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In Lopes, Óscar e Saraiva, A. José , História da Literatura Portuguesa , Porto ed. ,16ª ed, pg. 45 - 68
Os Cancioneiros primitivos
Quase todas as literaturas se iniciam por obras em verso. Exceptuando as novas nacionalidades resultantes da emigração de Europeus a partir do século XVI, a poesia surge mais cedo do que a prosa literária. Não é difícil explicar este facto: nas civilizações do passado, a mais corrente forma de comunicação e de transmissão da obra literária não é escrita, mas oral. Antes de se fixarem no bronze, na pedra, no papiro, no papel ou no pergaminho, as histórias, as narrativas, e até os códigos morais e jurídicos gravavam-se na memória dos ouvintes; e havia artistas que se encarregavam de as divulgar, os aedos e rapsodos entre os Gregos, os bardos entre os Celtas, os jograis entre os povos românicos medievais. O verso é, inicialmente, entre outras coisas, uma forma de ritmar a fala que facilite a memória, quer esse ritmo se baseie em esquemas de contraste quanto à duração das
sílabas (caso do verso greco-latino), quer em esquemas de contraste de intensidade silábica reforçados por aliterações (caso da poesia germânica), quer no isossilabismo, isto é, na regularidade quanto ao número de sílabas reforçada pela rima (caso das literaturas românicas medievais), quer ainda noutras componentes fonéticas. Vestígios desta literatura oral são ainda hoje os provérbios que, como facilmente se verifica, obedecem a ritmos ou recorrências fónicas que facilitam a fixação. As literaturas românicas medievais apoiam-se, como já notámos, na literatura oral, cujos principais agentes eram os jograis, embora, por via clerical, apreendessem certos temas e lugares-comuns retóricos de tradição greco-romana, sobretudo desde a sua assimilação pelos trovadores corteses (e, na Península, também pelos segréis nobres de parcos recursos e também, por vezes, instrumentistas).
Os mais antigos textos literários em língua portuguesa são composições em verso coligidas em Cancioneiros de fins do século XIII e do século XIV, que reúnem textos desde fins do século XII. Mas devemos supor muito anterior a tal época o culto
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da poesia testemunhado por estes textos escritos. A literatura oral, com efeito, só se fixa por escrito em época tardia da sua evolução quando as condições ambientes já divergem muito daquelas que lhe deram origem. Portanto seria errado pensar que a poesia portuguesa nasceu com os Cancioneiros; estes não passam de colecções, mais ou menos tardias, de textos que de início circulariam em cópias mais restritas. Uma parte, pelo menos, da poesia conservada pelos Cancioneiros supõe um longo passado e uma tradição oral que nos levam a épocas muito mais remotas do que aquelas em que se compuseram os mais antigos poemas dos Cancioneiros, datados, como vimos, de fins do século Xll. Adiante aludiremos às carjas (kllarajat), que parecem revelar a existência, no seio das populações submetidas ao domínio muçulmano, de uma poesia popular muito provavelmente precursora daquela que tais cancioneiros conservaram. Conhecem-se três Cancioneiros ou colectâneas, aliás estreitamente aparentadas entre si, de poemas de autores diversos em língua galego-portuguesa. O mais antigo, o Cancioneiro da Ajuda, foi provavelmente compilado ou copiado na corte de Afonso X, o Sábio, em fins do século Xlll, Os outros, Cancioneiro da Biblioteca Nacional (antigo Colocci-Brancutti) e o Cancioneiro da Vaticana (com uma variante recentemente descoberta), são cópias, realizadas em ltália no século XVl, a partir de uma compilação que data provavelmente do século XIV. Destes, o Cancioneiro da Ajuda é o menos completo, porque apenas abrange composições anteriores à morte de Afonso X, excluindo, por exemplo, a vasta produção de D. Dinis; e porque o seu coleccionador deixou de fora os géneros mais vulgares, isto
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é, as cantigas de amigo e as de escárnio ou maldizer, de que adiante falaremos. Mas tem o interesse especial de o seu manuscrito pertencer à própria época da maioria dos poetas seus colaboradores, e é um documento valioso, pela grafia, pela decoração e sobretudo pelas iluminuras, que testemunham o carácter cantado e instrumental, embora tenham sido deixados em branco os espaços destinados à notação musical, entre outros sinais de inacabamento.
Os cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca
Nacional], compilados depois da morte de Afonso X, abarcam um espaço de tempo maior, isto é, não só os poetas contemporâneos de D. Afonso III e anteriores, mas ainda os contemporâneos de D. Dinis e de seus filhos; abrangem. por outro lado, todos os géneros de composições, e não só as cantigas de amor. Destes dois, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional é o mais completo, pois inclui quase todo o material recolhido no Cancioneiro da Vaticana e muito outro. O Cancioneiro da Ajuda contém 64 poesias não transcritas nos outros dois, Um catálogo do coleccionador quinhentista italiano, Ângelo Colocci, a quem se deve a preservação do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, revela-nos que qualquer dos cancioneiros se encontra hoje mutilado. É bem possível que estejamos em presença de sucessivas cópias de uma e a mesma colecção, que seria talvez encorpando pouco a pouco; e a fase mais importante da compilação deve ter sido a de certo «livro das cantigas» mencionado no testamento do conde de Barcelos, D. Pedro, filho de D. Dinis (1350). O conjunto abarca 1679 poesias de 153 autores identificados, além de alguns anónimos. O mais antigo dos trovadores conhecidos dos Cancioneiros é João Soares de Paiva, nascido cerca de 1140, dois anos após a batalha de Ourique, pertencente, portanto, à geração de Sancho
I (a quem chegou a ser atribuída a autoria de uma
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cantiga, afinal de Afonso X). Isto situa o início da literatura escrita portuguesa conhecida cerca de começos do século XII. É plausível relegar para depois dos dois trovadores mencionados a discutidíssima Cantiga de Garvaia (manto escarlate) de Paio Soares de Taveirós, que os primeiros estudiosos datavam de entre 1189 e 1198, Rodrigues Lapa e G. Tavani aceitam 1196 e outros 1213 como data da mais antiga cantiga (de escárnio) de Soares de Paiva: Ora faz ost' o senhor de Navarra. O trovador mais recente é o mencionado conde de Barcelos, falecido em 1354. (Há três autores quatrocentistas tardiamente inseridos na colecção trovadoresca). Os autores pertencem a diversas regiões da Península, e em grande parte viveram e poetaram na corte do rei de Leão e Castela: tal é o caso do rei Afonso X, o Sábio, e dos poetas da sua corte literária, muitos deles portugueses e galegos, que ocupam uma parte importante dos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional. Não devemos imaginar todos, nem talvez mesmo a maior parte dos poetas dos Cancioneiros, no ambiente da corte de D, Afonso III, de D. Dinis, ou da roda de seu filho, D. Pedro, conde de Barcelos, mas também em cortes senhoriais galegas e na corte leonesa--castelhana, com o apogeu em Afonso X, o Sábio (1252-1284), O mais antigo jogral conhecido desta corte é referenciado em l 136, sob Afonso VII, e tem o nome de Palha. Na realidade, os Cancioneiros não constituem colecções de poesia nacional, mas sim de poesia peninsular em língua galego-portuguesa. Tudo se passa como se ocorresse no Ocidente ibérico uma só literatura românica, mas polidialectal, consoante os géneros, como acontecera com a literatura grega clássica, Devemos acrescentar aos Cancioneiros profanos (ou, melhor dizendo, às três versões do Cancioneiro profano) as Cantigas de Santa Maria, coligidas na corte de Afonso X e, em parte, da autoria deste rei.
