A DESTRUIÇÃO DA PASTORAL ROMÂNTICA EM CANAÃ, DE GRAÇA ARANHA Marciano Lopes e SILVA (UEM) i 1. INTRODUÇÃO
Assim nasceu Canaã, retrato de algumas teses em choque e deleitação romântico-naturalista das realidades vitais. A dualidade, não resolvida por um poderoso talento artístico, criou graves desequilíbrios na estrutura da obra, cujo valor, enquanto romance, é ainda hoje posto em dúvida por mais de um crítico respeitável. (BOSI, 2006, p. 326) Canaã (1902) é uma obra do cânone literário brasileiro geralmente lembrada por se apresentar como um romance social – ou mesmo de tese – sobre a imigração alemã e as questões raciais no Brasil. Nela, o debate travado entre os personagens Milkau e Lentz não se restringe a questões políticas e históricas. Ao tratar delas, eles penetram nos campos da filosofia da história e da metafísica, considerando a história humana implicada na história natural e a natureza, por conseguinte, como um elemento fundamental na avaliação de qualquer utopia, seja de caráter socialista ou mesmo fascista. Tal fato permite uma leitura da obra do ponto de vista da ecocrítica, até mesmo porque Canaã apresenta mais duas outras características que a tornam um dos raros casos na literatura brasileira de um romance que já realiza no início do século XX um debate ecológico muito próximo ao que hoje é tão marcante no cenário global: nela, o interesse humano não é visto como o único legítimo e a responsabilidade humana sobre a preservação da natureza encontra-se na orientação ética do texto – ainda que seja um problema secundário. No entanto, os fatos apresentados pelo narrador no transcorrer da narrativa paulatinamente corroem a crença na pastoral romântica, destruindo pouco a pouco os alicerces da fé na bondade natural do ser humano e, por conseguinte, na construção de uma sociedade fraterna e socialista. Por tal razão, Canaã se apresenta como um romance de tese falho ou – no mínimo – extremamente contraditório, posto que a aparente tese defendida na obra – que se encontra no discurso do protagonista, Milkau, e nas ambientações impressionistas do narrador – é contrafeita pelos fatos narrados (e portanto selecionados) pelo mesmo narrador que se identifica com Milkau e sua visão romântica sobre o homem e o universo. Esse paradoxo é a questão para a qual queremos chamar a atenção no presente trabalho.
2. A PASTORAL ROMÂNTICA NO DISCURSO DE MILKAU E NAS AMBIENTAÇÕES DO NARRADOR Nas atuais discussões realizadas no recente campo da ecocrítica, os discursos ambientalistas que fazem o elogio da vida natural, distante das cidades e em harmonia com a natureza, têm sido considerados expressivos de uma tradição “pastoril” oriunda da poesia helenística da Antigüidade, mas que chegou aos nossos dias especialmente
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através da literatura romântica. Sobre essa tradição nomeada de “pastoral”, comenta Greg Garrad (2006, p. 54): Desde as reações poéticas do movimento do romantismo à Revolução Industrial, a pastoral tem moldado de forma decisiva nossas construções da natureza. Talvez até a ciência da ecologia tenha sido moldada pela pastoral, nas primeiras etapas de seu desenvolvimento, e vimos que o texto fundador da ecocrítica, Silent Springs, recorreu à tradição pastoril. Nenhum outro tropo está tão profundamente arraigado na cultura ocidental, nem é tão profundamente problemático para o ambientalismo. No debate de idéias entre Milkau e Lentz, enquanto o segundo concebe a natureza apenas como uma fonte de riquezas que deve ser explorada pelo homem, sem se preocupar com a sua preservação, Milkau diversamente a compreende segundo o ponto de vista de uma visão de mundo romântica. Para ele, ela é sagrada e encontra-se em estado de harmonia cósmica, sendo-lhe dolorosa a sua exploração econômica na medida em que isso representa a sua destruição ou o rompimento com essa harmonia. Essa contraposição entre a visão da pastoral romântica e a visão pragmática e utilitarista sobre as relações entre o homem e a natureza, presente na ideologia do progresso que orienta o liberalismo econômico e a revolução industrial, encontra-se claramente exposta no diálogo abaixo: O agrimensor olhou a árvore. - Faz pena – disse compassivo – botar tudo isso abaixo. - Eu, por mim, acudiu Milkau, levado pelo mesmo sentimento -, preferiria um lote onde não fosse preciso esse sacrifício. - Não há nenhum – respondeu Felicíssimo. - O homem, notou Lentz a sorrir com