O Sistema De Solução De Controvérsias Na União Europeia - Texto

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SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS OMC, União Européia e Mercosul

SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS OMC, União Européia e Mercosul Adriana Dreyzin de Klor Luiz Otávio Pimentel Patricia Luíza Kegel Welber Barral

EDITOR RESPONSÁVEL Wilhelm Hofmeister COORDENAÇÃO EDITORIAL Eleonora Ceia REVISÃO Patricia Leite CAPA E DIAGRAMAÇÃO Fernanda Abranches

S675 Solução de controvérsias: OMC, União Européia e Mercosul / Adriana Dreyzin de Klor ... [et al.}. - Rio de Janeiro: Konrad-Adenauer-Stiftung 2004, 240p.; 14 x 21 cm. ISBN 85-7504-061-8 1. Países da União Européia – Relações econômicas exteriores – América Latina. 2. América Latina – Relações econômicas exteriores – Países da União Européia. 3. Jurisdição (Direito internacional público) 4. Direito internacional público e direito interno. I. Klor, Adriana Dreyzin de. II. Konrad-AdenauerStiftung. CDD–341.4098

Todos os direitos desta edição reservados à FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER Centro de Estudos: Praça Floriano, 19 – 30º andar CEP 20031-050 – Rio de Janeiro, RJ – Brasil Telefone: 0055-21-2220-5441 Telefax: 0055-21-2220-5448 Impresso no Brasil

Sumário

Apresentação WILHELM HOFMEISTER ................................................................................7

Capítulo 1 Solução de Controvérsias na OMC WELBER BARRAL ....................................................................................... 11

Capítulo 2 O Sistema de Solução de Controvérsias na União Européia PATRICIA LUÍZA KEGEL ............................................................................. 69

Capítulo 3 O Sistema de Solução de Controvérsias do Mercosul LUIZ OTÁVIO PIMENTEL E ADRIANA DREYZIN DE KLOR ...........................141

Os autores ...................................................................................................... 235

Apresentação

A presente publicação é fruto de um projeto de pesquisa promovido pela Fundação Konrad Adenauer, tendo por finalidade apresentar o sistema multilateral de solução de controvérsias no âmbito da OMC e de dois modelos distintos de integração regional: o da União Européia e do Mercosul e suas eventuais inter-relações. Nesta perspectiva, o objetivo precípuo deste trabalho é contribuir para a discussão sobre o tema “solução de controvérsias” no futuro acordo comercial entre ambos os blocos regionais. O pressuposto condutor deste trabalho, baseia-se no fato de que o comércio internacional tem passado por um processo gradual, porém contínuo de institucionalização, inicialmente através do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), de 1947 e posteriormente com a conclusão da Rodada Uruguai e a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1994. Este aumento do grau de institucionalização representou também a jurisdicionalização do comércio internacional, e neste sentido, o aperfeiçoamento do sistema de solução de controvérsias instaurado com a OMC, tornou-se fundamental para que fosse estabelecida a necessária segurança jurídica na solução dos litígios surgidos no âmbito global das relações comerciais internacionais. Do mesmo modo, a formação de blocos econômicos regionais, de variada intensidade em seus níveis de integração, ocasionou o surgimento de diferentes sistemas de resolução de litígios inicialmente circunscritos a seus Estados membros. Por outro lado, a possibilidade de dois blocos regionais celebrarem 7

entre si um acordo de livre comércio, acentua a superposição de distintos sistemas de solução de controvérsias, os quais podem apresentar eventuais incompatibilidades, tanto formais (processuais), quanto materiais (determinação da norma aplicável). Para atingir seus objetivos, e mantendo a autonomia conceitual e teórica de cada pesquisador, o trabalho foi estruturado em três capítulos, cujo eixo temático é a apresentação da estrutura processual de cada um dos distintos sistemas de solução de controvérsias, bem como de suas principais implicações positivas e/ou negativas no inter-relacionamento com os demais atores comerciais internacionais. No caso da OMC, as modificações introduzidas pelo sistema de solução de controvérsias após o final da Rodada Uruguai, geraram a expectativa, tanto nos círculos acadêmicos quanto diplomáticos, da estabilização e consolidação das relações comerciais internacionais em torno a uma ordem jurídica institucionalizada. Em outros termos, esperava-se que as incertezas decorrentes do antigo modelo do GATT/47 de solução de controvérsias, em especial seu caráter diplomático e negociador, pudessem ser superadas através do novo sistema, cuja ênfase se dá na explicitação dos procedimentos adotados, visando conceder maior transparência e previsibilidade ao sistema. Ocorre, entretanto, que quase dez anos após o Tratado de Marrakech, a avaliação das mudanças introduzidas permite identificar alguns problemas. Neste sentido, o artigo do professor Welber Barral apresenta o sistema de solução de controvérsias da OMC, incluindo suas principais limitações e perspectivas futuras, desde os problemas derivados da implementação das decisões prolatadas até o relacionamento com outros órgãos jurisdicionais internacionais e Tribunais nacionais. Por seu lado, apesar de suas origens vinculadas a um processo de integração inicialmente econômico-comercial, a União Européia constituiu-se em um fenômeno político-jurídico inédito na história do relacionamento entre Estados. Seu elemento mais marcante e peculiar em relação às demais Organizações Inter8

nacionais de Cooperação Econômica, é seu caráter supranacional, do qual deriva a especificidade da ordem jurídica comunitária, e em especial, de seu sistema de solução de controvérsias. A professora Patricia Luíza Kegel analisa a estrutura jurisdicional e recursal comunitária a partir da perspectiva supranacional, inclusive quanto à co-determinação do relacionamento externo da União Européia com seus parceiros comerciais. Nesta ótica, são estudados os sistemas de solução de controvérsias nos acordos comerciais bilaterais já celebrados pela União Européia, bem como seu posicionamento em relação ao sistema multilateral da OMC. Sendo um processo mais recente de integração regional, o Mercosul encontra-se, ainda, em fase de consolidação plena de sua estrutura jurídica e institucional. Os autores Luiz Otávio Pimentel e Adriana Dreyzin de Klor expõem o mecanismo de solução de controvérsias adotado pelo Protocolo de Olivos, recordando inclusive, as razões que levaram à modificação do Protocolo de Brasília. Igualmente é analisada, de forma crítica, a situação dos particulares no novo sistema de Olivos, bem como a incompatibilidade com o ordenamento jurídico dos EstadosPartes do Mercosul a criação de um Tribunal supranacional ao estilo comunitário. O projeto do acordo birregional Mercosul – União Européia é indissociável do marco mínimo fornecido pelas regras da Organização Mundial do Comércio, inclusive no que respeita aos sistemas de solução de controvérsias. Por outro lado, é também um acordo amplo o suficiente para necessitar normas claras que promovam a previsibilidade e segurança jurídica aos atores comerciais. A Fundação Adenauer e os autores esperam que este trabalho possa contribuir para a ampliação e aprofundamento do debate.

Wilhelm Hofmeister Diretor do Centro de Estudos da Fundação Konrad Adenauer no Rio de Janeiro

9

Capítulo 1 Solução de Controvérsias na OMC*

WELBER BARRAL

1. INTRODUÇÃO Com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), supunha-se que uma nova fase estaria sendo inaugurada nas relações internacionais contemporâneas. No conjunto normativo da OMC, uma inovação bastante comemorada foi a criação de uma nova sistemática para a solução de controvérsias. Muito comentado no meio acadêmico, o sistema de solução de controvérsias materializado após a Rodada Uruguai prometia ser um fato marcante na tentativa de consolidar uma ordem jurídica internacional mais segura e previsível. Oito anos depois do histórico encontro em Marrakech, podese fazer uma avaliação sobre as expectativas criadas com a OMC. Ao mesmo tempo, pode-se vislumbrar alguns problemas, decorrentes, sobretudo, da implementação das decisões e de vazios processuais não imaginados quando do fim da Rodada Uruguai. O presente artigo dedica-se a apresentar o sistema de solução de controvérsias da OMC, avaliando a prática acumulada neste primeiro período. Para tanto, o capítulo seguinte apresenta*

O presente texto foi revisado por Gustavo Ferreira Ribeiro, Mestrando do curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. 11

rá a evolução do sistema, e seus traços característicos materializados pela Rodada Uruguai. O terceiro capítulo informa quem são as partes envolvidas no procedimento, qual é a capacidade processual e os limites de atuação de cada uma. O capítulo seguinte detalhará as várias fases do procedimento, comparando-as com a jurisprudência acumulada até agora. A quinta parte dedica-se à matéria atualmente mais complexa no âmbito da OMC: a fase da implementação da decisão; conforme se demonstrará, é nesta fase que se concentram os grandes problemas atuais para dar maior previsibilidade às soluções de controvérsias na OMC. A penúltima parte aborda um problema recente, e crescentemente relevante: a relação entre o sistema de solução de controvérsias da OMC e, de um lado, os demais tribunais internacionais, e de outro, os tribunais nacionais. Por fim, uma parte conclusiva delineia os principais desafios para OMC, a fim de que seu sistema de soluções de controvérsias possa servir como um mecanismo de garantia de legitimidade nas relações econômicas internacionais.

2. HISTÓRICO

2.1 Evolução no GATT A atual estrutura jurídica do comércio internacional teve origem recente nos acordos de Bretton Woods, ao final da Segunda Guerra Mundial. A partir daquele encontro histórico, firmaram-se as bases para a estruturação de uma ordem jurídica internacional calcada na criação de instituições internacionais com poder regulatório, destinadas a evitar as crises econômicas do período entre guerras. Daquela reunião, surgiram os projetos para a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), e para a criação de uma Organização Internacional do Comércio (OIC). 12

Os dois primeiros projetos tiveram melhor sorte, mas a OIC nunca se concretizou, fundamentalmente em razão da oposição do senado norte-americano. Em seu lugar, entrou provisoriamente em vigor o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT-1947), cujo objetivo primordial era servir como o foro de negociação para a redução de barreiras tarifárias. O GATT-1947 não continha regras sobre um sistema para a solução de controvérsias entre as partes contratantes.1 Tampouco havia referência à possibilidade de recurso a um tribunal internacional existente àquela época, como a Corte Internacional de Justiça (CIJ). De fato, como foro de negociações que era, o GATT-1947 ressaltava a solução diplomática dos conflitos porventura existentes. Desta forma, o Artigo XXII direcionava a parte reclamante a buscar consultas com a outra, em relação a problemas relacionados com o Acordo Geral. O outro único artigo sobre solução de controvérsias, Artigo XXIII, previa a possibilidade de investigações, recomendações ou determinações pelas partes contratantes, que poderiam suspender concessões negociadas entre as mesmas, se as circunstâncias fossem sérias o bastante para justificar tais medidas. Nos primeiros anos do GATT-1947, esses dispositivos levaram à criação de “grupos de trabalho” para apresentar relatório sobre reclamações apresentadas pelas partes contratantes, e recomendar soluções práticas para o problema. A evolução desta prática resultou numa primeira regulamentação, em 1952, que estabeleceu procedimentos mais formais para o funcionamento dos painéis. Esta foi a primeira mudança relevante no sentido de garantir uma solução jurídica para as controvérsias entre as partes contratantes do GATT, e não apenas procedimentos fundados em negociações entre estas mesmas partes. 1.

Com efeito, não se pode dizer da existência de membros àquela época, pois, não havia, stricto sensu uma organização internacional formada, mas um acordo internacional entre partes contratantes. 13

Nas décadas seguintes, a tendência mais ou menos legalista do sistema de solução de controvérsias no GATT variou imensamente, dependendo da maior ou menor crença no multilateralismo por parte dos principais atores do comércio internacional, sobretudo EUA e as Comunidades Européias (CE). Ao fim da Rodada Tóquio (1973-1979), um entendimento sobre solução de controvérsias foi negociado, modificando a prática adotada até então: apresentação da reclamação a um painel com três membros, que remetia um relatório sobre o problema para o Conselho do GATT. Mas havia a necessidade de consenso no Conselho isto é, entre todas as partes contratantes quanto à conveniência de instalação do painel, e também para aprovação do relatório final apresentado por este painel. Isto possibilitava que a parte reclamada pudesse “bloquear” a instalação do painel ou a adoção de seu relatório. Esta era a mais grave falha do sistema de solução de controvérsias do GATT. De outro lado, havia ainda problemas de: a) linguagem vaga, com poucas definições sobre o procedimento; b) pouca transparência sobre o procedimento e os acordos eventualmente adotados pelas partes contratantes envolvidas na controvérsia; c) existência de vários procedimentos, a depender da matéria em discussão; d) pressão dos governos mais poderosos sobre os membros do painel.2

2.2 Rodada Uruguai Quando a Rodada Uruguai se iniciou, em 1986, a reforma do sistema de solução de controvérsias era um dos temas para a negociação. A abordagem desse tema sempre foi pendular, entre aqueles que preferiam a manutenção de uma estrutura baseada em negociações entre as partes eventualmente envolvidas numa controvérsia, e outro grupo que pretendia promover uma estrutura 2.

Jackson, 1999, p. 10. 14

mais baseada em regras. Os argumentos dos primeiros eram centrados no fato de que a flexibilidade diplomática era mais compatível com a natureza política inerente dos acordos comerciais. No outro extremo, os defensores do legalismo argüíam que regras mais estritas, e mais fundamentadas em uma interpretação jurídica que obrigasse a todas as partes contratantes, traria maior previsibilidade ao sistema multilateral do comércio e melhor garantiria a defesa dos interesses de todos os Estados envolvidos. O resultado destas visões contrapostas foi o Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC), que passou a constituir um dos acordos obrigatórios para os Membros da então criada OMC. Conforme se detalhará nos capítulos seguintes, o ESC consolidou uma visão mais legalista (rule-oriented) das relações comerciais internacionais; ao mesmo tempo, manteve algumas importantes brechas para que as soluções negociadas fossem preferíveis ao litígio entre os Membros da OMC. Assim, podem-se destacar como características fundamentais do ESC: a)

b)

3.

trata-se de um sistema quase judicial, tornado independente das demais partes contratantes e dos demais órgãos da OMC;3 cria um mecanismo obrigatório para os Membros da OMC, sem necessidade de acordos adicionais para firmar a jurisdiO sistema tem natureza sui generis. Possui características de arbitragem na medida em que um painel é estabelecido ad hoc. Ao mesmo tempo se diz “judicialiforme” quando o demandante pode ser ouvido em um painel, as partes podem apresentar suas argumentações de forma oral e escrita, terceiros (Estados) podem intervir nos procedimentos e as partes podem recorrer a um órgão de apelação. Por último, como o demandante pode acionar o sistema unilateralmente, os procedimentos e a lei aplicável são pré-determinados, os terceiros podem intervir sem o consentimento das partes e existe um órgão de apelação permanente, reforça-se seu caráter judicial. Cf. Iwasa, 2002, p. 287-305. 15

c)

d)

e)

f)

ção daquela organização internacional em matéria de conflitos relativos a seus acordos; o sistema é quase automático, e somente poderá ser interrompido pelo consenso entre as partes envolvidas na controvérsia, ou pelo consenso entre todos os Membros da OMC para interromper uma fase (“consenso reverso”); o sistema pode interpretar as regras dos acordos da OMC, mas não aumentar nem diminuir os direitos e obrigações de seus Membros; o sistema termina com a possibilidade, várias vezes adotada durante o GATT, de que um Membro da OMC possa impor sanções unilaterais em matéria comercial, sem que a controvérsia tenha sido previamente avaliada pela OMC; finalmente, o ESC determina a exclusividade do sistema para solucionar controvérsias envolvendo todos os acordos da OMC, eliminando desta forma a proliferação de mecanismos distintos, como ocorria à época do GATT-1947; foram mantidas ainda algumas regras excepcionais, discutidas abaixo, mas que não destoam fundamentalmente do procedimento geral adotado.

2.3 O ESC na OMC Como se disse acima, o Entendimento sobre Solução de Controvérsias (ESC) é uma das inovações obtidas após a Rodada Uruguai. Entre os objetivos declarados da OMC, está o de administrar o sistema de solução de controvérsias, o que é realizado pelo Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), que, por sua vez, é composto por representantes de todos os Membros da OMC.4 4.

Acordo Constitutivo, Art. 3:3. 16

As outras funções da OMC, segundo seu Acordo Constitutivo, são de implementar os acordos,5 servir como foro de negociações6 e monitorar as políticas comerciais dos Membros. Estas funções são desempenhadas pela Conferência Ministerial, órgão máximo, e pelo Conselho Geral, que se reúne na qualidade de OSC ou de Mecanismo de Revisão de Políticas Comerciais. O conjunto normativo da OMC abrange uma estrutura extensa e complexa. Além dos três acordos fundamentais (GATT 1994, Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços - GATS - e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio - TRIPS), há diversos acordos complementares com implicações regulatórias para o comércio internacional. Observe-se que todos esses acordos são obrigatórios para os Membros da OMC, com exceção dos denominados acordos plurilaterais.7 Os princípios fundamentais da OMC são o da nação mais favorecida (NMF) e do tratamento nacional (TN). Pelo princípio NMF, qualquer vantagem concedida a um parceiro comercial estende-se automaticamente a todos os demais Membros da OMC. De acordo com o princípio TN, um Membro da OMC não pode discriminar produtos importados originários dos territórios de outros Membros, devendo lhes garantir o mesmo tratamento jurídico concedido aos produtores nacionais. 5. 6. 7.

Acordo Constitutivo, Art. 3:1. Acordo Constitutivo, Art. 3:2. Os acordos plurilaterais foram originariamente negociados na Rodada Tóquio. Atualmente, estão em vigor o Acordo sobre Comércio de Aeronaves Civis e o Acordo sobre Compras Governamentais. O primeiro entrou em vigor em 1980 contando com 26 Partes Contratantes. O segundo entrou em vigor em 1981 e foi renegociado em 1996 entre 25 Partes Contratantes. Dois outros acordos plurilaterais, o Acordo sobre Carne Bovina e o de Produtos Lácteos foram desfeitos em 1997 quando as Partes Contratantes constataram sua pouca utilidade tendo em vista o baixo número de adesões e dificuldade em se acordar preços mínimos entre as Partes. Disponível em: http://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/agrm9_e.htm#govt. Acesso em: 14 ago. 2003. 17

Esses dois princípios fundamentais foram estendidos ao longo dos cinqüenta anos de construção do sistema multilateral do comércio. Fundamentalmente, esses princípios buscam substanciar o ideário do livre comércio. As demais regras da OMC são tentativas de aplicação destes princípios a novos tipos de barreiras, sobretudo barreiras não tarifárias, ou exceções a esses princípios, com fundamento em outros interesses relevantes dos Membros ou da sociedade internacional. De acordo com o ESC, o sistema de solução de controvérsias tem jurisdição para resolver quaisquer controvérsias entre os Membros da OMC que derivem dos acordos firmados no âmbito da OMC, inclusive de seu acordo constitutivo.8 Isto cria uma situação processual que visa garantir maior previsibilidade para a solução das controvérsias. Isto porque além do ESC abranger todos os acordos da OMC, ele também cria uma jurisdição compulsória para os seus Membros, sem necessidade de acordos adicionais, ficando os Membros obrigados a “recorrer e acatar as normas e procedimentos do presente Entendimento”.9 Ainda em termos processuais, é importante notar que o sistema de solução de controvérsias da OMC baseia-se no direito de um Membro reclamar da violação de regras específicas por outro Membro, devendo tais regras violadoras serem identificadas especificamente pela parte reclamante. Para ser mais exato, a evolução a partir do GATT permite seis tipos de reclamação. Não há correspondência exata entre a sistemática processual adotada na OMC e a teoria processual brasileira. A terminologia utilizada neste artigo, portanto, é aproximativa, objetivando expor de forma didática aquele sistema de solução de controvérsias. Por isso, quando se menciona que há seis tipos de reclamação na OMC, esta classificação não deriva diretamente do tipo de procedimento aplicável a cada uma, como 8. 9.

ESC, 1:1. ESC, 23:1. 18

é da tradição brasileira, e sim de três tipos de fundamento jurídico que podem ser invocados para embasar o interesse de agir do Membro reclamante da OMC. Assim, no caso do GATT, por exemplo, a possibilidade jurídica da reclamação tem que estar formulada a partir de (a) qualquer benefício decorrente do acordo estar sendo anulado ou prejudicado (nullification); ou (b) o atingimento de qualquer objetivo do acordo estar sendo impedido (impairment). Ao mesmo tempo, o Membro reclamante deverá comprovar que este fundamento jurídico decorre da: a) b)

c)

falha de outro Membro em cumprir as obrigações previstas no acordo (“reclamação por violação”); ou aplicação por outro Membro de qualquer medida, conflitante ou não com as regras do acordo (“reclamação sem violação”); ou existência de qualquer outra situação (“reclamação situacional”).

Demonstrar a existência do fundamento para um desses tipos de reclamação embasa o interesse de agir10 do Membro da OMC. As reclamações por violação são o tipo mais comum utilizado no sistema de solução de controvérsias. Na história das controvérsias comerciais, houve raros casos de reclamações sem violação e nenhuma reclamação situacional. Isto pode ser compreendido também pelo fato de que, segundo as regras da OMC, uma vez comprovada a existência de violação da regra existente em outros acordos, há uma presunção prima facie de prejuízo. Em outras palavras, o Membro reclamante precisa demonstrar apenas que a medida ou legislação nacional reclamada conflita com uma regra vigente do conjunto normativo da OMC. Comprovado este conflito, presume-se que haja uma diminuição dos 10. Aqui entendido como “a necessidade da prestação jurisdicional com a providência adequada à satisfação de tal necessidade”. Bermudes, 1996, p. 50. 19

benefícios acordados, sem que o Membro reclamante tenha que comprovar efetivamente esses prejuízos. Ainda sobre o procedimento adotado no sistema de solução de controvérsias da OMC, duas observações gerais devem ser feitas, antes do exame deste procedimento. Primeiro, que embora o sistema criado pela Rodada Uruguai seja unificado e aplicável para todos os acordos abrangidos pela OMC, existem ainda regras especiais, constantes nos acordos específicos, e que podem criar algumas particularidades a depender da matéria objeto da controvérsia. Exemplos neste sentido é o padrão de revisão específico do Acordo Antidumping (AA),11 ou a existência de um órgão de supervisão, no caso de têxteis, no Acordo de Têxteis e Vestuário (ATV).12 Outra observação importante se refere aos diversos métodos de solução de controvérsias previstos no âmbito do ESC, e utilizáveis a depender de sua aplicabilidade ou do acordo entre as partes envolvidas na controvérsia. Desta forma, o ESC prevê, como instâncias obrigatórias, as consultas entre os Membros envolvidos na controvérsia e a decisão quase-judicial materializada no relatório dos painéis. Mas poderá haver, ainda: a)

b)

c)

recurso ao Órgão de Apelação (OAp), pelo Membro que discorde do relatório do painel, o que quase sempre ocorre na prática; bons ofícios, conciliação ou mediação, inclusive com a intervenção do Diretor-Geral da OMC, para buscar uma solução negociada para a controvérsia; e evidentemente, isso dependerá do acordo entre as partes para aceitar a intervenção do terceiro;13 arbitragem: podem ainda os Membros envolvidos numa controvérsia acordar em submetê-la diretamente à arbitragem,

11. AA, Artigo 17:6. 12. ATV, Art. 8. A lista de todas regras excepcionais consta no Apêndice II do ESC. 13. ESC, 5. 20

identificando claramente as questões conflitantes e concordando em obedecer ao laudo arbitral;14 esta prerrogativa raramente é utilizada pelos Membros da OMC. Pode-se questionar sobre as razões para a prevalência dos métodos jurisdicionais na solução de conflitos entre Membros da OMC, nesta primeira década de experiência. Mas, seguramente, a explicação mais realista decorre do fato de que um Membro da OMC, quando enfrenta alguma reclamação por parte de outro, tenta prorrogar ao máximo a revogação da medida nacional que está sendo questionada. Ou seja, a prática até agora revela que os Membros discutem todos os argumentos e apresentam todos os recursos possíveis, mesmo quando parece pouco provável a legalidade das medidas que defendem, o que também é praxe em processos nacionais. Ainda assim, o ESC foi profícuo em inserir diversos dispositivos que recordam a preferência pela solução negociada das controvérsias entre os Membros da OMC. Assim, o ESC assevera que “objetivo do mecanismo de solução de controvérsias é garantir uma solução positiva para as controvérsias. Deverá ser sempre dada preferência à solução mutuamente aceitável para as partes em controvérsia e que esteja em conformidade com os acordos abrangidos”,15 ao mesmo tempo, “o primeiro objetivo do mecanismo de solução de controvérsias será geralmente o de conseguir a supressão das medidas de que se trata, caso se verifique que estas são incompatíveis com as disposições de qualquer dos acordos abrangidos”.16 Esses dispositivos são herança visível do caráter negocial na solução das controvérsias originado à época do GATT-1947. Por isso, é correto afirmar que houve um “adensamento de juridicidade” com o advento da OMC, mas não se pode pretender que o atual sistema seja puramente jurídico, com absoluta neutralidade quanto 14. ESC, 25. 15. ESC, 3:7. 16. ESC, 3:7. 21

ao efeito político das decisões ou ao poder econômico dos Membros envolvidos em cada controvérsia.17 Nenhum sistema de solução de controvérsias é neutro, obviamente. No caso da OMC, esta realidade é expressamente reconhecida, asseverando-se que um acordo entre as partes poderá ser mais vantajoso do que o litígio, e que o objetivo do ESC é, antes de tudo, conseguir eliminar a medida atentatória às regras do livre comércio, e não garantir compensação por eventual responsabilidade internacional de seus Membros. Este caráter oscilante entre legalismo e foro negocial suscita muitas incompreensões entre os críticos da OMC, para quem o reforço do caráter estritamente jurídico poderia garantir maior justiça na solução das controvérsias internacionais. Entretanto, há que se observar que a própria evolução do sistema de solução de controvérsias no comércio internacional sempre foi matizada por extremo pragmatismo, e foi isto provavelmente que garantiu a evolução dos mecanismos utilizados e sua atual credibilidade, sendo o mais utilizado entre os tribunais internacionais. Tivesse se baseado somente em considerações estritas de legalidade, provavelmente houvesse menor percentual de cumprimento, pelos Membros, das decisões da OMC. Sob este prisma, o sistema de solução de controvérsias criado na Rodada Uruguai não eliminou o caráter realista das relações econômicas internacionais, mas domesticou este realismo por meio de procedimentos que expõem as controvérsias em curso, criando uma motivação para o acordo entre os Membros ou para o cumprimento das decisões aprovadas pelo OSC.

3.

AS PARTES NO OSC

Esta parte se dedica a esclarecer quais são as pessoas e entidades envolvidas no sistema de solução de controvérsias da 17. Sobre o conceito de “adensamento de juridicidade”, veja-se Lafer, 1998, p. 125-130. 22

OMC. Em regra, como as demais organizações internacionais de caráter intergovernamental, a OMC é composta por Estados soberanos, que têm poder de intervenção e representatividade em todos os atos decisórios da Organização. Entretanto, a relevância da OMC e a particularidade do sistema de solução de controvérsias criaram situações peculiares, tanto no que se refere à representação dos Membros, quanto à eventual manifestação de entidades não-governamentais com interesse na solução da controvérsia. As páginas seguintes discutem cada uma dessas particularidades.

3.1 Membros da OMC As organizações internacionais de caráter intergovernamental têm, como uma de suas características clássicas, a participação exclusiva de Estados soberanos como Membros. Na teoria clássica do direito internacional, os Estados são aqueles que detêm a personalidade jurídica, o pressuposto para ser sujeito de direitos e obrigações no plano internacional. Este dogma do direito internacional clássico vem sendo excepcionado pelos novos ramos, sobretudo pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos e pelo Direito Internacional Econômico. Neste último caso, pela atribuição de determinadas garantias ou prerrogativas a sujeitos não estatais, sobretudo nos mecanismos de solução de controvérsias criados em matéria econômica.18 No sistema multilateral do comércio, a primeira exceção ao caráter estatal dos sujeitos internacionais vem do GATT-1947, quando se reconheceu aos territórios aduaneiros o direito de serem 18. Um exemplo de possibilidade de acesso de pessoas físicas a um órgão internacional, em matéria econômica, é o International Centre for Settlement of Investments Disputes (ICSID). Trata-se de uma organização internacional ligada ao BIRD que possui um sistema de solução de controvérsias para investimentos privados, com uso de mediação e arbitragem. Tanaka, 1998, p. 77-82. 23

partes do Acordo Geral.19 Outra situação particular foi criada na Rodada Uruguai, quando se reconheceu às Comunidades Européias o caráter de Membro, representando os quinze Estados da União Européia. Formalmente, os Membros da OMC têm direitos iguais em todos os órgãos componentes da organização. Obviamente, no mundo real, os Membros com a maior participação no comércio internacional - EUA, CE e Japão - têm atuação determinante no processo decisório, e são atores relevantes e constantes no sistema de solução de controvérsias. Além do que, foram criadas também regras especiais, discutidas abaixo, para os países em desenvolvimento.

3.2 Países em desenvolvimento Ao longo da história do sistema multilateral do comércio, houve várias tentativas de criação de acordos preferenciais entre países em desenvolvimento. A mais importante dessas iniciativas foi a criação da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), ainda atuante. Malgrado essas iniciativas, a criação da OMC envolveu praticamente todos os países em desenvolvimento, que hoje representam a maioria de seus Membros. Historicamente, esses países têm defendido a necessidade de um “tratamento especial e diferenciado”, que pudesse atender às suas dificuldades de crescimento econômico. Entre os países em desenvolvimento, há ainda regras especiais para os denominados países de menor

19. Veja-se Art. XXIV, GATT-1947. Atualmente, os seguintes territórios aduaneiros são Membros da OMC: Hong Kong (China), Macau (China) e Taipé Chinesa (territórios aduaneiros separados de Taiwan, Penghu, Kinmen e Matsu). A lista dos atuais 146 Membros encontra-se disponível em: http:/ /www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/org6_e.htm. Acesso em: 14 ago. 2003. 24

desenvolvimento relativo, cuja participação no comércio internacional é ínfima. No sistema de solução de controvérsias, tem sido impressionante a crescente participação de países em desenvolvimento principalmente como reclamados. Isto pode ser explicado pelo aumento de competitividade no mercado internacional, o que leva os competidores internacionais a terem menor tolerância com instrumentos tradicionais de promoção comercial, muitas vezes utilizados por países em desenvolvimento, mas que violam as regras da OMC.20 No ESC, constam dispositivos que reconhecem a situação particular dos países em desenvolvimento. O grande problema é que a maioria dessas regras contém expressões vagas, que trazem pouca ou nenhuma vantagem efetiva para a defesa dos interesses dos países em desenvolvimento. Desta forma, afirmar que “durante as consultas os Membros deverão dar atenção especial aos problemas e interesses específicos dos países em desenvolvimento”;21 dispor que “nas questões que envolvam interesses de países em desenvolvimento, os Membros deverão receber atenção especial no que tange às medidas que tenham sido objeto da solução de controvérsias”;22 prever que o “OSC deverá levar em consideração não apenas o alcance comercial das medidas em discussão mas também seu 20. Com base em estatísticas de Park & Panizzon até março de 2002, do total de 142 Membros àquela época, cerca de 92 (62%) eram considerados países em desenvolvimento, 29 (20%) de menor desenvolvimento relativo, 25 (18%) países desenvolvidos. Tais porcentagens se alteram para 63%, 20% e 17%, respectivamente, com a entrada de Armênia e Macedônia, em 2001, e China e Taipé Chinesa em 2002. Dos 235 casos analisados entre 1995 e 2001, os países desenvolvidos participaram, em média, como reclamantes, em cerca de 73% dos casos. Em 2000, a relação se equilibrou. Em 2001, entretanto, dos 22 casos levados ao OSC, os países em desenvolvimento atuaram como reclamantes em 82% dos casos. Veja-se Park & Panizzon, 2002, p. 221-227. 21. ESC, Art. 4:10. 22. ESC, Art. 21:2. 25

impacto na economia dos países em desenvolvimento”;23 e ordenar que “as partes reclamantes deverão exercer a devida moderação ao pleitear compensações ou solicitar autorização para suspensão da aplicação de concessões [contra países de menor desenvolvimento relativo]”;24 são expressões com pouca eficácia para garantir tratamento processual diferenciado entre países com níveis de desenvolvimento distintos. Além de frases retóricas, outras regras do ESC aludem especificamente aos países em desenvolvimento. Desta forma, permite-se que esses países ainda possam invocar a Decisão de 1966 do GATT.25 Esta decisão cria um procedimento alternativo que, teoricamente, facilitaria as reclamações de países em desenvolvimento. Na prática, este procedimento alternativo até agora não foi invocado por qualquer dos países em desenvolvimento. Outro dispositivo assevera que o painel deve garantir ao país em desenvolvimento “tempo bastante” para apresentar sua reclamação.26 Em um caso, o painel concedeu à Índia prazo adicional de dez dias para apresentar sua argumentação.27 Uma questão interessante e crescentemente debatida pelos representantes dos países em desenvolvimento e na literatura especializada é a dificuldade desses países em manter profissionais especializados que pudessem defender seus interesses diante de um sistema complexo como é o da OMC.28 No ESC, há ainda dois artigos que buscam preencher esta necessidade. Um deles garante a presença de um integrante originário de países em desenvolvimento 23. 24. 25. 26. 27. 28.