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São para cima de quatrocentas, com refrão e acompanhamentos musicais conhecidos, alternando séries de poesias narrativas sobre milagres da Virgem com loas (cantigas de loor) que lhe são também dedicadas.
Os géneros dos Cancioneiros Notámos que vários géneros de poesia estão representados nos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional. Este último inclui também um tratado poético truncado, do século XIV (perdeu-se todo o texto anterior ao capítulo IV da 3, a Parte), relativamente tardio, e com certa influência francesa, que pretende classificar aqueles géneros e dar as suas regras. Distingue este tratado três géneros: as cantigas de amigo, as cantigas de amor e as cantigas de escárnio e maldizer. A diferença entre as cantigas de amor e as de amigo consiste, segundo o mesmo tratado, em que nestas se supõe que fala uma mulher, ao passo que naquelas o trovador fala em seu próprio nome. As cantigas de amigo são, portanto, quanto ao tema, cantigas de mulher, e o nome por que são conhecidas designa o seu objecto, o amigo ou amado geralmente referido logo no primeiro verso. Nas poesias dialogadas, o critério de classificação é, segundo a mesma arte de trovar fragmentária, o do ponto de vista sentimental dominante: o de elas ou o de eles. Quanto às cantigas de escárnio e maldizer, são, é claro, de assunto satírico, e chamam-se de escárnio, se o poeta se exprime ironicamente, sugerindo uma apreciação oposta à que parece fazer, ou simplesmente se abstém de nomear o satirizado; de maldizer, se o poeta apoda ou acusa directa e nomeadamente. Esta classificação corresponde à prática da poesia de corte, tal como aparecia aos poetas
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palacianos do século XIV. Mas estes géneros tinham sofrido uma longa evolução, partindo de origens diferentes, antes que viessem a alinhar lado a lado na poesia da corte, como modalidades diversas de uma mesma arte. A história da cantiga de amor é diferente da história da cantiga de amigo, embora com ela venha convergir.
As cantigas de amigo
Se atendermos sobretudo aos exemplos mais típicos, os cantares de amigo não se distinguem dos de amor unicamente por aparecerem ali «elas» e aqui «eles» a falar, mas também por outras diferenças de forma e intenção. Cerca de uma quarentena de tais cantigas, nomeadamente designadas como «Paralelísticas», apresenta uma estrutura rítmica e versificaria própria, redutível a um muito simples esquema. A unidade rítmica não é a estrofe, mas o par de estrofes, ou, mais precisamente, o par de dísticos, dentro do qual ambos os dísticos querem dizer o mesmo, diferindo só, ou quase só, nas palavras da rima, que são de vogal tónica a num dos dísticos de cada par, e i ou ê no outro; o último verso de cada estrofe é o primeiro verso da estrofe correspondente no par seguinte. Cada estrofe vem seguida de refrão. A este sistema deu-se o nome de paralelismo. Mediante ele, é possível construir uma composição de seis estrofes e dezoito versos em que apenas há cinco versos semanticamente diferentes (incluindo o refrão), como se vê pelo seguinte esquema :
estrofe 1
verso A verso B refrão
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1º par estrofe 2
verso A' (variante de A) verso B' (variante de B) refrão
estrofe 3
verso B verso C refrão
estrofe 4
verso B' verso C' refrão
estrofe 5
verso C verso D refrão
estrofe 6
verso C' verso D' refrão
2º par
3º par
Um exemplo permitirá compreender melhor este esquema : Vaiamos irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago hub eu andar vi a lãs aves meu amigo, Vaiamos irmana, vaiamos folgar nas ribas do lago hub eu vi andar a las aves meu amigo, Nas ribas do lago hu eu andar vi seu arco na mão as aves ferir a las aves meu amigo, Nas ribas do lago hu eu vi andar seu arco na mão a las aves tirar
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a las aves meu amigo, Seu arco na mão as aves ferir a las que cantavan leixá~las guarir a las aves meu amigo, Seu arco na mão a las aves tirar a las que cantavam non nas quer matar a las aves meu amigo, (Fernando Esquio) O refrão sugere a existência de um coro. A disposição das estrofes aos pares e a alternância das mesmas rimas ao longo de toda a composição deixam entrever que se alternavam dois cantores ou dois grupos de cantores. A repetição, à cabeça de cada nova estrofe, do verso final duma estrofe anterior é talvez o vestígio de um primitivo processo de composição improvisada, que obriga um dos improvisadores a repetir o último verso do outro, para o qual devia achar sequência (leixa pren, processo que ainda subsiste nas quadras ao desafio), O facto, enfim, de, em virtude deste sistema de repetições, a letra se reduzir a um número pequeno de versos mostra-nos que ela se subordinava ao canto e ao ritmo da dança, e que a invenção literária desempenhava, dentro deste conjunto, um papel relativamente secundário. Até há pouco, era só conhecida a notação musical para seis (das sete) cantigas do jogral galego Martin Codax; mas, como dissemos, as iluminuras do Cancioneiro da Ajuda representam grupos instrumentais, que incluem viola de arco, guitarra, saltério, sonalhas, pandeiro, etc, além de cantores e de bailarinas, dirigidos por um nobre trovador sentado com a letra em punho. Repare-se que esta poesia é dramática monologal (supõe um destinatário, a «irmana», e poderia ser gesticularmente mimada); entre as cantigas paralelísticas contam-se monólogos de amor, mas também de escárnio ou maldizer.
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Estas características e indícios levam-nos a uma fase da história da poesia em que o poema não passa de um esboço, uma letra, para musicar, sem autonomia em relação ao canto e à dança, De resto, o próprio nome de cantigas é a este respeito muito elucidativo; e a arte de trovar apensa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional por várias vezes se refere a problemas de relacionação da letra com o som. A estrutura rítmica que estudámos na sua forma mais corrente admite variantes ou complicações.
De facto, na sua maior parte, as cantigas de amigo oferecem uma
estrutura mais complexa. Assim: em lugar de dísticos, surgem estrofes, ou coplas, de três, quatro ou mais versos; o paralelismo anafórico (ou seja, a repetição literal entre estrofes pareadas, com excepção das palavras da rima, ou pouco mais) dá lugar a um pareamento ou emparelhamento mais lasso, em que a segunda estrofe de cada par apenas repete a ideia geral da anterior; algumas composições já não respeitam regularmente o emparelhamento das coplas; e o próprio refrão deixa de aparecer no final de cada estrofe, ora intercalando-se no texto, ora (o que é mais importante) admitindo pequenas variações. Com este desenvolvimento da inventividade discursiva, chega-se à cantiga de meestria; o tratado trecentista de arte poética define-a como sendo a desprovida de refrão, que é a forma elementar do paralelismo. No entanto, numerosas cantigas, chamadas de paralelismo puro, respeitam sensivelmente o esquema atrás descrito. O seu provável destino coreográfico permitiria classificá-las como bailias ou bailadas, designação usualmente reservada a cantigas, mesmo de paralelismo imperfeito, que aludem ao acto de se dançar enquanto são cantadas. À complicação formal do esquema paralelístico corresponde, em geral, uma variação temática. Nos cantares de amigo pode supor-se, com efeito, mais de um
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estrato de cultura, de ambiente social, embora sempre mais ou menos assimilado por uma elaboração cortês.
