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ANO 34 Nº 321 ABRIL 2019

novaescola.org.br

ELES USAM A COR Como romper estereótipos em sala de aula e promover a igualdade de gênero, garantindo os mesmos direitos a meninas e meninos

QUE QUISEREM

Yasmin da Costa e Yang Nakazawa, de 14 anos

ÍNDICE

CARA EDUCADORA Por

LÍVIA PEROZIM

Fortalecer o educador para transformar o Brasil

Vamos falar de igualdade de gênero, sim

N.° 321 ABRIL / 2019 FOTO TOMÁS ARTHUZZI ASSISTÊNCIA IAGO FUNDARO M A Q U I A G E M C A M I L A H AYA S A K A

40

O INÍCIO 5 6 8 12

Caro Educador Conte Saiba Olhe Além

Refletir sobre as assimetrias entre homens e mulheres na sociedade não é fácil, mas é urgente

APRENDIZAGEM 16

O que há do outro lado do mar?

18 22

Mais livres com os livros



Videogame na escola. Pode, professora?

26

Muito além do cálculo



N

CAPA 28

Toda cor, qualquer cor

EM FOCO 40



Ela luta pela Educação indígena

18

O FINAL 44 48 50

Inove Relaxe Inspire-se

FA L E COM A GE N T E

SITES

TWITTER

CARTAS

PARA ASSINAR

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Rua dos Pinheiros, 870, 21º andar CEP 05422-001 São Paulo, SP

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2

ABRIL 2019

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ATENDIMENTO AO ASSINANTE novaescola. org.br/contato (11) 3504-9327

FOTOS CHRISTIAN BRAGA E RICARDO LIMA/NOVA ESCOL A ILUSTRAÇÃO PEDRO HAMDAN

ão é novidade que os cargos de chefia são ocupados majoritariamente por homens e que eles ganham 20% a mais, ainda que exerçam cargos similares aos das mulheres, segundo dados do IBGE. Também já sabemos – há algum tempo – que as áreas de exatas, como engenharia e informática, são povoadas por homens, enquanto as mulheres se concentram em atividades de ensino e cuidado. À primeira vista, essa realidade pode parecer reflexo de preferências, aptidões e desempenhos distintos entre os sexos masculino e feminino. Mas só à primeira vista. Se pararmos para pensar sobre como atribuímos expectativas, responsabilidades e oportunidades desiguais a meninas e meninos, desde a mais tenra infância, veremos que o quadro não é bem esse. A começar por um fato básico: ainda hoje as garotas estão mais propensas a ser excluídas da sala de aula: são 34 milhões de meninas fora da escola primária no mundo, do

MANTENEDORA

total de 63 milhões de crianças. No Brasil, 26,1% das meninas que não estudam precisaram deixar a escola para realizar afazeres domésticos ou cuidar de outras pessoas, de acordo com informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2016. E o que fazemos com as garotas que estão na nossa sala de aula? O que esperamos delas? Seus modos de se vestir, andar, brincar, dançar, namorar, cuidar do outro, expressar sentimentos, trabalhar? Tratamos, no nosso dia a dia, meninos e meninas de maneira igualitária? Ou insistimos na ideia de que eles são mais fortes e corajosos e de que elas deveriam ser dóceis e comportadas? Refletir sobre a assimetria de gênero que está arraigada em nossa cultura não é tarefa fácil. Muitas vezes, nos faz rever modelos, questionar padrões e até a nossa própria visão de Educação. No entanto, a reflexão é urgente para que a escola não seja um instrumento da reprodução de preconceitos, mas, sim, um espaço de transformação. Afinal, quantas e quantas histórias de violência contra a mulher e feminicídios podem ser evitadas com uma formação mais ética e que promova, de fato, a igualdade de direitos entre meninos e meninas? Lívia Perozim é editora de NOVA ESCOLA [email protected]

FOTO LUCAS MAGALHÃES/NOVA ESCOL A

Conselho administrativo: Camila Pereira, Denis Mizne, Florian Bartunek, Paulo Lemann Diretor-executivo: Guilherme Luz

Diretor-editorial e de conteúdo: Leandro Beguoci Editora: Lívia Perozim Repórter: Pedro Annunciato Estagiária: Paula Salas Colaboraram: Ali Onaissi (revisão), Tory Helena (edição), Beatriz Peres, Beatriz Vichessi, Débora Lublinski, Indiara Bessa, Tomás Arthuzzi (tratamento de imagem) e Laboota – Laboratório de Conteúdo Visual (projeto gráfico, direção de arte e design) Editora Online: Soraia Yoshida Repórteres Online: Laís Semis e Paula Peres

Gerentes: Alice Vasconcellos, Ana Ligia Scachetti, Fábio Martinelli, Helena Velloso, Juliana Cavalcante, Rogério Guimarães e Kendra Gianoni Coordenadores: Camila Camilo, Elaine Iorio, Fabiano Micheleto, Felipe Costa, Karina Padial, Karine Presotti, Paula Minozzo, Patrick Cassimiro, Raissa Pascoal, Raquel Gehling e Tatiana Simões Analistas: Carolina Birochi, Emmanuel Block, Felipe Higa, Felipi Marques, Laura Madalosso, Leandros Myriantheus, Letícia Alves, Marcos Zilli, Mariana Nogueira, Matheus Petroni, Paloma Mello, Rebeca Machado e Rodrigo Blanco Especialistas: Flávio Granato e Henrique Rabello Assistentes: Bianca Matteucci, Camilla Caldeira, Juliano Dias, Lucas Magalhães Freire, Marina Cajado e Marina Duarte Estagiários: Eduardo Henrique Barroso Oliveira, Mariana Mariano e Victor Kunikawa

NOVA ESCOLA 321 (ISSN 0103-0116), ano 34, é uma publicação da Associação Nova Escola. A assinatura poderá ser cancelada a qualquer momento por meio dos canais de atendimento. Em caso de cancelamento, os valores pagos e não recebidos em exemplares serão restituídos ao assinante. NOVA ESCOLA não admite publicidade redacional.

IMPRESSA NA PLURAL INDÚSTRIA GRÁFICA Av. Marcos Penteado de Ulhôa Rodrigues, 700 CEP 06543-001, Tamboré, Santana de Parnaíba - SP ASSOCIAÇÃO NOVA ESCOLA Rua dos Pinheiros, 870, 21º andar, CEP 05422-001, Pinheiros, São Paulo, SP

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3

Por T O R Y H E L E N A

SAIBA

É SUFICIENTE? O Brasil aplica 5,9% do PIB no setor, acima da média dos países da OCDE. No entanto, o valor anual por aluno é considerado baixo para os desafios da Educação brasileira.

