UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE CENTRO DE HUMANIDADES CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
GUSTAVO FERNANDES MEIRELES
ENTRE REFUGOS PRECARIZANTES E REFUGOS PRECARIZADOS: PRECARIZAÇÃO E CATAÇÃO DE MATERIAIS RECICLÁVEIS EM FORTALEZA
FORTALEZA – CEARÁ 2009
GUSTAVO FERNANDES MEIRELES
ENTRE REFUGOS PRECARIZANTES E REFUGOS PRECARIZADOS: PRECARIZAÇÃO E CATAÇÃO DE MATERIAIS RECICLÁVEIS EM FORTALEZA
Monografia apresentada ao curso de Ciências
Sociais,
da
Universidade
Estadual do Ceará, como requisito para obtenção do grau de bacharel em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. João Bosco Feitosa dos Santos
FORTALEZA – CEARÁ 2009
M514e Meireles, Gustavo Fernandes Entre refugos precarizantes e refugos precarizados: precarização e catação de materiais recicláveis em Fortaleza / Gustavo Fernandes Meireles – Fortaleza, 2009. 161 f. Monografia – Universidade Estadual do Ceará (UECE), Curso de Ciências Sociais (Graduação). Orientação: Prof. Dr. João Bosco Feitosa dos Santos (UECE) 1. Sociologia do Trabalho. 2. Catadores de materiais recicláveis. 3. Trabalho precário. 4. Lixo – Reciclagem. I. Título CDU – 331
GUSTAVO FERNANDES MEIRELES
ENTRE REFUGOS PRECARIZANTES E REFUGOS PRECARIZADOS: PRECARIZAÇÃO E CATAÇÃO DE MATERIAIS RECICLÁVEIS EM FORTALEZA
Monografia apresentada ao curso de Ciências
Sociais,
da
Universidade
Estadual do Ceará, como requisito para obtenção do grau de bacharel em Ciências Sociais.
Aprovado em ___/___/___ Nota obtida: ________
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________________ Prof. Dr. João Bosco Feitosa dos Santos
______________________________________________ Prof. Dr. Geovani Jacó de Freitas
______________________________________________ Profa. Dra. Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel
A todos aqueles que, diante da situação de indignidade a que foram socialmente relegados, tiveram de buscar, no produto do descaso e da opulência, a miséria da sobrevivência.
AGRADECIMENTOS
A Deus – sempre presente e indicando os caminhos, ainda que respeitando nossos desvios de percurso – pela fundamental serenidade na elaboração desse trabalho e por suscitar perseverança durante toda a trajetória acadêmica;
Aos meus pais, Francisco Gentil e Tereza Elizabeth, fonte de inspiração e aconchego, que me amam de forma altruísta, respeitando meus interesses e orgulhando-se de minhas conquistas. A eles não é possível encerrar em palavras meu eterno agradecimento por tudo o que fizeram e fazem a mim e a meus irmãos. Simplesmente agradeço por muito do que sou e pela insistência no ensinamento do rigor no estudo;
Ao meu irmão Rodrigo Hésed, meu maior exemplo de vida e superação, por todos os momentos, desde as brincadeiras infantis – de quem eu já buscava inspiração pela inteligente criatividade –, as conversas (das filosóficas às mais triviais), e sobretudo ao estímulo à leitura e à reflexão, sem os quais seria impossível o prazeroso desafio da escrita;
À minha irmã Regina Lúcia que, apesar da distância física, sempre se faz presente em minha vida, através de suas orações e intenções;
À Lívia de Aquino, alma grandiosa, sempre atenciosa e compreensiva, pela intensidade de vida compartilhada e pelo infinito amor e companheirismo que dá alento ante as dificuldades cotidianas;
Ao Prof. João Bosco Feitosa dos Santos – professor modelar, homem cuja sabedoria não o afastou da simplicidade –, presente em toda minha trajetória acadêmica, pela credibilidade em mim depositada e pelo rigor exigente temperado pela compreensão paciente;
Ao Daniel Valentim, incentivador do meu desenvolvimento intelectual, motivação na minha trajetória que com sua interlocução enriquecedora possibilitou profundos avanços em meus estudos acadêmicos;
Aos catadores que me confiaram suas histórias e me permitiram conhecer mais sobre o universo da catação;
Ao Evaldo Lima, que de mestre passou a grande amigo e companheiro, sem cujos conselhos eu não teria ingressado nos corredores do Centro de Humanidades da UECE, pelas sempre respeitosas colocações e pelo constante convite à reflexão;
Ao Charles Alberto, pela atenção no meu crescimento como pessoa em uma fase nada fácil, pelas inesquecíveis conversas, pelas provocações enriquecedoras e inquietantes, pela alegria sempre contagiante;
Aos irmãos que a vida foi apresentando, André Luis, Raoni Aragão, Leivison Viana, Rodrigo Santos, Marlus Alves, pela presença constante em minha vida, na forma de aprendizado, crescimento mútuo, e pelo compartilhamento de bons e maus momentos;
À Monalisa Soares, pela generosidade e disposição de sempre, capazes de transformar tristeza em alegria; ao Marcelo Castro, pelo encorajamento, pelas críticas, por sempre suscitar criatividade e pelos convites aos sonhos de uma sociedade melhor; ao Saulo de Azevedo, pela sabedoria serena e pela eterna solicitude; à Tatiana Valente, pelas loucuras nunca vazias, pela invocação ao movimento; a todos estes que, juntos e individualmente, marcaram de forma substancial minha vida;
A todos que me apoiaram, afetiva e intelectualmente, e que participaram desse processo, muito obrigado.
“Cata papelão Latinha, sujeira cata lixo, cata lixo, emoção A vida que escapa da mão A vida é um pedaço no chão Teu dia termina e o meu não tem fim Teu lixo desprezo é dinheiro pra mim Eu vejo a cidade os olhos de lixo Nem prédios nem prata só cacos de vidro A rota é Montese, é Vila-união, Arame farpado, ando na contramão, Serrinha, Pici, Pirambu, Castelão Daí tu me vês suado e cansado, Barriga vazia e o carrinho, lotado, A descida é legal, e a subida é fatal Seu lixo não parece com o meu, O passado rasgado, e o que apodreceu, Entre os carros meu carro, carinho de cruz Não se espante você pareço Jesus A latinha é o ouro, o kilo o real, Os sonhos, os vermes, fedor colossal, Palhaço sem riso grã-circo Fortal Não sei quem eu sou Se é que vou ser Se é homem-urubu Mulher guabiru Você não me viu, mas eu vejo você!!! No lixo!!! Tudo virará lixo!!! Teu amor de lixo !!! O futuro é lixo!!! Onde está seu lixo??? Lixo!!!” (Catador de Lixo (o Reciclador do Mundo)) Atitude S/A)
“Os coletores de lixo são os heróis não decantados da modernidade” (Zygmunt Bauman, Vidas desperdiçadas)
“Sobrevivendo de restos Do que era resto Fez-se o necessário. A sombra das sobras Da soberba do desperdício, Fez-se vida do que era lixo Fez-se o contrário” (Tânia Urbano)
“Esse povo mais velho dizia que ia chegar um tempo que o ser humano ia puxar carroça que nem animal. Olha aí, é só o que a gente vê os cabras puxando essas carrocinhas, no meio do mundo” (Geraldo, catador da Associação Reciclando)
RESUMO
A crise do trabalho formal intensifica a prática de ocupações informais desafiadoras à dignidade humana, como a catação de recicláveis. Estima-se que haja em Fortaleza oito mil catadores nas ruas. Reféns do desemprego e do discurso ambientalista, esses “refugos humanos” recorrem à catação como forma de sobrevivência e inclusão precarizante. Com baixa instrução, qualificação e história de vida e de trabalho marcadas pela exclusão, esses trabalhadores contribuem para uma indústria lucrativa e aviltante, que usa o crescente discurso ambientalista em favor de sua lucratividade. A pesquisa buscou compreender o trabalho dos catadores em Fortaleza, discutindo suas relações, condições e organização de trabalho, bem como os impactos dessa atividade em suas vidas. Metodologicamente, a pesquisa recorreu a estudos de documentos e bibliográficos e teve como ferramentas empíricas a observação etnográfica e entrevistas semi-estruturadas com catadores em dois locais de trabalho distintos, uma associação e um depósito. Os dados foram analisados com base em análise de conteúdo e subsidiados por dados do “Diagnóstico da situação socioeconômica e cultural do catador de materiais recicláveis de Fortaleza”, realizado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza. Os resultados revelam uma pretérita situação de precariedade de vida desses sujeitos, marcadas por histórias de trabalho informal, e manutenção dessa situação pelo processo de precarização associado ao trabalho da catação. A atividade caracteriza-se pela falsa autonomia, extrema precarização, manutenção da precariedade, exploração, preconceito e intenso sentimento de exclusão e identificação dos trabalhadores com os refugos coletados. Não obstante, é possível observar sensíveis distinções entre catadores do depósito e da associação no que tange ao grau de precarização. Neste local, apesar de não se debelar a precarização laboral, um conjunto de elementos e ações concorrem para mitigá-la, em seus aspectos materiais e simbólicos, buscando conferir sentido ao trabalho e auto-reconhecimento dos trabalhadores como sujeitos de direitos.
Palavras-chave: Precarização do trabalho, Catadores de material reciclável, Reciclagem.
ABSTRACT
The standard labour crisis intensifies the development of informal employment that challenge the human dignity, like waste picking. The data estimates that in Fortaleza there are eight thousand waste pickers. Hostages of unemployment and ambientalist rhetoric, these “human refuses” turn over to garbage as a way of survival and precarizating inclusion in the labour world. These unskilled workers are characterized for exclusion of life and work stories and contribute to a profitable and degrading industry that uses the increasing ambientalist rhetoric to grow their profits. This research had attempted to comprehend the work of the waste pickers in Fortaleza, discussing their relations, conditions and organization, as well as the impacts of this activity in the workers’ lifes. Methodologically, the research based on documental and bibliographic studies has utilized as empiric tools the ethnographic observation and semi-structured interviews with wastes pickers of two distinct work places, a workers’ association and a warehouse. The data was analyzed by content analysis method and compared with data of the “Diagnosis of the cultural and socioeconomic situation of Fortaleza’s waste pickers”, made by the City Hall, in 2006. The results reveal a previous precarious situation of these agents – whose life is scared by stories of informal work – and maintenance of this situation by the precarization process associated with the waste picking work. The activity of waste pickers is characterized by false autonomy, extreme precarization, maintenance of the precariousness, exploitation, prejudice and intense feeling of social exclusion and of identification with the garbage collected. Nevertheless, it’s possible to notice sensible distinctions between waste picker linked to warehouses and those of associations concerning precarization intensity. In the association, although the work precarization isn’t eliminated, a gathering of factors, material and symbolic, alleviate this process, by material and symbolic aspects, seeking to permit another sense and the self-recognition of the workers as subject of rights.
Key-words: Work precarization, Waste pickers, Recycling.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FOTO 01: Criança catadora de lixo na Indonésia
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FOTO 02: Criança catadora de lixo na indonésia
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FOTO 03: Entrada do terreno do depósito de Zé Bezerra
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FOTO 04: Foto com vista partindo da área de pesagem para a entrada principal do depósito
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FOTO 05: “Escritório” de Zé Bezerra
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FOTO 06: Catador bebendo água na área de pesagem
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FOTO 07: Área central do depósito
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FOTO 08: Estacionamento de carrinhos
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FOTO 09: Construções no fundo do terreno para depósito de material já separado
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FOTO 10: Casa do deposeiro nos fundos do terreno
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FOTO 11: Um dos caminhões do depósito
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FOTO 12: Catador levando material para o caminhão
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FOTO 13: Área central do depósito
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FOTO 14: Área lateral para depósito de material separado por tipo
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FOTO 15: Fachada da associação
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FOTO 16: Pátio após o portão principal de onde se vê o elevador e os prédios centrais
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FOTO 17: Pátio principal. Container e tambores para depósito do material refugado ao fundo
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FOTO 18: Caminhão disponibilizado pelo Governo do Estado à associação
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FOTO 19: Cozinha. Vê-se a geladeira, liquidificador e louça
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FOTO 20: Cozinha. Vê-se o fogão e a pia
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FOTO 21: Material acumulado no corredor entre os prédios
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FOTO 22: Área de pesagem. Catador pesa material trazido por doação ao Projeto Ecoelce
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FOTO 23: Área atrás do prédio do escritório, onde há cobertas improvisadas e depósito de bags
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FOTO 24: Coberta adaptada para guarda de materiais coletados por catador
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FOTO 25: Galpão coberto para depósito de materiais separados por tipo
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FOTO 26: Galpão coberto para depósito de materiais separados por tipo
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FOTO 27: Catadores separam material em área coberta localizada no pátio dos fundos
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FOTO 28: Crédito de bônus de energia para doadora do Projeto Ecoelce
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FOTO 29: Escritório da Associação Reciclando
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FOTO 30: Banheiro localizado dentro do escritório
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FOTO 31: Quartinho de despejo do condomínio aonde seu Teixeira coleta material
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FOTO 32: Quartinho de despejo do condomínio aonde seu Teixeira coleta material
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FOTO 33: Funcionário do condomínio traz o lixo coletado. À esquerda a carroça do senhor que veio buscar o lixo orgânico
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FOTO 34: Funcionário do condomínio despeja o lixo no quartinho de lixo
103
FOTO 35: Teixeira e seu colega separam o material
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FOTO 36: Seu Teixeira separa o material, dentro do quartinho de lixo
104
FOTO 37: Seu Teixeira inicia o caminho de volta
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FOTO 38: Os carros passam muito perto do catador
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FOTO 39: Pausa para descanso sobre o viaduto
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FOTO 40: Travessia sobre o viaduto com o carrinho cheio
106
FOTO 41: Catador segue pela BR-116
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FOTO 42: Parada para ajeitar material que caiu do carrinho
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FIGURA 01: Croqui do depósito de Zé Bezerra
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FIGURA 02: Croqui da Associação Reciclando
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
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2. ENTRE O ÓCIO VAGABUNDO E O TRABALHO PRECARIZANTE 2.1. Um duelo moral: Ética do Trabalho x Ócio forçado 2.2. Trabalho volátil em modernidade líquida 2.3. Alta produtividade de frágeis relações de trabalho
21 21 26 32
3. PROBLEMAS AMBIENTAIS; SOLUÇÕES DE MERCADO 3.1. “O mundo tá muito doente” 3.2. A preocupação ambiental e o lucro das boas ações 3.3. O mercado da alquimia
39 39 43 50
4. CATADORES: HERÓIS NÃO DECANTADOS DA MODERNIDADE 4.1. A catação de materiais recicláveis no Brasil e no mundo 4.2. As importâncias atribuídas ao trabalho do catador 4.3. Os catadores de materiais recicláveis em Fortaleza
55 60 64 67
5. AMBIENTES E CONDIÇÕES DO TRABALHO DE CATAÇÃO 5.1. Lugares da catação 5.1.1. O depósito de Zé Bezerra 5.1.2. A Associação Reciclando 5.1.3. Em meio a precarizações e precarizações 5.2. No asfalto com seu Teixeira 5.3. Uso de drogas entre os catadores
76 76 77 85 94 97 108
6. PRECARIEDADE EM CENÁRIO CONCRETO E DESPRECARIZAÇÃO SIMBÓLICA COMO ALTERNATIVA DE INCLUSÃO 6.1. A precarização da precariedade 6.2. A catação como atividade laboral 6.3. Preconceito e Reconhecimento: uma confusa relação 6.4. Na rota da desprecarização simbólica
111 113 119 128 136
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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ANEXO – ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA
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INTRODUÇÃO
Noite e dia, dia-a-dia, a cidade é percorrida por milhares de trabalhadores incomuns. O instrumento de trabalho, qual casa ou refúgio que se leva às costas, é arrastado léguas a fio por longuíssimas jornadas, que muitas vezes terminam com os astros marcadores das horas em posição antípoda à inicial. Anda, pára, abre saco, vira, mexe (o desagradável odor já lhe é indiferente); mais refugo para dentro do carro sem farol, sem banco, sem conforto. Ao contrário, esse é o carro contestado, é aquele que atrapalha o trânsito dos carros legitimados e que tem como motor a força humana desses sujeitos, homens e mulheres, cujo ofício é sobreviver. Mesmo sem rosto eles me encararam. Estampadas em grandes telas, as figuras esquálidas e estáticas, repousadas sobre as paredes de uma galeria de arte, gritavam-me uma situação que minhas lentes oculares não haviam captado em movimento, na verdadeira galeria daquelas invisíveis cenas cotidianas: as ruas da cidade. Assim, antes mesmo de adentrar os corredores da academia, as marcas do pincel de Descartes Gadelha chamaram a minha atenção para uma situação a qual até então meu olhar imerso na cotidianidade não permitia enxergar com tal ênfase: o trabalho dos catadores lixo. A partir de então, é como se aqueles sujeitos, que já estavam presentes às ruas pelas quais eu transitava, surgissem, tomassem novas formas. Era possível percebê-los como sujeitos sujeitados à negação de vários direitos. Dois anos mais tarde, já no ambiente acadêmico, a primeira oportunidade de pesquisa me convida a conhecer um pouco mais sobre o trabalho e a vida desses indivíduos. O ensaio de pesquisa permitiu um maior contato com os trabalhadores que percorriam a cidade em busca do prestável dentro daquilo que fora considerado imprestável pela sociedade de consumo na era da descartabilidade. Os primeiros contatos com os catadores nas ruas, geralmente em seus momentos de descanso, em suas rodas de conversa, me encaminharam a espaços de debates acerca das condições de trabalho da categoria, o que foi sobremaneira relevante para esclarecer um pouco das peculiaridades desse universo laboral, ao tempo que me instigava uma inserção maior no campo de estudo acerca do trabalho de coleta de materiais recicláveis. Dentre os espaços de debates, a primeira participação ocorreu em uma reunião do Fórum Estadual Lixo e Cidadania, promovido, em Fortaleza, pela Cáritas do Brasil em parceria com a Pastoral da Rua. Nesse primeiro momento, a dúvida e a curiosidade foram as
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principais mediadoras, sendo profundamente marcado pela voz daqueles trabalhadores; voz de corpo, olhar, mãos. O círculo de olhares que se entrecruzavam durante os encontros e a paulatina inclusão desses sujeitos no meu roteiro diário de visão, já representava um momento diverso daquela ação observada nas paredes da galeria e permitiu-me adentrar numa temática de considerável relevância, haja vista o notável crescimento abrupto dessa categoria de trabalho, que tem como favorecedores o desemprego estrutural, o potencial reciclável dos crescentes rejeitos urbanos e a existência de um rico mercado de reciclagem. Os contatos iniciais me apontavam a busca por sobrevivência empreendida por esses sujeitos, mas paralelamente indicavam a procura por dignidade, ainda que com trabalho tão precário, vez que a desocupação parece ser um desvalor maior ainda que a precariedade do ofício a que não se tem escolha, na busca de se manter “incluído”, mesmo que mediante um trabalho com essa característica, já que a possibilidade de um emprego parece remota. Considerando emprego como o trabalho inserido dentro de uma relação de troca e recompensa financeira firmado por um contrato, essa modalidade de trabalho ultrapassa uma mera relação técnica de produção, podendo ser vista como um “suporte privilegiado de inscrição na estrutura social” (SANTOS, 2000, p. 49). Visto desta forma, o desemprego não só significa a impossibilidade de sustentar a si e a outrem como é também construtor de uma representação de que o não trabalhador, especialmente o desempregado, é considerado um apêndice da sociedade, um vadio, um inútil. O emprego garante, portanto, um lugar social privilegiado, e na sua impossibilidade os indivíduos buscam formas alternativas de sobrevivência pelo trabalho que nem sempre lhes permitem viver com dignidade, mas apenas existir. De fato, com a crescente precarização do trabalho formal (emprego) em conseqüência da substituição de trabalho vivo (força de trabalho), por trabalho morto (ciência e técnica), as formas alternativas de subsistência se ampliam no estágio atual do capitalismo, recriando novas modalidades de trabalho informal e de subemprego. O grande contingente de refugados gerado por essa precarização, motivado pela necessidade de sobrevivência, busca em qualquer forma de trabalho um meio para o seu sustento. Um dos meios é a catação daquilo que a sociedade produz em larga escala e rejeita: o lixo, o refugo da sociedade de consumo na era da descartabilidade. O surgimento de indústrias de reciclagem, amparada na descoberta do lixo como potencial gerador de lucros e, favorecido pelo crescente discurso ambientalista, tornou possível o crescimento de uma categoria de trabalho informal, há poucos anos bastante
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inexpressiva, constituída pela massa de trabalhadores rejeitados pela lógica do capital: o catador de lixo nas ruas das cidades. Segundo pesquisa da Prefeitura Municipal de Fortaleza (2006), presume-se na cidade a presença de seis a oito mil catadores e catadoras de resíduos sólidos recicláveis realizando seus trabalhos em uma Cidade que produz por volta de três mil toneladas de lixo por dia, segundo a SEMAM – Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Controle Urbano. São trabalhadores informais, em sua maioria, moradores de rua, catadores avulsos (apesar de uma minoria que se organiza de forma associativa), funcionários de sucatas, jovens, velhos e até crianças, desamparados pelo poder público apesar de terem sua ocupação reconhecida pelo Ministério do Trabalho em 2002 em decorrência da atuação do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Trata-se de trabalhadores que se inserem em uma atividade laboral ainda mais precarizante do corpo e da subjetividade desses indivíduos, refugos precarizados que buscam sobrevivência em meio a um refugo que aprofunda seu estado de precariedade, o lixo. Discutir o tema é estar, então, entre refugos precarizados (os trabalhadores, homens e mulheres cujo ofício é a catação) e refugos precarizantes (o lixo, material que tanto lhe assegura o sustento como é o objeto metonímico de seu trabalho precarizante). Diante disso, a presente pesquisa tem por objetivo compreender o trabalho dos catadores de lixo, tendo duas situações distintas como objeto: os vinculados a depósitos (também chamados de avulsos) e aqueles organizados em formas associativas, identificando as condições e organização de trabalho e discutindo os impactos da precarização da atividade nos sujeitos da catação. Como norte, instiga-me esclarecer determinadas questões relativas ao trabalho e à vida dos catadores de materiais recicláveis: que fatores concorrem para impulsionar o crescimento dessa categoria em Fortaleza? Qual o perfil desses trabalhadores e como é o seu cotidiano? Qual a relação entre a precarização do trabalho no mundo contemporâneo e a atividade de catação? Quais os impactos dessa precarização nos sujeitos da catação? Quais as discriminações sofridas por esses sujeitos na sua rotina de trabalho? Como esses trabalhadores percebem a discriminação sofrida por conta do exercício de sua atividade laboral? Quais as motivações para os catadores permanecerem vinculados a um depósito ou reunirem-se em cooperativas? Que tipos de estratégias os catadores engendram ante a precarização da atividade e como forma de ressignificação da atividade no sentido de uma desprecarização simbólica do trabalho?
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Empiricamente, a pesquisa foi delimitada em um depósito de materiais recicláveis e em uma associação de catadores localizados na cidade de Fortaleza. Ambos os locais escolhidos localizam-se no bairro Tancredo Neves, zona periférica de Fortaleza e o acesso aos locais foi facilitado por contatos prévios tanto com o dono do depósito, Zé Bezerra, como com catadores da Associação Reciclando. O fator que contribuiu na escolha do local foi, além da facilidade do acesso, a possibilidade de entrar em contato com dois locais distintos em termos de organização do trabalho de catação localizados a uma pequena distância e inseridos em uma mesma realidade sócio-geográfica. A opção pelas ferramentas metodológicas de natureza qualitativa teve como fundamento o pressuposto de que a riqueza de significados, envolvidos no universo laboral da catação de materiais recicláveis exigia, para sua compreensão, uma maior aproximação minha dos indivíduos e dos seus locais de trabalho. Mesmo porque as questões inicialmente levantadas demandam uma abordagem de cunho muito mais subjetivo, por permitir uma análise no plano dos significados, motivações, valores, não perceptível por uma análise meramente objetiva. Contribuiu ainda para esta opção, a existência de um satisfatório acervo de dados quantitativos, disponíveis no citado diagnóstico, realizado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, que foram posteriormente cotejados no momento da análise das entrevistas e das anotações de campo. Dessa forma, foram realizadas etnografias nos locais escolhidos, momento em que busquei observar pequenos detalhes como instalações, organização, asseio, relações entre os sujeitos, rotina de trabalho, tanto no depósito como na associação, porquanto são elementos que repercutem na precarização da atividade laboral dos catadores. Esses dados foram posteriormente analisados em conjunto com as informações obtidas nas entrevistas de forma que a metodologia aplicada buscou constante diálogo com os dados estatísticos levantados pela Prefeitura, as anotações das etnografias realizadas e as falas dos catadores durante as entrevistas. A pesquisa de campo teve início com a realização de etnografia nos locais de trabalho escolhidos. Antes de chegar propriamente ao depósito e à associação, busquei conhecer um pouco o bairro onde estão localizados. A facilidade do contato prévio com o deposeiro, bem como com catadores da associação favoreceu o contato inicial. No curso da etnografia, foi sendo criado ambiente propício à realização de entrevistas que buscassem obter informações mais a fundo sobre a realidade de trabalho dos catadores. Assim, após esse primeiro momento, foram realizadas seis entrevistas semi-estruturadas com catadores
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associados e avulsos (catadores que trabalham vinculados a depósitos). O roteiro de entrevista (vide Anexo) foi construído de forma a abordar a história de trabalho dos catadores, suas primeiras atividades laborais, e a atividade imediatamente anterior à catação de materiais recicláveis. Também buscou-se contemplar com o roteiro semi-estruturado questões relacionadas às condições de trabalho vivenciadas pelos catadores. Interessante observar que o contato prévio e durante as primeiras entrevistas logo foram suscitadas a abordagem de questões e temáticas antes não previstas como o uso de droga por parte dos catadores. Nessas situações, a flexibilidade dos procedimentos qualitativos permite redirecionar o caminho do conhecimento (MINAYO, 2000), incluindo no roteiro o que parece importante e inesperado. Dada a delicadeza do tema de uso de drogas surgido, procurei abordá-lo doravante de forma sutil, incluindo-o quando os próprios catadores falavam a respeito, ou mesmo perguntando a respeito de forma genérica, não direcionando a questão ao catador específico, mais se os entrevistados achavam aquela uma prática comum entre os trabalhadores da categoria. Outra questão inusitada que surgiu na pesquisa ao depósito foi a informação de que a maioria dos catadores vinculados ao estabelecimento eram egressos do sistema penitenciário, libertos ou fugitivos de prisões, o que no início me deixou reticente a continuar, mas que em nada obstou a continuidade das observações, senão em relação à proposta de acompanhar um catador do depósito em sua jornada de trabalho. As seis entrevistas foram equitativamente divididas entre catadores da associação e do depósito; em relação ao depósito, dada a existência, segundo informações do deposeiro, de apenas seis mulheres dentre os oitenta catadores que freqüentam o depósito, as entrevistas foram limitadas entre os catadores, por tratar-se de um ambiente eminentemente masculino. Já na associação, onde a presença feminina tem maior peso, foi realizada uma das entrevistas com uma catadora. Inicialmente duas entrevistas foram pensadas a serem realizadas com catadoras na associação; ocorre que resguardei o direito de recusa de duas das outras catadoras presentes nos dias das visitas, que preferiram não ser entrevistadas. Como no presente trabalho não há corte de gênero, penso não haver incidência considerável a prejudicar a metodologia utilizada, sobretudo porque o número de entrevistas em procedimentos qualitativos é menos importante que a profundidade com que são conduzidas. A escolha dos catadores a serem entrevistados se deu pela disponibilidade de presença no momento das visitas, bem como pela anuência dos catadores, pois alguns preferiram não conceder-me entrevistas. Há que se ressaltar que todas as entrevistas foram precedidas de clara e expressa anuência dos catadores, que, embora não tenham firmado
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termo de anuência específico, assentiram verbalmente à participação na pesquisa com a concessão da entrevista. Outrossim, todos os nomes dos entrevistados foram alterados, de forma a preservar suas identidades. Com o mesmo propósito optei por omitir o nome do depósito visitado. Logo, durante todo o texto os nomes que se encontrarão nas páginas subseqüentes são fictícios, em substituição aos nomes verdadeiros de meus interlocutores. As entrevistas foram analisadas com base em metodologia de análise de conteúdo, na perspectiva de Bardin, levando-se em conta mais a representatividade das mesmas do que a recorrência com que eram repetidos certos conteúdos de falas, apesar de não se ter desconsiderado esse importante fator no momento do processamento desses dados. Paralelo à realização de observação nos referidos locais e das entrevistas na associação e no depósito, foi proposto o acompanhamento da jornada de trabalho de um catador de cada local durante seu percurso de coleta nas ruas. A estratégia de pesquisa foi pensada em vista da possibilidade de conhecer melhor as condições de trabalho dos catadores durante a execução da atividade mais exigente e nuclear do ofício. Seria ainda um momento mais longo de contato entre pesquisador e pesquisado com possibilidade maior apropriação dos saberes e fazeres desse tipo de trabalhador, além de melhor oportunidade de visualizar manifestações de preconceito, bem como as redes de solidariedade que se desvelam ao longo do caminho; em suma, uma importante oportunidade de observação de sua jornada de trabalho. Durante as visitas ao depósito de Zé Bezerra, não obstante as várias propostas para acompanhar algum catador, além de pedido de indicação para catadores que trabalhavam internamente, os próprios catadores, reforçados pelo deposeiro, recusaram indicar-se ou indicar alguém, em razão dos riscos à minha segurança, pela especificidade do perfil de expresos dos trabalhadores vinculados ao estabelecimento. Em verdade, os catadores me encorajaram a não realizar o trajeto etnográfico. Dessa forma, no intuito de preservar minha segurança, a proposta inicial de acompanhar um catador do depósito não pôde ser posta em prática. Contudo, na associação foi possível acompanhar um catador, o seu Teixeira, em uma jornada de trabalho. De fato, momentos de relevante importância para um maior conhecimento do ofício da categoria. Por fim, acrescente-se que além das entrevistas, durante as visitas à associação e ao depósito foram registradas fotografias (dispostas no capítulo 5) que permitem uma melhor visualização dos locais de trabalho dos catadores de materiais recicláveis. Nas fotografias busquei enfocar mais as estruturas dos locais do que os sujeitos, em respeito àqueles que não
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desejariam ser expostos. De toda forma, todas as fotografias foram também previamente autorizadas e somam-se aos croquis dos locais que esboçam a estrutura geral dos locais visitados. Ainda em relação aos registros fotográficos, o acompanhamento da jornada de trabalho de seu Teixeira está também representado em imagens. Dessa forma, o texto está dividido em cinco capítulos, iniciando-se com uma análise acerca da importância que o trabalho tem na contemporaneidade como atividade que garante não apenas o sustento material, mas ainda um lugar social. A importância socialmente atribuída esbarra na dificuldade que torna quase impossível o acesso ao trabalho para boa parte da população, fator crucial à inserção de indivíduos precarizados na precarizante atividade de catação de materiais recicláveis. No capítulo seguinte analiso outros fatores que concorrem com a dificuldade de inserção no mundo do trabalho, tais como a existência de um rico mercado de reciclagem, supedaneado pelo crescente discurso de proteção ao meio ambiente. A importância em analisar esses aspectos residem no fato de os catadores serem agentes de grande relevância para a cadeia de reciclagem, mas ocuparem tão-somente seu elo mais frágil, havendo a possibilidade de maior controle do processo por parte de grandes empresas, excluindo ainda mais o catador do processo. No terceiro capítulo é discutida a catação de materiais recicláveis como atividade laboral que se desenvolve em diversas partes do mundo, a organização desses trabalhadores em diversos locais, as importâncias atribuídas ao catador, reconhecido por muitos autores estudiosos do tema como agentes contribuintes da gestão de resíduos sólidos e atuantes como importantes agentes ambientais. O capítulo se encerra com um delineamento do perfil dos catadores em Fortaleza, tendo como base dados estatísticos do referido diagnóstico sócioeconômico realizado pela Prefeitura de Fortaleza. O quarto capítulo tem como foco a apresentação dos dados qualitativos produzidos a partir da etnografia nos locais visitados, apresentando as condições de trabalho tanto no depósito como na associação, além da apresentação das observações realizadas durante o acompanhamento de um catador (da associação) durante sua jornada de catação. Por fim, o quinto e derradeiro capítulo constitui o clímax da proposta de discussão, apresentando-se análise das entrevistas em cotejo com dados do diagnóstico da Prefeitura e verificando as motivações dos catadores para iniciarem-se nessa atividade laboral, suas histórias de trabalho e a relação do trabalho de catação com a situação de precariedade em que vivem. Busquei ainda analisar as representações acerca do significado do trabalho, as
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dificuldades freqüentemente percebidas, aspectos que os catadores consideram positivos na atividade e as perspectivas desses sujeitos. Em tópico específico discuto a forma como os catadores percebem que a sociedade o vê e o preconceito associado ao exercício do trabalho no lixo. O texto se encerra com uma discussão de fatores que atuam em contraposição àqueles que compõem o caráter precarizante do trabalho de catação.
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2. ENTRE O ÓCIO VAGABUNDO E O TRABALHO PRECARIZANTE
2.1. Um duelo moral: Ética do Trabalho x Ócio forçado “Vai trabalhar, vagabundo, vai trabalhar, criatura” (Chico Buarque)
Foi nos idos da década de 1930; tempos áureos do rádio brasileiro. A polêmica começou quando o Poeta da Vila, Noel Rosa, resolveu contestar a apologia à malandragem de Wilson Batista, que assim dizia em sua música “O que será de mim”: “Se eu precisar um dia / De ir pro batente / Não sei o que será / Pois vivo na malandragem / E vida melhor não há...”. Noel, embora malandro, chamou Wilson de “Rapaz folgado”: “Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / Tira do pescoço o lenço branco / Bota sapato e gravata / Joga fora esta navalha que te atrapalha”. O quiprocó musical não parou por aí (ALBIN, 2004, pp. 134-136), mas o caso encerra questões para muito além da cadência bonita do samba. Leva-nos a refletir acerca da valorização apologética ao trabalho ante ao perigo da vadiagem. O trabalho cuja razão encontrava-se nas relações de servidão deu lugar – não sem as lutas dos sujeitos envolvidos no longo processo histórico – ao trabalho assalariado, pretensamente livre, em que ao trabalhador é conferida a possibilidade de negociar contratualmente sua mão-de-obra. Assim, a modernidade trouxe no bojo da revolução industrial uma forma de subordinação racional (por óbvio que com suas inúmeras micro formas) que se contrapunha à ordem anterior (WEBER, 2005, p. 29-32). Tratava-se do desenvolvimento de técnicas de produção propriamente ditas, mas também de técnicas gerenciais (idem, ibidem) que submetiam o corpo a uma docilidadeutilidade baseada em processos disciplinares e controle do tempo que acompanhavam o desenvolvimento capitalista. Assim, diversamente da subordinação servil, a disciplina do trabalho moderno apontava a um domínio do corpo voltado à consecução de objetivos pragmáticos: aprendizado escolar, formação militar, produção laboral (FOUCAULT, 1987, p. 117-119). Assim é que Foucault entende a disciplina como poder de fabricar corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”:
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A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma diminuição acentuada. (IDEM, p. 119).
Como se vê, não é à toa que os vários sentidos etimológicos do termo trabalho relacionam-se à submissão, ao suplício, ao sofrimento, à tortura (ALBORNOZ, 2000). Santos (2001) recorda que de há muito o trabalho já fora instituído como maldição condicionante da sobrevivência humana, “para que o homem provasse a Deus o reconhecimento de sua culpa e o seu arrependimento da transgressão original” (SANTOS, 2001, p. 43). Trazendo a concepção para um plano mais mundano, Marx (1978) entende ser este o elemento estruturante na relação dos homens entre si e a natureza, sendo esta capaz de ser transformada por meio do trabalho. O trabalho, em si, é um movimento dialético e na medida em que o homem atua sobre as coisas, atua também sobre si:
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla o seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços, pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. A atuar, por meio desse movimento sobre a Natureza externa a ele, e ao modificá-la, ele modifica a sua própria natureza. (MARX, 1978, p. 148)
Daí que antes do enaltecimento do trabalho pelo Poeta da Vila, foi preciso que o trabalho estivesse vinculado a uma forma de virtude, capaz de engrandecer o trabalhador e mesmo conferir-lhe identidade. E é moderna a concepção de que o homem se faz a si mesmo como ser humano através do trabalho. Weber (2005) analisa o trabalho como um instrumento de ascese que terminou por permitir o desenvolvimento de um modelo econômico fundado no trabalho racional, mas mirando a salvação da alma. O autor observa que o capitalismo contemporâneo, nascido no ascetismo religioso, caminhava a um ceticismo invocando o trabalho como uma vocação, sim, mas não mística. Todavia, o legado do ascetismo continuou a identificar o trabalho como
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virtude, de forma que “a visão do trabalho como vocação tornou-se característica do trabalhador moderno” (WEBER, 2005, p. 133). O trabalho no mundo contemporâneo ocupa posição de centralidade na vida social. Assim, é possível identificar o sujeito pela sua ocupação, pelo tipo de trabalho que exerce. O trabalho, portanto, inscreve o sujeito (ser que age, sobretudo, trabalhando) no mundo e o grava em um lugar social. Pode-se ir além, afirmando que o trabalho significa para o trabalhador uma forma de afirmar sua identidade por meio de atribuições individuais tangentes à realização da tarefa. Essa característica é ressaltada por Santos (2001, p. 46), quando, citando Forrester (1997) afirma que “o trabalho é estruturante e estruturado no capitalismo contemporâneo, como uma espécie de habitus no sentido em que se refere Bourdieu”. De fato, o contato com os catadores de materiais recicláveis tornou possível a constatação da importância do trabalho para além de um meio de sobrevivência, mas também como uma atividade subscritora de sua cidadania. Nesse sentido, se tomarmos a acepção de cidadania dada por Arendt (1995) talvez possamos arriscar aduzir que na sociedade contemporânea o trabalho assegura a inserção do sujeito que trabalha num estado de albergue jurídico – ainda que somente potencial –, haja vista que sua referida centralidade no mundo social confere-lhe caráter de pedra angular no construto que garante o “direito a ter direitos” a que se refere a pensadora alemã:
A cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos. (ARENDT, 1995, p. 22)
É, pois, o trabalho um caractere fundamental para o acesso à cidadania, que se contrapõe ao ócio, à desocupação. Por intermédio dos contatos com os catadores de materiais recicláveis, pude constatar a freqüência dessa alusão em suas falas: “Eu prefiro tá aqui, catando lixo, do que tá vagabundando ou roubando. Porque isso aqui é um trabalho!” (Antônio, 38 anos, catador do depósito de Zé Bezerra). Reforçando a observação do catador, interessante perceber que o ócio já é de há muito reprimido normativamente, inclusive com prescrições de severas cominações para os infratores dessa conduta considerada como tipo penal em legislações européias no século XVIII. Souza (1982), versando acerca da vida social e do exercício do poder estatal na região da Minas Gerais ao tempo do ciclo do ouro, aponta para o combate incisivo ao ócio, de forma
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que “os vadios deveriam ser, pois, reprimidos e obrigados ao trabalho” (SOUZA, 1982, p. 128). Em oportuna digressão, para ressaltar a importância do trabalho na sociedade moderna, é válido tomarmos pontualmente de empréstimo o método empreendido por Durkheim (1999) quando objetiva verificar a solidariedade produzida pela divisão social do trabalho em sua clássica obra. Apoiando-se em métodos objetivos – e com forte influência das ciências naturais –, Durkheim pretende estudar as causas a partir dos seus efeitos, adotando o Direito como termômetro das relações solidárias em uma dada sociedade. Assim, afirmando o autor francês que os costumes relevantes são aqueles reproduzidos pelo Direito, termina por lançar mão, ainda que não expressamente, da Teoria do Mínimo Ético – primeiramente exposta pelo pensador inglês Jeremy Bentham e posteriormente aperfeiçoada pelo jusfilósofo alemão Georg Jellinek e que consiste na idéia de que o Direito, em sua forma positiva, representa um mínimo de preceitos morais necessários ao bem-estar da coletividade em um determinado momento da história (REALE, 2002, p. 42). O Direito assume, dessa forma, a função de um tubo de ensaio que permite observar um fenômeno dificilmente mensurável dado seu caráter eminentemente moral. Por esta lente metodológica, vemos a importância conferida ao trabalho e a repulsa ao ócio ao observar que o combate ao ócio encontra prescrição expressa no ordenamento jurídico brasileiro desde os tempos coloniais, como apresentado por Souza (op. cit., 1982), mas tornou-se mais claro e preciso quando da tipificação prevista pelo vetor normativo contido no artigo 295 do Código Criminal do Império, de 1830. Este dispositivo descrevia o crime de vadiagem como aquele cometido nas hipóteses em que “não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir, depois de advertida pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente”. Em severo descompasso com a história – como costuma estar o direito positivo em face dos mutantes padrões sociais –, ainda hoje a vadiagem é considerada um ilícito, não mais como um crime, mas como uma contravenção penal prevista no Decreto-Lei nº 3.688, de 1941, que pune a vadiagem e a mendicância por ociosidade. Curioso observar que esse ávido combate ao ócio em terras tupiniquins parece ir à contramão do nosso “espírito aventureiro” de que fala Sérgio Buarque de Holanda (1995). O autor indica a cultura ibérica como responsável pela nossa colonização marcada por um desleixo, muito mais do que por ser um empreendimento metódico e racional como ocorrera na colonização levada ao cabo na América do Norte. Aqui, em contraponto ao tipo ideal do trabalhador, destacava-se o tipo aventureiro (HOLANDA, 1995, p. 43), que ao invés de
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marcar a colonização por um empreendimento racional, era norteado pela idéia de extrair grandes benefícios sem muitos sacrifícios. Daí a interessante ponderação de Sérgio Buarque quando comenta que a famigerada indolência indígena teria levado ao reconhecimento – ainda que tão-somente ideal – dos gentios como dotados de características das classes nobres, quais sejam a ociosidade, a imprevidência e a intemperança, motivo pelo qual o romantismo nascente teria reservador “ao índio, virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavaleiros, ao passo que o negro devia contentar-se, no melhor dos casos, com a posição de vítima submissa ou rebelde” (idem, p. 56). Em que pesem as críticas ao viés simplista pelo qual se analisa a situação do indígena, a reflexão permite depreender que o trabalho no Brasil não era, de início, um valor tão relevante quanto se tornou após o processo de industrialização e adequação do País ao modelo global contemporâneo. Mas a heterogênea categoria de vadios constituía-se verdadeiramente na caracterização do trabalhador nacional, na medida em que os trabalhadores livres eram nivelados aos mendigos, vagabundos e que não encontravam forma de inserção estável na divisão do trabalho (PRADO JR., 2006), haja vista a larga utilização de mão-de-obra escrava, o que reforçava a concepção de que eram considerados inaptos ao trabalho regular. Santos (2001) observa que esse trabalhador livre, considerado como fruto da vadiagem, é que teria originado o trabalhador assalariado. O trabalhador estaria, portanto, marcado pela mácula do ócio em uma sociedade que valoriza o trabalho como forma básica de inserção em seu meio. Acrescente-se como fator que contribui para a importância do trabalho o fato de ser através dele que, além de garantir a sobrevivência, possibilita-se adentrar as portas do consumo. Do contrário, ficar-se-ia mesmo à margem daquela que Baudrillard (1995) cunhou como sociedade de consumo, onde mais do que coisas, compra-se, sobretudo signos como acessórios postiços para formação da personalidade mediada pela pecúnia (ou pelo crédito infinitamente renovado) e alimentados pela produção incessante de novidade. Nesta senda, a briga em versos musicais de Noel Rosa e Wilson Batista tem como pano de fundo todo esse arcabouço que leva a uma valorização do trabalho como valor capital na sociedade contemporânea.