ESC, Art. 21:8. ESC, Art. 24:1. ESC, Art. 3:12. ESC, Art. 12:10. WT/DS90/AB/R. Índia-Restrições quantitativas, par. 5.10. “[O]s Estados Unidos e a CE estão capacitados a moldar o sistema legal da OMC a seu favor ao longo do tempo. O fórum é distante. O expertise legal é menos disseminado e, portanto, mais caro”. Há uma influência do common law no sistema legal da OMC, pois, o Secretariado e o OAp foram treinados pelo Professor John Jackson, formando um grupo que se autoreferencia comumente como parte da “máfia de Jackson”. Shaffer, 2002, p. 6-8. 26

no painel.29 Isto evidentemente não gera nenhum tipo de garantia adicional, uma vez que este integrante estará em menor número, e de qualquer forma o relatório poderá ser revisto pelo OAp. Outro dispositivo determina que o Secretariado da OMC preste assistência jurídica adicional aos países em desenvolvimento, mas resguardando sua imparcialidade.30 Novamente, não houve efeitos práticos para este dispositivo. Passados oito anos de vigência do ESC, não houve qualquer reclamação proposta por países de menor desenvolvimento relativo. É importante lembrar que muitos desses países sequer têm representação permanente em Genebra, quanto menos conseguiriam manter ou contratar especialistas para a defesa de seus interesses comerciais no sistema de solução de controvérsias. Em razão disto, em 2001, consolidou-se a iniciativa para se criar um centro consultivo, uma organização intergovernamental independente da OMC destinada a fornecer consultoria e treinamento para os países em desenvolvimento (The Advisory Law Centre on WTO Law – ACWL).31 Este Centro, criado com doações dos Membros da OMC, é uma iniciativa interessante no sentido de garantia do “acesso à justiça internacional”. O curto período de existência, entretanto, não permite uma avaliação mais concreta quanto à eficácia desta iniciativa. Ainda sobre os interesses dos países em desenvolvimento, vale recordar uma questão bastante debatida há algum tempo, mas que acabou sendo pacificada pelo entendimento do OAp. No caso CE-Bananas III, Santa Lucia se fez representar por um advogado privado, o que suscitou a imediata oposição da CE. O painel, entretanto, manteve o representante indicado, o que foi confirmado posteriormente pelo OAp.32 O OAp observou ainda que “este tipo de representação, escolhida pelo próprio governo 29. ESC, Art. 8:10. 30. ESC, Art. 27:2. 31. Informações gerais sobre o ACWL, disponível em: http://www.acwl.ch/. Acesso em: 14 ago. 2003. 32. WT/DS27/AB/R. CE-Bananas III, par. 12. 27

[de um Membro] pode ser de particular significância, – especialmente para Membros em desenvolvimento – para que participem integralmente nos procedimentos do sistema de solução de controvérsias”.33 Consolidou-se, destarte, o entendimento de que pode haver a participação de advogados privados no sistema de solução de controvérsias da OMC, desde que sejam indicados como componentes da delegação oficial dos Membros envolvidos. Esta situação suscita, evidentemente, novas questões sobre aspectos éticos e de confidencialidade, que vêm inclusive sendo discutidos na literatura.34

3.3 Terceiros interessados Conforme se mencionou, um Membro da OMC que julgue que suas vantagens advindas dos acordos sendo anuladas ou impedidas, poderá apresentar uma reclamação, ao OSC, contra o Membro que julgue estar adotando medidas contrárias a seus interesses. Mas, além das partes diretamente envolvidas no conflito, o ESC permite que outros Membros da OMC tenham participação limitada na solução da controvérsia, se tiverem um “interesse concreto” (substantial interest) no assunto submetido ao painel.35 Esses terceiros interessados poderão participar de todo o procedimento e apresentar suas manifestações ao painel e, eventualmente, ao OAp. Não têm, entretanto, direito de recorrer do relatório do painel.36 33. Id. par. 12. 34. “This issue now seems to be resolved in favor of the sovereign member disputant’s choice to hire private counsel. In that case, however, there may develop some questions about ethical or appropriate conduct rules. Ideas about these “rules” could be approached in different ways, including voluntary codes or commentary from authors as suggestions which might influence how governments relate to their private counsel. More attention may be needed to this question”. Jackson, 1999, p. 7. 35. ESC, Art. 10:2. 36. ESC, Art. 17:4. 28

A intervenção de terceiros Membros, interessados na solução da controvérsia, foi imaginada como um meio de dar maior transparência à solução adotada, e também de impedir que soluções negociadas pudessem ser alcançadas às custas dos interesses dos demais Membros ou das regras multilaterais do comércio.37 A prática nesta matéria, entretanto, tem sido de que alguns Membros - notadamente EUA e CE - intervêm como terceiros interessados em praticamente todas as controvérsias, quaisquer que sejam as matérias ou partes envolvidas. Neste caso, seria difícil identificar o interesse concreto desses terceiros. Sua intervenção se explica pelo fato de que esses Membros querem influenciar as interpretações adotadas pelos painéis, de forma a não criar precedentes contrários a seus interesses gerais. Cabe aqui uma observação sobre o caráter dos relatórios dos painéis e do OAp. Na sistemática adotada pelo ESC, esses relatórios não têm caráter vinculante para decisões futuras; ou seja, não se adotou a doutrina do stare decisis, pela qual a criação de um precedente limita, atendidos certos requisitos, a interpretação de futuros casos envolvendo a mesma matéria. Na prática, entretanto, os painéis e o OAp fazem constantes remissões a relatórios passados, não apenas para a interpretação de regras da OMC, mas inclusive aos painéis criados no âmbito do GATT-1947. Estas remissões são invocadas, não como precedente vinculante, mas como interpretação jurisprudencial. Em razão disso, compreende-se porque países com ampla gama de interesses comerciais acabam decidindo intervir como terceiros interessados diante dos painéis, mesmo porque cada Membro da OMC é que deve decidir se tem um interesse na controvérsia em questão. 37. Por isso, o Art. 10:4 do ESC prevê que “se um terceiro considerar que uma medida já tratada por um grupo especial anula ou prejudica benefícios a ele advindos de qualquer acordo abrangido, o referido Membro poderá recorrer aos procedimentos normais de solução de controvérsias definidos no presente Entendimento. Tal controvérsia deverá, onde possível, ser submetida ao grupo especial que tenha inicialmente tratado do assunto”. 29

3.4 Partes não-governamentais Do que se mencionou até agora, observa-se que o sistema de solução de controvérsias manteve o caráter estatal quanto à capacidade para intervir no procedimento. Seja como parte reclamante ou reclamada, seja como terceiro interessado, as previsões do ESC centram-se nas figuras dos Estados soberanos e territórios aduaneiros. Entretanto, um tema crescentemente debatido se refere à intervenção de entidades não-governamentais. A constatação de que os acordos da OMC vão muito além dos temas clássicos de direito internacional vem suscitando o debate e a mobilização de empresas, organizações não-governamentais e, em casos mais raros, de cientistas. A primeira situação mencionada se refere ao impacto das decisões da OMC para os interesses de empresas privadas, sobretudo de empresas transnacionais. Em muitos casos, a decisão adotada pelo OSC tem impacto relevante para a competitividade dessas empresas no mercado internacional ou mesmo para sua atuação nos mercados internos, quando a OMC decide, por exemplo, que uma determinada medida de defesa comercial é ilegal e deve ser retirada. Apesar desses interesses das empresas, o ESC não contempla nenhuma oportunidade específica para sua atuação no procedimento, nem sequer as reconhecem como partes legítimas para qualquer tipo de ato procedimental. Na prática, essas empresas poderão auxiliar seus respectivos governos a preparar a reclamação, ou contratam advogados especializados para a elaboração dos documentos necessários, que serão posteriormente apresentados pelos governos à OMC.38 38. Neste sentido, o Market Acess Database da União Européia, destinado a receber inputs das instituições européias, Membros e empresas privadas com relação a possíveis barreiras de seus produtos. Disponível em: http:/ /mkaccdb.eu.int/. Acessado em: 25 jul. 2003. 30

Uma questão interessante se refere à obrigatoriedade, para os Membros da OMC, em seguir adiante com a reclamação formulada por um setor de sua indústria nacional. Note-se que não há norma de Direito Internacional Econômico que obrigue os Estados a assumirem causas de seus nacionais perante tribunais internacionais, o que se denomina proteção diplomática. Em regra, portanto, os Membros da OMC exercerão sua discricionariedade quanto a apresentar ou não a reclamação, seguindo seus próprios critérios de conveniência política. Uma vez exercida, a reclamação passa a ser do Estado. Em tese, havendo uma eventual indenização, o que não acontece atualmente na OMC, esta seria distribuída pelo Estado segundo suas regras de direito interno, caso existam.39 A possível exceção a esta ampla discricionariedade estará na existência de regras nacionais, que estipulam condições diante das quais os governos devem defender os interesses de sua indústria nacional. Exemplos neste sentido podem ser encontrados na legislação norte-americana40 e na legislação européia.41 39. A proteção diplomática é de formação costumeira e da jurisprudência internacional. Refere-se à proteção que o Estado concede quando um de seus indivíduos ou sociedade é lesado internacionalmente. É discricionária e se realiza mediante o preenchimento de certas condições: a) nacionalidade do autor da reclamação; b) esgotamento dos recursos internos; c) o procedimento (conduta) do autor da reclamação. As sociedades comerciais podem, da mesma forma, ser protegidas diplomaticamente. Alguns Estados como EUA, Inglaterra e França exigem que pelo menos 50% do capital destas sociedades sejam controlados por seus nacionais. Mello, 2002, p. 511-515. Quanto ao requisito da nacionalidade, é necessário se atentar para algumas exceções: “the variety of problems involved necessitates separate and somewhat extended treatment of the principle of nationality of claims. At the outset certain important exceptions to the principle must be noticed. A right to protections of non-nationals may arise from treaty or and ‘ad hoc’ arrangement establishing an agency”. Brownlie, 1998, p. 482. 40. Art. 301-302, US Omnibus Trade and Competitiveness Act (1988). Veja-se Cretella Neto, 1998, 133-134. 41. Veja-se Regulamento 3.286/94 da CE, que substituiu o New Commercial Policy Instrument (1984). 31

De outro lado, países, como o Brasil, que têm pouca tradição de transparência nesta matéria e cuja indústria nacional ainda não atentou para as graves repercussões das decisões da OMC, costumam basear-se em avaliações integralmente políticas, quando decidem apresentar ou não uma reclamação à OMC. Um problema correlato se refere à intervenção de organizações não-governamentais no sistema de solução de controvérsias da OMC. Obviamente, essas entidades não têm direito de ser parte (locus standi) no procedimento, e seus interesses teriam que ser apresentados aos respectivos governos. Por outro lado, muitas dessas entidades representam interesses ou defendem ideais justamente contrastantes aos de seus governos. E há que se recordar que as fontes de financiamento dessas entidades tampouco são totalmente transparentes, o que gera o temor de que representem interesses econômicos não declarados. Na OMC, uma questão processual concreta surgiu quando uma entidade não-governamental apresentou um parecer não solicitado, abordando o aspecto ambiental envolvido na controvérsia. O OAp, ao examinar o caso, decidiu que os painéis tinham autoridade para aceitar informações que julgassem relevantes para solucionar a controvérsia.42 No caso EUA-Bismuto, o OAp decidiu ter “autoridade ampla para adotar regras de procedimento que não conflitem com quaisquer regras e procedimentos no ESC”.43 Posteriormente, o OAp aceitou também um parecer apresentado por um Membro (Marrocos) que não tinha solicitado sua intervenção como terceiro interessado, mas observando que “a recepção de qualquer relatório amicus curiae é uma questão de discreção, em que devemos exercer caso a caso”.44 O OAp fundamentou sua decisão no ESC cujos artigos 12 e 13 concederiam “autoridade ampla e extensa” ao painel, inclusive para aceitar manifestações de “amigos do tribunal” (amicus curiae). 42. WT/DS58/AB/RW. EUA-Camarões, par. 106. 43. WT/DS138/AB/R. EUA-Bismuto, par. 39. 44. WT/DS231/AB/R. CE-Sardinhas, par. 167. 32

O debate sobre a apresentação de pareceres por organizações não-governamentais suscita a oposição dos países em desenvolvimento, temerosos de que entidades empresariais ou entidades com interesses escusos possam intervir no procedimento e mitigar o caráter diplomático inerente ao sistema. Neste sentido, em 2000, o Conselho Geral exortou o OAp a exercer extremo cuidado na aceitação de pareceres de amicus curiae. O tema inclusive faz parte das propostas de reforma do sistema de solução de controvérsias, sem que haja qualquer unanimidade entre os Membros da OMC.45 Uma terceira possibilidade de intervenção de entes nãogovernamentais no sistema de solução de controvérsias da OMC refere-se aos casos envolvendo questões científicas. Nestas hipóteses, cujo número vem aumentando, pode ser necessária a opinião de especialistas sobre a matéria objeto da controvérsia. O ESC prevê que “os painéis poderão buscar informação em qualquer fonte relevante e poderão consultar peritos para obter sua opinião sobre determinados aspectos de uma questão. Com relação a um aspecto concreto de uma questão de caráter científico ou técnico trazido à controvérsia por uma parte, o painel poderá requerer um relatório escrito a um grupo consultivo de peritos”.46 Este relatório, contudo, não obriga o painel. Além disso, os painéis poderão “recorrer à informação e ao assessoramento técnico de qualquer pessoa ou entidade que considere conveniente”,47 o que ocorre freqüentemente em casos que envolvem coleta e análise científica de dados.48

45. Barral & Prazeres, 2002, p. 42. Sobre uma discussão específica sobre o tema vejam-se Marceau & Stilwelt, 2001, p. 155-187; Umbricht, 2001, p. 773-794. 46. ESC, Art. 13:2. 47. ESC, Art. 13:1. 48. Como nos casos CE-Hormônios (WT/DS48/AB/R) e CE-Asbestos (WT/ DS135/AB/R), por exemplo.

33

4. INSTITUIÇÕES PARA SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS NA OMC

4.1 Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) Na estrutura criada pela OMC, a solução de controvérsias entre os Membros foi atribuída ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC). O OSC é composto por todos os Membros da OMC, que se reúnem regularmente, normalmente uma vez por mês, para tomar as decisões que lhe incumbem, segundo o previsto no ESC. Essas atribuições são: “estabelecer painéis, acatar relatórios dos painéis e do OAp, supervisionar a aplicação das decisões e recomendações e autorizar a suspensão de concessões e de outras obrigações determinadas pelos acordos abrangidos”.49 O processo decisório no OSC é baseado no consenso. Mas duas observações devem ser feitas aqui: primeiro, consenso não quer dizer unanimidade. Em outras palavras, haverá consenso se nenhum Membro votar contrariamente, não havendo necessidade de votos a favor. Esta observação é importante, uma vez que alguns Membros, sobretudo países de menor desenvolvimento relativo, não conseguem comparecer a todas as reuniões dos órgãos da OMC. Outra observação é de que, em determinadas decisões, o ESC exige na realidade o “consenso reverso”. Em outras palavras, para determinadas decisões, que são extremamente importantes na solução de controvérsias, todos os Membros deverão votar contra, para que a decisão não seja acolhida. Estas são justamente as decisões para estabelecer o painel,50 para adotar os relatórios do painel e do OAp,51 e autorização para suspender 49. ESC, Art. 2:1. 50. ESC, Art. 6:1. 51. ESC, Art. 16:4 e 17:4, respectivamente. 34

concessões.52 Obviamente, é muito difícil conseguir este consenso reverso, pois pelo menos o Membro reclamante terá interesse na implementação dos relatórios que o favoreça. Por isso, até hoje nunca houve um caso concreto de consenso reverso no OSC. Outras funções do OSC ainda podem ser mencionadas: aprovar a lista indicativa de painelistas,53 receber comunicações de terceiros interessados,54 nomear os integrantes do OAp,55 e aprovar o prazo para a implementação da decisão pelo Membro vencido.56 Ou seja, o OSC é o administrador do sistema de solução de controvérsias da OMC.

4.2 Painéis Para desempenhar suas funções, o OSC utiliza painéis, a primeira instância no procedimento para solução de controvérsias na OMC.57 Os painéis são compostos por três indivíduos, que apresentam o relatório circunstanciado sobre a controvérsia e uma análise jurídica quanto ao fundamento da reclamação. Esses indivíduos atuam em caráter pessoal, independentemente de seus governos, e não podem atuar em casos em que seu país esteja envolvido. Em geral, são diplomatas, juristas e acadêmicos especializados em Direito Internacional Econômico.58 Os painelistas são sugeridos pelo Secretariado e escolhidos pelos Membros na controvérsia, se houver acordo. Caso contrário, serão indicados pelo Diretor-Geral da OMC, que é o que 52. 53. 54. 55. 56. 57.

ESC, Art. 22:6. ESC, Art. 8:4. ESC, Art. 10:2. ESC, Art. 17:2. ESC, Art. 21:11. Conforme já afirmado, as traduções oficiais dos acordos da OMC em português utilizam o termo “grupos especiais” para designarem os “painéis”, em função de uma tradução literal do texto em espanhol. Entretanto, a literatura utiliza os termos “painel” e “painelista” de forma mais usual. 58. ESC, Art. 8:1. 35

acontece na maior parte das vezes.59 Os painelistas estão submetidos ainda às regras de conduta, aprovadas em 1996, segundo as quais devem atuar com independência e imparcialidade, tendo ainda a obrigação de informar qualquer interesse no relacionamento que tenham mantido com os Membros envolvidos na controvérsia. Conforme estipulado pelo ESC, a competência do painel é “examinar a questão submetida e estabelecer conclusões que auxiliem o OSC a fazer recomendações ou emitir decisões”.60 É importante notar que o painel está limitado por estes termos, e pode-se dizer que sua competência quase-jurisdicional não o autoriza a estender-se em nada além destes termos. Esta observação é tão mais importante quando se recorda que “as recomendações e decisões do OSC não poderão promover o aumento ou a diminuição dos direitos e obrigações definidos nos acordos abrangidos”,61 e uma das atuais polêmicas na OMC é justamente a acusação de que alguns painéis, e mesmo o OAp, vêm sendo protagonistas de “ativismo judicial”, interpretando os acordos de forma muito abrangente.

4.3 Órgão de apelação (OAp) Outro órgão componente do sistema de solução de controvérsias é o Órgão de Apelação (OAp). Uma das novidades decorrente da Rodada Uruguai, o OAp é composto por sete indivíduos, cujos nomes serão aprovados por consenso pelo OSC.62 Devem ser “pessoas de reconhecida competência, com experiência comprovada em direito, comércio internacional e nos assuntos tratados pelos acordos abrangidos em geral”. Adicionalmente, devem 59. 60. 61. 62.

ESC, Art. 8:7. ESC, Art. 7:1. ESC, Art. 3:2. ESC, Art. 17:1. 36

“estar disponíveis permanentemente e em breve espaço de tempo, e deverão manter-se a par das atividades de solução de controvérsias e das demais atividades pertinentes da OMC”.63 O OAp recebe o recurso contra decisões dos painéis, e três juízes do OAp atuam em cada caso. Na prática observada até agora, praticamente todos os relatórios dos painéis foram objeto de recurso, que pode confirmar, modificar ou revogar as conclusões do painel. Em muitos casos até agora, o OAp concorda com as conclusões do painel, mas não com a fundamentação adotada. Este é o caso de modificação do relatório, e tem sido extremamente relevante para harmonizar a interpretação das normas da OMC.64

4.4 Secretariado Por fim, vale lembrar que o ESC atribui algumas responsabilidades ao Secretariado da OMC. O Secretariado, que atua na sede da organização, em Genebra, além de manter os registros das reuniões e outras responsabilidades burocráticas, também deve manter uma lista indicativa de indivíduos para o painel,65 receber as argumentações escritas dos Membros da controvérsia66 e inclusive organizar, para os Membros interessados, cursos especiais de treinamento.67 Na prática, o Secretariado tem uma outra função extremamente relevante que é auxiliar os painéis na elaboração dos relatórios.68 63. ESC, Art. 17:3. 64. Por outro lado, existem casos em que o OAp até mesmo desqualificou o termo de referência estabelecido no painel. Veja-se WT/DS60/AB/R, Guatemala-Cimento, par. 81-89. Sobre termo de referência, veja-se infra, item 4.6. 65. ESC, Art. 8:4. 66. ESC, Art. 12:6. 67. ESC, Art. 27:3. 68. ESC, Art. 27:1, “O Secretariado terá a responsabilidade de prestar assistência aos painéis, em especial nos aspectos jurídicos, históricos e de procedimento dos assuntos tratados, e de fornecer apoio técnico e de secretaria”. 37

4.5 Procedimentos para solução de controvérsias Uma vez identificados os órgãos da OMC que atuam na solução de controvérsias, deve-se examinar agora o procedimento adotado e suas particularidades. O gráfico abaixo demonstra as várias fases do procedimento na OMC:

A fase inicial, portanto, refere-se às consultas. Esta é uma herança da tradição diplomática do GATT-1947: o ESC consagra grande relevância à fase de consultas, em que “Cada Membro se compromete a examinar com compreensão a argumentação apresentada por outro Membro e a conceder oportunidade adequada para consulta com relação a medidas adotadas dentro de seu território que afetem o funcionamento de qualquer acordo abrangido”.69 A fase de consultas tem, inclusive, ganhado relevância em termos processuais. Com efeito, o Membro reclamante não poderá 69. ESC, Art. 4:2.

38

suscitar, posteriormente, diante do painel, questões que não tenham sido previamente examinadas na fase de consultas.70 Se as partes conseguirem alcançar uma solução para a controvérsia, que seja compatível com os acordos da OMC, o procedimento se encerrará, comunicando-se ao OSC a solução acordada.71 Em tese, essa exigência possibilitaria a transparência na solução de controvérsias, impedindo que os Membros envolvidos pudessem alcançar uma solução em detrimento dos demais Membros e das regras multilaterais do comércio. Na prática, entretanto, nem todas as soluções alcançadas são comunicadas, ou não são comunicadas integralmente. Se, ao contrário, uma solução negociada não for alcançada em 60 dias, o Membro reclamante poderá levar o pedido de painel ao OSC, indicando se foram realizadas consultas, identificando as medidas controversas e fornecendo uma exposição de embasamento jurídico para reclamação.72 No OSC, a não ser que haja um consenso reverso, o painel será estabelecido, podendo os demais Membros notificar seu interesse em participar como terceiros interessados.73 A fase seguinte, de extrema relevância, será estabelecer os termos de referência para o painel. Genericamente, pode-se dizer que o termo de referência, que deve ser estabelecido por acordo entre as partes ou por adoção do texto padrão estabelecido no ESC, equivale aos limites para a competência jurisdicional do painel. Em termos didáticos, tem semelhança com o despacho saneador no processo civil brasileiro, ato pelo qual “fixam-se os pontos controvertidos”.74 Em seguida, dá-se início à ouvida das partes envolvidas, dos terceiros interessados, e produção de pro70. 71. 72. 73. 74.

SCM/179, Brasil-Leite em Pó, par. 360-362. ESC, Art. 3:6. ESC, Art. 6:2. ESC, Art. 6:1. Código de Processo Civil (CPC), Art. 331. 39

vas, segundo o calendário estipulado pelo próprio painel, com base em cronograma sugerido pelo ESC.75 Uma questão interessante, e muitas vezes debatida perante os painéis, refere-se ao ônus da prova quanto aos fatos e argumentos levantados perante os painéis. Embora não haja um dispositivo expresso no ESC a este respeito, o entendimento tem sido no sentido de aplicar-se o princípio geral de direito processual, segundo o qual a parte que afirma o fato é que tem o ônus de prová-lo.76 Ainda sobre a produção de provas, observa-se que o ESC não traz dispositivos detalhados, além da possibilidade genérica, para o painel, de buscar as informações que considerar convenientes para a controvérsia. Além disso, determina o ESC que “O Membro deverá dar resposta rápida e completa a toda solicitação de informação que um painel considere necessária e pertinente”.77 Entretanto, a falta de especificação desta obrigação, ou de sanções processuais decorrentes, permite que as partes acabem por omitir ou não entregar informação relevante solicitada pelos painéis. O caso mais notório neste sentido foi Canadá-Aeronaves, em que o governo canadense recusou-se a entregar documentação solicitada, alegando questões de confidencialidade.78 Antes de concluir seu relatório, o painel ainda apresenta às partes um esboço descritivo,79 e um relatório provisório, ainda confidencial, que poderá ser objeto de comentários pelas partes na controvérsia.80 Finalmente, o relatório do painel circula entre 75. Veja-se Art. 12, Apêndice 3 do ESC, com a proposta de cronograma para os trabalhos do painel. 76. Por outro lado, o OAp decidiu que “If that party adduces evidence sufficient to raise a presumption that what is claimed is true, the burden then shifts to the other party, who will fail unless it adduces sufficient evidence to rebut the presumption”. WT/DS33/AB/R, EUA-Camisas e Blusas, Parte IV. 77. ESC, Art. 13. 78. WT/DS70/AB/R, Canadá-Aeronaves, par. 47-48. 79. ESC, Art. 15:1. 80. ESC, Art. 15:2. 40

todos os Membros da OMC e é colocado à disposição no sítio eletrônico.81 Submetido o relatório ao OSC, será ele aprovado, a não ser que haja o consenso reverso ou que uma das partes da controvérsia recorra ao OAp, o que geralmente ocorre.82 Se as partes na controvérsia recorrerem, deverão fundamentar este recurso numa questão de direito ou na interpretação eventualmente adotada pelo painel.83 Em outras palavras, questões de fato previamente examinadas pelo painel não poderão ser objeto de recurso. Distinguir questões de direito e questões de fato muitas vezes pode levar a debates intermináveis, sobretudo quando a caracterização do fato leva à aplicação de uma ou outra norma jurídica. Até agora, o OAp tem adotado a postura de só examinar matéria na qual a questão jurídica do problema esteja expressamente manifesta. Diante do OAp, as partes apresentam seus argumentos escritos e em audiência. As deliberações dos juízes do OAp são confidenciais, e o relatório final aprovado - que confirma, modifica ou revoga o relatório do painel - é remetido ao OSC, onde será aprovado, a não ser que ocorra o consenso reverso.84 Com a aprovação pelo OSC do relatório do painel ou do OAp, encerra-se a fase jurisdicional do sistema de solução de controvérsias da OMC. O relatório final aprovado, se concluir que a medida nacional reclamada é incompatível com os acordos da OMC, deverá recomendar que o Membro torne a medida compatível com o acordo.85 O painel - ou, se houver recurso, o OAp - poderão ainda sugerir a maneira pela qual a recomendação poderá ser implementada. Na prática, o relatório final apresenta81. Os relatórios podem ser encontrados em http://docsonline.wto.org/ gen_search.asp?searchmode=advanced. Acessado em: 27 jul. 2003. 82. ESC, Art. 16:4. Até agora, o único relatório não recorrido foi o do painel WT/DS44/R, Japão-Filmes fotográficos. 83. ESC, Art. 17:6. 84. ESC, Art. 17:14. 85. ESC, Art. 19. 41

do ao OSC conclui afirmando, em seu último parágrafo, que a medida “X” é incompatível, ou não é incompatível, com os acordos “Y” ou “Z”, invocados pela parte reclamante. A partir de sua aprovação pelo OSC, o relatório gera a responsabilidade internacional do Membro da OMC, reconhecendo-se sua obrigação de revogar ou alterar a medida questionada, de forma a impedir a continuidade do conflito com as normas multilaterais do comércio.86

5. IMPLEMENTAÇÃO DAS DECISÕES DA OMC Obtida a decisão do OSC, passa-se a fase de implementação, uma fase pós-jurisdicional, em que se buscará o cumprimento da decisão, visando tornar a medida recorrida compatível com os acordos da OMC. É importante esta observação: a decisão do OSC não tem caráter reparatório, nem de penalização do Membro que eventualmente tenha transgredido as normas da OMC por meio de uma medida nacional. O objetivo fundamental da fase de implementação, e da eventual suspensão de vantagens, é forçar o Membro a cumprir a decisão, tornando sua legislação interna compatível com as obrigações que assumiu no âmbito da OMC.87 Resumidamente, o procedimento será o seguinte: se a medida recorrida for julgada incompatível com determinado acordo da OMC, o Membro reclamado deverá informar ao OSC suas intenções com relação à implementação das decisões e recomendações do OSC.88 O OSC deve aprovar um “período razoável de tempo” para que o Membro reclamado possa revogar a medida o 86. ESC, Art. 21:1, “O pronto cumprimento das recomendações e decisões do OSC é fundamental para assegurar a efetiva solução das controvérsias, em benefício de todos os Membros”. 87. Por isso, o ESC afirma que “nem a compensação nem a suspensão de concessões ou de outras obrigações é preferível à total implementação de uma recomendação”. ESC, Art. 22:1. 88. ESC, Art. 21:3. 42

objeto da controvérsia, ou torná-lo compatível com os acordos da OMC. Na prática, este período vem variando entre 3 a 15 meses. Se a medida não for alterada, devem ser iniciadas consultas entre os Membros reclamante e reclamado, buscando estabelecer uma compensação aceitável. Se não alcançarem o acordo quanto a esta compensação, o Membro reclamante poderá buscar a autorização do OSC para “suspender concessões”, ou seja, retirar vantagens negociadas no âmbito da OMC, sobretudo vantagens tarifárias, aplicáveis aos produtos oriundos do território do Membro reclamado.89 Diante deste pedido, e da não-implementação voluntária por parte do Membro reclamado, o OSC concederá a autorização para a suspensão de concessões. Se o reclamado objetar ao montante das suspensões propostas pelo reclamante, a questão é submetida à arbitragem para avaliar o valor devido da suspensão.90 A tarefa do árbitro, que preferencialmente será um dos componentes do painel original que decidiu a controvérsia, é decidir se o grau da suspensão de concessões proposta é equivalente ao grau de anulação ou prejuízo causado ao Membro reclamante pela medida considerada ilegal.91 Esta retaliação autorizada pelo OSC não revoga eternamente as obrigações do Membro reclamante em relação ao Membro reclamado; ou seja, “a suspensão de concessões ou outras obrigações deverá ser temporária e vigorar até que a medida considerada incompatível com um acordo abrangido tenha sido suprimida, ou até que o Membro que deva implementar as recomendações e decisões forneça uma solução para a anulação ou prejuízo dos benefícios, ou até que uma solução mutuamente satisfatória seja encontrada”.92 Da mesma forma, o Membro reclamado pode 89. 90. 91. 92.

ESC, ESC, ESC, ESC,

Art. Art. Art. Art.

22:2. 22:6. 22:7. 22:8. 43

ainda se oferecer para conceder compensações, normalmente pela extensão de vantagens tarifárias aos produtos originários do Membro reclamante. Esta compensação é voluntária, e deve ser consistente com os demais acordos da OMC.93 Pode-se afirmar que a fase de implementação tem sido, na experiência recente da OMC, o momento mais crítico para o legalismo nas relações econômicas internacionais. Com efeito, se o ESC foi um avanço fundamental em direção a um sistema mais regido por normas (rule-oriented), este avanço é mais perceptível na fase jurisdicional, ou seja, perante os painéis e OAp. Ainda falta maior grau de legalismo na fase “de execução” do ESC, diante dos vários problemas identificados na prática recente, sobretudo: a)

b)

c)

o problema do “período razoável de tempo” para implementar a decisão, que muitas vezes esbarra com impeditivos constitucionais e legislativos dos Membros; a alternativa entre compensação ou revogação da medida questionada, uma vez que a compensação pode ser oferecida como forma de protelar a revogação ou modificação da medida questionada; em última análise, esta alternativa mitiga o compromisso com o legalismo das decisões; a intrincada discussão sobre o meio adequado de tornar a medida questionada compatível com as normas do comércio internacional; assim, vários Membros reclamados adotam seguidamente mudanças superficiais na legislação relativa à medida, o que leva os Membros reclamantes a retornar ao árbitro, para reavaliar se a nova roupagem (muitas vezes, apenas maquiagem) jurídica é compatível com os acordos da OMC. Isso tem levado à situação denominada de “sequenciamento” (sequencing), em que uma mesma controvérsia retorna diversas vezes ao árbitro, em razão das modifica-

93. ESC, Art. 22:1. 44

d)

e)

f)

ções adotadas pelo Membro reclamado não satisfazerem o Membro reclamante. Como decorrência, uma controvérsia pode acabar se prolongando muito além dos prazos inicialmente previstos pelo ESC;94 outro problema é relativo ao montante devido para a compensação, que evidentemente quase nunca é oferecido no nível que o Membro reclamante considera satisfatório. Isto gera novas, e às vezes intermináveis, questões entre os Membros na controvérsia;95 ainda, há que se observar que a compensação oferecida ou a retaliação autorizada nem sempre beneficiam ou atingem os mesmos setores econômicos que foram beneficiados pela medida objeto da controvérsia. Embora o ESC determine que “o princípio geral é o de que a parte reclamante deverá procurar primeiramente suspender concessões ou outras obrigações relativas ao(s) mesmo(s) setor(es) em que o painel ou Órgão de Apelação haja constatado uma infração ou outra anulação ou prejuízo”96, isto nem sempre ocorre na prática;97 por fim, em alguns casos, a autorização para suspender concessões não tem qualquer efeito sobre o Membro recla-

94. “Put simply, a determined defendant can wring at least three years of delays from the system before facing definitive legal condemnation, enough time for “temporary measures”- “such as the March 2002 US steel safeguards”“to wreak sustained havoc without possibility for retroactive compensation”. Busch & Heinhardt, 2002, p. 4. 95. Jackson, 1999, p. 7. 96. ESC, Art. 22.3(a). 97. Por isso, alguns autores vêm propondo que a compensação seja financeira, e não tarifária: “retaliation does not help the complainant’s exporters who have been and continue to be harmed, nor are the respondent’s industries harmed by the retaliation the same ones that have been helped by the WTOinconsistent measure. Monetary compensation to the complainant from the respondent may offer more scope for governments to target the transfers to achieve a more-equitable outcome”. Anderson, 2002, p. 16. 45

mado, se o Membro reclamante não tiver poder de mercado suficiente para afetar as exportações oriundas do território do Membro reclamado. Isto evidentemente ocorre, sobretudo, com países em desenvolvimento, cuja participação no comércio internacional é por vezes ínfima, e cujo poder econômico para forçar uma potência a cumprir uma decisão do OSC pode ser absolutamente negligenciado.

6. A APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE NORMAS PELO OSC

6.1 Aplicação das normas Uma atenção particular deve ser dada à questão de aplicação e interpretação das normas da OMC pelo sistema de solução de controvérsias. O ESC contém poucas regras no que se refere a esta matéria, e a interpretação do OAp tem sido determinante, e também controversa, para caracterizar as metanormas invocadas. No âmbito dos acordos da OMC, uma regra de prevalência geral está no Acordo Constitutivo da OMC que determina que as regras deste prevalecerão sobre qualquer outra norma dos acordos multilaterais.98 No que se refere especificamente à solução de controvérsias, não há regras internas de prevalência, com exceção daquelas segundo as quais os procedimentos especiais, constantes no apêndice II do ESC, prevalecerão sobre as regras gerais.99

98. Acordo Constitutivo, Art. 16:3. 99. ESC, Art. 1:2.

46

6.2 Interpretação pelos painéis No que se refere à interpretação assentada pelo painel para solucionar as controvérsias que lhe devam ser submetidas, determina-se que o esclarecimento das normas dos acordos multilaterais deve ser feito “em conformidade com as normas correntes de interpretação do direito internacional público”.100 Estas normas são materializadas na Convenção de Viena, cujo texto relevante determina que: Artigo 31 - Regra Geral de Interpretação 1. Um tratado deve ser interpretado de boa fé segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade. 2. Para os fins de interpretação de um tratado, o contexto compreenderá, além do texto, seu preâmbulo e anexos: a) qualquer acordo relativo ao tratado e feito entre todas as partes em conexão com a conclusão do tratado; b) qualquer instrumento estabelecido por uma ou várias partes em conexão com a conclusão do tratado e aceito pelas outras partes como instrumento relativo ao tratado. 3. Serão levados em consideração, juntamente com o contexto: a) qualquer acordo posterior entre as partes relativo à interpretação do tratado ou à aplicação de suas disposições; b) qualquer prática seguida posteriormente na aplicação do tratado, pela qual se estabeleça o acordo das partes relativo à sua interpretação; c) quaisquer regras pertinentes de Direito Internacional aplicáveis às relações entre as partes. 4. Um termo será entendido em sentido especial se estiver estabelecido que essa era a intenção das partes. 100. ESC, Art. 3:2. 47

Artigo 32 - Meios Suplementares de Interpretação Pode-se recorrer a meios suplementares de interpretação, inclusive aos trabalhos preparatórios do tratado e às circunstâncias de sua conclusão, a fim de confirmar o sentido resultante da aplicação do artigo 31 ou de determinar o sentido quando a interpretação, de conformidade com o artigo 31: a) deixa o sentido ambíguo ou obscuro; ou b)conduz a um resultado que é manifestamente absurdo ou desarrazoado.

Algumas observações podem ser adotadas, a propósito da Convenção de Viena. A primeira delas é quanto à preferência pela interpretação literal dos termos constantes em tratados internacionais. Esta tem sido a prática do OAp, que, em muitos recursos que lhe foram submetidos, dispende páginas e páginas discutindo o significado de um termo invocado por uma das partes da controvérsia. A segunda observação é que a Convenção de Viena vem sendo utilizada como grande parâmetro para a solução das controvérsias na OMC, mesmo quando envolvendo Membros que não são partes da Convenção de Viena, como é o caso do Brasil e dos EUA. Esta prática nunca foi contestada por qualquer Membro da OMC, o que leva a crer que a convenção de Viena foi entendida como materializando regras consuetudinárias de interpretação de tratados internacionais, regras que, portanto, são obrigatórias para todos os Membros. Ao lado da preferência por uma interpretação literal dos acordos da OMC, a prática até agora acumulada demonstra uma preocupação, sobretudo do OAp, em eliminar qualquer interpretação extensiva desses acordos. Esta preocupação tem fundamento normativo, já que o ESC recorda que as recomendações sobre as controvérsias submetidas não podem au48

mentar nem diminuir direitos e obrigações dos Membros da OMC. 101 Em razão disto, Jackson observa que “recentes atitudes constantes nos relatórios do OAp parecem reforçar a regra de considerável deferência às tomadas de decisões dos governos, possivelmente como um caso de ‘restrição jurídica’ de idéias, de acordo com o exposto no ESC, Art. 3, e em outros casos expressado por vários países que temem muita interferência em suas soberanias”.102 Apesar desta preocupação, vêm sendo freqüentes as críticas de alguns Membros - sobretudo dos EUA - quanto a um suposto ativismo judicial por parte de painéis e do OAp. Segundo esta crítica, a interpretação dada em alguns casos estaria sendo extensiva, e tendo como conseqüência o aumento das obrigações desses Membros além do texto dos acordos multilaterais. Esta crítica deve ser mitigada por duas constatações. A primeira delas é que não há interpretação totalmente isenta, por maior preferência que se dê ao texto literal adotado. Em segundo lugar, deve-se observar que os painéis muitas vezes têm que lidar com textos vagos, decorrentes da própria dinâmica das negociações comerciais internacionais. Em outras palavras, muitas vezes, para 101. Destarte, o ESC determina que: “Os Membros reconhecem que esse sistema é útil para preservar direitos e obrigações dos Membros dentro dos parâmetros dos acordos abrangidos e para esclarecer as disposições vigentes dos referidos acordos em conformidade com as normas correntes de interpretação do direito internacional público. As recomendações e decisões do OSC não poderão promover o aumento ou a diminuição dos direitos e obrigações definidos nos acordos abrangidos” (Art. 3:2), e ainda que “as conclusões e recomendações do painel e do Órgão de Apelação não poderão ampliar ou diminuir os direitos e obrigações derivados dos acordos abrangidos” (ESC, Art. 19:2). 102. “The emerging attitudes of the Appellate Body reports seem to reinforce a policy of considerable deference to national government decision-making, possibly as a matter of ‘judicial restraint’ ideas such as that quoted from the DSU Article 3, and otherwise expressed by various countries who fear too much intrusion on ‘sovereignty’”. Jackson, 1999, p. 11.