O Q U E E S TÁ E M D E S TA Q U E N A E D U C A Ç Ã O

* Por ano

CURRÍCULO

Ensino pelo mundo Pesquisa da Unesco compara bases comuns curriculares de cinco países Em 2018, a Unesco analisou, por meio do Bureau Internacional de Educação, os quadros curriculares nacionais do Brasil, Camboja, Finlândia, Quênia e Peru. Embora partam de realidades muito diferentes, que vão do modelo de governo ao grau de investimento do PIB em Educação, todos os cinco países estabeleceram um documento sobre o currículo educacional, bem como reformas no setor, nos últimos anos. “O currículo conduz todos os aspectos centrais da educação que determinam a qualidade, a inclusão e a relevância, tal como o conteúdo, a aprendizagem, o ensino, a avaliação e os ambientes de ensino e aprendizagem, entre outros. É por meio do currículo que podemos compreender os objetivos, o imaginário social e as aspirações que um país deseja alcançar”, diz o estudo, cujo objetivo foi analisar até que ponto os países apresentam e discutem seus sistemas educacionais. Conheça as principais características dos países e suas bases nacionais para o currículo.

8

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3,7 8,7 mil dólares por aluno* (Brasil)

mil dólares por aluno* (OCDE)

BR ASIL

C A M B OJA

FINL ÂNDIA

QU Ê N I A

PE RU

Nome Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Nome Projeto Quadro Curricular da Educação Geral e Técnica

Nome Base Nacional Curricular para a Educação Básica

Nome Quadro Curricular da Educação Básica do Quênia

Nome Currículo Nacional da Educação Básica (CNEB)

Criação 2017

Criação 2015

Criação 2014

Criação 2017

Criação 2016

Visão geral Estruturado a partir de dez competências, o documento foi discutido por quatro anos, com várias modificações, até sua versão final.

Visão geral São oito objetivos: a aquisição de habilidades em línguas (khmer e estrangeiras), ciência, tecnologia, tecnologias da informação e comunicação (TIC), civismo, pensamento crítico e aprendizagem ao longo da vida.

Visão geral Há quatro valores principais: a singularidade do estudante e o direito a uma boa educação; humanidade, conhecimentos gerais, igualdade e democracia; diversidade cultural como uma riqueza; e a necessidade de uma forma de vida sustentável.

Visão geral O documento é estruturado em torno de sete competências: comunicação e colaboração, autoeficiência, pensamento crítico e solução de problemas, criatividade e imaginação, cidadania, alfabetização digital e “aprender a aprender”.

Visão geral O CNEB do Peru indica 31 competências que devem ser desenvolvidas, 29 delas para todos os níveis educacionais e duas específicas à educação religiosa, que é uma disciplina opcional.

Pontos positivos Há descrição de competências transversais em quase todas as disciplinas e o texto também amplia seu escopo para além das escolas, indicando ações em clubes, bibliotecas e o meio de transporte escolar. Com isso, atua sobre todas as áreas que possam influenciar a aprendizagem dos estudantes.

Pontos positivos Há uma seção para os estudantes com deficiência, com um currículo específico incluído no documento. O currículo é orientado para as necessidades do indivíduo, de modo a permitir que levem uma vida independente.

Pontos positivos Expressa a igualdade, a diversidade e a equidade como valores fundamentais para a Educação. Os conteúdos das disciplinas devem ser adaptados ao contexto local, organizados de forma interdisciplinar e ensinados de modo a envolver o estudante na aprendizagem. Pontos negativos Embora diga que o currículo deve considerar todas as modalidades de ensino, inclusive a Educação para Jovens e Adultos (EJA), indígena, rural e quilombola, a BNCC não traz especificações sobre essas modalidades em suas páginas.

Pontos positivos A descrição das competências mostra como os estudantes devem estar munidos de habilidades práticas que podem beneficiar sua vida cotidiana em contextos regionais e mundiais. Pontos negativos Não menciona explicitamente a inclusão de temas transversais em todas as disciplinas, como a educação em direitos humanos e a igualdade de gênero.

Pontos positivos É incentivada a construção de laços emocionais entre docentes e estudantes, com vistas às habilidades sociais, emocionais e cognitivas. O documento também destaca a importância do compromisso ativo da família no processo de aprendizagem do aluno

Pontos negativos Ausência de mensagem de um diretor-geral.

Pontos negativos Não estabelece particularmente um processo específico de monitoramento e avaliação do quadro curricular.

Pontos negativos Não contém mensagem do ministro da Educação. Embora cite a avaliação em sala de aula e a nacional, não especifica como se dará o monitoramento do CNEB.

Forma de governo República Federativa Constitucional

Forma de governo Monarquia Constitucional Parlamentarista

Forma de governo República Parlamentarista

Forma de governo República Presidencialista

Forma de Governo República Presidencialista

Nº de habitantes 208 milhões

Nº de habitantes 16,4 milhões

Nº de habitantes 5,5 milhões

Nº de habitantes 49,7 milhões

Nº de Habitantes 32 milhões

Alfabetizados 92%

Alfabetizados 80,5%

Alfabetizados 99%

Alfabetizados 78%

Alfabetizados 94%

Nº de professores 2,2 milhões

Nº de professores 600 mil

Nº de professores 44 mil

Nº de professores 242 mil

Nº de professores 510 mil (2018)

Nº de matrículas 48,5 milhões

Nº de matrículas 3,2 milhões

Nº de matrículas 539 mil (2016)

Nº de matrículas 12,2 milhões (2016)

Nº de matrículas 7,8 milhões (2018)

Investimento em educação 5,9% do PIB (2014)

Investimento em educação 1,9% do PIB (2014)

Investimento em educação 7,2% do PIB (2014)

Investimento em educação 5,3% do PIB (2015)

Investimento em educação 3,8% do PIB (2015)

ILUSTRAÇÕES GUILHERME HENRIQUE

Fontes: Análise comparativa dos quadros curriculares nacionais de cinco países: Brasil, Camboja, Finlândia, Quênia e Peru (IBE/UNESCO), Censo Escolar, CIA Database

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SAIBA C O M O L I DA R C O M O VA Z A M E N T O D E I M AG E N S Í N T I M A S

E X P O S TA S E S E M I N F O R M AÇ ÃO Pesquisa mapeou os hábitos e as experiências das adolescentes