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2.2. Trabalho volátil em modernidade líquida “Porque emprego já, agora, qualquer emprego, o povo pergunta tem primeiro grau? Tem o segundo grau? Tem não. Então não se emprega não!” (Marlene, catadora da Associação Reciclando)
Ocorre que a despeito de todo o realce em torno do trabalho como um valor social, ele tem sido assazmente desafiado pelas dúvidas postas à mesa da modernidade líquida (BAUMAN, 2001), notadamente as que põem em cheque a segurança das ocupações laborais e a certeza da solidez de uma carreira profissional. Em sua ponderada acidez, Zygmunt Bauman (2005) empreende relevante reflexão acerca do atual momento reprisado em todo o mundo e marcado por dispensas em massa, redução de postos de trabalho, e, por conseqüência, produção de refugo humano. Para o autor, esse refugo não é fruto do desemprego na forma como se compreendia, haja vista que anteriormente o desempregado cumpria a função de compor os exércitos industriais de reserva1, e agora a desocupação forçada tende a não oferecer perspectivas. Dessa forma, afirma o autor que
os desempregados da sociedade de produtores (incluindo aqueles temporariamente ‘afastados da linha de produção’) podem ter sido desgraçados e miseráveis, mas seu lugar na sociedade era seguro e inquestionável. Na frente de batalha da produção, quem negaria a necessidade de fortes unidades de reservas prontas para a refrega quando surgisse a ocasião? (idem, p. 22)
A sociedade parecia repousar em certezas com as quais não se pode mais contar. Assim, se uma boa formação assegurava uma boa ocupação, o atual momento aponta para um questionamento estrutural ao modelo de empregabilidade engendrado ao longo do século XX. Ressalve-se que não cremos ser o caso de chegar ao paroxismo de bradar o fim dos empregos, tal como faz Rifkin (1995), mas de fato, a idéia de pleno emprego que mobilizava o mundo entre os anos 1950 e 1970 (HOBBSBAWN apud SANTOS, 2001) parece não mais reverberar hodiernamente com tanta força, ao contrário, faz mais eco a concepção contrária. Nesse sentido, a luta contra a produção de refugos humanos é muito mais desafiadora que a luta 1
Santos (2001, p. 50) chama a atenção ao fato de que a noção de desemprego como alguém que foi privado involuntária e temporariamente do trabalho surge após a Revolução Industrial e diferiam dos pobres permanentes, sendo, assim, considerados pobres válidos.
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contra o desemprego (ou em prol do emprego), vez que parece ser um caminho análogo a uma ponte que rui após tenebrosa travessia. Bauman, comparando o desafio de cada um desses momentos, entende que no estágio da modernidade a que ele chama líquida2, o retorno é por demais dificultado:
As regras de admissão aos trajetos estabelecidos e as permissões de embarque também não merecem mais confiança. Se não desapareceram de todo, tendem a ser eliminadas e substituídas sem aviso. O mais importante é que, para qualquer um que tenha sido excluído e marcado como refugo, não existem trilhas óbvias para retornar ao quadro dos integrantes. (idem, p. 25).
Todos os pavores observados e vivenciados no mundo do trabalho parecem estar em consonância àquilo que os estudiosos têm apontado como as conseqüências da modernidade (ou pós-modernidade como preferem alguns). O mundo gira cada vez mais veloz, as mudanças abruptas parecem querer solapar todo o complexo de comportamento tradicional. O exorcismo do novo sobre o velho não poupa nem mesmo os ideais iluministas, pretensamente desveladores de uma ordem perfeita sob vários aspectos. É nesse tempo que as seguranças da ordem tradicional parecem abaladas pelos riscos da modernidade. “O mundo em que vivemos hoje é um mundo carregado e perigoso” (GIDDENS, 1991, p. 19). Giddens aponta para profundas alterações da relação tempo-espaço no sentido de uma separação desses conceitos tão ligados no período pré-moderno de forma que se perdeu a crença no progresso, a ciência parece não mais ser capaz de dar respostas para as angustias humanas, que aparecem em maior freqüência e número, a dúvida não é mais estado de exceção. Para Stuart Hall (2006), o sujeito não mais se posiciona de forma clara diante dos elementos de identidade da sociedade, sua identidade permanece sempre aberta a mudanças, não há, como parecia haver nas sociedades tradicionais uma fixidez de papéis assumidos pelos sujeitos. Assim, não espanta a perplexidade causada diante do esfacelamento de um dever alçado à categoria de direito e caminhando para a de privilégio. Aqui se entenda o
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Para Bauman (2001), há duas modernidades, uma sólida e outra, atual, líquida. A primeira seria justamente a que tem início com as transformações clássicas e o advento de um conjunto estável de valores e modos de vida cultural e político. Na modernidade líquida, tudo é volátil, as relações humanas não são mais tangíveis e a vida em conjunto, familiar, de casais, de grupos de amigos, de afinidades políticas e assim por diante, perde consistência e estabilidade. Apesar da interessante reflexão, ela já está de algum modo presente em Marx quando, segundo Marshall Berman (2006), aponta para a ação do éter das revoluções modernas que desmancha tudo que é sólido.
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exagero tomando-se como parâmetro a relação de trabalho estável, calcada em direitos conquistados após longo processo de avanços e retrocessos. Essa situação afigura-se no mínimo irônica se atentarmos ao fato de que o trabalho outrora era a maldição que obrigava a sobrevivência pelo suor do próprio rosto, mas beneficiava as classes nobres, livre do trabalho pela ideologia da servidão. Em Mauá, o Imperador e o Rei, Sérgio Resende (1999) nos presenteia com paradigmática cena: sol a pino; inauguração da estrada de ferro de Mauá. Irineu Evangelista de Sousa pede a D. Pedro II para usar uma pá durante a solenidade. Ledo engano; o imperador-filósofo, que não poupava esforços nos estudos, sentiu-se ofendido com a solicitação do empreendedor, ainda que o carrinho-de-mão, mandado fazer por ele, fosse do mais bem esculpido jacarandá e a pá fosse de prata. Repugnou ao soberano ter que posar como operário. Em contraposição, hoje se vê uma considerável parcela da população que tem condições de se preparar à inserção no mercado de trabalho e, todavia não obtém êxito. Por óbvio que devemos levar em conta dois tipos antípodas de emprego produzidos pelo capitalismo contemporâneo. O primeiro, no topo da divisão social e técnica do trabalho, é o de altas performances técnico-científicas, nos ramos dedicados a pesquisar e programar o progresso técnico, isto é, as novas formas de acumulação. O segundo localiza-se no estrato mais baixo da mesma divisão social e técnica do trabalho: o trabalho mais banalizado, geralmente braçal, como paradoxo do progresso técnico-científico e devidamente instrumentalizado por este. No espaço entre os dois extremos, há uma miríade de ocupações que se encarregam da distribuição e circulação das formas de riqueza e do valor produzidos pelos extremos. Importa ressaltar que aquela estabilidade do trabalho à qual se depositava esperanças e cujo alcance dependia da vontade (e das condições) de preparação para exercício de determinada função almejada já não são tão nítidas ao horizonte. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), apesar do crescimento econômico registrado nos últimos anos, a taxa de desemprego em nível mundial continua subindo e, segundo relatório de 2006 da Organização (UOL NOTÍCIAS, 2007), 195,2 milhões de pessoas estavam sem trabalho no mundo, naquele ano. Desse total, 86,3 milhões (44%) são de jovens entre 15 e 24 anos. Esses dados representam uma taxa de desemprego global de 6,3% da população mundial. O relatório da OIT referente ao ano de 2006 também indica que o crescimento econômico na última década refletiu-se mais no aumento da produtividade que no de emprego. A produtividade aumentou 26%, enquanto que o número de empregos aumentou somente 16,6%.
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As previsões para 2009 não são nada animadoras. Em meio à crise econômica cujo germe fora bem preteritamente implantado, a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2009) apresenta perspectivas nada otimistas em relação à taxa de desemprego. Segundo a organização, a crise econômica mundial poderá produzir um aumento considerável no número de pessoas que aumentarão as filas de desempregados, trabalhadores pobres e trabalhadores com empregos vulneráveis. O relatório Tendências Mundiais do Emprego, de 2009, aponta que o desemprego no mundo poderá aumentar em 2009 em relação a 2007 entre 18 e 30 milhões de trabalhadores e até além de 50 milhões caso a situação de crise continue se aprofundando.No documento, a OIT vislumbra que, caso se produza este último cenário, cerca de 200 milhões de trabalhadores, em especial nas economias em desenvolvimento, poderia passar a integrar as filas da pobreza extrema. No olho do furacão, as conseqüências na taxa de desemprego são já bastante sensíveis. Pesquisa apresentada pela agência Reuters aponta para continuidade de crescimento da já alta taxa de desemprego nos Estados Unidos, atualmente em 8,1%, para 9,6%. Há que se ressaltar que a taxa atual já é a maior nos últimos 25 anos. Em termos absolutos, isso significa 13 milhões de pessoas sem emprego nas fronteiras do império (COSTA, 2009). Esse número levou a um abrupto aumento em novos pedidos de seguro-desemprego. A média em quatro semanas de solicitações do benefício subiu em 6,75 mil e chegou a 650 mil, o nível mais alto desde outubro de 1982. O número de pessoas que, na semana que terminou em 28 de fevereiro, recebiam o benefício pago pelos estados aumentou em 193 mil, ascendendo ao número sem precedentes de 5,32 milhões (ÚLTIMO SEGUNDO, 2009). A previsão da OIT se confirma no Brasil a partir de dados apresentados pelo IBGE concernentes ao avanço do subemprego, cuja causa atribuída pelo instituto de pesquisa é o aprofundamento da crise econômica e seus desdobramentos na periferia do epicentro.
A crise econômica empurrou, entre outubro de 2008 e janeiro passado, 88 mil pessoas para o subemprego nas seis principais regiões metropolitanas do país, formando um contingente de 709 mil subocupados, de acordo com o IBGE. […] No período entre outubro e janeiro, justamente posterior ao agravamento da crise, a subocupação acumulou alta de 14,2% em relação ao total de trabalhadores que estavam nessa condição (621 mil). (SOARES, 2009)
No Brasil a busca pelo benefício do seguro-desemprego se assemelha àquela observada no gigante do norte. Dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI) indicam um aumento de 19% nas despesas com o programa em
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relação ao ano de 2008. Somente no mês de janeiro de 2009, 658 mil empregados demitidos sem justa causa (condição para solicitação do benefício) requisitaram inclusão no programa do seguro-desemprego. Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), desde novembro de 2008 o mercado de trabalho formal dispensou 797,5 mil empregados (PATU e SOFIA, 2009). É esse o cenário terrificante sobre o qual refletiu Forrester (1997). A autora ressaltou, já no início dos anos 1990, os reflexos subjetivos provocados pela crise no mundo do trabalho que não mais se restringe a um único setor ou a categorias profissionais específicas. O mais assustador é chegar à conclusão que o desemprego hodiernamente se caracteriza pela desnecessidade da mão de obra refugada ao sistema, o que, segundo a autora, termina por neutralizar as tentativas de organização dos trabalhadores. Assim, as promessas do restabelecimento dos antigos níveis de emprego e a melhoria dos níveis de renda nunca se situaram tanto, e tão-somente, no campo das intenções quanto hoje. A pior constatação desse horror econômico é a de que o avanço tecnológico tem produzido uma barbárie sem precedentes, em que
a massa humana não é mais necessária materialmente, e menos ainda economicamente, para o pequeno número que detém os poderes e para o qual as vidas humanas que evoluem fora de seu círculo íntimo só têm interesse, ou mesmo existência – isso se percebe cada dia mais –, de um ponto de vista utilitário. [...] Ao longo da história, a condição humana foi muitas vezes mais maltratada que nos dias de hoje, mas o era por sociedades que, para subsistir, precisavam dos vivos. E de vivos subalternos em grande número. Já não é o caso. É por isso que hoje é grave [...] (FORRESTER, 1997, p. 136)
Esse panorama de dificuldade de inserção no mundo do trabalho até pelas classes que antes não precisavam trabalhar pode ser entendido a partir da atual lógica da exclusão social. Para Dupas (1998) a intensificação da globalização e o grau a que se tem chegado de aprimoramento tecnológica têm concorrido para o redelineamento do mundo do trabalho em escala global. Dessa forma, se outrora a discussão acerca da exclusão social tinha como motes o crescimento da pobreza urbana, a dificuldade de acesso a empregos por minorias étnicas e imigrantes, agora o debate parece se amplificar com diversos fatores de marginalização batendo à porta dos que antes pareciam gozar de uma proteção social mais sólida. Assim, os novos excluídos ou os novos pobres, como consigna Vasopollo (2005), não mais se preocupam com a exploração a que se submetem no trabalho que lhes é alienante.
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A preocupação repousa então sobre a dificuldade mesma de encontrar um trabalho a que se possa submeter e se permitir ser explorado. A angústia dos novos excluídos é não ter mais nem o direito de ser explorado. Mesmo a antiga bandeira de luta das esquerdas, sustentadas na crítica ao modelo fabril fordista, alienante e explorador, aparenta desbotamento ante o atual quadro social do trabalho e da nova natureza do problema, qual seja a dificuldade de encontrar ocupação, qualquer que seja ela. Nesse mesmo sentido, pode-se observar o enfraquecimento do potencial reivindicatório dos movimentos de trabalhadores e a pulverização dos movimentos sindicais, que fica patente se observamos ao potencial de enfrentamento das greves hodiernamente, que já não surtem efeitos como outrora. Ao contrário, o sistema parece ter-se adaptado e se imunizado contra tais pautas, fazendo parecer ser favorável, dada a maleabilidade com que transparece suas ações escamoteando a rigidez e parcialidade (favorável sempre ao empresariado) de suas intenções. Por outro lado, pensando com Telles (2006), a precarização das relações de trabalho não tiveram o condão de suprimir sua dimensão estruturante na vida social, ao contrário, as atuais circunstâncias só reforçam a importância da discussão dessa categoria no mundo contemporâneo:
Se o trabalho não mais estrutura as promessas de progresso social, se os coletivos “de classe” foram desfeitos sob a s injunções do trabalho precário, se os direitos e sindicatos não mais operam como referências para as maiorias, se tudo isso mostra que os “tempos fordistas” já se foram, o trabalho não deixa de ser uma dimensão estruturante da vida social. (TELLES, 2006, p. 173)
Há que se reconhecer que a substituição da rigidez produtiva à flexibilidade após a crise de 1973, agravada pela crise do petróleo, fez com que elevado número de postos de trabalho fossem fechados, marcando a ruptura do paradigma produtivo fordista em lugar daquilo que Harvey (2006) chamou de acumulação flexível. Em seu bojo, o processo de reorganização produtiva trouxe a implantação de um sistema político e ideológico de retirada do Estado da execução e guarda de suas funções sociais, em claro retorno, agora com maior ênfase que outrora, a uma era de prevalência do livre mercado em detrimento dos sujeitos. Nessa trilha, muitos estudiosos advogam a tese de que diante do avanço tecnológico o trabalho vislumbra já o seu ocaso. Rifkin (1995) é peremptório ao afirmar o fim do trabalho humano substituído por novíssimas tecnologias de informação. Para o economista,
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hoje, pela primeira vez, o trabalho humano tem sido sistematicamente eliminado do processo de produção. Em menos de um século, o trabalho de massa a economia de mercado será provavelmente paulatinamente cancelado em quase todas as nações industrializadas do mundo. Uma nova geração de sofisticadas tecnologias de informação e comunicação tem sido introduzida em uma ampla gama de atividades de trabalho (...) (RIFKIN, 1995, p. 3. Tradução livre).
Não obstante a respeitável reflexão de Rifkin, creio que o trabalho não está caminhando ao seu ocaso, mas, de fato, tomando novos contornos tão diversos daqueles em que se envolvia, que a perplexidade leva ao paroxismo da perspectiva do fim do trabalho. Também esse é o posicionamento de Vasopollo (2005), para quem as certezas oferecidas pelo modelo fordista são agora desafiadas pela flexibilização que leva a um profundo grau de precarização da força de trabalho (VASOPOLLO, 2005, p. 17).
2.3. Alta produtividade de frágeis e precárias relações de trabalho
Todo esse contexto parece justificar a introdução (ou aceitação) de novas (ou nem tanto) formas de trabalho precário como solução pra o desemprego. Tais alterações estruturais são acompanhadas de mudanças no plano da comunicação e na proteção jurídica aos direitos sociais dos trabalhadores, cada vez mais fragilizados. Esse quadro gera verdadeiro mal-estar em uma sociedade que valoriza a produção e o trabalho, mas cujo elemento básico, o trabalho, vem se tornando cada vez mais escasso. Nesse ínterim, a flexibilização, ao mesmo tempo em que precariza o trabalho, reveste-se como solução plausível para a crise do trabalho – em parte provocada pelo próprio processo de flexibilização. Dessa forma, justificam-se a liberdade, por parte da empresa, para despedir parte de seus empregados quando a produção e vendas diminuem; alterar o horário de trabalho sem aviso prévio; terceirizar diversos serviços3. Por isso Vasopollo afirma que “a flexibilização, definitivamente, não é solução para aumentar os índices de ocupação. Ao contrário, é uma imposição à força de trabalho para que sejam aceitos salários reais mais baixos e em piores condições” (idem, p. 28).
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Em nome da maleabilidade das empresas, até a forma de controlar seus funcionários é alterada, passando da disciplina foucaultiana (FOUCAULT, 1987) – exercício pontual do poder, aplicado pela vigilância fixa – ao controle deleuziano (DELEUZE, 1990) – formas ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. A fábrica é substituída pela empresa, o controle contínuo substitui o exame. Evidente que estas mudanças restam subjacentes dentro de um macro contexto de aceleração do tempo e diminuição dos espaços naaquilo que alguns autores chamaram pós-modernidade. O
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A justificativa de aumento da ocupação – não importa ela qual seja e como seja executada – leva ao paroxismo da flexibilização, fomentando trabalhos atípicos e precários. Todo um léxico é construído com o intuito de ofuscar as contradições produzidas pela flexibilização e precarização. Assim, o empreendedorismo é ventilado como possibilidade de liberdade econômica e social, no entanto, torna-se, na prática verdadeiro mito do fazer sozinho que termina por se converter em trabalho subordinado, com reduzida proteção jurídica e sem garantias fundamentais. Daí é que constatamos a incongruência na manutenção da vigência de uma norma que o tempo retirou a eficácia, qual seja aquela que citamos da punição pelo ócio. Ora, se a maldição atual é inversa àquela disposta nos textos sagrados, ou seja, é a busca – mormente infrutífera – por trabalho que atormenta aqueles que estão à margem dos números da empregabilidade, qual ratio legis pode ainda remanescer em um comando normativo que pune um estado diante do qual a própria sociedade (razão do Direito) se vê impotente? A maior punição é o pavor do próprio desemprego; estar à margem do sistema alimentado pela produtividade do trabalho é já uma prisão. Não é outra a constatação de Santos (2001) quando reflete acerca das repercussões subjetivas do desemprego: medo, desgaste, vergonha, frustração, incerteza, humilhação, culpa, inutilidade. Diante desse quadro de incertezas, consolida-se uma tipologia de trabalho aparentemente nova, mas cuja perversidade estende-se preteritamente no fio da história. O atual espanto em sua constatação se deve mais ao fato desse tipo de trabalho – precário –, vir com tamanha ênfase à tona após o desenvolvimento de uma sociedade que chegou a proclamar o pleno emprego, alimentada pelos arroubos de modernidade que se vangloriavam de ser capaz de contornar o caos “e preencher de uma vez por todas a irritante lacuna entre o ‘é’e o ‘dever ser’” (BAUMAN, 2005, p. 48). Não, o pleno emprego não vingou e as perspectivas paupáveis de seu acontecimento restaram estancadas em meados dos anos de 1975 (SANTOS, 2001, p. 63). A situação esboçada pelos números da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2009) tem levado a justificar o trabalho a qualquer custo, ainda que o custo para o trabalhador seja maior do que este sujeito é capaz de suportar. Após anos de lutas e paulatinas conquistas, a desocupação forçada, que não oferece perspectivas nem sequer como engrossamento dos exércitos de reserva, oferece saídas cada vez mais precárias, na contramão das garantias asseguradas ao longo da história. Diante da possibilidade de ser refugado do universo do mundo do trabalho não fica alheio a estas mudanças a nível global, pelo contrário, é um dos elementos essenciais para compreendê-lo.
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trabalho, preferível que seja refugado do universo dos direitos do trabalhador. Assim é que muitos indivíduos se vêem sem escolha entre não ter trabalho (o que significa não ter um meio de subsistência) e exercer um trabalho precário. Nesses casos, como o dos catadores, a necessidade de sobreviver, por óbvio, fala mais alto do que o leque de benefícios que um trabalho formal poderia oferecer. Não é diversa a constatação a que chegamos quando da observação das falas de alguns catadores entrevistados: Tudo eu procurei trabalho, botava as conhecidas pra arrumar, mas não arrumou aí foi o jeito ficar aqui mesmo. (catadora, 44 anos)
Trabalho hoje em dia, emprego é muito difícil. Emprego só tá sendo pra quem tem bom estudo, que antigamente todo mundo, todo mundo trabalhava sem precisar de estudo. Hoje, todo mundo se forma, a maioria do povo tudo é formado e não tem um emprego. A maioria o que, a maioria é tudo desempregado, não tem emprego. Se quem é formado, o emprego tá difícil e quem não tem o segundo grau, o primeiro grau, pronto. […] Quer dizer, aquele povo que não tem o primeiro grau vai morrer tudo de fome, porque não vai ter trabalho. E quem tem, quem já terminou os estudos, fez curso, fez curso, anda atrás de emprego e não tem. Devia encontrar, porque não sabe, não já fez todo o curso? Não tem meu filho, porque tá difícil. (catadora, 35 anos)
Vim pra catação porque não tinha outra coisa. Emprego hoje em dia não tem mais. Aí a catação foi a saída que eu encontrei pra continuar vivendo, né. (catador, 23).
Os termos precariedade e precarização lembram, de imediato, a sua relação com o mundo do trabalho, em que as condições, relações e organização do trabalho vêm sendo precarizadas pelas inúmeras transformações que o capitalismo tem passado na busca de legitimar e aperfeiçoar, cada vez mais, suas pretensões de acumulação e lucro. Alves (2005) recorre a Marx para discutir precariedade e precarização. Marx atribuía a ambas um traço visceral da forma de individualidade que se constitui no capitalismo. É a individualidade de classe (ou individualidade estranhada), submetida ao poder das coisas. Como um sistema de produção dominante, o capitalismo na sua forma contemporânea, intensifica a substituição do trabalho-vivo pelo trabalho-morto, criando um cenário propício de precarização da força de trabalho que permanece incluída. Assim, “se a precariedade é uma marca ontológica da força de trabalho como mercadoria, a constituição de
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formas de resistência à voracidade do capital e sua sanha de auto-valorização é, na mesma medida, uma determinação ontológica do trabalho vivo” (ALVES, 2005). A precarização está manifesta, tanto nos novos postos de trabalho, quanto nos antigos. Ela está vinculada diretamente com o modelo toyota de produzir, em que tudo se flexibiliza, objetiva e subjetivamente (ALVES, 2007; ANTUNES, 2005). A precarização, em verdade, vem resultando em sucessivos processos de subtração dos “direitos a ter direitos” do trabalhador – parafraseando Arendt (1995) – mesmo que haja casos específicos de trabalhadores que nunca conseguiram plenamente, sobretudo no Brasil. Interessante notar que a precarização do trabalho não se descortina como conceito unívoco. Ao contrário, a literatura não aponta para características comuns que permitam um encerramento da discussão do conceito. Alguns autores (VOSKO et alli, 2003, p. 17) apontam para particularidades tais como tempo de trabalho e submissão a empregador para fins de definir trabalho precário. Disso decorre um problema de classificar profissões liberais de alta ou até razoável renda juntamente com outras atividades laborais em que se busca a sobrevivência de forma mais premente. Esse tipo de classificação é muitas vezes ampliado pela categoria de “trabalho não padronizado” (CARRÉ et alli, 2000) – ou informal –, na qual estariam inseridas formas de trabalho precário, mas também uma plêiade de trabalhos autônomos capazes de oferecer ganhos satisfatórios (idem, p. 4). Outros autores entendem essa categoria de trabalho a partir da falta de assistência da legislação trabalhista (SABADINI & NAKATANI, 2002). Sabadini & Nakatani (2002) apontam para o aumento no grau de informalidade entre os anos de 1990, quando o índice era de 37,6%, a 2000, quando passou a ser 50,8%. A partir das reflexões de Marx, os autores entendem que o atual trabalho informal equivale não ao exército industrial de reserva do qual falava o pensador alemão, mas à superpopulação excedente estagnada que formava um exército industrial ativo, desempenhando algum tipo de função, ainda que fora dos padrões. Nesse sentindo, a atual crise econômica, que tem feito disparar, conforme os dados acima apresentados, os números do desemprego, tem servido ainda para justificar um retrocesso de vários direitos sociais dos trabalhadores, conquistados ao longo de décadas (MORAIS, 2009). Sob o pálio de uma flexibilização da legislação, no sentido de reduzir os custos com a mãode-obra, vulnerabiliza-se, ainda mais, o trabalhador, com a transferência dos riscos do
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empregador para o empregado, numa inversão do próprio conceito jurídico de empregador que preleciona este como aquele que assume os riscos da atividade econômica4. Os autores não nos deixam olvidar que o trabalho informal, germe do trabalho precário, tem ainda como fatores a crise da empregabilidade e a reestruturação do processo produtivo a um modelo flexível e guiado pelo livre mercado (SABADINI & NAKATANI, 2002). O amplo processo de reestruturação capitalista trouxe, acompanhado do aumento nas taxas de desemprego – com poucas perspectivas de reocupação – e intensificação da informalidade e o processo de precarização das relações de trabalho, que resulta no estado de precariedade do mundo do trabalho, parafraseando Alves (2007) que compreende precarização enquanto processo e precariedade como um estado, no contexto sóciometabólico do capital. Esse autor entende que a precariedade é já uma condição sócioestrutural característica do trabalho daqueles que vendem força de trabalho e estão alheios ao controle dos meios de produção. Dessa forma, a precarização seria um processo que aprofunda ou repõe a condição de precariedade do trabalhador. Todavia, com a construção do que se chamou Estado Social, no século XX, a partir da luta dos trabalhadores, assegurou um ocultamento da
condição estrutural de precariedade do trabalho vivo no modo de produção capitalista. […] O que chamamos de processo de precarização do trabalho é o processo de diluição (ou supressão) dos obstáculos constituídos pela luta de classe à voracidade do capital no decorrer do século XX. É a explicitação da precariedade como condição ontológica da força de trabalho como mercadoria. A precarização possui um sentido de perda de direitos acumulados no decorrer de anos pelas várias categorias de assalariados. (ALVES, 2007, p. 114)
Assim, a precarização é um processo que exacerba uma condição já precária, pela supressão de direitos trabalhistas conquistados e surge sob várias formas, tais como a flexibilização do trabalho, a informalidade, e a legitimação de trabalhos para além dessas categorias dada seu extremo potencial precarizante, como a catação de materiais recicláveis. A informalidade e a precarização implicam no esfacelamento da rede de proteção ao trabalhador, sustentadas pela legislação trabalhista5 que, inclusive, tem sido adaptada de
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Art. 2º da Consolidação das Leis do Trabalho: “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”. 5 Vasopollo pontua que “a liberalização das várias formas de trabalho flexibilizado, precarizado, de trabalho temporário, empreitado, não tem o apoio de qualquer amortecedor social, quer dizer, uma garantia de renda, não apenas para os desempregados, mas também para todos aqueles trabalhadores precarizados que sofrem
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forma a permitir supressão dos benefícios sociais conquistados pelos trabalhadores brasileiros ao longo de décadas. Em muitos casos, os trabalhadores desempenham, como saída, atividades por conta própria, sendo patrões e empregados de si mesmo. Muitas vezes, como no caso dos catadores, a atividade constitui-se como última opção de sobrevivência. Nesse sentido, Cacciamali afirma que “a lógica de sua atuação no mercado prende-se à sobrevivência, à obtenção de um montante de renda que lhes permita sua reprodução e de sua família, não tendo como meta explícita a acumulação ou a obtenção de uma rentabilidade de mercado” (CACCIAMALI, 2000, p. 166). O desemprego formal “exacerba uma situação de total desamparo social para os trabalhadores que passam para a informalidade” (LEROY, 2002, p. 131). Segundo Leroy,
Quando o trabalhador perde o emprego regular e mergulha na informalidade do trabalho por conta própria, tudo passa a depender exclusivamente dele, que deve criar e manter sua ocupação. Os trabalhadores por conta própria, por não contribuírem, em sua quase totalidade, para a Previdência Social, estão excluídos do direito à aposentadoria e enfrentam a insegurança e a ansiedade quanto ao presente e ao futuro. Produz-se nos trabalhadores precarizados um sentimento similar ao dos tuberculosos e dos prisioneiros dos campos de concentração, o sentimento de “uma existência provisória sem prazo” (idem, ibidem).
Para além dos aspectos objetivos caracterizadores do trabalho precário, não se pode passar ao largo das conseqüências subjetivas que essas formas de atividade provocam. Dejours (apud MEDEIROS & MACÊDO, 2007, p. 77), ressalta a perversidade das conseqüências psicossociais originadas pela crise do emprego formal, uma vez que afrontam os pilares da identidade do ser humano. Aquele mesmo ser humano que cresceu em meio a uma sociabilidade que lhe indicava o trabalho como valor maior a ser perseguido. Voltando-se à categoria especificamente enfocada no presente trabalho, há que se ressaltar que a discussão da precarização do trabalho pela perspectiva da atividade realizada pelos sujeitos da catação insere-se num contexto em que se discute para além de trabalhos meramente informais, longe do albergue da legislação trabalhistas, submetido a longas jornadas e atividade extremamente insalubre. A catação distingue-se de outras atividades tãosomente informais porque leva suas características aos extremos, enquanto que muitos trabalhos assim classificados são socialmente mais aceitáveis. A precarização observada no
freqüentes e longos períodos de interrupção da prestação de serviços, em uma época em que as várias formas de trabalho intermitente e precário já estão convertidas em típicas.” (VASOPOLLO, 2005, p. 99)
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trabalho de catação permite defrontar-se com uma atividade laboral que violenta o olhar do arguto observador pela absurdidade da subsistência a partir do que já foi refugado pela sociedade. É submeter-se à precarização estando já no limite máximo de precariedade. É sobre essa categoria e seus sujeitos que nos debruçaremos a partir de então, levando primeiramente em consideração outros fatores relevantes a sua origem, tais como a alta produção de refugos materiais, a crescente preocupação ambiental e a existência de um forte mercado de reciclagem, para em seguida lançar reflexões acerca das repercussões da precarizante atividade de catação nos sujeitos que a exercem.
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3. PROBLEMAS AMBIENTAIS; SOLUÇÕES DE MERCADO
3.1. “O mundo tá muito doente” “O refugo é o segredo sombrio e vergonhoso de toda a produção.” (Zygmunt Bauman)
Quando se pensa em catação de lixo, reciclagem, coleta seletiva, deve-se pensar essencialmente em algumas funções dos sujeitos que processam o material desde a catação: o sujeito que recolhe o lixo, que pode ser um catador, ou mesmo grandes empresas, que ora despertam para os bilhões gastos no lixo (CALDERONI, 2003); aqueles que o separam seletivamente; aquele que o atravessa às grandes indústrias de reciclagem; aqueles que o tornam reutilizável sem necessidade de reprocessamento industrial. Isto não significa afirmar que cada atividade dessas é feita por sujeitos diferentes. No mais das vezes, quem recolhe já seleciona, e existe um grande movimento de conscientização para que os próprios “produtores” de lixo o separem seletivamente. A análise dos dados da pesquisa levada a cabo pela Prefeitura Municipal de Fortaleza (PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 2006), juntamente com as constatações da experiência de campo, apontam a precarização do trabalho como fator primordial à atividade de catação, pois que surge como uma alternativa extrema a quem já buscou outras formas de ocupação remunerada. Como vimos no capítulo anterior, a crise no mundo do trabalho tem desafiado os direitos às garantias sociais conquistadas ao longo dos anos, a partir de novas conformações do modo de produção, que apontam para uma flexibilidade e ausência de tutela do Estado. Nesse contexto, mas de forma mais exacerbada, encontram-se atividades precárias, dentre as quais a catação do material descartado pela sociedade de consumo. Esse, sem dúvida, é um dos caminhos para explicar o abrupto crescimento dessa categoria de trabalhadores que sobrevivem do que já não tem mais utilidade no incessante ciclo de consumo – ou pelo menos é assim (des)classificado. Todavia, não se pode olvidar que além da dificuldade de inserção no mundo do trabalho, fatores outros concorrem para a emergência dessa categoria laboral, tais como um substrato ideológico supedaneado pelos discursos ambientais cada vez mais presentes – justificáveis ante o real estado de degradação do meio ambiente –, além da existência de uma
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forte indústria de reciclagem – que se vale dos discursos ambientais para implementar e incrementar suas atividades. Embora as entrevistas e as etnografias por mim empreendidas junto a catadores de materiais recicláveis não apontem a preocupação ambiental ou a sustentabilidade como motivação para iniciar atividades de catação, trata-se de importante elemento ora favorável, ora desfavorável ao trabalho do catador, porquanto há casos em que a assunção de atividades sustentáveis subtraem objeto de trabalho daqueles trabalhadores precarizados. De toda forma, essa atividade encontra-se envolta pelo discurso ambientalista, seja como forma de dar suporte à atividade empresarial da indústria de reciclagem, seja para minimizar simbolicamente a precarização vivenciada na atividade, como pude observar entre os trabalhadores envolvidos em associações de catadores. Nesse sentido, a catação de materiais recicláveis se inclui como o primeiro momento de uma longa cadeia produtiva e pode-se dizer que surge como a possibilidade de manutenção do sistema de vida global, como um meio de reencaminhar aquilo que fora subtraído da natureza. É uma atividade que guarda consigo o potencial da renovação em busca de uma homeosatsia artificial, vez que o homem interfere fortemente no sentido de romper a tendência de auto-equilíbrio da própria biosfera. O escritor Ítalo Calvino já advertia no último quarto do século passado à importância da reciclagem “para que ao menos parte do que arrancamos dos tesouros do mundo não se perca para sempre, mas reencontre os caminhos da recuperação e do aproveitamento; o eterno retorno do efêmero” (CALVINO, 2000, p. 99). Na prática, a reciclagem é uma longa e complexa cadeia produtiva que envolve todas as fases do processo de reaproveitamento daquilo que se tornaria lixo se não fosse devidamente aproveitado. Vale lembrar que, embora as fases sejam normalmente realizadas por diferentes sujeitos, já há projetos da iniciativa privada para dominar todo o processo de reciclagem: coleta, seleção, processamento, retorno ao mercado. A implementação de projetos como esses, poderia bloquear a brecha de sobrevivência que muitos indivíduos, sem outra alternativa de renda, encontraram. Em tempo, é importante salientar que a reciclagem encontra espaço diante da constatação de que o lixo é um dos grandes problemas atuais e futuros, sobretudo levando-se em consideração os elevados índices de consumo e descartabilidade dos produtos consumidos. O lixo é qualquer objeto sem valor ou utilidade; aquilo que já não mais se deseja. Portanto, subtraído de valor para quem o abandona. Conforme definição da American Public Works Association (1975), “lixos são todos os resíduos sólidos e semi-sólidos, putrescíveis ou não, excetuando as excreções humanas. Inclui desperdícios, despejos, cinzas, lixo de varrição
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de ruas etc”. Interessante observar que essa concepção considera a produção de lixo a partir de atividades antrópicas, porquanto em processos naturais não se considera a produção de lixo no sentido que tratamos aqui. A produção de lixo tal como se tem observado hodiernamente está intimamente associada ao forte estímulo ao consumo e à brevidade dos ciclos cada vez mais efêmeros de produção, consumo e desperdício. Baudrillard (1995), empreendendo profunda análise das sociedades ocidentais contemporâneas (e por que não dizer, a sociedade globalizada), apresenta o consumo como a moral do mundo contemporâneo, dada a importância conferida a essa complexa dinâmica. Para o sociólogo francês, hoje em dia, cada vez mais, existe uma evidência do consumo e da abundância, devido à multiplicação dos objetos, serviços e bens materiais. Vive-se um mundo de relação com os objetos, vive-se o tempo dos objetos, isto é, as pessoas existem e funcionam consoante o seu ritmo e em conformidade com a sua sucessão permanente. Com a abundância nas sociedades de consumo, podemos referir igualmente o desperdício, que vem associado a este conceito. Todas as sociedades desperdiçam, gastam e consomem sempre além do estrito necessário, pela simples razão de que é no consumo do excedente e do supérfluo que tanto o individuo como a sociedade, se sentem não só a existir, mas a viver. Dessa forma, Baudrillard leva-nos a reflexão de que o homem se humaniza pelo desperdício do excesso e pela superação da simples utilidade (BAUDRILLARD, 1995, p. 39). Na sociedade de consumo existem novas invenções, novos objetos, tudo para incentivar o consumidor à compra de novas coisas, para existir constante renovação de objetos. O consumo já está para além da necessidade. Para que a abundância se torne um valor, é preciso que haja, não somente o bastante, mas demasiado:
A sociedade de consumo precisa dos seus objectos para existir e sente sobretudo necessidade de os destruir. O “uso” dos objectos conduz apenas ao seu desgaste lento. O valor criado reveste-se de uma maior intensidade no desperdício violento. Por tal motivo, a destruição permanece como a alternativa fundamental da produção: o consumo não passa de termo intermediário entre as duas. […] A destruição […] é uma das funções preponderantes da sociedade pós-industrial. (BAUDRILLARD, 1995, p. 43)
Layrargues (2002) chama a atenção à obsolescência planejada como incentivador do consumo e da produção de resíduos na medida em que os produtos são concebidos com vida útil que possibilite uma constante renovação, o que tem por conseqüência uma maior
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produção e novo consumo. O autor referencia que ainda em 1978, Graville Sewell apontava a dicotomia entre a obsolescência planejada e a produção de resíduos, afirmando que a eliminação da primeira é a chave para a minimização na produção de lixo (LAYRARGUES, 2002, p. 181). Layrargues aprofunda sua crítica sustentando que a obsolescência planejada está para além da materialidade dos objetos, há mesmo uma aproximação entre ela e a criação de demandas artificiais, criando o que chama de obsolescência planejada simbólica, “que induz a ilusão de que a vida útil do produto esgotou-se, mesmo que ele ainda esteja em perfeitas condições de uso” (idem, p. 182). Aqui é possível aproximar as reflexões de Layrargues com aquelas empreendidas por Baudrillard (1995), de que a criação de gadgets (engenhocas – criação constante de dispositivos aparentemente novos e imprescindíveis) impulsiona um consumo para além da necessidade. Em que pese a nossa tendência cultural ao desperdício, a sociedade do consumo – ou do hiperconsumo, como consigna Lipovetsky (2007) –, é o topos da produção de lixo que se avoluma galopantemente como matéria morta na biosfera. A problemática tem recebido destaque na imprensa, sobretudo nos últimos anos, quando os efeitos da produção exacerbada de resíduos têm sido cada vez mais visíveis. A lotação dos lixões e aterros localizados em áreas distantes das grandes cidades e a aproximação da ocupação urbana dessas áreas de despejo desafina o coro dos contentes no que respeita a questão do que fazer com tanto material desperdiçado. Os dados mais recorrentes apresentados na rede mundial de computadores (LIXO.COM.BR; RECICLAGEM.NET; PLANETA ORGÂNICO; ESPAÇO ECOLÓGICO NO AR) indicam a taxa de produção de lixo entre os brasileiros como sendo de um quilo de lixo por dia. Entre os norte-americanos essa taxa dobra, verificando-se a produção de uma média de dois quilos diários de resíduos. Dados da Companhia Municipal de Limpeza Urbana da cidade do Rio de Janeiro, apresentados no site da organização Rio Como Vamos, apontam para um crescimento na produção de lixo domiciliar per capita de 8,9% entre os anos de 2003 e 2007. Os dados apresentados corroboram a afirmação de que as altas taxas de produção de lixo tem relação direta com a maior capacidade de consumo: em bairros da zona sul, local abastado da capital fluminense, a produção de lixo domiciliar chega a ser o dobro em relação a outras áreas. O sítio virtual Espaço Ecológico no Ar também apresenta comparação entre os produtores de lixo. Segundo os dados da Organização das Nações Unidas apresentados no sítio, a taxa de produção de resíduos per capita entre os habitantes de países pobres é bem inferior se comparada àqueles dos países ricos. Enquanto que os primeiros produzem uma
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média de 0,27 kg a 0,6 kg por dia, os habitantes dos países ricos carreiam entre 0,82 kg a 2,7 kg diariamente. Mas não é só no espaço urbano que o lixo tem-se amontoado como um problema crescente. Sem dúvida esse é o mais visível, daí ganhar maior repercussão. Contudo, até mesmo os oceanos têm formado grandes zonas de concentração de resíduos. Recentemente descobriu-se que entre a o litoral do estado norte-americano da Califórnia e o arquipélago havaiano há uma imensa área de lixo flutuante cuja área é estimada em um milhão e trezentos mil quilômetros quadrados – maior do que a soma dos estados de São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em meio ao lixo, a natureza vai cedendo espaço e mesmo praias praticamente desabitadas do Havaí vêm acumulando lixo que navega desde o Japão, Coréia, China, Estados Unidos. Zonas de acúmulo de lixo flutuantes estariam sendo formadas em outros quatro pontos do globo (PORTAL FANTÁSTICO, 2009).
