática de Newton foi criticada por Berkely em The Analyst e suas duas seqüelas). Berkeley sentia grande adm iração por Newton, percebendo, sem dúvida, que não podería encontrar objeto de crítica mais digno. II As vinte e um a teses que seguem nem sem pre estão enunciadas na term i­ nologia de Berkeley; por outro lado, sua seqüência não reflete a ordem em que aparecem nos escritos de Berkeley, ou em que poderíam ser apresentadas num tratam en to sistem ático das idéias do filósofo. P ara com eçar com um a epígrafe, cito o próprio Berkeley (DM, 29). 1) “P ronunciar um a palavra e n ad a querer dizer com ela é um ato indigno de um filósofo.” 2) O significado de um a palavra é a idéia ou qualidade sensorial com a qual ela está associada (que nom eia). Portanto, as expressões “espaço absoluto” e “tem po absoluto” não têm q u alquer sentido em pírico (ou operacional); por isso a doutrina de Newton sobre o espaço absoluto e o tem po absoluto deve ser rejeitada enquanto teoria física. (Cf. Pr. 97, 99, 116; DM, 53, 55, 62; An, 50, Q u. 8; S, 271: A propósito do espaço absoluto, esse fantasm a dos filósofos da m ecânica e da geo­ m etria, b astará observar que não é percebido pelos nossos sentidos ou provado pela nossa ra z ã o ...” ; DM, 64: “ ... p a ra ... os fins dos filósofos da m ecân ica... ba6ta substituir seu “espaço absoluto” por um espaço relativo, determ inado pelos fir­ m am entos das estrelas fixas... O m ovim ento e o repouso definidos por esse espaço relativo pode ser usado com odam ente em lugar dos absolutos...”.) 3) O mesmo se aplica à expressão “m ovim ento absoluto”. O princípio de que todo m ovim ento é relativo pode ser dem onstrado apelando p ara o significado de “m ovim ento” ou p a ra argum entos operacionalistas. (Cf. Pr 58, 112, 115 “P ara dizer que um corpo ‘se m oveu’ é necessário... que ele m ude sua distância ou si­ tuação com respeito a algum outro c o rp o ...” ; DM, 63: “N enhum movim ento pode ser percebido, ou m edido, exceto com a ajuda de coisas sensíveis” ; DM, 62: “... o m ovim ento de um a pedra num a funda, ou da água num recipiente que é agitado, não pode ser qualificado verdadeiram ente de m ovim ento circu lar... pelos que definem [o m ovim ento] com a ajuda do espaço abso lu to ...”.) 4) As palavras “gravidade” e “força” são em pregadas erroneam ente na física; introduzir força como a causa ou “princípio” do movim ento (ou de um a aceleração) é introduzir um a “qualidade o culta” (DM, 1-4, e em especial 5, 10, 11, 17, 22, 28; Alc vii, 9). Com mais precisão, deveríamos dizer “um a substância m etafísica o cu lta” pois o term o “qualidade oculta” é em pregado erroneam ente, um a vez que “q u alid ad e” deveria ser reservado, mais apropriadam ente, p ara as qualidades observáveis ou observadas — qualidades atribuídas aos nossos sentidos e que, como é n atu ral, nunca são “ocultas” . (An, 50, Qu. 9; e em especial DM, 6: “Está claro, p o rtan to , que é inútil presum ir que o princípio do m ovim ento é a gravidade ou a força — como podería ser esse princípio conhecido mais claram ente

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UM PRECURSOR DE MACH E DE EINSTEIN

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m ediante (sua identificação com) o que é cham ado de m odo m ais geral de qu a ­ lidade oculta? O que é em si mesmo oculto nada pode explicar; sem m encionar o fato de que um a causa desconhecida podería ser cham ada mais propriam ente de substância (metafísica) do que de qualidade.) 5) Tendo em vista essas considerações, a teoria de Newton não pode ser aceita como um a explicação genuinam ente causal, isto é, baseada em causas ver­ dadeiram ente naturais. O ponto de vista de que a gravidade explica causalm ente o m ovim ento dos corpos (dos planetas, dos corpos em queda livre, etc.), ou de que Newton descobriu que a gravidade ou a atração é um a “qualidade essencial” (Pr, 106), cuja inerência na essência ou natureza dos corpos explica as leis dos seus movimentos, deve ser rejeitado (S, 234; vide tam bém S, 246, últim a frase). Mas é preciso adm itir que a teoria de N ew ton leva a resultados corretos (DM, 39, 41). Para com preender isso, “tem a m aior im p o rtân cia... distinguir entre hipóteses m atem áticas e as naturezas (ou essências) das coisas 4 ... Se observarmos tal distin­ ção, todos os famosos teorem as da filosofia m ecânica q u e... tornam possível sujeitar o sistema do m undo (isto é, o sistema solar) a cálculos hum anos pode ser preser­ vado; ao mesmo tem po, o estudo do movimento ficará livre de mil trivialidades e sutilezas sem sentido e de idéias abstratas” [desprovidas de significação] (DM, 66). 6) N a física (filosofia m ecânica), não há explicação causal (cf. S, 231), i. e., explicação baseada na descoberta da natureza oculta ou essência das coisas (Pr, 25). “... as verdadeiras causas efetivas do m ovim ento... não pertencem , de m odo algum , ao cam po da m ecânica ou da ciência experim ental, e nem facilitam a com ­ preensão d estes...” {DM, 41). 7) A razão para isso é que as coisas físicas não têm um a “natureza verda­ deira ou real” , secreta ou oculta; um a “essência real” , ou “qualidades internas” {Pr, 101). 8) Não há nada físico por trás dos corpos físicos. N ão existe um a realidade física oculta. Por assim dizer, tudo é superfície; os corpos físicos n ad a são além das suas qualidades. Sua aparência é sua realidade {Pr, 87,88). 9) A função do cientista (do “filósofo m ecânico”) é descobrir “por experiên­ cia e pela razão” {S, 234), as leis da natureza, ou seja, as regularidades e unifor­ m idades dos fenômenos naturais, 10) As leis da natureza são, de fato, regularidades, sim ilaridades ou a n a ­ logias (Pr, 105) nos movimentos dos corpos físicos que percebem os {S, 234) “ ... es­ tes, aprendem os m ediante a experiência” {Pr, 30); eles são observados, ou inferidos a p artir de observações (Pr, 30, 62; S, 228, 264). 11) “Uma vez form adas as leis da natureza, a tarefa do filósofo é m ostrar que cada fenôm eno está em conform idade com elas, isto é, que seguem os p rin ­ cípios form ados.” {DM, 37; cf. Pr, 107; e S, 231: “sendo sua tarefa (i.e., a dos “filósofos m ecânicos”)... a de explicar fenômenos particulares reduzindo-os a essas norm as gerais e m ostrando sua conform idade com elas.”) 4 — A propósito da equivalência das “naturezas”e das “essências” vide Open Society, cap. 5, seçáo vi.

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12) Esse processo pode ser denom inado, se quisermos, de “explicação” (e mesmo “explicação causal”), desde que se faça um a distinção clara entre ele e a ex­ plicação verdadeiram ente causal (ou m etafísica), baseada na natureza ou essência verdadeira das coisas. S, 231; DM, 37: “A explicação m ecânica de um fenôm eno deve reduzi-lo aos princípios mais simples e universais (i.e. “as leis prim árias do movim ento provadas pela e x p eriên cia...” DM, 36) e provar, m ediante raciocínio preciso, que elas estão de acordo com os fenômenos e ligadas a eles... Isso significa que deve explicar e solucionar o fenôm eno, designando sua causa. ..” Essa te r­ m inologia é admissível (cf. DM , 71), mas não nos deve enganar. Devemos sem pre distinguir (cf. DM, 72) nitidam ente entre a explicação “essencialista”5, que apela para a natureza das coisas, e a explicação “descritiva”, que apela para um a lei da natureza, i. e. p a ra a descrição de um a regularidade observada. Apenas o últim o tipo de explicação é admissível na ciência física. 13) Devemos âgora distinguir um terceiro tipo de explicação — a que apela para hipóteses m atem áticas. A hipótese m atem ática pode ser descrita como um procedim ento p a ra calcular certos resultados. E um m ero form alism o, um u te n ­ sílio ou instrum ento m atem ático, com parável a um a m áquina de calcular. Pode-se julgá-la apenas por sua eficiência. Pode ser mais do que simplesm ente admissível; pode ser útil e adm irável, no entanto não é ciência: em bora produza resultados corretos, não passa de um truque, um artifício {An, 50, Qu. 35). C om parada à ex­ plicação pelas essências (que, na m ecânica, é simplesm ente falsa) e à explicação pelas leis da natureza (verdadeira, desde que as leis tenham sido “provadas pela ex­ periência”), a questão da veracidade de um a hipótese m atem ática não surge — só nos interessa sua utilidade como instrum ento de cálculo. 14) Os princípios da teoria de Newton que foram “provados pela experiên­ cia” — os princípios das leis de m ovim ento que descrevem simplesmente as re ­ gularidades observáveis nos movimentos dos corpos — são verdadeiros. Mas a parte da teoria que envolve os conceitos criticados acim a — espaço absoluto, movimento absoluto, força, atração, gravitação — não é verdadeira, pois consiste em , “h i­ póteses m atem áticas” . Se funcionam corretam ente, contudo, não devem ser re ­ jeitadas (é o caso da gravitação, da força e da atração). As hipóteses do espaço a b ­ soluto e do m ovim ento absoluto devem ser afastadas, pois não funcionam corre­ tam ente (devem ser substituídas pelo sistema de estrelas fixas, e o movimento relativo). “T erm os como “força” , “gravitação” e “atração ”6 são úteis p ara racio ­ cinar e fazer cálculos sobre o m ovim ento e os corpos em m ovim ento, mas nao nos ajudam a com preender a própria natureza simples do m ovim ento, nem servem para designar tan tas qualidades distintas... No que concerne à atração, está claro que Newton não a introduziu como um a qualidade física verdadeira, mas m eram e n te com o u m a h ip ó te se m a te m á tic a ” {D M } 17) . 7 P ropriam ente com preendida, a hipótese m atem ática não afirm a a existência de n ad a a que corresponda na natureza. Não há correspondência com os termos 5 — 0 termo “essencialista” (e “essencialismo”) não é de Berkeley; foi introduzido por mim em The Poverty o f Historicism e The Open Society and its Enemies. 6 — A ênfase do original em latim aparece aqui como aspas. 7 — Essa era, em linhas gerais, a opinião do próprio Newton; cf. cartas de Newton a Bentley, 17 de janeiro, e especialmente 25 de fevereiro de 1692 3; e a seção 3 do cap. 3, acima.

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com os quais opera, nem com as dependências funcionais que aparentem ente afir­ m a. Ela erige, por assim dizer, um m undo m atem ático fictício por trás do m undo das aparências, mas sem afirm ar que esse m undo existe. “Mas tudo que é dito sobre as forças contidas nos corpos, seja de atração ou repulsão, deve ser considerado apenas como um a hipótese m atem ática, e não como algo que realm ente existe na natu reza” (S, 234; cf. DM, 18, 39 e especialm ente Alc, vii, 9, A n, 50, Qu. 35). Afirma-se apenas que conseqüências corretas podem ser derivadas de certas su ­ posições. Mas a hipótese m atem ática pode facilm ente ser m al in terp retad a, como se afirmasse m uito mais — como se descrevesse um m undo real oculto pelo m undo das aparências. Mas tal m undo não poderia ser descrito, pois a descrição seria necessariam ente sem sentido. 16) Percebe-se, assim, que as mesmas aparências podem ser calculadas com êxito a p artir de mais de um a hipótese m atem ática, e que duas hipóteses m a te ­ m áticas que fornecem os mesmos resultados em relação às aparências calculadas podem não só discordar, mas tam bém contradizer-se (especialm ente se m al in te r­ pretadas, como a descrição de um m undo de essências oculto pelo m undo das aparências); não obstante, pode não haver escolha entre elas. “Os m ais sábios dos homens proferem ... diversidade de doutrinas, e até mesmo doutrinas opostas; suas conclusões, no entanto (i. e. os resultados calculados) atingem a verdade... Newton e Torricelli parecem discordar entre si... mas ambos dão p a ra isso boas explicações. Todas as forças atribuídas aos corpos, de fato, não passam de hipóteses m a te ­ m áticas...; o mesmo fato, portanto, pode ser explicado de m aneiras diferentes.” {DM, 67.) 17) A análise da teoria de Newton produz, p o rtanto, os seguintes resul­ tados: Devemos distinguir: a) Observações de coisas concretas e particulares. b) As leis da natureza, que são observações de regularidades provadas {“com probatae”, DM, 36; que deve significar “su portado” ou “corroborado”; vide DM, 31) por experim entos, ou descobertas por um a “observação diligente dos fenôm enos” {Pr, 107). c) As hipóteses m atem áticas que não se baseiam na observação, mas cujas conseqüências concordam com eles (ou “respeitam os fenôm enos”, como diziam os platônicos). d) As explicações causais essencialistas ou metafísicas que não pertencem à ciência física. Dessas quatro categorias, a) e b) se baseiam na observação e podem ser verificadas pela experiência; c) não se baseia na observação e tem im portância apenas instrum ental — podendo haver, p o rtanto, m ais do que um instrum ento utilizável (cf. 16), acim a; d) é sabidam ente falso sem pre que constrói um m undo invisível de essências por trás do m undo das aparências. Em conseqüência, sabe-se que c) é falso sempre que interpretado no sentido de d).

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18) Esses resultados se aplicam claram ente a outros casos, além da teoria new toniana — por exem plo, ao atom ism o (teoria corpuscular). N a m edida em que essa teoria p rocura explicar o m undo das aparências, construindo um m undo in ­ visível de “essências íntim as’' (Pr. 102), por trás do m undo aparente, precisa ser rejeitada (cf. Pr, 50; An, 50, Qu, 56, S, 232, 235).

que cham ei aqui de “navalha de Berkeley”, na m edida em que nos perm ite não só rejeitar certos “elementos metafísicos”, mas tam bém distinguir, em alguns casos, e n ­ tre várias hipóteses diferentes e com petitivas (do tipo que Berkeley cham ou de “m atem áticas”), com respeito à sua sim plicidade (Cf. 16), acim a. H á tam bém um a notável sem elhança com os Princípios da M ecânica, de Herz (1894), em que ele procurou elim inar o conceito de “força”, bem como com o Tractatus de W ittgenstein.

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19) O trab alh o do cientista leva a algo que pode ser cham ado de< “expli­ cação”, mas que raram en te tem grande im portância p ara com preender a coisa ex­ plicada, já que a explicação a que se pode chegar não se fu ndam enta num a p e ­ netração na natureza das coisas, em bora tenha im portância p rática. Ela nos p e r­ m ite aplicações e previsões, “ ...leis naturais ou movimentos nos orientam sobre como agir, nos ensinam o que podemos esperar” (S, 234; cf. Pr, 62). A previsão se baseia sim plesm ente na seqüência regular — não na seqüência causal, pelo menos não no sentido essencialista. Uma escuridão inesperada, du ran te o dia, pode ser um indicador “prognóstico” , um “sinal de alarm e” , a “m a rc a ” de tem pestade que se aproxim a; ninguém a in terp reta como causa do m au tem po. Todas as reg u lari­ dades observadas têm essa natureza, em bora os “prognósticos” ou “sinais” sejam o r­ dinariam en te confundidos com as causas genuínas (TV, 147; Pr, 44, 65, 108; S, 252-4; Alc, iv, 14,15). 20) Um resultado prático de caráter geral dessa análise da física — que proponho ch am ar de “navalha de Berkeley” — perm ite elim inar a priori d a ciência física todas as explicações essencialistas; se elas têm um conteúdo m atem ático e preditivo, podem ser adm itidas qua hipóteses m atem áticas (elim inando-se sua in ­ terpretação essencialista). Caso contrário, podem ser rejeitadas inteiram ente. Essa “n av alh a” aliás, é mais afiada que a de O ckham : todas as entidades são rejeitadas, exceto as que são percebidas. 21) O argum ento definitivo em favor desse ponto de vista, o motivo por que as substâncias e qualidades ocultas, as forças físicas, estruturas de corpúsculos, es­ paço e m ovim ento absolutos, etc., são elim inados, é o seguinte: sabemos que não há entidades como estas porque sabemos que os termos que alegadam ente os* desig­ nam não têm sentido. Para ter um sentido, um a palavra precisa representar um a “id éia ”, isto é, um a percepção, ou a m em ória de um a percepção; na term inologia de H um e, precisa representar um a impressão ou seu reflexo na nossa m em ória (pode representar tam bém um a “noção” , como Deus; mas as palavras que p e rte n ­ cem à ciência física não podem representar “noções”). O ra, as palavras que estão em questão aqui não representam idéias: “Aqueles que afirm am que a força ativa, a ação e o princípio do m ovim ento são na realidade inerentes aos corpos m antêm um a d o u trin a que não se baseia em q u alquer experiência, apoiando-a com termos genéricos e obscuros; p o rtan to não com preendem , eles próprios, o que querem dizer” (DM, 31). I ll Todos os que lêem esta lista de vinte e um a teses devem ficar impressionados com o seu aspecto m oderno: elas se assemelham, surpreendentem ente (em p a rti­ cular no concernente à crítica de Newton), à filosofia da física que Ernst M ach e n ­ sinou d u ran te m uitos anos, convicto de que era nova e revolucionária — no que era seguido por exem plo, por Joseph Petzold; e que exerceu enorm e influência na física m oderna, especialm ente na teoria da relatividade. H á só um a diferença: o “princípio da econom ia do pensam ento” (D enkoekonom ine) de M ach vai além do

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O mais notável talvez seja o fato de que tanto Berkeley quanto M ach — a m ­ bos grandes adm iradores de Newton — criticam as idéias de tem po, espaço e m ovim ento absolutos de form a m uito sem elhante. A crítica de M ach, exatam ente como a de Berkeley, culm ina na sugestão de que todos os argum entos em favor do espaço absoluto new toniano (como o pêndulo de Foucault, o balde de água que gira, o efeito da força centrífuga sobre a form a da T e rra ) fracassam porque esses movimentos são relativos ao sistema de estrelas fixas. Para dem onstrar a im portância dessa antecipação da crítica de M ach, citaria duas passagens — um a do próprio M ach, a o u tra de Einstein. M ach es­ creveu (na 7 .a edição da M ecânica, 1912, Cap. ii, seção 6, § 11) a propósito da for-* m a como foi recebida sua crítica do conceito de m ovim ento absoluto, proposto em edições anteriores da M ecânica: “H á trin ta anos, considerava-se geralm ente m uito estranha a idéia de que a noção de m ovim ento absoluto fosse desprovida de sentido e de conteúdo em pírico, e cientificam ente inútil. Hoje, este ponto de vista é susten­ tado por muitos pesquisadores reputados” . E, no necrológio de M ach (“N achruf au f M ach”, Physikalische Zeitschr., 1916), referindo-se a essa opinião de M ach, Einstein afirm ou: “Não é im provável que ele tivesse descoberto a teoria da rela­ tividade se o problem a da constância da velocidade da luz tivesse agitado os físicos, num a época em que sua m ente era ainda jovem ” . A observação de Einstein é sem dúvida mais do que generosa.8 Um a parte da luz intensa que projeta sobre M ach deve recair em Berkeley.9 IV E preciso dizer algum as palavras pelo menos sobre a relação que há entre a filosofia da ciência de Berkeley e sua m etafísica, que é m uito diferente, in d u b i­ tavelm ente, da de M ach. M ach foi um positivista, inimigo de toda m etafísica não-positivista, especialm ente de toda teologia. Berkeley, de outro lado, foi um teólogo — profundam ente interessado na apologética cristã. M ach e Berkeley estão de acordo em que expres­ sões como “tem po absoluto”, “espaço absoluto” e “m ovim ento absoluto” não têm sentido, devendo portanto ser elim inadas da linguagem científica; M ach, contudo, seguram ente não teria concordado com Berkeley a respeito da razão por que a tísica não é capaz de tra ta r de causas reais. Berkeley acreditava em causas, em bora não em causas “reais” ou “verdadeiras”; p ara ele todas as causas reais ou verda­

8 — Mach viveu mais de onze anos depois de descoberta a teoria especial da relatividade — oito dos quais, pelo menos, foram anos muito ativos; contudo, ele se manteve em forte oposição àquela teoria; e, embora tenha aludido a ela no prefácio à última (sétima) edição alemã (de 1912) de Mechanik publi­ cada enquanto vivo, essa alusão foi uma forma de cumprimento a Hugo Dingler, o grande opositor de Einstein — não mencionou o nome da teoria e do seu formulador naquela oportunidade. 9 — Não é este o lugar para discutir outros predecessores de Mach, como Leibniz.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

deiras eram “eficientes ou finais” (S, 231) e p o rtanto espirituais... absolutam ente distantes da física (HP, ii); acreditava tam bém na explicação causal real ou ver­ dad eira (S, 231) ou, como talvez se pudesse dizer, na “explicação últim a e defi­ nitiv a” — p a ra ele, Deus. T odas as aparências são causadas genuinam ente por Deus, explicadas pela intervenção divina. Esta, p ara ele, é a razão simples por que a física não pode des­ crever regularidades, nem en contrar as causas verdadeiras. Seria um erro, porém , acreditar que essas diferenças dem onstram que a sem elhança entre Berkeley e M ach é apenas superficial. Ao contrário, tanto um como o outro estavam convencidos de que não há um m undo físico (de qualidades prim árias ou de átom os, cf. Pr, 50; S, 232; 235) por trás do m undo de aparências físicas (Pr, 87, 88). Os dois acreditavam num a form a da doutrina que hoje co­ nhecem os como fenom enalism o — a concepção de que as coisas físicas são conjun­ tos, complexos ou construção (constructs) de qualidades fenom enais, de cores e sons particulares; M ach cham a esses conjuntos de “complexos de elem entos”. A diferen­ ça está em que p a ra Berkeley eles são causados diretam ente por Deus. M ach apenas constata que estão a li. Berkeley afirm a que não pode haver n ad a físico por trás dos fenôm enos físicos; M ach diz que não há nad a, absolutam ente, por trás deles.

V N a m inha opinião, a grande im portância histórica de Berkeley está no seu protesto co n tra as explicações essencialistas na ciência. O próprio Newton não in ­ terpretava sua teoria num sentido essencialista: não acreditava ter descoberto que por sua n atureza os corpos físicos são não só extensos, m as estão dotados de um a força de atração que se irradia deles e é proporcional à quan tid ad e de m atéria que contêm . Logo depois, porém , a interpretação essencialista da sua teoria passou a prevalecer, m antendo-se até a época de M ach. A tualm ente, o essencialismo perdeu o dom ínio, sendo substituído por um positivismo ou instrum entalism o à m oda de Berkeley ou de M ach. H á, contudo, um a terceira possibilidade — um a “terceira visão” , como cos­ tum o cham á-la. Acho que o essencialismo é insustentável. Mas, em bora seja necessário rejeitá-lo, isso n ão significa que precisemos aceitar o positivismo. Podemos p e r­ feitam ente ficar com a “terceira visão”. N ão exam inarei aqui o dogm a positivista do significado — o que já fiz em outras oportunidades. Vou fazer apenas seis observações: i) E possível trab alh ar com algo como um m undo “por trá s” das aparências sem assumir um compromisso com o essencialismo (especialm ente se adm itim os que não é possível saber se há a l­ gum outro m undo “real” oculto por trás do prim eiro). P ara falar de m odo mais concreto, pode-se tra b a lh a r com a idéia de níveis hierárquicos de hipóteses ex­ plicativas. H averá algum as de nível relativam ente baixo (como as que Berkeley tin h a em m ente ao falar em “leis da n atu reza”); outras, de nível mais elevado como as leis de Kepler, a teoria de Newton e, finalm ente, a relatividade, ii) Essas teorias não são hipóteses m atem áticas — isto é, apenas instrum entos p ara a previsão de aparências. Sua função é m uito mais am pla, pois iii) não existe observação ou

NOTA SOBRE BERKELEY - UM PRECURSOR DE MACH E DE EINSTEIN

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aparência que seja pura: o que Berkeley tinha em m ente, ao falar em observação, é sem pre o resultado de um a interpretação, iv) tendo, p o rtan to , um a m istura de elem ento teórico ou hipotético, v) Além disso, novas teorias podem levar a um a reinterpretação de velhas aparências, alterando assim o m undo aparente, vi) A m u l­ tiplicidade das teorias explicativas que Berkeley observou (vide seção ii (16), acim a) é em pregada, sempre que possível, p ara construir um a situação em que duas teorias conflitantes podem d ar resultados observáveis diferentes, perm itindo assim a aplicação de um teste crucial p ara escolher entre elas. Um aspecto im portante da “terceira visão” é o fato de que a ciência busca teorias verdadeiras, em bora nunca possamos estar seguros de que um a teoria em particu lar é verdadeira; por outro lado, a ciência pode progredir (sabendo que progride) form ulando teorias que, com paradas com as anteriorm ente aceitas são descritas como um a m elhor aproxim ação da verdade. Podemos adm itir, portanto, sem ser essencialistas, que pela ciência p ro ­ curam os sem pre explicar o conhecido pelo desconhecido, o observado (e observável) pelo não observado (possivelmente inobservável). Ao mesmo tem po, podemos a d ­ m itir, sem ser instrum entalistas, o que Berkeley disse a respeito da natureza das hipóteses, na passagem seguinte (S, 228), que m ostra tanto a debilidade da sua análise — a falha em perceber o caráter conjectural de toda ciência, inclusive do que cham a de “leis da n atu reza” — como sua força: a adm irável com preensão da estrutura lógica da explicação hipotética. Escreve Berkeley: “Um a coisa é chegar a leis naturais de caráter genérico, a p artir da contem plação dos fenômenos; coisa diferente é form ular um a hipótese p ara dela deduzir os fenômenos. Podemos pensar que aqueles que adm itiam os epiciclos, explicando com eles os movimentos e a aparência dos planetas, não des­ cobriram princípios verdadeiros da natureza. E m bora possamos inferir um a con­ clusão a p a rtir das premissas, isso não significa que podem os argum entar reci­ procam ente, inferindo as premissas a p artir da conclusão. Por exemplo: podemos supor um fluido de com portam ento elástico, constituído por partículas m ínim as, equidistantes entre si, de igual densidade e diâm etro, afastando-se um a da outra com um a força centrífuga que é o inverso da distância entre elas; podemos adm itir que dessa suposição se deva concluir que a densidade e a força elástica do fluido m antêm um a proporção inversa ao espaço que ocupa, quando com prim ido por um a força qualquer; contudo, não podemos inferir, reciprocam ente, que um fluido com tal propriedade deva consistir de partículas iguais, conform e suposto”.

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7. Crítica e Cosmologia de Kant* H á cento e cinqüenta anos falecia Im m anuel K ant, depois de passar os oitenta anos da sua vida na cidade provincianà de Königsberg, na Prússia. H á m uitos anos que o filósofo se aposentara co m p letam en te*1, e seus amigos p reten ­ diam dar-lhe um funeral discreto. Mas K ant, filho de um artesão, foi enterrado como um rei. Q uando a notícia da sua m orte se espalhou pela cidade, o povo foi à sua casa. No dia do funeral a vida da cidade p arou. O caixão foi seguido por m ilhares de pessoas, enquanto tocavam os sinos de todas as igrejas. Os cronistas dizem que nunca se vira n ad a assim em K önigsberg.2 E difícil explicar essa espantosa eclosão de sentim ento popular. Seria devida exclusivamente à reputação de K ant como um grande filósofo e um homem, bom? Parece-m e que havia mais do que isso; acho que aqueles sinos dobrando por K ant em 1804, sob a m onarquia absolutista de Frederico G uilherm e, ecoavam as idéias da Revolução N orte-A m ericana e da Revolução Francesa — os ideais de 1776 e de 1789. Para seus conterrâneos, K ant se havia transform ado num símbolo dessas idéias.3 Eles vinham portanto dem onstrar sua gratidão ao m estre dos Direitos do H om em , da igualdade perante a lei, da cidadania m undial, da paz universal — e, possivelmente, o mais im portante, da em ancipação pelo conhecim ento.4

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* Palestra radiofônica na véspera do 150.° aniversário da morte de Kant. Publicada pela primeira vez (sem notas) sob o título “Immanuel Kant: Philosopher of the Enlightenment” em The Listener, 51, 1954. 1 — Seis anos antes da morte de Kant, Pörschke comentava (carta a Fichte, de 2 de julho de 1978) que, devido à maneira reservada como vivia, o filósofo estava sendo esquecido até mesmo em Königsberg. 2 — C.E.A.Ch. Wasianski, Immanuel Kant in seinen letzten Lebensjahren (em Über Immanuel Kant, Dritter Band, Königsberg, bei Nicolovius, 1804): “Os jornais de circulação pública e uma publicação es­ pecial fizeram com que se pudesse conhecer todas as circunstâncias do funeral de Kant”. 3 — A simpatia de Kant pelos ideais de 1776 e de 1789 é bem conhecidg| pois ele costumava manifestála em público (Cf. testemunho de Motherby a respeito do primeiro encohtro de Kant com Green, in, R. B. Jachmann, Immanuel Kant geschildert in Briefen — Über Immanuel Kant, Zweiter Band, Königsberg bei Nicolovius, 1804). 4 — 0 mais importante porque a merecida ascensão de Kant, de uma situação muito próxima da miséria até a fama, e condições de vida relativamente confortáveis, ajudou a criar no continente eu­ ropeu a idéia da emancipação pela auto-educação (sob esta forma ainda mal conhecida na Inglaterra, onde o “self-made-man” era considerado*um arrivista inculto). A significação dessa idéia está ligada ao fato de que nos países continentais a classe culta tinha sido durante muito tempo da classe média, m as1 na Inglaterra ela era a classe aristocrática.

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1. K ant e o Ilum inism o A m aior p arte dessas idéias tinham chegado ao continente, dà Inglaterra, num livro publicado em 1732 — as Cartas Sobre os Ingleses, de V oltaire. Nesse livro, V oltaire com para o governo constitucional britânico com o absolutismo m onárquico que prevalecia nos países continentais; a tolerância religiosa dos in ­ gleses com a atitude da Igreja Católica; a capacidade explicativa da cosmologia de Newton e do em pirism o analítico de Locke com o dogm atism o cartesiano. O livro de V oltaire foi queim ado, mas sua publicação m arca o início de um movim ento filosófico cujo estilo intelectualm ente agressivo foi m al com preendido na In ­ glaterra, onde ele era desnecessário. Sessenta anos depois da m orte de K ant essas mesmas idéias inglesas eram apresentadas na Ing laterra como “intelectualism o raso e pretensioso” ; é irônico que a palavra inglesa E nlig h ten m en t, usada então p ara d ar nom e ao movim ento iniciado por V oltaire, ainda hoje g u ard a essa conotação de superficialidade e pretensão — pelo m enos, é o que nos inform a o Oxford English D ictionary .5 Des­ necessário dizer que não pretendo abrigar essa conotação, ao em pregar aqui a palavra. K ant acreditava no Ilum inism o; foi seu grande defensor. Estou consciente de que este ponto de vista não é usual. Vejo K ant como o defensor do Ilum inism o, em bora a ele se atrib u a mais com um ente a fundação da escola que o destruiu — a Escola R om ântica de Fichte, Schelling e Hegel. Duas interpretações que, penso, são incom patíveis. Fichte (e mais tarde Hegel) procuraram apropriar-se de K ant como fu n ­ dador da sua Escola. Mas K ant viveu o bastante p ara recusar as propostas persis­ tentes de Fichte, que se proclam ava seu sucessor e herdeiro. Em Declaração Pública a Respeito de Fichte6 7, trab alh o pouco conhecido, K ant escreveu: “Que Deus nos proteja dos am igos... Existem “am igos” pérfidos e fraudulentos que planejam nossa ru ín a, ao mesmo tem po em que pronunciam palavras de boa v ontade.” Foi só depois da m orte de K ant, quando o filósofo não podia mais protestar, que aquele cidadão rio m undo foi utilizado a serviço da Escola R om ântica nacionalista, a des­ peito de todas as suas advertências contra o rom antism o, o entusiasm o sentim ental, a Schwärmerei. Mas, vejamos como o próprio K ant descreve o Ilum inism o:7

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orientação externa. Defino esse estado de tutela como auto-im posto” porque é devido não à falta de inteligência, m as sim à falta de coragem e de determ inação para usar a inteligência sem a ajuda de um a guia. Sapere aude! T em a coragem de usar tu a inteligência! Este é o grito de b atalh a do Ilum inism o.” Nessa passagem, K ant diz algo m uito pessoal, que reflete sua própria his­ tória. Criado’ na pobreza, dentro de am biente estreitam ente pietista — um a versão rigorosa alem ã do puritanism o —, sua biografia é um a estória de em ancipação pelo conhecim ento. Já m aduro, o filósofo lem brava com horror o que cham ava de sua “escravidão in fantil” . N ão seria exagero dizer que o tem a da sua vida foi a luta pela liberdade espiritual. 2. A cosmologia newtoniana de K ant A teoria de Newton (que Voltaire difundira no continente) desem penhou um papel decisivo nessa luta. A cosmologia de Copérnico e de Newton se tornou um a inspiração vigorosa e estim ulante, na vida intelectual de K ant. Seu prim eiro livro de im p o rtân cia,8 A Teoria dos Céus, tinha um subtítulo interessante: Ensaio sobre a Composição e a Origem M ecânica do Universo, de acordo com os P rin­ cípios de N ewton. T rata-se de um a das m aiores contribuições já dadas à cosmo­ logia e à cosmogonia. Contém a prim eira form ulação não só do que conhecemos hoje como “Hipótese K ant-L aplace” ' sobre a origem do sistema solar, mas tam bém , antecipando Jeans, a aplicação dessa idéia à “Via L áctea” (que Thom as W right in ­ terp retara cinco anos antes como um sistema estrelar). Mas n ad a disso se com para com a identificação das nebulosas como outras tantas “vias lácteas” — sistemas de estrelas m uito distantes, sem elhantes ao nosso. Conform e K ant explica em um a das suas cartas,5 foi o problem a cosmo lógico que o levou à sua teoria do conhecim ento, e à Crítica da Razão Pura. Ele st preocupava com o difícil problem a (que todos os cosmófpgos precisam enfrentar) do caráter finito ou infinito do universo, tanto com respeito ao espaço quanto ao tem po. No concernente ao espaço, temos hoje um a solução fascinante, proposta por Einstein: um m undo que ao mesmo tem po é finito e nao tem limites. Solução que corta o “nó gordio” de K ant, graças ao em prego de meios m ais poderosos do que os existentes na época do filósofo. No relativo ao tem po, não surgiu até agora qualquer solução promissora para as dificuldades apresentadas por K ant. 3. A ilCrítica ” e o Problema Cosmológico

“O Ilum inism o é a em ancipação do hom em de um estado de tutela que ele im põe a si m esm o... da incapacidade de usar sua própria inteligência sem um a

5 — De fato, o O. E. D. define (a ênfase é minha): “Enlightenment ... 2. Termo empregado às vezes (seguindo o alemão Aufklãrung, Aufklàrerei) para designar o espírito e os objetivos dos filósofos fran­ ceses do século dezoito, ou outros, pretendendo associá-los à acusação implícita de intelectualismo superficial e pedante, desprezo irrazoável pela autoridade e a tradição, etc.” O O. E. D. não explica que o alemão “aufklarung” é uma tradução do francês “éclaircissement”, e que não tem a mesma conotação; também não explica que “Aufklàrerei” (ou “Aufklãricht' ) é um horrível neologismo inventado (e em­ pregado exclusivamente) pelos românticos — os inimigos do “Iluminismo”. O dicionário cita J. H. Stirling, The Secret o f Hegel, 1865, e Caird, The Philosophy o f Kant, 1889, para exemplificar o uso do termo nesse sentido particular. 6 — A data dessa declaração é 1799. Cf. WWC (Immanuel Kant, Werke, ed. Ernst Cassier, et ai), vol. VIII, pág. 515; vide também Open Society, nota 58, cap. 12 (4.a edição, vol. II, pág. 313, 1962). 7 — Que é o Iluminismo (1785); WWC, IV, 169.

K ant nos d iz10 que chegou ao problem a central da Crítica ao considerar se o universo tivera um princípio no tem po ou não. Verificou, então, que podia fo r­ m ular provas aparentem ente válidas para as duas hipóteses. Essas duas provas11 8 — Publicado em 1755. O título principal poderia ser assim traduzido: História Natural Geral (dos Céus) e Teoria dos Céus — o que indica que o trabalho é uma contribuição à teoria da evolução dos sis­ temas estrelares. 9 — Carta a C. Garve, 21 de setembro de 1798: “Meu ponto de partida não foi uma investigação da existência de Deus, mas a antinomia da razão pura: “O mundo tem um princípio; o mundo não tem um princípio”, etc., até a quarta...” (Neste ponto Kant aparentemente confundiu a terceira antinomia com a quarta). “Essas antinomias pela primeira vez me despertaram do sono dogmático, conduzindo-me à crítica da razão... para resolver o escândalo da sua aparente contradição intrínseca”. 10 — Vide a nota seguinte, e também a correspondência de Leibniz com Clarke (Philos. Bibl., edit. por Kirchmann, 107, págs. 134. 147, 188), bem como Reflexionen zur Kritischen Philosophie, de Kant, edit. por B. Erdmann, esp. n.° 4. 11 — Vide Crítica da Razão Pura, 2.a ed., 454.

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são interessantes; é preciso atenção p ara seguir o raciocínio, m as elas não são lo n ­ gas, nem difíceis de entender. A p rim eira prova com eça com a análise da idéia de um a seqüência infinita de anos (ou dias, ou q ualquer outro intervalo de tem po igual e finito) — seqüência que co n tin u ará p a ra sem pre, sem chegar a um fim: não pode chegar a um fim p o r­ que u m a infinidade de anos “com pleta” é um a contradição. K ant argum enta sim ­ plesm ente que o m undo deve ter tido um princípio no tem po — se não, em q u a l­ quer m om ento, já teria passado um núm ero infinito de anos, o que é impossível. Conclui assim a p rim eira prova. A segunda prova começa com a análise da idéia do tem po “vazio” — o te m ­ po antes de que houvesse o m undo: quando não havia n ada, nenhum intervalo de tem po seria distinguível de qualquer outro pela sua relação tem poral com coisas ou eventos (já que essas coisas e eventos eram inexistentes). Contudo, o últim o in te r­ valo do tem po “vazio” — im ediatam ente antes do princípio do m undo — diferiria de todos os outros pela sua proxim idade de um evento — o começo do m undo. H averia aí, po rtan to , um a outra contradição em term os. Nesta segunda prova, K ant arg u m en ta sim plesm ente que o m undo não pode ter um princípio no tem po porque de o u tra form a haveria um intervalo de tem po — im ediatam ente antes do início do m undo — “vazio” e, ao mesmo tem po, caracterizado pela sua relação tem poral com um acontecim ento — o que é impossível. Tem os aí um choque entre duas provas — o que K ant cham ou de “a n ti­ no m ia” . N ão m encionarei aqui as outras antinom ias form uladas por K ant, como as que dizem respeito aos limites espaciais do universo. 4. O Espaço e o Tem po Que lição podem os extrair dessas antinom ias espantosas? Kan chegou à co n ­ clusão12 de que nossas idéias de espaço e tem po não podem ser aplicadas ao universo como um todo. Podemos n aturalm ente aplicá-las às coisas e aos eventos físicos ordinários. Mas o espaço e o tem po, em si mesmos, não são coisas ou eyêntos — são mais sutis, e não podem ser observados. Constituem um a espécie de m oldura p ara as coisas e os eventos — algo como um sistema de escaninhos, ou arquivo, útil para a observação. O espaço e o tem po não são parte de nosso universo em pírico de coisas e acontecim entos; são parte do nosso equipam ento m ental, instrum entos para a percepção do m undo. Seu uso apropriado, portanto, é como instrum entos de observação: ao observar qualquer acontecim ento, via de regra, nós o localizamos, im ediata e intuitivam ente, no espaço e no tem po. Por isso o espaço e o tem po podem ser descritos como um quadro referencial que não se baseia na experiência, mas que é usado intuitivam ente na experiência, e que pode ser aplicado ad e­ quadam ente à experiência. É por isso que encontram os dificuldades se aplicamos de m odo im próprio as idéias de espaço e tem po, usando-as num cam po que tran s­ cende a experiência possível — como no caso das duas provas sobre o universo como um todo. K ant deu à concepção que descrevi acim a um a denom inação feia e d u ­ plam ente equívoca — “Idealismo T ran scen d en tal.” O filósofo se arrependeu logo 12 — Op. ctt., 518. “A Doutrina do Idealismo Transcendental como Chave para a Solução da Dialética Cosmológica.”

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da esco lh a,13 que levava as pessoas a crer que ele fosse um idealista no sentido de quem nega a realidade das coisas físicas, entendendo-as como simples idéias. K ant se apressou a explicar que tinha negado apenas que o espaço e o tem po fossem reais e empíricos — no mesmo sentido em que dizemos que há coisas e eventos reais e em píricos. Mas seus protestos foram em vão: o estilo difícil com que escrevia selou seu destino de “pai do idealismo alem ão”. Acho que já é tem po de esclarecer esse ponto. K ant sem pre insistiu em que as coisas físicas, situadas no espaço e no tem po, são reais. Q uanto às espe­ culações metafísicas obscuras e desvairadas dos idealistas alem ães, vale lem brar que o próprio título da Crítica foi escolhido p ara anunciar um ataque crítico contra a sua argum entação especulativa. A Crítica se dirige à razão p u ra: critica e ataca todo raciocínio a respeito do m undo que é “p u ro ” , no sentido de não estar asso­ ciado à experiência dos sentidos. K ant atacou a razão p u ra dem onstrando que o raciocínio puro sobre o m undo leva inevitavelmente a antinom ias. Estim ulado por H um e, K ant escreveu a Crítica p ara d em o n strar14 que os limites da nossa expe­ riência sensorial tam bém são limites p ara o raciocínio apropriado a respeito do m undo. 5. A “Revolução de Copérnico” de Kant. A crença de K ant na sua teoria do espaço e do tem po como um quadro referencial intuitivo se confirm ou quando o filósofo descobriu que ela podia so­ lucionar outro problem a: a validade da teoria new toniana, em cuja veracidade a b ­ soluta e inquestionável cria,15* como todos os físicos da sua época. K ant considerava inconcebível que essa teoria, de precisa form ulação m atem ática, resultasse simples­ m ente de observações acum uladas. Mas, que outra coisa poderia fundam entá-la? K ant abordou o problem a, exam inando em prim eiro lugar o status da geom etria. Observou que a geom etria euclidiana não se baseia em observações, mas na nossa intuição das relações espaciais. A posição da ciência new toniana é sem elhante: em ­ bora confirm ada por observações, não resulta dessas observações, mas do nosso m odo de pensar, das tentativas que fazemos para organizar os dados sensoriais, com ­ preendê-los e assimilá-los intelectualm ente. É o nosso próprio intelecto, a orga

13 — Prolegomena (1783), Apêndice: “Espécime de um julgamento sobre a Crítica, An tecipando seu Exame”. Vide também a Crítica, 2.a ed. (1787; a primeira edição foi publicada em 1781), págs. 274-9, “A Refutação do Idealismo”, e a última nota ao Prefácio de Crítica da Razão Prática. 14 — Vide a carta de Kant a M. Herz, de 21 de fevereiro de 1772, na qual refere o título tentativo do que seria a primeira Crítica: “Limites da Experiência Sensorial e da Razão”. Vide também a Crítica da Razão Pura (2.a edição), pág. 738 (a ênfase é minha): “Não há necessidade de uma crítica da razão no que diz respeito ao seu uso empírico; de fato, seus princípios são submetidos continuamente ao teste da experiência. Da mesma forma, essa crítica não é necessária no campo da matemática, cujas concepções devem ser formuladas de modo imediato e intuitivo (no que respeita o espaço e o tempo)... Todavia, num campo em que a razão é forçada pela experiência sensorial ou pela intuição pura a seguir um caminho visível — quer dizer, no campo da sua utilização transcendental — ... é muito necessário dis­ cipliná-la, de modo a moderar sua tendência para ultrapassar os limites estreitos da experiência pos­ sível...” 15 — Vide, por exemplo, os Fundamentos Metafísicos da Ciência Natural, de Kant, obra de 1786 que contém uma demonstração a priori da mecânica newtoniana. Vide também a parte final do penúltimo capítulo da Crítica da Razão Prática. Em outra oportunidade (cap. 2 deste volume) procurei demons­ trar que algumas das maiores dificuldades que encontramos em Kant são devidas à premissa tácita de que a ciência newtoniana é verdadeira (isto é, é episteme); com a percepção de que não é assim, de­ saparece um dos problemas mais fundamentais da Crítica. Vide também o cap. 8 deste livro.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

nização do nosso “sistema digestivo” m ental que é responsável pelas teorias que enunciam os — não os dados sensoriais de que dispomos. A natureza conform e a conhecem os, com sua ordem e suas leis, é p ortanto em larga m edida o resultado das atividades de assimilação e de ordenação da nossa m ente. N a form a m arcante como o próprio K ant enunciou este ponto de vista 16 “Nosso intelecto não deriva suas leis da natureza, m as im põe leis à n atu reza” . Essa fórm ula sintetiza um a idéia que K ant batizou, com orgulho, de sua “revolução de C opérnico” . N a concepção de K ant, Copérnico, 17 ao perceber que a teoria dos céus em m ovim ento não levava a nenhum progresso, resolveu o impasse virando a m esa, por assim dizer: adm itiu que não era os céus que giravam em torno do observador imóvel, mas que, ao contrário, o observador se deslocava, enquanto o céu perm anecia fixo. Da m esm a form a, diz K ant, deve ser resolvido o problem a do conhecim ento científico — como é possível haver um a teoria verdadeira, como a new toniana, e como podem os chegar a conhecê-la. Devemos rejeitar a noção de que somos, m eros observadores passivos, à espera de que a natureza nos exiba sua regularid ad e. Precisamos ad o tar a concepção de que ao assimilar os dados sen­ soriais de fato im pom os a eles a ordem e as leis do intelecto. O cosmos traz a m arca da nossa m ente.
CRÍTICA E COSMOLOGIA DE KANT

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6. A doutrina da autonom ia Passarei agora do K ant cosmólogo, filósofo do conhecim ento e da ciência p a ra o K ant m oralista. N ão sei se já se percebeu que a idéia fundam ental da ética kan tian a corresponde a o u tra “revolução de Copérnico” análoga à que descrevi: K ant vê o hom em como a fonte da m oralidade, da m esm a form a como o considera a fonte da lei n atu ral. R estitui-lhe, assim, a posição central tan to no universo m oral como no físico. Com efeito, K ant hum aniza a ética, como hum aniza a ciên­ cia. A revolução prom ovida por K ant no cam po da é tic a 19 está contida na doutrina da autonom ia — o p rin c íp i^ d e que não podem os aceitar a ordem de um a autoridade, por mais elevada que seja, como base últim a da ética. Sempre que defrontam os um a ordem , é nossa responsabilidade ju lg ar se ela é m oral ou não. A autoridade talvez tenha o poder de nos obrigar ao cum prim ento do que ordena; podem os não ter condições de resisti-la. C ontudo, a não ser que sejamos im pedidos fisicamente de fazer um a escolha, a responsabilidade será nossa. A decisão de obedecer a um a ordem , de aceitar um a autoridade, é um a decisão que nos perten-

K ant leva sua revolução ao cam po da religião. Vejamos essa passagem no táv el:20 “Por mais que m inhas palavras te espantem , não deves condenar-m e por dizer que cada hom em cria o seu Deus. Do ponto de vista m oral ... é preciso criar Deus p ara poder adorá-lo como nosso criador. Q ualquer que seja a fo rm a... em que tomemos conhecim ento da divindade; m esm o... se Deus se revelasse d ire ta m ente a nós... precisaríam os decidir se nos é perm itido (pela nossa consciência) crer nele, e adorá-lo”. A teoria ética de K ant não se lim ita à afirm ativa de que a consciência do hom em representa sua autoridade m oral. Procura dizer-nos tam bém o que nossa consciência pode exigir de nós. Sobre este ponto — a lei m oral —, o filósofo apresenta várias form ulações. Por exem plo:2123 “E preciso considerar sem pre cada hom em como um fim em si mesmo, nunca o utilizando apenas como um meio para os nossos fins.” O espírito da ética de K ant poderia ser sum arizado com essas palavras: ter a coragem de ser livre e respeitar a liberdade dos outros. Gom base nessa ética, Kant elaborou sua teoria do Estado, 22 de grande im ­ portância, e do direito internacional — propôs um a liga de nações 23 ou federação que conduziria à proclam ação e à m anutenção da paz etern a sobre a terra.

19 — Vide Grundlegung zur Met. d. Sitten, 2.a edição (WWC, pág. 291): “A Autonomia da Vontade como o Princípio Mais Elevado da Moral”; e também a 3.3 seção (WWC, pág. 305). 16 — Vide Prolegomena, fim da seção 37. A nota de Kant relativa a Crusius é interessante, porque sugere que o filósofo suspeitava a analogia entre o que chamava de sua “revolução de Copérnico” e o princípio ético da autonomia que havia enunciado. 17 — Meu texto é uma tradução livre da Crítica da Razão Pura. 18 — Opus cit., pág. xii, em particular a passagem: “Os físicos... perceberam que... era preciso obrigar a natureza a responder a suas perguntas, em vez de se deixarem amarrar ao seu avental”.

20 — Texto baseado em tradução livre de passagem contida em nota do Capítulo Quarto, Parte II, § 1 de A Religião Dentro dos Limites da Razão Pura (WWC, vi, pág. 318). 21 — Grundlegung, 2.3 seção (WWC, iv, pág. 287). 22 — Kant propôs várias formulações levando ao princípio de que a finalidade do Estado justo é fixar aqueles limites para a liberdade dos cidadãos que são inevitáveis a fim de que a Uberdade de cada um possa coexistir com a liberdade de todos (p. ex.: Crítica da Razão Pura, 2.3 edição, pág. 373). 23 — Sobre a Paz Eterna (1795).

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C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Procurei esboçar a filosofia de K ant sobre o hom em e o m undo, m encionando suas fontes principais de inspiração: a cosmologia new toniana e a ética da lib er­ dade — as duas inspirações a que o filósofo se referia, ao fa la r24* do céu estrelado sobre nossas cabeças e da lei m oral dentro de nós. Assumindo um ponto de vista mais abrangente, para avaliar o papel his­ tórico de K ant, podem os com pará-lo com Sócrates. Ambos foram acusados de subverter a religião oficial e de corrom per o espírito dos jovens. Os dois contes­ taram essa acusação, defendendo a liberdade de pensam ento. Para eles liberdade significava algo mais do que a simples ausência de coação — era um m odo de viver. Da apologia de Sócrates e da sua m orte surgiu um a nova concepção do hom em livre — a idéia do hom em cujo espírito não pode ser subjugado, que é livre porque é auto-suficiente; que não sente necessidade de imposições porque é capaz de dirigir a si mesmo, e de aceitar em plena liberdade o im pério da Lei. A essa idéia socrática da auto-suficiência, que é parte da nossa herança ocidental, K ant acrescentou um novo sentido no cam po do conhecim ento e da m oral. E contribuiu tam bém p ara desenvolver a noção da com unidade de homens livres — de toda a hum anidade. D em onstrou que todos os homens são livres — não porque nascem livres, m as porque nascem com o ônus da responsabilidade pela livre escolha.

8. O Status da Ciência e da Metafísica* 1. Kant e a Lógica da Experiência Não pretendo falar nesta palestra sobre a experiência ordinária de todos os dias; estou em pregando a palavra “experiência” no sentido em que dizemos que a ciência se baseia na experiência. Contudo, como a experiência, do ponto de vista científico, não passa de um a extensão da nossa experiência ordinária, o que tenho a dizer se aplica, em larga m edida, a esta últim a. Para não me perder em abstrações, vou exam inar o status lógico de um a ciência em pírica específica — a dinâm ica de Newton. Meus com entários não exigirão nenhum conhecim ento prévio de física. Uma das coisas que os filósofos fazem, que constitui um a das suas maiores realizações, é perceber um enigma, u m problem a, ou paradoxo, que até então n in ­ guém tinha notado. E um a realização m ais im portante do que a resolução do enig­ m a. O filósofo que vê pela prim eira vez um problem a e o com preende pertu rb a nossa preguiça e com placência, fazendo o que H um e fez por K ant: desperta-nos do nosso “sono dogm ático” , abrindo-nos novos horizontes. O prim eiro filósofo a perceber claram ente o enigma da ciência natural foi Kant. Não conheço nenhum outro filósofo que, antes ou depois dele, se tenha in ­ teressado tanto por esse problem a. Q uando Kant falava em “ciência n a tu ra l”, quase invariavelm ente se referia à m ecânica celestial de Newton. Ele próprio tinha dado im portantes contribuições à física new toniana e era um dos maiores cosmólogos da sua época. Suas duas obras cosmológicas mais im portantes são: História N atural e Teoriq dos Céus (1755) e Fundam entos Metafísicos da Ciência N atural (1786^. De acordo com as palavras do próprio filósofo, os dois temas foram tratados por ele “em conform idade com os princípios de N ew ton”. 1

* Duas palestras radiofônicas escritas para a Rádio Universidade Livre de Berlim. Texto publicado pela primeira vez em Ratio, 1, 1958, págs. 97-115. 24 — Na “Conclusão” da Crítica da Razão Prática vide especialmente a parte final do penúltimo pa­ rágrafo, que já mencionei.

1 - Também de grande importância é a Monadologia Física, de 1756, escrito em latim, em que Kant antecipou a idéia principal de Boscovic. Contudo, na sua obra de 1786 o filósofo repudiou a teoria da matéria proposta na Monadologia.

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C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Como quase todos os seus contem porâneos bem inform ados nesse cam po, K ant acreditava n a veracidade d a m ecânica celestial de Newton. A crença quase universal de que a teoria de Newton era verdadeira era compreensível e parecia m uito bem fu n d ad a. N unca se tinha visto um a teoria m elhor ou testada com mais rigor; ela não só perm itia prever exatam ente a órbita de todos os planetas — in ­ clusive seus desvios das elipses de Kepler — mas tam bém a órbita de todos os sa­ télites. Além disso, seus princípios gerais, poucos e simples, constituíam , ao mesmo tem po, um a m ecânica celeste e um a m ecânica terrestre. A teoria de Newton era vista como um “sistema do m u n d o ” universalm ente válido, que descrevia as leis do m ovim ento cósmico do m odo m ais simples e mais claro, com precisão absoluta. Esses princípios eram tão simples e precisos quanto os da geom etria — a realização suprem a de Euclides, modelo insuperável de todas as ciências. Com efeito, Newton tinha proposto um a espécie de geom etria cósmica: Euclides suplem entado por um a teoria (que tam bém podia ser representada geom etricam ente) do m ovim ento de pontos de massa, sob a influência de forças. Além do conceito de tem po, ele acrescentara à geom etria euclidiana somente dois conceitos essencialmente novos: o conceito de massa, ou de ponto de massa m a ­ terial e a noção de força com um a direção, ainda mais im portante: vis em latim , dynam is em grego — de onde o nom e “d in âm ica” aplicado à teoria de Newton. T ínham os então um a ciência do cosmos, da natureza, que se baseava alegadam ente n a experiência. Uma ciência dedutiva, como a geom etria. Contudo, o próprio Newton afirm ava que tin h a chegado a seus princípios funcionais por meio da indução, a p a rtir da experiência. Em outras palavras, asseverava que a verdade da sua teoria podia ser derivada logicam ente da verdade de certas afir­ mativas baseadas na observação. Em bora não descrevesse essas afirm ativas p re ­ cisam ente, está claro que se referia às leis de Kepler sobre o movim ento elítico dos planetas. A inda hoje podem os encontrar físicos em inentes que^ustentam que as leis de Kepler podem ser derivadas indutivam ente da observação, e que os princípios de Newton, por sua vez, podem ser derivados, inteiram ente ou quase inteiram ente, das leis de Kepler. * ' Uma das m aiores realizações de K ant foi ter reconhecido que essa concepção continha um paradoxo (H um e o despertou p ara isso). Kant viu, mais claram ente do que q u alq u er outra pessoa antes ou depois dele, como seria absurdo presum ir que a teoria de Newton pudesse ser derivada da observação. Como esta im portante idéia de K ant está caindo no esquecim ento, em parte devido às contribuições do próprio filósofo p a ra a solução do problem a que descobriu, vou apresentá-la aqui e exam iná-la em detalhe. C riticarei a afirm ativa de que a teoria de Newton foi derivada da obser­ vação com três argum entos: Em prim eiro lugar, essa afirm ativa não é crível intuitivam ente, se com pa­ ram os o caráter da teoria com o das proposições baseadas na observação que se presum e tê-la originado.

O S T A T U S DA CIÊNCIA E DA METAFÍSICA

Examinemos o prim eiro ponto — não se pode acreditar, intuitivam ente, que a m ecânica de Newton se baseia na observação. Bastará lem brar como a teoria new toniana difere com pletam ente de q u al­ quer afirm ativa baseada n a observação. P ara com eçar, as observações são sempre inexatas, enquanto a teoria form ula assertivas absolutam ente exatas. Além disso, um a das glórias da teoria de Newton foi o fato de que ela resistiu a observações subseqüentes, mais precisas do que seria possível n a época em que foi form ulada. O ra, é incrível que se pudesse ter chegado logicam ente, a p a rtir da observação, a proposições mais precisas do que os fatos observados.2 Mesmo se não levássemos em conta esse aspecto da precisão, precisaríam os considerar que um a observação é feita sem pre em condições m uito especiais — cada situação observada é sempre m uito específica. Mas a teoria pretende ser aplicável em todas as circunstâncias possíveis — não apenàts ao planeta M arte ou a Jú p iter, ou aos satélites do nosso sis­ tem a solar, mas a todos os movimentos planetários e a todos os sistemas solares. Na verdade, sua pretensão é m aior ainda. Por exem plo: a teoria faz afirm ativas a res­ peito da pressão gravitacional dentro das estrelas, asserções que até hoje não p u ­ deram ser testadas pela observação. Cabe n o tar tam bém que as observações são sempre concretas’, as teorias, abstratas. Assim, nunca podemos observar pontos de m assa, mas sim planetas. Pode ser que isso não ten h a m uita im portância; mas o que é da m aior im portância é o fato de que nunca podem os observar algo como as forças newtonianas. Como as forças podem ser definidas de m odo a serem m edidas pela aceleração, podem os indiretam ente m edir um a força; às vezes podem os fazê-lo sem m edir a aceleração — por exemplo, com a ajuda de um a balança de molas. Contudo, todas essas medidas, sem exceção, pressupõem sem pre a verdade da dinâm ica newtoniana. Sem a premissa de um a teoria dinâm ica simplesmente não é possível m edir forças. Mas as forças e as m udanças de forças estão entre as coisas mais im portantes consideradas pela teoria. Podemos afirm ar, p o rtan to , que pelo menos um a parte dos objetos tratados pela teoria são abstratos e não observáveis. Por todos esses motivos, a intuição não nos perm ite aceitar que a teoria pudesse ser derivada logicam ente da observação. Este resultado não seria afetado por um a hipotética reform ulação da teoria new toniana, de m odo a evitar qualquer referência a forças — se isso fosse possível. Como tam bém não se alteraria se estivéssemos dispostos a afastar o conceito de f o r ­ ça como pu ra ficção — um a construção exclusivam ente teórica que nos servisse como instrum ento. De fato, a tese que estamos questionando afirm a que a teoria de Newton pode ser verificada pela observação — e nossa objeção foi a de que só podemos observar objetos concretos, enquanto a teória e, em especial, as forças que postula são abstratas. Essas dificuldades não se reduzirão se tornarm os a teoria aindat m ais abstrata, elim inando a noção de força ou concebendo-a como simplesconstrução auxiliar. Meu segundo argum ento é o de que é historicam ente falso que a teoria de Newton tenha sido derivada d a observação. E m bora essa crença seja com um , tratase de crença num m ito histórico ou, se preferirm os, um a ousada distorção his­ tórica. P ara dem onstrá-lo vou m encionar brevem ente o papel desem penhado neste cam po pelos três mais im portantes precursores de Newton: N icolau Copérnico, Tycho Brahe e João K epler.

Em segundo lugar, ela é historicam ente falsa. Finalm ente, é logicam ente falsa — é impossível.

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2 - Consideração semelhante é feita por Bertrand Russell em The Analysis o f Mijid, 1922, pág. 95.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

C opém ico estudou em B olonha sob a direção do platonista N ovara; sua idéia de colocar o Sol, em lugar d a T e rra , no centro do universo, não resultou de n o ­ vas observações, m as sim de um a nova interpretação de fatos bastante conhecidos há m uito tem po, à luz de concepções semi-religiosas, platônicas e neoplatônicas. A idéia fund am en tal pode ser encontrada no sexto livro da R epública de Platão, onde há a afirm ação de que o Sol tem a mesm a função no universo das coisas visíveis do que a idéia do bem no universo das idéias. A idéia do bem é a mais elevada na h ierarq u ia das idéias platônicas. De m aneira correspondente, o Sol, que confere visibilidade, vitalidade, crescim ento e progresso às coisas visíveis, ocupa ’o lugar mais elevado na h ierarq u ia das coisas visíveis da natureza. D entre as passagens que form aram a base da filosofia neoplatônica — sobretudo do neoplatonism o cristão — esse trecho da República tem grande im ­ p ortância. Se o Sol tin h a um papel tão im p o rtan te, se m erecia o status divino que lhe era atribuído na h ierarquia das coisas visíveis, não poderia girar em torno da T erra. O único local apropriado p ara um a estrela de tal nobreza era o centro do universo.3 Por isso, a T e rra devia g irar em volta do Sol. Essa idéia platônica constitui a base histórica da revolução de Copérnico, que não com eça, p o rtan to , com observações, mas com um a concepção religiosa ou m itológica. Idéias desse tipo — belas e espantosas — foram avançadas m uitas vezes pelos grandes pensadores, e tam bém por loucos. Copérnico, porém , não era um louco. Assumia um a atitude m uito crítica com respeito a suas próprias intuições m ísticas que exam inava rigorosam ente à luz das observações astronôm icas, reinterpretadas com a ajuda da nova concepção. Considerava essas observações ex tre­ m am ente im portantes. Contudo, do ponto de vista histórico ou genético, suas idéias não se originavam na observação: vinham em prim eiro lugar, e eram indispensáveis p ara in te rp re ta r as observações. Johannes Kepler, aluno e assistente de Tycbo Brahe, a quem o grande m es­ tre deixou seus trabalhos inéditos, era um seguidor de Copérnico. Como o próprio Platão, estava imerso em ensinam entos astrológicos, em bora fosse um pensador crítico; com o Platão tin h a sido profundam ente influenciado pelo misticismo num erológico dos pitagóricos. O que Kepler esperava descobrir, o que procurou toda a vida, foi a lei aritm ética subjacente à estrutura do m undo — a lei que ex­ plicava a construção dos círculos do sistema solar de Copérnico, e na qual se b a ­ seavam suas distâncias em relação ao Sol. Mas nunca pôde encontrar o que bus­ cava; não descobriu, nas observações de Tycho, a alm ejada confirm ação da sua crença de que M arte girava em torno do Sol em órbita perfeitam ente circular, com velocidade uniform e. M uito pelo contrário, encontrou nas observações de Tycho um a refutação da hipótese das órbitas circulares, que rejeitou; depois de ten tar em vão várias outras soluções, adotou a m ais próxim a: a hipótese da órbita elíptica. Pôde verificar, por fim, que as observações astronôm icas podiam ajustar-se à nova hipótese — m as só se admitisse a premissa, a princípio incôm oda, de que M arte não de deslocava em velocidade uniform e. P ortanto, historicam ente as leis de Kepler não resultaram de observações. O que aconteceu foi que Kepler tentou, em vão, in terp retar as observações de Tycho 3 Vide Aristóteles, De Caelo, 293bl-5, onde a doutrina de que o centro do universo é “precioso”, devendo ser ocupado portanto por um fogo central, é criticada e atribuída aos “pitagóricos” (o que pode significar os seus rivais, os sucessores de Platão que permaneceram .na Academia).

O S T A T U S DA CIÊNCIA E DA METAFÍSICA

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Brahe por meio da sua hipótese original, das órbitas circulares. As observações refutaram essa hipótese, o que o levou a ten tar outras soluções — a órbita oval e a elipse. As observações não provaram que a hipótese elíptica estava correta, mas podiam ser explicadas por essa hipótese — ajustavam-se a ela. Além disso, as leis de Kepler em p arte sustentavam sua crença num a causa — um poder — que se irradiava do Sol como a luz, influenciando, dirigindo ou provocando os m ovimentos dos planetas, inclusive da T erra; em p arte, era essa crença que inspirava as suas leis. Mas a idéia de um a “influência” dos astros chegando à T erra era considerada, n a época, um a noção fundam ental da astro­ logia, em oposição ao racionalism o aristotélico. H avia um a im p o rtan te linha d i­ visória separando duas escolas: Galileu, por exem plo, o grande crítico de Aristó­ teles, Descartes, Boyle e Newton pertenciam à tradição racionalista, aristotélica. Por isso Galileu era cético com respeito à concepção de Kepler; por isso não aceitava a teoria que explicava as m arés pela “influência” da L ua — o que o levou a desenvolver um a teoria não lunar, que atribuía as m arés simplesmente aos movimentos da T erra. Pela m esm a razão Newton hesitou tanto em aceitar sua própria teoria da atração, e nunca se reconciliou inteiram ente com ela. T am bém por essa razão, os cartesianos franceses, durante m uito tem po, não queriam aceitar as idéias de Newton. Por fim , a concepção originalm ente astrológica teve tal êxito* que term inou aceita por todos os racionalistas, sendo esquecida sua orgiem d u ­ vidosa.4 Do ponto de vista histórico e genético, esses foram os principais antecedentes da teoria de Newton, eles deixam claro que aquela teoria não derivava da obser­ vação. Kant percebeu grande parte disso, m as levou em conta o fato de que mesmo as experiências físicas não são, geneticam ente, anteriores às teorias — da mesma form a que as observações astronôm icas. Elas tam bém representam apenas questões cruciais form uladas pelo hom em à natureza, com a ajuda de teorias análogas às perguntas propostas por Kepler a respeito da sua hipótese da ó rbita circular. As­ sim, K ant escreveu no prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura: “Q uando Galileu soltou seus pesos num plano inclinado, deslocados pela gravidade que tinha escolhido; quando Torricelli fez com que o ar sustentasse o peso que havia calculado previam ente p a ra equalizar o peso de um a coluna de água de determ inada altura; ... um a luz se fez entre os filósofos da natureza. Eles perceberam que nossa razão só pode com preender o que ela cria de acordo com seu próprio desenho; que precisamos obrigar a natureza a responder nossas perguntas, em vez de am arrarm os a seu avental, deixando-o guiar por ela. Com efeito, observações puram ente acidentais, feita s sem qualquer plano concebido previa­ m ente, não se podem associar em conform idade com ... um a lei — que é o que a razão busca. ” 5 Esta citação de Kant m ostra como o filósofo com preendia bem que p re ­ cisamos tom ar a iniciativa de confrontar a natureza com hipóteses, exigindo-lhe 4 - Penso que a crítica de Galileu feita por Arthur Koestler, no seu notável livro The Sleepwalkers, sofre do defeito de não levar em conta o cisma que descrevi. Galileu tinha tanta razão para tentar ver se poderia resolver os problemas que considerava dentro do quadro das idéias racionalistas quanto Kejpler estava justificado em suas tentativas de resolvê-los dentro do contexto astrológico. 5 - A ênfase é minha.

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um a resposta às nossas perguntas; que, à falta dessas hipóteses, estamos lim itados a fazer observações erráticas, que não seguem nenhum plano e por isso não nos podem levar a n enhum a lei n atu ral. Em outras palavras, Kant viu com perfeita clareza que a história da ciência tinha refutado o m ito baconiano de que é neces­ sário com eçar pela observação e dela derivar nossas teorias. Viu tam bém claram en ­ te que por trás desse fato histórico havia um fato lógico — que havia razões lógicas p ara que isso não ocorresse na história da ciência: era logicam ente impossível derivar teorias da observação. M eu terceiro ponto — a afirm ativa de que é logicam ente impossível derivar a teoria de Newton de observações — decorre im ediatam ente da crítica feita por H um e à validade das inferências indutivas, conform e assinalada por K ant. O a r­ gum ento decisivo de H um e pode ser form ulado assim : Tom am os u m a classe que consista em qualquer núm ero de afirm ativas derivadas da observação — afirm ativas verdadeiras —, designando-a por K. As afirm ativas da classe K descreverão observações reais, isto é, passadas. Designamos assim pela letra K q ualquer classe de afirm ativas verdadeiras a respeito de obser­ vações feitas no passado. Como adm itim os que K consiste exclusivamente de a fir­ mativas .verdadeiras, todas as afirm ativas dessa classe devem ser consistentes e com ­ patíveis entre si. Tom em os agora u m a afirm ativa adicional, tam bém derivada da observação, designada pela letra B, adm itindo que descreva um a observação f u ­ tura, logicam ente possível: por exem plo, de que haverá um eclipse do Sol a m a ­ nhã. O ra, como já se pôde observar eclipses solares, podemos ter a certeza de que afirm ativa como B é possível, em term os puram ente lógicos; isto é, B é autoconsistente. H um e dem onstra o seguinte: se B é um a afirm ativa derivada da observação sobre um possível evento futuro, e K é a classe de quaisquer afirm ativas do mesmo tipo, verdadeiras, sobre o passado, então B pode sem pre ser associada a K sem co n ­ tradição; em outras palavras, se acrescentarm os um a afirm ativa B sobre um pos­ sível evento futuro às afirm ativas de K, nunca chegarem os a um a contradição lógica. A conclusão de H um e pode ser form ulada tam bém assim: a classe das o b ­ servações passadas não pode ser contraditada por qualquer observação fu tu r a logicam ente possível. , „, Acrescentemos agora à simples conclusão de H um e um teorem a de pu ra lógica: sem pre que u m a afirm ativa B pode ser integrada, sem contradição, num a classe de afirm ativas K, pode tam bém ser integrada sem contradições em qualquer classe de afirm ativas que consista das afirm ativas de K reunidas a q u alq u er'o u tra afirm ativa derivada de K. Provamos assim nosso ponto: se a teoria de Newton pudesse ser derivada de um a classe K, nen h u m a fu tu ra observação B poderia contradizer a teoria e as o b ­ servações K. Sabemos contudo, por outro lado, que da teoria de Newton, e de obser­ vações passadas, é possível derivar um a afirm ativa sobre se haverá ou não um eclipse solar am anhã. O ra, se essa afirm ativa tiver sentido negativo (não haverá eclipse), então o nosso B é claram ente incom patível com a classe K e com a teoria de Newton. Disso, e dos resultados precedentes, segue-se logicam ente que é im pos­ sível ad m itir que a teoria de Newton pudesse ser derivada da observação. T endo provado o terceiro ponto, podemos ver de modo com pleto o enigm a da experiência — o paradoxo das ciências em píricas, que Kant descobriu: a d i­

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nâm ica de N ew ton ultrapassa essencialmente todas as observações; é universal, exata e abstrata; surgiu historicam ente de certos mitos; e é possível dem onstrar, por processo puram ente lógico, que não poderia ser derivada de afirm ativas relacio­ nadas com a observação. K ant dem onstrou tam bém que o que se aplica à teoria de Newton tam bém se aplica à experiência quotidiana, em bora possivelmente não n a m esm a escala: a experiência ordinária ultrapassa tam bém a observação; ela interpreta a observação, pois sem tal interpretação teórica a observação é cega, n ad a inform a. A experiên­ cia corrente funciona constantem ente com idéias abstratas, tais como a de causa e efeito — por isso não pode ser derivada de observações. Para solucionar o enigm a da experiência, e explicar como a ciência e a ex­ periência são possíveis, K ant elaborou sua teoria da experiência e da ciência n a ­ tural, que adm iro como um a tentativa verdadeiram ente heróica de resolver o p a ­ radoxo da experiência; penso, porém , que ela responde a um a falsa indagação e por isso é em parte irrelevante. O grande descobridor do enigm a da experiência errou num ponto im portante — erro inevitável que, de form a algum a, prejudica sua m agnífica realização. Q ual foi esse erro? Como disse, quase todos os filósofos e epistemologistas, até o nosso século, estavam convencidos de que a teoria de N ewton era verdadeira — e assim pensava K ant. Essa convicção era inescapável: ela tin h a perm itido as previsões mais exatas e espantosas, nenhum a das quais falh ara. Só os ignorantes podiam ter dúvidas sobre sua veracidade. Até mesmo H enri Poincaré, o m aior m atem ático, físico e filósofo da sua geração, falecido pouco antes da Prim eira G uerra M undial, ainda acreditava que a teoria new toniana era verdadeira e ir­ refutável. Poincaré foi um dos poucos cientistas que se preocuparam com o p a ­ radoxo de K ant quase tan to quanto o filósofo prussiano; em bora tivesse proposto um a solução algo diferente da de K ant, ela era de fato apenas um a variante da solução k an tian a. O ponto mais im portante, contudo, é que Poincaré participou plenam ente do erro de K ant — um erro inevitável, antes de Einstein. Mesmo os que não aceitam a teoria da gravitação de Einstein precisam a d ­ m itir que ela representou um a realização m om entosa, ao dem onstrar, quando menos, que fosse a teoria de Newton verdadeira ou falsa, não era o único sistema possível de m ecânica celestial, que explicasse os fenômenos^&stronômicos de modo simples e convincente. Pela prim eira vez em mais de 200 anos a teoria de Newton se tornou problem ática. D urante esses dois séculos ela se havia transform ado num dogm a perigoso, quase estupefaciente. N ão objeto aos que se opõem à teoria de; Einstein com razões científicas. Contudo, mesmo os opositores de Einstein têm , como seus grandes adm iradores, um a dívida de gratidão p ara com ele por nos ter libertado da crença paralisante na verdade incontestável da teoria de Newton. Graças a Einstein vemos hoje essa teoria como um a hipótese (ou um sistema de hipóteses) — possivelmente a m ais esplêndida e m ais im portante n a história da ciência, certam ente um a espantosa aproxim ação da v erd ad e.6 Se, ao contrário de K ant, considerarm os a teoria de Newton como um a hipótese de veracidade problem ática, m odificarem os radicalm ente o problem a 6 — Vide o comentário do próprio Einstein, na conferência que pronunciou em 1933 sobre “O Método da Física Teórica”, pág. 11, onde afirma: “Foi a teoria geral da relatividade que demonstrou... ser im­ possível para nós, usando princípios básicos, muito distantes dos de Newton, fazer justiça a toda a gama dos dados da experiência...”

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kantiano. N ão é de espantar, portanto, que a solução proposta pelo filósofo não se ajuste ao enunciado pós-einsteiniano do problem a, requerendo um a em enda. A solução de K ant é bem conhecida. Ele presum iu, corretam ente, que o m undo como o conhecemos é nossa interpretação dos fatos observáveis, à luz de teorias que inventam os. Nas palavras de K ant, “Nosso intelecto não deriva suas leis da n a tu re z a ... mas im põe leis à n atu reza”. Considero essa form ulação essencial­ m ente correta, m as acho que é m uito radical; gostaria portanto de vê-la refor­ m ulada da seguinte form a: “Nosso intelecto não deriva suas leis da natureza, mas ten ta im por à natureza leis que inventa livrem ente, com um grau variável de sucesso” . A diferença é a seguinte: a form ulação de K ant não só im plica que nossa razão ten ta im por leis à natureza, mas tam bém que esse esforço é invariavelm ente exitoso. K ant acreditava que as leis de Newton tinham sido impostas à natureza por nós mesmos, com grande sucesso — que estávamos obrigados a in terp retar a n a ­ tureza por seu interm édio; concluía assim que essas leis eram verdadeiras a prion. Foi assim que K ant viu o problem a, de form a sem elhante à de Poincaré. Sabemos no entanto, desde Einstein, que outras interpretações e teorias m uito diferentes são tam bém possíveis e podem até ser m elhores do que a de Newton. Por conseguinte, a razão é capaz de m ais de um a interpretação, e não pode im por u m a interpretação à natureza em caráter definitivo. A razão trab alh a pelo m étodo das tentativas, com erros e acertos. Inventam os mitos e teorias e em seguida os testam os experim entalm ente, p a ra ver até onde nos levam. Se temos a possibilidade de aperfeiçoar nossas teorias, é o que fazemos. A teoria m elhor é a que tem m aior capacidade de explicação — que explica m ais, com m aior precisão, perm itindo-nos m elhores previsões. Como K ant acreditava que era nossa responsabilidade explicar o caráter singular da teoria de Newton e sua veracidade, foi levado à crença de que ela se apoiava com necessidade lógica nas leis do nosso conhecim ento. A alteração do enunciado de K ant que propus, de acordo com a revolução de Einstein, nos livra dessa com pulsão. Deste m odo, as teorias podem ser vistas como livres criações da nossa m ente, o resultado de um a intuição quase poética, da tentativa d e 'c o m ­ preender intuitivam ente as leis da natureza. Contudo, não impomos mais nossas criações. Ao contrário, questionam os a natureza, como Kant nos ensinou, p ro ­ curando ex trair dela respostas negativas a respeito da verdade das teorias com que a interrogam os. Não procuram os prová-las ou verificá-las — nós as testamos m ediante um esforço dirigido à sua refutação. Deste m odo a liberdade e a ousadia das nossas criações teóricas são co n ­ troladas e tem peradas pela autocrítica, m ediante os testes m ais rigorosos que podem os conceber. É assim, pelos m étodos críticos de experim entação, que a lógica e o rigor científico se fazem sentir n a ciência em pírica. Já vimos que as teorias não podem ser derivadas logicam ente da observação. Podem , contudo, chocar-se com a observação, contradizê-la. É isso que to rn a pos­ sível inferir de determ inadas observações a falsidade de um a teoria. A possibilidade de refu tar as teorias pela observação constitui a base dos testes em píricos: testar um a teoria é sem pre — como q ualquer exam e rigoroso — um esforço p ara provar que o cand id ato se nganou, isto é, que as afirm ativas da tporia são falsas. Do p o n ­ to de vista lógico, p o rtan to , todos os testes em píricos são tentativas de refutação.

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Em conclusão, gostaria de dizer que sem pre se fazem tentativas laplacianas, buscando atrib u ir a nossas teorias pelo menos um alto grau de probabili­ dade, em vez de veracidade. Considero essas tentativas descabidas. Só podem os ter a esperança de dizer, a respeito de um a teoria, que ela explica isto ou aquilo; que foi rigorosam ente testada e que resistiu a todos os testes. Podemos tam bém com ­ p a ra r, por exem plo, duas teorias, p a ra ver qual delas resistiu m elhor a nossos testes mais severos — em outras palavras — qual foi m elhor corroborada pelos resultados desses testes. C ontudo, pode-se dem onstrar por m étodos puram en te m atem áticos que o grau de corroboração não pode ser identificado como um a probabilidade m atem ática. Pode-se tam bém dem onstrar que todas as teorias, mesmo as melhores, têm a m esm a probabilidade: zero. Mas, o grau em que são corroboradas (o que, pelo menos teoricam ente, pode ser estim ado com a ajuda do cálculo das p ro b a ­ bilidades) pode aproxim ar-se m uito da unidade — isto é, do m áxim o possível —, em bora sua probabilidade seja zero. A conclusão de que o apelo à probabilidade não pode solucionar o enigm a da experiência foi alcançada há m uito tem po por David H um e. Assim, a análise lógica dem onstra que a experiência não consiste na acum ulação m ecânica de observações — ela é criativa; resulta de interpretações livres, ousadas e criativas, controladas por crítica severa e por testes rigorosos.

2. O Problem a da Irrefutabilidade das Teorias Filosóficas Para evitar desde o princípio o perigo de m e p erder em generalidades, será m elhor explicar logo, com a ajuda de cinco exemplos, o que entendo por teoria filosófica. Típico exemplo de um a teoria filosófica é a do u trin a do determ inism o de K ant, aplicável ao m undo da experiência. Em bora K ant fosse no fundo um indeterm inista, afirm ou n a Crítica da Razão Prática7 que o conhecim ento completo das nossas condições psicológicas e fisiológicas, bem como do nosso am biente, to r­ naria possível prever nosso com portam ento futuro com a m esm a certeza com que podemos prever um eclipse do Sol e da L ua. De m odo mais geral, poderíam os form ular a do u trin a determ inista da seguinte fo rm a : O fu tu ro do m undo empírico {ou fen o m en a l) é pré-determ inado com ple­ tam ente, até os menores detalhes, pelo seu estado atual. O utra teoria filosófica é o idealismo de Berkeley ou Schopenhauer, que podemos form ular com a seguinte tese: “o m undo em pírico é m inha id éia” — “o m undo é o que estou sonhando”. Uma terceira teoria filosófica — considerada hoje m uito im p o rtan te — é o irracionalismo epistemológico, que pode ser explicado assim:

7 - Kritik der Praktischen Vernunft, 4.a a 6.a ed., päg. 172; ed. Cassirer, Works, vol. v, päg. 108.

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Como sabem os, graças a K ant, que a razão hu m an a é incapaz de perceber ou conhecer o m undo das coisas-em-si mesmas, devemos ou ab an d o n ar a esperança de chegar a conhecê-lo ou então ten tar o seu conhecim ento por outros meios que não o d a razão; um a vez que não podem os nem querem os ab an d o n ar essa esperan­ ça, precisam os em pregar meios irracionais ou supra-racionais — o instinto, a ins­ piração poética, as emoções. Segundo os irracionalistas, isso é possível porque em últim a análise somos tam bém coisas-em-si-mesmas; p o rtan to , se puderm os de algum a form a alcançar um conhecim ento im ediato e íntim o de nós mesmos, entenderem os o que são as coisas-em-si-mesmas. Este argum ento simples do irracionalism o é m uito característico da m aior parte dos filósofos pós-kantianos do século dezenove; por exem plo, do engenhoso Schopenhauer, que descobriu que, na qualidade de coisas-em-si-mesmas, somos vontade e que p o rtan to a vontade deve ser a coisa-em-si-mesma: o m undo é von­ tade, em bora no nível dos fenômenos seja um a idéia. Pode parecer estranho, m as essa filosofia obsoleta, vestida com roupas novas, voltou a en trar em m oda — em ­ bora sua m arcan te sem elhança com as idéias pós-kantianas tenha perm anecido oculta (ou talvez por causa disso) — na m edida em que as “roupas novas do im ­ p e ra d o r” podem ocu ltar algo. A tualm ente, a filosofia de Schopenhauer é apresentada em linguagem im ­ pressionante, obscura, substituindo-se a intuição reveladora de que o hom em , como coisa-em-si, é vontade pela intuição a u to -reveladora de que o hom em pode e n te d ia r-se de tal form a que esse tédio prova que a coisa-em-si é o nada, o vazio total. Não nego a relativa originalidade dessa variante existencialista da filosofia de Schopenhauer, dem onstrada pelo fato de que o próprio Schopenhauer nunca teria tido u m a idéia tão pobre da sua capacidade de resistir ao tédio. O que o filósofo descobriu nele mesmo foi vontade, atividade, tensão, excitação — o oposto do que foi descoberto por alguns existencialistas: o aborrecim ento profundo do ented iad o em-si-mesmo que se aborrece. Mas Schopenhauer não está m ais na m oda — a grande m oda do nosso período pós-kantiano, pós-racionalista, é o que Nietzche (“perseguido por prem onições, suspeitoso da sua própria descendência”, den o ­ m inou apro p riad am en te “niilismo eu ropeu”.8 Tem os, assim, um a lista de cinco teorias filosóficas: 1) o determ inism o: o futuro está contido no presente que o determ ina in ­ tegralm ente; 2) o idealismo: o m undo é o m eu sonho; 3) o irracionalismo: nossas experiências irracionais ou supra-racionais nos levam a conhecer as coisas-em-si-mesmas; podemos assim ter algum conhecim ento do m undo-em -si-m esm o; 4) o voluntarism o: em nossas volições nos reconhecemos como vontade; a coisa-em-si-mesma é vontade; *130 8 ' Cf. Julius Kraft, Von Husserl zu Heidegger, 2.a edição, 1957,p. ex.: págs. 103, 136, e, em especial 130, onde o autor declara: “É difícil, portanto, compreender como o existencialismo pode ter sido con­ siderado algo novo na filosofia, de um ponto de vista epistemológico”. Vide também o estimulante trabalho de H. Tint, em Proc. Arist. Society, 1956-7, pág. 253.

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5) o niilismo: nosso tédio nos faz reconhecer-nos como n ada; a coisa-em-simesma é o n ad a. Escolhi meus exemplos de m odo a poder dizer a propósito de cada u m a des­ sas teorias, depois de cuidadosa consideração, que estou convencido da sua falsi­ dade. Para ser m ais preciso: sou, em prim eiro lugar, um indeterm inista; em segun­ do lugar, um realista; em terceiro, um racionalista. Com relação ao quarto e q u in ­ to exemplos, aceito alegrem ente — n a com panhia de K ant e de outros racionalistas críticos — que não podem os alcançar o conhecim ento com pleto do m undo real, com sua infinita riqueza e beleza. Nem a física nem qualquer outra ciência nos pode aju d ar nisso. Por outro lado, estou tam bém seguro de que a fórm ula voluntarista — “o m undo é vontade” — tam bém não nos ajuda. Q uanto aos niilistas e existencialistas que se entendiam (possivelmente entediando tam bém os outros), só posso sentir com iseração por eles: devem ser cegos e surdos, pois se referem ao m undo como um cego falaria sobre as cores de Perugino, ou um surdo sobre a música de M ozart. Por que, então, escolhi como exemplos teorias filosóficas que reputo falsas? Porque tenho a esperança de que assim fique mais claro o problem a contido na afirm ação seguinte, que é m uito im portante: em bora considere todas as cinco teorias citadas como falsas, estou tam bém convencido de que não p o d em ser re­ futadas. Poderá causar surpresa esta afirm ativa de que, em bora me apresente como um racionalista, considero possível que um a teoria seja ao mesmo tem po falsa e irrefutável. Como pode um racionalista afirm ar que um a teoria é falsa e ao mesmo tem po irrefutável? Não estará obrigado, como racionalista, a refutar um a teoria antes de declarar que é falsa? Inversam ente, não precisará adm itir que um a teoria íítefutável é verdadeira? Com essas perguntas chego, finalm ente, ao nosso problem a. A últim a pergunta pode ser respondida m uito sim plesm ente. Alguns p en ­ sadores acreditam , de fato, que a verdade de um a teoria pode ser inferida da sua irrefutabilidade. Este, contudo, é um engano óbvio, pois pode haver duas teorias incom patíveis e igualm ente irrefutáveis — por exem plo, o determ inism o e o in ­ determ inism o. O ra, como duas teorias contrárias e incom patíveis não podem a m ­ bas ser verdadeiras, percebem os que são irrefutáveis e tam bém que, irrefutavel­ m ente, não podem ser verdadeiras. Inferir a veracidade de um a teoria da sua irrefutabilidade é portanto in a d ­ missível — qualquer que seja a form a como interpretem os a irrefutabilidade. N o r­ m alm ente, a palavra seria usada em dois sentidos: O prim eiro é puram ente lógico; “irrefutável” pode significar o mesmo que “irrefutável por meios puram ente lógicos” , o que quer dizer consistente. E óbvio que a verdade de um a teoria não pode ser inferida da sua consistência. O segundo sentido de “irrefutável” se refere às refutações por meio não só de premissas lógicas (ou analíticas), mas tam bém em píricas (ou sintéticas); em outras palavras, adm ite a refutação em pírica. Neste segundo sentido, “irrefutável” quer dizer o mesmo que “não refutável em piricam ente” ou, de m odo mais preciso, “com patível com qualquer afirm ativa em pírica possível” (“com patível com q u a l­ quer experiência possível”).

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T an to a irrefutabilidade lógica de u m a assertiva quanto sua irrefutabilidade em pírica podem ser conciliadas facilm ente com sua falsidade. No caso da irre ­ futabilidade lógica, isso fica claro porque todas as afirm ativas em píricas devem ser tão logicam ente irrefutáveis quanto a sua negativa. Por exemplo: as duas p ro ­ posições “hoje é segunda-feira” e ”hoje não é segunda-feira” são logicam ente ir ­ refutáveis; de onde se pode ver que há afirm ativas falsas que são logicam ente ir ­ refutáveis. No que diz respeito à irrefutabilidade em pírica a situaçfco é um pouco diferente. Os exemplos mais simples de afirm ativas em piricam ente irrefutáveis são as cham adas proposições éstrita ou puram en te existenciais. Eis um exem plo: “H á um pérola que é dez vezes m aior do que a segunda m aior pérola existente”. Se res­ tringirm os a palavra “H á ” a algum a região definida do espaço e do tem po, teremos sem dúvida um a afirm ativa refutável. Por exem plo, a proposição seguinte, que é em piricam ente refutável: “H á agora nesta caixa pelo menos duas pérolas, um a das quais é dez vezes m aior do que a o u tra ” . Porém , essa já não seria um a afirm ativa p u ra ou esfritam ente existencial, e sim u m a proposição existencial restrita. As a fir­ m ativas p u ram en te existenciais se aplicam a todo o universo: são irrefutáveis sim ­ plesm ente porque não existe um processo que permitisse refutá-las. Mesmo que fôs­ semos capazes de investigar todo o universo, um a afirm ativa desse tipo não poderia ser refu tad a pela não descoberta da pérola em questão, que podería estar oculta em algum lugar não investigado.

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não prova nada veis.

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— precisam ente porque as proposições existenciais são irrefutá*

Assim, a irrefutabilidade lógica ou em pírica de um a teoria não é segura­ m ente um a razão para adm iti-la como verdadeira; daí o m eu direito de acreditar que as cinco teorias filosóficas citadas são todas elas irrefutáveis e falsas. H á cerca de vinte e cinco anos propus que se distinguisse as teorias empíricas ou científicas das teorias não-em píricas e não-científicas, definindo as prim eiras como refutáveis e as segundas como irrefutáveis. As razões da m inha proposta eram as seguintes: todo teste a que subm etem os um a teoria é um a tentativa de refutá-la. “T estabilidade” , por conseguinte, é o mesmo que refutabilidade (falsifiabihty) . Como cham am os de “em píricas” ou “científicas” só as teorias que podem ser tes­ tadas em piricam ente, concluímos que é a possibilidade de refutação em pírica que distingue as teorias científicas (ou em píricas). Aceito esse “critério de refu tabilidade” , veremos im ediatam ente que as teorias filosóficas, ou m etafísicas, são irrefutáveis por definição. M inha afirm ativa de que as cinco teorias filosóficas referidas são irrefutáveis soará agora quase trivial. Ao mesmo tem po, terá ficado óbvio que em bora seja um racionalista, não estou obrigado a refutar essas teorias p ara poder considerá-las “falsas” . O que nos leva ao ponto crucial do problem a:

Eis aqui alguns exemplos de afirm ativas existenciais em piricam ente irre ­ futáveis, mais interessantes:

Se todas as teorias filosóficas são irrefutáveis, como podem os distinguir as teorias falsas das verdadeiras?

“H á um a cura p ara o câncer com pletam ente eficaz; mais precisam ente, há um a substância que pode ser tom ada e que cura o câncer, sem qualquer efeito nocivo.” Desnecessário dizer que essa afirm ativa deve ser interp retad a de m odo a significar que essa substância é conhecida, ou que será descoberta dentro de um período determ inado.

É um problem a sério, que tem raízes na irrefutabilidade das teorias filo ­ sóficas. Para*enunciá-lo mais claram ente, gostaria de reform ulá-lo da seguinte fo r­ m a: Podemos distinguir três tipos de teoria: Em prim eiro lugar, as teorias lógicas e m atem áticas.

O utro exem plo: “Existe um a cura para toda e qualquer doença in f e c ­ ciosa” . “H á u m a fórm ula latina que, se pro nunciada da m aneira correta, cura qualq u er d o e n ç a.” Tem os aí proposições em piricam ente irrefutáveis que poucos considerariam verdadeiras. São irrefutáveis porque seria obviam ente impossível experim entar todas as fórm ulas latinas concebíveis, com binadas com todas as formas possíveis de pronunciá-las. P ortanto, restará sem pre a possibilidade lógica de que haja de fato algum a fórm ula latina m ágica, com o poder de curar todas as doenças. Mesmo assim, teríam os justificativa p ara acreditar na falsidade dessa afir­ m ativa existencial irrefutável. Não podem os, de fato, provar que é falsa; mas tudo o que conhecemos a respeito das doenças nos indica que não pode ser verdadeira. Em outras palavras: em bora não nos seja possível dem onstrar sua falsidade, a con­ jectu ra de que não existe tal fórm ula m ágica é m uito mais razoável do que a co n ­ jectu ra irrefutável de que essa fórm ula existe. Seria desnecessário lem brar que d urante quase 2.000 anos muitos homens bem inform ados aceitaram a verdade de um a afirm ativa existencial desse gênero — por isso persistiam na busca da p edra filosofal. O fato de quç não a descobriram

Em segundo lugar, as teorias em píricas e científicas. Em terceiro lugar, as teorias filosóficas ou m etafísicas. Dentro de cada um desses grupos, como distinguir as teorias verdadeiras das falsas? Com relação ao prim eiro grupo, a resposta é óbvia: p ara saber se um a teoria m atem ática é verdadeira ou falsa, temos que testá-la, a princípio superficialm ente e depois com mais rigor, tentando sem pre refutá-la. Se não o conseguirm os^ te n ­ tarem os prová-la, ou refu tar sua negação. Se isso tam bém não for possível, podem surgir dúvidas sobre a veracidade da teoria, e precisarem os m ais um a vez tentar refutá-la; e assim por diante, até chegarm os a um a conclusão — ou então afastar­ mos o problem a, por ser dem asiadam ente difícil. A situação poderia tam bém ser descrita de outra m aneira: nossa tarefa co n ­ siste em testar, e exam inar criticam ente, duas (ou m ais) teorias rivais — nós a cu m ­ primos tentando refutá-las até chegarm os a um a decisão. No cam po da m a te ­

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m ática (mas só nesse cam po) essas decisões são via de regra definitivas: é raro e n ­ contrar provas inválidas que passem despercebidas. Se considerarm os as ciências em píricas, veremos que seguem, de m odo ge ral, o mesm o procedim ento: as teorias são testadas e exam inadas criticam ente, p ro ­ curando-se refutá-las. A única diferença im portante é que podem os utilizar ta m ­ bém argum entos em píricos, ju n tam en te com outras considerações críticas. Mas o instrum ento p rincipal continua a ser o pensam ento crítico. As observações só s£5 em pregadas se se ajustam à discussão crítica. Se consideram os as teorias filosóficas, nosso problem a será reform ulado as­ sim: É possível exam inar criticam ente teorias filosóficas irrefutáveis? Em caso a fir­ m ativo, qual o conteúdo de um a discussão crítica de teoria desse gênero (que deveria ser u m a tentativa de refutar a teoria?). Em outras palavras, será possível avaliar racionalm ente — criticam ente — um a teoria irrefutável? Que argum entos racionais podem os levantar em favor de um a teoria (ou contra ela) que sabemos não ser dem onstrável nem refutável? P ara ilustrar com exemplos essas várias form ulações do nosso problem a, vou referir-m e o u tra vez ao determ inism o. K ant sabia perfeitam ente que não somos capazes de prever o com portam ento futuro de um ser hum ano com precisão igual àquela com que podem os prever um eclipse; mas explicava a diferença pela p re ­ sunção de que sabemos m uito menos sobre as condições presentes da pessoa cujo com portam ento querem os prever — seus desejos, temores, sentim entos, sua m o ­ tivação — do que sobre a situação atu al do sistema solar. Essa prem issa contém , im plicitam ente, a seguinte hipótese: “H á um a descrição verdadeira da situação presente dessa pessoa que seria suficiente, em conjunção com as leis natu rais verdadeiras, p a ra prever seu com por­ tam ento fu tu ro .” O ra, trata-se de um a afirm ativa p u ram ente existencial, portanto irrefutável. Podemos pois, a despeito disso, discutir racional e criticam ente o argum ento de Kant? Como segundo exem plo consideremos a tese: “O m undo é m eu sonho” . E m ­ bora seja claram ente irrefutável, poucos a consideram verdadeira. Mas. será dossível discuti-la racional e criticam ente? Sua irrefutabilidade não constituirá um obs­ táculo irremovível a qualq u er discussão crítica? Q uanto ao determ inism o kantiano, poder-se-ia pensar que sua discussão crítica tivesse início com a seguinte observação, dirigida ao filósofo: “Meu caro K ant: não basta, sim plesm ente, afirm ar que existe um a descrição verdadeira su­ ficientem ente d etalh ad a p ara nos perm itir preverão futuro. Será necessário que nos digas exatam ente em que consistiria essa descrição, de m odo a poderm os testar tua teoria em piricam ente” . D ar essa resposta, contudo, equivaleria a presum ir que as teorias filosóficas (irrefutáveis, p o rtanto) não podem jam ais ser discutidas; que um pensador responsável está obrigado a substituí-las por teorias testáveis em pirica­ m ente, p a ra to rn ar possível sua discussão racional.