49

negociar um acordo, os Membros concordam em colocar um texto que evita comprometimento definitivo em relação ao problema então abordado. Esta estratégia negociadora já foi denominada de “ambigüidade construtiva” no jargão da OMC. Entretanto, na aplicação deste texto ambíguo ao caso concreto, os painéis acabam tendo que adotar interpretação que não necessariamente seria a preferível pela parte vencida na controvérsia. Ainda sobre interpretação, há que se acrescentar duas dificuldades para o jurista formado na tradição do direito romano. A primeira delas é lidar com o próprio texto dos tratados, normalmente negociados em inglês, e cuja tradução o mais das vezes não é muito fiel. Além disso, o processo negociador, sobretudo nos acordos originários da OMC, baseou-se em rascunhos (drafts) geralmente propostos pelos EUA. Isto faz com que a técnica de redação legislativa se assemelhe a da common law, com parágrafos extensos e uma lógica indutiva. Desta forma, juristas de tradição românica tendem a uma interpretação teleológica e a uma aplicação sistemática do conjunto normativo. A prática na OMC, ao contrário, tem sido no sentido de limitar estritamente cada uma das obrigações a seu âmbito de aplicação e adotar interpretação mais próxima possível do sentido literal de cada palavra. Quanto à operação mental de subsunção, o ESC determina que os painéis deverão considerar todas as normas relevantes dos acordos invocados pela parte na controvérsia.103 Ainda, orienta-se o painel a fazer uma avaliação objetiva do assunto, o que deverá incluir uma avaliação objetiva dos fatos, da aplicabilidade das normas invocadas, e da compatibilidade entre a medida recorrida e os acordos pertinentes.104 Ao final, o relatório do painel deverá expor as verificações de fatos, a aplicabilidade de disposições pertinentes e o arrazoado em que se baseiam suas decisões e recomendações.105 Nesta análise, o 103. ESC, Art. 7:2. 104. ESC, Art. 11. 105. ESC, Art. 12:7. 50

painel abordará inicialmente se houve violação de alguma regra específica dos acordos da OMC. Se a parte reclamante conseguir demonstrar isto, presume-se que a medida recorrida constitua caso de anulação ou diminuição de vantagens acordadas. É o que se denomina presunção de violação.106

6.3 O OSC e os judiciários nacionais Ao discutir a aplicação e interpretação das normas da OMC pelos painéis, o problema sempre evocado é o da correlação entre estas decisões e a interpretação eventualmente dada pelas autoridades administrativas e judiciais dos Membros da OMC. O problema é bastante amplo, pois envolve desde particularidades constitucionais até o efeito direto dos tratados nas ordens jurídicas internas. Por muito tempo, este problema foi abordado a partir do debate simplório entre monistas e dualistas, cujos modelos demonstraram ser insuficientes para explicar todas as variáveis envolvidas neste problema. Sem pretender o aprofundamento do tema, que seria inalcançável nos limites deste estudo, deve-se, contudo, registrar a correlação entre decisões do OSC e interpretações de entidades nacionais. Três questões específicas merecem ser abordadas: qual é a relação entre a interpretação adotada por uma autoridade nacional e da interpretação do OSC? Há necessidade do esgotamento dos recursos internos, para que a reclamação possa ser apresentada ao OSC? Qual é o efeito da interpretação do OSC para o comportamento futuro das autoridades nacionais? Sobre o primeiro questionamento, observe-se que o OSC não é uma instância supranacional para recurso contra decisões nacionais que se crê violadoras das normas da OMC. Em outras palavras, o objeto da reclamação ao OSC é uma medida nacional, cuja 106. Isso significa que normalmente existe a presunção de que toda transgressão das normas produz efeitos desfavoráveis para outros Membros que sejam partes do acordo abrangido, e em tais casos a prova em contrário caberá ao Membro contra o qual foi apresentada a reclamação. ESC, Art. 3:8. 51

vigência viola, de acordo com o Membro reclamante, uma determinada obrigação constante nos acordos da OMC. Se esta medida provém do legislativo, do executivo, ou do judiciário do Membro reclamado, este é um problema de direito constitucional, alheio às possibilidades de regulamentação do Direito Internacional Econômico. Portanto, a obrigação dos painéis e do OAp será fazer uma avaliação objetiva da aplicabilidade dos acordos invocados pelo Membro reclamante e de sua compatibilidade com a medida adotada pelo Membro reclamante. Este é o do denominado “padrão de revisão” (standard of review) que deve ser seguido pelos painéis e pelo OAp. Ou seja, nem conceder total deferência à interpretação dos acordos da OMC eventualmente dada pelas autoridades nacionais, nem servir como instância recursal contra esta interpretação.107 A exceção mais importante a este padrão geral de revisão previsto no ESC está no Acordo Antidumping (AA). Por pressão dos EUA, no AA consta uma regra especial de interpretação que induziria os painéis a conceder maior deferência às autoridades nacionais na interpretação do AA na imposição de direitos antidumping.108 107. Neste sentido, o OAp já decidiu que: “although panels are not entitled to conduct a de novo review of the evidence, nor to substitute their own conclusions for those of the competent [national] authorities, this does not mean that panels must simply accept the conclusions of the competent authorities (...) Thus, in making an ‘objective assessment’ of a claim under Article 4.2(a), panels must be open to the possibility that the explanation given by the competent authorities is not reasoned or adequate”. WT/ DS177/AB/R, EUA-Carne de Carneiro, par. 106. 108. AA, Art. 17:6. O painel, ao examinar a matéria objeto do parágrafo 5º: a) ao avaliar os elementos de fato da matéria, determinará se as autoridades terão estabelecido os fatos com propriedade e se sua avaliação dos mesmos foi imparcial e objetiva. Se tal ocorreu, mesmo que o grupo especial tenha eventualmente chegado a conclusão diversa, não se considerará inválida a avaliação; b) interpretará as disposições pertinentes do Acordo segundo regras consuetudinárias de interpretação do direito internacional público. Sempre que o grupo especial conclua que uma disposição pertinente do acordo admite mais de uma interpretação aceitável, declarará que as medidas das autoridades estão em conformidade com o acordo, se as mesmas encontram respaldo em uma das interpretações possíveis. Sobre a história e o impacto do Art. 17.6 do AA, veja-se Barral, 2000, p. 111-115. 52

Apesar desta regra, os EUA vêm constantemente sendo vencidos em controvérsias sobre medidas antidumping, o que vem gerando crescentes pressões para limitar mais ainda o padrão de revisão a ser adotado pelos painéis. O segundo problema mencionado se refere ao esgotamento dos recursos internos. Esta regra, que constitui uma norma consuetudinária de direito internacional, exige que, antes de recorrer a um tribunal internacional para defender interesses de seus nacionais, os Estados deverão verificar se esses nacionais esgotaram os recursos judiciais disponíveis na ordem jurídica do Estado reclamado.109 Embora este seja um princípio bastante assentado de Direito Internacional, a verdade é que em Direito Internacional Econômico não se exige normalmente o esgotamento dos recursos internos como pressuposto para apresentação da reclamação perante a OMC. Desta forma, e apesar de alguns trabalhos doutrinários em contrário, nenhum Membro da OMC jamais alegou que o esgotamento de recursos internos seria pressuposto necessário para a legitimidade da reclamação.110 Por fim, um problema interessante e ainda longe de ser equacionado, relativo ao sistema de solução de controvérsias da OMC, refere-se ao efeito dessas decisões nas ordens jurídicas 109. Trata-se de um princípio clássico do direito internacional de forma a evitar a ingerência internacional em questões que podem ser resolvidas internamente pelos Estados. Desta forma, somente após o Estado reclamado ter tido a oportunidade de reparar supostos danos internamente é que poderia ser evocada sua responsabilidade internacional. Tal princípio teria origem no final do século XVII e modernamente adquiriu novas matizes, principalmente em direitos humanos, recebendo tratamento específico. Cf. Trindade, 1997, p. 23-41. 110. “As GATT dispute settlement procedures are designed to protect ‘treaty benefits’ of the contracting parties, rather than individual rights of theirs citizens, the legal admissibility of GATT complaints has never been made conditional on ‘prior exhaustion of local remedies’, and the legal remedies sought were hardly ever expressed in terms of ‘reparations of injury’ suffered by their nationals”. Pettersmann, 1997, p. 242.

53

internas. Como regra geral, o próprio efeito direto das normas da OMC dependerá da estrutura constitucional e do status concedido aos tratados pela ordem jurídica de cada Membro. Ou seja, em determinados Estados, os tratados em matéria comercial não são auto-executáveis, pretendendo-se dizer com isso que um particular não poderá invocar estes tratados como fundamento para a defesa de um direito perante o judiciário desses países. Esta é a situação, genericamente falando, nos EUA e na CE.111 Em outros países, como é o caso do Brasil, não há basicamente questionamento sobre a matéria, e os tratados internacionais em geral são invocáveis em litígios internos. Entretanto, qualquer que seja a situação constitucional particular, não há qualquer regra no sistema de solução de controvérsias da OMC que possa criar implicações futuras para os judiciários nacionais, seja para obrigá-los a uma determinada interpretação, seja para alcançar a execução de uma recomendação ou decisão do OSC. Estas possibilidades até existem em sistemas recentes de solução de controvérsias, como o caso do TJCE ou da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).112 Na OMC, entretanto, não há regras que gerem efeitos diretos, para a esfera normativa nacional dos Membros, das decisões do OSC ou das interpretações eventualmente adotadas pelos painéis e pelo OAp.

111. Em um caso bastante polêmico, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE) decidiu que Portugal não poderia invocar os acordos da OMC no litígio contra a Comissão Européia. Veja-se TJCE, Caso C-149/ 96 Portugal versus Comissão [1999] ECR I-8395. Veja-se também recente análise sobre o caso em Eeckhout, 2002, p. 91-110. 112. Veja-se Sant’ana, 2001, p. 98-101.

54

6.4 O OSC e os tribunais internacionais Uma questão interessante, e ainda pouco suscitada na literatura sobre o assunto, é a duplicidade de competência para solucionar as controvérsias internacionais. Ou seja, a existência de determinadas controvérsias que podem ser submetidas a mais de um foro internacional, seja em razão de sua matéria, seja em razão de os Estados envolvidos participarem de mais de um processo de integração econômica. Esta hipótese não é apenas teórica. A proliferação de esquemas regionais de integração traz, entre outras conseqüências, a criação de mecanismos de solução de controvérsias, muitas vezes abrangendo a mesma matéria que poderia ser submetida também ao OSC. Evidentemente, não há uma instância internacional que possa solucionar este eventual conflito positivo de jurisdição. As seguintes alternativas acabaram sendo adotadas: a)

b)

c)

haverá uma preferência política por privilegiar um mecanismo regional, em razão do que os Estados envolvidos na controvérsia abdicarão do recurso ao sistema multilateral; haverá uma vantagem procedimental (celeridade, clareza de regras, maior abrangência dos acordos) que poderá induzir o Estado reclamante a escolher um dos mecanismos disponíveis, numa situação de forum shopping internacional; ou haverá uma regra privilegiadora de um dos foros - uma regra de prevenção de foro - que exclua a possibilidade de apresentação simultânea da controvérsia.

Observe-se, entretanto, que no ESC não há qualquer dessas regras de prevenção de seu foro, ou de impedimento de conhecer a controvérsia que já esteja sendo submetida, ou tenha sido submetida, a um mecanismo regional de solução de controvérsias. Isto pode criar, inclusive, uma situação jurídica complexa, em 55

que uma determinada medida nacional pode ser considerada legal, por um tribunal regional, e posteriormente ser considerada incompatível com os acordos da OMC, pelo OSC.113 De outro lado, alguns acordos regionais vêm atentando para este risco de sentenças díspares proferidas por tribunais internacionais distintos. Para minimizar este risco, alguns acordos recentes incorporam uma regra processual que impede os Estados envolvidos numa controvérsia de submetê-la a mais de um mecanismo de solução de controvérsias. Neste sentido é a previsão do North America Free Trade Agreement (NAFTA) segundo a qual controvérsias surgidas em razão do acordo do NAFTA ou do GATT podem ser solucionadas em qualquer dos foros, segundo escolha da parte reclamante.114 A mesma regra vem sendo adotada em acordos bilaterais firmados pelos EUA, como no acordo com o Chile.115 Também 113. Esta foi, aliás, a situação ocorrida entre Argentina e Brasil, numa controvérsia envolvendo a aplicação de medidas antidumping nas exportações brasileiras de frango. Inicialmente, a medida foi considerada legal pelo tribunal arbitral constituído no âmbito do Protocolo de Brasília. Veja-se capítulos III e IV do laudo arbitral do Tribunal Ad Hoc do Mercosul, Aplicação de Medidas Antidumping contra a exportação de frangos inteiros, provenientes do Brasil, Resolução Nº 574/2000 do Ministério de Economia da República Argentina, de 21 de maio de 2001. Inconformado, o Brasil apresentou nova reclamação à OMC cuja decisão foi pela incompatibilidade entre a medida argentina e o acordo antidumping. WT/DS241/R, Argentina-Frango, par. 8.1-8.7. 114. NAFTA, Article 2005.1: “[...] disputes regarding any matter arising under both this Agreement and the General Agreement on Tariffs and Trade, any agreement negotiated thereunder, or any successor agreement (GATT), may be settled in either forum at the discretion of the complaining Party”. 115. US-Chile Free Trade Agreement, Article 22.3: “Choice of Forum. 1. Where a dispute regarding any matter arises under this Agreement and under another free trade agreement to which both Parties are party or the WTO Agreement, the complaining Party may select the forum in which to settle the dispute. 2. Once the complaining Party has requested a panel under an agreement referred to in paragraph 1, the forum selected shall be used to the exclusion of the others”. Disponível em: http://www.ustr.gov/new/fta/ Chile/final/22.dispute%20settlement.PDF. Acesso em: 14 ago. 2003. 56

a regulamentação proposta para a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) busca equacionar o problema, permitindo o forum shopping segundo as conveniências do Estado reclamante.116 Finalmente, no Mercosul, uma regra nova, inserida pelo Protocolo de Olivos, estabelece a possibilidade de escolha entre o sistema de solução de controvérsias do Mercosul e outro sistema eventualmente competente para decidir a controvérsia. A regra é que o Estado demandante possa escolher o foro, mas - uma vez iniciado o procedimento - não se poderá recorrer a outro foro.117 A regra ganha relevância, quando se observa que os Estados-Partes do Mercosul participam individualmente de outros tratados multilaterais em matéria comercial com sistemas próprios de solução de controvérsias. Por outro lado, como a opção pelo foro será do Estado demandante (a não ser que haja acordo), pode-se prever que o foro internacional mais utilizado será aquele que apresentar, em cada caso específico, a base jurídica mais sólida para sustentar a reclamação. Em tese, o Mercosul deveria apresentar regras mais avançadas quanto à integração regional e ao processo de liberalização comercial. Entretanto, em algumas matérias, como é o caso de 116. Segunda Minuta do Acordo da Área de Livre Comércio das Américas, Art. 6, Escolha do foro: “ Qualquer controvérsia que surgir entre as Partes com relação ao disposto no Acordo da ALCA [que igualmente implicar uma violação das obrigações assumidas conforme o] [e] Acordo sobre a OMC [ou em outros acordos regionais de que as Partes da controvérsia forem parte,] poderão ser resolvidos em qualquer dos foros, a critério da Parte reclamante”. Consta ainda em nota de rodapé: “[À medida que avançarem as negociações substantivas, surgirão outras questões relativas à eleição do foro a serem discutidas. Por exemplo, quando se houver avançado mais nas regras substantivas do Acordo da ALCA do que nas regras comparáveis em outros foros, o acordo poderá expressar uma preferência pelo procedimento de solução de controvérsias do Acordo da ALCA.]”. Disponível em: http://www.ftaa-alca.org/FTAADraft02/Quito/draft_p9.doc. Acesso em: 14 ago. 2003. 117. Protocolo de Olivos, Art. 1. 57

medidas antidumping, o vazio jurídico do Mercosul poderá conduzir os litigantes ao OSC, cuja interpretação mais literal das obrigações assumidas nos acordos multilaterais poderá fornecer um maior fundamento a uma reclamação nacional.

7. CONCLUSÕES Apresentado o sistema de solução de controvérsias da OMC e as principais características e problemas que se tornaram visíveis nos primeiros oito anos de sua vigência, esta parte condensará algumas considerações, escolhidas a partir dos interesses brasileiros. O Brasil é um participante freqüente do sistema de solução de controvérsias da OMC, tanto como reclamante quanto como reclamado.118 Isto pode ser explicado pelo fato de os produtos brasileiros competirem em diversos setores econômicos, nos quais têm que enfrentar barreiras consolidadas. Além disso, a tradição brasileira de intervenção no domínio econômico muitas vezes contrasta com os princípios liberalizantes contidos em regras da OMC. Neste cenário, importa primeiramente ao Brasil reconhecer que o sistema de solução de controvérsias da OMC é o mecanismo mais eficaz, entre os disponíveis nas relações econômicas internacionais, para assegurar direitos decorrentes das negociações em que o país toma parte. Por isso, a importância de conhecer profundamente as regras e a prática do OSC, além de acompanhar todas as propostas para sua reforma. Dentre estas propostas, observa-se que algumas delas respondem a uma crítica crescente na sociedade civil internacional em relação à suposta falta de legitimidade das decisões tomadas 118. Em um levantamento realizado por Barral e Prazeres demonstra-se que o Brasil, que detém menos de 1% do comércio mundial, está envolvido em praticamente 10% das controvérsias perante o OSC. Barral & Prazeres, 2002, p. 18. 58

no âmbito da OMC. Sobretudo as controvérsias que envolveram matérias ambientais - como EUA-Golfinhos119 e EUA-Camarões120 - tornaram-se rumorosas, em razão da suposta falta de transparência do mecanismo de solução de controvérsias e de sua preferência pelo comércio em detrimento do meio ambiente. No sentido de resposta a essas críticas, as propostas de reformulação do ESC destinadas a dar maior transparência e voz às entidades da sociedade civil não criam maiores empecilhos para os interesses brasileiros. Há, evidentemente, necessidade de estipulação de regras que evitem a sobrecarga do sistema de solução de controvérsias, bem como o pré-credenciamento de entidades que pretendam se manifestar. Se estas medidas visando dar maior transparência forem implementadas, podem gerar não só o efeito de reduzir críticas à legitimidade da OMC, mas também de facilitar as informações - para o conjunto da sociedade civil. Em países como o Brasil, a sociedade civil ainda é pouco organizada e informada quanto aos interesses que são defendidos nos foros internacionais e a razão pela qual foram escolhidos pelo Estado para exercer proteção diplomática. Nas demais propostas de reforma atualmente em discussão, há ainda: profissionalização do quadro de painelistas e tratamento diferenciado para países em desenvolvimento. A primeira proposta talvez possa trazer maior eficácia ao funcionamento do sistema. Para o Brasil, entretanto, é relevante que um eventual quadro permanente de painelistas conte com representação brasileira. Embora estes indivíduos não possam atuar em casos nos quais o Brasil seja parte, poderão ter efeito multiplicador do conhecimento acumulado, permitindo que o país possa inclusive aprender com os próprios erros e aperfeiçoar a defesa de seus interesses. No que se refere ao tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento, os interesses brasileiros estão 119. DS/29/R, EUA-Golfinhos. 120. WT/DS58/AB/RW, EUA-Camarões. 59

vinculados a propostas que possam dar maior eficácia ao atual texto do ESC, que pode ser caracterizado como meramente programático. Sobretudo no que se refere à implementação das decisões do OSC, os interesses dos países em desenvolvimento estariam melhor protegidos se houvesse regras claras que gerassem vantagens efetivas durante o procedimento para solução da controvérsia. Neste sentido, a proposta de uma retaliação coletiva contra o Membro reclamado que não cumprir a decisão parece interessante, embora seja pouco provável num mundo onde o poder econômico está tão iniquamente dividido. De qualquer forma, quaisquer que sejam as reformas aprovadas, não deve haver mudanças radicais nas principais características do sistema de solução de controvérsias da OMC. Este sistema seguirá constituindo a materialização de uma “barganha faustiana”,121 em que os atores mais poderosos concordam em jogar de acordo com as regras multilaterais, desde que os demais atores concordem em entregar sua alma ao livre comércio. Por isso, há que se fazer uma avaliação realista sobre a crença às vezes exagerada no caráter legalista do sistema. Em primeiro lugar, porque tornar as regras procedimentais mais e mais complexas pode ter efeito negativo para os próprios países em desenvolvimento, uma vez que o mérito das controvérsias poderá não ser examinado em razão de tecnicismos procedimentais. Em segundo lugar, porque num mundo com atores dotados de diferente poder econômico, muitas vezes as negociações poderão trazer um resultado mais positivo, e mais célere, para o Membro reclamante, do que um longo e desgastante litígio, cuja vitória não assegurará necessariamente que a medida questionada seja integralmente revogada. Conforme demonstra Busch, uma parte considerável das controvérsias perante a OMC ainda vem sendo resolvida por meio de negociações entre os Membros, e estas soluções por vezes se mostram as mais eficazes para atender a maior parte das reclamações apresentadas.122 121. A expressão é de Sutherland, 2003, p. 6. 122. Busch & Heinhardt, 2002, p. 20.

60

Ao final, a avaliação do sistema de solução de controvérsias da OMC permite concluir que este sistema trouxe um maior grau de previsibilidade e estabilidade das relações econômicas internacionais. Prova disto é que o OSC é hoje o mecanismo internacional que mais recebe reclamações, chegando a 301 casos entre 1995 e setembro de 2003. E isto mesmo reconhecendo-se que o sistema não é perfeitamente justo - qual tribunal o é? - e que as regras de discriminação positiva em favor dos países em desenvolvimento são, acima de tudo, retóricas. De qualquer forma, e quaisquer que sejam as mudanças aprovadas, elas certamente não transformarão a alma desta barganha faustiana, que busca tornar o mundo mais previsível, acreditando que a promoção do comércio possa ser uma alavanca para o crescimento econômico.

61

8. REFERÊNCIAS

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63

Lista de casos citados da OMC (ordem alfabética): Referência

Título original em inglês

Cód. OMC

Data Relatório

Argentina – Frango

Argentina – Definitive Anti-dumping duties on poultry from Brazil

Brasil– Leite emPó

Brazil – Imposition of SCM/179 provisional and definite countervailing duties on milk powder and certain types of milk from the European Communities

Canadá – Aeronaves

Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft

CE – Asbestos

European Communities – WT/DS135/ Measures Affecting Asbestos AB/R and Asbestos – Containing Products

12 mar. 01

CE – Bananas III

European Communities – Regime for the Importation, Sale and Distribution of Bananas

WT/DS27/ AB/R

25 set. 97

CE – Hormônios

EC Measures Concerning Meat and Meat Products (Hormones)

WT/DS26/ AB/R WT/DS48/ AB/R

16 jan. 98

CE – Sardinhas

European Communities – Trade Description of Sardines

WT/DS231/ AB/R

26 set. 02

EUA – Bismuto

United States – Imposition on Countervailing Duties on Certain Hot-Rolled Lead and Bismuth Carbon Steel Products Originating in the United Kingdom

WT/DS138/ AB/R

10 mai. 00

EUA – Camarões

United States – Import WT/DS58/ Prohibition of Certain AB/RW Shrimp and Shrimp Products

64

WT/DS241/R

22 abr. 03

27 jan. 94

WT/DS70/AB/R 02 ago. 99

22 out. 01

Referência

Título original em inglês

Cód. OMC

Data Relatório

EUA – Camisas e Blusas

United States – Measures Affecting Imports of Woven Wool Shirts and Blouses from India

WT/DS33/ AB/R

25 abr. 97

EUA – Carne de Carneiro

Unite States – Safeguard Measures on Imports of Fresh, Chilled or Frozen Lamb Meat from New Zealand and Australia

WT/DS177/ AB/R

01 mai. 01

EUA – Golfinhos

United States – Restrictions on Imports of Tuna

DS/29/R

16 jun. 94

Guatemala – Cimentos

Guatemala - Anti-Dumping Investigation Regarding Portland Cement from Mexico

WT/DS60/ AB/R

02 nov. 98

Índia – Restrições Quantitativas

India – Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products

WT/DS90/ AB/R

23 ago. 99

Japão – Filmes Fotográficos

Japan - Measures Affecting Consumer Photographic Film and Paper

WT/DS44/R

31 mar. 98

65

Tratados internacionais e normas internacionais e estrangeiras ÁREA DE LIVRE COMÉRCIO DAS AMÉRICAS (ALCA). Segunda Minuta do Acordo da Área de Livre Comércio das Américas. Disponível em: http:// www.ftaa-alca.org. Acesso em: 14 ago. 2003. COMUNIDADES EUROPÉIAS. Regulamento nº. 3.286/1994. Disponível em: http://europa.eu.int/eur-lex/en/index.html. Acesso em: 14 ago. 2003. MERCOSUL. Protocolo de Olivos. 18 de fevereiro 2002. Disponível em: http:// www.mercosul.gov.br/. Acesso em: 14 ago. 2003. NORTH AMERICA FREE TRADE AGREEMENT (NAFTA). 01 jan. 1994. Disponível em: http://www.worldtradelaw.net/nafta/. Acesso em: 14 ago. 2003. UNITED STATES OF AMERICA - CHILE FREE TRADE AGREEMENT. Disponível em: http://www.ustr.gov/new/fta/Chile/final/. Acesso em: 14 ago. 2003. UNITED STATES OF AMERICA. US Omnibus Trade and Competitiveness Act. 1988.

Decisões internacionais MERCOSUL. Tribunal Ad Hoc do Mercosul. Aplicação de Medidas Antidumping contra a exportação de frangos inteiros, provenientes do Brasil, Resolução Nº 574/2000 do Ministério de Economia da República Argentina. 21 de maio de 2001. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DAS COMUNIDADES EUROPÉIAS. Portugal versus Comissão [1999] ECR I-8395. Disponível em: http://europa.eu.int/ eur-lex/en/index.html. Acesso em: 14 ago. 2003.

Sites institucionais Market Acess Database. Disponível em: http://mkaccdb.eu.int/. Acesso em: 14 ago. 2003. OMC. Plurilaterals: of minority interests. Disponível em: http://www.wto.org/ english/thewto_e/whatis_e/tif_e/agrm9_e.htm#govt. Acesso em: 14 ago. 2003. 66

OMC. Members and observers. Disponível em: http://www.wto.org/english/ thewto_e/whatis_e/tif_e/org6_e.htm. Acesso em: 14 ago. 2003. The Advisory Law Centre on WTO Law. Disponível em: http://www.acwl.ch/. Acesso em: 14 ago. 2003.

67

SIGLAS E ABREVIATURAS Acordo Antidumping

AA

Acordo de Têxteis e Vestuário

ATV

Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços

GATS

Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – 1947

GATT-1947

Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio

TRIPS

Advisory Law Centre on WTO Law

ACWL

Área de Livre Comércio das Américas

ALCA

Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial)

BIRD

Comunidades Européias

CE

Corte Interamericana de Direitos Humanos

CIDH

Corte Internacional de Justiça

CIJ

Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias

ESC

Fundo Monetário Internacional

FMI

Nação mais favorecida

NMF

North America Free Trade Agreement

NAFTA

Organização das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento

UNCTAD

Organização Internacional do Comércio

OIC

Organização Mundial do Comércio

OMC

Órgão de Apelação

OAp

Órgão de Solução de Controvérsias

OSC

Tratamento nacional

TN

Tribunal de Justiça das Comunidades Européias

TJCE

União Européia

UE

68

Capítulo 2 O Sistema de Solução de Controvérsias na União Européia

PATRICIA LUÍZA KEGEL

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo analisar o sistema de solução de controvérsias desenvolvido na Comunidade Européia (CE) e sua inter-relação com outros sistemas de solução de litígios provenientes de acordos multilaterais ou bilaterais. Neste caso, o que se procura é verificar o modo como a CE relaciona-se internacionalmente, em especial com outros atores comerciais, tendo por base as características específicas que lhe são próprias. Para tanto, a primeira parte deste artigo será dedicada a explicar as especificidades da estrutura jurídica e institucional comunitária, as quais, distintas de qualquer outro modelo político-jurídico desenvolvido até hoje, condicionam de modo decisivo a forma como a Comunidade interage com seus parceiros comerciais. As segunda e terceira partes exporão o sistema jurisdicional e recursal comunitário, em especial a importância da atuação do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias na interpretação dos Tratados Constitutivos e construção da identidade comunitária. A quarta parte tem por objeto o procedimento de negociação, celebração e controle jurisdicional dos acordos internacionais aos quais a 69

Comunidade pertence. E, por fim, serão discutidas as formas como o sistema de solução de controvérsias comunitário, através da jurisprudência de seu Tribunal, co-determina a atuação internacional da Comunidade Européia.

2. OS TRAÇOS DISTINTIVOS DA UNIÃO EUROPÉIA E SUA ESPECIFICIDADE

2.1 A supranacionalidade É fundamental observar, inicialmente, que a supranacionalidade condiciona a particulariedade do sistema jurisdicional comunitário, e em particular determina a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE) no sentido de ampliar e fortalecer as competências comunitárias e as instituições responsáveis pela sua implementação. Este “ativismo jurisdicional” que permitiu ao Tribunal ser considerado um dos motores da integração européia, manifestou-se também na sua postura frente às relações externas da Comunidade, em especial perante outras Organizações Internacionais. Não existe uma definição jurídica unívoca de supranacionalidade1, sendo este conceito normalmente utilizado nas Comunidades Européias para designar um conjunto de características que pela sua especificidade e intensidade, distinguem as relações jurídicas comunitárias das relações existentes nas Organizações Internacionais tradicionais. Deste modo, nossa primeira aproxima1.

Sobre as várias concepções possíveis do termo supranacionalidade, ver IPSEN, Hans-Peter. Europäisches Gemeinschaftsrecht. Tübingen: Mohr Siebeck Verlag, 1972, p. 59 e ss. Em português, a brilhante obra do professor QUADROS, Fausto de. Direito das Comunidades Européias e Direito Internacional Público. Lisboa: Almedina, 1991, p. 129 e ss. 70

ção ao conceito de supranacionalidade, consiste em designá-lo como uma qualidade exclusiva das relações intercomunitárias, dado que as demais Organizações Internacionais são de natureza intergovernamental, sendo regidas pelos princípios da igualdade soberana dos Estados e não ingerência nos assuntos internos dos Estados membros2. Neste sentido, apesar de todas as Organizações Internacionais possuírem como objetivo principal a cooperação internacional, as formas como esta cooperação se efetua podem variar de um caso para outro. Dependendo dos níveis de intensidade e aprofundamento da cooperação, estabelece-se uma distinção entre Organizações de mera Cooperação Econômica e Organizações de Integração, cujo maior exemplo são as Comunidades Européias. As Organizações Internacionais de Cooperação Econômica possuem a finalidade de promover as relações econômicas ou financeiras internacionais, com um grau maior ou menor de aprofundamento, dependendo de seu objetivo final. Este pode ser variado, incluindo desde a integração comercial e aduaneira entre os Estados membros, o fortalecimento do sistema econômico ou financeiro internacional, o estímulo à produção de determinados produtos, até as Organizações que se dedicam ao desenvolvimento econômico em geral e à redução das assimetrias entre os Estados3. 2.

3.

De acordo com o disposto no art. 2, item 7. da Carta da Nações Unidas, art. 2, item 7: “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; (...)”. Sobre as Organizações Internacionais de Cooperação Econômica, ver MARTINS, Margarida Salema d‘Oliveira/MARTINS, Afonso d’Oliveira. Direito das Organizações Internacionais. Volume I, 2. Ed. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1996, p. 70 e ss.; SEIDL-HOHENVELDERN, Ignaz/LOIBL, Gerhard. Das Recht der Internationalen Organisationen einschliesslich der Supranationalen Gemeinschaften. Carl Heymanns Verlag, Berlin, Bonn, 1996, p. 107 e ss.; DIEZ DE VELASCO, Manuel. Las Organizaciones Internacionales. Novena Edición. Madrid: Tecnos, 1997, p. 99 e ss. 71

No amplo conjunto que compõe as Organizações Internacionais de Cooperação Econômica, incluem-se entre outros: a Associação Européia de Livre Comércio (EFTA), o Mercado Comum do Sul (Mercosul), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Todas estas Organizações Internacionais procuram a cooperação entre seus membros das mais variadas formas, o que afeta sua estrutura e composição de seus órgãos, âmbito de competências e sistema decisório. Sua característica comum é a utilização de procedimentos intergovernamentais, os quais estão estruturados em torno a três princípios básicos: a)

b)

c)

quanto à composição dos órgãos decisórios: a adoção de decisões da organização é efetuada por órgãos compostos por representantes dos governos, que são designados por estes e sujeitos às suas instruções, quanto ao sistema decisório: utiliza-se a regra de unanimidade quando as decisões possuam efeito vinculante, o que não impede que os Estados que tenham votado contra determinada decisão não sejam por ela vinculados, quanto à eficácia das decisões: é mediata, ou seja, as decisões devem ser executadas pelos próprios Estados membros para que possam produzir efeitos na sua ordem interna.

É justamente em relação a estas três ordens de princípios estruturantes da intergovernamentalidade das Organizações Internacionais tradicionais, que a supranacionalidade comunitária destaca a especificidade do processo de integração europeu e em particular de sua estrutura normativa e jurisdicional. A supranacionalidade é a expressão deste tipo particularmente intenso de cooperação internacional. Em comparação com os procedimentos intergovernamentais utilizados pelas Organizações Internacionais de Cooperação Econômica, a supranacionalidade caracteriza-se pelas seguintes diferenças: 72

a)

b)

c)

os integrantes dos órgãos decisórios não são representantes dos governos de seus Estados de Origem e nem estão subordinados às suas instruções. Ao contrário, atuam em nome e no interesse da Comunidade Européia, usufruindo de total independência no exercício de suas funções. no sistema decisório utilizado, admite-se que determinadas decisões (a maior parte), sejam tomadas pela maioria dos membros, sem necessidade de unanimidade. Isto significa que mesmo os Estados que votaram contra alguma decisão sejam vinculados por ela. a eficácia das decisões dos órgãos comunitários é imediata. Ou seja, não necessitam ser internalizadas por qualquer ato interno dos Estados para que produzam efeitos em sua ordem jurídica interna. Neste sentido, o efeito imediato das normas comunitárias traduz a deliberação dos Estados membros de se submeterem a uma autoridade exterior.

Desta forma, a característica peculiar da Comunidade Européia é realizar a cooperação internacional, “...mediante a utilização de processos integradores suscetíveis de concretizarem no grupo de seus Membros um nível de coesão interna de expressão comunitária (e já não meramente associativa)”4. Diante da dificuldade existente em fornecer uma definição unânime, optamos por enumerar certos critérios normativos existentes no Tratado de Roma e utilizados pela doutrina, os quais possibilitarão delimitar o sentido e extensão da supranacionalidade. Para SEIDL-HOHENVELDERN/LOIBL5, a concepção de supranacionalidade já aparece embutida na “Declaração Schumann”, ainda que o termo tenha sido expressamente abandonado nos textos posteriores. A partir desta concepção inicial, 4. 5.

MARTINS e MARTINS, op.cit., p. 81. SEIDL-HOHENVELDERN/LOIBL, op.cit., p. 7 e ss. Segundo estes autores, as características que distinguem a CE das organizações internacionais tradicionais, por implicarem uma substancial cessão/limitação da soberania dos Estados membros, já estão plasmadas nos Tratados Constitutivos. 73

determinados princípios da Comunidade Européia cristalizaramse nos Tratados Constitutivos, reforçando seu caráter supranacional. Tais princípios podem ser descritos como sendo direitos da CE: a)

b)

c)

d)

e)

a CE pode editar atos normativos que são diretamente vinculantes para os Estados membros e para os indivíduos, e mesmo sendo contrários à vontade dos Estados, obriga-os a seguir determinado comportamento. É o caso dos regulamentos, diretivas e decisões (art. 249 TCE). a CE dispõe de um órgão judiciário próprio, o TJCE, com jurisdição obrigatória, e cujas sentenças vinculam seus destinatários (arts. 244 TCE e 256 TCE). o órgão superior, responsável pela implementação e defesa dos interesses da Comunidade (ou seja, a Comissão), é independente das orientações dos Estados membros (arts. 211 e 213 TCE). decisões do órgão responsável pela representação dos interesses individuais dos Estados membros (ou seja, o Conselho), podem ser tomadas por maioria, e mesmo assim vinculam os Estados perdedores (art. 205 TCE) 6. a CE dispõe de outras fontes de financiamento, além das contribuições dos Estados membros (arts. 268 e 269 TCE).7

Este conjunto de características traça os contornos de um tipo historicamente inédito de organização internacional, que reúne em si competências legislativa e jurisdicional próprias, independência em relação aos seus membros, sistema decisório pelo princípio majoritário e autonomia financeira. 6.

7.

Observe-se que a prática decisória instituída pelo “Acordo de Luxemburgo”, que na prática significou o retorno à intergovernamentalidade, foi abandonada por ocasião do “Acto Único Europeu”. Além dos artigos do TCE sobre o financiamento da CE, o sistema de recursos próprios da Comunidade é regulado atualmente pela Decisão 94/728 do Conselho, de 31 de outubro de 1994. São eles os direitos alfandegários provenientes da tarifa externa comum, o resultado do excedente agrícola, uma porcentagem sobre as alíquotas do Imposto sobre Valor Agregado – IVA – e uma porcentagem do Produto Nacional Bruto de todos os Estados membros.

74

Contudo, estes são apenas os elementos de caráter institucional, inseridos nos Tratados Constitutivos das Comunidades Européias. Existem outros, de conteúdo mais político, e que não se encontram de forma expressa nestes Tratados, tendo sido desenvolvidos de forma eminentemente pretoriana. Em relação aos elementos jurisprudenciais, é nas sentenças - “Van Gend en Loos” de 1963, e “Costa/ ENEL” de 1964 -, que situa-se o momento no qual o TJCE inicia o desenvolvimento de determinadas características próprias do Direito Comunitário, e que contribuirão para fixar a natureza supranacional8 das Comunidades Européias e de seu sistema jurídico. São eles: a)

b)

8.

9.

uma estrutura institucional que permite que a formação da vontade (e conseqüente processo decisório) dentro da CE, seja determinada não apenas pelos interesses particulares dos Estados membros, mas principalmente pelos interesses comunitários, traduzidos nos objetivos da CE. a transferência de competências nacionais aos órgãos comunitários, que ocorreu em uma extensão inédita em outras organizações internacionais, estendendo-se inclusive à domínios que tradicionalmente são reservados aos Estados. Na ausência de um catálogo expresso de repartição de competências entre a CE e os Estados membros, a doutrina dos “poderes implícitos”- implied powers9 – possibilitou a expansão das competências comunitárias para bem além do inicialmente previsto. As sentenças citadas são “Van Gend & Loos” de 1963, e “Costa/ENEL” de 1964, às quais faremos referência quando analisarmos as relações entre Direito Comunitário e Direitos Nacionais. DUARTE, Maria Luíza. A Teoria dos Poderes Implícitos e a delimitação de competências entre a União Européia e os Estados-Membros. Lisboa: Lex, 1997, p. 55, define a doutrina dos “poderes implícitos” da seguinte forma: “Os poderes implícitos designam aquelas competências que, não estando enunciadas de forma directa na norma tipificadora da competência, são inerentes ou necessárias à realização eficaz dos fins da entidade jurídica ou das respectivas competências expressas”. Com origem no Direito Constitucional norte-americano, esta doutrina vem sendo utilizada pela jurisprudência do TJCE para justificar a expansão das competências comunitárias em detrimento das nacionais. 75

c)

d)

e)

a implantação de uma ordem jurídica própria, independente dos sistemas jurídicos nacionais. Ressalte-se que as características de “autonomia e independência” do Direito Comunitário em relação aos Direitos nacionais, não se encontram expressas nos Tratados, resultando principalmente da interpretação do TJCE a partir dos já citados casos “Van Gend en Loos” e “Costa/ENEL”. a aplicabilidade imediata do Direito Comunitário, através da qual as disposições comunitárias entram em vigor em todos os Estados membros no mesmo período de tempo, significando a adoção da postura monista nas relações Direito Comunitário e Direitos nacionais. a primazia do Direito Comunitário, através da qual se possibilita que este não seja revogado ou alterado por lei nacional posterior, e em caso de antinomia entre norma comunitária e norma nacional, a comunitária possui a precedência, mesmo em se tratando de norma nacional de status constitucional10.