3.2. A preocupação ambiental e o lucro das boas ações “Como é que um negócio desse aqui é lixo?! Lixo é esse lixo véi podre que nêgo rebola na rampa, isso é lixo! Isso aqui é lixo que dá dinheiro!” (Geraldo, catador da Associação Reciclando)
Pode-se dizer que a preocupação ambiental é recente, tendo tomado maior vulto na década de 1960. Assim, no final dos anos 1960 e início da década seguinte, o ambientalismo surge com a constatação da brevidade das fontes de matérias-primas e de que o ser humano é fator de degradação ambiental através de suas atividades culturais e, portanto, deve ser ele a propor medidas que protejam o meio ambiente. As propostas esbarraram nos planos de contínuo avanço econômico e alguns economistas se opuseram argumentando que o ambientalismo arrefeceria o crescimento econômico. Durante os anos 1980 foi desenvolvido o conceito de “desenvolvimento sustentável”, que apareceu pela primeira vez na Estratégia de Conservação Mundial e ganhou o mundo com o relatório da Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento (CMAD). Segundo o relatório: O ambiente e o desenvolvimento não são desafios independentes, eles estão inexoravelmente ligados. O desenvolvimento não pode subsistir sobre uma
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base de recursos ambientais em deterioração; o ambiente não pode ser protegido quando o crescimento deixa de contabilizar os custos da destruição do ambiente (CMAD apud BAYLISS-SMITH e OWENS, 1996, p. 131).
Isso não significa crescimento zero, mas dentro de limites “impostos pela necessidade de se respeitar a integridade dos ciclos biogeoquímicos” (idem, ibidem). O ensaio discute a possibilidade dos países ricos manterem seus altos padrões de consumo e conseqüente produção de lixo diante de um sensível aumento de consumo das populações periféricas. Em termos mais claros, Quintas (1992) aduz que a questão ambiental está no cerne da relação sociedade-natureza, de forma que é o caráter dessa relação que deve ser levado em consideração:
[…] a chave do entendimento da problemática ambiental está no mundo da cultura, ou seja, na esfera da totalidade da vida societária. […] Afinal, são práticas do meio social que determinam a natureza dos problemas ambientais que afligem a humanidade. (QUINTAS, 1992, p. 3)
A percepção de que o conjunto de atividades humanas é o principal fator de degradação do meio ambiente tem suscitado mobilizações as mais diversas, bem como posicionamentos diferentes diante do complexo problema. Para as empresas, a proteção ao meio ambiente não pode desviar o foco da produção e do auferimento de lucros. A postura dos grupos empresariais e dos economistas que dão suporte a esse posicionamento é de que é possível chegar a um ponto considerado ideal de desenvolvimento sustentável. Assim, muito embora o meio ambiente seja colocado em pauta, as taxas de crescimento não podem deixar de ser preconizadas. Se há alguns anos muitas empresas eram recalcitrantes na adesão ao desenvolvimento sustentável, hoje, cada vez mais, elas têm percebido os benefícios financeiros da adesão a métodos produtivos ambientalmente corretos. O Índice de Sustentabilidade Empresarial da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), tem demonstrado uma maior rentabilidade a longo prazo de empresas que incrementam suas marcas com um discurso ambiental em face daquelas que se mantêm tradicionais em relação à temática. Assim, grandes empresas como, Itaú, Bradesco e Petrobrás estão entre as que mais se beneficiam financeiramente de práticas socialmente responsáveis e sustentáveis (SOARES, 2008). É o que alguns consultores em marketing empresarial têm chamado business do bem (idem).
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Em relação à política empresarial de controle da produção de seus resíduos, muitas empresas vêm implementando programas de beneficiamento do material reciclável originado de suas atividades principais. Os benefícios financeiros contabilizados associam-se, sobretudo, à agregação de valor à imagem da empresa, um bem intangível, mas com repercussões financeiras palpáveis. Como exemplo de valorização do aproveitamento de materiais recicláveis por parte do setor empresarial, pode ser citado o Grupo Pão de Açúcar, que doava todo o material aproveitável do lixo produzido nas suas lojas de Fortaleza à COOPREMARCE (Cooperativa de Pré-beneficiamento de Materiais Recicláveis do Ceará) que fazia a seleção e prensagem desse material e que por sua vez repassava às indústrias de reciclagem. Atualmente o Grupo Pão de Açúcar apenas repassa o material doado pelos clientes nos cestos colocados à frente de algumas lojas. Ou seja, todo o lixo produzido pela empresa nas lojas de Fortaleza, que era doado à cooperativa, é agora reaproveitado pela própria empresa que descobriu, enfim, o valor do lixo. A empresa, além de lucrar com a destinação do seu lixo à reciclagem, ainda tem garantida a imagem de empresa eco-eficiente, ou seja, empresa preocupada com a qualidade de vida no mundo buscando minimizar os impactos ambientais e o uso de recursos naturais. De acordo com a associação Compromisso Empresarial para a Reciclagem – CEMPRE6, em seu sítio virtual, uma empresa eco-eficiente caracteriza-se por passar a adotar condutas como a minimização do consumo de matériasprimas virgens e sua substituição por matéria reciclada, concentrar esforços para diminuir a toxidade de seus produtos e aumentar sua vida útil; reduzir o uso de energia elétrica entre os outros. (CEMPRE)
Não basta, portanto, às empresas não serem poluidoras, a exigência do mercado de implementação de técnicas de marketing associadas à sustentabilidade exigem que elas ajam proativamente na defesa do meio ambiente. Nessa busca pela sustentabilidade ambiental foi criado, pela International Organization for Standardization, o ISO 14000. Trata-se de um programa de normas para empresas visando à qualificação da sua relação com o meio ambiente segundo Sistemas de Gestão Ambiental, fornecendo os requisitos e linhas de orientação para as organizações desenvolverem e implementarem uma política ambiental.
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Conforme nota explicativa em seu próprio sítio virtual, o Compromisso Empresarial para Reciclagem (CEMPRE) é uma associação sem fins lucrativos dedicada à promoção da reciclagem dentro do conceito de gerenciamento integrado do lixo. Fundado em 1992, o CEMPRE é mantido por empresas privadas de diversos setores.
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Outro exemplo recente de empresa que se pretende eco-eficiente é a Coelce (Companhia Energética do Ceará), implementando em março de 2007 um programa de coleta seletiva na cidade de Fortaleza, o Ecoelce. O programa consiste em incentivar a prática da coleta seletiva em troca de descontos na conta de energia. Segundo matéria do jornal Diário do Nordeste, algumas famílias tiveram, durante a fase de testes do projeto, uma redução de até 80% da conta de luz. Na fase de testes, realizada nas comunidades São João (no bairro Lagoa Redonda) e João Paulo II (no bairro Jangurussu), foi arrecadada 1,5 tonelada de resíduos em apenas um mês de funcionamento. O sucesso empresarial do programa inclusive inseriu a empresa no limitado rol de empresas participante do citado Índice de Sustentabilidade Ambiental (ISE) da Bovespa. O Projeto Ecoelce é um programa de arrecadação de material reciclável em troca de bônus na conta de energia. A idéia é aliar educação ambiental, incentivando a coleta seletiva e diminuir a inadimplência. Além do ganho com o material, a companhia energética recebe ainda forte incremento em sua imagem, o que ressalta sua participação no ISE da Bovespa. O material é trocado em diversos pontos de coleta pela cidade. Alguns são administrados por empresas, mas há também pontos de coleta em associação de catadores, como na Associação Reciclando, localizada no bairro Tancredo Neves, zona sul da capital cearense. Cada cliente da Coelce tem um número de identificação, anotado na conta de energia, para quem é creditado o bônus correspondente à doação. Dessa forma, a associação recebe o material, ficando uma parte do valor para a empresa, que pratica tabela de preços bem inferiores aos aplicados na associação, e mesmo àquele aplicado nos depósitos – estes geralmente mais baixos. Cremos que o esforço das empresas para reciclar seus materiais ou alterar seu modo de produção tem, no mais das vezes, interesses financeiros, incluindo aqui a possibilidade de se declarar como empresa eco-eficiente, portanto ambientalmente responsável, do que mesmo uma atitude moral com fim último de contribuir na manutenção do meio ambiente, ou mesmo beneficiar os personagens da catação direta. Tudo isso torna mais difícil a vida do catador que, na grande maioria das vezes passa a atuar nesse ramo como última alternativa de sobrevivência. Em relação ao Projeto Ecoelce, um grupo de catadores presente à tenda do Fórum Lixo e Cidadania na Praça do Ferreira durante a Semana de Meio Ambiente de 3 a 9 de junho de 2007 representou em desenho como percebem o projeto da companhia energética. O desenho, elaborado por artista plástico depois de debate com os catadores e sob suas
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orientações, mostra um catador puxando seu carrinho com um mundo dentro, fugindo de um grande carro-monstro coletor de resíduos que tenta devorá-lo. Ao fundo, dois bonecos de cartola com dinheiro na mão e a indicação: “Ecoelce”. A partir das entrevistas por mim realizadas, é possível observar que não há consenso entre os catadores a respeito do projeto Ecoelce. Muitos o vêem como benéfico, enquanto outros o percebem como um fator que tende a dificultar o trabalho do catador. Entre os catadores da Associação Reciclando, a posição ante o Projeto Ecoelce é favorável, apesar de algumas ressalvas, pois, como diz Caio, 33 anos, um dos catadores associados, “se esse galpão tá cheio é por causa das doações, por que material de rua mesmo não dá pra manter”. O catador pondera que “para os catadores avulsos o Ecoelce não foi nada bom, pois muitas pessoas que doavam os materiais a eles passaram a trocá-lo por bônus na conta de energia”. Caio lembra que no início o projeto não envolvia catadores, mas que depois começou a beneficiá-los. O jovem associado atribui a mudança à pressão feita pelos catadores, através do Fórum Estadual do Lixo e Cidadania7 e da Rede Catadores:
De primeiro a Coelce não aparecia nas reuniões não. Ela começou a tentar negociar com catador depois que houve uma pressão. Teve uma pressão em cima deles [...]. Até questão de planta, questão de adubo e o óleo [de cozinha refugado] eles já estão trabalhando lá, coisa que era pra Prefeitura estar fazendo e não faz, né. (Entrevista realizada em 10/12/08)
E continua dizendo que o Ecoelce contribui também para diminuir as saídas dos catadores nas ruas, mantendo-os mais dentro do depósito, na triagem do material que chega das trocas por bônus de energia:
Antes eles [catadores] ficavam na rua, agora já ficam aqui dentro. Aí já evita deles estarem na rua porque eu acho que, por um lado, já é uma melhora, que é pouco, mas é melhor que está na rua e tirar o mesmo tanto. E olha que com a queda do material não tira né... É aquele velho detalhe que eu sempre digo, hoje em dia o Poder Público não é pra dar cesta básica não, é a associação de catadores que eles têm que apoiar. E eu discordo totalmente com a Prefeitura de dar cesta básica pra catador porque só vai melhorar três dias a situação dele e aí? O cara não come só três dias, ele come o ano todinho. (idem)
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Em Fortaleza, o Fórum Estadual é promovido pela Cáritas do Brasil em parceria com a Pastoral do Povo da Rua. Nele reúnem-se grupos de catadores e catadoras com o objetivo de discutir políticas pertinentes, fortalecer a categoria, facilitar mobilizações e ensejar conscientização e educação ambiental aos catadores.
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Das falas dos catadores é possível depreender uma postura favorável ao projeto relativamente ao retorno conferido na prática à associação. Contudo, é interessante observar que os trabalhadores, quando levam em consideração a atividade de catação como um todo, sobretudo em relação àqueles que não estão ligados a cooperativas e associações – chamados de catadores avulsos – fazem ressalvas, dizendo que o projeto reduziu o volume de coleta dos materiais, haja vista que muitas casas deixaram de separar recicláveis para doarem aos catadores em vista de destiná-los à troca por bônus na conta de energia. A fala de Marlene, catadora da associação Reciclando, 44 anos, é bastante representativa da combinação de preocupação com a categoria de catadores, mas a satisfação pelo fato de sentir-se diretamente beneficiada pelo projeto Ecoelce:
O problema é que desde quando começou a Ecoelce, acabou tudo pra gente, pros catadores porque todo mundo junta seus material porque essa rota aqui do canteiro quase toda era minha, essa rota todinha. […] Mas foi bom. No começo eles diziam que era ruim. No começo eu achava que era muito ruim. Porque dizia, pronto, agora acabou-se. A gente vai viver de quê? E muita gente, os catadores mesmo que não é da associação, eles tão juntando pouco material. […] No começo eu não concordava de jeito nenhum, mas agora eu concordo. Concordo, porque eu fiquei aqui dentro trabalhando né? Aí tem emprego pra mim, pra minha filha. […] Porque o material é ela [Coelce] quem dá pela troca da energia. Aí todo mundo bota pra cá. A maioria do material. (Entrevista realizada em 11/12/08)
Falando a respeito das dificuldades vivenciadas pelo catador em sua atividade, Geraldo, 51 anos, também catador da associação Reciclando, corrobora o posicionamento dos seus colegas. O catador citou o projeto Ecoelce como uma vantagem da associação frente ao grande número de depósitos na cidade – ao qual o trabalhador atribui dificuldade no aporte de materiais recicláveis –, além da queda do preço dos materiais (comum na época de final de ano):
Tá ficando difícil material de reciclagem, porque é muita gente comprando, muito depósito. Porque aqui entra muito material também por causa da Coelce. […] É bom [o projeto Ecoelce] porque tá entrando muito material, né. E é bom que entre mesmo, porque é bom que não falta trabalho pra gente. Foi bom esse negócio [Ecoelce]. Aí ajunta o material da Coelce com outros que aparece, dos coletores e
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tudo, aí dá pra ir pra frente. Agora com essa mudada de preço, né, que baixou. (Entrevista realizada em 12/12/08)
Nesse sentido, é possível notar um senso de compreensão da categoria como um todo, mesmo porque são poucas as associações que funcionam como postos de coleta do projeto Ecoelce. Acrescente-se a isso o patente fato de que os catadores, ainda que com instâncias de organização, tais como o Fórum Estadual do Lixo e Cidadania e a Rede de Catadores de Resíduos Sólidos Recicláveis do Ceará – que envolve quinze associações de catadores de materiais recicláveis, todas localizadas na Região Metropolitana de Fortaleza –, são vulneráveis (hipossuficientes), por diversos fatores, frente à Companhia Energética do Estado do Ceará. Impende observar que apesar da preocupação demonstrada nas falas dos catadores associados, entre os catadores entrevistados no depósito (avulsos), não há uma atribuição direta da diminuição do material coletado – e conseqüentemente do montante apurado –, apesar de que também eles apontam para uma maior dificuldade na coleta em vista de que muitas casas que lhes eram parceiras (separando o material para doação rotineira), agora destinam-no à troca por bônus de energia. De minha parte, entendo que a dificuldade para o catador aumenta porque a burocratização dos elos mais fracos da longa cadeia de reciclagem termina por concorrer com o indivíduo pauperizado que se submete à dureza do trabalho da catação pela facilidade de entrar nessa atividade, já que, pelo menos em suas bases, ela não está ainda muito delimitada. Contudo, com a paulatina dominação de grandes grupos empresariais de toda a cadeia produtiva da reciclagem, os homens e mulheres da catação terão que se inserir num mercado burocratizado (em sentido weberiano), cada vez mais semelhante ao que os rejeitara antes da situação de desemprego. Bonner (2008) chama a atenção para o fato de que a questão da sustentabilidade ambiental tem mobilizado a agenda de organizamos internacionais, ONGs e governos,
mas milhões de trabalhadores pobres, que desenvolvem um serviço efetivamente ambiental através das atividades informais de reciclagem, não são reconhecidos! Cada vez mais, catadores de resíduos estão sendo substituídos à medida em que as municipalidades privatizam os serviços de lixo, firmando contratos com grandes corporações e excluindo os catadores de lixo do processo (BONNER, 2008, p. 8, tradução livre).
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É certo que a leviandade não pode ser tamanha ao ponto de se defender a precarização do trabalho de catação em face de uma tendência à formalização do processo produtivo de reciclagem em suas bases (coleta e triagem de material). Todavia, há que se lançar questionamentos sobre a forma através da qual esse espaço de trabalho oferece melhorias pela formalização empregatícia, haja vista que voltamos ao ponto inicial de que apenas um número restrito de desempregados que buscaram na catação uma saída seriam beneficiados. Poder-se-ia, dessa forma, selecionar refugados dentre os refugados, sem solucionar, de fato, o problema que os levou a serem refugos.
3.3. O mercado da alquimia “O lixo sofre uma verdadeira alquimia” (Válter, catador do Parque Santa Rosa, Fortaleza/CE)
Como vimos, a problemática do lixo é hoje uma questão premente. Dada a complexidade do tema, há muitos vieses para analisá-lo, mas todos nuclearmente interligados. Pode-se enfocar a questão da saúde coletiva, a degradação ambiental ou do ponto de vista social, pois que o lixo representa mais do que poluição, significa também muito desperdício de recursos naturais e energéticos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2000), o Brasil produz diariamente 228 mil toneladas de resíduos, porém, dessa quantia apenas 148 mil toneladas são coletadas. Desse enorme volume, somente 2,8% do lixo brasileiro chega a ser reciclado, indo 59% para os lixões. Apenas a um pequeno percentual, 16,8% é dado o acondicionamento considerado adequado ao enorme volume de resíduos. Diante da gravidade da situação, a reciclagem é apontada como uma das alternativas mais viáveis – e também menos questionadora da dinâmica de produção de refugos materiais e humanos – e tem por objetivo o retorno dos resíduos à cadeia produtiva. Para tanto, é necessário reincorporar valor àquilo foi considerado inútil. Berhtier (2003) afirma que o lixo é desprovido de valor, mas o processo de reciclagem o repõe no ciclo produtivo de que é proveniente. É possível começar dizendo que o lixo não tem valor. Quando ele é descartado, muitos consideram que não vale nada, mas a partir do momento em que é coletado, transportado, armazenado, classificado, limpo, vendido e reciclado/reutilizado, ele se
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transforma em mercadoria. Isto significa que seu valor inerente e seu valor inicial de troca podem ser recuperados se o trabalho humano é incorporado. (BERTHIER, 2003, p. 196. Tradução livre)
No cenário de discussões científicas acerca da problemática do lixo e a crescente atuação dos grupos ambientalistas no cenário mundial, a reciclagem ganhou terreno fértil como alternativa de manutenção do meio ambiente com a reutilização dos recursos naturais uma vez utilizados na fabricação de produtos. Dos poucos materiais potencialmente recicláveis inicialmente, tem-se hoje a possibilidade da reciclagem de uma ampla gama de materiais. Por óbvio que esse processo desperta, antes de tudo, interesse financeiro, que pode até ser supedaneado ou incentivado por interesse na proteção do meio ambiente, mas o que não seria suficiente, por si só, para movimentar os interesses de um mercado que move vultoso montante financeiro. O avanço nas tecnologias de reciclagem foi possível graças ao interesse de empresas que perceberam na reciclagem um importante meio de ganhos econômicos. Tais empresas têm na reciclagem, além de uma boa fonte de lucros com matéria-prima de baixo custo, a possibilidade do discurso ambiental fundado na sustentabilidade como instrumento de promoção de suas imagens. Além do que, a reciclagem não significa apenas retorno do material, significa ainda uma considerável economia de energia. A ABAL (Associação Brasileira do Alumínio) estima uma economia de 95% de energia elétrica para a produção da mesma quantidade de alumínio a partir da reciclagem em relação à produção inicial do material. No caso do papel, a reciclagem de uma tonelada do produto, poupa aproximadamente vinte árvores, além de representar uma economia de 70% de energia. Não se pode olvidar que a economia de energia também é uma bandeira de luta dos movimentos ambientalistas, dado que uma grande quantidade de recursos naturais deixa de ser mobilizada quando de um melhor aproveitamento energético. O mercado da reciclagem movimenta um grande volume de capital. Só o mercado brasileiro de sucata de alumínio movimentou em 2005, R$ 496 milhões, conforme dados da ABAL. A mesma pesquisa indica um índice de 96,2% (representando 127,6 mil toneladas de alumínio) de reciclagem desse material, no mesmo ano, com a geração direta ou indireta de 160 mil postos de trabalho. Por sua vez, a Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa) estima uma taxa de recuperação de 46,9% (3.438 mil toneladas) de papel, de todos os tipos, consumido em 2005. Já a Associação Técnica Brasileira das Indústrias Automáticas
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de Vidro (Abividro), registra uma taxa de reciclagem de 45% em 2005, movimentado 3 mil trabalhadores diretos e indiretos e operando numa margem de lucro de R$ 65 milhões. Com esses índices, o Brasil aparece como um dos maiores recicladores de materiais do mundo, na frente de grandes potências como Estados Unidos e Japão. Por exemplo, o mercado brasileiro de sucata de latas de alumínio, em 2005, movimentou um total de R$ 1,6 bilhão e gerou cerca de 55 mil empregos diretos. Nos EUA, o negócio envolve 3.500 postos de coleta e gira em torno de US$ 1.2 bilhão. Assim, o Brasil é o líder mundial de reciclagem de alumínio. O Brasil também é o líder das Américas em reciclagem de embalagens longa vida, com 23% de reaproveitamento, perdendo, no âmbito mundial, apenas para a Alemanha e Espanha. No mercado de reciclagem de embalagens PET, o Brasil também é líder. Consoante dados da Associação Brasileira das Indústrias do PET (ABIPET), em 2005, o mercado brasileiro consumiu 374 mil toneladas de PET para embalagens e reciclou 174 mil toneladas, mantendo o índice nacional de reciclagem de 2004, 47%. Esses números e exemplos nos permitem avaliar quão pujante é o mercado da reciclagem que, muitas vezes, passa despercebido como mercado menor, de mero reaproveitamento do que não mais se quer. Em todas as pesquisas, há uma clara ascensão no aumento do índice de reciclagem dos materiais com crescente movimentação de capitais, o que denota uma valorização do lixo como fonte de lucros. Trata-se de um processo produtivo que conta com o apoio dos fornecedores da matéria-prima para esse rico mercado, os consumidores e produtores de resíduos. Reitere-se que nesse processo o interesse econômico tem prioridade em detrimento do interesse ambiental, daí que muitas vezes, conforme defende Layrargues (2002), a reciclagem escamoteia seu cinismo. O autor apresenta percuciente estudo para dar suporte à sua tese de que o discurso ambientalista é dissimulado, porquanto pretende diminuir os danos ambientais alimentado por interesses econômicos vultosos. Ademais, se a cultura eco-capitalista ambiciona ser sustentável, impõe a mesma lógica de consumo insustentável levada a cabo nos países de primeiro mundo e pelas elites terceiro-mundistas. Assim, o autor reflete sobre como a educação ambiental tem sido processada nos diversos âmbitos da vida social, desde o ambiente empresarial até o doméstico. Nesse contexto, a necessidade de separar o lixo e “fazer a coleta seletiva” se impõe como regra de bom senso, mas em momento algum tenciona-se questionar as razões para assombrosa produção de rejeitos, preferindo-se o reducionismo no tratamento das conseqüências e terminando por passar ao largo de uma reflexão crítica e abrangente das causas do problema, quais sejam “os valores culturais da
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sociedade de consumo, o consumismo, o industrialismo, o modo de produção capitalista e os aspectos políticos e econômicos da questão do lixo” (LAYRARGUES, 2002, p. 179). Transforma-se assim, a reciclagem numa atividade-fim, evadindo-se da dimensão política e social do problema. Layrargues (2002) denuncia que a propalada política dos 3 Rs (Reduzir, Reaproveitar e Reciclar)8 só tem sido hegemonicamente valorizada em seu terceiro aspecto, a reciclagem, relegando-se os dois primeiros, quais sejam a redução e a reutilização, a plano inferior. Assim, a valorização da reciclagem pelo sistema de produção de objetos e obsolescência planejada é uma forma de absorver os elementos compatíveis do movimento de proteção ambiental sem abandonar – ao contrário, incrementando – a lógica de produção. Nesse sentido, a reciclagem desdobra seu efeito tranqüilizante na consciência dos indivíduos que se permitem continuar a consumir em demasia por depositar nessa técnica a expiação da produção exacerbada de resíduos e a redução na utilização de matérias-primas. Trata-se de um mecanismo de compensação de risco:
Se o consumismo gera um risco ambiental para a sociedade moderna através do esgotamento dos recursos naturais e da saturação dos depósitos de lixo, criam-se mecanismos que garantem o controle desse risco, o que aqui se traduz pela reciclabilidade. Dessa forma, ao invés de se reduzir o consumo, cria-se a oportunidade de manter o padrão convencional de consumo, pois a ameaça torna se relativamente controlada, e a reciclagem passa a desempenhar a função de compensação do risco do consumismo. […] Recicla-se para não se reduzir o consumo. (LAYRARGUES, 2002, p. 186)
Para fundamentar suas peremptórias posições, é interessante ressaltar que Layrargues (2002) vale-se de cuidadoso levantamento de dados acerca do “verdadeiro tamanho dos benefícios ambientais da reciclagem”. Para tanto, o pesquisador toma como referência a reciclagem do alumínio, dada sua ampla divulgação e alto percentual de reciclagem do material no Brasil (96,2%, como anteriormente apresentado). O cinismo sobre o qual se refere Layrargues decorre do fato de que se 100% do alumínio consumido no Brasil fosse reciclado, apenas 0,019% das reservas mundiais da bauxita (minério essencial na produção do alumínio) seriam economizadas anualmente. O fato é que o Brasil, apesar do alto índice de reciclagem do material, que beira os 100%, aumentou a extração de bauxita (idem,
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p. 191). Aqui voltamos a salientar que os interesses imediatamente em jogo são mais econômicos do que ambientais e sociais. Todavia, não se pode por isso entender que a reciclagem deva ser abandonada; deve sim ser valorizada, mas há outras alternativas viáveis e inclusive anteriores ao momento de reciclagem (como a redução e o reaproveitamento), mesmo porque o próprio processo produtivo da reciclagem produz grande volume daquilo que propõe reduzir: lixo. Apesar da existência de um mercado de reciclagem bastante desenvolvido no País e que movimenta altas cifras, grande parte do volume de material processado nas indústrias é colhido (casqueirado ou catado) por sujeitos que vêem nos primeiros elos da cadeia produtiva de transformação de resíduos, uma alternativa, ainda que extremamente precária, à falta de trabalho, imprescindível à satisfação das necessidades elementares. Voltemo-nos, pois, a esses indivíduos que palmilham as grandes cidades em busca de material destinado a suprir dupla sobrevivência – dele próprio, imediatamente, e do meio ambiente, de forma mediata.
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A política dos 3 Rs foi estabelecida como meta determinada na Agenda 21, documento elaborado por 170 países que participaram do encontro ECO-92, no Rio de Janeiro, marco para o movimento ambientalista mundial.
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4. CATADORES: HERÓIS NÃO DECANTADOS DA MODERNIDADE
As reestruturações impostas pelo capitalismo ao mundo do trabalho, no intuito de contornar (ou minimizar) suas perdas, têm produzido um ambiente cada vez mais precário para o trabalhador que se submete à pressão exercida de forma patentemente desigual no contexto da relação capital x trabalho. A crise do emprego formal tem contribuído para o aumento da informalidade e para o surgimento de novas formas de trabalho marginais ao sistema, mas não por isso alheias a ele. Nesse sentido, ao contrário do que lucidamente defende Oliveira (2004), o campo do trabalho informal não seria um conjunto de formas de produção não-capitalistas, mas um espaço capitalista de produção onde a tutela estatal de proteção aos direitos sociais do trabalho atua de forma muito menos consistente ou mesmo não se faz presente. Todavia, não se deve afirmar que o trabalho informal – e nesse conceito insiro a catação de materiais recicláveis –, configura-se como uma atividade apartada do modo de produção capitalista em seus moldes contemporâneos. Defender tal equivocada tese seria olvidar a relação intrínseca dessa atividade com os fatores apresentados no capítulo anterior, tais como o mercado de reciclagem, sustentado pelo crescente discurso ambientalista e alimentado pela torrencial produção de resíduos materiais fruto do consumo e da descartabilidade exacerbados. São todos fatores umbilicalmente ligados ao sistema do qual a catação é atividade marginal. Assim é que entendo que a catação surge no com acuidade cabalmente às suas próprias incoerências, senão através de paliativos. Nesse sentido, o trabalho precário surge como uma forma de fazer incluir alguns trabalhadores excluídos de um sistema de direitos – mas não do sistema que propugna um sistema de direitos restritos a pequeno retalho do grande e complexo tecido social – para o qual foi necessário longo processo de luta e conquista ativa. Porém, trata-se de uma inclusão perversa, como lembram Medeiros & Macêdo (2007). Para as autoras, não se pode limitar a dinâmica exclusão/inclusão tomando como ponto de partida a possibilidade de uma alternativa à falta de emprego, haja vista que a lógica da exclusão é determinada por uma miríade de fatores que vão muito além do exercício de atividade laboral – ainda que precária – imbricada e relacionada a um conjunto de valores que orienta a sociedade que exclui/inclui. Discutir a precariedade de uma categoria de trabalho exige que se conheça um pouco a respeito dos sujeitos que exercem a atividade sem os quais a categoria de trabalho não existiria. São esses sujeitos que, ativa ou passivamente, dão os contornos representativos
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da atividade. E são também eles os sujeitos sobre os quais incidem os efeitos da precarização do trabalho, em seus corpos e em suas mentes. Dessa forma, esboçar o perfil dos catadores de materiais recicláveis é ponto fundamental para uma melhor compreensão de questões de fundo como discutir os impactos da precarização nesses sujeitos, quais as discriminações sofridas na sua rotina de trabalho, como eles percebem a discriminação sofrida pelo exercício dessa atividade e que estratégias são praticadas ante ao estigma. Nesse contexto, além do perfil, impende-se conhecer um pouco do cotidiano desses trabalhadores, identificando suas motivações e a representação do trabalho pelos catadores. A catação de lixo é uma atividade a qual se busca em situação de extrema necessidade. Não só as dificuldades mais diretas desse árduo trabalho o tornam a escolha apenas quando da falta de outra opção; fatores outros incluídos em um plano de representações sobre o significado desse trabalho também concorrem para revesti-lo de forte estigma e reforçar sua escolha como fruto da falta de possibilidade de escolha. O que termina por lhe subtrair o caráter de escolha. Como vimos, a reciclagem é uma longa cadeia de procedimentos que vai da coleta ao retorno da matéria-prima já reprocessada. O elo indubitavelmente mais vulnerável da cadeia é composto pelos catadores de materiais recicláveis, que se multiplicam nas ruas das metrópoles do mundo, catando o refugo da sociedade de consumo na era da descartabilidade. Nem por isso esses indivíduos são menos importantes no resultado final dos vultosos números apresentados pela indústria de reciclagem, assim como nos avanços da sustentabilidade ambiental; eles e elas também compõem a classe desses alquimistas do lixo, mesmo que ocupem a camada inferior da cadeia. Parafraseando Bauman (2005), são refugos humanos, reféns da crise do desemprego estrutural. A catação de materiais aproveitáveis entre aquilo que já não é considerado útil por boa parte da sociedade – o lixo – não é recente, embora tenha recebido maior notoriedade nos últimos anos pelo aumento abrupto no número de pessoas praticando a catação (ou casqueiração). É certo que outro fator que tem dado maior visibilidade à catação é o fato de hoje ser possível ver seus trabalhadores nas veias e artérias de inúmeras metrópoles e mesmo cidades pequenas. Anteriormente, muitos catadores atuavam diretamente nos lixões, coletando objetos e comida para consumo direto ou para troca e venda com sucateiros próximos aos locais de despejo. Interessante estudo datado de 1991, coordenado por Santos (SINE, 2001), enfoca as condições de trabalho dos catadores de lixo do Jangurussu (em Fortaleza/CE), que apesar
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da denominação de aterro, seria mais bem classificado como lixão, uma vez que não havia, sobretudo à época da pesquisa, as instalações e práticas de manejo e compactação do material como deve ocorrer em aterro sanitário. Ribeiro & Lima (2000) chamam a atenção às características das formas de disposição do lixo ao diferenciá-las:
Lixões a céu aberto também conhecidos como vazadouros são locais onde ocorre a simples descarga dos resíduos sem qualquer tipo de controle técnico. É a forma mais prejudicial ao ser humano e ao meio ambiente, pois nestes locais geralmente se estabelece um economia informal, resultante da catação dos materiais recicláveis e ainda a criação de animais domésticos que posteriormente são consumidos. […] Segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), aterro controlado é “Técnica de disposição de resíduos sólidos urbanos no solo, sem causar danos ou riscos à saúde pública, e a sua segurança, minimizando os impactos ambientais, método este que utiliza princípios de engenharia para confinar os resíduos sólidos, cobrindo-os com uma camada de material inerte na conclusão de cada jornada de trabalho”. (RIBEIRO & LIMA, 2000, p. 52-3)
Assim, mais apropriado falar que a pesquisa do Sistema Nacional de Emprego no lixão do Jangurussu diagnosticou uma situação de extrema precariedade, em que os catadores, uma população de aproximadamente três mil pessoas (SINE, 2001, p. 9), encontravam-se submetidos a fatores que iam desde os diversos vetores de doenças encontrados no lixão até os donos de depósitos localizados na área de despejo. A sordidez do cenário foi retratada na arte-denúncia de Descartes Gadelha, da coleção Catadores do Jangurussu, de 1989. Na ocasião, o artista plástico cearense buscou registrar – mais do que o cenário imediato à retina – a atmosfera psicológica do ambiente de miséria em que lixo e homem mimetizam-se, escondendo-se e confundindo-se reciprocamente. Assim descreve o próprio artista a respeito do cenário que o intrigou:
Os urubus, os cães, os ratos e os micróbios também participam do caótico banquete belicista onde todos são guerreiros defendendo o direito de viver. É a lei do lixo. Nessa imunda batalha só quem termina vencendo é a decomposição, que fria e indiferente, avança rapidamente com o seu poder de degradação, enquanto o homem falido mas compulsoriamente resignado prossegue retirando daí o que pode. (GADELHA, 1989)
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Acompanhando o movimento dos catadores quando da desativação do lixão/aterro do Jangurussu, quando estes sujeitos saíram às ruas da metrópole à cata, literalmente, de sobrevivência, Descartes Gadelha os retratou, agora nas ruas, em seu trabalho Heróis de Papelão, de 2003, cuja exposição no Centro Cultural Oboé, como dito às notas introdutórias, influenciou-me fortemente a refletir a realidade desses trabalhadores. As telas de cores homogêneas e fortes davam destaque a figuras esquálidas e sem rosto, representando a invisibilidade conferida pela sociedade a esses ninguéns e sem-nomes9. O trabalho do artista das telas recentemente inspirou outro artista a preencher quadros em movimento; o cineasta Ronaldo Nunes expôs na grande tela, através do filme “Rampa dos Sonhos”, lançado em outubro de 2008, o cotidiano do Jangurussu, construído no fim dos anos 1970 e hoje desativado, mas ainda pulsando entre chorume e lágrimas de uma usina de reciclagem funcionando precariamente. No enredo do filme, está incluso um outro trabalho de Descartes Gadelha, esse intitulado Calvário, de 2008, que retrata a morte de um catador que morreu indigente, sem atendimento médico e sem ninguém conseguir atestado de óbito. Nas palavras do artista, “um trabalhador, um catador, um homem digno, pai de família, jovem. Ele foi levado no próprio carrinho, de Messejana ao Bom Jardim [bairros periféricos, localizados no sul da capital cearense], atrapalhando o trânsito, e jogado numa cova rasa” (ROCHA & GALVÃO, 2008). Também o sul do país registrou em película a absurdidade da sobrevivência a partir do lixo. O (insuficientemente) aclamado “Ilha das Flores” de Jorge Furtado (1989) traz também o retrato da contradição da miséria em meio à abundância. Em treze “longos” minutos desencadeia-se um representativo esboço da mecânica de produção de desigualdades, a culminar com a dura atividade de cata do alimento preterido pelos porcos.
O tomate / plantado pelo senhor Suzuki, / trocado por dinheiro com o supermercado, / trocado pelo dinheiro que dona Anete trocou por perfumes extraídos das flores, / recusado para o molho do porco, / jogado no lixo / e recusado pelos porcos como alimento / está agora disponível para os seres humanos da Ilha das Flores.
O que coloca os seres humanos da Ilha das Flores depois dos porcos na prioridade de escolha de alimentos é o fato de não terem dinheiro nem dono. (FURTADO, 1989)
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A temática da invisibilidade dos catadores é abordada no filme curta metragem Bilu e João (2005), de Kátia Lund, que retrata o cotidiano de duas crianças que sobrevivem catando materiais recicláveis na cidade de São Paulo.
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Trata-se, é bem verdade de uma representação das diversas ilhas das flores existentes no país, como o Jangurussu no Ceará, pois que a Ilha das Flores verdadeira, localizada na cidade de Porto Alegre (RS), apresenta realidade bem diversa daquela exposta na pertinente e atualíssima reflexão de Furtado (1989). Outrossim, os relatos pessoais de Carolina Maria de Jesus, ainda na década de 1950, retratam momentos idos da busca de materiais a serem destinados a reaproveitamento. A autora de “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (JESUS, 2005) exercia atividades como catadora e escreveu um diário sobre seu cotidiano, que inclusive virou enredo de filme10. Em uma de suas anotações, Carolina diz: “Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender” (idem, p. 9). Ainda registrada em linguagem cinematográfica sob direção de Eduardo Coutinho, o documentário Boca de Lixo (1992), apresenta o árduo cotidiano de catadores que trabalham diretamente na rampa de despejo da Itaoca, em São Gonçalo, a 40 km da capital fluminense. A lente registra o cenário do absurdo que confirma as palavras de Descartes Gadelha acerca da disputa de espaço, material e alimento entre bichos-bichos e bichoshomens. Dessa forma, a catação de materiais destinados à inutilidade pode ser observada em momentos pretéritos, não com a mesma freqüência e difusão de então, vez que diversos fatores hodiernamente observados é que proporcionaram a multiplicação no número de pessoas dependendo do lixo como meio de sustento. Com o aumento do mercado de reciclagem e a instalação de indústrias de forma geograficamente menos concentrada, difundiu-se também o negócio de atravessamento da matéria-prima a essa indústria. Uma maior difusão no número de depósitos possibilitou (e demandou) um maior número de pessoas trabalhando para manter cheios os pátios dos sucateiros. Em Fortaleza especificamente, informações obtidas diretamente com os coordenadores do Fórum Estadual do Lixo e Cidadania local apontam para um abrupto aumento no número de catadores nas ruas da capital cearense após a desativação do aterro do Jangurussu, em 1998, quando foi substituído pelo Aterro Metropolitano Oeste, em Caucaia, município conurbado com Fortaleza e localizado na Região Metropolitana de Fortaleza. Muitos catadores freqüentadores do Fórum corroboram com a informação, afirmando que a catação nas ruas ficou mais comum em meados da década de 1990, quando o aterro do 10
Em 2004, foi produzido o curta-metragem (intitulado “Carolina”) sobre a vida dessa empregada doméstica, baseado em seu diário (JESUS, 2005) e em outras obras suas.