O S T A T U S DA CIÊNCIA E DA METAFÍSICA

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Espero que nosso problem a esteja agora b astante claro; prosseguirei, p o r­ tanto, propondo um a solução p ara ele. M inha solução é a seguinte: se as teorias filosóficas fossem apenas a fir­ m ativas isoladas a respeito do m undo, enunciadas como quem diz “aceite se quiser” , sem relação com qu alq u er outra coisa, de fato elas não poderiam ser discu­ tidas. Mas o mesmo se poderia dizer de um a teoria em pírica. Se alguém nos apresentasse as equações de Newton, ou mesmo seus argum entos, sem explicar-nos antes que problem as essa teoria pretende resolver, não estaríam os em condições de discutir racionalm ente sua veracidade; seria o mesmo que debater criticam ente a verdade do Livro da, Revelação. Se não tivermos nenhum conhecim ento dos resul­ tados obtidos por Galileu e Kepler, dos problem as resolvidos com esses resultados, o problem a de Newton de explicar as soluções de Galileu e Kepler por meio de um a teoria unificada, acharem os que a teoria de Newton está tão afastada da possi­ bilidade de discussão quanto qualquer teoria m etafísica. Em outras palavras, toda teoria racional, seja científica ou filosófica, é racional na m edida em que procura resolver determ inados problem as. Uma teoria só será compreensível e razoável sem relação a um a certa situação-problem a; só poderá ser discutida racionalm ente dis­ cutindo-se essa relação. Se considerarm os um a teoria como solução proposta p a ra certo conjunto de problem as, ela se prestará im ediatam ente à discussão crítica, mesmo que seja nãoem pírica e irrefutável. Com efeito, poderem os form ular perguntas tais como: resol­ ve o problem a em questão? Resolve-o m elhor do que outras teorias? T erá apenas m odificado o problem a? A solução proposta é simples? E fértil? C ontraditará teorias filosóficas necessárias p ara resolver outros problem as? Perguntas desse tipo dem onstram que pode haver perfeitam ente um a dis­ cussão crítica mesmo de teorias irrefutáveis. Uma vez mais vou d ar um exemplo específico: o idealismo de Berkeley ou de H um e (que representei pela fórm ula sim plificada: “O m undo é m eu sonho”). Esses dois filósofos não queriam elaborar um a teoria tão extravagante — o que se pode depreender da insistência de Berkeley em que sua teoria concorda no fundo com o senso com um . ( ) Se procurarm os entender a situação-problem a que levou B er­ keley e H um e a proporem suas explicações, veremos que am bos acreditavam que todo o nosso conhecim ento podia ser reduzido a impressões sensoriais e a asso­ ciações entre memórias e imagens. Essa presunção os levou a ad o tar o idealismo — no caso de H um e, m uito a contragosto. H um e só se tornou um idealista porque não conseguiu reduzir a concepção realista a impressões sensoriais. Portanto, é perfeitam ente razoável criticar o idealism o de H um e, apontando que sua teoria sensorialista do conhecim ento e do aprendizado era de qualquer fo r­ m a inadequada, e que existem teorias menos inadequadas sem conseqüências idealistas indesejadas. Da mesm a form a, podem os discutir o determ inism o de K ant racional e criticam ente. K ant foi, no fundo, um indeterm inista, em bora aceitasse o d e te r­ minismo com relação ao m undo dos fenômenos — conseqüência inevitável d a teoria de Newton; mas nunca teve dúvida de que o hom em , como ser m oral, não era determ inado. Contudo, o filósofo nunca conseguiu resolver o conflito entre sua

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

filosofia p rática e sua concepção teórica de m odo que considerasse plenam ente satisfatório; desesperou de chegar a um a solução real. Ao d eterm in ar a situação-problem a específica do determ inism o kantiano tornam os possível sua crítica. Podemos indag ar, por exemplo, se ele decorria realm ente d a teoria de N ew ton. Vamos conjecturar por um m om ento que não era as­ sim. N ão tenho dúvida de que um a prova clara da verdade desta conjectura teria persuadido K ant a ren u n ciar a sua d o u trin a determ inista — em bora ela fosse ir ­ refutável e, p o rtan to , não pudesse o filósofo ser obrigado logicam ente a renunciar. O mesmo com relação ao irracionalism o, que surgiu no cam po da filosofia racional com H um e; os que leram esse filósofo — um sereno analista — percebem que não era isso que ele pretendia. O irracionalism o foi um a conseqüência não deliberada da convicção de H um e de que de fa to aprendem os por meio da indução baconiana, ju n tam en te com a dem onstração lógica que desenvolveu de que é im ­ possível justificar racionalm ente a indução. “T an to pior p ara a justificação r a ­ cional” , foi a conclusão que tirou, necessariam ente, da situação; aceitou essa con­ clusão irracional com a integridade característica do verdadeiro racionalista, que não afasta um a conclusão desagradável, se ela parece inevitável. C ontudo, nesse caso ela não era inevitável, em bora parecesse assim a seus olhos. N a verdade não somos “m áquinas de in dução” baconianas, como pensava. O hábito não desem penha, no processo de aprendizado, a função que H um e lhe atrib u iu . Assim, o problem a que ele enfrentou desaparece, e com o seu problem a as conclusões irracionalistas a que se viu obrigado. A situação do irracionalism o pós-kantiano é até certo ponto sem elhante. Schopenhauer, em p articu lar, se opunha genuinam ente ao irracionalism o, tendo escrito movido por u m desejo: ser com preendido — escreveu mais lucidam ente do que q ualquer outro filósofo alem ão. O esforço que fez p ara ser com preendido to r­ nou-o um dos poucos grandes mestres da língua alem ã. Os problem as de Schopenhauer foram os mesmos da m etafísica kantiana — o problem a do determ inism o no m undo dos fenômenos, o problem a da coisa-em-si mesma e da nossa participação num m undo de coisas-em-si-mesmas. Ele solucionou esses problem as — que transcendiam toda a experiência possível — de m aneira tipicam ente racional. Mas sua solução tinha que ser irracional, porque Schope­ nh au er era um k antiano e como tal acreditava nos limites da razão que K ant havia descoberto; acreditava que os limites da razão hum ana coincidiam com os limites da experiência possível. No en tanto , outras soluções eram possíveis. Os problem as de K ant podem e precisam ser revistos; o sentido dessa revisão é indicado pela sua idéia fundam ental de um racionalism o crítico, ou autocrítico. A descoberta de um problem a filosófico pode ser algo definitivo: um a vez ocorrida, está feita para sem pre. Mas a solução de um problem a filosófico nunca é definitiva, pois não se pode fu n d am entar num a prova final, ou nu m a refutação decisiva — essa é a conseqüência da irrefutabilidade das teorias filosóficas. Uma solução tam bém não se pode basear num a fó r­ m ula m ágica, avançada por profeta filosófico inspirado (ou entediado); pode. sim. basear-se no exam e crítico e consciencioso de um a situação-problem a, de suas premissas e das várias m aneiras possíveis de resolvê-la.

9.

Por que os Cálculos Lógicos e Aritméticos São Aplicáveis à Realidade?*

O Professor Ryle lim itou sua co n trib u ição *1 à aplicabilidade das regras da lógica — ou, mais precisam ente, às regras lógicas da inferência. Pretendo acom ­ panhá-lo neste p articular, e só mais tarde estender o escopo do m eu trabalho à aplicabilidade dos cálculos lógicos e aritm éticos. A distinção que acabo de fazer e n ­ tre as regras lógicas da inferência e os cham ados cálculos lógicos (tais como o cál­ culo proposicional, o cálculo de classes ou de relações) exige, porém , algum es­ clarecim ento; por isso exam inarei na seção i essa distinção, bem como o relacio­ nam ento entre as regras de inferência e os cálculos, antes de ab ordar os dois problem as principais que se colocam à nossa frente: a aplicabilidade das regras de inferência (seção ii) e dos cálculos lógicos (seção viii). Farei referências a certas idéias apresentadas pelo Professor Ryle, em seu trabalho — idéias que me serão úteis —, bem como na exposição aue fez na So­ ciedade Aristotélica, em 1945, sob o título “Saber como e Saber q u e”2

I Vamos considerar inicialm ente, como exemplo simples, um argum ento ou raciocínio enunciado em um a língua qualquer. O argum ento consistirá em um a série de afirm ativas. Podemos adm itir, por exemplo, que alguém alegue o seguinte: “R aquel é a m ãe de R icardo. R icardo é o pai de R oberto. A m ãe do pai é a avó patern a. Logo, R aquel é a avó p atern a de R o b erto .” A palavra “logo”, na últim a frase, pode ser entendida como indicação de que quem fala afirm a que seu argum ento é conclusivo, ou válido; em outras palavras, que a últim a assertiva (a conclusão) deriva validam ente das três prim eiras afir­

* Terceiro trabalho de um simpósio realizado conjuntamente pela Mind Association e a Sociedade Aris­ totélica, em 1946, em Manchester. Publicado nos Proceedings o f the Aristotelian Society, vol. supl. 20. 0 primeiro expositor foi o Prof. Gilbert Ryle; o segundo, o Dr. C. Lewy — más sua contribuição foi dis­ tribuída tarde demais para poder ser discutida no meu trabalho, cujo parágrafo de abertura foi aqui omitido. 1 — A contribuição do Prof. Ryle está sumarizada no meu trabalho, na medida em que isso é necessário para poder entendê-lo. 2 — Vide Aristóteles, An. Post., ii, 19, 100a, 8.

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m ativas (as premissas). Essa alegação do caráter conclusivo do que se disse pode ser verdadeira ou falsa. Se alguém diz costum eiram ente a verdade, com afirm ativas desse tipo, com entam os que essa pessoa sabe como argum entar. Ela pode saber a r ­ gum entar sem ser, contudo, capaz de explicar, em palavras, as regras de proce­ dim ento que observa (como as outras pessoas que sabem como argum entar) — exatam ente como um pianista que sabe como tocar bem seu instrum ento sem ser capaz de explicar as regras de procedim ento im plicadas num a boa execução. Se alguém sabe como argum entar sem ter sem pre consciência das regras de procedim ento, costum am os dizer que argum enta ou raciocina “intuitivam ente . Se lermos o argum ento acim a, poderem os dizer, intuitivam ente, que ele é válido. Não há m uita dúvida de que quase todos raciocinam os, via de regra, intuitivam ente — no sentido indicado. A form ulação e discussão das regras de,procedim ento que se encontram sob os argum entos intuitivos ordinários é um tipo de investigação b as­ tante especializado e sofisticado, próprio dos entendidos em lógica. Em bora q u a l­ quer pessoa razoavelm ente inteligente saiba como argum entar — desde que os a r ­ gum entos não sejam m uito com plicados — há poucas pessoas capazes de form ular as regras subjacentes ao seu raciocínio, que conhecemos como “regras de inferên­ cia” : poucas pessoas sabem que um a d eterm inada regra de inferência é válida (um núm ero menoY ainda sabe por que). A regra de inferência específica relacionada com o argum ento acim a pode ser form ulada como segue, m ediante o uso de variáveis e de alguns símbolos a r ­ tificiais: 3 P artindo de três premissas da form a: x R y ySz R S = T podem os chegar a um a conclusão da form a: x T z Nessa fórm ula, podemos substituir x, y e z por qualquer nom e próprio de pessoa; R, S e T por qualq u er relacionam ento entre pessoas; x R y, etc., por q u a l­ quer afirm ativa no sentido de que R ocorre entre x e y etc.; R S por qualquer relação entre x e z — se, e somente se há um y tal que x R y e y S z; finalm ente = expressa aqui igualdade de extensão entre relações. Note-se que esta regra de inferência faz afirm ativas sobre proposições de um a certa form a, o que a distingue claram ente de um a fórm ula de cálculo (neste caso, de cálculo de relações) tal como:

3 — Penso que o melhor método de formular esses esquemas é mediante o emprego da “quase-citação” de Quine — mas não pretendo introduzir aqui a notação de Quine.

POR QUE OS CÁLCULOS LÓGICOS E ARITMÉTICOS SÃO APLICÁVEIS À REALIDADE? 229

“P ara todo R, S, e T ; e p ara todo x, y e z: se xRy e ySz, e R S = T , entãc x T z.” Sem dúvida essa fórm ula tem algum a sem elhança com nossa regra de in ­ ferência; de fato, no cam po do cálculo das relações, corresponde à nossa regra de inferência. Mas, não é a m esm a coisa: afirm a algo condicionalm ente sobre todas as relações e os indivíduos de u m determ inado tipo — a saber, que toda afirm ativa de determ inada form a é dedutível, incondicionalm ente, de um conjunto de afirm ativas de form a diferente. De m odo sem elhante, podemos distinguir, por exem plo, entre a regra de in ­ ferência (cham ada “B arb ara”) da lógica tradicional: M a P S a M Sa P e a fórm ula do cálculo das classes “Se M a P e S a M, então S a P ” (ou, usandq notação um pouco mais m oderna: “Se C C b e a Ce, então a C b); ou »entre a regra de inferência — cham ada “princípio de inferência da lógica proposicional” ou m odus ponendo pones: P Se p, então q

q — e a fórm ula do cálculo das proposições: “Se p e se p , então q, então q O fato de que a cada regra de inferência conhecida corresponde um a fó r­ m ula hipotética ou condicional logicam ente verdadeira de algum cálculo bem co­ nhecido — um a “fórm ula hipotética de lógico” (“logician's hypothetical”, confor­ me as cham a o Professor Ryle) levou a um a confusão entre regras de inferência e as fórm ulas condicionais correspondentes. Mas há algum as diferenças im portantes: 1) as regras de inferência são sem pre afirmativas a respeito de afirm ativas, ou a res­ peito de classes de afirm ativas (são “m etalingüísticas” ); as fórm ulas dos cálculos, não; 2) as regras de inferência constituem afirm ativas incondicionais sobre a dedutibilidade, enquanto as correspondentes fórm ulas de cálculo são condicionais e hipotéticas: S e..., en tã o ... ; não se referem à inferência ou à dedutibilidade; as premissas ou a conclusões; 3) um a regra de inferência, depois da substituição das constantes por variáveis, afirm a algo sobre um certo argum ento — um a observân­ cia da regra de que o argum ento é válido; mas a fórm ula correspondente, após a m esm a substituição, fornece um truísmo lógico — afirm ativa do tipo “todas as mesas são m esas”, em bora em form a hipotética, com o, por exemplo, “se é um a mesa, então é um a m esa” ; ou : “se todos os hom ens são m ortais, e todos os gregos são hom ens, então todos os gregos são m ortais” ; 4) as regras de inferência nunca são usadas como premissas naqueles argum entos form ulados de acordo com elas; m as as fórm ulas correspondentes são em pregadas assim. De fato, este é um dos motivos principais p ara . efaborar cálculos lógicos: usando fórm ulas.hipotéticas âç

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lógico” (isto é, truísmos hipotéticos que correspondem a determ inadas regras de in ­ ferência) como prem issas, podemos dispensar a respectiva regra de inferência. Com esse m étodo elim inam os todas as diferentes regras de inferência — exceto u m a , o “princípio de inferência” acim a m encionado (ou duas, se usarmos o “princípio de substituição” que, contudo, pode ser evitado). Em outras palavras, o m étodo usado para desenvolver um cálculo lógico em reduzir sistem aticam ente um grande n ú ­ m ero de regras de inferência a um a só (ou duas). Todas as dem ais são substituídas pelas fórm ulas do cálculo, o que tem a vantagem de que todas essas fórm ulas — em núm ero infinito — podem ser inferidas sistem aticam ente de umas poucas fórm ulas, usando o “princípio d a inferência”. Já indicam os que p ara cada um a das regras de inferência conhecidas há um a fórm ula num cálculo lógico conhecido. O inverso não é verdadeiro, de modo geral (em bora seja verdadeiro p ara as fórm ulas hipotéticas). Por exemplo: não existe regra de inferência correspondente às fórm ulas “p ou não-£ rel="nofollow"> , n ã o -{p e não/?)” ; e a m uitas outras que não são hipotéticas. P ortanto, é preciso distinguir com cuidado entre as regras de inferência e as fórm ulas dos cálculos lógicos. Isso, contudo, não nos im pede de interpretar um cer­ to subconjunto dessas fórm ulas — as “fórm ulas hipotéticas de lógico” — como regras de inferência. De fato, nossa afirm ativa de que a cada um a dessas fórm ulas hipotéticas corresponde um a regra de inferência justifica tal interpretação. II Depois destes aspectos prelim inares, até certo ponto de ordem técnica, vol­ tam o-nos p a ra a form a como o Professor Ryle tra ta a questão: “Por que as regras de inferência são aplicáveis à realidade?” A indagação é um a parte im portante do nos­ so problem a original, pois acabam os de ver que no caso de um certo subconjunto das fórm ulas de cálculo lógico (as que o professor Ryle cham a de “fórm ulas h i­ potéticas de lógico”) essas regras podem ser interpretadas como regras de inferên­ cia. Se com preendi bem , a tese central do Professor Ryle é a seguinte: as regras da lógica ou, m ais precisam ente, as regras de inferência, são regras de procedim en­ to, o que significa que se aplicam a certos procedim entos, não a coisas ou a fatos. Não se aplicam à realidade — se por “realid ade” entendem os as coisas e os fatos descritos pelos cientistas e historiadores. Na verdade, não se “aplicam ” p ro p riam en ­ te, no sentido em que a descrição de um a pessoa, por exemplo, se aplica (se ajusta) a ela: ou no sentido em que um a teoria descritiva — por exem plo, relativa à absor­ ção de ressonância nuclear — pode aplicar-se aos átomos de urânio. As regras lógicas dizem respeito ao procedim ento apto p ara a inferência; são comparáveis às regras de trânsito, que se aplicam ao procedim ento de dirigir um automóvel. Podem ser observadas ou violadas; aplicá-las não significa po rtan to um ajustam en­ to , mas sim um a observância: agir de acordo com elas. Se a questão “Por que as regras de lógica são aplicáveis à realidade?” é entendida erroneam ente significando “Por que as regras de lógica se ajustam às coisas e aos fatos do nosso m undo?”, a resposta seria que a p ergunta presum e que elas podem ajustar-se ao m undo, e de fato se ajustam a ele, em bora não seja possível aceitar como um predicado das regras de lógica que “se ajustam aos fatos do m u n d o ”, ou que “não se ajustam aos fatos do m u n d o ” — o que não seria possível, d a mesma form a como não seria pos­ sível p ara um código de trânsito ou um conjunto de regras de xadrez.

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Nosso problem a parece assim deixar de existir. Os que especulam a respeito do por que as regras de inferência se aplicam ao m undo, tentando em vão im a ­ ginar como seria um m undo ilógico, são vítimas de um a am bigüidade. As regras de inferência são regras de procedim ento, que não podem ser ‘aplicadas” no sentido de se “ajustarem ”, m as sô no sentido de serem “observadas” . P ortanto, o m undo em que não fossem aplicadas essas regras não seria um m undo “ilógico”, m as sim um m undo povoado por pessoas ilógicas. Essa análise (que é a do professor Ryle) m e parece im portante e verdadeira. Ela indica m uito bem a direção em que se pode solucionar nosso problem a. Mas não estou convencido de que por si mesm a ela nos ofereça um a solução. A situação me parece a seguinte: a análise do professor Ryle dem onstra que um certo m odo de in terp retar o problem a lhe retira todo o sentido, reduzindo-o a um pseudoproblem a. O ra, há m uitos anos que adotei um a regra pessoal de p ro ­ cedim ento: não me satisfazer facilm ente com a redução de qualquer problem a à categoria de pseudoproblem a. Q uando alguém propõe essa redução, sempre me pergunto se não seria possível encontrar outra interpretação do problem a original — um a interpretação que m ostre, se possível, que independentem ente do pseudo­ problem a há tam bém um problem a real por trás dele. Em m uitos casos descobri que esta regra de procedim ento é frutífera. Adm ito plenam ente que um a análise que tenta reduzir o problem a original a um pseudoproblem a pode m uitas vezes ser valiosa, m ostrando que corríam os o perigo de pensar com pouca clareza, aju d an d o nos assim a localizar o problem a real. Mas isso não o resolverá — o que, me parece, acontece tam bém no caso presente. III Aceito o ponto de vista do professor Ryle de que as regras da lógica (ou da inferência) são regras de procedim ento ou, como ele* próprio diz, que podem ser consideradas como regras de procedim ento boas, úteis, ou valiosas. Sugiro porém que o problem a: “For que as regras de lógica são aplicáveis à realidade?” pode ser interpretado de m odo a significar: “Por que as regras de lógica são regras de procedim ento boas, úteis ou valiosas?” N ão se pode negar que esta interpretação seja justificável. A pessoa que aplica regras de lógica, no sentido de agir de acordo com elas ou, como diz o professor Ryle, de observá-las, age assim provavelm ente porque as considera úteis na prática. Mas isso significa que as considera úteis no tratam en to de situações reais, isto é, no tratam ento da realidade. Se perguntam os: “Por que essas regras são úteis” querem os saber algo sem elhante à pergunta: “Por que são essas regras aplicáveis?”. A sem elhança é suficiente, quer-m e parecer, p ara pretender que isso era exatam ente o que tinha em m ente o form ulador original da pergunta. Por outro lado, não há m ais dúvida de que nossa perg u n ta deixa então de ser um pseudoproblem a. IV Acredito que a questão pode ser respondida de form a relativam ente simples. A pessoa que considera útil a observância das regras de lógica é, como vimos, um a pessoa que faz inferências; isto é: extrai de certas afirm ativas ou descrições de fatos, as “prem issas” , outras afirm ativas ou descrições de fatos, as “conclusões”, e con­

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sidera esse procedim ento útil porque verifica que, sem pre que observa as regras da lógica, consciente ou intuitivam ente, a conclusão a que chega é verdadeira — des­ de que as premissas adotadas sejam tam bém verdadeiras. Em outras palavras, poderá obter inform ações indiretas fidedignas (e possivelmente valiosas), desde que seus dados originais sejam tam bém fidedignos e valiosos, Se é assim, podem os então substituir nossa pergunta: “Por que as regras da lógica são boas regras de procedim ento?” por outra questão — “Q ual a explicação do fato de que as regras lógicas de inferência levam sem pre a conclusões verda­ deiras, desde que as premissas sejam tam bém verdadeiras?” .

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VI Para ver se este resultado tem algum a utilidade tentarei aplicá-lo a um a crítica dos três principais pontos de vista a respeito da natureza da lógica, que são os seguintes: A ) As regras da lógica são leis do pensam ento. A l ) São leis naturais do pensam ento, que descrevem como pensamos realm ente (não podem os pensar de o u tra form a). A 2) São leis norm ativas, que nos dizem como devemos pensar. B ) As regras da lógica são as leis mais gerais da natureza — leis descritivas que se aplicam a todos os objetos.

V Acho que essa questão tam bém pode ser respondida de m odo co m p arati­ vam ente fácil. Depois de aprender a falar e a usar nossa língua p ara descrever fatos, tornam o-nos logo mais ou menos fam iliares com o procedim ento denom i­ nado “raciocínio” ou “argu m en tação ” , isto é, com o procedim ento intuitivo des­ tinado a obter algum tipo de inform ação secundária que não constava explicitam ente da nossa inform ação original. Parte desse procedim ento intuitivo pode ser analisado em term os de regras de inferência. A form ulação dessas regras é a tarefa principal da lógica. Desse m odo podem os estabelecer que a regra de inferência usada por um lógico só representa, por definição, u m a regfa de inferência “válida” se sua obser­ vação assegurar conclusões verdaüerias — desde, n atu ralm en te, que as premissas sejam tam bém verdadeiras. Se tivermos êxito em en contrar um caso em que a o b ­ servância de u m a regra proposta nos leve a um a falsa conclusão, a p a rtir de premissas verdadeiras (o que cham aria de contra-exem plo), estaremos satisfeitos com a qualificação de inválida p ara a regra em questão. Em outras palavras, co n ­ sideram os um a regra de inferência “válida” som ente se não existe qualquer co n traexem plo dessa regra — havendo a possibilidade de jle m o n stra r que não existe nenhum contra-exem plo. Da m esm a form a, consideramos “válida” um a observân­ cia de determ in ad a regra de inferência (isto é, um a inferência) somente se não há nenhum contra-exem plo da regra observada. Assim, u m a regra de inferência “b o a ”, ou “válida” é útil porque não p o ­ demos descobrir n enhum contra-exem plo, isto é, porque podemos confiar nela como regra que nos conduz de um a descrição verdadeira de fatos a outra, tam bém verdadeira. Mas, como podemos dizer, a respeito de um a descrição verdadeira, que ela “se aju sta” aos fatos, a noção de “aplicação” de um a regra, no sentido de “ajus­ tam en to ” não en tra n a nossa análise de form a indireta. Podemos dizer que as regras de inferência só se aplicam aos fatos na m edida em que cada exemplo de o b ­ servância de u m a dessas regras, que começa com um a descrição ajustada aos fatos, nos leva a o u tra descrição que tam bém se ajusta à realidade. E interessante n o tar que a im portância fundam ental do princípio de que um a inferência válida de premissas verdadeiras nos leva invariavelm ente a con­ clusões verdadeiras foi discutido por Aristóteles {Anal. Prior., II, 1-4).

C) As regras da lógica são leis relativas a certas linguagens descritivas — ao em prego das palavras e em especial das frases. A razão por que se tem aceito A l de m odo tão am plo reside, penso, no fato de que há algo inescapável nas regras lógicas — pelo menos nas mais simples. Afir­ ma-se que são válidas porque estamos obrigados a pensar de acordo com elas — porque um a situação à qual não se aplicassem seria inconcebível. C ontudo, um a r ­ gum ento que deriva do caráter inconcebível de algo é sem pre suspeito — como todos os argum entos “evidentes”. O fato de que um a regra ou proposição pareça verdadeira, convincente, evidente etc., não é, decerto, um a razão suficiente para que a consideremos verdadeira, em bora haja a hipótese contrária — a verdade de um a proposição ou regra nos pode levar a considerá-la verdadeira, ou convincente. Em outras palavras, se as leis da lógica são válidas p a ra todos os objetos, isto é, se a concepção B é correta, então seu caráter obrigatório seria claro e razoável; de outro m odo poderem os talvez sentir-nos obrigados a pensar assim sim plesm ente devido a um a com pulsão neurótica. Deste m odo, nossa crítica de A l levará a B. H á outra crítica d e A l que leva a B: a observação de que nem sempre raciocinam os em conform idade com as leis da lógica — às vezes cometemos o que é conhecido como “falácia” . A 2 afirm a que devemos evitar essas violações das leis da lógica. Mas, por quê? Por que seria im oral? C ertam ente não. A lice no País das Maravilhas, por exem plo, não é im oral. Seria estúpido? T am bém não. Como é ó b ­ vio, devemos evitar violações das regras da lógica só se estamos interessados em fo r­ m ular ou derivar proposições verdaderias, isto é, que correspondam a descrições verdadeiras dos fatos. Essa é um a consideração que nos leva tam bém a B. No entanto, B — posição adotada por hom ens como B ertrand Russell, Morris Cohen e F erdinand Gonseth — não me parece inteiram ente satisfatória. Em prim eiro lugar porque as regras de inferência, como enfatizam os, acom panhando o professor Ryle, são regras de p ro cedim ento , não descrições; em segundo lugar, p o r­ que um a classe im portante de fórm ulas logicam ente verdadeiras (às quais o profes­ sor Ryle se referiu como “fórm ulas hipotéticas de lógico”) podem ser interpretadas como regras de inferência, ou correspondem a tais regras; e estas últim as, como dem onstram os, acom panhando tam bém Ryle, não se aplicam aos fatos, no mesmo sentido em que um a descrição se ajusta à realidade. Em terceiro lugar, porque qualquer teoria que não leva em conta a diferença radical entre o status de um

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truísm o físico (do tipo: “todas as pedras são pesadas”) e o de um truísm o lógico (do tipo: “todas as pedras são p edras” ou talvez: “ou todas as pedras são pesadas ou a l­ gum as delas não são pesadas”) só pode ser insatisfatória. Acho que um a proposição logicam ente verdadeira é verdadeira não porque descreve o com portam ento de todas as coisas possíveis, m as sim plesm ente porque não corre o risco de ser refu tad a por qualq u er fato; não exclui qualquer fato que seja possível, e p o rtanto não a fir­ m a absolutam ente n ad a a respeito de fato. Mas não precisamos en trar aqui no problem a do status desses truísmos lógicos — qualquer que seja seu status, a lógica não é fu n d am en talm en te a d o u trin a dos truísmos lógicos e sim a doutrina da in ­ ferência válida. A posição C já foi criticada — justificadam ente, na m inha opinião — como insatisfatória, en q u an to associada à concepção de que por “linguagem ” podem os enten d er — p a ra os objetivos da lógica — um “simples sim bolism o”, isto é, um simbolismo independente de q u alq u er “sentido” (o que quer que “sentido” signifique). N ão creio que se possa sustentar esse ponto de vista. Por outro lado, nossa definição do que é um a inferência válida seguram ente não se aplicaria a esse “simples sim bolism o” , já que em prega o term o “verdadeiro”: não poderíam os dizer que um “simples sim bolism o” (vazio de sentido) contém afirm ativas verdadeiras ou falsas. D eixaríam os de ter, p o rtan to , inferência (no nosso sentido) e regras de in ­ ferência: em conseqüência, não teríam os u m a resposta p ara a indagação a respeito da validade ou u tilidade das regras de lógica. C ontudo, se por “linguagem ” entendem os um simbolismo que nos perm ite fazer afirm ativas verdaderias (a respeito das quais podemos explicar, como fez T arski pela p rim eira vez, o que querem os dizer, ao qualificar determ inadas proposições como verdadeiras), neste caso as objeções levantadas até aqui contra C perdem quase to d a a força. Com relação a um sistema de linguagem sem ântica desse tipo um a regra válida de inferência seria aquela a respeito da quai não se encontrasse nenhum contra-exem plo, por inexistirem contra-exem plos. De passagem , pode-se dizer que essas regras de inferência não precisam necessariam ente ter o caráter “fo rm al” que conhecemos do nosso estudo d a lógica. Seu caráter vai depender do caráter do sistema de linguagem sem ântica sob obser­ vação (Tarski e C arnap estudaram exemplos de sistemas de linguagem sem ântica); contudo, no que se refere às linguagens do tipo considerado ordinariam ente pelos lógicos, as regras de inferência serão “form ais” , como aquelas a que nos h a b i­ tuam os . VII Conform e indicado pelas m inhas últim as observações, as regras de proce­ dim ento que estamos considerando — isto é, as regras de inferência — sempre se referem , até certo p o n to , a um sistema lingüístico. Mas todas elas têm um a coisa em com um : sua observância nos leva de premissas verdadeiras a conclusões ver­ dadeiras. P ortanto, não pode haver um a lógica alternativa, no sentido de que suas regras de inferência passem de premissas verdadeiras a conclusões que não o são. Isso ocorre sim plesm ente porque definimos a expressão “regra de inferência” de m odo a im possibilitá-lo. N ão está excluída, porém , a possibilidade de considerar­ mos as regras de inferência casos especiais de regras mais genéricas — por exemplo, de regras que nos perm itam atrib u ir um a certa “pro b ab ilid ad e” a determ inadas quase-conclusões, desde que baseadas em quase-premissas verdadeiras.

POR QUE OS CÁLCULOS LÓGICOS E ARITMÉTICOS SÃO APLICÁVEIS À REALIDADE? 235

Q uanto a lógicas alternativas, podemos adm iti-las no sentido da form ulação de sistemas alternativos de regras de inferência com respeito a linguagens que difiram entre si mais ou menos am plam ente — linguagens que sejam diferentes no que cham am os sua “estrutura lógica”. Podemos, por exem plo, considerar a linguagem das proposições categóricas (afirm ativas constantes de sujeito e predicado), p ara a qual o sistema tradicional de silogismos categóricos form ula regras de inferência. A estrutura lógica dessa lin ­ guagem se caracteriza pelo fato de que contém um pequeno núm ero de sinais lógicos — p ara a cópula e sua negação, p ara a universalidade e a particularidade, e talvez tam bém p ara a com plem entação (ou negação) dos seus cham ados “te r­ m os” . Se considerarm os agora o argum ento form ulado na seção i, segundo p a ­ rágrafo, veremos que todas as três premissas — como a conclusão — podem ser form uladas na linguagem das proposições categóricas. N ão cbstante, com essa fo r­ m ulação é impossível enunciar um a regra válida de inferência que mostre a form a geral do argum ento, um a vez expresso na linguagem das proposições categóricas. Depois de fundirm os as palavras “m ãe de R icardo” num só term o — o predicado da prim eira premissa — não podemos voltar a separá-las. A estrutura lógica dessa linguagem é pobre demais p ara indicar o fato de que o predicado contém , de a l­ gum a form a, o sujeito da segunda premissa e p arte do da terceira. Iguais obser­ vações poderiam ser fetias com relação às outras duas premissas e à conclusão. De acordo com isso, se tentarm os form ular a regra da inferência, chegarem os a algo como: A é b C é d Todos os e são f A é g (onde A e C representam R aquel e Ricardo; b, a m ãe de Ricardo; d, o pai de Ricardo; e, as mães dos pais; f, avós paternas; g, avó p atern a de R oberto). Como é n atural, essa regra não é válida, já que podemos form ular, na linguagem das proposições categóricas, tantos contra-exem plos quantos queiram os. Assim, mesmo que um a linguagem seja rica o bastante p ara descrever todos os fatos que dese­ jam os, pode não perm itir a form ulação das regras de inferência necessárias p ara cobrir todos os casos em que podemos passar seguram ente de premissas verdadeiras para conclusões verdadeiras. V III Estas últim as considerações podem ser usadas p ara estender nossa análise ao problem a da aplicabilidade dos cálculos da lógica e da aritm ética; não podemos es­ quecer que até aqui (seguindo o professor Ryle) só consideram os a aplicabilidade das regras de inferência. Acredito que a elaboração dos cham ados “cálculos lógicos” é devida p rin ­ cipalm ente ao desejo de construir linguagens com relação às quai* todas as inferên­

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

cias que intuitivam ente sabemos como derivar possam ser “form alizadas”; isto é, que se possa dem onstrar a seu respeito que são feitas de acordo com um as poucas regras de inferência, explícitas e válidas, Como reg ras de. procedim ento, essas regras de inferência falam acerca da linguagem ou do cálculo que estamos ex a­ m inando; não devem portanto ser enunciadas no cálculo em questão, mas sim na sua “m etalinguagem ” , isto é, na linguagem que usamos ao discuti-lo. Da lógica silogística, por exemplo, pode-se dizer que resultou de tentativa de elaborar um a tal linguagem — m uijos dos seus adeptos ainda acreditam que foi um a tentativa exitosa, e que todas as inferências realm ente válidas estão form alizadas nas suas figuras e nos seus modismos (vimos, porém , que não é bem assim). O utros sistemas foram propostos, com objetivos sem elhantes (por exem plo, em Principia M athem atica), e conseguiram form alizar praticam ente todas as regras válidas de inferên­ cia observadas não só no discurso ordinário mas tam bém em argum entos m a te ­ m áticos. H á a tentação de identificar como o problem a fundam ental, prim a fa c ie , da lógica a tarefa de elaborar um a linguagem ou cálculo que perm ita form alizar todas as regras válidas de inferência — em parte, com a ajuda de um as poucas regras de inferência no cam po do cálculo; em parte, com a assistência de fórm ulas lógicas do próprio cálculo. O ra, há bons motivos p ara crer que esse problem a é in ­ solúvel, pelo menos se adm itirm os, p ara form alizar inferências intuitivas re la ti­ vam ente simples, procedim entos de caráter de todo diverso (tais como inferências derivadas de um a classe infinita de premissas). A situação parece ser a seguinte: em bora seja possível, p ara qualquer inferência intuitiva válida, construir um a lin ­ guagem que p erm ita sua form alização, não é possível form ular um a linguagem que leve à form alização de todas as inferências indutivas válidas. Esse interessante problem a, considerado pela prim eira vez (tanto quanto sei) por Tarski, com re ­ ferência às investigações de Gõdel, tem a ver com a questão que estamos discutin­ do, na m edida em que m ostra que a aplicabilidade de todo cálculo (no sentido dá sua adequação como linguagem , com respeito à qual todas as inferências intuitivas válidas podem ser form uladas) sem pre falha, num ou noutro estágio. V oltar-m e-ei agora p ara o problem a da aplicabilidade, lim itando-o porém aos cálculos lógicos ou, mais precisam ente, às fórm ulas de cálculo lógico propostas (em lugar das regras de inferência). Por que razão esses cálculos — que pbdem conter aritm ética — são aplicáveis à realidade? Procurarei responder à pergunta sob a form a de três assertivas: a) Via de regra esses cálculos são sistemas sem ânticos,4 isto é, linguagem que tem o objetivo de descrever certos fatos. Não deve causar surpresa, portanto, que sirvam p ara esse propósito. b) C ontudo, podem tam bém ser concebidos de form a a não servir a esse o b ­ jetivo, o que é dem onstrado pelo fato de que certos cálculos — por exemplo, a a rit­ m ética dos núm eros naturais ou dos núm eros reais — ajudam a descrever alguns tipos de fatos, mas não outros. c) N a m edida em que um cálculo é aplicado à realidade, perde o caráter de cálculo lógico, tornando-se um a teoria descritiva, que pode ser refutada em piri4 — Estou usando o termo num sentido algo mais amplo do que o de Carnap; não vejo por que um cálculo previsto para ter interpretação (L-verdadeira) num certo sistema semântico não pode ser sim­ plesmente descrito ou interpretado como um sistema semântico formalizado.

POR QUE OS CÁLCULOS LÓGICOS E ARITMÉTICOS SÃO APLICÁVEIS À REALIDADE? 237

cam ente. Na m edida em que é tratad o como irrefutável, isto é, como um sistema de fórm ulas logicam ente verdadeiras (e não como u m a teoria científica descritiva), não será aplicado à realidade. N a seção ix encontrarem os um com entário relacionado com a. N a presente

seção, só examinarei brevemente b e c. Q uanto a b, podem os observar que o cálculo dos núm eros naturais é em ­ pregado p ara contar bolas de bilhar, moedas, crocodilos, etc., enquanto o cálculo de núm eros reais fornece um quadro que perm iíe m edir m ag nitudes contínuas, tais como distâncias geom étricas e velocidades (o que é especialm ente claro na teoria de Brouwer sobre os núm eros reais). Não diríam os, por exem plo, que há 3,6 crocodilos, ou Tf leões, num determ inado jard im zoológico. Para contar anim ais, em pregam os o cálculo dos núm eros naturais. C ontudo, se quisermos determ inar a latitude do zoológico, ou sua distância de Greenwich, poderem os ter a necessidade de em pregar rf. N ão se pode sustentar, portanto, a crença de que todos os cálculos são aplicáveis a toda a realidade (crença que parece subjacente ao problem a co n ­ siderado pelo nosso simpósio), No concernente a c, se considerarm os um a proposição como 2 + 2 = 4, ela seguram ente poderá ser aplicada a m açãs, por exem plo, em diferentes sentidos, dos quais só dois exam inarem os aqui. No prim eiro desses sentidos, a proposição “2 m açãs + 2 m açãs = 4 m açãs” é considerada irrefutável e logicam ente verdadeira, mas não descreve nenhum fato relacionado com as m açãs — não ultrapassa, neste p articular, a proposição “todas as m açãs são m açãs”. E apenas um truísm o lógico; a única diferença, entre as duas proposições citadas, é que um a se baseia em certas definições dos sinais 2, 4, + e = , e não em definições dos sinais “todas” e “são” . Podemos dizer, neste caso, que a aplicação é só aparente, não real; que não es­ tamos descrevendo a realidade, mas simplesmente afirm ando que um certo modo de descrevê-la equivale a um outro. Mais im portante ainda é a aplicação da proposição no segundo sentido, em que “2 + 2 = 4 ” significa que se alguém tom ou duas m açãs e colocou-as num a cesta, fazendo o mesmo com outras duas m açãs, haverá ali q u atro m açãs. Nesta in te r­ pretação, a afirm ativa “2 + 2 = 4” nos ajuda a calcular — isto é, a descrever certos fatos físicos; o símbolo + significa um a m anipulação física destinada a acrescentar certas coisas a outras. Vemos, aí, que às vezes é possível in terp retar descritivam ente um símbolo que na aparência é só lógico.5 Nesta in terpretação, a afirm ativa em questão se torna um a teoria física, e não lógica; em conseqüência, não podemos es­ tar seguros de que continua a ser universalm ente verdadeira. N a verdade, não o é: pode aplicar-se a m açãs, por exemplo, mas não a coelhos. Se pusermos 2 + 2 coelhos num a cesta, podem os retirar 7 ou 8 ... Nem é aplicável a gotas, para dar outro exemplo: se colocarmos 2 + 2 gotas num frasco, não retirarem os necessa­ riam ente 4 gotas. Assim, se formos assaltados pela curiosidade a respeito de um m undo hipotético em que a afirm ativa 2 + 2 = 4 não fosse aplicável, será fácil satisfazê-la Dois coelhos de sexo diferente, ou algum as gotas de água bastarão p ara termos um modelo de tal m undo. Se se objetar que os exemplos não podem ser aceitos porque algo acontece com os coelhos e com as gotas — e a equação 2 + 2 = 4 só se aplica a casos em que n ad a acontece às coisas som adas —, m inha respos5 — 0 que tem à ver com alguns dos problemas fundamentais considerados por Tarski no seu livro Logic, Semantics, Metamathematics (cap. 16) e por Carnap em Introduction to Semantics.

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ta será a seguinte: se a interpretarm os assim, ela não será aplicável à “realid ad e” (onde tais coisas acontecem todo o tem po), mas só a um m undo abstrato de objetos distintos. Está claro que, na m edida em que nosso m undo real se assemelha a esse m undo abstrato (isto é, na m edida em que as m açãs não apodrecem , ou só ap o ­ drecem m uito devagar; em que coelhos e crocodilos não se reproduzem im edia­ tam ente; enfim , na m edida em que as condições físicas reais se aproxim am da lógica p u ra ou da operação aritm ética da adição), a aritm ética será aplicável à realidade. Mas essa afirm ativa, afinal de contas, é trivial. Pode-se fazer um a afirm ação análoga em relação à adição de m edidas. Não é logicam ente necessário que dois bastões de com prim ento igüal a, quando colo­ cados p onta a pon ta, apresentem a m edida total 2a. Podemos facilm ente im aginar um m undo em que os bastões se com portem de acordo com as norm as da perspec­ tiva, isto é, exatam ente como parecem com portar-se no plano visual e em chapas fotográficas — encolhendo à m edida que se afastam de um centro determ inado (o centro da lente). De fato, quando adicionam os certas quantidades mensuráveis — velocidades — parecem os estar num m undo como esse. De acordo com a re la ti­ vidade especial, o cálculo ordinário de adição de m edidas não se aplica às ve­ locidades (isto é, leva a resultados falsos), e deve ser substituído por outro tipo de cálculo. Pode-se, obviam ente, rejeitar essa alegação, e resistir, em princípio, a isso, o que equivaleria a afirm ar que as velocidades devem ser, necessariam ente, a d i­ cionadas pelo m étodo ordinário, e, im plicitam ente, que devem ser definidas como sujeitas às leis ordinárias da adição. Nesse caso, as velocidades já não poderiam ser definidas por m edidas em píricas (pois não podemos definir o mesmo conceito de duas m aneiras diferentes); nosso cálculo não se aplicaria mais à realidade em pírica. O prof. Ryle nos tem ajudado a enfrentar o problem a de um ângulo que corresponde à análise da palavra “aplicável” . Meus últim os com entários podem ser considerados como um a tentativa com plem entar de resolver o problem a pela análise da palavra “realid ad e” (assim como o problem a da distinção entre o uso lógico e o descritivo dos símbolos). Acredito, de fato, que sem pre que surgem dúvidas sobre se nossas afirm ações se relacionam com o m undo real, ppdemos resolvê-las p erg u n tan d o se estamos prontos a aceitar um a refutação em pírica. Se estamos decididos, como posição de princípio, a defender nossas afirm ativas de refutações, não estamos falando sobre a realidade. Para falar sobre ela devemos es­ tar prontos a aceitar refutações. Nas palavras do prof. Ryle, só se sabemos como respeitar um a refutação sabemos como falar a respeito da realidade. Se desejamos form ular esse “conhecim ento do com o” , temos de fazê-lo com a ajuda de um a regra de procedim ento. Está claro que só um a regra de desem penho nos pode ajudar, pois fa la r sobre a realidade é um a form a de desem penho.6

N ão é certo que a realidade deve possuir um a estru tu ra definida p ara que possamos falar sobre ela? N ão poderíam os conceber um a realidade sem elhante a um a neblina densa — onde existisse n ad a mais, nem sólidos, nem movimento? Ou um a neblina contendo algum as m udanças — por exemplo, m udanças de lum inosi­ dade um tanto indefinidas? M inha própria tentativa de descrever esse m undo prova que ele pode ser descrito na nossa linguagem , o que não equivale a dizer que qual­ quer m undo desse tipo poderia ser descrito assim. N ão creio que, colocada dessa form a, a questão seja m uito im portante; mas acho que não deve ser desprezada im ediatam ente. A m eu ver, estamos de fato in ­ tim am ente fam iliarizados com um m undo que não pode ser descrito a p ro p ria­ dam ente pela linguagem , a qual se desenvolveu como instrum ento p ara descrever sobretudo o meio físico — m ais precisam ente, os corpos físicos de tam anho médio, em m ovim ento m oderadam ente lento. O m undo indescritível que im agino é, o b ­ viam ente, o m undo que tenho em m ente — que a m aioria dos psicólogos — exceto os behavioristas — procuram descrever sem êxito, recorrendo a um conjunto de m etáforas extraídas das linguagens da física, da biologia e da vida social. Mas, qualquer que seja o m undo que procuram os descrever, ou a linguagem que usamos (e sua estrutura lógica), há um a coisa da qual podem os ter certeza: e n ­ quanto não m u d ar nosso interesse em descrever o m undo, estaremos interessados em descrições verdadeiras e em inferências — isto é, em operações que nos levem de premissas verdadeiras a conclusões verdadeiras. Por outro lado, não há razão a l­ gum a p ara acreditar que as linguagens ordinárias são o m elhor meio p ara descrever qualquer m undo. Pelo contrário, elas provavelm ente nem sequer representam o m elhor meio p ara se fazer um a descrição ap u rad a do nosso próprio m undo físico. O desenvolvimento da m atem ática, que é um desenvolvimento um tanto artificial de certas partes das linguagens ordinárias, dem onstra que fatos novos podem ser descritos por meio de meios lingüísticos novos. N um a linguagem que possui, d i­ gamos, cinco num erais e a palavra “m uitos” , será impossível descrever mesmo o simples fato de que no cam po A existem 6 carneiros a mais do que no cam po B. Sem o uso do cálculo aritm ético, é simplesmente impossível descrever determ inadas relações.

Meus últim os com entários — sobre o item (c) — indicam a direção na qual se pode en co n trar a resposta p ara o que considero a faceta mais im portante do nosso problem a, que tem m últiplos aspectos. N ão quero concluir este trabalho, e n tre ta n ­ to, sem deixar claro que, a m eu ver, o problem a pode ter um desenvolvimento a in ­ da m aior. Assim, por que razão conseguiremos falar sobre a realidade?

No que concerne às relações entre os meios de descrição e os fatos descritos há, contudo, problem as ainda mais complexos e possivelmente m ais profundos. R aram ente essas relações são interpretadas corretam ente. Os mesmos filósofos que se opõem ao realismo ingênuo em relação às coisas são m uitas vezes realistas in ­ gênuos diante dos fatos. A creditam que as coisas são construções lógicas (na m inha opinião, um a visão errônea), mas consideram os fatos, assim como os processos e as coisas, parte do m undo; acham que o m undo consiste em fatos, no sentido em que contém processos (de quatro dimensões) e coisas (tridim ensionais). A creditam que, da m esma m aneira como certos substantivos dão nomes às coisas, as frases fazem o mesmo com os fatos. E às vezes acreditam mesmo que as frases são retratos dos fatos, ou suas projeções. ? T udo isso é um erro: o fato de que não há um elefante neste aposento não é um dos processos ou partes do m undo; tam bém não o é o fato de que um a torm enta na T erra Nova tenha ocorrido exatam ente 111 anos após a queda de um a árvore na selva da Nova Zelândia. Os fatos são algo como o produto

6 — Sobre essas questões, vide L. Sc. D.

7

IX

Menção ao Wittgenstein do T ra cta tu s. Note-se que este trabalho foi escrito em 1946.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

com um da linguagem e da realidade; são discrim inados e estabelecidos pelas afir­ mações descritivas. São como excertos de um livro, cuja linguagem é diferente da original, determ inados não só pelo próprio livro mas tam bém pelos princípios de seleção e outros m étodos usados, bem como pelos meios oferecidos pela nova lin ­ guagem em pregada. Novos meios lingüísticos não só nos ajudam a descrever novas m odalidades de fatos m as, de certo m odo, criam novos tipos de fatos. Em outro sen­ tido, esses fatos obviam ente já existiam antes de qüe fossem criados os novos meios, necessários p a ra descrevê-los. Digo “obviam ente” porque o cálculo dos movimentos do plan eta M ercúrio há cem anos, feito hoje com a ajuda da teoria da relatividade, pode seguram ente constituir um a descrição verdadeira dos fatos em questão — em ­ bora a teoria da relatividade não existisse ainda quando esses fatos ocorreram . Mas, será lícito dizer tam bém que tais fatos não existiam como fa to s antes de ser sin­ gularizados de continuum de acontecim entos astronômicos, e determ inados es­ pecificam ente por afirm ativas — as teorias que os descrevem. Vamos deixar no entanto essas questões p ara discuti-las em outra o p o rtu ­ nidade, em bora elas se relacionem de perto com o problem a considerado aqui. Só as m encionei p a ra deixar claro que mesmo que as soluções que propus fossem mais corretas — ou menos —, haveria sem pre questões em aberto neste cam po.

10. Verdade, Racionalidade e a Expansão do Conhecimento Científico* 1. A expansão do conhecim ento: teorias e problem as I O objetivo desta conferência é salientar o significado de um aspecto p a r ­ ticular da ciência — a necessidade que tem de crescer, sua sede de progresso. Não me refiro aqui à im portância prática ou social desse progresso, mas sim a sua sig­ nificação intelectual. O progresso contínuo é um a p arte essencial do caráter r a ­ cional e em pírico do conhecim ento científico; se deixa de progredir, a ciência p e r­ de seu caráter. É esse crescim ento que a torna racional e em pírica: o m odo como os cientistas discrim inam entre as teorias disponíveis, escolhendo as m elhores ou, se falta um a teoria satisfatória, a form a como justificam a rejeição de todas as teorias propostas, sugerindo assim algum as das condições que um a teoria satisfatória deveria apresentar. Poder-se-á notar nesta form ulação que ao falar em expansão do conhe­ cim ento científico não me refiro à simples acum ulação de observações, mas sim à reiterada substituição de teorias científicas por outras, m elhores ou mais satisfa­ tórias. Incidentalm ente, este é um procedim ento que m erece a atenção mesmo dos que atribuem às novas experiências e novas observações o papel mais im portante na expansão do conhecim ento científico. O exame crítico das nossas teorias nos leva a tentativas de testá-las e de refutá-las — o que, por sua vez, nos conduz a experiên­ cias e observações de um tipo com que ninguém antes teria sonhado, sem o estí­ m ulo e a orientação tanto das próprias teorias quanto da sua crítica. Com efeito, as experiências e observações mais interessantes foram planejadas cuidadosam ente p ara testar nossas teorias — especialm ente as novas teorias. Desejo portanto salientar, nesta oportunidade, a significação desse aspecto da ciência; e tam bém fesolver alguns dos problem as, antigos e novos, relacionados com a concepção do progresso científico e a escolha entre teorias competitivas. Os

* Esta conferência é inédita: não chegou a ser pronunciada ou publicada. Preparei-a para o Congresso Internacional de Filosofia da Ciência (Stanford, agosto de 1960) mas, devido à sua extensão, só uma pequena parte pôde ser apresentada naquela ocasião. Outra parte foi aproveitada em exposição perante a Sociedade Britânica para a Filosofia da Ciência, em janeiro de 1961. Penso que contém algumas seqüelas importantes das idéias de Logic of Scientific Discovery, especialmente nas partes 3 a 5.

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C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

novos problem as que pretendo discutir são principalm ente aqueles relativos às noções de verdade objetiva, de como nos aproxim am os da verdade — noções que me parecem aju d ar m uito a análise da expansão do conhecim ento. E m bora preten d a lim itar esta discussão ao progresso do conhecim ento cien­ tífico, penso que meus com entários poderão ser aplicados sem grandes alterações à expansão do conhecim ento pré-cientifico — isto é, ao m odo genérico como os hom ens, e até mesmo os anim ais, adquirem novos conhecim entos factuais a res­ peito do m undo. O m étodo de aprendizado por tentativas — por erros e acertos — parece fund am en talm en te o mesmo, seja praticado pelos anim ais superiores ou in ­ feriores, por chim panzés ou cientistas. Não me interesso apenas pela teoria do conhecim ento científico, mas pela teoria do conhecim ento de m odo geral. C on­ tudo, creio que o estudo do progresso do conhecim ento científico é a form a mais frutífera de estudar a expansão do conhecim ento em geral. De fato, pode-se dizer que a expansão do conhecim ento científico corresponde ao progresso do conhe­ cim ento h um ano ordinário escrita em letras m aiúsculas — conform e salientei no prefácio de 1958 de Logic o f Scientific Discovery. H averá contudo algum perigo de que essa necessidade de expansão não seja satisfeita, e o progresso do conhecim ento científico chegue a um fim? De m odo es­ pecial, haverá algum perigo de que o crescim ento da ciência se detenha por ter ela com pletado sua tarefa? Penso que não, porque nossa ignorância é infinita. O perigo de “com pletarm os” nosso conhecim ento não é real — entre os perigos reais estão a falta de im aginação (que decorre às vezes da falta de interesse autêntico), a crença perversa na form alização e na precisão (que discutirem os mais adiante na seção v), o autoritarism o em um a das suas m últiplas formas. Como usei a palavra “progresso” várias vezes, será m elhor garantir-m e de que não serei visto como um crente na lei histórica do progresso., Na verdade, já tive várias oportunidades de atacar essa cren ça,! e sustento que mesmo a ciência não está sujeita a q ualquer coisa parecida. A história da ciência, como a história de todas as idéias hum anas, é feita de sonhos irresponsáveis, de erros e de obstinação. Mas a ciência é um a das poucas atividades hum anas — talvez a única — em que os erros são criticados sistem aticam ente (e com freqüência corrigidos). Por isso p o ­ demos dizer que, no cam po da ciência, aprendem os m uitas vezes com nossos erros; por isso podem os fala'r com clareza e sensatez sobre o progresso científico. N a m aior parte dos outros cam pos de atividade do hom em ocorrem m udanças, mas ra ra m e n ­ te há progresso — a não ser dentro de um a perspectiva m uito estreita dos nossos objetivos neste m undo. Quase todos os ganhos são neutralizados por algum a perda — e quase nun ca sabemos como avaliar as m udanças. No cam po da ciência, contudo, possuímos um critério de progresso: mesmo antes de subm eter um a teoria a testes empíricos podemos dizer que, corroborada por esses testes, ela representará um avanço sobre outras teorias. Esta é a prim eira tese que p retendo defender. Em outras palavras, afirm o que sabemos como deve ser um a boa teoria científica; e, mesmo antes de testá-la, que tipo de teoria seria ainda m elhor, desde que corroborada por determ inados testes cruciais. E este conhecim ento m eta-

1

— Vide especialmente Poverty of Historicism (2.a edição, 1960), bem como o cap. 16 deste volume.

VERDADE, RACIONALIDADE E A EXPANSÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

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científico que torna possível falar sobre o progresso científico, e p raticar um a es­ colha racional entre teorias com petitivas. II M inha prim eira tese, p o rtanto, é a de que podemos saber se um a teoria será m elhor do que outra mesmo antes de testada — desde, n atu ralm en te, que os testes não a refutem . Essa tese im plica a existência de um critério de adequação relativa p o te n ­ cial, de progresso potencial, que pode ser aplicado a um a teoria antes mesmo de saberm os se ela é de fa to satisfatória, por ter passado por testes cruciais. O referido critério de adequação relativa potencial (relative potential satisfactonness), que form ulei há algum tem po 2* e que, incidentalm ente, nos perm ite g rad u ar as teorias, é extrem am ente simples e intuitivo. C aracteriza como preferível a teoria que nos diz mais — isto é, a teoria que contém m ais inform ação em pírica, ou conteúdo; que é logicam ente mais forte; que tem m aior capacidade explicatória e poder de previsão; e que, p o rtan to , pode ser testada mais rigorosamente, pela com paração dos fatos previstos com observações. Em resum o, preferim os as teorias interessantes, ousadas e altam ente inform ativas às que são triviais. T odas essas propriedades desejadas num a teoria vêm a d ar num a só coisa: um teor m aior de conteúdo em pírico, um a m aior testabilidade. III M inha consideração do conteúdo de um a teoria (ou de q u alquer afirm ativa) se baseia na idéia simples e óbvia de que o conteúdo inform ativo da conjunção ab de quaisquer proposições a e b será pelo menos igual ao de qualquer dos dois com ­ ponentes — provavelm ente m aior. Vamos adm itir que a seja a afirm ativa: “N a sexta-feira vai chover”; b, a afirm ativa: “No sábado fará bom tem po”; ab seria, p o rtan to , “N a sexta-feira vai chover e fará bom tem po no sáb ad o .” O ra, é evidente que o conteúdo inform ativo da conjunção ab excede, neste caso, o dos com ponentes a e b, tom ados isolada­ m ente. E óbvio tam bém que a probabilidade de ab (ou seja: a probabilidade de que ab seja verdadeiro) será m enor do que a probabilidade de cada com ponente. Escrevendo Ct(a) em lugar de “conteúdo da afirm ativa a ” e C t(ab) em lugar de “conteúdo da conjunção a b ” , teremos: (1)

Ct(a)

< C t( a b ) >

Ct(b)

O que contrasta com a correspondente lei, no cálculo de probabilidade: (2) p(a) ^ . p ( a b ) ^ p(b) — onde os sinais de desigualdade estão in ­ vertidos. Em conjunto, as duas expressões (1) e (2) afirm am que com o increm ento

2 — Vide a discussão sobre os graus de testabilidade, corroboração, corroborabilidade e conteúdo em­ pírico em L. Sc. D., especialmente nas seções 31 a 46, 82 a 85 e no novo apêndice ix.

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C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

do conteúdo a p robabilidade cai, e vice-versa; em outras palavras, .o conteúdo aum enta com o aum ento da im probabilidade. Esta análise concorda inteiram ente com a idéia geral de que o conteúdo lógico de um a afirm ativa é a classe de todas as afirm ativas que dela decorreram logicam ente. Podemos dizer tam bém que um a afirm ativa a é logicam ente mais forte do que a afirm ativa b quando seu conteúdo é m aior do que o d e 6 — isto é, quando dela decorrem mais afirm ativas. As conseqüências do que m ostrei acim a são inescapáveis: se o progresso do conhecim ento significa que passamos a utilizar teorias de m aior conteúdo, significa tam bém que usamos teorias de m enor probabilidade (no sentido do cálculo de probabilidades). P ortanto, se nosso objetivo é a expansão do conhecim ento, não podem os visar igualm ente a alta probabilidade: esses dois objetivos são incom ­ patíveis. Cheguei a essa conclusão m uito simples, em bora fundam ental, há cerca de trin ta anos, e a venho pregando desde então. No entanto, o preconceito em favor da alta p robabilidade é tão arraigado que m inha proposição é ainda hoje consi­ d erad a “p a ra d o x a l” por m uitos autores. 3 [A despeito do simples resultado que apresentei, a noção de que um elevado grau de probabilidade (no sentido do cál­ culo de probabilidades) é altam ente desejável parece tão óbvia que m uitas pessoas não estão prep arad as p ara considerá-la criticam ente. O dr. Bruce Brooke-Wavell sugeriu-me p o rtan to que deixasse o contexto da “pro b ab ilid ad e”, fundam entando m inha argum entação num “cálculo do conteúdo” , ou do “conteúdo relativo”. Em outras palavras, que não afirmasse que a ciência tem por objetivo o que é im ­ provável, mas sim que busca o conteúdo m áxim o. Considerei cuidadosam ente a sugestão, mas não estou certo de que seria útil. Para elucidar a questão, parece inevitável um a colisão frontal com o preconceito probabilístico tão arraigado, e tão largam ente aceito. Mesmo que baseasse m inha teoria no cálculo do conteúdo ou da força lógica, continuaria a ser necessário explicar que o cálculo de probabilidade, como é aplicado (“logicam ente”) a proposições ou afirm ativas, não passa de um cálculo da sua fraq u eza lógica ou fa lta de conteúdo (em termos absolutos ou re ­ lativos). A colisão frontal talvez pudesse ser evitada se as pessoas não se inclinassem de m odo geral a presum ir, acriticam ente, que o objetivo da ciência deve ser a alta probabilidade das teorias e que, portanto, a teoria da indução precisa explicar-nos como é possível alcançar essa elevada probabilidade que alm ejam os. (Ponto em que se faz necessário advertir que tendem os a confundir probabilidade com outra coisa — a “verossim ilhança” —, que im plica cálculo com pletam ente diverso.) Vários tipos de teorias, mais ou menos sofisticadas, já foram concebidas para evitar esses resultados tão simples. Creio já ter dem onstrado que nenhum a delas é válida; mas, o que é mais im portante, nenhum a é necessária. Basta re ­ conhecerm os que a propriedade que alm ejam os nas teorias — a “verossim ilhança” (verisim ilitude ou truthlikeness, em inglês — vide a seção xi) não é a mesma “p ro b ab ilid ad e” do cálculo de probabilidades, de que a equação (2) é um teorem a inescapável.

3 — Vide, por exemplo: J. C. Harsanyi, “Popper’s Improbability Criterion for the Choice of Scientific Hypotheses”, Philosophy, 35, 1960, pág. 332. Incidentalmente, não propus nenhum “critério” para a es­ colha de hipóteses científicas — qualquer escolha contém um risco. Além disso, o teorizador escolherá sempre a hipótese que mereça discussão crítica mais profunda.

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Note-se que o problem a que confrontam os não é um problem a de term i­ nologia. Não me im porta o que se cham e de “pro b ab ilid ad e”; tam bém não faço questão de como se designem os diferentes graus do assim denom inado “cálculo de probabilidades”. Pessoalmente, creio preferível reservar o term o “pro b ab ilid ad e” p ara o que satisfaz as conhecidas regras desse cálculo (enunciadas por Laplace, Keynes, Jeffreys e m uitos outros). Se aceitarm os esta term inologia, não pode haver dúvida de que a probabilidade absoluta de um a afirm ativa a é sim plesm ente o seu grau de fraqueza lógica ou fa lta de conteúdo inform ativo; que a probabilidade relativa de um a afirm ativa a, d ad a um a afirm ativa b, corresponde simplesmente ao seu grau de fraqueza relativa: à falta relativa de novo conteúdo inform ativo em a, presum indo que já conhecemos a inform ação contida em b. Visamos assim, na ciência, um conteúdo inform ativo elevado — se o p ro ­ gresso do conhecim ento quer dizer sabermos mais (sabermos a e b, e não apenas a), aum entando assim o conteúdo das nossas teorias. Precisamos adm itir, p ortanto, que alm ejam os a baixa probabilidade — no sentido do cálculo de probabilidades. Como um a baixa probabilidade significa um a alta probabilidade de re ­ futação, segue-se que um grau elevado de refutabilidade ou testabilidade é um dos objetivos da ciência — na verdade, é o mesmo que o elevado conteúdo inform ativo. O critério da adequação potencial é por conseguinte a testabilidade, ou im ­ probabilidade: só m erecem ser testadas as teorias altam ente testáveis, ou im p ro ­ váveis, que serão efetivam ente (e não apenas potencialm ente) satisfatórias se pas­ sarem em testes rigorosos — especialm ente aqueles testes que reconhecem os como cruciais antes mesmo de efetuá-los. Em m uitos casos é possível com parar o rigor dos testes objetivam ente. É mesmo possível — se acharm os que vale a pena — definir um a m edida p ara a severidade dos testes. (Vide os apêndices, no fim deste livro.) Com o mesmo m étodo podemos definir o poder explicativo e o grau de corroboração de um a teo ria.4 IV A tese de que o critério que propus é o que predom ina efetivam ente no desenvolvimento científico pode ser ilustrada com a ajuda de alguns exemplos his­ tóricos. As teorias de Kepler e Galileu foram unificadas e superadas pela de Newton — logicam ente mais forte e mais testável; o mesmo ocorreu com as teorias de Fresnel e Faraday, igualm ente unificadas e superadas pela de Maxwell. As teorias de Maxwell e Einstein, por sua vez, foram unificadas e superadas pela de Einstein. Em todos esses casos, progrediu-se em direção a um a teoria m ais inform ativa, p o r­ tanto, logicam ente menos provável: teoria que pode ser testada mais severam ente porque suas previsões, num sentido puram ente lógico, podem ser m ais facilm ente refutadas. Uma teoria que, de fato, não é refutada após o teste das novas previsões, audaciosas e improváveis, que suscita, pode ser considerada como confirm ada pelos testes. Sob este aspecto, podemos m encionar a descoberta de N etuno por Galle, a descoberta das ondas eletrom agnéticas por H ertz, as observações de eclipses em-

4 — Vide especialmente o apêndice ix de L. Sc. D.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

preendidas por E ddington, a interpretação de Elsässer das m axim a de Davisson, com referência às ondas de De Broglie, e a observação dos prim eiros mesons de Yukawa, por Powell. T odas essas descobertas representam corroboraçÕes, por testes rigorosos, de previsões altam ente improváveis à luz do conhecim ento prévio (isto é, o conheci­ m ento an terio r à teoria testada e corroborada). O utras descobertas im portantes foram tam bém feitas ao se testar teorias, em bora tivessem levado à sua refutação. Um caso recente e im portante é o da refutação da p aridade. As experiências clás­ sicas de Lavoisier, dem onstrando que o volume de ar dim inui à m edida que um a vela queim a em um recinto fechado, ou que o peso de limas m etálicas aum enta à m edida que queim am , não provam a teoria da com bustão do oxigênio mas tendem a rejeitar a teoria flogística. As experiências de Lavoisier foram cuidadosam ente planejadas; contudo, mesmo as cham adas “descobertas casuais” apresentam fundam entalm ente a mesma estru tu ra lógica. De fato, as “descobertas casuais” são, via de regra, refutações de teorias sustentadas consciente ou inconscientem ente: ocorrem quando algumas de nossas expectativas (baseadas naquelas teorias) inesperadam ente não se cum prem .' Desse m odo, a propriedade catalisadora do m ercúrio foi descoberta quando se o b ­ servou casualm ente a aceleração de um a reação quím ica na presença daquele elem ento. As descobertas de O ersted, R öntgen, Becquerel ou Fleming, contudo, não foram realm ente acidentais, m uito em bora contenham com ponentes casuais: esses cientistas buscavam efeitos do tipo que encontraram . Podemos até dizer que certas descobertas, como a descoberta da América por Colom bo, corroboram um a teoria (a da esfericidade da T erra) e, ao mesmo tem po, refutam o u tra (a do tam anho da T erra, ju n tam en te com a do cam inho mais curto p a ra a índia); podem os afirm ar que foram descobertas casuais na m edida em que contradisseram todas as expectativas: não foram em preendidas conscientem ente p a ra testar as teorias que acab aram por refutar.

V A ênfase que estou dando às transform ações do conhecim ento científico, ao seu crescim ento e caráter progressivo, pode ser contrastada, até certo ponto, com o ideal aceito hoje de que a ciência é um sistema dedutivo axiom atizado. Esse ideal tem predom inado na epistem ologia européia desde a cosmologia platonizante de Euclides (pois, a m eu ver, foi essa a intenção dos seus Elem entos) até a de Newton, e, mais recentem ente, até os sistemas de Boscovic, Maxwell, Einstein, Bohr, Schödinger e D irac. Segundo essa epistem ologia, o objetivo final da atividade cien­ tífica é a construção de um sistema dedutivo axiom atizado. Em oposição a esse ponto de vista, acredito, hoje, que esses adm iráveis sis­ temas dedutivos devem ser considerados como degraus e não como etapas finais5: fases im portantes do desenvolvimento de um conhecim ento científico mais rico, que resiste m elhor aos testes.

5 Ao adotar esse ponto de vista, fui influenciado por J. Agassi que, num debate em 1956, conven­ ceu-me de que a atitude de considerar os sistemas dedutivos estabelecidos como finais é um resquício do longo predomínio das idéias de Newton (portanto, da tradição platônica e de Euclides). Para uma visão ainda mais radical de Agassi, vide a última nota a este capítulo.

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Considerados, p ortanto, como degraus, ou meios, esses sistemas são cer­ tam ente indispensáveis, um a vez que desenvolvemos nossas teorias sob a form a de sistemas dedutivos. Isso se torna inevitável pelo poder lógico e o grande conteúdo inform ativo que devemos exigir de nossas teorias se as querem os m elhores e mais testáveis. A riqueza de suas conseqüências deve ser desdobrada dedutivam ente; via de regra, de fato, é necessário testar, um a por um a, as conseqüências mais rem otas das teorias; isto é, aquelas conseqüências que não enxergam os im ediatam ente ao analisá-las intuitivam ente. Uma teoria, no entanto, não se torna racional ou em pírica por um m a ­ ravilhoso desdobram ento dedutivo, mas sim pelo fato de que podem os exam iná-la criticam ente; sujeitá-la a tentativas de refutação, inclusive com testes obtidos m ediante observação. O fato é que, em certos casos, a teoria pode resistir à crítica e aos testes — entre os quais aqueles que refutaram as teorias precedentes e, às vezes, testes ainda mais completos e severos. A racionalidade da ciência reside na escolha racional das novas teorias, e não no seu desenvolvimento dedutivo. Conseqüentem ente, há pouco m érito em form alizar e elaborar um sistema dedutivo não-convencional que ultrapasse os requisitos da tarefa de criticar, testar um a teoria e com pará-la com suas com petidoras. E m bora tenha alguns aspectos convencionais e arbitrários de m enor im portância, graças ao critério de progresso, essa com paração crítica é em larga m edida não-convencional. R epresenta o procedim ento crítico que engloba os elementos racionais e empíricos da ciência. Contém escolhas, rejeições e decisões que dem onstram que aprendem os a p a rtir de nossos erros, e, portanto, acrescentam os algo ao nosso conhecim ento científico. VI C ontudo, mesmo essa visão da ciência — procedim ento cuja racionalidade in s is te no fato de que aprendem os a p artir de nossos erros — ainda não é satis­ fatória; pode sugerir que a ciência se desenvolve de um a teoria p a ra outra, e con­ siste em um a seqüência de sistemas dedutivos cada vez m elhores. Mas o que desejo sugerir na realidade é que a ciência deve ser vista como o desenvolvim ento de um problem a para outro — problem as cada vez mais profundos. A teoria científica — ou explicativa — é, de fato, um a tentativa de resolver um problem a científico, ou seja, um problem a relacionado à descoberta de um a explicação.6 Admite-se que as expectativas (portanto, as teorias), podem preceder, his­ toricam ente, até mesmo os problem as. A ciência, contudo, origina-se unicam ente em problemas. Os problem as só aparecem quando as expectativas m alogram , ou quando as teorias nos trazem dificuldades e contradições — que podem surgir d e n ­ tro de um a teoria, entre duas teorias diferentes, ou como resultado de um conflito entre elas e nossas observações. Além disso, só nos tornam os conscientes de que sus­ tentam os um a teoria a p artir do m om ento em que enfrentam os um problem a. O problem a suscita o desafio de aprender, avançar o nosso conhecim ento, experim en­ tar e observar. 6 — Compare-se este parágrafo e os dois subseqüentes com a seção 28, pp. 121 e seguintes, do Poverty o f Historicism; e os caps. 1 e 16 deste livro.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

A ciência, portanto, origina-se em problemas, não em observações', estas, no entanto, especialm ente se forem inesperadas, podem suscitar um problem a, q u a n ­ do en tram em conflito com nossas expectativas e teorias. Cabe ao cientista, p o rta n ­ to, p ro cu rar conscientem ente resolver os problem as m ediante a elaboração de um a teoria que os resolva; tentando explicar, por exem plo, as observações inesperadas e cujas causas não se conheçam . T oda teoria nova e valiosa, contudo, suscita novos problem as; problem as de reconciliação e de como conduzir novos testes, nunca a n ­ tes im aginados. A teoria nova será frutífera na m edida em que suscitar esses problem as. Podemos afirm ar, portan to , que a m aior contribuição de um a teoria para o crescim ento do conhecim ento científico está nos problem as que suscita; voltamos, assim, à visão de que a ciência e a expansão do conhecim ento originam -se sempre e term inam sem pre em problem as de crescente p rofundidade e fertilidade, pelo fato de sugerirem novos problem as.

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apresentou um substitutivo que n ad a tem de m elhor. In terp reto u a correspondên­ cia em questão como a correspondência de um -a-um entre as designações e os o b ­ jetos designados, em bora haja abundantes argum entos (designações aplicadas a diversos objetos, objetos possuindo várias designações) que refutam essa in te r­ pretação. T udo isso m udou com a teoria de Tarski da verdade e da correspondência entre as afirm ações e os fatos. A m aior realização de Tarski, o verdadeiro signi­ ficado de sua teoria p ara a filosofia das ciências em píricas, é ter reabilitado a teoria da correspondência da verdade objetiva ou absoluta, que se havia tornado suspeita. Propugnou o uso livre da idéia intuitiva da verdade como correspondência com os fatos. A m eu ver, a afirm ação de que essa teoria só se aplica às linguagens fo r­ malizadas é errônea. A teoria é aplicável a qualquer linguagem consistente, mesmo “n a tu ra l”; basta aprender, através da análise de T arski, como evitar as inconsistên­ cias; deve-se adm itir que isso significa introduzir um a certa “artificialidade” — ou cautela — no uso da teoria. (Vide tam bém o A pêndice 5.)

2. Teoria da verdade objetiva: correspondência com os fa to s

VII Até aqui falei sobre a ciência, seu progresso e critério de progresso, mas não m encionei o conceito de verdade. S urpreendentem ente, talvez, pode-se m encionálo sem cair no pragm atism o ou no instrum entalism o: é perfeitam ente possível a r ­ gum entar que o critério do progresso científico é intuitivam ente satisfatório sem fazer referência à veracidade das teorias. De fato, antes de me fam iliarizar com a teoria da verdade de Tarski, ^ acreditava ser mais seguro discutir o critério de progresso sem envolver-me demais com o problem a extrem am ente controvertido relacionado com o em prego da palavra “verdade” . N aquela época, m inha atitude era a seguinte: em bora aceitasse -- çom o quase todos — a teoria da verdade objetiva, absoluta, ou por correspondência — a verdade como correspondência aos fatos — preferia evitar o assunto. P arecia-me inútil p ro cu rar com preender com clareza a idéia estranham ente ilusória da corres­ pondência entre um a afirm ação e um fato. P ara lem b rar por que a situação parecia tao desanim adora, basta citar um exem plo entre m uitos: o Tractatus de W ittgenstein e sua ingênua teoria da verdade figurada ou p rojetada. No livro, a proposição é concebida como um a figura ou projeção do fato que pretende descrever, possuindo a mesma estrutura (ou “fo r­ m a ”); da m esm a m aneira, um disco de gram ofone é a figura ou projeção de um som, e apresenta algum as de suas propriedades estruturais. 78 O u tra tentativa m alograda de explicar essa relação foi feita por Schlick, que apresentou um a crítica perfeitam ente clara e devastadora9 de várias teorias de correspondência — inclusive da teoria da figura ou projeção — mas, infelizmente, 7 — Vide L. Sc. D. , especialmente a seção 84, e Open Society, especialmente as págs. 369-374. 8 — C. p. Tractatus de Wittgenstein, especialmente 4.0141; também 2.161; 2.17; 2.223; 3.11. 9 - Vide especialmente as págs. 56-57 da sua obra memorável, Erkenntnislehre, 2.a ed., 1925.

Presumo que os que me acom panham estejam fam iliarizados com a teoria da verdade de Tarski; dem onstrarei, contudo, a m aneira como ela pode ser con­ siderada, de um ponto de vista intuitivo, um a simples elucidação da idéia da correspondência com os fa to s. Devo enfatizar esse ponto quase trivial porque, a despeito de sua trivialidade, é crucial p ara o m eu argum ento. O caráter altam ente intuitivo das idéias de Tarski parece tornar-se mais evidente (como descobri ao ensiná-la) se decidimos prim eiram ente considerar “ver­ d ad e”, de form a explícita, um sinônimo de “correspondência com os fatos”, para então (deixando “verdade” de lado) procedermos à explicação da idéia de ‘corres pondência com os fa to s ”. Vamos considerar assim em prim eiro lugar as duas form ulações seguintes, cada um a das quais enuncia m uito simplesm ente (num a m etalinguagem ) as con­ dições necessárias p ara que um a determ inada assertiva (de linguagem objeto) corresponda aos fatos: 1) A afirm ativa “a neve é b ra n c a ” só corresponde aos fatos se a neve for, de fato, branca. 2) A afirm ativa “a gram a é verm elha” só corresponde aos fatos se a gram a, for, de fato, verm elha. Essas form ulações soam, n aturalm ente, triviais. Mas Tarski descobriu que, a despeito da sua aparente trivialidade, elas continham a solução p ara o problem a de como explicar a correspondência com os fatos. O ponto decisivo é a descoberta de Tarski de que, p ara falar em correspon­ dência com fatos, como no caso de 1) e de 2), precisamos usar um a m e ta ­ linguagem que possibilite fa la r sobre duas coisas: as afirm ativas e os fa to s às quais elas se referem. (Tarski denom ina a m etalinguagem desse tipo “sem ântica” — um a m etalinguagem em que podemos falar sobre um a linguagem objeto, mas não sobre os fatos aos quais ela se refere, é cham ada “sin tática” .) Q uando conseguimos satisfazer a necessidade de um a m etalinguagem (sem ântica), tudo se torna claro.

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Vale n o tar que enq u an to 3) “João ch am o u ” é um a afirm ativa verdadeira, é essen­ cialm ente um a assertiva pertencente a tal m etalinguagem , 4) “é verdade que João cham o u ” pode pertencer à m esm a linguagem de ‘João ch am ou”. Assim, a frase “é verdade q u e ...” (logicam ente red u n d an te, como um a dupla negativa) difere do predicado m etalingülstico “é um a afirm ativa verdadeira” . Este últim o é necessário para observações de caráter geral, tais como: “Se a conclusão não é (um a a fir­ m ativa) verdadeira, as premissas não podem ser todas verdadeiras” ou “João fez certa vez um a afirm ativa v erdadeira”). Já disse que a teoria proposta por Schlick está errada, mas acho que alguns dos seus com entários (loc. cit.) a respeito daquela teoria projeta um a certa luz sobre as explicações de Tarski. Schlick afirm a que o problem a da verdade teve a mesma sorte de alguns outros cujas soluções não foram percebidas claram ente p o r­ que se supunha, equivocadam ente, que estavam situadas em estrato m uito p ro fu n ­ do, quando na realidade eram m uito simples e, à prim eira vista, pouco im pres­ sionantes. A solução de Tarski pode parecer pouco im pressionante à prim eira vista; mas seu poder e fertilidade são im pressionantes. V III Graças à obra de Tarski, a idéia da verdade objetiva ou absoluta — isto é, a verdade como correspondência com os fatos — parece ser aceita hoje confiantem ente p o r todos que a com preendem . As dificuldades em com preendê-la provêm de duas fontes: em prim eiro lugar, a com binação de um a idéia intuitiva ex tre­ m am ente simples com um a certa com plexidade na execução do program a técnico que provoca; em segundo lugar, o dogm a bastante difundido, porém errôneo, de que um a teoria da verdade satisfatória deveria levar a um critério p ara a crença verdadeira — a crença racional, bem fu n d am entada. N a verdade, as três rivais da teoria da verdade como correspondência — a teoria da coerência (que confunde a consistência com a veracidade), a teoria da evidência (que confunde “o que se sabe ser verdade” com “o que é verdade”) e a teoria pragm ática ou instrum entalista Xque confunde a u tilidade com a verdade) são todas subjetivas (ou “epistêm icas”); con­ trapondo-se à teoria objetiva (“m etalógica”) de Tarski. São subjetivas no sentido de que todas derivam da posição subjetivista fu n d a m en ta l que só pode conceber o conhecim ento como um a m odalidade de estado m ental, um a disposição ou u m tipo especial de crença, caracterizada, por exem plo, pela sua relação com outras cren­ ças.

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regras de aceitação ou sim plesm ente em term os da qualidade das nossas convicções subjetivas. Todas afirm am , mais ou menos, que a verdade é aquilo que temos ju s­ tificativa p ara acreditar ou aceitar, de acordo com determ inados critérios ou regras relativos às origens ou fontes do conhecim ento, sua confiabilidade, estabilidade, sucesso, força de convicção ou incapacidade de pensar de form a diferente. A teoria da verdade objetiva leva a um a atitude m uito diferente, o que se pode depreender do fato de que nos perm ite fazer afirm ativas como a seguinte: um a teoria pode ser verdadeira mesmo que ninguém acredite nela, ainda quando temos motivos p ara pensar que não é verdadeira; por outro lado, um a teoria pode ser falsa mesmo se temos razões relativam ente boas p a ra aceitá-la. E óbvio que essas afirm ativas pareceriam contraditórias do ponto de vista de qualquer teoria da verdade de natureza subjetiva ou epistêm ica. D entro do contex­ to da teoria objetiva, porém , elas são não só consistentes m as obviam ente verda­ deiras. Uma afirm ativa sem elhante, que a teoria objetiva da correspondência con-. sideraria n atu ral é a seguinte: mesmo quando deparam os com um a teoria ver­ dadeira, estamos via de regra fazendo um a m era suposição a seu respeito; pode ser impossível p ara nós reconhecê-la como verdadeira. Um com entário como este foi feito, por X enófanes, aparentem ente pela prim eira vez, há 2.500 anos, o que dem onstra que a teoria objetiva da verdade é de fato m uito antiga, tendo precedido Aristóteles, que tam bém a aceitava. Mas foi a obra de Tarski que rejeitou a suspeita de que a teoria objetiva da verdade, baseada na sua correspondência com os fatos, pode ser au to contraditória (devido ao p a ­ radoxo do m entiroso), vazia (conforme sugeriu Ramsey) ou infértil — ou ainda, quando menos, red u ndante, no sentido de que podem os perfeitam ente dispensá-la. N a m inha teoria sobre o progresso científico posso talvez dispensá-la, até um certo ponto. Depois de Tarski, porém , não encontro nenhum a razão p ara ten tar evitá-la. Se querem os elucidar a diferença entre a ciência p u ra e a ciência úplicada, entre a busca do conhecim ento e a busca do poder (ou de instrum entos poderosos), neste caso precisaremos dela. A diferença está em que ao buscar conhecim entos queremos encontrar teorias verdadeiras ou que pelo m enos estejam mais perto da verdade do que outras — que correspondam m elhor aos fatos; mas se procuram os instrum entos poderosos poderem os em m uitos casos receber bons serviços de teorias que sabemos ser falsas. 11

Se adotarm os como ponto de p artid a nossa experiência subjetiva com a crença, in terp retan d o o conhecim ento como um tipo especial de crença, p reci­ saremos de fato considerar a verdade — o conhecim ento verdadeiro — como um tipo de crença ainda mais especial: bem fu n d am en tad a, justificada. Isso signifi­ caria a existência de algum critério mais ou menos efetivo, em bora parcial, de fu n ­ dam entação — um traço determ inado, pelo qual pudéssemos diferenciar a ex­ periência de um a crença bem fu n d am en tad a de outras experiências. Pode-se dem onstrar que todas as teorias subjetivas da verdade visam encontrar um critério desse tipo: p rocuram definir a verdade em termos das fontes ou origens das nossas cre n ç a s,10 ou em term os de nossas operações de verificação, de algum conjunto de

Uma grande vantagem da teoria da verdade objetiva ou absoluta é que ela nos perm ite dizer — acom panhando Xenófanes — que buscam os a verdade mas podemos não saber quando a encontram os; que não dispomos de um critério para reconhecê-la, m as que somos orientados assim mesmo pela idéia da verdade como um princípio regulador (K ant ou Peirce o cham ariam assim); e que, em bora não haja critérios gerais p ara reconhecer a verdade — exceto talvez a verdade ta u to ­ lógica — há sem dúvida critérios p ara definir o progresso feito na sua aproxim ação (como explicarei em seguida).

10 — Vide a Introdução a este volume.

11 — Vide a discussão sobre o “segundo ponto de vista” (instrumentalista) no cap. 3 deste livro.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

O status da verdade no sentido objetivo, entendida como correspondência com os fatos, e sua função como princípio regulador podem ser com parados à situação de um pico m ontanhoso, usualm ente envolto em nuvens. Um alpinista não só terá dificuldade em alcançá-lo mas tam bém não saberá quando o alcançou, pela dificuldade em distinguir o pico principal dos subsidiários, no meio das n u ­ vens. Mas isso não afeta a existência objetiva do pico. Se o alpinista dissçr: “tenho dúvida sobre se cheguei ao pico p rin cip al” , estará reconhecendo, por im plicação, sua existência objetiva. A própria idéia do erro, ou da dúvida (no sentido norm al e corrente) im plica a idéia de um a verdade objetiva que podemos deixar de alcançar. E m bora o alpinista possa não ter a possibilidade de certíficar-se de que a tin ­ giu realm ente o pico, quase sem pre poderá perceber que ainda não o alcançou: por exem plo, q u ando d ep ara um paredão que se prolonga verticalm ente. Da m esm a form a, há caso em que temos a certeza de que não chegamos à verdade. Assim, e n ­ quanto a coerência, ou consistência, não é um critério de veracidade, sim plesm ente porq u e mesmos sistemas provadam ente consistentes podem ser de fato falsos, a in ­ coerência ou inconsistência dem onstram a falsidade. P ortanto, se tivermos sorte poderem os descobrir a falsidade de algum a das nossas teorias.12 Em 1944, quando Tarski publicou o prim eiro sum ário em língua inglesa das suas investigações a respeito da teoria da verdade (trabalho que publicara na Polônia em 1933), poucos filósofos teriam ousado fazer afirm ativas como as de Xenófanes; é interessante n o tar que o volume em que o trabalho de Tarski foi publicado continha tam bém dois artigos subjetivistas sobre a v erd ad e.13 E m bora as coisas tenham m elhorado desde aquela época, o subjetivismo é ainda im p o rtan te na filosofia da ciência — especialm ente no cam po da teoria da probabilidade. A teoria subjetivista da p robabilidade, que in terpreta os graus de pro babilidade como graus de crença racional, se origina diretam ente da a b o r­ dagem subjetivista à verdade — em especial da teoria da coerência. Contudo, ela ainda é aceita por filósofos que ad o taram a teoria da verdade de Tarski. Creio que pelo menos alguns deles se voltaram p ara a teoria da probabilidade na esperança de que ela lhes desse o que esperavam originalm ente das teorias subjetivistas ou epistemológicas da descoberta da verdade pela verificação: um a teoria da crença racional e justificável, baseada em casos observados.14 Um aspecto em baraçoso de todas essas teorias subjetivas é o fato de que são irrefutáveis — estão, assim, protegidas da crítica. E sem pre possível sustentar o ponto de vista de que tudo o que dizemos sobre o m undo, ou a respeito de logarit­ mos, por exem plo, deve ser substituído por um a crença. Podemos substituir a a fir­ m ativa “a neve é b ra n c a ” por: “acredito que a neve é b ra n c a ” ou mesmo por: “te n ­ do em vista toda a evidência disponível, acredito que a neve é b ra n c a ”. Dizer que podem os (de certo m odo) “substituir” assertivas a respeito do m undo objetivo por

12 — Vide o trabalho de Alfred Tarski, “The Semantic Conception of Truth”, in Philosophy and Phenom. Research, 4, 1943-4, pág. 341 (especialmente a seção 2 1 ).

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um circunlóquio subjetivista desse tipo é banal — em bora, no caso das afirm ativas constantes da táb u a de logaritm os, que podem ser elaboradas m ecanicam ente, não seja m uito convincente. Mencione-se, de passagem, que a interpretação subjetiva da probabilidade lógica vincula essas substituições, exatam ente como no caso da teoria que explica a verdade pela coerência, com um a abordagem que, analisada m ais de perto, aparece essencialmente “sintática”, em vez de “sem ântica”, em bora possa ser apresentada dentro de “sistema sem ântico”. Será útil fazer um sum ário das relações entre as teorias objetivas e subjetivas do conhecim ento científico, com o auxílio do quadro abaixo: Teorias objetivas, lógicas ou ontológicas.

Teorias subjetivas, p si­ cológicas ou epistem oló­ gicas.

A verdade como correspon­ dência com os fatos.

A verdade como um a p ro ­ priedade do nosso estado m ental — de conheci­ m ento ou crença.

Probabilidade objetiva (inerente à situação, testável por m étodos estatís­ ticos).

Probabilidade subjetiva (grau de crença racional baseado no conhecim ento).

Casualidade o b jetiva15 (estatisticam ente testável).

Falta de conhecim ento

E quiprobabilidade (sim etria física ou de si­ tuação).

Falta de conhecim ento.

Estou inclinado a achar que em todos esses casos, não só as duas abordagens devem ser p reparadas como tam bém o ponto de vista subjetivista deve ser rejeitado por constituir um equívoco, baseando-se num erro — em bora possivelmente um erro atraente. H á, contudo, um quadro análogo em que o lado epistemológico (o direito) não se baseia num engano: verdade testabilidade poder explicatório ou de previsão “verossim ilhança” 16

13 — Vide o vol. referido na nota precedente, especialmente as págs. 279 e 336.

15 — Objective randomness. (NT)

14 — Carnap, Logical Foundations o f Probability, 1950, pág. 177; vide também L. Sc. D., em especial a seção 84.

16 — “verisimilitude”. (NT).

conjectura teste em pírico grau de corroboração (resultados dos testes)

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3. Verdade e conteúdo: verossimilhança versus probabilidade Como m uitos outros filósofos, sinto às vezes a inclinação de classificar os filósofos em dois grupos principais — aqueles dos quais discordo e os que concor­ dam comigo. C ham o tam bém os m em bros dessas duas categorias de verificacionistas ou justificacionistas do conhecim ento (ou da crença); e refutacionistas, falibilistas ou críticos do conhecim ento (ou de conjecturas). H á ainda um terceiro grupo do qual discordo: os justificacionistas desapontados — irracionalistas e céticos. Os m em bros do prim eiro grupo — verificacionistas ou justificacionistas — sustentam , de m odo geral, que tudo o que não se pode apoiar em razões positivas é indigno de ser crido, ou mesmo de ser tom ado seriam ente em consideração. Os m em bros do segundo grupo — refutacionistas ou falibilistas — afirm am , grosso m odo, que tudo o que não pode (num dado m om ento) ser rejeitado pela crítica é (naquele m om ento) indigno de ser considerado seriam ente; por outro lado, tudo o que em princípio pode ser refutado e, contudo, resiste a todos os nossos es­ forços críticos pode ser falso, m as de q ualquer m odo m erece ser considerado se­ riam ente, e até mesmo ser aceito — em bora em caráter provisório. Os verificacionistas, adm itidam ente, estão prontos a sustentar a tradição mais im p o rtan te do racionalism o — a luta da razão contra a superstição e a a u ­ toridade a rb itrá ria . Eles afirm am , de fato, que só podemos aceitar um a crença se ela é ju stificada por evidência positiva; deve-se dem onstrar que é verdadeira, ou pelo menos altam ente provável. Em outras palavras, afirm am que só podemos aceitar um a crença verificada ou confirm ada em termos probabilísticos. Os refutabilistas (o grupo de falibilistas a que pertenço) acreditam — como a m aioria dos irracionalistas — ter descoberto argum entos lógicos para dem onstrar que as idéias do prim eiro grupo não podem ser aplicadas: não podemos expor razões positivas p ara justificar a crença de que um a teoria é verdadeira. Ao con­ trário dos irracionalistas, no entanto, os refutabilistas acreditam os ter descoberto um a m aneira de concretizar o antigo ideal de distinguir entre a ciência racional e as diversas form as de superstição, apesar da refutação sofrida pelas idéias briginais dos indutivistas ou justificacionistas. A creditam os que o ideal pode ser realizado pelo simples reconhecim ento de que a racionalidade da ciência não reside no hábito de recorrer à evidência em pírica p ara sustentar dogmas — como o fazem tam bém os astrólogos — mas unicam ente na visão crítica: atitude que im plica, o b ­ viam ente, o uso crítico da evidência em pírica (sobretudo nas refutações), entre outros argum entos. A nosso ver, portanto, não há relação algum a entre a ciência e a busca da certeza, da probabilidade, ou da confiabilidade. N ão estamos interes­ sados em definir a segurança, certeza ou probabilidade das teorias científicas. Conscientes da nossa falibilidade, estamos apenas interessados em criticá-las e testálas, na esperança de descobrir nossos erros, aprender com eles e, com um pouco de sorte, desenvolver teorias melhores. C onsiderando suas idéias respectivas sobre a função negativa ou positiva dos argum entos na ciência, pode-se apelidar o prim eiro grupo — justificacionista — de 17 — Em inglês, respectivamente: verificationists, justificationists; falsificationists, fallibilists. (NT).