Um grupo numeroso de cantigas diz respeito à vida popular rural, Tem como personagem principal a moça que vai à fonte, onde se encontra com o namorado; que vai lavar ao rio a roupa ou os cabelos; que na romaria espera o amigo. ou oferece promessas aos santos pelo seu regresso. Este género de cantar apresenta-nos geralmente uma situação cujos elementos paisagísticos, muito simples e padronizados, se carregam do simbolismo de velhos ritos pagãos, e coloca-os perante uma ou mais personagens, sob a forma quer de diálogo. quer de monólogo. quer até (caso raro mas muito significativo) de breve narrativa. como se fosse um fragmento de um «rimance»: a rapariga que vai ao rio lavar camisas. o corpo «velido, que baila na romaria, Trata-se de um género sincrético primitivo em que se confundem o lírico. o dramático e o narrativo. Esta matéria corresponde às cantigas de estrutura mais simples. construídas dentro do chamado «paralelismo perfeito" . Há uma referência da Arte de Trovar a uma categoria considerada rude, de cantigas de vilaas (vilãs). segundo leitura de Jean-Marie d'Heur. e em geral lida como de vilaos (vilãos). A integração das comunidades rurais antigas nos domínios senhoriais ou em concelhos aforalados estava ainda em processo nas origens da nacionalidade. Outro grupo de cantigas leva-nos para ambientes domésticos. Deixa-nos ver a moça a fiar o sirgo em casa. a discutir com a mãe e com as amigas: o rapaz a pedir autorização à mãe da Tal estratificação da poesia dos
moça para a namorar. A protagonista aparecenos muito mais desembaraçada de língua e segura de experiência; sabe jogar às escondidas com o amor. conhece o seu poder de sedução e maneja-o; conhece a arte de provocar o ciúme. de que aliás também frequentemente é vítima. Os autores destas cantigas revelam uma elaborada concepção do comportamento feminino; e deixaram no conjunto das suas obras como que um romance de amor que vai desde a alvorada do primeiro encontro até à consumação. Este é um dos motl'vos para apreciarmos tais poesias (e outras dos cancioneiros) como se constituíssem séries homogéneas. ou subséries. de acordo com os autores e os género reconhecíveis. Um terceiro estrato situa-se no ambiente da corte. O seu tema é o amor cortês (que estudaremos a propósito das cantigas de amor), tal como o trovador fidalgo o imaginariam sentido pelo lado da mulher, seja para a lisonjear apresentando-a como muito consciente de ser fremosa, louçaa ou velida. seja para se jactar daquelas que se finam de saudade por ele. Nem sempre é fácil determinar exactamente a fronteira entre as cantigas de tipo tradicional e as de tipo cortês. tanto mais que a origem manifestamente popular do processo apenas se nos revela através de imitações ou reelaborações palacianas. mas é muito plausível situar no ambiente de corte motivos como o do rei que manda pedir tranças à moça, e no ambiente da vila ou do campo temas como a entrevista do pretendente com a mãe da moça. Cancioneiros,
em
diversas
camadas
correspondentes a meios sociais ou a épocas diferentes. é naturalmente interferida por factores vários, como influências recíprocas e contactos dos diversos meios sociais,
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Assim é que vemos assinadas por nomes da alta nobreza cantigas de tipo primitivo, de ambiente flagrantemente popular e vazadas no paralelismo puro - caso de numerosas composições de D. Dinis, grande apreciador da poesia folclórica. (Esta parece ter sido reposta em moda na sua época, depois de passada uma fase em que prevaleceu nas cortes um gosto mais acentuadamente provençalizante.) Tais autores imitam e fazem variar esquemas de origem rural já talvez reelaborada; assim se explicaria que variantes das mesmas cantigas apareçam subscritas por mais de um nome, como sucede com as duas tão próximas variantes da famosa bailada das «avelaneiras floridas», assinadas, uma pelo poeta culto Airas Nunes, e outra pelo jogral João Zorro. A escola trovadoresca galego-portuguesa legou mais de meio milhar de cantigas de amigo, de sensível homogeneidade temática e formal (quase todas com refrão). A existência de uma herança tradicional hispânica preservada nos cantares de amigo parece atestada já no século XI pelas carjas, designação árabe dos remates de certas composições de autoria e língua árabes ou hebraicas escritas entre meados do século XI e o final do século XIII. Estas carjas são constituídas geralmente por um ou dois versos em língua moçárabe (isto é, em língua românica fortemente penetrada de arabismos, falada,como vimos, pela parte da população cristã sob o domínio árabe), conquanto seja árabe ou hebraica a muaxafa (muwaxahat), ou corpo da composição; e consistem precisamente em fragmentos de cantigas de mulher que lembram muito de perto os caracteres das de amigo. Os poetas semitas recolheram-nas certamente de um folclore que deixou outros vestígios, sobretudo nas áreas periféricas de influência trovadoresca (Ocidente hispânico, Sicília, Alemanha). Sucessivos jograis e poetas, sucessivas épocas e meios sociais adaptaram e variaram, pois, a poesia folclórica. As
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formas versificatórias mais simples coincidem grosso modo com os temas rurais e primitivos; e as mais complexas incorporam tradições e reelaborações de retórica e poética cortês já letradas, A cantiga feminina nasceu na comunidade rural, como complemento do bailado e do canto colectivo dos ritos primaveris, próprios das civilizações agrícolas em que a mulher goza da maior importância social; e é assim que, não apenas na Península ou na România, mas em povos tão distantes como o chinês, se verificam vestígios, quer do paralelismo, quer da cantiga de mulher. Transplantada a outros meios, as suas formas variaram e, em muitos sentidos, enriqueceram-se, ao mesmo tempo que se adaptavam a novos temas. O primitivismo de muitas cantigas de amigo constitui precisamente a sua principal atracção para muitos leitores de hoje. Algo se evidencia nelas de muito diferente da mentalidade do homem actual, permitindo entrever certas formas de sensibilidade, que nem por terem sido recalcadas por aquisições posteriores deixaram de subsistir na psicologia moderna, sempre prontas a despertar. Há, por exemplo, em alguns cantares de amigo uma intimidade afectiva com a natureza que é muito diferente do gosto cenográfico da paisagem (como quadro ou reflexo dos sentimentos humanos), e que deve antes relacionar-se com o animismo típico de certa mentalidade pré-mercantil. Dir-se-ia existir uma afinidade mágica entre as pessoas e tudo o que parece mover-se ou transformar-se por uma força interna: a água da fonte e do rio, as ondas do mar, as flores da Primavera ou Verão, os cervos, a luz da alva, a dos olhos. Todas estas coisas participavam ainda de tantas associações mágicas, as suas designações evocavam tantas correspondências entre o impulso amoroso e o florescer das árvores, o comportamento animal, os movimentos das coisas naturais, que o esquema repetitivo era
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como o imperceptível e subtil desenvolvimento de um tema através de modulações que sugerem os seus inesgotáveis nexos com a vida. Assim, na tão simples cantiga de Fernando Esquio com que ficou atrás exemplificado o paralelismo típico, a imagem das raparigas que, por sugestão de uma delas, entrevemos dispostas a dormir na margem de um lago - só gradativamente se apaga perante a imagem das aves feridas pelo amigo de arco em punho; dir-se-ia que as moças vão, incautas, substituir tais peças de caça. Mas, em nova lenta gradação, a nota de crueza dissipa-se no amigo, pois o seu ferino arco poupa as aves canoras e isso faz pressentir a ternura do seu trato amoroso perante a doce fala da moça, depois de sentirmos a sua prévia e cruenta desenvoltura de caçador. Não poderia traduzir-se melhor o enleio da donzela frente ao seu másculo e, todavia, meigo namorado. Ora imagens como estas de uma altanaria extensiva ao amor eram símbolos tradicionais, imediatamente reconhecidos e, pela sua própria obliquidade de alusão,