ar de triunfo – há de sempre destruir a vida para criar a vida. E depois, que alma tem esta árvore? E que tivesse... Nós a eliminaríamos para nos expandirmos. E Milkau disse com a calma da resignação: - Compreendo bem que é ainda a nossa contingência essa necessidade de ferir a Terra, de arrancar do seu seio pela força e pela violência a nossa alimentação; mas virá o dia em que o homem, adaptando-se ao meio cósmico por uma extraordinária longevidade da espécie, receberá a força orgânica da sua própria e pacífica harmonia com o ambiente, como sucede com os vegetais; e então dispensará para subsistir o sacrifício dos animais e das plantas. Por hora nos conformaremos com esse momento de transição... Sinto dolorosamente que, atacando a Terra, ofendo a fonte da nossa própria vida, e firo menos o que há de material nela do que o seu prestígio religioso e imortal na alma humana. (ARANHA, 2005, p. 78 – Os grifos são de minha autoria.) A pastoral não se encontra apenas no discurso de Milkau. Também está presente nas ambientações que o narrador faz da natureza, sempre com um estilo que pode ser considerado impressionista. Mas esse impressionismo não é de feitio realista-naturalista, 473
característico do primeiro momento da arte impressionista. Diversamente, temos um impressionismo romântico (SILVA, 2004), pois marcadamente subjetivo e simbólico. O confronto do excerto que segue, do segundo capítulo da obra, com o famoso soneto “Correspondências”, de Charles Baudelaire, que é sempre apontado como exemplo da concepção simbolista da natureza e do universo, demonstra a pertinência da afirmativa feita sobre a presença de um estilo impressionista e de uma concepção de mundo romântico-simbolista nas representações da natureza, em Canaã: A floresta tropical é o esplendor da força na desordem. Árvores de todos os tamanhos e de todas as feições; árvores que se alteiam, umas eretas, procurando emparelhar-se com as iguais e desenhar a linha de uma ordem ideal, quando outras lhes saem ao encontro, interrompendo a simetria, entre elas se curvam e derreiam até ao chão a farta e sombria coma. Árvores, umas largas, traçando um raio de sombra para acampar um esquadrão, estas de tronco pejado que cinco homens unidos não abarcariam, aquelas tão leves e esguias erguendo-se para espiar o céu, e metendo a cabeça por cima do imenso chão verde e trêmulo, que é a copa de todas as outras. Há seiva para tudo, força para a expansão da maior beleza de cada uma. Toda aquela vasta flora traduz a antigüidade e a vida. Não se sente nela sombra de um sacrifício que seria o triunfo e o prêmio da morte. Dentro, as parasitas se enroscam pelos velhos troncos, com a graça de um adorno e de uma carícia. Há mesmo árvores que são mães de árvores e suportam com fácil e poderosa galhardia a filha, que lhe sai do regaço, e mais esplendorosa, às vezes, que a rija e bela progenitora. Uma infinita variedade de arbustos cresce às plantas dos gigantes verdes; é uma florazinha miúda compacta e atrevida, dentro do bojo de outra mais ampla e opulenta. E tudo se ergue, e tudo se expande sobre a terra, compondo um conjunto brutal, enorme, feito de membros aspérrimos, entretecido no alto pela cabeleira basta e densa das árvores e embaixo pela rede intérmina das fortes e indomáveis raízes; todo ele se entrelaça, enroscando-se pelos braços gigantescos, prendendo-se como por tenazes numa grande solidariedade orgânica e viva... Pelas frestas das árvores, pela transparência das folhas, desce uma claridade discreta, e nessa suave iluminação se desenrola dentro do mato o cenário pomposo das cores. Elas são em si vivas e quentes, mas a gradação da sombra, que ora avança, ora se afasta, comunica-lhes da negrura do verde ao desmaio do branco a matização completa, triunfal. E lá em cada boca da estrada, as portas da mata formam um círculo longínquo, azulado, como portas feitas só de luz, e de uma luz zodiacal e docemente infinita... de todo o corpo colossal, das folhas novas e das folhas mortas, dos troncos verdes e dos troncos carunchosos, das parasitas das orquídeas, das flores selvagens, da resina que se derrama vagarosa ao longo das árvores, dos pássaros, dos insetos, dos animais ocultos no segredo da selva, se desprende um cheiro misterioso e singular, que se volatiza no imenso todo, e, tal como o aroma das catedrais, acalma, embriaga e adormece as coisas. Na volúpia harmoniosa desse perfume, que é acre e tonteante, com a claridade que é branda, está a 474