EDUCAÇÃO SEXUAL

De olhos fechados para o sexting

80%

Vazamento de imagens íntimas sem consentimento é realidade, mas meninas não contam com rede de apoio, diz pesquisa Receber ou enviar fotos ou vídeos íntimos já é parte da vida de muitas adolescentes brasileiras: 35% admitem que já mandaram as imagens para alguém e 70% que já receberam nudes sem pedir. Apesar da prevalência do sexting, o hábito de trocar mensagens, fotos ou vídeos íntimos, falta muita informação e apoio para as adolescentes quando esses conteúdos são compartilhados sem consentimento. É o que revela pesquisa virtual feita pela Unicef com 14 mil brasileiras entre 13 e 18 anos. Em média, 10% relataram já ter passado por essa situação, capaz de gerar constrangimento e sensação de culpa. Mas 70% afirmaram que o assunto nunca tinha sido discutido na escola e 85% admitiram nunca ter buscado informações sobre o assunto. Quando o vazamento acontece, é importante acolher a vítima. “As meninas expostas são vítimas da violência de quem vazou a imagem e depois sofrem uma segunda, que é a culpabilização”, explica Rodrigo Nejm, diretor de Educação da ONG Safernet. Além de orientar os alunos a nunca compartilhar esse tipo de conteúdo sem permissão, é possível obter mais informações em www.helpline.org.br 10

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70%

35% 41%

receberam pedidos para enviar fotos íntimas

já enviaram fotos ou vídeos íntimos já mandaram nudes a alguém

nunca discutiram o assunto com a família

Contariam para alguém da escola em caso de vazamento de imagem íntima sem consentimento? 48% Sim 52% Não*

70%

Quebre o tabu O assunto faz parte da realidade dos alunos e não pode ser proibido. Quando não trabalha preventivamente a ética digital, a escola acaba agindo de forma reativa a essas situações.

disseram que o assunto nunca foi discutido na escola*

10% 35% 2%

Por

FELIPE BANDONI

Separar alunos pela nota pode ser tiro no pé Divisão por desempenho pode ampliar desnível, afetar motivação e piorar o clima escolar

das meninas são vítimas de exposição de nudes sem consentimento* não contaram a ninguém quando isso aconteceu

Não julgue Converse sem julgamentos ou moralismo. Diante de um caso concreto de vazamento de imagens, deixe claro que está ali para ajudá-la a tomar providências e a protegê-la.

conversaram com docentes na escola

80%

sentiram culpa

30%

sentiram tristeza e solidão

27%

pensaram em suicídio

ILUSTRAÇÕES ALEXANDRE AFFONSO

Ouça os alunos É importante entender e ouvir as experiências dos estudantes sobre a situação concreta.

Informação é tudo Traga informações sobre canais de ajuda e de denúncia para a escola de forma estruturada, em cartazes e em reuniões. A segurança e a cidadania digital devem fazer parte do cotidiano escolar.

C

onheço escolas que classificam os alunos conforme o desempenho acadêmico, separando-os em salas diferentes. Há professores que defendem essa divisão, argumentando que o trabalho fica facilitado em turmas mais homogêneas. Em uma dessas escolas, acompanhei a implementação desse modelo. Os docentes combinaram de realizar um trabalho diferenciado com cada turma, porém, na prática, isso não ocorreu. Em pouco tempo, os professores passaram a dar a mesma aula em todas as salas, fugindo da proposta inicial. As provas também eram as mesmas, e o desnível que já existia se ampliou. As queixas sobre as salas com pior desempenho começaram a se acumular. Professores começaram a constatar que a discussão coletiva era mais pobre, pois não havia alunos participativos nessas turmas. Os alunos passaram a se referir a elas como “salas dos burros”. Problemas de autoestima e desmotivação aumentaram, chegando a ocorrer evasões. As salas que tinham

FOTO TOMÁS ARTHUZZI/NOVA ESCOL A

piores resultados eram também as que tinham mais ocorrências disciplinares. Também havia questões nas salas com melhores notas. Os alunos eram individualistas, negavam-se a fazer trabalhos em grupo e havia conflitos com as outras turmas. Os adolescentes reproduziam, entre si, a estrutura proposta a eles e, apesar das boas notas, sua postura gerava insatisfação nos educadores. Após alguns anos de reincidência desses problemas, a direção propôs misturar as turmas, no que foi apoiada quase unanimemente pela equipe. Apesar da resistência inicial de alguns estudantes e dos pais, a mudança vingou. Surgiram atividades com grupos colaborativos (que mesclam alunos com habilidades e proficiência diferentes), e os professores trouxeram resultados mais positivos na aprendizagem. As discussões coletivas avançaram, pois havia alunos participativos em todas as turmas, e o clima geral na escola melhorou. Essa experiência evidencia que o desempenho acadêmico é apenas uma das variáveis a ser considerada na organização das turmas. Para ter um clima saudável, colaborativo e que potencialize a aprendizagem, é preciso considerar também outros aspectos.

Felipe Bandoni é professor de Ciências na Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Colégio Santa Cruz e no Acaia Ateliescola, em São Paulo

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APRENDIZAGEM / LÍNGUA PORTUGUESA

Mais livres com os livros Em vez de prova, resumo e fichas de leitura, é possível criar estratégias que incentivam o gosto pela literatura, na escola e fora dela Por D É B O R A L U B L I N S K I / Edição L Í V I A P E R O Z I M / Fotos R I C A R D O L I M A

O



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verbo ler não suporta o imperativo.” A frase do educador e escritor francês Daniel Pennac resume o desafio de plantar nas crianças a sementinha da leitura por fruição, aquela que não conta para prova ou para nota. Segundo o autor, o famoso “leia!”, com direito a ponto de exclamação, e os mecanismos de controle e avaliação - como os resumos, as fichas e os exames - são ineficientes. Eles apenas tornam a experiência no universo literário uma obrigação, que não vai ser repetida se não for exigida novamente. Como incentivar que os alunos se tornem leitores autônomos? O caminho, segundo as especialistas ouvidas pela NOVA ESCOLA, passa por dar liberdade de escolha aos estudantes e por apresentar obras capitais, especialmente as que eles não teriam acesso sem a mediação do educador. Nessa perspectiva, algumas práticas escolares precisam ser repensadas. A avaliação é uma delas. “Nenhum adulto responde a questões de interpretação quando termina um romance! Sendo constantemente avaliado, o aluno vai adquirir a representação da literatura como tarefa de escola e, dessa forma, quando tiver cumprido sua trajetória escolar, acabará não se interessando pelos livros”, afirma Maria José Nóbrega, assessora dos Planos de Aula de Língua Portuguesa da NOVA ESCOLA e dos projetos de leitura da Editora Moderna.