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“positivista” , e o segundo — do qual faço parte — de crítico ou “negativista” . São apenas apelidos, é claro, mas podem sugerir alguns dos motivos pelos quais se cos­ tum a acreditar que apenas os positivistas ou verificacionistas estão seriam ente in ­ teressados na verdade e na sua busca, enquanto nós, críticos ou negativistas, somos irreverentes com respeito à busca da verdade, adeptos de um a crítica árida e des­ trutiva — além de expormos pontos de vista claram ente paradoxais. Essa visão errônea de nossas idéias parece resultar em larga m edida da adoção geral de um program a justificacionista, e da visão subjetivista errônea da verdade — que já descrevi. O fato é que tam bém consideram os a ciência um a busca da verdade e, pelo menos desde Tarski, não temos receio de afirm á-lo. E só em relação a esse objetivo — a descoberta da verdade — que afirm am os que, apesar da nossa falibilidade, es­ peram os aprender com os erros. Só a idéia da verdade nos perm ite falar de m aneira sensata sobre os erros e a crítica racional, possibilitando a discussão racional — isto é, a que procura descobrir os erros com a intenção séria de eliminá-los ao m áxim o, p ara que nos possamos aproxim ar da verdade. P ortanto, a própria idéia do erro — e da falibilidade — im plica um a verdade objetiva, considerada como padrão que podemos não atingir (neste sentido, a idéia de verdade é reguladora). Aceitamos, p o rtanto, a idéia de que a função da ciência é a busca da ver­ dade, ou seja, de teorias verdadeiras (em bora, como observou Xenófanes, podemos nunca alcançá-las ou mesmo não reconhecer sua veracidade). Enfatizamos, porém , o fato de que a verdade não é o único objetivo da ciência. Procuram os mais do que a simples verdade: buscamos um a verdade interessante — difícil de ser descoberta. Nas ciências naturais (em oposição à m atem ática), procuram os a verdade com alto grau de capacidade explicativa, no sentido de logicam ente improvável. Em prim eiro lugar, está claro que não querem os sin plesm ente a verdade — queremos ir além, querem os verdades novas. Não nos contentam os com “dois mais dois é igual a q u atro ” , em bora essa afirm ativa seja verdadeira: se estamos diante de um problem a difícil da topologia ou física, não recorrem os sim plesm ente à tabuada Me m ultiplicação. A m era verdade não basta; procuram os soluções para os p ro ­ blemas. Essa idéia foi bem exposta por Busch, poeta e hum orista alem ão, num a rim a infantil — um a rim a epistemológica: “Twice two equals four: ‘tis true, But too em pty, and too trite. W hat I look for is a clue To some m atters not so lig h t.” 18

18 — Extraído de Schein und Sem, de W. Busch (publicado pela primeira vez postumamente em 1909; pág. 28 da edição Insel, 1952). Um ensaio sobre Busch como filósofo, por um amigo falecido, Julius Kraft, publicado no volume Erziehung und Politik (Ensaios para Minna Specht, 1960; vide pág. 262) chamou-me a atenção para a rima. Minha tradução para o inglês talvez a tenha apresentado mais como “nursery rhyme” do que seria a intenção do autor. Em português: “Dois mais dois é igual a quatro: ver­ dade, /Mas muito vazia e banal./ O que procuro é uma pista/ Para encontrar outras coisas, menos ‘triviais.”

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A verdade, ou um a conjectura sobre ela, só é relevante p ara a ciência se fo r­ nece a solução p a ra algum problem a difícil, fértil e de algum a profundidade. Isso é verdade p ara a m atem ática p u ra e p a ra as ciências naturais. Nestas últim as, a im ­ p robabilidade lógica ou a capacidade explicativa de um a nova proposta, com ­ p a ra d a com a m elhor teoria ou conjectura já feita no seu cam po específico, nos dá o que podem os cham ar de m edida lógica da profundidade ou do significado do problem a em questão. Essa m edida lógica é essencialmente o que já descrevi como o critério lógico do progresso e da adequação potencial. M inha descrição dessa situação pode levar algum as pessoas a acreditar que a verdade, mesmo como princípio regulador, não é im portante p ara os negativistas . Pode-se pensar que preferim os resolver problem as interessantes m ediante conjec­ turas audazes, e não por meio de um a seqüência de afirm ativas verdadeiras porém pouco interessantes; o que ocorreria mesmo que o problem a se revelasse falso. Parece, p o rtan to , que os negativistas não consideramos útil a idéia da verdade. Nossas noções sobre o progresso científico e a tentativa de resolver problem as não parecem estar ligadas ao conceito de verdade. A m eu ver, essa é um a impressão errônea. Apesar de sermos conhecidos como “negativistas” , interessam o-nos pela verdade tanto quanto qualquer outro grupo — como, por exem plo, os m em bros de um jú ri. Q uando um juiz pede a um a testem unha que fale “a verdade, toda a verdade, e nad a mais do que a verdade , pro cu ra obter toda a verdade relevante que a testem unha pode oferecer. Se ela se perder em fatos irrelevantes, seu relato será insatisfatório, m uito em bora esses fatos sejam truísm os, e, p o rtan to , p arte da verdade como um todo. O bviam ente, quando um juiz — ou q ualquer o u tra pessoa — exige “toda a verdade” , está em busca de toda a inform ação interessante e relevante que pode ser obtida; m uitas testem unhas ingênuas deixam de revelar inform ações im portantes simplesmente por não p e r­ ceber sua relevância p ara o caso em questão. O ponto que enfatizam os, portanto, ju n tam en te com Busch — isto é, de que não estamos interessados na m era verdade, mas na verdade interessante e relevante — é aceito de m odo geral. Nosso interesse por conjecturas ousadas, mesmo que fa l­ sas, é devido à convicção m etodológica de que só com sua ajuda poderem os des­ cobrir a verdade interessante e relevante. Sob esse aspecto, há um ponto que, na m inha opinião, interessa particular m ente ao lógico. No sentido que se quis dar, os termos “interesse” e “relevância” podem ser analisados objetivam ente; sendo relativos aos nossos problem as, d ep en ­ dem da capacidade de explicação, e p o rtan to do conteúdo ou da im probabilidade da inform ação. As m edidas a que fiz alusao anteriorm ente (desenvolvidas nos apêndices a este volume) são precisam ente as que se referem ao conteúdo relativo da inform ação — o conteúdo relativo a um a hipótese ou a um problem a. Posso adm itir, portanto, prazerosam ente, que os refutabilistas preferimos ten tar solucionar problem as por meio de conjecturas audazes, em lugar de seqüências de truísm os irrelevantes; mesmo (e especialmente) se o problem a se revelar fa l­ so. Essa preferência se deve à crença de que essa é a m aneira pela qual podemos aprender com nossos erros: ao descobrir a falsidade de nossas conjecturas, a p re n ­ demos m uito sobre a verdade e nos aproxim am os mais dela.

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Sustento, p o rtanto, que am bas as idéias — a da verdade, no sentido da correspondência com os fatos, e a do conteúdo (que pode ser m edido da m esma m aneira que a testabilidade) — desem penham funções igualm ente im portantes em nossas considerações, podendo projetar m uita luz sobre a idéia do progresso cien­ tífico. X Ao observar o progresso do conhecim ento científico, m uitos são levados a afirm ar que, em bora não saibam os se estamos distante ou perto da verdade, p o ­ demos (e m uitas vezes conseguimos) nos aproxim ar cada vez mais dela. Eu mesmo já afirm ei isso, mas sem pre com um certo peso na consciência. N ão acredito que estamos sendo dem asiadam ente meticulosos com o que dizemos: desde que não te n ­ temos derivar conseqüências aparentem ente exatas de premissas vagas ou d u ­ vidosas, não há m al algum em sermos ocasionalm ente vagos, ou em expressar es­ poradicam ente nossas sensações ou impressões intuitivas gerais sobre certas coisas. No entanto, sem pre que escrevia ou dizia algum a coisa a respeito da ciência en ten ­ dida como aproxim ação da verdade, achava que devia escrever “V erdade”, com “V” m aiúsculo, a fim de deixar claro que se tratava de um a noção vaga e m e ta ­ física, diferente da “verdade” de Tarski, que podem os escrever da form a ordinária sem problem as de consciência.19 Foi só há m uito pouco tem po que me pus a considerar se a idéia de verdade envolvida aqui era de fato tão perigosam ente vaga e m etafísica. Quase im edia­ tam ente descobri que não; que não havia qualquer dificuldade especial em aplicar a idéia básica de Tarski. De fa to , não há motivo para deixar de dizer que um a teoria corresponde aos fatos m elhor do que outra. Este simples passo inicial facilita tudo: não há realm en­ te qualquer barreira — como parecia à prim eira vista — entre verdade no sentido de Tarski e “V erd ad e.” Podemos falar num a m elhor correspondência? H averá de fato graus de ver­ dade? Não será perigosam ente enganoso falar como se a verdade de Tarski se si­ tuasse num a espécie de espaço m étrico, ou pelo menos topológico, de tal form a que se possa dizer razoavelm ente a respeito de duas teorias — por exem plo, um a teoria anterior H e um a teoria posterior t2, que a substituiu, que esta últim a se aproxim a mais da verdade do que a prim eira? Na m inha opinião, esse com entário não é em absoluto enganoso. Ao con­ trário, acredito que simplesmente não podemos dispensar algo como a idéia de um a m elhor (ou pior) aproxim ação da verdade. N ão há dúvida de que podemos dizer (e m uitas vezes querem os dizer), a propósito de um a teoria t2 , que ela corres­ ponde m elhor aos fatos, ou que parece corresponder m elhor a eles do que outra teoria, tl. Vou d ar aqui um a lista — não m uito sistem ática — de seis situações em que nos sentimos inclinados a fazer tal com entário: 19 — Preocupação semelhante foi manifestada por Quine, ao criticar Peirce por trabalhar com a idéia de aproximação da verdade. Vide W. V. Quine, Word and Object, Nova Iorque, 1960, pág. 23.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

1) quan d o t2 faz assertivas mais precisas do que t l , as quais resistem a testes que sao tam bém mais precisos; 2) quando t2 leva em consideração ou explica mais fatos do que t l (que in ­ clui a hipótese acim a de que, em igualdade de condições, as assertivas de t2 são mais precisas); 3) quando t2 descreve ou explica os fatos com maiores detalhes do que tl; 4) se t2 resistiu a testes que refu taram tl ; 5) se t2 sugere novos testes experim entais, que não haviam sido conside­ rados antes da sua form ulação (testes não sugeridos por 11, talvez nem sequer aplicáveis a tl), conseguindo resistir a eles; 6) se t2 perm itiu reunir ou relacionar entre si vários problem as que até e n ­ tão pareciam isolados. Se refletirm os sobre essa lista, veremos que o conteúdo das duas teorias, t l e t2, desem penha um papel m uito im portante. Vale lem brar, aqui, que o conteúdo lógico de um a afirm ativa ou teoria a é a classe de todas as proposições que d e ­ correm logicam ente de a; definimos o conteúdo empírico de a como a classe de todas as proposições básicas que contradizem a . 20 Assim, na nossa lista de casos, o conteúdo em pírico de t2 excede sem pre o de t l . Isso sugere que estamos com binando aqui as idéias de verdade e de con­ teúdo nu m a única noção, de grau de correspondência com a verdade, de m aior ou m enor sim ilaridade com respeito à verdade; ou, p ara em pregar-um term o que já m encionam os, a idéia (ou graus) de verossimilhança {verisim ilitude), diferente da probabilidade. Note-se que a idéia de que toda afirm ativa ou teoria é não só verdadeira-ou falsa, m as que, independentem ente do seu valor de verdade, apresenta um a d e te r­ m inada verossim ilhança; não obriga à criação de lógicas de m últiplos valores — sistemas lógicos com mais de dois valores p ara a verdade (falso e verdadeiro); não obstante, a teoria da verossimilhança parece propiciar algum as das coisas alm e­ jadas pelos defensores de tais sistemas lógicos (vide a seção 3 dos A pêndices, no final deste volume). XI

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teúdo (podemos usar o conteúdo lógico ou o em pírico, obtendo assim duas idéias entreligadas de verossimilhança as quais contudo se fundem num a só quando con­ sideramos exclusivamente as teorias em píricas — ou os aspectos empíricos das teorias). Considere-se o conteúdo de um a afirm ação a; isto é, a classe de todas as conseqüências lógicas de a. Se a for verdadeira, essa classe consistirá apenas de afirmações verdadeiras, porque a verdade é sem pre transm itida de um a premissa para todas as suas conclusões. Se, no entanto, a for falsa, seu conteúdo com preen­ derá afirm ações falsas e verdadeiras. (Exemplo: a afirm ação “sem pre chove aos dom ingos” é falsa, mas pode acontecer que tenha chovido no últim o dom ingo, o que seria um a conclusão correta da afirm ação.) Logo, independentem ente do fato de um a afirm ação ser falsa ou verdadeira, pode haver mais ou menos verdade no que afirm a , segundo o núm ero de afirmações verdadeiras que encontram os em seu conteúdo,. Passemos a denom inar a classe das conseqüências lógicas e verdadeiras de a de “conteúdo-verdade” de a (durante m uito tem po, usou-se intuitivam ente o term o alem ão i(W ahrheitsgehalt” — rem inescência da expressão “há verdade no que afir­ m as” — da qual “conteúdo-verdade” pode ser considerado um a tradução); passemos a cham ar a classe das conseqüências falsas de a — e só estas — de “conteúdo falso” de a {E stritam ente, o “conteúdo falso” não é um “conteúdo” , pois não co n ­ tém as conclusões verdadeiras das afirm ativas falsas que as com põem . E possível, no entanto — veja o A pêndice — definir sua m edida com a ajuda dos dois conteúdos.) Estes termos são precisam ente tão objetivos quanto os próprios termos “verdadeiro” , “falso” e “conteúdo” . Podemos dizer, agora: Presumindo-se que o conteúdo-verdade e o conteúdo falso de duas teorias tl e t2 são comparáveis, pode-se afirm ar que t2 é mais sem elhante à verdade, ou corresponde m elhor aos fa to s do que t l som ente se: (a) o conteúdo-verdade {mas não o conteúdo falso) de t2 excede o de tl; (b) o conteúdo falso {mas não o conteúdo-verdade) de t l excede o de t2. Se* passamos a trab alh ar com a suposição (possivelmente fictícia) de que o conteúdo e o conteúdo-verdade de um a teoria a são em princípio mensuráveis, podem os ir um pouco além dessa definição e definir Vs{a), ou seja, a m edida de verossimilhança de a, ou da semelhança de a com a verdade. A definição mais sim ­ ples será

Depois que percebi o problem a, não foi necessário m uito tem po para que chegasse a este ponto. C ontudo, em bora pareça estranho, levei m uito tem po a e n ­ con trar um a definição simples de verossimilhança, em termos de verdade e de con­

20 — Esta definição se justifica logicamente pelo teorema de que, no concernente à “parte empírica” do conteúdo lógico, a comparação do conteúdo lógico com o empírico dará sempre o mesmo resultado; jus­ tifica-se intuitivamente pela consideração de que uma afirmativa a descreve mais o mundo da experiên­ cia na medida em que exclui um número maior de experiências possíveis. A respeito das proposições básicas vide também os apêndices no final deste livro.

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Vs(a) = C ty (a) —C tF(a)

onde C ty (a ) é a m edida do conteúdo-verdade de a, e C tF(a) a m edida do conteúdo falso de a. Uma definição mais com plexa, mas em certos casos preferível, pode ser encontrada na seção 3 dos Apêndices a este volume. O bviam ente, Vs(a) satisfaz ambos os requisitos, segundo os quais Vs(a) deve crescer

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

(a) se C tv (a ) cresce enquanto C tp(a) perm anece no mesmo nível, e (b) se C tp(a) dim inui enquanto G ty (a) perm anece no mesmo nível. O utras considerações, de caráter mais técnico, além das definições de C ty (a ) e sobretudo de C tp(a) e Vs(a) podem ser encontradas nos Apêndices. Desejo agora discutir três pontos que não são de natureza técnica. XII O prim eiro é que nossa idéia de aproxim ação de verdade, ou verossim ilhan­ ça, possui o mesmo caráter objetivo e a m esma natureza ideal ou reguladora do conceito da verdade objetiva ou absoluta. Essa idéia não é epistemológica ou epistêm ica — como acontece com os conceitos de verdade ou conteúdo (na term i­ nologia de T arski, ela é obviam ente um a idéia “sem ântica”, como “verdade” ou “conseqüência lógica” , e, portanto, “conteúdo”). Da m esm a m aneira, temos que distinguir aqui novam ente entre as questões: “Q ue se pretende afirm ar quando se diz que a teoria t2 tem grau de verossimilhança m aior do que a teoria t l ?”, e “Como podemos saber se a teoria t2 tem um grau de verossim ilhança m aior do que a teoria t l ? ” Até aqui, respondemos apenas a prim eira pergunta, da qual depende a solução da segunda, exatam ente análoga à seguinte questão (absoluta e não com ­ parativa) sobre a verdade: “Eu não sei — apenas faço suposições. Mas posso exam iná-las criticam ente; se resistirem à crítica severa, esse fato poderá ser co n ­ siderado um a boa razão crítica em seu favor.” O segundo ponto é o seguinte: a verossimilhança está definida de tal m a ­ neira que seu grau m áxim o só será atingido por um a teoria que seja com pleta e com preensivam ente verdadeira: deve corresponder a todos os fatos, e, obviam ente, apenas a fatos verdadeiros. Esse ideal é nitidam ente m uito mais rem oto e in a tin ­ gível do que o da m era correspondência com alguns fatos (como, por exemplo, na afirm ação “A neve é geralm ente b ra n c a ”). Mas isso é verdadeiro apenas no que se refere ao grau m áxim o de verossi­ m ilhança, e não à comparação entre graus.de verossimilhança de teorias diferentes. Esse uso com parativo da idéia é seu ponto principal; a idéia de um grau de veros­ sim ilhança m aior ou m enor parece menos rem ota, mais aplicável, e portanto mais im portante p ara a análise de métodos científicos do que a própria idéia da verdade absoluta. Isso me leva ao terceiro ponto que desejo expor. Em prim eiro lugar, não es­ tou sugerindo que a introdução explícita da idéia da verossimilhança possa engen­ d rar m udanças na teoria do m étodo. Pelo contrário, acredito que m inha teoria de testabilidade ou corroboração por testes em píricos é a co n trap artid a m etodológica ap ro p riad a p ara essa nova idéia m etalógica. O único aprim oram ento está no fato de que se tornou mais clara. T enho assim afirm ado com freqüência que um a teoria t2, que passou por certos testes severos, é preferível a um a teoria t l que foi refutada por esses mesmos testes; um a teoria falsa será sem pre pior do que um a que, pelo que sabemos, pode ser verdadeira.

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Pode-se dizer tam bém que, mesmo após haver refutado a teoria t2, ainda podemos afirm ar que ela é m elhor do que t l , pois, em bora am bas se tenham re ­ velado falsas, o fato de que t2 resistiu a testes que refu taram t l pode ser um a boa indicação de que o conteúdo falso de t l excede o de t2, o que não acontece com o conteúdo-verdade de t l . Podemos, portanto, preferir ainda t2, mesmo após a refutação, pois temos motivos p ara acreditar que ela corresponde m elhor aos fatos do que t l . Todos os casos em que aceitam os t2 por causa de experiências cruciais p ara a escolha entre t2 e tl parecem ser desse tipo; especialm ente os casos em que as ex­ periências foram estabelecidas através da tentativa de encontrar, com a ajuda de t2, casos em que t2 leva a resultados diferentes de t l . Desse m odo, a teoria de Newton perm itiu prever certos desvios das leis de Kepler. Seu êxito nesse cam po explica por que não falhou nos casos em que refutou a teoria de Kepler: o conteúdo falso da teoria de Kepler não fazia parte da de Newton, enq u an to que, obviam ente, o conteúdo-verdade não pode ter dim inuído, um a vez que a teoria de Kepler foi um a “prim eira aproxim ação” da de Newton. Da mesm a form a, um a teoria t2, mais precisa do que tl , pode ter, demonstradam ente, um grau de verossimilhança m aior do que t l — desde que seu co n ­ teúdo de falsidade não exceda o de tl. O mesmo se aplica a t2, cujas afirm ativas num éricas, em bora falsas, se aproxim am mais dos verdadeiros valores num éricos do que os de tl. No fim, a idéia de verossimilhança tem relevância especial nos casos em que sabemos que precisamos tra b a lh a r com teorias que são, na m elhor das hipóteses, aproxim ações — isto é, teorias a respeito das quais sabemos que não podem ser verdadeiras (o que acontece m uitas vezes no cam po das ciências sociais). Nesses casos, podemos falar sem pre de aproxim ações m aiores ou menores da verdade — portanto, não precisamos in terp retar esses casos num sentido instrum entalista. X III E sem pre possível, naturalm ente, com eter erros na avaliação relativa de duas teorias — um a avaliação desse tipo será sem pre sujeita a controvérsia. É preciso deixar bem claro este ponto. Mas é tam bém im portante que, em princípio, e enquanto não houver alterações revolucionárias no quadro geral dos nossos conhecim entos, a avaliação relativa de duas teorias, t l e t2, seja estável. De m odo mais especial, nossas preferências não precisam m u d ar, como vimos, se refutarm os eventualm ente a m elhor das duas. A dinâm ica de Newton, por exemplo, m anteve sua superioridade sobre as teorias de Kepler e de Galileu, ainda que a considerem os refu tad a. O movito é seu conteúdo m aior e m aior poder explicativo. A teoria de Newton continua a explicar mais fatos do que aquelas outras duas; a explicá-los com m aior precisão; e a unir problem as de m ecânica celeste e terrestre que até então eram considerados iso­ ladam ente. A razão por que é desejável m anter a estabilidade de avaliações re ­ lativas desse tipo é m uito simples: a relação lógica entre as teorias é tal que, em prim eiro lugar, existe com relação a elas certas experiências cruciais que, quando executadas, infirm aram as teorias que precederam a de Newton. Em segundo lugar, o caráter dessa relação faz com que as refutações posteriores da teoria de

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N ew ton não apoiem as teorias m ais antigas, tam bém as refutem (como no referen­ te aos movim entos de m ercúrio) ou sim plesm ente não as afetem .

Antifo, quando este escreveu (DK, B 60): “Se com eçam os bem algum a coisa, é provável que ela term ine b e m .”

Espero ter explicado a idéia da m elhor concordância com os fatos, ou dos graus de verossim ilhança, de m odo suficientem ente claro p ara os objetivos deste breve levantam ento.

Isso tudo sugere que a confusão entre verossimilhança e probabilidade rem onta quase ao início da filosofia ocidental — e é compreensível, se considerar­ mos que Xenófanes acentuou a falibilidade do nosso conhecim ento, ao descrevê-lo como suposição incerta e, na m elhor das hipóteses, “sem elhante à verdade” . Essa frase parece prestar-se a um a interpretação errônea, como “incerto e, na m elhor das hipóteses, com algum grau de certeza” , isto é, provável.

XIV Parece ap ropriado incluir aqui um a observação sucinta sobre a fase inicial da história da confusão entre a verossimilhança e a probabilidade. Como vimos, o progresso científico significa progresso rum o a teorias mais interessantes, m enos triviais e p o rtan to menos “prováveis”. Isso significa, de modo geral, desenvolvimento no sentido de teorias m enos fam iliares, côm odas e p la u ­ síveis. No en tan to , a noção de m aior verossim ilhança, ou de um a m elhor a p ro ­ xim ação d a verdade, é m uitas vezes confundida, intuitivam ente, com a idéia da probabilidade (nos seus vários sentidos de “mais provável”, “mais freqüente” , “parece provavelm ente verdadeiro”, “é plausível” , “é convincente”). T rata-se de confusão m uito antiga. Basta lem brar algum as das palavras em pregadas em lugar de “provável”, como o inglês “likely”, que veio originalm ente de “like the tr u th ” (“como a v erdade”) ou “verisimilar” (eikotós, eikos, eoikotós, etc. em grego; verisimilis, em latim ; w ahrscheinlich, em alem ão), p ara localizar alguns dos sinais e talvez tam bém algum as das fontes dessa confusão. Pelo m enos dois dos prim eiros filósofos pré-socráticos em pregaram eoikota no sentido de “parecido com a verdade”, ou “sem elhante à verdade”. Assim, lemos em X enófanes (DK, B 35): “Supomos que essas coisas sejam como a verdade” . Parece bastante claro que o que se quer indicar aqui é a verossimilhança, não a p robabilidade ou o grau de certeza incom pleta (se não, as expressões “vamos supor” , “conjecturem os” ou “im aginem os” seriam redundantes; Xenófanes teria es­ crito algo como: “Dizemos que essas coisas são prováveis”). Usando a m esm a palavra (eoikota), Parm ênides escreveu (DK, B 8, 60):21 “Vou falar-lhes sobre este m undo, arranjado de form a a parecer in teg ral­ m ente como a v erd ad e.” C ontudo, na m esm a geração ou na próxim a, Epicarm o parece ter usado a palavra eikotós, criticando X enófanes, no sentido de “plausível”, ou algo sem elhan­ te (DK, 21 A 15); no entanto, não se pode excluir a possibilidade de que a tenha utilizado no sentido de “sem elhante à verdade” — tendo sido Aristóteles (M et., 1010a4) que a interp reto u na acepção de “plausível” . Cerca de três gerações mais tarde, porém , eikos é usado já sem am bigüidade, no sentido de “provável” (ou ta l­ vez mesmo com o significado de “mais freqüentem ente do que n ão ”) pelo sofista

21 — Neste fragmento, eoikota tem sido quase sempre traduzido como “provável” ou “plausível”. Por exemplo, in Fragmente der Vorsokratiker (W. Kranz, Diels-Kranz, 6 a. edição), onde encontramos ‘wahrscheinlich- einleuchtend” isto é “provável-plausível”.

O próprio Xenófanes parece ter distinguido claram ente entre graus de cer­ teza e de verossimilhança. E o que depreendem os de outro fragm ento (citado na p arte final do cap. 5), o qual afirm a que mesmo que pronunciássem os acidental­ m ente a verdade definitiva (poderíam os dizer: a verossim ilhança perfeita), não a reconheceriam os. Assim, um a grande incerteza pode ser com patível com a m aior verossim ilhança. Sugiro retornarm os a Xenófanes, reintroduzindo um a distinção nítida entre verossimilhança (verisimilitude) e probabilidade (usando este últim o term o no sen­ tido do cálculo de probabilidades). A diferenciação entre as duas idéias é ainda m ais im portante pelo fato de que têm sido confundidas; porque am bas se relacionam estreitam ente à idéia da verdade, adotando o conceito de um a aproxim ação à verdade por graus. A p ro ­ babilidade lógica (não estamos considerando aqui a probabilidade física) represen­ ta a noção da aproxim ação da certeza lógica, ou verdade tautológica, por meio de um a dim inuição gradual do conteúdo inform ativo. A verossim ilhança, de outro lado, representa a idéia de aproxim ação da verdade com preensiva. Com bina, p o r­ tanto, a verdade com o conteúdo, enquanto a probabilidade com bina a verdade com a falta de co n teú d o .22 O sentim ento de que é absurdo negar que a ciência busca a probabilidade se origina, na m inha opinião, num a “intuição” equivocada — na confusão intuitiva entre as noções de verossimilhança e de probabilidade que, conform e dem ons­ tram os, são totalm ente diversas. 4. Conhecim ento contextuai e progresso científico. XV Aqueles que se em penham na discussão crítica frutífera a respeito de algum problem a quase sempre se baseiam , pelo menos inconscientem ente, em duas coisas: a aceitação geral do objetivo com um de alcançar a verdade (ou, pelo menos, de se aproxim ar da verdade) e um acervo considerável de conhecim ento contextuai de fundo (background knowledge). Isso não quer dizer que qualquer um a dessas coisas seja a base indispensável de todas as discussões, ou que elas sejam em si mesmas apriorísticas — e por isso não possam ser discutidas criticam ente. Q uer dizer

2 2 — 0 que é tão verdadeiro para a probabilidade absoluta p(a) quanto para a probabilidade relativa p(a, b); há conceitos correspondentes de verossimilhança absoluta e relativa.

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apenas que a crítica sem pre tem um ponto de p artid a, em bora qualquer ponto de p a rtid a possa ser contestado no curso do debate crítico. No en tan to , em bora todas as nossas premissas possam sér desafiadas, é im ­ praticável contestá-las todas ao mesmo tem po. Por isso, qualquer crítica é sempre tópica (contrariando a concepção holística de D uhem e de Quine); o que corres­ ponde a dizer que a m áxim a fund am en tal de toda discussão crítica é a de que devemos fixar-nos no nosso problem a; subdividi-lo, se possível; ten tar resolver não mais do que um problem a de cada vez — em bora possamos, n aturalm ente, con­ siderar um problem a subsidiário ou substituir nosso problem a original por um outro m elhor. E nquanto discutim os um problem a sem pre aceitam os todos os tipos de coisas como não-problem áticas (ainda que tem porariam ente): no m om ento, d u ra n ­ te a discussão do problem a em referência, elas constituem o que cham o de nosso conhecim ento contextuai (background knowledge). Poucas porções desse conhe­ cim ento de fundo nos parecerão absolutam ente não-problem áticas em todas as c ir­ cunstâncias — q u alq u er p arte especial poderá ser contestada em qualquer ocasião, especialm ente se suspeitarm os que sua aceitação acrítica pode ser responsável por algum as das nossas dificuldades. C ontudo, quase todo o vasto acervo de conhe­ cim ento de fundo que usamos constantem ente, em qualquer discussão inform al, perm anecerá necessariam ente inconteste, por motivos práticos. A tentativa equivocada de contestá-lo todo — isto é, de com eçar da estaca zero — pode levar m uito facilm ente à ru p tu ra do debate crítico. Se tivéssemos que com eçar do ponto do qual p artiu Adão, não vejo motivos p ara achar que chegaríam os mais longe do que ele chegou. XVI O fato de que de m odo geral estamos sem pre presum indo um a vasta q u a n ­ tidade de conhecim ento tradicional (de fato, quase todo o nosso conhecim ento é tradicional) não cria q ualquer dificuldade p a ra o refutabilista ou falibilista. Ele não aceita esse conhecim ento de fundo: nem como fato dem onstrado, nem como “bastante seguro”, nem mesmo como provável. O refutabilista sabe que mesmo um a aceitação tentativa seria arriscada; salienta assim que toda ela está aberta à crítica, ainda que de form a tópica. N unca podem os ter certeza de que contesta­ remos o que devemos contestar — contudo, como não buscamos a certeza, isso não im porta. Note-se que essa observação contém m inha resposta à concepção holística de Q uine a respeito dos testes em píricos — um a concepção que Q uine enuncia (referindo-se a D uhem ) afirm ando que nossas assertivas sobre o m undo externo são subm etidas ao trib u n al da experiência sensorial — não individualm ente, mas de form a c o rp o rativ a.23 O ra, é preciso adm itir que m uitas vezes só podemos testar um a p arte am pla de um sistema teórico, às vezes só o sistema inteiro; que, nesses casos, saber quais dos seus ingredientes é responsável por qualquer refutação é puram en te especulativo — um ponto que d u ran te m uito tem po venho tentando e n ­ fatizar, referindo-m e tam bém a D u h e m .24 Em bora este argum ento possa transfor­ m ar um verificacionista num cético, não afeta os que concebem todas as teorias como suposições. 23 — W.V. Quine, From a Logical Point o f View, 1953, pág. 41. 24 — L. Sc. D., especialmente seções 19 a 22; vide também o cap. 3 deste volume.

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Fica dem onstrado p o rtan to que o ponto de vista holístico, m es­ m o que fosse verdadeiro, não criaria sérias dificuldades p a ra o falibilista e refuta cionista. Por outro lado, deve-se dizer que o argum ento holístico vai m uito além : em m uitos casos é possível descobrir qual a hipótese responsável pela re fu ta ­ ção — em outras pafavras, que p arte de um grupo de hipóteses é necessária p ara derivar a previsão refutada. O fato de que tais dependências lógicas podem ser des­ cobertas é dem onstrado pela p rática das provas de independência dos sistemas axiomáticos — provas que m ostram que determ inados axiomas do sistema não podem ser derivados dos outros. A mais simples dessas provas consiste na cons­ trução — m elhor dito, na descoberta — de um modelo, conjunto de coisas, re ­ lações, operações ou funções que satisfazem todos os axiomas, exceto aquele cuja independência se quer dem onstrar; com relação a esse axiom a, e por conseguinte com respeito ao conjunto da teoria, o m odelo representa um contra-exem plo. Vamos im aginar que temos um sistema teórico axiom ático — por exemplo, na física — que nos perm ite prever que certas coisas não acontecem ; vamos dizer que descobrimos um contra-exem plo. N ão há razão por que esse contra-exem plo não satisfaça a m aior parte dos axiomas — até mesmo todos eles —, exceto aquele cuja independência seria assim dem onstrada. Isso m ostra que o dogm a holístico do caráter “global” de todos os testes ou contra-exem plos é insustentável, e explica tam bém por que podemos ter um indício do que falhou no nosso sistema, mesmo sem precisar axiom atizar a teoria física em questão. Incidentalm ente, isso recom enda a utilização, na física, de teorias altam ente analisadas — isto é, sistemas que nos perm item separar vários grupos de hipóteses cada um dos quais se torna um objeto de possível refutação por contra-exem plos, em bora esses sistemas possam fundir todas as hipóteses em um a única. Um excelen­ te exemplo é a rejeição, na teoria atôm ica, da lei da paridade; outro exemplo é a rejeição da lei da com utação p ara variáveis conjugadas, antes da sua interpretação como m atrizes, e da interpretação estatística dessas m atrizes. XVII Um fato característico da situação em que o cientista se encontra hoje é o de que estamos constantem ente acrescentando ao nosso conhecim ento contextuai. Se é verdade que rejeitamos algum as das suas partes, outras, m uito próxim as das prim eiras, perm anecerão de pé. Assim, por exem plo, em bora possamos considerar a teoria de Newton como refutada — refiro-m e ao seu sistema de idéias e ao sis­ tem a dedutivo form al dele derivado — é possível adm itir ainda, como parte do nosso conhecim ento de fundo, a veracidade aproxim ada, dentro de certos limites, das fórm ulas quantitativas propostas por Newton. Esse conhecim ento contextuai tem um a função im portante num dos a r ­ gum entos que sustentam (creio) m inha tese de que o caráter racional e em pírico da ciência desapareceria se ela deixasse de progredir. Vou esboçar aqui este argum en­ to em suas linhas mais gerais. Q ualquer teste em pírico sério consiste sem pre em tentativa de encontrar refutação, um contra-exem plo. Para p rocurar contra-exem plos precisamos usar nosso conhecim ento de fundo: sempre procuram os refu tar em prim eiro lugar as previsões mais arriscadas, as “conseqüências... mais im prováveis”, como Peirce já

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p erc e b e ra ;25 o que significa que sem pre procuram os os contra-exem plos mais prováveis nos lugares mais prováveis — mais prováveis no sentido de que esperamos encontrá-los à luz do nosso conhecim ento contextuai. O ra, se um a teoria resiste a m uitos desses testes, neste caso, devido à incorporação dos resultados da nossa ex­ perim entação ao conhecim ento de fundo, pode acontecer que depois de algum tem po não haja mais lugares onde os contra-exem plos podem ter probabilidade elevada de ocorrer (à luz do nosso novo conhecim ento de fundo). Isso significa, porém , que o rigor do nosso teste dim inui; esta é tam bém a razão por que um teste m uitas vezes repetido deixará de ser considerado significativo ou severo: há algo como u m a lei dos retornos decrescentes que se aplica aos testes reiterados (em con­ traposição aos testes que, à luz do nosso conhecim ento de fundo, são de um novo tip o , e que p o rtan to são ainda considerados significativos). Estes são fatos inerentes à situação do conhecim ento — fatos que foram qualificados m uitas vezes, especialm ente por John M aynard Keynes e por Ernest N agel, como dificilm ente explicáveis por um a teoria indutivista da ciência. P ara nós, porém , a explicação é simples. Podemos mesmo explicar, por um a análise sem elhante da situação do conhecim en­ to, porque o caráter em pírico de u m a teoria de grande êxito sem pre “se estraga”, depois de algum tem po. Podemos sentir — como sentiu Poincaré, a respeito da teoria de N ew ton — que a teoria não passa de um conjunto de definições im plícitas ou convenções: sentim ento que p erd u ra até poderm os voltar a progredir e, pela refutação, restabelecem os seu c aráter em pírico, que se havia perdido. De m ortuis nil nisi bene: u m a vez refu tad a u m a teoria, seu caráter em pírico está seguro e brilha sem q u alq uer m ácula.

5. Três condições para a expansão do conhecim ento. X V III Voltemos agora à idéia da aproxim ação gradual da verdade — busca de teorias que se ajustam m elhor aos fatos (conform e indicado pela lista constante da seção x). Q ual a situação-problem a geral em que se encontra o cientista? Ele tem diante de si um problem a científico: quer enco ntrar um a nova teoria, capaz de ex­ plicar certos fatos experim entais — fatos que as teorias anteriores explicaram com êxito, outros que não conseguiram explicar e outros ainda que refutaram essas teorias. A nova teoria deveria tam bém resolver, se possível, certas dificuldades teóricas (por exem plo, dispensar determ inadas hipóteses ad hoc ou un ir duas teorias). Se o cientista consegue form ular um a teoria que represente um a solução para todos esses problem as, sua realização será im portante. Mas isso p a ra m im não é bastante. Já me p erguntaram : “Que mais é neces­ sário?” M inha resposta é que há m uitas outras coisas desejáveis — exigidas pela lógica da situação problem a geral do cientista e pela decisão de nos aproxim arm os da verdade. Vou lim ita r-me aqui à discussão de três desses requisitos.

25 — Vide Collected Papers o f C.S. Peirce, VII, 7. 182 e 7.206: devo esta referência a W. B. Gallie (Philosophy, 35, 1960, pág. 67) e outra semelhante a David Rynin.

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O prim eiro é o seguinte: a nova teoria deve p a rtir de um a idéia simples, nova, poderosa e unificadora acerca de algum a relação (tal como a atração da gravidade) entre coisas até então consideradas isoladam ente (planetas, ou maçãs); ou então entre fatos (como a massa inerte e g ravitacionai) ou “entidades teóricas” (campos ou partículas, por exem plo). Esta exigência de sim plicidade é um tanto vaga, parecendo difícil form ulá-la claram ente. Parece intim am ente associada à idéia de que nossás teorias devem descrever as propriedades estruturais do m undo — idéia que é difícil desenvolver sem recairm os num a situação de regresso infinito (o que acontece porque qualquer idéia de um a estru tu ra p articu lar do m undo pressupõe sem pre um a teoria universal — a menos que pensemos num a estrutura puram ente m atem ática; por exemplo: explicar as leis da quím ica interpretando as moléculas como estruturas de átom os, ou de partículas subatôm icas im plica a idéia de leis universais que regulam as propriedades e o com portam ento dos átomos ou das partículas). H á, contudo, um ingrediente im p o rtan te na idéia da sim pli­ cidade que pode ser analisado logicam ente: é a testabilidade. 2627 O que nos leva im ediatam ente à nossa segunda exigência de ordem geral. Exigimos que a nova teoria possa ser testada in d ep en d en tem en te.27 isto é, que além de explicar todos os explicanda que a nova teoria se destina a explicar, tenha conseqüências novas e testáveis (de preferência conseqüências de um novo tipo); deve levar à previsão de fenômenos que até então não foram observados. É um a exigência que me parece indispensável, pois sem ela nossa teoria poderia ser ad hoc: é sem pre possível form ular um a teoria que se ajuste a qualquer conjunto de explicanda. Por isso, as duas prim eiras exigências se destinam a res­ tringir a gam a da nossa escolha possível, dentre todas as soluções p ara o problem a em questão — m uitas das quais não são interessantes. Se a segunda exigência for atendida, a nova teoria representará de fato um passo adiante — qualquer que seja a conseqüência dos novos testes. De fato, ela será m elhor testável do que a teoria precedente, pois explicará tudo o que a teoria anterior explica, possibilitando, adicionalm ente, novos testes. Além disso, a segunda exigência garante tam bém que nossa nova teoria será até certo ponto frutífera, como instrum ento de exploração. Isto é, que nos sugerirá experim entos. Mesmo que estes levem im ediatam ente à sua refutação, nosso co­ nhecim ento factual terá aum entado devido aos resultados inesperados das novas experiências. Elas nos confrontarão igualm ente com novos problem as, a serem resolvidos por meio de novas teorias explicativas.

26 — Vide as seções 31 —46 de L. Sc. D. Mais recentemente tenho acentuado, em conferências, a neces­ sidade de relativizar as comparações de simplicidade com relação àquelas hipóteses que competem entre si enquanto soluções de um determinado problema ou conjunto de problemas. Embora associada in­ tuitivamente à idéia de uma teoria unificada que deriva de um quadro intuitivo dos fatos, a noção de teoria unificada não pode ser analisada em termos da pobreza numérica de hipóteses, já que qualquer teoria que seja finitamente axiomatizável pode ser formulada num único enunciado; parece que, para toda teoria e para todo n há um conjunto de n axiomas independentes — embora não necessariamente axiomas “orgânicos”, no sentido de Varsóvia. 27 — A respeito da idéia da testagem independente vide meu trabalho “The Aim of Science”, Ratio, 1, 1957.

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Acredito, porém , que deve haver um terceiro requisito p ara um a boa teoria: o de que ela resista a alguns novos testes. XIX Está claro que este requisito tem um caráter totalm ente diverso dos dois a n ­ teriores — que podem ser atendidos ou não em grande p arte pela análise lógica das teorias novas e antigas: são “requisitos form ais”. A terceira exigência, contudo, $ó pode ser aten d id a pela experim entação em pírica da nova teoria: trata-se de um “requisito m a te ria l” , um a exigência de sucesso empírico. Além disso, o terceiro requisito obviam ente não pode ser considerado indis­ pensável — no sentido em que o são os dois anteriores, necessários para decidir se a teoria em questão deve ser aceita como um a séria candidata ao exam e por meio de testes em píricos. Em outras palavras, se é um a teoria interessante e prom issora. Por outro lado, contudo, algum as das teorias mais admiráveis e interessantes já con­ cebidas foram refutadas pelo prim eiro teste. E por que não? Se fizer previsões de um tipo novo, a teoria mais prom issora pode m alograr. Um exem plo disso é a es­ tupen d a teoria de Bohr, K ram ers e S later,23 de 1924, que, como realização in ­ telectual, pode ser com parada à teoria do átom o de hidrogênio de Bohr, de 1913. Infelizm ente, foi refu tad a quase im ediatam ente pelos fatos — as experiências sobre coincidência de Bothe e Geiger. 2829 ‘ Isso dem onstra que mesmo o m aior dos físicos não é capaz de an tecipar os segredos da natureza: suas inspirações são apenas suposições, e ele não tem culpa se sua teoria é refutada. Até mesmo a teoria de Newton foi refu tad a; de fato, esperamos ter êxito e para isso precisamos constan­ tem ente re fu ta r e ap rim o rar cada nova teoria. Se um a teoria pode ser refutada depois de algum tem po, por que não logo de início? Pode-se afirm ar que só por um acidente histórico um a teoria leva seis meses, seis anos ou seiscentos anos para ser refu tad a. As refutações têm sido freqüentem ente consideradas como um fracasso do cientista, ou pelo menos da sua teoria, o que é um erro indutivista. T oda refütação deve ser considerada um grande êxito; não só o êxito do cientista que refutou a teoria, m as tam bém do cientista que criou a teoria e sugeriu assim, pela prim eira vez, m esm o que indiretam ente, a experiência que levou à refutação. Mesmo se um a teoria nova (como a de Bohr, Kram ers e Slater) for refutada, não deve cair no esquecim ento; ao contrário, sua beleza deve sér lem brada, e a his­ tória deve dem onstrar nossa gratidão por nos hâver legado fatos experim entais novos, talvez sem explicação, e com eles problem as novos. Devemos m ostrar nossa gratidão pelos serviços que a teoria prestou d u ran te o curto período que antecedeu sua refutação. T u d o isso indica nitidam ente que o terceiro requisito não é indispensável: mesmo um a teoria que não o satisfaça pode d ar um a im portante contribuição à ciência. C ontudo, de um a certa m aneira, ele é indispensável. (Bohr, Kramers e Slater tinham razão em p retender mais do que d ar um a contribuição im portante p a ra a ciência.) 28 Phtl. Mag., 47, 1924, pág. 785 e seguintes. 29 - Zeitschr.f. Phys., 32, 1925, pág. 63 e seguintes.

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Em prim eiro lugar, sustento que o progresso científico não poderia co n ti­ n u a r se não se conseguisse satisfazer razoavelm ente o terceiro requisito. P ara a co n ­ tinuidade do progresso d a ciência, e p ara que sua racionalidade não decline, precisamos não só de refutações bem sucedidas mas tam bém de êxitos positivos. Is­ so significa que devemos conseguir com bastante freqüência produzir teorias que levem a novas previsões, especialm ente de novos efeitos, conseqüências novas e tes­ táveis sugeridas pela teoria e nunca antes im aginadas. 30 Por exem plo, a previsão de que os planetas, em certas circunstâncias, se desviariam das leis de Kepler; ou de que a luz, apesar de sua massa zero, se revelaria sujeita à atração gravitacional (o efeito-eclipse de Einstein). O utro exem plo é a previsão de D irac de que h á um a antip artícula p a ra cada p artícula elem entar d a m atéria. P ara que continue o progresso da ciência sustento que provisões novas desse tipo devem ser produzidas e corro­ boradas por evidência experim ental. Precisamos de êxitos; todas as grandes teorias da ciência significaram um a nova conquista do desconhecido, a previsão correta de algo nunca antes im agi­ nado. Precisamos de êxitos como o de Dirac (cujas antipartículas têm sobrevivido £0 abandono de outras partes de suas teorias), ou d a teoria dos mesons de Yukawa. Necessitamos o êxito, a corroboração em pírica de nossas teorias, mesmo se apenás p ara avaliar o significado de refutações bem sucedidas (como a d a paridade). Parece-m e óbvio que só m ediante tais êxitos tem porários de nossas teorias podemos atrib u ir as refutações a porções definidas do labirinto das teorias (nisso, somos razoavelm ente bem sucedidos — fato que perm anece inexplicável p a ra os que adotam os pontos de vista de D uhem e Q uine). U m a seqüência in in terru p ta de teorias refutadas nos deixaria confusos e desesperançados: não obteríam os in d i­ cações sobre as partes de cada dessas teorias — ou do nosso conhecim ento contex­ tuai — a que pudéssemos, experim entalm ente, atrib u ir o m alogro d a teoria. XX Já sugeri que, se não obtivéssemos mais refutações, a ciência cairia na estag­ nação e perderia seu caráter em pírico. Podemos observar igualm ente que, por motivos sem elhantes, o mesmo aconteceria se não obtivéssemos m ais verificações p ara as novas previsões; isto é, se só conseguíssemos produzir teorias que satisfizes­ sem apenas os dois prim eiros requisitos. Vamos ad m itir que produzíssemos um a seqüência contínua de teorias explicativas, cada um a das quais explicasse todos os explicanda naquele cam po, inclusive as experiências que refu taram as teorias a n ­ teriores; cada um a dessas teorias da série seria tam bém testável independentem ente por meio de novos efeitos previstos; no entanto, cada um a delas seria refutada im ediatam ente quando essas previsões fossem testadas. Nessas condiçoes, cada teoria estaria satisfazendo as duas prim eiras exigências, m as todas deixariam de satisfazer a terceira. Sustento que, nesse caso, diríam os estar produzindo um a seqüência de teorias que, a despeito do seu crescente grau de testabilidade, seriam ad hoc — não nos estaríam os aproxim ando da verdade. N a verdade, essa percepção poderia ser m uito ser justificada: toda a seqüência de teorias poderia de fato ser ad hoc. Com efeito, se adm itim os que um a teoria pode ser ad hoc se não é testável independeu 30 — Já chamei atenção para as previsões “novas” desse tipo e seu significado filosófico. Vide o cap. 3, especialmente a pág. 177 e seguintes.

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tem ente, m ediante experiências de novo tipo, mas apenas explica tudo o que há p a ra ser explicado (incluindo as experiências que refutaram as teorias precedentes), ficará claro que o m ero fato de que é testável de form a independente não pode g ara n tir que não seja ad hoc. Vemos isso quando consideram os que é sem pre pos­ sível, por meio de um estratagem a trivial, elaborar um a teoria ad hoc testável in ­ dependentem ente, desde que não exijamos ta m b ém que passe os testes independen­ tes em questão: precisamos apenas associá-la, conjuntivam ente, de um a form a ou de o u tra, com qualq u er previsão fantástica ad hoc que nos ocorra (ou a algum escritor de ficção científica), testável, m as ainda não testada.

blem as científicos se torn aram difíceis dem ais, porque a estru tu ra do m undo ex­ cede nossa capacidade de com preensão. Mesmo nessa hipótese, poderíam os con­ tin u ar, d u ran te algum tem po, com o processo de elaboração teórica, crítica e refutação: o aspecto racional do m étodo científico poderia persistir d u ran te algum tem po. Creio, contudo, que os dois tipos de sucesso são essenciais — especialm ente p a ra o funcionam ento do lado empírico da ciência: sucesso na refutação de teorias e sucesso, por parte de algum as teorias, em resistir a pelo menos alguns dos esforços m ais determ inados no sentido de refutá-las.

P ortanto, nossa terceira exigência, como a segunda, é necessária para elim inar teorias triviais ou ad h o c ^ . E é necessária tam bém por motivos que me parecem ain d a m ais sérios.

XXI

Acho que é com razão que esperamos que até mesmo nossas m elhores teorias sejam substituídas por outras, ainda melhores (em bora possamos sentir ao mesmo tem po a necessidade de incentivo na nossa crença de que estamos sem pre p ro ­ gredindo). Isso, contudo, não nos deve induzir à atitude de elaborar teorias apenas p ara que sejam substituídas. De fato, nosso objetivo como cientistas é descobrir a verdade sobre os problem as que nos confrontam ; precisamos portanto ver as teorias como tentativas sérias de en co n trar a verdade. A inda que não sejam verdadeiras, são im portantes aproxim ações da verdade, instrum entos p ara novas descobertas. O que não sig­ nifica que devemos contentar-nos em vê-las apenas como etapas de aproxim ação, ou instrum entos. Assumir essa atitude representaria ab an d o n ar até mesmo a con­ cepção de que são instrum entos de descobertas teóricas, levando-nos a vê-las como meros instrum entos destinados a algum objetivo observacional ou pragm ático. Não creio que essa abordagem fosse m uito exitosa, mesmo de um ponto de vista p ra g ­ m ático — se nos contentarm os em considerar nossas teorias como simples etapas, a m aioria delas deixará de cum prir bem até mesmo este papel. Por isso não devemos buscar teorias que sejam meros instrum entos p ara a exploração dos fatos; devemos p ro cu rar en co n trar teorias genuinam ente explicativas — conjecturas sobre a es­ tru tu ra do m undo. Em sum a, não nos devemos satisfazer só com as duas prim eiras exigências. Como é n a tu ra l, o cum prim ento da terceira exigência não está em nossas m ãos. N ão há engenho capaz de assegurar a elaboração de um a teoria que seja necessariam ente bem sucedida. Precisamos tam bém ter sorte; e necessitamos um m undo cuja estru tu ra m atem ática não seja dem asiadam ente com plicada, de m odo a im pedir o progresso. De fato, se deixarm os de progredir, no sentido da nossa te r­ ceira exigência, se tivermos êxito apenas na refutação de teorias, mas não na ve­ rificação de previsões de novo tipo, podemos chegar à conclusão de que os pro-

3?.~ °„Dr- Jerzy Giedymin (nurn

trabalho intitulado: “Uma Generalização do Postulado da Refutabilidade , Studia Lógica, 1 0 , 1960 — em especial a partir da pág. 103) formulou um princípio meto­ dológico geral do empirismo, o qual afirma que as várias regras do método científico não nos devem permitir o que chama de estratégia ditatorial”; istó é: essas regras devem excluir a possibilidade de ser­ mos sempre vencedores nesse jogo, jogado de acordo com elas. É preciso que a natureza nos vença pelo menos algumas vezes. Se abandonarmos a terceira exigência, poderemos ganhar sempre; nem preci­ saremos levar em consideração a natureza, para elaborar “boas” teorias: as especulações em torno das respostas dadas pela natureza a nossas indagações não terão nenhum papel a desempenhar na nossa situação-problema, a qual será sempre determinada integralmente pela história dos nossos insucessos.

Poder-se-ia objetar que tudo isso é apenas um a coleção de bons conselhos, de valor puram ente psicológico, a respeito da atitude que os cientistas devem ad o tar — um assunto privado, afinal de contas; que um a teoria do m étodo cien­ tífico digna desse nom e deveria fornecer argum entos lógicos ou metodológicos em apoio da nossa terceira exigência. Em vez de apelar p ara a atitu d e ou a psicologia dos cientistas, nossa teoria da ciência deveria poder explicá-las, m ediante a análise da lógica da situação em que se encontra o cientista. O que representa um p ro ­ blem a p a ra nossa teoria do m étodo. Aceito o desafio, e vou apresentar aqui três razões: a prim eira, baseada na idéia da verdade; a segunda, na idéia da aproxim ação da verdade (verossimilhan­ ça); a terceira, a nossa velha idéia dos testes independentes e cruciais. 1) A prim eira razão é a seguinte: sabemos que se tivéssemos um a teoria tes­ tável independentem ente que fosse verdadeira, ela nos propiciaria previsões cor­ retas (e só previsões corretas). Em bora as previsões corretas não constituam con­ dição suficiente p ara determ inar a veracidade de um a teoria, são quando menos condição necessária p ara a veracidade de um a teoria testável independentem ente. Neste sentido — e só neste sentido — podemos mesmo dizer que nossa exigência é necessária, se aceitam os seriam ente a verdade como u m a noção reguladora. 2) A segunda razão é a seguinte: se temos por objetivo au m en tar a veros­ sim ilhança das nossas teorias, aproxim ando-nos da verdade, deveríamos estar a n ­ siosos não só p ara reduzir o seu conteúdo de falsidade mas tam bém p ara am pliar seu conteúdo de verdade. É certo que isso pode ser feito em alguns casos sim plesm ente elaborando a nova teoria de m odo a explicar as refutações da teoria precedente (“respeitando os fenôm enos” — neste caso as refutações). Mas, há outros casos de progresso cien­ tífico que dem onstram que esta não é a única form a possível de au m entar o co n ­ teúdo de verdade das teorias. Quero referir-m e aos casos em que não houve refutação. Assim, nem a teoria de Galileu nem a de Kepler foram refutadas antes de Newton; o que Newton pretendia era explicá-las a p a rtir de premissas mais abrangentes, unificando assim dois campos de investigação que até então eram considerados isoladam ente. O mesmo se pode dizer de m uitas outras teorias: o sistema de Ptolom eu não foi re ­ futado pela form ulação de Newton; e em bora a experiência de Michelson e Morley, de resultados espantosos, tivesse sido feita antes de Einstein, tinha sido explicada com êxito por Lorentz e Fitzgerald.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Nesses casos, as experiências cruciais assumem im portância decisiva. N ão há motivo p ara considerarm os um a teoria mais nova m elhor do que outra mais antiga, p a ra acred itar que nos aproxim e mais da verdade, até poderm os derivar da nova teoria novas previsões que não podem ser deduzidas d a antiga (as fases de Vénus, as perturbações orbitais, a equação associando a massa à energia); até descobrirm os que essas novas previsões estão corretas. Só esse sucesso vai dem onstrar que a nova teoria tem conseqüências verdadeiras — quer dizer, um conteúdo de verdade — onde a antiga previa falsas conseqüências (dem onstrando p o rtan to um conteúdo de falsidade). Se a nova teoria for refu tad a por um desses testes cruciais, não teremos razão p a ra ab a n d o n a r a teoria precedente, ainda que esta não seja plenam ente satisfatória. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a teoria de Bohr-Kram ersSlater. Em todos esses casos precisamos d a nova teoria p ara descobrir que a antiga era deficiente. R econhecidam ente, a situação será diferente se a deficiência da teoria antiga for conhecida antes d a invenção da nova; logicam ente, porém , a hipótese tem suficiente sem elhança com as outras p ara que se considere um a nova teoria que leve a novos testes cruciais (p. ex.: a equação m assa-energia de Einstein) como superior àquela que só pode respeitar fenôm enos conhecidos (LorentzFitzgerald). 3) O mesmo argum ento — a im portância dos testes cruciais — pode ser apresentado sem se apelar p ara o objetivo de aum ento da verossimilhança de um a teoria, em pregando apenas um antigo argum ento m eu — a necessidade de fazer com que a experim entação das nossas explicações seja independente.32 Essa neces­ sidade resulta do progresso do conhecim ento — da incorporação de conhecim entos novos e problem áticos ao nosso conhecim ento contextual, com um a conseqüente perda da capacidade explicatória das teorias em questão. Estes são meus argum entos mais im portantes. X X II Nossa terceira exigência pode ser dividida em duas partes; a prim eira, o requisito de que um a “boa" teoria tenha êxito em algum as das duas novas previ­ sões; a segunda, o requisito de que não seja logo refutada — antes de alcançar um sucesso claro. Os dois requisitos podem parecer estranhos: o prim eiro, porque a relação lógica entre um a teoria e a evidência que a corrobora não pode a p a re n ­ tem ente ser afetada pela questão relativa à possível anterioridade tem poral da teoria, em relação à evidência. O segundo porque, se um a teoria está destinada à refutação, seu valor intrínseco não pode depender do atraso dessa refutação. Podemos explicar facilm ente essa dificuldade: as novas previsões corretas que exigimos das novas teorias correspondem aos testes cruciais por que elas precisam passar a fim de se tornarem suficientem ente interessantes p ara serem aceitas desde logo como um progresso sobre as teorias precedentes — p a ra serem consideradas dignas da consideração experim ental que pode conduzir afinal à sua refutação. 32 - Vide meu trabalho “The Aim of Science”, Ratio, 1 , 1957.

VERDADE, RACIONALIDADE E A EXPANSÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

A dificuldade não pode ser resolvida, porém , por um a m etodologia indutivista. Por isso não surpreende que os indutivistas como John M aynard Keynes tenham afirm ado que o valor das previsões (fatos derivados da teoria, m as p re ­ viam ente desconhecidos) é im aginário; de fato, se o valor de um a teoria residisse m eram ente na sua jsfaiçào com a base de evidência, seria logicam ente irrelevante saber se essa evidência tem ou não precedência no tem po sobre a invenção da teoria. Da m esm a form a, os grandes fundadores do m étodo hipotético costum avam salientar a necessidade de “respeitar os fenôm enos", isto é, de exigir que a teoria explicasse a experiência conhecida. As novas previsões corretas — de novos efeitos — parecem constituir um a idéia m ais recente, por razões óbvias. N ão sei quando essa idéia surgiu, e quem a lançou; mas a distinção entre a previsão de efeitos conhecidos e a previsão de novos efeitos jam ais foi feita de form a explícita. Parecem e contudo p arte indispensável de um a epistemologia que considere a ciência um processo que tem por objetivo teorias explicativas cada vez melhores — visando chegar não só a instrum entos de exploração, mas a explicações genuínas. A objeção de Keynes (para quem essa anterioridade no tem po é um m ero acidente histórico) deixa de levar em conta o fato im portantíssim o de que são as teorias que nos ensinam a observar, isto é, a fo rm u la r indagações que orientam a observação e sua interpretação. E assim que se desenvolve nosso conhecim ento baseado n a observação. As indagações form uladas são, via de regra, questões cruciais que podem conduzir a respostas decisivas p a ra a escolha entre teorias con­ flitantes. Sustento que é o progresso do conhecim ento científico, a m aneira como escolhemos entre teorias diferentes, num a determ inada situação-problem a, que torna a ciência racional. T an to a idéia da expansão do conhecim ento quanto a da situação-problem a são, pelo menos em parte, idéias históricas. Isso explica por que o u tra idéia parcialm ente histórica - a d a previsão genuína da evidência (que pode referir-se a fatos pretéritos, ainda não conhecidos quando a teoria foi fo rm u lad a,— desem penha neste processo um papel im portante; e explica tam bém por que o elem ento tem poral, aparentem ente irrelevante, pode ad q u irir im p o rtâ n c ia .53 Vou resum ir agora os resultados a que chegam os no relativo às epistemologias dos dois grupos de filósofos sobre os quais falei — os verificacionistas e os refutacionistas. E nquanto os verificacionistas ou indutivistas tentam em vão dem onstrar que as crenças científicas podem ser justificadas — ou, pelo menos, estabelecidas como prováveis (encorajando assim, pelo insucesso dos seus esforços, um a fuga no sentido do irracionalism o), os filósofos do outro grupo descobrimos que n a verdade não a l­ mejam os nem mesmo a teorias altam ente prováveis. A dm itim os que a racionali­ dade consiste na atitude crítica e buscamos teorias que, em bora falíveis, nos per-

33 — Os verificacionistas podem julgar que a discussão precedente sobre o que chamo de terceira exigência desenvolve desnecessariamente algo que nunca foi contestado. Mas os refutacionistas podem pensar de Óutro modo; pessoalmente, estou muito agradecido ao Dr. Agassi por me ter chamado a aten­ ção para o fato de que nunca tinha explicado com clareza a distinção entre o que denominei aqui de segunda e terceira exigências. Levou-me assim o Dr. Agassi a enunciar essa diferença com algum por­ menor. É preciso dizer, porém, que ele discorda de mim no que se refere à terceira exigência — a qual, conforme me explicou, não pode aceitar por considerá-la meramente como um resíduo da posição verificacionista (vide também o trabalho que publicou no Àustralasian Journal o f Philosophy, 39, 1961, onde expressa esse desacordo na pág. 90). Reconheço que pode haver aí um vestígio de verificacionismo; mas este me parece um caso em que precisamos aceitá-lo, para evitar um ingrediente de alguma forma do instrumentalismo — que considera as teorias como simples instrumentos de exploração da realidade.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

m itam p rogredir, ultrapassando as teorias precedentes: o que significa que são tes­ tadas com m aior rigor, conseguindo resistir a alguns desses testes. E nquanto os verificacionistas lu taram em vão p ara identificar argum entos positivos válidos que apoiassem sua posição, de nosso lado nos satisfazemos com a aceitação de que a racionalidade de um a teoria reside no fato de que podemos preferi-la porque é m elhor do que as que a precederam ; porque podemos sujeitá-la a testes mais r i­ gorosos — testes que talvez não consigam refutá-las, se tivermos sorte. E tam bém porque podem levar-nos a chegar mais perto da verdade.

Apêndice UMA ASSERTIVA NÃ O -EM PÍRICA PRESUM IVELM ENTE FALSA, PORÉM DE ELEVADA PROBABILIDADE FORM AL

No capítulo 10 pedi atenção p ara o critério de progresso e de racionalidade baseado na com paração dos graus de testabilidade, de conteúdo empírico ou de capacidade explicativa das teorias — assunto que tem sido pouco desenvolvido. Sempre acreditei que essa com paração leva a um critério m ais im p o rtan te e m ais realista do que o critério de refutabilidade, m ais simples, que propus ao m es­ m o tem po e que tem sido discutido am plam ente. C ontudo, este critério m ais sim ­ ples é tam bém necessário. A fim de dem onstrar a necessidade de um critério de refutabilidade ou testabilidade p ara avaliar o caráter em pírico das teorias científicas, exam inarei aqui, exem plificativam ente, um a afirm ativa simples, puram ente existencial, fo r­ m ulada em termos exclusivam ente empíricos. Espero que esse exem plo propicie tam bém um a resposta à objeção, m uitas vezes levantada, de que não se deve excluir as afirm ativas puram ente existenciais da ciência em pírica, classificando-as como metafísicas. Meu exem plo consiste na seguinte teoria pu ram en te existencial: “H á um a seqüência finita de estrofes elegíacas latinas, compostas de dois versos, que, se pronunciadas de form a ap ropriada, num certo local e num dado m om ento, fará com que apareça im ediatam ente o diabo — isto é, um a criatu ra sem elhante ao hom em , com dois pequenos chifres e um casco fendido no p é .” Essa teoria não é acordo com m eu critério metafísica — não será proposições bem form adas científicas.

testável mas, em princípio, é verificável. Em bora de de dem arcação seja não-em pírica e não-científica afastada pelos positivistas que consideram todas as (especialm ente as que são verificáveis) como em píricas e

De fato, alguns dos meus amigos positivistas afirm am considerar essa a fir­ m ativa existencial sobre o diabo como em pírica — seria em pírica, porém fa lsa . Segundo esses positivistas, eu estaria confundindo afirm ativas em píricas e falsas com afirm ativas não em píricas.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Penso, contudo, que são eles que laboram em confusão. Estou de acordo em que essa afirm ativa existencial é falsa, mas acredito que é um a falsa afirm ativa metafísica. De fato, por que deveríamos considerá-la como fa lsa , se a considerás­ semos em pírica? Em piricam ente, ela é irrefutável. N ão há observação que possa dem onstrar sua falsidade. A alegação de que é falsa não se pode apoiar em base em pírica. Além disso, pode-se dem onstrar facilm ente que é um a afirm ativa de alta probabilidade. Como todas as afirm ativas existenciais, representa um universo in ­ finito (ou bastante am plo), quase logicamente verdadeiro — p ara usar um a expres­ são de C arn ap . Assim, se a considerarm os em pírica, não haverá razão para rejeitála, mas sim motivos p ara aceitá-la e p ara crer no que afirm a — especialm ente d e n ­ tro de um a teoria probabilística da crença. A teoria da probabilidade nos diz mais ainda: pode-se dem onstrar facilm en­ te não só que a evidência em pírica jam ais pode refutar um a afirm ativa existencial logicam ente verdadeira, mas que não pode nunca reduzir sua probabilidade. 54'De fato, sua probabilidade só poderia ser reduzida por algum a inform ação pelo menos “quase falsa logicam ente”, não por afirm ativa baseada na observação. Assim, a probabilidade em pírica ou o grau de confirm ação em pírica (na acepção de C ar­ nap) da nossa afirm ativa devem perm anecer p ara sempre iguais à unidade, quais­ quer que sejam os fatos relevantes. Seria fácil, natu ralm en te, em endar m eu critério de dem arcação de m odo a incluir essas afirm ativas puram ente existenciais entre as afirm ativas em píricas, l eria apenas que adm itir na categoria das proposições em píricas não só as asser­ tivas testáveis e refutáveis, m as tam bém aquelas que, em princípio, pudessem ser “ve­ rificadas” em piricam ente. Creio porém que será m elhor não proceder a essa em enda. Nosso exemplo dem onstra que, p ara não aceitar m inha afirm ativa existencial, será necessário negar seu caráter em pírico — em bora ela possa ser form alizada facilm ente em qualq u er linguagem suficiente p ara exprim ir mesmo as afirm ativas científicas mais prim itivas. Ao negar o caráter em pírico dessa afirm ativa, torno possível sua rejeição com base diferente da evidência observacional (vide um a discussão dessa base no cap. 8, seção 2; vide tam bém , no cap. 11, um a form alização de argum ento se­ m elhante). Isso m ostra que é preferível (como procurei dem onstrar aqui, extensam ente) não presum ir acriticam ente que os termos “em pírico” e “bem -form ado” (ou “sig­ nificativo”) devem coincidir — e que a situação não se altera para m elhor se a d ­ m itirm os, sem m aior reflexão, que a probabilidade ou a “confirm abilidade” probabilística pode ser utilizada como critério para definir o caráter em pírico de afirm ativas ou teorias. Com efeito, um a afirm ativa não em pírica, presum ivelm ente falsa, pode ter um alto g rau de probabilidade, conform e dem onstrei.

34 Devido ao “princípio da estabilidade” do cálculo de probabilidades. Vide o teorema (26), seção V, do meu trabalho “Creative and Non-Creative Definitions in the Calculus of Probability”, Synthese, 15, 1963, n.° 2. pág. 167.

Refutações

“Penso, Sócrates — como presum ivelm ente tu tam bém pensas —, que nesta vida é m uito difícil chegar a ter conhecim ento sobre estes assuntos; talvez esteja mesmo além das nossas possibilidades. Seria um covarde, contudo, quem não te n ­ tasse refutar com todas as forças os argum entos propostos, recusando-se a ceder a n ­ tes de que o esgotasse o exam e exaustivo de todos os seus aspectos. Com efeito, há a nossa frente dois modos de proceder: ou aprendem os, e descobrimos a verdade sobre tais assuntos, ou isso está de fato além das nossas forças; neste caso, é preciso escolher a doutrina que nos pareça a m elhor, a mais resistente à refutação. Apoiando-nos nela, como num a peça de m adeira que flutua, devemos navegar pela vida arrastando os perigos, até que surja a oportunidade de encontrar algum a coisa mais forte e confiável, menos p erig o sa...” Platão

11. A Distinção Entre Ciência e Metafísica* * Sumário: Em poucas palavras, m inha tese é a seguinte: falharam todas as repetidas tentativas de R udolf C arnap p ara dem onstrar que a linha fronteiriça entre a ciên­ cia e a m etafísica coincide com a que separa o que tem sentido do que não tem . A razão é que o conceito positivista de “significado” ou “sentido” (ou de verificabilidade, confirm abilidade indutiva etc.) não é apropriado p ara realizar tal d em ar­ cação, sim plesm ente porque a m etafísica não é necessariam ente carente de sentido, em bora não seja um a ciência. Em todas as suas variantes, a dem arcação pelo critério da falta de sentido resultou sem pre sim ultaneam ente m uito estreita e am pla demais; a despeito das intenções e pretensões confessadas, tendeu sem pre a excluir algum as teorias científicas, dadas como sem sentido, em bora deixasse de excluir até mesmo a p arte da m etafísica conhecida como “teologia racional”. 1. Introdução Escrever sobre C arnap — e criticar C arnap — m e faz lem brar o m om ento em que o encontrei pela prim eira vez, no seu sem inário, em 1928 ou 1929. Faz-me recordar ainda m ais vividam ente um a o u tra ocasião, em 1932, nas belas m o n ta­ nhas tirolesas, quando passei um a p arte das m inhas férias entretido em longas dis­ cussões críticas com C arnap e H erbert Feigl, na com panhia das nossas esposas. Foi um período feliz, com m uito sol; acho que todos apreciam os enorm em ente essas conversas extensas e fascinantes, entrem eadas de cam inhadas pelas m ontanhas que nunca chegavam a interrom pê-las. N enhum de nós poderá esquecer jam ais como C arnap nos guiou certa vez num a subida íngrem e p a ra escalar um belo e quase im ­ penetrável bosque de rododendros alpinos; e tam bém como nos guiava, ao mesmo tem po, pela floresta estupenda e quase im penetrável dos seus argum entos — o que levou Feigl a batizar nossa m o n tan h a de Semantische Schnuppe. No entanto, passariam vários anos antes de que C arnap, estim ulado pela crítica de Tarski, des­ cobrisse o cam inho que o levaria da sintaxe lógica à sem ân tica.1*354 * Contribuição do autor, de janeiro de 1955, para o volume The Phüosophy o f R udolf Carnap, pu­ blicado em 1964 na Biblioteca dos Filósofos Vivos, ed. P.A. Schilpp. A partir de junho de 1956 este tex­ to foi distribuído em versão mimeografada, com a permissão do Prof. Schilpp. Além de algumas pe quenas correções estilísticas, não fiz qualquer alteração no original, embora desde 1955 tenha desenvol­ vido alguns dos assuntos ali tratados, em várias publicações. Vide, a este propósito, L.Sc.D., novo apên­ dice ix; o apêndice ao cap. 10 do presente volume; o artigo publicado em Dialectica, 11, 1957, págs. 354 —374; duas notas em Mind, 71, 1962, págs. 69 e 76, 1967, pág. 103, bem como I. Lakatos (ed.), The Problem o f Inductive Logic, 1968, juntamente com as contribuições de Lakatos e de Watkins a este úl­ timo livro. 1 — Em 1932, Carnap empregava o termo “semântica” como sinônimo de “sintaxe lógica”; vide Erkenntnis, 3, 1932, pág. 177.

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C arnap foi um a das pessoas mais cativantes que já encontrei e um pensador profundam ente absorvido nos seus problem as, devotado a eles, pronto a ouvir qualq u er crítica. Na verdade, entre outras características que C arnap tinha em com um com B ertrand Russell (cuja influência sobre ele, e sobre todos nós, foi m aior do que a de q ualquer outro) está a coragem intelectual, que o levava a m u d ar de opinião, sob a influência da crítica, mesmo em pontos de im portância fundam en tal da sua filosofia. T in h a viajado p a ra o T irol com o m anuscrito de um livro extenso, in ti­ tulado Die Beiden G rundproblem e der Erkenntnistheorie (“Os Dois Problemas Fundam entais da T eoria do C onhecim ento”). N unca o publiquei, mas é possível que ele veja a luz algum dia, em tradução inglesa; algum as das suas partes foram incorporadas mais tard e, de form a m uito abreviada, em Logik der Forschung. Os “dois problem as” eram a indução e a dem arcação — a definição da fronteira entre a ciência e a metafísica. O livro continha, entre m uitas outras coisas, um a crítica bastante d etalh ad a da dou trin a da “elim inação” ou “despejo” (überw indung) 2 da metafísica por meio da análise do significado. Critiquei essa doutrina não do ponto de vista metafísico, mas do ângulo de visão de quem , interessando-se pela ciência, tem ia que, em vez de d erro tar os supostos inimigos, ela lhes entregasse as chaves da cidade sitiada.

A DISTlftÇÃO ENTRE CIÊNCIA E 1VIETAFÍSICÁ

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que volto a me expor à crítica de estar exagerando diferenças — espero, porém , que o Professor C arnap não seja im pedido de d a r sua opinião sobre o assunto pela preocupação de que eu tivesse que g u ard ar silêncio pelo resto dos meus dias; prom eto ser mais razoável desta vez. Aceitei a proposta de escrever este trabalho, o que não me deixa outra alternativa senão a de p ro cu rar caracterizar nossas diferen­ ças do m odo mais claro e nítido que for possível. Em outras palavras, preciso fazer um esforço p ara defender a tese de que essas diferenças são reais — tão reais q u a n ­ to as venho sentindo, nestes últim os 25 anos. N a seção 2 deste trabalho procuro apresentar um breve sum ário de algumas das concepções que fundam entam m inha crítica. Nas seções finais procuro contar o desenvolvimento (como eu o entendo) do ponto de vista de C arnap a respeito do problem a da fronteira entre a ciência e a m etafísica. M inha abordagem é crítica, não histórica — procurei atingir a exatidão histórica, se não a com pleta ab ran g ên ­ cia histórica.

2. M eu ponto de vista

M inha crítica se dirigia em grande p arte contra dois livros de C arnap. Der Logische A u fb a u der Welt e Scheinproblem e in der Philosophie, bem como alguns dos seus artigos em Erkenntnis. C arnap aceitou parte dessa crítica, 3 em bora achas­ se que 4 eu tin h a exagerado as diferenças entre os meus pontos de vista e os do C ír­ culo de V iena, de que ele era um m em bro preem inente.

Em 1919 enfrentei pela prim eira vez o problem a de como traçar um a linha fronteiriça entre as afirm ativas e sistemas de afirm ativas que podem ser qualifi­ cados propriam ente como pertencentes à ciência em pírica e outros que talvez pos­ sam ser descritos como “pseudocientificos” ou, em determ inados contextos como “m etafísicos”; ou ainda que pertencem possivelmente ao cam po da lógica e da m atem ática puras.

Isso me silenciou por muitos anos, 5 especialm ente pelo fato de C arnap. em Testabilidade e Significação, d ar tan ta atenção à m inha crítica. Contudo, d u rante todo esse tem po continuei a achar que as diferenças entre nossos pontos de vista não eram apenas im aginárias; a sensação que tinha de que eram divergências im ­ portantes cresceu com os trabalhos mais recentes de C arnap e seus livros ^sobre probabilidade e indução.

T rata-se de problem a tratad o por muitos filósofos desde a época de Bacon — em bora nunca o tivesse encontrado form ulado explicitam ente. A explicação m ais aceita era a de que a ciência se caracterizava pela sua base n a observação e pelo m étodo in dutivo , enquanto a pseudociência e a m etafísica se caracterizam pelo m étodo especulativo ou, como disse Bacon, pelo fato de funcionar com 'a n ­ tecipações m en ta is” ~ algo m uito sem elhante às hipóteses.

O objetivo deste trabalho é precisamente discutir essas diferenças, na m edida em que elas tocam o problem a da demarcação. É com algum a hesitação

N unca pude aceitar esse ponto de vista. A m oderna teoria física — especialm ente a teoria de Einstein, que em 1919 era am plam ente d eb atida — é altam ente abstrata e especulativa; afasta-se m uito do que se podería denom inar sua “base de observação” . T odas as tentativas feitas p ara dem onstrar que se baseia mais ou menos diretam ente na observação deixaram de convencer. O mesmo acontecia, aliás, com a própria teoria de Newton. Bacon tinha levantado objeções contra o sistema de Copérnico, que “violentava desnecessariam ente nossos sentidos” : de m odo geral, as melhores teorias físicas pareciam sem pre o que Bacon tinha q u a ­ lificado como “antecipações m entais” , sem lhes d ar m u ita im portância.

2 — Vide Carnap. Überwindung der Metaphysik durch Logische Analyse der Sprache (“A Eliminação da Metafísica Mediante a Análise Lógica da Linguagem”), Erkenntnis, 2, 1932, pág. 219. 3 — Vide o generoso relato feito por Carnap, a respeito de algumas das minhas idéias que ainda não tinham sido publicadas, em Erkenntnis, 3, 1932, págs. 223 a 228, bem como minha discussão do assunto em L. Sc. D., 1959, 1960, nota 1, seção 29. 4 — Vide a crítica feita por Carnap a L. Sc. D. em Erkenntnis, 5, 1935t págs. 290 —4, especialmente 293: “Devido aos esforços dirigidos à clara caracterização do seu posicionamento (Popper) é levado a atribuir uma importância excessiva às diferenças entre seus pontos de vista e aqueles... que lhes estão mais próximos... (Popper) está na verdade muito perto do Círculo de Viena. Na sua apresentação, as diferenças parecem muito maiores do que são de fato”. 5 — Durante os primeiros dez anos depois da edição de L. Sc. D. nada publiquei que aludisse sequer a essas diferenças de opinião — embora as tenha mencionado em algumas conferências. Nos dez anos subseqüêntes, isto é, até começar a escrever este trabalho, também praticamente não toquei no assunto, ex­ ceto para fazer alguns comentários críticos a propósito de Wittgenstein e de Schlick.

De outro lado, m uitas crenças supersticiosas e procedim entos práticos (agrícolas, por exemplo), encontradiços em alm anaques populares e livros de “in ­ terpretação de sonhos” , tinham m uito a ver com a observação, baseando-se m uitas vezes em algo parecido com a indução. Os astrólogos, especialm ente, diziam sem ­ pre que sua “ciência” se baseava em grande abundância de m aterial indutivo. Esta justificativa talvez seja infundada, mas não tenho conhecim ento de qualquer te n ­ tativa de desacreditar a astrologia pela investigação crítica do seu alegado m aterial

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indutivo; a astrologia foi rejeitada pela ciência m oderna porque não se ajustava aos m étodos e teorias aceitos. Havia p o rtan to a clara necessidade de se chegar a um critério diferente de dem arcação; propus assim (proposta que contudo só foi publicada depois de muitos anos) que se adotasse como critério a refutabüidade do sistema teórico. De acordo com essa concepção, que m antenho, um sistema só deve ser considerado científico se faz afirm ativas que podem chocar-se com observações; de fato, as teorias são tes­ tadas pelas tentativas de provocar esses choques — isto é, pelos esforços para re ­ futá-las. P ortanto, testabilidade vem a ser o mesmo que refutabilidade, e pode ser ad o tad a como critério de dem arcação. Esta é um a concepção da ciência que considera a abordagem crítica sua característica mais im portante. Para avaliar um a teoria o cientista deve indagar se pode ser criticada — se se expõe a críticas de todos os tipos e, em caso afirm ativo, se resiste a essas críticas. A teoria de Newton, por exem plo, previu desvios das leis de Kepler (devidos à interação dos planetas) que ainda não tinham sido observados. Expôs-se assim à possibilidade de refutação em pírica, cujo insucesso representaria o sucesso da teoria. A teoria de Einstein foi testada da m esma form a. Na verdade, todos os testes reais são tentativas de refutação. Só quando um a teoria resiste exitosam ente à pressão dessas tentativas de refutação podemos dizer que foi confir­ m ad a ou corroborada pela experiência. Existem, contudo — como verifiquei mais ta rd e 678 — diferentes graus de tes­ tabilidade: algum as teorias estão mais sujeitas a possíveis refutações do que outras. Por exem plo: um a teoria da qual podemos deduzir previsões num éricas precisas sobre a divisão das linhas espectrais da luz em itida por átomos em campos m ag ­ néticos de força variável estará mais exposta à refutação experim ental do que um a outra que prevê sim plesm ente a influência dos campos m agnéticos na emissão da luz. A teoria mais precisa e mais facilm ente refutável será tam bém mais interessan­ te: como é m ais ousada, será menos provável. Mas é tam bém m elhor testável, pois podem os preparar testes mais precisos e rigorosos. Se resistir a esses testes será m elhor confirm ada. Por conseguinte, a possibilidade de confirmação {ou corroborabilidade) aum enta com a testabilidade. Isso indica que o critério de dem arcação não pode deixar de ter graus: haverá teorias perfeitam ente testáveis, outras m al testáveis, outras ainda não tes­ táveis; estas últim as não têm interesse p ara os cientistas empíricos — podem ser qualificadas como metafísicas. Neste ponto preciso salientar de novo um aspecto que tem sido m al e n te n ­ dido. Talvez possa evitar um equívoco se disser o seguinte: adm itam os que um qu ad rad o represente a classe de todas afirm ativas de um a linguagem , na qual pretendem os fo rm ular um a ciência; tracem os um a linha horizontal dividindo-o num a m etade superior e o u tra inferior; escrevamos: “ciência” e “testável” na p ri­ m eira e “m etafísica” e “não testável” na segunda. Perceberem os, espero, que não estou propondo traçar um a linha dem arcatória que coincida com os limites da lin ­

6

— Vide L. Sc. D., seções 31 a 46.

A DISTINÇÃO ENTRE CIÊNCIA E METAFÍSICA

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

285

guagem , abrigando a ciência e deixando de fora a m etafísica, excluindo-a da classe das afirm ativas com sentido. Ao contrário, desde o prim eiro trabalho que pu b li­ quei sobre o assunto, ? tenho salientado que seria inadequado traçar a linha de dem arcação entre a ciência e a m etafísica de m odo a excluir esta últim a da lin ­ guagem significativa. Já indiquei um a das razões p ara isso ao afirm ar que não devemos procurar traçar a linha de dem arcação com m uita nitidez, o que se to rn ará claro se lem b rar­ mos que a m aior parte das teorias científicas tiveram sua origem em mitos. O sis­ tem a de Copérnico, por exem plo, inspirou-se na adoração neoplatônica da luz solar, que precisava ocupar o “centro” do universo devido à sua nobreza. Isso m os­ tra como os mitos podem desenvolver com ponentes testáveis, tornando-se, no curso da sua discussão, im portantes e fecundos p ara a ciência. Em Logic o f Scientific DiscoveryS dei vários exemplos de mitos que adquiriram a m aior im portância cien­ tífica, entre eles o atomismo e a teoria corpuscular da luz. Não seria m uito elu ­ cidativo explicar que num a certa fase essas teorias não passavam de especulação sem sentido e depois subitam ente se tornaram afirm ativas razoáveis.

5/3

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Ciência (testável)

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U

Metafísica (não testável)

cS g rs rs

O utro argum ento é o seguinte: pode acontecer — o que é im portante — que um a determ inada afirm ativa pertença ao cam po da ciência, por ser testável, mas que sua negação não possa ser testada — precisando p o rtanto ser colocada abaixo da linha dem arcatória. É o que ocorre de fato com as afirm ativas mais im portantes e mais agudam ente testáveis — as leis científicas universais. Em Logic o f Scientific Discovery recom endei que elas fossem expressas, p a ra certos fins, sob a form a: “Não existe um a m áquina de m oto-perpétuo” (o que se cham a às vezes de “fo r­ m ulação da Prim eira Lei da T erm odinâm ica por Planck”) — isto é, sob a form aste negativa de um a afirm ativa existencial. A afirm ativa existencial correspondente, na form a positiva, “Existe um a m áquina de m oto-perpétuo” ficaria, jun tam en te com a assertiva “Existe um a serpente m a rin h a ” e quejandas, no cam po abaixo da linha de dem arcação, em contraposição a “Existe um a serpente m arin h a em exibição no Museu B ritânico”, que está bem acim a da linha, podendo ser testada com faci­ lidade. A verdade é que não sabemos como testar um a afirm ativa puram ente exis­ tencial e isolada. 7 — Vide “Ein Kriterion des Empirischen Charakters Theoretische Systeme’ , in Erkenntnis 3, 1933, pág. 426 - agora incorporado a L. Sc. D , págs. 312-14. Vide também as seções 4 e 10 de L. Sc. D. 8

— Seção 85, pág. 278.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

N ão posso arg u m en tar aqui em defesa da adequação do ponto de vista de que afirm ativas p u ram en te existenciais e isoladas deveriam ser classificadas como não-testáveis, recaindo p o rtan to fora do cam po de interesse do cientista.9Desejo apenas deixar claro que, caso esse ponto de vista fosse aceito, seria estranho dizer que as afirm ativas m etafísicas não têm sentido, 10 ou excluí-las da nossa lin g u a­ gem . Se aceitam os que a negativa de um a proposição existencial tem significação, devemos aceitar tam bém significativa a p rópria afirm ativa existencial. Fui forçado a salientar este ponto porque m inha posição tem sido descrita com freqüência como u m a simples proposta p ara ad o tar a refutabilidade como critério de significação (em vez de demarcação), ou p ara excluir as afirm ativas exis­ tenciais da nossa linguagem — pelo menos, da linguagem científica. Mesmo Carnap, que exam inou m eu pensam ento em considerável grau de detalhe, e o relata corretam ente, se sente com pelido a interpretá-lo como um a proposta p ara excluir os elem entos m etafísicos.11

A DISTINÇÃO ENTRE CIÊNCIA E METAFÍSICA

^ I | í ^

A teoria “n atu ralista” (como a qualifiquei) do sentido, do A u fb a u de Carnap — que nesse ponto seguiu o Tractatus de W ittgenstein — foi ab andonada por C arnap há m uito tem po e substituída pela doutrina m ais sofisticada segundo a qual um a proposição tem sentido num a certa linguagem (artificial) som ente quando res­ peita as regras de form ação aplicáveis às fórm ulas ou proposições naquela língua.

Por este motivo pretendo exam iná-lo aqui com algum porm enor.

3. Primeira teoria de Carnap sobre a ausência de sentido.

ci

9 — L. Sc. D., seção 15. Suponho que algumas pessoas têm dificuldade em aceitar o ponto de vista de que uma afirmativa existencial pura e isolada (“Existe uma serpente marinha”) deva ser qualificada de “metafísica”, embora possa ser deduzida de uma afirmativa empírica (“Existe uma serpenteunarinha que está sendo exibida agora no saguão do Museu Britânico”). Essas pessoas esquecem que: a) na medida em que uma proposição desse gênero fosse dedutível de uma outra, empírica, deixaria de ser isolada, passando a pertencer a uma teoria testável; e b) o fato de que uma afirmativa pode ser deduzida de proposição empírica ou científica não a torna necessariamente empírica ou científica — qualquer tautologia pode ser deduzida desse modo. 10 — Talvez possamos encontrar nas teorias de Brouwer uma sugestão no sentido de que uma afir­ mativa universal pode ter sentido, e sua negativa existencial não.

dical e efetiva do que qualquer filosofia antim etafísica anterior. Mas, como obser­ vei na m inha crítica, essa teoria se fundam entava num a concepção ingênua, “n atu ralista” 13* do problem a do sentido. Além disso, movidos pela ansiedade de rejeitar a m etafísica, seus adeptos não perceberam que estavam rejeitando tam bém todas as teorias científicas. T udo isso, como sugeri, vinha como conseqüência da tentativa de destruir a m etafísica, em vez de buscar um critério de dem arcação para separá-la da ciência.

N a m inha opinião, esse desenvolvimento — de um a teoria ingênua, n a ­ turalista, p ara outra mais sofisticada — era desejável, e teve a m aior im portância. Mas sua plena significação não foi ainda apreciada; ao que parece não se percebeu ainda que ele simplesmente destrói a d o utrina de que a m etafísica é carente de sen­ tido.

A verdade é que desde m inha prim eira publicação sobre o assunto rejeitei o problem a da falta de sentido como p seudoproblem a; sem pre critiquei a idéia de que possa ser identificado com o problem a da dem arcação. Este continua a ser m eu ponto de vista.

Um a das teorias que critiquei no m eu m anuscrito (e mais tarde, mais brevem ente, em Logic o f Scientific Discovery) foi a assertiva de que fa lta sentido à m etafísica, que consiste em pseudoproposições carentes de significado. Essa te o ria 12 supostam ente “d e rru b a ria ” a m etafísica destruindo-a de form a mais ra-

287

Cham o de “teoria naturalista do sentido” a do u trin a segundo a qual toda expressão lingüística que pretende ser um a afirm ativa ou tem sentido ou não — isso não acontece por convenção, em conseqüência de regras estabelecidas conven­ cionalm ente, mas como m atéria de fato, relacionada com sua natureza (do mesmo modo como um a p lanta é verde ou não de acordo com sua natureza, e não devido a regras convencionais). Segundo o famoso critério do sentido pela verificabilidade, proposto por W ittgenstein e aceito por C arnap, um a expressão sem elhante a um a sentença (um conjunto de palavras) só é um a proposição significativa se satisfaz as condições a e b — assim como a-condição c, que será enunciada mais adiante: a)

^

todas as palavras que ali ocorrem têm sentido, e

b) todas essas palavras estão ajustadas entre si de form a adequada.

11 — Vide Testability and Meaning, seção 25, pág. 26: “Podemos ver o princípio da refutabilidade de Popper como um exemplo de preferência por esta linguagem” (linguagem que exclua as proposições existenciais, por não terem sentido). Prossegue Carnap: “Contudo, ele é muito cuidadoso na formulação do seu ... princípio (de demarcação); não qualifica as proposições (existenciais) como carentes de sen­ tido, mas só como não empíricas ou metafísicas.” A segunda parte da citação é perfeitamente correta, e me parece bastante clara; no entanto, continua Carnap: “É possível que (Popper) queira excluir as afir­ mativas existenciais e outras proposições metafísicas não propriamente da linguagem, mas só da lin­ guagem da ciência empírica" (ênfase acrescentada). Por que razão presume Carnap que eu queira ex­ cluí-las de qualquer linguagem, se tenho repetido o oposto?

De acordo com a condição a dessa teoria (que rem onta a Hobbes e B er­ keley), um conjunto de palavras não tem sentido se com preende qualquer palavra sem sentido. W ittgenstein o form ulou no Tractatus (6.5, ênfase acrescentada): “O m étodo filosófico correto é o seguinte: quando alguém ... deseja dizer algo que seja m etafísico, deve-se dem onstrar-lhe que deixou de atribuir sentido a alguns dos sinais constantes das suas proposições”. De acordo com Hobbes e Berkeley, a única

12 — Carnap e o Círculo de Viena a atribuíram a Wittgenstein, mas na realidade ela é muito mais an­ tiga, remontando pelo menos a Hobbes; na forma indicada mais adiante como condição a foi usada com muita força por Berkeley e por outros nominalistas. Vide cap. 6 e também a referência a Hume em L. Sc. D., seção 4.

13 — Embora tenha qualificado essa teoria de “naturalista” (chamo-a agora também de “absolutista e de “essencialista”), por razões que o leitor poderá perceber não pretendo apresentá-las aqui argumentadamente, pois minha crítica principal não era (e não é) o fato de ser “naturalista”, mas sim de ser in­ sustentável.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

form a de atrib u ir sentido a um a palavra é associá-la a certos fepômenos ou ex­ periências observáveis. O próprio W ittgenstein não foi explícito sobre esse ponto, m as C arnap sim: no A u fb a u , procurou dem onstrar que todos os conceitos usados em todas as ciências podiam ser definidos na base da experiência observacional ou perceptiva. C ham ou tal definição de um conceito sua “constituição”; e o sistema de conceitos resultante de “sistema constitutivo” , afirm ando que os conceitos m eta ­ físicos não p o d em ser constituídos. A condição b da teoria rem onta a B ertrand Russell que sugeriu que, p ara evitar determ inados paradoxos, certas “com binações de símbolos” sem elhantes a proposições “devem ser absolutam ente sem sentido, não apenas falsas” Russell não p retendia fazer um a proposta — de que considerássemos essas combinações co n ­ trárias a algum as regras (em parte convencionais) a respeito da form ação de sen­ tenças, p ara evitar os paradoxos. N a verdade, pensava ter descoberto o fa to de que essas fórm ulas aparentem ente sem sentido não expressavam coisa algum a; que eram — pela sua n atureza, essencialm ente — pseudoproposições sem significado. U m a fórm ula do tipo “a é um elem ento de a ”, ou “a não é um elem ento de a ” tinha o aspecto de um a proposição (por conter dois sujeitos e um predicado com dois term os), mas não era um a proposição ou sentença genuína, porque um a fó r­ m ula do tipo “x é um elem ento de y ” só poderia ser um a proposição se x fosse de nível mais baixo do que y — condição que obviam ente não podia ser satisfeita se o mesmo sím bolo, a, substituísse tanto x como y. Isso dem onstrava que se não se levasse em conta o nível das palavras (ou das entidades que designavam ), poderíam os enunciar expressões sem elhantes a senten­ ças porém carentes de sentido; de acordo com o Tractatus de W ittgenstein e o A u f­ bau de C arnap, essa confusão constituía u m a fonte im portante de “m etafísica” — isto é, de pseudo-afirm ativas propostas como se fossem afirm ativas. É a cham ada “confusão de esferas” do A u fb a u 14 — o tipo de confusão que conhecemos hoje como “erro de categoria” . 15 De acordo com o A u fb a u , por exem plo, “m inhas próprias experiências” {das Eigenpsychische), os corpos físicos e as experiências dos outros ( “das Frem depsychische”) pêrtencem a diferentes esferas, tipos ou c a ­ tegorias que, se confundidos, podem levar a pseudoproposições ou a pseudoproblem as (C arnap descreve a diferença entre as entidades físicas e psicológicas como a que existe entre “dois tipos de o rdem ” 16 subsistindo dentro de um tipo de entidade últim a, o que o conduz à solução p ara o problem a das relações entre o corpo e a m ente nas linhas do “monismo n eu tro ”. 14 — “Sphärenvermengung”. Vidéo Aufbau, seção 30. 15 — Vide G. Ryle, The Concept of Mind, 1949. Esta acepção do termo “categoria” remonta ao em­ prego, por Husserl, da expressão “categoria semântica” (Bedeutungskategorie). Vide o seu Logische Untersuchungen, 2, parte I (2a edição), 1913, págs. 13 e 318. Eis alguns exemplos de “erros de cate­ goria” dados por Husserl: “verde é ou” (pág. 54); “um redondo ou”, “um homem e é” (pág. 334). Compare-se com o exemplo dado por Wittgenstein: “Sócrates é idêntico”. Vide uma crítica da teoria que postula os erros de categoria no cap. 12 e no notável trabalho de J. J. C. Smart, “A Note on Categories”, B. J. P. S., 4, pág. 227.