fonte de repouso da mata... O silêncio que mora na floresta é tão profundo, tão sereno, que parece eterno. Feito das vozes baixas, dos murmúrios, dos movimentos rítmicos dos vegetais, é completo e absoluto na sua perfeita harmonia. (ARANHA, 2005, p. 35-6 – Os grifos são de minha autoria.) Embora Ana Balakian (1985, p. 33) e Luiz Costa Lima (1980, p. 119) considerem que a idéia das correspondências universais – conforme apresentadas por Swedenborg – não impliquem em uma transcendência no soneto “Correspondências”, de Baudelaire, considerando portanto que, nele, as sinestesias são totalmente terrestres, remetendo a uma vaga religiosidade panteísta ou a uma estrita materialidade, tal não é a opinião dominante na recepçao crítica e na maneira como, em geral, esse soneto foi recebido e divulgado. Quase sempre, quando abrimos os manuais de história da literatura na parte referente ao Simbolismo, encontramos esse soneto como exemplo da crença nas analogias e correspondências universais existente na arte simbolista. E é essa interpretação do soneto que queremos destacar em confronto com a passagem de Canaã acima apresentada. É interessante notar que, na idealização da desordem da floresta, a idéia base do evolucionismo, de que existe uma luta pela sobrevivência que seleciona os indivíduos e as espécies, é anulada em favor da existência de uma relação amorosa orientada por uma secreta harmonia cósmica. Não há sacrifício nem morte, apenas cooperação, “solidariedade orgânica viva” e, por conseguinte, renovação. A necessidade egoísta que, segundo Schopenhauer (19--), tem a vontade de devorar a vida para renovar-se (idéia com a qual concorda Lentz) é vista como uma necessidade do Amor. Para representar esse cosmos, o narrador representa a selva tropical – visto a correspondência entre todos os seres – como sendo uma catedral, espaço sagrado, de paz, silêncio e harmonia. Assim como no soneto de Baudelaire, a Natureza é uma catedral, ou seja, “um templo” (“La Nature est un temple”); o vento provoca “os movimentos ritmicos dos vegetais”, cujos sons são percebidos como “vozes baixas” e “murmúrios” – o que corresponde ao murmúrio de confusas falas (“confuses paroles”); os sons, as cores, os perfumes, “os movimentos dos vegetais”, os “animais ocultos no segredo da floresta” e até mesmo “as parasitas [que] se enroscam pelos velhos trocos”, se encontram em “perfeita harmonia” (“Les parfums, les coulers et les sons se répondent”). É como se Graça Aranha tivesse transposto os siginificados e imagens do soneto abaixo para a ambientação vista acima. La Nature est um temple ou de vivants piliers Laissent parfois sortir de confuses paroles; L’homme y passe à travers dês forêts de symboles Qui l’observent avec des regards familiers. Comme de longs échos qui de loin se confondent Dans une ténébreuse et profonde unité, Vaste comme la nuit et comme la clarté, Les parfums, les couleurs et les songs se réspondent. Il est des parfums frais comme des chairs d’enfants, Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, - Et d’autres, corrompus, riches et triomphants, 475
Ayant l’expansion des choses infinies, Come l’ambre, le musc, le benjoin et l’encens, Qui chantent les transports de l’esprit et des sens. (BAUDELAIRE, 1985, p. 114)
3. A DESTRUIÇÃO DA PASTORAL ROMÂNTICA A floresta que vimos acima, ambientada como um espaço sagrado, é a mesma que, no final do capítulo quatro, será incendiada, sendo consumida pelo demônio das colunas de fogo; fogo que, por um lado, é aquele que sai da boca do demoníaco dragão e, por outro, da fuzilaria das tropas militares (alemãs?) que avançam – juntamente com o progresso – no combate ao caos da natureza selvagem e tropical da América. A destruição da pastoral romântica, que temos na passagem abaixo, é representada, portanto, por uma dupla alegoria, pois o incêndio é transfigurado e re-significado segundo dos dois eixos isotópicos mencionados: o do demoníaco (em negrito) e o da guerra (sublinhado). O último parágrafo do recorte (que também é o último do capítulo) opõe o prazer bestial e instintivo dos camponeses (alemães e brasileiros, juntos) ao idealismo de Milkau, que sonha com a vinda dos “tempos sem violência”, “dia em que o homem, adaptando-se ao meio cósmico por uma extraordinária longevidade da espécie, receberá a força orgânica da sua própria e pacífica harmonia com o ambiente” (ARANHA, 2005, p. 78). A idéia do fogo chamejou no espírito do