Desta forma, foi através destes elementos, desenvolvidos em grande parte de forma pretoriana, que a CE pôde consolidarse como uma organização autônoma, com direitos de soberania próprios e uma ordem jurídica independente, à qual estão submetidos os Estados membros e que determina o limite de suas competências nacionais. Por outro lado, ao delimitar a supranacionalidade quanto aos conceitos tradicionalmente utilizados pelo Direito Internacional Público para qualificar as relações dos Estados entre si e destes com as Organizações Internacionais, QUADROS11 aponta determinados componentes específicos em sua definição, segundo a 10. De acordo com o princípio “Europarecht bricht Verfassungsrecht” – Direito europeu “quebra” Direito Constitucional. Ver BLECKMANN, Europarecht, op.cit., p. 210. 11. QUADROS, op.cit., p. 158 e ss., em especial p. 160. 76

qual, “...a supranacionalidade determinará, (...) o nascimento de um poder político superior aos Estados, resultante da transferência definitiva por estes da esfera dos seus poderes soberanos relativos aos domínios abrangidos pela entidade supranacional, e em que designadamente o poder legislativo (como poder de criação de Direito novo) é exercido em função do interesse comum e não do interesse dos Estados”12. Na análise isolada dos componentes desta definição, temos que inicialmente, o sistema jurídico e institucional supranacional é hierarquicamente superior aos sistemas nacionais. Tal superioridade decorre, fundamentalmente, da intenção dos fundadores da primeira comunidade européia, expressa na “Declaração Schumann” e no art.9 do Tratado CECA. A exegese posteriormente efetuada pela jurisprudência13 reitera e dá continuidade ao entendimento de que a supranacionalidade caracteriza e necessariamente implica na subordinação dos Estados a um poder político que lhes é externo e superior, substituindo, portanto, o tradicional princípio da coordenação entre Estados soberanos, utilizado em Direito Internacional. Já o segundo componente da definição de supranacionalidade em QUADROS remete à transferência de poderes soberanos a favor da CE, considerada como definitiva na medida em que os Estados membros renunciaram ao exercício destes poderes e não dispõem de meios para recuperá-los de forma discricionária. Sua expressão jurídica é o primado do Direito Comunitário sobre os Direitos nacionais, sua aplicabilidade direta na ordem jurídica interna dos Estados membros, a integração da ordem jurídica comunitária nas ordens jurídicas nacionais – inclusive pelo mecanismo do efeito direto – o princípio da uniformidade de interpretação e aplicação do Direito Comunitário em todo o espaço 12. QUADROS, op.cit., p. 157. 13. O entendimento do TJCE quanto à superioridade hierárquica do Direito Comunitário em relação aos Direito nacionais, começa exatamente com as já referidas sentenças “Van Gend en Loos” e “Costa/ENEL”, sendo inúmeras vezes reiterado. 77

jurídico formado pelos Estados membros e a regra da maioria como sistema de votação14. Em terceiro lugar, encontra-se a autonomia do poder supranacional em relação ao poder político dos Estados membros, expressa tanto na impossibilidade dos Estados extinguirem unilateralmente o poder supranacional, quanto o fato de que este poder supranacional existe por si, não se confundindo com o poder político dos Estados, e nem ficando na sua exclusiva disponibilidade15. O quarto e último elemento, reside na independência do poder supranacional em relação aos poderes nacionais. Este elemento complementa o anterior (autonomia do poder supranacional), mas não se confunde com ele. A independência se manifesta na formação e manifestação da vontade comunitária (entendida aqui como capacidade de criar Direito novo), predominantemente entregue a órgãos próprios, que perseguem objetivos e interesses comunitários, e não os interesses nacionais dos Estados membros, isolados ou em conjunto. De um modo geral, portanto, podemos qualificar a supranacionalidade como existindo apenas no âmbito da Comunidade Européia, e designando um novo tipo de organização internacional, em que os Estados membros não se encontram mais em situação de absoluta igualdade, é permitida a ingerência em seus assuntos internos, a relação entre a organização e os Estados deixa de ser de coordenação e passa a ser de subordinação destes àquela, implicando assim numa transferência substancial de competências legislativas, executivas e judiciárias por parte dos Estados em favor da organização. O resultado é uma organização internacional em que seus Estados membros concordam com uma redução significativa de sua soberania. A supranacionalidade portanto, além de ser um conceito jurídico utilizado, porém não unanimamente definido, indica também uma situação política sui generis, em que Estados soberanos aceitam a imposição de deci14. QUADROS, op.cit., p. 162. 15. Id.ibid., p. 163. 78

sões tomadas pela organização mesmo quando estas não correspondam aos seus interesses particulares16.

2.2 A primazia do Direito Comunitário e a cessão de parcelas de soberania dos Estados membros em favor da Comunidade Européia A questão hierárquica sempre foi fundamental para a Comunidade Européia, pois tanto a vigência quanto a aplicação uniformes do Direito Comunitário, tornaram-se viáveis apenas pela sua primazia sobre os Direitos nacionais. Nas palavras de Pescatore, a primazia constitui, “un presupuesto lógico del sistema jurídico comunitario, su condición existencial y constituye por ello la condición de posibilidad de un derecho comun a los Estados miembros, de un derecho que no varíe en la ordenación y ejercício de las competencias atribuidas a las Comunidades dependiendo de cada Estado miembro y de sus propias normas internas”17. A primazia portanto, implica na prevalência absoluta do Direito Comunitário sobre os Direitos Nacionais em caso de conflito de normas de ambos os ordenamentos jurídicos. Desta forma, o problema sobre o tipo de relação/coordenação entre o Direito Comunitário e os Direitos nacionais, foi desde o início das Comunidades, o mais intensamente debatido. A ausência de uma regra de colisão clara para a resolução de antinomias entre ambos os sistemas jurídicos, tanto nos Tratados constitutivos, quanto na maior parte das Constituições nacionais, e sua importância fundamental nas relações jurídicas intracomunitárias, tornaram esta questão emblemática do caráter inédito do Direito Comunitário. 16. Sobre a dimensão mais propriamente política do que jurídica do termo “supranacionalidade”, ver TAYLOR, Paul. The Limits of European Integration. New York: Columbia University Press, 1983, p. 190 e ss. 17. PESCATORE, Pierre. Derecho de la Integración: Nuevo Fenómeno en las Relaciones Internacionales de acuerdo con la Experiencia de Las Comunidades Europeas. Trad. Inés Carmen Mataresse. Buenos Aires: INTAL, 1973, p. 79. 79

Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, reiterada através de inúmeras decisões sempre no mesmo sentido, o primado do Direito Comunitário sobre os Direitos nacionais ocorre pela transferência, por parte dos Estados membros, de certas parcelas de sua soberania em favor da Comunidade Européia. O TJCE fundamenta a “originalidade” do Tratado de Roma, constitutivo da Comunidade Econômica Européia, em relação aos demais Tratados Internacionais afirmando que18: “ ....a transferência operada pelos Estados de seu ordenamento jurídico interno em benefício do ordenamento jurídico comunitário, dos direitos e obrigações correspondentes às disposições do Tratado, implica, portanto, uma limitação definitiva de seus direitos soberanos contra a qual não pode prevalecer um ato unilateral posterior incompatível com a noção de Comunidade”.19 18. Sentença do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias de 15 de julho de 1964. Caso “Costa/ENEL”. Os fatos: O Giudice Conciliatore de Milão deveria resolver um assunto que opunha o Sr. Flaminio Costa (advogado) à “Ente Nazionale della Energia Elletrica” (ENEL). O Sr. Costa se negava a aceitar o pagamento de uma fatura de 1925 liras à ENEL pelo fornecimento de energia elétrica por entender que a lei italiana de nacionalização de energia elétrica, de 6 de dezembro de 1962, violava uma série de artigos do TCEE. Dita violação também acarretaria a inconstitucio-nalidade da lei, por infringir o artigo 11 da Constituição italiana , que consagra a limitação de soberania da Itália por aderir ao TCEE. A presumida inconstitucionalidade da lei motivou a apresentação pelo juiz de Milão da demanda em questão perante o Tribunal Constitucional Italiano, o qual resolveu pela negativa da inconstitucionalidade, por considerar em sua sentença (7/3/1964) que a lei que vinculou a Itália aos Tratados de 1957 era uma lei ordinária e que, portanto, poderia ser modificada por oura lei posterior, como a de 1962. Dois meses antes desta decisão, o próprio Giudice suscitou uma questão prejudicial perante o TJCE. Ainda que o Tribunal Constitucional italiano houvesse ignorado a obrigação de utilizar a via prejudicial, a atuação do juiz milanês permitiu ao TJCE pronunciar-se quanto ao assunto, e proporcionar-lhe a base definitiva para a sua decisão, prolatada em 4 de maio de 1966 e que favoreceu as aspirações do demandante, Sr. Costa. 19. Sentença “Costa/ENEL”.

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Segundo CAMPOS20, esta sentença contém toda uma teoria das relações entre Direito Comunitário e Direito interno, sendo que as justificativas que conduzem à primazia das normas comunitárias sobre as nacionais, apesar de esclarecidas e desenvolvidas em sentenças posteriores, permaneceram idênticas na sua essência. Esta primazia do Direito Comunitário apresenta-se, consoante jurisprudência do TJCE, em três níveis distintos21: a)

não apenas o Direito Comunitário originário, mas também o derivado possui a prevalência perante o Direito nacional. “...o direito nascido do Tratado, não poderia, portanto, em razão de sua natureza específica original, deixar-se opor judicialmente um texto interno de qualquer classe que seja”22.

b)

em relação a leis nacionais anteriores à norma comunitária, esta detém a primazia e revoga aquelas. Mas também leis nacionais posteriores à norma comunitária já editada não são válidas23. Deste modo, a regra “lex posterior derogat legi anterior” não se aplica quando se trata de uma antinomia envolvendo normas nacionais e comunitárias, ou seja, “... o efeito dos regulamentos se opõe à aplicação de qualquer

20. CAMPOS, João Mota de. Direito Comunitário. Vol.1, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 290. 21. A respeito ver ARNDT, Hans-Wolfgang. Europarecht. Heidelberg: C.F.Müller Verlag, 1992, p. 215 e ss., e SANTA MARIA, Paz Andrés Saénz de/VEJA, Javier Gonzalez/PÉREZ, Bernardo Fernandez. Introdución al Derecho de la Unión Europea. Madrid: Eurolex, 1996, p. 328 e ss. 22. Sentença TJCE, caso “Costa/ENEL”. 23. BLECKMANN, Albert. Europarecht. Das Recht der Europäischen Gemeinschaft. 5., neubearbeitete Auflage. Köln-Berlin: Carl Heymanns Verlag, 1995, p. 301. Na p. 312, cita decisão 170/1984 da Corte Constitucional Italiana aceitando a primazia da norma comunitária mesmo em relação a leis nacionais editadas posteriormente. Estas, portanto, tornam-se inaplicáveis quando houver regra comunitária anterior.

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medida legislativa, inclusive posterior, incompatível com suas disposições”24. Observe-se que a prevalência do Direito Comunitário ocorre também em relação a cláusulas contratuais privadas, se destas decorre disposição contrária a normas comunitárias25.

2.2.1 O terceiro nível: a primazia das normas comunitárias sobre as constitucionais nacionais O Tribunal Europeu, apesar de já possuir uma posição estruturada26a respeito, inicia uma jurisprudência explícita e afirmativa da prevalência da norma comunitária sobre a nacional, mesmo que de status constitucional. Em outros termos, o Direito Comunitário não necessita coincidir com as Constituições nacionais e nem pode ser avaliado por elas27. Na Sentença Internationale 24. Sentença TJCE de 14 de dezembro de 1971. Caso “Politi/Itália”. 25. A partir da sentença de 8 de abril de 1976, caso “Defrenne/Sabena”, o TJCE sustentou a aplicabilidade imediata do então art. 119 TCEE, que continha disposições sobre a igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos. Mesmo admitindo que a aplicabilidade imediata apenas poderia ser invocada no futuro, em jurisprudência posterior, o TJCE afirmou que o art. 119 prevalece sobre qualquer disposição legislativa ou administrativa nacional contrária, inclusive cláusulas inseridas em convenções coletivas de trabalho, determinando, portanto, sua inaplicabilidade. Ver Sentença TJCE de 7 de fevereiro de 1991, caso “Nimz”. 26. Sentença do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias de 15 de julho de 1960, onde determina-se que “... o direito comunitário não pode ser invalidado pelo direito interno, ainda que de nível constitucional, em vigor num ou noutro Estado membro”. Caso “Comptoirs de Vente du Charbon da la Ruhr”. Apesar de já afirmar a primazia do Direito Comunitário frente ao Direito Constitucional interno dos Estados, o TJCE apenas vai desenvolver explicitamente esta questão a partir de duas outras sentenças. 27. Ver HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20., ergänzte Auflage. Heidelberg: Müller Verlag, 1997, p. 40 e 41. 82

Handelsgesellschaft o TJCE dirimiu quaisquer dúvidas a respeito. Neste caso em particular, havia certa resistência por parte da jurisprudência alemã28 em aceitar a primazia de normas de Direito Comunitário derivado, já que estas não haviam sido elaboradas pelo órgão competente, assim determinado através da teoria clássica da repartição de competências entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Contudo, é a Sentença Simmenthal que reafirma o primado do Direito Comunitário, em termos tais, que não apenas elimina qualquer dúvida a seu respeito, mas que também vincula completamente o juiz nacional à este princípio. “... de acordo com o princípio da primazia do Direito Comunitário, a relação entre as normas do Tratado e as medidas diretamente aplicáveis das suas instituições, por um lado, e o Direito nacional dos Estados membros, por outro, é tal que essas normas e medidas não só, ao entrarem em vigor, tornam automaticamente inaplicáveis todas as normas conflitantes de Direito interno, mas também - enquanto parte integrante, e com posição hierárquica superior em relação à ordem jurídica aplicável no território de cada Estado membro - invalidam quaisquer medidas a adoptar pelas legislações nacionais, se estas forem incompatíveis com as provisões comunitárias. Um tribunal nacional que seja chamado, dentro dos limites da sua jurisdição, a aplicar normas de Direito Comunitário, tem o dever de garantir a eficácia total de tais normas, se necessário recusando, por sua própria iniciativa, a aplicação de quaisquer normas conflitantes do sistema jurídico interno, mesmo que posteriores, não sendo necessário que solicite ou que aguarde o afastamento prévio de tais normas através de legislação ou outros meios constitucionais internos” 29. 28. Sobre a posição da jurisprudência e doutrina alemãs em relação aos diversos aspectos que envolvem as relações entre Direito Comunitário e Direitos nacionais, ver o capítulo específico sobre o assunto. 29. Sentença do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias de 9 de março de 1978, Caso “Administração de Finanças Italiana / Simmenthal S.p.A.” - “Simmenthal II”. Negrito nosso.

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Os desdobramentos que a aceitação da primazia do Direito Comunitário implica, podem ser observados nos seguintes aspectos. Inicialmente instaura-se a dúvida, sobre se a primazia acarreta a inaplicabilidade ou a invalidez da norma nacional contrária à comunitária. Ou seja, em caso de conflito, permanece em aberto a questão sobre se a primazia da norma comunitária possui efeito derrogatório e conseqüentemente torna a norma nacional contrária inválida, ou se simplesmente esta deixa de ser aplicada30 ao caso em questão. Na sentença Simmenthal, o TJCE referiu-se a critérios de validade como elemento articulador entre os ordenamentos nacionais e o comunitário, ao afirmar que as normas comunitárias, “...invalidam quaisquer medidas a adoptar pelas legislações nacionais, se estas forem incompatíveis com as provisões comunitárias”31. Contudo, a inaplicação por parte do juiz nacional da norma interna contrária32 não dispensa os Estados membros da obrigação de eliminar de seu ordenamento jurídico a disposição incompatível com o Direito comunitário, conforme art.5 do TCE. Também a este respeito a jurisprudência do TJCE33. A segunda conseqüência da primazia implica na vinculação de todos os órgãos do Estado (principalmente os órgãos jurisdicionais), à obrigação de aplicar normas comunitárias e não nacionais em caso de conflito. Contudo, esta inaplicabilidade das normas nacionais contrárias não é inevitável, se estas puderem ser interpretadas conforme o Direito Comunitário34. Por fim, a primazia implica na obrigação dos 30. SANTA MARIA, Paz Andrés Saénz de/VEJA, Javier Gonzalez/PÉREZ, Bernardo Fernandez . Introdución al Derecho de la Unión Europea. Madrid: Eurolex, 1996, p. 327. 31. Sentença TJCE de 9 de março de 1978, Caso “Administração de Finanças Italiana / Simmenthal S.p.A.” - “Simmenthal II”. 32. ARNDT, op.cit., p. 168. 33. Sentença TJCE de 6 de maio de 1980, Caso “Comissão c/ Bélgica”. 34. Sentença TJCE de 10 de abril de 1984 - Caso “Von Colson and Kamann”, e Sentença TJCE de 4 de fevereiro de 1988 - Caso “Murphy contra An Board Telecom Eireann”. 84

Estados membros em indenizar os danos causados pelo não cumprimento de uma norma comunitária. Estes danos são advindos da incapacidade de invocar a norma comunitária não cumprida, para resguardar os direitos que dela seriam decorrentes35. Podemos igualmente considerar que Direito comunitário e Direito nacional interpenetram-se mutuamente, até tornarem-se dependentes um do outro. Este tipo de relacionamento deu origem ao fenômeno da “engrenagem”36 jurídica entre ambos os sistemas. Particularmente visível através da necessidade do Direito Comunitário em ser executado/implementado pelos Direitos nacionais, e através dos limites que o Direito comunitário coloca à capacidade legislativa nacional, quando tratar-se de matéria de competência comunitária.

2.3 Características da norma comunitária

2.3.1 Aplicabilidade imediata e a não internalização das normas comunitárias Ainda que freqüentemente identificadas, a aplicabilidade direta (termo empregado pelo art. 249 do TCE como característica dos Regulamentos) diferencia-se do efeito direto das normas comunitárias. A aplicabilidade direta ou imediata (como a denominaremos daqui em diante) da norma comunitária, na sua forma de regulamento, ocorre pela sua incorporação automática ao Direito Interno dos Estados membros. Ou seja, é a aplicação do 35. A responsabilidade objetiva dos Estados membros da CE pela não implementação ou implementação incompleta das diretivas comunitárias foi provocada pela manifestação do TJCE no sentido de obrigar os Estados membros à indenização pelos danos causados. Ver as sentenças TJCE de 19 de novembro de 1991, caso “Francovich” e de 8 de outubro de 1996, caso “Dillenkoffer”. 36. STREINZ, Rudolf. Europarecht. 4., Auflage. Heidelberg: C.F. Müller Verlag, 1999, p. 54. Ver também BLECKMANN, Europarecht, op.cit., p. 299.

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regulamento comunitário diretamente pelos Poderes Instituídos dos Estados membros, não podendo estes invocar razões de Direito Constitucional para abster-se de fazê-lo e nem exigir mecanismos diferenciados de internalização da norma. Ao impor-se ao Direito estatal, inclusive constitucional, por força e exigência de sua natureza, deve ser absolutamente comum a todos os Estados, não podendo depender de fórmulas diferenciadas de recepção. Observe-se, contudo, que não importa tanto o fato da recepção ou reprodução do regulamento37. Muito mais graves são as conseqüências relacionadas à quebra da uniformidade do Direito Comunitário. Em primeiro lugar, corre-se o risco de invocar e aplicar não o regulamento comunitário, mas a norma interna de recepção, o que poderia acarretar confusão quanto ao momento de sua entrada em vigor. Em segundo lugar, os Estados ao recepcionarem a norma comunitária, poderiam efetuar alterações que modificassem seu sentido ou alcance. Porém o risco maior apontado por GARCIA38, estaria na exclusão potencial do TJCE para pronunciar-se sobre a interpretação e validade do regulamento comunitário, pois os juízes nacionais ao verem-se confrontados com uma norma interna (de recepção do regulamento), poderiam esquecer-se de que se trata de uma norma comunitária, e aplicá-la de acordo com os parâmetros de seu próprio sistema jurídico.

2.3.2 A aplicabilidade direta da norma comunitária Para CAMPOS39, a aplicabilidade direta é um dos traços essenciais da ordem jurídica comunitária, pois permite a plena eficácia (effet utile) dos Tratados Comunitários em relação aos 37. Ver GARCIA, Ricardo Alonso. Derecho Comunitario. Sistema Constitucional y Administrativo de la Comunidad Europea. Madrid: Editorial Centre de Estudios Ramón Areceres, 1994, p. 219 e 220. 38. GARCIA, op.cit., p. 220. 39. Ver CAMPOS, op.cit., p. 205 e ss. 86

agentes econômicos. Este autor a define como sendo a capacidade das pessoas privadas em invocar, perante as jurisdições nacionais, as disposições dos Tratados e dos atos normativos das Instituições Comunitárias e de fazer valer, nas suas relações recíprocas e em face dos próprios Estados, os direitos que nesses textos jurídicos pudessem fundar40. Deste modo, a invocabilidade da norma comunitária significa o direito de toda pessoa em pedir ao juiz nacional que aplique o conjunto do direito comunitário, sendo obrigação do juiz aplicar a legislação comunitária, indiferentemente de seu Estado ou legislação nacional41. A importância da aplicabilidade direta da norma comunitária está vinculada às competências atribuídas ao TJCE. Como veremos adiante, compete a este órgão julgar a legalidade dos atos das Instituições Comunitárias, apreciar eventual violação pelos Estados membros das obrigações decorrentes dos Tratados, e garantir a uniformidade da interpretação do Direito Comunitário, pela via prejudicial. Contudo, o TJCE, não pode conhecer da pretensão de qualquer particular, mesmo que o Direito por este invocado seja decorrente dos Tratados ou dos atos normativos emanados das Instituições Comunitárias. Deste modo, impedido de dirigir-se ao TJCE e sem a aplicabilidade direta da norma comunitária, este particular apenas poderia dirigir-se à Comissão das Comunidades, expor-lhe suas razões e procurar convencêla, na sua qualidade de guardiã da legalidade comunitária42, a iniciar uma ação por incumprimento do Tratado43, contra o Estado membro responsável pela violação de seus direitos44. Assim, a aplicabilidade direta ao gerar direitos e deveres aos Estados membros, às Instituições Comunitárias e aos cidadãos, permite que estes exijam dos Judiciários nacionais o reconhecimento e a 40. CAMPOS, op.cit., p. 205. 41. STREINZ, op.cit., p. 315., ARNDT, op.cit., p. 202., e SANTA MARIA/ VEJA/PÉREZ, op.cit., p. 330. 42. Art. 211 TCE. 43. Art. 226 TCE. 44. CAMPOS, op.cit., p. 206. 87

proteção de seus direitos. O que faz com que todo juiz nacional de um Estado membro possa ser ao mesmo tempo um juiz comunitário.

2.3.3 Aplicabilidade direta do Direito Comunitário Primário O TJCE afirmou em inúmeras sentenças que uma determinada norma de Direito Comunitário origina uma obrigação de atuação do Estado, e que possui, portanto, aplicabilidade direta. Contudo, foram estabelecidos alguns critérios pelo próprio Tribunal para definir quais normas são estas. Os mais importantes são os seguintes: Inicialmente exige-se que a norma seja clara e precisa. Contudo, ao contrário da doutrina “Acte-clair”45, isto não significa que a norma não necessite de interpretação. Ao contrário, em uma série de sentenças nas quais o TJCE afirmou a aplicabilidade direta da norma comunitária, também efetuou a sua interpretação46. Como segunda condição para ser diretamente aplicável, a norma comunitária não deve ser objeto de apreciação ou discricionariedade por parte dos Estados47. Ou seja, quando a norma em questão não permite ao legislador nacional um âmbito, mesmo que restrito, de atuação. Ocorre o contrário se a norma comunitária permite aos órgãos jurisdicionais e administrativos nacionais um espaço de discricionariedade. Nestes casos a norma comunitária pode e deve ser aplicada pelos órgãos nacionais. E por fim, a terceira condição da aplicabilidade direta impõe que 45. BLECKMANN, Europarecht, op.cit., p. 343. 46. Sentença do TJCE de 5 de fevereiro de 1963. Caso “van Gend en Loos”, e Sentença do TJCE de 3 de abril de 1968. Caso “Molkerei - Zentrale Westfalen-Lippen/Hauptzollamt Paderborn”. Sentença do TJCE de 26 de outubro de 1971. Caso “Eunomia contra Itália”. Sentença do TJCE de 19 de junho de 1973. Caso “Capolongo/Maya”. 47. Sentença do TJCE de 3 de abril de 1968. Caso “Molkerei - Zentrale Westfalen-Lippen/Hauptzollamt Paderborn”.

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esta norma não requeira medidas executórias tanto dos Estados, quanto dos Órgãos Comunitários48. É o caso de normas comunitárias que não necessitam ser implantadas pelos Estados ou Órgãos da Comunidade. Se todos os pressupostos que condicionam a aplicabilidade direta encontram-se presentes, o TJCE tem decidido que a norma comunitária gera efeitos jurídicos no relacionamento dos indivíduos com seus Estados. Sendo assim, os pressupostos que regem a aplicabilidade direta das normas comunitárias foram fixados pelo próprio TJCE, que vinculando-a a uma fórmula objetiva, retira-a do âmbito de apreciação individual de cada Estado membro. Significa que estas disposições dos Tratados Originários podem ser aplicadas diretamente aos particulares, uma vez que são formuladas sem reservas, são auto-suficientes e juridicamente perfeitas, e por estas razões não necessitam de qualquer ação dos Estados membros ou da Comissão para sua execução.

2.3.4 Aplicabilidade direta do Direito Comunitário Secundário Os pressupostos até agora desenvolvidos para a aplicabilidade direta da norma comunitária, são válidos tanto para o Direito Primário, como para o Direito Secundário. Ou seja, para Regulamentos, Diretivas e Decisões. Os Regulamentos são diretamente aplicáveis em virtude de seu enunciado normativo, que dispõe claramente que o regulamento uma vez editado, entra imediatamente em vigor em todos os Estados membros, sem que os órgãos legislativos destes Estados possuam mais qualquer tipo de participação legislativa. Os órgãos judiciários e administrativos nacionais devem utilizálo (contra norma nacional, se necessário) e em sua virtude, os 48. Sentença do TJCE de 3 de abril de 1968. Caso “Molkerei - Zentrale Westfalen-Lippen/Hauptzollamt Paderborn”. Sentença do TJCE de 17 de dezembro de 1970. Caso “SACE/Ministério das Finanças Italiano”. Sentença TJCE de 19 de junho de 1973. Caso “Capolongo/Maya”.

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sujeitos de direito público e privado contraem direito e obrigações. Sem perder seu caráter de direito comunitário, os regulamentos tornam-se parte integrante da ordem jurídica nacional, sendo inúmeras as sentenças nas quais o TJCE reconheceu sua aplicabilidade direta: “... em razão de sua própria natureza e sua função no sistema de fontes de Direito Comunitário, produz efeitos imediatos e é, enquanto tal, apto para conferir aos particulares direitos que as jurisdições nacionais têm a obrigação de proteger”49.

Ao contrário dos regulamentos, cuja aplicabilidade direta foi expressamente reconhecida pelo art. 249,2 TCE, as diretivas comunitárias não possuem tal característica (segundo o art. 249,3 TCE), sendo que sua vigência se inicia apenas com sua transposição nos Estados membros. Enquanto o regulamento é obrigatório em todos os seus elementos, a diretiva obriga apenas quanto ao resultado a atingir. Neste sentido, o Estado é o único destinatário das diretivas, cabendo-lhe adotar as medidas necessárias para sua implementação. Assim, o conjunto de direitos decorrentes da diretiva e que poderiam ser exigíveis por particulares, apenas resultariam destas medidas nacionais de implantação e não da própria diretiva. Contudo, a diferença de redação no art. 249 TCE, entre suas alíneas 2 e 3, não autoriza a exclusão completa do efeito ou aplicabilidade direta das diretivas através de um raciocínio “a contrario”. Parte da doutrina50 e uma constante jurisprudência 49. Sentença do TJCE de 14 de dezembro de 1971. Caso “Politi”. Ver também a respeito as seguintes sentenças: Caso “Leonésio c/Ministério da Agricultura”, Sentença de 17 de maio de 1972; e Caso “Variola/Administrazione italiana delle Finanze”, Sentença de 10 de outubro de 1973. 50. Sobre a doutrina a respeito da aplicabilidade direta das diretivas, ver ZITSCHER, Harriet. Probleme eines Wandels des innerstaatlichen Rechts zu einem europäischen Rechssystem nach der Rechtsprechung des Europäischen Gerichtshofs. Hamburg: Max Planck Institut, 1996.

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do TJCE51 têm reafirmado que sob determinados pressupostos as diretivas são diretamente aplicáveis, ou seja, engendram um corpo de direitos que podem ser invocados pelas pessoas privadas nas suas relações com o Estado. O raciocínio seguido parte da concepção de que o “effet utile”52 das diretivas seria enfraquecido, e a obrigação imposta aos Estados se esvaziaria, se os particulares não pudessem invocar a norma comunitária perante os órgãos jurisdicionais nacionais. Ademais, a estrutura jurídica comunitária se ressentiria como um todo, se fosse possível a cada Estado membro retardar o efeito de uma diretiva pela sua não conversão em norma nacional no tempo hábil previsto. A possibilidade de iniciar-se, nestes casos, uma ação por incumprimento segundo o art. 226 TCE, não seria suficiente para a segurança e consolidação do sistema jurídico comunitário. Em primeiro lugar porque não teria a capacidade de impedir a demora na conversão da diretiva em norma nacional, e em segundo porque a conseqüência de tal ação seria somente uma sentença declaratória. Neste sentido, outra razão para a jurisprudência do TJCE afirmando a aplicabilidade direta das diretivas, seria seu caráter de sanção, através do qual não deveria ser possível aos Estados negar, ou opor-se, aos direitos assegurados pelas diretivas aos seus cidadãos. A evolução da jurisprudência do TJCE53 51. Ver as seguintes sentenças do TJCE: 6 de outubro de 1970, Caso “Grad contra Finanzamt Trautstein”; 17 de dezembro de 1970, Caso “SACE /Administrazione italiana delle Finanze”; 4 de dezembro de 1974, Caso “Van Duyn”. 52. O princípio do “efeito útil” – “effet utile” está diretamente vinculado aos métodos de interpretação do Direito Comunitário utilizados pelo TJCE, em especial ao método teleológico. O princípio do efeito útil dispõe que cada norma de Direito Comunitário (em especial as diretivas) deva ser interpretada de acordo com o resultado pretendido pelo legislador comunitário.Ver PIEPER, Stefan Ulrich / SCHOLLMEIER, Andres. Europarecht – Ein Casebook. Berlin-Bonn: Carl Heymanns Verlag, 1997, p. 42. 53. Ver as seguintes sentenças do TJCE: 5 de abril de 1979, caso “Ministério Público contra Ratti”; 19 de janeiro de 1982, caso “Becker contra Finanzamt Münster-Innenstadt”; 26 de fevereiro de 1986, caso “Marshall contra Southampton and South-West Hampshire Area Health Authority”. 91

tem apontado dois pressupostos absolutamente necessários para que uma diretiva possa ser invocada diretamente pelos particulares perante suas jurisdições nacionais: primeiro ela deve possuir um caráter “self-executing” (formulada em termos claros, não necessitando de qualquer ato executório da Comunidade ou dos Estados), em segundo, que o prazo para a transposição da diretiva tenha se esgotado ou que a transposição tenha sido efetuada de modo incorreto. As decisões são o terceiro tipo de ato normativo vinculante que os órgãos decisórios da Comunidade podem editar. Quando a decisão é dirigida aos Estados membros, aplica-se o mesmo raciocínio desenvolvido para fundamentar a aplicabilidade direta das diretivas. Ou seja, é necessário coibir uma possível intenção protelatória por parte dos Estados em retardar a entrada em vigor dos efeitos de uma decisão, quando esta preencher as condições de aplicabilidade direta já mencionadas54. Em especial a decisão não deve exigir a execução de determinadas medidas nacionais para que possa ser completamente implementada. As decisões dirigidas a particulares possuem igualmente aplicabilidade direta, pois geram diretamente direitos e obrigações a seu favor ou às custas de seus destinatários. É o caso de decisões individuais que impõem a pessoas privadas uma obrigação pecuniária (por exemplo, o pagamento de uma multa que torna-se então título executivo), ou a adoção de determinado comportamento (dissolução de um cartel proibido pelo art. 81 TCE). As decisões individuais também podem gerar por si próprias direitos em favor de terceiros, na hipótese, por explo., de uma determinada decisão considerar abusiva a atuação de um cartel, com isso habilitando suas eventuais vítimas a requerer perante os órgãos jurisdicionais nacionais, indenização por danos sofridos55. 54. Jurisprudência iniciada com o caso “Grad contra Finanzamt Trautstein”, op.cit. Também reconfirmada com a sentença de 10 de novembro de 1992, caso “Hansa Fleisch Ernst Mund”. 55. CAMPOS, op.cit., p. 251 e 252.

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2.4 O sistema decisório-institucional Em uma rápida descrição do sistema decisório e institucional comunitário, instituído pelo Tratado da Comunidade Européia56, podemos apresentar o seguinte quadro. A Comissão, instituição supranacional por excelência, tem seus titulares selecionados por sua competência e independentes dos governos que os escolheram. Contudo, é submetida ao controle político do Parlamento Europeu (PE), através da moção de censura e da aprovação da nova Comissão pela plenária do PE. Suas funções são primordialmente executivas, de guardiã dos Tratados em relação aos agentes econômicos, mesmo que disponha de poder legislativo próprio em alguns casos bastante limitados. Contudo, cabe destacar que mesmo quando o poder de decisão originário foi conferido ao Conselho, a Comissão exerce um papel essencial, através de seu monopólio virtual quanto ao poder de iniciativa, a capacidade de alterar suas propostas em qualquer fase do processo de decisão e a exigência de unanimidade para que uma deliberação do Conselho possa alterar aquelas propostas. O Conselho é o órgão mais próximo da intergovernamentabilidade, já que seus integrantes são representantes dos Estados membros e controlados, em suas decisões, pelos respectivos governos nacionais. É a instituição política de maior importância, pois concentra em si o poder de decisão, embora ao exercício deste poder estejam associadas outras instituições comunitárias, como a Comissão e o Parlamento Europeu, quando for o caso. O Parlamento Europeu é uma pálida lembrança de seus similares nacionais, já que é o único parlamento que não possui poder de iniciativa legislativa, ficando esta reservada à Comissão e ao Conselho. Suas funções são essencialmente o controle político que 56. No âmbito deste trabalho, o Tratado da Comunidade Européia abrange o conjunto do “direito comunitário primário”, ou seja, os Tratados Constitutivos, os Termos de Adesão e os Tratados que modificam ou complementam os Tratados Constitutivos, tais como interpretados pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. 93

exerce sobre a Comissão através do procedimento de investidura, das perguntas efetuadas à Comissão, do poder consultivo e da participação no processo de co-decisão através das modalidades previstas no Tratado. Por último, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias57, que tem por função a interpretação do Direito Comunitário como um todo, e através desta prerrogativa, soluciona o conjunto das disputas surgidas entre as diversas instituições comunitárias entre si, entre os Estados membros, entre os Estados membros e as instituições comunitárias, e finalmente, entre as pessoas privadas e os Estados e as instituições comunitárias.

3. O SISTEMA JURISDICIONAL DA UNIÃO EUROPÉIA

3.1 As competências do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias O art. 220 do TCE estabelece que ao Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e ao Tribunal de Primeira Instância, compete garantir “o respeito do Direito na interpretação e aplicação do presente Tratado”. Para GARCIA58, o controle que o TJCE exerce sobre o Direito Comunitário estende-se tanto sobre as atividades desenvolvidas pelas instituições comunitárias, como pelas autoridades nacionais, nos âmbitos cobertos pelo ordenamento jurídico comunitário. Este extenso âmbito de competências, permitiu ao TJCE atuar em distintas funções. Deste modo, atua como Tribunal 57. Neste artigo, não trataremos do Tribunal de Contas das Comunidade Européias, visto que não exerce funções significativas no processo decisório da UE. 58. GARCIA, op.cit., p. 322 e ss. 94

Constitucional ao ser o intérprete último sobre a adequação de normas comunitárias e nacionais ao Tratado da Comunidade Européia, este último elevado à categoria de “Constituição Comunitária”59. Mas, ao contrário das jurisdições exclusivamente constitucionais, cujo parâmetro de controle é o texto constitucional em si, o TJCE também controla a observância a todo o ordenamento jurídico comunitário, inclusive o Direito derivado. Neste sentido, o TJCE exerce “funções revisoras típicas tanto de juiz constitucional como de juiz contencioso-administrativo” 60. Segundo BORCHARDT61 as funções do TJCE podem ser agrupadas em três grandes esferas: a)

b) c)

no controle da aplicação do Direito Comunitário, tanto pelos órgãos comunitários na execução das normas decorrentes do Tratado CE, quanto pelos Estados membros e pessoas de direito privado no cumprimento das obrigações decorrentes do Direito Comunitário. na interpretação do Direito Comunitário. na construção do Direito Comunitário, pela via pretoriana.

Este conjunto de atribuições é exercido pelo TJCE através de duas formas: através de consultas jurídicas e na própria aplicação do Direito. As consultas ocorrem na forma de Pareceres vinculantes, sobre Acordos que a União Européia celebra com Países terceiros ou Organizações Internacionais62. Na aplicação do Direito, o TJCE assume funções que se desdobram em distintas áreas jurídicas. Como Tribunal Constitucional, o TJCE decide sobre as disputas entre os órgãos comunitários, atua no controle da legalidade dos atos comunitários e através do reenvio prejudicial. Como 59. Sentença TJCE “Les Verts”. 60. Sentença TJCE . Caso “A Hoechst”, de 26 de março de 1987. 61. BORCHARDT, Klaus-Dieter. Die Rechtlichen Grundlagen der Europäischen Union. Heidelberg: C.F.Müller, 1996, p.123 e ss. 62. De acordo com o art. 300, 6 TCE. 95

Tribunal Administrativo, examina os atos administrativos emanados dos órgãos comunitários e dos órgãos nacionais, quando da execução de Direito Comunitário. Como Tribunal Trabalhista, decide sobre questões relacionadas à livre circulação de trabalhadores, segurança social e igualdade de tratamento entre homens e mulheres. Como Tribunal Fiscal, aprecia a validade e interpretação das diretivas relacionadas aos impostos e direitos aduaneiros. Como Tribunal Penal controla as multas administrativas impostas pela Comissão, e finalmente, como Tribunal Civil, interpreta a Convenção de Bruxelas sobre reconhecimento e execução de sentenças nas áreas civil e comercial. Neste conjunto bastante distinto de atribuições, cabe observar que o TJCE utiliza-se de métodos clássicos de interpretação jurídica, nomeadamente a literal, sistemática e teleológica. Paralelamente, ocorre o recurso a textos do Direito primário, em especial aos Preâmbulos do TCE e do TUE, que possuem como objetivo o contínuo aprofundamento da integração européia, havendo portanto, por parte do Tribunal, o privilegiamento dos métodos sistemático e principalmente teleológico. Neste sentido, a interpretação dominante, é aquela que propicia a concretização dos objetivos do TCE e assegura a capacidade de ação dos órgãos comunitários. Exemplos concretos da hermenêutica do TJCE, são a fundamentação do primado do Direito Comunitário sobre o Direito nacional, o efeito direto das diretivas em virtude do “effet utile” e a competência das Comunidades Européias para celebrar Acordos com Estados terceiros e Organizações Internacionais. Por outro lado, a interpretação do Direito derivado é realizada de modo “conforme” ao Direito primário, do mesmo modo como o Direito nacional é interpretado de modo “conforme” à Constituição, assegurando, neste sentido, a unidade sistêmica do ordenamento jurídico comunitário63. 63. A respeito ver STREINZ, Rudolf. Europarecht. 4., Auflage. Heidelberg: C.F.Müller Verlag, 1999, p. 187.