A DISTINÇÃO ENTRE CIÊNCIA E METAFÍSICA

O esboço feito acim a da teoria “ingênua” ou “n atu ralista”17 das expressões lingüísticas com e sem sentido só abrange um lado dessa teoria. O outro lado é o cham ado “critério de verificabilidade”, que pode ser enunciado como a condição c: c) um a alegada proposição (ou afirm ativa) só é genuína se é um a funçãoverdade de proposições elem entares ou atôm icas, que expressem observações ou percepções, e se é a elas redutível. Em outras palavras, só é significativa se está associada a afirm ativas b a ­ seadas na observação, de tal modo que sua veracidade decorre da veracidade destas últim as afirm ativas. Escreve C a rn a p :18 “É certo que um conjunto de palavras só terá sentido se suas relações de derivação de sentenças protocolares (afirm ativas baseadas na observação) são d a d a s ...” Isto é, se “ ... conhecemos ... o processo da sua verificação” 19 Por outro lado, as condições a, equivalentes a c . 20

b foram consideradas por C arnap como

Um dos resultados dessa teoria foi, no dizer do próprio C a rn a p ,21 “que as alegadas proposições m etafísicas são identificadas pela análise lógica como pseudo­ proposições.” A teoria de C arnap sobre o significado ou carência de significado intrínsecos de séries de palavras sofreria em breve um a m odificação; para poder avaliar essa m odificação será preciso que escreva aqui algum as palavras de c rític a .22 Em prim eiro lugar, um com entário sobre c: o critério do sentido em função da verificabilidade. E um critério que exclui do cam po da significação todas as teorias científicas (ou “leis da n atu reza”), pois estas não são m ais redutíveis a re ­ ferências à observação do que as cham adas pseudoproposições m etafísicas. P o rtan ­ to, o critério de significação leva a um a distinção errônea entre a ciência e a metafísica. Esta é um a crítica que foi aceita por C arnap em Logical Syntax o f Lan-

17 — Atualmente, estaria inclinado a qualificá-la de teoria “essencialista”, de acordo com meu livro The Poverty o f Historicism, seção 10, e com Open Society — especialmente o cap. 11. 18 — Vide seu trabalho sobre a rejeição da metafísica em Erkenntnis 2, 1923, pág. 222, o qual não per­ tence estritamente ao período da primeira teoria sobre a falta de sentido, já que reconhece que ela depende da linguagem em questão. Escreve Carnap (pág. 220): “Num sentido preciso, uma série de palavras é carente de significação quando, dentro de uma certa linguagem, não forma uma sentença.” No entanto, as óbvias conseqüências desse comentário não foram ainda explicitadas, e Carnap enuncia ainda sua teoria de forma absoluta. 19 — Ibidem, pág. 220. 20 — Aufbau, seção 161, pág. 222 e seção 179, pág. 253. Vide também a importante seção 2 do tra­ balho de Carnap publicado em Erkenntnis, 2, 1932, págs. 221 a 224 (passagem que sob muitos aspectos prenuncia, pelo seu método, a doutrina da redução que vamos encontrar em Testability and Meaning, de Carnap — exceto que nesta última a exigência de verificação é menos vigorosa. 21 — Erkenntnis, 2, pág. 220.

16 — Crdnungsformen; vide Aufbau, seção 162, pág. 224.

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22 — Vide L. Sc. D., em especial as seções 4, 10, 14, 20, 25 e 26.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

g u a g e ^ e em Testability and M eaning;24 mas mesmo estas teorias mais recentes se prestam a essa crítica, como procuro m ostrar na seção 6, mais adiante. Vamos considerar agora a condição a da do u trin a — o ponto de vista (nom inalista) de que só os sinais e palavras em piricam ente definíveis têm sentido. Aqui, a situação é pior ainda, e m uito interessante. Por am or à sim plicidade, começo m inha crítica com um a form a m uito sim ­ ples de nom inalism o, a doutrin a de que todas as palavras não-lógicas (ou, como prefiro dizer, n ã o -formativas) são nomes — seja como “R ex” , pertencente a um só objeto físico, ou “cão”, com um a numerosos objetos. O nom e “cão”, p o rtanto, pode pertencer aos objetos “R ex”, “L u lu ” e “D ian a”. O mesmo acontece com todas as dem ais p alav ras. Pode-se dizer que essa visão in terp reta as palavras de m aneira extensional ou enum erativa; o “significado” é dado p or um a lista ou enumeração das coisas que nom eiam : “isto aqui, e aquilo a li...” Podemos cham ar tal enum eração de “defi­ nição enum erativa” do significado de um nom e; um a linguagem em que todas as palavras (não-lógicas ou n ã o -formativas) são definidas enum erativam ente pode ser considerada u m a “linguagem en um erativa” ou “puram ente nom inalista” . Podemos agora dem onstrar facilm ente que a linguagem puram ente nom inalística é totalm ente inad eq u ad a p a ra q u alquer uso científico. Pode-se expres­ sar isso pela observação de que todas as afirm ações que encontram os em tal lin ­ guagem são analíticas — analiticam ente verdadeiras ou contraditórias — e que não podem expressar afirm ações sintéticas. Se preferim os um a form ulação que evite as palavras “analítico ” e “sintético” (atualm ente m uito criticadas pelo Prof. Quine) podem os dizer o seguinte: n u m a linguagem pu ram en te nom inalística, não há a fir­ m ação cuja falsidade ou veracidade não possa ser decidida pela simples co m p a­ ração de listas de definição, ou enum erações das coisas m encionadas na afirm ação. Logo, a veracidade ou falsidade de um a afirm ação é decidida no m om ento em que dam os os significados das palavras que a com põem . O exem plo que se segue dem onstra como isso acontece: a afirm ação “Rex é um cão” é verdadeira porque “R ex” foi um a das coisas que enum eram os quando definim os o nom e “cão ” . Pelo contrário, a afirm ação “Fred é um cão” é falsa, sim ­ plesm ente porque não incluímos a palavra “Fred” na lista de definição do nom e “cão” . Da m esm a m aneira, se, ao d a f a definição da palavra “b ran co ”, passo a enu m erar (1) o papel em que escrevo, (2) m eu lenço, (3) um a nuvem , e (4) um boneco de neve, então a afirm ação “tenho cabelos brancos” será falsa, independen­ tem ente da cor verdadeira dos meus cabelos. 23 — Vide a parte final do primeiro parágrafo e o segundo parágrafo da pág. 321, seção 82, especial­ mente as seguintes observações a respeito do Círculo de Viena: “Mantinha-se originalmente que toda sentença, para ter sentido, precisava ser completamente verificável... Desse ponto de vista não havia lugar para as leis naturais entre as .entenças da linguagem ... Popper faz uma crítica pormenorizada dessa concepção, segundo a qual as Uis naturais não constituem proposições”. 24 — Vide em especial as notas 20 e 25 (bem como o texto associado à nota 23), seção 23. Também a nota 7, seção 4; e a tiota 1, seção 78, de L. Sc. D.

A DISTINÇÃO ENTRE CIÊNCIA E METAFÍSICA

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O bviam ente, nesse tipo de linguagem não é possível fo rm ular hipóteses. Ela não pode ser a linguagem da ciência. C onseqüentem ente, qu alq u er linguagem que seja adequada à ciência não pode conter palavras cujo significado seja dado de m aneira enum erativa. Em outras palavras, toda linguagem científica deve usar ter­ mos universais genuínos, isto é, palavras, definidas ou não, com extensão d e te r­ m inada, em bora, talvez, com um “significado” intencional razoavelm ente definido (para a análise intencional do significado, vide o excelente livro de C arnap, M eaning and Necessity). Exatam ente a m esm a crítica se aplica a linguagens m ais com plicadas, es­ pecialm ente as que introduzem os conceitos pelo m étodo de abstração extensional (usadas pela prim eira vez por Frege e Russell) desde que a classe de elementos fundam entais n a qual se baseia o m étodo, e as relações fundam entais entre eles, sejam fornecidas de m aneira extensional, por meio de listas. É o que encontram os no A u fb a u de C arnap: o au tor usou um a relação prim itiva, “E r” (“A experiência da recordação”), fornecida por meio de um a lista de elem entos acoplados.25 Todos os conceitos pertencentes a esse “sistema de constituição” são presum idam ente definíveis de m aneira extensional com base na relação prim itiva “E r”, ou seja, na lista de elementos acoplados que atribui um significado à relação. Dessa form a, a veracidade ou falsidade das afirmações que podem ser expressas nessa lin ­ guagem depende simplesmente do significado (extensional) das palavras nelas con­ tidas: são analiticam ente verdadeiras ou co ntraditórias26, devido à ausência de palavras genuinam ente universais.27 Para concluir esta seção, volto à condição b da teoria e à do u trin a da carên ­ cia de sentido devida a “erros de tipo” otf “erros de categoria” . Essa doutrina deriva, como vimos, da afirm ativa de Russell de que um a expressão como “a é um elem ento da classe a ” não tem qualquer significado em term os absolutos, in trín ­ secos ou essenciais, por assim dizer. O ra, há m uito que se sabe que isso é um equívoco. R econhecidam ente, é verdade que podemos, como Russell, elaborar um a linguagem (incorporando um a teoria dos tipos) em que a expressão em apreço não seja um a fórm ula bem fo r­ m ada. Mas podemos tam bém — como Zermelo e seus sucessores: Fraenkel, Behm ann, von N eum ann, Bernays, Lesniewski, Q uine e A ckerm ann — construir linguagens em que a m esm a expressão seja bem form ada e po rtan to tenha sentido; 25 — Vide especialmente Aufbau, seção 108, onde Carnap diz que seu Teorema 1, que afirma a as­ simetria da relação primitiva “Er”, e um teorema empírico, pois sua assimetria pode ser encontrada na lista de elementos acoplados (empiricamente dados). Não devemos esquecer, contudo, que essa é a mes­ ma lista que “constituiu” ou definiu “Er"; ela leva, ainda, à negação do teorema 1, isto é, o teorema de que “Er" é simétrico. Por isso, não podería ser considerada uma lista adequada para “Er", fato que está particularmente explícito nas seções 153 a 155. 26 — Essa é a crítica do Aufbau que expus a Feigl quando nos encontramos pela primeira vez. Foi um encontro de conseqüências importantes, pois foi o próprio Feigl que promoveu, um ou dois anos mais tarde, as férias em comum com Carnap, no Tirol. 27 — “A diferença entre Conceitos Individuais e Universais” foi discutida no Aufbau, seção 158, e criticada brevemente em L. Sc. D., seções 14 e 25.

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em algum as dessas linguagens será mesmo um a afirm ativa verdadeira, p ara certos valores de a.

m aior precisão, precisamos introduzir regras m ais precisas, criando, assim, um sis­ tem a artificial de linguagem .

Estes são, natu ralm en te, fatos bem conhecidos, mas que destroem a idéia de u m a expressão 4‘inerentem ente” , “natu ralm en te” ou “essencialm ente” desprovida de sentido, pois a afirm ativa “a é um elem ento da classe a ” vem a ter sentido num a linguagem e não em outra; a prova de que um a expressão não tem sentido em a l­ gum as linguagens não deve ser confundida com a dem onstração da sua falta de significado intrínseco.

Desejo afirm ar novam ente que considero este um desenvolvimento m uito im portante, que nos fornece a solução p ara um núm ero considerável de problem as interessantes. M inha tese, contudo, é de que ele deixa o problem a da demarcação entre a ciência e a metafísica exatam ente no ponto de partida.

P ara provar a carência de sentido intrínseco deveriamos dem onstrar m uito mais: não só que um a alegada proposição é falta de sentido em todas as línguas consistentes, m as tam bém que não poderia haver um a sentença significativa (em q u alq u er linguagem consistente) que pudesse ser reconhecida como form ulação a l­ ternativa p a ra o que se quer dizer. N inguém jam ais sugeriu que tal prova possa ser apresentada.

Em outras palavras, a teoria ingênua, naturalista ou essencialista do signi­ ficado, discutida na seção anterior, é errônea, e teve que ser substituída por um a teoria de fórm ulas bem form adas e linguagens que são artificiais por estarem sujeitas a norm as determ inadas. Essa tarefa tem sido em preendida por C arnap com grande êxito. Mas a reforma do conceito de significado destrói com pletam ente a doutrina de que a metafísica carece de sentido e nos deixa sem esperança de poder reconstruir essa doutrina tendo por base o conceito de ausência de significado reform ado.

E im po rtan te entender que um a prova da carência de sentido intrínseco teria que ser válida p a ra todas as linguagens consistentes — não apenas com re ­ lação às linguagens suficientes para a ciência em pírica. Poucos metafísicos afirm am que as proposições m etafísicas pertencem ao cam po da ciência em pírica; por outro lado, ninguém ab an d o n aria a m etafísica pelo fato de que suas assertivas não p o ­ dem ser feitas dentro da ciência em pírica (ou em algum a linguagem apropriada àquela ciência). A tese original de W ittgenstein e C arnap, afinal, era de que a m etafísica carece totalm ente de sentido; não passaria de um conjunto de palavras desarticuladas, tendo o mesmo caráter dos suspiros, gemidos ou lágrim as (ou da poesia surrealista), diferindo assim da linguagem articulada. Para dem onstrar isso, qualq u er prova seria insuficiente, pois não podería ser expressa num a linguagem ad eq u ad a às necessidades da ciência.

Infelizm ente, parece que não se tem percebido isso. C arnap e seu grupo (N eurath foi especialm ente influente) procuraram resolver o problem a construindo um a “linguagem da ciência” , em que toda afirm ação científica legítim a seria ex­ pressa em fórm ulas bem form adas, ao passo que não seria possível expressar as teorias metafísicas — porque não havería term inologia disponível ou porque fal­ tariam para isso fórm ulas bem form adas.

Mesmo assim, apesar das m uitas tentativas de construir p ara uso científico um a linguagem livre da m etafísica, ninguém jam ais expôs um a prova désse tipo. Nas duas próxim as seções, discutirei algum as dessas tentativas.

Nesta seção, procurarei dem onstrar isso brevem ente com respeito a (a) a lin­ guagem fisicalista, (b) as linguagens da “Ciência U nificada”, (c) as linguagens da “Sintaxe L ógica”', na seção 5, farei um a dem onstração m ais extensa das linguagens propostas em Testability and M eaning.

4. Carnap e a Linguagem da Ciência. A refutação da m etafísica em preendida por C arnap m alogrou. A teoria n atu ralista d a ausência de sentido revelou-se in fu ndada, e a resultado final foi um a d o u trin a destrutiva tan to da ciência quanto da m etafísica. A m eu ver, isso resultou sim plesm ente da tentativa errônea de destruir indiscrim inadam ente a m etafísica, em vez de elim inar os elementos metafísicos das diversas ciências, o que, contudo, só d aria resultado positivo se o progresso científico não corresse o perigo de um a crítica equivocada (como a que Bacon dirigiu contra as idéias de Copérnico, ou a que D uhem e M ach dirigiram contra o atomismo). Como já disse, a teoria natu ralista do significado foi abandonada por C ar­ nap há m uito tem po, e substituída pela teoria de que a boa form ação de um a ex­ pressão lingüística depende das norm as da linguagem a que ela supostam ente p e r­ tence; e pela teoria de que, como as norm as de linguagem m uitas vezes carecem de

Considero interessante a construção de linguagens-m odelo artificiais para ciência; procurarei dem onstrar, contudo, que a tentativa de com binar esse objetivo com o de destruir a m etafísica (tornando-a carente de significado) nunca teve êxito. O preconceito contra a m etafísica (filosófico ou metafísico) não perm itiu que os autores de sistemas de linguagem trabalhassem apropriadam ente.

(â) A linguagem fisicalista. O A u fb a u de C arnap prom oveu o que ele d e­ nom inou de solipsismo metodológico — considerar nossas próprias experiências como base p ara construir os conceitos da ciência (e po rtan to a linguagem da ciên­ cia). Em 1931, sob influência de N eurath, C arnap havia abandonado essa concep­ ção p ara adotar a tese do fisicalism o, segundo a qual havia um a linguagem u n i­ ficada que se referia às coisas físicas e seus m ovimentos no tem po e no espaço. T udo podería ser expresso nessa linguagem , ou nela traduzívei; é o que ocorreria especialm ente com a psicologia, na m edida em que preservasse seu caráter cien­ tífico. A psicologia se to rnaria assim radicalm ente behaviorista; toda afirm açao psicológica significativa, referente ao hom em ou aos anim ais seria traduzívei num a assertiva sobre movimentos de corpos físicos no espaço e no tem po. A tendência por trás desse program a era óbvia: um a afirm ação sobre a alm a hum ana se tornaria tão carente de significado q u anto um a afirm ação sobre Detiâ. Talvez seja razoável situar afirm ações sobre a alm a e sobre Deus no mesmo nível.

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C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Parece questionável, contudo, que se pudesse desenvolver tendências antim etafísicas e antiteológicas pela colocação de todas as nossas experiências su b ­ jetivas, e as afirm ações sobre elas, no mesmo nível das assertivas da metafísica, q uanto à ausência de significado. (Os teólogos e metafísicos terão prazer em obser­ var que afirm ações como “Deus existe” ou “A Alm a existe” estão exatam ente no m esm o nível das afirm ações “Tenho experiências conscientes” ou “Existem sen­ tim entos — como o am or e o ódio — discerníveis dos m ovimentos dos corpos que quase sem pre os aco m p a n h a m .”) N ão há necessidade, po rtan to , de en trar nos méritos ou nos pontos criti­ cáveis da filosofia behaviorista ou da tese da traduzibilidade (que, m inha opinião, não passam de m etafísica m aterialista expressa em ornam entos lingüísticos — pes­ soalm ente, prefiro enfrentá-la sem tais ornam entos): podemos observar que essa filosofia não é efetiva quando se tra ta de destruir a m etafísica. Como sem pre, ou o antim etafísico refuta dem ais ou m uito pouco; como resultado, temos um a d e m a r­ cação desarticulada e insustentável. Como exem plo desse extrem ism o, posso citar o seguinte trecho do trabalho do C arnap “Psychology W ithin the Physical L anguage”28: “Graças aos esforços de M ach, Poincaré e Einstein, a física está com pletam ente livre d a m etafísica; os es­ forços p a ra to rn ar a psicologia um a ciência livre da m etafísica m al com eçaram .” P ara C arnap, expressão “livre d a m etafísica” significa “redutível a afirm ativas protocolares” . N em os exemplos mais simples da física, contudo, como as afir­ mações sobre o funcionam ento de um potenciôm etro — p ara usar o exemplo de C a rn a p 29 — podem ser reduzidos dessa m aneira. T am bém não vejo m otivo p ara introduzir estados m entais em nossas teorias psicológicas explicativas, um a vez que na física (antiga ou m oderna) podem os explicar as propriedades de um condutor pela hipótese de um “fluido elétrico” , ou de um “gás eletrônico”. O fato é que todas as teorias físicas afirm am m uito mais do que pode ser testado. N em sem pre é fácil dizer se a p arte situada além da nossa capacidade de testar pertence legitim am ente à física ou se deveria ser elim inada como um “ele­ m ento m etafísico” . A referência de C arnap a M ach, Poincaré e Einstein foi infeliz, pois M ach, em especial, tinha como objetivo final a refutação do atom ism o que considerava (juntam ente com outros positivistas) um elem ento metafísico da ciên­ cia. T erm in o u assim p o r refu tar em excesso. Poincaré procurou in terp retar as teorias físicas como definições im plícitas, um a concepção que p a ra C arnap dificil­ m ente seria m ais aceitável. Einstein, por sua vez, acreditou por m uito tem po na m etafísica, operando livrem ente com o conceito de “fisicam ente real”, em bora con­ dene tanto q uanto nós o palavreado metafísico pretensioso30. A m aioria dos con­ ceitos com que a física opera, como forças, cam pos, e mesmo elétrons e outras p a r­ tículas, são o que Berkeley (por exem plo) denom ina (iqualitates o c c u lta e \ C arnap mostrou 31 que presum ir estados conscientes em nossas explicações psicológicas é exatam ente análogo à atitude de presum ir a existência de um a qualitas occulta p ara explicar a resistência de um poste de m adeira; acreditava igualm ente que “es28 29 30 31

— Vide Erkenntnis, 3, 1932, p 117. — Op. Cit., pág. 140. — Quando escrevi isto, Albert Einstein ainda vivia. — Op. cit., pág. 115.

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sa visão im plica a falácia d a hipótese” ( ), da qual, como sugeriu, nenhum físico é culpado, em bora os psicólogos freqüentem ente o sejam 32 Mas o fato é que não podemos explicar a resistência de um poste de m adeira sim plesm ente pela sua es­ tru tu ra, como C arnap sugeriu33, mas sim pela estrutura associada às leis que se utilizam em larga m edida das “forças ocultas” condenadas por C arnap e por B er­ keley. Antes de concluir o ponto (a), desejo m encionar que esse fisicalismo, em bora excessivo em m uitos pontos, não é suficientem ente “fisicalista” em outros. Acredito, de fato, que sempre que desejamos propor um a afirm ação científica para um teste observacional, o teste deve ser, nu m certo sentido, fisicalista; ou seja, testamos as teorias físicas e psicológicas mais abstratas derivando, a p artir delas, afirmações -sobre o com portam ento34 dos corpos físicos. Cham ei de “afirm ativas básicas” as afirm ativas simples que descrevem os es­ tados facilm ente observáveis dos corpos físicos; afirm ei que, nos casos em que os testes se tornam necessários, com param os os “fatos” com essas afirm ativas bási­ c a s35’, que escolhemos por serem facilm ente comparáveis e intersubjetivam ente tes­ táveis, sem dificuldade. De acordo com m eu ponto de vista, portanto, não escolhemos, p ara testes básicos, relatos sobre nossas próprias experiências derivadas da observação (dificil­ m ente testáveis em term os intersubjetivos), m as sim sobre os corpos físicos que o b ­ servamos — inclusive potenciôm etros (desde que facilm ente verificáveis). Esse ponto é im portante porque m inha teoria sobre o caráter “fisicalista” das afirmações derivadas de testes opõe-se radicalm ente às teorias geralm ente aceitas de que elaboram os um “m undo exterior da ciência” a p a rtir de “nossas ex­ periências” . Sempre acreditei que isso é um preconceito (ainda largam ente susten­ tado), e que nunca devemos confiar em “nossas experiências” a não ser que acreditem os que estejam em conform idade com concepções intersubjetivam ente testáveis. Neste ponto, as idéias de C arnap e N eurath eram , naquela época, m uito menos “fisicalistas”. De fato, sustentavam um a form a original do “solipsismo m etodológico” de C arnap. Os dois acreditavam que as afirm ações da “base em ­ pírica” (na m inha term inologia) e todos os testes, que denom inavam “afirmativas

32 — Op. cit., pág. 115. 33 — Op. cit., pág 114. 34 — Esse comportamento, no entanto, é sempre interpretado à luz de certas teorias e por isso corre mais o perigo de cair num círculo vicioso. Não poderei discutir aqui extensamente o problema, mas desejo mencionar o fato de que o comportamento humano previsto pelas teorias psicológicas quase nun­ ca consiste em movimentos puramente físicos, mas sim em movimentos físicos que se revelam *!significa­ tivos” quando interpretados à luz de teorias. Portanto, se um psicólogo prevê que um paciente terá pesadelos, achará que tinha razão se o paciente relatar: “Tive maus sonhos ontem à noite”; isso, embora entre os dois “comportamentos”, isto é, os respectivos “movimentos dos lábios”, possa haver mais di­ ferença em termos físicos do que entre os movimentos que correspondem a uma negação e os que cor­ respondem a uma afirmação. 35 — Os termos “afirmativa básica” (“proposição básica” ou “frase básica”: uBasissatz,T) e “base em­ pírica” foram introduzidos em L. Sc. D., seções 7, e de 25 a 30; têm sido muito usados, desde então, por outros autores em sentidos similares e diferentes. (Vide também a seção i dos, apêndices a este livro.)

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

protocolares” , deveriam constituir relatórios sobre “nossas” experiências obser­ vacionais, em bora estivessem expressas na linguagem física, como relatórios sobre nossos corpos. N a form ulação de O tto N eu rath, essa “afirm ativa protocolar” teria, assim, u m a form a estranha. Segundo ele:36 “JJma afirm ação protocolar com pleta poderia ser expressa, por exemplo, assim: “Protocolo de O tto, em 3.17: [o p e n ­ sam ento de O tto, expresso em palavras, foi em 3.16: (em 3.15 havia, neste recinto u m a m esa, observada p o r O tto)]” . Sente-se a tentativa de incorporar o ponto de p a rtid a de sem pre — as experiências subjetivas do próprio observador, isto é, o “solipsismo m etodológico.” T em pos depois, C arnap aceitou m inha tese, mas no artigo “O n ProtocolSentences” 363738*em que am avelm ente a qualificou como “a mais ad equada das formas de linguagem cientifica propuganadas atu alm en te... na ... teoria do conhecim en­ to ” , 38 *não percebeu (ao contrário do que aconteceu em Testability and M eaning, como veremos) que a diferença entre m eu ponto de vista e o de N eu rath concerne um aspecto fundam ental: se devemos ou não recorrer, em nossos testes, aos fa to s físicos simples e observáveis ou às ilnossas próprias experiências através dos sentidos” (solipsismo m etodológico). A firm ou, p o rtan to , em seu adm irável relato d a m inha tese, que o sujeito 5 que em preende o teste, “na prática, freqüentem ente se deterá n a execução dos testes”, sem pre que chegar às “afirm ativas baseadas na observação do sujeito 5” , isto é, a afirm ativas relacionadas com a sua p ró p ria experiência sensorial (solipsismo m etodológico). O que afirm ei, contudo, é que ele só se deterá ao chegar a u m a afirm ação sobre o com portam ento de u m corpo físico facilm ente o b ­ servável de m aneira intersubjetiva, fato que, no m om ento, não pareceria p ro ­ blem ático. 39 O bviam ente, o ponto m encionado aqui está intim am ente ligado ao fato de que, ao contrário de N eu rath , nun ca acreditei na indução (segundo a qual parece n a tu ra l com eçar por “nossas experiências”), m as sim num m étodo para testar as previsões, deduzível das teorias. N aquela época, pensei que C arnap, ao fazer o rçlato sobre m eu ponto de vista, havia ab andonado sua crença na indução. Mas, se isso era verdade, ele a retom ou depois. (b) A L inguagem da Ciência Unificada. A idéia de que a linguagem fisicalista é universal, capaz de expressar q u alq u er fato significativo, está intim am ente ligada ao p róprio fisicalismo. “A linguagem fisicalista é universal”, escreveu C ar­ n a p .4041 “Se adotam os a linguagem d a física como a linguagem da ciência, devido ao seu caráter universal, então toda a ciência se transform a em física. Exclui-se a m etafísica p o r não possuir significado.41 As diversas ciências tornam -se parte da ciência u n ific a d a .” N ão h á dúvida de que a tese da linguagem universal e da ciência unificada está intim am ente ligada à elim inação da m etafísica: se fosse possível ao cientista 36 — Erkenntnis, 3, 1932, pág., 207. 37 — “Ueber Protokollsaetze”, Erkenntnis, 3 , 1932, págs. 223-8. 38 — Op. cit., pág. 228 cp. Testability and Meaning. 3 9 — Para uma breve crítica do trabalho de Carnap, vide também notas 1 e 2 à seção 29 de L. Sc. D (A citação no texto subseqüente à nota 2 da seção 29 foi extraída do trabalho de Carnap.) 40 — Erkenntnis, 3, 1932, pág. 108. 41 — Loc cit. ; a ênfase é minha.

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não-m etafísico expressar tudo o que deseja num a linguagem cujas norm as im pos­ sibilitassem a expressão de idéias m etafísicas, teríam os algo como um argum ento prim a fa cie em favor da conjectura de que a m etafísica não pode ser expressa num a linguagem “razoável” (obviam ente, estaríam os longe ainda de dem onstrar essa conjectura.) O estranho é que, mesmo antes da publicação da tese da linguagem univer­ sal única (em 30 de dezem bro de 1932), ela já havia sido refu tad a por um dos com ­ panheiros de C arnap no Círculo de V iena. GÒdel, de fato, havia provado, por meio de seus dois famosos teorem as, que um a linguagem unificada não seria suficien­ tem ente universal nem mesmo p ara os propósitos de um a teoria num érica elem en­ tar. Em bora fosse possível conceber um a linguagem em que todas as asserções dessa teoria pudessem ser expressas, a m esma linguagem seria insuficiente p ara fo r­ m alizar todas as provas das afirm ativas que podem ser provadas (em algum a outra linguagem ). T eria sido m elhor, p o rtan to , aban d o n ar im ediatam ente a d o u trina da lin ­ guagem universal única e da ciência universal unificada (especialm ente se consi­ derarm os o segundo teorem a de Gõdel, segundo o qual não se pode discutir a con­ sistência de um a linguagem utilizando-se essa m esm a linguagem ). Desde aquela época, têm surgido outros argum entos visando a provar a im possibilidade da tese da linguagem universal. Refiro-me especialm ente à prova de T arski de que toda linguagem universal é paradoxal (publicada pela prim eira vez em 1933, em p o ­ lonês, e em 1935 em alem ão). A despeito de tudo, a d o u trina sobrevive; em n e ­ n hum lugar a tenho visto renu n ciad a42. Além disso, a cham ada “Enciclopédia In ­ ternacional da Ciência U nificada” (“International Encyclopedia o f Unified Scien­ ce”), fu n d ad a sobre essa d o u trin a, apesar da m inha oposição, 43 no “Prim eiro C on­ gresso de Filosofia C ientífica” em Paris, em 1935, ainda é levada adiante. P er­ m anecerá como um m onum ento a um a doutrina m etafísica, apaixonadam ente sus­ ten tad a por N eurath e brilhantem ente utilizada por ele como arm a poderosa n a cruzada contra a m etafísica.

42 — A doutrina ainda é mantida em seus pontos essenciais (embora com atitude mais cautelosa) em Testability and Meaning; permaneceu intocada apesar das correções e aditamentos a vários trechos em 1950. No excelente e hoje famoso parágrafo introdutório de Introduction to Semantics (seção 39), Car­ nap indica que “as idéias expostas em livro anterior,The Logical Syntax o f Language, devem ser mo­ dificadas principalmente como resultado do novo ponto de vista, o da semântica.” Contudo, embora aquele livro continuasse a sustentar a doutrina da ciência e da linguagem unificadas (vide especialmente a seção 7 4 , pág. 286, pág. 280 e seguintes) não investigou a doutrina de maneira mais completa; essa será, talvez, a razão pela qual Carnap não sentiu a necessidade de modificá-la. 43 — Em Paris, opus-me à fundação da Encyclopedia. (Neurath costumava chamar-me a “oposição oficial” do Círculo, embora nunca tivesse tido a honra de ser um membro.) Observei, entre outras coisas, que, da maneira como, Neurath a concebera, em nada ela se pareceria com uma enciclopédia: seria mais semelhante a uma série de artigos da Erkenntnis. (Quanto ao ideal de Neurath de uma en­ ciclopédia, vide, por exemplo, seu artigo crítico sobre o L. Sc. D. em Erkenntnis, 5, págs. 353 a 365, es­ pecialmente seção 2.) No Congresso de Copenhague, em 1936, a que Carnap não compareceu, procurei demonstrar a incompatibilidade das doutrinas da unidade da ciência e da linguagem universal única com a teoria da verdade de Tarski. Durante a discussão que se seguiu à minha conferência, Neurath sugeriu que as teorias de Tarski sobre o conceito de verdade seriam insustentáveis; incitou Ame Naess, se a memória não me falha, a empreender um estudo empírico dos usos da palavra “verdade”, na es­ perança de refutar Tarski. Vide também as observações apropriadas de Carnap sobre Naess, em Introduction to Semantics, pág. 29.

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Sem dúvida, a forte crença filosófica que inspirou esse hom em amável e vigoroso era p u ram en te “m etafísica” segundo seus próprios padrões. Lam ento, mas a idéia de u m a ciência unificada expressa num a linguagem unificada não tem , na verdade, q u alq u er sentido; isso pode ser dem onstrado, pois Tarski provou que não pode existir u m a linguagem desse tipo que seja consistente. N ão quero sugerir, obviam ente, que C arnap não estivesse ciente de tudo is­ so; creio porém que não percebeu o efeito devastador que teve sobre a doutrina da ciência e da linguagem unificada. Pode-se contra-arg u m en tar, talvez, que estou considerando a doutrina da linguagem unificada com excessiva seriedade; que não se pretendeu estabelecer u m a ciência estritam ente formalizada (N eurath, por exemplo, costum ava falar, es­ pecialm ente em suas publicações mais recentes, a respeito de um “jargão univer­ sal”, fato que indica que não pensava em um a linguagem universal fo rm a liza d a ) . A credito que seja verdade. Essa visão, contudo, é novam ente um a refutação da doutrina da ausência de significado na metafísica. De fato, se não há normas de form ação estritas p a ra o jarg ão universal, a asserção de que não podemos nele ex­ pressar afirm ações m etafísicas é g ratu ita; só pode nos levar de volta à visão n a tu ­ ralista ingênua sobre a ausência de significado, criticada na seção 3. Pode-se m encionar, neste contexto, que as descobertas de Gõbel (e Churclrí tam bém selaram o destino de o u tra das doutrinas favoritas do positivismo, com relação à qual tenho grande aversão. 44 Refiro-m e à seguinte afirm ativa de W ittgenstein: “O enigm a não existe. Se um a pergunta pode ser form ulada, tam bém pode ser respondida” 45* Esta d o u trin a de W ittgenstein, que C arnap cham ou, no A u fb a u , 46 de “tese orgulhosa d a onipotência da ciência racio n al”, não era fácil de ser sustentada m es­ mo q u an d o surgiu — vale lem b rar as idéias de Brouwer, publicadas m uito antes de o Tractatus ser escrito. Com GÕdel (em especial com seu segundo teorem a sobre a im possibilidade da decisão) e C hurcb, a situação piorou, pois aprendem os que não nos é possível com pletar nem mesmo nossos m étodos p ara a solução de p ro ­ blem as. Assim, u m a questão m atem ática bem -form ada pode perder o sentido se adotarm os um critério de significação segundo o qual o sentido de um a proposição reside no m étodo com que ela pode ser verificada (em m atem ática: ser provada ou sua falsidade dem onstrada). Isso m ostra que podemos form ular um a questão — e, da mesm a form a, possíveis respostas p a ra ela — sem saber como poderíam os des­ 44 — Outra dessas doutrinas está no Tractatus, em 6.1251 (vide também 6.1261): “Não há, portanto, surpresas na lógica.’’ Ela é trivial (p. e., se a lógica é confinada ao cálculo proposicional de dois va­ lores), ou então obviamente errônea, e pode facilmente iludir-nos, tendo-se em vista 6.234: “A mate­ mática é um método da lógica”. Acredito que quase toda prova matemática é surpreendente. “Meu Deus, isto é impossível”, exclamou Hobbes ao tomar conhecimento da derivação do teorema de Pitágoras por Euclides. 45 — Tractatus, 6.5, onde lemos também: “Para uma resposta que não pode ser formulada, a resposta também não pode ser enunciada.” Mas a pergunta pode ser: “Essa afirmativa (por exemplo, a conjec­ tura de Goldbach) é demonstrável?” E a resposta genuína seria: “Ignoramos; pode ser que nunca cheguemos a sabê-lo, pode ser que sim”. 46 — Vide Aufbau, seção 183, pág. 261.

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cobrir qual das respostas possíveis é verdadeira; o que dem onstra a superioridade da “tese orgulhosa” de W ittgenstein. C arnap foi o prim eiro filósofo a reconhecer a im ensa im portância das des­ cobertas de Godel, e fez o possível p ara divulgá-las no m undo filosófico. É su r­ preendente que os resultados desse esforço de GÕdel não provocaram a m udança que deveriam ter provocado no Círculo de V iena, a respeito da linguagem e da função da ciência (na m inha opinião, sem dúvida algum a, noções metafísicas, sus­ tentadas com tenacidade). (c) Logical Syntax de C arnap é um dos poucos livros de filosofia que podem ser classificados como de im portância fundam ental. R econhecidam ente, alguns dos seus argum entos e doutrinas foram ultrapassados, em especial devido às descobertas de Tarski — como o próprio C arnap adm itiu francam ente no famoso parágrafo final de Introduction to Sem antics. N ão é decerto um livro de fácil leitura (é mais difícil em inglês do que em alem ão); m as estou firm em ente convencido de que, quando se escrever um a história da filosofia racional da prim eira parte deste sé­ culo, ele ocupará um lugar de prim azia. N esta oportunidade, não tenho condições sequer de ten tar fazer-lhe justiça — preso que estou en tre análises críticas. Gostaria contudo de m encionar pelo menos um ponto: foi graças a esse livro que se in tro ­ duziu no m undo filosófico, a Oeste da Polônia, o m étodo de análise de linguagens m ediante “m etalinguagens” ; o processo de construção de “linguagens-objeto” — trabalhos cuja im portância p ara a lógica e a fundam entação da m atem ática não poderia ser exag erad a. Foi nesse livro que se preconizou pela prim eira vez a grande relevância desse m étodo p ara a filosofia da ciência, o que foi a m eu ver perfeita m ente consubstanciado. Se posso falar na prim eira pessoa, o livro (publicado a l­ guns meses antes de Logic o f Scientific Discovery, e que li en q u an to o m eu próprio livro estava sendo impresso) m arca o início de um a revolução nas m inhas concep­ ções filosóficas, em bora não o tivesse com preendido inteiram ente (devido às dificul­ dades reais intrínsecas que apresenta) senão depois de conhecer o trabalho de T a rs­ ki a respeito da noção de verdade (num a tradução alem ã de 1935). Pude então perceber, com clareza, que a análise m etalingüística sintática era inadequada, devendo ser substituída pelo que Tarski cham ou de “sem ântica” . Creio, n aturalm ente, que do ponto de vista do problem a da dem arcação, Syntax representou um grande passo p ara a frente. Digo “n atu ralm en te” p ara aludir ao fato de que um a parte da m inha crítica foi aceita naquele livro. P arte da passagem relevante foi citada acim a. Mais interessante, é o trecho que segue im ediatam ente à citação; ele dem onstra, a m eu ver, que C arnap não aceitou su ­ ficientem ente m inha crítica: 47 “A concepção aqui apresentada perm ite grande liberdade na introdução de novos conceitos e afirm ações prim itivas na linguagem da física ou da ciência em geral; no entanto, retém ao mesmo tem po a possibili­ dade de diferenciar pseudoconceitos e pseudo-afirm ações de conceitos e afirmações reais e científicos; guarda portanto a possibilidade de elim inar os prim eiros.” E n ­ contram os, novam ente, a tese da carência de significado da m etafísica, um pouco m itigada, no entanto, pela continuação do trecho (que C arnap coloca entre parênteses, e que dem onstra a influência da m inha crítica, m encionada por ele na página anterior). “T al elim inação, contudo, não é tão simples quanto parecia, 47

_ Syntax, seção 82, p. 322 (a ênfase é de Carnap).

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quando baseada n a proposição mais antiga do Círculo de Viena, essencialmente a de W ittgenstein. Desse ponto de vista, tornara-se um a questão “de linguagem ”, num sentido absoluto; acreditava-se na possibilidade de rejeitar os conceitos e afir­ mações que não se adequassem à linguagem .” A posição indicada por esses trechos pode ser descrita da seguinte m aneira: (1) Algum as dificuldades são reconhecidas, especialm ente aquelas susci­ tadas pelo critério de significação m ediante a verificação, de W ittgenstein; reco­ nhece-se igualm ente a inadequação do que denom inei a teoria “n atu ralista” do sig­ nificado (que corresponde à crença em “um a linguagem ” em que as coisas são, ou deixam de ser, essencialm ente significativas em função da sua natureza). (2) A inda é aceita a idéia de que podemos, com m uito engenho, elaborar um a linguagem em que precisam ente os conceitos “m etafísicos”, e só estes, percam seu significado. (3) Sustenta-se a crença na possibilidade de elaborar, como conseqüência de (2), a linguagem universal de um a ciência unificada; a idéia, no entanto, não é e n ­ fatizada, nem exam inada em detalhe. (Vide ponto (b) nesta seção, especialm ente o trecho extraído do Syn ta x, seção 74, p. 286.) Será desnecessário prosseguir nesta crítica: já disse tudo o que era preciso — especialm ente que, diante dessas idéias, a sem ântica de Tarski, assim como boa p arte d a sua teoria da inferência lógica (isto é, da sua teoria lógica) perde o sig­ nificado. H á apenas um com entário adicional que deve ser feito, por relevante: Um a das dificuldades do im portante livro de C arnap é que ele enfatiza a idéia de que a sintaxe de um a linguagem pode ser form ulada nessa m esm a lin ­ guagem . A dificuldade torna-se ainda m aior um a vez que o leitor não pode dis­ tinguir entre um a linguagem -objeto e a m etalinguagem , distinção menos radical do que se poderia supor porque a m etalinguagem pode constituir p arte da lin g u a ­ gem -objeto. A ênfase de C arnap é, sem dúvida, errônea. É verdade que parte da m e ta ­ linguagem (p. e. sua “sintaxe”) pode estar contida na linguagem -objeto. Contudo, em bora esse seja um fato im portante, como o dem onstra o trab alh o de Godel, seu efeito p rincipal está n a elaboração de afirm ações de auto-referência — problem a altam ente especializado. Se a intenção era facilitar a com preensão das relações e n ­ tre a linguagem -objeto e a m etalinguagem , teria sido sem dúvida mais sábio tra ta r a m etalinguagem com o distinta d a linguagem -objeto. O bviam ente, poder-se-ia ainda m ostrar que pelo menos um a p arte da m etalinguagem — o suficiente para os propósitos de Godel — pode ser expressa na linguagem -objeto, sem cair na tese errônea de que toda a m etalinguagem pode ser expressa assim. N ão há dúvida de que a dou trin a da linguagem universal, na qual se ex­ pressaria um a ciência unificada, levou C arnap a enfatizar esse ponto, que tanto contribuiu p a ra as dificuldades do seu livro; ele tinha como objetivo, de fato, elaborar u m a linguagem unificada que elim inaria autom aticam ente a m etafísica. E lam entável que esse livro, excelente sob tantos pontos de vista, peque por um dog­

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m a antim etafísico — e por dem arcação errônea, que elim ina, além d a m etafísica, elementos im portantes da lógica. No Syntax, a d o utrina da carência de significado da m etafísica aparece da seguinte m aneira: todas as afirm ações significativas pertencem à linguagem da ciência, ou então, se têm caráter filosófico, podem ser expressas dentro da sintaxe dessa linguagem . Essa sintaxe com preende toda a filosofia e a lógica da ciência passíveis de serem traduzidas num a “expressão form al” ; a sintaxe pode, ainda, ser form ulada na m esma linguagem (“-objeto”) em que todas as ciências podem ser ex­ pressas . Neste trecho, não é apenas a doutrina da linguagem universal que rejeito: tam bém não posso aceitar a norm a de que todas as m inhas afirm ações devem ser traduzíveis em um a “expressão form al” p ara se tornarem significativas (ou para serem com preendidas por C arnap). Sem dúvida, devemos pro cu rar expressar nossas idéias da m aneira mais clara possível; de fato, a “expressão form al” de C arnap é m uitas vezes preferível ao que ele denom ina “m odo m aterial” (que usei ccm freqüência, em Logic o f Scientific Discovery, antes de que alguém o tivesse suge­ rido). Mas ela não é necessariam ente preferível. Por que deveria sê-lo? Porque a es­ sência da filosofia é a análise da linguagem ? Mas não acredito em essências (nem em W ittgenstein). A prim orar a com preensão de nossas idéias é um a questão de ex­ periência e reflexão. Por que razão seria toda a filosofia um a análise lingüística? Sem dúvida, es­ sa análise pode ajudar-nos a form ular questões em term os de construção lingüís­ tica. Mas, por que seriam todas as questões filosóficas desse tipo? Será esta a única tese não-lingüística da filosofia? O ataque dos positivistas introduziu, por assim dizer, o tem or de Deus entre todos os que desejam expor idéias significativas. Levou-nos a ser m ais cuidadosos com o que afirm am os, e com a m aneira pela qual afirm am os, o que é um fato positivo. Mas devemos deixar claro que a tese filosófica de que a análise da lin­ guagem é toda a filosofia é paradoxal (adm ito que m in h a crítica não se aplica da m aneira como foi apresentada, ao que foi exposto em Testability and M eaning, onde a tese foi substituída por um a proposta que deixou de ser paradoxal; não foram apresentados argum entos, contudo, em favor da proposta, exceto o de que ela representa um a versão aprim orada da tese, o que, a m eu ver, ainda não a ju s­ tifica). 5. Testabilidade e Significação. Testability and M eaning é, talvez, o mais interessante e im portante dos trabalhos no cam po da filosofia das ciências em píricas surgidos no período entre o Tractatus de W ittgenstein e a edição alem ã do trabalho de T arski sobre o conceito de “verdade” . Foi escrito num a época de crise, e trouxe grandes m udanças nas con­ cepções do autor. Ao mesmo tem po, suas afirm ações são m uito modestas. “O o b ­ jetivo deste trabalho não é oferecer... soluções... m as sim estim ular novas investiga­ ções” . Um objetivo que foi facilm ente atingido, pois o livro suscitou centenas de in ­ vestigações.

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Substituindo “verificabilidade” por “testabilidade” (ou “confirm abilidade”), Testability and M eaning representa, como o título indica, um tratad o sobre nosso problem a central. Ainda procura excluir a m etafísica d a linguagem da ciência como pode ser visto n a seção 1: “ ...far-se-á um a tentativa de form ular o princípio do em pirism o de m aneira mais exata, m ediante a apresentação de requisitos de “co n firm abilidade” ou “testabilidade” como critério de significação”; na seção 27 (pág. 33), essa indicação é elaborada da seguinte m aneira: “Como em piristas, exigimos que a linguagem d a ciência seja de algum m odo restrita; exigimos que afirm ações descritivas, p o rtan to sintéticas, só sejam adm itidas se apresentarem a l­ gum a ligação com observações possíveis...” A m etafísica, portanto, não é adm itida: . .mesmo que L seja a linguagem adeq u ada p a ra toda a ciên cia... não devemos e n ­ co n trar n e la ... afirm ativas que correspondam a m uitas das assertivas existentes nos trab alh o s dos m etafísicos — talvez a m aioria delas!’48 P ortanto, a idéia principal — excluir a m etafísica das fórm ulas bem fo r­ m adas de L, a linguagem da ciência — continua a m esm a. Como tam bém persiste a idéia de um a só linguagem científica; em bora C arnap afirm e agora, de m odo m uito claro, que podem os escolher nossa linguagem , e que cientistas diferentes poderão escolhê-la diferentem ente, propõe aceitarm os um a linguagem universal e chega a defender a tese do fisicalismo, de form a m odificada. Fala constantem ente (como nos trechos citados) sobre a linguagem da ciência; na possibilidade dê adotarm os um a só linguagem para toda a ciên cia.4950 Não percebe ainda a im pos­ sibilidade de tal linguagem . Mas C arnap é m uito cuidadoso ao form ular suas novas idéias. Declara que podem os escolher dentre m uitas linguagens da ciência e diz que
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Isso significa que deverá ter proposições que C arn ap , N eu rath e todos os outros antim etafísicos sem pre consideraram com o “m etafísicas” . P ara deixar isto bem claro, apresentarei um exem plo extrem o, que poderíam os ch am ar de “asser­ tiva arquim etafísica”:5l “Existe um espírito pessoal que é onipotente, onipresente e onisciente.” Pretendo dem onstrar que essa sentença pode ser form ulada de m odo bem -form ado ou significativo n um a linguagem fisicalista m uito sem elhante àquela proposta em Testability and M eaning. Podemos adm itir os q u atro seguintes predicados fisicalistas como p rim i­ tivos: 1) “A coisa a ocupa um a posição ó ” — ou, m ais precisam ente, “
“Ask (a,ò)”. Presumimos que temos à nossa disposição, na nossa linguagem , nomes de todas as expressões da form a “Pos (a, ó)”, “Put (a, ò,c)’\ etc., incluindo algum as das que aparecem abaixo, form uladas com a sua ajuda. P ara m aior sim plicidade, em ­ pregarei nom es de referência — em bora consciente de que esse procedim ento não é exato, especialm ente quando as variáveis referidas estão lim itadas, como em 14; es­ ta, porém , é um a dificuldade que pode ser vencida. Podemos agora introduzir sem dificuldade, usando definições explícitas baseadas em 1) e 2 ):54 51 — Não é preciso acreditar no caráter “científico” da psicanálise (que, na minha opinião, se encontra numa fase metafísica) para diagnosticar o fervor antimetafísico do positivismo como uma forma de rebelião contra a figura paterna. 52 — “Pos (a, b) é empregado aqui para maior simplicidade; deveríamos, de fato. operar com posição e momentum (ou com o “estado” de a). As alterações necessárias são triviais. Vale observar que não estou supondo que as variáveis a, b, etc., pertençam todas ao mesmo tipo de categoria semântica. 53 — Ou, como diria Carnap, “a tem condições de fazer com que a proposição “Pos (b, c)” se torne verdadeira”. Vide a explicação dada por Carnap a esse seu realizável primitivo (que é um termo de metalínguagem, diferentemente do meu “Put”) em Testability, seção 11, pág. 455, explicação 2. 54 — Essas definições são: 5) Opos(fl) = (b) Pos(a,b). 6 Oput(a) = (b) (c) Put(a, b,c). Temos, em seguida, a “sentença de redução bilateral”. (“Bilateral reduction sentence: 7) Ask (a, b) D (Th(a,b) = Utt(a,b). As de­ finições remanescentes são: 8 ) Thp(a) = (Eb) Th(a,b). 9)Sp(a) = (Thp(a) & (b)~ Pos (a,b)) V Opos (a)). Uma possível alternativa (ou adição ao defeniens) seria: ,‘Sp{ci) = (Thp(a) & Cb) — Utt(a rel="nofollow">b))\—(10) Knpos(aib ic) = ( Pos(b,c) & Th(a , 7 * w (M ’))-—0 1 ) K n pu t(a,b,c4) = CPut(btc,d) & Th(a,'Put(b,c,d)')).— (12) Knth(a,b,c) = (Th(b,c) ~K nth(c,a,b))). - (14) Kn(a,b) = ((c)(d)(e)((/> = *Pos(c,dy & Knpos(a,c,d)) V (b = ‘Pwí(c(c,c/,e)’ & Knput(a,c,d,e)) V (b = *Th(c,dy & K nth (a,c,d))). - (15) Verax(a) s (b)(Th(a,b) = (Kn(a,b)). — (\b ) Okn(a) s (b)(c)(d)(e)(f)(g)(h) (((a 7^ b) z> (K nput(a,b,c,d) = P ut(b,c,d))) & ((a ^ é) 3 (K n p o s(a ,e f) ss P o s(e ,f))) &. ((a # g ) ^ (Knth(a,g,h) s Th(g,h)))) & Verax (d)).

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la — de descobrir se é verdadeira ou falsa. Por isso a descrevi como m etafísica, recaindo fora do dom ínio da ciência.

5) “a é onipresente” , ou: “Opos (a)” . 6) “a é o n ipotente”, ou: “O put (a)” . Além disso, com a ajuda de 3) e 4) podemos introduzir, aplicando o m étodo da redução de C arnap: 7) “a pensa 6”, ou: “T h p (a)” . C arnap reco m en d a55 a admissão desse predicado. 7) podem os agora definir explicitam ente:

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Com

a ajuda de

8) “a é um a pessoa p ensante” , ou: “T h p (a)”. 9) “a é um espírito (pessoal), ou “Sp (a)”. 10) “a sabe que b se encontra na posição c \ ou: “Knpos {a,b,c)”. 11) “a sabe que 6 pode pôr c na posição d ” , ou: “K nput (a ,b ,c ,d )”. 12) “a sabe que b pensa c”, ou: “K nth (
Não creio porém , que C arnap tenha o direito de dizer que ela está fora da ciência, que exorbita da linguagem científica — ou, ainda, que não tem sentido. Seu sentido me parece perfeitam ente claro; como tam bém me parece evidente que alguns analistas lógicos confundiram sua incredibilidade em pírica com a alegada carência de sentido . Poder-se-ia até mesmo conceber certas experiências destinadas a “confirm á-la” , no sentido de C arnap, isto é, p a ra “confirm á-la fracam ente” (“weakly verify it”). Pouco nos ajuda, neste sentido, a explicação dad a em Tes­ tability 55 de que “o significado de um a sentença é, num certo sentido, idêntico ao m odo como determ inam os sua verdade ou falsidade; um a sentença só tem sentido se tal determ inação é possível.” Um a coisa fica clara nessa passagem: C arnap não tem a intenção de atribuir sentido a fórm ulas como a m inha proposição a rq u i­ m etafísica. C ontudo, sua intenção não se efetivou isso, na m inha opinião, porque não seria possível efetivá-la. Não preciso dizer que m eu único interesse em elaborar a fórm ula arquiexistencial é dem onstrar que não há qualquer relação entre a boa form ação de um a afirm ativa e seu caráter científico. O problem a de como construir um a lin ­ guagem científica que inclua tudo o que queremos dizer no cam po da ciência e ex ­ clua as afirmativas que sem pre fo ra m consideradas como metafísicas é insolúvel. Trata-se de um típico pseudoproblem a. N inguém jam ais explicou por que seria in ­ teressante resolvê-lo (se isso fosse possível): possivelmente p ara poder dizer, como antes, que a m etafísica não tem sentido — mas isso não significaria n ad a parecido com o que se queria dizer anteriorm ente. 571567*

15) 11a é verídico” , ou: “V erax (a)”. 16) “a é onisciente” , ou: “Okn (a)”. N ada m ais fácil, agora, do que enunciar um a fórm ula existenciaTque ex­ presse nossa assertiva “arquim etafísica” : existe um a pessoa pensante a, que se e n ­ contra em todas as partes; capaz de pôr q ualquer coisa em qualquer lugar: pensan­ do tudo, e só o que é verdadeiro; e sem que ninguém mais saiba tudo a respeito do seu pensam ento (O caráter único de a pode ser dem onstrado pelas propriedades de a. C ontudo, não podem os identificar a com o Deus do Cristianismo. H á um a d i­ ficuldade em definir “m oralm ente b om ” num a base fisicalista. Mas, na m inha opinião, fora do cam po da m atem ática os problem as de definição são m uito pouco interessantes — a não ser p ara os essencialistas). E óbvio que nossa fórm ula arquim etafísica puram ente existencial não pode sujeitar-se a qualq u er teste científico: não há nenhum a esperança de poder refutáPodemos provar sem dificuldade que “Unkn (a) & Okn (a)” implica o caráter único de a; altemativamente, podemos provar esse caráter único segundo linhas que poderiam ter atraído Spinoza, a partir de “Opos (a)”, se adotarmos o axioma cartesiano: a # 6 D (Ec) ((Pos(a,c) & ~ Post (b,c)) V (~ Pos (a,c) & Pos (b,c))). Nossas definições poderiam ser simplificadas mediante o emprego do predicado semântico de Tarski T(à) , que significa: a é uma afirmativa verdadeira”. Nesse caso, 14) podería ser substituído por: Kn(a,b) = T h(a,b) & T (b); 15), por: Verax (a) =(b) Th (a,b) D T (b); e 16) por Okn (a) = (b) T (b)DKn (a, b). 55 — Testability, seção 18, pág. 5 .

56 — Testability, seção 1, fim do primeiro parágrafo. 57 — A reação dos meus amigos positivistas à “fórmula arquimetafísica” (não conheço ainda a reação de Carnap, mas recebi um relatório de Bar-Hillel) foi a seguinte: como é uma fórmula bem-formada, ela é “significativa” e também “científica”. Científica e empiricamente não é verdadeira, maS falsa; mais precisamente, não é confirmada pela experiência. Alguns desses amigos positivistas negam que o nome “arquimetafísico” se justifique historicamente, afirmando que as tendências antimetafísicas do Círculo de Viena não têm qualquer relação com uma alegada tendência antiteológica; isto, a despeito do fi-^ sicalismo de Neurath, que pretendia ser uma versão moderna do materialismo clássico ou dialético. Penso que se alguém chegasse ao ponto de se comprometer com a admissão de que minha fór­ mula arquimetafísica é bem formada, e portanto empiricamente verdadeira ou falsa, estaria em di­ ficuldade. De fato, como poderia defender a concepção de que essa fórmula é falsa, ou que não pode ser confirmada? Ela sem dúvida é irrefutável, podendo ser enunciada sob a forma: (Ex) (G(x) — em palavras: “há algo que tem as propriedades de Deus”. Baseando-nos na premissa de que “G(x rel="nofollow">” é um predicado empírico, podemos provar que sua probabilidade é igual a 1 i(vide Logical Foundatwns of Probability, de Carnap, pág. 571). Posso demonstrar, ademais, que isso significa que a sua proba­ bilidade não pode ser reduzida por qualquer informação empírica — isto é, por qualquer informação cuja probabilidade lógica seja diferente de zero. Siginifica, segundo Carnap, que seu grau de confir­ mação é igual a 1 , e que não pode faltar-lhe confirmação — como afirmei. Como, então, podem meus amigos positivistas afirmar que a assertiva empírica “(Ex) G(x) é fal­ sa? Ela é melhor confirmada do que qualquer teoria científica. Na minha opinião, trata-se de afirmativa não testável — portanto, não empírica e não científica.

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Poder-se-ia dizer, porém , que é possível realizar pelo menos um a p arte do velho sonho de W ittgenstein — retirar sentido à m etafísica. Será que C arnap foi generoso dem ais perm itindo-nos o em prego de predicados disposicionais, tais como a é capaz de pôr b em c” e “a pensa 6 ” (este últim o caracterizado como um a dis­ posição p a ra enunciar b)? Não posso d ar q ualquer esperança aos que seguirem esta linha de pensam ento. Como procurei dem onstrar, ao discutir o A u fb a u na seção 3, precisamos, no cam po da ciência, de universais genuínos não-extensivos. N a m inha Logic o f Scientific Discovery indiquei brevem ente — brevem ente dem ais, porque pensava que as idéias “reducionistas” ( ) do A u fb a u tinham sido abandonadas pelo au to r — que todos os universais são disposicionais: não só um predicado como “solúvel”, mas tam bém “solucionando” ou “solucionado”. P ara citar um trecho de Logic o f Scientific Discovery: “T odas as afirm ativas descritivas u sam ... universais; toda assertiva tem o caráter de um a teoria, ou h i­ pótese. A afirm ativa: Eis aqui um copo d ’á g u a” não pode ser verificada pela ex­ periência observacional, porque os universais que nela aparecem não podem ser correlacionados com qualquer experiência observacional específica... Com a palavra copo , por exem plo, indicam os certos corpos físicos que revelam d e te r­ m inado com portam ento sob a fo rm a de leis; o mesmo se aplica à palavra “ág u a”. Os universais... não podem ser “constituídos” (isto é, não podem ser definidos, à m an eira do A u fb a u )” 58 Q ual é, então, a resposta ao problem a de como definir (ou introduzir) um term o disposicional como, por exemplo, “solúvel”? A resposta é, simplesmente, que o problem a não tem solução, o que não é preciso lam entar. De fato, vamos adm itir que conseguimos “reduzir” “x é solúvel em ág u a” por meio do que C arnap cham a de “sentença red u tó ria” (“reduction sentence”) , descrevendo um teste operacional do tipo: “colocado na água, x será solúvel em água só se se dissolver.” Que teremos ganho? Precisaremos ainda reduzir “ág u a” e “dissolver” ; e é evidente que, entre os testes operacionais que caracterizam “ág u a” , precisarem os incluir o seguinte: “se algo solúvel em água for colocado em x \ se x for água essa coisa se dissolverá.” Em outras palavras, não só seremos forçados, ao in ­ troduzir solúvel a reto rn ar a “á g u a”, que é disposicional talvez em grau ainda m aior mas, além disso, seremos forçados à circularidade, pois estaremos in tro ­ duzindo solúvel com a ajuda de um term o (“ág u a”) que por sua vez não pode ser introduzido operacionalm ente sem “solúvel” — e assim por diante, ad in finitum . A situação de “x está se dissolvendo” e “x se dissolveu” é m uito sem elhante. Dizemos que x se dissolveu na água (e não que desapareceu) só se esperamos ser capazes de dem onstrar (pela evaporação da água) que certos vestígios desse proces­ so podem ser encontrados, e que podem os, se necessário, até mesmo identificar partes da substância dissolvida, e depois recuperada, com partes de x, por meio de

58 - Passagem de L. Sc. D., fim da seção 25 (vide também as seções 14 e 20). Embora, combinada com a passagem correlata de Carnap sobre o termo “solúvel” (Testability, seção 7, pág. 440), ela possa ter contribuído para dar início ao chamado “problema dos condicionais contrafactuais” (“problem o f counter-factual conditionals”), nunca consegui compreender esse problema, a despeito de esforços in­ tensos que fiz nesse sentido; mais precisamente, não compreendo o que resta dele quando se rejeita o essencialismo, o fenomenalismo e a análise do significado.

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testes que precisarão com provar, entre outras coisas, o fato de que essa substância é solúvel. H á um a boa razão p a ra que esse circuito não seja interrom pido pelo es­ tabelecim ento de um a ordem definida de redução ou introdução. E a seguinte: nossos testes reais nunca são conclusivos — são sem pre tentativas. N unca devemos concordar com um a regra que nos obrigue a descontinuar os testes num ponto determ inado qualquer — por exemplo, ao chegarm os aos predicados primitivos. Para o cientista, todos os predicados são igualm ente disposicionais — abertos à .dúvida e à experim entação. Esta é um a das idéias principais da teoria da base e m ­ pírica, em L. Sc. D . 59 Isso é o que se pode dizer sobre o fato de que “solúvel” não pode ser “re duzido” a algo menos disposicional. Q uanto à m inha alegação de que não p reci­ samos lam entar esse fato, quero apenas dizer (novam ente) que, fora d o cam po da m atem ática e da lógica, os problem as de definição são gratuitos. Precisamos em ­ pregar m uitos term os in d efinidos,5960 cujo sentido é fixado precariam ente pelo uso — a m aneira como são utilizados no contexto das teorias, dos procedim entos e práticas de laboratório. O sentido desses conceitos será, portanto, variável. Mas o mesmo acontece com todos os conceitos, inclusive aqueles que são definidos, já que um a definição só pode dim inuir o sentido do term o definido p ara o dos terrpos indefinidos. Que haverá, p ortanto, atrás da dem anda de definições? Uma antiga tr a ­ dição, que rem onta a Locke e até mesmo ao essencialismo aristotélico; como resul­ tado, nasce a crença de que se alguém não pode explicar o que significa um a palavra que em pregou, não lhe atribuiu qualquer sentido (W ittgenstein); portanto, estava dizendo coisas sem significação. Mas essa crença de W ittgenstein é que não tem sentido, pois todas as definições levam, em últim a análise, a termos indefi­ nidos. Como já discuti tudo isso em outra oportunidade, não direi aqui nad a mais sobre o assunto. Ao concluir esta seção quero salientar novam ente que a testabilidade e a confirm abilidade — mesmo.se analisadas de m odo satisfatório — não são de form a

59 — Em Testability, Carnap aceita quase integralmente minha teoria da base empírica (L. Sc. D., seções 25 a 30), inclusive a maior parte da minha terminologia (“base empírica”, “sentenças básicas etc.). Mesmo uma discrepância ligeira, mas significativa, (que interpretei aqui como vestígio da época do seu “solipsismo metodológico”, e que critiquei em L. Sc. D., nota 1 , e texto associado à nota 2, seção 29) foi retificada ( Testability, seção 20; vide especialmente ’’decisão 2”, pág. 12, e o texto relativo à nota 7, na pág. 13). Alguns outros pontos de concordância (além daqueles aos quais o próprio Carnap se refere) são: a tese de que há um “componente convencional” na aceitação ou rejeição de qualquer proposição (sintética) e a rejeição da doutrina das sentenças atomísticas que afirmam fatos definitivos. Contudo, a de vista, acentuo uma concepão negativa da testabilidade que, para mim, é a mesma refutabilidade; e só aceito confirmações que resultem de tentativas »de refutação genuínas mas pouco exitosas. Para Car­ nap, a testabilidade e á refutabilidade são formas de verificação mais fracas. As conseqüências dessa diferença se tornam claras no meu tratamento da probabilidade e da indução (seção 6 , mais adiante). 60 - Em Testability, seção 16, pág. 470, Carnap expressa a esperança de que possamos introduzir todos os termos na base de um predicado indefinido, de um só termo. Mas não podemos introduzir qualquer outro termo nessa mesma base com a ajuda de um par de reduções: pelo menos dois predi­ cados diferentes são necessários mesmo para uma sentença redutória bilateral. Precisamos, além disso, de pelo menos uma relação de dois termos.

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algum a m ais adequadas a servir como critérios de sentido do que esse outro critério mais antigo — a verificabilidade. Mas preciso dizer que, adicionalm ente, não sou capaz de aceitar a análise feita por C arnap dos conceitos de “teste” , “testável” , ou de “confirm ação” . A razão é que seus term os substituem “verificação”, “verifi­ cável”, etc., de m odo um pouco menos vigoroso, p ara escapar à objeção de que as leis não podem ser verificadas. Mas essa conciliação é inadequada, como veremos na próxim a (e últim a) seção deste trabalho. N a ciência, a aceitabilidade depende não de algum substituto da verdade, mas da severidade dos testes. 61

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Este é, tam bém , o ponto de vista de C arnap: seu novo critério de d em ar­ cação é, como já vimos, a confirm abilidade. Nesses dois livros C arnap explica que os métodos para confirm ar um a proposição são idênticos com o m étodo indutivo. Concluímos, portanto, que o critério de dem arcação se torna agora, m ais preci­ sam ente, a confirm abilidade pelo m étodo indutivo. Em outras palavras, um a ex­ pressão lingüística só pertencerá ao cam po das ciências em píricas se for logicam en­ te possível confirm á-la pelos métodos indutivos, ou pela evidência indutiva. Conform e observei na seção 2, este critério de dem arcação não satisfaz meus requisitos, pois deixa de excluir muitos tipos de pseudociências, como a astrologia.

6. Probabilidade e Indução As conseqüências plenas da abordagem da confirm ação como um tipo de verificação aten u ad a só ficam claras nos dois livros de C arnap sobre a pro b ab ili­ d ade — a extensa obra Logical Foundations o f Probability (que temos cham ado aqui de “Probability”) e o livro m enor The C ontinuum o f Inductive M ethods (um a espécie de relatório sobre o progresso do seu pensam ento teórico, ao qual nos re ­ ferimos como “M ethods”). 6263*

Poder-se-ia objetar, n aturalm ente, que esse critério não pretende excluir o que cham ei de “pseudociências”, as quais consistem, sim plesm ente, em afirm ativas falsas — ou talvez em afirm ativas não confirmadas —, em vez de afirm ativas metafísicas não confirmáveis. Essa resposta não me satisfaz, pois acredito ter um critério que exclui, por exemplo, a astrologia, e que já demonstrou grande utilidade com relação a m uitos problem as, mas estou preparado p ara aceitá-la, ad argum entandum , lim itando-m e a dem onstrar, como já fiz, que o critério proposto leva a um a demarcação errônea.

Os tem as desses dois livros se relacionam m uito de perto com o nosso problem a: tra ta m da teoria da indução -f- e a indução foi sem pre um dos critérios mais populares p a ra a dem arcação do cam po da ciência; as ciências em píricas são, via de regra, caracterizadas pelos seus métodos, os quais, por sua vez, são g eralm ente qualificados de indutivos. 65 -

A crítica que faço ao critério da verificabilidade foi sem pre esta: contra a intenção dos que o defendem , esse critério não exclui proposições que são obvia­ m ente metafísicas; exclui, porém , as afirmativas científicas mais im portantes e in ­ teressantes — isto é, as teorias científicas, as leis universais da natureza. Vejamos, agora, como esses dois grupos de proposições se ajustam ao novo critério.

61 — Em conseqüência, a seguinte “condição-conteúdo” (“content-condition” ou “entatlment conditton”) é inválida: “Se x implica y (isto é, o conteúdo de y é parte do de x), entãò y precisa ser pelo menos tão bem confirmado quanto x”; a invalidade da “condição-conteúdo” foi observada em L. Sc. D., seções 82 e 83, onde o conteúdo é identificado com o grau de testabilidade e a improbabilidade lógica (absoluta); e onde se mostra que a invalidade da “condição-conteúdo” destrói a identificação do grau de confirmação com a probabilidade lógica. Em Testability. contudo, toda a teoria da redução de Carnap se baseia nessa condição. Em Probability, Carnap observa a invalidade da “condição-conteúdo’ , mas não extrai dela a conclusão (que considero necessária) de que o grau de confirmação não pode coincidir com a probabilidade (reexaminei esta conclusão no apêndice ix de L. Sc. D.). 62 — Em dois dos três livros publicados entre Syntax e Probability — Introduction to Semantic e Meaning and Necessity — há muito pouco de relevante para o problema específico da demarcação (e nada, pelo que posso ver, em Formalization o f Logic, publicado entre um e o outro). Na Introduction encontro apenas: a) o que interpreto como alusão à oposição de Neurath ao conceito de verdade de Tarski (Carnap fornece uma excelente — e tolerante — resposta) e b) uma justificada rejeição da im portância do método de questionário de Ame Naess. Em Meaning and Necessity, que considero o melhor dos livros de Carnap, (é também possivelmente aquele atacado com maior vigor), há umas poucas observações sobre ontologia e metafísica (pág. 43) que, juntamente com uma referência a Wittgenstein, parecem indicar que Carnap ainda acreditava na falta de sentido da metafísica: “...conhecer o significado de uma sentença é saber quais os casos possíveis em que ela seria verdadeira, quais aqueles em que seria falsa, conforme salientou Wittgenstein.” Essa passagem me parece contudo contrariar as principais conclusões de Carnap, que reputo convincentes. De fato, ela pinta, claramente, o que Carnap denominou de abordagem extensiva ao sentido, diferente da abordagem mtensiva. Por outro lado, “as principais conclusões... são” que precisamos distinguir entre ‘ a compieensão do sentido de uma expres­ são e a investigação sobre se e como devemos aplicá-la” (pág. 2 0 2 , ênfase acrescentada): o sentido é ex­ plicado pela abordagem intensiva; a aplicação, pela abordagem extensiva. A “explicação” dada por Carnap ao seu conceito de “explicação” é relevante para o nosso problema. 63 — Nosso problema de demarcação não é examinado explicitamente nesses dois livros, corh a ex­ ceção de um comentário em Probability (pág. 31) sobre o “princípio do empirismo” (mencionado tam ­ bém nas págs. 30 e 71) e de um exame sobre o caráter empírico do “princípio da uniformidade” na natureza (pág. 179).

Q uanto ao prim eiro grupo, verificamos que m inha fórm ula existencial arquim etafísica alcança, nos sistema de C arnap, um elevado valor de confirm ação; pertence à categoria das afirm ativas quase tautológicas (“almost L tru e ”) cujo valor de confirm ação é 1 — ou, num universo finito de tam anho suficientem ente grande, indistinguível da unidade. Além disso, são assertivas p a ra as quais mesmo a confir­ m ação experim ental é concebível6*, em bora essa confirm ação não constitua testes, no m eu sentido: não há form a concebível de refutá-las. Essa falta de refutabílidade as coloca na classe das sentenças m etafísicas, segundo m eu critério de dem arcação. Por outro lado, seu elevado valor de confirm ação, no sentido de C arnap, as torna m uito superiores a qualquer lei científica. Com efeito, todas as leis universais têm u m valor de confirmação igual a zero, segundo a teoria de C arnap, num universo que seja sob qualquer aspecto in ­ finito (basta, no caso, o infinito tem poral), como o próprio C arnap dem onstrou65; 64 — É concebível que haja videntes como Swedenborg, capazes de prever acuradamente eventos fu­ turos, afirmando-nos (sob a inspiração de “drogas da verdade”) que se baseiam naquele a que tornaria verdadeira nossa fórmula existencial; da mesma forma, seria concebível que pudéssemos construir re­ ceptores para substituir esses videntes — receptores que, em determinadas circunstâncias, falariam sempre a verdade, prevendo o futuro. 65 — Vide Probability, seção 110, pág. 571. Vide também L. Sc. D., seção 80, pág. 257.: “Poder-se-ia atribuir a uma hipótese (as hipóteses consideradas são as leis universais)... uma probabilidade calculada, digamos, estimando a relação entre todos os testes por que ela passou e todos os testes (concebíveis) ain­ da não tentados. Mas esse processo também não leva a parte alguma; a estimativa pode ser computada precisamente, e o resultado é sempre a probabilidade zero”.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

mesmo num universo finito, seu valor não poderia ser distinguido de zero, desde que nesse m undo o núm ero de eventos ou coisas fosse suficientem ente grande. T u d o isso é um a conseqüência óbvia do fato de que a confirm abilidade e a confir­ m ação, no sentido de C arnap, não passam de versões ligeiram ente enfraquecidas da verificabilidade e da verificação. O motivo por quê todas as leis universais não são verificáveis é o mesmo que explica por que não são confirmáveis: afirm am m uito sobre o m undo, mais do que poderíam os aspirar a “verificar” ou a “confir­ m a r” . D iante do fato de que as leis naturais são não confirmáveis, de acordo com sua definição de “grau de confirm ação”, C arnap adota dois procedim entos: a) in ­ troduz um novo conceito, ad hoc, — a “confirm ação exem plar qualificada 66 da lei 1” , definida de m odo tal que encontram os algum as vezes, em lugar de zero, um valor de confirm ação próxim o da unidade; b) explica que as leis naturais não são realm ente necessárias p a ra a ciência; que podemos dispensá-las. (O verificacionismo tornou-as sem sentido. O confirm acionism o apenas as torna desnecessárias: esta é a vantagem obtida pelo enfraquecim ento do critério de verificabilidade.) Vamos exam inar agora a e b com um pouco mais de profundidade. a) C arnap percebe, natu ralm en te, que sua confirm ação-zero de todas as leis é contra-intuitiva; sugere, assim, que se m eça a “segurança” ( “reliability”) de um a lei pelo grau de confirm ação de um dos seus exemplos. Mas nunca afirm a que essa nova m edida, apresentada na pág. 572 de Probability, praticam ente não satisfaz nenhum dos critérios de adequação e nenhum dos teorem as desenvolvidos nas 571 páginas precedentes. É o que acontece, porém : a razão é que a “confirm ação exem ­ p la r” ( “instance confirm ation”) de um a lei 1, com base na evidência e, sim plesm ente nãç é u m a fu n ç ã o probabilística de 1 e e (não é um a função-c regular de 1 e e).

N ão poderia ser diferente. Até a pág. 570 temos um a teoria detalh ad a da confirm ação (no sentido da probabilidade-1). N a pág. 571, verificamos que p ara um a lei esta confirm ação é igual a zero. Estamos, agora, diante das seguintes a lte r­ nativas: i) aceitam os o resultado como correto, e em conseqüência afirm am os que o grau de crença racional n um a lei que tenha b astante fundam entação não pode ser m uito diferente de zero —ou do relativo a um a lei refutada, ou mesmo de um a proposição autoco n trad itó ria; ii) interpretam os esse resultado como refutando a alegação de que nossa teoria nos deu um a definição adequada de “grau de confir­ m ação ” . A introdução ad hoc de um a nova m edida, a fim de evitar um resultado que não se deseja, não chega a ser um a alternativa aceitável. O m ais insatisfatório, porém , é d ar esse passo m om entoso — rom per com o m étodo da “explicação” usado até aqui — sem d a r qualquer aviso ao leitor: o resultado poder ser a idéia, seriam ente equivocada, de que só se procedeu a um pequeno reajuste. 6 6 — Limito-me a examinar o que Carnap chama (.Probability, de “qualified” instance confirmation, a) porque Carnap a prefere como “representação ainda mais acurada” das nossas intuições; e b) porque num mundo suficientemente complexo (com predicados em número suficientemente amplo), a instance confirmation não qualificada leva, em todos os casos interessantes, a valores de confirmação extre­ mamente reduzidos. Por outro lado, a “confirmação exemplar qualificada” é atingida em cheio pelo chamado “paradoxo da confirmação” (vide Probability, pág. 469). Esse é um defeito que, na minha opinião, pode sempre ser remediado — neste caso, fazendo os dois argumentos do defvniens em 15) (págs. 5 7 3 ), simétricos como relação às duas formulações implicativas iogicamente equivalentes de 1; ele6 se tomam, respectivamente (depois de simplificação), “j D h e “e (h’ D j)”, o que evita o paradoxo.

A DISTINÇÃO ENTRE CIÊNCIA E MÊTAFÍSICÂ

De fato, p ara en carar com seriedade a probabilidade e a confirm ação, o reajuste não poderia ter sido mais radical; ele substitui um a função de confirm ação cujo vaíor é zero por outra função cujo valor será provavelm ente m uito próxim o de 1. Se nos perm itirm os assim a liberdade de introduzir um a nova m edida sem outra justificação a não ser a de que a probabilidade zero é contra-intuitiva, enquanto um a probabilidade perto de 1 parece representar... ainda mais acuradam ente o que se quer indicar, de modo vago, pela segurança (realiability”) de um a lei,6768en ­ tão podem os obter, p ara qualquer sentença, qu alq u er probabilidade (ou g rau de confirm ação) que quisermos. Além disso, C arnap nãò procura dem onstrar que a nova confirm ação exem plar é adequada, ou pelo menos consistente (não o é). N ão tenta, por exem ­ plo, dem onstrar que qualquer lei refutada apresenta um a confirm ação exem plar mais baixa do que qualquer o u tra que tenha resistido a testes. Um exemplo dado por C arnap — a lei de que “todos os cisnes são brancos” — m ostra que esse requisito m ínim o não pode ser atendido (em bora se rem edie a inconsistência). Essa lei deve ser considerada como refutada se a evidência dis­ ponível consistir em um cisne negro e, digamos, m il cisnes brancos. C ontudo, p a ra esse tipo de evidência a confirm ação exem plar não será zero, mas um valor m u ita próxim o da unidade (o afastam ento exato de 1 dependerá da escolha d o p a râ ­ m etro discutido adiante). De m odo mais genérico, se um a teoria for repetidam ente refutada — um a vez, em m édia, em cada n exemplos, sua “confirm ação exem plar” (qualificada) se aproxim ará de 1 -

1 — n

em vez de 0, como seria de esperar; assim, a lei “No jogo do cara-ou-coroa um a m oeda m ostrará sempre coroa” tem um a confirm ação exem plar de 1/2, em lugar de 0. Ao exam inar, em L. Sc. D., a teoria de R eichenbach, que leva a resultados m atem aticam ente equivalentes, 68 qualifiquei essa conseqüência não pretendida da 67 — Vide Probability, pág. 572; Meaning and Necessity, sjeção 2, pág. 7: “A tarefa de tomar um con­ ceito vago ou não muito exato numa noção mais exata... eètá entre as tarefas de maior importância da análise lógica... Nós a chamamos a tarefa de... dar uma explicação àquele conceito...” (Vide também Probability, seção 2, pág. 3). Preciso registrar aqui (de passagem) que discordo do ponto de vista de Carnap sobre a explicação. Meu argumento principal é o seguinte: não creio que se possa falar sobre a exatidão, a não ser no sentido relativo de exatidão suficiente para um objetivo particular determinado — o objetivo de resolver um problema dado. Assim, os conceitos não podem ser “explicados”, a não ser dentro do contexto de uma situação-problema definida. Em outras palavras, a adequação só pode ser avaliada se confrontarmos um problema genuíno (que não precisa ser um problema de explicação), para cuja solução precisamos elaborar uma “explicação” ou “análise”. 6 8 — Os valores de confirmação são idênticos, se o X de Carnap é igual a zero; para qualquer X finito, o valor da confirmação exemplar se aproximará indefinidamente, com a acumulação da evidência, do valor que critiquei na minha discussão da teoria de Reichenbach. Vale a pena citar L. Sc. D. (seção 80, pág. 257), na medida em que a passagem se ajusta ao caso presente: “A probabilidade desta hipótese (refiro-me, de modo geral, às leis universais) seria determinada pela freqüência de verdade das pro­ posições (singulares) que correspondem a ela (isto é, de que são exemplos). Uma hipótese teria, assim, uma probabilidade de 1 / 2 se, em média, fosse contraditada por cada uma de duas afirmativas nessa seqüência (isto é, pelo segundo de cada dois exemplos)! Para escapar a essa conclusão devastadora poder-se-ia tentar dois outros expedientes”. (Um dos quais leva à probabilidade zero de todas as leis universais.)

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

sua teoria com o “devastadora” . V inte anos depois, continuo a pensar da m esma form a. b) Com sua d o u trin a de que a ciência pode dispensar as leis, C arnap re to r­ na de fato a u m a posição m uito sem elhante à que sustinha no auge do verifica cionismo (a d o u trin a de que a linguagem científica é “m olecular”), e que aban-, d o n ara em Syntax e em Testabüity. A chando que as leis naturais não são verifi­ cáveis, W ittgenstein e Schlick concluíram que não são proposições genuínas (esqüecendo-se de que estariam obrigados assim a qualificá-las de “pseudo-sentenças sem sentido” . De m odo não m uito diferente do de Mill, eles as descrevem como regras p a ra a derivação de sentenças genuínas (singulares) — os exemplos da lei —, a p a rtir de outras sentenças genuínas (as condições iniciais). Em L. Sc. D. critiquei essa d o u trin a; e quan d o C arn ap aceitou m inha crítica, em Syntax e em Testability ,69 pensei que a d o u trin a desaparecesse. Mas, com o retorno de C arnap ao verificacionismo (em form a atenuada), ela ressurgiu novam ente (tam bém de form a m ais fraca: não creio que tenha m uitas possibilidades de sobrevivência). N um ponto C arnap vai m ais longe do que Schlick. Este últim o acreditava que sem leis não poderíam os fazer previsões. C arnap, contudo, afirm a que “o uso de leis não é indispensável p ara fazer previsões” . 6970* E continua: “N ão obstante, é n atu ralm en te prático enunciar leis universais em livros sobre física, biologia, psicologia, etc. E m bora essas leis, propostas pelos cientistas, n ã o tenham um grau elevado de confirm ação” (o que considero um under-statem ent, pois o seu grau de confirm ação não poderia ser mais baixo) “apresentam um a elevada confirm ação exem plar q u alificad a... ” Ao ler esta seção do m eu trab alh o , o Dr. J. Agassi encontrou um simples (e, creio, novo) paradoxo da xonfirmaçãjp indutiva, .que me*,perm itiu citar a q u i. 71 Usou o que m e proponho ch am ar de predicado dê Agassi — um predicado fa c ­ tu al “(A) (x)” , escolhido de m odo a. aplicar-se a todos os indivíduos (eventos ou coisas) que com põem a evidência à nossa disposição, mas não à m aioria dos outros. Por exem plo: podem os escolher a definição de “A(x)” como “x ocorreu (ou foi o b ­ servado) antes de l . ° de janeiro de 1965” Uma alternativa (a alternativa de Berkeley, por assim dizer) seria: “x f o i perceb id o '\ Da teoria de C arnap infere-se que, com a acum ulação da evidência, o grau de confirm ação de “A (a)” pode tornar-se indistinguível de 1 p a ra q ualquer indivíduo a no m undo presente, passado ou futuro. O mesmo é verdadeiro p a ra a confirm ação exem plar (qualificada ou qão) da lei universal “(x)A (x)” — segundo a qual todos os eventos no m undo, presentes, passados e futuros, são anteriores a 1965, de m odo que 1965 se torna utft lim ite m á ­ xim o p a ra a d u ração do m undo. É claro que o famoso problem a cosmológico do período aproxim ado da criação pode ser tratad o com igual facilidade. No entanto, não seria prático en unciar leis universais como as de Agassi nos livros de cosmo­ logia, a despeito d a sua elevada confirm ação exem plar..

69 — Vide L. Sc. D., notas 7 e 8, seção 4; nota 1, seção 78.ÍVide também Testability, nota 20, seção 23, pág. 19. 70 — Probability, pág. 575. 7 1 — 0 Professor Nelson Goodman, a quem tinha enviado uma cópia mimeografada deste texto, teve a bondade de me informar de que precedeu o Dr. Agassi na descoberta desse paradoxo, e do que de­ nominei aqui “predicado de Agassi” (vide Goodman, N., Fact, Fiction & Forecast, 1955,. pág. 74).

À DISTINÇÃO ENTRE CIÊNCIA E MÈTAFÍSICÁ

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Nas últim as páginas de Testability, C arnap exam inou a proposição: “Se todas as m entes... desaparecessem do universo, as estrelas continuai* am no seu ru m o ” . Lewis e Schlick afirm aram , corretam ente, que essa proposição não é ve­ rificável; C arnap replicou, com igual razão (penso eu), que se tra ta de um a a fir­ m ativa científica perfeitam ente legítim a, baseada em leis universais de am pla con­ firm ação. Agora, porém , as leis universais se tornaram dispensáveis, e sem elas a afirm ativa em questão não pode ser sustentada. Além disso, depreende-se do a r ­ gum ento de Agassi que um a assertiva que a contradiz pode ser confirm ada ao m áxim o. N ão pretendo, contudo, utilizar este exemplo — relacionado com o status das leis naturais — como principal argum ento em apoio da m inha alegação de que as análises da confirm ação de C arnap, e seu critério de dem arcação, são in ad e­ quados. P roponho-me p o rtanto a oferecer como base p ara essa afirm ativa a rg u ­ mentos com pletam ente independentes do caso das leis n aturais — em bora eles nos possam perm itir um a visão mais clara do motivo por que essa inadequação deveria surgir na teoria de C a rn a p .

Como epígrafe da m inha crítica usarei a seguinte passagem de C arnap, que contém um desafio: 72 “ ... se se pudesse dem onstrar que algum outro m étodo — por exem plo, um a nova definição do grau de confirm ação — leva em certos casos a valores num éricos mais adequados do que os fornecidos por C, isso representaria um a critica im p o r­ tante. O u se alguém ... demonstrasse que qualquer explicatum adequado precisa atender a determ inado requisito, e que C não o atende, isso poderia representar o prim eiro passo no cam inho de um a m elhor solução.” Pretendo considerar aqui as duas alternativas desse desafio, invertendo co n ­ tudo a sua ordem . Em prim eiro lugar, dem onstrarei que um conceito adequado de confirm ação não pode satisfazer as regras tradicionais do cálculo de probabilidade; em seguida, apresentarei um a definição alternativa do grau de confirm ação. Finalm ente, dem onstrarei que a teoria da confirm ação de C arnap parece im plicar um regresso infinito e um a teoria apriorística da dependência m útua de todas as sentenças atom ísticas com respeito aos predicados do mesmo tipo. 1) Para com eçar, proponho distinguirm os não só entre a probabilidade lógica (probabilidade-1) e a frequência relativa (probabilidade-2), como faz C ar­ nap , mas tam bém (pelo menos) entre três conceitos diferentes — sendo o terceiro o grau de confirm ação. Seguram ente, essa sugestão inicial n a d a tem de objetável; poderíam os sem ­ pre decidir, depois da investigação devida, que a probabilidade lógica poderia ser usada como explicandum do grau de confirm ação. Infelizm ente, C arnap tem ura 72 — Probability, seção 110, pág. 563.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

A DISTINÇÃO ENTRE CIÊNCIA E METAFÍSICA

preconceito: adm ite sem q ualquer discussão que a distinção entre dois conceitos de probabilidade é suficiente, negligenciando as advertências do m eu livro. 7374 Pode-se dem onstrar que a confirm ação — como o próprio C arnap entende o term o — não pode consituir o mesmo que a probabilidade lógica. A presentarei três argum entos nesse sentido:

*

a) Podemos concordar sem dificuldade com o que cham arem os, provi­ soriam ente, de “pro b ab ilid ad e” — terá que ser algo que satisfaça as leis do cálculo de probabilidades.74

Para resum ir em poucas palavras o ponto a), diria que, um a vez que a ciên­ cia busca um conteúdo elevado, não pode ter por objetivo um a alta probabilidade. b) O rigor dos possíveis testes de um a afirm ativa ou teoria depende (entre outros fatores) da precisão das suas assertivas e do seu poder de previsão; em outras palavras, depende do seu conteúdo inform ativo (que aum enta com esses dois fa ­ tores). Isso pode ser expressado dizendo-se que o grau de testabilidade de um a afirmativa aum enta com o seu conteúdo. Q uanto m elhor um a afirm ativa pode ser tes­ tad a, m elhor poderá ser confirm ada, por meio de testes. Verificamos, assim, que as oportunidades p ara confirm ar um a afirm ativa, — e por conseguinte o grau da sua corroborabilidade ou co n firm ab ilid ad e78 aum enta com sua testabilidade e seu co n teú d o .79

Isto é suficiente p ara m ostrar que a probabilidade elevada não pode cons­ titu ir um dós objetivos da ciência, porque o cientista está particularm ente interes­ sado em teorias que têm um am plo conteúdo: não se interessa por trivialidades a l­ tam ente prováveis, mas sim por teorias ousadas, hipóteses rigorosam ente testáveis (e testadas). Se — como nos diz C arnap — um grau elevado de confirm ação é um dos objetivos da ciência, então o grau de confirm ação não pode ser identificado com a probabilidade.

Para resum ir o ponto b): um a vez que querem os um grau elevado de confir m ação (ou corroboração), precisamos de um conteúdo elevado (e, portanto, de um a baixa probabilidade absoluta).

Essa afirm ativa pode parecer paradoxal a algum as pessoas. Mas, se a alta probabilidade fosse um dos objetivos da ciência, os cientistas afirm ariam o menos possível — de preferência, só tautologias. Seu propósito, contudo, é fazer com que

c) Os que identificam a confirm ação com a probabilidade precisam aceitar que um alto grau de probabilidade é desejável e im plicitam ente aceitam a regra: “Escolha sem pre a hipótese mais provável!”

73 — L. Sc. D., antes da seção 79: “Em lugar de discutir a probabilidade de uma hipóteseidévêríamos tentar avaliar... até que ponto ela foi corroborada xou confirmada)”. Ou então a seção 82: “Isso de­ monstra que não é tanto o número de exemplos de corroboração (confirmação) que determina o grau de corroboração, mas sim o rigor dos vários testes a que foi submetida a hipótese em questão. Por sua vez, (isso) depende do grau de testabilidade... da hipótese...” E a seção 83: “Quanto mais testável uma teoria, melhor pode ser corroborada (confirmada). A testabilidade, no entanto, é o inverso... da pro­ babilidade lógica...”

4

75 — Probability, seção 53, pág. 285, bem como a seção 62, pág. 337. 76 — 0 que equivale à “condição de conteúdo”. Como Carnap considera essa condição inválida (Probability, seção 87, pág. 474, “condição de conseqüência”), na minha opinião está obrigado a aceitar que o “grau de confirmação” não pode constituir uma “função regular de confirmação”, isto é, uma probabilidade.

a ciência “pro g rid a” , quer dizer, é acrescentar ao seu conteúdo — o que signifíêa reduzir sua probabilidade. T endo em vista a extensão do conteúdo das leis n a ­ turais, não é surpreendente que sua probabilidade seja zero, nem que os filósofos que acreditam que a ciência precisa ter por objetivo probabilidades elevadas não possam reconhecer fatos como estes: a form ulação (e a experim entação) de leis universais é considerada, pela m aior parte dos cientistas, como seu objetivo mais im portante; e a testabilidade intersubjetiva da ciência depende dessas leis — con­ form e indiquei na seção 8 de L. Sc. D. Do que se disse aqui deveria ficar claro que um “grau de confirm ação” adequadam ente definido não pode satisfazer o princípio geral de m ultiplicação no que concerne às probabilidades. 77

Mais especificam ente, C arnap afirm a que o conceito de pro b ab ilid ad e-1 (lógica) satisfaz certos sistemas de axiomas — certam ente o princípio (especial) da adição e o princípio (geral) da m u ltip licação.7576* O ra, um a das conseqüências elem entares deste últim o princípio é a de que quanto mais se afirm a num a p ro ­ posição, m enor a sua probabilidade: o que se pode expressar dizendo que a p ro ­ babilidade lógica de um a afirm ativa x, a respeito de um a evidência y, dim inui à m edida que cresce o conteúdo inform ativo de x J §

74 — Numa nota em Mind, 47, 1938, pág. 275, declarei que seria “desejável elaborar um sistema de axiomas “para a probabilidade”, “de tal modo que ela pudesse ser... interpretada de qualquer uma das diferentes maneiras”, das quais “as três mais discutidas são: 1) a definição clássica, que vê a probabi­ lidade como a proporção dos casos favoráveis ou igualmente possíveis; 2) a teoria da freqüência ...; 3) a teoria lógica, que define a probabilidade como o grau de uma relação lógica entre proposições... ” (Recolhi essa classificação de L. Sc. D., seção 48, alterando a ordem). Uma classificação semelhante pode ser encontrada em Probability, pág. 24. Vale a pena comparar também a discussão sobre os ar­ gumentos da probabilidade, na minha nota de Mind, com o texto de Probability, seção 10, A & B, bem como a seção 52. Nessa nota apresentei um sistema axiomático formal independente — o qual depois disso pude simplificar bastante. Foi publicado no B. J. P. S., 6, 1955, pág. 53. (Minha nota de Mind consta agora de L. Sc. D., pág. 320.)

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O ra, pode-se dem onstrar facilm ente que essa regra corresponde ao seguinte conselho: “Escolha sempre a hipótese que avance o m enos possível, com relação à evidência disponível!” O que, por sua vez, equivale não só a: “Aceite sem pre a hipótese com conteúdo mais reduzido (dentro dos lim ites da sua tarefa — por exemplo, a tarefa de fazer previsões)!” mas tam bém a: “Escolha sem pre a hipótese que seja mais ad hocV’ É sem dúvida um a conseqüência não desejada do fato de que a hipótese mais altam ente provável é a que m elhor se ajusta aos fatos co­ nhecidos, avançando o menos possível além deles.