companheiro. Pouco depois os homens foram reunidos, e todos penetraram na floresta com um recolhimento sacerdotal, de quem vai cumprir os ritos de cultos infernais. Nun dos ângulos da mata lançaram fogo à primeira moita, que lhes pareceu mais ressequida. Antes que a labareda apontasse para o alto as línguas ardentes, rubras, rápidas, uma fumaça grossa se desprendia do fundo da touça, suspendia-se no ar leve da floresta, vagando na direção dos caminhos como pastosas nuvens. Começara a queima. O fogo erguera-se e lambia num anseio satânico os troncos das árvores. Toda a ramagem da base foi ardendo, e as parasitas como rastilho de pólvora levavam às chamas à copa, e a fumaça aumentando entupia as veredas e arremessava para a frente o bafo quente do fogo, que lhe seguia no encalço. Muitas árvores estavam contaminadas, ardiam como tochas monstruosas, e estendendo os braços umas às outras espalhavam por toda a aparte a voragem do incêndio. O vento penetrava pelos claros abertos esfuziava, atiçando as chamas. Pesados galhos de árvores que caiam, troncos verdes que estalavam, resinas que se derretiam estrepitosas faziam a música desesperada de uma imensa e aterradora fuzilaria. Os homens olhavam-se atônitos diante do clamor geral das vítimas. Línguas de fogo viperinas procuravam atingi-los. Recuavam, fugindo à perseguição das colunas que marchavam. [...] Num alvoroço de alegria, os homens viam amarelecer a folhagem verde que era a carne, e fender-se os troncos firmes, eretos, 476
que eram a ossadura do monstro. Mas o fogo avançava sobre eles, interrompendo-lhes o prazer. [...] A nevrose do pavor centuplicou-lhes as forças. Os pigmeus que se não mediam com as árvores, e que, não podendo vencê-las, tinham recorrido ao fogo, agora, sob o aguilhão da defesa própria, se arrojavam contra os paus com o denodo de gigantes. [...] O fogo não tardou a penetrar num pequeno taquaral. Ouviram-se sucessivas e medonhas descargas de um tiroteio, quando a taboca estalava nas chamas. O fumo crescia e subia ao ar rubro, incendiado; os estampidos redobravam, as labaredas esguichavam, [...] Farto de devorar a carne dura do bambual, o fogo desafogou-se, e célere, e lépido, foi veredando por um atalho [...]. Os colonos e trabalhadores semimortos voltavam a casa, logo que se reconheceram senhores do perigo, invencíveis sacrificadores da terra. À noite, da varanda, quando as estrelas em ritmo moroso parecia caminharem para no céu, Milkau chamava na sua imaginação a vinda dos tempos sem violência, e os outros miravam numa diabólica satisfação a mata esbraseada a estorcer nas agonias o incêndio. (ARANHA, 2005, p. 84-86 – Os grifos são de minha autoria.) Com o transcorrer da narrativa, muitos outros fatos concorrerão para a destruição do ideal pastoril: a mesquinhez e o egoísmo tanto dos colonos, que não acolhem Maria, quanto dos brasileiros que representam a instituição do Estado (aproveitando-se do analfabetismo destes na língua portuguesa para extorquir-lhes dinheiro) e especialmente três passagens de extrema violência, cuja significação/motivação somente pode residir na representação do egoísmo inerente à natureza de todos os seres vivos: a da luta dos colonos contra os cães e os urubus para poder enterrar o corpo do velho e solitário caçador, a do sacrifício ritual de um cavalo pelos imigrantes magiares, e a já antológica passagem do momento em que Maria dá a luz ao seu filho, que é carregado e devorado pelos porcos. As duas primeiras passagens ocupam quase todo o espaço do capítulo VIII e são apresentadas numa seqüência de crescente intensidade, sem deixar chances para o leitor respirar fundo e tomar fôlego após a brutalidade e a crueza da descrição da carnificina em que se transformou a luta com os cães e os urubus. A terceira, vem logo no inicío do capítulo que segue. Novamente o leitor não tem muito tempo para se desfazer da horrível impressão resultante do sacrifício do cavalo, morto a chicotadas. Comparada com estas duas passagens, a descrição dos porcos carregando e devorando a criança que acabara de nascer parece literatura de recreio.
4. AS UTOPIAS DE MILKAU E LENTZ Não é meu objetivo, aqui, evidentemente, apresentar uma análise profunda das utopias e valores sócio-políticos dos personagens Milkau e Lentz, mas tratar dessas questões apenas na medida necessária para esclarecer que cada concepção sobre as relações entre o homem e a natureza está ligada a uma concepção de natureza e de sociedade.