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N LER POR PRAZER Trabalho de Débora aproximou as crianças dos livros na EMEF Francisco Cardona

Foi o que a professora Débora Sacilotto, da EMEF Francisco Cardona, em Artur Nogueira (SP), constatou ao voltar às salas de aula depois de 16 anos em cargos de gestão. “Toda sexta-feira era feito um empréstimo de livro e, na devolução, os alunos preenchiam uma ficha-resumo. Nós, professores, entendíamos que a tarefa ia ajudar o aluno a organizar as ideias, registrar o que tinha lido e, portanto, facilitar a compreensão. Mas começou a virar uma tortura – para mim e para eles. Os alunos apenas copiavam trechos da obra e eu me via corrigindo 30 lições toda semana”, conta.

Débora percebeu que precisava mudar a estratégia e lembrou de um professor que dizia que o caminho para gostar de ler é encontrar um gênero literário de que se gosta. “Parei para pensar em minha experiência pessoal. Adoro romances quando começo um, termino rapidinho. Já com livros de autoajuda, a leitura é mais arrastada. Assim, resolvi trazer uma narrativa gostosa à sala”, recorda. O eleito foi Extraordinário (Intrínseca), que conta a história do menino Auggie, de 10 anos. A educadora começou a ler o livro por capítulos, “que nem novela”, para deixar aquela curiosidade

do que vai acontecer para o dia seguinte. “Como fala sobre inclusão e bullying, todos se identificaram. Uma aluna ficou entusiasmada porque descobriu que podia ler um livro grosso! Bastava um pouquinho por dia”, conta. Com esse gostinho de quero mais, algumas crianças foram buscar o livro fora da escola, em livrarias e bibliotecas. Não demorou para Débora ver alguns alunos lendo no recreio e pedindo indicação de outros gêneros literários. No lugar do resumo, foi implementada a “Hora do Conto”, um momento de leitura em voz alta do trecho do qual mais gostou e uma convernovaescola.org.br A B R I L 2 0 1 9

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APRENDIZAGEM / LÍNGUA PORTUGUESA

CURADORIA Além de mediar, o educador pode usar jogos para motivar nas crianças o hábito de ler

5 E S T R AT É G I A S PA R A I N C E N T I VA R A LEITUR A textos, até serem pescados por uma das narrativas”, detalha. Na hora da devolutiva, em vez de ficha ou resumo, a atividade ganha status de chá literário. Inspirado nas histórias do inglês Roald Dahl (que sempre descreve a hora do chá em suas obras, como A Fantástica Fábrica de Chocolate), o ritual tem direito a toalha de mesa enfeitada, flores, xícaras de porcelana e infusões coloridas. “Como quero enriquecer a conversa, separo os alunos em quartetos e eles têm de descobrir por que estão reunidos naquele grupo - ou seja, qual o denominador comum de cada obra que foi lida os conecta? Será o mesmo autor, o gênero, a estrutura do texto, as características da personagem principal, o estilo da ilustração? Todos adoram a proposta. As crianças aprendem pela própria literatura e não apenas pelo conteúdo escolar”, entende Regina.

1

Crie uma rotina Vale visitar a biblioteca, fazer leitura compartilhada ou ler em voz alta com regularidade. 2

Escolha x mediação As crianças devem ganhar autonomia, mas o professor também pode intervir, ampliando o repertório e a qualidadade. 3

Comunidade leitora Quando colegas trocam indicações, cria-se uma comunidade leitora, o que amplia o sentimento de pertencer ao grupo. 4

Bibliotecas Incentive o uso desses locais públicos. Ao explorar o espaço, a criança concebe que existe um vasto universo literário - e que ela faz parte dele. 5

Livro para casa Conquiste a parceria da família: a leitura compartilhada enriquece as relações, além de mostrar que a leitura não é só na escola.

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Desafios no Fundamental II

sa descontraída sobre a história. Paralelamente à leitura, um carrinho com biblioteca itinerante circula entre as salas e, após a leitura, cada criança pode recomendar o livro para o colega, justificando o porquê. “O incentivo à leitura impactou no aprendizado, mas não é só isso que conta. As crianças vão carregar os livros para a vida adulta de uma forma prazerosa”, comemora Débora. No Colégio Equipe, em São Paulo, para desenvolver o hábito de leitura há um acervo mais personalizado da biblioteca de sala, que reúne obras que as próprias crianças trazem de casa, e também o momento da leitura compartilhada. Além da visita à biblioteca, onde, uma vez por semana, acontece o projeto Encontro de Leitura. Segundo Ana Marotto, orientadora pedagógica do Ensino Fundamental I do Equipe, a iniciativa

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promove um momento mais livre com o livro: os alunos podem explorar as prateleiras, entender como funciona a organização de uma biblioteca e descobrir seus gostos. Depois, na semana seguinte, a proposta é indicar para um amigo o livro que foi levado para casa. Tereza Sousa, mãe de Anita, de 7 anos, aluna do 3° ano da escola, conta que o projeto acabou se refletindo em casa. “Ela quer levar os livros para passear. Se vamos a um restaurante, ela carrega sua leitura. Percebo que a literatura não ficou associada apenas a um dever – há prazer em ler, o que é fantástico”, conta.

Jogos literários E o que fazer quando os alunos pegam o mesmo livro para ler, ficam apenas títulos muito comerciais ou elegem uma obra fácil - ou difícil - demais

para a sua compreensão? É papel do educador fazer a mediação, pré-selecionando títulos que atendem à necessidade individual ou do grupo. Na escola Stance Dual, em São Paulo, essa curadoria virou uma grande brincadeira. Regina Alfaia, professora deo 4° ano e contadora de histórias, acredita que criando jogos é possível requalificar a relação com o livro. “Apenas 30% dos títulos estão no horizonte dos leitores. Não apresentar os 70% restantes é privá-los dessa descoberta”, afirma. Regina criou uma espécie de pescaria na qual os alunos são a isca. “A diversão é saber por qual livro você será fisgado. Para isso, faço uma pré-seleção das obras que acho interessantes e, depois, cubro as capas dos livros. Deixo apenas um fio colorido para fora com um pequeno trecho grudado nele. Os alunos vão passeando entre as mesas, lendo os

No Fundamental II, e, mais tarde, no Médio, é comum ver cada vez menos práticas de incentivo à literatura. Com o aprendizado de conteúdos mais sistematizados e, em alguns casos, já focados no Enem, professores e alunos se afastam da leitura por prazer. “É verdade que queremos formar leitores mais potentes ao longo da escolaridade. Para isso, precisamos, sim, trazer obras desafiadoras, o que não significa abandonar os alunos nesse momento”, assegura Andréa Luize, coordenadora pedagógica do Instituto Vera Cruz. A mediação torna-se crucial para que os estudantes tenham maiores chances de se apropriar dos textos e, consequentemente, seguir sozinhos. Cabe ao educador criar mecanismos que ambientem os alunos na narrativa. Valem grupos de estudo sobre uma pré-seleção de obras literárias, analisando semelhanças e diferenças, rodas de leitura entre colegas, leitura compartilhada (na qual o professor ajuda na interpretação) e outras estratégias que vão garantir o apoio necessário ao aluno para ele se tornar um leitor cada vez mais potente, na escola e fora dela. novaescola.org.br A B R I L 2 0 1 9

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APRENDIZAGEM / CIÊNCIAS

N A BNCC Identificar diferentes tipos de rochas, relacionando a formação de fósseis a rochas sedimentares em diferentes períodos geológicos.