capazes
de
evocar
em
conglomerado
muito
diversas
vivências
dos
cantores-dançarinos e seu público. E observemos que, a julgar pelos poucos textos musicais subsistentes, o canto desta lírica acusa a influência da antífona ou do responsório eclesiásticos, - os quais por seu turno tiveram uma das origens em ritos rurais antiquíssimos. Nada disto (nem os processos formais repetitivos, nem o erotismo feminino como que ritualizado em símbolos) se pode atribuir apenas à veia popular galaico-portuguesa. Alguns traços de arcaísmo fonético, nomeadamente a manutenção do n intervocálico em palavras-chave como fontana, louçana, etc., permitem suspeitar neste género uma origem que vem da proto-história,
talvez moçárabe, do Galego-português. As carjas
referidas fazem supor uma tradição românica peninsular suficientemente antiga e pujante
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para ser comum, quer a uma lírica moçárabe meridional do século XI pelo menos, quer a uma lírica do Noroeste peninsular, onde pouco se fez sentir a influência árabe. É mesmo possível, como oportunamente observou Rodrigues Lapa, entrever um fundo tradicional românico de poesia rural baseado em dísticos paralelísticos seguidos de refrão, do qual proviriam, quer a bailia galaico--portuguesa, quer a carja moçárabe, quer o conductus litúrgico, quer o strambotto italiano, Sobre esta comum tradição se teria elaborado a poesia folclórica galego-portuguesa, a qual teria acabado por diferenciar-se e enraizar-se na vida local, como atestam certos traços regionais bem distintivos de flora (pinheiro, avelaneira), paisagem física e humana (ria de Vigo, ribeiras e romarias nortenhas). Em toda a Cristandade medieval, viu-se a Igreja obrigada a reprimir a prática de ritos e festas pagãs, cuja persistência mais ou menos ingénua sob a liturgia cristã apresentava como um dos seus aspectos mais pertinazes os cânticos eróticos de mulheres dentro dos próprios templos, por ocasião de romarias ou das festas pascais que cristianizaram as festas gentílicas das Maias sob a forma de júbilo da Ressurreição. Há, em línguas castelhana e catalã, vestígios antigos de paralelismo em cantigas de mulher. O que singulariza o lirismo galaico-português mais típico é a sua confinação à estética do paralelismo, mesmo nos espécimes já de certo reelaborados que nos chegaram. Dá-se uma rarefacção extrema de elementos narrativos ou descritivos; avultam poucos mas densos símbolos de participação imaginária entre, por um lado, certas coisas naturais e, por outro lado, uma coita feminina sem individualidade, sem ambiente doméstico, quase toda personificada nos «meus olhos» a luzirem numa situação vaga - na presença ou ausência do amigo, que todo ele se reduz também à carga amorosa de sinal contrário. Cada verso vale por si,
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recortado por repetições simétricas e modulantes, reevocado por outras associações (como as da rima final e do refrão, a intervalos fixos), delimitado por uma nítida pausa de pontuação. A imprecisão dos sinónimos e do uso dos tempos verbais, nos lugares das rimas alternantes, afrouxa a já lassa ligação lógica, que poucas e monótonas conjunções sustentam.
Dificilmente se poderá imaginar um tipo de poesia mais próximo da
encantação mágica, ou da música. Mas o mais impressionante é encontrarem-se, dentro de uma tal simplicidade estilística, algumas das melhores poesias que jamais se flzeram em língua portuguesa. Contam-se entre elas as que principiam por «Sedia--m'eu na ermida de sa Simeõ» (Meendinho), «Levad'amigo, que dormides as manhanas frias» (Nuno Fernández Torneol) e «Levantou-s' a velida» (D, Dinis), cujo esquema repetitivo estrutura um poderoso crescer e multiplicar de representações emocionais, cujas modulações de timbres vocálicos dão fundo harmónico às modulações do humor ou sentimento, cujas hipérboles ou ambiguidades, virtualmente mitológicas pela sua audácia, nada ficam a dever à liberdade metafórica da poesia moderna. Nestas composições, as proezas ou maravilhas de que a poesia, ainda um pouco ingenuamente mágica, julgava capazes as pessoas ou as coisas revelam-nos, na máxima sobriedade de expressão verbal, algumas fundas aspirações ou fruições estéticas que as possibilidades técnicas modernas tendem a ocultar. Já, evidentemente, nos encontramos, com estas poesias, perante elaborações cultas de uma tradição; o próprio D, Dinis, e ainda Pêro da Ponte, entre outros, chegam a combinar habitualmente certos recursos paralelísticos com recursos de origem cortês occitânica, É de resto impossível reconstituir o longo processo de interacção das origens pagas rurais com a cultura do clero e da nobreza. Mas não há
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dUvida de que tais pequenas obras-primas são a consumação de uma arte paralelística de trovar assente numa cultura arcaica com alguns traços regionais. É costume classificar as cantigas de amigo, segundo os seus temas, em bailadas ou bailias, cantigas de romaria, marinhas ou barcarolas, a que, não menos justificadamente, se poderiam acrescentar cantigas de fonte, de cenas venatórias, de amiga e mãe, de amiga e amigas (às vezes designadas como irmanas), de despedida, etc.. O que, realmente, mais interessa apontar é a grande quantidade (cerca de 60) das cantigas onde há referência a romarias que se podem quase todas localizar na Galiza ou no Minho; a originalidade temática galaico-portuguesa destas e ainda de cerca de uma vintena de outras respeitantes a um ambiente marítimo (mar, ondas. ria, barcas partindo ou chegando); o carácter geralmente muito castiço das bailias, porventura representantes do estrato histórico mais antigo porque mais difundido na Europa, se não em todo o mais velho mundo agrário (cerca de meio cento de espécimes). Se os cantares de amigo de tipo primitivo, evocadores de uma época remota da história da poesia, podem interessar sob estes aspectos alguns leitores modernos, os de tipo mais complexo, correspondentes às estratificações burguesa e palaciana, não deixam também de ter interesse, embora diverso. Não é uma sugestão encantatória (e, nos melhores casos, extraordinariamente moderna) a que fica da sua leitura. Os poetas conseguem dar com vivacidade os diversos estados da mulher namorada, no decorrer da intriga sentimental. A saudade, o ciúme, o ressentimento, os amuos, as ansiedades, as desconfianças, a reivindicação da liberdade de amar perante a intervenção materna, etc. exprimem-se de modo muito vivo; e ao lado da diversidade de situações é de notar a dos tipos psicológicos simulados: as
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mulheres ora são ingénuas, ora experimentadas; ora compassivas e inclinadas à piedade, ora astutas e calculistas; ora indiferentes, ora susceptíveis
ora se
entregam, ora desfrutam os amigos. Os trovadores deixaram nestas poesias o resultado duma experiência ampla da vida sentimental, com a qual seria possível imaginar um romance precursor da Menina e Moça. É de notar, por outro lado, a simpatia com que alguns destes poetas sabem colocar-se dentro do ponto de vista da mulher e dos interesses femininos, com uma candura que ainda ressoará na poetisa galega oitocentista Rosalía de Castro.
a influência occitânica e as cantigas de amor Outro caminho temos de seguir se quisermos estudar, nas suas origens, a cantiga de amor. Quer' eu en maneira de proençal fazer agora uu cantar d'amor
escreve o poeta D, Dinis, declarando o que provavelmente todos os trovadores galegoportugueses tinham presente no espírito: a ideia de que os Provençais eram os modelos a seguir.