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Conforme já indicamos, Milkau concebe a natureza como harmônica e sagrada, expressando um sentimento panteísta que se encaixa na tradição de um pensamento romântico que, na Alemanha, tem suas raízes na literatura de Goethe e na escola de Jena (representada, entre outros, pelos irmãos Schlegel, Schiller, Novalis, Tieck), passando pelo misticismo de um Willian Blake, na Inglaterra, pelo “bom selvagem” de Rosseau, na França, ou pelo Transcendentalismo, nos Estados Unidos da América, corrente de pensamento fundada sobre as obras de Henry David Thoreau e Ralph Waldo Emerson. O que Karin Volobuef (1999, p. 122) afirma a respeito da concepção de Natureza no romantismo alemão, vale para todos: A Natureza, portanto, extrapola o simples âmbito de paisagem ou ambiente físico, tornando-se, aos olhos dos românticos, uma esfera superior em que se expressa o absoluto e, por extensão, o sujeito. Nesse sentido, em vez de algo inerte ou insensível, a Natureza tornase mutável e criadora – como o indivíduo, de quem é um prolongamento. O sensível e sonhador Milkau não repudia as idéias evolucionistas do final do século XIX, entretanto, a mistura racial é vista como regeneradora, necessária, portanto, ao processo de seleção das espécies e de incremento da civilização sobre o planeta. É o que podemos inferir das seguintes passagens: MILKAU - [...] O que eu vejo neste vasto panorama da História, para que me volto ansioso e interrogante, é a civilização deslocando-se sem interrupção, indo de grupo a grupo, através de todas as raças, numa fatal apresentação gradual de grandes trechos da terra, à sua luz e calor... Uns se vão iluminando, enquanto outros sdescem às trevas...[...] MILKAU – O tempo da África chegará. As raças civilizam-se pela fusão: é no encontro das raças adiantadas com as raças virgens, selvagens, que está o repouso conservador, o milagre do rejuvenescimento da civilização. O papel dos povos superiores é o instintivo impulso do desdobramento da cultura. (ARANHA, 2005, p. 38) MILKAU – A substituição de uma raça não é o remédio ao mal de qualquer civilização. Eu tenho para mim que o progresso se fará numa evolução constante e indefinida. [...] Quando a humanidade partiu do silêncio das florestas para o túmulo das cidades, veio descrevendo uma longa parábola da maior escravidão à maior liberdade. Todo o alvo humano é o aumento da solidariedade, é a ligação do homem ao homem, diminuídas as causas de separação. No princípio era a força, no fim será o amor. (ARANHA, 2005, p. 39) Para coroar essa utopia cósmica, concebe-se que a sociedade ideal tem que ser fundada no amor e na solidariedade. Milkau rejeita o trabalho como caminho para a acumulação de capital, riqueza e poder. Seu sonho é uma sociedade de caráter socialista, ou mesmo anarquista, visto sua rejeição à intervenção do Estado: “O que é lamentável nesta solenidade primitiva é a intervenção do Estado...” (ARANHA, 2005, p. 74), diz ele em uma de suas conversas com Lentz. Na visão que Milkau tem das colônias 478
alemãs, “a propriedade torna-se cada dia mais coletiva, numa grande ânsia de aquisição popular, [...] o sentimento da posse morrerá com a desnecessidade, com a supressão da idéia da defesa pessoal, que nele tinha o seu repouso...” (Idem, ibidem, p. 74). Neste cenário, cabe à América o papel de terra prometida e regeneradora das civilizações decadentes do Velho Mundo: “Vendo-os [os colonos], eu adivinho o que é todo este País – um encanto de bondade, de olvido e de paz. Há de haver uma grande união entre todos [...]; não se imolarão vítimas aos rancores abandonados na estrada do exílio. Todos se purificarão” (Idem, ibidem, p. 74). Muito diverso é o pensamento de Lentz. Para ele a miscigenação racial é degeneradora e as raças superiores devem eliminar as inferiores, conforme considera ser a brasileira. LENTZ – Não acredito que da fusão com espécies radicalmente incapazes resulte uma raça sobre que se possa desenvolver a civilização. Será sempre uma cultura inferior, civilização de mulatos, eternos escravos em revoltas e quedas. Enquanto não se eliminar a raça que é o produto de tal fusão, a civilização será sempre um misterioso artifício [...] O problema social para o progresso de uma região como o Brasil está na substituição de uma raça híbrida, como a dos mulatos, por europeus. (ARANHA, 2005, p. 39) Sua utopia, evidentemente, não prevê uma futura civilização