Videogame na escola. Pode isso, professora?

Habilidade EF06CI12

Claro que sim! Saiba como ensinar o conteúdo de rochas e minerais usando o Minecraft, game de construção que é febre entre a garotada Por B E AT R I Z V I C H E S S I / Edição L Í V I A P E R O Z I M

E

ra para ser uma aula de Ciências como outra qualquer. O tema de estudo era Geologia com a turma do 6º ano do CE José de Anchieta, em Queimados (RJ). O planejamento traçado pela professora Mytse Andréa Sales de Melo Nogueira, que atualmente leciona Ciências, Biologia e Física no Ciep General Ladário Pereira Telles, no Rio de Janeiro, era ensinar o conteúdo como sempre - de forma mais teórica, citando exemplos de rochas e minérios, as propriedades e usos de cada um. E a professora sabia que, inevitavelmente, a garotada ia apelar para a decoreba. Mas bastou uma pergunta para essa história mudar por completo. Quando Mytse pediu para algum aluno dar um exemplo de rocha magmática, um deles logo respondeu: obsidiana. “Não esperava que alguém mencionasse uma rocha

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quase desconhecida e fiquei mais intrigada ainda quando outras crianças disseram conhecê-la e que para fazer uma, era só misturar água e lava”, diz. Ela deu voz aos estudantes e descobriu um novo jeito de explorar Geologia em sala. Alguns sabiam muito sobre o tema por causa de um jogo de computador, o Minecraft. Então, a professora não teve dúvidas. Resolveu rever todo o planejamento e deixar a garotada craftar, como dizem os fãs do game, fazendo alusão ao ato de construir, base do jogo.

Aprendizagem significativa “O Minecraft é um ambiente virtual estilo sandbox, ou seja, tem poucas limitações. É um mundo aberto, em que o jogador escolhe a forma como irá atuar: empilhando, criando e destruindo blocos de montar”, explica Rodrigo Castro, pedagogo, especialista em jogos digitais, pós-graduando em computação aplicada à educação e professor de Ensino Fundamental da Escola Móbile, em São Paulo. Em linhas gerais, é possível explicar a ação do jogador assim: o ambiente virtual é formado por blocos e alguns deles são representações de rochas e minérios. O jogador pode coletar tais

FOTO REPRODUÇÃO

MUNDO ABERTO No Minecraft, o jogador usa blocos de diversos materiais para construir o que ele quiser

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APRENDIZAGEM /CIÊNCIAS

A S E TA PA S DO TR A B A LHO DA PRO F E S SO R A

OBSIDIANA Os alunos conheciam a rocha graças ao ambiente virtual

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recursos para construir pequenos itens, ferramentas, enfeites e construções, como prédios. Cada jogador usa um avatar e tem de construir um abrigo para se proteger de criaturas perigosas que surgem à noite. Tendo criado seu abrigo, ele pode começar a explorar minas e cavernas subterrâneas para conseguir novos materiais, para fazer, por sua vez, novas construções e objetos. No jogo, é possível encontrar pedregulhos, granito, diorito, andesito, arenito, obsidiana, basalto, ferro, ouro e diamante, entre outros produtos. O Minecraft é gratuito (para baixar: my.minecraft.net), embora exista uma versão paga criada especialmente para o trabalho com Educação, o MinecraftEducation Edition (education.minecraft. net). “Nesse caso, o professor tem mais controle das atividades realizadas pelos alunos e pode propor desafios dos mais diferentes. Apesar dessas particularidades, é perfeitamente possível fazer um bom uso da versão livre, desde que o educador fique mais atento ao que os alunos estão fazendo enquanto jogam”, explica Natália Ferreira Dias, professora de Ciências do Colégio Orly, em Santo André (SP). A versão livre ainda tem outro detalhe que precisa ser levado em conta na hora do planejamento do uso do jogo em classe: use o modo criativo - com ele é possível construir o que quiser, enquanto o modo sobrevivência tem como meta vencer um desafio ou “zerar o game”. Depois de conversar um pouco mais com os alunos sobre o jogo e pesquisar em casa, Mytse propôs à turma usar o Minecraft para aprender. “A gente vai jogar videogame na escola?” e “tá falando sério, professora?”, foram algumas das falas que ouviu: as crianças não se continham de felicidade e ficaram ansiosas. Para deixar a turma mais empolgada ainda, ela enfeitou a sala com o tema do jogo, usando o bichinho de pelúcia tema do game e a picareta de brinquedo, objetos que eram de seu filho, e levou um livro sobre o jogo para a turma consultar. Na aula seguinte, pediu para os alunos que tinham mais conhecimentos sobre o Minecraft atuarem como monitores e ensinar os colegas a jogar. “Eu disse: preparem-se porque a aula vai ser de vocês.” A motivação foi tamanha a ponto de alguns estudantes prepararem até cartazes para apresentação. Em seguida, a classe toda teve oportunidade de jogar, e com isso todos passaram a encarar as ro-

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chas e os minérios com mais interesse. Mytse recorre ao pensamento do psicólogo americano David Ausubel (1918-2008) e sua Teoria da Aprendizagem Significativa para justificar ter trabalhado de modo a valorizar o que os alunos já sabiam. “Quando um conhecimento novo consegue ser ancorado em um conhecimento prévio, há uma ressignificação do conhecimento e, daí, uma aprendizagem significativa. O que eles sabiam por causa do game, então, ajudou a aprender mais e de forma interessante”, explica.