Com efeito, foi nas cortes feudais occitânicas (e não restritamente provençais,
como costuma dizer-se) que floresceu a primeira grande escola da poesia românica,
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elaborada numa língua (Langue d'oc) que seria mais tarde eclipsada pelo Francês do Norte (Langue d'oïl mas que entaã exprimia uma civilização mais adiantada, ligada a uma já antiga dinâmica comercial mediterrânica, Ainda hoje se investiga e se discute quais fossem as tradições literárias que permitiram uma tao rápida evoluçao do lirismo provençal. Não há dúvida, porém, de que uma parte da cultura latina clássica deve ter sido transmitida até aos trovadores por intermédio da literatura eclesiástica medieval, sobretudo através de certas formas ainda em latim mas já impregnadas de espírito profano (epistolografia amorosa espiritualizada entre clérigos e freiras, poesia dos goliardos, estudantes medievais); e é ainda mais evidente que entre o canto, a poesia, o drama litúrgico com que o clero fomentava a participação do povo na celebração do culto e, por outro lado, o folclore rural, de origens mais antigas que o Cristianismo, se exerceu, durante toda a Idade Média, uma intensa influência recíproca a cujos progressos muito deveu essa nascente literatura aristocrática de corte. Com efeito, após longa polémica, os filólogos apuraram a etimologia do verbo trovar, que afinal vem de tropare; isso reforça as ligações hist6ricas já conhecidas entre a lírica profana medieval e os tropos, desenvolvimentos musicais e depois também versificados (estróficos e rimados) que desde os séculos VIII e IX se inseriram na liturgia. Essa inovação, mais tarde condenada no século XVI e que tanta importância teve no desenvolvimento da poesia, da música e até do teatro religioso e laico, é o resultado de uma tendência do clero romano para melhor atrair os fiéis populares e os trazer à participação do culto, tendência evidente desde a adopção do canto litúrgico no século 1V até ao incremento da salmodia responsarial (solista e coro, como na ladainha) e antifonal (dois semicoros), cujas
relações com o paralelismo galaico-português já apontámos. A novação dos tropos fora aliás precedida pela da sequência (textualmente pro sequentia, que, por breviatura, refez e prestigiou a palavra prosa), adaptação de textos ao melisma (neste caso,jubilus) da vogal final da palavra Aleluia, que se sustentava originariamente sobre sucessivas notas musicais. Os Provençais foram depois os mestres e iniciadores da poesia europeia moderna, sem os quais se não compreenderiam nem Dante nem Petrarca. Os jograis occitânicos levaram a sua arte apuradíssima a todas as cortes da Europa. Diversas notícias documentam as suas estadias na Península Ibérica, e a corte de Afonso X, o Sábio, foi um dos refúgios dos trovadores dispersos pela matança dos Albigenses. A moda de trovar à maneira provençal introduziu-se, pois, nas cortes peninsulares, incluindo a corte portuguesa, onde já se manifestava sob o reinado de Sancho I. Havia de resto entre as cortes de além-Pirenéus e o novo reino do Ocidente da Península relações estreitas que facilitavam a influência transpirenaica: o conde D, Henrique trouxe consigo numerosos senhores franceses; são bem conhecidas as influências do clero, nomeadamente através das reformas monacais de Cluny e Cister, que se relacionam com as origens francesas da dinastia portuguesa e que impuseram o ritual de Roma e a adopção da escrita carolíngia em substituição da anterior escrita visigótica; muitos portugueses frequentavam a peregrinação a Santa Maria de Rocamador, no Sul da França, e muitos trovadores occitânicos vieram peregrinar a Santiago de Compostela; e diversas vagas de exílio, como a provocada pelas lutas civis do tempo de D, Afonso II, levaram senhores portugueses a França, destacando-se entre elas, pelas influências literárias bem conhecidas que trouxe, a que acompanhou na sua juventude o
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futuro Afonso III. Os casamentos de D, Afonso Henriques, D, Sancho I e D. Afonso III com princesas criadas em cortes cultural e até politicamente ligadas com a Provença, respectivamente Sabóia, Aragão (unida com a
Catalunha) e Bolonha, devem também ter facilitado a influência occitânica, No entanto o encontro mais produtivo da joglaria galaica com o trovar occitânico deve ter-se produzido na corte castelhana.
Quando a poesia provençal, através dos seus trovadores e jograis ou dos seus imitadores peninsulares, chegou à Península, existia já aqui (é difícil duvidar) uma escola local de poesia jogralesca, provavelmente relacionada com as carjas moçárabes, aquela mesma que recolheu, adaptou e divulgou nas vilas e nas cortes a poesia folclórica a que pertencem as cantigas de amigo. O Galego, falado aquém e além do Douro, era a língua materna dos jograis Tradicionais. A Galiza além-Douro escapou ao domínio muçulmano e contribuíram para o seu desenvolvimento cultural precoce diversos factores, entre os quais as peregrinações a Santiago de Compostela, em que participavam romeiros de toda a Europa. O mais antigo jogral galego de que há notícia (Palha) pertenceu à corte de Afonso VI, avô do primeiro rei de Portugal.