socialista e democrática fundada sobre o cimento do Amor. Para ele, tal civilização "é uma triste negação de toda a arte, de toda a liberdade e da própria vida” (Idem, ibidem, p. 39). Aqui parecemos encontrar ecos da filosofia de Zaratustra, de Nietzsche: LENTZ – [...] Não, o verdadeiro homem é o que se libertou de todo o sofrimento, aquele cujos nervos não se contraem nas agonias, o que é sereno e não sofre, o que é soberano, o que é onipotente, o que tem sua integridade completa e fulgurante; o que não ama, porque o amor é um desdobramento poderoso da personalidade. (ARANHA, 2005, p. 40) A síntese da utopia de Lentz está no seu sonho, no final do capítulo três, que transcrevemos parcialmente abaixo: [...] E Lentz via por toda a parte o homem branco apossando-se resolutamente da terra e expulsando definitivamente o homem moreno que ali se gerara. E Lentz sorria com orgulho na perspectiva da vitória e do domínio de sua raça. Um desdém pelo mulato, em que ele exprimia o seu desprezo pala languidez, pela fatuidade e fragilidade deste, [...] aquelas florestas seriam consagradas aos cultos temerosos das virgens ferozes e louras... [...] os alemães chegariam, não em pequenas invasões humildes de escravos e traficantes, não para lavrar a terra para recheio do mulato, não para mendigar a propriedade defendida pelos soldados negros. Eles viriam agora em grandes massas; galeras imensas e numerosas os desembarcariam em todo o país. Eles viriam numa ânsia de posse e domínio [...] se revigorariam 479
eternamente na força da Natureza que dominariam como uma vassala, e senhores, e ricos, e poderosos, e eternos repousariam para sempre na alegria da luz... (ARANHA, 2005, p. 70-71)
5. CANAÃ: UM ROMANCE DILACERADO Canaã é um romance estilística e arquitetonicamente contraditório, diria mais: dilacerado. Com respeito aos estilos de época, colocam-se lado a lado no discurso do narrador uma representação realista filtrada pelas lentes de uma sensibilidade romântico-simbolista, conforme já observaram vários críticos, entre os quais destacamos Xavier Placer e Alfredo Bosi: Esteticamente, Canaã é uma convergência de influências. Influências mitigadas, amoldadas ao jeito do temperamento do escritor, caldeadas numa síntese superior pela inteligência e intuição atiladíssimas do artista. Porém identificáveis. São marcas essas de Naturalismo, Simbolismo e Impressionismo – a atmosfera literária da época. (PLACER apud COUTINHO, 2004, p. 497) Há uma forte dose de naturalismo na reprodução desses episódios. Mas não é um naturalismo impessoal e “científico”, de escola: a sensibilidade do prosador empenha-se eficazmente ao plasmar a linguagem narrativa, que, em certos momentos, atinge alto nível estético. A antológica descrição de Maria adormecida na mata, coberta e aureolada pelos pirilampos noturnos, autoriza a falar em processos impressionistas, que, conscientes ou não, bem se ajustam a esse naturalismo filtrado pela experiência simbolista. (BOSI, 2006, p. 328) A presença do Naturalismo não se encontra no nível estilístico, mas no semântico; mais especificamente nas idéias que o narrador reproduz a respeito do determinismo racial. Mesmo não afirmando, em momento algum, que a “raça” branca é superior às demais e que a miscigenação racial leva à degeneração (idéias que apenas se encontram nos enunciados de alguns personagens), ele não deixa de reafirmar os estereótipos difundidos pelas ciências biológicas e sociais da época. O brasileiro, cujo tipo exemplar é o mulato, é apresentado como ingênuo, doce, luxurioso, sentimental, sem capacidade de abstração e raciocínio analítico que o capacitem para a ciência e para a filosofia. Os colonos alemães, por sua vez, são fortes, agressivos, empreendedores e conquistadores. Dessa forma, ele reafirma a ideologia do caráter nacional tal como esta se apresentava na época (LEITE, 1983). Os personagens que exemplarmente representam o tipo nacional são o “mulato maranhense” e o agrimensor Felicíssimo, que é incapaz de aprender a manusear o teodolito, instrumento que é a sua tortura, única coisa capaz de fazê-lo perder o seu bom humor, característica também apresentada, pelo narrador, como típica do brasileiro. Para demonstrar tais afirmações, apresentamos os recortes abaixo: [...] Eles sabiam bem que o agrimensor, em mais de duzentas medições, não conseguira trabalhar com o maldito instrumento, que 480