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3.2 A estrutura jurisdicional

3.2.1 O Tribunal de Justiça O TJCE é composto de um juiz por cada Estado membro (art.221), perfazendo atualmente 15 juízes. Eles são eleitos de comum acordo, por seis anos, pelos Governos dos Estados membros, dentre as personalidades que ofereçam todas as garantias de independência e reconhecida competência para exercer as mais altas funções jurisdicionais nos seus Estados de origem (art. 223). Os juízes são assistidos por oito advogados-gerais, eleitos sob as mesmas condições que os juízes. No entanto, caso o Tribunal de Justiça solicite, o Conselho, deliberando por unanimidade, pode aumentar o número de advogados-gerais. Aos advogados-gerais, cabe apresentar conclusões fundamentadas sobre as causas que requeiram sua intervenção (art. 222). A figura do advogado-geral tem sua origem no sistema contencioso-administrativo francês, no qual o Comissário de Governo apresenta ao Conselho de Estado, suas conclusões sobre o litígio em questão. Observe-se, que as conclusões do advogado-geral equivalem a uma recomendação ao TJ, sem, no entanto, possuir caráter vinculante. A manifestação do advogado-geral é necessária, entre outras, nas seguintes situações: regime lingüístico do procedimento; inadmissibilidade da demanda; acumulação de assuntos; ratificação de sentença; condenação em custos que poderiam ter sido evitados; questões prejudiciais. (Regulamento de Procedimento do Tribunal de Justiça). Segundo MORENO64, apesar da discussão doutrinária sobre a função do advogado-geral, seu valor reside tanto em servir de apoio às decisões judiciais, tanto na adoção e posterior interpretação, quanto em ser um referencial para o desenvolvimento de toda a jurisprudência comunitária. 64. MORENO, Fernando Diez. El Derecho de la Unión Europea. Civitas: Madrid, 1996, p. 167.

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Apesar do mandato ser de seis anos, de três em três anos será efetuada uma substituição parcial dos juízes e dos advogados-gerais, de acordo com as condições previstas no Estatuto do Tribunal de Justiça.

3.2.2 O Tribunal de Primeira Instância O Tribunal de Primeira Instância foi criado como conseqüência do Ato Único Europeu de 1988, com a finalidade de ocupar-se de parte dos assuntos que sobrecarregavam o Tribunal de Justiça. Sua composição é de pelo menos um juiz por Estado membro, escolhido nos mesmos princípios dos juízes do Tribunal de Justiça, pelo prazo de seis anos, ocorrendo a substituição parcial de três em três anos. Apesar de não estar expressamente prevista no Tratado de Nice, o Estatuto do Tribunal de Justiça pode criar a figura do Advogado-geral, com as mesmas competências exercidas no Tribunal de Justiça. Apesar de estar sempre associado à estrutura do Tribunal de Justiça, o art. 220, com a redação dada pelo Tratado de Nice, equipara o Tribunal de Primeira Instância ao Tribunal de Justiça, como órgão garantidor da interpretação e aplicação do Direito Comunitário e neste sentido, suas competências foram bastante ampliadas. De acordo com o art. 225, o TPI, é competente para conhecer em primeira instância os recursos dos artigos 230, 232, 235, 236, e 238, inclusive questões prejudiciais, nas matérias específicas determinadas pelo Estatuto do Tribunal de Justiça. Não obstante as novas funções do Tribunal de Primeira Instância, a descrição da função jurisdicional nos próximos ítens, será baseada, exclusivamente, na atuação do Tribunal de Justiça, tanto pelo desenvolvimento histórico de sua construção jurisprudencial, quanto pelo fato da recente aprovação do Tratado de Nice.

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4. O SISTEMA RECURSAL COMUNITÁRIO E AS FUNÇÕES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Analisaremos esquematicamente, a competência para conhecer das ações, a legitimação ativa e passiva, objeto do recurso e conseqüências da sentença65.

4.1 Recurso de incumprimento 4.1.1 Recurso por incumprimento por iniciativa da Comissão O artigo 22666 TCE estabelece que na hipótese de um Estado não cumprir qualquer das obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE, a Comissão formulará um parecer fundamentado sobre o assunto. Se mesmo após o prazo fixado pela Comissão, o Estado em causa não proceder de acordo com o parecer, a Comissão poderá recorrer ao Tribunal de Justiça. Inicialmente, cabe observar que a competência é originária do Tribunal de Justiça, e não do TPI. A legitimidade ativa é da Comissão, sempre que considere que um Estado membro não cumpriu suas obrigações decorrentes do TCE e a legitimidade passiva é do Estado membro presumivelmente faltoso. O objeto do recurso é a omissão que o Tribunal declara haver ocorrido, se 65. Tendo em vista o objeto do presente artigo, o sistema intracomunitário de solução de controvérsias e sua interação com outros mecanismos de solução de disputas, não abordaremos aqui, o recurso do art. 237 TCE, relacionados ao Banco Europeu de Investimentos e ao Sistema Europeu de Bancos Centrais. 66. Art. 226 TCE. “Se a Comissão considerar que um Estado-membro não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força do presente Tratado, formulará um parecer fundamentado sobre o assunto, após ter dado a esse Estado oportunidade de apresentar as suas observações. Se o Estado em causa não proceder em conformidade com este parecer no prazo fixado pela Comissão, esta pode recorrer ao Tribunal de Justiça”. 99

um Estado membro não cumpre com qualquer obrigação decorrente do Tratado CE. O art. 226 não explicita o trâmite a ser seguido, porém, a seqüência processual ocorre da seguinte maneira. Inicialmente a Comissão comunica oficialmente, através de uma carta de infração, a um Estado membro, que em sua opinião, o referido Estado não cumpriu com suas obrigações, como por exemplo, a incorporação de diretivas. Nesta mesma carta de infração, a Comissão oferece ao Estado infrator a possibilidade de apresentar suas observações, o qual pode ou não fazê-lo. Na hipótese do Estado oferecer contra razões à carta da Comissão, poderá ou reconhecer a infração alegada e comprometer-se a remediá-la, ou então negar a existência da infração. Se o Estado infrator não contesta a carta de infração, ou se suas contra razões não são convincentes, a Comissão emitirá um parecer fundamentado, no qual volta a recomendar ao Estado que cesse a presumível infração, dentro do prazo estabelecido no parecer. Se por sua vez, o Estado não tomou as medidas necessárias para cessar a infração dentro do prazo, a Comissão poderá iniciar a fase contenciosa propriamente dita, ao recorrer ao Tribunal. Observe-se, contudo, que não existe obrigatoriedade da Comissão em recorrer. Esta pode, por diversas razões, decidir não recorrer do não incumprimento por parte do Estado, do parecer fundamentado. No caso da Comissão decidir-se pelo recurso ao Tribunal, a execução da sentença será regulada pelo disposto no art. 228 TCE, que prevê a possibilidade de condenação do Estado infrator, caso este não tome as medidas necessárias para a execução da sentença do Tribunal, dentro do prazo estabelecido. A condenação imposta ao Estado inclui uma quantia fixa ou progressiva correspondente a uma sanção pecuniária. Tais multas podem ocorrer através da compensação dos recursos enviados pela Comissão aos Estados, a título de ajuda ou transferência dos Fundos Comunitários.

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4.1.2 Recurso de incumprimento por iniciativa de um Estado membro O art. 22767 do TCE prevê a possibilidade de qualquer Estado membro argüir o incumprimento de uma obrigação decorrente do TCE por outro Estado membro. Neste sentido, este recurso se assemelha bastante ao anterior. A competência para conhecer o recurso é do Tribunal de Justiça, e não do TPI. A legitimidade ativa pertence a qualquer Estado membro que suponha que outro Estado membro não cumpra com suas obrigações decorrentes do Tratado, e a legitimidade passiva é do Estado membro presumivelmente incumpridor. O objeto do recurso é a declaração do Tribunal de que um Estado membro não cumpriu com uma obrigação decorrente do TCE, condenando-o ao cumprimento de tal obrigação. O procedimento é parecido com o recurso anterior. O Estado membro que origina a ação deve dirigir-se previamente à Comissão, a qual, se julgar procedente, envia ao Estado infrator uma carta de infração, para que este se manifeste e no final, seja emitido um parecer fundamentado pela Comissão. Caso tal parecer não seja seguido pelo Estado denunciado, o Estado denunciante pode então, recorrer ao Tribunal. A característica distintiva deste recurso em relação ao anterior, é a possibilidade do Estado denunciante recorrer diretamente ao Tribunal, caso a Comissão não tenha formulado um parecer no prazo de três meses, a contar da data do pedido. 67. Art 227 TCE. “Qualquer Estado-membro pode recorrer ao Tribunal de Justiça se considerar que outro Estado-membro não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força do presente Tratado. Antes de qualquer Estado-membro introduzir recurso contra outro Estado-membro, com fundamento em pretenso incumprimento das obrigações que a este incumbem por força do presente Tratado, deve submeter o assunto à apreciação da Comissão. A Comissão formulará um parecer fundamentado, depois de os Estados interessados terem tido oportunidade de apresentar, em processo contraditório, as suas observações, escritas e orais. Se a Comissão não tiver formulado parecer no prazo de três meses, a contar da data do pedido, a falta de parecer não impede o recurso ao Tribunal de Justiça”. 101

4.2 Recursos por ilegalidade 4.2.1 Recurso de anulação O recurso de anulação, previsto no art. 23068, permite ao Tribunal de Justiça e ao Tribunal de Primeira Instância controlarem a adequação ao direito comunitário, dos atos e disposições emanados das instituições comunitárias. Corresponde a um verdadeiro controle da atividade administrativa das instituições comunitárias, garantindo a observância dos preceitos legais. A princípio, a competência para conhecer em primeira instância do recurso de ilegalidade corresponde ao Tribunal de Primeira Instância, de acordo com a redação do art. 225 efetuada pelo Tratado de Nice. No entanto, determinadas matérias podem ser atribuídas diretamente ao Tribunal de Justiça, em virtude do Estatuto do Tribunal de Justiça e, em virtude de normas de distribuição de competências entre as duas instâncias. O recurso das decisões 68. Art. 230 TCE. “O Tribunal de Justiça fiscaliza a legalidade dos atos adotados em conjunto pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, dos atos do Conselho, da Comissão e do BCE, que não sejam recomendações ou pareceres, e dos atos do Parlamento Europeu destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros. Para o efeito, o Tribunal de Justiça é competente para conhecer dos recursos com fundamentação em incompetência, violação de formalidades essenciais, violação ao presente Tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação, ou em desvio de poder, interpostos por um Estado-membro, pelo Conselho ou pela Comissão. O Tribunal de Justiça é competente, nas mesmas condições, para conhecer dos recursos interpostos pelo Parlamento Europeu, pelo Tribunal de Contas e pelo Banco Central Europeu com o objetivo de salvaguardar as respectivas prerrogativas. Qualquer pessoa singular ou coletiva pode interpor, nas mesmas condições, recurso das decisões de que seja destinatária e das decisões que, embora tomadas sob a forma de regulamento ou de decisão dirigida a outra pessoa, lhe digam direta e individualmente respeito. Os recursos previstos no presente artigo devem ser interpostos no prazo de dois meses a contar, conforme o caso, da publicação do ato, da sua notificação ao recorrente ou, na falta desta, do dia em que o recorrente tenha tomado conhecimento do ato”. 102

do TPI ao Tribunal de Justiça é limitado às questões de Direito e nas condições e limites previstos no Estatuto. A legitimidade ativa é concebida em termos bastante amplos. Institucionalmente, tanto os Estados membros, quanto a Comissão, o Conselho, o Parlamento, o Banco Central e o Tribunal de Contas possuem legitimidade para interpor recursos sobre a legalidade dos atos comunitários. Para os particulares, admite-se tanto o critério do interesse direto (destinatário do ato) quanto o do interesse indireto (afetado pelo ato). No entanto, aos particulares cabe somente a legitimidade para recorrer de atos administrativos stricto-sensu, e não de disposições gerais, para as quais apenas as instituições comunitárias e os Estados membros possuem legitimidade. Já a legitimidade passiva estende-se a todas as instituições autoras, ou seja, os atos adotados em conjunto pelo Parlamento e pelo Conselho, os atos do Conselho, da Comissão, e do Banco Central. Objeto do recurso são os atos argüiídos como ilegais das instituições comunitárias. Os motivos que geram o recurso estão descritos de forma tão ampla, que na prática, englobam todas as possibilidades de ilegalidade ou violação do Tratado. A incompetência pode ser tanto externa, quanto interna. A incompetência externa refere-se à competência da Comunidade como um todo para tomar determinada decisão ou intervir em determinada matéria. Ela decorre da nebulosidade das competências atribuídas à Comunidade perante as competências restantes dos Estados membros69. Já a incompetência interna refere-se aos atos adotados por uma instituição dentro do seu âmbito de competências comunitárias, cuja adoção, no entanto, corresponde a uma outra instituição. Na maior parte dos casos, é relacionada ao exercício, por parte da Comissão, de suas atribuições para adotar medidas de execução dos atos do Conselho. A violação de formalidades essenciais, refere-se basicamente à não observância dos trâmites de procedimento, em especial à falta 69. Sentença TJCE, de 9 de julho de 1987. “Alemanha e outros contra Comissão”, na qual o Tribunal anulou uma intervenção comunitária em um âmbito não coberto pelo Mercado Comum.

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de informes, consultas, suficiente motivação, infração das normas de regulamentos internos, ausência de audiência ou alegações do interessado e defeitos de publicação ou notificação dos atos. A violação do Tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação refere-se à não observância material das normas de direito comunitário. Neste caso, a violação ocorre quando existe afronta ao conteúdo de um ato normativo ou aos princípios do direito comunitário. O desvio de poder ocorre quando uma instituição comunitária utiliza-se de um poder do qual é titular, originariamente ou por delegação, para um fim distinto do previsto no ordenamento jurídico. Ou seja, é o uso da capacidade institucional de um determinado órgão, para fins distintos daqueles previstos no ordenamento jurídico. Ocorre normalmente quando a escolha da base jurídica é distinta daquela que deveria ser adotada para reger a adoção da norma em questão, evitando por exemplo, consultas a outras instituições ou órgãos, ou então alterando o sistema de votação no interior do Conselho70. O procedimento para interposição do recurso não é explicitado no art. 230, mas apenas o prazo, que é de dois meses a partir da publicação ou conhecimento do ato. A eficácia da sentença é regulada no art. 231 TCE71, e na hipótese de anulação do ato impugnado pelo TJ, a sentença passa a ter valor erga omnes. Além disso, o art. 233 TCE72, determina que a Instituição da qual emane o ato anulado seja obrigada a adotar as medidas necessárias para a execução da sentença do Tribunal de Justiça. 70. A respeito ver GARCIA, p. 366. 71. Art. 231 TCE. “Se o recurso tiver fundamento, o Tribunal de Justiça anulará o ato impugnado. Todavia, no que respeita os regulamentos, o Tribunal de Justiça indicará, quando o considerar necessário, quais os efeitos do regulamento anulado que se devem considerar subsistentes”. 72. Art. 233 TCE. “A Instituição ou as Instituições de que emane o ato anulado, ou cuja abstenção tenha sido declarada contrária ao presente Tratado, devem tomar as medidas necessárias à execução do acórdão do Tribunal de Justiça. Esta obrigação não prejudica aquela que decorre da aplicação do segundo parágrafo do art. 288. O presente artigo aplica-se igualmente ao BCE”. 104

4.2.2 O recurso por omissão O art. 232 TCE73, que dispõe sobre o tema, considera a omissão ou carência de ação como uma modalidade de ilegalidade, no momento em que a omissão constitui, em si mesma, uma violação do Tratado. A competência para conhecer do recurso é do TPI, a não ser nos casos em que o Estatuto do Tribunal de Justiça reserve a competência ao próprio Tribunal de Justiça. Nas hipóteses de competência originária do TPI, pode haver recurso de sua decisão ao Tribunal de Justiça, limitado às questões de direito e nos limites previstos no Estatuto. A legitimidade ativa desdobra-se em três âmbitos distintos. As instituições comunitárias, nomeadamente a Comissão, o Conselho e o Parlamento, e os Estados membros possuem legitimidade ativa, sem que seja necessário demonstrar qualquer interesse específico na omissão contra a qual se pretende recorrer. Já o Banco Central Europeu tem sua legitimidade ativa restrita às áreas de sua competência, da mesma forma que o Tribunal de Contas, o qual apesar de não ser nominado, não detém as atribuições amplas que as demais Instituições possuem, por força do próprio Tratado74. Em relação aos particulares, o art. 232 exclui de sua legitimidade ativa as omissões relacionadas à adoção de recomendações ou pareceres. 73. Art. 232 TCE. “Se, em violação do presente Tratado, o Parlamento Europeu, o Conselho ou a Comissão se abstiverem de pronunciar-se, os Estados-membros e as outras Instituições da Comunidade podem recorrer ao Tribunal de Justiça para que declare verificada essa violação. Este recurso só é admissível se a Instituição em causa tiver sido previamente convidada a agir. Se, decorrido um prazo de dois meses a contar da data do convite, a Instituição não tiver tomado posição, o recurso pode ser introduzido dentro de um novo prazo de dois meses. Qualquer pessoa singular ou coletiva pode recorrer ao Tribunal de Justiça, nos termos dos parágrafos anteriores, para acusar uma das Instituições da Comunidade de não lhe ter dirigido um ato que não seja recomendação ou parecer. O Tribunal de Justiça é competente, nas mesmas condições, para conhecer dos recursos interpostos pelo BCE no domínio das suas atribuições, ou das ações contras estes intentadas”. 74. GARCIA, p. 417. 105

Por outro lado, a analogia da legitimidade ativa de particulares entre os artigos 230 e 232 TCE, leva à exigência de interesse direto e individual ou potencialmente afetado pela omissão normativainstitucional75. Estão passivamente legitimados a Comissão, o Conselho e o Parlamento Europeu, que se abstiveram de pronunciar-se, as instituições comunitárias que não dirigiram a particulares atos distintos de recomendações ou pareceres e o Banco Central Europeu em relação aos recursos destinados contra si próprio. Observe-se que o início da fase judicial ocorre apenas após um duplo prazo. Inicialmente, de dois meses a contar da data na qual a instituição foi convidada a agir, e posteriormente, verificada a omissão, o prazo adicional de dois meses para a interposição do recurso. Na hipótese do recurso ser julgado procedente, a sentença determina à instituição comunitária o dever de pronunciar-se sobre determinada questão, ou emitir o ato, cuja omissão caracteriza a violação ao direito comunitário. Por sua vez, a eficácia da sentença também remete ao art. 233 TCE. Neste sentido, se durante o trâmite do processo a instituição atua, finalizando a omissão, o Tribunal de Justiça entende que o processo se extingue pela perda de objeto, inclusive perante a impossibilidade de obrigar a instituição omissa a adotar as medidas necessárias para a execução da sentença76.

4.2.3 A exceção de ilegalidade O art. 241 TCE77 não é considerado um recurso autônomo, mas sim uma alegação, invocada pela parte, no decurso do 75. STREINZ, p. 196. 76. STREINZ, p. 200. 77. Art. 241 TCE. “Mesmo depois de decorrido o prazo previsto no quinto parágrafo do art. 230, qualquer parte pode, em caso de litígio que ponha em causa um regulamento adotado em conjunto pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho ou regulamento do Conselho, da Comissão ou do BCE, recorrer aos meios previstos no segundo parágrafo do art. 230 para argüir, no Tribunal de Justiça, a inaplicabilidade deste regulamento”.

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processo principal78, no qual se solicita ao Tribunal que se manifeste sobre a ilegalidade de determinada norma comunitária, necessária para a solução do recurso. Ou seja, não se constitui em um direito de ação autônomo e apenas pode ser exercida a título incidental, pondo-se em causa a validade do regulamento, pelo fato de este constituir a base jurídica dos atos de aplicação impugnados79. Neste sentido, o objetivo da exceção de ilegalidade é assegurar proteção contra um regulamento ilegal. O que se contesta é o ato individual baseado no regulamento tido por ilegal. Segundo MORENO, a exceção de ilegalidade possui uma finalidade tanto objetiva, quanto subjetiva. Objetivamente, permite extrair do ordenamento comunitário o regulamento eivado de ilegalidade. Subjetivamente, permite que partes não legitimadas possam recorrer de disposições gerais, como é o caso de particulares. A competência para conhecer a exceção de ilegalidade será tanto do Tribunal de Justiça, quanto do TPI, dependendo de a quem compete conhecer da ação principal. A legitimidade ativa pertence a qualquer das partes do litígio anterior, no momento da contestação do ato de aplicação do regulamento e a legitimidade passiva é da instituição autora do regulamento impugnado. O objeto do recurso é a declaração de ilegalidade do regulamento questionado. Observe-se que apenas os regulamentos (ou atos análogos) podem ser objeto do recurso, excluindo-se da apreciação jurisdicional os atos de alcance individual, o que poderia levar a que a legalidade dos atos administrativos pudesse ser indefinidamente questionada. A motivação para a exceção de ilegalidade é a mesma prevista no segundo parágrafo do art. 230 e os efeitos da sentença podem ser erga-omnes, ou inter-partes. 78. STREINZ, p. 198 e ss., GARCIA, p. 383 e ss. 79. Sentença TJCE de 11 de julho de 1985. Caso “Salerno contra Comissão e Conselho”. 107

4.3 O recurso por responsabilidade extracontratual da Comunidade O art. 235 TCE80 dispõe sobre a responsabilidade extracontratual da Comunidade. O segundo parágrafo do art. 288, aludido no preceito geral, regula a responsabilidade extracontratual da Comunidade, sendo que os danos referidos, são aqueles causados pelos seus órgãos ou agentes no exercício das respectivas funções. O parágrafo terceiro do mesmo art. 288, estende a responsabilidade extracontratual aos danos causados pelo Banco Central Europeu ou seus agentes. A competência para conhecer da ação é originariamente do TPI, cabendo recurso ao Tribunal de Justiça em questões de direito. O objeto da ação de indenização é a reparação dos danos causados pelos órgãos ou agentes comunitários no exercício das respectivas funções. Segundo entendimento do Tribunal, um direito de indenização resultante de responsabilidade extracontratual da Comunidade pressupõe um comportamento ilegal desta última, a existência de um dano e um nexo de causalidade entre o comportamento ilegal e o prejuízo invocado81. Possuem legitimidade ativa os Estados membros e particulares que tenham sido lesados pela Comunidade e que pretendam obter a reparação dos respectivos direitos. A legitimidade passiva cabe à Comunidade, representada pelo órgão que supostamente deu origem ao fato gerador da responsabilidade.

80. Art. 235 TCE. “O Tribunal de Justiça é competente para conhecer dos litígios relativos à reparação dos danos referidos no segundo parágrafo do art. 288”. 81. Sentença TJCE de 14 de julho de 1967. Caso “Kampfmeyer contra Comissão”. 108

4.4 O recurso de pessoal O artigo 236 TCE82 regula o contencioso entre a Comunidade e seus agentes em matéria de função pública. Ou seja, são as ações decorrentes da relação de emprego entre os agentes e a Comunidade, não podendo, portanto, aplicar a tais ações os dispositivos relacionados ao regime geral da responsabilidade extracontratual da Comunidade. A legitimidade ativa pertence aos agentes comunitários e a legitimidade passiva ao órgão autor do ato que afeta a situação jurídica do agente. A competência originária é do TPI, cabendo recurso ao Tribunal em questões de Direito.

4.5 Recursos em matéria de cláusulas compromissórias Os artigos 238 e 239 TCE83 referem-se a dois tipos de recursos, tanto os derivados de cláusulas compromissórias inseridas em contratos celebrados pela Comunidade, quanto os derivados de cláusulas compromissórias acordadas entre os Estados membros. Nos contratos celebrados pela Comunidade, a inserção da cláusula compromissória remete diretamente ao TPI e em relação às diferenças entre Estados membros, a competência é do Tribunal de Justiça.

82. Art. 236 TCE. “O Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre todo e qualquer litígio entre a Comunidade e os seus agentes, dentro dos limites e condições estabelecidas no estatuto ou decorrentes do regime que a estes é aplicável”. 83. Art. 238 TCE. “O Tribunal de Justiça é competente para decidir com fundamento em cláusula compromissória constante de um contrato de direito público ou de direito privado, celebrado pela Comunidade ou por sua conta”. Art. 239 TCE. “O Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre qualquer diferendo entre os Estados-membros, relacionado com o objeto do presente Tratado, se esse diferendo lhe for submetido por compromisso”. 109

4.6 A interpretação uniforme do Direito Comunitário A autonomia da Ordem Jurídica Comunitária ocorre através da interpretação uniforme de seus conceitos efetuada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, proveniente dos Processos de Decisão Prejudicial (art. 234 TCE84 ). Como bem observa GARCIA, a pedra angular da Comunidade não é apenas uma mesma norma comum, mas o fato desta norma ser interpretada e aplicada da mesma maneira em toda a extensão de um mesmo território pelos Tribunais nacionais85. Neste sentido, o reenvio prejudicial é um dos principais instrumentos de uniformização do Direito Comunitário. Ou seja, em caso de obscuridade da norma comunitária, o juiz nacional que está a aplicá-la, solicita manifestação do Tribunal de Justiça. Tal procedimento harmoniza a interpretação e aplicação do Direito Comunitário em todo o espaço comum, pois a solução adotada pelo Tribunal Europeu relativamente à norma dúbia, torna-se jurisprudência para vigorar de forma vinculante em todos os Estados membros, desde que não haja mudança na postura do Tribunal. Até a entrada em vigor do Tratado de Nice, a competência originária para conhecer do recurso prejudicial era do Tribunal de Justiça. Com a nova redação do art. 225, o TPI 84. Art. 234 TCE. “O Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação do presente Tratado; b) Sobre a validade e interpretação dos atos adotados pelas Instituições da Comunidade e pelo BCE; c) Sobre a interpretação dos estatutos dos organismos criados por ato do Conselho, desde que estes estatutos o prevejam. Sempre que uma questão dessa natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie. Sempre que uma questão dessa natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso prejudicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça”. 85. GARCIA, op.cit., p. 325.

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passa a ser competente para conhecer das questões prejudiciais nas matérias especificadas no Estatuto. O recurso ao Tribunal ocorre apenas se existe risco de lesão da unidade ou coerência do direito comunitário. Ao considerar que o juiz comunitário é de fato o juiz nacional de direito comum86, BERGERÈS87 analisa que o objetivo do art. 234 TCE está relacionado com a necessidade de estabelecer uma fórmula de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o TJCE. Assim, ao prever um pedido de decisão a título prejudicial para interpretação e um pedido de decisão a título prejudicial para apreciação de validade, instaurou-se uma técnica de cooperação jurisdicional que possibilitou eliminar quase que inteiramente o risco de fragmentação do direito comunitário na sua aplicação efetiva. Segundo o art. 234, podem ser apresentadas ao TJCE questões sobre interpretação e validade do Direito Comunitário. As questões relacionadas à interpretação podem incluir todas as fontes de Direito Comunitário, ou seja Direito Primário e Direito Secundário. Ou seja, não existem atos comunitários que não possam ser apreciados pelo Tribunal. Restrita ao Direito Secundário está a validade, cujo padrão de avaliação segue sendo o Direito Primário. Não sujeitas à decisão prejudicial do TJCE, estão as questões relacionadas à interpretação do Direito nacional, em especial uma eventual incompatibilidade deste (normalmente constitucional) com o Direito Comunitário88. Por estar restrito a questões de direito, o Tribunal não se manifesta 86. Por diversas ocasiões o Tribunal reafirmou esta situação, relembrando que eventuais litigantes não deveriam recorrer a si, mas aos órgãos jurisdicionais dos Estados Membros, na sua qualidade de juízes comunitários. Ver a respeito Sentença TJCE de 21 de janeiro de 1976. “Importazione bresciami carni contra Comissão”. 87. BERGERÈS, Maurice-Christian. Contencioso Comunitário. Vol.I. Tradução de Evaristo Santos. Porto: Rés-Editora, 1995, p. 6. 88. Ver KLINKE, Ulrich. Der Gerichtshof der Europäischen Gemeinschaften. Aufbau und Arbeitsweise. Baden-Baden: Nomos, 1997., STREINZ, op. cit., p. 185.

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sobre os aspectos materiais da causa em questão, ou seja, a decisão sobre o mérito propriamente pertence aos órgãos jurisdicionais nacionais. A menção à validade, por outro lado, destina-se a verificar a legalidade dos atos comunitários, nos mesmos parâmetros do recurso de anulação. A autorização para apresentar a questão prejudicial pertence a qualquer órgão jurisdicional de um Estado membro89, não devendo esta autorização ser excluída ou dificultada por normas nacionais90. A obrigação de apresentar a questão prejudicial é atribuída aos órgãos jurisdicionais de cuja sentença não couber mais recurso. Há uma certa lacuna do texto legal sobre a definição de quais órgãos são esses. Ou seja, se são apenas os Tribunais Superiores, ou qualquer órgão jurisdicional que possua a competência processual para se pronunciar definitivamente. Como o objetivo do art. 234 é assegurar a unidade na interpretação e aplicação do Direito Comunitário em todos os Países membros, pressupõe-se portanto, a obrigação de interpor a questão prejudicial a qualquer órgão jurisdicional de cuja sentença não caiba mais recurso91. Outro aspecto importante, relaciona-se à possibilidade de inovar a jurisprudência do TJCE a respeito de algum assunto, apresentado-lhe uma questão prejudicial. Deste modo, se um Tribunal nacional pretende desviar-se da interpretação dominante do TJCE, apresenta nova questão. 89. Segundo jurisprudência do TJCE, Caso “Nordsee/Mond”, Tribunais Arbitrais, mesmo que aptos para dirimir um conflito assim previsto através de cláusula compromissória, não são órgãos jurisdicionais competentes, no sentido do art. 234, para interpor uma questão prejudicial. Ver SCHWEITZER, Michael/HUMMER, Waldemar. Europarecht. 5., neubearbeitete und erweiterte Auflage. Berlin: Luchterhand, 1996, p. 187. 90. Seria o caso de uma lei, por explo., que obrigasse a buscar permissão nos Tribunais Superiores, para a interposição da questão prejudicial. 91. É o caso por explo., de um processo cuja última instância fosse um órgão colegiado intermediário de apelação. Neste caso este órgão colegiado seria obrigado a suscitar a questão prejudicial.

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Na Alemanha o Tribunal Federal de Finanças (Bundesfinanzhof), e na França o “Conseil d´Etat”, defenderam durante algum tempo a chamada teoria “Acte-clair”, segundo a qual a obrigatoriedade de interposição da questão prejudicial estaria vinculada à existência de uma dúvida “razoável” sobre a validade ou interpretação da norma comunitária questionada. Contudo, uma exceção à irrestrita obrigação de apresentar a questão prejudicial somente se apresenta quando o TJCE já manifestou-se em algum processo semelhante, quando já existe jurisprudência firmada a respeito ou quando a utilização correta do Direito Comunitário está tão evidente, que já não sobra nenhuma dúvida razoável. A jurisprudência do TJCE tem-se manifestado restritivamente sobre a matéria 92.

4.7 O controle prévio dos acordos internacionais Sendo parte do ordenamento jurídico comunitário, os acordos internacionais podem sofrer um controle prévio de sua compatibilidade com o TCE. Ocorre em outros termos, um verdadeiro controle da constitucionalidade dos atos internacionais da Comunidade, previsto no art. 300, n.6, com a redação dada pelo Tratado de Nice93, sob a forma de “pareceres” emitidos pelo TJCE. Como o próprio Tribunal já declarou, esses pareceres podem ter por objeto todos e quaisquer pontos potencialmente condicionantes da compatibilidade do acordo com o Tratado, “não somente das disposições do direito material, como ainda das 92. Sentença TJCE de 6 de outubro de 1982. Caso “C.I.L.F.I.T. contra Ministero della Sanitá”. 93. Art. 300, n. 6 TCE. “O Parlamento Europeu, o Conselho, a Comissão ou qualquer Estado-membro podem obter previamente o parecer do Tribunal de Justiça sobre a compatibilidade de um projeto de acordo com as disposições do presente Tratado. Um acordo que tenha sido objeto de parecer negativo do Tribunal de Justiça só pode entrar em vigor nas condições previstas no art. 48 do Tratado da União Européia”. 113

respeitantes à competência, ao procedimento, ou à organização institucional da Comunidade”94. Também segundo o TJCE95, o principal objetivo deste tipo de controle preventivo é evitar as complicações que poderiam decorrer de impugnações relacionadas à incompatibilidade de um acordo internacional com o Tratado CE, o que não elide o reconhecimento por parte do Tribunal das eventuais dificuldades que uma declaração a posteriori sobre a inconstitucionalidade de um acordo internacional provocaria96. Quanto à sua eficácia, um parecer negativo do TJCE possui um caráter vinculante, no sentido de que o acordo internacional para ser efetivado necessita, segundo o artigo 300.6 TCE, de prévia revisão do Tratado comunitário. Foi neste sentido, o Parecer 1/76, sobre o Fundo Europeu de Navegação Interior97. As dúvidas estavam relacionadas à compatibilidade de certas disposições do acordo com o TCE, pois o projeto implicava em uma certa delegação de competências decisórias e jurisdicionais em favor de órgãos independentes das instituições comunitárias. A manifestação do Tribunal a respeito foi fulminante: “...tais procedimentos implicariam no risco de desintegrar, progressivamente, a obra comunitária e isto de maneira irreversível, tendo em conta de que se tratarão cada vez mais de compromissos assumidos perante Estados terceiros. Baseada em tais considerações, o Tribunal emite uma opinião negativa a respeito deste aspecto do projeto”.

94. Parecer TJCE 1/78 de 4 de outubro de 1979. 95. Parecer TJCE 1/75 de 11 de novembro de 1975. 96. No assunto “Comissão contra Conselho” de 27 de setembro de 1988, tais dificuldades são admitidas e servem de fundamento à posição da Comissão em apontar suposta incorreção da base jurídica escolhida pelo Conselho para celebrar um acordo internacional, no caso o então art. 174.2 TCE. 97. Parecer TJCE 1/76 de 26 de abril de 1977. 114

No mesmo sentido, foi o Parecer 1/91 TJCE de 15 de dezembro de 1991, sobre os sistemas de solução de controvérsias no projeto de Acordo para a criação do Espaço Econômico Europeu. O Parecer foi desfavorável por condicionar a interpretação das normas comunitárias ao mecanismo jurisdicional previsto no acordo98. Na hipótese do parecer ser positivo o acordo é declarado compatível com o Tratado, ou seja, constitucional. A cautela comunitária recomenda contudo, uma eventual obtenção de novo parecer, após encerradas as negociações, sobre os aspectos não abordados pelo Tribunal em seu parecer anterior99.