Características e utilidades Passada a fase de exploração do jogo, a tarefa era comparar os minerais e rochas que aparecem no jogo com os da vida real e pesquisar as características de cada um. A maior parte que existe no Minecraft, de acordo com a professora, também existe na Terra e as informações contidas na tela estão quase todas corretas. “Organizamos uma tabela com as informações que o game apresentava, e para completá-la, a turma foi buscar em outras fontes, confirmando ou não o que já se sabia”, comenta. No caso do ouro, por exemplo, ele é usado no jogo para fazer picaretas e quebrar determinado tipo de bloco. Já na vida real, dentre outros usos, os estudantes destacaram o feitio de joias. Outra tarefa que a classe realizou foi classificar as rochas do Minecraft em magmáticas (dentre elas, a obsidiana), sedimentares (como o arenito) e metamórficas (por exemplo, o lápis-lazúli). “Da maneira que a classificação foi realizada, o conteúdo fez sentido para os alunos porque não foi mecânica, sem conexão com nada que os interessasse”, diz a professora. Além dessa característica positiva, ela destaca o fato de o Minecraft enriquecer o vocabulário de Ciências das crianças. “Ao falar sobre o jogo, falavam em biomas, por exemplo, para explicar os ambientes que os avatares visitam”, explica. Para terminar o trabalho, os estudantes montaram uma exposição com o visual do game. Cada um escolheu uma rocha ou minério e construiu um bloco para representá-lo, tendo a responsabilidade de falar sobre ele para os colegas. “Usamos o mesmo visual do game. Na internet é fácil achar os moldes para imprimir”, afirma a professora. Depois, a exposição foi aberta para toda a escola. 

FOTOS DIVULGAÇÃO E REPRODUÇÃO

Veja como Mytse usou o Minecraft com a turma do 6º ano

COMO FUNCIONA Entenda a lógica do game que constrói conhecimentos

O ambiente é formado por blocos, e alguns deles são representações de rochas e minérios.

O que é obsidiana? Ao perceber que alguns dos estudantes conheciam a rocha pelo jogo, a professora pesquisou sobre o game e pediu para que os alunos fossem monitores dos que não sabiam jogar.

O jogador pode coletar tais recursos para construir. Cada jogador usa um avatar e tem de construir um abrigo para se proteger de criaturas perigosas que surgem à noite.

Exploração e sentido A turma pôde jogar em sala de aula. Depois, compararam os usos dos minerais e rochas do game com os da vida real. Para que serve o ouro, por exemplo?

A partir daí, ele pode sair em busca de novos materiais e fazer novas construções. Na escola, prefira o modo criativo - que tem mais possibilidades. O outro, o de sobrevivência, visa “zerar o jogo”.

P O S S I B I L I DA D E D E A P R E N D I Z AG E N S C O M O M I N E C R A F T O Minecraft pode ser uma ferramenta para diversos estudos

Citologia A turma pode pensar na estrutura celular, delimitações das organelas, diferenças entre célula animal e vegetal.

Classificação e exposição Os estudantes classificaram as rochas (magmáticas, sedimentares e metamórficas), enriqueceram o vocabulário e construíram blocos que foram apresentados para a turma.

Topografia Os terrenos acidentados ou suas planícies são convites para estudar o conteúdo e a formação do planeta.

Mundo aquático É possível explorar com riqueza de detalhes espécies submarinas e aprender mais sobre a fauna e a flora.

Circuitos elétricos Usando os blocos de redstone, os alunos podem estudá-los e criar usinas.

Dicas da especialista Marilena Rosalen, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que o jogo deve ser usado como uma ferramenta. Ele pode ser relacionado a algum desafio que tenha a ver com o tema estudado (veja ao lado). Use-o nas aulas para construir algo relacionado à teoria e aprenda mais à medida que o assunto for explorado.

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CAPA / IGUALDADE DE GÊNERO

TODA COR , QUALQUER COR OPOSTOS Yasmin e Yang têm a mesma idade, mas sentem o peso do gênero de forma diferente no dia a dia

Não faz diferença se menina veste azul e menino, rosa. Mas por que ainda é tão difícil romper os estereótipos de gênero e educar igualmente nossas alunas e nossos alunos? Por B E AT R I Z V I C H E S S I / Edição L Í V I A P E R O Z I M Fotos T O M Á S A R T H U Z Z I , L E O C A O B E L L I E G U S TA V O G O M E S

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CAPA / IGUALDADE DE GÊNERO

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Educação Titulo boxsem desigualdade Soluções de de gênero problemas

inha vida é mais fácil porque sou menino. Ando sem medo de alguém me olhar de modo ameaçador. As pessoas em geral não me subestimam”, diz Yang Nakazawa, 14 anos, aluno do 9º ano da Emef Desembargador Amorim Lima, em São Paulo. Sua amiga Yasmin da Costa também tem 14 anos e está na mesma turma, mas sente o oposto: “É mais difícil ser menina. Somos consideradas mais fracas, incompetentes, incompletas”. Por que Yang e Yasmin têm pontos de vista distintos, mesmo em contextos tão parecidos? Por que tratamos meninos e meninas de jeitos diferentes? E o que tudo isso significa para a escola? A questão, muito mais complexa e matizada do que polarizações sobre quais cores de roupa são adequadas para meninos ou meninas, não é nada fácil, mas não pode mais ser ignorada no contexto escolar. Ao longo desta reportagem, você encontrará reflexões, informações e dicas práticas de como trabalhar o assunto com os alunos. Em 2017, a pesquisa Percepções sobre Educação Sexual, realizada pelo Ibope sob encomenda da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, mostrou que 67% dos entrevistados concordavam plenamente com a escola falar sobre igualdade entre homens e mulheres. “As questões de gênero já estão na escola. Evitar o tema reforça a estrutura hierárquica da sociedade e propaga estereótipos”, afirma Vanessa Leite, pesquisadora associada do Centro Latino-Americano de Sexualidade e Direitos Humanos (Clam) e doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Para ela, falar da igualdade de gênero implica dar às meninas e aos meninos o mesmo espaço e direitos na sociedade. Segundo Denise Carreira, coordenadora institucional da Ação Educativa e defensora de Educação de Meninas e Mulheres do Fundo Malala, 32

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o gênero é uma categoria que nasceu nos anos 1950 para questionar a naturalização de desigualdades ancorada no discurso biológico de que as mulheres eram mais propensas a determinadas atividades, como cuidar da casa e dos filhos. “Colocar em xeque a desigualdade de gênero hoje significa favorecer a transformação de relações de poder em trocas e convívio mais democráticos e dignos entre as pessoas”, explica. Longe de ser um assunto teórico, a diferença de tratamento entre homens e mulheres traz consequências práticas para a sociedade, que vão desde uma mulher receber menos do que um homem pela mesma função, passando pelas expectativas de aprendizagem diferentes para meninos e meninas na escola até o feminicídio. Em 2015, a então dire-tora-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, alertou que a violência contra as mulheres, endêmica no Brasil, é a pior manifestação da desigualdade de gênero. “Não existe nenhum fator biológico que justifique discriminar, reduzir, segregar e punir uma mulher por ser mulher e um homem por ser homem”, diz Paula Ribeiro, coordenadora do Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola da Uni-

Saiba como Crsur molorru ptait trabalhar o tema di nadolorest, escola doquisse Ensino mosam, officaes Infantil ao Médio in praturUt fugian

N A ED UCAÇÃO IN FA N T IL , SIM

Faz de conta Promova com as crianças brincadeiras como limpar a casa, trabalhar ou dirigir. Todos devem assumir o papel que quiserem.