sobre ele exercia uma influência satânica, lhe alterava o caráter, o punha fora de si e era a causa desse horror [...]. À medida que o teodolito ia desaparecendo na caixa, a alma de felicíssimo ia-se libertando da angústia, e o seu jovial humor o retomava francamente, apagando os traços da agonia científica. (ARANHA, 2005, p. 81-82 Os grifos são de minha autoria.) [...] das suas bocas rudes deixavam sair os velhos cantos amados. Joca [o mulato maranhense] fora o primeiro a soltar a voz. Os alemães instintivamente o imitaram e cada um em sua própria língua cantava versos bebidos na fonte natal. O mulato maranhense dizia as saudades do seu coração [...]. Era o grande acontecimento, o drama da sua vida, esse abandono da terra natal. [...] Nesta imagem, tão fina e superior de um sentimento animal, Joca expandia-se em gritos voluptuosos. Perpassava na cadência e no pensamento da estrofe o frêmito da luxúria meiga e doce de toda a sua raça (ARANHA, 2005, p. 83 – Os grifos são de minha autoria.) Como vemos, a oposição apontada por Xavier Placer e Alfredo Bosi não se restringe ao nível das formas composicionais, pois reside num outro mais profundo, que é o ideológico. Em Canaã, duas visões de mundo antagônicas convivem – não sem conflitos – lado a lado: as idéias do determinismo científico e do evolucionismo, por um lado, e do idealismo romântico-simbolista, por outro. A tensão que há entre os discursos e as utopias de Milkau e Lentz também ocorrem no discurso do narrador e, por conseqüência, na relação contraditória entre o significado simbólico dos fatos e das peripécias, que compõem a trama da narrativa, e a tese que aparentemente está sendo defendida na obra, que é a de Milkau. O narrador que simpatiza com ele, de modo a narrar de um foco muito próximo ao seu ponto de vista, é o mesmo que desfila uma série de macabros fatos que somente parecem simbolizar a vitória da natureza egoísta do ser humano (seria a Vontade schopenhueriana?) e a impossibilidade de uma sociedade harmônica, com as relações sociais fundadas no amor e na solidariedade. Da mesma forma que reedita a crença em certos estereótipos racistas (aceitos, na época, como verdades científicas) de identidades raciais e nacionais, o narrador também reafirma, ainda que inconscientemente, a supremacia dos mais fortes (no caso, os arianos) – conforme a equivocada leitura que o evolucionismo social fez do evolucionismo biológico. Tais idéias são incompatíveis com a visão românticosimbolista, que concebe a existência de uma harmonia universal. Diversamente, aliamse a outra corrente do romantismo, articulando-se com a filosofia de Schopenhauer e/ou sua leitura por Nietzsche, mas não sem problemas. No final do romance, o paraíso de Canaã é novamente adiado. O discurso de Milkau, embora carregado de dor, encontrase pleno de confiança no futuro. Canaã não é mais vista por ele, pois “ainda não despontou à Vida”. Preserva-se a teleologia cristã como única alternativa à utopia de Lentz, cujo desejo de um super-homem vindo de uma raça superior, que fosse capaz de extinguir as inferiores para instaurar o processo de civilização, só poderia desaguar, como de fato aconteceu historicamente, nas águas do nazi-fascismo. Numa tentativa de melhor equacionar o dilaceramento que pretendemos demonstrar, cremos ser possível afirmar que a visão de mundo que anima a obra de Graça Aranha encontra-se tensionada por um romantismo da desilusão em confronto 481
com outro que é utópico, aqui considerando a tipologia de Michel Löwy e Robert Sayre (1995). O narrador se identifica com as idéias de Milkau, mas não consegue acolhê-las inteiramente devido a sua sujeição pelos discursos científicos (das ciências biológicas e sociais) dominantes na época. De um lado, uma visão da Natureza possivelmente marcada pelas idéias da Vontade, presente na filosofia de Schopenhauer, e da luta pela sobrevivência considerada como mola propulsora da evolução, presente tanto no evolucionismo biológico quanto no social; de outro, uma visão da Natureza marcada pelo panteísmo e animismo românticos. Sua saída perante a constatação da natureza egoísta e destruidora do ser humano é conceber que a sua evolução genética implique numa evolução espiritual. Nesse ponto o evolucionismo biológico amalga-se com a crença cristã de um paraíso perdido, que é projetado para o futuro. Consorciam-se, aqui, o caráter teleológico das três grandes narrativas da história ocidental: a cristã, a positivista e a socialista/comunista.