5. NEGOCIAÇÃO E CONCLUSÃO DE ACORDOS100 De acordo com o disposto do TCE e da constante jurisprudência do Tribunal a respeito da repartição de competências entre a Comunidade e os Estados membros, os Tratados Internacionais (chamados de “acordos” na terminologia comunitá98. Pareceres 1/91 de 14 de dezembro de 1991 e 1/92 de 10 de abril de 1992. Em ambos, tratava-se da criação do “Espaço Econômico Europeu - EEE” e entre outras objeções, o TJCE frisou a incompatibilidade fundamental entre a estrutura institucional da Comunidade e a criação de um Tribunal EEE, com a competência para interpretar as disposições do acordo sem no entanto estar vinculado ao Tratado CE. Este Parecer voltará a ser analisado posteriormente. 99. É o que sustenta HUMMER, Michael. “Enge und Weite der “Treaty-Making Power”der Komission der EG nach dem EWG-Vertrag”. In: FS Grabietz – Festschrift für K. Grabietz, Berlin: Heymanns Verlag, 1995, p. 196 e ss., ao discorrer criticamente sobre o valor e a extensão dos pareceres do TJCE em matéria de relações exteriores. 100. A respeito ver KEGEL, Patricia Luíza. “O marco jurídico-institucional da União Européia e sua influência no contexto das negociações com o Mercosul”. In: Acordo Mercosul - União Européia: Além da Agricultura. Mario Marconini/Renato Flores (Orgs.). Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2003, p. 22 e ss. 115

ria) 101 a serem celebrados pela CE podem subdividir-se em duas fórmulas de atuação diferentes. A primeira em relação aos acordos celebrados exclusivamente pela Comunidade e neste caso apenas ela atua internacionalmente porque possui competência para tanto. A segunda, se sua competência em determinada matéria não for suficiente, necessitando da co-participação internacional dos Estados membros dentro dos limites estipulados pelo quadro geral de repartição de competências102. Os pressupostos estabelecidos no art. 300, 1 a 7 TCE, determinam o procedimento a ser seguido sempre que a Comunidade Européia celebra Tratados internacionais com Estados terceiros. Nos acordos exclusivos, os Estados membros não são partes contratantes, sendo total e completamente representados pela CE; nos acordos mistos, a Comunidade e os Estados membros são co-celebrantes em conjunto com outros Estados terceiros. Em ambos os casos, o procedimento a ser seguido pela Comunidade é sempre o do art. 300 TCE, que estipula um procedimento geral para a celebração de todos os Tratados internacionais pela Comunidade, o qual pode ser descrito em três grandes fases:

101. O texto do Tratado emprega diversas vezes a expressão “acordo” como correlata a de Tratado. Neste sentido, o TJCE esclareceu que “acordo” é empregado em sentido lato, significando “qualquer compromisso assumido por sujeitos de Direito Internacional e dotado de natureza obrigatória, seja qual for sua qualificação formal”. Parecer TJCE 1/75 de 11 de novembro de 1975. 102. O que diferencia os acordos exclusivos dos acordos mistos é a repartição interna de competências entre a Comunidade e seus Estados membros. Se as competências são exclusivamente comunitárias, os acordos são celebrados apenas pela Comunidade. Se, por outro lado, as competências são repartidas com os Estados membros, o acordo será misto, e sua negociação e celebração envolverão conjuntamente a Comunidade e os Estados membros. 116

5.1 Nos acordos celebrados exclusivamente pela CE Devido à natureza bicéfala do executivo comunitário, corresponde à Comissão entrar em contato com Estados terceiros ou Organizações Internacionais interessadas em concluir um acordo com a Comunidade, e apresentar ao Conselho suas conclusões a respeito de cada caso. A autorização para a abertura das negociações constitui uma competência privativa do Conselho, deliberando por maioria qualificada. Na hipótese favorável, a Comissão passa à fase das negociações, mas sempre respeitando as diretrizes que o Conselho estabeleça. Pode ocorrer também que o Conselho designe comitês especiais, integrados por representantes governamentais, para assessorar a Comissão. Em uma fase posterior ocorre a inclusão do Parlamento Europeu – PE – no processo de manifestação do consentimento comunitário ao acordo internacional. Antes do Conselho celebrar o acordo, deverá remetê-lo ao Parlamento Europeu para consulta. O art. 300.3 TCE concede ao PE competências consultivas sobre todos os acordos a serem celebrados, inclusive aqueles concluídos em matérias nas quais é aplicável o procedimento previsto nos arts. 251 e 252 para a adoção de normas internas. A exceção à competência consultiva do Parlamento é os acordos relacionados à política comercial previstos no art. 133.3. O caráter geral da competência consultiva do Parlamento em relação aos acordos internacionais, não torna seus pareceres vinculantes para o Conselho, ao qual é facultado aceitá-los ou não. Existem contudo, quatro tipos de acordos em que o parecer favorável do Parlamento Europeu é requisito indispensável à celebração do ato internacional: os acordos de associação e cooperação do art. 310, os acordos com conseqüências orçamentais significativas para a Comunidade, os acordos que impliquem a alteração de um ato adotado segundo o procedimento do art. 251 (co-decisão) e os acordos que criem um quadro institucional específico ao organizar procedimentos de cooperação. 117

Se as negociações chegarem a um termo positivo para todas as partes, e o parecer do Parlamento Europeu for favorável quando tal seja necessário, cabe então ao Conselho, exclusivamente, manifestar o consentimento em nome da Comunidade Européia ao acordo internacional a ser celebrado. Para tanto, o Conselho adota a decisão por maioria qualificada, salvo nos casos que expressamente requerem unanimidade: - os acordos de associação do art. 310, dada a sua importância política e econômica, - e em virtude do princípio do paralelismo das competências internas e externas, sempre que em determinada matéria se requeira a unanimidade no âmbito intracomunitário, ela também será necessária para celebrar os acordos internacionais. Na última fase, não obrigatória, o Parlamento Europeu, a Comissão, o Conselho ou qualquer Estado membro poderá solicitar ao TJCE um parecer prévio sobre a compatibilidade com o Direito Originário do acordo a ser celebrado pela Comunidade. Se o parecer do Tribunal for negativo, poderão ocorrer três hipóteses: a Comunidade deixa de celebrar o acordo; retomam-se as negociações e o acordo é reformulado; ou então se procede a uma alteração do Tratado CE, segundo o disposto no art. 48 do Tratado da União Européia.

5.2 Nos acordos mistos Por parte da Comunidade, o procedimento de celebração e aprovação a ser adotado nos acordos mistos é exatamente o mesmo anteriormente descrito. O que difere substancialmente dos acordos exclusivos, é a necessidade de sua ratificação por parte dos quinze Estados membros, individualmente. Ou seja, nos acordos mistos o procedimento de ratificação será subdividido em 16 direções diferentes, uma correspondendo à Comunidade e as outras quinze, a cada Estado membro. Na eventualidade de um Estado membro não ratificar individualmente o acordo misto celebrado, sua aprovação para o conjunto da Comunidade e dos 118

demais Estados membros, torna-se inviável. Ou seja, nenhum acordo misto produzirá efeitos na ordem jurídica comunitária, sem antes entrar em vigor nas diversas ordens jurídicas nacionais.

5.3 Aplicação provisória e suspensão de um acordo Segundo o n. 2 do artigo 300 TCE, tanto a aplicação provisória quanto a suspensão de um acordo são decididos pelo Conselho, sob proposta da Comissão. Contudo, não existe nenhuma menção ao procedimento a ser adotado nos acordos mistos, em especial ao que se refere à aplicação provisória, já que tal decisão implica na entrada em vigor do acordo no âmbito jurídico dos Estados membros, mesmo antes de sua ratificação interna.

5.4 Posição hierárquica dos acordos internacionais dentro do sistema jurídico comunitário Quanto à sua posição hierárquica, situam-se entre o Direito Comunitário primário e o Direito Comunitário secundário. Devem portanto, respeitar obrigatoriamente os dispositivos constantes nos Tratados Constitutivos da Comunidade, pois na hipótese contrária, de um acordo internacional que violasse o TCE, estaria se admitindo a possibilidade de revisão do Tratado fora do quadro comunitário ou até sem a intervenção dos Estados membros. Por outro lado, acordos internacionais não compatíveis ou que alterem o Tratado, apenas podem subsistir caso sejam efetuadas as correspondentes modificações no TCE, de acordo com o procedimento previsto no art. 48 do TUE. Se os acordos estão subordinados ao Direito primário, prevalecem contudo sobre as normas de direito secundário – situado como direito infraconstitucional – não podendo ser alteradas ou revogadas por elas. Na eventualidade de surgirem conflitos entre acordos externos e o direito secundário, o TJCE afirmou em várias ocasiões o primado da norma 119

convencional internacional103. Deste modo, a antinomia surgida é solucionada adotando-se o princípio hierárquico (lex superior derogat legi inferiori) e não o cronológico (lex posterior derogat legi priori).

6. DIREITO COMUNITÁRIO E ACORDOS INTERNACIONAIS

6.1 Controle jurisdicional da compatibilidade dos acordos com o Direito Comunitário Primário Celebrado o acordo internacional, este passa a integrar o conjunto de normas comunitárias, e nesta condição, pode vir a sofrer um controle posterior de sua legalidade. A primeira via do controle posterior, estaria baseada no suscitamento de um recurso de anulação, com fulcro no art. 230 TCE. Nesta hipótese, as conseqüências seriam bastante complicadas, já que a anulação de um Tratado produziria efeitos internos na CE, mas seria irrelevante sob a ótica internacional104, provocando inclusive a responsabilização internacional da Comunidade (Parecer TJCE 3/94 e Sentença “Alemanha X Conselho”, caso do Acordo-quadro sobre bananas GATT 1994). A segunda via possível de controle posterior da legalidade dos acordos internacionais é através da sua interpretação a título prejudicial, efetuada pelo TJCE. Como muito bem apontado por 103. Desde a Sentença TJCE, “Haegemann” de 20 de abril de 1974. 104. De acordo com os artigos 28 e 46 da “Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Organizações Internacionais e Estados ou entre Organizações Internacionais entre si” de 1986, os quais não excluem de responsabilização internacional as Organizações que tornarem internamente sem efeito Tratados celebrados. 120

QUADROS105 em sua análise do caso “Haegeman II”, o Tribunal não possui competência interpretativa direta em relação aos acordos internacionais celebrados pela Comunidade. A falta de um dispositivo expresso não impediu contudo, que o TJCE afirmasse a sua competência para interpretar prejudicialmente um acordo internacional. Sua argumentação baseia-se no fato do acordo ter sido concluído pelo Conselho, e neste sentido constituir-se em um ato “adoptado pelas Instituições da Comunidade” para todos os efeitos da alínea b) do art. 234 TCE. Em que pese a opinião do brilhante internacionalista português acima referido, não concordamos com sua posição segundo a qual a jurisprudência do TJCE nos casos “Haegeaman” e “International Fruit” abandonou os sistemas clássicos de recepção ou transformação dos Tratados internacionais (à margem portanto da dicotomia monismo/dualismo), para admitir que “o Tratado é imediatamente aplicável na ordem jurídica comunitária, logo após a sua entrada em vigor na ordem internacional” 106. A nosso ver, a única fundamentação jurídica possível para que o TJCE exerça o controle posterior sobre os acordos internacionais, baseia-se exatamente no princípio da recepção da norma internacional efetuada pelos órgãos constitucionalmente competentes. Ao afirmar que o acordo celebrado pelo Conselho constitui-se em ato praticado pelos órgãos da Comunidade sendo assim um ato normativo interno, o TJCE simplesmente reproduz a posição dos Tribunais Constitucionais nacionais a respeito. Ou seja, a qualificação do direito internacional como direito comunitário é efetuada, principalmente, para fundamentar a competência do TJCE para interpretar e aplicar as regras dos acordos internacionais. 105. Ver QUADROS, Fausto de. Direito das Comunidades Européias e Direito Internacional Público. Coimbra: Almedina, 1991, p. 465 e ss., em que discute criticamente a posição adotada pelo TJCE quanto aos acordos internacionais celebrados pela Comunidade. 106. QUADROS, op.cit., p. 466.

121

6.2 Início da produção de efeitos do acordo no âmbito intracomunitário Em relação ao momento em que o acordo começa a produzir efeitos, ainda que sua entrada em vigor seja determinada pela data fixada no próprio Tratado, sua publicação no Diário Oficial das Comunidades (normalmente sob a forma de um anexo a um regulamento ou decisão do Conselho através do qual se concluiu o acordo) é requisito indispensável para produzir efeitos entre os particulares107.

6.3 A eventual “aplicabilidade direta” do Acordo A aplicabilidade direta no Direito Comunitário é definida como sendo a capacidade da norma comunitária para atribuir diretamente um direito individual que os particulares podem invocar em justiça e que aos Tribunais cabe salvaguardar. No caso dos Acordos que a UE celebra, coloca-se a questão de saber se as disposições do Acordo podem ser invocadas perante as jurisdições nacionais/comunitárias, com o propósito de não aplicar determinada norma nacional/comunitária que violaria o disposto no Acordo, ou então de forçar, via jurisdicional, o cumprimento do Acordo. Seria a hipótese, por exemplo, de no Acordo União Européia – Chile, operadores chilenos pudessem invocar o Acordo contra determinada norma nacional/comunitária, ou que operadores europeus obtivessem nos judiciários nacionais/comunitários sentenças individuais sobre o Acordo (e portanto à revelia do Sistema de Solução de Controvérsias). A este respeito, a jurisprudência do TJCE: “...os efeitos, na Comunidade, das disposições de um acordo que ela tenha celebrado com um país terceiro não podem ser examinadas 107. É o entendimento do Tribunal na sentença TJCE de 25 de janeiro de 1979, “Racke”. 122

abstraindo-se a origem internacional destas disposições...de acordo com os princípios de Direito Internacional, as Instituições comunitárias que são competentes para negociar e celebrar um acordo com um País terceiro, são livres para decidir com ele os efeitos que as disposições do acordo devem produzir no ordenamento interno das partes contratantes. Apenas no caso de que esta questão não tenha sido regulada pelo Acordo, incumbe às jurisdições competentes e em particular ao Tribunal de Justiça, no marco da competência que o Tratado comunitário lhe atribui, proporcionar uma resposta igual que a qualquer outra questão relativa à aplicação do Acordo na Comunidade”108.

Esta sentença é extremamente importante, pois se no Acordo inexiste qualquer menção à aplicabilidade direta, o Tribunal pode ser levado a manifestar-se a respeito, o que efetivamente ocorreu em várias ocasiões: a)

b)

no caso “Demirel”, em relação a determinadas disposições do Acordo com a Turquia: “Uma disposição de um Acordo celebrado pela Comunidade com terceiros Países deve ser considerada diretamente aplicável quando contém, com perspectiva a sua finalidade, seu objeto e natureza do Acordo, uma obrigação clara e precisa, cuja execução e cujos efeitos não dependem da adoção de nenhum ato posterior”109. no caso “Bresciani”, o TJCE considerou que a Convenção de Yaoundé que previa a eliminação de barreiras tarifárias aos produtos originários dos Estados associados (ACP), em virtude “de sua precisão e não estando sujeita a reserva implícita ou explícita por parte da Comunidade, é apta para engendrar, nos jurisdicionados, direitos invocáveis nos órgãos jurisdicionais nacionais”110.

108. Sentença TJCE, “Kupferberg”, de 26 de outubro de 1982. 109. Sentença TJCE, “Demirel”, de 5 de julho de 1994. 110. Sentença TJCE, “Bresciani”, de 6 de fevereiro de 1976. 123

c)

no caso “Anastasiou”, em relação ao acordo de associação com Chipre, o Tribunal de Justiça repete textualmente o disposto sobre o tema na sentença “Demirel”111.

Deste modo, o TJCE instituiu para a aplicabilidade direta do Acordo, os mesmos requisitos para a aplicabilidade direta das diretivas: que se trate de uma disposição clara e incondicional e que a norma/dispositivo não requeira medidas de execução por parte da Comissão ou dos Estados membros. Ou seja, o efeito direto dos acordos internacionais112 ocorre, quando a isso conduzam os termos do acordo, e, naturalmente, as respectivas disposições sejam precisas, incondicionais e auto-exequíveis. Assim, na medida em que um acordo internacional da Comunidade não dependa de implementação (sendo portanto self-executing), os particulares dos Estados membros podem valer-se de suas disposições perante os Tribunais nacionais. Neste caso, persiste a independência entre o efeito direto e a reciprocidade na execução dos acordos internacionais, a não ser que haja disposições em contrário no próprio acordo113. Contudo, parte da doutrina, em especial TORRENT114, refuta a analogia entre a aplicabilidade direta dos acordos e das diretivas. Para este autor, tal enfoque desconhece que a natureza 111. Sentença TJCE de 5 de julho de 1994. “Anastasiou”. 112. Se a aplicabilidade imediata do acordo internacional é garantida pela sua transformação em Direito Comunitário, o mesmo não ocorre com o efeito ou aplicabilidade direta. Esta só ocorre quando os termos, natureza, objeto e as respectivas disposições do acordo sejam precisas, incondicionais e auto-exequíveis. Ver sentença TJCE de 31 de janeiro de 1991, “Kziber” como corolário da jurisprudência do TJCE , iniciada com o já citado caso “International Fruit III”. 113. Sentença TJCE de 26 de outubro de 1986, “Hauptzollamt Mainz/ Kupferberg”. Ver também DÖRR, J. “Die Entwicklung der ungeschriebene Aussenkompetenzen der EG”. In: EuZW – Europäische Zeitschrift für Wirtschaftsrecht, 1996, p. 45. 114. TORRENT, Ramon. Derecho Y Práctica de las Relaciones Exteriores en la Unión Europea. Barcelona: Cedecs Editorial, 1998, p. 202.

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jurídica e os efeitos das diretivas estão regulamentados diretamente pelo TCE (do modo como o Tribunal o interpreta). Tal natureza e seus efeitos impõem-se ao legislador comunitário, que não pode modificá-los a seu dispor. Ao contrário, cada acordo internacional resulta do livre consentimento das partes contratantes, as quais podem definir os limites e os alcances dos compromissos que aceitam no marco do acordo. Ou seja, os acordos internacionais possuem os efeitos que as partes lhe concedem, sendo o efeito direto do acordo resultante do compromisso internacional. Se esta questão não foi regulada pelo próprio acordo, só então caberá ao Tribunal de Justiça manifestar-se a respeito.

6.4 A aplicabilidade direta dos acordos GATT/OMC Em relação ao GATT, desde o início dos anos setenta, o TJCE115 estabeleceu a sucessão dos Estados membros em favor da Comunidade, dos direitos e deveres decorrentes do GATT, tornando a Comunidade a única interlocutora válida perante os demais membros do Acordo, tanto nas sucessivas rodadas de negociações multilaterais, quanto na gestão dos procedimentos de solução de controvérsias. Na OMC, a Comunidade e seus quinze Estados membros tornaram-se membros fundadores desta organização, com as mesmas prerrogativas e obrigações que os demais Estados, com a exceção do exercício alternativo do direito de voto. Desde a jurisprudência iniciada com o caso “International Fruit”116, o Tribunal de Justiça vem negando a aplicabilidade direta dos acordos GATT e posteriormente da OMC. “O Tribunal de Justiça não modifica sua jurisprudência, de que as normas do GATT não são diretamente aplicáveis e que portanto não fundamentam o direito de ação de particulares”117. As sentenças 115. Sentença TJCE. “International Fruit”. 116. Sentença TJCE de 12 de dezembro de 1972. Caso “International Fruit”. 117. Sentença TJCE de 22 de junho de 1989. Caso “Fediol III”. 125

“Chiquita”118 e “Dior”119reafirmam a posição do Tribunal de que o GATT não contém qualquer dispositivo que conceda a particulares o direito de propor em juízo ação contra órgãos comunitários ou nacionais, pela aplicação de normas supostamente contrárias ao Acordo Geral. Quando da celebração dos acordos resultantes da Rodada Uruguai, e da criação da Organização Mundial do Comércio, a decisão final proposta pelo Conselho e que obteve parecer favorável do Parlamento Europeu, incluiu no seu preâmbulo uma consideração segundo a qual, “pela sua natureza, o Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio e seus anexos não pode ser invocado diretamente nos tribunais da Comunidade e dos Estados-membros”120. Mesmo com tal restrição, o TJCE foi obrigado em uma série de ocasiões a reportar-se a este respeito. Confirmando sua jurisprudência anterior, o Tribunal mantém o entendimento de que o acordo que instituiu a OMC, incluindo seus anexos, “continua a basear-se, tal como o GATT de 1947, no princípio das negociações realizadas numa base de reciprocidade e de vantagens mútuas, distinguindo-se assim, no que se refere à Comunidade, dos acordos celebrados por esta com países terceiros que instauram uma certa assimetria das obrigações ou criam relações especiais de integração na Comunidade”121. Neste sentido, a posição do Tribunal é de que os acordos OMC não visam criar direitos para particulares, mas limitam-se a regular as relações entre Estados e organizações econômicas regionais com base em negociações que assentam no princípio da reciprocidade. No caso Portugal contra Conselho, cujo objeto é a anulação da Decisão 96/386/CE relativa à celebração de memorandos de acordo entre a CE e Paquistão e entre a CE e a Índia, o Tribunal volta a reafirmar que tendo em conta a sua natureza e a sua eco118. Sentença TJCE de 12 de dezembro de 1995. Caso “Chiquita”. 119. Sentença TJCE de 14 de dezembro de 2000. Caso “Dior”. 120. Decisão 94/800. 121. Sentença TJCE de 23 de novembro de 1999. Caso “Portugal contra Conselho”. 126

nomia, o acordo OMC e os seus anexos não figuram, em princípio, entre as normas tomadas em conta pelo Tribunal de Justiça para fiscalizar a legalidade dos atos e instituições comunitárias. Em relação a este último aspecto, a reciprocidade, o próprio Tribunal argumenta que as outras partes contratantes dos acordos OMC, concluíram, à luz do objeto e da finalidade de tais acordos, que estes não fazem parte das normas à luz das quais os respectivos órgãos jurisdicionais controlam a legalidade das normas jurídicas internas122. No entanto, acrescenta que cabe fiscalização da legalidade dos atos comunitários à luz das disposições da OMC quando três condições cumulativas estivessem preenchidas: “em primeiro lugar, uma violação das referidas regras fosse reconhecida pelos órgãos da OMC; em segundo lugar, a Comunidade se tivesse comprometido a executar as recomendações e decisões provenientes do Órgão de Resolução de Litígios (...); em terceiro lugar, a Comunidade não tivesse tomado as medidas para dar cumprimento às referidas recomendações e decisões no prazo previsto”123.

No entanto, no recurso de indenização proposto pela importadora de bananas T.Port, em virtude da regulamentação comunitária sobre a organização comum do mercado de bananas, julgado incompatível com as regras da OMC pelo Órgão de Solução de Controvérsias124, o Tribunal nega a procedência do pedido por duas razões. A primeira, de caráter absolutamente processual, baseia-se no art. 48, n. 2 do Regulamento de Processo, segundo o qual a dedução de fundamentos novos no decurso da instância é proibida, a menos que estes fundamentos tenham por base elementos de fato ou de direito que tenham surgido durante o processo. No entendimento do Tribunal, contudo, a demandante utilizou-se de 122. Id.ibid. 123. Id.ibid. 124. Sentença TPI de 12 de julho de 2001. Caso “T.Port contra Conselho”. 127

novos argumentos sustentados na referida sentença Portugal contra Conselho, os quais já eram de seu conhecimento no momento da interposição da ação. Por este motivo, o Tribunal considera tal argumentação injustificada. A segunda razão baseia-se na inadmissibilidade do argumento da demandante, de que teria ocorrido lesão ao art. 307, primeiro parágrafo TCE125. Segundo T. Port, o Conselho ignorou a regra de delimitação de competências entre a Comunidade e seus Estados membros ao adotar o Regulamento 404/93, no seu capítulo IV126, pois determinados dispositivos deste regulamento eram contrários às obrigações assumidas pela República Federal da Alemanha em 1952, data em que aderiu ao GATT de 1947. Segundo entendimento do Tribunal, o parágrafo primeiro do art. 307 TCE, tem por objetivo garantir o respeito às convenções internacionais celebradas pelos Estados membros antes de sua adesão à CE. Por conseguinte, “para determinar se uma norma comunitária pode ser tornada inoperante por uma convenção internacional anterior, importa examinar se esta se impõe ao Estado-membro em causa, obrigações cujo cumprimento pode ainda ser exigido pelos países-terceiros que são parte na convenção”127. Duas ordens de 125. Art. 307, primeiro Parágrafo TCE. “As disposições do presente Tratado não prejudicam os direitos e obrigações decorrentes de convenções concluídas antes de 1. de janeiro de 1958 ou, em relação aos Estados aderentes, anteriormente à data da respectiva adesão, entre um ou mais Estadosmembros, por um lado, e um ou mais Estados-terceiros, por outro”. 126. Este regulamento, de 13 de fevereiro de 1993, substituiu os regimes nacionais de importação de bananas, estabelecendo a organização comum de mercado do setor de bananas. Este regime de importação foi objeto de um processo de resolução de litígios no âmbito da OMC, como conseqüência de queixas apresentadas por alguns Estados. O Órgão de Resolução de Litígios da OMC declarou, em 25 de setembro de 1997, que vários aspectos do sistema comunitário de importação de bananas são incompatíveis com as regras da OMC. Apesar do Conselho ter adotado um novo Regulamento 163/98, de 20 de julho de 1998, este também teve dispositivos considerados incompatíveis com a OMC. 127. Sentença TPI de 12 de julho de 2001. Caso “T.Port contra Conselho”. 128

questão se colocam. A primeira, de que o GATT de 1994, é juridicamente distinto do GATT de 1947128. Segundo, somente a Comunidade, por força do disposto no art. 133 TCE (política comercial comum) era competente para celebrar o acordo GATT/ 94129, e por conseqüência, as obrigações resultantes vinculam apenas a Comunidade e não os Estados membros. Resulta da jurisprudência plasmada nesta sentença, que o Tribunal, mesmo admitindo determinados pressupostos para que a legalidade da norma comunitária possa ser avaliada pelas normas da OMC, tal postura não se reflete nas ações concretas de indenização por responsabilidade extracontratual. Ao não reconhecer um efeito direto às normas da OMC, a jurisprudência comunitária eximiu-se também da responsabilidade de verificar a legalidade dos atos comunitários à luz das disposições da OMC.

6.5 Efeito jurídico das recomendações e decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Análise do caso “Biret”. Sentença do TPI, Conclusões do Advogado Geral e recurso perante o TJCE130 Na celebração dos acordos finais da Rodada Uruguai e o conseqüente acordo que cria a OMC em 1994, estavam incluídos também (entre outros) os acordos relacionados à aplicação de medidas sanitárias e fitossanitárias (acordo SFS) e o memorando de entendimento sobre as regras e processos que regem a resolução de litígios. Em abril de 1996, o Conselho adotou a 128. Artigo II, n. 4 do acordo OMC. 129. Ver Parecer 1/94 de 15 de novembro de 1994. Este Parecer é particularmente importante, pois versa sobre a delimitação de competências entre a Comunidade e seus Estados membros para a negociação e celebração dos acordos resultantes da Rodada Uruguai. 130. Sentença TPI de 11 de janeiro de 2002. Caso “Biret”, Conclusões do Advogado Geral Siegbert Alber, apresentadas em 15 de maio de 2003, caso “Biret” e Sentença TJCE, de 30 de setembro de 2003, caso “Biret”. 129

Diretiva 96/22/CE, relativa à proibição de utilização de certas substâncias com efeitos hormonais ou tireoestáticos e de substâncias beta-agonísticas em produção animal, mantendo a proibição anterior de importação de tal produto. Em fevereiro de 1998, o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC (OSC) declarou o regime comunitário incompatível com o acordo SFS, concedendo à Comunidade um prazo até 13 de maio de 1999 para executar as recomendações do OSC. Em 28 de junho de 2000, a Biret International S.A., cujo objeto social é a comercialização de produtos alimentares, entrou com uma ação contra o Conselho, nos termos dos artigos 235 TCE conjugado com o segundo parágrafo do artigo 288 TCE, com o objetivo de obter o ressarcimento do prejuízo causado pela manutenção da diretiva 96/22 e conseqüente proibição de importação de carnes e derivados tratados a base de certos hormônios dos Estados Unidos. O acórdão do Tribunal de Primeira Instância reitera a jurisprudência anterior de que, tendo em atenção a sua natureza e a sua economia, o acordo OMC e seus anexos, não constam entre as normas levadas em consideração pelo Tribunal de Justiça para fiscalizar a legalidade dos atos das instituições comunitárias. Da mesma forma, tais acordos também não criam direitos em favor dos particulares que estes possam invocar em juízo e sua eventual violação também não é, portanto, capaz de desencadear a responsabilidade extracontratual da Comunidade. Como já referido na sentença Portugal contra Conselho, os acordos OMC têm por objeto a regulamentação e a gestão das relações entre Estados ou organizações regionais de integração econômica, e não a proteção de particulares. O TPI enfatiza o entendimento de que estes acordos baseiam-se no princípio das negociações realizadas com base na reciprocidade e de vantagens mútuas, reafirmando que “só no caso de a Comunidade ter decidido dar execução a uma obrigação determinada assumida no quadro da OMC, ou de o ato comunitário remeter, de modo expresso, para disposições precisas dos acordos OMC, é que compete ao juiz comunitário fiscalizar a legalidade do ato comunitário em causa à luz das regras da 130

OMC”131. A decisão do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, de 13 de fevereiro de 1998, segundo entendimento do TPI, não põe em causa esta apreciação. “Com efeito, esta decisão está necessária e diretamente ligada ao fundamento da violação do acordo SFS, e só pode ser tomada em consideração na hipótese de o efeito direto deste acordo ter sido constatado pelo juiz comunitário no âmbito de um fundamento baseado na invalidade das diretivas em causa”132 (negrito nosso). Conseqüentemente, o TPI julgou improcedente a ação de indenização proposta pela Biret, por não reconhecer, basicamente, que uma decisão do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC fosse um parâmetro válido para verificar a legalidade dos atos comunitários. Neste caso, por incrível que pareça, o TPI não considerou a decisão do OSC, que declarou a ilegalidade do regime comunitário de importação de carnes, e fez depender o efeito direto desta decisão do efeito direto do próprio acordo SFS. No recurso apresentado da sentença do TPI ao TJCE, a Biret argumenta que de acordo com o artigo 300, n. 7 TCE os acordos da OMC são parte integrante do Direito Comunitário e portanto, seria contraditório não reconhecê-los como critério de apreciação dos atos comunitários de direito derivado. Em especial, a sentença recorrida não acolhe o argumento de que, ao aderir ao sistema de solução de controvérsias da OMC, a Comunidade vinculou-se a reconhecer as decisões de arbitragem do Órgão de Solução de Controvérsias. Neste sentido, entende que, por força da referida decisão do OSC, estão preenchidas as condições para as exceções admitidas pelo TJCE, ao princípio da não aplicabilidade direta das normas da OMC. Em suas observações, o Advogado Geral detém-se sobre a aplicabilidade direta das normas da OMC, por força das recomendações do OSC, chegando à conclusão de que o “direito da OMC é diretamente aplicável, 131. Sentença TJCE, caso “Portugal contra Conselho”, citada na presente sentença do TPI. 132. Sentença TPI de 11 de janeiro de 2002, caso “Biret”. 131

quando as recomendações ou decisões do OSC declaram a incompatibilidade de uma medida comunitária com o direito da OMC e a Comunidade não executou as recomendações ou decisões dentro do prazo razoável concedido”133. A manifestação do TJCE é contrária às conclusões do Advogado Geral e particularmente intrigante. Concorda com o TPI e pergunta-se onde e quando a Comunidade assumiu o compromisso de dar execução a todas as obrigações decorrentes de uma decisão do OSC, o que seria contrário à filosofia geral dos acordos da OMC. Apesar de considerar a insuficiente fundamentação jurídica que o TPI apresentou para justificar a sentença recorrida, o TJCE considerou-a legítima ao concluir que o fundamento da responsabilidade extracontratual da Comunidade na violação do acordo SFS, não era procedente, com os seguintes termos: “Nestas condições, e sem que se tenha de questionar sobre as eventuais conseqüências indenizatórias para os particulares da inexecução pela Comunidade de uma decisão do OSC que declara a incompatibilidade de um ato comunitário com as regras da OMC, importa declarar que, no caso vertente, na ausência de dano alegado após 13 de maio de 1999, não existe, de qualquer forma, responsabilidade da Comunidade”134 (negrito nosso). Tal manifestação do TJCE leva à conclusão de que o Tribunal vem aceitando os argumentos da Comissão e do Conselho, segundo os quais, tanto os acordos da OMC, quanto as decisões do OSC, são baseados em negociações que assentam no princípio da reciprocidade. Ou seja, a não execução de uma decisão do OSC é considerada como sendo uma opção de política comercial e não como opção jurídica. Neste sentido, a manifestação do Advogado Geral neste caso é particularmente procedente, pois em sua análise sobre o memorando de entendimento do OSC, afirma que em relação às regras e processos que regem a resolução de litígios, os órgãos legislativos e executivos já não dispõem de 133. Conclusões do Advogado Geral de 15 de maio de 2003, caso “Biret”. 134. Sentença TJCE de 30 de setembro de 2003, caso “Biret”. 132

qualquer margem de manobra, suscetível de ser limitada pelo reconhecimento da aplicabilidade direta do direito da OMC. Deste modo, a ambigüidade da posição do Tribunal pode vir a ferir o princípio da legalidade, pois as decisões irrecorríveis do OSC, a cujo sistema a Comunidade pertence, podem não produzir efeitos jurídicos intracomunitários e, portanto, não fundamentar pedidos de indenização pela violação de normas da OMC, além de colocar em causa o funcionamento do sistema multilateral de comércio.

6.6 Observações quanto aos “acordos que criam um marco institucional específico ao organizar os procedimentos de cooperação” Neste caso, criam-se órgãos dotados do poder de adotar decisões obrigatórias para as partes contratantes do Acordo e que criam novos direitos e obrigações para elas, ou que modificam os direitos e obrigações existentes. Neste sentido, a atuação de tais órgãos implica na criação do direito derivado comum às partes no Acordo, sendo portanto, fonte de direito de um sistema de solução de controvérsias135. Se as decisões dos órgãos conjuntos, destinadas a criar ou modificar obrigações desde sua adoção, integram de modo efetivo o ordenamento jurídico comunitário, por se constituírem em atos adotados por organismos comunitários, podem, também, sofrer o controle de sua legalidade/constitucionalidade pelo TJCE. Segundo jurisprudência reiterada, “O Tribunal decidiu que as decisões do Conselho de Associação, tomadas em razão do Acordo (com a Turquia), para cuja implementação elas foram editadas, assim como o Acordo mesmo, formam parte integrante do ordenamento jurídico comunitário. Do mesmo modo como o Tribunal é competente para pronunciar-se, via prejudicial, sobre o Acordo como sendo um ato dos órgãos comunitários, ele também 135. Ver TORRENT, op.cit., p. 124 e ss. 133

é competente para decidir sobre a interpretação das decisões provenientes do Acordo e sua execução pelos órgãos responsáveis”136 (negrito nosso). Os recursos passíveis de serem adotados em relação às decisões dos órgãos conjuntos abrangem as principais figuras processuais, em especial os recursos por ilegalidade e o reenvio prejudicial. Esta postura do TJCE implica na sua virtual competência para manifestar-se sobre qualquer aspecto, tanto do acordo em si, mas também sobre os atos de implementação e execução adotados em conjunto. Ou seja, as decisões dos órgãos conjuntos, destinadas a criar ou modificar obrigações desde sua adoção, integram de modo efetivo o ordenamento jurídico comunitário e portanto são passíveis de serem controlados pelo Tribunal como qualquer outro ato comunitário.

6.7 Sistemas de solução de controvérsias em acordos bilaterais Em dezembro de 1991, o TJCE emitiu um parecer sobre o projeto de acordo entre a Comunidade Européia de um lado, e os Países da Associação Européia de Livre Comércio (AELC) por outro, com a finalidade de criar o Espaço Econômico Europeu (EEE). A finalidade do acordo EEE seria criar um espaço econômico homogêneo, no qual o Direito fosse essencialmente idêntico ao vigente dentro da Comunidade, e cuja aplicação fosse a mais uniforme possível. Para tanto, foram previstos três objetivos: um mecanismo de solução de controvérsias entre as partes contratantes, a solução de conflitos internos da AELC, e o fortalecimento da homogeneidade jurídica dentro do Espaço EE137.

136. Sentença TJCE “Sevicence” de 20 de setembro de 1990. 137. Ver as observações escritas apresentadas pela Comissão ao Tribunal. Parecer 1/91 de 15 de dezembro de 1991. 134

“Quando um acordo internacional preveja um sistema jurisdicional próprio que compreende um órgão jurisdicional competente para resolver as controvérsias entre as partes contratantes do acordo, e por conseguinte, para interpretar suas disposições, as resoluções deste órgão jurisdicional vinculam as Instituições da Comunidade, incluindo este Tribunal de Justiça. Tais resoluções impõem-se mesmo quando este Tribunal deva pronunciar-se, com caráter prejudicial ou no marco de um recurso direto, sobre a interpretação do acordo internacional, em virtude de que este último forma parte integrante do sistema jurídico comunitário. (...) Quando se lhe submeta um litígio relativo a interpretação ou a aplicação de uma ou várias disposições do Acordo, é possível que o Tribunal EEE deva interpretar o conceito de “parte contratante” ... com a finalidade de determinar se, conforme a disposição objeto do litígio, os termos “parte contratante” se referem à Comunidade, à Comunidade e seus Estados-membros, ou únicamente aos Estados-membros. O Tribunal EEE deverá, pois, pronunciarse sobre as competências respectivas da Comunidade e de seus Estados-membros nas matérias regidas pelas disposições do Acordo. Do acima exposto, deduz-se que a competência atribuída ao Tribunal EEE....pode vulnerar a ordem de competências definida nos Tratados e, portanto, a autonomia do sistema jurídico comunitário, cujo respeito é garantido pelo Tribunal de Justiça, conforme o art. 164 TCEE. A atribuição desta competência ao Tribunal EEE é, portanto, incompatível com o Direito Comunitário”138.

Da mesma forma que no Parecer 1/76, o Tribunal posicionouse de forma absolutamente contrária a que um órgão jurisdicional criado por um acordo internacional do qual a Comunidade fosse parte, pudesse ter competência para interpretar disposições comuns do acordo e os atos resultantes dos órgãos criados conjuntamente. Como já visto no item anterior, os atos emanados de tais órgãos 138. Parecer TJCE 1/91 referente ao projeto de Acordo sobre o Espaço Econômico Europeu.