77 — Vide seções 4-5 da minha nota “Grau de Confirmação” L. Sc. D., pág. 396. O Dr. Y. Bar-Hillel chamou-me a atenção para o fato de que alguns dos meus exemplos foram antecipados por Carnap em Probability, seção 71, pág. 394, caso 3b. Carnap infere deles que a “condição de conteúdo” é inválida, mas deixa de inferir que todas as “funções regulares de confirmação” são inadequadas. 78 — Confirmability, corroborability e attestability. 79 — Vide L. Sc. D., a partir da seção 82.

L_______________________________________________ :—

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Sabemos, porém , que os cientistas não apreciam as hipóteses ad hoc: elas podem oferecer soluções interinas, mas não constituem objetivos reais. Os cientis­ tas preferem um a hipótese ousada porque ela pode ser testada com m aior rigor, e de form a independente. Resum irem os assim o ponto c) dizendo que adotar como objetivo a p ro ­ babilidade elevada im plica um a norm a contra-intuitiva em fa v o r das hipóteses ad hoc. Esses três argum entos ilustram m eu ponto de vista; vejo num exem plo de confirm ação o resultado de um teste rigoroso, de um a tentativa de refutação da teoria que não teve êxito. Mas os que buscam a “confirm ação”, no sentido de “verificação” (ou u m a versão atenuada), chegam a um a versão diferente da confir­ m abilidade: u m a proposição será m elhor confirm ável se for m elhor verificável, ou m ais facilm ente dedutível de afirm ativas baseadas na observação. Está claro, neste caso, que as leis universais não são altam ente confirmáveis — que, devido a seu conteúdo elevado, terão um a confirm abilidade igual a zero. 2) Ao aceitar o desafio de propor um a m elhor definição de confirm ação, quero dizer em prim eiro lugar que não creio possível oferecer um a definição com ­ pletam ente satisfatória. A razão é que um a teoria testada com m uito engenho e com um esforço sincero p a ra refutá-la terá um grau de confirm ação m aior do que um a o u tra testada de form a menos incisiva; não creio que se possa form alizar com ­ pletam ente o que entendem os por “teste engenhoso e sincero” . ( ) N ão penso tam bém que definir ad equadam ente o grau de confirm ação seja um a tarefa im p o r­ tan te. A credito que a im portância que há em encontrar a m elhor definição possível reside no fato de gue tal definição m ostra claram ente a inadequação de in terp retar as teorias da p robabilidade como teorias da indução. Em o u tra oportunidade 80 dei um a definição razoavelm ente adequada; lim itar-m e-ei aqui a definir mais sim ples­ m ente, respeitando em bora os mesmos desiderata ou condições de adequação:

P(x,y) - p(y) C(x,y) =

---------------------------------

p(y>x) - p(x.y) + p(y) (O nde “C(x,y)” significa “g rau de confirm ação de x por y”; “p (x,y)” e “p(x)” são probabilidades relativas e absolutas, respectivam ente.) A m esm a definição pode ser form ulada em termos relativos: p(y,x,z) - p (y,z) C(x,y,z) = --------- ■ ---- --------------------— p(y,x,z) - p(x.y,z) + p(y,z) (O nde z deve ser considerado como o conhecim ento contextuai genérico (a evidên­ cia já conhecida, as condições iniciais novas e antigas), incluindo, se desejarmos, as

80 -- “Grau de Confirmação”, L. Sc. D., pág. 395 e seguintes. Cp. meu comentário, na pág. 402: “Considero pouco importante a maneira pela qual se definiu, nessa fórmula, o termo C(x,y). O que pode assumir importância é a desiderata, e o fato de que podem ser satisfeitas conjuntamente”.

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teorias aceitas; y representa os resultados novos de observações (excluídos de z), que confirm am x, a nova hipótese 81 explicativa.) M inha definição satisfaz, entre outras condições de a d eq u ação 8182 834, a con­ dição de que a confirm abilidade de um a afirm ação — seu m aior grau de confir­ m ação possível — é igual ao conteúdo (isto é, ao grau de testabilidade). O utra propriedade im portante desse conceito é que ele satisfaz a condição de que a severidade dos testes (m edida pela im probabilidade do caso testado) tem um a influência quase adicional sobre o grau de confirm ação resultante da teoria. Isso dem onstra que pelo menos alguns dos requisitos intuitivos estão satisfeitos. M inha definição não exclui autom aticam ente as hipóteses ad hoc; pode-se dem onstrar, contudo, que fornece resultados mais razoáveis quando com binada com norm as que excluem tais hipóteses. 83 Já expliquei suficientem ente m inha teoria (consideravelm ente mais desenvol­ vida da que a versão apresentada em L. Sc. D .) R etornarei, agora, à tarefa p rin ­ cipal: Acredito que m inha teoria positiva sugere fortem ente que a falha está na abordagem verificacionista e indutivista que — apesar da atenção recebida pela m inha crítica — nunca foi com pletam ente aban d o n ad a por C arnap. A lógica in ­ dutiva, contudo, é impossível. Procurarei dem onstrar isso (seguindo os argum entos do L. Sc. D.) como um a últim a observação crítica. (3) Afirmei, em L. Sc. D., que a lógica indutiva im plica a) um regresso in ­ finito (descoberto por H um e), ou b) a aceitação (de acordo com K ant) de um princípio sintético como um a priori válido. T enho a forte suspeita de que a teoria de C arnap pode ser criticada por envolver (a) e (b). (a) Se precisamos, p ara justificar a indução, de um princípio de indução (provável), assim como o princípio da uniform idade da natureza, haverá neces­ sidade de um segundo princípio de mesmo caráter p ara justificar a indução do prim eiro. Em sua seção sobre as “Pressuposições da In d u ção ” ,84 C arnap introduz um princípio da uniform idade. N ão m enciona a objeção do regresso, mas um com entário que aparece na sua exposição parece indicar que ele o tinha em m ente: “Os opositores”, escreve (pág. 181), “poderiam alegar que a afirm ação sobre a 81 — Isto é, reparte-se a evidência total e entie y e z, que devem ser escolhidos de maneira a conferir em C(x,y,z) o maior valor possível para x, dentro da evidência total disponsível. 82 — Denominadas desiderata na nota em questão. Kemeny enfatizou corretamente que as condições de adequação não devem ser introduzidas para ajustar-se ao explicatiurn* O caso em questão, contudo, não é esse, o que pode ser provado pelo fato de que aprimorei minha definição (simplificando-a) sem mudar os desiderata 83 — Uma norma que exclui as hipóteses ad hoc pode aparecer da seguinte forma: a hipótese não pode repetir ($t ftão ser de maneira generalizada) a evidência, ou qualquer componente associado a ela. Em outras palavras, a afirmação x “este cisne é branco” não pode ser aceita como uma hipótese para ex­ plicar a evidência y — “este cisne é branco”, embora a afirmaçao Todo cisne é branco seja aceitável; neste sentido, nenhuma explicação x de y pode ser circular em relação a qualquer componente associado (não-redundante) de y. Isso nos leva a enfatizar a idéia de que as leis universais são indispensáveis, ao passo que Carnap acredita (vide acima e em Probability, seção 110, H. esp. pág. 575) que podemos dis­ pensar as leis universais. 84 — Probability, seção 41, F., pág. 177 e seguintes; esp. págs. 179 e 181. Quanto aos trechos do L. Sc. D., vide seção 1, pág. 28, pág. 81, e págs. 263 e seguintes.

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probabilidade da uniform idade deve ser considerada factu al... Nossa resposta é a seguinte: ...a pró p ria alegação é an alítica.” Os argum entos de C arnap não me con­ venceram , m as, como ele indica que “todo o problem a da justificação e da pres­ suposição do m étodo indutivo” será tratad o em outro volume, “em termos mais exatos e técnicos”, devo conter, a esta altura, m inha inclinação para oferecer uma, prova de que tal princípio de uniform idade não pode ser analítico (exceto no sen­ tido de “analítico” à m oda de Pickwick); a discussão do ponto (b) poderá indicar as linhas básicas dessa prova. (b) As leis naturais, ou, mais genericam ente, as teorias científicas, sejam de caráter causal ou científico, são hipóteses sobre algum a dependência. Elas afir m am , de m odo geral, que certos acontecim entos (ou as afirm ações que os descre­ vem) não independem de outros, em bora suas explicações puram ente lógicas pos­ sam ser independentes. Tom em os, por exemplo, dois fatos possíveis que à prim eira vista, não têm relação algum a entre si (digamos, “João é esperto” e “Pedro é esper­ to ”), descritos por duas afirm ativas x e y. Alguém poderia conjecturar — talvez equivocadam ente — que houvesse um a relação entre os dois fatos (por exemplo, entre João e Pedro); e que a inform ação ou evidência y aum enta com a p ro b ab i­ lidade de x. Mas, se isso não ocorre, se x e y são independentes, temos: (!)

p(»,y) = p(*)

o que equivale a: (2 )

p(x.y) = p(x)p(y) Essa é a definição costum eira da independência.

Se a conjectura de que os eventos em questão são interdependentes ou as­ sociados fosse correta, teríam os: (S)

p(*,:y) p (*)

isto é, a inform ação y eleva a probabilidade de x acim a do seu valor “absoluto” ou “inicial” p(x). A credito — como a m aior parte dos em piristas — que qualquer co n ­ jectu ra desse tipo sobre a interdependência ou a correlação de eventos, deva ser form ulada como hipótese separada, ou lei n atu ral (“a inteligência tende a se co n ­ cen trar em fam ílias”), sujeita em prim eiro lugar a um processo de form ulação cuidadosa, com o objetivo de fazê-la o mais testável que for possível — e em seguida a testes em píricos rigorosos. A opinião de C arnap é diferente. Ele propõe que aceitemos como provável o princípio de que a evidência “João é esperto” aum enta a probabilidade de “A é es­ p e rto ” p ara q ualquer indivíduo A — seja A um cão, um gato, um a m açã, um a bola de tênis ou um a catedral. Essa é um a conseqüência da definição de “grau de confirm ação” que propõe. De acordo com essa definição, quaisquer duas sentenças com o mesmo predicado (“esperto” ou “d oente”) e sujeitos diferentes são in te r­ dependentes e apresentam um a correlação positiva, não im porta quais os sujeitos e sua situação — este é o conteúdo real do princípio da uniform idade.

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Não estou absolutam ente certo de que C arnap percebeu as conseqüências da sua teoria — que não chegou a m encionar explicitam ente. Ele introduz um p a ­ râm etro universal, que denom ina À ; À + 1 é, de acordo com um simples cálculo m atem ático, a recíproca do “coeficiente de correlação lógica” 85 para quaisquer duas sentenças com o mesmo predicado e sujeitos diferentes .86 (Se o valor de A for infinito, teremos a independência total.) De acordo com C arnap, estamos obrigados a escolher um valor finito p ara À quando definimos a função da p ro b abilidade-1. A escolha de À e do grau de correlação entre duas sentenças quaisquer com o mesmo predicado parece assim parte de um a “decisão” , ou “convenção” : a escolha de um a definição da p ro b a ­ bilidade. Parece, portanto, que não há qualquer hipótese sobre o m undo im plicada na escolha de À . Mas a verdade é que nossa escolha de À corresponde à mais abrangente asserção de dependência que se poderia im aginar. Equivale à aceitação de tantas leis naturais quantos são os predicados envolvidos, cada um a das quais afirm a o mesmo grau de dependência de quaisquer dois eventos com predicados correspondentes. E como essa premissa a respeito do m undo tem a form a de um ato não testável — a introdução de um a definição — parece-m e haver aí um elem ento de apriorism o. Poder-se-ia dizer, talvez, que não há tal apriorismo porque as dependências m encionadas resultam de um a definição (da probabilidade ou do grau de confir­ m ação), baseada num a convenção ou “decisão” — sendo, p o rtanto, aaalíticas. C arnap apresenta duas razões para justificar sua escolha de um a função de confir­ m ação que não se ajusta a esse ponto de vista. A prim eira é que sua função de confirm ação é a única “que não é inteiram ente in ad e q u a d a ” 87 p ara explicar o fato indubitável de que podem os aprender com a experiência. O ra, este é um fato e m ­ pírico; um a teoria cuja adequação é avaliada pela sua capacidade de explicar ou m ostrar consistência com esse fato não parece analítica. E interessante que o a r ­ gum ento de C arnap em favor da sua escolha de A (que estou suspeitando de apriorismo) é o mesmo de K ant, Russell ou Jeffreys: é o que K ant cham ou de a r ­ gum ento “transcendental” (“Como é possível o conhecim ento?”); apelo ao fato de que possuímos conhecim ento em pírico, de que podemos aprender com a experiên­ cia. A segunda das duas razões é a de que o argum ento de C arnap de que a adoção de um valor apropriado p ara A (nem infinito — pois isso significaria a in d ep en ­ dência — nem zero) teria mais êxito em quase todos os universos (exceto nos dois casos extremos em que todos os indivíduos são independentes ou têm propriedades sem elhantes). Essas razões me sugerem que a escolha de A — istô é, de um a fu n ­ 85 — 0 “coeficiente de correlação lógica” de x e y pode ser definido como (p(xry) — p(*)p(;y)) / (p(x)p(y) p(x)p(y). Admitindo essa fórmula para todas as funções de probabilidade (“regulares”) representa ligeira generalização de uma sugestão de Kemeny e Oppenheim, “Degree of Factual Support”; Philos o f Sei., 19, pág. 314, fórmula 7, para uma função de probabilidade especial em que todas as sentenças atomísticas são (absolutamente) independentes. (Penso que essa função especial é a única adequada.) 86 — Podemos provar isso, por exemplo, tomando Methods, pág. 30, fórmula 9-8, e assumindo que s = sm = 1; w/k = c(x) = c(x) = c(y); e substituindo “c(hm, em)” por “c(x,y)”. Chegamos assim a A = c(xy) / (c(xy) — c(x)c(y)), o que mostra que 1 é a recíproca da medida da dependência, e assim 1/ ( A + 1) = (c(xy) — c(x)c(y)) / c (x)c(xy), que, como c(x) = c(x) = c(y), é o coeficiente de correlação lógica. Vale a pena comentar que prefiro o termo “dependência” x*“relevância”,, usado por Keynes e Carnap; considerando a probabilidade como uma lógica dedutiva generalizada (como Carnap), entendo a dependência probabilística como uma generalização da dependência lógica. 87 — Probability, seção 110, pág. 565; Methods, seção 18, pág. 53.

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ção de confirm ação — depende do seu êxito no m undo, ou da probabilidade desse êxito. Nesse caso, porém , não se poderia falar de um a posição analítica — a des­ peito do fato de que haveria tam bém um a “decisão” a respeito da definição a ser ad o tad a. Acho que há um a explicação p ara isso: se o quisermos, podemos definir a palavra “verdade” de m odo a que abran ja algum as afirm ativas que ordinariam ente consideram os “falsas” . Da mesma form a, podemos definir “provável” ou “confir­ m a d o ” de tal m odo que afirm ativas absurdas atinjam um a elevada probabilidade. Estamos aí num terreno puram ente convencional ou verbal — enquanto não insis­ timos em que essas definições sejam “explicações ad equadas” , quando então a questão deixa de ser convencional p ara ser analítica. De fato, dizer a respeito de um a afirm ativa factual ou contingente x que ela é verdadeira, num sentido a d e­ quado do term o “verdadeiro ”, corresponde a fazer um a assertiva factual. O ra. o mesmo acontece com “x depende fortem ente de 3;” e “x é independente de 3;” — proposições cujo destino decidimos ao escolher um valor para A . A escolha de À . p o rtan to , equivale à aceitação de um a assertiva am pla, em bora não explicitam ente form ulada, a respeito da interdependência geral ou uniform idade prevalecente no m undo. E verdade que essa assertiva é feita sem qualquer evidência em pírica. Na verdade, C arnap dem onstra 88 que sem adotá-la não poderem os jam ais aprender com a evidência em pírica (de acordo com sua teoria do conhecim ento, é claro). As­ sim, a evidência em pírica não pode vir antes da adoção de um valor finito para À . E por isso que ele precisa ser adotado a priori. Em outro co ntexto89 j C arnap escreve: “O princípio do em pirism o só pode ser violado pela asserção de um a sentença factual (sintética) sem suficiente fu n ­ dam entação em pírica ou pela tese do apriorism o, quando se pretende que não seja necessária um a base em pírica p ara apoiar determ inadas proposições factuais”. Creio que o que observamos aqui dem onstra haver um a terceira form a de violar o princípio do em pirism o: pela elaboração de um a teoria do conhecim ento.que não pode prescindir do princípio da indução — princípio que nos inform a na'verdade que o m undo é (m uito provavelm ente) um lugar onde os homens podem aprender com a experiência; e que continuará assim (m uito provavelm ente) no futuro. Não acredito que um princípio cosmológico desse tipo possa pertencer à lógica p u ra. C ontudo, ele é introduzido de form a tal que tam bém não se pode basear na ex­ periência. Parece-m e, p ortanto, que não pode deixar de ser um princípio de m etafísica apriorístic^. Só o caráter factual e sintético de À parece capaz de explicar a proposta de C arnap de que experim entem os qual o valor de A de m aior êxito no universo com que estamos lidando. Mas, como a evidência em pírica não conta antes da adoção prévia de um valor finito para A , não pode haver um procedim ento claro para testar esse valor, escolhido pelo m étodo das tentativas. M inha impressão é de que é preferível, de q ualquer form a, aplicar o m étodo das tentativas às leis universais in ­ dispensáveis p ara a ciência intersubjetiva, às quais são clara e reconhecidam ente factuais; e que podemos conseguir que sejam testáveis em condições rigorosas, para elim inar todas as teorias identificadas como errôneas. 89 88 — Probability, seção 110, pág. 556. 89 — Probability, seção 10, pág. 31.

Estou satisfeito por ter tido a oportunidade de desenvolver este assunto, ex­ pulsando-o da minha mente — ou do meu peito, como diria possivelmente um fisicalista. Não duvido que com outro período de férias no Tirol e nova escalada da Semantische Schnuppe, Carnap e eu chegaríamos a um acordo a respeito da maior parte desses pontos. Acredito que ambos pertencemos à fraternidade dos racionalistas — a sociedade daqueles que estão sempre prontos a debater, e a aprender uns com os outros. Mas, como a separação física entre nós parece insuperável, en­ vio-lhe através do oceano estas setas, com minhas mais fraternais saudações — sabendo que, dentro de não muito tempo, serei eu próprio o alvejado.

12. A Linguagem e o Problema das Relações Entre Corpo e Mente* Uma reafirmação do interacionismo 1. Introdução

Este trabalho tra ta da im possibilidade de um a teoria causal fisicalista que explique a linguagem h um ana. 1.1 Não se tra ta de um trabalho sobre análise Iingüística (a análise do em ­ prego das palavras). Com efeito, não estou de acordo, absolutam ente, com a alegação de alguns analistas da linguagem de que a fonte das dificuldades filo­ sóficas é o uso im próprio da linguagem . Não há dúvida de que algum as pessoas dizem coisas sem sentido, m as sustento: a) que não há qu alq u er m étodo lógico ou de análise Iingüística que nos perm ita identificar a falta de sentido em filosofia (a qual, por sua vez, não se lim ita aos lógicos, analistas da linguagem e especialistas em sem ântica); b) que a crença de que existe um tal m étodo — m ais especialm en­ te, a crença de que a falta de sentido da filosofia pode ser desm ascarada como um a conseqüência do que Russell cham aria de erros de tip o ” (e que hoje é às vezes denom inado de “erros de categoria”) — resulta de um a filosofia da linguagem que já se dem onstrou não ter fundam ento. 1.2 Russell acreditava originalm ente que um a fórm ula como “x é um ele­ m ento de x ” não tem sentido, essencial e intrinsecam ente. Sabemos agora que não é assim. Em bora possamos de fato elaborar um form alism o F1 (“teoria dos tipos”), em que a fórm ula em questão seja “m al-form ada” e “sem sentido”, podemos tam ­ bém construir outro sistema form al (livre), F 2 , em que a m esm a fórm ula seja “bem fo rm ad a”, provida de sentido. O fato de que um a expressão duvidosa não pode ser traduzida nu m a expressão sem sentido, dentro de um determ inado sistema F l, não prova, portanto, que não existe um sistema F2 no qual a fórm ula em questão pudesse ser convertida num a proposição com sentido. Em outras palavras, nunca podemos dizer, nos casos duvidosos, que um a certa fórm ula é carente de sentido, na acepção precisa da expressão, pois alguém pode inventar um form alism o tal que

* Publicado nos Proceedings do XI Congresso Internacional de Filosofia, 7, 1953. O assunto foi exa­ minado pela primeira vez por Karl Bühler, no leu livro Sprachtheorie, de 1934, págs. 25-28.

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perm ita enunciar a fórm ula em questão de m odo bem -form ado (segundo aquele form alism o), satisfatório p ara quem a enunciou em prim eiro lugar. O m áxim o que se pode dizer é: “N ão vejo como se possa construir esse sistema form al. 1.3 Q uanto ao problem a das relações entre corpo e m ente, desejo refutar as seguintes teses dos analistas da linguagem : 1 ) o problem a pode ser resolvido in ­ dicando que existem duas linguagens — um a física, a outra psicológica — mas não dois tipos de entidade — o corpo e a m ente: 2 ) o problem a se deve a um a form a deficiente de falar sobre a m ente — como se os estados m entais existissem além do com portam ento; na realidade, o que existe é com portam ento de caráter vário — por exem plo, inteligente e não-inteligente. 1.31 Afirmo que: 1) a solução das duas linguagens não é m ais aceitável. Procede de um “m onism o n eu tro ” : a idéia de que a física e a psicologia são dois modos cfe construir teorias, ou linguagens, a p a rtir de m aterial neutro, que é “d a d o ” ; que as afirm ativas da física e d a psicologia são (abreviadam ente) a fir­ mativas sobre esse m aterial “d ad o ” , e p o rtan to traduzíveis um as nas outras. São dois m odos de falar sobre os mesmos fatos. Mas a idéia da traduzibilidade recíproca teve que ser ab an d o n ad a há m uito tem po, desaparecendo com ela a solução das duas linguagens. Se as duas linguagens não são intertraduzíveis, isso significa que tra ta m de fatos de tipo diferente. A relação entre esses tipos de fatos constitui o nosso problem a, que só pode ser form ulado, p o rtanto, pela elaboração de um a lin ­ guagem , na qual possamos falar sobre os dois tipos de fatos.

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minism in Q uantum Physics an d in Classical Physics”, Brit. J o u m . Philos, o f Scien­ ce, 7, 1950).

2 . As quatro funções principais da linguagem.

2.1 Karl Bühler parece ter sido o prim eiro a propor em 191823a d o u trina das três funções da linguagem : 1 ) função expressiva ou sintom ática; 2 ) função es­ tim ulante ou sinalizadora; 3) função descritiva. A essas acrescentei um a q u arta função, argum entativa, que se pode distinguir da terceira. N ão quero dizer que não possa haver outras funções (prescritiva, consultiva, etc), mas sim que as quatro m encionadas constituem um a h ierarquia, no sentido de que cada um a delas pres­ supõe as que lhes são inferiores — as quais, contudo, podem existir sem as superiores.

2.2 Um argum ento, por exem plo, serve como u m a expressão n a m edida em que é um sintom a externo de algum estado interno (físico ou psicológico — isto é irrelevante) do organism o. É tam bém um sinal, pois pode provocar um a resposta, ou concordância. N a m edida em que tra ta a respeito de algum a coisa, sustentando algum ponto de vista sobre determ inada situação, é descritivo. Por fim, tem um a função argum entativa, fornecendo razões çm apoio da concepção que defende — apontando dificuldades ou mesmo inconsistências no ponto de vista alternativo. 3. Um conjunto de teses

1.32 Como a segunda tese é m uito vaga, é preciso indagar: no caso do chefede-estação, há ou não a crença de que o trem está p artindo, além do seu com por­ tam ento ao despachá-lo? Q uando ele com unica ao sinaleiro o fato da p artid a do trem , há um a intenção de fazer tal com unicação, além dos gestos apropriados? E, no que concerne ao sinaleiro, tem ele ou não compreensão da m ensagem , além do seu com portam ento inteligente ao recebê-la? Pode acontecer que o sinaleiro e n ten ­ da a m ensagem perfeitam ente, mas que, por algum a razão, se com porte como se não a tivesse com preendido? 1.321 Se a resposta a essas perguntas é afirm ativa (como acredito), então o problem a das relações entre corpo e alm a surge de form a quase cartesiana. Se a resposta for negativa, confrontam os um a teoria filosófica que poderíam os cham ar de “fisicalismo” , ou “com portam entalism o” (ou behaviourism o, do inglês behaviour, “com portam ento”). Se as perguntas não forem respondidas, mas afastadas por carentes de sentido, encontram os a crença equivocada dos positivistas de que um fato pode ser reduzido (ou é redutível) à soma da evidência que o sustenta — isto é, o dogm a do sentido pela verificabilidade . 1 Isso acontecerá especialm ente se nos disserem que ind ag ar se Pedro tem de fato um a dor de dentes, além do com ­ portam ento com que a denuncia, não tem sentido, porque só podemos conhecer sua dor de dentes através da observação da conduta de Pedro. 1.4 U m a prem issa im portante do que se disse aqui é a de que a interpre­ tação determ inista da física , m esm o da física clássica, é um a interpretação errônea; não há razões “científicas” em favor do determ inism o (Cf. m eu trab alh o “Indeter1 -V id e 4.3, adiante, e Logic o f Scientific Discovery, 1959.

3.1 O interesse fundam ental da ciência e da filosofia reside nas funções des­ critiva e argum entativa; o interesse do behaviourism o e do fisicalismo, por exemplo, só pode residir na força dos seus argum entos críticos. 3.2 Se um a pessoa de fato descreve ou argum enta — ou apenas expressa ou sinaliza — vai depender de se fala intencionalm ente sobre algum a coisa, se deliberadam ente apoia ou defende algum ponto de vista. 3.3 O com portam ento lingüístico de duas pessoas (ou d a mesm a pessoa em duas épocas diferentes) pode ser indistinguível; contudo, um a delas pode estar des­ crevendo ou argum entando e a outra só expressando (e estim ulando). 3.4 Qualquer teoria causal fisicalista sobre o com portam ento lingüístico só pode tocar as duas funções inferiores da linguagem . 3.5 Q ualquer teoria desse tipo estará obrigada assim a ignorar as diferenças entre as funções superiores e as inferiores, ou a afirm ar que as duas funções mais elevadas não passam de casos especiais das duas menos elevadas. 3.6 Isso se aplica, m ais especialm ente, a filosofias como o behaviourism o, e às filosofias que procuram defender a auto-suficiência do m undo físico — o epi-

2 —Cf. seu livro Sprachtheorie, loc. cit. 3 — Cf. cap. 4 deste livro.

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fenom enalism o, o paralelism o psicofísico, as soluções de duas linguagens, o fisicalismo e o m aterialism o (todas elas levam à m esm a dem onstração — não in ten ­ cional, sem dúvida — de que os argum entos não existem). 4.

O argum ento da m áquina.

4.1 Pode-se dizer de um term ôm etro que ele não só expressa sua situação in te rn a , m as tam bém sinaliza, ou mesmo descreve (um term ôm etro registrador Faz isso por escrito). C ontudo, não lhe atribuím os a responsabilidade pela descrição nós a atribuím os a quem fabricou o term ôm etro. P ortanto, é fácil ver que na ver­ dade ele não descreve, como a m inha caneta não descreve: é apenas um instrum en­ to p ara descrever. C ontudo, exprim e sua situação interna, e sinaliza. 4.2 A situação exposta acim a é fundam entalm ente a m esm a p ara todas as m áquinas físicas, por m ais com plicadas que sejam. 4.21 Pode-se objetar que o exem plo 4.1 é simples demais; que, se com ­ plicarm os a m áq u in a e a situação, obterem os um com portam ento genuinam ente descritivo. Vamos considerar, po rtan to , exemplos de m áquinas mais complexas. Como u m a concessão aos meus opositores, vou adm itir que se possa construir m áquinas que obedeçam a quaisquer especificações behaviouristas. 4.22 Por exem plo: um a m áq u in a (provida de lente, analisador e aparelho de fala artificial) que pronuncie o nom e de qualquer corpo de tam anho m édio que passe pela sua frente, dizendo ‘‘cão”, “g ato ” , etc.; que diga, em alguns casos, não sei” . Podemos fazer com que seu com portam ento se assemelhe mais ainda à con­ d u ta h u m an a: 1 ) só funcionando em resposta a um a pergunta-estím ulo, do tipo: “Podes dizer-m e que é isso?” ; 2) respondendo, num a certa porcentagem de casos, “Estou ficando cansada; deixe-me em paz por algum tem po”. O utras respostas podem ser introduzidas, e alteradas — quem sabe, refletindo probabilidades in ­ cluídas no seu processo de funcionam ento. 4.23 Se o com portam ento de um a m áquina como essa se aproxim ar m uito do com portam ento hum ano, poderem os acreditar, erroneam ente, que ela descreve e arg u m en ta da m esm a form a como um a pessoa, que não conheça o m ecanism o de um fonógrafo ou rádio, pode pensar que ele é capaz de descrever e de argum en­ ta r. C ontudo, u m a análise desse m ecanism o nos m ostrará que as coisas não se pas­ sam assim: o rádio não argum enta, em bora expresse e sinalize. 4.24 Em princípio, não há q ualquer diferença entre um term ôm etro e a m áq u in a de “observar” e de “descrever” que concebemos. Mesmo um hom em con­ dicionado a reagir a estímulos apropriados com os sons “cão” e “g ato ”, desde que não tenha intenção de descrever os objetos que vê não os estará descrevendo, em ­ bora expresse e sinalize. 4.25 Vamos adm itir, porém , que haja um a m áquina física cujo funciònam ento não com preendem os, e cujo com portam ento seja sem elhante ao do h o ­ m em . Podemos ficar em dúvida sobre se age ou não deliberadam ente, em vez de m ecanicam ente (casual ou probabilisticam ente) — isto é, se possui um a “m ente”. Podemos pensar, por exem plo, que devemos ter cuidado p ara evitar causar-lhe dor,

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etc. No entanto, quando aprendem os como a m áq u in a funciona, como pode ser reproduzida, quem é responsável pelo seu plano, etc., não há grau de com plexi­ dade que a fará diferente de um relógio, um piloto autom ático ou um term ôm etro. 4.3 As objeções levantadas em geral contra esta concepção, e o ponto de vista expresso em 3.3, se baseiam quase sempre na d o u trina positivista da id e n ­ tidade dos objetos que não podem ser distinguidos entre si em piricam ente. De acordo com esse argum ento, dois relógios podem assemelhar-se, em bora um deles seja m ecânico e o outro, elétrico; mas essa diferença pode ser percebida pela obser­ vação. Se não há um a diferença reconhecível, não há diferença entre eles. A res­ posta seria a seguinte: se encontrarm os duas notas de m il cruzeiros fisicam ente iguais (inclusive na sua num eração), acreditarem os que um a delas pelo menos é falsa; um a nota íàlsa não se torna verdadeira porque a falsificação é perfeita ou porque desapareceram todos os vestígios do ato de falsificá-la. 4.4 Q uando com preendem os o com portam ento causal da m áquina, p e r­ cebemos que esse com portam ento é puram ente expressivo ou sintom ático. Podemos divertir-nos continuando a fazer perguntas à m áquina, mas não discutirem os se­ riam ente com ela — a não ser que acreditem os que ela reflete os argum entos de a l­ guém , e transm ite os argum entos recebidos da volta a essa pessoa. 4.5 Creio que isso soluciona o cham ado “problem a de outras m entes” . Se falam os a outras pessoas — especialm ente se discutimos com elas — estamos a d m i­ tindo (quem sabe erroneam ente) que elas tam bém argum entam ; que falam delibe­ radam ente sobre as coisas, desejando seriam ente resolver um problem a, e nao apenas se com portando como se o estivessem resolvendo. Já se observou m uitas vezes que a linguagem é um fato social; que o solipsismo e as dúvidas sobre a exis­ tência de outras m entes se tornam contraditórios, se são form ulados em um a lin ­ guagem . Podemos agora enunciar essa idéia mais claram ente. Ao argum entar com outras pessoas (algo que nos foi ensinado por outras pessoas) — por exem plo, a res­ peito de outras m entes — não podemos deixar de atribuir-lhes intenções, ou seja, estados m entais. Não argum entam os com um term ôm etro. 5. A teoria causal da denom inação. 5.1 Mas há razões ainda mais fortes. Consideremos um a m áquina que, cada vez que vê um gato diz: “Félix”. Podemos ser tentados a dizer que ela re ­ presenta um modelo causal d a denom inação, ou d a relação nom inal. 5.2 Ocorre que esse m odelo causal é deficiente. Vamos expressá-lo afirm an ­ do que não é (e não pode ser) um a realização causal da relação nom inal. Nossa tese é que existe um a realização causal da relação nom inal. 5.21 Admitimos que a m áquina possa ser descrita como estando a realizar o que cham am os, vagam ente, de “cadeia causal ”4 de eventos, a qual liga Félix (o gato) com “Félix” (o nom e). Mas há razões pelas quais não podem os aceitar essa cadeia de causalidade como representação ou realização do relacionam ento de um a coisa com o seu nom e. 4 Para o nosso objetivo não interessa se a expressão “cadeia causal” é adequada ou não para uma análise mais profunda das relações causais.

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5.3 É ingênuo considerar essa série de acontecim entos como se começasse com o surgim ento de Félix e term inasse com a enunciação do nom e “Félix”. De fato, ela “com eça” (se é que “com eça”) com um estado em que a m áq u in a se enco n tra antes do surgim ento de Félix — em que ela está pro n ta a res­ ponder à presença de Félix. E “term in a” (se é que “term in a”) não com o enunciado de um nom e, pois há um estado posterior. (T udo isso é verdade, no que diz respeito à resposta h u m an a considerada, se for vista causalm ente.) É nossa interpretação que faz com que Félix e “Félix” sejam os extremos (ou termos) de um a cadeia causal — não a situação física objetiva. Além disso, poderíam os considerar todo o processo da reação como um nom e, ou então só os últim os sons de “Félix” — por exem plo, “ix” . P ortanto, em bora os que conhecem ou com preendem a relação nom inal possam escolher a cadeia causal como um modelo que a expressa, está claro que em si a relação nom inal não é um a relação causal, nem pode ser reali­ zada por m odelo causal. O mesmo se aplica a todas as relações “abstratas” , isto é, relações lógicas, mesmo p a ra as mais simples, de correspondência b i-unívoca. 5.4 Por conseguinte, a relação nom inal claram ente não é realizada por um m odelo associativo, ou um m odelo de reflexo condicionado, de qualquer grau de com plexidade. Ela im plica algum tipo de conhecim ento de que “Félix” é (conven­ cionalm ente) o nom e do gato Félix, bem como a intenção de usar essa palavra como um nom e. 5.5 D ar nomes é sem dúvida o caso mais simples da atividade descritiva no uso das palavras. Como não é possível realizar causalm ente a relação nom inal, tam bém não é possível qualquer teoria causal física das fu n ções descritiva e argum entativa da linguagem . 6 . Interação

6.1 É verdade que a presença de “Félix” no m eu am biente físico pode ser um a das “causas” físicas que me fazem afirm ar “Aqui está “Félix” . Mas, se afirm ar: “Se esse é o seu argum ento, então ele é contraditório”, por ter percebido isso, não houve, p a ra tan to , u m a “causa” física análoga a “Félix” ; não preciso ver ou ouvir palavras de outrem p a ra perceber que um a certa teoria (não im porta de quem ) é falsa. A analogia não é em relação a “Félix” , mas sim à m inha percepção de sua presença. (Essa percepção pode estar ligada casualm ente, mas não em termos p u ram en te físicos, à presença de “Félix”). 6.2 As relações lógicas, como a consistência, não pertencem ao m undo físico. São abstrações (“produtos da m en te” , talvez). Porém , assim como a percep ­ ção da presença de “Félix” , m inha percepção de um a inconsistência pode levar-m e a agir no m undo físico. Pode-se considerar que nossa m ente é tão capaz de ser influenciada por relações lógicas (m atem áticas ou musicais, por exem plo) do que por um a presença física. 6.3 N ão há razão (exceto por um determ inism o físico errôneo) p ara não haver interação entre estados físicos e m entais. (O velho argum ento de que coisas tão diferentes não podiam interagir era baseado num a teoria da causalidade há m uito su p erad a.)

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6.4 Se agimos por influência da percepção de um a relação abstrata, in i­ ciamos cadeias causais físicas que não apresentam antecedentes causais físicos suficientes. Somos, portanto, os causadores do “prim eiro m ovim ento”, criadores de um a “cadeia causal” física. 7. Conclusão

O temor do obscurantismo (ou de ser julgado como obscurantista) tem impedido muitos antiobscurantistas de fazer afirmações como essas. Mas esse temor, afinal, só tem produzido outra forma de obscurantismo.

13. Nota Sobre o Problema das Relações Entre Corpo e Mente* Sou m uito grato ao professor W ilfrid Sellars por ter cham ado a atenção dos filósofos (com o trabalho A N ote on P opper’s argum ent fo r Dualism, publicado em Analysis, 15, pág, 23 e seguintes), p ara o m eu ensaio Language and the Body-M ind Problem f e ainda mais por o ter qualificado de “provocante” e “sugestivo, em bora irregular” . Sou, de fato, m uito sensível a tal irregularidade e tenho consciência das dificuldades que ela origina. Dificuldades que, contudo, têm pouca relação com os dois argum entos críticos apresentados pelo professor Sellars — os quais, a m eu ver, podem ser facilm ente solucionados. I Q uanto ao prim eiro argum ento, o professor Sellars, após citar corretam ente um trecho do m eu trabalho, passa a “concentrar a aten ção ” — p a ra usar suas palavras — na m inha afirm ativa de que “...se as duas linguage/is não são traduzíveis, é porque elas lidam com dois conjuntos de fatos distintos”. Em seguida, afir­ m a que um “fato ” pode ser “descritivo” ou então algo que m e perm itiría cham ar de “quase-fato” . Afirm a, ainda, que m eu argum ento seria válido apenas se as duas lin ­ guagens em questão “tivessem a fu n çã o de descrever”, isto é, de form ular “fa to s descritivos”. Concordo com cada palavra do argum ento, m as não consigo perceber qual a sua relevância: ao concentrar a atenção em um a afirm ação, o professor, compreensivelm ente, negligenciou o contexto em que se situa. A premissa (a) que, segundo o professor Sellars, torna o m eu argum ento válido, está nitidam ente indicada no m eu próprio argum ento — o qual, p ortanto, é igualm ente válido. Além disso, m eu argum ento tem a form a de um a reductio ad absurdum da “teoria das duas linguagens” , e a prem issa corretam ente exigida pelo

* Publicada pela primeira vez em Anaíysis, N. S., 15, 1955, como resposta ao Professor Wilfrid Sellars. 1 — Incluído neste volume no cap. 12.

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NOTA SOBRE O PROBLEMA DAS RELAÇÕES ENTRE CORPO E MENTE

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

professor Sellars não é m inha, mas faz p arte dessa teoria. De fato, ela aparece em m eu argum ento como p arte da “solução m ediante duas linguagens” — a “concep­ ção de que ...as afirm ações da física e da psicologia representam ... duas m aneiras de fazer referência aos mesmos fatos (isto indica nitidam ente que tais fatos são “descritivos” , na term inologia do professor Sellars). M inha própria contribuição consistiu sim plesm ente em observar que, a p artir do m om ento em que as lin ­ guagens da física e da psicologia não traduzem entre si, nao m ais se refçrem aos mesmos fatos — o term o “fato ” representa aquilo que o teórico deseja. O problem a dos “quase-fatos” , p o rtan to , sim plesm ente não se coloca. T u d o isso pode ser verificado pela leitura mais cuidadosa do trecho do m eu trab alh o citado pelo professor Sellars: a com preensão de todo o trecho é p re ju ­ dicada quan d o o professor Sellars concentra sua atenção em apenas um a parte. N ão há, p o rtan to , um a diferença de opinião, um problem a im portante por trás do prim eiro argum ento do professor Sellars — em bora não concorde com ele no que se refere à relevância dos seus com entários. II Passemos agora ao segundo argum ento. Segundo o professor Sellars, Popper, em outras seções de seu trabalho, apresenta um a defesa sugestiva, em bora irregular, da tese de que a referência (aboutness) não pode ser definida na lin ­ guagem do behaviourism o” {o próprio professor acredita n a veracidade da tese alegada por m im ). Devo confessar que fiquei surpreso ao ler isso, pois não me lem ­ brava de haver defendido esse ponto de vista. Uma das m inhas convicções mais a n ­ tigas, de fato, é a de que a tese atrib u íd a a m im — de que certas coisas não podem ser definidas nu m a certa linguagem — é quase sempre irrelevante. (A não ser, é claro, que a tese oposta seja sobre a definibilidade. Em certos contextos* .a, definibilidade pode ser interessante; o fato de um term o não ser definível, contudo, não significa que não possa ser usado legitim am ente; ele pode ser legitim am ente usado como um term o indefinido.) N ão precisaria ler novam ente m eu trabalho p ara ter a certeza de que nunca sustentei a tese que o professor Sellars atribui a m im ; mesmo assim, reli-o e não encontrei traço algum dessa tese sobre a defini­ bilidade. P ara não deixar q ualquer dúvida, no entanto, declaro aqui publicam ente que renuncio a q ualquer teoria que porventura tenha algum dia apresentado com base na tese alegada pelo professor Sellars: ela não é falsa (concordo com o profes­ sor Sellars q uanto à sua veracidade e estou de acordo em que meus argum entos podem ser usados p a ra sustentá-la — isso talvez explique o m al-entendido); detes­ taria, contudo, a idéia de defender m inha filosofia com argum entos relativos à nãodefinibilidade. O professor Sellars afirm a, ainda, que “Popper, com certeza, tem razão em sustentar a tese que acabo de repudiar. N esta p arte, contudo, ele tacitam ente sugere m ais u m a prem issa: de que a asserção E refere-se a x é descritiva.” É difícil verificar se realm ente apresentei essa premissa, um a vez que Sellars não revela em que “p a rte ” do trab alh o se encontra — ou então se refere à tese, supostam ente m inha, que não encontro em lugar algum no m eu trabalho. (Devo

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advertir o leitor de que, entre os trechos citados por Sellars na segunda parte do seu trabalho, sete não são, como se poderia pensar, de m inha au to ria.) Se, no entanto, sugeri “tacitam ente” e de m odo inconsciente a premissa alegada pelo professor Sellars, renuncio novam ente a ela. De fato, concordo plenam ente com a tese do professor Sellars de que, se um a afirm ação A indica que um a outra afirm ação E se refere a algum a coisa, então A , de m odo geral, não tem “a mesm a função do que um a asserção do tipo “A lua é red o n d a” — p ara usar as palavras do professor Sellars. A não precisa ser (e geralm ente não é) descritiva, como acontece com a asserção sobre a lua (em bora possa aparecer assim: “Qual foi o assunto de sua últim a palestra?” — “Foi um a palestra sobre a pro b ab ilid ad e”; es­ te é um exemplo do uso descritivo.) Concordo, tam bém , inteiram ente com o últim o com entário do professor Sellars: “o fato de que a relação nom inal, nos termos do professor Popper (p a rá ­ grafo 5 e seguintes), não pode ser definida em term os “causal-fisicalistas” não nos perm ite concluir a veracidade do dualism o”. É exatam ente por isso que jam ais afir­ mei coisa algum a sobre a definibilidade. De fato, se não dispusesse de argum entos mais poderosos em favor do dualism o além desse fato com pletam ente irrelevante (acredito que seja verdadeiro, porém é insignificante), estaria pronto — até mesmo ansioso — p ara renunciar ao dualism o. Acontece que meus argum entos são m uito ^iferentes. Referem -se 2 ao objetivo possível das teorias físicas dedutivas, e não à definibilidade; m inha tese é de que “é impossível haver teorias físicas causais sobre as fu n ções descritiva e aum entativa da linguagem ”. Quero deixar claro que não faço objeção algum a à tese do professor Sellars — de que um a afirmação do tipo “£ refere-se a X ” representa (norm alm ente ou freqüentem ente) “um meio p ara transm itir ao ouvinte, usando-se um a expressão equivalente, o m odo de usar um a expressão m encionada” . T am bém não nego que essa tese seja relevante para a m inha concepção. Afirmo apenas que m inha tese não se baseia num argum ento sobre a definibilidade, como o que o professor Sellars atribui a m im . Se assim fosse, renunciaria a ela. III No trabalho do professor Sellars há um com entário sobre as idéias do professor Ryle que me parece errôneo: “concordo, tam bém , que a idéia da traduzibilidade m ú tu a d e ... expressões da m ente e do com portam ento teve que ser abondonada há m uito, apesar dos valorosos esforços em contrário do professor Ryle”. Desejo observar que jam ais tomei conhecim ento de que o professor Ryle sus­ tentasse o que denom ino de “teoria das duas linguagens”. Como poderia fazê-lo, se acredita que o problem a se origina em erros de categoria dentro de um a linguagem natural? N ão é a ele que aludi no trecho citado. Ao mesmo tem po, é verdade que eu tinha o professor Ryle em m ente q u a n ­ do, em outro parágrafo do m eu trabalho, procurei dem onstrar brevem ente que a teoria dos “erros de categoria” é tam bém insustentável. 2

Outro exemplo de uma afirmativa descritiva {about-statement) A, sobre um ar/çumento E.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

P ara som ar outro argum ento ao que já expus, farei a seguinte observação: presum indo que, pelos usos da nossa linguagem , as expressões relativas a estados físicos e as relativas a estados m entais fossem separadas em categorias diferentes, m inha inclinação seria de considerar esse fato um a indicação, ou sugestão (e não mais do que isso) de que as duas categorias definem entidades ontologicam ente diferentes — ou, em outras palavras, tipos diferentes de entidades. Chegaria, p o r­ tan to , a um a conclusão contrária à do professor Ryle, em bora as premissas sejam insuficientes p a ra a derivação form al de um a conclusão. N ão estou disposto, contudo, a adm itir a veracidade dessa suposição, que tem pouca relação com m inhas objeções, e as do professor S m art3, contra os a r ­ gum entos baseados na concepção de “erros de categoria” . Considero um a grande p arte das análises do professor Ryle m uito esclarecedora, mas é preciso observar que a linguagem ordin ária m uitas vezes tra ta os estados m entais e os físicos da m es­ m a m aneira; não só quando falam os em “doença m en tal” , em “hospital p ara do en ­ tes m entais” ou n u m hom em “física e m entalm ente equilibrado” (esses casos podem ser rejeitados, como derivações de um dualism o filosófico), m as especialm ente quando dizemos “C ontar carneiros sem pre me ajuda a adorm ecer”, ou “A novela daquele autor sem pre m e ajuda a adorm ecer” (que não significa “fixar os olhos em um a das novelas daquele autor sem pre me ajuda a adorm ecer” , m as é perfeitam ente análogo à afirm ação “tom ar um chá sem pre me ajuda a adorm ecer”). Existem inúm eros exemplos sem elhantes. C ertam ente, não indicam que as palavras da lin ­ guagem corrente que expressam estados m entais e físicos estão sempre na m esma “categoria” (o professor Ryle dem onstra, com êxito, que isso não acontece), mas sim que as palavras são usadas m uitas vezes de m aneira m uito sem elhante. A in cer­ teza da situação-linguagem pode ser ilustrada por um exem plo do professor Ryle . 4 A firm a, corretam ente, que um a criança que acaba de assistir ao desfile de todos os batalhões, baterias e esquadrões, que constituem um a divisão, com eterá em erro (pois não terá com preendido perfeitam ente o sentido das palavras) ao perguntar: “Q uando vai passar a divisão?” Segundo o professor Ryle, p ara m ostrar o seu erro, deve-se dizer à criança que, ao assistir o desfile das baterias, esquadrõesí e b a ta ­ lhões, assistia, ao mesmo tempo, ao desfile da divisão. A m archa não era um . desfile de b atalh õ es..., e um a divisão, mas sim dos batalhões... de um a divisão” . Isso é a b ­ solutam ente verdadeiro. Mas não haverá certos contextos, no uso perfeito da lin ­ guagem corrente, em que batalhões são tratados da m esm a m aneira que divisões? N ão poderia haver, por exem plo, um desfile de um a um a divisão e três batalhões e três baterias? Posso im aginar que isso seja um ultraje à tradição m ilitar (em bora o ataque de um a divisão a um batalhão seja, suponho, um uso m ilitar perfeitam ente aceitável). Será porém um ultraje ao uso ordinário da linguagem corrente? Se não for, pode-se considerar o erro com etido indubitavelm ente pela criança um erro de categoria? Não estaríam os com etendo um erro de categoria (supondo que exista tal erro), se diagnosticarm os erradam ente que o erro da criança pertence a esse mesmo grupo?

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I

4

14. Auto-Referência e Significação Na Linguagem Ordinária* Theaetetus. Preste atenção, Sócrates, pois o que vou dizer agora é bastante com plicado.

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Sócrates. Prom eto fazer o m elhor, T heaetetus, desde que me poupe os detalhes sobre suas realizações na teoria num érica e fale n um a linguagem que, como hom em com um , possa com preender. Th. A pergunta que vou propor agora é ex trao rd in ária, em bora expressa em linguagem perfeitam ente ordinária.

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S. Não é preciso cham ar atenção p ara isso: estou atento. Th. Que foi que eu disse entre suas duas interrupções, Sócrates? 5. Você disse: “A pergunta que vou propor agora é extraordinária, em ­ bora expressa em linguagem perfeitam ente o rd in ária”. Th. C om preendeu o que significa? S. Sim, é claro. Você fez referência à pergunta que pretendia propor.

I

Th. Que pergunta era essa? Pode repeti-la? S. Sua pergunta? V ejam os... ah, sim: “Que foi que eu disse entre suas duas interrupções, Sócrates?” Th. Vejo que cum priu a promessa, Sócrates: prestou atenção ao que falei. Mas, com preendeu a pergunta que acaba de citar? S. Penso que posso provar que a com preendi. De fato, não a respondi corretam ente quando foi proposta pela prim eira vez?

3 — Vide seu excelente trabalho “A Note on Categories”, em British Journal fo r the Philosophy o f Science 4, 1953, pág. 227. 4 — The Concept o f Mind, pág. 16.

Th. E verdade. Mas, você concorda que é um a pergunta extraordinária? * Publicado pela primeira vez em Mind, N. S. 63, 1954.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

S. N ão. Deve-se adm itir, T heaetetus, que não foi proposta de m aneira m uito polida, mas isso, a m eu ver, n ad a tem de extraordinário. N ão vejo n ad a de extraordinário nela. T h . Desculpe-me se fui rude, Sócrates; acredite, apenas queria ser breve, o que é im p o rtan te a esta altu ra de nossa discussão. Mas é interessante que você c o n ­ sidere a p erg u nta o rdinária (apesar da rudeza); alguns filósofos, de fato, diriam que ela é impossível — ou pelo menos que é impossível com preendê-la p ro p riam en ­ te, pois pode não significar coisa algum a.

AUTO-REFERÊNCIA E SIGNIFICAÇÃO NA LINGUAGEM ORDINÁRIA

T h. Mas, se você adm itir, como o fez, que a auto-referência indireta é a d ­ missível, ele não soluciona o paradoxo. De fato, L angford e Jourdain (e Buridan, antes deles), dem onstraram que o “M entiroso” e o “Epim ênides” podem ser form ulados pelo uso da auto-referência indireta, em lugar da direta. S. Peço que apresente essa form ulação. Th. A próxim a asserção que farei é verdadeira. S. Você não diz sem pre a verdade?

S. Por que não teria um significado?

Th. M inha últim a afirm ativa não é verdadeira.

T h. Porque, indiretam ente, ela se refere a si m esm a.

S. Q uer então abandoná-la? M uito bem , pode com eçar novam ente.

S. N ão percebo. Pelo que posso ver, sua pergunta se referia apenas à adver­ tência que você fez antes de propô-la. T h . A quê se referia m inha advertência? 5. Agora percebo o que você quer dizer. A advertência referia-se à p erg u n ­ ta, e a p erg u n ta se referia à advertência. T h. Mas você diz que com preendeu tan to a pergunta quanto a advertência. S. Com preendi tudo sem dificuldade algum a. T h . Isso parece provar que duas afirmações podem ser perfeitam ente sig­ nificativas, em bora sejam indiretam ente auto-referentes — a prim eira se refere à segunda, e a segunda à prim eira. S. Parece ser verdade. Th. E você não considera isso extraordinário? S. De m odo algum ; parece-m e óbvio. N ão vejo motivo p a ra cham ar m inha atenção p a ra um truísm o. T h . Fiz isso porque ele tem sido negado, pelo menos im plicitam ente, por m uitos filósofos. S. Realm ente? Isso me surpreende. T h . Refiro-m e aos filósofos que afirm am que não pode haver um paradoxo como o do “M entiroso” (a versão m egárica do “Epim ênides”), pois um a afirm ativa que ten h a sentido e que seja bem form ulada não pode se referir a si m esm a. S. Conheço o “Epim ênides” e o “M entiroso” , que diz: “O que afirm o agora não é verdadeiro” (e n ad a mais); considero interessante a solução que você acaba de m encionar.

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Th. Você parece não perceber o significado das m inhas duas asserções, consideradas conjuntam ente. S. Ah, agora entendo as implicações do que você dizia. T em razão: vol­ tamos ao velho “Epim ênides”. T h. A única diferença é que usei a auto-referência indireta, e não direta. A m eu ver, esse exemplo dem onstra que paradoxos como o “Epim ênides” não podem ser resolvidos por argum entos sobre a im possibilidade das asserções auto-referentes. De fato, mesmo se a auto-referência direta fosse impossível, ou desprovida de sig­ nificado, a auto-referência indireta é certam ente m uito com um . Posso, por exem ­ plo, fazer o seguinte com entário: Espero, com confiança, um a observação in teli­ gente e ap ropriada de sua p arte, Sócrates. S. Sua confiança, T heaetetus, é m uito lisonjeira. Th. Isso dem onstra como é com um encontrar um com entário que se refira a outro, o qual, por sua vez, se refere ao prim eiro. Mas, como sabemos que não podemos solucionar os paradoxos desse m odo, percebem os, tam bém , que mesmo a auto-referência direta pode aparecer de m aneira perfeitam ente aceitável. De fato, há m uito se conhece exemplos de asserções não paradoxais que são, no entanto, diretam ente auto-referentes.H á exemplos de asserções auto-referentes de caráter mais ou menos em pírico, e de asserções cuja veracidade ou falsidade pode ser definida m ediante o raciocínio lógico. S. Poderia dar um exem plo de um a asserção auto-referente em piricam ente verdadeira? T h ................................. S. Não consegui ouvir o que disse, T heaetetus. Peço que repita um pouco mais alto. M inha audição tem piorado m uito. Th. Eu disse: “estou falando tão suavemente agora que o velho Sócrates não pode m e ouvir” .

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

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S. Gosto do exem plo; não posso negar que, ao falar em voz baixa referiuse a um fato verdadeiro. T am bém não posso negar o caráter em pírico dessa ver­ dade; de fato, se eu fosse mais jovem, a afirm ação não seria verdadeira. T h. A veracidade da m inha próxim a asserção será até mesmo logicam ente dem onstrável, por um a reductio ad absurdum , por exem plo, m étodo m uito esti­ m ado por Euclides, o geôm etra. S. N ão o conheço. Suponho que você não se refere ao hom em de M egara. Mas creio que sei o que quis dizer quando se referiu à reductio. Apresente o seu teorem a. T h. O que afirm o agora tem significado. S. Se não se im p o rtar, procurarei dem onstrar seu teorem a. P ara elaborar um a reductio, com eçarei pela suposição de que sua últim a afirm ação não tem sig­ nificado. Isso, no entanto, contradiz sua afirm ação, e po rtan to im plica a falsidade dela. Se um a afirm ação é falsa, é necessariam ente significativa. Logo, .m inha suposição é absurda, e seu teorem a está provado. Th. Você com preendeu bem , Sócrates, e provou m eu teorem a, como insiste em cham á-lo. Alguns filósofos, contudo, não acreditarão em você. Dirão que m inha afirm ação (ou talvez a que você refutou, isto é: “ o que afirm o agora não tem significado”) é p aradoxal, e que, po rtan to , é possível “provar” tan to sua veracidade quanto sua falsidade. S. Já m ostrei que a suposição da veracidade da asserção “O que afirm o agora não tem significado” leva a u m a conclusão absurda. Deixe-os dem onstrar, com um argum ento sem elhante, que o mesmo acontece com a suposição d a sua fa l­ sidade (ou d a veracidade do seu teorem a). Se tiverem êxito, poderão proclam ar o caráter p aradoxal da suposição, ou sua falta de significado, assim como a do seu

AUTO-REFERÊNCIA E SIGNIFICAÇÃO NA LINGUAGEM ORDINÁRIA

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conseqüências diretas), isso será tam bém prova de que tem significado. Esta co n ­ cepção, pelo menos, parece estar de acordo com o uso ordinário, não acha? S. Sim, concordo. Th. O bviam ente, não pretendo afirm ar que não pode haver outros usos p ara a palavra “significativo”; um de meus colegas m atem áticos, por exemplo, sugeriu que só podemos considerar um a asserção “significativa”, se possuímos um a prova válida. Como conseqüência disso, no entanto, não teríam os certeza se um a conjectura como a de G oldbach — “T odo núm ero p a r (exceto 2) é a soma de dois núm eros prim os” — é significativa ou não até encontrarm os um a prova válida; além disso, mesmo a descoberta de um exemplo contrário não refutaria a conjec­ tura, mas apenas confirm aria sua carência de significado. S. Creio que essa seria um a m aneira estranha e ineficaz de usar a palavra “significativo”. Th. O utros têm sido mais liberais. A firm am que devemos considerar um a asserção “significativa” somente se existir um m étodo capaz de prová-la ou refutála. Desse m odo, um a conjectura como a de G oldbach seria significativa a p a rtir do m om ento que encontram os um exemplo contrário (ou um m étodo para construílo). C ontudo, enquanto não dispomos de um m étodo p ara prová-la ou refutá-la, não podemos saber se é ou não significativa. S. N ão me parece correto denunciar todas as conjecturas ou hipóteses como “carentes de significado” ou “sem sentido”, sim plesm ente porque ainda não sa ­ bemos como refutá-las ou prová-las. Th. O utros ainda têm sugerido que só podemos considerar um a asserção “significativa” se sabemos como descobrir sua falsidade ou veracidade, o que sig­ nifica mais ou menos o mesmo.

teorema. S. Realm ente, parece-m e sem elhante à sugestão anterior. T h. C oncordo, Sócrates; além do m ais, estou plenam ente convencido de que não terão êxito — pelo menos enquanto considerarem a “afirm ação sem sig­ nificado” algo como um a expressão form ulada de m aneira a violar as norm as gram aticais; em outras palavras, um a expressão que revele m á construção. S. Fico satisfeito em ver que você está tão seguro; mas sua confiança não será um pouco excessiva? T h. Se não se im p o rtar, adiarei a resposta a essa p ergunta por um ou dois m inutos. Desejo, em prim eiro lugar, ch am ar sua atenção p ara o fato de que mesmo se.alguém provasse que m eu teorem a (ou sua negação) é paradoxal, não conseguiria descrevê-lo como “sem significado” , no sentido m elhór e m ais apropriado da ex­ pressão. De fato, p a ra fazer isso seria necessário dem onstrar que, se supomos a veracidade do m eu teorem a (ou a falsidade de sua negação: “o que afirm o agora não tem significado”), chegamos a um resultado absurdo. A m eu ver, no entanto, essa derivação não pode ser ten tad a por alguém que não com preenda o significado do m eu teorem a (e da sua negação). Além disso, se o significado de um a afirm ação pode ser com preendido, a afirm ação tem significado; se ela tem im plicações (isto é,

Th. Se, no entanto, quando falamos num a “asserção ou pergunta signi­ ficativa”, nos referimos a um a expressão que é compreensível para qualquer pessoa que conheça as regras gram aticais, porque está form ulada de acordo com as n o r­ mas p ara a form ação de afirm ações ou perguntas naquela linguagem , creio que será possível responder corretam ente à m inha próxim a pergunta — que será, novam ente, auto-referente. 5. Deixe-me ten tar respondê-la. Th. A pergunta que estou propondo agora tem ou não um significado? S. Ela tem um significado, e isso pode ser dem onstrado. Suponham os que m inha resposta é falsa, e que a resposta “ela não tem significado” fosse verdadeira. Seria possível, nessas condições, dar um a resposta verdadeira à sua pergunta. Uma pergunta a que se pode d ar um a resposta (e verdadeira) é necessariam ente signi­ ficativa. Logo, sua pergunta é significativa, quod erat dem o n stra n d u m .

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

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T h. N ão sei onde você aprendeu tan to latim , Sócrates. Sua dem onstração, ialém dos m ais, é irrepreensível; ela é, afinal, n ad a mais do que um a versão da sua prova do que você denom ina m eu “teorem a” S. Penso que você abandonou a sugestão de que asserções auto-referentes nunca têm significado. Isso, contudo, m e entristece, pois parecia um a m aneira direta de solucionar os paradoxos.

AUTO-REFERÊNCIA E SIGNIFICAÇÃO NA LINGUAGEM ORDINÁRIA

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n ad a representa além de £ , dem onstram os, novam ente por meio de (ii) que £ é sig­ nificativo; o que conclui a reductio (incidentalm ente, como a veracidade da h i­ pótese im plica a falsidade da expressão “£ é falso” im plica tam bém nosso paradoxo original). 5. Esse é um resultado surpreendente. Um “M entiroso” que entra pela janela, quando você pensa ter-se livrado dele pela p o rta. N ão haverá, contudo, um a m aneira de elim inar esses paradoxos?

Th. N ão se entristeça: sim plesm ente não havia outra solução nesse sentido. T h. H á um a-m aneira m uito simples, Sócrates. S. Por que não? S. Qual? Th. Alguns acreditam que os paradoxos podem ser solucionados da seguin­ te m aneira: — dividimos as afirm ações em duas categorias: as expressões significa­ tivas, subdivididas em falsas e verdadeiras, e as expressões sem significado, sem sen­ tido ou im propriam ente construídas (“pseudo-afirm ações” , ou “proposições in ­ definidas” , como preferem alguns filósofos) — estas não são nem falsas nem ver­ dadeiras. A creditam que, se for possível classificar um paradoxo na terceira destas categorias exclusivas e exaustivas — afirm ativas verdadeiras, falsas e carentes de significado — o paradoxo terá sido resolvido. S. Precisam ente. Esse é o m étodo que tinha em m ente, em bora não de m aneira m uito clara; considero-o atraente. Th. Mas os que acreditam nesse m étodo não se perguntam se é possível solucionar um paradoxo, como o do “M entiroso” , tendo por base sua inclusão nes­ sas três categorias, mesmo se for possível dem onstrar que o paradoxo pertence à terceira — a das expressões sem significado. S. N ao entendo. Suponha que eles encontrem um a prova de que um a ex­ pressão do tipo “£ é falso” não tem sentido sempre que E seja o nom e dessa m esma expressão. Por que não seria possível resolver o paradoxo dessa m aneira? Th. Esse recurso não soluciona o paradoxo, apenas o m odifica. De fato, levando-se em conta a suposição de que E representa a própria afirm ação 1E é fa l­ so” , posso refu tar a hipótese de que E não tem significado, justam ente com a ajuda da classificação tríplice de expressões que descrevi. 5. Se você está certo, um a prova da hipótese “£ não tem qualquer signi­ ficado” levaria, de fato, a um a nova afirm ação, passível de ser dem onstrada ou refu tad a. Em outras palavras, chegaríam os a um novo paradoxo. Mas, como você refu taria a hipótese “£ não tem significado”? Th. Por meio de nova reductio. De m aneira geral, encontram os duas n o r­ mas em nossa classificação: (i) a p a rtir da veracidade da afirm ação “X não tem sig­ nificado” podem os derivar a falsidade das expressões “X é verdadeiro” (a que nos interessa) e “X é falso” ; (ii) a p artir da falsidade de qualquer expressão Y, podemos concluir que Y tem significado. Segundo essas norm as, percebem os que a p artir da veracidade d a hipótese “£ não tem significado” podemos derivar, por meio de (i), a falsidade da expressão “£ é falso” ; podemos ainda concluir, por meio de (ii), que a afirm ação “£ é falso” é significativa. C ontudo, um a vez que a expressão “£ é falso’

Th. P ara a linguagem e os propósitos ordinários, ela parece suficiente e bastante segura. De q u alquer m odo, já que os paradoxos, como vimos, podem ser elaborados de m odo compreensível n a linguagem ord in ária, não h á n a d a mais que possa ser feito na linguagem ordinária. S. Mas não poderíam os estabelecer um a norm a que indique, por exemplo, que todo tipo de auto-referência deve ser evitado, elim inando, p o rtan to , os p a ­ radoxos da nossa linguagem? Th. Podemos ten tar fazer isso (em bora criando novas dificuldades). C on­ tudo, um a linguagem em que estabelecemos esse tipo de norm a deixará de ser or ­ dinária; norm as artificiais geram linguagens artificiais. Nossa discussão não d e ­ m onstrou que a auto-referência indireta, pelo menos, é bastante com um ? 5. Uma linguagem artificial, contudo, seria ap ro p riad a p ara a m atem ática, não? Th. C ertam ente; p ara construir um a linguagem com norm as artificiais que, se propriam ente elaborada, seria denom inada “linguagem form alizada”, devemos tom ar por base o fato de que há paradoxos na linguagem ordinária. S. Suponho que você estabelecería, p ara sua linguagem form alizada, a :n o rm a de que todo tipo de auto-referência deve ser estritam ente excluído. Th. Não. Podemos evitar os paradoxos sem recorrer a tais m edidas d rás­ ticas. S. Você considera isso drástico? Th. São m edidas drásticas porque, quando im postas, excluem alguns usos m uito interessantes da auto-referência, especialm ente o m étodo de Godel p ara a elaboração de afirmações auto-referentes, que tem aplicações no cam po que mais me interessa: a teoria num érica. Além disso, são drásticas tendo-se em vista que Tarski dem onstrou que, em qualquer linguagem consistente — cham em o-la L —

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

os predicados “verdadeiro em L ” e “falso em L ” não podem ocorrer (ao contrário do que acontece com “significativo em L ” e “sem significado em L ”); além do m ais, sem predicados desse tipo é impossível form ular paradoxos com o o “Epim ênides” ou o paradoxo de Grelling, sobre os adjetivos heterológicos. Este fato sugere que não há n eç^sid ad e de evitar os paradoxos na-.elaboração de linguagens form alizadas. S. Q uem são todos esses m atem áticos que você citou? T eodoro nunca falou neles. Th. São bárbaros, Sócrates, m as m uito capazes. O cham ado “m étodo de aritm etização” de Godel é especialm ente interessante no contexto da nossa discus­ são.

15. Que é a Dialética?* 1.

A d ia lé tic a explicada

S. Mais u m a auto-referência, um tan to ordinária. Estou ficando m uito sen­ sível . Th. O m étodo de Godel serve p ara traduzir certas asserções da linguagem o rd in ária em linguagem aritm ética; elas se transform am , por assim dizer, num código aritm ético; acontece que, entre as asserções que podem ser assim codifi­ cadas, encontra-se a que você descreveu como o m eu teorem a. Para ser mais exato, a asserção que pode ser transform ada no código aritm ético de C*Õdel é a expressão auto-referente “esta expressão é um a fórm ula bem fo rm ad a” ; onde, obviam ente, “fórm ula bem fo rm ad a” está no lugar da palavra “significativa” . Como você se lem bra, eu estava im buído de certeza (ao seu ver um tan to excessiva) de que m eu teorem a não poderia sei refutado. A razão disso era simplesm ente que, quando traduzido p ara o código de Godel, ele se transform a num teorem a aritm ético. Pode ser dem onstrado, e sua negação refu tad a. Se alguém tivesse êxito em refu tar m eu teorem a com um argum ento válido (talvez m ediante prova sem elhante à que você apresentou) — derivando, por exem plo, um a afirm ação absurda a p a rtir da su ­ posição de que m eu teorem a é falso — esse argum ento seria usado p ara dem onstrar o mesmo em relação ao teorem a aritm ético correspondente; como isso nos fo r­ neceria im ediatam ente um m étodo de provar: “0 = 1 ” creio que tenho bons m o ­ tivos p ara acred itar que m eu teorem a não pode ser refutado.

“N ão há n ad a tão absurdo ou incrível que já não tenha sido afirm ado por algum filósofo.” Descartes A observação da epígrafe pode ser generalizada; ela se aplica não só aos filósofos e à filosofia , mas a todo o cam po do pensam ento e das realizações da hum anidade — à ciência, tecnologia, engenharia e política. N a verdade, a ten d ên ­ cia p ara tudo tentar, sugerida pela epígrafe, pode ser percebida num âm bito ainda mais am plo — na estupenda variedade de formas e aparências que a vida produziu no nosso planeta. Para explicar por que o pensam ento hum ano tende a experim entar todas as soluções concebíveis p ara qualquer problem a, podemos apelar p ara um tipo de regularidade m uito genérico. O m étodo com o qual se busca um a solução é g eralm ente o mesmo: o m étodo das tentativas, dos erros e acertos — que é, fun d am en ­ talm ente, o mesmo usado pelos organismos no seu processo de adaptação. Está claro que o êxito desse m étodo depende em larga m edida do núm ero e variedade das tentativas: quanto m ais tentarm os, m ais provável será o êxito de um a das te n ­ tativas.

S. Você poderia explicar o m étodo de CrÒdel sem recorrer a termos técnicos? Th. N ão h á necessidade, pois isso já foi feito antes — não antes d a d ata suposta deste nosso diálogo (por volta de 400 a.C .), m as antes que ele seja escrito, o que só acontecerá dentro de 2.350 anos.S . S. Estou chocado, T heaetetus, com estas suas últim as afirm ações autoreferentes. Você fala como se fôssemos atores recitando um a peça. Esse é um tru q u e que alguns autores consideram engenhoso, o que não se pode dizer de suas vítimas; de qualq u er m odo, não penso assim. Mas, ainda pior do que qualquer gracejo auto-referente é esta sua cronologia absurda e totalm ente sem sentido. Seriam ente, é preciso p a ra r em algum ponto, T heaetetus — e vou p a ra r aqui. T h. O ra, Sócrates, que im portância tem a cronologia r as idéias são intem porais. S. C uidado com a m etafísica, Theaetetus!

Podemos descrever o m étodo em pregado no desenvolvimento do pensam ento hum ano — em especial d a filosofia — como um a variante especial do m étodo das tentativas. Os hom ens parecem inclinar-se a reagir aos problem as propondo a l­ gum a teoria, e apegando-se a ela enquanto podem (se é um erro, podem chegar a preferir a m orte à sua rejeição), 1 ou então atacando-a, quando percebem sua fraqueza. *1 * Trabalho apresentado num seminário de filosofia do Canterbury University College, Christchurch, Nova Zelândia, em 1937. Publicado pela primeira vez em Mind, N.S., 49, 1940. 1 — A atitude dogmática de aderir a uma teoria enquanto é possível é muito significativa. Sem ela nun­ ca poderíamos descobrir o que existe numa teoria — precisaríamos abandoná-la antes de ter tido uma oportunidade real de verificar sua Força; em consequência, nenhuma teoria poderia jamais funcionar no sentido da ordenação do mundo, preparando-nos para eventos futuros, chamando nossa atenção para acontecimentos que de outro modo nunca observaríamos.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Essa lu ta de ideologias, obviam ente explicável em term os do m étodo das tentativas, parece característica de tudo o que m erece o nom e de desenvolvimento do pensam ento hum ano. Os xasos em que ela não ocorre são, quase sem pre, aqueles em que u m a certa teoria ou sistema é m an tid a dogm aticam ente du ran te um longo período; mas encontrarem os poucos exemplos (se é que vamos encontrar algum ) de um desenvolvimento do pensam ento que seja lento, regular e contínuo, m anifestando-se por graus sucessivos de aperfeiçoam ento em lugar de um a série de tentativas e um a lu ta de ideologias. Q uando o m étodo dos erros e acertos é desenvolvido de form a mais ou m enos.consciente, ele com eça a assum ir as características do “m étodo científico”2, que pode ser descrito assim: diante de um problem a, o cientista propõe, te n ta ti­ vam ente, um tipo de solução — um a teoria. Essa teoria é aceita provisoriam ente: característico do m étodo científico é o fato de que os cientistas farão todos os es­ forços p a ra criticar e testar suas teorias. A crítica e os testes se com plem entam : a teoria é criticad a de m uitos ângulos diferentes p ara evidenciar seus aspectos vul­ neráveis. E a experim entação de um a teoria im plica ã exposição desses pontos vulneráveis a um exam e tão rigoroso q uanto possível. Aí tam bém temos um a v a­ riante do m étodo das tentativas: as teorias são propostas tentativam ente e expe­ rim entadas. Se o resultado da experim entação dem onstra o erro da teoria, ela é elim inada. O seu êxito vai depender principalm ente de três condições — que um núm ero suficiente de teorias (engenhosas) sejam propostas; que essas teorias sejam bastante variadas; e que testes rigorosos sejam aplicados. Deste m odo poderem os, com sorte, assegurar a sobrevivência “d arw iniana” das teorias mais aptas, pela elim inação das menos capazes. Se aceitarm os como mais ou menos correta 3 essa descrição do processo de desenvolvimento do pensam ento hum ano — e do pensam ento científico em p a r ­ ticular — ela nos aju d ará a com preender o que querem dizer os que alegam que o desenvolvimento do pensam ento se processa de acordo com linhas “dialéticas”. N a acepção m o d ern a 4* — isto é, de m odo especial no sentido com qújp' Hegel em pregou o term o —, a dialética é a teoria que sustenta que algo — neste caso, o pensam ento — se desenvolve seguindo o que poderíam os cham ar de tríade d ia ­ lética: a tese, a antítese e a síntese. Surge prim eiro um a idéia, teoria ou movimento que denom inam os “tese” ; em conseqüência haverá um a oposição porque, como a m aior p arte das coisas nesse m undo, a tese terá valor lim itado, apresentando alguns pontos de fraqueza. A idéia (ou m ovim ento) de oposição é a cham ada “antítese” , dirigida con tra a tese. A luta entre a tese e a antítese continuará até alcançar-se a l­ gum a solução que, num certo sentido, avance além da tese e da antítese, reco­

2 — Não se trata de um método, propriamente, no sentido de que, uma vez aplicado, levará com cer­ teza ao êxito; na verdade, nessa acepção não existe um “método científico”. 3 — Encontraremos em L. Sc. D. um exame mais completo do assunto. 4 — A expressão grega “hé dialektiké” poderia ser traduzida por “(a arte do) uso argumentativo da lin­ guagem”. Essa acepção do termo remonta a Platão; mas mesmo nesse filósofo notamos uma variedade de sentidos. Pelo menos um desses sentidos mais antigos aproxima-se muito do que descrevi como “método científico”, tendo sido empregado para descrever o método de elaboração de teorias explicativas e da discussão crítica dessas teorias, inclusive a questão de saber se podem explicar as observações empíricas — ou seja, usando a antiga terminologia, se podem “respeitar as aparências”.

QUE É A DIALÉTICA?

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nhecendo o m érito de cada um a e procurando preservá-lo, ao mesmo tem po em que evite as respectivas limitações. Essa solução — o terceiro passo no processo dialético — é a cham ada síntese. U m a vez alcançada, pode tornar-se por sua vez a prim eira etapa de nova tríade, se a síntese em questão for só parcialm ente satis­ fatória — neste caso surgirá nova oposição, passando a síntese a constituir um a outra tese. Repetir-se-á a tríade num nível mais elevado, podendo alcançar um te r­ ceiro nível, quando se chegar à segunda síntese . 5 É inegável que a “tríade dialética” descreve m uito bem certos aspectos d a história do pensam ento, o desenvolvimento de algum as idéias e teorias, bem como de determ inados movimentos sociais baseados em idéias ou teorias. Esse desenvol­ vim ento dialético pode ser “explicado”, m ostrando-se que se realiza de acordo com o m étodo das tentativas que já discutimos. E preciso adm itir, porém , que não é exatam ente a m esma coisa que o desenvolvimento (descrito acim a) de um a teoria pelo m étodo das tentativas. Nossa descrição original daquele m étodo só tratava com um a única idéia e a crítica correspondente; ou seja, p a ra usar a term inologia dos dialéticos, com a luta entre a tese e a antítese. Sugerimos apenas que a luta e n ­ tre um a idéia e sua crítica — entre a tese e a respectiva antítese — levaria à e li­ m inação da tese (ou, talvez, da antítese), caso esta não fosse satisfatória; e que a com petição entre as teorias só nos levará à adoção de novas teorias se houver um núm ero suficiente de teorias propostas e sujeitas à experim entação. Assim, a interpretação em termos do m étodo das tentativas pode ser con­ siderada ligeiram ente mais am pla do que a que é feita em term os dialéticos: não se lim ita à situação em que um a única tese é proposta originalm ente e pode ser aplicada sem dificuldade a situações em que desde o princípio um certo núm ero de diferentes teses são oferecidas, independentem ente — e não apenas de m odo tal que caracterize um a oposição recíproca. É fato, porém , que com m uita freqüência (talvez até ordinariam ente) o desenvolvimento de um ram o do pensam ento hum ano com eça com um a só idéia. Nessas condições, o esquem a dialético poderá ser aplicado porque a tese inicial estará sujeita a crítica, podendo, desse m odo, “produzir” — como dizem os dialéticos — sua antítese. A ênfase dos dialéticos im plica um outro ponto em que a dialética pode diferir um pouco da teoria geral dos erros e acertos, a qual se contenta em dizer que um a concepção satisfatória deve ser rejeitada ou elim inada. Com efeito, os dialéticos insistem em que h á mais do que isso a ser dito, acentuando que, em bora a teoria ou ponto de vista em consideração possa ter sido refutado, haverá provavel­ m ente um elem ento em que seja digno de preservação — de outro m odo, não teria sido provavelm ente proposto e exam inado com seriedade. Esse elem ento valioso da tese deverá ser acentuado m ais claram ente pelos que a defendem contra os ataques dos seus opositores, os aderentes da antítese. Dessa form a, a única solução satis­ fatória p ara a luta será um a síntese, isto é, um a teoria que preserve os melhores pontos da tese e da antítese.

5 — Na terminologia de Hegel, tanto a tese quanto a antítese são reduzidas, pela síntese, a componen­ tes, e portanto canceladas (negadas, anuladas, afastadas); ao mesmo tempo, são preservadas (guar­ dadas) e elevadas (a um nível superior). Hegel aproveita a. ambiguidade da palavra alemã “aufgehoben”, empregando-a no sentido de reduzida a componentes, cancelada, preservada e elevada.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Somos forçados a adm itir que essa interpretação dialética da história do pensam ento pode às vezes ser m uito satisfatória, acrescentando alguns detalhes valiosos à in terp retação em termos do m étodo das tentativas. Tom em os, por exemplo, o desenvolvimento da física. Podemos encontrar numerosos exemplos que se ajustam ao esquem a dialético — como a teoria corpus­ cular da luz que, depois de ter sido substituída pela teoria ondulatória, foi “preser­ v ad a” pela nova teoria (“sintética”) que substituiu as duas anteriores. Em termos mais precisos, norm alm ente as velhas fórm ulas podem ser descritas, do ponto de vista das fórm ulas inovadoras, como aproximações: isto é, parecem quase corretas, de m odo que podem ser aplicadas sem pre que não exigimos um a grande exatidão ou mesmo, dentro de certos campos lim itados, como fórm ulas perfeitas. T u d o isso se pode dizer em favor do ponto de vista dialético. C ontudo, precisamos ter o cuidado de não fazer concessões excessivas. Precisamos ter cuidado, por exemplo, com o núm ero de m etáforas e m ­ pregadas pelos dialéticos — infelizmente m uitas vezes tom adas dem asiadam ente a sério. Um exem plo seria a afirm ativa dialética de que a tese “p roduz” sua antítese. Na verdade, é nossa atitude crítica que produz a antítese; quando falta essa atitude crítica, o que acontece com m uita freqüência, não haverá a criação de nenhum a antítese. Do mesmo m odo, precisamos ter cuidado em não acreditar que há um a “lu ta ” entre a tese e a antítese, que “produza” a síntese. Essa luta é um com bate de m entes, que precisam produzir novas idéias: há m uitos exemplos de lutas fúteis na história do pensam ento hum ano — lutas que não tiveram nenhum a utilidade. Mes­ mo q uando se alcança um a síntese, dizer que ela “preserva” os melhores aspectos da tese e da antítese constitui quase sempre um a descrição m uito crua da síntese: um a descrição enganosa mesmo quando verdadeira, já que, além das velhas idéias “preservadas” , a síntese conterá sem pre algum a nova idéia irredutível às etapas iniciais do desenvolvimento. Em outras palavras, a síntese será, ordinariam ente, mais do que um a construção feita com m ateriais fornecidos pela tese e pela a n ­ títese. Considerando tudo isso, a interpretação dialética, mesmo quando aplkável, raram en te será de grande valor p ara desenvolver o pensam ento com a sugestão de que se elabore um a síntese com as idéias contidas na tese e na antítese. Esse, aliás, é um ponto que os próprios dialéticos têm acentuado; contudo, eles quase sempre presum em que a dialética pode ser utilizada como um a técnica que os ajude a prom over — ou pelo menos a prever — o futuro progresso das idéias. As mais im portantes confusões e incompreensões resultam , porém , da form a pouco precisa como os dialéticos se referem às contradições.

QUE É A DIALÉTICA?

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crítica, não haveria motivos racionais para alterar nossas teorias — em conseqüência, deixaria de haver progresso intelectual. Depois de observar corretam ente, que as contradições — em especial a con­ tradição entre a tese e antítese, que “produz” o progresso sob a form a de um a sín­ tese — são extrem am ente férteis, constituindo as forças que im pulsionam o p ro ­ gresso do pensam ento, os dialéticos concluem — erradam ente, como veremos — que não é necessário evitar essas férteis contradições. E chegam mesmo a afirm ar que as contradições não podem ser evitadas. Essa afirm ação representa um ataque à cham ada “lei da contradição” (ou à “lei da exclusão das contradições”) da lógica tradicional, a qual afirm a que duas proposições contraditórias não podem ser am bas verdadeiras; que um a afirm ativa que consista na conjunção de duas afirm ativas contraditórias deve sem pre ser rejeitada como falsa, num a base puram ente lógica. A pelando p ara o caráter frutífero das contradições, os dialéticos preconizam o abandono dessa lei da lógica tradicional, alegando que a dialética leva a um a nova lógica — a lógica dialética. Desse m odo, a dialética, que apresentei aqui como um a d o utrina histórica — um a teoria do desenvolvimento histórico do pensam ento — passaria a ser ao mesmo tem po um a teoria lógica e (como veremos) um a interpretação geral do m undo. T rata-se de um a pretensão vastíssima, sem o m enor fundam ento, que se baseia na verdade apenas num a linguagem vaga. Os dialéticos afirm am que as contradições são férteis e produzem progresso — o que adm itim os como verdade, num certo sentido. Isso só é verdade, porém , enquanto temos a determ inação de aceitar qualquer contradição, m odificando as teorias que sejam contraditórias; em outras palavras, en quanto não estivermos dis­ postos a aceitar qualquer contradição: é essa determ inação que faz com que nossa crítica (isto é, a indicação de contradições) nos leva a m u d ar nossas teorias, e p o r­ tanto a progredir. M uito im portante é o fato de que, se m udarm os de atitude e passarmos a aceitar as contradições, elas perderão im ediatam ente sua fertilidade e deixarão de provocar o progresso intelectual. De fato, se estivéssemos preparados p ara conviver com as contradições, o caráter contraditório das nossas teorias não nos induziria mais a alterá-las. Em outras palavras, toda a crítica (que consiste em identificar contradições) perderia sua força. Q ualquer crítica seria respondida por um “Por que não?” — ou talvez mesmo pela acolhida entusiástica das contradições que nos fossem apontadas. Isso significa que se quisermos aceitar as contradições, a crítica — e com ela todo o progresso intelectual — chegará ao fim .

Eles observam , corretam ente, que as contradições têm m aior im portância na história do pensam ento — im portância tão grande quanto a da crítica. De fato, criticar consiste invariavelm ente em apo n tar contradições: dentro da teoria c ri­ ticada; entre a teoria e algum a outra que aceitamos; ou ainda entre a teoria c ri­ ticada e determ inados fatos — mais precisam ente, entre a teoria e certas afir­ m ativas sobre fatos. A crítica nunca pode fazer mais do que ap o n tar tais c o n tra ­ dições ou, possivelroente, apenas contradizer a teoria (isto é: pode ser simplesmente a afirm ativa da antítese). C ontudo, num sentido m uito im portante, a crítica é o m otor principal de q u alquer desenvolvimento intelectual. Sem contradições, e sem

Precisamos portanto dizer aos dialéticos que ou eles se interessam pelo caráter fértil das contradições sem contudo aceitá-las ou devem preparar-se para aceitá-las — caso em que serão pouco produtivas, tornando impossível a crítica racional, o debate e o progresso intelectual. A única “força” a im pulsionar o desenvolvimento dialético é, por conseguin­ te, nossa determ inação de não aceitar a contradição entre a tese e a antítese. Não

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

há n en h u m a força m isteriosa nessas duas idéias que se opõem ; nenhum a tensão m isteriosa entre elas que leve ao desenvolvimento — é exclusivamente nossa decisão de não ad m itir a contradição que nos faz buscar um outro ponto de vista, o qual nos pode perm itir evitá-la. Essa resolução é inteiram ente justificada. Pode-se dem onstrar facilm ente que se aceitássemos as contradições, teríam os que a b a n ­ don ar toda a atividade científica:chegaríam os a um a desarticulação com pleta da ciência. É o que se prova dem onstrando que, se adm itim os duas afirmativas con­ traditórias, precisamos adm itir tam bém qualquer outra afirm ativa ; de duas a fir­ m ativas contraditórias, podemos inferir validam ente qualquer o u tra afirm ativa. N em sem pre se percebe isso6 — d aí a necessidade de explicá-lo aqui. T rata-se de um dos poucos fatos da lógica elem entar que não são exatam ente triviais, m erecendo ser conhecido e com preendido por todas as pessoas que desejam pensar com p ropriedade. É um ponto que pode ser explicado facilm ente aos lei­ tores capazes de acom panhar o em prego de símbolos sem elhantes aos da m a te ­ m ática; mesmo aqueles que não gostam desses símbolos poderão com preender a explicação, desde que tenham a paciência de dedicar alguns m inutos a segui-la. A inferência lógica se faz de acordo com determ inadas regras de inferência; será válida se a regra que utilizar for válida. E um a regra de inferência só será válida se nunca levar de premissas verdadeiras a um a falsa conclusão; em outras palavras, deverá sem pre transm itir a verdade das premissas p ara a conclusão. Precisarem os aqui de duas regras de inferência. P ara explicar a prim eira e mais difícil, introduzim os a idéia da afirm ativa composta — isto é, de um a afir­ m ativa do tipo «Sócrates é sábio e Pedro é rei»; ou: «Ou Sócrates é sábio ou Pedro é rei”; ou ainda: “Sócrates é sábio e /o u Pedro é rei”. As duas afirm ativas (“Sócrates é sábio” e “Pedro é rei”) são denom inadas afirm ativas componentes.

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1) De pm a premissa p (por exem plo: “Sócrates é sábio”), pode-se deduzir validam ente qualquèr conclusão do tipo “p v q ” (por exem plo: “Sócrates é sábio v Pedro é rei”). Se lem brarm os o sentido de ‘V ’, perceberem os logo que essa regra deve ser válida. Com efeito, aquele símbolo serve p ara construir um a afirm ativa composta que é verdadeira sem pre que pelo menos um dos seus com ponentes for verdadeiro. Assim, nossa regra nunca levará de um a premissa verdadeira p ara um a conclusão falsa — o que significa que é válida. A despeito da sua validade, porém , nossa prim eira regra de inferência parece estranha àqueles que não estão acostum ados a essas coisas. De fato, é um a regra raram ente utilizada na vida diária, já que a conclusão, no caso, contém m uito menos inform ação do que a premissa. Ela é usada às vezes quando apos­ tamos. Assim, posso lan çar um a m oeda duas vezes, apostando que haverá pelo menos um a “coroa” . Isso corresponde a apostar na veracidade da afirm ativa com ­ posta: “Coroa da prim eira vez v coroa da segunda vez”. A probabilidade de que es­ sa afirm ativa seja respaldada pelos fatos é de 3 /4 (de acordo com os cálculos h a ­ bituais); difere, assim, dà aposta “coroa da prim eira vez ou coroa da segunda vez (mas não das duas vezes)” , cuja probabilidade é 1/2. Todos dirão que ganharei a aposta se der coroa da prim eira vez — em outras palavras, que a afirm ativa com ­ posta em que estava apostando seria verdadeira se o seu prim eiro com ponente fosse verdadeiro; o que dem onstra que estamos obedecendo à prim eira regra da inferên­ cia. Podemos tam bém enunciar nossa prim eira regra da seguinte form a: P p ^q

H á um tipo de afirm ativa com posta que nos interessa aqui — a que é cons­ tru íd a de tal form a que só é verdadeira se pelo menos um dos seus com ponentes fo r verdadeiro. A feia expressão “e /o u ” tem precisam ente o efeito de produzir tal com ­ posição: a afirm ativa “Sócrates é sábio e /o u Pedro é rei” só será verdadeira se pelo menos um dos com ponentes for verdadeiro; será falsa, se os dois com ponentes forem falsos. Os lógicos costum am substituir a expressão e /o u pelo símbolo “v”, usando letras como “p ” e “q ” p a ra representar q ualquer afirm ativa. Podemos dizer, assim, que u m a proposição do tipo “p v q ” será verdadeira se pelo menos um dos seus com ponentes — p ou q — for verdadeiro. Estamos agora em condições de enunciar nossa prim eira regra de inferência, da seguinte form a:

6 — Vide, por exemplo, H. Jeffreys, “The Nature of Mathematics” Philosophy o f Science, 5, 1938, 449: “E duvidoso que uma contradição implique qualquer proposição”. Vide também a resposta de Jeffreys a minha crítica em Mind, 51, 90, bem como minha réplica em Mind, 52, 1943, 47. Consulte-se igualmen­ te L. Sc. D., nota 2, seção 23. O assunto era bastante conhecido de Duns Scotus, conforme mostrou Jan Lukasiewicz, em Erkenntnis, 5, pág. 124.

(que poderíam os in terp retar assim: da premissa p, chegam os à conclusão p t / q ) . A segunda regra de inferência que vou em pregar é mais fam iliar. Se d e ­ notarm os a negáção de p por “não-p”, poderemos form ulá-la da seguinte form a: não-p P v q

q (que poderia ser interpretado assim: das duas premissas não-p e p v q, chegamos à conclusão q). A validade dessa regra pode ser dem onstrada se considerarm os que não-p é um a afirm ativa que só é verdadeira se p for falsa. Deste m odo, se a prim eira premissa não-p for verdadeira, então o prim eiro com ponente da segunda premissa será falso; se as duas premissas forem verdadeiras, o segundo com ponente da se­ gunda premissa será verdadeiro. Isto é: se as duas premissas forem verdadeiras, o segundo com ponente da segunda premissa será necessariam ente verdadeiro. O que quer dizer que q será verdadeira sempre que as duas premissas forem verdadeiras.

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R aciocinando que se não-p for verdadeira, p será falsa, pode-se dizer que em pregam os im plicitam ente a “lei d a contradição” — a qual afirm a que não-p e p não podem ser am bas verdadeiras ao mesmo tem po. P ortanto, se neste m om ento quisesse arg u m en tar em favor da contradição, precisaria ter m uito cuidado. O que pretendo, porém , é p ro cu rar dem onstrar que, em pregando regras válidas de in ­ fe rê n c ia , podem os inferir de duas premissas contraditórias qualquer conclusão que quisermos. De fato, com nossas duas regras, podemos dem onstrar isso. Vamos adm itir duas premissas contraditórias. Por exemplo:

A despeito da estranheza que pode causar, e do fato de que alguns filósofos não a aceitaram , não há dúvida de que essa regra é válida, pois leva infalivelm ente a um a conclusão verdadeira, sempre que as premissas são verdadeiras. Isso é óbvio, e trivial; na verdade, é justam ente essa trivialidade que faz com que a regra pareça redundante na linguagem ordinária. Mas redundância não quer dizer invalidade.

Além dessa regra 3), precisarem os um a outra regra que denom inei “regra da redução in d ireta” (porque na teoria clássica do silogismo ela é utilizada im plici­ tam ente p a ra a redução indireta, das figuras “im perfeitas” p a ra a figura “p e rfe ita ”, ou básica). Vamos adm itir um silogismo válido, como:

a) O Sol está b rilhando neste m om ento.

a) Todos os homens são m ortais.

b) O Sol não está brilhando neste m om ento.

b) Todos o$ atenienses são homens. Dessas duas premissas, podem os inferir qualquer proposição — por exem ­ plo: “César foi um tra id o r” . De fato, da prim eira prem issa (a), podem os inferir, de acordo com a regra 1 ), a seguinte conclusão: c) “O Sol está brilh an d o neste m om ento v César foi um tra id o r”.

c) Todos os atenienses são m ortais. O ra, a regra da redução indireta diz: a a não-c 4) se é um a inferência válida, então ------ tam bém é um a inferência válida. c não-b

T o m an d o b) e c) como premissas, podemos deduzir, de acordo com a regra 2 ):

Por exemplo: devido à validade da inferência de c) das premissas a) e b) verificamos que:

d) “César foi um tra id o r”.

а) Todos os homens são m ortais,

Está claro que com o mesmo processo poderíam os inferir qualquer outra afirm ativa. Por exem plo, “César não foi um tra id o r”. Podemos inferir, por exem ­ plo, “2 + 2 = 5 ” e “2 + 2 £ 5 ” — não só q u alquer afirm ativa que quisermos, mas as respectivas negações. Vemos p o rtan to que se um a teoria contém um a contradição, ela im plica tudo — por conseguinte, nad a. Uma teoria que acrescenta a toda inform ação que afirm a sua respectiva negação não nos inform ará n ad a. Assim, um a teoria que implicá um a contradição é inteiram ente inútil como teoria. T endo em vista a im portância tarei agora algum as outras regras de Diversam ente do que aconteceu com agora form am p arte da teoria clássica exam inarem os em prim eiro lugar.

da situação lógica que analisam os, apresen­ inferência que levam ao mesmo resultado. a regra 1), as regras que vamos exam inar do silogismo, exceção feita da regra 3), que

3) De duas premissas quaisquer, p e q, podemos derivar um a conclusão idêntica a um a delas — p; ou seja, esquem aticam ente: P

q P

não-c) Alguns atenienses são nãorm ortais não-b) Alguns atenienses são não-hom ens é tam bém válido. A regra que vamos usar corresponde a um a ligeira variante da que aca­ bam os de e n u n c ia r; é a seguinte;

válida.