É inegável nas cantigas de
amor galego-portuguesas uma avassaladora influência provençal. A própria língua dos poetas ficou embutida de provençalismos, como sen, senso (em vez da palavra indígena seso, donde provém o actual siso); cor (em vez de coraçon); prez (em vez de preço); gréu (em vez de grave, com o sentido de pesado, difícil). Com estas e muitas outras palavras e com diversas fórmulas também de origem provençal, forjaram os poetas galego-portugueses um formulário de expressões que se distingue da língua dos cantares de amigo de inspiração folclórica, embora também
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nestes, e logo na fase mais antiga que o Cancioneiro cortês documenta, se verifiquem vestígios da influência estrangeira. Quanto aos temas, elaboraram os Provençais o ideal do amor cortês, muito diferente do idílio rudimentar nas margens dos rios ou à beira das fontes que os cantares de amigo nos deixam entrever. Não se trata agora de uma experiência sentimental a dois, mas de uma aspiração, sem correspondência, a um objecto inatingível, de um estado de tensão que, para permanecer, nunca pode chegar ao fim do desejo. Manter este estado de tensão parece ser o ideal do verdadeiro amador e do verdadeiro poeta, como se o movesse o amor do amor, mais do que o amor a uma mulher. E não só a esta dirigem os poetas as suas implorações, queixas ou graças, mas o próprio Amor personificado, figura de retórica muito comum entre os trovadores provençais e por eles transmitida aos galego-portugueses. O Amor reina, até, numa Vila ideal, com as suas cortes, os seus foros e leis. O trovador imaginava a dama como um suserano a quem «servia> numa atitude submissa de vassalo, confiando o seu destino ao «bon sen» da «senhor». «Je soy votre homme lige», diz em língua francesa e em termos de vassalagem feudal um poeta português. Todo um código de obrigações preceituava o «serviço» do amador, que, por exemplo, devia guardar segredo sobre a identidade da dama, coibindo toda a expansão pública da paixão (o autodomínio, ou «mesura», era a sua qualidade suprema), e que não podia ausentar-se sem sua autorização. O apaixonado deveria passar provações e fases comparáveis aos ritos de iniciação nos graus da cavalaria, antes de chegar a drudo, amante espiritual da midons, ou dama. Mesmo
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em algumas cantigas de amigo as damas manifestam o seu desagrado por os amadores respectivos terem infringido estas ou outras regras do «serviço». A este ideal de amor corresponde certo tipo idealizado de mulher, que atingiu mais tarde a máxima depuraçã na Beatriz de Dante ou na Laura Petrarca: os cabelos de oiro, o sereno e luminoso olhar, a mansidão e a dignidade do gesto, o riso subtil e discreto. As cantigas de amor oferecem-nos existem uma cópia simplificada e fruste do retrato original pintado pelos trovadores provençais, referindo-se ao «catar» (olhar) da «senhor», ao seu «prez» ou «sén»,ou «bon riir», ou «falar>, ou «parecer>, etc. É também com os Provençais que os poetas dos Cancioneiros peninsulares aprendem a objectivar paisagens. A descrição das flores de Maio, da brisa excitante da Primavera, do cantar malicioso dos rouxinóis são motivos obrigatórios dessa lírica cortês. D, Dinis, discípulo confesso dos occitânicos, mas, como vimos, também fiel às tradições regionais, critica mesmo Airas Nunes, que descreve o convencionalismo deste quadro primaveril obrigatório do amor provençal. Teve entre os Provençais grande voga o tema do cavaleiro que, seguindo por um caminho florido, encontra e requesta de amores uma pastora. Este género, denominado entre nós pastorela, é imitado por alguns poetas mais cultos dos Cancioneiros com certa nitidez formular e descritiva que fica já longe do ambiente paisagístico sugestivo mas vago das cantigas de amigo. (Veja-se a célebre pastorela: Pelo souto do Crexente de João Airas de Santiago.) De um para outro caso difere muito a relação do homem com o meio. Nos modelos occitânicos desfruta-se um espectáculo de coisas belas, referidas segundo uma ordem retórica precisa, como um cenário, ao passo que maior parte das
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cantigas nas cantigas de amigo em que se vazam há antes, como vimos, e para usar termos conhecidos, uma participação animista entre pessoas e coisas. Resultado da influência provençal é ainda o esboço de análise introspectiva que se encontra em alguns dos trovadores peninsulares. O sentimento dos contrastes do amor, do querer e não-querer, da timidez e da violência impulsiva do desejo, do doce-amargo da saudade - são temas muito correntes entre os Provençais, que os transmitiriam a Petrarca, em quem por sua vez irão aprendê-los Bernardim Ribeiro e Camões. Os poetas dos Cancioneiros galego-portugueses não os desconhecem, mas repetem-nos um pouco como fórmulas decoradas e reduzem-nos quase sempre a breves esquemas verbais exprimindo unidade na contradição, como prazer-pesar, viver-morrer, bem-mal, Basta um breve confronto para revelar que as qualidades características da poesia trovadoresca provençal se esbatem ao serem adaptadas à língua e ao estilo dos trovadores peninsulares, A nitidez descritiva, a introspecção, o brilho e a justeza das analogias e imagens, tudo isto se embacia nas páginas dos nossos Cancioneiros. As metáforas e comparações quase aqui não existem, e brilha pela singularidade um poeta que diz ser a sua dama como um rubi entre as pedras; o retrato da dama é extremamente vago e convencional; só em imitações da pastorela occitânica se encontram alusões descritivas ao mundo das plantas e aves; a análise dos sentimentos estereotipa-se. Por outro lado, a poesia occitânica caracteriza-se por uma grande variedade de temas, mas a monotonia domina o conjunto dos cantares de amor recolhidos nos Cancioneiros peninsulares, exceptuando um ou outro poeta, como Airas Nunes, que descreve a Primavera, e que nota o contraste entre a constância dos
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sentimentos e a mudança das estações, ou como João Garcia de Guilhade, que encara com humorismo os jogos do amor . A diferença entre o lirismo provençal e o dos Cancioneiros peninsulares revela-se principalmente na estrutura formal. O género provençal característico, a cansó (canção), não se aclimatou na Península, a não ser muito mais tarde, no século XVI, por influência de Petrarca. As cantigas de amor sem refrão nem repetições - conhecidas pelo nome de «cantigas de meestria» por serem aquelas que exigiam maior conhecimento da técnica provençal – constituem minoria. O refrão encontra-se, efectivamente, na maior parte das cantigas de amor, assim como o paralelismo, embora atenuado e por vezes mascarado. O poeta galegoportuguês só por excepção desenrola um pensamento com princípio, meio e fim ao longo de uma série de estrofes; prefere o processo de modular em cada estrofe, variando palavras e rimas, a mesma ideia. Esta construção dá à maior parte das cantigas de amor um tom de lamento repetido e insistente, quando muito um desenvolvimento, por assim dizer, em espiral, espécie de compromisso entre a retórica de progressão rectilínea dos provençais e a estética repetitiva, circular, das bailias. Há quem considere isto como o produto de uma sensibilidade étnica, mas há que ter em conta que faltava aos poetas peninsulares ocidentais (portugueses, galegos, leoneses, castelhanos) uma experiência literária que lhes permitisse acompanhar o largo fôlego, a complexa estrutura e a eloquência discursiva da cansó provençal, Nestas condições se vazaram os temas provençais, aliás imperfeitamente assimilados, dentro dos moldes praticados pela escola jogralesca local, isto é, dentro do paralelismo e do refrão; a isso ajustaram os seus dons, às vezes notáveis.