Amizade para todos Reforce que os amigos podem ser de qualquer sexo. Se surgir a frase “são namoradinhos”, explique que crianças não namoram. Crianças brincam e têm amigos.

MENOS MACHISMO Com o projeto sobre gênero, Douglas aprendeu a respeitar mais as mulheres

Sem barreiras Disponibilize todos os tipos de brinquedos para as crianças e amplie o repertório com jogos, instrumentos e outras opções menos marcadas pela questão de gênero.

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CAPA / IGUALDADE DE GÊNERO

A DESIGUALDADE DE GÊNERO FERE TAMBÉM OS MENINOS ORI EN TAÇÕ ES PAR A O FU N DAMEN TA L I

Sem estereótipos Discuta características associadas às mulheres (como a fragilidade) e aos homens (como a força). Debata: essa forma de julgar as pessoas limita a vivência delas? Por quê?

Papel de todos Dialogue sobre a responsabilidade de todos para superar a desigualdade de gênero: o que é possível fazer na escola? Os estudantes enxergam desigualdades em quais situações?

Meninos e meninas Converse com as crianças sobre a existência de diferentes formas de ser menina e menino. As regras sobre isso podem e devem ser mudadas.

METE A COLHER Violência doméstica inspirou a intervenção de Mari na peça Mulheres

-versidade Federal do Rio Grande (UFRG). É tam- tando os homens como menos importantes. Na bém preciso considerar que os papéis sociais verdade, são elas que, por serem desimportantambém mudam ao longo do tempo. No início tes, precisam ser colocadas em evidência”, exdo século 20, por exemplo, as mulheres não po- plica a professora do 8º e do 9º anos do CED 8, diam votar, muitas eram proibidas de estudar e em Brasília. Durante o projeto, os estudantes ficavam restritas ao trabalho doméstico. Hoje, no escreveram biografias de heroínas da Primeira século 21, o quadro é bem diferente, mas ainda Guerra Mundial, criaram um final diferente persistem grandes desafios. É importante lembrar para o texto Moça Tecelã, de Marina Colassanti, que a desigualdade de gênero e os estereótipos além de entrevistarem mulheres da família que associados ao que é ser homem ou mulher afe- consideram inspiradoras e criarem tutoriais, tam meninas, mas também os meninos, reforça slogans e hashtags para uma campanha sobre Viviana Santiago, gerente de gênero e incidência violência contra a mulher. Com o trabalho e o política da Plan International no Brasil, explican- diálogo, o tema fez sentido para os estudantes. do que o trabalho infantil, por exemplo, incide “O projeto me fortaleceu porque às vezes passo principalmente sobre o gênero masculino. Além por situações que me sinto menosprezada por disso, se por um lado as meninas são socializadas ser menina”, conta Beatriz Ferreira, 14 anos. O para o cuidado e reprimidas em alguns contextos, estudo também foi importante para Douglas a expressão de sentimentos como a tristeza é fre- de Farias, 17 anos: “Eu era machista, me incoquentemente tolhida nos meninos. Em 2013, a modava até com a roupa de algumas meninas. jornalista Sílvia de Araújo tratou do tema de ma- Aprendi a respeitar, afinal, elas são livres como qualquer homem é”, diz. neira acessível no manifesto “Pelos Direitos dos Meninos”: “Que Na Emef Professor João de ele possa aprender a dançar liOliveira Martins, em Rio Grande Glossário vremente, sem que lhe digam (RS), o ponto de partida foi o que isso é coisa de menina. Que texto A Revolta das Princesas (EdiORIE N TAÇÃO ele possa chorar quando se sentir tora Saber e Ler). A partir dele, a SE XUAL emocionado, e que não lhe digam professora Marisa Pires desenDiz respeito ao gênero pelo qual que isso é coisa de menina”. volveu a peça de teatro Mulhea pessoa tem res, que aborda a desigualdade atração sexual e A vida em sala de aula de gênero, com os alunos do 9º laços românticos - heterossexual Mas, como abordar essa desiano. “Escolhemos as princesas (alguém de gualdade na sala de aula? Em Cinderela e Sherazade e as colooutro gênero), camos em situações contempo2018, antes de anunciar para a homossexual (alguém do mesmo turma que as aulas de Língua râneas, como assédio em uma gênero) e bissexual festa. Apresentamos dados de Portuguesa seriam focadas em (ambos). textos com personagens mulhefeminicídio, o assassinato de mures, Aline Pinheiro deixou clalheres pela sua condição de gênero que a desigualdade existe em ro, no Rio Grande do Sul para vários aspectos. “Num primeiro alertar a plateia”, conta a docente. Situações exploradas no espemomento, um aluno ficou com a sensação de que eu estava tratáculo ajudaram algumas alunas

Fonte do Glossário: Miriam Pillar Grossi

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CAPA / IGUALDADE DE GÊNERO

POL ARIZ ADA , A QUESTÃO DE GÊNERO NEM SEMPRE É COMPREENDIDA a pedir ajuda, já que o assunto não é fácil e nem é discutido por todas as alunas. Em uma das cenas, Cinderela é assediada numa festa por usar uma roupa considerada provocante por outro personagem. “Muita gente se emocionou porque é uma situação frequente”, conta Dérik de Araújo, 16 anos, que interpretou o papel do segurança. Já Mari Hellen Faria, 18 anos, além de atuar, sugeriu a inclusão da frase “sim, em briga de marido e mulher, se mete a colher” na cena em que uma mulher é agredida fisicamente pelo marido. A ideia surgiu porque, no bairro da garota, uma mulher morreu espancada pelo marido. “Os vizinhos sabiam, mas demoraram a tomar providências”, conta.