3 não-c 5) Se não-b é um a inferência válida, e n tã o ------ é tam bém um a inferência c b

A regra 5) pode ser obtida, por exemplo, da regra 4), ju n tam en te com a lei da dupla negação que nos afirm a que de não-não b podem os deduzir b. O ra, se a regra 5) é válida p a ra qualquer afirm ativa a, b, c que escolhermos (e só então será válida) será tam bém necessariam ente válida no caso de c ser idêntico a a, isto é, a seguinte proposição precisará ser válida: a a б ) Se ferência válida.

— for um a inferência válida, então naQ a será tam bém um a in ­ h7

7 — 0 exemplo notável é G.E. Moore.

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a Sabemos porém de 3) que

é de fato um a inferência válida. Assim, 6) e a 3), em conjunto, dão como resultado que: a 7) e b.

Ilao a é um a inferência válida, o que quer que afirm em as proposições a b

No en tan to , 7) afirm a exatam ente o que queríam os dem onstrar — que, de duas premissas contraditórias, podemos deduzir qualquer conclusão. Pode-se levantar a questão de saber se essa situação ocorre em qualquer sis­ tem a lógico ou se podem os construir um a lógica em que afirm ativas contraditórias não im pliquem q u alquer conclusão. Examinei esse assunto, para concluir que é possível elab o rar um a tal lógica — a qual, contudo, seria m uito fraca: poucas das regras ordinárias de inferência perm aneceriam de pé, desaparecendo até mesmo o m odus ponens segundo o qual de um a proposição do tipo “se p , então q \ ju n ta m e n ­ te com p , podemos inferir q. N a m inha opinião, um sistema como esse° não teria n e ­ n h u m a utilidade p ara derivar inferências, em bora pudesse apresentar algum interes­ se p ara aqueles que se interessam especialm ente pela construção de sistemas formais. Afirma-se algum as vezes que o fato de que podemos deduzir tudo o que quisermos de duas proposições contraditórias não dem onstra a inutilidade de um a teoria contraditória: em prim eiro lugar, essa teoria pode ser interessante em si m es­ m a, ainda que co n traditória; em segundo lugar, poderá ser corrigida, de m odo a tornar-se consistente; por fim , poderem os desenvolver um m étodo, em bora de caráter ad hoc (como os m étodos usados na teoria quântica p ara evitar divergên­ cias) que nos im peça de chegar às falsas conclusões im plicadas logicam ente pela teoria. T u d o isso é verdade: mas um a teoria artificiosa desse tipo im plicaria os perigos que já indicam os; se quisermos seriam ente aceitá-la, n ad a nos levará a p ro cu rar um a teoria m elhor. E vice-versa: se procuram os um a teoria m elhor, o fazemos por acred itar que a teoria que descrevemos é m á, devido às contradições que apresenta. A aceitação de contradições leva neste caso, como sem pre, ao fim da crítica e p o rtan to ao colapso da ciência. Vê-se aqui que perigo de usar linguagem vaga e m etafórica. A assertiva dialética de que as contradições não podem ser evitadas e de que é mesmo desejável não evitá-las, devido à sua fertilidade, é pouco exata e perigosam ente enganosa. Com efeito, o que podem os in terp retar como a “fertilidade” das contradições é sim plesm ente o resultado da nossa decisão de não aceitá-las (atitude coerente com a lei da contradição). O perigo está em que, ao dizer que as contradições não podem ser evitadas, ou até mesmo que não seria desejável evitá-las, estamos recom endando a desarticulação da ciência, da crítica, de toda a racionalidade. Isso deveria deixar 8

8 O sistema aludido é o “cálculo intuicionista dual”. Vide meu trabalho “On the Theory of Deduction I and 11”, Proc. o f the R oyal Dutch A cadem y, 51, 2 e 3, 1948. O Dr. Joseph Kalman Cohen desen­ volveu esse sistema com algum pormenor. Proponho uma interpretação simples desse cálculo: todas as afirmativas podem ser interpretadas como proposições modais, afirmando possibilidades. De “p é pos­ sível” e “se p, então é possível”, não podemos de fato derivar “q é possível” (uma vez que, se p é falso, então q poderá ser uma afirmativa impossível). Da mesma forma, de “p é possível” e “não-p é possível” clara­ mente não podemos deduzir a possibilidade de todas as afirmativas.

Q U E É A D IA L É T IC A ?

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d a ro que quem quer prom over a verdade e a elucidação da realidade sente a necessidade — e tem o dever — de adquirir treinam ento ma arte de expressar-se com clareza, sem am bigüidade, ainda que isso signifique o abandono de certas m etáforas atraentes, e de jogos de duplo sentido inteligentes. É aconselhável, portanto, evitar certos tipos de form ulação. Por exemplo: em lugar da term inologia que usamos ao falar em tese, antítese e síntese, os dialéticos descrevem, m uitas vezes, a tríade dialética, usando o term o “negação” (da tese) em vez de “antítese” ; e “negação da negação” , em vez de “síntese” . Por outro lado, preferem falar em “contradição” quando term os como “conflito” ou “tendências opostas” (ou ainda “interesses opostos”) seriam m ais adequados. Essa term inologia não seria m aléfica se os termos “negação”, “negação da negação” e “contradição” não tivessem um sentido lógico bem definido, diferente da sua acep ­ ção dialética. N a verdade, o uso equívoco desses term os contribuiu consideravel­ m ente p ara a confusão entre lógica e dialética que se nota com ta n ta freqüência nas discussões dos dialéticos. É m uito com um que eles considerem a dialética como um a parte — a m elhor p arte — da lógica; ou então algo como um a lógica refor­ m ada e m odernizada. Exam inarem os m ais adiante as razões m ais profundas dessa atitude. No m om ento, lim itar-m e-ei a dizer que nossa análise não leva à conclusão de que há qualquer sem elhança entre a lógica e a dialética. A lógica pode ser des­ crita — em term os m uito rústicos, talvez porém adequadam ente com vistas ao nos­ so objetivo — como a teoria da dedução. O ra, não há motivo p ara dizer que a dialética tem algo que ver com a dedução. Em resumo, podemos descrever assim a dialética — no sentido em que podemos in terp retar com clareza a tríade dialética —: a dialética ou, mais p re ­ cisam ente, a teoria da tríade dialética, sustenta que certos desenvolvimentos ou processos históricos se desenrolam de form a típica. T rata-se, portanto, de um a teoria em pírica e descritiva, com parável. por exemplo, à teoria que afirm a que a m aior parte dos organism os vivos aum entam de tam an ho du ran te um a certa fase do seu desenvolvimento, p a ra depois perm anecer do mesmo tam anho e finalm ente decrescer até a m orte. O u então com a teoria segundo a qual as opiniões são m antidas a princípio dogm aticam ente, depois com ceticismo e por fim, n um a terceira etap a, com espírito crítico — isto é, científico. Da m esm a form a que essas teorias, a dialética não pode ser aplicada sem algumas exceções — a não ser que forcemos a interpretação dialética; como elas, a dialética não tem qualquer afinidade especial com a lógica. A natureza vaga da dialética é outro perigo: ela facilita a interpretação dialética forçada de qualquer coisa. Encontram os, por exem plo, um a interpretação dialética que identifica a sem ente do m ilho com a tese; a p lan ta com a antítese; e as sementes desenvolvidas na p lanta com a síntese. E óbvio que esse tipo de in te r­ pretação expande ainda mais o sentido já m uito am plo da tríade dialética, de m odo a au m entar perigosam ente a sua generalidade. Chega-se a um ponto em que, ao descrever um desenvolvimento como dialético, não dizemos senão que se trata de desenvolvimento em fases — o que não é dizer m uito. Mas in terp retar esse desen­ volvimento afirm ando que a germ inação da p lanta é a negação da semente (porque esta deixa de existir quando a p lan ta começa a crescer) e que a produção de um certo núm ero de sementes pela plan ta constitui a negação da negação — um novo início do processo dialético, em nível mais elevado — é sim plesm ente brincar com

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palavras. (Será por isso que Engels disse, a respeito desse exem plo, que ele pode ser com preendido pelas crianças?) Os exemplos que os dialéticos costum am apresentar, colhidos no cam po da m atem ática, são ainda piores. P ara citar um deles, que é famoso, em pregado por Engels n a form a breve que lhe deu H ecker,9 “A lei da síntese su p erio r... é usada ordin ariam en te na m atem ática. Um valor negativo ( a) m ultiplicado por si mesmo se transform a em a 2 — isto é, a negação da negação chegou a um a nova síntese”. C ontudo, mesmo que admitíssemos que a fosse a tese e -a sua antítese ou negação, deveríam os esperar que a negação da negação fosse — ( a), quer dizer, a; o que não representaria um a síntese “superior” , m ais sim idêntica à tese original. Em outras palavras, por que motivo se obteria a síntese pela simples m ultiplicação da antítese por si mesma? Por que não, por exem plo, som ando a tese com a antítese (o que teria como resultado O) ? Ou então m ultiplicando tese e antítese (o que daria -a2, em vez de cfi)l Por outro lado, em que sentido cfi é “superior” a a ou -a ? C er­ tam ente não no sentido de ser num ericam ente m aior, pois se a = 1/2, então cfi = 1/4. O exem plo m ostra a extrem a arbitraried ad e com que as idéias vagas da dialética são aplicadas. U m a teoria como a lógica pode ser cham ada de “fu n d am en tal”; com isso querem os dizer que, como é um a teoria a respeito de todos os tipos de inferências, é usada todo o tem po por todas as ciências. Podemos dizer que, na acepção em que podem os aplicá-la razoavelm ente, a dialética não é um a teoria fundam ental, m as sim apenas descritiva. Por isso é tão pouco adequado considerá-la um a parte da lógica, ou oposta à lógica, como seria dizer o mesmo da teoria da evolução, por exem plo. Só o m odo de falar am bíguo e vagam ente m etafórico que criticam os pode fazer com que a dialética pareça ao mesmo tem po um a teoria que descreve certos desenvolvimentos típicos e um a teoria fundam ental como é a lógica. De tudo isso parece claro que devemos ter o m aior cuidado ao usar o term o “d ialético” . O m elhor seria, talvez, não usá-lo nunca — podem os sem pre em pregar a term inologia mais clara do m étodo das tentativas. Devemos ab rir um a exceção só q u ando não é possível haver q ualquer equívoco; quando confrontam os um desen­ volvimento de teorias que se processa efetivam ente de acordo com as linhas de um a tríade. 2. A dialética hegeliana. Até aqui procurei apresentar os contornos da idéia da dialética de um m odo que, espero, possa torná-la inteligível; procurei, por outro lado, não ser injusto a respeito dos seus m éritos. Nesse esboço a dialética foi apresentada como um a form a de descrever desenvolvimentos — um m étodo entre outros, não de im portância fu n d am en tal, mas que pode às vezes ser bastante apropriado. Em contraste, Hegel e seus discípulos, por exem plo, propuseram um a teoria da dialética que exagera seu significado e que é perigosam ente enganosa. P ara to rn ar inteligível a dialética de Hegel será útil fazer um a breve refe­ rência a um dos capítulos da história do pensam ento filosófico — a m eu ver, um capítulo não m uito válido.9

9 — Hecker, Moscow Dialogues, Londres, 1936, pág. 99. O exemplo aparece no Anti-D ühring.

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N a história da filosofia m oderna há um tem a de grande im portância, que é a luta entre o racionalism o cartesiano (arraigado especialm ente no continente europeu) e o em pirism o (sobretudo inglês). A afirm ativa de Descartes que usei como epígrafe neste trabalho não foi feita pelo autor com o propósito com que a utilizei aqui. Descartes não quis dizer que a m ente h u m an a precisa fazer todas as tentativas possíveis p ara chegar a algum a solução útil; seu objetivo foi criticar hos­ tilm ente os que ousam ten tar tais absurdos. O que Descartes tinha em m ente — a idéia principal por trás das suas palavras — era a observação de que o filósofo ver­ dadeiro deveria evitar cuidadosam ente as idéias absurdas e tolas. P ara encontrar a verdade ele só precisaria aceitar aquelas raras idéias que apelam p ara a razão em virtude d a sua lucidez, o caráter claro e distinto que a to rn am , de fato, “evidentes”. A concepção cartesiana é a de que podemos elaborar teorias científicas explicativas sem qualquer referência à experiência, fazendo uso apenas d a razão; toda p ro ­ posição razoável (isto é, que se recom ende pela lucidez) deve ser um a descrição ver­ dadeira dos fatos. Em poucas palavras, essa é a teoria que conhecemos, na história do pensam ento filosófico, com o “racionalism o” (“intelectualism o” seria um m elhor nome). Pode ser sum arizada, usando um a form ulação m uito posterior, de Hegel, nas palavras: “O que é razoável deve ser real”. Opõe-se a essa teoria o em pirism o, p ara o qual só a experiência nos perm ite decidir a respeito da verdade ou falsidade de um a teoria científica. De acordo com o em pirism o, o raciocínio puro não pode dem onstrar a verdade factual; precisamos em pregar p ara isso a observação e a experim entação. Pode-se dizer com segurança que, de um m odo ou de outro, o em pirism o (em bora talvez em form a m odificada, mais m odesta) é hoje a única interpretação do m étodo científico levada a sério. A luta entre os prim eiros racionalistas e em piristas foi discutida am plam ente por K ant, que tentou propor o que um dialético (mas não o próprio K ant) descreveria como um a síntese das duas concepções opostas — m ais precisam ente, um a form a m odificado do em pirism o. Seu objetivo principal era rejeitar o racionalism o puro. N a Crítica da Razão Pura ele afirm ou que o escopo do nosso conhecim ento está lim itado pelo cam po da experiência possível; que o raciocínio especulativo que ex­ cedesse esse cam po (a tentativa de form ular um sistema metafísico a p a rtir da razão pura) não teria justificação. Essa crítica da razão p u ra foi sentida como um golpe terrível nas esperanças de quase todos os filósofos do continente; m as os filósofos alemães conseguiram recuperar-se e, não tendo sido convencidos pela rejeição k an ­ tiana da m etafísica, apressaram -se a construir novos sistemas metafísicos baseados na “intuição intelectual” . P rocuraram utilizar certas características do sistema de K ant, esperando assim evadir o aspecto mais forte da sua crítica. A Escola que se desenvolveu então, conhecida geralm ente como o idealism o alem ão, culm inou com H egel. H á dois aspectos da filosofia de Hegel que precisam os exam inar: o idealismo e a dialética. Em ambos Hegel foi influenciado pelas idéias de K ant, mas quis ir mais adiante. Para com preender Hegel precisamos, p o rtan to , m ostrar como sua teoria utilizou as idéias recebidas de K ant. O ponto de p artid a de K ant foi a observação de que a ciência existe. Ele pretendeu explicar esse fato, e responder à pergunta: “Como é possível a ciência?” . Ou: “Como pode nossa m ente com preender o m undo?” . É o que cham aríam os de problem a epistemológico.

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Seu raciocínio foi mais ou menos o seguinte: a m ente h u m an a pode perceber o m undo, ou m elhor, o m undo como ele aparece p a ra nós, devido ao fato de que não existe u m a diferença fundam ental entre ele e a m e n te : o m undo se assemelha à m ente. Isto acontece porque, no processo de alcançar conhecim ento sobre o m undo a m ente está, por assim dizer, digerindo ativam ente todo o m aterial que nela p e ­ n etra por m eio dos sentidos. A m ente m odela esse m aterial: m arca-o com suas for m as ou leis específicas — as form as ou leis do nosso pensam ento. O que cham am os de “n atu re z a ” — o m undo em que vivemos, a realidade conform e ela aparece a nossos sentidos — é um m undo “digerido”, form ado pela nossa m ente. Ao ser assim i­ lado pela m ente, ele se assemelha à m ente. A resposta de que “a m ente pode perceber o m undo porque o m undo, con­ form e ap arece p a ra nós, é sem elhante à m ente” é um argum ento idealista; de fato, o idealismo afirm a justam ente que o m undo tem o mesmo caráter da m ente. N ão pretendo arg u m en tar aqui em favor da epistem ologia k antiana ou co n ­ tra ela; não pretendo tam bém exam iná-la em detalhe. Q uero porém indicar que ela não é com pletam ente idealista: como o próprio K ant adm ite, é um a m istura (ou síntese) de um a certa form a de realismo com um determ inado tipo de realismo. Seu elem ento idealista consiste na assertiva de que o m undo, conform e aparece p a ra nós, é um m aterial form ado pela nossa m ente; o elem ento idealista é a a fir­ m ativa de que é um m aterial fo rm a d o pela nossa m ente. Antes de continuar, deixando a epistemologia abstrata e engenhosa de K ant p ara falar a respeito de Hegel, quero solicitar aos meus leitores prediletos: os que não são filósofos, aqueles que se acostum aram a usar o bom senso, que considerem bem a frase que escolhi como epígrafe. Isso porque o que lhes vou dizer agora provavelm ente lhes parecerá — a m eu ver justificadam ente — absurdo. Como já disse, Hegel avançou mais no seu idealismo do que K ant. Ele ta m ­ bém se preocupou com a questão epistemológica. (“Como é que nossa m ente pode perceber o m undo?”) Como os outros idealistas, sua resposta foi: “Pdrque o m u n ­ do é sem elhante à m en te” . Sua teoria, porém , era m ais radical do que a de K ant. Ele não disse, como K ant, que “a m ente digere ou form a o m u n d o ” , mais sim que “a m ente é o m u n d o ” . O u, form ulado em outras palavras: “o razoável é o real; a realidade e a razão são idênticas” . Nisso consiste a cham ada “filosofia da identidade da razão e da realidade” , de Hegel — sua “filosofia da id entidade” , como é conhecida. Note-se, de. passagem, que entre a resposta epistemológica de Kant e a filosofia da identidade de Hegel houve, historicam ente, um a ponte: a resposta de Fichte, p ara quem “...a m ente cria o m u n d o ” . 10 A filosofia da identidade de Hegel (“O que é razoável é real; o que é real é razoável; po rtan to , a razão e a realidade são idênticas”) foi, sem dúvida, um a te n ­ tativa de restabelecer o racionalism o sobre nova base. Perm itiu ao filósofo elaborar um a teoria do m undo a p a rtir do puro raciocínio, e sustentar que se tratava de um a

10 Essa resposta não chegou a ser original, porque Kant já a tinha considerado naturalmente.

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teoria verdadeira sobre o m undo real. Perm itiu assim, exatam ente, o que Kant tinha declarado impossível. Hegel, portanto, não podia deixar de refutar os a r ­ gum entos de K ant contra a m etafísica, o que fez com a ajuda da dialética. P ara com preender sua dialética, precisamos reto rn ar a K ant. Com o o b ­ jetivo de evitar excesso de detalhes, não vou exam inar aqui a construção triádica da tabela de categorias de K ant — em bora ela indubitavelm ente tenha servido de ins­ piração a Hegel. H Preciso referir-m e, porém , ao m étodo kantiano de rejeição do racionalism o. Já m encionei que K ant sustentava que o escopo do nosso conheci­ m ento está lim itado ao cam po da experiência possível, e que o raciocínio puro além desse cam po não pode ser justificado. N um a seção da Crítica que tem o título de “Dialética transcendental” , o filósofo mostrou que se tentarm os construir um sis­ tem a teórico com a razão p u ra — por exemplo, se argum entarm os que o m undo em que vivemos é infinito (idéia que excede obviam ente a experiência possível) — veremos que será sempre possível encontrar argum entos análogos que levem à con­ clusão oposta. Em outras palavras, podemos sempre form ular e defender a antítese exata de qualquer tese m etafísica desse gênero. Para cada argum ento em apoio da tese, encontrarem os um argum ento oposto em favor da antítese. Os dois argum en­ tos terão sempre força e poder de convencim ento sem elhantes — parecerão igualm ente razoáveis, ou quase. P ortanto, disse K ant, a razão está condenada a a r ­ gum entar contra si mesm a, e a contradizer-se, sem pre que for usada além do cam ­ po da experiência possível. Se tivesse que elaborar um a reconstrução m oderna ou reinterpretação de K ant, afastando-m e da concepção que tinha o filósofo sobre sua própria filosofia, diria que K ant dem onstrou que o princípio m etafísico da razoabilidade ou evidên­ cia não leva inequivocam ente a um só resultado, a um a só teoria. E sem pre possível argum entar, de form a aparentem ente razoável, em defesa de diferentes teorias — e até mesmo de teorias opostas. P ortanto, se a experiência não nos assistir, se não puderm os fazer experiências ou observações que nos ajudem pelo menos a elim inar certas teorias — aquelas que, em bora pareçam razoáveis, contrariam os fatos o b ­ servados —, então perderem os todas as esperanças de escolher entre teorias con­ flitantes. De que form a pôde Hegel vencer a refutação k antiana do racionalismo? Muito sim plesm ente, alegando que as contradições não são im portantes. Elas não podem deixar de ocorrer no desenvolvimento do pensam ento da razão e dem ons­ tram a insuficiência de um a teoria que não leva em conta o fato de que o pensa­ m ento, isto é, a razão — e com ela (de acordo com a filosofia da identidade) a realidade — não é algo fixo, mas está em processo; que vivemos num m undo em evolução. Segundo Hegel, K ant refutou a m etafísica, mas não o racionalismo. O que Hegel cham a de “m etafísica”, em oposição à “dialética” , é só o sistema racionalista que não leva em conta a evolução, o m ovim ento, o desenvolvimento, e que p o rtanto tenta conceber a realidade como algo estável, estático, livre de con­ tradições. Com sua filosofia da identidade, Hegel infere que como a razão p ro ­ gride, o m undo tam bém deve progredir; como o desenvolvimento do pensam ento ou razão é dialético, o m undo tam bém se desenvolve seguindo as tríades dialéticas.

rejeitando-a,

11 — MacTaggart apresenta este argumento no seu interessante livro, Studies in Hegelian Dialectic.

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QUE É A DIALÉTICA?

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E ncontram os portan to os seguintes elementos na dialética de H egel: a) Um a tentativa de evadir a refutação do que K ant denom inou de “dog­ m atism o” , no cam po da m etafísica. Essa refutação é considerada por Hegel aplicável som ente aos sistemas que são metafísicos no sentido mais estreito, mas não ao racionalism o dialético, que leva em conta o desenvolvimento da razão e p o rtanto não tem e as contradições. Ao te n ta r escapar deste m odo da crítica de K ant, Hegel em barca n u m a aventura perigosa, que deve conduzir ao desastre, argum entando m ais ou m enos assim: “K ant refutou o racionalism o alegando que ele conduz a contradições. De acordo. Mas está claro que esse argum ento retira sua força d a lei da contradição: só refuta os sistemas na m edida em que aceitam aquela lei, isto é, na m edida em que procuram livrar-se de contradições. É um argum ento que não oferece perigo a um sistema como o m eu, de caráter dialético, que está pronto a conviver com contradições” . Evidentem ente, esse argum ento propõe um a form a de dogm atism o extrem am ente perigosa — um dogm atism o que não precisa mais tem er q u alq u er tipo de ataque. De fato, qualquer ataque, qualquer crítica de qualq u er teoria, precisará basear-se no m étodo que consiste em identificar co n ­ tradições ou dentro da teoria ou entre esta e os fatos. O m étodo com que Hegel responde a K ant é excessivo: assegura seu sistema contra qualquer tipo de crítica ou de ataque; é dogm ático num sentido m uito peculiar — por isso deveria cham á-lo de “dogm atism o reforçado” . (Pode-se observar que dogm atism os sem elhantes, as­ sim reforçados, ajudam a sustentar as estruturas de outros sistemas dogm áticos.) b) A descrição do desenvolvimento da razão, em termos dialéticos, é um elem ento da filosofia de Hegel que teve considerável plausibilidade. Isso fica claro q uando nos lem bram os de que Hegel em prega o term o “razão” não só no sentido subjetivo, p a ra d enotar um a certa capacidade m ental, m as tam bém no sentido o b ­ jetivo, p a ra indicar todos os tipos de teorias, pensam entos, idéias etc. Hegel con­ sidera a filosofia a mais elevada expressão do raciocínio; o que ele tem em m ente, sobretudo, ao falar do desenvolvimento do raciocínio, é o desenvolvimento do p e n ­ sam ento filosófico. De fato, não há cam po onde a dialética pode ser aplicada com m ais sucesso do que no estudo do desenvolvimento das teorias filosóficas; não su r­ preende, po rtan to , que o esforço mais exitoso de aplicação do m étodo dialético pelo filósofo tenha sido a interpretação da história da filosofia. P ara com preenderm os bem o perigo representado por tal sucesso, p reci­ saremos recordar que na época de Hegel — e mesmo m uito mais tarde — a lógica era geralm ente descrita e definida como a teoria do raciocínio ou do pensam ento; as leis fundam entais da lógica eram cham adas ordinariam ente de “leis do p e n ­ sam ento” . É m uito compreesível, p o rtan to , que Hegel, acreditando que a d ia ­ lética fosse um a descrição real do nosso processo de raciocínio e de pensam ento, considerasse necessário alterar a lógica, de m odo que a dialética passasse a ser um a p arte im p o rtan te — talvez a mais im portante — da teoria lógica. Isso tornou necessária a rejeição da “lei da contradição”, que era sem dúvida um sério obs­ táculo à aceitação da dialética. Surpreendem os aí a origem da concepção de que a dialética é “fu n d am en tal” — no sentido de que pode com petir com a lógica, de que é um aperfeiçoam ento da lógica. Já critiquei esse entendim ento da dialética; quero reiterar que qualq u er tipo de raciocínio lógico, anterior ou posterior a Hegel, no cam po da ciência, da m atem ática ou de qualquer filosofia genuinam ente racional, se baseia sem pre na lei da contradição. Contudo, Hegel escreve (Lógica, seção 81 (1): “E da m aior im portância verificar e com preender corretam ente a natureza da

dialética. Em toda a p arte onde existe m ovim ento, onde há vida, onde algo se efetiva no m undo real, a dialética está em ação. Ela é tam bém a alm a de todo conhecim ento vèrdadeiram ente científico” . C ontudo, se por “raciocínio dialético” 'H egel quer dizer um raciocínio que contrarie a lei da contradição, não poderia encontrar um só exem plo em toda a ciência. Os muitos exemplos citados pelos dialéticos são, todos eles, do mesmo nível da referência de Engels à sem ente, a (-a)^ = cfi, e outros ainda piores. Não é o raciocínio científico que se baseia na dialética; a história e o desenvolvimento das teorias científicas é que podem ser descritos em term os dialéticos. Como vimos, isso não pode justificar a aceitação da dialética como algo fundam ental, porque podemos explicá-lo sem ab an d o n ar o reino da lógica ord in ária, lem brando o fu n ­ cionam ento do m étodo das tentativas. O m aior perigo dessa confusão da dialética e d a lógica é, como vimos, o fato de que ela leva as pessoas a argum entarem dogm aticam ente. M uitas vezes vemos os dialéticos, ao en fren tar dificuldades lógicas, atacar seus opositores alegan­ do que todas as suas críticas estão equivocadas porque se baseiam na lógica o r­ dinária e não na dialética; se usassem a dialética, veríam que as contradições que acusam em certos argum entos dos dialéticos são legítim as (do ponto de vista da própria dialética). c) Um terceiro elem ento da dialética hegeliana se baseia na filosofia da identidade. Se a razão e a realidade são idênticas, e a razão se desenvolve dialeticam ente, como o progresso do pensam ento filosófico exem plifica tão bem , a realidade tam bém se deve desenvolver dialeticam ente: o m undo deve obedecer às leis da lógica dialética (esta concepção já foi ch am ada de “panlogism o”). Assinr, encontrarem os no m undo as mesmas contradições aceitas pela lógica dialética. E justam ente o fato de que o m undo está cheio de contradições que nos m ostra, de um ângulo diferente, que precisamos rejeitar a lei da contradição. Essa lei im plica que a contradição não pode ocorrer na natureza, no m undo dos fatos; que os fatos não podem contradizer-se. C ontudo, na base da filosofia da identidade da razão e da realidade, afirma-se que os fatos podem en trar em contradição, um a vez que as idéias podem contradizer-se; que os fatos se desenvolvem por m eio das co n trad i­ ções, como as idéias. Assim, a lei da contradição precisa ser rejeitada. Ao lado do que m e parece constituir o total absurdo da filosofia da id en ­ tidade (sobre a qual farei alguns com entários mais adiante), se olharm os mais de perto esses alegados fatos que se contradizem , verificamos que todos os exemplos consignados pelos dialéticos apenas afirm am que o m undo em que vivemos m ostra às vezes um a certa estrutura que poderíam os descrever com a ajuda do term o “polaridade” . Um exem plo dessa estrutura é a eletricidade, positiva e negativa. Dizer que a eletricidade positiva é contraditória em relação à negativa é um a form a de falar vaga e m etafórica. H averia um exemplo de contradição verdadeira nas duas sentenças seguintes: “Este corpo estava aqui, no dia l .° de novem bro de 1938, entre as 9 e as 10 horas da m an h ã, carregado de eletricidade positiva” ; e um a afir­ m ativa análoga, sobre o mesmo corpo, dizendo que não estava carregado de ele­ tricidade positiva naquele m om ento. Essa seria um a contradição real entre duas afirm ativas; o correspondente fato contraditório seria o de um corpo estar, em conjunto, ao mesmo tem po em es­

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tado elétrico positivo e negativo — atraindo e não atraindo, portanto, certos corpos carregados negativam ente. Desnecessário dizer que um fato contraditório como esse não pode ocorrer. Uma análise mais p rofunda nos revela que a inexistência de tais fatos não é u m a lei sem elhante às leis da física, mas se baseia na lógica — isto é. nas norm as que regulam o uso da linguagem científica. H á, po rtan to , três pontos a observar: a) a oposição dialética ao antiracionalism o de K ant e, em conseqüência, o restabelecim ento do racionalism o apoiado por um dogm atism o reforçado; b) a incorporação da dialética à lógica, com fundam ento na am bigüidade de expressões como “razão”, “lei do pensam en­ to ” , e tc.; c) a aplicação da dialética a “todo o m u n d o ” , com base no panlogism o de Hegel e na sua filosofia da identidade. Esses três pontos m e parecem constituir os elem entos principais da dialética hegeliana. Antes de prosseguir, traçando um quadro do destino da dialética depois de Hegel, desejo d ar m inha opinião pessoal sobre a filosofia de Hegel — em especial sobre sua filosofia da identidade. Acho que representa a pior de todas as teorias filosóficas absurdas e incríveis a que Descartes se refere na frase que escolhi como epígrafe. N ão é apenas o fato de que a filosofia da identidade é apresentada sem qualq u er argum entação séria; até mesmo o problem a que ela inventou p ara res­ ponder — a indagação “Como pode nossa m ente conhecer o m undo?” — pareceme não ter sido claram ente form ulado. E a resposta idealista — que varia um pouco segundo o filósofo que a dá, mas é sempre essencialmente a m esm a — “P o r­ que o m undo se assem elha à m en te” — é, n a verdade, um a resposta apenas a p a re n ­ te. Percebem os que não é um a resposta real se considerarm os algum argum ento análogo com o, por exem plo, o seguinte: “Como pode o espelho refletir m eu rosto? Porque é sem elhante ao m eu rosto”. Em bora esse tipo de argum ento seja m uito precário, tem sido form ulado reiteradam ente. Nós o encontram os em Jeans, por exem plo, nos nossos dias, enunciado mais ou menos assim: “Como pode a m a te ­ m ática abran g er o m undo? Porque o m undo tem um aspecto m atem ático”. Seguese a explicação de que a realidade tem a mesma natureza da m atem ática; de que o m undo consiste em pensam ento m atem ático (sendo, p o rtan to , um a idéía). Esse a r ­ gum ento não é m elhor do que o seguinte: “Como pode a linguagem descrever o m undo? Porque o m undo é sem elhante à linguagem ” . H á um a analogia entre esta últim a form ulação e a de Jeans; vemos, claram ente, que a descrição m atem ática do m undo é apenas um a certa form a de descrevê-lo, n ad a mais, que a m atem ática só nos dá os meios de descrevê-lo — num a linguagem especialm ente rica. Talvez se possa dem onstrar isso com a ajuda de um exemplo trivial. H á lin ­ guagens prim itivas que não em pregam núm eros, m as procuram expressar idéias num éricas por meio de expressões referentes à unidade, à dualidade e à p lu ra li­ dade. E óbvio que um a linguagem desse tipo não poderá descrever algum as das relações mais com plicadas entre certos grupos de objetos — relações que podem ser descritas facilm ente com expressões num éricas tais como “três”, “q u a tro ”, “cinco” , etc. N um a linguagem como a m encionada pode-se dizer que A tem m uitas ovelhas — m ais do que B —, m as não se pode dizer que A tem 9 ovelhas, 5 mais do que B. Em outras palavras, os símbolos m atem áticos são introduzidos na linguagem p ara descrever relações mais com plicadas, que não poderiam ser descritas sem eles; um a linguagem que contém a aritm ética dos núm eros naturais é mais rica do que a que não possui os símbolos apropriados. T udo o que podem os inferir sobre a natureza do m undo, do fato de que precisamos em alguns casos em pregar a descrição

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m atem ática, é que o m undo apresenta um a certa com plexidade, havendo d e te r­ m inadas relações que não podem ser descritas m ediante o em prego de instrum entos m uito primitivos. Jeans se inquietava com o fato de que o m undo se ajusta às fórm ulas m a ­ tem áticas inventadas originalm ente por m atem áticos puros, que não pretendiam absolutam ente aplicá-las à realidade. Ao que parece ele com eçou como um “indutivista” — adm itindo que as teorias derivam da experiência por meio de um procedim ento de inferência mais ou menos simples. P artindo dessa posição, o b ­ viam ente surpreende verificar que um a teoria form ulada por um m atem ático puro, de m odo especulativo, pode ser aplicada ao m undo real. Contudo, os que não são indutivistas não se espantam com isso, porque sabem que m uito freqüentem ente um a teoria é proposta como m era especulação, um a possibilidade apenas, dem ons­ trando mais tarde ser válida p ara a aplicação em pírica. Sabem que m uitas vezes es­ sa antecipação especulativa p rep ara o cam inho p a ra as teorias em píricas. (Deste m odo o problem a da indução, como é cham ado, se relaciona com o problem a do idealismo, que estamos discutindo.) 3. A dialética depois de Hegel. “A idéia de que fatos ou eventos possam contradizer-se m utuam ente me parece o próprio paradigm a da irreflexão.” David H ilbert A filosofia de Hegel da identidade da razão e da realidade é às vezes apresentada como um a form a de idealismo absoluto, por afirm ar que a realidade se assemelha à m ente, que tem o mesmo caráter da razão. Está claro, poVém, que essa filosofia dialética da identidade pode ser transform ada facilm ente num a es­ pécie de m aterialism o. Seus defensores passariam então a arg u m en tar que a realidade é m aterial ou física, como pensa o hom em com um ; ao afirm ar sua id en ­ tidade com a razão, ou m ente, estaríam os dizendo, por im plicação, que a m ente é tam bém m aterial ou física — pelo menos, que a diferença entre o m ental e o físico não pode ser m uito im portante. Esse m aterialism o pode ser considerado como o ressurgim ento de certos as­ pectos do cartesianism o, m odificado por alguns vínculos com a dialética. Ao afas­ tar-se da sua base idealista original, a dialética perde tudo aquilo que a torna plausível e compreensível; é preciso lem brar que os m elhores argum entos em seu favor residem n a sua aplicabilidade ao desenvolvimento intelectual — especialm ente do pensam ento filosófico. Agora, somos confrontados com a asserção de que a realidade física se desenvolve dialeticam ente — um a afirm ativa dogm ática, com tão pouca base científica que os dialéticos m aterialistas são obrigados a usar exten­ sam ente o perigoso m étodo que já descrevemos, que rejeita toda crítica pela sua natureza não dialética. O m aterialism o dialético concorda, p o rtan to , com os p o n ­ tos a) e b) acim a discutidos, mas altera o ponto c) consideravelm ente — em bora, na m inha opinião, sem que isso traga qualquer vantagem p ara suas características dialéticas. Ao expressar esta opinião, desejo salientar que, em bora não me con­ sidere um m aterialista, m inha crítica não se dirige ao m aterialism o, que preferiria provavelm ente ao idealismo, se tivesse de escolher entre os dois (o que, felizmente, não acontece). É a com binação da dialética com o m aterialism o que m e parece ainda pior do que o idealismo dialético.

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Estas observações se aplicam especialm ente ao “m aterialism o dialético” desenvolvido por M arx. O elem ento m aterialista da sua teoria poderia ser refo r­ m ulado de m odo relativam ente simples, sem levantar nenhum a objeção mais séria. Até onde posso ver, o ponto principal é o seguinte: não há razão p ara presum ir que en q u an to as ciências naturais podem basear-se na visão realista do hom em com um , as ciências sociais exigem um a visão idealista, como a que o hegelianism o oferece. Essa prem issa era m uito com um na época de M arx, devido ao fato de que Hegel, com sua teoria idealista do Estado, parecia influenciar fortem ente as ciências sociais — e até mesmo promovê-las — enquanto a futilidade das suas concepções no cam po das ciências naturais parecia — pelo menos p ara os cientistas da n a ­ tureza — bastante ó b v ia.12 Creio que um a in terpretação justa das idéias de M arx e de Engels consiste em dizer que um dos principais motivos que os levavam a acen tu ar o m aterialism o era a rejeição de q u alq u er teoria que, referindo-se à natureza racional ou espiritual do hom em , sustentasse que a sociologia precisava fundar-se num a base idealista ou espiritualista — ou na análise da razão. Opondo-se a essa idéia, eles salientaram o lado m aterial da natureza hu m an a, nossa necessidade de alim ento e de bens m ateriais, e sua im portância p ara a sociologia. Era sem dúvida um ponto de vista sadio. Considero a contribuição de M arx, neste p articu lar, de significação real e influência d u rad o u ra. M arx ensinou a todos que até mesmo o desenvolvimento das idéias não pode ser com preendido p len am ente se a histeria das idéias for tra ta d a sem m encionar as condições da sua origem e a situação dos que as originaram , dentre as quais as condições relativas ao aspecto econômico têm relevância especial. Creio, contudo, que o economicismo de M arx — sua ênfase n a estru tu ra econôm ica como base definitiva de qualquer m o ­ d alidade de desenvolvimento — é errônea e insustentável. Acho que a experiência social dem onstra claram ente que sob determ inadas circunstâncias a influência das idéias (apoiada possivelmente pela pro p aganda) pode superar as forças econô­ micas. Além disso, adm itindo-se em bora que é impossível com preender plenam ente o desenvolvimento das idéias sem a com preensão da sua base econômica^ e tam bém impossível com preender o desenvolvimento econômico sem entender, por*exemplo, a evolução das idéias científicas ou religiosas. P ara nosso objetivo atual, não é tão im portante analisar o m aterialism o e o economicismo de M arx como considerar o que aconteceu com a dialética dentro do sistema m arxista. Neste p articu lar, há dois pontos que me parecem im portantes. Um deles é a ênfase de M arx no m étodo histórico aplicado à sociologia — ten d ên ­ cia q\ie cham ei de “historicism o”. O outro é a tendência antidogm ática da dialética m arxista.

12 — Deveria ser óbvia para os que considerassem, por exemplo, sua surpreendente análise da essência da eletricidade, passagem que procurei traduzir do alemão o melhor que pude, chegando mesmo a tor­ ná-la mais compreensível do que o original, escrito pelo próprio Hegel: “A eletricidade... é o objetivo da forma da qual ela se libera; é a forma que está pronta a vencer sua própria indiferença; a emergência imediata ou a atualidade que acaba de emergir, da proximidade da forma e ainda determinada por ela — não é ainda a dissolução da própria forma, mas apenas do processo mais superficial pelo qual as diferenças desertam a forma que, no entanto, ainda se mantêm, como sua condição, sem ter ainda al­ cançado a independência com relação a ela e por seu intermédio.” A passagem está em Filosofia da N atureza. Vide também as passagens relativas ao som e ao calor, citadas em Open Society, nota 4, cap. 12 .

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Q uanto ao prim eiro ponto, precisamos lem brar que Hegel foi um dos inven­ tores do m étodo histórico, um dos fundadores da Escola de pensadores que acre­ ditam que, ao descrever historicam ente um determ inado desenvolvimento, nós o estamos explicando causalm ente. Essa Escola acreditava que seria possível explicar certas instituições sociais, por exem plo, m ostrando que a significação do m étodo histórico p ara a teoria social foi m uito exagerada; m as a crença nesse m étodo nãb desapareceu, em absoluto. Em o u tra oportunidade já procurei criticar esse m étodo (especialm ente em The Poverty o f Historicism). Aqui pretendo apenas m ostrar que a sociologia de M arx adotou do hegelianismo não só a concepção de que o seu m étodo precisa ser histórico, e de que a sociologia e a história precisam tornar-se teorias do desenvolvimento social, mas tam bém o ponto de vista de que o desenvol­ vimento deve ser explicado em term os dialéticos. P ara Hegel a história consistia na história das idéias. M arx abandonou o idealismo, m as reteve a doutrina de Hegel segundo a qual as forças dinâm icas do desenvolvimento histórico são as “c o n tra­ dições” , as “negações” e as “negações das negações” dialéticas. Neste ponto M arx e Engels seguiram Hegel m uito de perto, como as citações seguintes m ostram : N a sua Enciclopédia (I, cap. V I, pág. 81), Hegel descreveu a dialética como “a força universal e irresistível a que n ad a resiste,"por mais estável e seguro que se considere” . De forma sem elhante, Engels escreveu (A nti-D ühring, Parte I: “Dialética: a Negação da N egação”): “Que é então a negação da negação? Um a lei do desenvolvimento da natureza, da história e do pensam ento... extré^ m am ente geral; um a lei q u e ... se aplica ao reino anim al e vegetal, à geologia, à m atem ática, à história e à filosofia”. De acordo com M arx, a principal tarefa da ciência sociológica é m ostrar como as forças dialéticas atuam na história, profetizando assim o rum o da história. Conform e afirm a no prefácio do Capital, “O objetivo últim o deste trabalho é re ­ velar a lei econôm ica do m ovim ento na sociedade m o d ern a” . Essa lei dialética do m ovim ento, a negação da negação, fornece a base p a ra a profecia m arxista do fim próxim o do capitalism o (Capital, I, cap. XX IV , § 7): “O m odo capitalista da p ro dução... é a prim eira negação... Mas o capitalism o gera, com a inexorabilidade de um a lei da natureza, sua própria negação: é a negação da negação”. C ertam ente as profecias podem ter caráter científico — como o dem onstra a previsão dos eclipses e de outros acontecim entos astronôm icos. Mas não podemos aceitar a dialética hegeliana, ou sua versão m aterialista, como base segura p ara previsões científicas. Dizem em geral os m arxistas: “T odas as previsões de M arx se efetivaram ” . Isso não é verdade. Para d a r um exem plo, entre m uitos: no Capital, logo depois da últim a passagem citada, M arx previu que a transição do capitalism o p a ra o socialismo seria natu ralm en te um processo m uito menos violento e difícil do que a revolução industrial; num a nota ele am pliou essa previsão referindo-se à “burguesia hesitante, que não resiste” . Hoje, poucos m arxistas diriam que essa previsão estava correta. Se fizermos previsões fundam entando-nos no m étodo dialético, só algum as delas se verificarão. Q uando a previsão não tiver sido correta, tefemos obviam ente um a situação im prevista. C ontudo, a dialética é suficientem ente vaga e elástica p ara in terp retar o que aconteceu e fornecer um a explicação tão boa quanto a que dá p ara os casos em que suas profecias se realizaram . Assim, qualquer desenvol­

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vim ento se ajustará ao esquem a dialético; o adepto da dialética não precisa tem er um a refutação pela experiência fu tu ra . 13 Como já disse, o equívoco não está apenas na abordagem dialética, mas na

idéia de uma teoria do desenvolvimento histórico — a noção de que a sodologia científica deve procurar fazer previsões históricas de larga escala. Este, contudo, é um ponto que não nos interessa aqui. Ao lado do papel exercido pela dialética no m étodo histórico de M arx, precisam os discutir tam bém a a titu d e antidogm ática de M arx. M arx e Engels in ­ sistiram fortem ente em que a ciência não deve ser in terp retad a como um reposi­ tório de conhecim entos definitivos, perfeitam ente dem onstrados, de “verdade e te r­ n a ” ; p a ra eles a ciência era algo que se desenvolvia, que progredia. O cientista não é o hom em que sabe m uito, mas sim a pessoa determ inada a não ab an d o n ar a b u s­ ca da verdade. De acordo com M arx os sistemas científicos se desenvolvem de fo r­ m a dialética. N ão há m uito que se possa criticar a respeito desse ponto, em bora pense que a descrição dialética do desenvolvimento científico nem sem pre pode ser aplicada sem algum a violência, e que é m elhor descrever o desenvolvimento científico de m odo menos am bíguo e menos ambicioso — como, por exem plo, em termos do m étodo das tentativas. Estou pronto a adm itir, no entanto, que esta crítica não tem grande im portância. O que é im portante é o fato de que a concepção progressista e antidogm ática que M arx tinha a respeito da ciência nunca foi aplicada pelos m a r­ xistas ortodoxos, d entro do seu próprio cam po de atividade. Com efeito, a ciência progressista e antidogm ática precisa ser crítica — a crítica constituí sua essência. Mas os m arxistas nun ca toleraram a crítica do m arxism o e do m aterialism o d ia ­ lético. Hegel acreditava no desenvolvimento da filosofia. C ontudo, seu sistema deveria perm anecer como a últim a e mais elevada etapa desse desenvolvimento — não poderia ser superado. Os m arxistas adotaram a mesm a atitude com relação ao sistema de M arx. Por isso, a atitu d e antidogm ática recom endada por M arx só existe em teoria; é inexistente na p rática do m arxism o ortodoxo. A dialética é utilizada pelos m arxistas, seguindo o exemplo do A nti-D ühring de Engels, especial m ente com objetivo apologético — p ara defender o m arxism o contra as críticas. De m odo geral, os críticos são denunciados pela sua falha em com preender a dialética, ou a ciência p ro letária — às vezes são considerados traidores. Graças à dialética, a atitu d e an tidogm ática desapareceu e o m arxism o se estabeleceu como um a form a de dogm atism o suficientem ente elástica, devido à aplicação do m étodo dialético, p ara escapar a qualquer ataque. T ransform ou-se assim no que cham ei de dog­ m atism o reforçado. O ra, não pode haver obstáculo m aior ao progresso da ciência do que o dog­ m atism o reforçado. É impossível o desenvolvimento científico sem a livre com ­ petição das idéias — essa é a essência da atitude anti dogmática que foi outrora

13 — Em L. Sc. D. procurei demonstrar que o conteúdo científico de uma teoria é tanto maior quanto mais ela contiver, quanto maior o risco das suas afirmativas, quanto mais se expuser à refutação pela experiência futura. Se não houver tais riscos, seu conteúdo científico será zero — estaremos diante de uma proposição metafísica. Esse critério nos indica que a dialética não é científica, Hias sim metafísica.

defendida com vigor por M arx e por Engels. De m odo geral, não pode haver livre com petição no pensam ento científico sem liberdade p ara todas as idéias. Desse m odo a dialética exerceu um a influência m aléfica não só no desenvol­ vimento da filosofia, mas tam bém no da teoria política. Entenderem os m elhor essa influência, vendo como M arx elaborou sua teoria. P ara isso precisamos considerar o contexto histórico e biográfico. O jovem M arx, que tinha idéias progressistas, evolucionárias e até mesmo revolucionárias, caiu sob a influência de Hegel, o m ais famoso filósofo alem ão. Hegel fora um representante da reação prussiana, tendo utilizado o princípio da identidade da razão e da realidade para apoiar os poderes existentes (o que existe é razoável!) e para defender a idéia do Estado absoluto (que hqje cham aríam os de “totalitarism o”). M arx o adm irava, mas tinha tem peram ento político bem d i­ ferente. Por outro lado, precisava de um a filosofia na qual assérítasse suas opiniões políticas. Podemos im aginar sua satisfação quando descobriu que a filosofia dialética de Hegel podia ser voltada contra quem a criara — que a dialética podia favorecer um a teoria política revolucionária, em vez de sustentar um a teoria con­ servadora e apologética. Além disso, essa teoria se ajustava m uito bem à necessi­ dade de encontrar um a filosofia não só revolucionária mas tam bém otim ista: um a teoria que acentuasse o progresso afirm ando que todo passo p ara a frente era um passo para cim a. Essa descoberta, em bora fascinante para um discípulo de Hegel, num a era dom inada por Hegel, perdeu hoje, ju n tam ente com o hegelianism o, toda a sua sig­ nificação; não pode ser vista senão como o tour de fo rce engenhoso de um jovem e brilhante estudante, que revelou um ponto fraco nas especulações do seu (im e­ recidam ente) famoso Mestre. C ontudo, ela se tornou a base teórica do que hoje conhecemos como “m arxism o científico” e ajudou a transform ar o m arxism o num sistema dogm ático, im pedindo o desenvolvimento científico que poderia ter ex­ perim entado. O m arxism o m anteve du ran te décadas essa atitude dogm ática, repetindo aos seus opositores os mesmos argum entos em pregados originalm ente pelos que o conceberam . É m elancólico, mas significativo, que o m arxism o ortodoxo contem ­ porâneo recom ende, como base p ara o estudo da m etodologia científica, a leitura da Lógica de Hegel — um livro não só obsoleto mas típico do pensam ento précientífico e mesmo pré-lógico. Isso é pior do que recom endar a m ecânica de Arquim edes como base para o estudo da engenharia m oderna. O desenvolvimento da dialética deveria servir como advertência contra os perigos inerentes na elaboração de sistemas filosóficos. Deveria lem brar-nos de que não devemos fazer da filosofia a base de qualquer tipo de sistema científico; de que os filósofos devem ter ambições mais modestas. Um a tarefa a que eles se podem dedicar com m uita utilidade é o estudo dos métodos críticos da ciência.

16. Previsão e Profecia nas Ciências Sociais* i

O tem a da m inha conferência é “Previsão e Profecia nas Ciências Sociais”. Tenho a intenção de criticar a doutrina segundo a qual o objetivo das ciências sociais é propor profecias históricas — necessárias p a ra exercer a atividade política de form a racional. 1 C ham arei essa doutrina de “historicism o”. Considero o his­ toricismo relíquia de antiga superstição, em bora os historicistas de m odo geral es­ tejam convencidos de que se tra ta de um a teoria nova, progressista, revolucionária e científica. As bases fundam entais do historicismo — isto é, a concepção de que o o b ­ jetivo das ciências sociais é propor profecias históricas e a expectativa de que essas profecias são necessárias para qualquer teoria racional — são im portantes hoje porque constituem parte essencial do que conhecemos como “socialismo científico” ou “m arxism o” . M inha análise do papel da previsão e da profecia pode ser descrita, portanto, como um a crítica do m étodo histórico do m arxism o. Mas na verdade ela não se lim ita a essa variante econôm ica do historicismo que é o marxismo. Seu propósito é criticar a doutrina historicista de m odo geral. N ão obstante, decidi falar aqui como se o m arxism o constituísse o objetivo principal (ou exclusivo) da m inha crítica, pois quero evitar a acusação de que estou atacando o m arxism o sub-repticiam ente, sob o nom e de “historicism o”. Desejaria, contudo, que não se esquecesse o fato de que, sem pre que m encionar o marxismo, estarei pensando tam bém em várias outras filosofias da história. De fato, tentarei criticar um determ inado m étodo histórico que muitos filósofos, antigos e modernos, têm considerado válido — filósofos com idéias políticas m uito diferentes das de M arx. Como crítico do m arxism o, procurarei in terp retar m inha tarefa de um p o n ­ to de vista liberal, sentindo-m e livre não só p ara criticá-lo m as tam bém p ara defen­ der algum as das suas assertivas. T om arei tam bém a liberdade de sim plificar r a ­ dicalm ente essa doutrina. Conferência feita na sessão plenária do 10.° Congresso Internacional de Filosofia, em Amsterdam, 1948; publicada na L ibrary do referido Congresso (1, Amsterdam, 1948) e em Theories o f History, ed. P. Gardiner, 1959. 1 — No meu livro The Pòverty o f H istoricism , há uma discussão mais completa desse problema e de uma série de problemas associados.

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C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Um dos pontos a respeito dos quais simpatizo com os m arxistas é sua insis­ tência em que os problem as sociais da nossa época têm caráter urgente, e que os filósofos devem enfrentá-los; que não devemos satisfazer-nos em in terp retar o m u n ­ do — precisam os aju d ar a transform á-lo. Simpatizo m uito com essa atitude. Aliás, o tem a escolhido p a ra esta reunião — “O H om em e a Sociedade” — m ostra que há um reconhecim ento geral da necessidade de discutir esses problem as. O perigo m ortal por que passa a h u m anidade — sem dúvida o mais grave em toda a história — não pode ser ignorado pelos filósofos. Mas, que tipo de contribuição podem eles d ar — não como homens ou cidadãos, mas en q u an to filósofos? Alguns m arxistas insistem em que os problem as são urgentes dem ais p a ra que sejam contem plados — é preciso tom ar um partido im ediatam ente. C ontudo, se é que podemos d ar algum a contribuição p ara solu­ cioná-los, na qualidade de filósofos, precisamos recusar-nos à aceitação cega de soluções prontas, por m aior que seja a urgência dos problem as; como filósofos precisam os aplicar a crítica racional aos problem as que enfrentam os e às soluções propostas. De m odo mais específico, creio que o m elhor que posso fazer como filósofo é ab o rd ar esses problem as como um crítico de métodos. E o que me p ro ­ ponho fazer. II Como introdução, poderia explicar por que escolhi este tem a. to u um racionalista — isto é, acredito no livre debate, na argum entação. Acredito tam bém na possibilidade e n a vantagem de aplicar a ciência aos problem as que se originam no cam po da sociedade. C ontudo, por acreditar nas ciências sociais, não posso deixar de ver com apreensão a pseudociência.

PREVISÃO E PROFECIA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

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A idéia fundam ental de que deveria ser possível prever as revoluções — da m esm a form a que os eclipses solares — fundam enta a seguinte concepção a res­ peito dos objetivos das ciêriõias sociais: b) A finalidade das ciências sociais é fundam entalm ente a m esma das ciên­ cias naturais — fazer previsões e, mais especialm ente, previsões históricas, isto é, previsões sobre o desenvolvimento político e social da hum anidade. c) Feitas essas previsões, a tarefa da política pode ser determ inada: atenuar as “dores do p a rto ” (como M arx as cham ou) dos desenvolvimentos políticos cuja im inência foi prevista. Esses simples fatos, especialmence a alegação de que as ciências sociais têm por objetivo fazer previsões históricas, constituem o que cham o de doutrina his­ toricista das ciências sociais. C ham arei a idéia de que a função da política é a te ­ n u ar as dores do parto dos desenvolvimentos políticos de doutrina historicista da Política. Essas duas doutrinas podem ser consideradas como partes de um esquema Filosófico mais am plo, o historicismo: o ponto de vista de que a evolução da h u ­ m anidade segue um enredo e que se conseguirmos descobrir esse enredo teremos um a chave p ara o nosso futuro.

IV

III

Esbocei em poucas palavras duas doutrinas historicistas a respeito do papel das ciências sociais e da política, que descrevi como m arxistas. Mas essas doutrinas não são peculiares ao m arxism o. Ao contrário, estão entre as doutrinas mais a n ­ tigas de que temos notícia. N a própria época de M arx elas já eram sustentadas, exatam ente da form a que descrevi, não só por M arx — que as herdou de Hegel — mas por John Stuart Mill, que ^is recebeu de Com te. N a antigüidade, foram adotadas por Platão — e antes dele por H eráclito e Hesíodo. São idéias que parecem ter tido origem no O riente; de fato, a concepção ju d aica do povo eleito é um a típica idéia historicista — a história tem um enredo cujo autor foi Jeová, enredo que os profetas podem em parte decifrar. Idéias que exprim em um dos mais a n ­ tigos sonhos da hum anidade — a profecia, a noção de que podemos saber o que o futuro nos reserva; de que podemos nos valer desse conhecim ento ajustando a ele nossa conduta.

Com eçarei com um breve enunciado, e breve crítica, do m étodo histórico da alegada ciência m arxista. Precisarei p ara isso sim plificar m uito — será inevitável. Essa sim plificação exagerada poderá contudo ter a vantagem de focalizar os pontos essenciais a ser considerados.

Essa concepção tão antiga é reforçada pelo fato de que profetizamos corretam ente eclipses e os movimentos dos planetas. As concepções e práticas da as­ trologia revelam a estreita associação que há entre a d o u trina historicista e o co­ nhecim ento astronôm ico.

As idéias principais do m étodo historicista — e mais especialm ente do m a r­ xismo — parecem ser as seguintes:

Esses aspectos históricos não têm relação, contudo, com a questão de saber se a doutrina historicista sobre a tarefa das ciências sociais pode ser sustentada — um a questão que pertence ao dom ínio da m etodologia das ciências sociais.

M uitos racionalistas como eu são m arxistas; na Inglaterra, por exem plo, um núm ero considerável de excelentes físicos e biólogos declaram sua fidelidade à d o u trin a m arxista. O que os atrai no m arxism o é sua pretensão à ciência, o alegado caráter progressivo e a preten d id a adoção de métodos de previsão utilizados pplas ciências natu rais. P rocurarei dem onstrar aqui que essa pretensão não sè justifica; que o tipo de profecia que o m arxism o nos oferece do ponto de vista lógico se aproxim a m ais das profecias do Velho T estam ento do que das previsões da física modelma. ^

a) Podemos prever os eclipses solares com m uita precisão e grande a n te ­ cedência. Por que não poderíam os prever um a revolução? Se em 1780 um cientista social soubesse, sobre a sociedade, m etade do que os astrólogos da Babilônia co­ nheciam de astronom ia, teria podido prever a Revolução Francesa.

V N a m inha opinião, a douUina historicista segundo a qual a função das ciên­ cias sociais é prever o desenvolvimento histórico é in.susrentáve!

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C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

R econhecidam ente, todas as ciências teóricas fazem previsões. Por outro lado, há ciências sociais que são teóricas. Mas, será que estas admissões im plicam — como acreditam os historicistas — que o papel das funções sociais é a profecia histórica? Parece que sim: mas essa impressão desaparece logo que traçam os um a distinção clara entre o que cham o de “previsão científica” e as “profecias históricas incondicionais” . E um a distinção im portante que o historicismo deixa de fazer. As previsões científicas ordinárias são condicionais; elas afirm am que d e te r­ m inadas alterações (por exem plo, a m udança de tem p eratu ra da água num a chaleira) serão acom panhadas por outras modificações (por exemplo, a fervura da água). P ara tom arm os um exemplo m uito simples, de um a ciência social: da m es­ m a form a como aprendem os com os físicos que sob certas condições um a caldeira explodirá, podem os aprender com os economistas que sob determ inadas condições sociais — falta de m ercadorias, preços controlados, ausência de um sistema p u ­ nitivo eficaz — surgirá um “m ercado negro”. As condições científicas incondicionais podem às vezes ser derivadas dessas previsões científicas condicionais, ju n tam ente com proposições históricas que afir­ m am que as condições em questão serão preenchidas. (Dessas premissas podemos chegar à previsão incondicional pelo m odus ponens.) Se um m édico diagnosticou escarlatina, poderá, servindo-se das previsões condicionais da ciência que pratica, fazer a previsão incondicional de que seu paciente terá um a erupção cutânea de determ inado tipo. N aturalm ente, é possível fazer profecias incondicionais como es­ sa sem qualq u er justificação teórica ou — em outras palavras — sem base em previsões científicas condicionais. O fundam ento de tais previsões poderá ser, por exem plo, um sonho; e elas poderão até mesmo se concretizar, acidentalm ente. T enho duas proposições a apresentar. A prim eira é a de que o historicista não deriva suas profecias históricas de previsões científicas condicionais. A segunda (da qual decorre a prim eira) é que não pode fazer isso porque as profecias de longo prazo só são deriváveis de previsões científicas condicionais se se aplicam a sistemas descritos como estacionários, bem isolados, recorrentes. Esses sistemas são m uito raros na natureza; e a sociedade m oderna certam ente não é um deles. Q uero desenvolver este ponto um pouco mais. As profecias a respeito de eclipses, e todas as que se baseiam na regularidade das estações — possivelmente a m ais antiga lei da natureza apreendida conscientem ente pelo hom em — só são possíveis porque nosso sistema solar é estacionário e repetitivo; isso se deve ao fato acidental do seu isolam ento da influência de outros sistemas m ecânicos por vastas regiões de espaço vazio, o que o torna relativam ente livre de interferências “ex ter­ n as” . C ontrariam ente à crença popular, a análise desses sistemas repetitivos não é caracterísitca das ciências naturais: tais sistemas são casos especiais em que a previsão científica se torna especialm ente im pressionante — isso é tudo. Ao lado desse caso excepcional, o sistema solar e os sistemas cíclicos ou recorrentes são conhecidos especialm ente no cam po da biologia. O ciclo vital dos organismos cons­ titui p arte de um a cadeia de eventos biológicos sem i-estacionária, ou que progride m uito lentam ente. A previsão científica a respeito dos ciclos vitáis dos organismos pode ser feita na m edida em que deixamos de levar em conta essas lentas alterações evolucionárias — isto é, na m edida em que consideramos o sistema biológico em questão como estático.

P R E V IS Ã O E P R O F E C IA N A S C IÊ N C IA S S O C IA IS

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Esses exemplos, p o rtan to , não nos dão um a base p a ra a alegação de que podemos aplicar o m étodo das profecias incondicionais de longo prazo à história da hum anidade. A sociedade se transform a e se desenvolve. De m odo geral, esse desenvolvimento não é repetitivo. N a m edida em que se repete, podemos talvez fazer certas profecias. Por exem plo: há sem dúvida um aspecto reiteirativo no m odo como surgem novas religiões, e mesmo novas tiranias. Um estudioso da história poderá prever esses desenvolvimentos, em escala lim itada, fazendo com parações com situações anteriores — quer dizer, estudando as condições que provocam o seu surgim ento. Mas a verdade é que essa aplicação do m étodo da previsão condicional não nos leva m uito longe, pois os aspectos mais im portantes do desenvolvimento histórico não se repetem . As condições se alteram , surgem novas situações (por exemplo, em conseqüência de novas descobertas científicas ), diferentes de tudo o que já aconteceu até então. O fato de que podemos prever eclipses não significa, p o rtanto, que temos condições de prever revoluções. Essas considerações se aplicam não só à evolução do hom em m as tam bém à evolução da vida, de m odo geral. N ão há propriam ente um a lei da evolução, mas sim o fa to histórico de que as plantas e os anim ais se m odificam , ou seja, mais precisam ente, de que se m odificaram . A idéia da existência de um a lei que d e te r­ mine o sentido e o caráter da evolução é um equívoco típico do século dezenove, nascido da tendência geral p ara atrib u ir à “Lei N a tu ra l” as funções atribuídas tradicionalm ente a Deus. VI A percepção de que as ciências sociais não podem profetizar o desenvol­ vimento histórico levou alguns escritores m odernos a desesperar da razão e a preconizar o irracionalism o político. Identificando o poder de previsão com a utilidade prática, eles denunciam as ciências sociais, acusando-as de inutilidade. Procurando analisar a possibilidade de prever o desenvolvimento histórico, um des­ ses irracionalistas m odernos escreveu: 2 “O mesmo elem ento de incerteza que afeta as ciências naturais afeta tam bém as ciências sociais, em grau m aior. Devido à sua extensão quantitativa, ele afeta não só sua estrutura teórica mas sua utilidade prática.” C ontudo, não há motivo p ara desesperar da razão. Só os que não podem distinguir entre a previsão ordinária e a profecia histórica — em outras palavras, só os historicistas desapontados — tendem a chegar a essas conclusões desesperadas. A principal utilidade das ciências físicas não reside na previsão de eclipses; da m esma form a, a utilidade prática das ciências sociais não depende do seu poder de p ro ­ fetizar o desenvolvimento histórico ou político. Só um historicista acrítico — isto é, aquele que acredita na doutrina historicista a respeito das ciências sociais sem qualquer reflexão — será levado a desesperar d a razão por perceber que as ciências sociais não podem fazer profecias. Alguns deles foram levados mesmo a odiar a razão.

2 — H. Morgenthau, Scientific M an a n d Power Politics, 1947, pág. 122. A ênfase é minha. Conforme observo adiante, o anti-racionalismo de Morgenthau pode ser visto como resultado da desilusão de um historicista que não pode conceber nenhuma outra forma de racionalismo exceto o historicismo.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

V II Q ual é, então, a função das ciências sociais? Q ual a sua utilidade? Para responder a essas perguntas, precisarei m encionar brevem ente duas teorias ingênuas sobre a sociedade que precisamos afastar antes de poder com ­ preender a função genuína das ciências sociais. A prim eira é a de que as ciências sociais estudam o com portam ento de con­ juntos sociais — grupos, nações, classes, sociedades, civilizações, etc. Esses co njun­ tos sociais são concebidos como objetos empíricos, a serem estudados pelas ciên­ cias sociais da m esm a form a como a biologia estuda os anim ais e as plantas. É um a concepção ingênua, que não podemos aceitar, porque não leva em conta o fato de que esses cham ados “conjuntos sociais” são em grande parte pos­ tulados pelas teorias sociais mais com uns — e não objetos empíricos; em bora haja no cam po social alguns ohjetos em píricos, como um a determ inada m ultidão, não é verdade que conceitos como o de “classe m édia” representem grupos empíricos o b ­ serváveis. Eles representam um tipo de objeto ideal, cuja existência depende de premissas teóricas. Assim, a crença na existência em pírica de conjuntos sociais, que poderíam os cham ar de coletivismo ingênuo, tem que ser substituída pela exigência de que os fenôm enos sociais, inclusive os coletivos, sejam analisados em termos de indivíduos, suas ações e relações. Mas essa exigência pode provocar facilm ente outro equívoco — a outra e mais im p o rtan te concepção que precisamos afastar. Podemos cham á-la de teoria conspiratória da sociedade. É o ponto de vista de que tudo o que ocorre na so­ ciedade — inclusive tudo aquilo que as pessoas de m odo geral não desejam, como a guerra, o desem prego, a pobreza, as carências —, resulta da deliberação consciente de indivíduos ou grupos detentores de poder. Esse ponto de vista é m uito d ifu n ­ dido, em bora na m inha opinião não seja mais do que um a m odalidade bastante prim itiva de pensam ento supersticioso. É mais antigo do que o historiçísmo (que pode ser descrito como um derivativo da teoria conspiratória); em sua form ulação m oderna, é o resultado típico da secularização das superstições religiosas. D esa­ p areceu a crença nos deuses homéricos, cujas conspirações eram responsáveis pelas vicissitudes da G uerra de T ró ia. O lugar dos deuses homéricos foi tom ado pelos Sábios do Sião, os monopólios, os capitalistas e os im perialistas. N ão quero dizei, natu ralm en te, que não haja conspirações. O que afirm o é, em prim eiro lugar, que essas conspirações não são m uito freqüentes e não têm a força suficiente p ara alterar o caráter da vida social. Se deixassem de ocorrer, con­ tinuaríam os enfrentando fundam entalm ente os mesmos problem as. Em segundo lugar, as conspirações raram ente tém êxito. Seus resu ltrJo s diferem m uito, de m odo geral, dos objetivos pretendidos, como bem exemplifica a conspiração nazis-

V III Por que razão o 3 resultados conseguidos pelas conspirações são tão diversos ^os seus objetivos? Porque isso c o que acontece ordinariam ente na vida social, haja ou não conspirações. Este com entário abre a oportunidade para form ular a

P R E V IS Ã O E P R O F E C IA N A S C IÊ N C IA S S O C IA IS

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tarefa principal das ciências sociais teóricas, que é justam ente a de determ inar as repercussões sociais não deliberadas das ações hum anas intencionais. Vou d ar um exemplo m uito simples. Se alguém deseja com prar um a casa com urgência, podemos presum ir com toda segurança que não terá a intenção de aum entar o preço de m ercado das casas; contudo, o simples fato de que essa pessoa com parece ao m ercado como com prador tenderá a elevar o preço das casas. Vemos claram ente que nem todas as conseqüências das nossas ações são a l­ mejadas; por isso, a teoria conspiratória da sociedade não pode ser verdadeira, pois ela equivale a dizer que todos os eventos, mesmo os que à prim eira vista não p a ­ recem pretendidos por ninguém resultam na verdade da ação de pessoas que estão neles interessados Vale a pena m encionar, a este propósito, que o próprio Karl M arx foi um dos prim eiros a salientar a im portância para as ciências sociais desses resultados não pretendidos. Em algum as das suas observações m ais m aduras, ele afirm a que estamos todos presos pela rede do sistema social. O capitalista não é um conspi­ rador dem oníaco, mas se vê forçado pelas circunstâncias a agir como age. Ele não tem responsabilidade m aior do que a do proletário pela situação em que se encon­ tra. Esse ponto de vista de M arx foi, contudo, ab andonado — talvez por razões de propaganda, quem sabe porque as pessoas não p u deram com preendê-lo —, te n ­ do sido substituído por um a teoria m arxista da conspiração m uito vulgar. É evi­ dente que a adoção da teoria conspiratória não pode ser evitada pelos que acre­ ditam que sabem como construir o paraíso n a terra. A única explicação que essas pessoas têm p ara o seu insucesso é a m alignidade do dem ônio, que deseja fazer o m al.

IX A concepção de que cabe às ciências sociais teóricas descobrir as conseqüên­ cias não pretendidas das nossas ações aproxim a m uito essas ciências das ciências naturais experim entais. A analogia não pode ser desenvolvida aqui porm enori­ zadam ente, mas vale observar que os dois tipos de ciência levam à form ulação de regras tecnológicas de ordem prática indicando o que não podem os fazer. Assim, a segunda lei da term odinâm ica pode ser form ulada como um a a d ­ vertência tecnológica; “N ão se pode construir um a m áq u in a que seja cem por cento eficiente” . Uma regra análoga das ciências sociais seria a seguinte: “Sem au m en tar a produtividade, não se pode elevar a renda real da força de trabalho em pregada” ; ou então: “N ão se pode equalizar as rendas reais e ao mesmo tem po elevar a produtividade”. Um exemplo de hipótese prom issora nesse cam po — que ainda não é aceita de m odo geral — é o seguinte: “N ão se pode m an ter um a política de pleno em prego sem inflação” . Esses exemplos m ostram a form a como as ciências sociais podem ser úteis do ponto de vista prático: não nos perm item fazer profecias his­ tóricas, mas nos dão um a boa idéia do que se pode e não se pode fazer no cam po político.

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C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Vimos que a d o u trin a historicista é insustentável, mas isso não nos faz p e r­ der a fé na ciência ou na razão. Pelo contrário, entendem os agora mais claram ente o papel da ciência na vida social: sua m odesta função p rática é a de nos aju d ar a com preender as conseqüências das nossas ações possíveis — mesmo os seus efeitos mais rem otos — perm itindo-nos assim escolher m elhor a conduta que devemos seguir. X A elim inação da doutrina historicista destrói c^m pletam ente as pretensões científicas do m arxism o, mas não suas reivindicações técnicas ou políticas — a afir­ m ativa de que só um a revolução social, um a com pleta reform ulação do nosso sis­ tem a social, pode produzir condições apropriadas p ara a vida hum ana. N ão exam inarei aqui o problem a dos objetivos hum anitários do m arxism o. Acho que poderia aceitar muitos desses objetivos. A esperança de reduzir a miséria e a violência, de au m en tar a liberdade, inspirou M arx e m uitos dos seus discípulos — é um a esperança que continua a inspirar quase todos nós. Estou convencido, porém , de que esses objetivos não podem ser alcançados por m étodos revolucionários. Ao contrário, penso que os métodos revolucionários só podem fazer as coisas piores — aum entam o sofrim ento desnecessário, levam à violência crescente, destroem a liberdade. Isso se torna claro quando percebem os que as revoluções sempre destroem a estru tu ra institucional e tradicional da sociedade, pondo em perigo o próprio con­ ju n to de valores que representa a sua aspiração. De fato, um conjunto de valores só pode ter significação social na m edida em que existe um a tradição a sustentá-lo. Is­ so ocorre com os objetivos de um a revolução como com quaisquer outros valores. Se com eçarm os a revolucionar a sociedade e a erradicar suas tradições, não poderem os interrom per esse processo quando julgarm os oportuno. N um a revo­ lução, tudo se questiona, inclusive os propósitos dos revolucionários bem intem cionados — propósitos que se originam na sociedade que a revolução destrói, e da qual eles são necessariam ente um a parte. Algumas pessoas dizem não se im portar com isso; seu m aior desejo é lim par com pletam ente a tela — criar um a tabula rasa social e com eçar desde o início, com um sistema social inteiram ente novo. Essas pessoas não deveriam surpreender-se ao verificar que, um a vez destruída a tradição, a civilização desaparece com ela. P er­ ceberão que a h um anidade retornou à situação de Adão e Eva — ou, p ara evitar a linguagem bíblica, à situação dos anim ais. T udo o que os revolucionários poderão fazer, nessas circunstâncias, é recom eçar o lento processo da evolução hum ana — p ara chegar, em alguns m ilhares de anos, a um novo período capitalista, que os levará a u m a nova revolução, tendo por conseqüência um segundo retorno à si­ tuação dos anim ais, etc, etc. Em outras palavras, não há motivo para que um a sociedade cujos valores tradicionais tenham sido destruídos se transform e a u to ­ nom am ente nu m a sociedade m elhor — a não ser que se aceite a possibilidade de m ilagres políticos,3 ou se tenha a esperança ilusória de que, com a desarticulação 3 — A frase é de Julius Kraft.

PREVISÃO E PROFECIA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

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da conspiração capitalista, o sistema social tenderá n aturalm ente à bondade e à beleza. Os m arxistas, n aturalm ente, não aceitarão isso. Mas o ponto de vista m a r­ xista, isto é, a concepção de que a revolução social conduzirá a um m undo m elhor , só pode ser com preendido com base nas premissas historicistas do m arxism o. Se conhecerm os, com base num a profecia histórica, qual será o resultado de um a revolução social; se soubermos que esse resultado é o que alm ejam os, então p o ­ deremos considerar a revolução, com o sofrim ento m aciço que acarreta, um meio p ara alcançar um fim de felicidade indizível. Com a rejeição da doutrina historicis­ ta, porém , a teoria da revolução passa a ser insustentável. O ponto de vista de que o objetivo da revolução é livrar-nos da conspiração capitalista, e com ela da oposição à reform a social, é m uito generalizado. Contudo, esse ponto de vista é insustentável, mesmo se adm itirm os a realidade de tal cons­ piração. Um a revolução substituirá os que têm poder; m as, quem g aran tirá que os novos donos do poder serão melhores do que os antigos? A teoria da revolução não leva em conta o aspecto mais im portante da vida social — precisamos não tanto de hom ens bons como de boas instituições. Mesmo os m elhores governantes podem ser corrom pidos pelo poder; m as as instituições que perm item aos governados exercer um a m edida efetiva de controle sobre os governantes forçará mesmo os m aus governantes a fazer o que o povo considera de seu interesse. O u, p ara usar outras palavras, querem os ter bons governantes, mas a experiência histórica dem onstra que isso não é m uito provável. Daí a im portância de conceber instituições que im ­ peçam mesmo os m aus governantes de causar prejuízos graves à coletividade. H á som ente dois tipos de instituições governam entais: as que possibilitam a transferência de poder de form a pacífica e as outras. Se um governo não pode ser m udado sem violência, na m aior p arte dos casos não poderá ser substituído de nenhum a form a. E desnecessário discutirm os sobre term inologia e debaterm os pseudoproblem as tais como o sentido genuíno ou essencial da palavra “dem ocracia” . Podemos escolher o nom e que quisermos p ara esses dois tipos de governo. Pessoalm ente, prefiro denom inar de “dem ocracia” o tipo de governo que pode ser m udado sem violência; ao outro, cham o de “tira n ia ”. Mas, como disse, não devemos envol­ ver-nos num a disputa sobre o em prego de palavras; o que precisamos é distinguir claram ente entre dois tipos diferentes de instituições. Os m arxistas aprenderam a pensar não em term os de instituições, mas de classes. As classes, porém , nunca governam — como tam bém as nações não podem governar. Os governantes são sempre pessoas. Por outro lado, qualquer que seja a classe a que pertençam , quando assumem o poder passam a pertencer à classe dom inante. A tualm ente os m arxistas dirigem sua fé não p ara instituições mas para determ inadas personalidades, inspirados talvez pelo fato de que essas pessoas já p articip aram do proletariado. Essa atitude é um a conseqüência da sua crença na im portância predom inante das classes e das lealdades de classe. Os racionalistas, por outro lado, se inclinam mais p ara valorizar o papel das instituições no controle dos hom ens. Essa é a diferença fundam ental.

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C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

XI

Mas, que devem fazer os governantes? Ao contrário da m aior parte dos historicistas, creio que essa p ergunta não é va e que o tem a deve ser discutido. N um a dem ocracia, os governantes serão obrigados pela am eaça de rejeição a fazer o que a opinião pública ordena. E a opinião pública é algo em que todos podem influir — especialm ente os filósofos. Nas dem ocracias, as idéias dos filósofos contribuíram m uitas vezes p a ra o rientar o desenvolvimento dos eventos — gradualm ente, é certo. A política social inglesa, por exem plo, é hoje o que recom endavam outrora Bentham e John S tuart Mill — este últim o resum iu seus objetivos como “a m anutenção do pleno em prego, com salários elevados p a ra todos os trab alh ad o res”4 5. Penso que os filósofos devem continuar a discutir os fins adequados da política social, à luz da experiência dos últim os cinqüenta anos. Em lugar de se lim itar a discutir a “n atu reza” da ética, ou do bem suprem o, devem refletir sobre as questões fundam entais da ética e da política levantadas pelo fato de que a lib er­ dade política não é possível sem o princípio da igualdade perante a Lei; pelo fato de que, como a liberdade absoluta é impossível, devemos, como K ant, exigir em seu lugar a igualdade com respeito àquelas limitações da liberdade que constituem conseqüências inevitáveis da vida social; de que, por outro lado, em bora a procura da igualdade, especialm ente no sentido econômico, seja um objetivo em si m uito desejável, pode transform ar-se em am eaça à liberdade. Do mesmo m odo, devem considerar que o princípio utilitarista da m ax i­ m ização da felicidade pode facilm ente tornar-se um pretc :to p ara um a d itad u ra benevolente; assim, a proposta^ de que o substituam os por um princípio mais m odesto e mais realista — aquele segundo o qual a luta contra a miséria evitável deve ser um objetivo reconhecido da vida política, deixando-se o aum ento da fe­ licidade, de m odo geral, p ara a iniciativa privada.

P R E V IS Ã O E P R O F E C IA N A S C IÊ N C IA S S O C IA IS

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A revolução anterior contra Deus, de natureza n atu ralista, substituiu o nome de Deus pelo term o “N atureza”. Quase tudo o m ais foi deixado sem tocar. Assim, a teologia — ciência de Deus — foi substituída pela ciência da natureza; a vontade e o poder divinos foram substituídos pela vontade e poder da natureza — as forças naturais. Por fim, os propósitos e o julgam ento de Deus tiveram seu lugar ocupado pelo determ inism o naturalista; em outras palavras, a onipotência e a onisciência divinas cederam lugar à onipotência da n atu reza6 e à onisciência d a ciên cia. Hegel e M arx, por sua vez, substituíram a deusa N atu ra, pela deusa H is­ tória. Recebemos, assim, leis históricas: poderes, forças, tendências, objetivos e planos da H istória; a onipotência e a onisciência do determ inism o histórico. As ofensas contra Deus foram substituídas pelos atos de “criminosos que resistem em vão à m archa da H istória”. Passamos a aprender que não seremos julgados pela divindade, mas pela H istória — a H istória das “Nações” ou das “Classes”. E essa deificação da história que me proponho a com bater. Mas a seqüência D eus-N atureza-H istória, e a série correspondente de re ­ ligiões seculares, não term ina aqui. A descoberta historicista de que todos os p a ­ drões são apenas fatos históricos (em Deus, os padrões e os fatos se confundem ) leva à deificação dos fa to s — fatos da vida e do com portam ento do hom em (inclusive alguns fatos m eram ente alegados) — e portanto a religiões seculares baseadas em Nações e Classes; ao existencialismo, positivismo e behaviourism o. Como o com por­ tam ento hum ano inclui um a dim ensão verbal, somos levados ainda à deificação dos fatos da linguagem .? O apelo à autoridade lógica e m oral desses fatos (ou alegados fatos) constitui, ao que parece, a filosofia definitiva da nossa época.

Essa versão m odificada do utilitarism o poderia, na m inha opinião, conduzir m uito m ais facilm ente a um acordo sobre a reform a social necessária. Gom efeito, os cam inhos que levam à felicidade são teóricos, irreais — pode ser m uito difícil form ar um a opinião sobre eles. A m iséria porém nós conhecemos; precisaremos conviver com ela por m uito tem po ainda. Nós a conhecemos pela experiência. Que nossa tarefa seja im por à opinião pública a idéia simples de que é apropriado com ­ b ater os m ales sociais mais urgentes aqui e agora, um por um , em vez de sacrificar gerações em troca de um bem suprem o rem oto e talvez irrealizável. X II

Como a m aior p arte das revoluções de idéias, a revolução historicista parece ter tido pouco efeito sobre a estrutura basicam ente teísta e au to ritária do pensa­ m ento europeu.

4 — Na sua Autobiography, 1873, pág. 105. Foi F. A. Hayek que chamou minha atenção para essa passagem. A propósito da opinião pública vide também o cap. 17 deste livro.

6 -

5 — Estou empregando aqui o termo “proposta” no sentido técnico advogado por L. J. Russell (vide seu trabalho “Propositions and Proposals”, in Proc. o f the Tenth Intem . Congress o f Philosophy, Amsterdam, 1948).

7 — A propósito do positivismo legal vide Open Society and its Enemies, especialmente vol. 1, págs. 7173, vol. 2, págs. 392-5; F. A. Hayek, The Constitution of Liberty, 1960, pág. 236, F. A. Hayek, Studies in Philosophy, Politics and Economics, 1967.

Vide a Ética de Spinoza, i, prop. xxix.

17. A Opinião Pública e os Princípios Liberais*

Os com entários que seguem foram preparados como contribuição p ara o debate num a conferência internacional de pensadores liberais (no sentido inglês do term o). Meu objetivo, neste trabalho, foi sim plesm ente p re p a ra r a base p ara um bom debate geral. Como presum ia a convicção liberal da audiência, preocupei-me principalm ente em contestar as suposições populares favoráveis a esse ponto de vis­ ta. 1. O m ito da opinião pública. Devemos ter cuidado com um certo núm ero de mitos relativos à “opinião p ú blica” que m uitas vezes aceitam os acriticam ente. H á, em prim eiro lugar, o clássico m ito da voz p o p u li vox D ei — “a voz do povo é a voz de Deus” — que atribui à opinião popular um a sabedoria sem li­ mites, e a autoridade final, Seu equivalente m oderno é a crença na sabedoria do senso com um dessa figura m ítica — o “hom em da r u a ” ; no seu voto e n a sua voz. É significativo que nos dois casos se fale no singular — contudo, graças a Deus as pessoas raram ente são unívocas; pessoas diferentes, em ruas diferentes, são tão variadas quanto qualquer conjunto de homens im portantes, num a sala de reunião. Se ocasionalm ente elas se pronunciam mais ou m enos em uníssono, isso não sig­ nifica que dizem coisas necessariam ente sábias. De fato, podem ter razão ou estar enganadas. Sua “voz” pode ser m uito firm e a propósito de assuntos bastante d u ­ vidosos. Um bom exemplo é a aceitação quase unânim e, sem qualquer contestação, da exigência da “rendição incondicional” do inim igo, na Segunda G rande G uerra. Por outro lado, sua posição pode ser hesitante a respeito de tem as que deixam pouca m argem p ara dúvidas. Por exemplo: o julgam ento da chantagem política e do assassínio em massa. Em outras ocasiões, a opinião popular pode ser bem intencionada e im prudente. Por exemplo: a reação pública que condenou o plano H oare-Lavai. Ou ainda nem um a coisa nem o utra, como a aprovação geral dos acordos de M unique, em 1938. Acredito porém que há um núcleo de verdade oculto no m ito da vox populi. Poder-se-ia desçrevê-lo âssim: a despeito da inform ação lim itada ao seu dispor, Trabalho lido na Sexta Reunião da Sociedade Mont Pelerin, em Veneza, setembro de 1954. Publi­ cado em italiano em II Político, 20, 1955; em alemão, em Ordo, 8, 1956.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

m uitos homens simples são m uitas vezes mais sábios do que os seus governos; pelo menos, são inspirados por intenções melhores e mais generosas. Por exemplo: a dis­ posição de luta do povo tcheco, às vésperas de M unique; a reação contra o plano H oare-L aval. Um a form a do m ito — ou possivelmente da filosofia que há por trás do m ito — que me parece de im portância especial é a doutrina de que a a verdade é evi­ dente. Segundo essa concepção, em bora o erro precise ser explicado (devido à falta de boa vontade ou por causa do preconceito), a verdade sempre se fará conhecer, desde que não seja suprim ida artificialm ente. Nasce assim a crença em que a lib er­ dade, afastando a opressão e outros obstáculos, leva necessariam ente ao reino da V erdade e do Bem — a um “paraíso criado pela razão e adornado com os mais puros prazeres conhecidos pelo am or da h u m an id ad e” — nas palavras da frase final de Condorcet no Esboço de u m Quadro Histórico do Progresso da M ente H um ana. Sim plifiquei deliberadam ente esse im portante m ito, que pode tam bém ser enunciado assim: “Diante da verdade, ninguém deixará de reconhecé-la.” P ro ­ ponho cham arm os essa dou trin a de “teoria do otimismo racionalista” . De fato, trata-se de um a teoria que o Huminismo com partilha com a m aioria das suas derivações políticas e intelectuais. Como a vox populi, é outro m ito a respeito da voz unívoca. Se a h um anidade é um Ser que merece ser adorado, segue-se que sua voz unânim e deve constituir nossa autoridade final. Aprendem os porém que isso não passa de um m ito; e aprendem os tam bém a desconfiar da unanim idade. Um a reação a esse m ito racionalista e otim ista é representada pela versão rom ântica da vox populi — a dou trin a do caráter singular e da autoridade da von­ tade p opular, da “volonté generale", a “vontade g eral” ; do espírito popular, o génio nacional, a m ente grupai ou o instinto do sangue. Será desnecessário repetir aqui a crítica que K ant, entre outros (inclusive eu próprio), dirigiu contra essas doutrinas da percepção irracional da verdade, que culm inam com a doutrina hegeliana da “astúcia da razão” , que usa nossas paixões como instrum ehtós para a com preensão instintiva ou intuitiva da verdade; o que faz com que se torne im pos­ sível p a ra o povo errar — especialm ente se ele segue suas paixões, em vez da razão. U m a m odalidade im portante e ainda m uito influente desse m ito pode ser descrita como a idéia do progresso da opinião pública, que corresponde ao m ito da opinião pública dos liberais do século dezenove. Pode ser ilustrada com a citação de um a passagem de Phineas Finn de Anthony T rollope, p ara a qual m inha atenção foi ch am ad a pelo Professor E. H. G om brich. Trollope descreve a evolução de um projeto p arlam en tar em favor dos direitos dos colonos irlandeses. O corre um a divisão e o Governo é d errotado por um a m aioria de vinte e três votos. C om enta o Congressista Monk: “É pena, mas não estamos nem um pouco mais próximos de conseguir nosso objetivo do que an tes.” “Estamos um pouco mais p e rto .” “N um certo sentido, é verdade. O debate ocorrido e essa m aioria obrigarão as pessoas a pensar. Ou m elhor: pensar é um a palavra im portante d e ­ mais; de m odo geral, as pessoas não pensam . Mas eu as farei crer que há algum a coisa m eritória no nosso projeto. Muitos que consideravam qualquer legislação

A OPINIÃO PÚBLICA E OS PRINCÍPIOS LIBERAIS

3.81

sobre o assunto como um a quim era passarão a im aginar que ela é apenas perigosa, ou possivelmente apenas difícil. Com o tem po, o assunto será considerado como um a possibilidade, e por fim como algo provável. Finalm ente, será relacionado e n ­ tre as poucas providências de que o país realm ente precisa, que são absolutam ente necessárias. E assim que se faz a opinião p ú b lica.” — “P ortanto, disse Phineas, não foi um a perda de tem po d ar o prim eiro grande passo nesse sentido.” — “O prim eiro grande passo foi dado há m uito tem po, com entou o Senhor Monk: por pessoas que por isso foram consideradas dem agogos revolucionários, quase traidores. Mas é um a grande coisa poderm os tom ar qualquer m edida que nos leve a d ia n te .” A teoria exposta nessa passagem por Monk, o congressista liberal radical, poderia ser cham ada de “teoria da vanguarda da opinião p ú b lica” ou “teoria da liderança avançada” . Segundo ela há sempre alguns líderes ou form adores da opinião pública que conseguem — com livros, panfletos, cartas aos jornais, discur­ sos e projetos parlam entares — propor algum as idéias, que são a princípio rejeitadas, em seguida debatidas e por fim aceitas. A opinião pública é concebida, assim, como um a espécie de reação pública às idéias e aos esforços dos aristocratas da m ente que produzem novos pensam entos, novos argum entos; é lenta, algo passiva, intrinsecam ente conservadora, capaz porém de discernir intuitivam ente a verdade alegada pelos reform istas — um árbitro vagaroso, mas au toritário e definitivo, dos debates da elite. N ão há dúvida de que essa é outra form a do nosso m ito, em bora a realidade inglesa pareça à prim eira vista ajustar-se a ele. N ão há dúvida de que as idéias reform istas m uitas vezes se firm aram da m aneira descrita. Mas, isso terá acontecido só com as idéias válidas? Inclino-me a pensar que o que acontece na G rã-B retanha não é tanto a probabilidade do êxito da verdade ou sabedoria de um a proposta, que term ina por predom inar na opinião pública, mas o avanço gradu al do sentim ento de que há um a injustiça sendo com etida, e que ela pode ser corrigida; o que Trollope descreveu foi a característica sensibilidade m oral da opinião pública e o m odo como ela é ativada — pelo m enos com o o era no passado. É a in ­ tuição da injustiça e não a percepção intuitiva da verdade dos fatos. Por outro la ­ do, é duvidoso que a descrição de Trollope possa ser aplicada a outros países; de Tato, seria perigoso presum ir que mesmo na G rã-B retanha a opinião pública co n ­ tin u ará a ser no futuro tão sensível quanto foi no passado.

2 . Os perigos da opinião pública.

O que quer que seja a opinião pública, não há dúvida de que é m uito poderosa; pode m u d ar um governo, até mesmo um governo não dem ocrático. Os liberais deveriam naturalm ente considerar esse poder com um certo grau de des­ confiança. Por ser anônim a, a opinião pública é um a m odalidade irresponsável de poder p o rtan to , especialm ente perigosa do ponto de vista liberal. Tem os um bom exemplo disso nos problem as raciais. N um sentido, o rem édio p ara isso é ó b ­ vio: reduzindo-se o poder do Estado, reduz-se o perigo da influência da opinião pública, exercida através das instituições governam entais. Mas isso não garante a liberdade da conduta e do pensam ento individual, frente à pressão direta da opinião pública. Para esse fim , o indivíduo precisará da proteção poderosa do Es-

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

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tado. Essas exigências contraditórias são atendidas pelo menos em parte por um certo tipo de tradição, sobre o qual falarei mais adiante.

tenha algum a inconsistência fatal. Perceberá, sim, que a tradição dem ocrática não é bastante forte no seu país.

A d o u trin a de que a opinião pública não é irresponsável, mas “responsável perante si m esm a” — no sentido de que os erros que comete recaem sobre o público — é o u tra form a que assume o m ito coletivista da opinião pública; na verdade, a p ro p ag an d a de um grupo pode facilm ente prejudicar um grupo diferente.

5) Por si sós as instituições nunca são suficientes, quando a tradição não as tem pera. São sempre am bivalentes, no sentido de que, na ausência de um a forte tradição, podem buscar tam bém um objetivo contrário ao pretendido. Por exem ­ plo; supõe-se que um a oposição parlam en tar im peça sem pre a m aioria de abusar do dinheiro dos contribuintes (para falar de m odo grosseiro). Lem bro-m e porém do exemplo que ilustra a am bivalência dessa instituição; um país europeu onde a oposição rep artia o dinheiro público com a m aioria.

3 . Os princípios liberais: u m conjunto de teses.

1 ) 0 Estado é um m al necessário, cujos poderes não devem ser m ultip li­ cados além do necessário. Poderíam os denom inar este princípio de “navalha li­ b e ra l”, fazendo u m a analogia com a “navalha de O ckam ” — o famoso princípio segundo o qual as entidades ou essências não devem ser m ultiplicadas além do necessário. P ara dem onstrar a necessidade do Estado será desnecessário apelar p ara a concepção de Hobbes, do hom o hom ini lupus (“hom em , lobo do hom em ”). Essa necessidade pode ser provada mesmo se adm itirm os que hom o hom ini angelus — em outras palavras, ainda que admitíssemos que a suavidade e a bondade angelical das pessoas nos im pede de prejudicar nossos sem elhantes. Mesmo num m undo desse tipo co ntinuariam a existir pessoas mais fortes e mais fracas; e estas últim as não teriam o direito de ser toleradas pelas prim eiras, devendo-lhes portanto gratidão pela sua tolerância. Todos os que concordam em que essa situação não seria satis­ fató ria — que as pessoas devem ter direito a existir, à proteção contra o poder dos mais fortes — estarão de acordo tam bém em que o Estado é necessário para proteger os direitos de todos. É fácil perceber que o Estado é um perigo constante — ou um m al, em bora necessário. Para cum prir sua função, precisa ter mais poder do que qualquer in ­ divíduo ou associação de indivíduos; em bora seja possível criar instituições que atenuem o perigo de abuso desse poder, não é possível elim inar com pretám ente o perigo. Ao contrário, parece que a m aioria das pessoas precisará sempre pagar pela proteção que oferece — não só sob a form a de tributos mas tam bém na form a da hum ilhação sofrida, por exemplo, nas mãos de burocratas arbitrários ou g a n a n ­ ciosos. O problem a consiste em não sermos obrigados a pagar um preço execessivo. A

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A OPINIÃO PÚBLICA E OS PRINCÍPIOS LIBERAIS

2) A diferença entre a dem ocracia e a tirania é a seguinte; na prim eira, o governo pode ser substituído sem violência; o que não acontece na segunda.