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A influência provençal, portanto, ainda que flagrante, é integrada numa poesia peninsular, de origem folclórica, difundida por jograis galegos, cujas formas originárias estão representadas nas cantigas de amigo de estrutura paralelística mais simples. O relativo primitivismo dos trovadores galego-portugueses que assimilaram a influência provençal, adaptando-a às formas poéticas já existentes no seu país, não deve confundir-se com a expressão de uma pura espontaneidade. Pelo contrário, há exemplos de como o paralelismo e o refrão constituem para muitos deles um quadro formal artificiosamente aproveitado. É fácil documentar em numerosas composições dos Cancioneiros, sobretudo nas cantigas de amor, um exercício formalista, que dispõe de uma arte ainda primitiva. Numerosos poetas se dedicam a inventar sentidos novos com jogos de ritmos e de palavras. Contam-se entre estes processos formalistas os do «dobre» e do «mordobre» (noutra leitura «mozdobre»). Consistia o primeiro em repetir uma mesma palavra por cada estrofe, sempre nos mesmos lugares de estrofe e verso (por exemplo, no final do primeiro e do último verso), jogando por vezes com os seus vários sentidos, o que transformará em trocadilho um simples processo repetitivo. Assim, um poeta comemora a tomada de Valença (Valência), repetindo este vocábulo, ora para significar a cidade conquistada, seu valor ou importância, ora para designar a valentia do rei conquistador. O mordobre só difere do dobre por se não fazer com uma forma única, mas com flexões da mesma palavra ou com formas etimologicamente afins. Tal é o caso também do processo conhecido pelo nome de «atá-fiinda», aliás pouco vulgar entre os provençais: cada estrofe termina no meio de uma frase, de modo
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que o leitor tenha de procurar imediatamente o seu complemento na estrofe seguinte, seguindo sem parar até a um remate de dois ou três versos, onde finalmente o período se completa. Trata-se, afinal, de um caso especial de encavalgamento ou «enjambement», pelo qual as palavras indispensáveis ao sentido de um verso são atiradas para o verso seguinte, com a particularidade de que os versos assim ligados constituem, na «atáfiinda», o termo e o começo de duas estrofes consecutivas. Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, geralmente não conduz a uma sequência ininterrupta do discurso, porque cada estrofe exprime afinal o mesmo pensamento, segundo o processo repetitivo tradicional. É um mero jogo rítmico (não coincidência da pausa frásica com a pausa estrófica); espertina a atenção do leitor, e cria nele um estado de expectativa que pode ser utilizado para pôr em relevo a conclusão ou «fiinda». O uso regular , estrofe a estrofe, do verso branco («palavra perduda») é também considerado, na Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, como um artifício de mestria, por tornar ritmicamente menos nítida a percepção do verso, apoiando-a apenas no isossilabismo (número certo de sílabas), Todos estes processos, quebrando a coincidência das pausas sintácticas com as pausas versificatórias, criando uma certa margem de imprevisibilidade e de indeterminação rítmica (e isto numa altura em que o predomínio da transmissão oral sobre a escrita ainda mais acentuava a importância do ritmo do verso), constituem, sem dúvida, manifestações de uma mestria versificadora superior àquela que era exigida pelos esquemas paralelísticos ou repetitivos mais fixos e com apoio musical. A análise destes e de outros processos formais permite-nos acompanhar o trabalho laborioso de poetas, em muitos casos profissionais, como Pêro da Ponte, que
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ensaiam formas de expressão, adaptando esquemas antigos e imitando modelos estranhos. O conjunto dos cantares de amor ressente-se destes tenteios, deste esforço dos poetas para ascenderem a uma expressão culta a partir de formas primitivas, Daqui resulta uma forma por vezes inacabada, uma série de tentativas malogradas, uma oscilação entre o primitivismo e o preciosismo ingénuo que caracterizam no seu conjunto este género, onde é difícil seleccionar uma obra-prima, Merecem todavia salientar-se algumas realizações de D, Dinis, pêro da Ponte, João Garcia de Guilhade, Airas Nunes e alguns mais. Entre os géneros occitânicos de que é possível encontrar algum eco nos cancioneiros galaico-portugueses contam-se a pastorela, já mencionada; a alba, despedida dos amantes ao romper do dia (esboço da célebre cena shakespeariana em Romeu e Julieta), de que indevidamente já foi aproximada a bela cantiga atrás referida de Nuno Fernández Torneol; a canção de tear («Sedia la fremosa su sirgo torcendo» de Estêvão Coelho), que revela a influência da chanson de toile dos trouveres da França do Norte; o pranto à morte de um senhor venerado; a despedida (congé) e o descordo (descort), que pretende traduzir um abalo emocional por várias mudanças de estrutura estrófica, por uma sintaxe acidentada de hipérbatos ou por pretensas inconsequências lógicas. As correspondências galaico-portuguesas a estes géneros caracterizam-se pela simplificação já apontada, pelo recato da notação sensual, pela imaturidade das suas tentativas doutrinais e, na sua maioria, por uma tendência para a expressão paralelística da subjectividade feminina, o que permite classificá-las, por vezes (como com maior ou menor razão se tem feito a muitas), entre as cantigas de amigo,
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A sátira As cantigas de escárnio e maldizer ocupam grande espaço nos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional de Lisboa, mal se distinguindo entre si. Têm por assunto, na sua grande maioria, certos aspectos particulares da vida de corte e especialmente da boémia jogralesca. A sua leitura revela-nos, além do resto, uma sociedade boémia em que entravam jograis de corte, cantadeiras, soldadeiras (bailarinas), fidalgos. O jogral e a sua companheira tinham um estatuto social de marginais. Eram «artistas» da boémia, e por isso mesmo permitiam-se-lhes liberdades de costumes e de fala vedadas no mundo regularmente constituído. Isto explica que os vícios mais íntimos, as aventuras mais pícaras destes heróis truanescos surjam assoalhados escandalosamente: as andanças e percalços de uma bailarina versátil, os sapatos dourados de um fidalgo pretensioso, a voz de um cantor enrouquecida pelos abusos do álcool, etc. não faltando mesmo uma abadessa elogiada ou satirizada por um segrel quanto à sua experiência sexual. Mas estes marginais fraternizavam com fidalgos, clérigos e até reis no mundo da boémia; vemo-los misturados nos mesmos mexericos, usando a mesma linguagem, com grande abundância de termos hoje considerados obscenos. É uma explosão carnavalesca com raízes antiquíssimas e típica da Idade Média. Raro se encontram nas cantigas de escárnio temas de alcance geral. Mas, nos muitos casos anedóticos a que se referem, distinguem-se certos motivos frequentes,
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condicionados pelo ambiente. Toda uma massa de composições espelha os problemas típicos da vida jogralesca. Numerosas cantigas, por exemplo, ocupam-se da sovinice dos ricos-homens, da miséria envergonhada dos infanções: à escassez das classes nobres são, naturalmente, muito sensíveis os jograis que, em paga do seu trabalho artístico, pedem roupas ou alimento. Outro grupo de cantigas mostra-nos as disputas entre os jograis e os trovadores fidalgos: aqueles porque pretendiam ultrapassar a sua condição, que era, pelo menos convencionalmente, de simples executantes musicais, metendo-se também a compor versos; estes porque defendiam a jerarquia, que limitava o papel do jogral ao acompanhamento instrumental e ao canto da composição já criada pelo trovador. Patenteia-se nestes conflitos que o jogral era um vilão, e o trovador, na maior parte dos casos, um indivíduo da classe nobre. Não admira por isso que também a ideologia da nobreza se exprima em numerosas cantigas satíricas. O plebeu, nobilitado ou não, aparece muitas vezes coberto de ridículo, nos seus trajos e na sua figura. Esboça-se aqui o tipo do «burguês», satirizado já pela comédia clássica, e mais tarde pela commedia dell'arte, por Molière (Le Bourgeois Gentilhomme) e por D, Francisco Manuel de Melo, Mas não é menos frequente a troça à pelintrice da pequena nobreza, de um modo que preludia a farsa vicentina sobre os escudeiros esfomeados. Como repertório pícaro ou pitoresco de costumes, testemunho voluntário ou involuntário de uma ideologia, a sátira trovadoresca completa os Livros das Linhagens; em muitos casos o gosto, por assim dizer, naturalista, da anedota vivida ou testemunhada prevalece mesmo sobre a intenção trocista. E assim perpassam, já só por si interessantes, o velho que
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desesperadamente se pinta e enroupa muito caro; a rapariga que a mãe antes ensina a saracotear-se do que a coser e fiar; um cavalo faminto abandonado, como mais tarde o de Tolentino, mas que se refaz com erva fresca depois das chuvas; gabarolices de falsos romeiros à Terra Santa; fracassos imprevistos por um astrólogo; um juiz que se deixa peitar; agoiros e superstições; incidentes variados de viagem e hospitalidade; uma ex-soldadeira queixando-se, no confessionário, não dos antigos pecados, mas da velhice; raparigas casadas (o poeta considera que vendidas) à força, ou impunemente raptadas; abadessas cheias de condescendências, etc. Estas pequenas iluminuras entrudescas de costumes são apresentadas com uma cordialíssima satisfação pelos simples factos, ou com uma desfaçatez, um amoralismo, uma real ou imaginária auto-ridicularização pelos seus protagonistas que contrastam surpreendentemente com a pudicícia moralizante de quase toda a posterior literatura portuguesa. Contam-se pelos dedos as composições em que os poetas cultivaram a sátira como género de interesse geral, versando temas morais ou sociais, à maneira do «sirventês» moral occitânico: tal é o caso de dois clérigos - ambos muito conhecedores dos modelos provençais - Martim Moxa e Airas Nunes. O primeiro justifica uma visão pessimista apocalíptica do mundo com os desacatos da honra e autoridade, a venalidade dos validos régios, o empobrecimento geral, a omnipotência da lisonja e o desprezo pela clerezia, ou cultura, chegando a abonar a imoralidade própria com a alheia. O segundo apresenta-se procurando de porta em porta e sem resultado uma Verdade que não existe em parte alguma, nem nos conventos e mosteiros, nem na cidade santa de Santiago de Compostela. Pêro da Ponte dá-nos também alguns dos melhores testemunhos do tempo,
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quer através dos seus prantos, de que a sátira não está ausente, quer pela crítica às arbitrariedades exercidas sobre certos concelhos. Como arma política, instrumento de acção sobre a opinião pública, também a sátira foi entre nós pouco brandida. Sobressaem, no entanto, as canções compostas por Afonso X, o Sábio, acerca dos fidalgos que desertaram numa campanha contra Granada; e as composições em que se profligam os alcaides dos castelos que atraiçoaram Sancho II na guerra civil de 1245, inspiradas talvez na corte de Afonso X, amigo e aliado daquele rei. Quer as composições anedóticas, quer as de interesse geral, usam de processos métricos e' estilísticos que estão longe de ser espontâneos. O teorizador anónimo da arte de trovar trecentista que até nós chegou truncada parece reconhecer a influência, na cantiga de escárnio, de uma retórica de tradição eclesiástica, portanto indirectamente clássica, no uso satírico da aequivocatio, da alusão oblíqua, talvez mais apreciada como processo artístico do que usada como eufemismo.