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Jangurussu estava já em vias de desativação. Os dados de uma pesquisa realizada pela Prefeitura Municipal de Fortaleza (PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 2006, p. 46) endossam as considerações a respeito da difusão da atividade de catação nas ruas da cidade; quando indagados sobre a quanto tempo trabalham como catadores de materiais recicláveis, 63,3% responderam exercerem a atividade entre 1 ano e um mês e 10 anos. O que nos leva a depreender a coerência do marco temporal apontado pelos coordenadores do Fórum Estadual do Lixo e Cidadania como momento de crescimento abrupto da categoria.
4.1. A catação de materiais recicláveis no Brasil e no mundo
Não é só no Brasil que é possível encontrar catadores sobrevivendo da coleta e separação de materiais destinados a inutilização e ainda potencialmente úteis. Castillo Berthier (2003) inicia seu artigo sobre catadores na Cidade do México fazendo referência aos diversos nomes que os trabalhadores do lixo recebem em diversas partes do mundo: packs e teugs em Dacar, no Senegal; wahis e zabbaleen no Cairo, Egito; gallinazos na Colômbia; chamberos no Equador; buzos na Costa Rica; cirujas na Argentina; scavengers ou garbage pickers nos países de língua inglesa e pepenadores no México. No sítio virtual do Compromisso Empresarial para a Reciclagem (CEMPRE), é possível visualizar fotos de catadores atuando nas ruas de cidades como Nova Iorque (nos Estados Unidos), Pequim (na China), em Bogotá (na Colômbia) e no Cairo (Egito). Levantamento da UNICEF do ano de 2000 (ABREU, 2001, p. 33) indica a presença de catadores de materiais recicláveis em 3.800 municípios brasileiros. Ressalte-se que o Brasil possui 5.561 municípios e, pelo dado já antigo, conclui-se pela presença dessa categoria laboral em mais de 68% dos municípios do país. Desse percentual, 64% se encontram em cidades com mais de 50 mil habitantes. O Movimento Nacional Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) estima que haja cerca de dois milhões de catadores no país, mas
desse
total
apenas
200
mil
fazem
parte
do
movimento
(cf.
www.movimentodoscatadores.org.br). O Banco Mundial estima que 1% da população urbana de todo o mundo sobreviva da coleta, separação e venda de materiais recicláveis, seja catando nas ruas, seja fazendo triagem ou ainda trabalhando diretamente em lixões (BONNER, 2008, p. 7). Hayami, Dikshit & Mishra (2003) apresentam as condições do trabalho de catação na capital da Índia, Delhi, descrevendo operações semelhantes às observadas no Brasil e em Fortaleza no que concerne à
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atividade de catação, inclusive no que tange às dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores da categoria. Em interessante ensaio fotográfico, Parker (2002) registra em imagens a situação de crianças vivendo em situações de trabalho precário ao redor do mundo. Dentre as situações denunciadas, chama à atenção a catação de lixo circunstancialmente observada na Indonésia, mas que pode ser visualizada no Brasil e certamente em outros lugares do mundo. O fotógrafo relata exatamente a semelhança de casos observados na Índia, Indonésia, Nepal, Equador, México e Guatemala, ressaltando a formação de comunidades marginalizadas próximos a lixões – tais como se observa em Fortaleza no caso do Jangurussu –, havendo casos de mortes durante as atividades de catação (PARKER, 2002, p. 2069).
FOTO 01: Criança catadora de lixo na Indonésia Fonte: PARKER, 2002, p. 2069.
FOTO 02: Criança catadora de lixo na indonésia Fonte: PARKER, 2002, p. 2069.
Também Medina (2005) reflete pertinentes questões acerca da catação em uma perspectiva local e global. O autor enumera problemas comuns da catação em diversos países periféricos e também fatores que contribuem para o exercício da atividade nas formas precárias observadas nesses locais, o que os diferencia dos países centrais no que diz respeito ao controle dos resíduos sólidos. Tais diferenças devem ser levadas em consideração no momento de se pensar soluções ou alternativas para a precarização do trabalho de catação, sendo ressaltadas a inexistência ou a incipiência de programas de gerenciamento de resíduos sólidos; a falta de um programa sistemático de coleta de lixo; a formação de um mercado informal de catação e separação do material jogado no lixo, geralmente exercido por pessoas das classes mais pobres das populações em questão, envolvendo desempregados, mulheres, crianças, migrantes e deficientes (MEDINA, 2005, p. 3-4).
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Destarte, observa-se que a catação de materiais é um fenômeno observado e estudado em todo o mundo – sobretudo nos países periféricos –, apresentado suas nuances em cada local específico, dada a incidência de condições particulares em cada um deles, tais como a relação com o Estado, a organização da categoria, o reconhecimento da população, o apoio do empresariado, dentre outros. Essa população de trabalhadores do mundo precarizador da vida e das condições de sobrevivência organiza-se essencialmente sob duas formas: vendendo seu material para deposeiros, donos de depósitos de sucata e materiais recicláveis, ou sob o modelo de cooperativas ou associações, em que os próprios catadores organizam-se autonomamente. Entre as cooperativas há movimentos de congregação de grupos cooperados, formando redes de associações, que discutem questões acerca do trabalho desses homens e mulheres, ampliando o poder de luta desses personagens e atuando fortemente no aumento da autoestima desses indivíduos. No Brasil, os catadores são representados, em nível nacional, pelo Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), que tem como objetivos principais organizar o trabalho e lutar pelos direitos da categoria. O Movimento surgiu em 1999, durante o 1º Encontro Nacional de Catadores de Papel e tem como pautas reivindicatórias centrais a autogestão dessa forma de trabalho e o controle da cadeia produtiva de reciclagem, “Nesse sentido organizamos bases orgânicas do Movimento em cooperativas, associações, entrepostos e grupos, nas quais ninguém pode ser beneficiado às custas do trabalho do outro” (MNCR). O documentário “Essa gente vai longe…” (2005), realizado pelo MNCR, é uma boa mostra dos propósitos do movimento. A organização dos catadores rendeu o reconhecimento formal da atividade, conferida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que incluiu na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) a profissão Catador de Material Reciclável. O MTE resume as condições de trabalho da seguinte forma:
O trabalho é exercido por profissionais que se organizam de forma autônoma ou em cooperativas. Trabalham para venda de materiais a empresas ou cooperativas de reciclagem. O trabalho é exercido a céu aberto, em horários variados. O trabalhador é exposto a variações climáticas, a riscos de acidente na manipulação do material, a acidentes de trânsito e, muitas vezes, à violência urbana. Nas cooperativas surgem especializações do trabalho que tendem a aumentar o número de postos, como os de separador, triador e enfardador de sucatas. (BRASIL - MTE)
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Em outros países, há também organizações de catadores, formadas com o intuito precípuo de fortalecer a categoria, atuando de forma a assegurar direitos e reconhecimento. Assim, podemos apontar para redes associativas de catadores na Colômbia, com a Asociación Nacional de Recicladores (ANR), o sindicato de recicladores da cidade de Puna, na Índia, denominado Kagad Kach Patra Kashtakari Panchayat (KKPKP), Associação de Recicladores de Ankara Harit Temel, na Turquia, Reciclando Sonhos, da Argentina, Associação de Resíduos Sólidos da Indonésia, Associação Shashi Bushan de Recicladores de Harit, na Índia, além de movimentos incipientes no México, Chile, China e em muitos outros países (RECICLADORES SEM FRONTEIRAS, 2008). Há inclusive redes interligando movimentos nacionais, tecendo uma pauta de reivindicações internacional e permitindo a interlocução de catadores de todo o mundo em importantes espaços de trocas de experiências. Na América Latina, podemos citar a Rede Latino-Americana de Catadores que é uma articulação em processo de consolidação entre organizações de diferentes países: Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (Brasil), Movimento Nacional de Recoletores do Chile, Associação de Recicladores de Colômbia, Associação de Recicladores de Bogotá (Colômbia), Movimento Nacional de Recicladores do Peru (em consolidação) e catadores organizados da Argentina e do Uruguai. Interessante observar o movimento de difusão do exercício da atividade de catação que ocorreu também na capital colombiana, em Bogotá, onde a catação no lixão era comum até o final da década de 1980. Após a construção do aterro sanitário a catação no lixão foi proibida, o que foi considerado um avanço para alguns, mas trazendo impacto imediato ao trabalho dos catadores que sobreviviam da cata no lixão. Dessa forma, o banimento da catação nas rampas de lixo forçou a migração dessa população de trabalhadores para as ruas de Bogotá (MEDINA, 2005, p. 19), em movimento semelhante ao observado na capital do Ceará. No ano de 2008 ocorreu a 1ª Conferência Mundial de Recolhedores de Materiais Recicláveis, em Bogotá, na Colômbia, cujos principais objetivos eram a divulgação da contribuição do catador para a defesa do meio ambiente e a importância desse trabalho para o gerenciamento de resíduos sólidos. O evento contou com a participação representativa de 34 países, contando com a participação não só de catadores de materiais recicláveis, mas também de representantes de agências de apoio ao desenvolvimento, de organizações nãogovernamentais e do setor privado e estatal (RECICLADORES SEM FRONTEIRAS, 2008; BONNER, 2008). Trata-se de importante momento de permuta de experiências e construção
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de pautas comuns, além de proporcionar maior visibilidade ao trabalho de catadores, mirando à sua desprecarização. Quanto à organização dos catadores, Bonner (2008) ressalta que Brasil e Colômbia têm os mais bem estabelecidos movimentos de catadores, o que o autor entende ser de extrema importância para a melhoria das condições de trabalho da categoria. Na cidade de Fortaleza, a organização já deu importantes passos, mas os resultados ainda são tímidos. O movimento na cidade é caracterizado pela polarização de grupos independentes, os grupos ligados ao Fórum Estadual Lixo e Cidadania e grupos formados por setores empresariais, que, de certa forma, rivalizam com as propostas do Fórum, mais favoráveis aos catadores. O Fórum Estadual Lixo e Cidadania está ligado ao Fórum Nacional Lixo e Cidadania11 que tem como uma das entidades promotoras o UNICEF12. Em Fortaleza, o Fórum Estadual é promovido pela Cáritas do Brasil13 em parceria com a Pastoral do Povo da Rua14. Nele reúnem-se grupos de catadores e catadoras com o objetivo de discutir políticas pertinentes, fortalecer a categoria, facilitar mobilizações e ensejar conscientização e educação ambiental aos catadores. A coletivização das experiências proporcionou o surgimento da Rede de Catadores de Resíduos Sólidos Recicláveis do Ceará, que congrega quinze grupos associativos de catadores, todos localizados na capital do Estado.
4.2. As importâncias atribuídas ao trabalho do catador
Ainda que a passos lentos – ou não tão rápidos quanto se espera que fosse, dadas as condições de precariedade dos indivíduos que sobrevivem da catação –, os catadores de materiais recicláveis têm alcançado, enquanto grupos particulares e enquanto movimento nacional e globalmente articulado, importantes conquistas, sobretudo em termos de visibilidade desse trabalho, o que é o primeiro passo para o reconhecimento da sua importância para a sociedade. 11
O Fórum Nacional Lixo e Cidadania nasceu, em 1999, de uma iniciativa do UNICEF para abolir o trabalho de crianças e adolescentes no lixo em todo o Brasil. 12 Programa da Organização das Nações Unidas encarregado de promover ações em favor das crianças e adolescentes do mundo, no intuito de garantir-lhes direitos e vida digna. 13 A Cáritas Brasileira faz parte da Rede Caritas Internationalis, rede da Igreja Católica de atuação social composta por 162 organizações presentes em 200 países e territórios, com sede em Roma. Organismo da CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, foi criada em 12 de novembro de 1956 e é reconhecida como de utilidade pública federal. 14 Iniciada em 2002 pelo jovem, então seminarista, Júnior de Aquino, a organização é formada principalmente por religiosos que dedicam parte de seu tempo aos cuidados com os moradores de rua e catadores de lixo reciclável.
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Segundo dados indicados por Abreu (2001, p. 33) de pesquisa realizada pelo UNICEF, os catadores de materiais recicláveis são responsáveis pelo desvio de 10% a 20% dos resíduos sólidos urbanos para o mercado da reciclagem, razão pela qual a autora os denomina de agentes econômicos e ambientais, diversamente das nomeações usuais entre os próprios trabalhadores, que se dizem catadores, carroceiros ou casqueiradores. Esse percentual faz dos catadores os maiores contribuintes às indústrias de reciclagem, pois, não obstante as dificuldades por eles enfrentadas e os baixos preços aplicados pelos intermediários, são esses trabalhadores os responsáveis por 90% do material que abastece as indústrias no Brasil (idem, p. 34), fazendo do país um dos maiores recicladores do mundo e contribuindo para um mercado de alto giro financeiro, conforme vimos no capítulo anterior. Mota (2005, p. 6) ressalta a importância da participação desses sujeitos na coleta seletiva de lixo nas cidades tanto para a política de limpeza urbana como a de inclusão social e proteção ambiental. Mendes & Sousa (2006) também apontam para a importância desse trabalho para a “amenização do desperdício e redução da degradação ambiental que o lixo provoca” (MENDES & SOUSA, 2006, p. 17). Medina salienta igualmente a importância da catação para o gerenciamento de resíduos sólidos urbanos, com redução do desperdício e proteção ambiental. O autor indica que os catadores indonesianos são responsáveis pela coleta de um terço do lixo produzido, aumentando assim a vida útil dos aterros (MEDINA, 2005, p. 15). Consoante os apontamentos de Berthier (2003), ao tempo que os vários campos do conhecimento apresentam-se como capazes para solucionar o problema da excessiva produção de rejeitos, pouco se tem feito no que pertine à produção e gerenciamento de lixo no terceiro mundo. Nesse contexto, a reciclagem cria muitas fontes de trabalho para aqueles que dependem do lixo. O autor ressalta que, queira ou não a sociedade reconhecer o fato, os catadores, efetivamente, desempenham uma função na qual, muito embora seja marginalizada, é relevantemente útil para o meio ambiente (BERTHIER, 2003, p. 208). O trabalho dos catadores tem sido percebido, portanto como uma forma de dar melhor destino a materiais recicláveis que seriam despejados nos já abarrotados lixões urbanos (CALDERONI, 2003; RIBEIRO & LIMA, 2000; MACHADO et alli, 2006; MOTA, 2005). Mas em meio a tais posicionamentos, não se pode deixar de refletir acerca da precarização desse trabalho e das motivações subjetivas dos próprios catadores. Cumpre questionar e perquirir o sentido dessa atividade para os sujeitos que sobrevivem a partir dela.
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Daí ser importante ter a noção geral da catação de lixo como foi proposto neste capítulo, para que a partir da literatura já existente acerca da temática, possamos nos debruçar com maior clareza nos questionamentos motrizes da pesquisa, analisando-os a partir de fonte tríplice, quais sejam o campo, a literatura e o diagnóstico publicado pela Prefeitura de Fortaleza. Exemplos de opiniões opostas podem ser elencados a partir dos estudos de Medeiros & Macêdo (2006), que, menos otimistas, lançam um instigante questionamento logo no título de seu trabalho: “Catador de material reciclável: uma profissão para além da sobrevivência?”! O texto é baseado em estudo realizado com catadores atuantes no município de Goiânia (GO), apontando a reciclagem do lixo urbano como atividade emergente após movimentos ambientalistas. Contudo, as autoras ressaltam que, apesar das vantagens ambientais, o que sobressai é o aspecto econômico. Assim, para muitos trabalhadores, a reciclagem constitui único meio de sobrevivência diante de um mercado de trabalho essencialmente excludente. As autoras ressaltam a periculosidade da atividade e os riscos à saúde a que são expostos os trabalhadores. Assim, se o trabalho de catação é meio de inclusão, ou de busca de cidadania como fora exposto a partir de reflexões de outros autores, para Medeiros & Macêdo trata-se de uma inclusão perversa, pois como se pode verificar, com a lucratividade assegurada pelos processos de reciclagem, estes estão sendo realizados por pessoas de diferentes segmentos e até mesmo por organizações terceirizadas, o que conduz paulatinamente para nova exclusão dos catadores (2006, p. 70)
Também Magera (2004) apresenta relevante reflexão acerca da temática na qual, segundo o autor, reside um paradoxo: a reciclagem e a associação cooperativa entre catadores são usadas como agentes da modernidade, pretensos conferidores de cidadania, de inclusão social, mas escondem no seu bojo princípios de relações do trabalho que se julgava estar no passado da história do trabalho. O autor apresenta o tema a partir de sério problema que se constata na modernidade, a produção industrial de lixo. Esse potencial somado a um discurso ambientalista crescente desde a década de 1970, justifica o surgimento dessa categoria que, utilizada por um setor que se pretende moderno (porque ecológico), suscita trabalho extremamente precário. Dessa forma, o capitalismo que produz uma situação ecológica insustentável, vale-se de expedientes como o da catação, através dos quais se pode como que expiar seus malefícios, beneficiando-se duplamente, pois barateia custos na (re)produção para o consumo
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e agrega valor simbólico ao produto “ecologicamente correto”. “Sendo assim, os catadores, ao mesmo tempo em que são ‘agentes da modernidade’, tornam-se também a escória da sociedade” (MAGERA, 2004, p. 58). Ao final, a economia solidária é apontada como possível alternativa à situação dos catadores. Acerca do discurso ambientalista, Layrargues (2002) faz reflexão apresentando-o como dissimulado, porquanto pretende diminuir os danos ambientais alimentado por interesses econômicos vultosos. Ademais, se a cultura eco-capitalista ambiciona ser sustentável, impõe a mesma lógica de consumo insustentável levada a cabo nos países de primeiro mundo e pelas elites terceiro-mundistas. Aí reside, portanto, o que o autor chama de “cinismo da reciclagem”. Os posicionamentos suscitam novos questionamentos e nos remetem a reflexões que passam pelas indagações iniciais desse breve percurso cognitivo tais como as motivações que levam os catadores a iniciarem na atividade, a possibilidade de resignificação do trabalho e as novas motivações em caso de haver uma reconfiguração desses sentidos. Interrogações estas que poderão ser mais bem trabalhadas após breve apresentação dos catadores mais próximos a nós, muito embora por vezes distantes dos nossos olhares; aqueles que percorrem as ruas de nossa Cidade.
4.3. Os catadores de materiais recicláveis em Fortaleza
No ano de 2006 foi publicada uma pesquisa de grande importância para um melhor conhecimento desses trabalhadores atuante na metrópole cearense. A pesquisa – intitulada Diagnóstico da situação socioeconômica e cultural dos catadores de materiais recicláveis de Fortaleza – foi realizada pela Prefeitura de Fortaleza através do IMPARH (Instituto Municipal de Pesquisas, Administração e Recursos Humanos) e da SEMAM (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Controle Urbano) e teve como objetivos mapear a área de atuação dos catadores, conhecer seu modo de vida e sua dinâmica de produção e realizar o diagnóstico da situação socioeconômica desses indivíduos. Entendendo ser importante a apropriação dos dados dispostos no diagnóstico para um delineamento do perfil dos catadores de materiais recicláveis em Fortaleza, passo a analisá-los brevemente, em interlocução com relatos dos catadores por mim entrevistados. Os dados da pesquisa são de fundamental importância para que se possa traçar um perfil dessa peculiar categoria de trabalhadores. Os resultados percentuais da pesquisa
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referem-se a 906 catadores e catadoras com os quais foi aplicado questionário diretamente. O diagnóstico do IMPARH foi realizado em mais de quarenta, dos 114, bairros da capital cearense e os dados mostram que 71,7% da população de catadores está concentrada nas regionais III, IV e VI. Vale ressaltar que a regional VI concentra o maior percentual de habitantes da Capital e caracteriza-se por ser composta de bairros com parca infra-estrutura sanitária e urbana, sendo a região que abriga o aterro do Jangurussu, hoje desativado, mas ainda destino de 20% do lixo doméstico de Fortaleza, que passa pela usina de triagem, funcionando em más condições. A pesquisa estima que haja de seis a oito mil catadores e catadoras de materiais recicláveis circulando por uma cidade que produz cerca de noventa mil toneladas de lixo por mês e recicla apenas 4,9 mil toneladas das 15 mil toneladas potencialmente recicláveis, o que mostra um baixíssimo aproveitamento do potencial de reutilização dessas matérias-primas que se perdem por falta de adequadas políticas públicas de coleta seletiva e conscientização da população acerca do problema. Importante inserir esses dados dentro de um contexto que apresenta Fortaleza como uma metrópole de aproximadamente 2,4 milhões de habitantes e sediadora de 66% dos estabelecimentos comerciais registrados no estado do Ceará, o que nos remete à reflexão da relação entre consumo e produção de lixo. Os milhares de indivíduos que circulam na imensa urbe em busca de materiais recicláveis e sobrevivência são, na maioria das vezes, chefes de família que têm na atividade sua principal ou única fonte de renda, sendo 75,6% de homens e 24,4% de mulheres. Dada a exigência de força física, as mulheres são minoria entre os catadores, mas se destacam na coordenação de grupos e organizações. A força de trabalho de crianças e velhos corresponde a 14% do total de catadores e o nível de escolaridade é muito baixo: 95% deles concluíram, no máximo, o ensino fundamental e há um razoável percentual de analfabetos, 22,6%. Ainda sobre a escolaridade dos catadores, o percentual dos que não estão estudando atualmente (90,9%) é alarmante, uma vez que se trata de uma população jovem e com pouco tempo de estudo. Desses 90,9%, 68% alegam a necessidade de trabalhar como motivo de terem parado de estudar. Esse dado acerca da motivação já os alerta a refletir sobre os posicionamentos expostos no tópico anterior, suscitando questionamento acerca do reconhecimento subjetivo por parte do catador da importância ambiental do seu trabalho. É possível depreender a partir desses dados que a motivação primeira relaciona-se mais à necessidade de sobrevivência diante da dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho. Dos entrevistados, 74,4% têm filhos, sendo que 46,3% destes têm de um a dois filhos. A maioria deles (38,1%) é natural de Fortaleza e 94% têm casa (a pesquisa não faz
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distinção entre casa própria ou alugada). Deste percentual, 13,6% deles dormem alguns dias na rua durante a semana, o que pode ser explicado pelas longas distâncias que os catadores percorrem e a necessidade de se anteciparem ao horário da coleta do caminhão de lixo. Os catadores procuram passar um pouco antes do caminhão de lixo, pois este já está disposto para ser recolhido. Ainda sobre a jornada de trabalho, a pesquisa da Prefeitura de Fortaleza (2006) indica que a grande maioria, 71,4% prefere catar sozinho. É interessante observar que os dados apresentados estão em total conformidade com as informações obtidas diretamente com os catadores entrevistados por mim, que se posicionaram, pela preferência em sair à rua sozinho alegando, em todos os casos, a imprevisibilidade do comportamento alheio e a possibilidade de ser imputado por uma ação reprovável do companheiro.
É mais melhor, a gente andar só e Deus mesmo. Porque a gente sair só, a gente faz as coisas mais melhor. Porque ninguém sabe hoje em dia do coração dos outros, de ninguém. E eu trabalho certo, aí vem outro querendo me acompanhar, ele pode até chegar num canto, encontrar uma coisa fácil e carregar. Aí o quê que se torna? Aí ele bole só, tira as coisas do povo, qualquer coisa ele bole, aí quem vai levar a culpa é eu, quem tá andando mais ele, ele anda mais eu né? Se eu disser assim: “olhe não faça isso rapaz, não é coisa”. Tem quem dê fé não, quando dá fé, tem alguém que faça, tem alguém que dê fé. (Marlene, catadora da Associação Reciclando, 44 anos, entrevista realizada em 11/12/08)
Rapaz, em primeiro lugar eu faço com Deus, mas eu só ando só. Antigamente eu andava com a minha esposa, mas hoje em dia ela toma de conta do nosso filho e fica em casa, mas antigamente eu andava mais a minha esposa, eu e ela. (Antônio, catador do depósito de Zé Bezerra, 38 anos, entrevista realizada em 19/11/08)
Eu prefiro só. Porque às vezes você sai com alguém, eu não digo com alguém aqui da associação, mas às vezes você pega um carroceiro e sai e você não sabe qual é a intenção daquele cara. Porque muitas vezes é como as pessoas dizem, tem catador desonesto no meio dos catadores honestos. Às vezes o cara passa, chega ali aí vai perguntar num negócio daquele se o cara ver a cadeira daquela e gostar de alguma coisa ele não vai pedir não. Muitas vezes a intenção dele, ele pega, tira e joga dentro do carro e... e muitas vezes uma viatura dessa pára e o cara não quer saber não, você vai apanhar até não querer mais. Por isso que à vezes eu prefiro andar só. (Caio, catador da Associação Reciclando, 33 anos, entrevista realizada em 10/12/08)
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Rapaz, eu nunca gostei de andar de dois, porque muita gente pensa que todo carroceiro é ladrão, o cabra que anda assim juntando essas coisas, mas num é não. Aí eu sempre andava só, porque as vezes num meio de um tem um sem-vergonha no meio, né? O cabra faz uma coisa, rouba a casa duma pessoa, aí eu vou levar a culpa, não tô certo? Aí andava só. Pronto. Chegava, pegava minhas coisas e ia embora, na hora que não achava nada, pegava a carroça e vinha embora, comigo num tem esse negócio de besteira não. (Geraldo, catador da Associação Reciclando, 51 anos, 12/12/08)
Eu só trabalho só, eu e Deus. Porque companhia não dá certo não, aí mexe nas coisas dos outros, aí às vezes vai e não agüenta o tombo. E o nêgo só, não. (...) Tem muita gente que anda só, tem muita gente que anda acompanhado. A maioria que anda acompanhado é porque já é o destino querendo fazer alguma coisa de errado. (Roberto, catador do depósito de Zé Bezerra, 31 anos, 19/11/08)
A depender da confiança depositada no acompanhante, pode o catador abrir concessões:
Eu gosto de entrar e sair sozinho e Deus. Sozinho e Deus, porque... Mas muitas vezes eu, como eu peguei muita freguesia boa, muita reciclagem mesmo, o pessoal me conhecendo, aí eu comecei a arranjar um jovem pra me ajudar, um conhecido meu, pra quando a gente repartir o dinheiro. Aí ele dá maior valor andar comigo, ele, porque eu sou desenrolado, eu desenrolo mesmo! (Paulo, catador do depósito de Zé Bezerra, 35 anos, entrevista realizada em 19/11/08)
Assim, pode-se inferir que os próprios catadores guardam certa desconfiança em relação a seus colegas de trabalho, a não ser que o convívio já seja suficiente para debelá-la ou pelo menos minimizá-la. Acerca da renda familiar, 71,4% dos catadores responderam que a principal renda da casa é de sua responsabilidade. Quanto aos rendimentos, 59,1% disseram conseguir entre R$ 101,00 a R$ 300,00, por mês15. Vale ressaltar os 11,4% de catadores que afirmaram ter rendimento mensal entre zero a R$ 100,00, o que indica o nível de pauperização desses trabalhadores. Tal dado está em consonância com outro que indica um expressivo percentual de 11,3% de catadores que obtêm alimento no lixo, além de reforçar a conclusão de que a catação surge como uma alternativa extrema à falta de meios de sobrevivência. 15
O salário mínimo vigente ao tempo da pesquisa realizada pela Prefeitura Municipal de Fortaleza era R$ 300,00.
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Dos 906 entrevistados, 596 (65,8%) responderam que não participam de programas sociais. Quanto ao ganho semanal no trabalho da catação, há pequena variação nas respostas: 4,8% auferem até R$ 10,00; 12,4% entre R$ 11,00 e R$ 20,00; 11,7% entre R$ 21,00 e R$ 30,00; 14,7% entre R$ 31,00 e R$ 40,00; 16,7% entre R$ 41,00 e R$ 50,00; 13,2% entre R$ 51,00 e R$ 60,00 e 24,5% têm rendimento semanal superior a R$ 60,00. Em relação aos riscos à saúde desses “alquimistas”, é interessante iniciar mencionando o já citado triste índice de 11,3% de catadores que conseguem alimento no lixo. Quanto a acidentes, 29,4% dizem já ter sofrido acidente durante seu trabalho e 43,9% afirmam ter sofrido algum tipo de violência, seja física, seja psicológica, seja sexual ou outras formas; deste percentual, 47,6% sofreu a violência durante o exercício da catação. Acerca desse tema, é importante salientar que, conforme observam Sousa & Mendes (2006, p. 32-3), os catadores não atribuem com freqüência a doenças ao trabalho. Nesse sentido, faz-se necessário refletir acerca do significado de doença para esses sujeitos, o que, através das análises realizadas pelas autoras afigura-se como ter condição para trabalhar. Não é diversa a conclusão de Dall’Agnol & Fernandes (2007) quando analisam a concepção de saúde na visão dos catadores de lixo. As autoras observam que para os trabalhadores, saúde é não contrair uma doença grave, como AIDS ou tuberculose. Doenças respiratórias, alergias, problemas dermatológicos e problemas de colunas não constituem doença – ressalte-se que essas três categorias foram referidas por 32,6% dos catadores abordados pela pesquisa da Prefeitura de Fortaleza (2006). Assim, as autoras consignam que, pela concepção dos catadores,
Ter saúde está muito vinculado à possibilidade de poder trabalhar, indiferentemente das condições que o trabalho ofereça. Essa concepção denuncia o quanto está distante a noção de salubridade que busca contemplar condições adequadas de trabalho e a separação do lixo, não apenas pelo caráter informal, mas principalmente pelos riscos que oferece, é legalmente considerada insalubre. (DALL’AGNOL & FERNANDES, 2007, p. 4).
Quanto à associação da obtenção da comida no lixo e os conseqüentes riscos à a saúde, um catador do depósito de Zé Bezerra assim diz:
Os riscos? É pegar uma doença. Comer coisa do lixo e se... comer coisas que às vezes a fome obriga, né. Porque a mistura do comer é a fome, viu. Pode ser qualquer comer, que a mistura é a fome. A fome... a mistura é a fome. Uma vez eu achei uma panela de arroz, uma vasilha de arroz, aí eu levei lá pra favela, aí eu comecei assim a
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coisar e começou a soltar um cheirinho, aí eu pensei que era ervilha, né, eu pensei que era outras coisas, né, dentro do arroz. Aí eu estranhando, né, mas eu digo, eu vou levar assim mesmo, porque tem um bocado de bruxo na favela que come é tudo aí levei. Aí começaram a esquentar o arroz lá, aí eu provei, aí tinha um negócio véi amargando, aí eu, rapaz, isso aqui não é o que eu estou pensando não (risos), aí era cocô, não sei de... de gato, misturado com de cachorro, porque cachorro come ração e caga assim diferente, né?! Aí tudo misturado, parecia um coquetel assim, o arroz, macho (risos). A negada não pensou duas vezes não, a fome; encheram cada um um prato, as mãos, ainda beberam e ainda vieram perguntar se tinha era mais. (Paulo, catador do depósito de Zé Bezerra, 35 anos, 19/11/08)
Para, Zé Bezerra, dono do depósito que visitei, os catadores “adquiriam anticorpos” no contato com o lixo: “Agora vai tu pegar um lixo desse, num instante fica doente!”. Os dados e as observações da literatura citada acerca da concepção de saúde para os catadores harmonizam-se com a paradigmática fala de uma catadora da Associação Reciclando, manifestando-se quando indagada sobre os riscos que ela observa em seu trabalho e atribuindo à divindade o poder de mantê-la sã:
Deus pode livrar nós de uma doença aqui, porque, realmente que Deus sabe, porque um trabalho desse aqui, a gente tá trabalhando por que tem precisão. E Deus livra nós de todas as doenças aqui. Se Deus não livrar, porque eu vejo quem trabalha lá nos apartamentos, morre das piores doenças, morre do câncer. Rico morre do câncer. Quem já viu rico andar com as mãos sujas? Se pegar na sua mão bem limpinha mas quando ele sai ele lava com álcool. E quando rico morre, morreu de quê? Do coração, morreu da pior doença. Né não? Nunca vi dizer que o rico morresse de doença. Morreu do coração. Morreu largando os pedaços do câncer, mas a família: “foi do coração”. Muitos deles ó, lá do hospital vai pro cemitério que não pode vim mais pra casa. É mais fácil nós cair doente, morreu de que? Caiu doente e morreu do coração. Mas é mais fácil um que nem nós, que vive na sujeira, morrer do coração de que do câncer. Que nós não tem orgulho de pegar numa coisa suja, nós não tem orgulho de você pegar na minha mão e você ir bem ali e lavar a sua mão com álcool, porque você tá com nojo de nós, você tem? Se você tivesse esse orgulho todinho, você não se sentava numa ruma de lixo dessa pra conversar com a gente. Sentou até no chão, que nem ontem eu vi você sentado ali no chão. Você não pode morrer duma doença grande, que você não tem esse orgulho. Tá certo?! (Marlene, catadora da Associação Reciclando, 44 anos, entrevista realizada em 11/12/08)
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Sobre o tempo em que trabalham como catadores 57,8% catam a, no máximo, cinco anos. Mas é interessante observar os 21,9% que trabalham de seis a dez anos nessa atividade e os 15% que trabalham de onze a vinte anos, o que desmistifica a idéia de que a atividade é recente, muito embora tenha tido uma forte ascensão nos últimos cinco anos. Quanto à freqüência com que exercem atividades como catadores 22,5% disseram catar pelo menos três vezes por semana e 31,1% catam seis vezes por semana. Em relação a quanto coletam por dia os resultados são bastante variáveis, sendo que apenas 15,1% disseram coletar mais que 150 quilos diariamente. O alto índice de catadores que dizem ter-se iniciado nas atividades da catação por falta de emprego (82,8%) confirma a hipótese de que esses indivíduos, na grande maioria das vezes, inserem-se nessa atividade como uma alternativa ao desemprego. Aqui, mais especificamente é possível observar as motivações precípuas de ingresso na atividade, qual seja a falta de alternativas, diante da dificuldade crescente de ingresso no mercado de trabalho, sobretudo devido à baixa escolaridade desses sujeitos, conforme indicado pela pesquisa da Prefeitura de Fortaleza (2006), conforme dados já referidos. Dessa forma, são emblemáticas as falas dos catadores por mim entrevistados demonstrando ser a atividade de catação uma escolha pela falta de possibilidade de escolha, conforme me referi no capítulo anterior:
Andei atrás de trabalho, andei muito atrás de trabalho noutros cantos, não encontrei, aí foi uma tia minha chegou, ela já estava trabalhando, ela já tinha o carro dela e me chamou pra mim andar mais ela. (Marlene, catadora, 44 anos)
Eu sonhava em ser alguém na vida, né. Em ser um bombeiro, um doutor... mas não tive chance, fazer o quê né, irmão!? (Antônio, catador, 38 anos)
Quanto ao carrinho com o qual trabalham, 58,6% utilizam o carrinho do deposeiro ou sucateiro, sendo que apenas 16% trabalham com carrinho próprio e 2,5% trabalham com carrinhos de cooperativa. Em relação ao comprador do material recolhido, 91% vendem-no para deposeiros ou sucateiros e apenas 7,9% vendem-no para cooperativas ou associações. Esses índices permitem observar a grande dependência dos catadores para com os sucateiros ou deposeiros, que lhes emprestam carrinhos e aplicam preços mais baixos que os aplicados nas cooperativas. A intermediação de atravessadores como deposeiros ou sucateiros advém da necessidade de acúmulo de material numa quantidade suficiente para vender diretamente à indústria ou a atravessadores maiores. De toda forma, a relação com os deposeiros faz-se
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imperativa, porquanto o catador, sozinho, não tem como juntar grande quantidade de material além de não ter apoio e deter pouco conhecimento dos aspectos logísticos da cadeia de reciclagem (MEDEIROS & MACÊDO, 2007, p. 80). Os deposeiros, portanto, estabelecem os preços e muitas vezes submetem o catador à sua dependência em troca do uso do carrinho, considerado entre os catadores, um objeto conferidor de status e de difícil obtenção dado o alto custo para o seu padrão de vida. Estabelece-se assim, uma relação paternalista que limita a possibilidade de venda do catador para outros depósitos, submetendo-se aos preços e condições impostos pelo deposeiro. Esse aspecto pode ser observado mesmo em outros países, tal como mostra as pesquisas de David Wilson et alli (2006, p. 800), que apontam para a existência de uma hierarquia na rede de reciclagem que inicia no catador e se encerra na indústria. Hayami et alli (2003, p. 17), por sua vez, apresentam essa relação como uma dinâmica de concorrência, em que muitas vezes, a depender da rentabilidade proporcionada por um catador, o deposeiro oferece melhores condições a fim de atrair o trabalhador, o que confere certo poder de barganha aos catadores. Todavia, esse poder de barganha é balizado pelo espaço que ocupa o deposeiro e pela necessidade que o catador tem de vender seu material a ele, sobremaneira quando depende dele para utilizar sua principal ferramenta de trabalho, o carrinho, e quando a indústria exige uma série de pré-processamentos que exigem uma melhor organização e maior volume de material. Assim é que Medina (2005, p. 20) considera como oligopsônio o controle de mercado exercido pelos deposeiros, vez que são poucos compradores para muitos vendedores (o inverso da relação de oligopólio). O autor chega a dar o exemplo de ganhos do deposeiro acima de 300% em cima dos materiais comprados dos catadores. Daí que todos esses autores que diagnosticam o referido problema (MEDEIROS & MACÊDO, 2006; WILSON, 2006; MEDINA, 2005) propõem o associativismo como alternativa à dependência ante o deposeiro. Como vimos, o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) tem como pauta reivindicatória básica a luta pelo “controle dos catadores sobre da cadeia produtiva de materiais recicláveis”, o que vai de encontro com a realidade atual, em que os deposeiros figuram, no mais das vezes, como principais atravessadores diretos dos materiais recolhidos pelos catadores. Segundo a pesquisa, não há a consciência por parte da maioria dos catadores de que organizados em categorias (associações ou cooperativas) teriam mais força e representatividade. Indagados sobre quais são as perspectivas pessoais de futuro, apenas 4,5% disseram não ter nenhuma, 6,7% crêem que continuarão catando materiais recicláveis, 11,1% dizem que pretendem estudar para poderem ter mais opções de trabalho, 16, 8% pretende
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melhorar as condições de catação e 51,9% responderam que vislumbram deixar de catar materiais recicláveis e exercer outra atividade laboral. Esses dados indicam o nível de insatisfação dessas pessoas com o seu trabalho degradante; tanto que a maioria seguiu para essa atividade pela falta de oportunidade de trabalho e apenas 14% consideram-na como renda extra. Os números permitem delinear um perfil da categoria, marcada pela pobreza, pela baixa escolaridade, pela falta de outras opções de trabalho. São indivíduos que desenvolvem uma atividade extenuante, dada as longas distâncias e o elevado peso transportado por tração própria e sobre os quais recai forte estigma social. Diante do exposto, cumpre aproximarmo-nos mais dos sujeitos da catação de materiais recicláveis, visando a conhecer melhor o seu cotidiano, identificando as condições e organização de trabalho, a fim de procurar compreender os impactos da precarização dessa atividade laboral nesses trabalhadores, suas motivações e atribuições de sentido ao trabalho de catação.
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5. AMBIENTES E CONDIÇÕES DO TRABALHO DE CATAÇÃO
5.1. Lugares da catação
Em vista dos questionamentos inicialmente propostos como motes da pesquisa e considerando a compreensão da necessidade de uma maior aproximação com os sujeitos da catação, foi realizado estudo exploratório de caráter qualitativo no qual foram visitados dois locais de organização da categoria em Fortaleza. Como já anteriormente explicitado, a escolha dos locais recaiu primeiramente sobre as formas de organização mais referenciadas no diagnóstico sócio-econômico da Prefeitura Municipal de Fortaleza (2006), quais sejam um depósito, onde foi possível estabelecer contato com catadores chamados avulsos, e uma associação. Ambos os locais localizam-se à distância de poucos quarteirões entre si, no mesmo bairro de Fortaleza, o Tancredo Neves, situado na área administrativa da Secretaria Executiva Regional VI. O bairro Tancredo Neves tem seus dados contabilizados pelo IBGE como inclusos no bairro Jardim das Oliveiras, que lhe é vizinho, mas tratado como bairro a parte pelas manifestações de pertença dos moradores do Tancredo Neves, que inclusive conta com linhas de ônibus específicas e referência de bairro em alguns mapas oficiais, sendo inclusive reconhecido como tal pela Prefeitura Municipal. Assim, o Censo de 2000 (IBGE) indica que o Jardim das Oliveiras, que contém o bairro Tancredo Neves, concentra 1,43 % da população fortalezense, ou seja, 30.754 habitantes. O Tancredo Neves é caracterizado por ser um bairro periférico, com um dos mais altos índices de criminalidade e alta concentração de população de baixa renda. Há áreas cujas residências apresentam arquitetura extremamente precária e em geral não têm saneamento, sendo poucos os equipamentos a oferecer serviços públicos básicos. Vale ressaltar que a escolha dessas duas formas de organização – depósito e associação –, teve como ensejo além dos dados da pesquisa da Prefeitura, informações obtidas em pesquisa exploratória e contato com participantes do Fórum Estadual Lixo e Cidadania. Também contribuiu para a escolha metodológica o fato de a literatura revisada (VELLOSO, 2005; SOUSA & MENDES, 2006; MOTA, 2005; MEIRELLES & GOMES, 2008; MAGERA, 2004; MEDINA, 2005; WILSON et alli, 2006) fazer menção a marcantes diferenças entre as duas formas, o que me suscitou a hipótese de tais particularidades repercutirem no objeto dos meus questionamentos motrizes. Saliente-se que aqui se inclui as cooperativas também como formas associativas, haja vista que, segundo informações obtidas diretamente no Fórum Estadual Lixo e Cidadania, a grande maioria das cooperativas de
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catadores de materiais recicláveis não vivencia na prática o modelo formal caracterizador de cooperativa16, afigurando-se mais como associações, as quais nesse trabalho opto por me limitar a enquadrá-las genericamente como modelos associativos. Como o foco desta pesquisa não recai especificamente sobre a formalidade ou não do modelo associativo seguido pelos grupos de catadores, entendo não haver, in casu, infringências metodológicas quanto a essa escolha, porquanto o que está verdadeiramente em jogo é a verificação das representações do trabalho em modelos apontados como antípodas por várias pesquisas. Mesmo porque, os valores do cooperativismo, tais como a ajuda mútua, a responsabilidade, a democracia, a igualdade, a equidade, a solidariedade, a honestidade e a transparência podem ser, em maior ou menor grau, encontrados nesses formatos, apesar de não estarem juridicamente formalizados. Dessa forma, o modelo associativo aqui considerado é aquele em que há maior ingerência por parte dos próprios catadores quando comparado à organização de trabalho verificada nos depósitos, em que os catadores estão quase completamente alheios ao processo pós-aporte de materiais ao local de armazenagem. Antes de adentrarmos à análise das repercussões subjetivas das formas de organização de trabalho dos catadores de materiais recicláveis aqui basicamente consideradas, além da reflexão sobre outras questões de relevante importância na discussão do tema, é fundamental apresentar os locais visitados e a dinâmica de trabalho em cada um deles. Cabe reiterar que, em respeito à identidade de meus interlocutores, preservarei seus nomes substituindo-os por nomes fictícios, conforme indicado na explanação acerca da metodologia, na introdução.