6. QUAL A LIÇÃO DE CASA DA ECOCRÍTICA? Ao final desse percurso, voltemos para a ecocrítica com a seguinte questão: que interesse tem essa leitura de Canaã para ela, ou, ainda, em que aspecto a presente leitura e discussão da obra de Graça Aranha poderá contribuir para as pesquisas e reflexões dessa nova disciplina acadêmica? Como observou Greg Garrard, na citação inicial deste trabalho, a pastoral tem enorme presença e importância para os discursos ambientalistas, posto que eles, em sua maioria, se orientam por valores e mitos provenientes dela, especialmente da romântica. O mesmo vale para o senso comum. Realizar, portanto, a crítica dessa vertente de pensamento é tarefa importante para o estabelecimento de novos discursos e estratégias de ação voltados para a preservação ambiental e uma relação entre homem e natureza que consiga superar a aporias que vivenciamos. A interpretação e a crítica das várias visões da habitação da terra constituem uma tarefa fundamental para os ecocríticos interessados num projeto predominantemente político, e não moral ou espiritual, de crítica cultural, capaz de nos levar além da pastoral e da literatura sobre a natureza, passando das paisagens de lazer para o campo desnivelado do trabalho verdadeiro. (GARRARD, 2006, p. 191) Entre os grandes dilemas enfrentados pelos ambientalistas na busca de soluções, ou melhor, de caminhos para uma política ambiental possível está a resolução do dilema “preservar X explorar”; dilema em que têm se debatido posições românticas contra outras utilitaristas e liberais, com clara desvantagem para as primeiras devido ao idealismo filosófico que as fundamenta. Isso fica visível no romance em questão. Os mitos da bondade natural do ser humano – que pode ser recuperada caso volte a se integrar à natureza – e da harmonia universal, concorrem contra uma ação efetiva que consiga conciliar a preservação do meio ambiente com a necessidade de sua exploração e muito menos com o fato de que – mesmo existindo uma possível correspondência entre todos os seres – a natureza encontra-se em constante mudança e processo de criação e destruição, nascimento e morte, um ciclo que nunca termina e que somente se renova na medida em que a vida vive da própria vida, que consome e transforma. Tentar 482
construir uma utopia ambientalista fundamentada nesses mitos e sem considerar as condições de produção no atual mundo globalizado é querer seguir por um caminho que a história já demonstrou, por vários exemplos, ser inviável. Querer negar o egoísmo natural a todo ser vivo – uma vez que não podemos nos desvencilhar de nosso instinto de sobrevivência e que a luta por ela sempre existirá (afinal, os recursos naturais não são inesgotáveis) – e sonhar com uma sociedade igualitária e fundada exclusivamente no Amor só pode levar, em última instância, ao desencanto imobilizador ou a posições conservadoras e reacionárias. E sobre estas, o clássico estudo de Raymond Williams sobre a representação do campo e da cidade na literatura continua sendo muito atual e pertinente. E para refletirmos sobre tais questões, Canaã é um romance muito adequado, sendo bastante exemplar das limitações da práxis ambientalista baseada na pastoral romântica. Por não conseguir abandonar o animismo que caracteriza a sua concepção de natureza, Graça Aranha debate-se entre duas posições inconciliáveis e é incapaz de enxergar uma terceira via. Os fundamentos religiosos e metafísicos de sua concepção de mundo não são compatíveis com a aceitação da existência de raças e sua evolução. A aceitação da existência de características comportamentais determinadas geneticamente é inconciliável com a idéia de um Homem e uma Sociedade movidos exclusivamente pelo Amor. O desejo de manter a natureza intocada não resiste às necessidades reais de existência, que naturalmente levam à ação de domínio e exploração do meio ambiente – fato inevitável, afinal o homem também é natureza, como nos lembra o próprio pensamento romântico com sua idéia das correspondências universais, posto que integrem o homem ao cosmos numa unidade absoluta.
7. REFERÊNCIAS ARANHA, Graça. Canaã. São Paulo: Martin Claret, 2005. BALAKIAN, Ana. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1985. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal / Les fleurs du mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Edição bilíngüe. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43ed. São Paulo: Cultrix, 2006. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 7 ed. revista e atualizada. São Paulo: Global, 2004. Vol. 4. GARRARD, Greg. Ecocrítica. Tradução de Vera Ribeiro. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2006. LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 4. ed. São Paulo: Pioneira, 1983. LIMA, Luiz Costa. O questionamento das sombras: mímesis na modernidade. In: ______. Mímesis e modernidade. Formas das sobras. Rio de Janeiro: Graal, 1980. p. 67-228.
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LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1995. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Tradução de M. F. Sá Correia. Porto-Portugal: Rés Editorial, [19--]. SILVA, Marciano Lopes e. O impressionismo romântico de Raul Pompéia. Acta Scientiarum. Ciências Humanas e Sociais. Maringá, v. 26, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2004. VOLOBUEF, Karin. A prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. i
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