Abunda, não só o
trocadilho malicioso, que serve mesmo de ossatura a várias composições mais escabrosas, mas uma variadíssima técnica servindo toda a gama de humor a que a matéria de facto pode ser sujeita. Nem sequer falta aquela subtil malícia a que as retóricas clássicas chamam a lítotes e em inglês se designa expressivamente como understatement: Gil Peres Conde atribui à sua má sorte, ou má hora, o esquecimento régio de tantos bons serviços como os que enumera. E estes poetas, tão adestrados pelas cantigas de amigo no mimetismo finamente irónico dos sentimentos alheios, assumem frequentemente a voz das personagens focadas, ou de outras cujo ângulo visual melhor trai o objecto de troça: assim, Diego Pezelho ascende ao sarcasmo
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imaginando um prisioneiro, vítima da fidelidade a D. Sancho II, disposto a comprar a liberdade em troca de um juramento, de traição. Até a blasfémia serve de veículo ao humor, como, depois, em Gil Vicente, e vá de acusar desabridamente a Providência de cumplicidade na clausura violenta da amada, se não mesmo de pecado mortal, porque negou protecção aos seus mais fiéis vassalos. Agora a utilização literária do sonho: Martim Moxa caracteriza a cedência dos senhores às insídias dos lisonjeiros com um sonho em que teria visto um pequeno pássaro dominar, pela crista, outra ave mais encorpada. E o absurdo: Martim Eanes Marinho faz o rol das dádivas de um infanção pobretanas mas sempre a prometer mundos e fundos: umas calças de névoa de antanho, um potro cor de mentira, uma loriga invisível, sem peso e cravejada de intrujice, um pau de nevoeiro e outras muitas coisas de chufas guamecidas, Outro satírico pergunta ao rei se lhe pagará depois de morto o que lhe deve, falando a propósito de «os vossos meus dinheiros». Alegorias chistosas: os projectos de uma aventura de amor são divertidamente descritos pelo protagonista e por um seu amigo em termos de materiais de construção civil, pois se trata de «madeira nova», em calão de hoje «material novo»,' outro satírico imagina deserto o leilão a que se expõe a pessoa de um mau rico-homem. Em tons mais amargos, há aquele poeta que, numa tenção de escárnio, se recusa, perante insistências do antagonista mordaz, a reconhecer de todo em todo a morte da bem-amada; além de tantos outros que assoalham, rindo, os seus desaires eróticos mais íntimos, hoje inconfessáveis. E há o admirável descordo em que Afonso X, saturado de cuidados sentimentais, económicos e militares, desabafa a sua ânsia de fugir aos lacraus da Meseta, abalar sozinho, feito mercador ou marinheiro, pelo mar em fora até qualquer
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outra gente. Conforme se vê, o escárnio galaico-português dos anos de mil e duzentos ou mil e trezentos contém em ovo muitas tonalidades que mais tarde se reconheceriam afinal como líricas, Não admira por isso que Rodrigues Lapa, ao presentear-nos finalmente com a edição crítica de todas as 428 composições classificáveis neste terceiro género da escola trovadoresca, tenha incluído espécimes que também se poderiam considerar como de amor, e até de amigo. O escárnio era o refúgio de uma variada gama de subjectividade que ainda se não valorizava a si própria.
Versificação O verso (que o fragmento de Poética incluído no Cancioneiro da Biblioteca Nacional designa como palavra) é normalmente definido por um número certo de sílabas, mas o isossilabismo acaba só por impor-se com rigor ao cabo de uma persistente influência occitânica, pois de início (e nas cantigas de recorte paralelístico) há sinais de uma regularidade mais frouxa. Não se nota a observância de regras uniformes quanto à inclusão da última sílaba na contagem, quando o verso termina em palavra grave; apenas se exige que a distribuição de rimas agudas e graves obedeça ao mesmo esquema em todas as estrofes de uma mesma composição. Predomina, aliás, o verso agudo. O número de sílabas oscila entre 4 e 16, dominando os versos de 7, 8 e 10 sílabas. A Poética também não regista regras de acentuação tónica obrigatória, o que, tal como a instabilidade na contagem silábica, revela a dependência do ritmo versificado relativamente ao do canto, É contudo mais fácil reconhecer algumas tendências de regularidade rítmica na cantigas de amigo, sobretudo paralelísticas, certamente por
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corresponderem a esquemas de canto e dança mais fixos e tradicionais. A estrofe (cobla, cobra ou talho) abrange de 2 a 10 versos, com predomínio de 7 nas cantigas de mestria e de 4 nas de refrão. Os três géneros admitem, em regra, uma estrutura dialogal, mais típica do escárnio (tenção); nas tenções o reptado deve obedecer às rimas do desafiante. Assemelham-se às tenções as cantigas de seguir, cujas letras, semelhantes ou contrastantes, se adaptam a um mesmo som, ou música, e tendem para a paródia. Os numerosíssimos hiatos que a grafia arcaica regista impõem-se, normalmente, à contagem silábica, mas há sinéreses mais ou menos frequentes, conforme o timbre das vogais e o grau de uso correntio das palavras, Isto revela uma evolução fonética em marcha, provavelmente retardada no verso por velhos hábitos de ritmar as palavras pelo canto. O mencionado tratado de Poética ou Arte de trovar classifica já esse hiato como um erro comparável à cacofonia, embora pareça admitir um hiato por verso desde que se não trate de vogais do mesmo timbre. Lopes, Óscar e Saraiva, A. José , História Jean-Marie d'Heur descobriu num códice alcobacense do século XIV (CDIV 1286), da Literatura Portuguesa , Porto ed. ,16ª ed, pg. 45editado - 68 por H, H, Carter, curiosas junto de um dicionário latino-português de verbos anotações em latim que confirmam e completam esta Arte de trovar quanto às estruturas dos versos e estrofes.