5.1.1. O depósito de Zé Bezerra
O primeiro local visitado foi o depósito de seu Zé Bezerra, com quem estabeleci prévio contato por telefone. Desde o princípio o deposeiro colocou-se à disposição, não apresentando resistência à minha intenção de fazer a observação in loco. Já no caminho do Centro da cidade ao Tancredo Neves, a transição da paisagem urbana exposta na tela da janela do ônibus me chamou a atenção: a intensa movimentação de carros, os prédios elevados, ia dando lugar a uma paisagem mais cor-de-tijolo e de mais fácil visualização do céu, dada a inexistência de prédios altos no bairro.
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No Brasil, as sociedades cooperativas são juridicamente regidas pela Lei nº 5.764, de 1971.
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Seguindo as coordenadas indicadas pelo deposeiro no telefonema do dia anterior, logo cheguei ao depósito, que me chamaria a atenção ainda que eu não soubesse o número do imóvel, haja vista o imenso muro com aproximadamente três metros de altura, além dos vários carrinhos de reciclagem visíveis para quem passava pela pacata rua de calçamento. O depósito poderia ser sucintamente descrito como um grande terreno de formato retangular de 28 metros de largura por 33 de comprimento com divisões de grades aproveitadas de sucata para separar o material por tipo. O portão principal do depósito dá de frente para o que seria o precário escritório do deposeiro: um recinto delimitado por materiais de sucata, como grades velhas, de aproximadamente três metros de largura por cinco de cumprimento, coberto por telhas que partiam do muro lateral de tijolos aparentes, limite com o terreno ladeado. O chão era de cimento, mas já bastante deteriorado, diferenciando o espaço do resto do depósito, de terra batida. O espaço era ornamentado, observando-se um ventilador quebrado, que girava lentamente ao sabor do vento, uma pá de enxada, pendurada por uma coleira de cachorro, um sino de boi, um chifre de gado, um barbante com bolinhas douradas de Natal, um pequeno e colorido avião de brinquedo dependurado por barbante, uma imagem em relevo da santa ceia de DaVinci, o cartaz de um vereador candidato no último pleito. No espaço, uma grade delimitava o espaço comum daquele reservado ao deposeiro. Atrás da grade, havia duas mesas escritório numa das quais se apoiava uma calculadora com aspecto de já ser bastante usada, uma faca sem cabo, utilizada por Zé Bezerra para cortar alguns materiais e bater-lhes para aferir o tipo. Na mesa, repousava ainda uma prancheta em que o deposeiro fixava papéis para anotar o peso dos materiais trazidos pelos catadores que não paravam de chegar e utilizar a balança.
FOTO 03: Entrada do terreno do depósito de Zé Bezerra. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 04: Foto com vista partindo da área de pesagem para a entrada principal do depósito. Fonte: Foto do autor, 2008.
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A balança do depósito é bem arcaica, de tipo industrial. Já bastante enferrujada, aquele que talvez seja o principal instrumento de trabalho de Bezerra apresentava remendos em madeira e funcionava por pequenos discos, com peso pré-determinado, que o deposeiro depositava em uma haste dependurada. A mesa principal guarda ainda a gaveta do dinheiro com que Zé Bezerra paga aos catadores pelo material trazido. Interessante observar que o deposeiro adaptou na mesa uma gaveta própria de caixa monetário, comum em supermercados. Ao lado, sobre um tambor, havia uma balança de peixe para pesar o material de menor quantidade, como cobre e alumínio. Ainda no pequeno espaço coberto, na parte de trás, encontravam-se grandes recipientes onde eram armazenados os materiais valiosos, como o alumínio (em seus vários tipos, como alumínio panela, perfil, latinha, etc.) e o cobre. Ainda na área coberta pelo telhado, há um espaço comum onde os catadores e outras pessoas que chegam, ficam. É o local da pesagem, mas também da convivência. Encostada na parede encontra-se disposta uma mesa velha com garrafa de água além de duas garrafas térmicas com café e alguns copos. A garrafa era cheia com água de uma torneira próxima, e nela havia um grande bloco de gelo, para resfriar a água que era constantemente reposta na garrafa, dada a freqüência com que os catadores a bebiam. Algumas cadeiras compunham o espaço preferencial após as longas e exigentes jornadas de trabalho dos catadores. Não há banheiro no depósito para uso dos catadores, apenas uma torneira que serve tanto para lavar materiais, como encher as garrafas que Zé Bezerra dispõe à mesa, para consumo.
FOTO 05: “Escritório” de Zé Bezerra. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 06: Catador bebendo água na área de pesagem. Fonte: Foto do autor, 2008.
Todo o espaço do depósito era possível de ser visualizado de qualquer ponto, uma vez que não há construções no meio do terreno, havendo apenas grades improvisadas para separar os materiais por tipo e a área de depósito do material daquela onde ficam estacionados os carrinhos. No centro do terreno dois caminhões bem velhos ficavam estacionados em
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direção ao segundo portão, que dá para a mesma rua do portão por onde entram os catadores e por onde eu entrei e ao lado do qual o deposeiro estacionava seu carro, uma caminhonete S10 com aparência bastante desgastada. No fundo do depósito há duas construções retangulares de tijolos aparentes. Uma servia de depósito para papelões e derivados e a outra consistia numa pequena casa onde o deposeiro disse estar morando temporariamente, após sua mulher o ter abandonado e porque o homem que ficava lá, cuidando do depósito tinha medo de ficar a noite, não obstante a altura do muro e a existência de cerca elétrica instalada por todo o seu perímetro. Aqui é possível observamos o valor que tem sido atribuído, cada vez mais, ao lixo, que, como bem anotam Meirelles & Gomes (2008, p. 9), “passou a ser tratado como uma commodity”. Apesar da preocupação com a proteção do depósito, quando perguntado se já tinha havido roubo de material o catador disse que não, que era tranqüilo e que ele não ficava com medo de ficar só lá a noite porque estava sempre “de cima” com sua “máquina” (arma de fogo) que guardava em sua casa.
FOTO 07: Área central do depósito. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 08: Estacionamento de carrinhos. Fonte: Foto do autor, 2008.
O depósito compra material de cerca de oitenta catadores, sendo apenas seis mulheres, mas nenhum era fixo, alguns vendem para outros depósitos, mas apesar de não ter percebido na fala do deposeiro nenhuma preocupação com este fato, os catadores afirmam que o empresário do lixo exige certa fidelidade, porque o carrinho é do depósito. Roberto, 31 anos, Antônio, 38, e Paulo, 35, falando sobre a fidelidade ao depósito proprietário do carrinho assim comentam:
O carro sendo dele, o cara só pode vender aqui. Agora quando o carro é próprio da pessoa mesmo a pessoa vende aonde quer. […] Eu só vendo fora se o preço tiver melhor. Ele mesmo sabe! Às vezes eu vendo aqui no vizinho. Ele pega, aí é maior onda. Aí ele diz: “é quando você quiser vale [dinheiro emprestado a ser descontado
81 no apurado da catação], não sei o quê, e tal, aí não tem”. (Roberto, entrevista realizada em 19/11/08)
Só vendo pra ele, porque o carrinho é dele, não pode vender pra outro depósito não. […] Porque a gente chega aqui aí deixa o documento, né, pra pegar o carro. Se não deixar o documento, tem que ter alguém que trabalhe dentro do depósito que fique responsável por nós, aí nós pega o carro, aí ele dá o carro pra trabalhar, só que o material que nós arrumar tem que vender a ele, porque o carro é dele. Não pode vender noutro canto, se quiser vender noutro canto tem que pegar o carro do outro depósito pra vender lá. Os depósitos não aceitam. (Antônio, entrevista realizada em 19/11/08).
O carrinho sendo da reciclagem o cara vende aqui. Pode vender noutro canto mas não é bom não, porque atrasa a pessoa. […]No sentido de que você está trabalhando pra ele aqui [referindo-se a Zé Bezerra], eu tô trabalhando pra ele, pego um carro desse, ele gasta muito, tá entendendo? Aí se eu for daqui pra Aldeota pegar um material bom, como papel branco, ferro de construção, alumínio, essas coisas, aí se eu vier lá da Aldeota, lá da Antônio Sales, donde eu estou falando, tem vários depósitos de lá pra cá. Aí se eu passar por lá e deixar minha mercadoria, já me atrasa. Tá entendendo?, o atraso nesse sentido que eu tô dizendo é a traição. Tô traindo a pátria. Aí Deus não vai mais me dar oportunidade. (Paulo, entrevista em 19/11/08)
Zé Bezerra, sempre vestido de forma muito simples e com roupas velhas, tal como os catadores, reiterava que ali eles trabalhavam com o refugo da sociedade e que ali havia dois tipos de lixos, o lixo lixo e o lixo humano, que eram os catadores. De toda sorte, o carrinho utilizado pelos catadores é de propriedade do deposeiro, que afirmou variarem entre R$ 100,00 e R$ 150,00, o que fez apontando-me um carrinho novo, precariamente pintado com o nome do depósito e, em seguida, comparando-o com outro, já bastante usado e de menor tamanho. Interessante que durante as entrevistas, feitas no dia seguinte, os catadores entrevistados disseram que o carrinho vale mais, variando de R$ 200,00 a R$ 350,00. O deposeiro entrou no ramo por intermédio de seu pai, que já tinha depósito há 26 anos, e inclusive cuida do depósito “filial”, localizado a cinco quadras daquele, no bairro Jardim das Oliveiras. Apesar de ter trabalhado como caminhoneiro e com apicultura, Bezerra falou que o negócio vale à pena e que chega a movimentar R$ 1.000,00 diariamente. Quando falava do seu trabalho, o deposeiro sempre ressaltava a importância social do depósito, dizendo que todos os catadores ali tinham ficha corrida.
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Todos aqui já foram presos e muitos são procurados. É por isso que eu não faço ficha de ninguém aqui. Um dia chegou a Prefeitura com negócio de querer fazer cadastramento dos catadores e eu disse que não ia fazer esse negócio não. Rapaz, negócio de governo é tudo esculhambação, pra quê que eles querem fazer cadastramento? Que jeito vão dar? Esse pessoal precisa é trabalhar mesmo e a gente aqui faz mais que esses programas sociais aí que falam que no final das contas só serve pra roubar, desviar dinheiro. […] Ora, se a gente que faz o trabalho aqui que eles não fazem, agora vão querer cobrar de mim. Rapaz, aqui a gente é igual aquele cara, que tirava dos ricos pra dar pros pobres, como é o nome... Robin Hood, né? Pois é ele mesmo! Porque governo mesmo não faz nada não, só roubar, se eles roubam de lá porque que eu não vou ser malandro de cá?! (Zé Bezerra, 18/11/08)
FOTO 09: Construções no fundo do terreno para depósito de material já separado. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 10: Casa do deposeiro nos fundos do terreno. Fonte: Foto do autor, 2008.
A dinâmica do depósito tem início bem cedo pela manhã; por volta das cinco horas os primeiros catadores já tomam seus carrinhos e “desabavam no meio do mundo”. A partir dali, o depósito começava a receber os catadores que chegam de jornadas noturnas e vinham deixar o material coletado. Os catadores chegam, estacionam seus carrinhos, bebem água e após “pararem para respirar”, separam o material – se já não viesse separado, geralmente em sacos de ráfia ou em fardos amarrados por barbantes – e colocam sobre a superfície da balança. Zé Bezerra faz a pesagem e anota o valor do material no caderno. Cacá e Paulo, dois catadores que trabalham internamente no depósito – separando os materiais enchendo os caminhões, dentre outros serviços gerais – auxiliam a pesagem. O deposeiro, sempre atento, me garantiu que nunca perdeu na pesagem, inclusive, um catador que estava próximo disse, em tom de brincadeira, que é mais fácil o contrário, eles saírem perdendo para a balança de Bezerra, que não tem qualquer marca de aferição de regulagem. Ao final do processo, o deposeiro soma o valor devido ao catador e paga-lhe em espécie, ou então
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desconta dos vales anteriormente concedidos. A venda de materiais não é realizada apenas por catadores, mas também por pessoas da comunidade que vendem materiais acumulados domesticamente, como latinhas, garrafas e recipientes. Dessa forma, observei quando uma garota de aproximadamente doze anos chegou em sua bicicleta com alguns sacos com material reciclável, pelo que conseguiu R$ 2,20. Noutra oportunidade, uma senhora trouxe algumas panelas velhas e latinhas, e, apesar de reclamar do baixo preço, aceitou a permuta. Enquanto as conversas no “escritório” de Zé Bezerra iam sendo revezadas conforme entravam e saiam os catadores, Cacá e Paulo separavam e limpavam o depósito, colocando os materiais de mesmo tipo próximos ou em compartimentos improvisados, ou mesmo jogando-os dentro dos caminhões. Quanto ao carregamento dos caminhões, observei em uma das visitas que fiz ao depósito que o caminhão que se encontrava estacionado dentro do depósito, semi carregado de papelão, tinha um aguador de grama em cima do monte de material molhando o material, perguntei ao deposeiro o motivo. Rindo, Zé Bezerra me disse que era “pra não pegar fogo, porque sempre vai alguém fumando lá em cima, aí pode o material pegar fogo”. Logicamente a minha pergunta era mais pra constatação do que eu já supunha ser o motivo para o encharcamento do material: aumentar-lhe o peso. Essa confirmação me veio quando percebi o deposeiro falando pra Cacá que recolocasse o aguador mais pra trás, para molhar o resto do papelão para que o peso ficasse uniforme.
FOTO 11: Um dos caminhões do depósito. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 12: Catador levando material para o caminhão. Fonte: Foto do autor, 2008.
A dinâmica do depósito também conta com alguns compradores de materiais, seja em pequena ou mesmo em grande quantidade, como donos de indústrias de reciclagem, que vêm negociar com o deposeiro algum material específico. Assim, observei um senhor que foi ao depósito em busca de uma janela, e de fato a encontrou, do tipo semelhante à que queria, e, apesar de reclamar do preço estipulado por Zé Bezerra, levou o objeto. Além dessas visitas “destoantes”, a compra de dinheiro trocado abastecia o deposeiro de moedas, necessárias para o pagamento em espécie dos catadores e de forma precisa. Assim, para que o deposeiro
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contasse sempre com moedas em quantidade razoável, Zé Bezerra compra moedas em troca de “dinheiro graúdo”. Em uma das visitas pude observar quando chegou um senhor perguntando se Bezerra queria cinqüenta reais de moeda naquele dia. O deposeiro disse que sim, e passou-lhe uma cédula no referido valor, mas abriu o saco de moedas trazido pelo senhor e contou, uma a uma, as moedas, sendo assistido atentamente pelo trocador. Interessante observar que em momento algum o depósito pára. A dinamicidade preenche cada momento do dia, naquele espaço. Enquanto Bezerra pesava, Paulo e Cacá organizavam o material e catadores chegavam já pegando as bacias para separar o seu material, ao tempo que outros já tinham pesado e encontravam-se bebendo água ou café, descansando.
FOTO 13: Área central do depósito. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 14: Área lateral para depósito de material separado por tipo. Fonte: Foto do autor, 2008.
As visitas no depósito permitiram constatar uma organização de trabalho extremamente insalubre, seja pelo ambiente em que ele se desenvolve, seja pela exigente dinâmica e relações desenvolvidas, que não asseguram quaisquer direitos trabalhistas. Muito embora haja uma regularidade nos catadores que coletam material para o depósito, não há laços de solidariedade tão sólidos a amenizar suficientemente a precariedade do trabalho; como disse um catador, “é cada um por si e Deus por ninguém”. Isso não quer dizer que a interação entre os trabalhadores não construa uma rede de ajuda mútua, ainda que frágil. Em uma das visitas observei quando um catador chegou, trazendo consigo um saco com bolinhos, que ofereceu para cada um, ficando, ele mesmo, apenas com um dos bolinhos. Paulo, após comer o bolo que o catador colocou em sua boca enquanto aquele levava uma enorme gamela sobre a cabeça, disse-me que “aqui todo mundo se ajuda, apesar de ser todo mundo necessitado. Um chega aqui com um lanche, já divide com todo mundo”. Algumas horas depois, pude constatar novamente o espírito de solidariedade mútua quando chegou outro catador com um pacote de pães, que dividiu com os demais.
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FIGURA 01: Croqui do depósito de Zé Bezerra17
PORTÃO PARA OS CAMINHÕES
PORTÃO PRINCIPAL
RUA
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O desenho é apenas um esboço de planta baixa do depósito visitado, não guardando precisas proporções com as medidas reais.
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5.1.2. A Associação Reciclando
Próximo ao depósito de Zé Bezerra localiza-se a Associação Reciclando. O local é de mais fácil acesso, pois se localiza em uma larga avenida do bairro Tancredo Neves, Av. Plácido Castelo, a três quarteirões da BR-116. O muro, de aproximadamente dois metros e meio apresenta fachada onde se lê em boa pintura: RECICLANDO – ASSOCIAÇÃO CEARENSE
DAS
TRABALHADORAS
E
TRABALHADORES
EM
RESÍDUOS
RECICLÁVEIS. Lê-se ainda, em menção ao projeto Ecoelce, de quem a Associação é parceira: TROQUE SEU LIXO POR BÔNUS DE ENERGIA – ECOELCE. Diversamente do depósito de Zé Bezerra, a primeira impressão que se obtem a partir das pinturas nos muros da associação Reciclando, todos rebocados e caiados, é de ser um ambiente mais organizado. Como se observa sem dificuldade, a Associação Reciclando é parceira do projeto Ecoelce, recebendo material doado por consumidores da Companhia Energética do Ceará (COELCE) e computando bônus de descontos. Os catadores afirmam que o projeto é quem dá verdadeiro sustento à associação, pois é o principal doador, sendo responsável por grande parte do material obtido.
FOTO 15: Fachada da associação. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 16: Pátio após o portão principal de onde se vê o elevador e os prédios centrais. Fonte: Foto do autor, 2008.
O pesado portão principal, que dá acesso à referida avenida, está sempre encostado, mas tão logo se adentra a associação, vêem-se apostos à esquerda, encostados ao muro interno, vários tambores onde são colocados o refugo do refugo, ou seja, o material que, após separado pelos catadores, não serve para ser reciclado. Ressalte-se que não é pequeno o volume desse material, que, segundo o catador Caio, segue para o aterro sanitário da Caucaia. De frente para o portão, repousa ao solo um imenso contêiner, de aproximadamente dois metros e meio de altura, onde é despejado o ferro, sobretudo de latas
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de refrigerante, que vêm em grande quantidade por doação do Beach Park18, além de outros doadores. Carol, funcionária responsável pela administração e recebimento do material doado em função do projeto Ecoelce, disse-me que quando se está na época de bons preços de material, chega-se a conseguir mais de mil reais quando o contêiner está completamente cheio. Na época de final de ano, contudo, quando o ferro está custando quinze centavos o quilo, obtém-se com o material do contêiner cheio, 550 reais. O terreno conta com dois prédios centrais, paralelos entre si e com os muros laterais. No prédio da direita de quem entra localiza-se o escritório, que dá acesso a um banheiro interno, e uma sala de administração. No escritório, de ambiente limpo, com boa iluminação, piso revestido, há uma mesa sobre a qual sempre há muitos papéis, agendas e o aparelho para registro do material doado ao Projeto Ecoelce, em troca de bônus de energia. O telefone fica em mesinha apropriada e atrás da mesa onde Carol fica a maior parte do tempo vêem-se dois grandes armários de ferro, onde são guardados documentos, fichas cadastrais dos catadores, registros de reuniões, contratos, enfim, é o principal arquivo da Associação “enquanto não chega o computador”, diz Carol. Próximo à porta, encontra-se uma balança analógica, sem uso devido à balança digital em uso, esta localizada no pátio. Ao lado do armário há vassouras e alguns materiais como placas de computadores; no outro lado, um extintor de incêndio. Em uma das paredes, de forma bastante visível, há um quadro branco onde estão anotados nomes de grandes doações ou compras de material a serem realizadas, separadas em uma tabela, por dia da semana. A tabela permite a organização das saídas do caminhão para coletas ou compra de material de outras associações de catadores que superem uma tonelada. Ao lado da secretaria, no pátio, em frente ao prédio da direita, há um elevador industrial para ajudar no despejo do material dentro do caminhão.
FOTO 17: Pátio principal. Container e tambores para depósito do material refugado ao fundo. Fonte: Foto do autor, 2008. 18
FOTO 18: Caminhão disponibilizado pelo Governo do Estado à associação. Fonte: Foto do autor, 2008.
Complexo turístico cuja atração principal é o grande parque aquático, localizado na pra de Porto das Dunas, Região Metropolitana de Fortaleza.
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Em frente ao prédio da esquerda, na parede de frente ao pátio, mas de forma não tão visível dado o acúmulo de materiais encostados nessa parede, há a placa de inauguração do prédio onde se lê: “EM 09 DE OUTUBRO DE 2002, COM A PRESENÇA DO EXCELENTÍSSIMO GOVERNADOR DO ESTADO, BENEDITO CLAYTON VERAS DE ALCÂNTARA, FOI INAUGURADO O CENTRO DE RECICLAGEM DO CEARÁ”. No prédio da esquerda, de frente à porta da sala da secretaria, encontra-se uma pequena cozinha, equipada com uma geladeira, um fogão, uma mesa, uma pia, liquidificador, pratos, talheres e garrafas térmicas. Conforme informado por Carol, a geladeira foi uma doação do programa Ecoelce. Entre os prédios, à altura da secretaria e da cozinha, fica a balança, onde são pesados os materiais. A maior freqüência de pesagem é do material doado para o Ecoelce, cujos pesos Carol anota em uma guia própria e depois passa as informações através de uma máquina tal qual máquina de débito de cartão. Cada cliente da Coelce tem um número de identificação, anotado na conta de energia, para quem creditado o bônus correspondente à doação. No corredor que se forma entre os prédios há uma montanha de materiais, que chega a dois metros de altura. Ambos os prédios, após a cozinha e o escritório, formam um galpão coberto onde são colocados muitos materiais ainda para serem mais bem separados e despejados nos bags, enormes sacos de ráfia. Interessante notar o improviso para separar o material por tipo, utilizando-se de portas, carrinhos quebrados, lâminas de compensado velhas, grades, para conter e apartar o material.
FOTO 19: Cozinha. Vê-se liquidificador e louça. Fonte: Foto do autor, 2008.
a
geladeira,
FOTO 20: Cozinha. Vê-se o fogão e a pia. Fonte: Foto do autor, 2008.
No prédio da direita há um banheiro em cuja porta, voltada para o galpão desse prédio, vê-se um papel com tabela determinando os responsáveis pela limpeza do banheiro em cada dia da semana, o que denota a limpeza do ambiente – mesmo em meio a materiais
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provindo do lixo – e o trabalho cooperativo entre os catadores nas atividades internas de manutenção do local de trabalho. Ao final dos prédios, há um grande pátio onde 45 carrinhos sem roda estavam organizadamente dispostos, necessitando manutenção. O pátio tem acesso a outra saída, por onde o caminhão à disposição da Associação é também descarregado após rotas de coleta ou carregado para destinação de materiais à venda.
FOTO 21: Material acumulado no corredor entre os prédios. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 22: Área de pesagem. Catador pesa material trazido por doação ao Projeto Ecoelce. Fonte: Foto do autor, 2008.
No terreno, há áreas improvisadas, destinadas à guarda de materiais ou carrinhos de alguns catadores que saem para coletar. Vale ressaltar que nem todos saem para coleta direta na rua, em vista do atual suprimento satisfatório de materiais por meio de doações, o que ocupa alguns catadores associados apenas internamente, separando o material e preparando para venda. Assim como no depósito, e como é comum em muitos outros locais de organização de catadores, nem sempre o material é vendido diretamente para a indústria, uma vez que o parque industrial de reciclagem no Ceará restringe-se a poucos materiais, sendo necessário vender para atravessadores. Essa cadeia é também observada por Medina (2005, p. 26) e Wilson et alli (2006, p. 800) quando discutem a importância da formação de grupos associados que permita maior autonomia dos catadores frente aos atravessadores.
FOTO 23: Área atrás do prédio do escritório, onde há cobertas improvisadas e depósito de bags. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 24: Coberta adaptada para guarda de materiais coletados por catador. Fonte: Foto do autor, 2008.
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FIGURA 02: Croqui da Associação Reciclando19
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O desenho é apenas um esboço de planta baixa do depósito da associação visitada, não guardando precisas proporções com as medidas reais.
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De toda forma, o espaço é organizado, considerando-se a atividade ali realizada, com disposição de tambores para separação de materiais, placas indicativas, material separado e já armazenado em sacos de ráfia etc. A Associação Reciclando surgiu de um projeto do Governo do Estado do Ceará, implementado em 2002, tendo como objetivo fomentar um sistema de gestão de resíduos sólidos que desse um destino diverso do aterro sanitário ao lixo da capital e, ao mesmo tempo, proporcionasse impacto positivo a diversos catadores de materiais recicláveis, como uma oportunidade de trabalho, além de oferecer capacitação técnica aos participantes. Segundo relatos de vários catadores, a interessante proposta de política pública foi desvirtuada por problemas de má administração. Os catadores fazem referência à pessoa encarregada da gestão inicial do projeto e que, conforme as falas dos catadores, locupletou-se dos recursos destinados ao projeto: “Ele deixou aqui num desfalque doido, ficou só a areia! Até o caminhão chegaram a levar. Aí quando entregou disse: ‘te vira’!”. A gravidade dos relatos pode ser constatada pelo fato de que, após sete anos da criação do projeto, a associação ainda não alcançou auto-sustento.
FOTO 25: Galpão coberto para depósito de materiais separados por tipo. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 26: Galpão coberto para depósito de materiais separados por tipo. Fonte: Foto do autor, 2008.
Hoje a Associação Reciclando está formalizada, sendo formado por um grupo cuja maioria já saiu às ruas para realizar a catação, mas é interessante observar que há, no grupo, catadoras (e assim elas se consideram) como Paula e Joseane que nunca saíram às ruas, foram direto para o depósito trabalhar na triagem de materiais e dizem estar satisfeitas com o trabalho. Paula acha melhor trabalhar na triagem de materiais que em casa de família, como empregada doméstica, profissão que desempenhava anteriormente. O ganho é quase a mesma coisa, mas ela diz preferir o trabalho na associação,
92 porque aqui a gente tem mais liberdade, né, pra fazer as coisas. Porque casa de família você sabe como é, né, é mandando é reclamando, não tem horário pra almoço, não tem hora pra fazer nada. Aqui é muito melhor! (relato de 09/12/08)
Caio completa dizendo que
reciclagem não é ruim não, é bom! Só que não tem é apoio do Poder Público. É diferente de você ver o caso de Belo Horizonte20, desses outros cantos que o Poder Público apoia mesmo... O Poder Público é osso! E eu acho como o cara disse lá, lá em Belo Horizonte, infelizmente esses caras são parceiros, a gente não tem que ficar omisso a nenhum órgão. Então quem carrega dentro das associações, dentro dessas coisas são os catadores, não é órgão nem parceiro nenhum não. Apenas o parceiro deve apoiar. (relato de 09/12/08)
A fala de Caio corrobora a percepção da espera pelo Poder Público, o que concorre para ferir a autonomia do Projeto que tinha como meta inicial a auto-sustentação. No depósito, como Caio já informara durante minha primeira visita, a maior parte do material vem por doações, trazidos pelo caminhão, do Governo do Estado, e os catadores trabalham a maior parte do tempo fazendo a triagem os materiais, internamente. O caminhão, embora seja do Governo do Estado, fica estacionado, mesmo durante a noite, no depósito da Associação Reciclando. O veículo é utilizado tanto para a coleta de materiais doados por parceiros ou comprados de outras associações de menor porte, como para vender materiais e buscar materiais doados. Seu Geraldo, antigo catador da Reciclando, vai ao caminhão e faz a carga e descarga de materiais. A dinâmica de trabalho na Associação começa às sete horas da manhã, quando os catadores vão chegando para iniciar as atividades. Tomam um cafezinho, batem um papo, e vão começando a separação. Quem sai para coletar, às vezes sai mais cedo, como o seu Teixeira, que chega a sair 5:30 da manhã, como no dia em que o acompanhei. O caminhão tem sua rota pré-agendada, anotada no quadro da secretaria. Ao meio-dia os catadores almoçam por conta do depósito e às 17 horas começam a finalizar as atividades, que podem se 20
Na cidade de Belo Horizonte/MG, há já um avançado processo de organização da categoria, que teve início no princípio da década de 1990, com uma parceiria de catadores com a Pastoral da Rua naquela cidade, que deram origem à Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Materiais Recicláveis (ASMARE). Hoje em dia, a ASMARE tem 250 associados, sendo considerada um modelo de associativismo de catadores, desenvolvendo um trabalho de parceria junto a empresas, escolas, condomínios, órgãos públicos, entre outros, para a coleta de recicláveis. A organização da produção é acompanhada pelo processo de resgate da auto-estima e da cidadania dos catadores. A existência de uma longa história de organização e luta da categoria de catadores, fizeram de Belo Horizonte um pólo de discussão de questões relacionadas ao gerenciamento de resíduos sólidos.
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estender até às 18, 18:30 horas. À noite, quando a associação é fechada, um vigia assume a responsabilidade. Novamente se observa o valor do material, o que enseja a contratação de um vigilante, além de, obviamente, proteger outros bens ali existentes como geladeira, fogão, balanças etc.
FOTO 27: Catadores separam material em área coberta localizada no pátio dos fundos. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 28: Crédito de bônus de energia para doadora do Projeto Ecoelce. Fonte: Foto do autor, 2008.
O trabalho de separação não é remunerado por produtividade, mas os catadores, como seu Teixeira, que coletam na rua, ganham tanto pelo depósito, com a venda do material recebido, como pelo seu material coletado individualmente. Interessante notar o espírito colaborativo entre os catadores no momento em que iam pesar o material de seu Teixeira; muito embora só o idoso catador, de 83 anos, fosse ser remunerado por aquele material, todos contribuíam para arrastar os bags para a balança, separá-los para despejo no caminhão, etc.
FOTO 29: Escritório da Associação Reciclando. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 30: Banheiro localizado dentro do escritório. Fonte: Foto do autor, 2008.
Além das atividades laborativas, os associados participam de reuniões em instâncias de discussão sobre catação de materiais recicláveis e gestão de resíduos urbanos, como o Fórum Estadual Lixo e Cidadania e da Rede de Catadores de Resíduos Sólidos de Recicláveis do Estado do Ceará. Cláudia diz que sempre que possível, os catadores participam
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de palestras e discussões e que para qualquer coisa tem de haver a decisão de todos. Todavia, acerca da participação da Associação no Fórum Estadual do Lixo e Cidadania, Caio diz:
De primeiro a gente ia, mas agora a gente tá meio afastado. Eu não quis mais contato com o pessoal do Fórum, sabe. Eu vejo aquilo ali muito monótono. Ou é uma realidade de a gente partir pra cima do Poder Público ou então não dá, a gente marca uma reunião e não aparece ninguém, é a coisa mais rara do mundo é aparecer. (relato em 09/12/08)
Mas a representatividade de sua fala é posta em questão pela informação de que Rosineide, na qualidade de presidente da associação, sempre participa das reuniões, que ocorrem às segundas quartas-feiras de cada mês. Já quanto a participação na Rede de Catadores, o catador deposita confiança e acredita em melhorias a partir da atuação do grupo, formado por diversos grupos de catadores organizados em modelos associativos. Também na Associação é possível observar uma organização e condições de trabalho insalubres, dado o contato direto com material sujo e, apesar de todos terem luvas, botas e batas, somente Paula e Joseane – as duas que nunca cataram às ruas – utilizavam as luvas, mas não bata nem botas. Carol diz que foi dado material a cada um, mas eles não gostam. Marlene brinca dizendo que se usasse as luvas, não tiraria o dinheiro do pão, porque, segundo ela, atrapalha o serviço, então prefere ficar com a mão suja mesmo. Apesar de não usar o Equipamento de Proteção Individual, a catadora afirma que nunca se cortou durante a coleta nem na separação de materiais.
5.1.3. Em meio a precarizações e precarizações
Algumas diferenças podem ser observadas entre as condições de trabalho encontradas no depósito e aquelas encontradas na associação, apesar de se tratarem de locais de trabalho de uma mesma categoria profissional, mas com catadores se organizando de forma diversa em cada um dos locais. Tanto o trabalho na Associação Reciclando, como no depósito de Zé Bezerra, não asseguram quaisquer direitos trabalhistas aos catadores. Contudo, na associação, a precarização do trabalho de catação apresenta-se mitigada diante da situação observada no depósito. Os laços de solidariedade são bem mais sólidos e diversos mecanismos simbólicos atuam de forma a minimizar (ou eufemizar) a precarização, que vão desde a organização do
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espaço; a disponibilidade de equipamentos; a participação em instâncias de debate, o que permite contato com outros catadores e troca de experiências; a maior proximidade com o Poder Público; uma maior autonomia em relação à venda do material, que suprime alguns elos da cadeia hierárquica da reciclagem. Quando perguntei a Caio, catador da associação, a respeito das diferenças entre as associações e os depósitos, o catador me respondeu, enfático, que “no depósito, no meu ponto de vista, só é beneficiado, quem ganha parte maior é o dono do depósito”. O catador salientou ainda que o Projeto Ecoelce dá uma certa segurança, porque as doações são constantes, e o material vai direto pra lá, fazendo com que muitos catadores da associação não saiam às ruas para coletarem. A participação do grupo de catadores associados em instâncias de debates permite sua inserção nas questões relacionadas à catação de lixo e a frutuosa troca de idéias com outros grupos da cidade e até com grupos organizados de outras cidades. Chamou muito a atenção os cartazes com informativos sobre projetos, DSTs, segurança no trabalho, reuniões do Fórum ou outras instâncias de organização da categoria, afixados na associação. Quanto a existência de tabela de preços na associação, traduz uma forma de eqüidade para com os catadores. Já no depósito, não há tabela de preços e o deposeiro é muitas vezes acusado de roubar na balança. Roberto, quando perguntado sobre as três desvantagens que ele vê na catação, respondeu incluindo o roubo na balança como uma das principais:
É roubo na balança (risos), que ele [Zé Bezerra] endoida comigo. Eu digo “ei macho deixa eu ver em baixo da bicha”. Pode prestar atenção quando ele pesa ali aquele pesinho só falta subir ali, ele sempre sai ganhando. (entrevista realizada em 19/11/08)
Marlene, catadora da associação, que já vendeu materiais coletados para depósitos quando trabalhava como avulsa, também se refere à desonestidade dos deposeiros, ao comparar a associação com o depósito:
A associação é melhor porque pra nós mesmos ela não rouba na balança, a balança de lá rouba demais. […] Eu não sei o que eles botam, eles botam a balança pra o peso não ser certo. […] E tudo lá é mais barato de que aqui. Tudo. (entrevista realizada em 11/12/08)
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Os pontos em comum estão mesmo no aspecto precário da catação, que até parece menos desumanizado na associação, mas é exercido por aqueles mesmos homens e mulheres, que buscam no lixo – assim considerado por muitos, mas não por eles – sua sobrevivência. Tanto na associação como no depósito, todos são analfabetos ou semi-analfabetos. Em relação ao cuidado com o meio ambiente, de acordo com os resultados da pesquisa da Prefeitura Municipal de Fortaleza (2006), não percebo associação do trabalho dos catadores com o meio ambiente, ou seja, enquanto as empresas incrementam sua imagem com o discurso eco-eficiente, poucos catadores, mormente aqueles organizados associativamente, justificam seu trabalho como uma atividade em prol da proteção do meio ambiente. Poder-seia dizer ainda que não haja – ou se há, é muito incipiente – uma conscientização ambiental por parte dos catadores. As observações nos depósitos confirmaram a análise dos dados da pesquisa. No depósito, os catadores não fazem relação de seu trabalho com uma finalidade como a proteção ambiental; algo que parece distante, diante da necessidade premente de sobrevivência. Pensando com os tipos de ação social weberianos, o trabalho seria puramente racional com relação a fins. Já no caso da cooperativa a catação seria um trabalho realizado racionalmente com relação a valores que balizariam a consecução dos fins puramente econômicos (WEBER, 1999, p.15-6). Esses valores são apresentados aos catadores quando da participação nas instâncias de discussão, nos debates, nas oportunidades de falar e ser ouvido, quando eles podem significar o seu trabalho para além da sobrevivência material, o que termina por configurar um amplo processo formativo. Todos esses mecanismos passam a atuar como mecanismos subjetivos de manipulação do estigma socialmente construído sobre a figura do catador (GOFFMAN, 1982). Assim, Caio, que afirma que não se preocupava com questões relativas ao meio ambiente e indica como momento de mudança de pensamento à sua ida a Belo Horizonte (viagem à qual sempre se refere positivamente), explicita sua preocupação, atribuindo um valor ao seu trabalho nesse sentido:
Eu acho que é o lado assim, eu tô sendo útil ao meio ambiente. Porque às vezes só o que você vê na televisão é o destroço, é as coisas acontecendo aí às vezes as pessoas dizem desse jeito assim... as pessoas só pensando no interesse financeiro e não pensando no interesse do meio ambiente, tá entendendo. […] Eu vejo por esse lado, não é pra mim mostrar pra político, pra mim mostrar pra ninguém não, porque eu tenho que mostrar pra mim mesmo, eu sei que eu estou sendo útil ao meio ambiente. (entrevista realizada em 10/12/08)
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Podemos associar também esse processo de ressignificação a uma melhor condição material proporcionada pelos equipamentos e objetos disponíveis na associação e não alheios aos catadores, que, ainda que detenham a posse precária dos mesmos, contam com a liberdade de utilizá-los. O conjunto desses objetos disponibilizados, assim como o apoio do Poder Público e de parceiros como a Coelce, além da inserção na Rede de Catadores, facilitam o trabalho e permitem melhores condições, diversas daquelas a que estão submetidos os catadores do depósito, conferindo, se é que poderia afirmar assim, uma atuação laboral mais extensiva na longa cadeia da reciclagem. Assim, os catadores da associação demonstram ter mais conhecimento de barganha de valores junto a atravessadores maiores ou à própria indústria, tendo maior conhecimento do processo como um todo, alheando-se bem menos ao processo do que os catadores do depósito. Estes limitados a coletar e repassar para o deposeiro, limitando-se a receber o valor por ele determinado a cada material. Há, portanto, uma íntima articulação de fatores materiais e simbólicos que se retroalimentam diferenciando o trabalho na associação. Seja pelas melhores condições que culminam em maior auto-estima, conferindo sentido ao trabalho; seja por um processo de ressignificação do trabalho que traz repercussões materiais na medida em que os catadores passam a reivindicar direitos antes não objetivados.
5.2. No asfalto com seu Teixeira
Além de conhecer melhor os locais de deposição do material coletado, permitindo contato mais próximo com os catadores e seu trabalho, penso ser importante acompanhá-los em sua jornada, conforme dito na apresentação da metodologia, na introdução. Afinal, trata-se de trabalhadores intinerantes que fazem das ruas da cidade seu espaço de trabalho. Assim, no momento em que fui a campo, tinha como proposta metodológica acompanhar pelo menos um catador de cada local visitado, a Associação Reciclando e o depósito de Zé Bezerra. Porém, as imprevisibilidades ofertadas pelo campo impossibilitaram o acompanhamento de um catador do depósito, pois que eles mesmos se negaram a me ter em sua companhia, dizendo que seria perigoso para mim. Dessa forma, o método foi aplicado apenas com um catador da associação, seu Teixeira, que não se opôs à proposta, apesar de ter feitos ressalvas, dizendo que sai sempre muito cedo, que o percurso era muito longo e que eu poderia não conseguir acompanhá-lo.