C ■ \ 3) A dem ocracia por si mesm a não pode conceder aos cidadãos nenhum f^benefício; não se deve esperar isso. Com efeito, não há nada que a dem ocracia pos/ vsa fazer por si m esm a — são os cidadãos que, num a dem ocracia, atuam poli tiI cam ente (inclusive, como é natu ral, os cidadãos investidos de funções de governo). I A dem ocracia não faz mais do que proporcionar um quadro dentro do qual os \ cidadãos podem agir de m odo mais ou menos organizado e coerente. 4) Somos dem ocratas não porque a m aioria das leis tenha sempre razão, 1 mas porque as tradições dem ocráticas são as menos m alignas de todas as que co ­ nhecem os. Se a m aioria (ou seja, a “opinião p ú blica”) decide em favor de um a tirania, o cidadão dem ocrático não precisará supor que sua concepção política

Erri poucas palavras, as tradições são tam bém necessárias, como um a ponte entre as instituições e as intenções e valores dos indivíduos. 6 ) a utopia liberal — um Estado concebido racionalm ente sobre tabula rasa desprovida de qualquer tradição — é impossível. O princípio liberal èxige que as limitações à liberdade de cada um , que a vida social to m a necessárias, sejam m inim izadas e equalizadas na m edida do possível (K ant). Mas, como podemos aplicar um princípio apriorístico desse tipo à vida real? Será m ais justo proibir um pianista de exercitar-se ou im pedir seu vizinho de ter um a tarde tranqüila? Na prática, esses problem as só podem ser resolvidos m ediante o apelo às tradições e costumes existentes, bem como ao sentido tradicional de justiça. A com m on law, como dizem os ingleses, e ao sentido de eqüidade de um juiz im parcial. Sendo p rin ­ cípios universais, p ara ser aplicadas as leis precisam ser interpretadas. E a in te r­ pretação requer alguns princípios práticos, que só um a tradição viva pode fornecer. Isto é especialm ente verdadeiro no que se refere aos princípios universais altam ente abstratos do liberalismo.

7) Os princípios do liberalism o podem ser descritos como norm as para a avaliação — e, se necessário, para a m odificação — das instituições existentes; não se destinam a substituir essas instituições. É o que se pode exprim ir dizendo que o liberalismo é um credo evolucionário, não revolucionário — a não ser quando con­ frontado por um regime tirânico. 8 ) Entre as tradições, a mais im portante é a que podemos cham ar de “quadro m o ral” da sociedade (em paralelism o com o seu “q uadro legal”), que in ­ corpora o sentido tradicional de justiça e eqüidade — o grau de sensibilidade ética que alcançou. Esse quadro m oral serve como um a base p ara possibilitar a conci­ liação eqüitativa entre interesses conflitantes, sem pre que isso é necessário. N a ­ turalm ente, não é um a base im utável, mas se transform a de m odo relativam ente vagaroso. N ada é mais perigoso do que a destruição desse quadro tradicional (o que pretenderam conscientem ente os nazistas), pois sua destruição levará ao cinis­ mo e ao nihilismo — isto é, à dissolução de todos os valores hum anos.

4. A teoria liberal do livre debate. A liberdade de pensam ento, e o livre debate, são valores liberais básicos, que não requerem m aior justificação. No entanto, podem ser justificados p ra g ­ m aticam ente em termos do papel que desem penham na busca da verdade.

»CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

A OPINIÃO PÚBLICA E OS PRINCÍPIOS LIBERAIS

A verdade não é evidente, nem fácil de alcançar, A procura da verdade exige pelos menos:

Exemplos de opinião pública não institucionalizada ou inform al: a conversa das pessoas nos trens, nos ônibus e nos locais públicos, de m odo geral, sobre as ú l­ timas notícias, personalidades, as características de certas raças e grupos.

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a) im aginação; b) um processo de tentativas; c) a descoberta g radual dos nossos preconceitos, por meio da im aginação e do processo de tentativas, bem como da discussão crítica. A tradição racionalista ocidental, que se origina n a Grécia antiga, é um a tradição de discussão crítica — o exam e e o teste de proposições ou teorias, na te n ­ tativa de refutá-las. Esse processo de crítica racional não deve ser entendido como um m étodo destinado a provar — quer dizer, dirigido à dem onstração da verdade definitiva. T am bém não é um m étodo que leve necessariam ente a um acordo. Seu valor está no fato de que os que p articipam de um a discussão em certa m edida m u d arão suas opiniões, tornando-se mais sábios. Afirma-se m uitas vezes que a discussão só é possível entre pessoas que têm um a linguagem com um e que aceitam certas premissas fundam entais. Acho que is­ so é um equívoco. Só precisamos da disposição p ara aprender uns dos outros — o que inclui o desejo genuíno de com preender o que os outros querem dizer. Se há tal disposição, a discussão será tão mais frutífera quanto m ais variada a form ação dos que dela particip arem . Assim, o valor de um debate depende em grande p arte da variedade dos pontos de vista em disputa. Se a torre de Babel nunca tivesse exis­ tido, deveríamos inventá-la. Os liberais não sonham com um consenso perfeito; têm apenas a esperança de que haja um a recíproca fertilização de opiniões, e o conseqüente progresso de idéias. Mesmo quando um problem a é resolvido m ediante aceitação universal, ao solucioná-lo criamos muitos outros problem as, a respeito dos quais poderem os discordar. Isso, contudo, não é algo que se deva lam entar. Em bora a p rocura da verdade por meio da livre discussão racional tenha caráter público, seu resultado não é a opinião pública. A opinião pública pode ser influenciada pela ciência (e pode ju lg ar a ciência) mas não resulta d a discussão científica. C ontudo, é a tradição da discussão racional que cria, no cam po da política, a trad ição do governo pelo debate e com ela o hábito de ouvir os pontos de vista dos outros; o desenvolvimento do sentido de justiça; e a disposição conciliatória. Nossa esperança, portanto, é de que as tradições, transform ando-se e progredindo sob a influência da discussão crítica, em resposta ao desafio lançado pelos novos problem as, substitua o que conhecemos geralm ente sob o nom e de “opinião p ú b lica” ; e de que passe a exercer as funções que com petem à opinião pública. 5.

As fo rm a s da opinião pública.

A opinião pública tem duas form as: institucionalizada e inform al. Eis alguns exemplos de instituições que servem (ou influenciam ) a opinião pública: a im prensa (inclusive as cartas dos leitores), os partidos políticos, asso­ ciações diversas, universidades, editores, o rádio, o teatro, o cinem a, a televisão.

6.

mas.

385

A lguns problem as práticos: a censura e os monopólios de publicidade.

Nesta seção não apresentarei nenhum a tese — só um a coleção de proble­ Assim:

Em que m edida os argum entos contra a censura se baseiam num a tr a ­ dição de censura auto-im posta? Até que ponto os m onopólios editoriais representam um a form a de censura? Em que m edidá os pensadores têm a liberdade de publicar suas idéias? Pode e deve haver com pleta liberdade de publicação? A influência e a responsabilidade da classe intelectual — a intelligentsia: a) no que se refere à difusão de idéias (por exemplo, o caso das idéias socialistas); e b) no que diz respeito à aceitação de m odas que adquirem às vezes traços tirânicos (por exem plo, a arte abstrata). A liberdade universitária: a) a interferência governam ental; b) a in terferên­ cia privada; c) a interferência em nom e da opinião pública. A adm inistração e o planejam ento da opinião pública: os “homens de re ­ lações públicas” . O problem a da prop ag an d a da crueldade nos jornais (nas “estórias em quadrinhos”, por exemplo), no cinem a, etc. O problem a do gosto. A padronização e a uniform ização. O problem a da pro p ag an d a versus a difusão de inform ações.

7.

A lgum as ilustrações políticas.

Eis um a lista de casos que deveríamos analisar cuidadosam ente: 1) O plano H oare-Lavai e sua rejeição pelo entusiasm o m oral irrazoável da opinião pública. 2. A abdicação de E duardo V III. 3) M unique. 4) A d o utirna d a “rendição incondicional” .

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

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8 . Sumário.

Essa entidade intangível e vaga, que conhecemos como “opinião p ú b lica”, revela às vezes um a astúcia sim plória; m ais freqüentem ente, exibe um a sensibi­ lidade m oral superior à do governo. C ontudo, ela representa um perigo p ara a liberdade, se não for m oderada por um a forte tradição liberal. É perigosa tam bém como árb itro dos gostos e inaceitável como árbitro da verdade. No entanto, pode às vezes exercer a função de um árb itro de justiça esclarecido. Por exem plo, na li­ beração dos escravos nas colônias britânicas, no século dezenove. Infelizm ente, a opinião pública pode ser “adm in istrad a” . Todos esses perigos só podem ser re ­ m ediados pelo revigoram ento d a tradição liberal. Devemos distinguir a opinião pública da publicidade da livre discussão crítica, que é (ou deve ser) o m étodo da ciência, e que inclui a discussão de temas relativos à justiça e à m oralidade. A opinião pública é influencçada pela discussão crítica, m as não resulta dela, nem está sob ò seu controle. A influência benéfica do debate racional sobre a opinião pública será tanto m aior quanto mais honesta, simples e claram ente for ele conduzido.

18. Utopia e Violência* M uitas pessoas odeiam a violência e estão convencidas de que um a das tarefas mais im portantes e mais promissoras é tra b a lh a r pela sua dim inuição — se possível, pela sua elim inação da vida hum ana. Situo-me entre esses inimigos es­ perançosos da violência. N ão só a odeio mas acredito firm em ente que essa luta nos dá algum as esperanças. Sei, naturalm ente, que a tarefa é difícil. Com excessiva freqüência tem ocorrido na história que ao que parecia a princípio um a grande vitória n a lu ta contra a violência seguiu-se um a derrota fragorosa. Estou conscien­ te, por outro lado, de que a nova Idade da Violência inau g u rad a com as Grandes Guerras não chegou ao fim. O nazismo e o fascismo foram vencidos com pletam ente, o que não significa contudo que a b ru talid ad e e a barbárie tenham sido vencidas p ara sem pre. Ao contrário, seria inútil fecharm os os olhos p a ra o fato de que essas ideologias odiosas conseguiram , na sua derrota, algo que se parece com um a vitória. E preciso a d ­ m itir que H itler conseguiu degradar os padrões m orais do m undo ocidental; que hoje há mais violência e em prega-se mais a força b ru ta do que seria tolerável m es­ mo na prim eira década depois da guerra de 1914-1918. Tem os que adm itir a pos­ sibilidade de que nossa civilização seja destruída pelas novas arm as — quem sabe logo nos prim eiros anos depois da Segunda G rande G u e rra . *1 N ão há dúvida de que o espírito do hitlerism o obtém sua m aior vitória sobre nós, depois de derrotado, quando em pregam os as arm as que desenvolvemos p ara enfrentá-lo. A despeito de tudo isso, continuo a m anter m inha esperança de sempre de que a violência pode ser vencida. E nossa única esperança — e longos períodos de paz na história das civilizações do Ocidente e do O riente dem onstram que a violên­ cia pode ser reduzida, subm etida ao controle da razão. Talvez por isso acredito na razão — como m uitos; por isso me considero um racionalista. Sou um racionalista porque vejo na atitu d e razoável a única a lte r­ nativa p ara a violência. Q uando duas pessoas discordam , isso acontece porque têm opiniões diferen­ tes, interesses divergentes — ou as duas coisas. N a vida social há m uitos tipos de * Pronunciado no Instituto das Artes, em Bruxelas, em junho de 1947. Publicado pela primeira vez em The Hibbert Journal, 46, 1948. 1 — Escrito em 1947. Hoje, manteria essa passagem, alterando apenas a referência cronológica.

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desacordo que precisam ser resolvidos de um a m aneira ou de o u tra. O problem a pode exigir u m a solução, p ara evitar a criação de novas dificuldades cujos efeitos cum ulativos representem um a tensão insustentável — por exem plo, um estado de prep aração contínua e intensa p ara resolver a questão (como no caso das corridas arm am entistas). Pode ser indispensável chegar a um a solução. Como decidir? De m odo geral, há apenas duas form as possíveis: a nego­ ciação (inclusive a submissão de argum entos à arbitragem ) e a violência. O ra, se a pendência é de interesses, as duas alternativas são: um a conciliação razoável ou a tentativa de destruir o opositor. O racionalista — na acepção em que em prego a palavra — é aquele que procura chegar a decisões por meio de argum entação e f em klguns casos, da co n ­ ciliação, em vez de usar a violência. Preferirá deixar de convencer o adversário a esmagá-lo pela força, vencê-lo pela intim idação, pela am eaçâ ou mesmo pela p ro p ag an d a persuasiva. Com preenderem os m elhor o que quero dizer com razoabüidade se consi­ derarm os a diferença que há entre ten tar convencer por meio de argum entos e p ro cu rar persuadir por meio da prop ag an da. A diferença não está apenas no em prego de argum entos: a p ro paganda m uitas vezes tam bém os em prega. T am b ém não reside na convicção de que nossos argum entos são conclusivos e devem ser acatados por qualquer pessoa razoável. Ela se situa na atitu d e que favorece o intercâm bio, na disposição não só de convencer o adversário m as tam bém na aceitação da hipótese de sermos convencidos por ele. A atitu d e razoável poderia ser caracterizada por um a observação como a seguinte: “Acho que tenho razão, mas pode ser que esteja errado, e que Você tenha razão; de q u alq u er form a, vamos discutir o assunto, pois assim provavelm ente chegarem os mais perto de um entendim ento genuíno do que se os dois insistirmos sim plesm ente em que cada um de nós tem toda a razão” . Está claro que essa atitude pressupõe um a certa hum ildade intelecftual. T a l­ vez só os que a adotam têm consciência de que às vezes lhes falta a razão — são aqueles que não esquecem h abitualm ente os erros que com etem . E um a atitude que se origina na percepção de que não somos oniscidntes, que devemos aos outros a m aior p a rte do que sabemos. Uma atitude que p ro cura aplicar ao cam po das opiniões, de m odo geral e na m edida do possível, as duas regras que orientam q u alq u er processo legal: a prim eira, de que os dois lados devem ser ouvidos; a segunda, de que quem é parte de um conflito não pode a tu a r adequadam ente como juiz. A credito que só poderem os evitar a violência n a m edida em que praticarm os essa atitude razoável ao lidar com o próxim o, na vida social; qualquer o u tra a ti­ tude levará provavelm ente à violência — até mesmo a tentativa unilateral de tra ta r os outros com persuasão, de convencê-los com nossos argum entos e com o exemplo das intuições de que nos orgulham os tanto — e de cuja veracidade estamos a b ­ solutam ente seguros. Todos sabemos o núm ero das guerras religiosas feitas em nom e de um a religião que prega o am or e a bondade; quantas pessoas queim adas vivas com a intenção genuinam ente positiva de salvar almas do fogo eterno do in ­ ferno. Só ab an d o n an d o a atitude au to ritária no cam po da opinião podem os ter a esperança de controlar os atos de violência inspirados pela piedade e pelo dever —

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só se estabelecermos firm em ente a atitude de intercâm bio, a disposição de ap ren d er com os outros. H á m uitas dificuldades que im pedem a difusão rá p id a d a atitude razoável. Um a delas é o fato de que é preciso a boa disposição de duas pessoas para qum m a discussão se m antenha dentro dos limites do razoável. C ada um a das partes precisa estar disposta a aprender com a outra. Não é possível discutir racionalm ente com alguém que prefere m atar-nos a ser convencido pelos nossos argum entos. Em outras palavras, há limites p ara a atitude de razoabilidade. O mesmo acontece com a tolerância. N ão devemos aceitar sem qualificação o princípio de tolerar os in to ­ lerantes; senão, correrem os o risco da destruição de nós próprios e da própria atitude de tolerância. Por isso disse que a razoabilidade é um a atitude de intercâm ­ bio. Um a conseqüência im p o rtan te de tudo isso é que não podem os deixar que se, apague a distinção entre o ataque e a defesa. Precisamos insistir nessa distinção, apoiar e desenvolver as instituições sociais (nacionais e internacionais) que têm por função discrim inar entre a agressão e a resistência à agressão. Acho que já disse o bastante p ara to rn ar claro o que pretendo ao me definir como um racionalista. Meu racionalism o não é dogm ático. A dm ito, por outro lado, a incapacidade de prová-lo racionalm ente. Confesso com franqueza que prefiro o racionalism o porque odeio a violência e não pretendo iludir-m e acre­ ditando que esse ódio tenha qualquer justificativa racional. Em outras palavras, m eu racionalism o não se sustenta a si próprio, mas descansa num a crença irra ­ cional na atitude razoável. N ão vejo como se possa avançar além disso. Poder-se-ia dizer, talvez, que m inha crença irracional nos direitos iguais e recíprocos de que podem os convencer os outros e devemos ser convencidos por eles é um ato de fé na razão h u m an a. Em palavras m ais simples, acredito no hom em . O que quero dizer é que acredito no hom em como ele é — e não sonharia em dizer que é um ente inteiram ente racional. N ão acredito que se deva in d ag ar sê o hom em é mais racional do que em ocional ou vice-versa; não há form a de avaliar ou com parar essas coisas. Adm ito que sinto um a inclinação p a ra protestar contra certos exageros (que derivam em grande p arte da vulgarização da psicanálise) da irracionalidade do hom em e da sociedade. Mas estou consciente não só do poder das emoções na vida hum ana como tam bém do seu valor. N ão devemos jam ais exigir que a realização de um a atitude razoável se torne o objetivo predom inante das nossas vidas. O que pretendo é afirm ar que essa atitude pode adquirir um a presença perm anente — mesmo nas relações dom inadas por grandes paixões, como o am or. 2 Creio ter explicado bem m inha atitude fu n d am en tal com respeito ao p ro ­ blem a da razão e da violência; espero que seja co m p artilhada por alguns dos meus leitores e por m uitas outras pessoas, em toda a p arte. E sobre essa base que me proponho agora a discutir o problem a do pensam ento utópico.

2 — 0 existencialista Jaspers escreveu: “Por isso o amor é cruel, impiedoso; e por isso o amante genuíno só crê nele quando é assim”. Na minha opinião essa atitude revela fraqueza e não a força que pretende demonstrar. Não é sequer um barbarismo genuíno, mas apenas uma tentativa histérica de agir como bárbaro. (Vide Open Society, 4.a edição, vol. II, pág. 317).

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Penso que podem os descrever o utopism o como a conseqüência de um a fo r­ m a de racionalism o; tentarei m ostrar que se tra ta de m odalidade de racionalism o bem diferente d aquela em que acredito, e que m uitas outras pessoas aceitam . Procurarei m ostrar, assim, que há pelo menos duas form as de racionalism o — um a que acredito ser justa, a o u tra errônea; e que a form a equivocada do racio­ nalism o é a que leva ao pensam ento utópico. Até onde posso ver, o utopism o resulta de um a form a de raciocínio aceita por m uitas pessoas que ouviriam com surpresa a afirm ativa de que esse processo de raciocínio inescapável e evidente produz resultados utópicos. Esse pensam ento es­ pecioso pode talvez ser apresentado da seguinte form a: Adm itim os que um a ação é racional quando utiliza da m elhor m aneira os meios disponíveis p ara alcançar um determ inado fim . Adm itim os tam bém que o fim , em si mesmo, pode não ser determ inável racionalm ente. De qualquer m odo, só podem os ju lg ar um a ação racionalm ente, descrevendo-a como racional ou ad eq u ad a, em relação a algum fim . Só se tivermos um objetivo em vista podemos dizer que agimos racionalm ente — e só com relação àquele objetivo. Apliquem os agora esse argum ento à política. A política consiste em ações, que só serão racionais se perseguirem algum objetivo. O objetivo do co m portam en­ to político de um a pessoa pode ser o increm ento do seu poder ou riqueza; ou então o aperfeiçoam ento das leis do Estado, a m elhoria da estrutura do Estado. Neste últim o caso, a ação política só será racional se puderm os determ inar inicialm ene os objetivos finais da transform ação política que pretendem os. Será racional, bem entendido, com relação a certas idéias a respeito de como se deve es­ tru tu ra r o Estado. Parece assim que, prelim inarm ente a q u alquer ação política racional, será preciso d eterm inar, da form a mais clara que for possível, nossos o b ­ jetivos políticos últim os: por exem plo, o tipo de Estado que consideram os como o m elhor. Só depois disso devemos pensar nos meios que nos ajudarão a d ar realidade a esse Estado, ou a nos aproxim arm os dele gradualm ente, considerando-n como a m eta de um processo histórico que podemos em certa m edida influenciar, o rien ­ tando-o no sentido do objetivo colim ado. O ra, é precisam ente este ponto de vista que cham o de utopism o. De acordo com essa m aneira de pensar q ualquer ação política racional e não-egoísta deveria ser precedida pela determ inação dos seus objetivos últim os, não apenas dos o b ­ jetivos interm ediários ou parciais que constituem apenas passos na direção do fim últim o, e que p o rtan to deveriam ser considerados como meios, e não como fins. A ação política se basearia assim num a descrição detalhada e m ais ou menos clara do Estado ideal, bem como num plano da rota histórica que poderia levar àqüele o b ­ jetivo. Considero esta teoria bastante atraente, mas tam bém perigosa e perniciosa, autodestrutiva e levando à violência. E autodestrutiva porque é impossível determ inar cientificam ente os objetivos da nossa conduta. Não há um processo científico que determ ine a escolha entre dois objetivos alternativos. Algumas pessoas, por exem plo, am am e veneram a violência. P ara essas pessoas a vida sem violência seria trivial e pouco estim ulante. Já m uitas outras pessoas — estou entre elas — odeiam a violência. Tem os aí um a

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disputa a respeito de fins, que não pode ser decidida pela ciência. O que não sig­ nifica que a tentativa de arg u m en tar contra a violência seja necessariam ente um a perda de tem po. Q uer dizer apenas que pode acontecer que não sejamos capazes de argum entar com um adm irador da violência — ele pode responder a nossos a r ­ gum entos com um tiro, se não for m antido sob controle pela am eaça da c o n tra violência. Se, ao contrário, estiver disposto pelo m enos a ouvir nossos argum entos sem disparar contra nós, já estará infectado pelo racionalism o; talvez seja possível convencê-lo. Por isso arg u m en tar não significa perder tem po — desde que a pessoa com quem argum entam os esteja disposta a nos ouvir. N ão poderem os, contudo, convencer com nossos argum entos a que nos ouçam ; nem converter pela a rg u ­ m entação os que desconfiam de q u alquer argum ento e preferem as decisões violen­ tas às decisões racionais. N ão conseguiremos provar a essas pessoas que estão e n ­ ganadas. Este, natu ralm en te, é um caso especial, que pode ser generalizado. N e­ n h u m a decisão sobre objetivos pode ser tom ada por meios puram ente racionais ou científicos. N ão obstante, a argum entação pode ser extrem am ente útil p a ra chegarm os a um a decisão sobre nossos objetivos. Aplicando tudo isso ao problem a do utopism o, devemos antes de mais nada deixar bem claro que o problem a de form ular um plano utópico não pode ser solucionado exclusivamente pela ciência. Pelo menos os objetivos precisam ser dados, antes que os cientistas sociais comecem a desenhar suas plantas. Encon­ tram os a m esma situação nas ciências naturais. A física não dirá ao cientista se deve construir um arado, um avião ou um a bom ba atôm ica. O cientista precisará ad o tar ou receber seus objetivos; enquanto cientista o que ele vai fazer é produzir os meios necessários p ara a realização de tais fins. Ao acentuar a dificuldade de decidir, pela argum entação racional, entre diferentes ideais utópicos, não quero criar a im pressão de que existe um cam po — o reino dos fins — que escape totalm ente ao poder d a crítica racional, em bora ce r­ tam ente deseje dizer que o reino dos fins escapa em grande p arte ao poder da a r ­ gum entação científica. Eu próprio procuro discutir a respeito desse reino e, ao ap o n tar a dificuldade em decidir entre planos utópicos que com petem entre si, a r ­ gum ento racionalm ente contra a escolha de fins ideais desse tipo. Da m esm a fo r­ m a, a tentativa que faço de indicar que essa dificuldade deverá provocar violência deve ser entendida como um argum ento racional, em bora só atraia os que odeiam a violência. Podemos dem onstrar que o m étodo utópico, que escolhe um Estado ideal d a sociedade como objetivo das nossas ações políticas, tende à produção da violência. Como não temos condições de determ inar de m odo científico ou por m étodos puram ente racionais os fins últim os da ação política, as diferenças de opinião a res­ peito do Estado ideal nem sem pre podem ser superadas pela troca de argum entos. Pelo menos em parte elas terão o caráter de diferenças religiosas — e não pode haver tolerância entre essas diferentes religiões utópicas. Os objetivos utópicos cons­ tituem a base da discussão e da ação política racional; ação que só parece possível quando há um objetivo definido. Assim, o defensor de um a utopia precisa vencer seus adversários, que não participam dos mesmos objetivos e da m esma religião; a alternativa é a derrota total. Ele precisará tam bém elim inar cuidadosam ente todas as heresias. Com efeito, o cam inho que leva ao objetivo utópico é bastante longo; a racionalidade da ação política dem anda constância de objetivos d u ran te m uito tem po, o que só se

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pode conseguir com o esm agam ento das religiões utópicas competitivas e a obli­ teração, se possível, da sua m em ória. O em prego de métodos violentos p ara a supressão de objetivos competitivos se torn a ainda mais urgente se consideram os que o período da elaboração utópica será provavelm ente um período de transform ação social, quando as idéias tenderão tam bém a se m odificar. Assim, o que pode ter parecido a m uitos como desejável, no m om ento da escolha do plano utópico, parecerá talvez menos desejável algum tem po depois. Com isso, toda a estrutura passará pelo perigo do rom pim ento. Se m udarm os nossos objetivos políticos últimos, enquanto tentam os avançar, po d e­ remos descobrir que estamos andando em círculos. O m étodo de prim eiro d e te r­ m in ar um objetivo político final e então preparar-se p ara alcançá-lo pode ser fútil, se o objetivo for m odificado d u ran te o processo. Pode acontecer, por exem plo, que as m edidas já tom adas levem a um afastam ento com relação ao novo objetivo. Se m udarm os de direção p ara ajustar-nos ao novo objetivo, nos exporemos ao mesmo risco. A despeito de todos os sacrifícios feitos para assegurar-nos de que estamos agindo racionalm ente, pode acontecer que não cheguemos a nenhum lugar — e m ­ bora não exatam ente àquele “nenhum lu g ar” im plicado pela palavra “u to p ia” ... A única form a de evitar essas modificações de objetivo parece ser o em prego da violência — incluindo a p ropaganda, a supressão da crítica e o aniquilam ento de toda oposição. Com ela vai a afirm ação da sabedoria e da previsão dos p la ­ nejadores utópicos, dos engenheiros utópicos que desenham e executam os planos da utopia. Os engenheiros utópicos precisam assim tornar-se oniscientes, além de onipotentes. Eles se transform am em deuses, forçando a adoção da norm a: “Não terás outros deuses além de nós” . O racionalism o utópico é o racionalism o que se autodestrói. Por mais b e ­ nevolentes que sejam seus objetivos, não acarreta a felicidade, mas só a conhecida miséria da condenação ao governo tirânico. E im portante com preender bem estes com entários. N ão estou criticando nenhum ideal político em si mesmo, nem afirm ando que há um determ inado ideal político que não pode ser transform ado em realidade. Essa não seria um a crítica válida. Muitos ideais considerados dogm aticam ente irrealizáveis se transform aram em fatos — por exem plo, o estabelecim ento de instituições funcionais e nãotirânicas p ara g a ra n tir a ordem civil, isto é, p ara a supressão do crim e dentro do Estado. N ão vejo nenhum motivo p ara que um a m agistratura internacional e um a força internacional de polícia tivessem menos êxito na supressão do crim e in te r­ nacional — isto é, da agressão nacional e do tratam ento incorreto das m inorias e talvez mesmo de algum as m aiorias. Não objeto à tentativa de d a r corpo a esses ideais. Q ual a diferença, então, entre esses planos utópicos benevolentes, que critico porque podem gerar violência, e as outras reform as políticas im portantes e abrangentes que me inclino a recom endar? Se fosse possível d a r um a simples fórm ula ou receita para distinguir uns de oitfros diria: E preciso tra b a lh a r pela elim inação de males concretos e não pela realização de bens abstratos. Não devemos buscar instituir a felicidade por meios políticos,

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mas sim ten tar a elim inação de misérias concretas. O u seja, em termos mais práticos: devemos lu ta r pela elim inação da pobreza diretam ente — por exemplo, garantindo que todos tenham um a renda m ínim a; lu tar contra a doença construin­ do hospitais e escolas de m edicina; lu tar contra o analfabetism o como lutam os co n ­ tra a crim inalidade. Sempre de m odo direto. Devemos escolher o que consideramos o m al m ais urgente da sociedade em que vivemos e ten tar com paciência convencer as pessoas de que podem os livrar-nos dele. O que não devemos fazer é ten tar alcançar esses fins indiretam ente, tr a ­ balhando em prol do ideal rem oto de um a sociedade perfeita. Por mais que nos sintamos ligados a essa visão inspirador a, não devemos pensar que estamos o b ri­ gados a trab alh ar pela sua efetivação ou que é nossa missão ab rir os olhos dos outros p ara a sua beleza. N ão devemos perm itir que nossos sonhos de um m undo de beleza nos im peçam de ouvir os pedidos dos hom ens que sofrem aqui e agora. N os­ sos com panheiros neste planeta têm direito à nossa ajuda. N ão se pode sacrificar um a geração em benefício de gerações futuras, ou por am or a um ideal de feli­ cidade suprem a que poderá nunca ser alcançado. Em sum a, acredito que a miséria hum ana é o problem a mais urgente de um a política racional — e que a felicidade não constitui tal problem a. A busca da felicidade deve ser deixada a nossos esforços particulares. E verdade — e não é um a verdade m uito estranha — que não é difícil chegar a um acordo sobre quais os males mais intoleráveis d a nossa sociedade, m ediante a simples discussão. Podemos dessa form a chegar a um acordo sobre as reform as sociais mais urgentes — é um acordo mais fácil do que o relativo a a l­ gum a form a ideal de sociedade. Os males estão conosco; podem ser experim en­ tados; estão sendo vividos todos os dias por m uitas pessoas oprim idas pela pobreza, o desem prego, a perseguição, a guerra e a doença. Mesmo os que não padecem os com essas misérias encontram os diariam ente pessoas atingidas por elas, que podem descrevê-las. E isso que faz com que esses males sejam concretos. Por isso podemos chegar a um a conclusão, quando discutimos sobre eles: ganharem os assum indo atitude razoável. A prenderem os ouvindo essas reclam ações concretas, tentando pacientem ente avaliá-las do m odo mais im parcial; considerar as formas de re ­ m ediá-las sem criar males ainda piores. Q uando se tra ta de ideais, a situação é bem diferente. Só os conhecemos por meio dos nossos sonhos, dos sonhos de poetas e visionários. Eles não podem ser dis­ cutidos, devem ser proclam ados; não convidam à avaliação racional por um juiz im parcial, m as à atitude em ocional do pregador apaixonado. A atitude utópica se opõe, portanto, à atitude razoável. A inda que se revista de aparência racionalista, o utopism o não pode deixar de ser um pseudoracionalism o. Que há de errado, então, com o argum ento aparentem ente racional que apresentei, ao falar sobre a visão utópica? Acredito verdadeiro que só podemos ju l­ gar a racionalidade de um a ação tendo como ponto de referência algum objetivo determ inado. Mas isso não quer dizer necessariam ente que a racionalidade de um a ação política só possa ser ju lgada com relação a um fim histórico; não quer dizer, seguram ente, que devemos considerar qualquer ação social ou política do ponto de vista de um alegado objetivo final do desenvolvimento histórico. Pelo contrário, se entre nossos objetivos há algo concebido em termos de felicidade e m iséria h u m an a,

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devemos avaliar nossas ações não só em termos de um a possível contribuição p ara a felicidade do hom em , num futuro distante, mas tam bém tendo em vista seus efeitos mais im ediatos. Não devemos argum entar no sentido de que um a certa ação social seja um simples meio p a ra um fim determ inado, na base de que constitua m era situação histórica provisória. De fato, todas as situações são provisórias. T am bém não devemos argüir que a miséria de um a geração deve ser considerada como um meio p a ra assegurar a felicidade perm anente de gerações futuras — esse argum ento não será fortalecido nem pelo grau extrem o da felicidade prom etida nem pelo núm ero das gerações que gozarão dela. Todas as gerações passam . Todas têm igual direito, m as não há dúvida de que nosso dever mais im ediato está relacionado com a nossa p ró p ria geração e a seguinte. Além disso, nunca devemos ten tar com ­ pensar a miséria de alguém com a felicidade de outrem . Assim se dissolvem os argum entos aparentem ente racionais do utopism o. O fascínio que o futu ro exerce sobre os defensores de utopias n ad a tem a ver com a previsão racional. Considerada sob esta luz, a violência gerada pelo utopism o lem ­ bra o desvairio de um a m etafísica evolucionista, de um a filosofia histérica da his­ tória, p ro n ta a sacrificar o presente em troca dos esplendores de um futuro a l­ m ejado, sem perceber que esse princípio levaria ao sacrifício de cada futuro p a r ­ ticular pelo que se lhe seguisse; e sem perceber tam bém a verdade m uito simples de que não haverá p ara o hom em — qualquer que seja o seu destino — nenhum futuro mais esplêndido do que sua extinção final. O apelo do utopism o deriva da dificuldade em perceber que não podemos construir o céu sobre a terra. O que podemos fazer é to rn ar a vida um pouco m enos terrível e menos injusta, em cada geração. M uito pode ser feito nesse sentido. De fato, m uito já se fez nos últimos cem anos. Mais, porém , poderia ser feito pela nos­ sa geração. H á m uitos problem as que poderíam os resolver, pelo menos em p arte, tais como a assistência aos fracos e doentes, aos que sofrem opressões e injustiças; a elim inação do desem prego; a criação de oportunidades iguais para todos; a preven­ ção dos crimes internacionais, como as am eaças e as guerras instigadas pelos que agem como deuses, líderes oniscientes e onipotentes. T udo isso estaria ao nosso a l­ cance se pudéssemos deixar de sonhar com ideais distantes, e deixar de-lu tar por planos utópicos de construção de novos m undos e de um novo hom em . Aqueles dentre nós que acreditam no hom em como ele é, e que p o rtanto não ab an d o n aram a esperança de vencer a violência e a falta de razão, precisam exigir que todos tenham o direito de a rra n jar sua vida como quiserem , desde que de form a com patível com os direitos iguais dos seus sem elhantes. Vemos aqui que o problem a do racionalism o verdadeiro ou falso é parte de um problem a mais am plo. Ele consiste, no fim, no problem a de m an ter um a atitude sadia com relação a nossa própria existência e suas limitações o p ro ­ blem a a que os “existencialistas” de hoje (expositores de um a nova teologia sem Deus) atribuem ta n ta im portância. Creio que há um elem ento neurótico e até m es­ mo histérico nesta ênfase na solidão fundam ental do hom em num m undo sem Deus, n a tensão resultante entre o m undo e a personalidade individual. N&o tenho dúvida de que essa histeria está m uito próxim a do rom antism o utópico e tam bém da ética do h e ró i. — um a ética que só com preende a vida em termos de “dom ina ou serás d o m in ad o ” . N ão duvido tam bém que essa histeria é o segredo do seu forte apelo. O fato de que encontram os um claro paralelism o p ara a distinção entre o falso e o ver­

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dadeiro racionalism o mesmo n u m a esfera aparentem ente tão distante do racio­ nalismo como é a da religião m ostra que o nosso problem a é p arte de outro p ro ­ blem a, m uito m aior. Os pensadores cristãos in terp retam a relação entre Deus e o hom em em pelo menos dois modos m uito diferentes. O m odo sadio pode ser en u n ­ ciado assim: “N ão nos esqueçam os de que os hom ens não são deuses, m as que há neles um a centelha divina” . O outro exagera a tensão entre Deus e o hom em e a baixeza dos homens, em com paração com a altura a que podem aspirar. Introduz a ética do herói nas relações entre o hom em e a divindade. N ão sei se há sempre na raiz dessa atitude um sonho consciente ou inconsciente de onipotência; acho difícil, contudo, negar que a ênfase nessa tensão só pode derivar de um a posição de pouco equilíbrio com respeito ao problem a do poder. Essa atitude desequilibrada (e im atu ra) revela um a obsessão com o poder — não só sobre os homens, mas sobre o am biente n atu ral; sobre o m undo como um todo. O que poderia cham ar, por analogia, de “falsa religião” consiste num a obses­ são não só com o poder divino sobre os homens mas com o seu poder de criar o m undo. Da mesma form a, o falso racionalism o sofre o fascínio da idéia de criar grandes e poderosas m áquinas, sociedades utópicas. Os lemas “conhecim ento é p o der” , de Bacon, e “o governo p ara os mais sábios”, de Platão, expressam de fo r­ m a diferente essa atitude que, no fundo, representa um a dem anda de poder com base em dons intelectuais superiores. Por com paração, o verdadeiro racionalista sabe sem pre o pouco que sabe; terá sempre consciência do simples fato de que — quaisquer que sejam suas faculdades críticas, ele as deve ao intercâm bio intelec­ tual com outras pessoas. Por isso sentirá a inclinação de tra ta r os homens como fundam entalm ente iguais — e a razão h u m ana com a um vínculo que os une. Para ele a razão será exatam ente o contrário de um instrum ento de poder e violência: ele a verá como um meio p ara o seu controle.

19. A História do Nosso Tempo: Uma Visão Otimista* Nesta série de conferências com que se cultua a m em ória de Eleanor Rathbone, essa inspirada e bem sucedida reform ista social, não será im próprio adotar como tem a um a avaliação geral — em bora tentativa — do problem a da reform a social na nossa época. Que conseguimos até hoje nesse cam po, se é que conse­ guimos algum a coisa? Como se com para neste p articu lar a sociedade ocidental com as outras sociedades? São essas as questões que me proponho a discutir aqui. Escolhi como título d a m inha conferência: “A H istória do Nosso Tempo; Uma Visão O tim ista”. Será conveniente que comece explicando esse título. Q uando digo “H istória” desejo referir-m e p articu larm en te à nossa história política e social, mas tam bém à nossa história m oral e intelectual. “Nossa”, porque me dirijo ao m undo livre constituído pela com unidade atlântica — em especial a Inglaterra, os Estados Unidos, os países escandinavos e a Suíça, bem como às posições avançadas desse m undo que podem os encontrar no Pacífico, — A ustrália e Nova Zelândia. “Nossa época” quer dizer, em especial, o período a p artir de 1914, mas significa tam bém , de m odo geral, o período que com eça com a guerra dos Boers, na África do Sul — a era de W inston C hurchill, como poderíam os cham ála; os últimos cem anos, isto é, o tem po transcorrido a p a rtir da abolição da es­ cravatura e de John Stuart Mill; os últim os duzentos anos, isto é, a época que começa com a Revolução N orte-A m ericana, a p a rtir de H um e, V oltaire, K ant e Burke; e, em m enor m edida, os últim os trezentos anos — a época que começa com a R eform a, Locke e Newton. Agora, a palavra “otim ista” . Antes de m ais n ad a, quero deixar bem claro que em bora me considere um otim ista, não sei como será nosso futuro. Nào pretendo posar como profeta, menos ainda como um profeta da história. Muito pelo contrário, há anos que defendo a tese de que a profecia histórica é um a form a de charlatanism o . *1 Não acredito em leis históricas, especialm ente na lei do p ro ­ gresso. Por outro lado, acho que é m uito mais fácil regredir do que progredir. Sexta conferência em memória de Eleanor Rathbone, pronunciada na Universidade de Bristol em 12 de outubro de 1956. 1 - Vide meu livro Poverty of Historicism, 1957, bem como o cap. 16 desta obra.

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N ão obstante, penso poder qualificar-m e apropriadam ente como um o ti­ m ista. Meu otim ism o se baseia inteiram ente na m inha interpretação do presente e do passado im ediato, num ponto de vista vigorosamente favorável com relação à nossa época. O que quer que se pense desse otimismo, é preciso adm itir que não é um a atitu d e m uito com um . N a verdade, as queixas dos pessimistas se to rnaram um coro m onótono. N ão há dúvida de que há m uitas coisas no m undo de que p o ­ demos queixar-nos com razão; tam bém não há dúvida de que m uitas vezes é mais im portante concentrar-nos no que há de errado conosco. Acho, contudo, que devemos a te n ta r igualm ente p ara o outro lado da m oeda. E com relação ao passado im ediato e à nossa época que m antenho um ponto de vista otim ista. O que me leva, por fim, à expressão “ponto de vista”. Procurarei, nesta conferência, traçar em poucas linhas um panoram a geral do nosso tem po. Será, sem dúvida, um a visão m uito pessoal — um a interpretação, não apenas um a descrição. Pretendo, no entanto, apoiá-la com argum entos. Em bora os pessimistas possam considerá-la superficial, farei pelo menos a tentativa de apresentá-la como um desafio. Com eçarei, portanto, com um desafio. Desafio que faço a um a certa crença que parece m uito difundida, em m uitos círculos diferentes. Não só por autoridades eclesiásticas, cuja sinceridade está acim a de qualquer suspeita, mas tam bém por racionalistas como B ertrand Russell, que m uito adm iro como pessoa e como fisósofo. Mais de um a vez, Russell m anifestou a crença que pretendo contestar, queixando-se de que nosso desenvolvimento intelectual ultrapassou nosso desenvol­ vim ento m oral. De acordo com Russell o hom em se tornou m uito engenhoso: engenhoso dem ais. Somos capazes de construir m áquinas m aravilhosas — a televisão, foguetes, a bom ba term onuclear. C ontudo, não fomos ainda capazes de chegar à ‘m aturidade m oral e política que p erm itiria controlar e orientar com segurança a utilização da nossa poderosa capacidade intelectual. Por isso corremos um perigo m ortal. Nosso maléfico orgulho nacional nos im pede de construir em tem po útil o Estado m u n ­ dial. Em sum a: somos inteligentes, porém m aus — m istura que constitui a origem dos nossos problem as. Pretendo sustentar exatam ente o contrário. M inha prim eira tese é a seguin­ te: Somos bons — talvez bons dem ais —, porém um tanto estúpidos — m istura que constitui a origem dos nossos males. P ara evitar interpretações errôneas, devo deixar claro que o pronom e “nós” , neste caso, inclui m inha pessoa. Poder-se-ia talvez perg u n tar por que m inha prim eira tese seria parte do ponto de vista de um otim ista. H á várias razões p ara isso. Um a delas é a seguinte: a

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m aldade é ainda m ais difícil de com bater dp que um a certa m edida de estupidez — os homens bons não m uito inteligentes via de regra têm um forte desejo de ap re n d e r. O utra razão é que não creio que sejamos desesperadam ente estúpidos — o que é, decerto, um a visão otim ista. O que há de errado conosco é que nos deixamos guiar pelos outros com excessiva facilidade, como observou Samuel Butler em Erewhon. Para citar um a das m inhas passagens favoritas desse livro, “Veremos que os erewhonianos são um povo dócil e sofredor, facilm ente conduzíveis, sempre prontos a sacrificar o bom senso no altar da lógica quando surge entre eles algum filósofo que os transporta ..., convencendo-os de que as instituições existentes não se baseiam nos m ais estritos princípios da m o ralid ad e”. Vê-se que m inha prim eira tese, em bora se oponha diretam ente a um a autoridade do nível de B ertrand Russell, está longe de ser original. Samuel Butler parece ter refletido dentro das mesmas linhas. T an to a form ulação de Butler como a m inha própria são algo ligeiras. Mas a tese é séria, e pode ser enunciada com m aior gravidade do seguinte m odo: Os principais problem as do nosso tem po — não nego que vivemos tempos difíceis — não se devem à perversão m oral mas, ao contrário, ao nosso entusiasmo m oral m al orientado: à ansiedade de m elhorar o m undo. Nossas guerras são fu n ­ dam entalm ente guerras religiosas — conflitos entre teorias competitivas sobre como construir um m undo m elhor. Nosso entusiasm o m oral é m uitas vezes m al orientado porque não percebem os que nossos princípios m orais — seguram ente simples demais — são difíceis de aplicar às situações hum anas com plexas, em bora nos sin­ tamos obrigados a aplicá-los de qualquer form a. Não espero, n aturalm ente, que os que me ouvem concordarão logo com a m inha tese ou a de B utler. Mesmo que haja um a certa sim patia pelas idéias de Butler, isso não acontecerá com as m inhas idéias. Dir-se-á que Bacon foi um vi­ toriano. Mas, como posso eu, nesta época, dizer que não vivemos num m undo de m aldade? Terei esquecido H itler e Stalin? Não, não os esqueci. Por outro lado, não m e deixei im pressionar excessivamente por eles. A despeito de H itler e Stalin, sou conscientem ente um otim ista. Nesse contexto, os dois — e seus assistentes imediatos — podem ser postos à m argem . O que é m ais interessante é o fato de que os g ra n ­ des ditadores tiveram sem pre um grande núm ero de adeptos. Afirmo, porém , que m inha prim eira tese (ou, se preferirem , a tese de Butler) se aplica à m aioria desses discípulos. A m aior p arte dos que acom panharam H itler e Stalin o fizeram porque, nas palavras de Butler, eram “facilm ente conduzíveis”. Precisamos adm itir que os grandes ditadores apelaram para todos os tipos de tem or e de esperança, precon­ ceitos e invejas, para o ódio. Seu m aior apelo, porém , foi p ara um tipo especial de m oralidade: tinham um a m ensagem e exigiam sacrifícios. E triste ver como um apelo à m oralidade pode ser objeto de abuso. A verdade, porém , é que os grandes ditadores estão sempre convencendo o povo de que conhecem o cam inho que leva a um a m oralidade superior. Para ilustrar esse ponto, poderia relem brar um notável panfleto, publicado em 1942. Nesse panfleto o bispo de B radford atacou um a certa form a de orga-

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nização social que descreveu como “im o ral” e “anticristã” , sobre a qual afirm ou: “q uando encontram os algo que revela tão claram ente a m arca do dem ônio... não há o que possa desculpar um m inistro da Igreja de deixar de trab alh ar pela sua d estruição” . Essa sociedade, que na opinião do bispo de B radford é um a obra do dem ônio, não é a A lem anha de H itler ou a Rússia de Stalin, mas nossa sociedade ocidental: o m undo livre da com unidade atlântica. Vale n o tar que o bispo fez tais afirm ações num panfleto publicado p a ra apoiar o regime satânico de Stalin. Estou absolutam ente convicto de que sua condenação m oral é sincera. O que o cegou foi o fervor ético, como acontece com muitos — im pedindo-os de ver certos fatos que outros podem ver sem dificuldade. Por exem plo, o fato de que num erosas pessoas inocentes estavam sendo tortu rad as nas prisões de Stalin. 2 Tem os aí, penso, um exem plo típico da recusa de en frentar os fatos, em bora estes sejam óbvios; um a típica falta de espírito crítico; a disposição p ara ser con­ duzido p o r quem quer que afirm e que “as instituições existentes não se baseiam nos m ais estritos princípios d a m o ralid ad e” . E um exemplo de como a bondade pode ser perigosa se se com bina com um a dose m uito pequena de crítica racional. O bispo de B radford não está só. Alguns se lem brarão de um a notícia procedente de P raga, publicada no The Tim es em 1951 ou 1952, segundo a qual um famoso cientista britânico qualificara Stalin como “o m aior dos cientistas” . Fica-se a pensar o que d irá esse famoso físico agora que a doutrina do satanism o staliniano se tornou, pelo menos por enquanto, um com ponente essencial da linha p a rtid á ria . T u d o isso m ostra como somos espantosam ente “conduzíveis” por quem p reten d a conhecer um a m oralidade superior. Os adeptos de Stalin dão hoje um triste espetáculo. C ontudo, da m esm a fo r­ m a como adm iram os os m ártires cristãos, não podemos evitar um a hesitante a d ­ m iração pelos que m antiveram sua fé no stalinismo, em bora torturados nas prisões russas. Sua fé se dirigia p ara um a causa que sabemos m á — hoje, até os m em bros do P artido Com unista sabem disso. Mas eles acreditavam nela com toda sinceri­ dade. V Veremos como esse aspecto do nosso problem a é im portante se lem brarm os que todos os grandes ditadores foram forçados a prestar hom enagem à bondade do hom em . Foram forçados a pagar tributo a um a m oralidade em que não acredi­ tavam . Intelectualm ente, o com unism o e o nacionalism o são fronteiriços do ab su r­ do; sua força consiste em que são vistos como m oralidade e como religião. O absurdo da crença com unista é evidente. A pelando p ara a fé na liberdade h u m an a, o com unism o produziu um sistema de opressão sem paralelo na história. A fé nacionalista é igualm ente absurda. N ão aludo aqui ao m ito racial de H itler, mas sim a um alegado direito n atu ral do hom em — o alegado direito à autodeterm inação das nações. E im pressionante que até mesmo um grande h u ­ m anista e liberal como Masaryk tenha podido sustentar esse absurdo. O fato é suficiente p ara destruir nossa fé na sabedoria do filósofo-rei; deve ser ponderado 2 — 0 panfleto é Christians in the Class Struggle, de Gilbert Cope, com prefácio do bispo de Bradford. Vide Open Society and Its Enemies (edições a partir de 1950), nota 3, cap. 1; nota 12, cap. 9.

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por todos os que pensam que somos inteligentes e m aus (e não bons e estúpidos, como acredito). O absurdo do princípio d a autodeterm inação das nações deve aparecer claram ente a quem dedicar um m inuto aT riticá-lo: ele equivale à exigên­ cia de que cada Estado seja um Estado nacional; que se lim ite à fronteira natural, coincidindo com a localização de um grupo étnico; assim, é o grupo étnico, a “n ação ”, que determ inará e protegerá os limites n aturais do Estado. C ontudo, nao existem Estados nacionais desse tipo. Mesmo a Islândia — a única exceção de que m e lem bro — é só um a exceção aparente à regra geral, pois seus limites são determ inados não pela localização de um grupo étnico, mas pelo A tlântico N orte; e são protegidos não pela nação islandesa, m as pela Organização do T ra ta d o do A tlântico N orte. Os Estados nacionais não existem, simplesmente porque as cham adas “nações” (ou “povos”) com que sonham os nacionalistas ta m ­ bém não existem. Praticam ente não há grupos étnicos homogêneos estabelecidos em países com fronteiras naturais. Em toda a parte encontram os um a m istura de grupos étnicos e lingüísticos (os dialetos correspondem m uitas vezes a verdadeiras barreiras lingüísticas). A Tchecoslováquia de Masaryk foi fu n d ad a com base no princípio da autodeterm inação. Logo depois de criada, porém , os eslovacos passaram a exigir, em nome desse mesmo princípio, sua libertação do dom ínio tcheco; e o país foi por fim destruído pela m inoria alem ã, tam bém em nom e do mesmo princípio. Si­ tuações sem elhantes surgiram praticam ente sem pre que se aplicou o princípio da autodeterm inação nacional à fixação das fronteiras de um novo Estado — na Irlanda, na ín d ia, em Israel, n a Iugoslávia. Em todos os países há m inorias étnicas. Não podemos ad o tar como um objetivo apropriado “liberá-las” a todas; nosso o b ­ jetivo deve ser protegê-las. A opressão de grupos nacionais é u m grande mal; mas a autodeterm inação nacional não representa u m rem édio aceitável. Além disso, temos na Inglaterra, nos Estados Unidos, no C anadá e na Suíça exemplos óbvios de Estados que em m uitos aspectos violam o princípio d a nacionalidade: em vez de ter suas fronteiras determ inadas por um grupo estabelecido, cada um desses Estados conseguiu reunir dentro das suas fronteiras u m a variedade de grupos étnicos. O problem a, p o rtan to , não parece insolúvel. No entanto, a despeito de todos esses fatos tao evidentes, o princípio da autodeterm inação nacional continua a ser aceito am plam ente como parte da nossa crença m oral. R aram ente é contestado. Recentem ente um cipriota apelou p ara esse princípio, em carta dirigida ao jornal The Tim es — descreveu-o como um p rin ­ cípio m oral universalm ente aceito. De acordo com o seu ponto de vista, os defen­ sores do princípio da nacionalidade defendem os sagrados valores hum anos e os direitos naturais do hom em (ao que parece, mesmo quando com etem atos de te r­ rorism o contra os com patriotas que não com partilham das mesmas idéias). O fato de que essa carta não m encionava a m inoria étnica de Chipre; de que foi publicada pelo jornal; e de que sua d o utrina m oral n^o sofreu contestação em toda um a lon­ ga seqüência de cartas sobre o assunto — tudo isso contribui p ara dem onstrar m inha prim eira tese. Parece-m e, de fato, que o núm ero de pessoas m ortas pela es­ tupidez investida de objetivos m orais é m aior do que o das que são assassinadas por simples m aldade. A religião nacionalista é poderosa. M uitas pessoas se dispõem a m orrer por ela, acreditando com fervor que é m oralm ente boa e factualm ente verdadeira. No

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en tan to , essas pessoas se equivocam tan to quanto seus com panheiros comunistas. Poucas crenças criaram mais ódio, crueldade e sofrim ento sem sentido do que a fé na santidade do princípio da nacionalidade. Contudo, ainda se acredita a m p lam ente que esse princípio aliviará a opressão nacional. Adm ito que m eu otimismo sofre um certo abalo q uando percebo a quase unanim idade com que esse princípio é aceito, ain d a hoje, sem hesitação ou dúvida — mesmo por aqueles cujos interesses políticos claram ente se opõem a ele. Recuso-me porém a aban d o n ar a esperança de que o absurdo e a crueldade desse alegado princípio m oral serão algum dia re ­ conhecidos por todos os hom ens que pensam . Deixemos agora essas tristes histórias de entusiasm o m oral m al dirigido e voltemo-nos p a ra o nosso m undo livre. Resistirei à tentação de d ar outros a rg u ­ m entos em favor da prim eira tese, e abordarei a segunda. Disse aqui que sou um otim ista. O ra, o otimismo como credo filosófico é m elhor conhecido sob a form a da fam osa d outrina, defendida por Leibniz, de que nosso m undo é o m elhor de todos os m undos possíveis. N ão acredito que essa afir­ m ativa de Leibniz seja verdadeira. Estou certo, porém , de que receberei o título feliz de otim ista depois que enunciar m inha segunda tese, a qual faz referência ao nosso m undo livre — a sociedade d a com unidade atlântica.

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N a m inha opinião, esses são fatos. No entanto, antes de exam inar esses fatos m ais de perto, quero salientar que tenho consciência da existência de outros fatos. O poder continua corrom pendo, mesmo no nosso m undo. Os hom ens públicos se conduzem às vezes de form a im ­ própria. A bundam pequenos ditadores. Um a pessoa norm alm ente inteligente que busque conselho médico deve preparar-se para ser tra ta d a como um a espécie de imbecil, logo que dem onstrar algum interesse inteligente — isto é, um interesse crítico — na sua condição física.

Isso se deve porém não à falta de boas intenções, mas à incom petência. E há algum as compensações. Por exemplo: em certos países do m undo livre (estou p e n ­ sando na Bélgica) os serviços hospitalares estão sendo reorganizados com êxito em torno do objetivo óbvio de transform ar os hospitais e enferm arias em locais agradáveis e não deprim entes, levando em conta a sensibilidade dos pacientes, ferida m uitas vezes pelas práticas prevalecentes. Percebe-se nesses países como é im portante criar um a cooperação genuína e inteligente entre m édico e paciente, p ara g aran tir que todas as pessoas — mesmo as que estão doentes — não rejeitem a responsabilidade que devem sentir por si mesmas.

M inha segunda tese é a seguinte: A despeito dos nossos problem as, que são grandes e sérios, e apesar do fato de que nossa sociedade não é seguram ente a m elhor possível, afirm o que o m undo livre que conhecemos é sem dúvida a m elhor das sociedades que já existiram , em todo o curso da história. N ão afirm o, p o rtan to (como Leibniz), que nosso m undo é o m elhor de todos os m undos possíveis, nem que nossa sociedade é a m elhor possível. M inha tese é, sim plesm ente, que nossa sociedade é a m elhor de quantas já existiram , dentro do cam po do conhecim ento histórico disponível. "*

Vamos considerar, contudo, problem as de m aior dim ensão. A verdade é que nosso m undo livre conseguiu elim inar em grande p arte, senão inteiram ente, os males mais graves que têm afligido o hom em até aqui.

Eis um a lista fie alguns dos m aiores problem as que podem ser rem ediados, ou atenuados, pela cooperação social: A pobreza. O desem prego e certas form as de insegurança social.

Penso que depois de dizer isso terei o direito de me considerar um otim ista. C ontudo, poderei ser objeto da suspeita de ser um m aterialista — estaria consi­ deran d o nossa sociedade como a m elhor de todas porque é a mais rica que a his­ tória já viu. N ão é essa, porém , a razão por que penso assim. Reconheço que é um a grande coisa term os conseguido — ou quase — abolir a fome e a pobreza. Mas o que adm iro mais não é a nutrição, os plásticos, os tecidos sintéticos ou a televisão. Penso sobretudo nos mesmos valores que levaram o bispo de B radford, há tão pouco tem po, a caracterizá-la como obra dem oníaca: os padrões e valores que nos chegaram , através do Cristianism o, da Grécia e da T erra Santa; de Sócrates; do Velho e do Novo T estam entos. Em nen h u m a o u tra época, em nenhum outro lugar, os homens foram mais respeitados. N unca antes seus direitos e sua dignidade m ereceram tanto respeito; nunca houve tantas pessoas prontas a se sacrificar pelo próxim o, em especial pelos menos afortunados.

A doença e a dor. A crueldade penal. A escravidão e outras form as de servidão. A discrim inação racial e religiosa. A falta de oportunidades educacionais. A rigidez das diferenças de classe. A g u e rra . Vejamos o que conseguimos — não só na G rã-B retanha, por meio do W el­ fa re State, o Estado assistencial —, mas em todo o m undo livre, de um m odo ou de outro:

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A pobreza abjeta foi praticam ente abolida. Deixou de ser um fenôm eno de massa, passando o problem a a consistir na identificação de casos isolados que p e r­ sistem. O problem a do desem prego e da insegurança social se alterou com pleta m ente. Enfrentam os agora problem as trazidos pela solução, em larga m edida, do desem prego geral. Tem os feito progresso contínuo no controle da doença e da dor.

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outro lado, o ataque aberto de Mussolini contra a Etiópia injuriou de tal form a a opinião pública britânica que o plano H oare-Laval, que pretendia judiciosam ente m anter Mussolini afastado de H itler, foi derrubado pela explosão de indignação pública. Um exemplo ainda mais forte é o da atitude pública com relação à guerra preventiva contra a Rússia. Por volta de 1950, até B ertrand Russell preconizava um a guerra preventiva. E preciso adm itir que havia fortes razões p a ra isso: a Rússia não possuía ainda um arsenal atômico; seria a últim a oportunidade p ara im pedir que adquirisse a bom ba de hidrogênio.

A reform a penal aboliu em grande parte a crueldade nas prisões. O êxito da luta contra a escravidão é motivo de orgulho para a Inglaterra e os Estados Unidos. A discrim inação religiosa praticam ente desapareceu. A discrim inação racial dim inuiu a ponto de ultrapassar as esperanças dos mais otimistas. O que torna essas duas realizações ainda mais notáveis é o fato de que os preconceitos religiosos — e m ais ainda os preconceitos raciais — são hoje quase tão difundidos quanto há cinqüen ta anos.

Não invejo o Presidente dos Estados Unidos, com o seu poder de decidir e n ­ tre duas alternativas terríveis. Uma era iniciar um a guerra. A o utra, perm itir que Stalin adquirisse o poder de destruir o m undo — um poder que certam ente não lhe devia ser confiado. N ão há dúvida de que B ertrand Russell tinha razão ao m anter que, de um ponto de vista puram ente racional, a segunda alternativa era ainda pior do que a prim eira. Mas a decisão foi contrária, m esm o naquelas circunstâncias cruciais, e com a certeza da vitória, um a guerra de agressão era m oralm ente im ­ possível .

O problem a das oportunidades educacionais ainda é m uito sério, mas está sendo debatido com sinceridade e energia.

O m undo livre ainda pode fazer a guerra, mesmo em situação difícil, como ocorreu mais de um a vez no passado. Mas só fará isso diante de um a agressão inequívoca. P ortanto, n a m edida em que a guerra concerne ao m undo livre, podese dizer que ela foi conquistada.

As diferenças de classe d im inuíram enorm em ente em toda p arte. N a Escan­ dinávia, nos Estados Unidos, C anadá, Austrália e Nova Zelândia, estamos bem perto de um a sociedade sem classes.

T erm ino aqui m eu breve exame da lista de oito grandes m ales sociais.

Q uanto à guerra, preciso discuti-la mais extensam ente. Será m elhor fazê-lo sob a form a de um a terceira tese. M inha terceira tese é a de que, desde os tempos da guerra dos Boers, todos os governos dem ocráticos do m undo livre perderam a possibilidade de fazer um a guerra de agressão. N enhum governo dem ocrático pode m an ter sua unidade em torno de tal objetivo porque atrás dele não haveria um a nação unida,. A guerra de agressão tornou-se quase que um a im possibilidade m oral. 3 A g uerra dos Boers provocou um a comoção de sentim entos na Inglaterra, levando a um a conversão m oral em favor da paz. Devido a essa atitude a GrãB retanha hesitou em resistir ao Kaiser, só tendo entrado na prim eira guerra m u n ­ dial depois da violação da Bélgica. Pela mesma razão a Inglaterra se dispôs a fazer concessões a H itler, às vésperas da segunda guerra m undial. Q uando o exército alem ão entrou na R enânia, isso constituiu indubitavelm ente um ato de agressão. No entanto, a opinião pública inglesa im pediu o governo de enfrentar o desafio lançado por H itler — o que seria o mais razoável, naquelas circunstâncias. Por

3 — Escrito antes da aventura anglo-francesa em Suez. Parece-me que a triste história dessa aventura vem dar apoio às minhas primeiras três teses.

Creio que é m uito im portante registrar tudo o que o m undo livre já con­ seguiu. De fato, nós nos tornam os indevidam ente céticos a respeito da nossa si­ tuação. Suspeitamos da nossa própria autogenerosidade, e desconfiamos dos elogios. Uma das coisas im portantes que aprendem os é a tolerância para com os outros; aprendem os a nos perg u n tar seriam ente se os outros não têm razão, a ver­ dade ética fundam enal de que ninguém deve ser juiz em causa própria. Esse, sem dúvida, é sintom a de um a certa m aturidade m oral; contudo, pode-se às vezes aprender um a lição bem demais. T endo descoberto o pecado da auto-estim a. recaímos agora na sua inversão estereotipada: um a pose de autodepreciação. T e n ­ do aprendido que não devemos julgar nossa própria causa, padecem os a tentação de atu ar como advogados dos nossos opositores. Ficamos cegos, assim, a nossas realizações — um a tendência que precisa ser resistida. Q uando, na sua visita à ín d ia, Krushchev acusou o colonialismo britânico, sem dúvida estava convencido da verdade do que afirm ava. Mas não sei se tinha consciência de que em grande parte suas acusações derivavam , via Lenin, de fontes inglesas. Se soubesse disso, provavelm ente teria considerado um motivo adicional p ara acreditar no que dizia. O que seria um equívoco; esse tipo de auto-acusação é um a virtude peculiar dos ingleses — e tam bém um vício peculiarm ente inglês. A verdade é que a idéia da liberdade da ín d ia nasceu na G rã-B retanha, da mesma form a que a idéia geral da liberdade política nos tempos m odernos. Os ingleses que deram m unição m oral a Lenin e a Krushchev estavam m uito próximos dos que deram à ín d ia a idéia da liberdade — e em parte eram os mesmos.

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L am entarei sem pre que o grande estadista britânico que respondeu a Krushchev tivesse tão pouco p ara dizer em defesa do nosso sistema de vida. Estou certo de que não causou um a impressão m uito viva a Krushchev, mas tenho a c e r­ teza de que poderia tê-la causado, se tivesse indicado a diferença entre o m undo livre e o m undo com unista por meio de um exem plo. Estou certo de que, se tivesse falado assim, Krushchev o teria com preendido: “A diferença entre o seu país e o m eu pode ser explicada da seguinte form a: Vamos im aginar que o nosso Prim eiro-M inistro, m eu superior hierárquico, m orres­ se subitam ente am an h ã. Posso garantir-lhe que ninguém no m eu país que tivesse o uso da razão im aginaria, por um m om ento sequer, que eu o pudesse ter assassi­ nado. Nem mesmo um com unista inglês pensaria nessa hipótese. Isso ilustra a sim ­ ples diferença entre o modo como conduzimos os negócios no seu país e no m eu. N ão se tra ta , seguram ente, de u m a diferença racial, pois Shakespeare nos ensina que há não m uito tem po atrás agíam os d a m esm a m aneira que os senhores”. Penso que é im portante responder a todas as acusações terríveis e absurdas feitas contra a G rã-B retanha, originárias de fontes britânicas, que têm hoje am plo curso em todo o m undo. Isso, porque acredito no poder das idéias, inclusive no poder das idéias falsas e perniciosas. E creio tam bém no que se poderia cham ar de “g u erra de idéias” . A g uerra de idéias é um a invenção grega — um a das invenções mais im p o r­ tantes de toda a história. De fato, a possibilidade de lu tar com palavras, em vez de lu tar com arm as, constitui o fundam ento da nossa civilização — especialm ente das suas instituições legais e parlam entares. O hábito de lu tar com palavras e com idéias é um a das poucas coisas que ainda unem os m undos dos dois lados da cortina de ferro (em bora, do outro lado, as palavras tenham substituído as arm as de form a in ad eq u ad a, sendo em pregadas algum as vezes como preparativos p ara um ataque m ortal). Basta lem brar que as guerras religiosas foram guerras de idéias, assim como todas as revoluções, p ara sentir como as idéias adquiriram podér desde a época dos gregos. Em bora essas idéias tenham sido mais freqüentem ente falsas e perniciosas do que verdadeiras e benéficas, há sempre um a certa tendência para que algum as das m elhores sobrevivam, desde que encontrem apoio suficientem ente poderoso e inteligente. E o que pode ser form ulado na m inha quarta tese, da seguinte m aneira: O poder das idéias, em especial das idéias religiosas e m orais, é pelo menos tão im portante q uanto o dos recursos físicos. Estou consciente do fato de que alguns estudiosos da política se opõem a essa tese; há um a im portante Escola, a dos cham ados “realistas” , p a ra a qual as “ideologias” têm pouca influência na realidade política — influência lim itada mas perniciosa. N ão creio, porém , que esse ponto de vista possa ser sustentado. Se fosse verdade, o cristianism o não teria tido influência sobre a história; a criação dos Es­ tados Unidos seria inexplicável — ou então o resultado de um erro pernicioso. M inha q u a rta tese — a doutrin a do poder das idéias, — é característica do pensam ento liberal e racionalista dos séculos dezoito e dezenove.

A HISTÓRIA DO NOSSO TEMPO: UMA VISÃO OTIMISTA

Mas o movimento liberal não acreditava apenas no poder das idéias. Susten­ tava tam bém um a concepção que considero errônea; a de que não era necessário idéias competitivas se com batessem . Supunha-se que a verdade, um a vez expressa, seria sempre reconhecida. Aceitava-se a teoria de que a verdade é evidente — de que não pode escapar à nossa percepção, desde que os poderes interessados em suprim i-la e pervertê-la sejam destruídos. Essa idéia im portante e influente — a idéia da verdade evidente — é um a m odalidade de otimismo que não apóio. Estou convencido de que é um erro — de que, ao contrário, a verdade é difícil dé se alcançar. Esta, p ortanto, é m inha q u in ­ ta tese: A verdade é difícil de alcançar. E um a tese que explica, em certa m edida, as guerras de religião. Em bora seja um a idéia epistem ológica, projeta luz sobre a história da Europa a p artir da Renascença — e mesmo desde a antiguidade clássica. Procurarei agora, no tem po que resta, traçar um breve sum ário dessa his­ tória — a história da nossa época, em especial a p a rtir da Renascença e da Reform

o

A Renascença e a Reform a podem ser consideradas como um conflito entre a idéia de que a verdade é evidente — de que é um livro aberto, que pode ser lido por quem quiser, desde que tenha vontade e boa fé — e o conceito da verdade oculta, discernível só pelos eleitos — um livro a ser decifrado apenas pelos ministros da Igreja, interpretado exclusivamente pela autoridade. Em bora “o livro” significasse, em prim eiro lugar, a Bíblia, passou subseqüentem ente a significar o livro da natureza. Bacon acreditava que o livro da natureza era um livro aberto. Os que não o com preendiam eram influenciados pelos preconceitos, a im paciência e a “antecipação”. Se o lêssemos sem precon­ ceitos, com paciência e sem pretender antecipar o que dizia, não poderiam os errar. O erro era sempre culpa do leitor: nossa recusa perversa e pecam inosa de ver a ver­ dade evidente que se apresentava à nossa frente. Essa concepção ingênua e errônea de que a verdade é evidente se transfofm ou na idade m oderna em inspiração p a ra o progresso do conhecim ento. T o r­ nou-se a base do racionalism o m oderno, em oposição ao racionalism o mais cético dos gregos. No cam po das ciências sociais, a doutrina da verdade evidente levou às doutrinas da responsabilidade m oral e intelectual do indivíduo, e da liberdade; ao individualismo e a um liberalism o racionalista. É um a doutrina que faz com que a autoridade espiritual da Igreja e sua interpretação da verdade se tornem supérfluas e até mesmo perniciosas. Um a atitude m ais cética com relação à verdade conduz, por outro lado, a um a ênfase na autoridade da Igreja e a outras form as de autoritarism o. De fato, se a ver­ dade não é evidente, não se pode deixá-la à interpretação do indivíduo, o que levaria necessariam ente ao caos, à desintegração social, a cismas e guerras no cam po da reli­ gião. Por isso o “livro” deve ser interpretado por um a autoridade superior.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

O problem a pode ser descrito como um conflito entre o racionalism o in ­ dividualista e o tradicionalism o autoritário. Ou então como disputa entre, de um lado, a fé no hom em , na sua bondade e razão; de outro, a desconfiança no h o ­ m em , na sua bondade e na sua razão. Confesso que, nessa disputa, meus sentim entos se alinham do lado dos otim istas liberais e ingênuos, em bora a razão me diga que sua epistemologia está equivocada — que, de fato, a verdade é difícil de ser alcançada. A idéia de m a n ­ ter os hom ens sob tutela, sujeitos à autoridade, me repele. Preciso adm itir, porém , que os pessimistas que tem iam o declínio da autoridade e da tradição eram sábios. A terrível experiência das grandes guerras religiosas e das revoluções Francesa e Russa provam sua sabedoria e inspiração. Em bora essas guerras e revoluções dem onstrem que os pessimistas cautos eram sábios, não provam que tivessem razão. Ao contrário, o veredito da história — quero referir-m e, natu ralm en te, à história da nossa época — parece favorecer, de m odo geral, aqueles que acreditaram no hom em e na razão hum ana. Com efeito, a sociedade do m undo livre vem assistindo, desde a Reform a, a um declínio da autoridade sem paralelo em qualquer outra época. E um a socie­ dade sem autoridade; poder-se-ia dizer, um a sociedade sem pai. Ao acen tu ar a consciência individual, a Reform a destronou Deus como o responsável pelo m undo dos homens: Deus só pode reinar em nossos corações, através deles. Os protestantes acreditam que Deus governa o m undo através da consciência dos hom ens. O credo protestante afirm a que a responsabilidade pelo m undo é nossa; o bispo de B radford falou como um bom protestante quando propôs a destruição de um a sociedade que é obra do dem ônio. Mas os defensores da autoridade e da tradição estavam convencidos de que um a sociedade não au to ritária levaria à destruição de todos os valores hum anos. Como já disse, pensavam com sabedoria e de certo m odo sua epistemologia era m elhor. C ontudo, se equivocavam , pois houve outras revoluções — a Revolução Gloriosa e a Revolução N orte-A m ericana. E surgiu tam bém nosso m undo livre de hoje, a com unidade atlântica. Tem os, portanto, um a sociedade sem a figura p a te r­ na, o rd en ad a pelo inter-relacionam ento das nossas consciências individuais. Como já tentei dem onstrar, é a m elhor sociedade que já existiu. Qual foi o erro dos autoritaristas? Por que precisamos rejeitar sua sabedoria? Creio que há três elementos no m undo livre que substituíram com êxito a a u to ­ ridade destronada: O prim eiro é nosso respeito pela autoridade da verdade — um a verdade im ­ pessoal, interpessoal, objetiva, que precisamos encontrar e que não podemos alterar ou in terp retar de acordo com nossas preferências. O segundo é a lição que nos ensinaram as guerras religiosas. Com efeito, elas nos m ostraram que podem os aprender com os erros que cometemos (em bora isso pareça difícil no cam po social e político). Aprendem os que a fé religiosa e outras convicções só têm valor quando são sustentadas livre e sinceram ente; que a tentativa de forçar as pessoas ao conformismo não tinha sentido porque os que

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resistiam eram os m elhores — na verdade, os únicos cuja anuência valia algum a coisa. Aprendem os, p ortanto, não só a tolerar as crenças diferentes das nossas, m as tam bém a respeitá-las, e a respeitar aqueles que as sustinham com sinceridade. Começamos assim a diferenciar gradualm ente entre a sinceridade e a preguiça ou a determ inação dogm ática; a reconhecer que a verdade não é evidente, não se apresenta claram ente a todos os que alm ejam vê-lá — ela é difícil de alcançar. Aprendem os a não derivar conclusões autoritárias desse fato mas, ao contrário, a suspeitar de todos os que se dizem autorizados a ensinar a “verdade” . O terceiro elem ento é o fato de que tam bém aprendem os uns com os outros, criticando-nos m utuam ente — esta é um a form a de nos aproxim arm os da verdade. Acredito que essa m odalidade crítica do racionalism o e, acim a de tudo, essa crença na autoridade da verdade objetiva, é indispensável num a sociedade livre baseada no respeito m útuo. (Por isso é im p o rta n te 'n ã o deixar que nossas idéias sejam influenciadas por incompreensões intelectuais como o relativismo e o irracionalismo, resultados compreensíveis do desapontam ento com o dogm atism o e o autoritarism o). Essa abordagem crítica deixa lugar, ao mesmo tem po, p a ra um a recon­ ciliação do racionalism o com o tradicionalism o. O racionalista crítifco pode apreciar as tradições porque, em bora acredite na verdade, não crê que a possua com segurança. Pode, assim, apreciar cada passo tom ado na sua direção como algo valioso; pode perceber que nossas tradições m uitas vezes ajudam a encorajar tais passos e tam bém que sem um a tradição intelectual o indivíduo não se pode aproxim ar da verdade. Foi portanto a abordagem crítica do racionalism o, a con­ ciliação entre o racionalism o e o ceticismo que form ou, d u ran te m uito tem po, a hase da filosofia inglesa do m iddle way, “o cam inho do m eio” — o respeito pelas tradições, acom panhado do reconhecim ento de que é necessário reform á-las. N ão sabemos o que o futuro nos tra rá , mas as realizações do passado e da nossa própria época m ostram as possibilidades hum anas e nos ensinam que, em ­ bora as idéias sejam perigosas, podem os aprender com nossos erros a utilizá-las — a exam iná-las criticam ente, controlando-as, em pregando-as nas nossas lutas, in ­ clusive a lu ta p a ra nos aproxim arm os mais um pouco da verdade oculta.

20. Humanismo e Razão* O prim eiro de um a série de livros intitulada Studia H um anitatis, publicada na Suíça, foi escrito em alem ão por dois amigos, Ernesto Grassi — um erudito italiano interessado nos escritores “hum anistas” da Renascença — e T h u re von Uexküll, filho do biólogo alem ão Jakob von Uexküll, famoso pela sua Biologia Teórica. O livro , *12A Origem e os Lim ites das Ciências Morais e N aturais, é parte de um m ovim ento m uito interessante cujo objetivo é despertar novam ente o espírito hum anista. Esse m ovim ento neo-hum anista é característico da Europa central e nasceu dos desastres que o C ontinente sofreu neste século. Em bora o livro seja não só erudito, mas tam bém sereno, p arte do seu clim a e algum as de suas conclusões não poderão ser facilm ente apreciadas por aqueles que não viveram pessoalmente a experiência abaladora de desintegração social por que passaram esses pensadores europeus. O m ovim ento neo-hum anista inspira-se na convicção (partilhada por diversos outros movimentos) de que conhece as causas e a cura da depravação e perversão generalizadas de tudo que é hum ano, testem unhadas pela Europa cen ­ tral. Sua mensagem é de que só a com preensão do hom em e da sua “natureza es­ sencial” — sua criatividade cultural — pode aliviar nossos males: o m ovimento procura, ainda (objetivo bem expresso no “C om entário Intro d u tó rio ” de Grassi), retom ar a tarefa de desenvolver um a filosofia do hom em e um a atividade hum ana im portante: a ciência. De acordo com essa filosofia, a ciência deve ser reinterpretad a como parte do “hum anism o”; em conseqüência deve-se rejeitar por exces­ sivamente lim itado, qualquer significado de “hum anism o” ou “h u m an ista” que res­ trinja o hum anism o às hum anidades — aos estudos filológicos, históricos e lite­ rários. Pode-se dizer, p ortanto, que o objetivo do livro consiste em estabelecer um a nova filosofia do hom em que classifique de m aneira apro p riad a as hum anidades e as ciências naturais. Divide-se em duas partes — Da Origem e Lim ites das H u ­ manidades (Geisteswissenschaften) ,2 de Grassi e Da Origem das Ciências Naturais, * Este comentário apareceu primeiramente em The Philosophical Quarterly, 2, 1952, com muitos cortes, feitos pelo editor com o propósito de reduzir sua extensão. 1 - Von Ursprung und Grenzen der Geisteswissenschaften und Naturwissenschaften, de E. Grassi e T. von Uexküll. Berna, 1950. 2 — 0 termo “die Geisteswissenschaften (“as humanidades”) tornou-se tipicamente alemão, embora pos­ sa ser traduzido literalmente por “ciências mentais” (ou “ciências morais e mentais”); parece ter chegado â Alemanha, ironicamente, mediante a tradução por Theodor Gomperz da expressão “as Ciências Morais” (“The Moral Sciences”) de J. S. Mill. (Digo ironicamente porque o termo tem, em alemão, uma forte conotação irracionalista e anti-racionalista; Gomperz e Mill, contudo, eram emfnristas e racionalistas.)

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de Uexküll, ligadas de m aneira pouco rigorosa por um vago pragm atism o relativista (rem iniscente de F. C. S. Schiller, que tam bém se considerava um hum anista) com binado a um repúdio das idéias pragm atistas. Sem dúvida, os autores não co n ­ cordarão com essa opinião, que tom arão como prova de que o leitor foi incapaz de com preender seu argum ento principal; contudo, as tentativas que fizeram p ara e n ­ fatizar a identidade de suas idéias parecem um tanto forçadas. Isso, no entanto, não prejudica o valor ou o interesse do trabalho.

seu desenvolvimento m ental (Bildung) e a base de todos os dem ais; além disso, “a história do hom em é n ad a m ais do que o êxito ou m alogro de norm as estabelecidas pelo hom em , possibilitando o desenvolvimento da vida com unitária nas esferas política e social” (pág. 106). Este não é, de m odo algum , um resumo com pleto da parte de Grassi, que trata extensam ente de alguns problem as como a doutrina aristotélica de que toda poesia é imitação, a teoria da tragédia, especialm ente a katharsis, e a filosofia do tem po. A discussão destes tópicos, contudo, está severam ente prejudicada por falta de clareza e incoerência; em m inha opinião, ela não projeta q u alquer luz nova sobre os problem as discutidos, em bora contenha alguns com entários interessantes. Destes, o mais im portante é a ênfase de Grassi na capacidade da imaginação {Phantasie) como um elem ento essencial da natureza h u m ana e do desenvolvimento m ental; contudo, a sugestão (págs. 102-103) de que sua função nas ciências n a ­ turais se lim ita a estabelecer um quadro referencial não me parece fazer-lhe justiça. Do ponto de vista educacional, ou auto-educacional, um dos com entários mais in ­ teressantes está contido na análise de Grassi da “concepção hum anista do desenvol­ vim ento m en tal” {Bildung). Ao procurar in terp retar um trecho literário, podemos descobrir que, no contexto em questão, as palavras assumem significados incomuns e mesmos novos. “Isto nos leva a algo novo e inesperado. Um m undo do qual não suspeitávamos abre-se diante de nós — logo, “crescemos” {und dabei “bilden 1wir uns)".

A prim eira parte — a contribuição de Grassi - é um ensaio filosófico sobre a essência do hum anism o. Seu tópico principal é indicado .pela palavra alem ã Bildung (freqüentem ente traduzida como “c u ltu ra”), entendida como o crescimento, o desenvolvimento ou a autoform ação da m ente hum ana; procura-se restabelecer um ideal educacional do desenvolvimento da m ente cujo objetivo é enfrentar as críticas levantadas contra o antigo humanistische Büdungsideal (o objetivo educacional das hum anidades) que, segundo Grassi, perdeu todo sentido, devido ao desaparecim en­ to das tradições sociais e culturais em que estava enraizado. O sermão neohum anista de Grassi baseia-se num a controvérsia relacionada com os m éritos re ­ lativos da ciência legal e m édica, analisada no trabalho de C. Salutati De nobilitate legum et m edicinae (escrito em 1390 e publicado em m eados do século XV; em 1947, o Istituto d i S tu d i Filosofici de Florença publicou um a edição crítica de E. G arin. Ju n tam en te com a famosa crítica de Petrarca aos estudiosos da m edicina ele é, talvez, um dos ancestrais mais antigos do Streit der Fakultaeten de K ant). Grassi a considera como um a discussão dos m éritos relativos das hum anidades e das ciên­ cias naturais, e um a defesa da alegada superioridade das hum anidades. Segundo o autor, essa superioridade era m elhor com preendida na época da fundação das ciências natu rais do que hoje.

Grassi adm ite, com justeza, que a m ente do cientista da natureza pode “crescer” exatam ente da m esm a m aneira quando se sente com pelido a adotar um a nova “in terp retação ” de um fenôm eno natu ral; tal admissão, a m eu ver, parece des­ tru ir as tentativas de usar argum entos de Salutati p a ra dem onstrar a prioridade e d u ­ cacional das hum anidades.

A superioridade alegada é tríplice. Em prim eiro lugar, afirma-se que as diversas ciências n aturais têm o caráter de “artes” (no sentido de artes — technai). e não de ciência ou conhecim ento (scientia ou epistem e); segundo Salutati, isso sig­ nifica que devem buscar seus princípios no conhecim ento filosófico, e qüê são. p o r­ tan to , logicam ente inferiores às disciplinas que estabelecem seus próprios princípios (essa concepção é um a derivação de Aristóteles, com partilhada por contem po­ râneos de Salutati e pensadores posteriores, como Leonardo). Em segundo lugar, afirm a-se (como o fez Francis Bacon), que as ciências naturais são artes {artes) no sentido de técnicas ou tecnologias — elas nos capacitam ; tal capacitação, contudo, não é conhecim ento, como pensava Bacon, pois o conhecim ento verdadeiro se origina em princípios fundam entais, e não em princípios secundários ou in te r­ m ediários. Em terceiro lugar, em bora essas tecnologias possam servir ao hom em e ajudá-lo na sua tarefa essencial e suprem a de d ar continuidade ao crescimento m ental, não podem ajudá-lo a atingir o objetivo final; de fato, questionam a realidade apenas dentro dos limites restritos de seus princípios secundários p a r­ ticulares, sem os quais suas tentativas não teriam sentido. Em oposição a isso, a ciência legal, de caráter político, é a ciência do certo e do errado. Como tal, ela não só é útil p ara o hom em {“ius... a iuvando” escreve Salutati) mas é útil num sentido essencial, pois “respeita sua h u m an id ad e” e “tem. como objetivo o aperfeiçoam ento do hom em ” . Protágoras acreditava que o hom em só transcende os anim ais a p a rtir do m om ento em que deixa a selva prim itiva (hule) p ara estabelecer-se em com unidades políticas ordenadas. Esse é o prim eiro passo de

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V oltando ao argum ento principal de Grassi — a tríplice superioridade das hum anidades — adm ito que, ensinadas como técnicas, as ciências naturais correm o perigo de reprim ir o desenvolvimento da m ente, em lugar de contribuir para ele (o mesmo acontece, provavelm ente, com a p in tu ra e a poesia); adm ito, tam bém , que as ciências naturais devem ser tratadas como realizações do hom em (assim como a p in tu ra e a poesia), grandes aventuras da m ente, capítulos na história das idéias, da form ação de m itos (como expliquei em o u tra ocasião) 3 e da sua crítica. Grassi não m enciona a possibilidade de tal abordagem hum anística da ciência ou a necessidade dela; pelo contrário, parece acreditar que a salvação consiste na p e r­ cepção e no reconhecim ento explícito do caráter tecnológico inferior das ciências naturais — em outras palavras, em m antê-las no seu devido lugar. Contudo, se es­ tou disposto a adm itir a prioridade educacional de um a abordagem “h u m anista”, não posso concordar com a validade da teoria de G rassi-Salutati sobre as ciências naturais — obviam ente, um a derivação direta de Aristóteles. Não posso aceitar de modo algum a doutrina de que as ciências naturais têm que acolher cegam ente os princípios estabelecidos pela Filosofia Prim eira. Grassi procura responder a essa crítica (pág. 52) adm itindo que as ciências naturais p o d em questionar, criticar e substituir seus princípios (isto, a m eu ver, equivalente ao abandono das concepções

Í

3 — Vide caps. 4 e seguintes deste livro. Vide também a nota 6, capítulo 11, de Open Society (edições revistas).

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de S alutati e Aristóteles) e afirm ando que as ciências naturais devem pressupor cegam ente (a) os objetivos da ciência e (b) o conceito de “p rincípio” (e não dos seus diversos princípios). E m bora essa posição não seja incom patível com a concepção aristotélica que serviu de base p a ra os argum entos de Salutati, difere com pleta m ente dela. A verdade parece ser a seguinte: em bora a m edicina seja um a “a rte ”, um a técnica, é errôneo concluir que representa as ciências naturais; de fato, é um a ciên­ cia aplicada, e não p u ra. Q uanto às ciências naturais, concordo que, em oposição à m atem ática p u ra, não constituem scientia ou epistem e; não porque sejam techné, e sim por pertencerem ao universo da doxa — assim como os m itos que Grassi. com razão, tan to valoriza (a percepção de que as ciências naturais pertencem ao univer­ so da doxa, mas que eram entendidas, até m uito recentem ente, como epistem e, é, na m inha opinião, útil p ara a com preensão da história das idéias). O argum ento principal de Grassi, de que devemos reto rn ar à com preensão superior de Salutati do p ad rão e do significado das ciências naturais me parece, portanto, infundado. Além disso, a abordagem aristotélica da questão, que Grassi procura restabelecer, sem pre foi sustentada, pelo menos na Inglaterra; por isso mesmo não há necessi­ dade de reform ulá-la — nem mesmo m ediante argum entos válidos. A segunda p arte do livro, escrita por T h u re von Uexküll, é um a tentativa original e provocante de desenvolver um a nova teoria da ciência — um a epistem ologia biologicam ente o rientada. Em texto extrem am ente claro, talvez o m elhor exem plo de prosa alem ã contem porânea de que me lem bre, ela nos apresenta um a nova ab ordagem d a biologia, um desenvolvimento novo de idéias concebidas pelo pai do autor, Jakob von Uexküll. A categoria fundam en tal (pág. 248) dessa abordagem é a ação biológica (H a ndlung). P ara explicá-la, podemos com eçar pela observação óbvia de que as ciências n aturais procuram descrever e explicar o com portam ento das coisas sob condições diferentes, especialm ente q u alquer ordem ou regularidade que seja des­ coberta neste com portam ento. Isso acontece com a física, a quím ica e a biologia. As ciências biológicas se interessam pelo com portam ento de órgãos, tecidos, células e, obviam ente, de organism os inteiros. A idéia central da biologia de Uexküll é a de que, p ara descrever da m elhor m aneira possível o com portam ento de um o r­ ganism o, devemos considerá-lo em termos de ações que seguem certos padrões es­ quem áticos, ou “schem ata esses “esquemas de ação” e “regras dò jogo” podem ser com preendidos como elaborações e modificações de um pequeno núm ero de schem ata e regras fundam entais. A prim eira vista, a idéia parece atraente (mas não m uito surpreendente), em bora nos inclinemos a suspender nosso julgam ento até que se ten h a m ostrado útil. A m eu ver, a utilidade da idéia é dem onstrada pela m aneira b rilh an te como Uexküll a aplica ao problem a do com portam ento das p a r­ tes de um organism o (órgãos, tecidos etc.), analisando de m odo extrem am ente in ­ teressante, e revolucionário, o “significado dos m étodos físicos e químicos na biologia” (pág. 166). # Segundo a teoria de Uexküll, existe para cada tipo de organism o um n ú ­ m ero preciso de schem ata de ação, cada um dos quais provocado por um “sinal” específico (Auslõser), cuja natureza pode ser descoberta m ediante experiência, pela construção de um dispositivo im itativo (A ttrappe, fantoche). Estes, na m aioria dos

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casos, podem ser reduzidos a um a representação esquem ática de sim plicidade im ­ pressionante. K onrad Lorenz, o biólogo vienense, descobriu, por exemplo, que (pág. 162) certas espécies de ganso seguem como se fosse sua m ãe o prim eiro objeto em m ovim ento que encontram ao q u ebrar o ovo, e continuam a fazer isso mesmo após o confronto com a m ãe verdadeira .4 Para outras aves recém -nascidas (pág 169), o dispositivo im itativo que substitui os pais, operando como um sinal que provoca certas ações norm ais (a ab ertu ra do bico), consiste sim plesm ente em dois pedaços circulares de papelão ou folha de alum ínio, ap aren tan d o , em linhas gerais, o contorno da cabeça ou do corpo do pássaro que seria o pai ou a m ãe. Com a ajuda desses dispositivos imitativos, podemos en trar no cenário da vida de alguns anim ais. A sensação de estranheza que nos dá esse m undo é um a experiência em ocionante, abaladora p ara a m ente sensível. O caráter m ágico e am eaçador des­ sa realidade cria um a impressão diante da qual falham todas as nossas velhas idéias e concepções da natureza (pág. 179). Posso apenas repetir que essa abordagem por Uexküll do problem a das reações dos tecidos, e do uso de m étodos físicos e q u í­ micos, é extrem am ente interessante. O autor sugere que, n a bioquím ica, o que fazemos na verdade é construir dispositivos im itativos (fantoches) que operam como sinais para provocar ações dos órgãos e dos tecidos. A credito que essa é um a idéia prom issora, capaz de lançar m uita luz sobre algum as questões inquietantes (refirome, por exem plo, à questão da equivalência funcional de certos estímulos químicos e elétricos em reações neuro-m usculares, diante de testes sutis como a m edição de “potenciais finais”. O utro caso que a m eu ver ilustra a concepção de Uexküll é a conhecida hipótese que tem sido usada p a ra explicar a bacteriostase: sugere que as bactérias absorvem um certo composto quím ico como se fosse alim ento, mas que não podem assimilá-lo; em outras palavras, o composto funciona como um fa n ­ toche). T u d o o que Uexküll afirm a sobre a aplicação de suas idéias à biologia é a d ­ mirável. N ão sei se suas teorias são verdadeiras, mas são im pressionantem ente originais. N ão só têm grande capacidade explicativa, como tam bém o poder de lançar um a luz inteiram ente nova sobre coisas fam iliares; algum dia, poderão inau g u rar um a nova era no pensam ento biológico, especialm ente nos campos da fisiologia e da bioquím ica — desde que cham em a atenção dos experim entalistas p ara suas inúm eras aplicações em quase todos os cam pos da biologia. Uexküll, contudo, escreve não só como biólogo (e m etodologista da biologia) m as tam bém como filósofo. Estim ulado talvez por suas aplicações biológicas, procura aplicar as categorias fundam entais que form ula a todo o problem a da teoria do conhecim ento. Partindo da indagação de K ant sobre a possibilidade de conhecer ás^oisas “em si m esm as”, « o autor discute a antiga aspiração dos físicos a descobrir o segredo essencial da própria natureza (das Innere der N atur), e seu m alogro; após um a tentativa elaborada (mas, a m eu ver, sem êxito) de determ inar a função da física no universo de ações biológicas, chega por fim a um a ontologia biológica — a doutrina de que a realidade que representa apenas nosso m undo, a realidade que percebem os 5 consiste em um a estrutura de ações de tipos e extensão 4 — Vide King Solomon’s Ring de Konrad Lorenz (publicado em inglês em 1952). 5 — Compare-se com os seguintes comentários feitos por Uexküll pai, em 1920, em Theoretical Biology (1920, p. xv): “Toda realidade é uma aparência subjetiva: é este o fato fundamental que mesmo a biologia deve admitir... Sempre encontramos objetos que devem sua construção (e portanto sua existên­ cia) ao sujeito”.