135

conjuntos, integram o sistema jurídico comunitário, e cabe ao Tribunal verificar sua legalidade, de acordo com o Direito Comunitário vigente. Ora, na hipótese de um órgão jurisdicional proveniente de um acordo internacional possuir a mesma competência para posicionar-se sobre os atos emanados em conjunto, na percepção do Tribunal, a conseqüência seria um possível conflito de jurisdições. O resultado da posição do Tribunal foi de que em todos os acordos dos quais a Comunidade é parte, não existe um mecanismo jurisdicional próprio. A participação comunitária nos sistemas de solução de controvérsias destes acordos é através de mecanismos de arbitragem, seja no marco multilateral, no caso da OMC, seja no marco bi-ou-plurilateral, caso dos acordos com Países individuais, México, Chile, África do Sul, ou dos acordos Euro-Mediterrâneos, ACP ou de Partenariado. No Acordo com o México139, por exemplo, é instituído um procedimento arbitral padrão. O que realmente foge do usual é a possibilidade de interpor a mesma ação perante o Órgão de Resolução de Controvérsias da OMC140. Esse dispositivo fere 139. Acordo de Livre Comércio. Estados Unidos Mexicanos e Comunidade Européia. Decisão do Conselho Conjunto instituído pelo Acordo de Associação Econômica, Concertação Política e Cooperação entre a Comunidade e seus Estados Membros e o México. Jornal Oficial L 276, de 28/10/2000. Título V – Solução de Controvérsias. 140. Art. 43, n. 4 do Acordo de Livre Comércio entre a Comunidade Européia e os Estados Unidos Mexicanos. “O recurso às disposições do procedimento de solução de controvérsias estabelecido neste título será sem prejuízo de qualquer ação possível no marco da OMC, incluindo o pedido de um procedimento de solução de controvérsias. No entanto, quando uma parte tenha iniciado um procedimento de solução de controvérsias conforme o artigo 39 (1) deste título ou pelo Acordo com o qual se estabelece a OMC em relação a um assunto específico, não poderá iniciar um procedimento de solução de controvérsias no outro foro até que o primeiro procedimento tenha sido concluído. Para os efeitos deste parágrafo, consideram-se iniciados os procedimentos de solução de controvérsias no marco da OMC quando uma parte tenha apresentado um pedido para o estabelecimento de um grupo especial em conformidade com o art. 6 do Entendimento relativo às Normas e Procedimentos pelos quais se rege a Solução de Controvérsias na OMC”. 136

inicialmente o princípio do non bis in idem, segundo o qual uma mesma disputa não pode ser objeto de duas ações distintas, interpostas em órgãos jurisdicionais diversos. No entanto, seu grande problema é um eventual conflito entre o laudo emanado do sistema bilateral com aquele proferido pela OMC. Nesta hipótese, se a parte que perdeu a disputa recorre à OMC, o laudo emitido nesta organização equivaleria ao recurso a uma jurisdição superior ou apenas como uma recomendação às partes? Ou então, poderiam haver intervenientes de Países terceiros em uma disputa que é originária de um acordo bilateral? Na hipótese contrária, o laudo emitido pelo sistema bilateral poderia sobrepor-se ao da OMC, e com quais conseqüências caso Países terceiros fossem intervenientes? Em qualquer das hipóteses, estaria criada uma situação de confusão jurídica que acabaria afetando a previsibilidade dos operadores econômicos no sistema bilateral de solução de controvérsias. Já no Acordo Chile-União Européia, instituiu-se um sistema arbitral no qual a influência do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC é bastante nítida, inclusive em relação ao cumprimento da decisão proferida e a possibilidade de aplicação de retaliações141. Outro aspecto importante, segundo LOUREIRO142, é o estabelecimento de competências entre o Sistema de Solução de Controvérsias da OMC e o do sistema bilateral, o qual é descrito no item n.4 do artigo 189 do Acordo143, podendo ser resumido nos seguintes termos: disputas que tenham por base normas da OMC, deverão ser submetidas ao Órgão de Solução de Controvérsias, cujas decisões serão aplicáveis independentemente das disposições do acordo bilateral; se a origem da disputa for 141. LOUREIRO, Patrícia. “Área de Livre Comércio Chile-União Européia: O Funcionamento do Sistema de Solução de Controvérsias”. In: Direito Internacional e da Integração. Luiz Otávio Pimentel (Org.). Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003, p. 758. 142. LOUREIRO, op.cit., p. 759. 143. Acordo de Associação Política e Comercial entre Chile e União Européia. Jornal Oficial L 352, de 30/12/2002. 137

uma norma do acordo bilateral, aplica-se o sistema de solução de controvérsias do próprio acordo; e finalmente, salvo entendimento entre as partes, caso a disputa ocorra em virtude de dispositivos semelhantes tanto no acordo bilateral, quanto na OMC, deverá recorrer ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Este sistema permite maior segurança jurídica.

7. CONCLUSÕES Duas ordens de questões se apresentam. Inicialmente, aquelas relacionadas à compatibilidade dos acordos de livre comércio bilaterais com as regras da OMC. No caso específico da União Européia, os problemas resultantes dos Acordos Lomé sobre o regime comunitário de importação de bananas com as obrigações assumidas no âmbito da OMC, tiveram por conseqüência a adoção, por parte da Comunidade, de medidas que permitissem, na prática, a submissão hierárquica dos acordos bilaterais ao acordo OMC, inclusive no mecanismo de solução de controvérsias. Tal postura, no entanto, permite de um lado, que a própria OMC venha a posicionar-se sobre a compatibilidade ou não do acordo bilateral com suas normas. Por outro, subestima o fato de que grandes acordos comerciais exigem regras claras de solução de conflitos, exatamente com o objetivo de proporcionar a segurança jurídica necessária144. Por outro lado, a jurisprudência do Tribunal sobre a não invocabilidade das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, como critério de avaliação da legalidade dos atos comunitários, debilita o sistema multilateral, tornando-o refém da exegese comunitária. A proliferação de acordos bilaterais de livre comércio necessita que as regras para a resolução de litígios sejam claras, e neste ponto, a posição do Tribunal Europeu deve ser reavaliada para permitir a composição mútua de interesses. 144. TORRENT, op.cit., p. 205 e ss. 138

SIGLAS E ABREVIATURAS Comunidades Européias

CE

Órgão de Solução de Controvérsias

OSC

Tratado da Comunidade Européia

TCE

Tribunal de Justiça das Comunidades Européias

TJCE

Tribunal de Primeira Instância

TPI

União Européia

UE

139

Capítulo 3 O Sistema de Solução de Controvérsias do Mercosul

LUIZ OTÁVIO PIMENTEL ADRIANA DREYZIN DE KLOR

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS O presente texto, que reúne materiais e reflete posições dos autores já manifestadas anteriormente em textos e cursos, foi elaborado para o livro organizado pela Fundação Konrad Adenauer para embasar a discussão do tema solução de controvérsias no futuro acordo de liberalização comercial entre o MERCOSUL e a União Européia. Cabe recordar que no ano de 2000 os autores Luiz Otávio e Adriana, juntamente com Patricia Luíza Kegel e outros juristas do MERCOSUL, realizaram uma viagem de estudos promovida pela Fundação Adenauer. Nessa ocasião se pôde observar a prática e a aplicação do Direito Comunitário Europeu, na visita a órgãos da Comissão Européia, Parlamento Europeu e Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, entre outras instituições. O que foi possível observar e analisar com os meios disponíveis e informações colhidas, é que a integração européia é um importante manancial de informações sobre a construção de um espaço social, econômico, político e jurídico ampliado, além do nacional. 141

O projeto de associação intercontinental entre dois blocos assimétricos, como assimétricos são os Estados-Partes e Estados-Membros de ambos, requer um conhecimento profundo dos seus sistemas e ordenamentos jurídicos e dos mecanismos de solução de controvérsias. Nosso propósito é tratar do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL, focalizando as normas contidas no Protocolo de Olivos com relação ao sistema vigente no bloco. Recordaremos os motivos que influenciaram para modificar o Protocolo de Brasília, efetuando uma breve referência às etapas pelas quais passou a reforma e assinalando os pontos que suscitaram maior interesse durante a etapa das negociações que culminaram com a aprovação do texto de Olivos. Concluindo com reflexões sobre o mecanismo existente. Esclarecendo que se entende por “sistema” a combinação de procedimentos políticos e jurídicos, coordenados entre si, que concorrem para um resultado, aqui a solução de uma controvérsia; forma, assim, um conjunto de meios (um mecanismo) para regular o funcionamento da solução de controvérsias num processo de integração. Acrescentamos que o conteúdo do presente texto foi objeto de debate nos módulos referentes ao MERCOSUL da disciplina “Mecanismos de solução de controvérsias: Organização Mundial do Comércio, União Européia e MERCOSUL”, oferecida em conjunto nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito, Área de Relações Internacionais, da Universidade Federal de Santa Catarina, no último trimestre de 2003, pelos Professores Welber Barral, Patricia Luíza Kegel, Luiz Otávio Pimentel, Adriana Dreyzin de Klor e Elizabeth Accioly.

142

2. OS SUCESSIVOS INSTRUMENTOS DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS DO MERCOSUL O Tratado de Assunção estabeleceu, no art. 3, que durante o período de transição do MERCOSUL, que se estenderia desde a entrada em vigor do tratado até 31 de dezembro de 1994, os Estados-Partes adotariam um sistema de solução de controvérsias para o MERCOSUL. O primeiro instrumento do sistema foi o Anexo III do Tratado de Assunção, sobre “Solução de Controvérsias”, vigente a partir de 29 de novembro de 1991. O segundo instrumento foi o Protocolo de Brasília, aprovado por Decisão na Primeira Reunião do Conselho do Mercado Comum, realizada em Brasília, no dia 17 de dezembro de 1991, MERCOSUL/CMC/DEC. N° 1/91, que entrou em vigor a partir de 22 de abril de 1993. Acrescentando-se o Anexo ao Protocolo de Ouro Preto, sobre o “Procedimento Geral para as Reclamações na Comissão de Comércio do MERCOSUL”, de 17 de dezembro de 1994, e o Regulamento do Protocolo de Brasília, MERCOSUL/CMC/DEC. N° 17/98. O terceiro e último instrumento foi o Protocolo de Olivos, firmado em 18 de fevereiro de 2002, que entrou em vigor a partir de 1º de janeiro de 2004. Sendo estabelecido, no art. 53, que será efetuada uma revisão do mecanismo de solução de controvérsias instituído no protocolo, antes de finalizar o processo de convergência da tarifa externa comum, prevista para o ano de 2006, a fim de adotar um sistema permanente de solução de controvérsias para o MERCOSUL, segundo previsto no Tratado de Assunção, Anexo III, 3.

2.1 A modificação do sistema de solução de controvérsias do Protocolo de Brasília Modificar o sistema de solução de controvérsias era um tema latente nos órgãos do MERCOSUL e entre os juristas, pois desde 143

a aprovação do Tratado de Assunção foi um debate constante entre os operadores, acadêmicos e especialistas1. Começou a tomar corpo quando no marco do “relançamento do MERCOSUL”, as delegações dos Estados-Partes apresentaram na Reunião de Coordenadores uma série de propostas. 1.

Entre as várias reuniões científicas realizadas desde o início do processo até o final do período de transição do MERCOSUL, que culminou com a assinatura do Protocolo de Ouro Preto em 1994, se pronunciaram neste sentido: “Primeras Jornadas sobre Integración Latinoamericana: Perspectivas del Mercosur”, Consejo de Partidos Políticos-Provincia de Córdoba, 27/9/91; “XI Congreso Ordinario de la AADI y V Congreso Argentino de Derecho Internacional - Sección Integración”, Asociación Argentina de Derecho Internacional, Córdoba, 7-9/11/91; “Congreso Internacional Mercosur”, Fundación de Empresas, Córdoba, 2-4/7/92; “VI Congreso Argentino de Derecho Internacional - América: Desde la conquista a la Busqueda de la Integración”, AADI, Rosario, 27-29/8/192; “Seminario Aladi-Mercosur sobre Aspectos Teórico-Practicos”, Editorial Guía Práctica del Exportador e Importador S.A.C.I., Córdoba, 27/10/92; “Jornadas sobre Implicancias del Mercosur en el Derecho Público”, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Departamento de Derecho Público, Universidad Nacional de Córdoba, 3/11/92; “Jornadas sobre Aspectos Jurídicos que requieren armonización en el Mercosur”, Colegio de Abogados de la Ciudad de Buenos Aires, 19/11/92; Jornadas Nacionales “Las Relaciones del Trabajo y La Seguridad Social en el Mercosur”, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Departamento de Derecho Social, Universidad Nacional de Córdoba, Ministerio de Trabajo de la Provincia de Córdoba, Vaquerías, Córdoba, 25-27/6/93; “Encuentro de Especialistas en el Mercosur”, Centro de Estudios Comunitarios de la Facultad de Derecho de la Universidad Nacional de Rosario, 8-9/11/93; Congreso Internacional “En busca de nuevos vínculos: las realidades del Nafta y Mercosur en los umbrales del siglo XXI”, México DF, 18-21/1/94; “Congreso Internacional de Derecho del Trabajo y la Seguridad Social en el Mercosur”, Universidad del Museo Social Argentino, Buenos Aires, 8-10/6/94; “III Jornadas Argentinas de Derecho Internacional Privado”, AADI Sección Derecho Internacional Privado, Rosario, 18-19/11/94; “II Encuentro de Especialistas en el Mercosur”, Centro de Estudios Comunitarios y Migratorios de la Facultad de Derecho de la Universidad Nacional de Rosario y el Instituto de Estudios Interdisciplinarios y Documentación Jurídica del Colegio de Abogados de Rosario, 25-26/11/94. Também anualmente o tema foi amplamente debatido nos Encontros Internacionais de Direito da América do Sul (Tubarão, Asunción e Montevideo), 1991, 1992, 1993 e 1994. 144

Os aspectos pontuais sobre os quais tiveram consenso as delegações para iniciar a análise da problemática foram o controle de cumprimento dos laudos, as eventuais sanções por não cumprimento dos mesmos, a composição da lista de árbitros e o cômputo dos prazos estabelecidos no Protocolo de Brasília. A delegação argentina manifestou-se sobre a conveniência de estudar a criação de uma instância jurídica que definisse com caráter geral e vinculante a interpretação da normativa e a conformação de um mecanismo de revisão dos laudos. A delegação brasileira propôs que a intervenção do Grupo Mercado Comum prevista no Protocolo de Brasília deveria ser optativa; que se estudasse introduzir alguns procedimentos simplificados para os conflitos originados em temas específicos, como eram o regime de origem e o dumping; que o Conselho do Mercado Comum fosse o órgão encarregado de esclarecer o conteúdo e o alcance dos laudos arbitrais. Pouco tempo depois de serem aventadas estas questões foi aprovada a Decisão n° 25/2000 sobre o “Aperfeiçoamento do Sistema de Solução de Controvérsias do Protocolo de Brasília”.2 Instrumento pelo qual foi incumbido o Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais do MERCOSUL de efetuar a análise necessária para propor uma reforma, estabelecendo como prazo o dia 10 de dezembro de 2000. Foram enumerados os itens que deveriam receber tratamento, ainda que de modo não taxativo, alguns dos quais coincidiam com assuntos que já eram objeto de discussão no seio do Grupo de Trabalho; entre estes o referido ao aperfeiçoamento da etapa posterior ao laudo arbitral, particularmente os aspectos referentes ao seu cumprimento e o alcance das medidas compensatórias; as alternativas para uma interpretação uniforme da normativa; a agilização dos procedimentos existentes e a implementação de procedimentos sumários para casos determinados. 2.

XVIII Reunião do CMC, 29/6/2000. 145

Além desses, a listagem incluiu: os critérios a seguir para a conformação das listas de especialistas e de árbitros, o procedimento para suas designações em cada caso e a maior estabilidade que deveriam ter os árbitros.

2.1.1 A atuação do Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais Em cumprimento ao mandato recebido, o Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais celebrou várias reuniões3, onde se analisaram as respectivas posturas assumidas pelas delegações. No encontro que teve lugar em Brasília4, o Brasil apresentou um documento que, mesmo excedendo o mandato atribuído ao Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais, serviu de base para que as delegações trocassem opiniões preliminares e elaborassem um novo texto. Entre as matérias incluídas, cabe destacar as seguintes: a)

b) c)

d)

3. 4.

a intervenção do Grupo Mercado Comum seria optativa, desde que existisse consenso das duas partes envolvidas na controvérsia. se a controvérsia fosse ao Grupo Mercado Comum, este deveria formular recomendações. a ampliação da lista de árbitros nacionais a doze, a fim de beneficiar o processo de solução de controvérsia com uma maior especialidade técnica. a necessidade de estabelecer algum tipo de controle na designação dos árbitros dos outros Estados-Partes. Entre outras: Buenos Aires, 30 e 31/5/2000; Brasília, 24 e 25/8/2000; Montevidéu, 20 a 22/11/2000. Ata 3/00. 146

e) f)

g)

incluir um órgão de apelação, revisor da aplicação do direito, semelhante ao da Organização Mundial do Comércio. o tribunal arbitral que proferisse o laudo seria o encarregado de determinar se o Estado-Parte obrigado ao cumprimento implementou as medidas necessárias para cumprir com o mesmo. no que tange às sanções, como no caso das retaliações comerciais, se analisaria a possibilidade de alcançar outro setor, além daquele da controvérsia, e o montante que deveriam ter as mesmas.

A Reunião de Brasília foi positiva em função da atividade convocada e, sobretudo, pela notória mudança que se sentiu na delegação do Brasil, que manifestou uma flexibilização de seu posicionamento. Este giro para a admissão das formulações do teor das resumidas e, mais ainda, ter assumido a iniciativa em vários aspectos, foi considerado um verdadeiro avanço cujos efeitos favoreceram o desenvolvimento das negociações. Nas seguintes reuniões do Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais, prévias à Reunião de Cúpula de Florianópolis (2000), se registraram intensas negociações para acordar um projeto modificador do Protocolo de Brasília. No entanto, isso só foi possível entre a Argentina, o Brasil e o Paraguai, pois o Uruguai não aderiu ao texto consensuado, coerente com o critério que vinha sustentando praticamente desde o início do processo. O ministro uruguaio, Didier Oppertti Badán, em 1999, afirmou: “[...] somos firmes partidarios de la creación de un Tribunal de Justicia del Mercosur, no solamente basados en el principio de que es bueno que quienes puedan tener una controversia tengan acceso a una oferta de justicia permanente, sino porque estimamos que es la garantía indispensable para una asociación de 147

Estados basada en el principio de la desigualdad económica y la igualdad jurídica”5.

Conforme juízo da delegação uruguaia a modificação do sistema, respeitando o mandato do Conselho do Mercado Comum, merecia uma revisão mais profunda. A problemática deveria ser compreendida num sentido amplo incluindo tanto a resolução de conflitos como uma eventual prevenção. Assim mesmo, posicionou-se favoravelmente à constituição de um tribunal arbitral permanente com competência para conhecer de consultas e conflitos entre Estados, e entre Estados e particulares, e insistiu em sua proposta de criar uma secretaria técnica que, entre outras atividades, tivesse a seu cargo realizar o acompanhamento das condutas do Estado vencido no cumprimento do laudo. A criação de uma secretaria técnica foi proposta pela delegação do Uruguai, em 1998.6 A iniciativa surgiu motivada pela avaliação que o Grupo Mercado Comum realizou sobre o funcionamento institucional do bloco, a partir da qual os uruguaios manifestaram sua preocupação pela desordem que se observava nos trabalhos que eram desenvolvidos pelos diferentes foros dependentes deste órgão. Entendeu a delegação que uma secretaria técnica poderia servir como suporte no tratamento e aprovação dos diversos projetos que se debatem nos foros. No início não recebeu o apoio das demais delegações, posteriormente a proposta ganhou espaço, até que na reunião ordinária do Conselho do 5.

6.

OPPERTTI BADÁN, Sistema de Solución de Controversias en el Mercosur. No mesmo sentido: Simposio sobre tribunal de justicia para el Mercosur: bases para la creación de un tribunal de justicia en el Mercosur, 1991; participantes: Pierre Pescatore, Manuel Díez de Velasco e Fernando Uribe Restrepo. Solución de Controversias en el Mercosur, 1992, presidido pelo Ministro de Relações Exteriores uruguaio Héctor Gros Espiell e integrada por: Miguel Berthet, Margarita Brito del Pino, José María Gamio, Adolfo Gelsi Bidart, Ronald Herbert, Eduardo Jimenez de Aréchaga, Daniel Hugo Martins, Vivián Matteo Oteiza, Felipe Paolillo, Jorge Peirano Basso, Jorge Pérez Otermin, Jorge Tálice Lacombe e Alvaro Valverde. XXXII Reunião do GMC, 7-8/12/1998. 148

Mercado Comum, foi aprovada mediante Decisão para o Fortalecimento Institucional, pela qual se instruía o Grupo Mercado Comum para que iniciasse o processo necessário para a transformação da Secretaria Administrativa do MERCOSUL em uma secretaria técnica.7 Neste estágio, o Uruguai entregou a sua proposta. Sendo as diferenças inconciliáveis, naquele momento, decidiu-se encaminhar o projeto de decisão aos coordenadores do Grupo Mercado Comum com as alternativas apresentadas pelo Uruguai e as propostas dos demais Estados-Partes.8 Os temas mais importantes que se consignaram no projeto foram: a)

b)

c)

d) e)

7.

8.

considerar a possibilidade de criar mini-procedimentos técnicos em temas de política comercial comum (como regras de origem e dumping), os quais poderiam estabelecer-se em cada instrumento, requerendo a aprovação do Conselho do Mercado Comum. Ficando aberta a possibilidade de recorrer às disposições do Protocolo de Ouro Preto e do Protocolo de Brasília. a intervenção do Grupo Mercado Comum com caráter optativo, dependendo do acordo entre as partes na controvérsia. ampliar a lista de árbitros nacionais a quinze integrantes, criando uma lista reduzida de presidentes a ser integrada por juristas de reconhecida trajetória e escolhidos por consenso dos Estados-Partes. prever a possibilidade de objetar as nomeações. ratificar a necessidade de respeitar o caráter de independência e imparcialidade dos árbitros. XXII Reunião Ordinária do CMC, Buenos Aires, 5/7/2002, DEC. N° 16/ 02. “La Secretaria Tecnica se instituyó en octubre de 2003, luego de un transparente proceso de selección por el que se cubrieron los cargos de especialistas en el plano jurídico y en el económico”. Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais do MERCOSUL, Ata 6/00. 149

f)

g)

h)

criar uma instância revisora do direito, através de um órgão estável integrado por cinco juristas (um de cada Estado-Parte e o quinto a definir). Esta base não foi aceita pelo Uruguai que entendia que os laudos deveriam ser inapeláveis. disciplinar a possibilidade de aplicar medidas compensatórias, aditando uma redação similar à prevista no Entendimento sobre Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio. prever a possibilidade de que fosse o tribunal que emitiu o laudo quem se pronunciaria sobre a efetividade das medidas implementadas pelo Estado-Parte obrigado, para darlhe cumprimento.

O projeto de modificação deixou vários aspectos sem definir. Em conseqüência, na Reunião de Cúpula de Florianópolis, em dezembro de 2000, na qual em princípio estava prevista a aprovação do documento elaborado pelo Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais, optou-se por adotar uma nova Decisão estendendo o prazo de apresentação da proposta definitiva.9 Foi decidida, também, a criação de um Grupo de Alto Nível de cuja conformação se encarregaria o Grupo Mercado Comum. Entretanto, ao não ficar sem efeito a anterior decisão, o trabalho realizado pelo Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais e as propostas dos Estados-Partes serviriam de base para a redação do novo instrumento jurídico que deveria incluir a criação de um tribunal arbitral permanente para o bloco. Paralelamente aos trabalhos de modificação do sistema de solução de controvérsias, o Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais analisou as formulações referidas a um regulamento modelo sobre 9.

MERCOSUL/CMC/DEC. N° 65/00, Aperfeiçoamento do Sistema de Solução de Controvérsias, XIX Reunião do CMC, Florianópolis, 14/12/2000. O prazo de apresentação da proposta definitiva se prorrogou até a XX Reunião do CMC. 150

o funcionamento dos tribunais arbitrais10. Alcançando-se consenso entre a Argentina, Brasil e Paraguai, enquanto o Uruguai, dado que a relação entre este tema e a modificação do Protocolo de Brasília era óbvia, ao não consensuar com esta, também não podia pronunciar-se sobre o regulamento. As sugestões oferecidas pelo Uruguai, em dezembro de 2000, mostravam similitudes e diferenças com o documento elaborado pelos outros Estados: a) b)

c)

d)

coincidiam na criação de um tribunal ou câmara arbitral de caráter permanente; enquanto o texto consolidado entendia que a intervenção do Grupo Mercado Comum deveria ser optativa, o Uruguai diretamente a suprimia; diferiam no alcance da competência do órgão jurisdicional: enquanto o documento submetido ao Grupo Mercado Comum só reconhece competência para os conflitos suscitados entre os Estados-Partes, o Uruguai lhe adjudicava competência para conhecer e resolver as consultas que lhe submetessem tanto os Estados, como os particulares, prevendo que se a consulta fosse efetuada com caráter vinculante ou obrigatória (por via do acordo expresso das partes consultantes) a resposta teria o mesmo efeito e a mesma força obrigatória que o laudo arbitral; o texto uruguaio estabelecia que os particulares não poderiam recorrer aos tribunais nacionais para dirimir as controvérsias que surgissem com os Estados-Partes sobre a interpretação, aplicação ou não cumprimento das disposições contidas nas fontes originárias e derivadas do MERCOSUL, com a só

10. O TLC União Européia-Chile se refere às regras modelo no art. 189.2: “A menos que las Partes acuerden otra cosa, el procedimiento ante el grupo arbitral seguirá las Reglas Modelo de Procedimiento establecidas en el Anexo XV”. 151

e)

reserva da instância de execução do laudo como efeito de coisa julgada; a proposta triparte nada disse a respeito; as bases elaboradas pelo Uruguai reconheciam ao acervo derivado das consultas um conteúdo e estabilidade substancial e processual quando da decisão de uma controvérsia através da submissão das partes ao tribunal arbitral; a proposta dos demais Estados-Partes não se pronunciava sobre este ponto.

2.1.2 A atuação do Grupo de Alto Nível O Grupo de Alto Nível foi estabelecido para concretizar o trabalho empreendido pelo Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais, se reunindo em diversas oportunidades; no entanto os primeiros encontros não foram suficientes para acordar um texto que respondesse ao novo mandato. Isso motivou uma recomendação ao Conselho no sentido de que avaliasse a conveniência de oferecer novas orientações de trabalho. Não obstante isso, em sua XX Reunião, o Conselho do Mercado Comum, se limitou a uma nova ampliação do prazo, estendendo-o até o dia 30 de novembro de 200111. A Reunião de Cúpula de Assunção, em junho de 2000, foi oportuna para que o Brasil oferecesse um novo documento sobre as bases para o aperfeiçoamento do sistema de solução de controvérsias. Os primeiros pontos aos quais se dedicou o Grupo de Alto Nível foram a criação de um tribunal permanente e a necessidade de implementar um mecanismo de consultas. Alcançou-se consenso em eliminar a intervenção do Grupo Mercado Comum com caráter obrigatório e na necessidade de implementar o seguimento 11. XX Reunião do CMC, Assunção, 21-22/6/2000, MERCOSUR/CMC/DEC. N° 7/01, Adecuación de los plazos del Programa de Relanzamiento del MERCOSUR. 152

da etapa pós-laudo, continuando-se com as negociações das diversas posições, que resultaram finalmente no projeto que precedeu a aprovação do sistema de solução de controvérsias na Reunião de Cúpula de Olivos, em fevereiro de 2002.

2.2 O sistema de solução de controvérsias no relançamento do MERCOSUL em 2000 O processo de integração regional vinha padecendo de uma crise que em grande medida, devia-se às circunstâncias particulares que atravessava cada um dos Estados-Partes em seus âmbitos interno e externo, especialmente desde fins da década de 1990. Entre as causas que podem ser apontadas como detonantes desta situação crítica regional, agravada nos últimos tempos, a desvalorização do Real não foi um fato menor. Afirma Fernández Reyes que “las derivaciones de la devaluación brasileña en enero de 1999, han afectado ostensiblemente la ‘affectio societatis’ que se reflejaba en una voluntad política uniforme de los cuatro Estados Parte”12. Uma série de desequilíbrios se produziu desde então, com um efeito cascata, tornando muito difícil as operações comerciais intrazona, em que pesem as declarações das máximas autoridades governamentais dos países integrados, no sentido de considerar o “MERCOSUL uma aliança estratégica, que como tal, transcende os inconvenientes conjunturais que enfrentam os Estados-Partes individualmente considerados”13. Nestas circunstâncias, não surpreendeu que o Conselho do Mercado Comum procedesse ao relançamento do MERCOSUL 12. ESTOUP; FERNÁNDEZ REYES (Directores), Los diez años del Mercosur: Agenda Externa, 2001, p. 70. 13. Presidentes dos Estados-Partes, Comunicado Conjunto, XXII Reunião do CMC, Buenos Aires, l 5/7/02. Reafirmaram seus compromissos de avançar no cumprimento dos objetivos do Tratado de Assunção a fim de lograrem o progresso econômico e o bem-estar social dos povos da região. 153

com o intuito de fortalecer o bloco afetado pela deterioração das relações entre os sócios. Ante o marcado sentimento de pessimismo que imperava na zona, que levou inclusive a duvidar-se sobre a sobrevivência do processo e das benesses da integração14, injetar certa dose de otimismo aparecia como uma necessidade vital. Para seu tratamento na nova etapa, o Conselho do Mercado Comum estabeleceu uma série de prioridades temáticas que se sintetizaram num pacote de decisões15 entre as quais se inclui a revisão do sistema de solução de controvérsias. A iniciativa, no que toca à matéria que nos ocupa, foi sumamente oportuna; não é novidade assinalar que um dos fatores chave para o desenvolvimento com êxito de um processo de integração é adotar um mecanismo de solução de conflitos eficiente que assegure o império do ordenamento normativo e, em conseqüência, garanta a segurança jurídica e os direitos dos particulares que operam no mercado. Os particulares que contratam e praticam o comércio intrazona, não estão devidamente amparados para o exercício de seus direitos, já que a falta de mecanismos de controle jurídico 14. Ver GONZÁLEZ, “Mercosur es la solución, no el problema”, Madrid, 1999. 15. XVIII Reunião do CMC, Buenos Aires, 29/6/2000. As normas jurídicas aprovadas no Relançamento foram: MERCOSUR/CMC/DEC. N° 22/00, Acceso a Mercados; MERCOSUR/CMC/DEC. N° 23/00, Incorporación de la Normativa Mercosur; MERCOSUR/CMC/DEC. N° 24/00, Secretaría Administrativa del Mercosur; MERCOSUR/CMC/DEC. N° 25/00, Perfeccionamiento del Sistema de Solución de Controversias del Protocolo de Brasilia; MERCOSUR/CMC/DEC. N° 26/00, Análisis de la estructura de órganos dependientes del Grupo Mercado Común y de la Comisión de Comercio; MERCOSUR/CMC/DEC. N° 27/00, Arancel Externo Común; MERCOSUR/CMC/DEC. N° 28/00, Defensa Comercial y de la Competencia; MERCOSUR/CMC/DEC. N° 29/00, Marco Normativo del Reglamento Común de Defensa contra Subvenciones concedidas por países no miembros del Mercosur; MERCOSUR/CMC/DEC. N° 30/00, Coordinación Macroeconómica; MERCOSUR/CMC/DEC. N° 31/00, Incentivos a las Inversiones, a la Producción y a la Exportación, incluyendo Zonas Francas, Admisión Temporaria y Otros Regímenes Especiales; MERCOSUR/CMC/DEC. N° 32/00, Relacionamiento Externo.

154

lhes afeta diretamente. Isto se reflete na impossibilidade de negociar com certeza e previsibilidade, restando desse modo afetada a credibilidade e a segurança jurídica do esquema. Seria importante que estes valores fossem considerados inerentes ao processo. Mais que necessários, resultam ser imprescindíveis para o seu desenvolvimento.16 A inexistência de controles jurisdicionais atenta contra este princípio e prejudica a confiabilidade e o exercício dos direitos dos cidadãos. Bem se afirma que não há direitos sem instituições adequadas e controles eficazes17, daí que a reformulação do sistema atual era uma tarefa que aparecia cada vez com maior insistência, como parte da lista de temas pendentes. A importância de contar com um órgão supranacional permanente, que exerça o controle de legalidade, que se revista de faculdades para unificar a interpretação de suas fontes jurídicas e atue como órgão jurisdicional com as competências necessárias para dotar o processo de garantias reais de justiça foi posto em destaque em inúmeras oportunidades. Desde os primeiros anos da integração se apresentaram inclusive, projetos de modificação que foram apresentados aos órgãos pertinentes, sem que obtivessem o beneplácito das autoridades do bloco18. Geralmente, o fundamento das propostas indicadas centravase entre dois tipos de argumentações; enquanto por uma parte, sustentava-se a necessidade de institucionalizar o processo como um desafio para superar o déficit democrático que o afeta. 16. DREYZIN DE KLOR, La aplicación judicial del Derecho del Mercosur, La Paz, 2000, p. 407 e ss. 17. RIMOLDI DE LADMANN, Oportunidad y necesidad de una reforma institucional en el Mercosur, Buenos Aires. 18. EKMEKDJIÁN, Esbozo de un Anteproyecto de Protocolo modificatorio del Protocolo de Brasilia y de el de Ouro Preto, Buenos Aires, a título de colaboração pessoal enviou um anteprojeto de modificação do sistema a fim de “...tratar de institucionalizar un tribunal, que si bien no sería el ideal, es decir un tribunal de justicia al estilo del Tribunal de la Unión Europea...” resultaria útil para melhorar a estrutura do tribunal criado pelo Protocolo de Brasília. 155

Nesta linha, se afirmou que o desafio para os países que integram o MERCOSUL era duplo: “[...] por una parte, la configuración de un tribunal supraregional encargado de dirimir los conflictos entre las partes (y que podría identificarse bajo el apotegma de una mayor ‘judicialización’) y, por otra, que dicha instancia decisoria contemple en su seno el acceso directo por parte de los particulares (y que podría conocerse bajo el leit motiv de una ‘mayor personalización’)”19.

Por outro lado, se recorria ao exemplo paradigmático de integração do século XX e ao rol que desempenhou o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias - considerado verdadeiro motor do processo europeu de integração - para efeitos de instalação desse modelo20. Considera Rodríguez Iglesias que: “[...] es algo generalmente reconocido que el Tribunal de Justicia no sólo ha llevado a cabo satisfactoriamente su función específica de asegurar el respeto del derecho en el ámbito comunitario, sino que, además, ha contribuido de forma decisiva al progreso del proceso de integración en orden al logro de los objetivos comunitarios”21.

19. RABBI-BALDI CABANILLAS, Mayor ´judicialización’; mayor ‘personalización’: apuntes a propósito de un tribunal supraestatal para el Mercosur, Macapá, 2000. Sobre o déficit democrático do MERCOSUL: DREYZIN DE KLOR, Reflexiones sobre la incidencia de la calidad del derecho de la integración en la cooperación jurisdiccional internacional, Santa Fe, 2000, p. 577-594. 20. VILLAGRÁN KRAMER, La integración económica y la justicia, 1993, p. 43. ARAUJO, Solución de controversias en el Mercosur, 1997, p. 4: afirma que existe um certo consenso entre os estudiosos de que a solução neste assunto seria “la creación de un tribunal supranacional” de acordo com o modelo “creado por las Comunidades Europeas”. 21. RODRÍGUEZ IGLESIAS, El Tribunal de Justicia de las Comunidades Europeas, Madrid, 1993, p. 394. 156

No que toca a esta última consideração, não são poucas as vozes que se pronunciaram sustentando que ao tratar-se de tipos de associação diferentes, desenvolvidos em distintos contextos históricos, sociológicos, econômicos, políticos e jurídicos, não era possível efetuar uma transposição das instituições. Conquanto os organismos europeus podem ter proporcionado excelentes resultados nesse esquema, sua adoção sem mais, em outros processos de integração que não respondem às mesmas características, não projetaria iguais resultados. Opertti Badán manifestou que não acreditava ser necessário que o MERCOSUL tomasse a União Européia como “una especie de émulo”, ao qual haveríamos forçosamente de chegar, pois não sempre são coincidentes os modelos de cada grupo de países, já que estes respondem a culturas e a formas de relacionamento diversos, a unidades geográficas distintas, o que conduz a que não se possa produzir uma espécie de cópia desse esquema paradigmático de integração. Em todo caso, haverá que se ter presente os bons exemplos que oferece o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, como suas competências, contenciosa e consultiva, e particularmente o mecanismo da prejudicialidade. Acrescenta Opertti que a União Européia é um modelo avançado, diferente do MERCOSUL que recém nasceu em 1991, e portanto não devemos sofrer de prematurismo que “es una de las enfermedades de la que América Latina en lo institucional ha padecido con frecuencia”.22 Outra postura mediante a qual costumava justificar-se a continuidade do mecanismo vigente girava em torno da cautela que deve presidir um processo de integração, entendendose que o MERCOSUL se encontra ainda numa fase embrionária e se desenvolve num contexto geográfico e político no qual 22. OPERTTI BADÁN, Del sistema de solución de controversias a la justicia supranacional, Asunción, 1998, p. 49. Neste sentido FONTOURA, A evolução do sistema de solução de contorvérsias – de Brasília a Olivos, 2003, p. 271-278. 157

estão, todavia, presentes os fracassados intentos de integração econômica23 . O caráter intergovernamental do MERCOSUL, cujo desenvolvimento e aprofundamento depende da vontade política dos governos dos Estados-Partes, obra como uma barreira para a criação de um supremo tribunal de justiça supranacional.24 Introduzir modificações nessa direção implica uma transformação substancial, que por uma parte, não contou com o aval suficiente no seio do Conselho do Mercado Comum, e que por outra, requer mudanças constitucionais no Brasil e no Uruguai. Referimos este fato, pois em não poucos âmbitos se criaram expectativas sobre uma institucionalização da justiça num grau bastante mais profundo do que aquele finalmente resultante do instrumento aprovado em Olivos. A idéia que primou, uma solução de compromisso25, foi melhorar o sistema existente como recurso necessário e transitório para a instauração de um mecanismo semelhante ao que se opera em processos mais avançados de integração, na convicção que deste modo se contribuía a aprofundar o desenvolvimento do bloco e a oferecer maiores garantias aos operadores da integração26. 23. ALONSO GARCÍA, Tratado de libre comercio, Mercosur y Comunidad Europea: Solución de controversias e interpretación uniforme, Madrid, 1997, p. 141. No mesmo sentido: ALMEIDA, Mercosul: situação atual, cenários previsíveis, desenvolvimentos prováveis, São Paulo, 1999. 24. PEROTTI, Estructura institucional y derecho en el Mercosur, Buenos Aires, 2002, p. 66, diz que: “los Tribunales Ad Hoc previstos en el PB, son órganos de naturaleza supranacional ya que en su actuación no representan a los Estados, los laudos que emite se aprueban por mayoría y obligan a los países aún en contra de su voluntad, y rige para los miembros del Tribunal la prohibición de recibir mandatos o instrucciones”. 25. BARRAL, O Protocolo de Olivos e as controvérsias no Mercosul, 2003, p. 83-84. 26. Assim sustentou REDRADO (Secretario de Negociaciones Económicas Internacionales de la Cancillería argentina) após a Reunião do CMC, em fevereiro de 2002. 158

2.3 Considerações gerais sobre o Protocolo de Olivos Ao recordarmos o panorama geral dos pontos que preocuparam aos legisladores do MERCOSUL à hora de reformular o sistema, nos referiremos à incidência que tiveram estes antecedentes no instrumento aprovado. O atual protocolo sobre solução de controvérsias de Olivos, da mesma forma que o Protocolo de Brasília, foi aprovado com caráter transitório27. A partir de sua entrada em vigor, tanto o Protocolo de Brasília como o seu Regulamento ficaram derrogados28. Incorporando normas de direito transitório a respeito da situação das controvérsias iniciadas sob o regime do texto de Brasília29. As inovações produzidas atingem a vários institutos. No entanto são numerosos também, os temas que não foram objeto de modificações, fato que implica, a nossos juízos, ter sido perdida uma valiosa oportunidade para melhorar o sistema. Não se modificou substancialmente o âmbito de aplicação. Foram agregadas as diretrizes incorporadas pelo Anexo ao Protocolo de Ouro Preto. Manteve-se a primeira fase consistente em 27. Tratado de Assunção, Anexo III, 3: “Antes del 31 de diciembre de 1994, los Estados Partes adoptarán un Sistema Permanente de Solución de Controversias para el Mercado Común”. Protocolo de Brasilia, art. 34: “El presente Protocolo permanecerá vigente hasta que entre en vigor el Sistema Permanente de Solución de Controversias para el Mercado Común a que se refiere el Numeral 3 del Anexo 3 del Tratado de Asunción”. PO, art. 53: “Revisión del Sistema”. 28. Protocolo de Olivos, segundo o art. 52, entraria em vigor no trigésimo dia a partir da data em que tivesse sido depositado o quarto instrumento de ratificação. As ratificações ocorreram como segue: na Argentina foi aprovado pela Lei Nº 25.663, de 18/10/2002 (BO 21/10/2002, p. 1), depósito do instrumento de ratificação em 29/01/2003; no Brasil foi aprovado pelo Decreto Legislativo N° 712, de 14/10/2003, depósito do instrumento de ratificação em 02/02/2003, promulgado depois pelo Dec. nº 4.982, de 09/ 02/2004; no Paraguai foi aprovado pela Lei Nº 2070/03, de 03/02/2003, depósito do instrumento de ratificação em 20/02/2003; no Uruguai foi aprovado pela Lei Nº 17.629, de 11/04/2003 (DO 06/05/2003), depósito do instrumento de ratificação em 11/07/2003. 29. PO, art. 55.2. 159

levar a cabo negociações diretas entre as partes (etapa diplomática)30 e a instância jurisdicional, ainda que de modo incipiente, ao estabelecer tribunais arbitrais ad hoc, dando lugar a que se afirme a existência de um germe de supranacionalidade31. Respeita-se em linhas gerais o procedimento arbitral instituído e os prazos fixados no Protocolo de Brasília. Lamentavelmente, não se modificou a via contemplada para a reclamação dos particulares, pese a que, como se disse, o Uruguai tenha insistido ferreamente neste ponto que, pelo demais, era um reclamo majoritário de todos os setores. Não houve mudanças significativas quanto à admissão do recurso de esclarecimento. Em relação aos custos que devem suportar as partes pelas atividades dos árbitros, conquanto não haja divergências essenciais com as disposições de Brasília e seu Regulamento, cabe destacar como novidade a possibilidade de que os gastos e honorários da atividade dos árbitros de primeira instância e do tribunal de revisão provenham de um fundo especial. O fundo que poderá ser criado para este fim será administrado pela Secretaria Administrativa do MERCOSUL32. Observaremos a seguir a estrutura disponível para levar a cabo a solução das possíveis controvérsias no MERCOSUL.