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No depósito, quando sondei a possibilidade de acompanhar Antônio, com quem estabeleci boa relação durante a entrevista, Paulo, que trabalha internamente, e com quem também estabeleci uma ótima relação, logo me desestimulou dizendo que não achava conveniente:
Rapaz, ele tá assim crente, mas não é crente ainda, ainda não foi passado no fogo, ainda tá fácil para as tentações. Tu sai com um cara desse, macho, aí ele cai em tentação, aí nem lembra que é crente21. Porque tem crente assim que ainda tá se convencendo que é crente, ainda é só fachada. Pro cara dizer que é crente mesmo tem que ser igual o ouro, passar pelo fogo mesmo. Ele ainda tá muito cru, tipo ouro cheio de barro; ainda tem que passar pela lapidação, pelo fogo mesmo. Só aí pode dizer que mudou mesmo. (relato em 18/11/09)
Diante da ponderação de Paulo, perguntei ao catador quem eu poderia acompanhar, mas Paulo me questionou se seria realmente necessário esse acompanhamento, porque, segundo ele “é muito difícil você confiar num cara desse, Gustavo. Todo mundo aqui já foi presidiário. Como é que você vai garantir que não vai bater a vontade de querer te ganhar, cara. Acho que é difícil...” Dessa forma, tive de abrir mão da proposta inicial de acompanhar também um catador no depósito em sua jornada. Mas a experiência com seu Teixeira (catador da Associação Reciclando) possibilitou visualizar as dificuldades cotidianamente vividas, o percurso, o peso do carrinho, o cuidado em meio ao trânsito. Para acompanhar o catador, o dia começou cedo. às 5:50 da manhã o catador já havia saído da Associação e encontrei com ele já na rodovia BR-116, no sentido do contrafluxo. Quando cheguei, o catador insistiu para que eu fosse até mais adiante, porque ele “precisava fazer uma coisa que não podia dizer”. Assim, me encaminhei até ponto mais à frente, aguardando seu Teixeira, que logo apareceu puxando seu carrinho, onde já era possível ver uma cadeira de plástico quebrada e três caixas de papelão encontradas pelo caminho. Subimos o viaduto que cruza a rodovia e dá acesso ao bairro Cidade dos Funionários. Durante a caminhada, seu Teixeira, sempre atento ao lixo jogado nos canteiros, eventualmente parava seu carrinho para procurar algum material reciclável em meio aos resíduos. Mais à frente, na calçada de um condomínio, Teixeira procurou material em um tambor de lixo ali disposto. Colocou a mão entre os sacos, rasgando alguns à procura de 21
Zé Bezerra me havia dito que Antônio já tinha tido várias passagens pela polícia, mas que agora era crente e estava mudando seu comportamento.
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material de seu interesse. Alguns metros adiante, o catador parou novamente o carrinho na calçada de um condomínio com cujo porteiro foi falar. O porteiro trouxe-lhe um molho de chaves e seu Teixeira abriu o local onde fica armazenado o lixo do condomínio de seis blocos, com 187 apartamentos. O catador abriu o portão do quartinho de lixo, externo ao condomínio, e, após estacionar o carrinho, tirou gentilmente o banco quebrado que estava no carrinho e me ofereceu. Então informou que aguardaríamos até mais ou menos 8:00 horas para que o funcionário do condomínio trouxesse o lixo recolhido nos apartamentos. Nesse momento, seu Teixeira arrumou o local de despejo do lixo e sentou-se para aguardar a chegada do material. Enquanto o tráfego adensava com o caminhar dos ponteiros, seu Teixeira cumprimentava alguns moradores que passavam para fazer caminhada matinal ou ir para seus afazeres diários.
FOTO 31: Quartinho de despejo do condomínio onde seu Teixeira coleta material. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 32: Quartinho de despejo do condomínio onde seu Teixeira coleta material. Fonte: Foto do autor, 2008.
O tempo de espera também ofereceu bons momentos para conversa com o catador de 83 anos, há oito como catador de materiais recicláveis. Ele disse que no início, a catação não lhe dava bom retorno, mas “até dois anos atrás a gente pegava e fazia 80, 90, até 100 reais a gente fazia. Mas agora... é 20, 30, é 40... muito difícil pegar uma semana com quarenta. É porque é gente com carro, é gente puxando, é todo mundo, muita gente”. Disse-me que naquela área é dia de passar o caminhão de lixo, daí ir nos dias da coleta pegar os materiais. Interessante observar que como a imprevisibilidade é componente sempre presente no seu percurso, o catador lança mão de estratégias para minimizar a alea negativa. Uma dessas estratégias, e talvez a principal é o estabelecimento de percurso conforme a rota do caminhão de coleta do lixo urbano. Esse aspecto no trabalho de catação foi também notado pelo diagnóstico da Prefeitura Municipal de Fortaleza (2006, p. 57). Nesse sentido, vários dos catadores entrevistados fazem menção a essa estratégia quando indagados sobre a escolha do percurso. Roberto e Antônio, catadores do depósito de Zé Bezerra, dizem que os melhores dias são os da coleta de lixo, que ocorre alternadamente durante a semana:
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Os melhores dias são esses porque é o dia da coleta, do lixo. Os piores dias dos carroceiros chamam-se terça, quinta e sábado. Não tem nada. Antigamente, terça, quinta e sábado era a coleta do Iguatemi, só que agora eles mudaram para os dias os mesmos daqui. (Roberto, entrevista realizada em 19/11/08)
Nós passa onde a gente sabe que é o dia de lixo, como hoje, hoje é dia do carro do lixo passar, né. Aí o pessoal bota o lixo pra fora e nós abre. Abre o saco e tira uma garrafa, tira uma coisa, tira um frasco, aí vamos achando. (Antônio, entrevista realizada em 19/11/08)
Outro fator importante para a escolha do trajeto é o conhecimento dos lugares onde é possível encontrar o “lixo rico”. Assim, os catadores dizem que a Aldeota e o Centro são os melhores locais. Há nesse aspecto uma remissão tão forte a esses lugares que a Aledota é o espaço do lixo bom, ainda que o local pensado e visitado pelo catador não seja propriamente o bairro Aldeota. Aldeota passa a ser o lugar onde é possível encontrar uma maior quantidade de material reciclável, o que condiz com as reflexões a respeito da relação entre consumo, descartabilidade e produção de lixo. Como indica a já citada pesquisa do movimento “Rio Como Vamos”, realizada na cidade do Rio de Janeiro, os locais caracterizados por maior concentração de renda são também os que mais produzem lixo. E a composição do lixo nesses locais é mais favorável à reciclagem do que nas zonas periféricas, onde o lixo contem maior percentual orgânico22. Quanto ao retorno financeiro, ao qual seu Teixeira se refere dizendo que antes era melhor, porque, segundo ele, hoje em dia os preços dos materiais estão mais baixos, trata-se de uma queixa recorrente entre os catadores com quem tive contato, seja do depósito ou da associação. Os catadores dizem que o preço sempre baixa no final e no início do ano e vai melhorando, mas, a longo prazo, eles narram que os preços antigamente (há dois ou três anos) eram melhores. Marlene, catadora da associação, assim teoriza a respeito, indicando a baixa nos preços como um dos problemas do trabalho de catação:
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Medina (2005) observa essa diferença na composição do lixo em nível de países ricos e periféricos. Nestes países o lixo contém um percentual de matéria orgânica até três vezes maior do que aquele produzido nos países ricos, o que o autor atribui ao fato de as residências nos países industrializados “consumirem mais comida processada, em lata, engarrafados e em recipientes plásticos. Assim, resíduos em cidades de países desenvolvidos contem mais materiais recicláveis” (MEDINA, 2005, p. 4, tradução própria). Analogicamente, é o que os próprios catadores observam e o que lhes move a deslocar-se por longas distâncias para buscarem esse material no Centro e na Aldeota.
101 As dificuldades que a gente tá tendo é porque nas indústrias tão pagando os materiais muito barato, muito barato os materiais. A gente vê muito material e pouco dinheiro. […] É por causa que tá tudo cheio lá, todos os anos é assim. Final de ano, tá tudo cheio as indústrias, aí pronto. […] É por causa que eles vão comprando, é o povo, no final de ano é uma época que o povo trabalha muito, pra comprar roupa, pra comprar essas coisas, aí num instante enche, aí abaixa. Penso eu que é por causa disso. Final de ano todo mundo quer comprar suas coisinhas, suas roupas, seus calçados, o calçado de seus filhos, aí o povo corre atrás mesmo do trabalho, aí pronto, num instante enche. Aí eles vêem que tá tudo cheio, aí não, vou comprar mais não, desse preço. Aí pronto, em todo canto é baixo. Todo canto o preço é muito pouco. (entrevista em 11/12/08)
A preocupação com a queda no preço mostra o limitado poder de barganha dos catadores, que terminam por submeter o mesmo trabalho a ganhos menores, e, para manter o mesmo ganham, são obrigados a intensificar o trabalho e com isso, o processo de precarização. Além de seu Teixeira, outro senhor vinha buscar os resíduos do condomínio. Mas a ele interessa o lixo orgânico, pois aproveita como lavagem para os porcos que cria. Enquanto aguardávamos, Teixiera disse que uma das dificuldades era separar o material, o que se fazia necessário porque as pessoas, ao invés de colocarem o lixo já separado, dispensam-no misturado, o que dificulta seu trabalho, além de ser um motivo pelo qual muito material se perde. No que concerne à saúde, quanto perguntei ao catador se ele sentia dores no corpo, seu Teixeira respondeu afirmativamente, queixando-se de dores nas articulações dos joelhos, mas garantiu que da cintura pra cima, não tem problema algum. No ensejo, falou que inicialmente tomava o rumo da Messejana e ia longe, mas que agora fica por aqui mesmo, e logo retorna, certamente por causa do cansaço, não admitido por seu Teixeira. É interessante observar que o catador, quando se refere ao seu trabalho, não faz alusão a doença e quando indagado sobre sua saúde, faz questão de deixar clara sua resistência, o que transparece um certo orgulho de não fazer menção ao cansaço. É o mesmo que observamos pelos resultados da pesquisa da Prefeitura, e pelas pesquisas de Sousa & Mendes (2006), bem como Dall’Agnol & Fernandes (2007), que apontam para o conceito de saúde entre os catadores como ter condições para exercer o trabalho. A respeito da rotina de trabalho, seu Teixeira afirma com veemência: “Sou o primeiro a sair e o primeiro que chega! O resto do pessoal chega 7 horas, 8 horas, aí ainda vão
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tomar café, ainda vão conversar lá dentro, eu não, eu chego, pego meu carrinho e saio”. Disse que retorna de nove para dez horas, “aí, chegar lá eu, se eu tiver muito enfadado, eu estaciono o carro, deixo lá, e vou pra casa”. Antes de iniciar na catação, seu Teixeira passou 24 anos de sua vida como faztudo: “fazia tudo, só não fazia roubar! Eu era zelador, tirava coco, trocava dinheiro, pagava conta, fazia de tudo!”. A história do trabalho na vida do catador é longa, o lúcido senhor foi apresentado à “maldição do gênesis” já aos 13 anos de idade, quando começou a trabalhar em construção civil. “Aí de lá pra cá venho enrolando, pegando sempre um ou outro trabalho”. Seu Teixeira disse ainda que nunca teve trabalho fixo e que também nunca estudou:”meu estudo toda vida foi esse” – disse fazendo menção ao trabalho. A baixa escolaridade, ou mesmo a sua total ausência, é uma característica homogênea entre os catadores, conforme indicam os dados da pesquisa, já apontados no capítulo anterior e em consonância com diversos outros estudos (MEDEIROS & MACÊDO, 2007; MEDINA, 2005; VELLOSO, 2005). Seu Teixeira disse que começou na atividade devagarzinho, a cerca de oito anos. Juntava uma coisa, juntava outra e ia vender no depósito. Indagado onde era melhor de se trabalhar, se na associação ou no depósito, o catador foi enfático ao responder que era na associação, porque
lá não falta dinheiro, ninguém rouba na balança. Porque esses deposeiro são tudo ladrão. Uma vez eu fui vender duas carradas no depósito e apurei só 40 reais, aonde no depósito, no nosso depósito aí, era coisa pra apurar 100 ou 120. Lá no depósito tem um negócio debaixo da balança que eles botam pra poder roubar (entrevista realizada em 08/12/08).
Acerca das dificuldades do trabalho da catação, Teixeira diz que não tem muito mais dificuldade do que outros trabalhos: “O trabalho é um só. A gente sai nesse meio de mundo e pega um papel aqui, pega uma lata, pega um vidro, e pronto”. Para o catador, as desvantagens são poucas: “se todo trabalho fosse de só de vantagem, aí todo mundo ia querer. Tem as vantagens e tem as desvantagens. A desvantagem é porque é difícil da gente ajuntar essas coisas, né. Mas é isso mesmo, é da vida, tem dia bom e dia ruim”. Em relação a como a população percebe o trabalho do catador, seu Teixeira diz que “tem muitos que reconhecem, já tem muitos que não reconhecem. Os que não reconhecem a gente deixa pra lá, né”. Nesse momento passava uma jovem senhora de quem seu Teixeira fez observação, “taí, essa menina
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sempre me ajuda, me dá material, lá embaixo. Conheço ela desde pequena. Bom dia!”. Sobre a atividade da catação, o trabalhador diz que “isso é um serviço que a gente faz porque a gente tem que levar aquilo ali como um trabalho digno”. A fala de seu Teixeira nos remete aos laços de solidariedade que também são criados com moradores, donos de estabelecimentos e concorrem com o preconceito sofrido e recorrente nas narrações dos profissionais da catação. No ensejo, o catador disse que também pega materiais em condomínio no bairro Luciano Cavalcante, onde o pessoal abre o portão do lixo para que ele colete o material. Após uma hora de espera, o funcionário do condomínio trouxe o lixo, em um carrinho típico de catador (feito de carcaça de galadeira) e o despejou no quartinho. Então o senhor que veio colher o lixo orgânico para lavagem de porcos, juntamente com seu Teixeira, entraram no recinto e iniciaram a atividade de separação do que lhes interessava. À medida que colhiam o material de interesse, ambos iam também separando o material que restaria no local de despejo, jogando o refugo do refugo nos tambores dispostos no quartinho. Interessante notar que o pequeno monte de lixo que se formou após o despejo do material trazido pelo zelador logo reduzia de tamanho e o trabalho realizado por seu Teixeira e o criador de porcos termina por poupar o zelador de realizar, por si mesmo, o despejo do material nos tambores de lixo, haja vista que catador e o criador iam já realizando essa atividade – como que numa contribuição análoga à protocooperação –, comprometendo-se a deixar o local limpo (na medida do possível para um quarto de lixo) após a separação e coleta do material desejado.
FOTO 33: Funcionário do condomínio traz o lixo coletado. À esquerda a carroça do senhor que veio buscar o lixo orgânico. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 34: Funcionário do condomínio despeja o lixo no quartinho de lixo. Fonte: Foto do autor, 2008.
Durante o processo de separação, as mãos firmes, em movimentos lentos, mas não menos precisos de seu Teixeira separam cuidadosamente o material. Sem luvas, botas ou máscara, o catador, a princípio, toma os sacos fechados tateando-os para sentir o material e com sua experiência vai separando nos tambores de lixo em uma caixa de papelão colocada
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entre seus pés e que, quando cheia, ajudava no despejo do material selecionado no carrinho, estacionado a aproximadamente dois metros do portão do quarto de lixo. Essa dinâmica lhe poupa tempo e entra em um ciclo que consiste em tatear os sacos fechados, abri-los, se há a possibilidade de haver material de interesse, jogar o material sem interesse (refugo do refugo) nos tambores, separar o material reciclável e, após acumular quantidade razoável, jogá-lo no carrinho. Nessa dinâmica, há, entre os dois trabalhadores no fétido recinto, uma contribuição mútua: quando seu Teixeira encontra algo de interesse do criador de porcos, como resto de comida, verdura etc., entrega-lhe, recebendo daquele, materiais recicláveis. O trabalho era realizado em silêncio; os olhares eras os instrumentos da conversa entre os dois, mais do que as palavras.
FOTO 35: Teixeira e seu colega separam o material. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 36: Seu Teixeira separa o material, dentro do quartinho de lixo. Fonte: Foto do autor, 2008.
O trabalho ia sendo feito, o material, separado, e o odor agudizava, irritando as narinas. Em alguns momentos chegava mesmo a me provocar náuseas. Há que se ressaltar que o mau cheiro pútrido era forte mesmo para mim, que estava do lado de fora do recinto. Quinze minutos depois da primeira leva de lixo, o zelador do condomínio trouxe a segunda carrada, despejando-a no mesmo local que o fez da primeira vez. Como anteriormente, o funcionário valia-se de uma máscara e de um par de luvas de borracha, para executar o seu trabalho. Quando tentávamos conversar com ele, ele apenas respondia em gestos, em parte pelo incômodo da máscara e em parte para evitar o mau cheiro do local. Enquanto o trabalho de seleção dos materiais acontecia – seja o orgânico por parte do criador de porcos, seja o reciclável por parte de seu Teixeira –, o dono da banca localizada ao lado do quarto de despejo, levou um pequeno cesto de lixo com papéis para o catador, que despejou o parco material em seu carrinho. Também um funcionário do mercadinho vizinho ao prédio também trouxe materiais, inclusive trazendo uma caixa com produtos lacrados, tais como molhos temperados e sopas de pacote, que após conferência, verifiquei que estavam
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vencidos (com data de validade de três meses antes). Seu Teixeira tomou a caixa e a colocou dentro do carrinho, junto aos materiais colhidos no lixo. Mais duas carradas de material foram trazidas pelo zelador e quando já estava bastante esvaziado o espaço onde fora despejado o material trazido pelo zelador, seu Teixeira ia colocando os papelões nas laterais para aumentar o tamanho do carrinho, permitindo que coubesse maior volume. Ele falou que geralmente faz isso quando acontece de conseguir coletar boa quantidade de material, o que ocorreu nesse dia em razão de não haver sido recolhido dois dias antes, motivo pelo qual hoje o volume de materiais coletados superou o de praxe. Após uma hora e meia de coleta, os trabalhos iam se encerrando com a limpeza do local, deixando-o melhor do que como o encontraram. Para isso, os catadores utilizaram vassouras do próprio condomínio. “É assim, a gente pega limpo, tem que deixar limpo!”. No caminho de volta, o primeiro desafio era a travessia do viaduto sobre a BR116, efetuada na contra-mão. Já de início o octogenário mostrou que a cadência dos seus passos, embora curtos, era rápida e firme. Antes propriamente de iniciar a subida, Seu Teixeira faz uma pequena pausa para “descansar as canelas”. Após uma pequena subida, mais uma parada: “a pessoa pensa que é mole é!?”, disse-me o catador ao parar seu carrinho já sobre o viaduto. Os carros, ônibus e caminhões passavam bem próximos a nós. Após a descida, momento em que o catador atribui como mais difícil para levar o carrinho, pois exige força para freá-lo, seu Teixeira se despediu, dizendo que dali ele ia só, porque eu não agüentaria. Após insistir um pouco, convenci o catador, que me permitiu acompanhá-lo, mas admoestou que o percurso é cansativo. Na oportunidade, perguntei ao catador porque no início da manhã ele me pediu que eu fosse encontrá-lo mais à frente. Então ele disse que foi fazer suas necessidades fisiológicas, e queria aproveitar o pouco movimento nas primeiras horas do dia. A estratégia do catador suscita reflexão sobre como apesar de estarem no meio da cidade, à vista de todos, há um véu de privacidade em seu cotidiano que os catadores tentam preservar. Na volta, o fluxo de carros já não era como na ida, antes das seis horas da manhã; agora os motores já rugiam com maior intensidade. Seu Teixeira, olhar firme para frente, os passos curtos, mais rápidos, disse que o segredo é não parar e manter o passo em ritmo constante. Nas conversas do caminho, o catador dizia da importância da reciclagem, pelo reaproveitamento dos materiais que iriam para o aterro. As referências do catador remetem à compreensão do seu trabalho como sendo importante para a proteção ambiental, ainda que ele não consiga estabelecer uma relação tão esclarecida das razões pelas quais aquele trabalho protege o meio ambiente, a não ser pelo fato de diminuir o lixo da cidade.
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FOTO 37: Seu Teixeira inicia o caminho de volta. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 38: Os carros passam muito perto do catador. Fonte: Foto do autor, 2008.
O trajeto era feito pela pista lateral às faixas de rolamento centrais da BR-116, desta vez na mesma direção do fluxo de veículos. Os carros passam muito próximos, fazendo o carrinho balançar, e muitos automóveis têm que desviar do catador. Quando perguntado sobre a distância entre o depósito da Associação e o condomínio onde estávamos, Seu Teixeira deu a entender não ter muita noção, pois afirmou que o percurso tinha 24 km, mas verifiquei posteriormente que não passava de 3,5 km. Também quando lhe perguntei sobre o peso máximo que ele já levou em seu carrinho, o catador afirmou que foi o total de 25 quilos, quando na verdade era muitas vezes superior.
FOTO 39: Pausa para descanso sobre o viaduto. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 40: Travessia sobre o viaduto com o carrinho cheio. Fonte: Foto do autor, 2008.
No caminho, o catador me disse que minha presença teria facilitado o seu trabalho, pois apressou a chegada do lixo pelo zelador. Quando indagado acerca do motivo de sair tão cedo da Associação, mesmo sabendo que o lixo só é disposto por volta das oito horas, o catador disse que era devido ao movimento dos carros, que era menor de manhã cedo, e tinha o agravante de, na ida, ir no contra-fluxo dos veículos. Para seu Teixeira, é melhor andar
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no mesmo sentido do fluxo de veículos: “eu pego aqui e vou me embora, não faço nem conta dos carros”. Disse-me que nunca foi acidentado por automóveis. Durante o trajeto, uma caixa com materiais caiu do carrinho, então o catador estacionou o seu carrinho para pegar o material e colocá-lo novamente no transporte, amarrando-o com as cordas e elástico já colocados na saída do condomínio, e acrescentando nova corda que tirou de sua bolsa, amarrada ao carrinho, onde leva ferramentas e uma faca, tipo peixeira, “porque a gente encontra gente boa, mas também encontra muita gente ruim”. Aqui é possível perceber que o trabalho não envolve só a coleta, ou seja, encher o carrinho, mas trazê-lo, pois o trajeto apresenta seus obstáculos como vários catadores narram a respeito de quebra do carrinho. O perigo do trânsito é também recorrente nas falas dos catadores:
O que é mais dificuldade que eu achei foi a gente atravessar essas BRs, atravessar no trânsito eu achava muito difícil pra mim, tinha muito medo. (Marlene, entrevista realizada em 11/12/08)
As avenidas, né, macho. As avenidas que tá arriscado... já muitos carroceiro foram mortos. Os carros já matou, como aqui desse depósito mesmo. Os carros atropelam. Muito arriscado, os ônibus... tem muito motorista que não respeitam não. (Antônio, entrevista realizada em 19/11/08)
O risco, o perigo, né? É um carro; um carro bater na gente como já ouve. Porque a gente se arrisca muito também, a gente anda muito na contra-mão, muito afoito. Aí é um perigo, às vezes final-de-semana, é perigoso, o povo bebe pra andar nos carros, como já ouve dois acidente já comigo, mas graças a Deus, comigo mesmo nada sofreu não, só com o carro né. […] Quem fica no prego sempre é a gente. […] Tive que pagar. Senão eu não tenho o carro de volta pra trabalhar de novo. (Roberto, entrevista realizada em 19/11/08)
FOTO 41: Catador segue pela BR-116. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 42: Parada para ajeitar material que caiu do carrinho. Fonte: Foto do autor, 2008.
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Mais uma parada para descanso, que duraria cinco minutos; o carrinho ficou estacionado ao meio fio enquanto eu e seu Teixeira descansávamos sentados sobre uma grande pedra, feita banco, sob a sombra de uma árvore. Entre as conversas, o catador disse que prefere sair sozinho a acompanhado, porque “ninguém sabe de ninguém; vai que eu saio com alguém e aí vai querer mexer numa coisa ou outra, de repente pegar uma cadeira assim numa calçada, em frente a uma casa... aí é melhor ir sozinho mesmo”. Como vimos, a preferência não é só de seu Teixeira; a grande maioria dos catadores, segundo dados da pesquisa da Prefeitura, preferem catar sozinhos, o que foi confirmado nas entrevistas, como já explicitado. Enquanto palmilhávamos mais uma boa distância, seu Teixeira permanecia a maior parte do tempo em silêncio, entrecortado por eventuais cumprimentos a pessoas nas calçadas de oficinas e estabelecimentos. Nova parada já a alguns quarteirões da avenida Plácido Castelo, onde se localiza o galpão da Associação Reciclando. Caminhamos mais bom pedaço e logo chegamos ao depósito da Associação Reciclando. Após estacionar seu carrinho sob uma coberta improvisada, o catador foi beber água e conversar com os colegas – o que parece um ritual de chegada após a jornada, observado tanto na associação como no depósito. Só depois é que o catador iniciou a separação do material.
5.3. Uso de drogas entre os catadores
Ainda que esse não seja o foco do presente trabalho, não poderia deixar de fazer referência à relação dos catadores com o uso de drogas. A princípio essa era uma questão que, apesar de minhas pré-noções já estabelecerem uma relação, dado prévio conhecimento do fato comum entre os trabalhadores do lixo, não pude deixar de abordar, pois as visitas ao depósito me aproximaram do tema por diversos momentos e também as entrevistas, motivo pelo qual incluí, embora fora do roteiro de entrevista semi-estruturado pré-estabelecido (em anexo), uma pergunta sobre uso de droga, feita sempre de forma a não tornar invasiva a minha indagação. Assim, no depósito, vários catadores, inclusive o próprio deposeiro, se referiram a uso de droga por parte dos catadores, sobretudo o crack23. O deposeiro disse que todos eles usavam a droga e que quando estavam sob o efeito da pedra estendiam a jornada e
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O crack é refugo da produção da cocaína, misturada ao bicarbonato de sódio e água, chamada popularmente de pedra, pedrita, brita, maldita, amaldiçoada, devastadora, diabólica. O efeito social do uso do crack é considerado
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conseguiam trazer material em quantidade muito superior ao normalmente obtido. Interessante notar que eles se referiam ao uso da poderosa droga de forma jocosa e sem qualquer acanhamento pela minha presença. Zé Bezerra chegou mesmo a dizer que a pedra, que normalmente custava R$ 5,00 a unidade, tinha baixado por conta de o material da reciclagem ter baixado de valor, o que permite inferir a intensidade de relação dos catadores com o uso do crack. Volta e meia se tocava no assunto do crack e o deposeiro dizia em tom jocoso durante algumas pesagens que compensava a falta de dinheiro trocado, para dar para os catadores, com uma “pedrinha”. Percebi que o deposeiro não se preocupava com o fato de a maioria dos catadores freqüentadores do seu depósito serem viciados e gastarem todo ou quase todo o dinheiro recebido com droga. Constatei a observação quando ele afirmou que não tinha nada a ver com isso, que ele não era responsável por isso, que se os catadores consumiam droga era porque eles queriam: “rapaz, o pessoal acusa a gente de oferecer droga, eu não ofereço droga nem estimulo ninguém a usar não, mas se eles querem, né”. Apesar das colocações, os catadores ressalvam que o uso não é generalizado:
Tem muita gente que não usa, muitas sim, muitas não. Tem muita mãe de família, que trabalha, pai de família. Nem todo mundo usa não. […] A principal é o crack né parceiro, a maldição. […] Às vezes [risos]... no crack se você tiver mil reais hoje, de noite você não tem mais um tostão. […] O efeito é rápido. Quanto mais você fuma, mais você quer. […] Aí tem vezes que pra comprar o cara chega a pedir... eu, já tô pedindo pelo amor de Deus, parceiro. Quando a pessoa se vicia numa desgraça dessa aí, aí tá com a vida acabada. […] Lá no livro do Apocalipse tem dizendo, no final das eras vem uma peste pra matar, roubar e destruir. E muita gente pensa que não chegou ainda, e já chegou, já, é o crack: a maldição. Tanto ele faz matar, roubar e destruir. Destrói família, destrói casal, destrói tudo. Tu ainda quer outra peste?!! (Roberto, entrevista realizada em 19/11/08)
Têm muitos que é pai de família, não usa não. Mas a maioria usa. Tem muitos que a gente vê no meio da rua que é carroceiro, é só pra droga. […] É porque já é viciado, e já é o quê? É aquela ansiedade de você usar mais. Você não vence o cansaço, não tem nada pra vencer o cansaço, só Jesus, agora o seguinte é esse, é a ansiedade, que você não tem de onde tirar aí enquanto você não arrumar você não sossega, que eu já fui um e eu sei. (Antônio, entrevista realizada em 19/11/08)
o mais devastador das drogas comumente utilizadas no Brasil. A respeito do tema, está para ser lançado o filme “Selva de Pedra: Fortaleza noiada”, que trata da problemática do crack na cidade de Fortaleza.
110 O uso é muito é pra esquecer problema, mas é onde aumenta mais! Esquecer de mulher, esquecer de filho, mas é onde mais, termina mais, como é que se diz, a depressão, tentar esquecer de problema, de responsabilidade, de abandono de mulher que abandona, aí é onde se arromba mais, afunda mais, fica mais pior a cada dia, ao invés de quando ganhar um trocado ir deixar a uma pessoa que precisa, a uma tia, um irmão, uma irmã, ou uma sobrinha, um sobrinho, ou então os filhos, aí não, vai usar pra esquecer, aí depois que gasta o dinheiro aí fica mais depressivo daquele preço, consegue às vezes nem ir trabalhar; aí reclama porque não dá produção, aí ganha pouco, aí é que se aprofunda mais. (Paulo, entrevista realizada em 19/11/08)
Qual o motivo deles usar? Eu acho que é porque eles ficam viciados né, eles ficam viciados naquelas drogas, aí eles usam, porque ficam viciados, se viciaram já, aí não pode ficar sem ela. […]A droga mais comum que eles usam é a pedra! (Marlene, catadora da Associação Recicando, entrevista realizada em 11/12/08)
Na associação, durante minhas visitas não percebi referência a uso de droga, mas dois catadores afirmaram que já consumiram droga, mas hoje não mais. O tema é amplo e possibilita muita discussão, podendo ser mesmo objeto de estudo específico de pesquisa sobre relação entre o trabalho de catação e o uso de droga.
Após apresentado o lugar da catação e as condições do trabalho desses sujeitos, cumpre refletir a respeito de pontos cruciais à compreensão dessa categoria, sobretudo em seus aspectos subjetivos.
111
6.
PRECARIEDADE
EM
CENÁRIO
CONCRETO
E
DESPRECARIZAÇÃO
SIMBÓLICA COMO ALTERNATIVA DE INCLUSÃO “A gente não quer só comida A gente quer comida Diversão e arte” (Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer / Sérgio Britto)
Retomando a reflexão sobre a importância do trabalho na construção da identidade social dos indivíduos, cumpre reiterar seu potencial de conferir um lugar social ao sujeito, porquanto o trabalho na sociedade contemporânea foi alçado a um patamar privilegiado em nosso sistema de valor. Mais do que sobrevivência, o trabalho, como já consignara Marx (1980), reveste-se de um caráter fundante à sociabilidade humana. O pensador alemão inaugurou a discussão científica do trabalho para além de sua concretude imediata, atribuindo-lhe ainda um valor que ultrapassa a mera satisfação contingencial das nossas necessidades básicas, inscrevendo-o como um meio de construção de um componente sui generis entre os seres sociais: a dignidade. O trabalho não alimenta só o corpo, material e individualizadamente, sendo ainda uma forma de buscar uma inserção do sujeito enquanto ser social. Isso se dá, mormente, com o exacerbamento dessa valorização na sociedade da produtividade, o que faz operar nos sujeitos uma dupla auto-cobrança à realização de trabalho, para sobreviver, mas também para satisfazer uma expectativa social de outrem sobre si. Daí é que não é difícil perceber a angústia de muitos trabalhadores perto da aposentadoria: fazer o quê após uma longa estrada de trabalho? Como serei útil sem trabalhar? O que as pessoas vão pensar de minha ociosidade? Assim também é que vemos pessoas que materialmente não precisariam trabalhar para sobreviver, mas continuam a fazê-lo para satisfazer o aspecto valorativo do trabalho. Mas essa é discussão ampla, suficiente para ensejar um estudo específico, o que não cabe para o momento. Contudo, importa perceber que o trabalho apresenta diversas nuances e que a exigência da inserção do indivíduo no mundo do trabalho – seja operando de si sobre si mesmo, seja a exigência social, que termina por alimentar aquela, e aí desvela suas características como típico fato social durkheimiano, dada sua coercitividade, generalidade e exterioridade (1977) – esbarra na crise desse mundo.
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A análise de Durkheim sobre a coercitividade do fato social contribui com a presente reflexão:
O fato social é reconhecível, pelo poder de coerção externa que exerce ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos; e a presença deste poder é reconhecível, por sua vez, seja pela existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a qualquer empreendimento individual que tenda a violentá-lo. (DURKHEIM, 1977, p. 8).
A crise do emprego – tão-somente uma vertente na crise (inerente?) do capitalismo –, cujos aterrorizadores números foram ventilados ao início de nosso percurso, impõe uma contradição capaz de tirar o chão de quem não consegue vender sua mão-de-obra. O sujeito passa a ser cobrado a exercer uma função social (a de trabalhador) que ao mesmo tempo lhe é negada. Ele a necessita para sobreviver, mas também para ser reconhecido socialmente. O que fazer então se o trabalho em condições dignas não é oportunizado e há premente necessidade de sobrevivência? Submeter-se a um tipo de trabalho que não exija muita resistência (sobretudo burocrática) para sua realização, mas que em contrapartida caracteriza-se por ser precário, que não lhe assegura estabilidade, não lhe confere segurança, mas que, por poder dar resposta às contingências mais inadiáveis ao agora, afigura-se como a resposta mais razoável, não obstante sua intrínseca irrazoabilidade se pensado sob o aspecto humano. Esse é o caso, como vimos até aqui, do trabalho de catação de materiais recicláveis. Mas se o trabalho é atividade humana que vai além de ser uma forma de obtenção de valores de uso, é preciso refletir sobre as significações e ressignificações dessa atividade para seus próprios trabalhadores. Não é nem mesmo necessário ressaltar a impossibilidade de descerrar a completude desses sentidos, pois que mitóticos entre si e quando combinados a valores incorporados, por diversas circunstâncias, ao trabalho. Mas a ponderação acerca de parte desse infinito universo contribui sobremaneira à compreensão dessa categoria de trabalho, o que é requisito fundamental à proposição de políticas públicas hábeis a contornar a situação de precariedade em que se encontram os milhares de homens e mulheres que sobrevivem à cata de materiais recicláveis.