Gênero sem medo Cercado de polêmicas, polarizações e desinformação, o termo “gênero” nem sempre é compreendido e encontra resistência em alguns setores da sociedade. Durante a discussão sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ele foi suprimido do texto após pressão de alguns grupos. Para eles, inserir o tema no currículo poderia gerar uma crise de identidade nos alunos, afetando a família e a integridade moral e intelectual dos jovens. Também defenderam o ponto de vista de que o gênero não é uma construção social e trouxeram um argumento técnico: como esses temas estavam fora do Plano Nacional de Educação (PNE), acrescentá-los na BNCC iria contrariar o que foi aprovado pelo Congresso Nacional em 2010. Posto isso, o MEC retirou da ter36

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ceira versão da Base os termos “gênero” e “orientação sexual”, afirmando que o tema gênero havia provocado muita controvérsia. Para Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a supressão descumpre marcos nacionais e compromissos internacionais firmados pelo Brasil, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que preveem uma Educação sem discriminação de gênero e uma postura ativa do Estado no estabelecimento de políticas de equidade. “O Brasil é signatário e atua na contramão dessa forma”, ressalta a coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Apesar de excluído o termo gênero, a ideia de diversidade continuou presente nas habilidades e competências dos documentos. Com isso, é permitido e possível abordar a desigualdade de gênero na escola. O assunto, porém, nem sempre é fácil de entrar na Glossário sala de aula. Uma das primeiras ID E O L O GI A barreiras é enfrentar o medo de D E GÊ NERO não dar conta do tema. Em 2007, Nome usado o MEC produziu o curso Gênero por pensadores e Diversidade na Escola (GDE) conservadores para abarcar qualquer Formação de Professoras/es em Gêdiscussão sobre nero, Sexualidade, Orientação Seas diferenças nas xual e Relações Étnico-Raciais, identidades sexuais, orientações sexuais atualmente indisponível. No etc. Esse movimento entanto, é possível buscar matetem início em 1975, riais na internet e estudar por numa campanha iniciada pelo conta própria. Professor da rede Vaticano quando a municipal de Camboriú (SC), ONU marca o ano Robson Fonseca acredita que a internacional da luta pelos direitos das formação o deixou mais sensível mulheres. às questões de gênero e mais capacitado para intervir em situações concretas. “Durante o curso, fiquei muito mais sensível às questões de gênero e também de violência. Passei a prestar mais

Fonte do Glossário: Carla Cristina Garcia (PUC-SP)

O RIEN TAÇ Õ ES PARA O F UN DA M EN TA L II

AMOR DESIGUAL Questione como os relacionamentos podem ser afetados por desigualdades de gênero. Por exemplo: meninas podem ser proibidas de usar determinadas roupas?

Na minha família Como a cultura e os papéis de gênero impactam a criação de filhos e filhas? Como é na família de cada um? Há diferenças de responsabilidade para meninos e meninas?

SEM ASSÉDIO Dérik relacionou o conteúdo da peça com situações reais: “Muita gente se emocionou”

Valores e instituições Incentive os estudantes a refletir sobre seus valores pessoais e a analisar criticamente a atuação de instituições para a desconstrução da desigualdade. PARA SABER MAIS Confira mais dicas sobre como promover a igualdade de gênero bit.ly/novaescola321

Fontes: Caderno Orientações técnicas de Educação em Sexualidade para o Cenário Brasileiro: tópicos e objetivos de aprendizagem, da Unesco, Vanessa Leite (CLAM) e César Nunes (Unicamp e Abrades)

CAPA / IGUALDADE DE GÊNERO

DIALOGAR E ACOLHER AS DÚVIDAS DAS FAMÍLIAS É FUNDAMENTAL

Glossário F EMI N I S M O Movimento social e político organizado em prol dos direitos da mulher. Tem como foco a tomada de consciência das mulheres como um coletivo humano e da opressão e exploração a que elas são submetidas pela sociedade patriarcal. Não se trata de uma inversão de poder, mas da luta por direitos iguais, pelo respeito à diferença, à singularidade e à igualdade entre os gêneros.

MAIS FORTE Beatriz conta que estudar a desigualdade de gênero fez sentido: “Me fortaleceu”

atenção ao que os alunos vivenciam. Pude ajudar duas estudantes, ambas violentadas pelo padrasto, e o Conselho Tutelar pôde agir para cuidar dos casos. Aprendi também a identificar preconceitos que todos temos”, diz Robson. Outro medo comum é a reação contrária da família. De fato, muitos pais e mães podem sentir desconfiança e expressar o desejo de que o assunto não seja abordado com os seus filhos. Há ainda confusões, como entender que, ao falar da importância da igualdade de gênero, os professores enveredariam pela sexualidade ou falariam de Educação Sexual. Por isso, o diálogo e o acolhimento das dúvidas das famílias são fundamentais. “Nenhum pai quer que a filha sofra nas mãos de um namorado que a humilhe ou a violente. Não quer também que ela deixe de seguir estudando porque tem de casar, como se fosse uma obrigação, uma via sem saída. Quando explicamos que falar sobre igualdade de gênero tem a ver com isso, eles se sentem apoiados pela escola”, explica Miriam Grossi, professora do Departamento de Antropologia e coordenadora do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Por isso, convidar a família para conversar a respeito é a melhor estratégia. Nesse momento, é importante trazer dados concretos, pesquisas e estudos que contextualizem e mostrem a relevância do tema. Por fim, uma terceira barreira que pode aparecer é a comparação de relevância entre os componentes curriculares. Diante de tantos desafios para a escola brasileira e tantos conteúdos que os alunos devem aprender, há espaço para falar de gênero? “Evidentemente, a situação é dramática, mas todas as disciplinas são importantes. Alfabetização não é mais importante do que gênero. O mundo tal como é precisa de muitos campos de conhecimento e habilidades, além de espaços de diálogo variados”, defende Miriam. 

E N T R E V I S TA L U A N A P E R E I R A D A C O S TA

“É importante estar atento ao bullying racista” As meninas negras sofrem mais preconceitos: são vistas como objetos e menos capazes NOVA ESCOLA As mulheres brancas e as negras

estão em situação de igualdade no Brasil? LUANA PEREIRA DA COSTA Três dimensões revelam a desigualdade entre elas. A primeira é a forma como a sociedade as vê: a branca é considerada frágil e emocional. A mulher negra, resistente e atrativa sexualmente, estereótipos que a desumanizam. A segunda é econômica: as negras têm, majoritariamente, menor taxa de escolaridade, moram em bairros mais vulneráveis e compõem grande parte da parcela de desempregadas. A terceira é subjetiva: a mulher negra sofre com baixa autoestima e não se vê representada pelos padrões de beleza. NE Quais desafios a aluna negra enfrenta?

LPC Além da questão do gênero, ela tem de lidar com o preconceito racial. NE Como a escola pode contribuir para a luta das mulheres negras por igualdade de gênero?

LPC É importante que professores estejam atentos ao bullying racista. A aluna negra, além de ser objetificada vista como menos capaz de aprender, é marcada por ser pobre. É tratada, no geral, como inferior por meninos brancos e negros e por meninas brancas. Outro ponto importante a ser levado em conta pelos educadores é a obrigatoriedade da “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo. Ela dá oportunidade de repensar o que se fala sobre a população negra do passado e do presente. Luana Pereira da Costa é advogada e associada da Organização da Sociedade Civil Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos, em Porto Alegre.

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