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variados” (pág. 248); o autor substitui, assim, o problem a do nosso conhecim ento do m undo em si mesmo pelo da nossa participação na estrutura de ações que cons­ titui o m undo. E m bora m uito disso seja rem iniscente de certas form as de pragm atism o, operacionalism o e instrum entalism o, representa um a das tentativas mais originais, desde S chopenhauer e Bergson, de erigir um novo m undo m etafísico, capaz de acom odar a ciência m oderna. Um a tentativa que inspira respeito, mas não conven­ ce. Pelo contrário, parece-m e claro que a teoria do conhecim ento e a ontologia de Uexküll estão fundadas num a concepção errônea. Q u alq u er pessoa que conheça as arm adilhas da epistem ologia idealista não terá dificuldade em perceber que o erro em questão é equivalente ao de identificar aquilo que é com aquilo que é co­ nhecido; ou esse —sciri. Esse erro levou ao esse —precipi de Berkeley, ao esse = concipi de Hegel, e agora leva um biólogo, p ara quem , corretam ente, o conhecim ento é um tipo de ação, a afirm ar esse —agi, isto é, a doutrina de que a “realidade” é aquilo que sofre u m a ação, o objeto atu an te, ou um fator situacional dos schem ata das ações biológicas. Mais especificam ente, pode-se dem onstrar três erros no argum ento de Uex­ küll. O prim eiro, na análise em que descreve o m alogro das aspirações da física. A m eu ver, percebe-se nela alguns m al-entendidos típicos e populares no que diz res­ peito à teoria da relatividade (é errôneo sustentar a idéia de que o universo relativo não conhece espaço ou tem po contínuos, m as apenas “conexões isoladas de tem po e espaço”; é tam bém errôneo inferir a relatividade da realidade a p a rtir do princípio da equivalência dos sistemas de referência. A relatividade, pelo contrário, im plica a realidade e a invariabilidade dos intervalos espaço-tem porais). A física m oderna (pace H eisenberg) procura, de fato, dar-nos um a visão do universo; se ela é correta ou não, isso é o u tra questão. Ao perceber isso, perde m uito da sua força a sugestão de que devemos substituir um a visão “fisicalista” do m undo, a qual supostam ente está desaparecendo, por um a visão “biologista”. O segundo erro é extremamente interessante. Aparece num trecho *(págs. 201 e seg.) em que Uexküll culpa Lorenz por raciocinar em círculos, sem perceber todas as conseqüências da sua nova atitude de base biológica (assim como a de Uexküll). Segundo o autor, Lorenz acredita que os schem ata de ação (inclusive os schem ata d a “experiência biológica”) desapareceram por um m étodo de adaptação ao m undo exterior — um m étodo de tentativas. Uexküll rejeita essa concepção e afirm a: “Lorenz não percebeu a nova atitude que resulta da descoberta” (devida, em p arte, ao próprio Lorenz) “de que o m undo à nossa volta, tal como os sentidos o percebem , é a soma total dos sinais que provocam ações biológicas; existe, p o rta n ­ to, apenas em função dos schem ata das nossas ações biológicas” (pág. 202). Uexküll afirm a, ainda, que o argum ento circular de Lorenz deve-se à sua incapacidade “de livrar-se das suposições objetivistas sobre as quais repousa a visão do universo da física clássica (pág. 203). N ão tenho dúvida de que a acusação de arg u m en tar em círculos atinge Uexküll, e de que as falhas do seu raciocínio se devem, pelo menos em parte, à in ­ terpretação subjetivista insustentável da física m oderna. Uexküll, de fato, não p e r­ cebe que sua análise biológica pressupõe a possibilidade de um a abordagem (mais ou menos) objetiva — a única que nos perm ite falar, por exem plo, em “dispositivos im itativos” que assumem as funções da mãe de um pássaro. Como sabemos — em

HUMANISMO E RAZÃO

417

nosso m undo “objetivo” , que vai além do m undo “subjetivo” do pássaro — qual é a m ãe verdadeira, e o que é um dispositivo im itativo, podem os dizer que, se ao con­ trário do anim al B o anim al A distingue por suas ações sua m ãe verdadeira de um dispositivo im itativo, então A possui m aior capacidade de discrim inação ou d i­ ferenciação e está m elhor adaptado a certos am bientes. A concepção de Lorenz, que com partilhei por m uitos anos , 6 é não só defen­ sável mas necessária p a ra com preender a situação peculiar do hom em — o fe­ nôm eno do conhecim ento critico, baseado no uso argum entativo da linguagem h u m a n a ,7 em oposição às adaptações não-críticas e, por assim dizer, acidentais do “conhecim ento” anim al. Isso me leva ao terceiro erro no argumento de Uexküll — de difícil compreen­ são p ara os adm iradores de K ant. E o erro mais grave do livro, com etido pelos dois autores: o desprezo total (e, aparentem ente, quase hostil) da razão hum ana — da capacidade do hom em de crescer e transcender a si próprio, não só por meio da criação im aginativa de mitos (cuja im portância é m uito enfatizada por Grassi), como tam bém pela crítica racional de suas próprias invenções im aginativas. Essas invenções, qiutHdo form uladas em um a linguagem , diferem de outras ações b io ­ lógicas; isso pode ser dem onstrado pelo fato de que, tom ando-se dois schemata de ação biológica (que de outra m aneira seriam idênticos), um pode conter um mito (relativo, por exem plo, à origem do m undo) que contradiz o outro. De fato. em bora algum as crenças sejam diretam ente relevantes p ara a prática, outras o serão apenas rem otam ente — ou podem não ter utilidade algum a. Essa diferença possibilita o confronto entre elas, e sua distância com parativa perm ite que sejam discutidas. Dessa m aneira podem-se desenvolver a crítica racional, os padrões de racionalidade — alguns dos prim eiros padrões intersubjetivos — e a idéia de um a verdade objetiva. Além disso, essa crítica poderá, com o tem po, desenvolver-se em tentativas sistemáticas de descobrir as fraquezas e inverdades das teorias e crenças def outras pessoas, assim como das nossas próprias. M ediante essa crítica m útua, o hom em pode, em bora por etapas, desfazer a subjetividade de um m undo de sinais que provocam ações biológicas, e tam bém a subjetividade de suas próprias inven­ ções im aginativas, bem como dos acidentes históricos dos quais essas invenções em parte dependem . Esses padrões de crítica racional, de fato, tornam o conhecim ento do hom em estruturalm ente diferente de seus antecedentes na escala da evolução (muito em bora seja sem pre possível sujeitar tal conhecim ento a algum tipo de es­ quem a de ação biológico ou antropológico). A aceitação desses padrões torna pos­ sível a dignidade do hom em individual, que o torna m oral e inteiectualm ente res­ ponsável e capaz não só de agir de form a racional, mas tam bém de contem plar, adjudicar e discrim inar entre teorias rivais. Esses padrões de verdade e crítica objetivas ensinam o hom em a renovar seus esforços, a repensar; a desafiar suas próprias conclusões e a usar a im aginação para discernir as falhas que podem conter. Indicam como aplicar o m étodo das te n ­ tativas em todos os cam pos, especialm ente n o fda ciência. Ensinam , assim, como aprender com os erros e como identificar nossos equívocos. Podem ajudar-nos a

6 — Cf. capítulos 1 e 15. 7 — Cf. capítulos 4 e 12.

418

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

descobrir o pouco que sabemos e o m uito que há p ara saber; a desenvolver cons­ cientem ente nosso conhecim ento; a perceber que devemos nosso desenvolvimento às críticas dos outros e que razão significa disponibilidade para a crítica. Desse m odo, esses padrões poderão até mesmo aju d ar o hom em a transcender seu passado anim al e o subjetivismo e voluntarism o aos quais está preso pelas filosofias rom ânticas e irracionais. É desse m odo que a m ente se desenvolve e transcende a si própria. Se o hum anism o se preocupa com o desenvolvimento da m ente do hom em , que é, e n ­ tão, a tradição do hum anism o senão um a tradição de crítica e de razão?

Apêndices

Notas Técnicas 1 .0

conteúdo empírico

Chegamos à idéia do conteúdo em pírico da seguinte form a: por conteúdo lógico (ou classe de conseqüências) de a querem os indicar a classe de todas as afir­ mativas derivadas de a. Podemos assim — em prim eiro lugar e de m odo tentativo — denom inar de conteúdo empírico de a a classe de todas as afirm ativas baseadas na experiência (ou “afirm ativas básicas” — vide adiante) que decorrem de a. Essa idéia tentativa, porém , não funciona. O que nos interessa p rin cip alm ente é o conteúdo em pírico de um a teoria explicativa universal; contudo, de tal teoria não se pode derivar nenhum a afirm ativa baseada na observação (de “todos os corvos são negros” não podemos derivar um a afirm ativa observacional do tipo “Há aqui, agora, um corvo negro” , em bora possamos chegar à assertiva: Não há aqui, agora, um corvo b ran co ”). Por essa razão, ao definir o conteúdo em pírico retornei à idéia de que um a teoria nos inform a sobre os fa to s observáveis na m edida em que proíbe esses fa to s — isto é, na m edida em que é incom patível com fatos observáveis , 1 Podemos dizer, então, que o conteúdo em pírico de um a teoria é determ inado pela classe das afirmativas baseadas na observação (ou afirm ativas básicas) que contrariam a teoria. Uma afirm ativa básica que contradiz um a teoria t pode ser cham ada de “refutador potencial” de t. Usando essa term inologia, podem os dizer que o co n ­ teúdo em pírico de t consiste na classe dos seus refutadores potenciais. O nom e “conteúdo em pírico” pode ser aplicado justificadam ente a essa classe, pois sempre que as m edidas do conteúdo em pírico, ECt (t) e (t2), de duas teorias empíricas (isto é, não metafísicas) t e t2 estão relacionadas entre si de m odo que:

(1)

ECt (t)

^

ECt (t2),

a m edida dos respectivos conteúdos lógicos terá

tam bém a correspondência: 1 — Vide L.Sc. D., seções 31 e 34. Essa idéia foi aceita por Carnap: vide especialmente Logical Foun­ dations o f Probability, 1950, pág. 406; e também Symbolische Logik, 2.a edição, 1960, pág. 21.

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

422

Ct (tl)< C t(t2 ) e u m a relação sem elhante existirá no que concerne à igualdade dos seus co n ­

NOTAS TÉCNICAS

423

ponto de vista da teoria do conhecim ento aqui exposta — um a gnoseologia segundo a qual a base de todas as teorias são testes; ou, em outras palavras, tentativas de refutações.

teúdos. Prosseguindo agora p ara a noção de “afirm ativas básicas” , há um ponto a respeito do qual desejaria desenvolver m eu exame do que denom inei “afirm ativas básicas”, em L. Sc. D. (especialm ente nas seções 28 e 29). Introduzi a expressão “afirm ativa básica” p ara indicar um a classe de afirm ativas (verdadeiras ou falsas) que, n a nossa discussão, podemos in terp retar como tendo caráter empírico inques­ tionável. Isso significa que estamos preparados a lim itar a classe das afirm ativas básicas de acordo com as exigências dos em piristas mais escrupulosos, desde que es­ sas exigências não sejam menos severas do que nossos próprios requisitos mínimos (objetivistas). Esses requisitos são: i) as afirm ativas básicas declaram (falsa ou ver­ d adeiram ente) à existência de fatos observáveis (ocorrências), dentro de região es­ paço-tem poral suficientem ente estreita; ii) a negação de um a afirm ativa básica não e, de m odo geral, básica. Em alguns casos m ais simples de afirm ativas (por exem ­ plo: “H á agora no m eu estúdio um cão dinam arquês ad u lto ”) suas negações podem ser aceitas com o afirm ativas básicas; n a m aior p arte dos casos, porém , (exemplo: “H á agora um m osquito no m eu estúdio”), as negações não serão aceitáveis como básicas, por razões óbvias; iii) a conjunção de duas afirm ativas básicas é sempre básica, se for logicam ente consistente — e apenas neste caso. Assim, quando um a afirm ativa e sua negação forem am bas básicas, sua com binação não será básica. Podemos isolar de um a classe de afirm ativas básicas sob outros aspectos aceitáveis aquelas afirm ativas básicas não compostas (afirm ativas “atom isticas relativas”; L. Sc. D ., seção 38). Podemos então, se o quisermos, construir com elas um a nova classe de afirm ativas básicas, assim: a) não adm itindo como básicas quaisquer negações das afirm ativas básicas atom ísticas relativas; b) adm itindo como básicas todas as conjunções de afirm ativas básicas, na m edida em que são consistentes (in­ tuitivam ente, a consistência parêce um requisito necessário; sua adoção simplifica em boa p arte várias form ulações da teoria que segue, em bora possamos dispensála, desde que não se inclua afirm ativas inconsistentes na classe dos refutadores); c) não adm itin do qualq u er negação de afirm ativa básica com posta ou quaisquer compostos além da conjunção de afirm ativas básicas. Estas últim as exclusões podem parecer algo severas; não pretendem os porém ad m itir todas as afirm ativas em píricas como básicas — nem sequer todas as afir­ m ativas relacionadas com fatos observáveis. N ão m e im porto de excluir afirm ativas observacionais compostas (do tipo: “No m eu estúdio h á ou um cão dinam arquês adulto ou um cavalinho”) da classe das afirm ativas em píricas. E m bora seja nossa intenção assegurar-nos de que todas as afirm ativas básicas sejam obviam ente em ­ píricas, não pretendem os g aran tir o contrário — que todas as assertivas obviam ente em píricas (ou mesmo todas as afirm ativas baseadas na observação) sejam “básicas”. O objetivo da exclusão das negações de afirm ativas básicas (ou das negações de quase todas as afirm ativas básicas) da classe das afirm ativas básicas, bem como da exclusão de disjunções ou condicionais de afirm ativas básicas dessa classe é o seguinte: não querem os adm itir assertivas condicionais tais como: “Se há um corvo nesta sala é negro”, ou: “Se há um m osquito nesta sala, trata-se de um anopheles.” Estas são sem dúvida afirm ativas em píricas, mas não têm o caráter de afir­ mativas testáveis (test statem ents) de teorias, e sim de afirm ativas exemplificativas (instantiation statem ents), sendo portan to menos interessantes e menos “básicas” do

Deveríamos m encionar, neste contexto, que o term o “básico”, na expressão “afirm ativa básica”, parece ter induzido alguns dos meus leitores a um equívoco. O em prego que faço desse term o tem um a história, que é a seguinte: Antes de usar “básico” e “afirm ativa básica” em preguei a expressão “base em pírica” p ara significar a classe de todas as afirm ativas que podem funcionar como testes de teorias em píricas (isto é, como refutadores potenciais). Ao introduzir a expressão “base em pírica” m inha intenção era em p arte d a r uqna ênfase irônica à tese de que a base em pírica das nossas teorias nad a tem de firm e, sendo mais com ­ parável a um p ân tan o do que à terra firm e. 2 Os em piristas acreditavam ordinariam ente que a base em pírica consistia em observações ou percepções “d adas” — data —, e que a ciência podia construir sobre esses “dados” com toda segurança. Mas eu lem brei que os aparentes “dados” da experiência eram sem pre interpretações, à luz de teorias, e po rtan to sofriam a influência do caráter hipotético ou conjectural de todas as teorias. Que essas experiências, a que cham am os “percepções” , são interpretações — interpretações, a m eu ver, da situação global em que nos encontram os ao “p e r­ ceber” algum a coisa — é um a idéia que devemos a K ant, a qual tem sido m uitas vezes form ulada, um tan to canhestram ente, com a afirm ativa de que as percepções são interpretações do que nossos sentidos nos oferecem ; desta form ulação nasceu a crença de que deve haver alguns “dados” definitivos, algum m aterial que não precise ser interpretado (já que a interpretação precisa referir-se a algum a coisa, e não podemos adm itir um regresso infinito). Mas esse argum ento não leva em conta que o processo de interpretação — conform e K ant o sugeriu — é pelo menos em parte fisiológico, de m odo que nunca interpretam os dados que não tenham os ex­ perim entado: a existência de “dados” não interpretados é po rtan to um a teoria, não um fato da experiência — e menos ainda um fato “básico” . P ortanto, não existe um a base em pírica que não seja interp retad a; as afir­ m ativas testáveis que form am a base em pírica não podem ser assertivas que expres­ sem “dados” não interpretados (os quais não existem); são, simplesmente, afir­ m ativas de simples fatos observáveis relacionados com nosso am biente físico: fatos interpretados à luz de teorias — em bebidos em teoria, por assim dizer. Como indiquei em L. Sc. D. (fim da seção 25), a proposição “Eis aqui um copo d ’ág u a” não pode ser verificada pela experiência observacional, pois os termos universais que nela aparecem (“copo”, “ág u a”) são disposicionais: “denotam corpos físicos que exibem um com portam ento sob a form a de leis” . 3

2 — Vide especialmente o último parágrafo da seção 3 de L. Sc. D. 3 — L. Sc. D., seção 25, pág. 95; novo apêndice x (1) a (4), págs. 422-6. Vide também por exemplo caps. 1 (seções iv e v) e 3 (seção 6, últimos seis parágrafos) do presente volume.

424

NOTAS TÉCNICAS

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

O que disse aqui sobre “á g u a” e “copo” se aplica a todos os universais des­ critivos. Um gato, por exem plo, é um a entidade m uito mais teórica do que um copo ou a água. Todos os termos são teóricos, em bora alguns sejam mais teóricos do que outros (“Q uebrável” é mais teórico ou m ais disposicional do que “q u e­ b ra d o ” , mas este últim o term o é tam bém teórico e disposicional, como expliquei no fim do cap. 3 ). Esta concepção do assunto torna possível incluir na nossa “base em pírica” afirm ativas com term os altam ente teóricos, desde que sejam afirm ativas singulares a respeito de fatos observáveis; por exem plo, proposições como: “Aqui está um potenciôm etro indicando 145” ; ou: “Este relógio m ostra trin ta m inutos depois das três” . N ão podem os dem onstrar em caráter definitivo que se trate realm ente de um potenciôm etro — como tam bém não podemos provar que o copo diante de nós contém de fato água. Essas são, porém , hipóteses testáveis, que podemos verificar facilm ente num laboratório. Por conseguinte, toda afirm ativa (ou “afirm ativa básica”) é essencialmente conjectural — um a conjectura que podem os testar com facilidade. Por sua vez, es­ ses testes im plicam novas assertivas conjecturais e testáveis, e assim por diante, ad in fin itu m . Se quiséssemos dem onstrar qualquer coisa por meio de testes chega­ ríam os a um a situação de regresso infinito. C ontudo, como expliquei em L. Sc. D., especialm ente na seção 29, não dem onstram os n ad a com esse procedim ento: não querem os “ju stificar” a “ aceitação” de n ada — apenas testar nossas teorias c ri­ ticam ente, p ara ver se é possível refutá-las. Assim, nossas “afirm ativas básicas” são tudo menos “básicas” — no sentido de “definitivas” ; só são “básicas” na acepção de que pertencem à classe de assertivas usadas p ara testar as teorias. 2. Probabilidade e o rigor dos testes

Nessa expressão, “(a)” significa “p ara todo p (c ,e ) P(b,c) & ((p(b,e)
O rigor dos testes pode ser com parado objetivam ente. Se quisermos, podem os tam bém definir um a m edida da sua severidade. Nessa definição, e em outros pontos discutidos no presente apêndice, e m ­ pregarei o term o probabilidade no sentido em que é usado no cálculo de probalidades; m ais precisam ente na acepção de probabilidade relativa: p(x,y), entendida como “a probabilidade de x, dado y” . A idéia da probabilidade abso­ luta: P(x).

a=b

— > (c)p(a,c) = p(b,c)

Dizemos que um conjunto de n elementos, ou um a seqüência de n termos, An = a j, ..., an é “independente em n termos (com relação a b ) ” se o cham ado “teorem a especial da m ultiplicação” (relativo a b) se aplica a cada um dos 2 n — 1 subconjuntos não vazios do conjunto An . Sejam aj, ..., am elementos de qualquer desses subconjuntos; nesse caso, se An for n — 1 indépendente teremos: (m) p(a;... am ,b) = p(aj,b),p(aj + p b ) ...p(am>b) onde o lado direito é o p ro duto de m —i probabilidades. E ntre essas 2n — 1 e q u a ­ ções, correspondentes aos 2n — 1 subconjuntos não-vazios de An , haverá n triviais (para os subconjuntos unitários), um a vez que p ara m = i nossa equação (m) degene­ ra em:

ou seja, “a probabilidade de x” será tom ada aqui em termos relativos, pela defi­ nição explícita:

(i)

(D(AP)p(a) = p(a,b) «— * (c)(((d)(p(c,cl) >

4 — Vide em P. Suppes, Introduction to Logic, 1957, pág. 153, e também no meu trabalho “Creative and Non-Creative Definitions in the Calculus of Probability”, Synthese, 15, 1963, n.° 2, pág. 167, um exame das definições “criativas” e “não-criativas”.

p(d,c))) —

p(a,b) = p(a,c».

425

p(aj,b) = p(aj,b).

426

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Isto é: cada elem ento singular é, de m odo trivial, independente em 1-termos relativam ente a todo b. Assim, a independência de An em n-term os pode ser definida por 2 n — n — 1 equações não-triviais ß Esta definição um tanto canhestra, que usa 2n — n — 1 equações, pode ser sim plificada com a introdução de um a definição recursiva de “In d n ( { a j, ..., an } b )” , que se deve entender como “a j, an são n-independentes em relação a b ”. P ara esse fim , considero um conjunto S de elem entos, a j £ S, b £ S, etc.; uso a seguinte notação: escrevo “ { a j , ..., a n } ” para d enotar o subconjunto de S cujos elem entos são: a j , ..., a n ; “ {aj, ..., an | —{ a j }” para denotar o m esmo su b ­ conjunto, com a exclusão do elem ento aj. Defino po rtan to a n —independência, relativa a b, como segue:

D (Ind)

(1) In d j ({aj} ; b) p a ra todo a j e b em S. (2) Ind n + I ({ a !, . . . . a n + j) ; b )só se a) In d n ( ( a i ....... an + 1| -{ a ;) ; b) para todo i, l< i< n + 1

H á vários conceitos relacionados. Um, m ais fraco, é o da independência serial, Sindn ( a j, ..., an ; b). A definição é como a de In d n , com a exceção de que podem os om itir as chaves e substituir ( 2 ) (a) pela fórm ula: Sindn ( a i,

an ; b).

Podemos voltar-nos agora p ara a definição do rigor dos testes. Seja h a hipótese a ser testada e e a afirm ativa testável (a evidência); b será o conhecim ento contextual (“background know ledge”) — isto é, tudo o que* aceitam os tentativam ente como não problem ático, enquanto testamos a teoria (b poderá conter tam bém afirm ativas do caráter de condições iniciais). Vamos p re ­ sum ir, inicialm ente, que e é a conseqüência lógica de h e b (presunção que mais tarde deixarem os de exigir), de m odo que p(e,hb) = 1. Por exemplo: e pode ser um a afirm ativa a respeito da posição prevista do planeta M arte, derivada da teoria new toniana, /i, e do nosso conhecim ento da posição do planeta em vários m om en­ tos do passado — como parte de b. Podemos dizer, então, que se tom arm os e como teste de h, o rigor desse tes­ te, in terp retad o como evidência em apoio da teoria, será tanto m aior quanto menos provável for e, considerando-se apenas b (sem h ). Isto é: quanto m enor p(e,b) — a p robabilidade de e, dado b.

5 — Vide, por exemplo, W. Feiler, A n Introduction to Probability Theory and Its Applications, vol. i, 2 .a edição, pág. 117. Incidentalmente, podemos identificar os subconjuntos vazios com aqueles conjun­ tos unitários cujo único elemento é: — (a. - a), pois tal elemento é (com relação a qualquer 6) abso­ lutam ente indepen den te — isto é, independente com respeito a qualquer conjunto An . Obtemos assim 2n equações, das quais n + 1 se referem a classes unitárias, e sào triviais.

NOTAS TÉCNICAS

427

De m odo geral h á dois m étodos 56 p a ra definir o rigor (severity) S: S(e,b) (no referente ao teste e , dado 6 ). Ambos têm como ponto de p a rtid a a m edida do conteúdo, Ct. O prim eiro tom a o com plem ento da probabilidade como tal m edida: (1 )

Ct(a) - 1 - p(a);

o segundo, a recíproca da probabilidade: (2)

C t’ (a) = l/p ( a )

O prim eiro desses m étodos propõe um a definição como S(e,b) = 1 — p(e,b), ou, m elhor ainda, (3)

S(e,b) = ( 1 - p(e,b)) / (1 + p (e,b)).

Isto é: propõe que se m eça o rigor do teste por C T ou por algum a coisa como um C T “norm alizado” (usando 1/(1 + p(e,b)) na qualidade de “fator de norm aliza­ ção ”). O segundo m étodo sugere a m edição da severidade do teste simplesmente pelo seu conteúdo C t’: (4)

S(e,b) = C t’ (e,b) = 1 / p(e,b)

Podemos agora generalizar essas definições deixando de exigir que e derive logicam ente de h e b, e mesmo que ^ ^ Presumimos que haja um a certa probabilidade, p (e,hb), que possa ou não igualar a unidade. Isso sugere que, p ara obter um a generalização de (3) e de (4), devamos subs­ titu ir nessas duas fórm ulas o term o g e ra l“p(e,h b )” por “1” . Chegarem os assim às seguintes definições generalizadas do rigor do teste e, in terpretado como evidência em apoio da teoria h, dado o conhecim ento contextual (background knowledge) b : (5) (6)

S(e,h,b) = (p(e,hb) — p(e,b)) / (p(e,hb) + p(e,b)) S’(e,h,b) = p(e,hb) / p(e,b)

Essas são nossas m edidas do rigor dos testes, enq u an to evidência em apoio de um a teoria. N ão há m uito que escolher entre elas, pois a transição entre as duas é ordenada; 7 isto é, as duas são topologicam ente invariantes (o mesmo se aplica à substituição das m edidas C t’ e S’ pelos seus logaritm os 8* — por exem plo, por log 2 C t’ e por log 2 S’ — com o propósito de to rn ar essas m edidas aditivas).

6 — Vide L. Sc. D., nota *2, seção 83 (pág. 270). 7 - Vide L. Sc. D., pág. 404. 8 — Ib id ., pags. 402-6.

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

428

NOTAS TÉCNICAS

Depois de definir a m edida do rigor dos testes, podemos em pregar o mesmo m étodo p ara definir o poder explicativo da teoria h, E(h, e, b) — e tam bém , de m odo sem elhante, o grau de corroboração 9 de h —, com respeito a e, na presença de b : (7)

E (h,e,b) = S(e,h,b)

(8 )

E’(h ,e,b ) = S’(e,h,b)

Essas definições indicam que o poder explicativo, ou capacidade explicativa, de u m a teoria h (com respeito a um explicandum e) é tan to m aior quanto mais rigoroso for e, tom ado como teste da teoria h. Pode-se d em onstrar agora, facilm ente, que o grau m áxim o do poder ex­ plicativo de um a teoria, ou d a severidade dos seus testes, depende do conteúdo (in ­ form ativo ou em pírico) da teoria. P ortanto, nosso critério do progresso (ou progresso potencial) do conhe­ cim ento será o aum ento do conteúdo inform ativo (ou em pírico) das nossas teorias; ao mesmo tem po, será o increm ento da sua testabilidade e do seu poder explicativo com relação à evidência, conhecida e ainda não conhecida. 3. Verossimilhança. N esta seção desenvolverei as idéias contidas nas seções x e xi do Capítulo 10. De acordo com a teoria da verdade de Tarski, “verdade” é um a propriedade das proposições. Podemos tom ar “T ” p a ra indicar a classe de todas as afirmativas verdadeiras de u m a linguagem m ais ou menos artificial (linguagem objeto; vide seção 5). Expressaremos então como a 6 T a afirm ativa (de algum a m etalinguagem ) de que um a afirm ativa determ inada, a, pertence à classe das proposições verdadeiras; em outras palavras, a é verdadeira. Nossa prim eira tarefa aqui será definir a idéia do conteúdo de verdade (truth-content) de um a afirm ativa a, que denotam os com “CtT (a)” . Precisaremos defini-la de form a que tanto um a proposição falsa como um a verdadeira tenham um certo conteúdo de verdade. Se a é verdadeira, então C ty (a) — o conteúdo de verdade de a (ou m e ­ lhor: a m edida desse conteúdo) será sim plesmente a m edida do conteúdo de a, isto é: (1) a £ T H * C t T (a) = Ct (a) onde podem os, como n a seção 2 , ( 1 ), colocar: (2) Ct(a) = 1 - p(a). 9 — Íbid., pags. 400-2.

429

Se a é falsa, pode ter no en tan to um certo conteúdo de verdade. Vamos a d ­ m itir, por exem plo, que hoje seja segunda-feira. Neste caso, a afirm ativa “Hoje é terça-feira” será falsa. Mas essa falsa afirm ativa levará a u m a série de afirm ativas verdadeiras, tais como: “Hoje não é q u arta-feira” ou “Hoje ou é segunda ou terçafeira” . A classe de todas essas afirm ativas verdadeiras será seu conteúdo de verdade (lógico). Em outras palavras, o fato de que toda afirm ativa falsa leva a um a classe de afirm ativas verdadeiras constitui a base p ara atribuirm os um conteúdo de ver­ dade a toda afirm ativa falsa. Definiremos portanto o conteúdo (lógico) de verdade da afirm ativa a como a classe das proposições que pertencem ao conteúdo (lógico) de a e a T . In te r­ pretarem os assim, conseqüentem ente, a m edida do seu conteúdo de verdade, C tp (a) Para definir a idéia de C tT (a) dentro da teoria de Ct ou de p (sendo Ct?(a) = 1 — p(a)), temos vários m étodos à nossa disposição:

O mais simples é possivelmente a concordância em que nas expressões como p(a) ou p (a,b ) as letras «, b, etc., representem não só afirm ativas (portanto, con­ junções de um núm ero finito de afirm ativas) mas tam bém classes de afirm ativas (conjunções finitas ou infinitas de todas as proposições que são m em bros de tais classes). Assim, em lugar de usar “T ”, usamos o símbolo “t ” 10 , em contextos como: p(t) ou p (a,t) ou ainda p(t,b), operando com t exatam ente como se se tratas­ se de conjunção (finita ou infinita) de todas as afirm ativas verdadeiras do sistema lingüístico (ou sistema de proposições) sob exame. Em outras palavras, usamos o símbolo “t ” como um dos valores constantes que podem ser assumidos pelas va­ riáveis a, 6 , etc., e concordam os em utilizá-lo de tal form a que (3)

(4)

A classe de conseqüência ou conteúdo lógico de t seja T . Em seguida, definimos um novo símbolo “a-p ” , como: aT = a v t

Como resultado, temos: (ó) a J~ a p ( o n d e “ 'H' significa: “im plica” ou “de ... segue-se... ”), e portanto: (6 ) p(aT) = p(a) .... (7) p (a,aT)/>(aT) = p ( ^p) = p(a). Temos tam bém : (8 ) a p f - x se, e somente se a (—x & x £ T (onde “a h b ” representa: “b é dedutível de a ”). P ortanto, ( 8) significa que â p é a afirm ativa verdadeira mais fo rte (ou o sistema dedutivo mais forte) im plicada por a É possível assim definir o conteúdo de verdade de a; e sua m edida, Ct (a), pode ser definida assim: (9) C tp (a) = C t(ap ) - 1 - p (a p ) 10 -- Note-se que “t” não é usado para representar “tautologia” — introduziremos mais adiante o sím­ bolo “tautol”. Como T pode muito bem ser não-axiomatizâvél, esse método de usár “t” podería corres­ ponder à interpretação de a,b, ...t,... como sistemas dedutivos — e não como proposições. Vide Tarski, Semantics. Metamathematics, págs. 342, e a referência a S. Mazurkiewicz, na pág. 383).

430

(10) e (1 1 )

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

NOTAS TÉCNICAS

De (9) e de (5) segue-se que: C tT (a) < C t(a) Se a £ T , então a j

(c) = a, e Ct j

(a) = Ct(a).

Com o propósito de definir “Vs(a)” — a m edida de verossimilhança (ve­ risim ilitude) de a — , precisamos não só do conteúdo de verdade de a mas tam bém do seu conteúdo de falsidade, pois querem os definir Vs(a) como a diferença entre o conteúdo de verdade e o conteúdo de falsidade de a. Contudo, a definição do con­ teúdo de falsidade de a, ou de algum outro conceito que tom e seu lugar, não é m uito simples, devido ao fato fu n d am en tal de que, enquanto T pode ser consi­ derado u m a classe de conseqüência ou conteúdo — o conteúdo de t, conform e (3) —, a classe F de todas as afirm ativas falsas do nosso sistema não será um a classe de conseqüência. E nq u an to T contém todas as conseqüências lógicas de T — já que a conseqüência lógica de q u alq u er asserção verdadeira deve tam bém ser verdadeira — F não contém todas as suas conseqüências lógicas; enquanto de um a afirm ativa verdadeira só podem os derivar assertivas verdadeiras, de um a afirm ativa falsa derivam os não só proposições falsas m as tam bém verdadeiras. Como resultado, a definição do conteúdo de falsidade, seguindo linhas análogas à definição do conteúdo de verdade não parece aplicável. P ara chegarm os a u m a definição satisfatória de C t- F (a), a m edida do con­ teúdo de falsidade de a será útil estabelecer um certo núm ero de desiderata: (i) a £ T ^ C tp (a ) = 0 (ii) a 6 F ->-Ctp(a) < Ct(a) (iii) 0 < C tp(a) < Ct(a) < 1 (iv) C T p(contrad) = C t(contrad) = 1 A qui, “co n tra d ” representa um a afirm ativa au to co n trad itó ria. O desideratum (iv) deve ser com parado com o teo rem a: C tT(tautol) = C t(tautol) = 0 ' (onde “ta u to l” representa u m a afirm ativa tautológica). (v) Ctp(a) — 0 MDtp(a) = Ct(a) (vi) C tp(a) = 0 —►C t^ a ) = Ct(a) (vii) Ctj^a) + C tp(a) > Ct(a) (a razão p a ra usar “ > ” , em vez de “ = ” ficará clara se assumirmos que “a ” sig­ nifica, por exem plo, “co n trad ” ; nesse caso, obtemos: C tp(a) = Ct(a) = 1, por (iv)

431

C tp(a) = f 2 (Ct(a), Ct (a)).

Entre as várias possibilidades de definir “C tp(a)” de acordo com essas linhas, a seguinte definição é recom endável, e será adotada aqui: (12) Ctp(a) = 1 — p(a,ay) = Ct(a,a-j-) E um a definição que satisfaz nossos desiderata: isto é evidente p ara os desiderata (i) e (ii) e se torna claro para os demais se considerarm os os seguintes teoremas: (13) C tF (a)p (aT) = ( p í a ,^ ) p (a r» = P(aT) — p(a) vide (7) = Ct(a) — Ctr (a) de modo que: (14) C tj(a) = Ct(a) — (Ctp(a) p(a^)) < Ct(a). (15) C tF(a) = (Ct(a) - CtT(a)) / p(ar ) = (Ct(a) — Ctqr(a)) / (1 — Ctj-(a)) (16) C tj(a) p(a,aT) = p(a,aT) - (p(aT) p(a,aT)) = P t e ,^ ) - p(a) = Ct(a) — Ctp(a) (17) (18)

Obtemos assim: C tp(a) = Ct(a) — Cfcj-(a) p(a,a^)) ^ Ct a Ctx(a) = (Ct(a) — C tp(a)) / p (a,aT) = (Ct(a) - C tp(a)) / <1 — C tp(a))

De (15) obtemos tam bém (19) C tF(a) — CtT(a) Ctp(a) = Ct(a) — Ctx(a) e portanto: (2 0 ) CtT(a) 4- Ctp(a) = Ct(a) + CtT(a) C tp(a)

vide (iii) vide (15)

Assim, (17) dem onstra ter sido satisfeito (iii); 20 dem onstra a satisfação de (v), (vi), (vii) e (viii). A satisfação de (iv) deriva de p (co n trad ,t) = 0. Isso m ostra que a definição proposta, (12), de C tp(a), satisfaz a todos os desiderata. Contudo, um deles, (vii) pode parecer insatisfatório; pode parecer ta l­ vez — a despeito do com entário que fizemos sobre (vii) — que deveríamos ter pos­ tulado que: ( ) Ctj^a) + Ctp(a) = C t(a)

CtT (a) = Ct(t); mas C t(t) é o conteúdo de verdade m á x im o , que de m odo geral será diferente de zero. N um universo infinito, Ct(t) = 1 — p(t) será, via de regra, igual à unidade).

E possível dem onstrar que a equação ( —) determ inaria de fato C tp; levaria à definição seguinte (que não adotarem os aqui): Ctp(a) = C t ^ -> a) = 1 — p(a^ a) (onde “at a ” (ou “a a t ”) é a afirm ativa condicional: “se at , então a ”, ou: “a se at ” .

viii) C tp e C tx são simétricos com relação a Ct no seguinte sentido: existem duas funções, f j e f 2 , tais que: (a) CtT(a) + Ctp(a) = Ct(a) + fl(C tx(a), Ctp(a)) = Ct(a) + fi(C tp (a), C t^ a))

Vale a pena com parar essa definição com (12); em outras palavras, com parar Ct (a — at ) com C t(a, at ) — esta ú ltim a sendo nosso C tp(a) — ou então p(a — a t) com p(a, a t ).

isto é, f j é sim étrica com relação a C tt e a C tp; de form a que, como conseqüência, tem os: (b) C t^ía) = f 2 (Ct(a), C tp(a))

Tem os, de fato, Ckj-(a) + Ct(a 2hç) = Ct(a), o que parece, à prim eira vista, satisfatório.

432

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Mas, se substituirm os a por “co n trad ” , teremos: C tj(contrad) = C t(t) = 1 — p(t) que, como vimos, representa o conteúdo de verdade m áxim o que se pode obter no sistema; e como C t(contrad) = 1, obtem os p ara Ct(a-*- a ^ ) = C t(contrad «*—t) = 1 — p (co n trad v —t = p(t). O ra, em bora C tx (co n trad ) = Gt(t) seja aceitável — é um a clara conseqüência de definição satisfatória de C tx (a ) e do fato de que tudo, e p o rtan to tam bém í, pode ser derivado de u m a afirm ativa auto-contraditória —, o mesmo não acontece com C tF(contrad) = p(t), que perm itiria, na m aioria dos casos, que o conteúdo de falsidade de um a contradição fosse m enor do que seu conteúdo de verdade, em bora devêssemos esperar que o conteúdo de falsidade de um a contradição pelo menos igualasse seu conteúdo de verd ad e. P ara d a r um exem plo, vamos adm itir que nosso universo de discurso fosse o lançam ento de um dado; t seria “ ês” ; p(t) seria 1 / 6 . A definição proposta (mas aqui rejeitada) de G tp(a) = Ct(a<—a j ) levaria então ao resultado de que o co n ­ teúdo de falsidade de um a afirm ativa co n traditória (tal como: “o resultado será seis e não será seis”), C tp(contrad), seria igual a 1/6, enquanto seu conteúdo de ver­ dade, C tx (c o n tra d ), seria igual a 5 /6 . Assim, o conteúdo de verdade de um a a fir­ m ativa co n traditória excedería am plam ente o conteúdo de falsidade, o que é claram ente contra-intuitivo. Essa é a razão p a ra ad o tar o desideratum (iv), que leva a casos em que C tT (a) +' C tp(a)

> C t(a).

Veremos, de tudo isso, que o desideratum (iv) podería ser substituído pelos dois seguintes, altam en te intuitivos: (iv,b)

C tp(contrad) = constante C tp(contrad) > Ctr (contrad).

Incidentalm ente, o fato de que temos, de m odo geral: (21) Ctjr(a) -— Ct(a ar ) — Ctjr(a) Ctj*(a) pode parecer surpreendente. Contudo, trata-se da conseqüência im ediata da se­ guinte fórm ula, mais geral: (22) p(a-«—b) — p (a,b ) = C t(a,b) Ct(b), um a fórm ula que derivei h á m uitos anos p a ra dem onstrar que a probabilidade a b ­ soluta de um a afirm ativa condicional “a se ó” (ou da assertiva “se b, então <2 ”) u l­ trapassa de m odo geral a probabilidade relativa de um a afirm ativa a, d ad a um a o u tra afirm ativa b. 1 (N a fórm ula (22) a seta voltada p a ra a esquerda, “ ” , é com parada, por assim dizer, com a vírgula calcula-se ali o excesso, nunca negativo Exc(a,b) = p(a b) — p (a,b) da p robabilidade condicional sobre a probabilidade relativa). Depois de definir as m edidas do conteúdo de verdade e do conteúdo de fa l­ sidade, podem os prosseguir definindo Vs(a) — a verossimilhança (verisimilitude) de a. Se estamos apenas interessados em valores com parativos, podem os u sar: C tr(a) - C tp(a) = p (a,aT) - p(aT) com definiens. Mas, se estamos interessados em valores num éricos, será preferível efetuar m ultiplicação por um fator de norm alização, usando (p (a ,a T ) p (a T )) / (p(a,a*p) + p (a T)) como definiens. De fato, desejamos satisfazer os seguintes desiderata:

NOTAS TÉCNICAS

(i) (ii) (iii) (iv)

433

Vs(a) | Vs(b)*---- *CtK.(a) — C tp(a) = C tr (b) - C tp(b) - 1 < Vs(a) ^ Vs(t) < 1 Vs (tautol) = 0 Vs (contrad) = — 1

ê

de m odo a ter: (v) —1 = V s(contrad) < Vs(a) < + 1 (vi) N um universo infinito em que Ct(t) pode tornar-se 1, Vs(t) deveria p o ­ der tam bém igualar-se à unidade. Observe-se aqui que C t(t) = 1 — p(t) dependerá da escolha do nosso universo de discurso. Mesmo num universo potencialm ente infinito, será inferior a 1 , como o exem plo seguinte dem onstra: vamos adm itir que nosso universo contém um conjunto infinito de possibilidades exclusivas, ã \, a % ... e p(a 1 ) = 1 / 2 , p ( a $ = 1/4, p(a^) = 1/8; p(an ) = l / 2 n ; adm itam os, além disso, apenas um a das três pos­ sibilidades: t = a; p o rtanto, C t(t) = 1 / 2 . Será preferível assim substituir, p a ra o cálculo num érico, p (a ,a T ) — p(a x) por um a form a norm alizada; escolhemos o fator de norm alização 1 / (p(a,aT ) + p ( a t ))> isto é: definimos, como indicado: (23) Vs(a) = (p (a ,a T ) — p(aT)) / (p(a,aT) + p(aT))

(24) (25) e (26)

Obtem os, assim: Se a T , então Vs(a) = C t^ a ) / (1 + p(áT)) = C t(a) / (1 + p(a)) V s(tautol) = 0 , V s(contrad) = —1 .

H á várias outras definições possíveis. Por exem plo, poderíam os introduzir outros fatores de norm alização, tais como C tx (a ) ou C t(a), ou ainda C tx (a) + C tp(a). Esses fatores não levariam , creio, a definições adequadas de Vs(a), mas sim a definições de idéias tais como, por exem plo, ‘‘graus de valor-verdade”. 4. Exem plos num éricos. Antes de exam inar alguns exemplos num éricos — que precisamos colher em teorias que aplicam a probabilidade aos jogos de azar, ou em teorias estatísticas — quero fazer alguns com entários gerais sobre os valores num éricos das teorias puras sobre o conteúdo e a probabilidade. Ao lado das aplicações d a teoria das probabilidades em que medimos probabilidades do m odo ordinário (com a ajuda de premissas sobre igual p ro b a ­ bilidade, como no caso do jogo de dados, ou m ediante hipóteses estatísticas), não considero possível atrib u ir valores num éricos (além de 0 e 1 ) a outras m edidas da probabilidade ou do conteúdo. Sob este ponto de vista, as teorias puras da p ro ­ babilidade e do conteúdo são com o a geom etria euclidiana: não há nenhum a unidade real definida nesse sistema geom étrico (a definição de Paris da unidade m étrica é certam ente extrageom étrica). N ão será necessário preocupar-nos se a p u ra teoria da probabilidade ou do conteúdo não nos fornecerem valores num é-

NOTAS TÉCNICAS

CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

434

ricos reais (exceto 0 e 1). Sob m uitos aspectos, sua situação se assemelha mais à topologia do que à geom etria m étrica. 11

(3’) Temos:

dois tipos:

ii) Exemplos nos quais temos um a espécie de m edida da distância que se­ p a ra nossa aposta d a verdade. Podem os representar essa situação adm itindo que, se de fato o resultado é 4 , a aposta (a afirm ativa) de que o resultado seria 6 (ou 2 ) está separada d a verdade pela proposição de que o resultado será 5 (ou 3); portanto, se a = 6 , a = 6 v 5 v 4 , em vez de 6 v 4 (alternativam ente: a = a v 3 v 4). 12 A dotarem os a expressão “a = 6 ” ou a = 6 v 4” p ara expressar “a — 6 será o resultado” ou “a = 6 ou 4 será o resu ltad o .” Nossa premissa é de que os dados são hom ogêneos. (1 )

Em prim eiro lugar, calcularei três exemplos do tipo (i): a = 6 ; b = 4; b = t

Tem os:

aT = 6 v 4; p (a ,a x) = 1/2; p(ax) = 1/3 Vs(a) = 1/5 (2 ) a = 5; b = 4; b = t Tem os a = 5 v 4. O cálculo e o resultado serão os mesmos do caso (1). (3) a = 6 v 5; b = 4; b = t Tem os: = 6 v 5 v 4 ; p(a,ax) = 2 /3 ; p(aT) = 1/2 Vs(a) = 1/7 Podemos agora com parar esses exemplos com os três correspondentes do tipo (ii). A diferença está no cálculo de a. (T ) Tem os:

(2’) Tem os:

a = 6 ; b = 4; b = t a x = 6 v 5 v 4 ; p ^ a q ) = 1/3; p(a-j-) = 1/2 Vs(a) = —1/5 a = 5 ;b = 4 ;b = t a x = 5 v 4; p (a,aT) = 1/2; p(aT) = 1/3 Vs(a) = 1/5

11 — A teoria da probabilidade aqui presumida foi desenvolvida em L. Sc. D. apêndices * iv e * v; vide também a segunda seção destes apêndices. 12 — “6 v 5 v 4” é uma forma abreviada de dizer: “o resultado será 6, ou 5, ou 4.”

a = 6 v 5; b = 4; b = t aj- = 6 v 5 v 4; p(a,ay) = 2 /3 ; p(a^) = 1/2 Vs(a) = 1/7

V oltando-nos agora p ropriam ente p a ra os exem plos num éricos, distinguiria

i) Exemplos do tipo do jogo de dados com um . Se, por exem plo, o resultado é 4 , e tínham os apostado no núm ero 5 , consideram os que isso não é pior ou m elhor do que, digam os, a hipótese de o resultado ter sido 6 (“pio r” e “m elhor” são e m ­ pregados aqui n a acepção de “m ais afastado” ou “m ais próxim o” d a verdade).

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( 1 ”)

( 2 ”)

Acrescento dois exemplos de apostas corretas: a = 6;b = 6;b = t Vs(a) = 5 /7 a = 6 v 5 ;b = 6;b = t Vs(a) = 1/2

Vemos, assim, que a verossim ilhança pode au m en tar com o conteúdo de a, e dim inuir com a probabilidade de a. 5. Linguagens artificiais e form alizadas. Tem -se com entado m uitas vezes que a teoria d a verdade de Tarski só é aplicável aos sistemas de linguagem form alizada. N ão acredito que isso seja ver­ dade . A dm ito que ela exige um a linguagem — um a linguagem -objeto — com um certo grau de artificialism o; e que requer distinção entre u m a linguagem objeto e um a m etalinguagem — distinção que é um tanto artificial. Mas, em bora ao in ­ troduzir certas precauções n a linguagem ordinária nós lhe retirem os um a p arte do seu caráter “n a tu ra l”, fazendo-a até certo ponto “artificial”, isso não quer dizer que necessariam ente a estejamos form alizando. E m bora toda linguagem form alizada seja artificial, nem toda linguagem sujeita a determ inadas regras, ou baseadas em norm as mais ou menos claram ente form uladas (portanto, u m a linguagem “a rti­ ficial”) precisa ser com pletam ente form alizada. O reconhecim ento d a existência de um a vasta gam a de linguagens m ais ou menos artificiais — em bora não form a­ lizadas — parece-m e um ponto de considerável im portância, que tem relevância especial p a ra a avaliação filosófica da teoria da verdade.

6 . N ota histórica sobre a verossimilhança (1964)

Farei aqui alguns com entários adicionais sobre a história original da con­ fusão entre verossimilhança (verisimilitude) e probabilidade (como um acréscimo ao cap. 1 0 , seção xiv). 1. Em poucas palavras, m inha tese é a seguinte: As observações mais a n ­ tigas que conhecemos em pregam , sem q u alquer am bigüidade, a idéia da veros­ sim ilhança. Com o tem po, “sem elhante à verdade” tornou-se am bígüo, adquirindo sentidos adicionais como “provável”, “possível”, etc., de form a que em alguns casos não sabemos qual a acepção autêntica. Essa am bigüidade é significativa em Platão devido à sua teoria da im itação, ou m im esis, de im portância crucial; da m esm a form a como o m undo em pírico im ita o m undo (verdadeiro) das idéias, os relatos, teorias ou m itos do m undo em ­ pírico (de aparências) “im itam ” a verdade; p o rtanto, são apenas “sem elhantes à verdade”. Para traduzir a mesm a expressão em seus outros sentidos, essas teorias

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

não são dem onstráveis, necessárias, ou verdadeiras, mas apenas prováveis, possíveis ou (mais ou menos) aparentem ente verdadeiras. Desse m odo a teoria platônica da m imesis fornece como que um a base fi­ losófica p a ra a equação corrente na época mas enganosa, de que “verossímil” = “provável” . Em Aristóteles, o u tra acepção se torna im portante: “provável” = “que ocorre com freq ü ên cia” . 2. P ara exem plificar com alguns detalhes, temos em prim eiro lugar um a passagem na Odisséia 19, 203: o habilidoso Ulisses conta a Penélope (que não o reconhece) u m a falsa estória que contém no entanto alguns elementos verdadeiros; ou, p a ra usar as palavras de H om ero, “apresentou as m uitas m entiras de form a sem elhante à verdade” (“etum oisin hom oia”). A frase é repetida na Teogonia, 27: as musas do O lim po, filhas de Zeus, dizem a Hesíodo: “sabemos como dizer m uitas m entiras sem elhantes à verdade; m as sabemos tam bém como dizer a verdade (aletheia), se querem os fazê-lo.” A passagem é interessante tam bém porque nela etum os e alethes ocorrem como sinônimos de “verdadeiro” . U m a terceira passagem em que aparece a frase “etum oisin hom oia” é Teognis, 713, onde a esperteza é exaltada (com q^na Odisséia) e a capacidade de apresentar m entiras como se fossem verdades é descrita como “divina” — alusão talvez às musas da T eogonia: “fazer as m entiras parecerem verdade, com a hábil palavra do divino N estor.” O ra, todas essas passagens se relacionam com o que cham aríam os hoje de “crítica lite rá ria ” . Seu tem a é a narração de estórias que são como a verdade (se as­ sem elham à verdade). Um trecho m uito sem elhante pode ser encontrado em Xenófanes — que foi ele próprio um poeta e possivelmente o prim eiro crítico literário. Xenófanes em ­ prega o term o “eoikota” (DK B35) em lugar de “hom oia”. Referindo-se talvez a suas próprias teorias teológicas, diz: “essas coisas, conform e podemos conjecturar, são sem elhantes à verdade” (eoikota tois etum oisi; vide tam bém o Phaedrus de Platão, 272 D /E , 273 B e D). Tem os aqui o u tra vez um a frase que exprim e sem am bigüidade a idéia da verossimilhança (verisim ilitude), não a idéia da probabilidade, ju n tam en te com um term o derivado de doxa (“opinião”) — que tem um sentido tão im portante a p artir de Parm ênides. O mesmo term o aparece tam bém na últim a linha de Xenófanes, B34, onde é usado em contraste com “saphes” , isto é, “verdade certa” . O próxim o passo é im portante: Parm ênides (B 8 : 60) em prega eoikota (“sem elhante”) sem m encionar explicitam ente a “verdade” . Entendo que ele con­ tudo quer dizer, com Xenófailes,. “sem elhante à verdade”, e assim traduzi essa passagem . M eu argum ento principal é a proxim idade entre essa passagem e a de X enófanes (B35): nos dois trechos fala-se das conjecturas {doxa) dos m ortais, com

NOTAS TÉCNICAS

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um a referência relativam ente favorável; ambos im plicam claram ente que um a con­ jectu ra relativam ente “b o a” não representa de fato a verdade. A despeito desses pontos de sem elhança, a frase de Parm ênides é traduzida m uitas vezes como “provável e plausível”. T rata-se de um a passagem interessante devido a sua relação com outro im ­ po rtan te trecho do Tim aeus de Platão (27e-30c), no qual o filósofo tom a como ponto de p a rtid a (27e-28a) a distinção de Parm ênides entre “O que sem pre é e não se to rn a ”, de um lado, e “O que está sempre se tornando e nun ca é ”, de outro; afirm a, com Parm ênides, que o prim eiro pode ser conhecido pela razão e o segun­ do “é um objeto d a opinião, e da sensação que não se fu n d am en ta no racioncínio.” Platão prossegue explicando que o m undo que se transform a e “se to rn a” {ouranos ou cosmos: 28b) foi feito pelo C riador como cópia (eikon) de um original paradigm a que é o Ser eternam ente im utável. A transição do paradigm a p ara a cópia (eikon) corresponde à transição, em Parm ênides, da V erdade p ara a A parência. Já m encionei essa transição, e o uso do term o “eoikota”, relacionado com o “eikon” de Platão — isto é, a sem elhança com a verdade; daí podemos talvez concluir que Platão interpretava “eoikota” no sen­ tido de “sem elhante à verdade”, não como “provável”. N ão obstante, P latão afirm a tam bém que a cópia, sendo sem elhante à ver­ dade, não pode ser conhecida com certeza; que sobre ela só podem os ter opiniões, que são incertas, prováveis. Diz que as imagens do parad ig m a serão irrefutáveis (29-b-c), m as que as reproduções das suas cópias serão apenas sem elhantes ao original (vide tam bém Phaedrus 259 E a 260 B-E, 266 E-267 A). E essa a passagem que introduz a probabilidade (eikota) na acepção de um a crença de segurança im perfeita, crença parcial, relacionando-a ao mesmo tem po com a verossimilhança (verisimilitude). Conclui com outro eco da transição a que me referi: da m esma form a como a deusa prom eteu a Parm ênides um relato tão “in ­ teiram ente com a verdade” que não poderia haver m elhor, lemos no Timaeus: (29d) “deveríamos satisfazer-nos em poder fazer um relato que não tem paralelo em termos de sem elhança (eikota), lem brando que ...som os hum anos e que é ap ro ­ priado aceitarm os um a im agem sem elhante (ao original)”: eikota m u th o n ...A o que Sócrates com enta: “Excelente, T im eu!” E m uito interessante observar que tal introdução de um a am bigüidade sis­ tem ática não im pede que Platão em pregue mais tarde o term o “eikota”, no Critias (107e), como sentido de “relato sem elhante à verd ad e.” De fato, considerando o que precede, aquela passagem deve ser assim in terp retad a: “com relação aos assun­ tos celestiais e divinos, devemos contentar-nos com um relato que tenha pequeno grau de sem elhança com a verdade, verificando cuidadosam ente a exatidão do que contam os m o rtais.” 3. Ao lado dessa am bigüidade sistem ática e sem dúvida consciente no uso de “eikota” (e termos correlatos) por Platão, e ao lado de um a am pla gam a de utilizações diversas, em que o sentido é definido, há tam bém um vasto cam po de utilizações em que o sentido é simplesmente vago. Eis alguns exemplos de usos

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES NOTAS TÉCNICAS

diversos em P latão (e Aristóteles): como oposição a “dem onstrável” e a “necessá­ rio ” ; p a ra exprim ir “a m elhor alternativa p ara a certeza”; como sinônimo de “seguram ente” ou de “parece-m e ser assim” — em especial como interjeição, em diálogos; no sentido de “talvez” ; e até mesmo no sentido de “ocorrendo com freqüên cia” , como n a Retórica de Aristóteles: (1402b22) “ ... o provável (eikos) é o que ocorre não invariavelm ente m as só na m aioria dos casos...” 4. Desejaria finalizar com o u tra passagem de crítica literária, que encon­ tram os duas vezes n a Poética de Aristóteles (1456a22-25 e 1461bl2-15), a tri­ buída a prim eira vez ao poeta Agaton: “É provável que aconteça o improvável”. O u, de form a menos vaga — em bora tam bém menos elegante: “Parece verdadeiro que coisas improváveis aconteçam ” . 7. A lgum as indicações adicionais sobre a verossimilhança (1968). 1. Como m eu interesse na distinção entre a verossimilhança (verisimilitude) e a p robabilidade (com seus m últiplos sentidos) parece aberto a interpretações errôneas, quero deixar claro antes de mais nada que não estou interessado em palavras e seus sentidos, m as sim em problem as. T am bém não estou preocupado em d a r u m a definição precisa às palavras — em “explicá-las” . H á um a analogia entre palavras ou conceitos, e a questão do seu sentido, de um lado, e as afirm ativas ou teorias e sua veracidade, de outro. Contudo, só con­ sidero im portantes as afirm ativas ou teorias e a questão da sua veracidade ou f a l ­ sidade. A d o u trin a errônea (“essencialista”) de que podemos “definir” (ou “expli­ c a r”) u m a palavra, term o ou conceito — de que podemos fazer com que seu sen­ tido seja “definido” ou “preciso” — é exatam ente análoga à concepção, tam bém errônea, de que podem os provar, dem onstrar ou justificar a veracidade de um a teoria; esta, de fato, é u m a p arte d a d o u trin a anterior, “justificacionista”. * - , E m bora as palavras e seu sentido não sejam im portantes, a elucidação de confusões pode ser im portante p ara solucionar os problem as — problem as rela­ cionados com teorias, natu ralm en te. N ão podem os definir, mas muitas vezes podem os distinguir. A confusão, ou falta de distinção, pode im pedir-nos de so­ lucionar nossos problem as. 2. Com relação à verossimilhança, o principal problem a em jogo é o problem a d a verdade do realista — a correspondência de um a teoria com os fatos ou com a re a lid a d e . U m a confusão perigosa que precisa ser desfeita é a que existe entre a ver­ dade no sentido do realista — a verdade “objetiva” ou “absoluta” — e no sentido subjetivista em que “acredito” . Essa distinção tem im portância fu ndam ental, especialm ente p ara a teoria do conhecim ento. O único problem a im portante relacionado com o conhecim ento diz respeito à concepção d a verdade no sentido objetivo. M inha tese é, sim plesm en­ te, a de que a teoria da crença subjetiva é de todo irrelevante para a teoria filo­

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sófica do conhecim ento. N a verdade, ela é incom patível com esta últim a teoria, se for com ela confundida — como acontece, de acordo com a tradição. 3. E decisivamente im portante que a necessidade de distinguir com clareza entre a verdade objetiva e a verdade subjetiva guarde seu caráter de urgência, se introduzim os nesse quadro a aproxim ação à verdade (sem elhança com a verdade ou verossimilhança); como noção objetiva, a verossimilhança deve ser distinguida nitidam ente de idéias subjetivas como a dos graus de crença, convicção ou p e r­ suasão; da aparência verdadeira, plausibilidade ou probabilidade em qualquer das suas acepções subjetivas. Incidentalm ente, ocorre que mesmo se considerarm os a probabilidade em alguns dos seus sentidos objetivos, tais como o de propensidade ou fre q u ê n c ia , será preciso distingui-la da verossimilhança; o grau de verossim ilhança objetiva precisa tam bém ser distinguido claram ente do grau de corroboração; o grau de verossi­ m ilhança de um a teoria, como a idéia d a verdade, é intem poral, em bora difira desta por ser relativa. O grau de corroboração de u m a teoria depende essencialm ente do tem po, conform e indiquei n a seção 84 de L. Sc. D ., sendo um conceito histórico. E tradicional a confusão entre a verossimilhança e certas noções subjetivas como a dos graus de crença, de plausibilidade, ou da aparência de verdade — e tam bém de probabilidade subjetiva.

Seria preciso escrever a história dessa tradição, que será m ais ou menos idêntica à história da teoria do conhecim ento. N a seção precedente destes apên­ dices esbocei-a m uito superficialm ente, na m edida em que ela se m anifesta no em ­ prego filosófico da expressão “como a verdade” (palavras associadas à raiz grega eiko, tais como eikony reprodução, im agem — de onde “ícone” —; eoika, parecer se com, sem elhante a, etc). Isto é, com palavras que, pelo m enos algum as vezes, foram usadas — por X enófanes ou Parm ênides — refletindo um a concepção realis­ ta ou objetivista da verdade (seja como “aproxim ação d a verdade”, em Xenófanes B35, seja no sentido de “sem elhança enganosa com a verdade”, em Parm ênides

B8:60).

4. No presente apêndice acrescentarei alguns breves com entários ao uso de certas palavras que tiveram desde o início um sentido subjetivo. Refiro-m e a duas raízes gregas. Um a é dokeo (d o ke , etc.) — pensar, esperar, acreditar, ter em m en ­ te, sustentar um a opinião (doxa é “opinião”; são palavras associadas: dekom ai, aceitar, esperar; dokim os, aceito, aprovado; dokeuo, esperar, observar aten tam en ­ te, aguardar). A segunda raiz é a de p e ith o , persuadir (e tam bém o poder de p e r­ suasão, ou a deusa Persuasão), no sentido de convencer, apresentar as coisas de m odo plausível ou provável — subjetivam ente provável, como é n atu ral. Aparecem as form as pithanoo, to rnar provável; pithanos, persuasivo, plausível, provável, e até mesmo especioso; pistis, fé, crença (kata pistin significa: “de acordo com o que se crê, com o que é provável”); pistos, fidedigno, acreditado, que m erece fé, provável; pisteuo, acreditar, confiar; pistoò , confirm ar, to rn ar provável, to rn ar digno de confiança.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

N ão há n en h u m a dúvida sobre o sentido fundam entalm ente subjetivo desses term os, que exercem um a função im portante no pensam ento filosófico, desde seus prim órdios. D okos, por exem plo, ocorre em Xenófanes, DK B34, num belo fra g ­ m ento onde o traduzi como “suposição” , com o sentido de “m era opinião” ou “m era con jectu ra” (cf. Xenófanes B35 e B14, onde dokeousi significa “acreditar equivocadam ente” ou “im aginar erroneam ente”). Poder-se-ia dizer que esse em ­ prego de dokein representa o nascim ento do cetiéismo, contrastando com o uso m ais n eutro de H eráclito B5 (“pensar-se-ia q u e ...”) ou B27: “Q uando os homens m orrem , enco n trarão o que não esperam ou im aginam (dokousin).” Mas H eráclito parece usar o term o tam bém no sentido de “m era opinião” , como em B I7 ou B28: “(Pois) aquilo que mesmo (os homens) mais confiáveis defendem (guardam ) como conhecim ento não passa de m era op in ião .” Em Parm ênides, a palavra d o xa , opinião, é usada em oposição direta a aletheia, verdade; e, m ais de um a vez, (B l:30; B8:51) é associada a um a referência desfavorável aos “m ortais” (Xenófanes B14 e H eráclito E l:3 2 ). 5 . O próprio term o “provável” (probabilis) parece ter sido inventado por Cícero como trad u ção dos term os estoicos e céticos pithanos, pithané, pistin, etc. (kata pistin, kai apistian — com referência à probabilidade ou im probabilidade Sextus, R esum o do Pirronismo, i, 10 e i, 232). Duzentos e cinqüenta anos depois de Cícero, Sextus (Contra os Lógicos, i, 174) distingue três sentidos “acadêm icos” do term o “p ro b ab ilid ad e” (to p ithanon, provável): 1 ) o que parece e é de fato ver­ dadeiro; 2) o que parece verdadeiro mais é de fato falso; 3) o que é tan to verda­ deiro quan to falso.

No terceiro sentido, não se m enciona de form a especial a aparência; é de crer que o que se p retende deno tar com essa acepção é a aproxim ação da verdade, ou verossim ilhança. Em toda parte, a aparência é distinguida nitidam ente da ver­ dade objetiva; ela é tudo o que podemos conseguir. Segundo Sextus, “provável” é o que induz a um a crença. Incidentalm ente, Sextus afirm a (Pirronismo, i#, 231), fazendo referência a C arneades e a C leitom achus, que: “...os hom ens q u e ... usam a probabilidade com o orientação para a vida” são dogm atistas; ao contrário, “nós (os novos céticos) vivemos de m odo não dogm ático, seguindo as leis, os costumes e nossas afeições n a tu ra is” . Por vezes Sextus em prega “probabilidade” (ou “p ro b a ­ bilidades aparen tes” , que parece quase um pleonasm o; cf. Pirronism o, ii, 229) na acepção de “especioso” . O uso da palavra p o r Cícero é diferente.

NOTAS TÉCNICAS

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jetivista de “provável” , concebeu a verdade e a falsidade em sentido objetivista, dis­ tinguindo claram ente entre a aparência subjetiva da verdade — a verdade aparente — e algo como a verdade parcial ou a aproxim ação da verdade. Proponho-m e a usar (pace Cícero) o term o originalm ente subjetivista, veros­ sim ilhança (“verisim ilutude”) no sentido objetivista de “sem elhante à verdade”. 8. Q uanto aos term os “provável” e “p ro b ab ilid ad e” , a situação se alterou radicalm ente a p artir da invenção do cálculo de probabilidade.

Parece agora essencial perceber que há m uitas interpretações do cálculo de probabilidade (conforme acentuei em 1934, na seção 48 de L. Sc. D .^algum as su b ­ jetivas, outras objetivas (m ais ta rd e cham adas po r C arnap de “probabilidade 1” e “probabilidade 2 ”). Algumas das interpretações objetivas — em especial a interpretação da propensidade — foram já m encionadas brevem ente por m im , aqui eem L. Sc. D. Vide tam bém , a esse respeito, m eu trabalho sobre “T h e Propensity Interp retatio n of P robability” in T h e British Jo u rn al for the Philosophy of Science, 10, 19fh9, n .° 37, págs. 25-42, e em “Q u an tu m Mechanics W ithout The Observer”, in Q uantum Theory and Reality, edit, por M ario Bunge, 1967, págs. 7-44. 8 Novas observações sobre os p ré -socráticos, especialmente Parmênides (1968). Pode-se acrescentar aqui algum as observações em apoio de certos pontos de vista apresentados na Introdução do presente livro e no seu capítulo 5. 1. N a Introdução afirm ei, sem arg um entar, que Parm ênides descreve a deusa Dike como g u ardiã e zeladora das chaves d a verdade, fonte de todo o co­ nhecim ento. Ao dizer isso, identifiquei a deusa de DK Bl:22 como a Dike de B1.T4 a 17, identificação (que rem onta a Sextus, Contra os Lógicos, i, 113) rejeitada por a l­ gum as im portantes autoridades tais como W .K .C . G uthrie, A History o f Greek Philosophy, ii, 1965, pág. 10 (“um a divindade sem nom e”), ou T a rá n , Parmênides, 1965, págs. 15, 31, 230 — am bos sustentam que Parm ênides deixa sua deusa anônim a (Bl:22), oferecendo argum entos sutis nesse sentido.

6 . Diz Cícero: “Essas são as coisas que creio dever qualificar como prováveis (probabile), ou sem elhantes à verdade (veri sim ile); essa (característica) lhes dá u m a n orm a p a ra a conduta da vida, e p a ra as investigações filosóficas” . (A cadê­ m ica, ii, 32; em 33 Cícero se refere a C arneades, como o faz Sextus no mesmo con­ texto; cf. A cadêm ica, ii, 104 — “guiada pela p ro babilidade”). Em De N atura D eorum, en tram em jogo as probabilidades porque a falsidade pode ser engano­ sam ente sem elhante à verdade; contudo, em Tusc., i, 17, e em ii, 5, os dois termos são sinônimos.

T a rá n argum enta que Parm ênides deixa a divindae anônim a p a ra “acentuar a objetividade do seu m étodo”. Por que, então, m enciona, oito linhas antes, a deusa Dike?

7. N ão h á dúvida de que os term os “p ro b ab ilid ad e” e “verossim ilhança” (“verisim ilitude”) foram introduzidos por Cícero como sinônimos, na acepção subjetivista. N ão há dúvida tam bém de que Sextus, que em prega um a acepção sub-

H á dois argum entos em favor da tese que identifica a deusa Dikê das linhas 14 a 17 com a divindade que revela a Parm ênides a verdade sobre o m undo exis­ tente e sobre a origem do erro:

N ão estou convencido disso, porém , em bora a m enção de “dike” (ou Dike) pela divindade, na linha 28 (Bl:28), seja de fato estranha — se a interpretarm os como um a auto-referência. Parece m elhor entender, como T a rá n , "T hem is” e "dike” — não os nomes próprios correspondentes.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

a) T odo o resto de Bl, até a linha 23 — especialm ente as linhas 11 a 22 — sugerem essa identificação, como os porm enores seguintes m ostram bem : Dike é apresentada de form a elabo rad a, de acordo com o clim a de toda a passagem; da linha 14 até a 20 (arérote) ela é a principal personagem ; por outro lado, o período não parece deter-se ali, m as só no fim da linha 2 1 , antes que a “deusa” apareça. E ntre a linha 20 e o final d a 21 a única coisa que se diz é: “As jovens m antiveram os cavalos em linha reta ao longo d a estrada, através do po rtão ” . Isso não im plica que a viagem de Parm énides, descrita porm enorizadam ente até aquele ponto, continue; n a m in h a opinião h á aí u m a forte sugestão de que, depois de passar pelo portão, o n ­ de precisa en co n trar Dike, cessa a viagem de Parm énides. O ra, como aceitar que a auto rid ad e m ais elevada, a principal locutora do poem a, faça sua aparição sem um nom e, sem q u alq u er apresentação — um epíteto sequer? Por outro lado, porque d e ­ veriam as jovens apresentar Parm énides a Dike (e apaziguá-la) se, do ponto de vista aqui criticado, ela é u m a personalidade inferior? b) Se acreditam os, como G uthrie {opus cit., ii, p ág . 32; vide tam bém pág. 23 e T a rá n , opus c it., págs. 5 e 61), que há um a evidência cum ulativa “de que Parm énides, ao criticar o pensam ento precedente, pensava especialm ente em H eráclito ”, o papel desem penhado por Dike no logos de H eráclito (vide DK Heráclito B 28, que pode ter influenciado Parm énides; sua term inologia m uito é sem elhante, sob m ais de um aspecto) explicaria por que, n a A ntilogia, Parm énides a cita com o a nova autorid ad e, base do seu logos. Incidentalm ente, parece não ser m uito difícil ad m itir que na im p o rtan te passagem de Parm énides B 8 , linha 14, Dike esteja falando sobre si m esm a; m as é m uito difícil presum ir que a “deusa” fale em tais term os sobre seu próprio guardião. 2. M uito m ais im p o rtan te do que o problem a de Dike parece-m e o problem a do desenvolvim ento inicial d a epistem ologia, exam inado no capítulo 5 deste livro e no respectivo apêndice — problem a a propósito do qual os apêndices 6 e 7 têm u m a certa relevância. O que pretendo discutir aqui, em especial, é a história original d a disputa entre o racionalism o e o em pirism o — particularm efite na sua form a sensorialistá. T e rá ficado claro a todos os que pelo menos relancearam as páginas da m inha Intro d u ção , e do capítulo 5, que m eu ponto de vista é anti-sensorialista. Sou u m a espécie de em pirista, na m edida em que considero que “de qu alq u er fo r­ m a a m aior p arte das nossas teorias são falsas” (vide o ponto 8 , acim a) e que a p re n ­ demos pela experiência — isto é, graças aos nossos erros — a corrigi-las. Contudo, penso tam bém que nossos sentidos não são fontes de conhecim ento, num sentido de autoridade. N ão h á a observação pura ou a pura experiência sensorial; toda p e r­ cepção é u m a interp retação , à luz da experiência — das expectativas de quem o b ­ serva, de suas teorias. A estrutura e o funcionam ento dos nossos próprios olhos e ouvidos resultam de erros e acertos — eles têm suas próprias expectativas (portanto, teorias — ou algo análogo a teorias) im plícitas na sua anatom ia e fisiologia. O m es­ mo acontece com nosso sistema nervoso. N ão existe n ad a que se assemelhe a “dados sensoriais” puros — d a ta , sem q u alquer in terpretação, que constituíssem o m aterial básico processado pela interpretação, levando à percepção. T udo é in ter­ p retado; selecionado, em algum nível, pelos próprios sentidos. No que se refere aos anim ais, essa escolha resulta da seleção n atu ral. No nível m ais elevado, é o resultado da crítica consciente — da exposição das nossas

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teorias a um processo crítico de escrutínio, visando a elim inação dos erros, por meio de debate crítico e dos testes experim entais. Mais recentem ente, cheguei a form ular o processo de seleção sob a form a de um diagram a m uito sim plificado: 13 P l ----- * T T ---- E E -------- * P 2 P j é nosso problem a inicial; T T são as teorias tentativas com as quais procuram os resolvê-lo; EE é o processo de elim inação dos erros, a que estão sujeitas as teorias (seleção n atu ral, no nível pré-científico; exam e crítico e experim entação, no nível científico); P 2 é o novo problem a que surge d a exposição dos erros das teorias tentativas. O esquem a m ostra que a ciência começa e term ina com problem as; cresce por meio da invenção de teorias ousadas e m ediante a crítica de várias teorias con­ flitantes. Esse esquem a pode ser considerado como um tipo de aperfeiçoam ento da tríade dialética que já exam inam os neste livro. Com o ela, sum ariza tan to a evo­ lução pré-científica como o progresso da ciência. 3. Os pré-socráticos parecem representar o início do debate crítico na ciên­ cia. O surpreendente a seu respeito é que não só progridem , pela crítica recíproca (processo que leva, em poucas gerações, ao atom icism o, à teoria da form a esférica da terra; da origem solar da luz da lua; dos eclipses; e à antecipação do sistema de Copérnico, por Aristarco), m as com eçam tam bém a refletir sobre seus próprios métodos críticos, dos quais se tornam conscientes — a p a rtir de Xenófanes. Podemos encontrar em H eráclito observações anti-sensorialistas e próintelectualistas — por exem plo, em B46 e 54 (B 8 e 51), como em B123 (B56) —, todas m encionadas no cap. 5. Mas tam bém em B 107: “os olhos e os ouvidos são fa l­ sas testem u n h as...” (Falsas testem unhas tam bém aludidas em B28; vide igualm ente B lO la, à luz de que tan to 107 quanto 101a podem significar: “As testem unhas oculares são m elhores do que os rum ores”). Veja-se tam bém B41: “A sabedoria consiste em conhecer o pensam ento (o logos — estória, teoria, lei; cf. p a nton kata ton logon em B l: “tudo acontece de acordo com essa estória, teoria ou lei”) que tudo orienta através de tu d o ”. 4. Mas o passo m ais decisivo foi possivelmente o de Parm énides, com seu desafio da experiência e sua teoria da refutação crítica, de que citamos algum as passagens. Parm énides é um dos maiores e m ais espantosos pensadores de toda a história: um pensador revolucionário, tão consciente disso qu an to H eráclito; mas sua revolução consistiu, em p arte, na tentativa de dem onstrar a doutrina da im obilidade ou invariabilidade do m undo real — a inexistência da m udança.

13 — Publiquei esse diagrama (e suas versões mais elaboradas) em 1966, no texto da minha conferência «Of Clouds and Clocks» (pronunciada no ano anterior). Vide também meu trabalho «Epistemology Without a Knowing Subject», nos Proceedings o f the Third International Congress fo r Logic, Metho­ dology and Philosophy o f Science, reunido em Amsterdam, em 1967.

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CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

O utras de suas inovações revolucionárias foram : a descoberta da distinção entre aparência e realidade e sua crítica ao senso co m u m , o em pirism o e as crenças tradicionais, que ele acreditava se baseassem apenas na convenção 14 não na ver­ dade — em doxa, a m era opinião dos m ortais. Em todas essas idéias teve predeces­ sores, m as avançou m uito mais do que eles. 5. Por isso traduzo B8: 60-61 — onde a divindade falsa sobre o m undo de doxa, a ap arência enganosa, d a seguinte form a: “F alarei agora sobre este m u ndo , arran jad o inteiram ente de m odo a p arecer verdadeiro, p a ra que n u n ca m ais sejas desviado pela concepção dos m o r­ tais”. 15 A trad u ção o rd in ária de parelassei, que interpreto como “desviar” , “deixar-se desviar” , é “sob rep u jar” . Por exem plo: Kirk e Raven traduzem p a ra o inglês: T he whole o rdering of these I tell thee as it seems likely, th a t so no thought of m ortal m en shall ever outstrip thee” . O u seja: “D ir-te-ei como parece ser a ordenação de tudo isso, p a ra que não te sobrepujem as idéias dos m ortais”. Penso que o term o “so b rep u jar” (em inglês “o u tstrip ”), ou q u alq u er outro que sugira ser objetivo da divindade a ju d a r a vitória de Parm ênides, no caso de ele com petir verbalm ente com outros “m ortais”, é enganoso e prejudica a seriedade da m ensagem das deusas, cujo objetivo prim ordial é revelar a verdade — um objetivo secundário é d ar a P a r­ m ênides os recursos intelectuais necessários p ara evitar os erros da crença tra d i­ cional, p a ra não ser arrastado por e la .16 6. O fragm ento B I 6, que tam bém traduzi, é o mais im portante com relação ao ataq u e de Parm ênides ao em pirism o. Considero essa passagem um a form ulação antecipatória da d o u trin a sensorialista segundo a qual não pode haver nada no in ­ telecto que não ten h a estado antes nos órgãos sensoriais, a qual é criticada. Parm ênides desencadeia seu ataq u e em pregando a palavra poluplanktos (“que com etem m uitos erros”) p a ra caracterizar os órgãos sensoriais, im plicando qtfé o in ­ telecto ou “pensam ento” , na m edida em que depende dos sentidos, deve ser visto igualm ente como “enganoso” . É o que se lê claram ente em B6:6, onde pla n kto n noon significa, sem dúvida algum a, “m ente que e rra ” (erring m in d ” como diz Guthrie, em inglês, na pág. 21, vol. ii, d a sua History o f Greek Philosophy, 1965), o que é reforçado pela oposição evidente entre esse “pensam ento que e rra ” e a “razão crítica” ou “argum entação” de B7:5, p a ra a qual a deusa apela contra as pretensões da expe­ riência sensorial. Os dois term os seguintes parecem cruciais p ara m inha proposta in terp re­ tação do fragm ento epistemológico B I 6, sobre os órgãos sensoriais que erram : a) a

14 - Convenção ou atribuição de nomes. É a denominação do que não existe (oposições não existentes como o dia e a noite) que condiciona a falsidade da doxa. Vide B8:53. 15 - Em inglês: "Now of this world thus arranged to seem wholly like truth I shall tell you / Then you will be nevermore led astray by the notion of mortals”. 16 - Anteriormente tinha traduzido parelauno como “aterrorizar” (overawe) tendo em vista o peso das crenças religiosas tradicionais que Permênides teria que enfrentar e resistir, bem como o sentido ho­ mérico da palavra elauno: “fugir com alguém”. Charles Kahn objeta, alegando que essa intrepretação não leva em conta o para em parelauno. A nova tradução procura atender a essa objeção.

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tradução “que erram m u ito ” ( Um uch- erring”), p ara poluplanktos, e b) a tradução “órgãos sensoriais” ( ilsense- organs”) p ara melea. Se essas traduções estão corretas, a interpretação do resto da passagem segue-se quase que necessariam ente. C ontudo, antes de exam inar a tradução dessas duas expresÕes, devo dizer que tenho dois argum entos im portantes para apoiar m inha interpretação da p a s ­ sagem: ela se coaduna com a tradição filosófica (em particu lar com as idéias de Empédocles e de Teofrasto) e, por outro lado, m inha tradução não só faz sentido porém , filosoficamente, tem u m sentido im portante — o que não acontece com as outras interpretações.17 7. E xam inarei agora as duas expressões cruciais a) e b). a) “Q ue m uito e rra ” como o sentido de poluplanktos. Parm ênides em prega os termos plazo, plasso (na form a platto) — que parece associar estreitam ente ao prim eiro — e planao sem pre no sentido de afastam ento da verdade. Vide B6:6 {plankton noorrí); B8:28 e (eplachthesan); B6:5 (p la ttontai), B8:54 {peplanemenoi). Em todos esses casos, exceto talvez em B8:28, as palavras têm o sentido de “opinião ou crença errônea” . ío r ta n to , há motivo p ara traduzir poluplanktos, um a passagem como a de B I6 (adm itida de m odo geral como essencialmente epistem ológica), como “m uch-erring” (“que m uita e rra ”), em vez de “w andering” (Kirk and Raven) ou “m uch w andering” (T arán). Isso parece estranho, pois mesmo onde plazo quer dizer, em inglês, “w andering” ou “straying”, tem via de regra o sentido de “sem saber o destino”. T odas essas form as parecem associadas a plagiazo — d ar voltas, enganar. b) Melea traduzido como “órgãos sensoriais”. Como já disse, essa foi a tradução de Diels, de 1897. Uma interpretação sugerida fortem ente pelo contexto, em que o fragm ento B16 de Parm ênides nos é transm itido, e exam inado por Aris­ tóteles (na M etafísica, em passagem que começa em 1009b 13, na qual ele discute a d o utrina de que “o conhecim ento é percepção sensorial”) e por T eofrastro {De Sensu, 1). Contudo, vários autores contestam tal interpretação, entre eles G uthrie {History o f Greek Philosophy, ii, pág. 67), que afirm a: «melea, lit. “m em bros”, isto é, o corpo, não havendo ainda palavra coletiva que o designasse, usada ordi17 — Para conveniência do leitor eis aqui minha tradução para o inglês dos fragmentos epistemológicos B16: “For as, at any one time, is the much-erring sense-organs mixture,/So does knowledge appear in men. For these two are the same thing:/That which thinks, and the misture, which makes up the sen­ se-organs nature./What in this mixture prevails becomes thought in each man and all”. É a seguinte a tradução de Kirk and Raven: {The Presocratic Philosophers, 1957, 1960, pág. 282). “According to the mixture that each man has in his wandering limbs, so thought is forthcoming to mankind; for that which thinks is the s«me thing, namely, the substance of their limbs, in each and ail men; for that of which there is more is thought”. Para mim, isso é incompreensível. Ainda mais estranho é o comentário que fazem Kirk e Raven sobre o fragmento: “ ...a equação da percepção e do pensamento deriva cu­ riosamente de (Parmênides)”. Como os tradutores falam em limbs (“membros”), embora na minha opinião devessem falar em “órgãos sensoriais”, parece estranho que interpretem a passagem como equacionando percepção (sensorial) e pensamento. Além disso, a equação relativa à percepção “que muito erra” e o pensamento “que erra” (B6:6) se ajusta muito bem ao racionalismo de Parmênides, Segundo H. Diels (.Parmenides Lehrgedicht, 1897, pág 112), meleon significaria “órgãos sensoriais”; o mesmo pensa K. Reinhardt, Parmenides, pág. 77. Os autores atuais ora dizem “membros”, ora “corpo”. Assim, Tarán, Parmenides, 1965, pág. 169, traduz: “For as at any time the mixture of the much wan­ dering body is, so does mind come to men. For the same thing is that the nature of the body thinks in each and in all men: for the full is thought”.

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n ariam en te” . T a rá n (Parm ênides, pág. 170) não em prega o mesmo argum ento, mas recom enda igual in terpretação. N ão posso entender esse argum ento. Vamos adm itir que soma não estivesse ainda em uso geral, como referência ao corpo vivo (Hom ero utiliza essa palavra no sentido de “cadáver”), em bora a encontre definida como “o corpo vivo, só de hom ens” n a m in h a edição de Liddell e Scott dos Trabalhos e Dias de Hesíodo, em Teognis e em P índaro. C ontudo, mesmo se adm itirm os que soma ainda não era usada o rd in ariam en te, havia o u tra palavra — demas — usada com o sentido de “corpo” , (isto é, “o físico e a estatura do hom em ) “empregada muitas vezes por Homero” (Liddell e Scott). Ela ocorre num a passagem cuja terminologia é usada por Parm ênides, isto é, em X enófanes B14. “Mas os m ortais têm a opinião de que os deuses... possuem corpos como eles próprios” . Vide tam bém X enófanes B23: “Um único deus, o m aior d en tre todos os deuses e todos os hom ens, diferente deles tanto em espírito como no corpo”. Admite-se que demas é em pregado tam bém no sen­ tido de “estatura” ou “form a”: por exemplo, em Parmênides B8:55. Mas, algumas linhas ad ian te, em B8:59, significa outra vez “corpo” — na tradução de T a rá n (body); G uthrie o traduz por “form a” (form). Assim, en q u an to a acepção de “corpo” para a palavra melea m al pode ser defendida com o argum ento de que não havia outro term o disponível, o sentido de melea entendido como «órgãos sensoriais» pode ser aceito precisam ente pela mesma razão. N a verdade, não encontro em q u alquer fragm ento pré-socrático reco­ nhecido como genuíno um term o genérico que pudesse significar “órgão sensorial”, antes do em prego de melea por Parm ênides e do seu sinônim o guia por Empédocles (bem como palam ai, “m ãos” ; vide adiante).O que encontram os é a enum eração dos vários órgãos dos sentidos, como no fragm ento B7 de Parm ênides, já citado. N ão há sequer um term o p a ra “sentido” . E stranham ente, encontro nos fragm entos mais antigos um a única ocorrência de um term o genérico significando “percepção dos sentidos” , tiu m fragm ento de p articu lar im portância — Alcaeon Bla —, onde T eofrastro usa aisthanetai (“perceber”). Esse fato é ainda m ais notável porque havia obviam ente a idéia geral da percepção e dos órgãos dos sentidos (e da p e r­ cepção sensorial): os olhos e os ouvidos são m encionados ju n tam en te por H eráclito. por exem plo; Parm ênides os m enciona em conjunto com a língua e Empédocles com as mãos e os m em bros (guia). O ra, m elea, o plural de meios, significa fundam entalm ente “m em bros” , como guia. Meios quer dizer tam bém “canção” — sem dúvida, era originalm ente um a stanza, um verso, p arte orgânica (m em bro) de um a canção. Como dizem L id ­ dell e Scott, a palavra im plica “a noção de sim etria das partes, como em alem ão Glied — L íed” .!8 Os olhos, os ouvidos e os m em bros — até o nariz — estão dispos­ tos sim etricam ente; e há m uitas razões p ara supor que Parm ênides pensou tam bém nas mãos e nos pés.

18 — É interessante notar que em alemão “gegliedert” (literalmente, “com membros”, como o inglês “limbed”) significa “altamente articulado” ou “com partes equilibradas e organicamente relacionadas entre si; já em inglês “limbed” ou “possessing limbs” não tem tal significado.

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Não era só Parm ênides que precisava de um a palavra p ara “orgão senso­ rial”: Empédocles enfrentou o mesmo problem a. É interessante que T a rá n — que rejeita a sugestão de Diels a respeito desse significado — adm ite por im plicação que melea e guia são sinônimos. Escreve que os dois term os “são utilizados p a ra indicar o conjunto do corpo vivo” ; dá referências que, incidentalm ente, considero incon­ clusivas ou pouco convincentes. Em todos os casos que apresenta, “m em bros” parece ajustar-se tão bem quanto “corpo” em H om ero, essa adequação é ainda m elhor, como pude ver nas traduções que consultei. De qu alq u er m odo, como T a rá n indica que melea e guia são sinônimos, é m uito interessante que Empédocles utilize guia na sua procura de um a descrição geral aceitável dos órgãos sensoriais. Acho que Empédocles se referia a Parm ênides B7, ao “olho cegado” e ao “ouvido ensurdecido”; m as procura defender os órgãos sensoriais como fontes de conhecim ento altam ente im perfeitas e contudo indispensáveis. Assim, escreve em B 2 :l: “Estreitos são os cam inhos1819 dos nossos órgãos sensoriais (palamai, isto é, “m ãos”) distribuídos pelos m em bros (guia); m uitas coisas sem grande significação arrem etem contra eles, o que dim inui a sensibilidade da nossa atenção (m e rim n a ; cuidado, atenção, reflexão, m ente)” .

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O fato de que Empédocles quer dizer “órgãos sensoriais” ao falar em p a ­ lamai e em guia fica claro em B3: 9-13, onde discrim ina: a vista, a audição e o p alad ar (como Parm ênides em B7), advertindo-nos p a ra não suprim ir a evidência (pistis) dos “outros m em bros” (guion). NÕ podia ser mais claro. Mas há outras evidências: num a passagem referente a Empédocles, Cícero traduz e m enção a “estreitos órgãos sensoriais” de E m ­ pédocles (steinopoi palam ai) por “angustus sensus” (Acadêm ica, i, 12:44), falando sobre a “obscuridade dos fatos, que levou Sócrates a confessar sua ignorância, e a n ­ tes dele Dem ócrito, A naxágoras e Em pédocles... disseram que n ad a pode ser co­ nhecido, devido aos nossos sentidos e s t r e i t o s . (Cícero exagera a rejeição dos sen­ tidos por Empédocles). Como guia significa indubitavelm ente “órgãos sensoriais” em Empédocles B3:13, e como melea e guia são sinônimos — é o próprio T a rá n que o afirm a (em ­ bora o sentido musical de melea possa indicar um a denotação especial relacionada com a sim etria e a articulação, que falta a guia) —, parece-m e não haver base para rejeitar a sugestão de Diels de que melea quer dizer “órgãos sensoriais” .20 8. Mas, um a vez que interpretam os o fragm ento epistemológico (P arm ê­ nides B l 6) como um ataque aos “órgãos sensoriais que m uito e rra m ”, ele se torna um ataque contra a teoria sensorialista segundo a qual os órgãos sensoriais são fon-

19 — “Aberturas” ou “estradas” {poros) para o conhecimento. 20 — Depois da terceira edição deste livro, em 1971, ocorreu-me que em Partes dos Animais, de Aris­ tóteles, também se pode encontrar evidência disso, como na seguinte passagem: (645b36 a 646a 1) Exemplos dessas partes sao o nariz, o olho, o rosto; cada uma delas e conhecida como um membro”. A palavra traduzida por “membro” é meios, a forma sihgular (extremamente rara) de melea (nota acres­ centada em 1971).

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tes de conhecim ento verdadeiro. Como tudo o mais na doxa, essa teoria form a p a r­ te da opinião errônea dos m ortais, sendo atrib u ída à convenção e ao hábito. 21 Já com Empédocles tem início, como vimos, um a reação contra essa re ­ volução racionalista. A “estreiteza” e debilidade geral dos sentidos são adm itidos por Empédocles; contudo, ele defende os sentidos como fontes de conhecim ento, se os usarm os p a ra a corroboração m ú tu a. Levou bastante tem po, contudo, p ara que a crítica do sensorialismo de Parm ênides fosse substituída pelo dogm a sensorialista que om itia a expressão “que e rra ” (duas vezes) da sua fórm ula sarcástica de que não há nada no intelecto (que erra) que não tenha estado previam ente nos sentidos (que erram). 10. Se Platão tem razão, Protágoras desencadeou um ataque im portante contra o anti-sensorialism o de Parm ênides; com sua famosa proposição “o hom em é a m edida de todas as coisas” , tentou “virar a m esa” com relação a Parm ênides; como m ortais somos obrigados a aceitar o que Parm ênides descreveu, com palavras de desprezo, como “opinião enganosa” e m era aparência recolhida pelos sentidos (isso faria Protágoras conhecido como um defensor da doxa de Parm ênides). Assim, o “com entário soturno” de Protágoras (como o qualifica Platão, em Theatetus, 152 C), pode ser m elhor entendido como um sum ário do argum ento seguinte: vamos adm itir que Parm ênides tem razão, e que o verdadeiro conheci­ m ento da realidade — do que realm ente existe — está lim itado aos deuses, e n ­ quanto os m ortais dependem em geral das suas convenções e de sentidos que erram m uito. Assim, como eles são hom ens e não têm outros padrões (ou “m edidas”) além do hum ano p a ra decidir sobre “a existência das coisas que existem e a inexistência das coisas que não existem ” ( Theaetetus 152A), devemos aceitar (não hesitante­ m ente, como Empédocles, mas) com todo coração a epistemologia sensorialista (que Parm ênides descreveu com sarcasm o), como a única teoria possível do co­ nhecim ento hum ano. É assim que a verdade se torna subjetiva. Se adm itirm os que Dem ócrito recebeu influência tanto de Parm ênides como de Protágoras, o famoso diálogo entre a razão e os sentidos (Demócrito B I25) poderá ser descrito como um diálogo entre esses dois pontos de vista. A razão (isto é, a concepção eleata) ataca os sentidos: “Doce: por convenção; am argo: por con­ venção; frio: por convenção; colorido: por convenção. N a verdade só existem os átom os e o vazio” . 22 Os sentidos (Protágoras) retrucam : “Pobre intelecto! T u que recebes tuas evidências de nós pretendes derrubar-nos? Mas nossa queda seria a tua queda”.

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Nesse assunto, Epicuro acom panhou Protágoras, em vez de Demócrito. Mas a versão mais concisa da fórm ula de Parm ênides, sem a referência aos erros, parece a de São Tom ás de Aquino: “N ada está no intelecto que não tenha já estado nos sentidos”. Duzentos e cinquenta anos depois, podemos en contrar em C. Bovillus (14701533, autor de De Intellectu) um a reiteração da posição de Parm ênides e de D e­ m ócrito: “N ão há nada nos sentidos que já não tenha estado no intelecto. Não há n ad a no intelecto que já não tenha estado nos sentidos. O prim eiro se diz dos anjos: o segundo, dos hom ens” , Parm ênides dizia, essencialm ente, o mesmo: o prim eiro é o cam inho da verdade, revelado pela deusa; o segundo, o cam inho da opinião ilusória dos m ortais que se equivocam . N a m inha opinião, tudo isso está contido no fragm ento epistemológico B I6. 9. Os pré-socráticos: unidade ou novidade? Depois de ter escrito, em 1960, o apêndice (agora expandido) ao capítulo 5, tive a oportunidade de ler a adm irável obra de C harlesH . K ahn: A n a xim a n d erand the Origins o f Greek Cosmology (1960). K ahn acentua corretam ente a “unidade essencial” (pág. 5) da antiga especulação sobre a natureza, apontando que o quadro de referências do pensam ento de A naxim andro dom ina a cosmologia dos seus sucessores, pelo menos até o Tim aeus de Platão. Considero essa ênfase im pottante como um antídoto à m inha própria ênfase na novidade das teorias sucessivas. C ontudo, a tese de que a novidade resulta de u m debate crítico parece abranger os dois pontos de vista: temos aí claram ente unidade e novidade. Talvez deva acrescentar aqui algum as palavras a respeito da teoria da livre suspensão da terra, de A naxim andro, que tanto K ahn quanto eu próprio consi­ deram os tão im portante. Já sugeri que ela pode resultar perfeitam ente da crítica de Tales por A naxim andro; parece-m e, clara, contudo, que é tam bém um a resposta crítica a certa passagem da Teogonia (720-725), que sugere fortem ente„a equidistância da terra de todas as partes do universo que a circundam — considera-se aí T artaru s tão afastado da terra, por baixo, quanto o céu (Uranus) por cim a (com ­ pare-se com a Ilíada, 8, 13-16; e com a Eneida, vi, 577). Essa passagem sugere tam bém m uito fortem ente que é possível desenhar um diagram a no qual, se o céu for concebido como um a espécie de esfera, a terra ocupará a posição que lhe atribui A n axim andro.23

21 — Há dois outros pontos em Parmênides B16 que gostaria de comentar: a) Embora, sob a influência do argumento de Tarán, tenha substituído na terceira edição desse livro a palavra “predomina” ( “prevails”) por “contém” (“contains”: vide Studies in Philosophy, edit, por J. N. Findlay. Oxford Paper­ backs 112, pág. 193), decidi voltar à formulação “What in this mixture prevails”: b) o outro ponto é tendida como “estado de composição física” ou “estado de mistura” de uma coisa. Esse sentido é examinado por Kahn em Anaximander, 1960 — por exemplo, na pág. 202, numa passagem muito in­ formativa em que Kahn cita De Victu. 22 — Demócrito tinha consciência do fato de que seu atomicismo era uma doutrina racionalista da realidade existente por trás das aparências, um desenvolvimento do pensamento eleático. Assim também pensava Aristóteles.

23 — A Ilíada, 8, 13-16, é citada por Kahn que, embora se refira à Teogonia, não menciona Teogonia 720-5. Isso pode explicar por que ele afirma (pág. 82), a respeito da passagem que começa em 727: Não seria possível desenhar um diagrama para ilustrar tal descrição”

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