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6.1. A precarização da precariedade
Conhecer a história de trabalho na vida dos catadores é um primeiro passo para permitir uma reflexão com mais propriedade das razões pelas quais esses sujeitos enveredaram pelos rumos da catação de resíduos. A escolha de uma abordagem que vislumbrasse o conhecimento de momentos na vida desses sujeitos pretéritos às suas atuais condições de trabalho – conforme exposição acerca do roteiro de entrevista semi-estruturada, na introdução – partiu do pressuposto de que as experiências anteriores, de vida, de aprendizagem e de trabalho têm repercussões na inserção do trabalhador em um mercado cada vez mais seletivo, mesmo quando informal. Dessa forma, as falas dos catadores em suas entrevistas permitem cotejar as histórias de vida e trabalho, brevemente abordadas, com as situações motivadoras do início da atividade de catação. Entre as histórias narradas pelos trabalhadores, são recorrentes as remissões à prática do trabalho durante a infância e a adolescência, o que impossibilitaram muitos deles o acesso regular aos estudos. Já no início da vida, o trabalho surge como uma necessidade de manutenção básica. Assim, todos os catadores entrevistados contam que desde pequenos tiveram de trabalhar para obter o sustento:
Meus pais são de criação, me criaram. Minha mãe me deu na maternidade, me deu, e aí meu pai não é daqueles que a gente pede e pode me dar não. Aí eu, pra ganhar minhas coisas comecei a me virar no mundo, de pequeno mesmo. […] O meu primeiro trabalho? Primeiro eu fiz um curso, de serigrafia. […] Eu tinha na faixa duns dez anos, nessa faixa. Aí depois do curso fiz outra profissão que foi nove anos, que foi pelar frango, no Pio XII. Pelei frango, trabalhei em supermercado, empacotamento, entregador, trabalhei de servente, de jardineiro. Trabalho pra mim tudo eu desenrolo. Passei nove anos assim, aí entrei na vida do crime, aí nessa vida aí, parceiro, é só desgraceira, tem nada de futuro não. Porque não tem nada não, parceiro, a gente se ilude. (Roberto, 31 anos, entrevista em 19/11/08)
Rapaz, quando eu era menino, trabalhava de fazer tijolo. Bater tijolo. Lá no Aquiraz, por causa da família né... Obrigação mesmo. Tinha que trabalhar para ajudar a família. (Antônio, 38 anos, entrevista em 19/11/08)
Meu primeiro trabalho foi num restaurante, fixo mesmo. Com catorze anos, na época. Mas antes... desde pequeno, com oito anos, eu já trabalhava na horta, que meu pai tinha uma plantaçãozinha, ali no São João do Tauape, no Pio XII. Aí eu sempre cuidava das verduras, cultivava mesmo... tirava cheiro verde, essas coisas, aí
114 botava uma bacia na cabeça aí vinha lá do São João do Tauape pra cá pro Tancredo Neves, de pé, vendendo, nas casas de porta em porta. […] Depois do restaurante eu comecei a trabalhar de descarregador de caminhão. Na empresa de transportadora de sabão, Gessy Lever, na BR-116. Sabão OMO. Eu trabalhei mais tempo lá. Lá eu trabalhei na faixa duns oito a dez anos, só levando caixa na cabeça. (Paulo, 35 anos, entrevista em 19/11/08)
O trabalho na infância e adolescência é reconhecidamente pernicioso por trazer conseqüências negativas imediatas à saúde dos jovens trabalhadores, bem como ser responsável por repercussões muito mais duradouras na vida dos jovens trabalhadores, como a dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal, de forma que a exclusão vai se perpetuando ao longo da vida (FRANKLIN et alli, 2001; OLIVEIRA et alli, 2003). As falas dos catadores permitem associar o início de sua história como trabalhadores precoces à atual condição de trabalhadores precários. O relato de Marlene e de Geraldo são paradigmáticos ao demonstrarem, durante suas falas, as histórias de trabalho, marcadas pela informalidade. Geraldo e Marlene nunca chegaram a ter a carteira de trabalho assinada, apesar de terem o documento e expressarem orgulho em possuí-lo:
Meu primeiro trabalho na minha vida foi quebrar olho de carnaubeira no interior pra fazer ticum, fazer barbante. […] Eu tinha uns oito anos, quando minha mãe me ensinou a fazer isso. […] A gente ia por que minha mãe botava nós pra trabalhar. […] Depois fui trabalhar de roçado. […] Nesse tempo eu já tinha meus doze anos quando meu pai botou eu no cabo da enxada mesmo pra trabalhar. […] Depois desse do roçado, é quando eu cresci e comecei a trabalhar em casa de família. Casa de família eu trabalhei com 25 anos. Trabalhava em casa de família direto, depois saí de casa de família e fui trabalhar em marmitaria, aí comecei a trabalhar de reciclagem. Quando comecei nesse trabalho. (Marlene, 44 anos, entrevista em 11/12/08)
Rapaz, meu primeiro trabalho que eu conheci na minha vida foi garimpar […] Meninote, uns 13 anos, de menino pequeno, comecei garoto véi. […] Nunca estudei não. Eu era menino pequeno e o pessoal tudo trabalhava nessas coisas, aí não estudei não. Grandão já eu passei mais três anos no norte Goiás, no garimpo. 20, 30 e poucos anos já, trabalhei 20 e tantos anos. Até eu vim embora pra cá. Mas entre um trabalho e outro o cabra acaba fazendo tudo, lutando com bicho, gado, tirar capim, limpando roçado, essas coisas. […] Depois eu fui trabalhar por minha conta, por conta própria. Trabalhava assim nas casas de gente mais ou menos, sabe?! Casas de
115 família na Seis bocas, por ali, limpando o quintal das casas, fazendo coisa. […] Depois eu me separei da mulher aí saí e fui pra BR descarregar caminhão, pegando peso na cabeça. Descarregando caminhão de sabão, sabonete, manteiga, essas coisas assim. Era pesado demais. Aí foi o tempo que eu fiz a ficha aqui [na Associação Reciclando]. (Geraldo, 51 anos, entrevista em 12/12/08)
Observa-se que esses trabalhadores conviveram com situações de precariedade no trabalho anteriores à experiência na catação e que aquelas circunstâncias têm implicações diretas na inserção desses sujeitos no universo da catação. A catação surge então como um meio de sobrevivência, não melhor ou pior do que as atividades laborais anteriores, mas como uma opção a quem, diante das circunstâncias, não mais tem opção. Em consonância com essas anotações, o documentário “Essa gente vai longe...” (2005), produzido pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), traz relatos de diversos catadores que indicam histórias de trabalho precocemente iniciadas em lixões, na catação de rua, ou em outras atividades. Os relatos indicam ainda a necessidade como fator essencial ao início na atividade. Nesse sentido, interessante perceber a incidência das reflexões de Alves (2007) nas questões sobre as quais nos debruçamos; o autor compreende a precariedade como um estado, ao passo que precarização é o processo que pode intensificar ou levar a um estado de precariedade. Aqui, é possível notar a existência de um estado de precariedade anterior ao trabalho da catação, caracterizado pela combinação de fatores tais como pobreza, baixa escolarização, trabalho precoce, experiência em trabalhos informais – fatores esses que se combinam entre si, ganhando uma dinâmica própria em cada caso –, que não conferiram estabilidade nem proporcionaram uma melhor ocupação posteriormente. A catação surge então na exigüidade de alternativas. E aí o que se pode observar é a retroalimentação de um ciclo que se inicia em um estado de precariedade corrente, que, com o trabalho de catação, é acentuado, dado o processo de precarização associado a esse trabalho. É obvio que não se pode generalizar a situação a todos os catadores; trata-se tão-somente de uma tipificação ideal do processo que pode ser assim esquematicamente sintetizado: PRECARIEDADE CATAÇÃO PRECARIEDADE PRECARIEDADE Æ CATAÇÃO – PRECARIZAÇÃO Æ PRECARIEDADE (PRECARIZAÇÃO) Por vezes esse ciclo pode apresentar-se plano, mantendo-se o catador nas mesmas condições materiais que antes. Pode ainda configurar um ciclo em espiral, descendente, se
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aprofundando a precariedade anterior; ou mesmo ascendente, se diminuindo a situação de precariedade em que o indivíduo se encontrava. Destarte, podemos tipificar a catação como uma atividade mediadora entre dois estados de precariedade dado o processo de precarização a ela associado e que tem características e repercussões para além do aspecto material. A relação entre as situações de vida e trabalho informal anteriores à catação como forças-motrizes ao início das atividades de catação ficam mais evidentes se levadas em consideração conjuntamente aos desejos desses sujeitos antes de começarem na vida de trabalho precário:
Sonhava em ser alguém na vida, né. Em ser um bombeiro, um doutor... mas não tive chance, fazer o quê né, irmão!? Porque eu não tive chance, morava no interior. Aí naquele tempo os estudos era mais difícil, e aí eu vim de família humilde mesmo, né, aí não tive condições não. Não tinha tempo de estudar, era trabalhar pra ajudar a família. Aí perdi o tempo da minha vida, mais novo, trabalhando. (Antônio)
Quando eu era criança eu dizia que eu queria ser uma advogada. Mas eu não estudei. No interior não existia colégio, meu filho. […] Eu desejava ser advogada, e não fui advogada. Fui uma catadora! (Marlene)
O sonho surge aqui como um objeto distante, alimentador da alma e desvelador do desejo simples e latente de não precisar exercer um ofício duro, exigente e estigmatizante como a catação. Mas há mesmo aqueles que nem mais se dão ao direito de sonhar, efeito de uma precariedade que, como disse, ultrapassa o viés material, marcando o indivíduo inclusive em seu direito a ter desejos:
Eu nunca tive vocação assim pra pensar em ser alguma coisa, sabe. Eu tô entendendo o que você disse aí, mas eu não tenho estudo né, o cabra tem que ser aquilo que Deus deu a sorte dele. Eu não tenho estudo; hoje em dia se o cara não tem estudo ele tá ferrado. Até pro cara apanhar lixo tem que ter estudo, até pra trabalho de zelador, hoje em dia, se o cara não souber ler, for botar uma carta no correio, até pra colocar uma carta no correio tem que assinar o nome, sabe disso, né? Vai chegar um tempo aí um tempo aí que se o cara que não souber ler vai pra roça. O tempo tá difícil e tem muita gente que sabe ler mas não quer abraçar o pesado, não é isso aí? Eu conheço gente que tem o primeiro grau de estudo e vivia na BR descarregando caminhão. (Geraldo)
117 Não, nesse sentido eu nunca me levei pra pensar não. Porque, assim eu não pensei nesse sentido não porque a vida da gente era mais o quê? Era ajudar o pai, porque ele nunca soltou dinheiro na nossa mão não, mas ele foi um ótimo pai pra gente. […] Mas assim, futuro de pensar alguma coisa e correr atrás assim pra estudar, pra ser médico, pra ser algo assim na vida, eu nunca levei por esse lado não. Eu sempre trabalhei pra tentar ajudar o pai, lá em casa, a mãe, mas assim não. (Caio, 33 anos, entrevista em 10/12/08)
Assim, a gente sempre no colégio, a gente tem aquela imaginação né de quando crescer e se formar, ser um doutor, uma pessoa. Mas eu nunca levei essa idéia a sério, não […] Só estudei até a quarta mesmo. A quarta série do primeiro ano. (Paulo)
Dessa forma, a culminação do processo que os levou a buscar na catação um meio de sobrevivência surge nas falas dos catadores como a oportunidade diante da falta de alternativas. Para cada trabalhador, uma circunstância específica o inseriu no universo da catação, o que não desvirtua o caráter de ser esta a ocupação que surgiu e que foi possível exercer:
Aí parceiro, passei cinco anos na cadeia, saí, aí oportunidade de emprego: não tem! Ninguém dá! Aí foi o tempo que saí da cadeia e foi o tempo que o Zé Bezerra [deposeiro] abriu aqui o depósito. Aí cheguei aqui, o Zé Bezerra me deu oportunidade de um carro, aí levei lá pra casa e fiquei. Foi assim, depois da cadeia foi a oportunidade que teve pra mim. (Roberto)
O meu sogro trabalhava de reciclagem. Aí eu conheci a minha esposa e ela não tinha emprego. Aí ela disse, “não, já que nós vamos viver juntos, pra gente não morrer de fome nem fazer besteira, tu vai ter que trabalhar”. Aí eu “não, mas eu tenho vergonha de trabalhar nisso aí”. Mas é o jeito! No começo logo eu tinha vergonha, mas foi o jeito eu trabalhar porque não tinha outro, né. (Antônio)
Já, na época eu já tinha um filho e às vezes as pessoas passavam na cara que a mãe assumiu meus filhos, que graças a Deus, até hoje ela não assume não, quem assume sou eu, então foi por esse lado também. […] Aí eu peguei e fui pro centro comunitário. Foi na época que eu tava sem fazer nada, lá no Dias Macedo, aí os meninos lá me disseram, “Caio, porque tu não quer trabalhar com reciclagem?” […] Eu tentei encontrar um trabalho. Eu tentei, um colega meu me deu o endereço de uma firma, negócio de congelador, já quase fora daqui de Fortaleza, aí o cara me deu os dados do negócio lá aí eu peguei e fui bater lá, só que não deu certo. (Caio)
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Vim ser catadora por que se acabou-se lá na marmitaria que eu trabalhava. Acabouse. A mulher deu um calote em todo mundo lá, até onde ela comprava. Ela comprava e botava tudo em uma conta e num queria pagar, aí pronto. Aí andei atrás de trabalho, andei muito atrás de trabalho noutros cantos, não encontrei, aí foi uma tia minha chegou, ela já estava trabalhando, ela já tinha o carro dela e me chamou pra mim andar mais ela. [...] Procurei na Cidade dos Funcionários, no Jardim (das Oliveiras), Aerolândia, Dias Macedo. Tudo eu procurei trabalho, botava as conhecidas pra arrumar, mas não arrumou aí foi o jeito ficar aqui mesmo. (Marlene)
Para alguns, como Paulo, a atividade de catação foi entrando na vida aos poucos, surgindo em momentos de necessidade imediata, mas não havia continuidade no trabalho. Aqui é possível depreender outro fator importante, ressaltado por muitos catadores como vantagem do trabalho de catação, o imediatismo na resolução do problema, uma vez que o pagamento se dá logo na entrega do material ao depósito. Isso reforça o caráter de trabalho motivado por extrema necessidade; o trabalhador não pode esperar até o fim do mês, não se trata de uma projeção em longo prazo. A solução pretendida deve ser para o agora.
Sempre eu nunca parei, assim, eu nunca parei. Sempre eu gostei de pegar um carrinho desde pequeno, deles aqui que eu pegava um carrinho de carro de mão de caixa de maçã, aí eu fazia um pneu de velocípede ai saía juntando essas latas de leite ninho, na época que era do pai dele aí, aqui [diz apontando discretamente para Zé Bezerra, o deposeiro], e aqueles vidro de doce. Aí eu saía e já tinha pegado costume na Cidade dos Funcionários de conhecer o pessoal desde pequeno. Já ia ganhando dinheiro também, né. Cedo! […] Porque minha mãe saía pra trabalhar; meu pai trabalhava, aí eu ficava em casa mais os meus irmãos, aí não tinha merenda, não tinha nada, aí eu ia catar essas coisinhas, pra ir vender na reciclagem pra na bodega vizinha, ao lado, eu comprar bolacha seca, pra eu não ficar com fome. […] A gente tinha que esperar a mãe vir, era nove horas da noite, dez horas e ela saía cedo, pelo rango, aí não tinha condições de a gente passar o dia com fome. Aí eu sempre gostei de pegar umas coisinhas pra vender e comprar bolacha. (Paulo)
A busca por sobrevivência na atividade de catação é também ressaltada por Adametes (2004, p. 12), que observa ainda a inserção nesse trabalho dentro de um contexto de vida marcado por uma trajetória precária e instável. Nota-se, portanto, que os dados apresentados pelo diagnóstico da Prefeitura de Fortaleza (2006, p. 47), no que concernem às motivações para o ingresso na atividade, estão em plena consonância com as falas dos
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catadores entrevistados. Como vimos, a pesquisa da municipalidade apontou a causa genérica do desemprego fator motivador em 82,8% dos casos e o contato direto com os catadores permite concluir que a crise do emprego formal e a crescente precarização no mundo do trabalho (temas abordados no início desse trabalho) configuram pujantes fatores imediatos a impulsionar o crescimento dessa categoria. Saliente-se que são esses fatores motivacionais imediatos, que podem vir associados a outros tais como a inexistência de patrão, a flexibilidade da jornada de trabalho, a liberdade decorrente dessas características; todavia, entendo serem estes fatores secundários, não narrados pelos catadores como um fator-motriz inicial, senão como uma vantagem posteriormente descoberta. Mas a compreensão do trabalho em si da catação, e, sobretudo, de sua repercussão na vida dos seus trabalhadores, imprescinde de uma análise das representações da atividade pelos próprios, quanto às dificuldades, as vantagens e desvantagens do trabalho, as perspectivas de vida.
6.2. A catação como atividade laboral
A catação de materiais recicláveis é de fato uma ocupação com especificidades que lhe conferem singularidade. São milhares as pessoas, homens e mulheres que sobrevivem da catação de resíduos, materiais destinados à inutilidade, realizando um trabalho extremamente precário, insalubre e periculoso que não assegura quaisquer direitos sociais constitucionalmente previstos ao trabalhador. Trata-se de um trabalho que desvia 20% do resíduo urbano que iria para os aterros (ABREU, 2001), o que faz notar a importância da atividade precariamente desenvolvida à gestão de resíduos urbanos e ao meio ambiente. No entanto, não é devidamente reconhecido, ao contrário, é uma atividade estigmatizante. O catador está presente no cotidiano urbano, ainda que muitos de nós não o perceba. Eles sempre cruzam nosso olhar no dia-a-dia, cobertos por um véu de invisibilidade. E esse trabalhador, a quem as circunstâncias praticamente impuseram uma atividade dessa natureza, chocam os olhares de quem tenta compreender o conjunto de fazeres que não se enquadram na lógica padrão de trabalho e vida esperadas pela sociedade. Entre as representações sobre o que é ser catador entre os trabalhadores entrevistados, podemos perceber um leque de opções que vai do orgulho de se perceber como um trabalhador à resignação de ter que aceitar o trabalho porque não há alternativa. Dessa forma, para Marlene o catador de materiais recicláveis
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é uma pessoa que gosta do trabalho, dá valor ao trabalho. Eu acho, eu acho que é assim. Eu adoro o meu trabalho. […] Porque da onde eu, da onde eu pago o meu aluguel, é da onde eu me visto, é da onde eu dou de comer a minha filha, visto ela, faço tudo. Mesmo que nem pobre, mas é da onde eu pego a minha alimentação, é daqui. Sai o meu dinheiro daqui.
Antônio, por sua vez, aponta para a catação como uma atividade que se reveste e se justifica pela necessidade de sobrevivência:
É um meio de vida, né. Porque às vezes não tem emprego, a pessoa às vezes é até discriminada porque já foi vagabundo, já foi ladrão, aí não tem uma chance na sociedade, aí se obriga a se arranjar no que arruma. Não tem eu gostar desse trabalho não! É como eu acabei de dizer várias vezes, tem que aceitar o que você arrumou. Não tem outro você tem que ficar naquele, enquanto não aparece um melhor.
Como toda atividade laboral, a catação tem para seus trabalhadores, vantagens e desvantagens. Dentre as vantagens mais citadas pelos catadores, encontra-se o fato de não haver patrão, de ser uma atividade que confere certa liberdade no trabalho no que tange à jornada, a horário de pausa para descanso ou diversão, rota, etc. Assim, Geraldo, buscando uma definição para o significado do trabalho de catação, ressalta a flexibilidade dessa atividade como um aspecto positivo do trabalho. Antônio também aponta para a inexistência de patrão, o que denota certa autonomia do trabalhador:
Catador é um emprego né. É sinal de que o cara não tá parado, né. Tá trabalhando por conta própria. Por conta dele. Ele traz aquele material pra ele. Não é empregado de ninguém. Não tá sendo mandado por ninguém. Porque ficar desempregado, parado é muito ruim! O cara chega no fim da semana tá liso sem nada, pedindo as coisas pros outros! (Geraldo)
A vantagem é que você pode andar menos e chegar no trabalho a hora que quiser e não tem patrão pra reclamar. Tem patrão que “ah, você chegou tarde, perdeu o emprego”, e aqui não, a hora que você chegar você pega o seu carro e sai. (Antônio)
Já Paulo indica a possibilidade de obtenção imediata do retorno financeiro do trabalho como uma vantagem, além de apontar para a possibilidade de construção de ampla
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rede de sociabilidade a partir da realização da catação, seja nos momentos de descontração, nas rodas de cachaça, seja nos encontros no depósito:
A vantagem é que a pessoa, primeiro que recebe o dinheiro na hora, né, assim como pesa, né, primeira. E a segunda que a gente conhece muitas pessoas diferentes, cada dia a gente conhece umas pessoas diferentes.
Não obstante seja apontada pelos catadores como uma vantagem, há que se ponderar em relação à flexibilidade atribuída ao trabalho pela inexistência de patrão. Como comentei no dois capítulos anteriores, a propriedade do carrinho – sua principal ferramenta de trabalho – confere ao deposeiro um poder de submeter o catador a uma subordinação que assegura ao deposeiro o aporte de materiais por um preço bem abaixo do que ele revende para atravessadores maiores ou para a indústria. Laços de solidariedade também podem ser desenvolvidos em relação aos deposeiros, mas como vimos no capítulo anterior, muitas vezes servem para prender ainda mais o catador ao deposeiro, sendo aquele cada vez mais tributário de favores prestados pelos donos de depósito. Ora, o patrão é aquele que “controla”, monitora e remunera a força de trabalho. Evidentemente que se não existe vínculo ou qualquer tipo de contrato, tem-se a falsa noção de que não há patrão nessa atividade, porém, prefiro pensar que o deposeiro atua como um patrão, haja vista a relação de dependência que se estabelece entre o catador e o dono do depósito. Assim é que Paulo, quando perguntado sobre o procedimento após a jornada de catação, responde que após a pesagem é hora de somar e ver quanto está devendo, exatamente pela existência de adiantamentos que ficam a obrigar os catadores em relação ao deposeiro:
Depois que a gente chega e separa tudo [material coletado], aí pesa tudo e soma, né, aí vai ver quanto é que a gente tá devendo... Porque a gente pega vale. Vale pra merendar, aí pega de dois, três reais; aí vai acumulando, de repente tá devendo dez, doze, aí ele vai descontando a metade.
Além do que o apurado depende muito da sorte e é tão variável que através das falas dos catadores, percebi que nem mesmo eles sabem quanto ganham ao certo, uma vez que a obtenção do dinheiro por jornada de trabalho o abstrai de uma idéia de ganho mensal. Nesse sentido, as falas relativas ao apurado mensal são tão díspares que a conclusão mais segura que posso tirar dessas respostas é de que a flexibilidade do trabalho repercute também na flexibilidade do ganho, extremamente variável e que se constitui como fator negativo aos
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trabalhadores, que vivem na constante incerteza de quanto conseguiram obter, o que dificulta qualquer planejamento de gastos ou regularidade de ganho. Desse modo, Geraldo, mesmo enunciando a flexibilidade como uma autonomia, aponta para o seu decorrente aspecto negativo: “Mas é assim, se trabalhar ganha, se não trabalhar também não ganha, né. Isso é uma desvantagem porque o cara trabalhar tendo aquele ganho certo é melhor”. A flexibilidade resultante do caráter autônomo do trabalho é também objeto de reflexão de Sousa & Mendes (2006). Para as autoras, “essa flexibilidade tem um efeito perverso – a auto-imposição de longas e extenuantes cargas de trabalho, num esforço dos trabalhadores para aumentarem a renda auferida” (SOUSA & MENDES, 2006, p. 33). Apesar de não poder precisar o valor, as observações obtidas diretamente nas visitas aos locais de trabalho dos catadores, assim como pelos dados do diagnóstico da Prefeitura de Fortaleza (2006), permitem aduzir que o apurado médio mensal não chega ao salário mínimo oficial aplicado no País. Outro fator que interfere na previsibilidade do ganho é a constante variação nos preços dos materiais, que ultimamente têm baixado sem retorno aos patamares anteriores. Como apontado no capítulo 5 pelos próprios catadores, isso se deve ao fato de haver muito material à disposição do mercado comprador. Ademais, há que se considerar a sazonal diminuição dos preços no período de quadra chuvosa. Há quem relacione ainda a queda nos preços com a atual crise econômica mundial, como afirma Humberto Júnior, diretor da Agência Reguladora de Fortaleza (ARFOR): “no Brasil inteiro há uma recessão do material reciclado e a crise alterou bastante os preços, pois diminuíram as vendas e o dólar disparou” (MAIA, 2009). A afirmação é consonante a de José Cardoso, representante do MNCR no nordeste: “O mercado está retraído. Ninguém compra, ninguém vende. Quando vende, é por um preço bem abaixo do valor de mercado” (FREIRE, 2009). A conseqüência da queda nos preços recai diretamente no já parco apurado dos catadores. Além da flexibilidade, alguns catadores chamaram a atenção para o aspecto ambiental de seu trabalho como sendo uma vantagem. Há que se anotar que essas opiniões foram dadas pelos catadores da associação, porquanto no contato que tive com os catadores do depósito, não percebi, conforme já referenciado, estabelecimento de relação entre seu trabalho e esse aspecto. Nesse sentido, Caio e Marlene relacionam como vantagens do trabalho de catação, o fato de ser uma atividade importante para a limpeza da cidade, assim como ter relevância para as gerações futuras:
123 As vantagens é que eu acho que hoje eu estou sendo útil pra geração que vai vir mais tarde aí, que eu hoje eu tô sabendo que o que eu tô fazendo tá servindo pra mim, mas vai servir pro futuramente do país. As vantagens eu acho que são essas. (Caio)
A vantagem que eu acho é nós limpar a cidade, porque a cidade tá sendo mais limpada pelos catadores de que pela prefeita. É. Porque aonde os catadores passam que vê um copo, vê tudo no mundo, que nem você tá vendo nós limpando aqui, quando nós terminar de tirar esse material aqui, realmente esse canto aqui vai ficar limpo. Por quê? Por causa de nós. Mas mandasse esse material aqui fosse pra prefeita mandar limpar, quer dizer, aqui nós tira em dois dias, três dias, mas se fosse mandar a prefeita mandar limpar isso aqui, ia passar quantos meses? [diz referindose ao local onde estávamos, onde estava separado o plástico] Ia passar um bocado de mês. Como eu limpasse numa rua na outra já tava entupida de lixo. Aí nós tira o material e fica o lixo. Aí é que ela manda limpar aquele lixozinho que a gente já tem tirado a metade. É isso aí. (Marlene)
Por outro lado, o trabalho de catação é representado pelos catadores como um trabalho que a sociedade subvaloriza, diante da sua importância, e que é caracterizado por uma série de dificuldades. Em relação ao percurso, os principais obstáculos narrados pelos catadores estão, como vimos no capítulo anterior, relacionados ao trânsito, ao risco de sofrer um acidente. Além disso, Paulo e Geraldo elencam a fome como uma outra dificuldade considerável durante a jornada de catação:
Rapaz, o cabra sai aí sem dinheiro, aí vem com fome, às vezes tem dinheiro pra lanchar por aí, às vezes não tem, chega aqui como? Lascado. Às vezes também tem gente que dá comida à gente. Mas é ruim. Numas partes não é bom não. O nêgo tem que ter coragem, né. […] O cabra às vezes sai fraco, né. Dá tontice no nêgo, às vezes sobe ladeira carregado de coisa aí, sujeito até dar um negócio no cabra, o cabra vem fraco, com fome, né. (Geraldo)
A dificuldade no caminho é só as subidas... a fome, a sede. Maltratava demais, macho! Maltrata! Alimentação fora de hora, as subidas, as vezes o cara fuma, aí se sente impotente... muitas coisas as dificuldades. Às vezes não se alimenta. […] Comia até pão do lixo, até pão jogado no lixo, pão seco, comida vencida. (Paulo)
Ademais, as dificuldades estão relacionadas com o tratamento dado pela sociedade ao trabalhador da catação, a incerteza no ganho e a obtenção do material, cada vez mais difícil, segundo os catadores – também pela percepção, cada vez maior do potencial
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lucrativo do lixo. Roberto e Geraldo indicam, além do cansaço, a eventualidade do ganho como um problema, o que termina por dificultar uma regularidade de renda que permita um planejamento de gastos mais preciso:
Rapaz, a desvantagem da catação é porque tem dia que não tem né. Às vezes o cabra anda, anda e não acha nada, aí vem embora sem nada. A outra é que o cabra anda muito e é muito cansativo. (Geraldo)
Outra desvantagem é quando a gente sai no meio do mundo e não encontra o suficiente. Que a gente volta batendo. […] Voltar batendo é voltar com pouca coisa, sem nada. Agora faço que nem o ditado da cadeia, chupando manga. (Roberto)
A falta de apoio do Poder Público é também ressaltada como um obstáculo ao trabalho do catador. Neste sentido a remissão à omissão do Poder Público é mais recorrente entre os catadores associados, mas também Antônio, catador do depósito de Zé Bezerra indica esse aspecto como dificuldade que deveria ser sanada, sobretudo por conta da importância do seu trabalho para a limpeza da cidade:
O cansaço é uma dificuldade, né. A pessoa anda muito. E a sociedade... a Prefeitura era pra dar uma ajudas, uma cesta básica, é pra... tipo cadastrar os carroceiros, uma farda. Por que isso a Prefeitura, nós... pensando bem nós trabalha mais do que o carro do lixo. (Antônio)
A incerteza da continuidade no exercício do trabalho, por conta de doença ou outro fator adverso também entra no rol de dificuldades do trabalho de catação e está relacionada diretamente com a precarização desse tipo de trabalho informal que não confere maior segurança ao trabalhador. Nesse sentido, a catação não confere segurança em longo prazo para o catador. Antônio aponta para o risco de uma doença o impossibilitar de trabalhar: “Rapaz, não dá não porque você pega uma doença, aí não tem não, né. Deus o livre de você pegar uma doença, ou se acidentar, como é que você vai manter a sua família?!”. Malgrado todas as dificuldades apontadas pelos catadores, os trabalhadores afirmam estar satisfeitos com o exercício da atividade, o que interpreto mais no sentido de se verem satisfeitos de – diante da dificuldade de inserção no mercado de trabalho, como vimos – poderem desenvolver um trabalho que permite obter um ganho mínimo para sua sobrevivência. Além do aspecto material, não se pode esquecer o valor moral socialmente
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atribuído ao trabalho, o que repercute entre os catadores como uma forma de obtenção de dignidade por estarem desempenhando algum labor, ainda que precário.
Eu tô, graças a Deus, tá bom. Eu gosto. Eu não tenho nada contra isso daqui não. (Roberto)
Hoje eu amo o que eu faço, eu amo o trabalho da reciclagem. Não tem apoio do Poder Público, mas eu amo o que eu faço. (Paulo)
Eu gosto do meu trabalho. Não tenho nada a reclamar não. (Geraldo)
Do meu trabalho o que eu quero dizer, é que agora eu tô achando o meu trabalho ótimo trabalho. Mesmo na sujeira, ficando com as unhas pretas [diz mostrando as unhas], mas tá bom demais. É da onde a gente ta se movimentando e ganhando o dinheirinho da gente né? (Marlene)
Porém, há quem divirja dos contentes e admita exercer uma atividade da qual não gosta, submetendo-se porque não há outra opção. No caso de minha abordagem, os únicos que se expressaram dessa forma foram Paulo e Antônio, ambos catadores do depósito de Zé Bezerra:
Se eu gosto desse trabalho? A gente não pode tá reclamando, não, mas gostar, nós não gostamos muito não. Muita gente não anda limpo nem nada, nem tem essas coisas todas, né. (Paulo)
Diante dessas características, os catadores, mesmo aqueles que se dizem satisfeitos com o trabalho de catador e definem a atividade como uma profissão digna ou como um trabalho como outro qualquer, apontam para o desejo de exercerem outro trabalho. Como vimos no capítulo 4, chama a atenção o percentual, indicado pelo diagnóstico da Prefeitura Municipal de Fortaleza, de catadores que desejam desenvolver outro trabalho, 51,9%, o que denota o grau de precarização da atividade que gera a insatisfação no seu desempenho. A observação corrobora com a interpretação acerca da relatada satisfação dos catadores quanto ao seu trabalho, pois não ter um meio de conseguir sua sobrevivência é pior do que nada, ainda que seja por meio de um trabalho precário. Todavia, se for oportunizado um trabalho melhor, não resta dúvida de que os mesmos que se dizem satisfeitos abandonariam a catação.
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Se eu encontrasse um trabalho mais melhor mesmo, de carteira assinada, eu me atrevia deixar esse trabalho aqui por outro mais melhor. Se eu trabalhasse de carteira assinada eu deixaria esse aqui. Porque eu sabia que eu ganhava o meu salário, aqui eu não ganho o meu salário. […] Eu gostaria de trabalhar em mercantil, como zeladora. (Marlene)
Com certeza! Tipo trabalhar numa marmitaria. Muitas coisas boas não, trabalhar do que a gente gosta, né. […] Eu gosto de tudo. Trabalhar em construção civil, essas coisas. (Paulo)
Eu queria praticar era o meu curso. Serigrafia... eu queria praticar ele. (Roberto)
Mecânica de carro. Mas eu tentava fazer as duas coisas. Porque é o velho ditado, eu amo a reciclagem, eu nunca deixaria... (Caio)
Ah, eu gostaria, né. […] A chance que Deus me desse, um emprego mais digno, né, que todos nós sonha. (Antônio)
A expressão do desejo de exercer outra atividade e incluir nas perspectivas de futuro o exercício de atividade diversa da catação – desejo que por vezes pode ser endereçado aos filhos –, reforça, ainda mais, a idéia de que a satisfação com o trabalho remanesce desde que não haja outra forma de garantir o sustento. Assim, as perspectivas de futuro harmonizam-se com o desejo de deixar a atividade de catação, inclusive expressando que é uma atividade humilhante, e que não espera que os filhos a exerçam:
Eu espero que meus filhos não caiam nessa sorte de quando ficar na minha idade, um trabalho desse. Eu espero que eles tenham um bom futuro na vida, um bom emprego. Porque isso aqui, num dá pra gente ir pra frente não, dá só pra quebrar o galho, pra frente dá não. Pra eles fazerem cursos, pra eles estudarem, pra poder, daqui pra frente, eles não sofrerem. Eles não serem humilhados, porque vai ter um tempo aí, pra pessoa comer um bocado, tem que ter o primeiro grau, se num ter todos os estudos não vai comer. É o que eu to vendo né. (Marlene)
Eu não tenho nem sonho, parceiro! Sem nem como é o dia de amanhã. Pelo caminho que a gente vai... Mas eu peço muito a Deus que apareça uma oportunidade, daqui pra lá, uma... Ele ajude e mostre o caminho. E pros meus que quero um futuro bom, como muitas vezes eu dizia a eles, estude e seja gente. Não vá fazer igual seu pai, igual um bobo, puxando uma carroça, no meio do mundo. Seu pai tá fazendo isso
127 aqui hoje em dia porque nunca quis estudo, nunca quis estudar. […] Estude, seja gente, não se misture com más amizades, porque o que eu espero de vocês é não puxar o caminho que o seu pai puxou não. (Roberto)
Meu futuro é como eu acabei de dizer, é só Deus, né. […] Mas eu queria arrumar um emprego melhor, que eu sei que Deus vai me abençoar, né, que com o sofrimento você vence, né. Arrumar um emprego melhor e tratar de dar o que a minha família merece, né, e que eu não tô dando agora no momento. (Francisco)
Interessante observar que a perspectiva de futuro de Caio, que me pareceu bastante politizado, dada as oportunidades de participação em fóruns, debates e outras instâncias de discussão da categoria, inclui, na verdade, um desejo coletivo, de melhoria das condições de toda a categoria e de maior respeito e reconhecimento por parte da sociedade:
O futuro o que eu espero é que as pessoas respeitem mais os catadores e que o Poder Público olhe mais com atenção os catadores, é esse o futuro que eu espero. E da minha família eu espero que eles me respeitem mais como catador, é só isso. (Caio)
Dentre os fatores que dificultam a realização dos desejos de exercer outra atividade, é possível notar que são da mesma natureza daqueles que os levaram a entrar no universo da catação. O que denota uma perenidade da precariedade pretérita ao trabalho e seu exacerbamento ou, pelo menos, uma tão-só manutenção do estado de precariedade anterior por conta do processo de precarização associado à catação de resíduos. Vê-se, portanto, que o trabalho da catação não sanou os mesmos problemas que os dificultaram a entrada no mercado de trabalho, e que o ciclo supra explicitado termina, de fato, por se retroalimentar. Assim, problemas como a baixa escolaridade, a falta de curso específico, associados, em alguns casos, à falta de documentos:
Meu filho, é muito, muito difícil, é muito difícil. Trabalho hoje em dia, emprego é muito difícil. Emprego só tá sendo pra quem tem bom estudo, que antigamente todo mundo, todo mundo trabalhava sem precisar de estudo. Hoje, todo mundo se forma, a maioria do povo tudo é formado e não tem um emprego. (Marlene)
Eu acho que a falta de curso até dentro da própria associação de catadores. (Caio)
128 Eu é porque eu não tenho documento, porque eu sou do interior, não tenho documento e não tive chance, né, na vida! Chance de estudar, de aprender as coisas... (Antônio)
Documento e estudo! (Paulo)
Ajudas. Ajuda, estudo e primeiro eu tenho que sair da droga, pra mim ter o meu serviço. (Roberto)
Também relacionado com as dificuldades do trabalho de catação, mas mais ligado à forma como a sociedade o vê – aqui representada pela representação que os catadores fazem dessa percepção –, o preconceito é muito recorrentemente ressaltado como um problema enfrentado pelo trabalhador do lixo. Paralelo ao preconceito, os catadores narram histórias de solidariedade por parte da população mediante doações de materiais e outros objetos. Há também uma crescente percepção da importância do trabalho do catador como importante agente de proteção ambiental e de limpeza da Cidade. Diante da relevância do tema, mister incluir tópico específico para uma breve discussão.
6.3. Preconceito e Reconhecimento: uma confusa relação “Mas o preconceito não abaixa a cabeça da gente não, levanta é mais!” (Paulo, catador do depósito de Zé Bezerra)
Durante o contato com os catadores, uma questão por eles bastante ressaltada é relacionada com a forma como esses trabalhadores são percebidos pela sociedade, a quem atribuem um forte preconceito sofrido. De antemão, é interessante observar que esse preconceito é representado diferentemente entre catadores associados e avulsos, o que leva a inferir que as diferenças de organização apontadas no capítulo anterior entre os dois tipos de locais têm conseqüências na forma como são percebidos, ou pelo menos na forma como representam essa suposta percepção da sociedade. Considerando a importância alhures abordada acerca da importância do trabalho na construção da identidade social do indivíduo, muitas atribuições de cunho pessoal são feitas em associação ao trabalho por ele desenvolvido. É notória a diferenciação valorativa
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atribuída a diversos trabalhos e profissões, sendo uns revestidos por uma aura de nobreza e superioridade em detrimento a outros. O trabalho dos catadores de materiais recicláveis não passa ao largo de uma valoração social relacionada ao elemento nuclear da atividade, o lixo. Aquilo que é produto do descarte, destinado à inutilidade, associado à sujeira, aos expurgos da sociedade de consumo. Daí a força das colocações do artista plástico Descartes Gadelha (conforme citado no capítulo 4) quando descreve o trabalho do catador de lixo e lança em suas telas a dinâmica de mimetismo do refugo precarizado em meio ao refugo precarizante. Não há dúvida de que outros elementos simbólicos, como a tração humana para puxar os pesados carrinhos por léguas a fio – que faz lembrar a tração animal –, as roupas velhas, as mãos sujas, a pele marcada pela pobreza de quem precisou recorrer ao lixo para sobreviver ajudam a compor um quadro sobre o trabalho de catação que repercute diretamente na representação dos seus trabalhadores. No documentário produzido pelo MNCR – “Essa gente vai longe...” (2005) –, vários são os relatos concernentes ao preconceito sofrido pelos profissionais da catação, que apontam para uma relação subjetiva do catador com o próprio lixo coletado. As falas são harmônicas àquelas dos catadores por mim entrevistados, que indicam que trata-se de um ofício bastante estigmatizado.
Esse povo mais velho dizia que ia chegar um tempo que o ser humano ia puxar carroça que nem animal, que nem burro. Olha aí, é só o que a gente vê os cabras puxando essas carrocinhas, no meio do mundo! (Geraldo, 51 anos, catador da Associação Reciclando)
Assim, a precariedade da situação em que o catador desenvolve o precarizante trabalho de catação interferem inclusive na imagem que o catador faz de si. Medeiros & Macêdo entendem que “o trabalho com o lixo interfere tanto na identificação do catador com o seu trabalho como no reconhecimento da sociedade pelo trabalho desempenhado pelo catador” (op. cit., p. 82).
Tem muita humilhação... O cara vem, quando chega num saco, quando quer desatar o nó, oh não bula aí não, não bula aí, que aí não tem nada, vão caçar noutro canto, vão caçar outro emprego. Eu vejo. Eu vejo e ouço. Eu passo nas ruas e vejo o povo ser humilhado. […] Aí diz que é cata lixo. É, quando a gente passa: “vai catar lixo no diabo. Esse diabo só serve pra rasgar meus sacos!” e lá se vai. (Marlene)
130 Tem gente que passa pela gente “bora, burro, puxa a carroça!”. Desse jeito, né, dentro dum carrozão, importado. Eu digo, olha, eu queria que ele sentisse se fosse ele aqui, no meu lugar. Aí não, passa, chama o nêgo de burro. Não sabe, né, o que a gente tem dentro de casa pra dar de comer, a dificuldade da vida. É desse jeito, mas eu não esquento, não. Deus sabe o que faz. Eu digo, Deus sabe o que ele tá dizendo aí, lá na frente Deus mostra. (Roberto)
Eu sofri preconceito do meu próprio irmão. Quando eu comecei a reciclar eu já trabalhava em cantos bons, aí meu irmão chegou, e lá em casa tava cheio de mercadoria no quintal e na frente. […] Aí ele sabe que eu tenho potencial de trabalhar em coisas melhores, sabe, aí me xingou. “Que é isso”, ele e meu outro irmão, meus irmãos, “já tá nessa tu, cara! De catador de lixo, assim, assim”. Aí começou a difamar os outros e se referindo a mim, “olha, fulano, assim, e tu vai ser isso, porque tu sabe que tu tem potencial pra trabalhar em coisa melhor”, aí eu “meu irmão, mas é o único jeito que eu tô arrumando de ganhar dinheiro, porque eu já rodei muito atrás de trabalho e não consegui não”. (Paulo)
Nesse contexto, o preconceito sentido é representado na fala dos catadores, que se ressentem da falta de compreensão da importância do seu trabalho e, sobretudo da associação da figura do catador com a criminalidade:
A gente é muito confundido assim, porque tem muitos carroceiros que chega aqui no depósito, aí pega um carro pra trabalhar. Só que ele não vai trabalhar, ele pega um carro às vezes pra furtar, pra pegar uma coisa de alguém, pra arrancar um portão, pra fazer uma coisa, aí devido a isso nós somos... como é que se diz... os outros têm preconceito, porque dizem, não todo mundo, mas tem muita gente que diz que todos os carroceiros são ladrões. Devido a uns os outros pagam, né. Muita gente já chegou e dizia pra mim “rapaz, não gosto dos carroceiros não porque a maioria dos carroceiros são ladrão”. Aí eu chegava e ia explicar, não todos, né, mas por uns os outros pagam. (Antônio)
Às vezes o cara dá uma chave duma lixeira, como eu já vi, aí, quando dá fé, o cara leva chave, leva portão, leva tudo, leva um tambor. Aí quem vai pagar? Quem vai pagar é o cara da portaria, que é o responsável. Aí o que é que acontece? O cara paga e não dá mais a chave pra seu ninguém! É o ditado mais certo: por um, todos pagam. Aí suja o lado da gente que quer trabalhar. […] Muitos condenam. Muitos condenam a gente. Muitos olham e diz, “olha, isso é um ladrão, a maioria desses carroceiros é tudo sujo na Justiça. Tudo é ladrão”. (Roberto)
131 Eu acho que uma coisa ruim é a discriminação das próprias pessoas acharem que os catadores são ladrões, o que não é. Eu acho que a falta de oportunidade, perante até esses órgãos, a falta de oportunidade para os catadores, porque hoje em dia, você vê, os catadores não têm um curso, catador não tem outra oportunidade na vida a não ser essa. (Caio)
Há inclusive remissão a agressões policiais, fato também observado pelo diagnóstico realizado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza (2006). Em tom de defesa, os catadores dizem que são alvo da ação autoritária de policiais que os confundem com delinqüentes.
Muitas vezes tem também espancamento da polícia, porque a polícia espanca mesmo. Porque, assim, a polícia trabalha totalmente errado, porque é igual você estar fazendo uma rota dentro duma comunidade e chegar e ver um bocado de vagabundo ali, aí a polícia chega e “bora, mão na cabeça, vagabundo”. […] Porque assim, polícia conhece cara de vagabundo e conhece cara de cidadão, com certeza conhece. Mas o que é a meta da polícia? É chegar e chamar todo mundo de vagabundo. Eu acho que a polícia trabalha totalmente errado nesse sentido. […] Mas você não deve julgar e dizer que todo mundo é ladrão não. Porque tem cidadão e tem pai de família honesto que trabalha nisso. (Caio)
Os policiais também, eles não ajudam muito não. Eles dão é mãozada, às vezes, mas eu nem esquento não. Porque é como eu digo pra você, eu entrava nas casas das pessoas de bem, aí compensava a ignorância deles lá atrás. […] Mas o preconceito não abaixa a cabeça da gente não, levanta é mais! (Paulo)
Interessante observar que os próprios catadores entrevistados admitem a prática de crimes por parte de colegas da categoria, sobretudo de natureza patrimonial, como roubos e furtos. A queixa se dá pelo fato de haver uma associação genérica entre a figura do catador e aqueles que cometem crimes. Outro aspecto comumente destacado em relação ao preconceito sofrido diz respeito à generalização do catador como alguém que suja a cidade, porque rasga os sacos de lixo.
Tem catador que faz assim, só rasgar. Eu tô cansada de ver. Aí eu tenho é medo de passar naquela rua porque tem muita gente boa e tem muita gente ruim né? Aí o cara passa, rasga o saco, sai daquela rua bem ligeiro pra pegar outro e vê eu passando bem devagarzinho, aí o cara pensa que foi eu. (Marlene)
132 A gente também sofre muito preconceito porque tem muitos carroceiro que passam rasgando os sacos, fazendo baderna, mas tem muitos carroceiros que é honesto, que tem aquele percurso dele, que anda só naqueles cantos que o pessoal já conhecem, que ele não pode rasgar o saco, não pode... é... avacalhar, porque noutra vez quando esse cara passar o pessoal vai dizer, não, não olhe meu lixo não, porque você bagunçou tudo. Aí tem que saber ser honesto, aí por isso que a gente não pode. (Antônio)
Paulo admite que quando sai às ruas rasga o saco. Em sua fala o catador inclusive narra um episódio em que, segundo conta, estava tirando o material da forma adequada e foi vítima de preconceito por ter sido atribuído a ele o fato de o saco de lixo de um morador ter ficado aberto.
Eu rasgo logo é o saco! Eu não tenho paciência de abrir, não! Eu rasgo logo é o saco, porque no dia que eu tava abrindo, na porta dum policial, abrindo tudo tranqüilo, tirando as garrafinhas, duas garrafas, deixei o carro como daqui até a esquina, aí não sabia que era da frente dum policial aí tirei duas garrafinhas assim, olha, abrindo o saco [com um saco na mão, mostra como teria feito, retirando cuidadosamente as garrafas do saco], aí só porque eu deixei o saco aberto aí o policial veio e plantou-lhe a mãozada nos meus peitos, aí quando eu dei as costas, plantou-lhe outra mãozada, dizendo que ia dar um tiro na minha boca e eu mandando ele dar e ele não deu. Aí eu baixei a cabeça e fui, né, tocar o barco pra frente. (Paulo)
Já Caio, catador da Associação Reciclando, reflete sobre a questão atribuindo uma parcela de culpa à sociedade e ao Poder Público, que não contribuem com o já árduo trabalho do catador, separando previamente o lixo. Esse é inclusive uma reclamação recorrente entre os catadores, que dizem que se a população fosse educada a separar seletivamente o seu lixo, contribuiria bastante para o trabalho do catador e reduziria o desperdício de material que deixa de ser reciclado.
O catador ele é um cara que... muitas vezes as pessoas chamam ele de rasgador de saco, mas não é não. Porque hoje em dia, a gente culpa até o poder público por esse lado também, porque assim, não tem orientação de você dizer desse jeito assim, para as pessoas, de você colocar o seu lixo separado, porque aí o carroceiro passa e aí tá aqui esses dois saquinhos de lixo aqui [diz exemplificando com dois sacos que tomou à mão], esse aqui é reciclável e esse aqui não é. Aí o cara pega e joga aqui, dentro do carrinho dele, o reciclado. E o lixo que não é reciclado ele não vai rasgar o
133 saco, vai deixar lá. Mas o que acontece? Muitas vezes as pessoas colocam misturado. Aí será que o cara é culpado?! O catador não é culpado, às vezes são a pessoas mesmo que não têm educação ambiental, de pegar e separar o seu lixo. Aí as pessoas dizem, catador é culpado! É não! São as pessoas que não têm essa educação, que não têm essa disciplina e o Poder Público não divulga isso. Isso não é passado na televisão! (Caio)
Apesar do preconceito, os catadores também contam com a solidariedade durante suas jornadas de trabalho. Assim, há quem receba comida, objetos de uso pessoal ou doméstico. Os gestos de solidariedade, aos quais os catadores muitas vezes atribuem serem fruto da sorte ou da benção divina, são narrados em paralelo aos casos de preconceito sofrido, como que atribuindo a eles uma forma de compensação.
Outros chamam a gente, diz que o trabalho é honesto, o trabalho é muito bom pra gente. Têm muitos deles que acham que os trabalhos da gente é um trabalho honesto, eles acham que a gente trabalha num trabalho desse, muita gente num tem coragem de trabalhar, mas muito dizem que é a pessoa só trabalha num trabalho desse porque a pessoa tem precisão. É isso. (Marlene)
Tem gente muito boa, cara! É por isso que eu disse que no meio dos ruins a gente tira os bons, e pelos ruins a gente passa. Compensa, compensa. A gente não adianta explodir, não, nem ficar... Tem que ser de acordo, né. […] Rapaz, tem muita gente que admira, sabe. Param nos carros, dão dinheiro, dão lanche à gente, dão roupa, dão cesta básica. Porque a gente além de catar na rua, a gente, qualquer coisinha que eles pedirem pra gente fazer a gente faz. (Paulo)
A gente passa, no meio da rua, tem gente que às vezes Deus toca no coração delas, aí ela chama, e junta umas coisinha em casa e dá a nós. […] Tem muita gente que chama a gente e dá também... as oficinas, aí nós vamos sobrevivendo, dá pra ir. […] Tem casa que às vezes já guarda pra nós. (Antônio)
Tem muita gente de coração bom, parceiro. Tem canto de às vezes a gente passar e o povo dá as coisas. Como já vim de lá pra cá, peso, pesado mesmo, sozinho, puxando o carro e às vezes parar um carro e esticar a mão, dá dez reais, vinte reais, dá uma alimentação. Também tem muita gente boa. (Roberto)
A rota do catador, além de estruturada conforme a rota do caminhão de coleta do lixo, e com base nos locais de lixo rico, conforme vimos no capítulo anterior, tem influência
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também dos laços de solidariedade possivelmente criados no caminho. Trata-se de uma interessante estratégia a que Paulo assim se refere:
Eu fazia sempre esse caminho porque era o mesmo caminho porque era o que dava, né! E o que as pessoas, todo dia eu passava, me conheciam. Ficava conhecido. Opa! E parava num restaurante, e parava pra merendar e opa, e todo mundo, opa, opa, opa, olha tenho isso pra você, opa... aí já sabia, porque quando tinha um material pra tirar também, pra rebolar, aí eu parava, fazia um frete, uma coisa, aí ficava conhecido. Aí “passa aqui tal dia, passa aqui amanhã ou depois que eu tenho pra você”, aí separavam, aí eu sempre passava no mesmo dia, nunca mudava a rota. Porque se mudasse a rota perde a freguesia, aí você não mudando, você fica conhecido. (Paulo)
Diante da comum estigmatização, o tão-só fato de alguns moradores demonstrarem confiança com quem é freqüentemente alvo de desconfiança, já representa um gesto de solidariedade:
As pessoas mais-ou-menos me davam oportunidade de que eu limpar o galpão deles atrás. Porque sempre umas casa de pessoas mais-ou-menos tem sempre uma coberta onde eles guardam as coisas que eles acham que não serve mais, mas pra nós serve muito, né. Guarda tudo, máquina de lavar, fogão velho antigo, televisão, essas coisas. Sempre Deus abriu uma oportunidade de o pessoal nem me conhecer, eu ir passando na rua e eles me chamarem e dessa chamada eles me darem confiança e eu entrar e sair de dentro das casas deles, ver tudo que for ouro, prata, e eles me darem tudo de bom e eu não tremer... e eu sempre já uso, sabe, umas coisinhas, sabe, eu fumo, eu bebo, mas eu sempre controlei de entrar e sair nas casas dos outros, sem mexer no que é dos outros. A pessoa me dá confiança, acostumado a trabalhar nesses cantos já que eu falei, aí eu sempre... aí o pessoal, os maridos das pessoas me diziam: “você bota gente aqui desconhecido!”, mas aí a pessoa dizia, “não! mas esse aqui entra na casa das pessoas mas não mexe nas casas das pessoas, não mexe nas coisas, não”. É assim também tá entendendo?! (Paulo)
Não obstante todo o estigma sentido no cotidiano de trabalho pelos catadores, muitos estudiosos da temática, conforme vimos no capítulo 4, apontam para sua importância como agentes ambientais e responsáveis pela coleta de boa parte do lixo urbano (MEDINA, 2007; ABREU, 2001). Os próprios catadores, sobretudo aqueles que têm a oportunidade de
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discutir acerca do seu próprio trabalho, como os associados, salientam a relevância da catação para além da satisfação de suas necessidades pessoais:
Os governantes têm que dar mais força num trabalho desse pra gente. É o que a gente mais precisa. Por quê? Se não fosse esse trabalhozinho aqui, esse trabalho de reciclagem, como era que tava a cidade? Porque tem carro pra pegar os lixos e você anda aí no meio do mundo aí nesses cantos, desses terrenos, esses terrenozinhos baldio é tudo cheio de lixo. Quer dizer, se não fosse um trabalho desse de reciclagem como era que tava a cidade? Carro não ia dar de conta! Carro de carregar lixo não dava de conta não! Porque não dava mesmo. (Marlene)
Por esse viés, o trabalho de catador ganha uma relevância sócio-ambiental que não condiz com a precariedade do ofício e com a forma como seu trabalho é socialmente percebido. Daí que muitos autores (MAGERA, 2004; LAYRARGUES, 2002; MEDEIROS & MACÊDO, 2007) assumem uma posição mais crítica, questionando essa forma de inclusão rota que confere um status de importância ao trabalhador do lixo. Dessa forma, trata-se de uma inclusão perversa em que a atividade de catação é politicamente correta somente no que interessa sê-lo. Para Magera (2004),
o exame de determinadas relações de trabalho vinculadas às atividades de reciclagem, bem como das interfaces sociais delas derivadas, já aponta ao rumo de um verdadeiro paradoxo: o de uma atividade econômica revestida de tão propalada modernidade que pode estar, muitas vezes, precarizando o trabalho humano e gerando relações iníquas que, examinadas por certos ângulos, remetem a estágios evolutivos que já se julgavam superados na história do trabalho. (MAGERA, 2004, p. 53)
Nesta senda, Medeiros & Macêdo (2007) convidam a refletir sobre a qualidade da inclusão que está sendo proporcionada a esses sujeitos que entraram no mercado de trabalho por vias oblíquas, ou seja, através de uma atividade laboral que, conforme vimos, não lhes assegura direitos sociais básicos e, com isso, segurança no trabalho. Por isso, as autoras afirmam que “o catador de materiais recicláveis é incluído ao ter um trabalho, mas excluído pelo tipo de trabalho que realiza” (MEDEIROS & MACÊDO, 2007, 82). Na prática, a maneira acrítica de ver o problema termina por servir como forma de manter precárias as condições de trabalho do catador, sem questionar a omissão do Poder
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Público em buscar solucionar o problema, reconhecendo-os de fato, como importantes agentes na gestão de resíduos sólidos urbanos, conferindo-se a eles o devido e digno tratamento. Sem dúvida que o paulatino reconhecimento da importância do trabalho dos catadores é em grande parte fruto da organização desses trabalhadores que muitas vezes têm que forçar espaços de debates com o Poder Público e com a iniciativa privada para pensarem formas conjuntas de beneficiamento mútuo. Daí que diante dessa situação, muitas estratégias têm sido tomadas, inclusive pelos próprios catadores, como forma de enfrentamento da precarização associada à atividade de catação. São estratégias que vão desde o incremento material aos locais de trabalho à busca de reconhecimento da importância dos catadores perante a sociedade e os próprios trabalhadores.
6.4. Na rota da desprecarização simbólica
Os dados do diagnóstico sócio-econômico da Prefeitura Municipal de Fortaleza (2006), analisados conjuntamente com os dados e informações obtidos através das visitas e entrevistas com os catadores, permitem concluir que as motivações imediatas para o início desse trabalho é a necessidade de manutenção material da vida diante da falta de qualquer outra alternativa. Mas diante dessa inflexão, podem existir estratégias (materiais e simbólicas) capazes de fazer frente à situação de precariedade da catação e seus efeitos na vida dos catadores? Inicialmente, creio poder afirmar que a construção subjetiva de novas motivações ao trabalho é um forte indício de uma estratégia de defesa e mediação diante da precarização das condições em que o trabalho é realizado. Os trabalhadores da catação, tanto aqueles organizados de forma associativa como os avulsos, lançam mão de várias estratégias para fazer frente à precarização do trabalho. Em meio à miríade de artifícios, podem ser citados a escolha da rota, que acompanha o caminhão de coleta de lixo e busca os lugares onde pode ser encontrado o “lixo rico”; a formação de laços de solidariedade com diversos atores sociais como seguranças, porteiros, bodegueiros, que permitem coletar materiais em estabelecimentos comerciais e condomínios, possibilitam alimentação ou um espaço para dormirem quando dos percursos noturnos, além de uma infinidade de outras formas de minimizar as dificuldades no trabalho. Formas que não estão apenas no campo objetivo, mas também de natureza subjetiva, como aquelas estratégias que buscam reconhecimento social ao trabalho desempenhado.
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Porém, as estratégias que observo como mais sólidas, porquanto não limitadas à esfera individual do catador, mas de cunho mais coletivo, são aquelas proporcionadas pela organização de grupos de trabalhadores da catação em formas associativas. Nesse contexto, devemos retomar as diferenças observadas entre o trabalho de catação realizado em modelo associativo e aquele desempenhado avulsamente. Como vimos no capítulo anterior, conquanto o labor em ambos os locais seja exercido em condições precárias, os catadores associados gozam de melhores condições em relação ao ambiente de trabalho. Essas melhores condições são de cunho material, evidenciadas pelo melhor asseio na associação, pela existência de instalações sanitárias (inexistentes no depósito visitado), eletrodomésticos em bom estado que os permitem preparar refeições, locais para descanso, sala de reuniões etc. Contudo, não se limitam a serem apenas de natureza material, havendo também uma série de diferenças que terminam por propiciar uma melhoria nas condições de trabalho na associação, tais como a participação em instâncias de discussão sobre os problemas ligados à atividade – além de amplas temáticas ligadas a pauta de atuação de diversos movimentos sociais –, formação de lideranças, conscientização política, maior autonomia no que tange ao processo produtivo do trabalho, laços grupais mais sólidos, de forma que os catadores representam a atividade não como um processo somente individual, mas inserido no contexto social de que fazem parte, maior conscientização a respeito do trabalho que realiza, que ganha contornos de motivações para além daquelas imediatas que o fizeram inserirem-se na atividade. Muitos autores têm sugerido o trabalho de catação realizada de forma associativa como forma de maximizar os ganhos, minimizando o caráter precarizante do ofício. Medina (2007) sustenta que a formação de cooperativas e associações de catadores promove melhor padrão de vida aos catadores por possibilitar maior autonomia do trabalho. Além dos ganhos materiais, o autor ressalta que os trabalhadores cooperados também apresentam auto-estima mais elevada quando comparados com os colegas avulsos (idem, p. 21). Também Medeiros & Macêdo afirmam que a organização em cooperativas “possibilita uma condição de trabalho mais favorável, com estrutura física mais adequada e oportunidades de ganho maiores, tanto na perspectiva material como social” (MEDEIROS & MACÊDO, 2007, p. 90). Na mesma trilha, Meirelles & Gomes entendem que a formação da cooperativa é um primeiro passo para o enfrentamento do preconceito em decorrência da atividade laboral “socialmente repudiada”. Para os autores, “a organização coletiva dos catadores apresenta-se como uma das poucas alternativas viáveis de resistência para esses atores tão explorados na cadeia econômica do lixo” (MEIRELLES & GOMES, 2008, p. 16), pois a melhoria de
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condições de trabalho afasta o catador da invisibilidade social, sendo capaz de despertá-lo para o exercício da cidadania. Velloso (2005), partindo do pressuposto de que só o trabalho criativo proporciona a propalada dignidade decorrente da atividade laboral – pois o contrário é mera submissão a uma realidade posta, que exige tão-somente adaptação – compreende a importância do trabalho associativo entre catadores de materiais recicláveis na medida em que proporciona um ambiente de trabalho em que o trabalhador possa ter o espaço para desenvolver suas potencialidades humanas (VELLOSO, 2005). Para Mota (2005), a participação dos catadores de materiais recicláveis no processo de reciclagem, desviando o curso de acumulação dos lixões para o reaproveitamento do lixo, agora como matéria-prima, favorece a busca por cidadania, por parte de quem encontrou no lixo uma forma de sobreviver. A autora ressalta que o trabalho em grupos organizados favorece a construção da identidade dos catadores como trabalhadores ocupantes de uma categoria profissional. Para Mota, a catação é uma forma de gerar emprego e renda com possibilidade de concomitante redução de gastos públicos com coleta de lixo e com ganho ambiental devido a um aumento no percentual de reaproveitamento. Assim, ela entende que “pela coleta seletiva, catadores e catadoras podem reconstruir sua trajetória de vida” (MOTA, 2005, p. 8). Dessa forma, nas falas dos catadores sobre o trabalho associado ou avulso, é possível perceber a importância que se dá à autonomia do trabalho associado, além de outras características por eles elencadas:
Eu acho bom trabalhar é aqui, na associação. […] É porque aqui, aqui já é da gente. Aqui é uma coisa que a gente somos associados, e nos outros cantos não é. […] Eu não acho nada de melhor nos outros depósitos. (Marlene, catadora da Associação Reciclando)
A vantagem é porque você é mais bem visto. Você é mais respeitado. Porque o governo não vê tanto como esse lado precário, entendeu? Como a sociedade vê, critica um pouco. Porque como existe a crítica perante a sociedade, perante os catadores... (Caio, catador da Associação Reciclando)
Rapaz, pelo que eu já ouvi falar eu acho que a cooperativa é melhor, parceiro. […] Porque... com certeza uma associação de catadores e tal tem uma farda, é tudo organizado, é... como é que se diz, um cracházinho, talvez no final do mês tem isso e aquilo. Acho que é melhor. […] E aqui é osso porque a gente trabalha pra caramba.
139 Taí, trabalho a quatro anos, parceiro, então quer dizer que se eu chegar hoje aqui, entregar esse carro a ele [deposeiro], eu saio com uma mão na frente e a outra atrás sem direito a p... nenhuma. (Roberto, catador do deposto de Zé Berzerra)
Antônio, catador do depósito de Zé Bezerra, ressalta aquilo que julga ser uma vantagem no trabalho associado que se relaciona justamente àquela restrita possibilidade de planejamento dos ganhos, o que confere maior insegurança ao seu trabalho:
Trabalhar em cooperativa deve ser melhor, porque você ganha o seu dinheiro digno já sem se preocupar, né, que, não hoje eu vou ganhar tanto, eu vou fazer tanto. Não, já sabia o total que você ia ganhar pra pagar suas dívidas, suas coisas.
Em contrapartida, Geraldo, catador da associação narra um episódio em que precisou ficar afastado por acidente de trabalho e recebeu o dinheiro da quinzena, ainda que de repouso:
Em associação é bom, porque aparece alguma coisa pra gente, aparece alguma coleta, doação de material pra associação. É mais melhor! Muito! Esses depósitos véi por aí nem pagar a pessoa que preste não paga. […] Tem nêgo enrolão que enrola, né. E falta dinheiro. Aqui a menina paga a gente direitinho. Nunca deve a ninguém, paga em dia. Trabalha direitinho a Rosineide [presidente da associação]. Pra ser um mulher, né... Um dia desses eu fui acidentado, sabe, tava descarregando esse caminhão aí e caiu uma porta de vidro e pegou cem pontos aqui na perna [diz apontando para a perna direita]. Não tem a marca porque eles estão passando um negócio que o cara não vê nem a marca. Foi sangue muito aí. Passei dez dias, foi, dez dias com a perna ponteada, aí ela pagou minha quinzena, tudinho, pagou tudo. No depósito aí paga se quiser né, se quiser dar alguma coisa.
Trata-se, portanto, de um conjunto de fatores materiais e simbólicos que atuam conjunta e dialeticamente no sentido de conferir uma desprecarização simbólica ao trabalho extremamente precarizante da catação de resíduos. É, portanto, um movimento contraposto ao processo de precarização – este no sentido de aprofundamento da situação de precariedade do trabalhador –, caracterizado por atuar não (apenas) no cenário concreto da precarização, destacando-se os fatores de reconstrução da identidade desses sujeitos precarizados enquanto trabalhadores a partir do auto-reconhecimento da importância do trabalho desempenhado, da inserção em grupos organizados, de formação social e política que terminam por repercutir
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materialmente na vida dos agentes. Retomando as reflexões iniciais desse capítulo, temos que o trabalho é mais que uma forma de satisfação das necessidades materiais, sendo ainda responsável pela inscrição do sujeito como alguém que tem um lugar social. Mas conferir ao sujeito um lugar social estigmatizado é marcá-lo do estigma atribuído ao seu trabalho. Assim é que a associação do trabalho a valores como a defesa do meio ambiente, crescentemente em voga na contemporaneidade, como vimos no segundo capítulo, permite ao menos mitigar o estigma. Pensando com Erving Goffman (1982), mais do que autonomia limitada à barganha de preço, a organização dos catadores em cooperativas e associações, além da interlocução de experiências através de movimentos organizados em nível local, nacional e global, permite aos catadores uma autonomia da representação que a sociedade tem construído sobre o seu trabalho. É pois, uma forma de manipulação de um identidade coletiva simbolicamente deteriorada, vez que o objeto do estigma não resta passivo diante da representação estigmatizante que se faz sobre ele, sendo também sujeito do processo de ressignificação de sua identidade para si e para outrem. Por outro viés, podemos ainda dizer que conferir um sentido ao trabalho para além do contido nas motivações primeiras dos indivíduos – que, sem encontrar outra forma de inserir-se no mundo do trabalho, precisaram penetrá-lo pelas portas dos fundos, por meio de um trabalho precário e precarizante –, dá ensejo a um relevante processo de ressignificação do trabalho que atua minimizando os efeitos desgastantes do trabalho. Assim, o trabalho passa a ser incrementado com um novo sentido (WEBER, 1999, p. 16) que culmina em um maior reconhecimento social do trabalho. Para Dejours (apud COSTA & MENDES, 2006), o reconhecimento do indivíduo e de seu trabalho em âmbito social é relevante para ensejar um processo de mediação entre o sofrimento do trabalho em prazer pelo desempenho do ofício. Ademais, esse reconhecimento é fundamental para a conquista da identidade social. Nesse contexto analítico, pode-se mesmo evocar Durkheim (2004) quando trata, em seu estudo sobre a divisão do trabalho social, acerca da anomia; o pensador francês, criticando o formato industrial típico da Europa do século XIX, entende que quando os operários não têm conhecimento da importância de seu trabalho, terminam por apenas repetilo, sem procurar compreendê-lo. Todavia, se o indivíduo desempenha sua função sem perder de vista o efeito da sua atividade para o trabalho coletivo “ele sente servir a algo”, deixando de ser apenas “uma máquina que repete movimentos cuja direção não percebe, mas sabe que tendem a algum lugar, a uma finalidade que ele concebe mais ou menos distintamente” (DURKHEIM, 1999, p. 390). É, como vimos, o caso de Caio, que passa a inserir suas perspectivas dentro de um contexto mais amplo que sua esfera pessoal, desejando melhoria na
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qualidade de trabalho a toda a categoria, e não apenas pra si. Na mesma toada, o autoreconhecimento da importância do trabalho em um contexto global, de proteção do meio ambiente, por parte de Caio, Marlene e seu Teixeira, ainda que não consigam estabelecer precisamente a relação entre um fator e outro. Nesse mesmo sentido, catadores de materiais recicláveis narram, no documentário “Essa gente vai longe...” (2005), a importância da inserção em movimentos organizados dessa categoria de trabalho como forma de reconhecimento da própria situação e da importância do seu trabalho como primeiro passo para a percepção da importância de melhorias não somente em nível individual, mas coletivo.
Hoje eu me vejo como cidadão, e antes eu me via até como o próprio lixo. Não tinha perspectiva... Antes do movimento [MNCR] eu não tinha essa perspectiva de luta, de brigar pelos nossos direitos, e hoje eu me vejo como cidadão. (relato de um catador no documentário “Essa gente vai longe...”)
Antes de está organizado a gente tem o costume de se ver como qualquer coisa menos um ser humano. Depois de organizado a gente resgata um pouco disso, a gente resgata a importância de ser trabalhador, perde essa vergonha, perde esse medo e se sente fortalecido por ser autônomo, por poder trabalhar de uma maneira digna, decente. (relato de uma catadora no documentário “Essa gente vai longe...”)
Conforme vimos no capítulo anterior, quando da comparação entre a associação e o depósito visitados, há que se ressaltar a relevância das melhores condições materiais de que os catadores da associação dispõem, no sentido da desprecarização simbólica ali operada, haja vista que proporcionam uma facilitação do trabalho e uma segurança na regularidade dos ganhos que contribuem à abstração da atividade laboral para além das contingências imediatas e individuais mais prementes. Não se pode perder de vista que a precarização é material e simbólica, portanto, seu vetor contrário, a desprecarização simbólica, deve atuar no mesmo sentido e em direção oposta, havendo uma constante relação de retroalimentação entre os seus aspectos materiais e simbólicos, ora como efeitos ora como causa. Ou seja, as melhores condições materiais verificada na associação permitem a seus catadores abstraírem das necessidades tão-somente materiais, refletindo sobre outros aspectos relevantes em seu trabalho, o que pode retornar materialmente. O processo pode ser feito inversamente quando o sentimento de grupo havido entre os catadores permitem-nos uma colaboração mútua que incrementa os ganhos coletivos e reforça os laços grupais.
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Assim, tem-se que o lento e gradual processo de desprecarização simbólica estende seus efeitos no plano da materialidade, não se limitando à esfera subjetiva dos indivíduos, singularmente e socialmente considerada. Nesse sentido apontam as reflexões de Bourdieu, para quem os efeitos do poder simbólico têm repercussões concretas na vida dos indivíduos, permitindo por meio dele, “a obtenção do equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)” (BOURDIEU, 2006, p. 14). Diante do exposto, o processo de desprecarização simbólica poderia ser assim representado, considerando-se o movimento dialético entre fatores materiais e simbólicos observados na associação:
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MATERIAIS: Melhor infra-estutura; Vínculo ao Projeto Ecoelce; Doações de pareceiros; Apoio do Poder Público; Menor incerteza de ganho; Maior barganhga de preço; Redução das saídas às ruas
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SIMBÓLICOS: Participação em instâncias de discussão sobre a atividade; Inserção em grupos organizados Reflexão sobre a própria situação Melhor compreensão do trabalho inserido em uma complexa cadeia; Ressignificação da atividade (importância para o meio ambiente e gestão de resíduos); Maior autonomia; Reconhecimento da identidade de trabalhador; Interesse em lutar para melhoria de condições da sua situação de vida e trabalho
A inserção desses elementos faz com que se reconheça o trabalho e a luta por melhores condições não como uma causa individual, mas coletiva, e a ajuda mútua, bem como a freqüência em instâncias de debate permitem que o catador reflita sobre o seu próprio trabalho. Se o trabalho é fundamental na construção social dos indivíduos, trata-se, em última análise, de um importante processo de reconhecimento de si. Sobre o reconhecimento do processo de luta por melhoria nas condições de trabalho, Caio, catador da Associação Reciclando, diferencia o contexto em que estão inseridos os catadores da associação em comparação aos colegas avulsos:
Aqui você sabe que você está lutando numa causa que não é só pra você. Tem o lado dos companheiros dentro da associação, tem o lado de você estar na convivência e no dia-a-dia com todo mundo, tem o companheirismo de todo mundo estar batendo papo, de estar jogando, estar conhecendo a realidade de cada um. […] Eu acho que
143 no depósito não tem isso não, porque no depósito você sai com a carroça, você se manda. O dono do depósito só está interessado em lucro pra ele. (Caio)
Destarte, há entre os catadores organizados em formas associativas um maior potencial para se contrapor à precarização do trabalho, operando no sentido não de eliminá-lo, pois que essa é uma conseqüência a ocorrer após esforço conjunto de longo prazo, mas pelo menos, de minimizá-lo. Assim, com a observação da desprecarização simbólica não quero dizer que esses indivíduos, trabalhadores de um ofício socialmente estigmatizado e, de fato, extremamente precarizante, conseguiram reverter um quadro de precariedade que marca suas histórias de vida e estão relacionados com uma plêiade muito mais ampla de fatores. No mesmo sentido, esse processo também não promove a equidade entre os catadores e os grandes empresários do lixo, que de fato mais se beneficiam da longa cadeia da reciclagem. É este um processo que tenta fazer, endogenamente, um movimento avesso àquela inclusão perversa, tentando conferir importância social ao trabalho de catação. Por isso discordo, em parte, de Magera (2004) que diz que “as cooperativas de reciclagem de lixo estão malsinando o sentido do trabalho associativo, e o que é pior: criando um trabalho precarizado, que pouco ou nada tem ajudado o desenvolvimento sustentável” (MAGERA, 2004, p. 57). Ora, mas se, como vimos, a questão ambiental é tomada como roupagem do próprio empresariado, que incrementa seus lucros através do marketing de “boas ações”, não seria legítimo que os catadores – que ocupam os elos mais frágeis da rica e mal distribuída cadeia de reciclagem –, beneficiassemse minimamente adotando o mesmo discurso? Aqui é o caso de reconhecer a legitimidade desse expediente, dada a gravidade da situação posta. O que não se pode aceitar é atribuir a esse complexo processo o efeito (quase mágico e quiçá romântico) de assegurar a pronta inserção do catador em contexto de reconhecimento e garantia de seus direitos enquanto trabalhador e enquanto cidadão. Há que se compreender a desprecarização simbólica como parte de um amplo processo de conquista ativa de direitos, marcado por avanços e retrocessos e que deve ser guiado pelos próprios catadores, remetentes e destinatários dessas conquistas. A desprecarização simbólica tem como efeitos principais, não a eliminação do caráter precarizante do ofício de catação, mas de constituir instrumentos de reconhecimento do sujeito por ele mesmo enquanto trabalhador e sujeito com “direito a ter direitos”. A importância, nesse sentido, situa-se também no empoderamento desses indivíduos para que protagonizem a luta por melhores condições de trabalho. Nesse caso, diante da importância do benefício propiciado a esses homens e
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mulheres trabalhadores, entendo como secundários, embora importantes, os benefícios ao meio ambiente. Esses devem ser vistos como conseqüência da melhoria do meio ambiente de trabalho desses sujeitos que também fazem jus a um meio ambiente equilibrado. Daí é que percebo como bastante interessante a proposta de Martin Medina (2007) de que a gestão de resíduos sólidos urbanos seja pensada incluindo esses trabalhadores que efetivamente têm contribuído na limpeza das grandes cidades. Mesmo porque, além dos ganhos sociais, trata-se também de um processo bem mais barato e que pode se auto-sustentar com a venda do material ou agregação de seu valor por meio de transformação em novos objetos. Todavia, tal inserção deve ser acompanhada de processo de formação (de catadores e comunidade) que assegure um mínimo de condições autônomas aos catadores além de um questionamento mesmo dos amplos fatores que dão ensejo à existência desses trabalhadores, refugos precarizados sobrevivendo à cata de refugos precarizantes.
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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O atual estágio de desemprego em massa tem feito surgir formas diversas de trabalho informal, na contramão daquele modelo formal albergado pelo Welfare State, vez que não assegura ao trabalhador uma série de direitos sociais que lhe conferem segurança, estabilizando as relações de trabalho e equacionando, na medida do possível, os conflitos entre capital e trabalho. São tempos outros, marcados pelo intenso uso de máquinas, pela crescente exigência de produtividade a baixo custo, deslocamento global de contratação de mão-de-obra em busca de barateamento dos custos de produção e por um ideário que tem feito tremer a classe trabalhadora diante da crescente auto-suficiência do empregador frente à mão-de-obra vulnerabilizada. As próprias relações jurídicas, antes escudo protetor contra abusos, amoldamse às exigências do mercado, subtraindo direitos conquistados após longo processo de luta sob o pálio de um processo de flexibilização. Assim, o emprego, aqui entendido como relação de trabalho juridicamente protegida por conquistas históricas dos movimentos de trabalhadores e albergada pelo Estado, tem perdido espaço para outras formas de atividade laboral. Apesar da crise no mundo do trabalho, esta atividade humana como valor não perdeu seu espaço na hierarquia de valores morais. O trabalho continua sendo considerado um meio de inserção na estrutura social e forma par excellence de construção da identidade social do indivíduo. O trabalho é, portanto, mais que uma atividade através da qual se busca satisfação das necessidades materiais, devendo ser ainda considerado seus aspectos socializantes e morais. No entanto, a manutenção desse ideário entra em séria contradição no atual momento de desemprego crescente, haja vista que a exigência do exercício da atividade laboral – exigência que opera tanto como uma cobrança social contra si, alimentando também uma exigência de si para si mesmo – esbarra na dificuldade de efetiva inserção no dito mercado de trabalho. Nesse mercado oligopsônico, em que há poucos compradores para muitos vendedores (de mão-de-obra), resta como opção trabalhar a qualquer custo, para satisfazer os dois complexos de necessidades referidos. Esse movimento vai desenhando e justificando atividades laborais precarizantes, desempenhadas, notadamente, por quem, diante da situação de precariedade estrutural, não dispõe de outra alternativa senão submeter-se a condições de trabalho que muitas vezes desafiam a sua própria dignidade.
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Nesse contexto insere-se a catação de materiais recicláveis como forma de trabalho precário e precarizante, sustentada ainda pela interseção de fatores entre a existência de uma crescente indústria de reciclagem, cuja demanda de materiais é consideravelmente satisfeita pelo trabalho dos catadores, que atuam na ponta extrema da longa cadeia de transformação, associada a uma ineficaz gestão de resíduos sólidos. Não se pode perder de vista o discurso ambiental que põe em evidência a necessidade de conservação do meio ambiente (fornecedor de matéria-prima), sem diminuir os níveis de consumo. O consumo exacerbado encontra então na reciclagem um fator de expiação para os problemas da descartabilidade dele advindos. Pelo lado da catação, a inscrição da reciclagem e da sustentabilidade ambiental como um valor socialmente defendido, permite outra justificativa para a existência de trabalho tão degradante; justificativa de que porventura lançam mão os trabalhadores da catação, sobretudo aqueles organizados em cooperativa, como forma de reconhecimento da importância do trabalho. Assim, em meio a esse complexo de fatores surge a figura do catador, homens e mulheres que percorrem as ruas de várias cidades em todo o mundo em busca do refugo que os salva e precariza. São sujeitos marcados por histórias de trabalho precoce, sobretudo relacionada a atividades já precarizantes, vivendo em situação de pobreza e com baixa escolaridade ou desprovido de outro tipo de qualificação formal. Esses trabalhadores exercem uma atividade laboral extenuante, com extensas jornadas de trabalho em que são percorridas longas distâncias puxando o seu principal instrumento de trabalho, o carrinho. As histórias de trabalho desses sujeitos, associadas às motivações para iniciar-se no trabalho de catação, demonstram o grau de precariedade vivenciado antes mesmo da inserção nesse universo laboral. Observa-se então um estado de precariedade não solucionado pela atividade em que se inseriram esses sujeitos, razão pela qual esses trabalhadores manifestam seus desejos de exercerem outra atividade. Dessa forma, o estado de precariedade que leva, como causa imediata, milhares de indivíduos às ruas a desempenharem um trabalho estigmatizado é muitas vezes agravado pelo processo de precarização associado a esse ofício, que por sua vez intensifica o estado de precariedade como num ciclo de trabalho que marca a vida desses trabalhadores, refugos precarizados que catam no lixo (refugos precarizantes), a própria sobrevivência. Ademais, à precarização dessa atividade laboral, soma-se o preconceito freqüentemente narrado pelos catadores que não vêem seu trabalho reconhecido socialmente, sendo associados a delinqüentes e agentes causadores de sujeira na cidade. O preconceito surge ainda pela relação da atividade desempenhada com o lixo, lugar de onde esses
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trabalhadores catam sua própria sobrevivência. Nesse sentido, os catadores referem-se a xingamentos e questionamento de sua dignidade até por parentes. Em contrapartida, também são relatadas histórias de solidariedade de pessoas que os ajudam, separando material, doando objetos, oferecendo alimentação. A grande maioria desses trabalhadores desempenha seu trabalho de forma avulsa, vendendo o material diretamente a depósitos ou sucatas. Porém, há também diversos grupos de catadores organizados que, com apoio da administração pública ou de instituições nãogovernamentais, reúnem-se de forma associativa ou cooperativa para desempenhar seu trabalho, adotando uma série de medidas de forma a minimizar a precarização do trabalho de catação. As visitas ao depósito, assim como o contato direto com catadores que vendem o material coletado diretamente para depósitos, indicam uma relação de dependência para com o deposeiro, vez que este é dono do carrinho – objeto de distinção para os poucos catadores que os possuem, dado seu elevado custo e importância para o desempenho da atividade –, exigindo fidelidade dos catadores que o utilizam. Além desse aspecto, há entre deposeiros e catadores adiantamentos de valores, a serem descontados posteriormente, o que reduz a autonomia, desses trabalhadores, à medida que aprofunda a relação de dependência do catador para como o deposeiro, que compra os materiais recicláveis trazidos pelos catadores por valores muitas vezes inferiores àqueles pelos quais os revende para a indústria ou para atravessador de maior porte. Ainda que não seja o foco do presente trabalho, pode-se concluir, que a precarização associada ao trabalho de catação se comparada àquela associada a outros trabalhos formais, como o do operário fabril, é sim mais acentuada, haja vista que os catadores, por serem enquadrados na categoria de trabalhadores autônomos, não podem nem mesmo albergar-se juridicamente. Dessa forma, o trabalho de catação encontra-se distante inclusive da proteção que a legislação trabalhista poderia assegurá-lo. Ademais, o trabalhador da indústria pode individualizar o sujeito que lhe tolhe direitos, enquanto que para o catador, seu opositor afigura-se de forma pouco nítida, dada os frágeis liames empregatícios observados nessa espécie de trabalho. O trabalho associativo, seja realizado por meio de associações ou por meio de cooperativas, busca minimizar a precarização do trabalho de catação dando ao catador uma maior autonomia na venda do produto do seu trabalho. Supera-se assim um elo da cadeia da reciclagem, com ganhos materiais para os associados. Como associação, há maior contribuição estatal ou filantrópica, a repercutir em ganhos materiais. Na associação esse
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aspecto é observável pela estrutura e disponibilidade de equipamentos que conferem um melhor ambiente de trabalho aos associados. Além do aspecto material, o trabalho em grupos associados atua como mitigador da precarização também em seus aspectos simbólicos, pois que o processo formativo propiciado por momentos de participação em instâncias de debate acerca da situação vivenciada por parte dos próprios trabalhadores que sentem diretamente as dificuldades do trabalho permite um melhor auto-reconhecimento do trabalho, que ganha novos sentidos para além daqueles mais contingenciais. Ademais, muitos grupos, como a associação visitada, estão inseridos e redes e grupos maiores, com importante troca de experiência e fortalecimento da pauta de lutas e reivindicações, assegurando melhorias para a categoria como um todo, inclusive no que tange ao reconhecimento social do estigmatizado trabalho de catação. Tais fatores de natureza material concorrem para uma desprecarização simbólica da atividade. É certo que diante do grau de precarização associado ao trabalho de catação, é um processo que, em curto prazo, atua muito mais para mitigar os efeitos precarizantes do ofício do que para solucioná-los. Mas experiências em outros estados do Brasil – como no caso da ASMARE, de Belo Horizonte, bem como em outros países, notadamente o caso da Colômbia, em que o movimento de catadores já é atuante há bastante tempo –, permitem depreender que se trata de um processo gradual que pode resultar em um reconhecimento social do trabalho com ganhos para os trabalhadores que vão além das melhorias nas condições materiais de vida. A observação comparativa realizada durante a pesquisa empírica já demonstra um diferencial entre as duas formas de exercício da atividade que resta patente nas falas dos catadores e em suas perspectivas de futuro. Como impressão conclusiva da pesquisa, não poderia deixar de afirmar a complexidade de aspectos relacionados ao trabalho dos catadores de materiais recicláveis a demandar pesquisas específicas e mais aprofundadas, tais como a relação entre a atividade de catação e a saúde dos catadores, o uso de drogas entre os catadores, as redes de solidariedade construídas durante o exercício do trabalho e a relação do trabalho de catação como forma de reconstituição da identidade de trabalhador daqueles que passaram pelo sistema penitenciário e, em situação de particular marginalização, buscaram em um trabalho estigmatizante uma forma de obter sobrevivência e dignidade. Além dessas questões mais evidentes, espero que sirvam de pistas para outras investigações, para que, conhecendo melhor esse precário universo laboral, possam ser desenvolvidas propostas de melhorias das condições de trabalho
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desses sujeitos, sem deixar de levar em consideração a importância da participação dos próprios catadores nesse amplo processo.
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ANEXO
ROTEIRO
DE
ENTREVISTA
SEMI-ESTRUTURADA
APLICADO
COM
CATADORES DO DEPÓSITO E DA ASSOCIAÇÃO VISITADOS
1) Qual foi o seu primeiro trabalho? 2) Quantos anos você tinha quando começou a trabalhar pela primeira vez? 2.1) O que o motivou a trabalhar desde tão cedo? 3) Você pensava em ser o quê antes desse trabalho? 4) Que tipo(s) de trabalho você teve até chegar a ser catador? 5) Quando você iniciou na atividade de catação? 6) Que trabalho fazia logo antes da catação? 7) O que o motivou a iniciar o trabalho de catação? 8) Como foi o seu ingresso na atividade de catação? Aonde iniciou o trabalho? Aonde trabalha atualmente? 9) Como é o seu dia de trabalho? (duração da jornada; que horas começa e termina; quantas vezes por semana) 9.1) Que trajeto você faz durante a jornada? 9.2)Como se dá a escolha do percurso? 9.3) Você faz o percurso sozinho ou acompanhado? Com quem? 9.4) O carro é próprio? 9.5) Como é o procedimento de catação? 9.6) Que tipo de material você prefere catar?
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9.7) Quais as principais dificuldades durante o percurso? 9.8) Depois que chega (na cooperativa ou no depósito), como é o procedimento? 10) Quanto você apura com a catação (por dia, semana ou mês)? 11) Você tem algum outro tipo de ganho? (Alguém da família ou programa do governo...). 12) PARA NÃO-COOPERADOS: Você gostaria de trabalhar em uma associação ou cooperativa? Por quê? Vantagens e desvantagens em ser avulso. PARA COOPERADOS: Você gosta de trabalhar como cooperado? Por quê? Vantagens e desvantagens em ser cooperado. 13) Que riscos você percebe no seu trabalho de catador? 14) Como você sente que a população percebe o catador e seu trabalho? Você já sofreu preconceito? Tem alguma história a esse respeito? 15) Você já sofreu algum tipo de violência enquanto estava catando? 16) O que poderia ser feito para combater o preconceito? 17) Você sente que o seu trabalho lhe dá segurança? 18) Para você, o que é ser catador? 19) Você gosta do trabalho que você faz? Está satisfeito? 20) 3 vantagens e 3 desvantagens da atividade de catação. 21) Você gostaria de exercer outra atividade? [EM CASO DE RESPOSTA POSITIVA] Atualmente, que trabalho você gostaria de ter? O que lhe impede de realizar essa outra atividade? 22) O que você espera do seu futuro? (do ponto de vista individual e familiar)