30. Ver BOLDORINI, Protocolo de Brasilia para la solución de controversias, Santa Fe, 1994, p. 475. 31. NOODT TAQUELA, Solución de controversias en el Mercosur, p. 39, diz: “un atisbo de supranacionalidad en la ultima etapa del sistema de solución de controversias porque el laudo arbitral es obligatorio”. 32. Protocolo de Brasília, art. 36.3. Cabe recordar que na XLIV Reunião do GMC, Montevidéu, 5/12/01, foi aprovada a MERCOSUR/GMC/RES. Nº 62/01: Remuneración de árbitros y expertos en el ámbito del sistema de solución de controversias del Mercosur, tendo por base o Protocolo de Brasília e seu Regulamento, assim sua vigência merecerá uma revisão com a entrada em vigor do PO. 160

3. ESTRUTURA FUNCIONAL DO SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS DO MERCOSUL

3.1 Estados-Partes A primeira fase33 para resolver qualquer controvérsia entre os Estados-Partes do MERCOSUL é a negociação direta, de natureza política, que inicia a partir da data em que um Estado comunica ao outro a decisão de iniciar a solução de uma controvérsia. Não existe uma estrutura formal de negociação direta, sendo previsto no Protocolo de Olivos que os Estados-Partes em uma controvérsia informarão ao Grupo Mercado Comum, por intermédio da Secretaria Administrativa do MERCOSUL, sobre as gestões que se realizarem durante as negociações e os resultados das mesmas.34

3.2 Grupo Mercado Comum A primeira consideração35 se refere à capacidade decisória e intergovernamental do Grupo Mercado Comum, enquanto órgão executivo do MERCOSUL, que se reúne de forma ordinária ou extraordinária quando é necessário.36 Os Estados-Partes numa controvérsia poderão, de comum acordo, submetê-la à consideração do Grupo Mercado Comum, que avaliará a situação, dando oportunidade às partes para que exponham suas respectivas posições, requerendo, se necessário, o assessoramento de especialistas. O Grupo formulará recomendações visando à solução da divergência. 33. 34. 35. 36.

PO, Cap. IV. PO, art. 5.2. PO, Cap. V. Protocolo de Ouro Preto, arts. 2, 9, 13. 161

A controvérsia também poderá ser levada à consideração do Grupo Mercado Comum se outro Estado, que não seja parte na controvérsia, solicitar, justificadamente, tal procedimento ao término das negociações diretas. Neste caso, o Grupo poderá formular comentários ou recomendações a respeito do caso. O Grupo Mercado Comum deve ser notificado do início do procedimento arbitral ad hoc37 e informado do recurso de revisão38. O Grupo Mercado Comum será informado pelo Estado-Parte obrigado a cumprir o laudo, por intermédio da Secretaria Administrativa do MERCOSUL, sobre as medidas que adotará para cumpri-lo.39 O Grupo Mercado Comum determinará os honorários, gastos de transporte, hospedagem, diárias e outras despesas dos árbitros do Tribunal Ad Hoc e do Tribunal de Revisão Permanente.40 O Grupo Mercado Comum avaliará as reclamações dos particulares com os elementos por eles fornecidos41, caso admitidas convocará o grupo de especialistas que deverá emitir parecer sobre a sua procedência42.

3.2.1 Grupo de especialistas O grupo de especialistas43, que poderá assessorar o Grupo Mercado Comum nas reclamações promovidas pelos particulares, será composto de três membros designados pelo Grupo ou, na falta de acordo sobre um ou mais especialistas, estes serão escolhidos por votação que os Estados-Partes do MERCOSUL 37. 38. 39. 40. 41. 42. 43.

PO, art. 9.2. PO, art. 17.4. PO, art. 29.3. PO, art. 37. PO, art. 40.2. PO, art. 42.2. PO, arts. 43 e 44. 162

realizarão dentre os integrantes de uma lista de vinte e quatro especialistas. A Secretaria Administrativa do MERCOSUL comunicará ao Grupo Mercado Comum o nome do especialista ou dos especialistas que tiverem recebido o maior número de votos. Neste último caso, e salvo se o Grupo decidir de outra maneira, um dos especialistas designados não poderá ser nacional do Estado contra o qual foi formulada a reclamação, nem do Estado no qual o particular formalizou sua reclamação. Com o fim de constituir a lista dos especialistas, cada um dos Estados-Partes designará seis pessoas de reconhecida competência nas questões que possam ser objeto de reclamação. Esta lista ficará registrada na Secretaria Administrativa do MERCOSUL. Os gastos derivados da atuação do grupo de especialistas serão custeados na proporção que determinar o Grupo Mercado Comum ou, na falta de acordo, em montantes iguais pelas partes diretamente envolvidas na reclamação. O grupo de especialistas submeterá seu parecer à consideração do Grupo Mercado Comum.

3.3 Tribunal Arbitral Ad Hoc

3.3.1 Composição do Tribunal Arbitral Ad Hoc O procedimento arbitral tramitará ante um Tribunal Ad Hoc composto de três árbitros.44 Cada Estado-Parte na controvérsia designará um árbitro titular, no prazo de quinze dias, contado a partir da data em que a Secretaria Administrativa do MERCOSUL tenha comunicado aos Estados-Partes na controvérsia a decisão de um deles de recorrer à arbitragem. Simultaneamente, designará da mesma lista, um 44. PO, art. 10.1.

163

árbitro suplente para substituir o árbitro titular em caso de incapacidade ou excusa deste em qualquer etapa do procedimento arbitral. Se um dos Estados-Partes na controvérsia não tiver nomeado seus árbitros no prazo indicado, eles serão designados por sorteio pela Secretaria Administrativa do MERCOSUL em um prazo de dois dias, contado a partir do vencimento daquele prazo, dentre os árbitros desse Estado da lista45. O árbitro presidente46 do Tribunal Arbitral Ad Hoc será designado de comum acordo pelos Estados-Partes na controvérsia, como o terceiro árbitro, escolhido entre os nomes da lista47. O prazo para a designação será de quinze dias, contado a partir da data em que a Secretaria Administrativa do MERCOSUL tenha comunicado aos Estados-Partes na controvérsia a decisão de um deles de recorrer à arbitragem. Simultaneamente, designarão da mesma lista, um árbitro suplente para substituir o árbitro titular em caso de incapacidade ou excusa deste em qualquer etapa do procedimento arbitral. O presidente e seu suplente não poderão ser nacionais dos Estados-Partes na controvérsia. Se não houver acordo entre os Estados-Partes na controvérsia para escolher o terceiro árbitro dentro do prazo indicado, a Secretaria Administrativa do MERCOSUL, a pedido de qualquer um deles, procederá a sua designação por sorteio da lista, excluindo do mesmo os nacionais dos Estados-Partes na controvérsia. Os designados para atuar como terceiros árbitros deverão responder, em um prazo máximo de três dias, contado a partir da notificação de sua designação, sobre sua aceitação para atuar em uma controvérsia. A Secretaria Administrativa do MERCOSUL notificará os árbitros de sua designação.48 45. 46. 47. 48.

PO, art. 10.2, lista prevista no art. 11.1. PO, art. 10.3. PO, prevista no art. 11.2(iii). PO, art. 10.4. 164

3.3.2 Listas de árbitros Cada Estado-Parte designará doze árbitros, que integrarão uma lista que ficará registrada na Secretaria Administrativa do MERCOSUL49. A designação dos árbitros, juntamente com o curriculum vitae detalhado de cada um deles, será notificada simultaneamente aos demais Estados-Partes e à Secretaria Administrativa do MERCOSUL. Qualquer Estado-Parte poderá solicitar esclarecimentos sobre as pessoas designadas pelos outros Estados-Partes para integrar a lista de árbitros, dentro do prazo de trinta dias, contado a partir de tal notificação. A Secretaria Administrativa do MERCOSUL notificará aos Estados-Partes a lista consolidada de árbitros do MERCOSUL, bem como suas sucessivas modificações. Cada Estado-Parte proporá, ademais, quatro candidatos para integrar a lista de terceiros árbitros. Pelo menos um dos árbitros indicados por cada Estado-Parte para esta lista não será nacional de nenhum dos Estados-Partes do MERCOSUL. A lista deverá ser notificada aos demais Estados-Partes, por intermédio da Presidência Pro Tempore do MERCOSUL, acompanhada do curriculum vitae de cada um dos candidatos propostos. Os Estados-Partes poderão solicitar esclarecimentos sobre as pessoas propostas por qualquer Estado-Parte ou apresentar objeções justificadas aos candidatos indicados, conforme os critérios estabelecidos50, dentro do prazo de trinta dias, contado a partir da notificação dessas propostas. As objeções deverão ser comunicadas por intermédio da Presidência Pro Tempore ao Estado-Parte proponente. Se, em um prazo que não poderá exceder a trinta dias contado da notificação, não se chegar a uma solução, prevalecerá a objeção. 49. PO, art. 11. 50. PO, art. 35. 165

A lista consolidada de terceiros árbitros, bem como suas sucessivas modificações, acompanhadas do curriculum vitae dos árbitros será comunicada pela Presidência Pro Tempore à Secretaria Administrativa do MERCOSUL, que a registrará e notificará aos Estados-Partes.

3.3.3 Designação dos árbitros O Regulamento do Protocolo de Brasília contém uma disposição semelhante a que se incorpora no Protocolo de Olivos sobre as condições que devem reunir os candidatos para serem árbitros51. Perotti considerou que uma modificação importante, no caso de reforma do Protocolo de Brasília, residiria na constitucionalização das exigências sobre a necessária independência e imparcialidade que deverão ser observadas nos árbitros de ambas as listas. A argumentação se baseava na consideração de que mesmo sendo estes critérios já fixados no direito derivado, pois se encontram contemplados no art. 16 do Regulamento do Protocolo de Brasília (regra que só estabelece esses deveres para os árbitros já designados num caso concreto), sua incorporação num novo texto conduziria a que adquirisse a qualidade de direito originário ou constitucional do MERCOSUL.52 Interessa uma referência à disposição pela qual se recepcionou a faculdade que tem cada Estado-Parte de solicitar esclarecimentos sobre as pessoas que integram as listas apresentadas53. Entendeu-se que esta possibilidade reconhecida aos Estados pode ser a causa de mal-estar pelo alto grau de subjetividade que contém a disposição, que permite um pedido de esclarecimento sem que se acompanhe de uma devida regulamentação. 51. Regulamento do Protocolo de Brasília para a Solução de Controvérsias, arts. 15 e 16; PO, art. 35. 52. PEROTTI, Proyecto de Reformas al Protocolo de Brasilia. Una nueva oportunidad perdida, Buenos Aires, 2001-2, p. 137. 53. PO, art. 11.1(i), 11.2(ii). 166

Pode ser questionada a falta de precisão sobre os aspectos da pessoa do árbitro que podem dar lugar ao pedido de esclarecimentos e o prazo para respondê-las. Ante o suposto de que se formule objeção quanto ao árbitro indicado por um Estado, não resulta muito claro determinar o momento em que pode considerar-se que a lista ficou consolidada54. As previsões estão motivadas na pretensão de que a lista se integre com pessoas de reconhecida competência nas matérias que possam ser objeto das controvérsias e ter conhecimento do conjunto normativo do MERCOSUL, além de observar-se a necessária imparcialidade e independência funcional da Administração Pública Central ou direta do Estado-Parte e não ter interesses de índole alguma na controvérsia.55 No entanto, a falta de regulamentação leva a questionar que a faculdade que se lhes outorga aos Estados-Partes de solicitar esclarecimentos sobre os candidatos designados pelos outros Estados não respeita a exclusividade no juízo sobre as aptidões das pessoas que cada parte propõe e sua responsabilidade a este respeito. Uma regulamentação similar à adotada para os candidatos a integrar o tribunal, se recepcionou na composição da lista de terceiros árbitros, ainda que neste caso acrescentou-se a possibilidade de apresentar objeções justificadas quando se questionem as qualidades mencionadas supra. A pergunta que nos fazemos é como se resolverá o malestar que poderá surgir pelo exercício desta faculdade reconhecida aos Estados-Partes? E a resposta lógica, do instrumento jurídico de Olivos, é a de que em caso de não haver acordo prevalecerá a objeção. Outras indagações que nos fizemos: tratar-se-ia, talvez, de um verdadeiro direito de veto que vulnera o princípio de confiança 54. REY CARO, El Protocolo de Olivos para la solución de controversias en el Mercosur, Córdoba, p. 29. 55. PO, art. 35.1 e 2. 167

mútua que se devem os Estados-Partes56? Ou se as exigências estabelecidas sobre a qualificação dos árbitros correspondem aos valores que se pretendem resguardar e, em conseqüência, teríamos que aceitar de bom grado esta disposição? A delegação do Brasil incluiu o tema no documento apresentado nas etapas prévias de negociações e foi uma preocupação também do Conselho do Mercado Comum ao enumerar o ponto na Decisão N° 25/2000, quando estabeleceu como objeto de análise os critérios para a elaboração das listas de árbitros e a respectiva designação em cada caso. O tema não constitui uma questão insignificante, sendo ilustrativo uma alusão ao modo pelo qual a União Européia regula a designação dos juízes e advogados-gerais que integram o Tribunal de Justiça. Seus membros são designados de comum acordo pelos governos dos Estados-Membros, por seis anos, entre personalidades que ofereçam absolutas garantias de independência e que reúnam as condições requeridas para o exercício em seus respectivos países das mais altas funções jurisdicionais, ou que sejam jurisconsultos de reconhecida competência57. Sendo uma designação de comum acordo pelos governos dos Estados-Membros da União Européia, cada governo se limita a propor seu candidato, que tem de obter o respaldo dos demais58. É importante também a previsão de renovação parcial dos juízes e advogados-gerais, realizada a cada três anos, para manter um grupo de magistrados experientes atuando continuamente.59 Cabe observar o informe do Grupo de Reflexão sobre o futuro do sistema judicial das Comunidades Européias para a Co56. REY CARO, El Protocolo de Olivos para la solución de controversias en el Mercosur, p. 29. 57. Versão compilada do Tratado que institui a Comunidade Européia, art. 223. 58. ALONSO GARCÍA, Derecho Comunitario: sistema constitucional y administrativo de la Comunidad Europea, Madrid, 1994. 59. Versão compilada do Tratado que institui a Comunidade Européia, art. 223. 168

missão. A Comissão o utilizou como base para elaborar a sua Contribuição Complementar à Conferência Intergovernamental sobre as Reformas Institucionais - Reformas do Sistema Jurisdicional Comunitário, em março de 2000. E inclusive a Contribuição do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Primeira Instância à Conferência Intergovernamental de fevereiro de 2000.60 No informe foi sugerido que a designação dos juízes, de comum acordo entre os Estados-Membros, se realizasse a partir do exame de um dossiê completo apresentado por cada EstadoMembro a cujo efeito, seria útil, dispor de um comitê consultivo composto de juristas altamente qualificados e independentes, que estivessem em condições de averiguar a competência jurídica dos candidatos apresentados. Esta proposta, e aquela apresentada pela Comissão no sentido de que a designação dos juízes fosse efetuada por maioria qualificada do Conselho, foram descartadas na Reunião de Cúpula de Nice.61 Estimamos que o dispositivo previsto no Protocolo de Olivos difere em seu contexto das previsões em torno da designação de juízes que se estabeleceram para a composição do Tribunal de Justiça da União Européia. O tribunal arbitral do MERCOSUL dista muito de parecer-se a uma Corte de tais características. No entanto, os árbitros devem ser juristas bem qualificados de cada um dos Estados-Partes e a lista que os Estados devem apresentar está sujeita à eleição ponderada de cada país. De qualquer forma, e não obstante as profundas diferenças entre um e outro sistema jurisdicional, cumprindo-se os requisitos exigidos devem-se regular claramente os aspectos que geram os questionamentos formulados e que de acordo com o texto aprovado ficaram sem receber uma resposta satisfatória. Isso, a fim de evitar todo tipo de subjetividade e de não deixar espaços que derivem em atitudes discricionárias. 60. ALONSO GARCÍA, Estudio preliminar, Madrid, 2001, p. XLIII. 61. ALONSO GARCÍA, Estudio preliminar, Madrid, 2001, p. XLVI. 169

3.3.4 Representantes, assessores62 e unificação de representação63 Os Estados-Partes na controvérsia designarão seus representantes ante o Tribunal Arbitral Ad Hoc e poderão ainda designar assessores para a defesa de seus direitos. Se dois ou mais Estados-Partes sustentarem a mesma posição na controvérsia, poderão unificar sua representação ante o Tribunal Arbitral e designarão um árbitro de comum acordo, no prazo de quinze dias, contado a partir da data em que a Secretaria Administrativa do MERCOSUL tenha comunicado aos Estados-Partes na controvérsia a decisão de um deles de recorrer à arbitragem64.

3.4 Tribunal Permanente de Revisão 3.4.1 Composição do Tribunal Permanente de Revisão65 O Tribunal Permanente de Revisão será integrado por cinco árbitros. Cada Estado-Parte do MERCOSUL designará um árbitro e seu suplente por um período de dois anos, renovável por no máximo dois períodos consecutivos. O quinto árbitro, que será designado por um período de três anos não renovável, salvo acordo em contrário dos Estados-Partes, será escolhido, por unanimidade dos Estados-Partes, da lista66 referida a seguir, pelo menos três meses antes da expiração do mandato do quinto árbitro em exercício. Este árbitro terá a nacionalidade de algum dos Estados-Partes do MERCOSUL. 62. 63. 64. 65.

PO, art. 12. PO, art. 13. PO, art. 10.2(i). PO, art. 18. Aplica-se, no que couber, aos procedimentos descritos o disposto no art. 11.2. 66. PO, art. 18.3. 170

Não havendo unanimidade, a designação se fará por sorteio que realizará a Secretaria Administrativa do MERCOSUL, dentre os integrantes dessa lista, dentro dos dois dias seguintes ao vencimento do referido prazo. A lista para a designação do quinto árbitro conformar-se-á com oito integrantes. Cada Estado-Parte proporá dois integrantes que deverão ser nacionais dos países do MERCOSUL. Os Estados-Partes, de comum acordo, poderão definir outros critérios para a designação do quinto árbitro.67 Pelo menos três meses antes do término do mandato dos árbitros, os Estados-Partes deverão manifestar-se a respeito de sua renovação ou propor novos candidatos. Caso expire o mandato de um árbitro que esteja atuando em uma controvérsia, este deverá permanecer em função até a conclusão da demanda.

3.4.2 Disponibilidade permanente dos árbitros e funcionamento do Tribunal68 Os árbitros integrantes do Tribunal Permanente de Revisão, uma vez que aceitem sua designação, deverão estar disponíveis permanentemente para atuar quando convocados.69 O número dos árbitros do tribunal de revisão dependerá dos Estados-Partes na controvérsia. Quando envolver dois Estados-Partes, o Tribunal estará integrado por três árbitros, sendo dois árbitros nacionais de cada Estado-Parte na controvérsia e o terceiro, que exercerá a presidência, será designado mediante sorteio a ser realizado pelo diretor da Secretaria Administrativa do MERCOSUL, entre os árbitros restantes que não sejam nacionais dos Estados-Partes na controvérsia. A designação do presidente dar-se-á no dia seguinte à 67. PO, art. 18.4. 68. PO, art. 20. 69. PO, art. 19. 171

interposição do recurso de revisão, data a partir da qual estará constituído o Tribunal para todos os efeitos. Quando a controvérsia envolver mais de dois Estados-Partes, o Tribunal Permanente de Revisão estará integrado pelos cinco árbitros. Os Estados-Partes, de comum acordo, poderão definir outros critérios para o funcionamento do Tribunal. A seguir trataremos das nossas observações sobre o procedimento para a solução de controvérsias no MERCOSUL.

4. PROCEDIMENTO PARA A SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS NO MERCOSUL O Protocolo de Olivos estabelece que as regras de procedimento garantem que cada uma das partes na controvérsia tenha plena oportunidade de ser ouvida e de apresentar seus argumentos, assegurando que o processo se realize de forma expedita. O Protocolo de Olivos inclui regras de procedimento que mantêm uma lacuna que já se apresentava no Protocolo de Brasília e seu Regulamento. Não se contemplou a possibilidade de que outras partes70 alheias ao conflito pudessem apresentar alegações; de tal sorte que a solução do conflito fica restrita às partes, quando seu alcance poderia exceder de tal efeito e servir de fundamento ou de base para a interpretação e aplicação em futuras contendas. O que não se coaduna com a interpretação uniforme que se pretende71. 70. Poderia ter sido adotado dispositivo semelhante ao previsto na OMC: Entendimiento Relativo a las Normas y Procedimientos por los que se rige la Solución de Diferencias, art. 10. 71. ALONSO GARCÍA, Tratado de libre comercio, Mercosur y Comunidad Europea: solución de controversias e interpretación uniforme, Madrid, 1997, p. 69. 172

4.1 Âmbito de aplicação O âmbito de aplicação do Anexo III do Tratado de Assunção era restrito às controvérsias que pudessem surgir entre os Estados-Partes como conseqüência da aplicação do próprio Tratado.72 O âmbito de aplicação do Protocolo de Olivos abrange as controvérsias que surjam entre os Estados-Partes sobre a interpretação, a aplicação ou o não cumprimento do Tratado de Assunção, do Protocolo de Ouro Preto, dos protocolos e acordos celebrados no marco do Tratado de Assunção, das Decisões do Conselho do Mercado Comum, das Resoluções do Grupo Mercado Comum e das Diretrizes da Comissão de Comércio do MERCOSUL.73 As controvérsias compreendidas no âmbito de aplicação do Protocolo de Olivos que possam também ser submetidas ao sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio ou de outros esquemas preferenciais de comércio de que sejam parte individualmente os Estados-Partes do MERCOSUL poderão submeter-se a um ou a outro foro, à escolha da parte demandante.74 Sem prejuízo disso, as partes na controvérsia poderão, de comum acordo, definir o foro.75 Sendo previsto que uma vez iniciado um procedimento de solução de controvérsias com opção de foro, nenhuma das partes poderá recorrer a mecanismos de solução de controvérsias estabelecidos nos outros foros com relação ao mesmo objeto.76 O Conselho do Mercado Comum, segundo o Protocolo de Olivos, regulamentará os aspectos relativos à opção de foro.77 72. 73. 74. 75. 76. 77.

Tratado de Assunção, Anexo III, 1. PO, art. 1.1. PO, art. 1.2. PO, art. 1. PO, art. 1. PO, art. 1. 173

4.1.1 Eleição de foro Entre as modificações que merecem uma menção especial, nos referiremos em primeiro lugar, à possibilidade de submeter os conflitos ante outros foros, tais como a Organização Mundial do Comércio ou outros esquemas preferenciais de comércio de que sejam parte individualmente os Estados-Partes do MERCOSUL78. Esta opção que exerce o demandante, sem prejuízo de que as partes de comum acordo possam decidir o foro, se assemelha com o disposto em outros tratados de associações regionais. O NAFTA incorpora uma cláusula equivalente79, podemos dizer que na atualidade esta é a tendência que prevalece nos acordos econômicos regionais80. Uma vez eleito um foro fica excluído o outro, limitação que encontra seu sentido na pretensão de evitar a duplicidade de procedimentos e as resoluções contraditórias81. A razão de ser desta cláusula no MERCOSUL pode acharse também no conflito dirimido ante o Tribunal Arbitral Ad Hoc convocado por causa da aprovação na Argentina da Resolução 78. PO, art 1.2. 79. Na hipótese de uma controvérsia relacionada com o NAFTA ou TLCAN e o GATT, esta pode resolver-se em qualquer dos foros, à eleição da parte reclamante. Esta é a regra tradicional no litígio nacional, assim como na solução de controvérsias internacionais. Ver GAINES, Comments on dispute settlement issues under NAFTA, 1993, p. 35. 80. Entre outros: XXI Protocolo Adicional al Acuerdo de Complementación Económica (ACE) 35 Mercosur-Chile sobre Régimen de Solución de Controversias (art. 2); ACE 33 – Grupo de los Tres /Colombia, México y Venezuela (art. 19.3); Acuerdo de Asociación entre la Comunidad Europea y sus Estados Miembros y Chile (art. 189). 81. CAMARILLO, El TLC y el Sistema de Resolución de Controversias, 1993: “con relación al NAFTA, que hay oportunidad suficiente para saber anticipadamente a qué foro va a recurrir la parte reclamante, debido a que el inicio formal del procedimiento de solución de controversias en el GATT, no se efectúa sino después de presentar la solicitud para el establecimiento de un panel, y esto sólo sucede después que han concluido las consultas”. 174

574/2000 ME, segundo a qual se fixaram direitos antidumping às importações de frangos eviscerados82. Tendo entendido o Tribunal Arbitral Ad Hoc que não lhe correspondia anuir ao petitório do Brasil, este país foi pela mesma questão ante a Organização Mundial do Comércio, o que não seria possível sob a vigência do Protocolo de Olivos83. Indagamos-nos, quais as razões que avalizam esta possibilidade de recorrer ao mecanismo da Organização Mundial do Comércio ao invés de promover a demanda pelo sistema adotado no MERCOSUL? Indiscutivelmente que o prestígio de que goza a Organização Mundial do Comércio exerce uma força de atração para o 82. Controvérsia sobre “Aplicación de Medidas Antidumping contra la exportación de pollos enteros, provenientes de Brasil, Resolución Nº 574/ 2000 del Ministerio de Economía de la República Argentina”, laudo, 21/5/ 2001. 83. Informe WT/DS/OV/9, 2002: “WT/DS241 - Argentina - Definitive AntiDumping Duties on Poultry from Brazil. Complaint by Brazil. On 7 November 2001, Brazil requested consultations with Argentina in respect of the definitive anti-dumping duties imposed by Argentina on imports of poultry from Brazil, classified under Mercosul tariff line 0207.11.00 and 0207.12.00. These measures were adopted by the Ministry of Economy of Argentina in Resolution 574 from 21 July 2000, published in the Argentinean Official Gazette on 24 July 2000. Brazil considered that the definitive antidumping duties imposed, as well as the investigation conducted by the Argentinean Authorities might have been flawed and based on erroneous or deficient procedures, inconsistent with Argentina’s obligations under articles 1, 2, 3, 4, 5, 6, 9, 12 and Annex II of the Anti-Dumping Agreement, article VI of the GATT 1994, and articles 1 and 7 of the Customs Valuation Agreement. On 19 November 2001, the EC requested to join the consultations. On 25 February 2002, Brazil requested the establishment of a panel. At its meeting on 8 March 2002, the DSB deferred the establishment of a panel. At the DSB meeting on 17 April 2002, the panel was established. Argentina noted that notwithstanding the establishment of the panel at the present meeting, it was still hopeful that a mutually satisfactory solution to the dispute could be found. Canada, Chile, the EC, Guatemala, Paraguay and the US reserved their third-party rights. On 17 June 2002, Brazil requested the Director-General to compose the panel. On 27 June 2002, the panel was composed”. 175

seu sistema84. O entendimento relativo às normas e procedimentos pelos que se rege a solução de diferenças tende a fortalecer o mecanismo de solução de conflitos da Organização, com o efeito de reduzir a arbitrariedade e evitar a adoção de medidas unilaterais em caso de não cumprimento dos compromissos comerciais85. Trata-se de um procedimento bastante expeditivo fortalecido pela prática e pelos resultados que reflete o seu acionamento86. Segundo o informe Steger–Hainsworth, em relação à eficácia dos informes dos grupos especiais, se recorda a afirmação do Órgão de Apelação ao sustentar: “[...] una parte importante del GATTacquis son considerados, a menudo, por subsiguientes grupos especiales. Crean legítimas expectativas entre los Miembros de la OMC y, por consiguiente, deberían ser tomados en cuenta cuando ellos son relevantes para alguna disputa. Sin embargo, ellos no son obligatorios sino con relación a la resolución de la disputa en particular entre las partes en esa disputa”.

A natureza obrigatória das decisões, a brevidade dos prazos, a automaticidade das etapas no processo e o fortalecimento dos mecanismos de supervisão e controle, contribuem à resolução dos conflitos por acordo mútuo. Sua força se manifesta no 84. Informes: “WTO dispute settlement: emerging practice and procedure”, Debra P. Steger e Peter Van den Bossche (diretor e consultora do Secretariado do Órgão de Apelação da OMC) e “New directions in international trade law: WTO dispute settlement”, Debra P. Steger e Susan Hainsworth. Observa-se que desde a entrada em vigor do Acordo da OMC, em janeiro de 1995, o número de casos de solução de controvérsias se incrementou significativamente em comparação com a experiência sob o regime do GATT. Ver o texto de Welber Barral neste livro. 85. GAMIO, La OMC y el sistema de arreglo de controversias, Córdoba, p. 1103. 86. Ver BHALA, The precedent setters: de facto stare decisis in WTO adjudication (Part II of a Trilogy), Fall 1999, p. 1: que realiza uma completa análise sobre o valor dos precedentes dos Grupos Especiais e do Órgão de Apelação na solução de controvérsias na OMC. 176

propósito de reduzir o unilateralismo nas relações comerciais internacionais e também na tendência para uma maior judicialização e automatismo. A isso se soma a importância que se reconhece aos relatórios e recomendações que geralmente se cumprem87, existindo ademais, um mecanismo específico para supervisionar dito cumprimento.88 No caso em que os membros de um esquema de integração (vg. MERCOSUL) decidam levar a disputa à Organização Mundial do Comércio, ao invés de resolvê-la de acordo com o sistema de solução de controvérsias do seu esquema, o Grupo Especial e o Órgão de Apelação só se pronunciarão sobre a legalidade ou não de uma medida a respeito das normas multilaterais da Organização no âmbito do conflito89. A Organização não se manifestará sobre a legalidade ou ilegalidade de ato de Membro a respeito das normas vigentes no seu esquema de integração90. As desvantagens de possibilitar a eleição de foro residem no debilitamento que pode ser produzido no sistema de integração91; ademais pode dar lugar ao “forum shopping” o que se compreenderia perfeitamente num modelo de zona de livre comércio, mas parece difícil de ser admitido num processo pelo qual se tenta avançar para um grau maior de integração com órgãos que geram normas de forma duradoura. Assim, que controvérsias podem ser levadas à Organização Mundial do Comércio? Podem ser levadas à Organização todas as controvérsias que se suscitem a respeito de questões que fiquem atraídas pelo âmbito 87. GAMIO, La OMC y el sistema de arreglo de controversias, Córdoba, p. 1112. 88. OMC/Entendimento sobre Solução de Diferenças, art. 21.5. 89. OMC/Entendimento sobre Solução de Diferenças, art. 1.1. 90. MIRAMONTES, Las controversias comerciales en el marco de la Organización Mundial de Comercio (OMC), Córdoba, p. 1131. 91. PEROTTI, Qué significó el Protocolo de Olivos, Buenos Aires, 2002: considerava que admitir a opção de foro era um erro imposto por uma prática contrária ao Tratado de Assunção. 177

de aplicação de suas normas e que possam ser julgadas conforme às mesmas92. O dado surge do próprio Protocolo de Olivos quando assinala que a opção alcança as controvérsias compreendidas em seu âmbito de aplicação que possam também ser submetidas ao sistema de solução de conflitos da Organização Mundial do Comércio. No Projeto apresentado pelo Grupo de Alto Nível, ao prever a possibilidade de eleição de foro, estabelecia-se que unicamente poderia exercer-se com relação a uma norma da Organização Mundial do Comércio que tivesse sido incorporada à normativa. Estimamos que foi acertado afastar-se do teor literal original. Adotar textualmente alguns dos acordos da Organização Mundial do Comércio pelo MERCOSUL não agrega nem desagrega nada, sendo evidente que ao se incorporar normas da Organização Mundial do Comércio ao bloco, estas têm que ser interpretadas à luz do Tratado de Assunção93. No que tange a esta problemática, tenha-se presente o laudo proferido no conflito ocorrido entre Brasil (reclamante) e Argentina (reclamada) sobre a aplicação de medidas de salvaguarda sobre produtos têxteis do Ministério de Economia e Obras e Serviços Públicos da reclamada. 92. Caso Argentina-Brasil sobre medidas antidumping, Argentina teve êxito na arbitragem no MERCOSUL. O Brasil entendeu que as medidas antidumping não se aplicaram corretamente e recorreu ao sistema de solução de controvérsias da OMC. Pelos “Entendimentos Bilaterais” alcançados durante a Reunião de Cúpula Presidencial Argentina-Brasil (26/9/2002), o Brasil se comprometeu a solicitar a suspensão dos trabalhos do Grupo Especial (WT/ DS241), e a Argentina se comprometeu a derrogar as medidas questionadas. 93. Ver Sentença no Mandado de Segurança Nº 96.1011486-2, demandante Cerealista Fernández Ltda. E demandado o Chefe de Serviço de Fiscalização Agropecuária do Paraná, Circunscrição da Justiça Federal de Foz do Iguaçu, Estado do Paraná, Brasil. O recurso se resolveu com base no Acordo sobre Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitosanitárias da OMC, ante a lacuna normativa no MERCOSUL. Depois o MERCOSUL adotou o Acordo da OMC como MERCOSUL/CMC/ DEC. N° 6/96. Ver DREYZIN DE KLOR; JURE RAMOS, En torno a la libre circulación de mercaderías, Córdoba, 1998, p. 243-254. 178

A Argentina alegou que os Estados-Partes do MERCOSUL estão também submetidos à observância do regulamento da Organização Mundial do Comércio. As regras do MERCOSUL não excluem as disposições multilaterais. Se um tema foi objeto de regulação entre os países do MERCOSUL com regras que aprofundam os compromissos da Organização Mundial do Comércio, elas obrigam aos sócios e prevalecem sobre as regras multilaterais. No entanto, se uma matéria não foi regulada no MERCOSUL, os Estados-Partes têm o direito a aplicar os instrumentos previstos no ordenamento da Organização Mundial do Comércio. De 1991 até 1994 as salvaguardas intrazona estiveram reguladas no MERCOSUL pelo Anexo IV do Tratado de Assunção. Em 1995, os Acordos de Marrakech entraram em vigor, incluindo o Acordo da OMC sobre os Têxteis e Vestuários. Em razão da inexistência de normas específicas sobre salvaguardas de têxteis no MERCOSUL, as regras da Organização podem ser aplicadas. A opção prevista no Protocolo de Olivos sobre a eleição de foro se relaciona também com a questão do cumprimento do laudo. Dada a força multilateral da Organização Mundial do Comércio é mais provável - ainda que não seja o desejável, fato que requererá tempo e acomodamento - que os Estados-Partes do MERCOSUL cumpram o prescrito por um painel da Organização Mundial do Comércio, que conseguir igual resultado bilateralmente dentro do bloco. Quanto à personalidade jurídica requerida para aceder a cada um destes sistemas, verifica-se uma equivalência, pois nem em um e nem em outro mecanismo, foi contemplado que o particular possa acioná-los diretamente.

4.2 Jurisdição dos tribunais Os Estados-Partes declararam reconhecer como obrigatória, ipso facto e sem necessidade de acordo especial, a jurisdição dos Tribunais Arbitrais Ad Hoc que em cada caso se constituam 179

para conhecer e resolver as controvérsias, bem como a jurisdição do Tribunal Permanente de Revisão para conhecer e resolver as controvérsias conforme as competências que lhes confere o Protocolo de Olivos.94

4.3 Regras de procedimento Os Tribunais Arbitrais Ad Hoc adotarão suas próprias regras de procedimento, tomando como referência as regras modelos a serem aprovadas pelo Conselho do Mercado Comum.95 O Tribunal Permanente de Revisão adotará suas próprias regras de procedimento no prazo de trinta dias, contado a partir de sua constituição, as quais deverão ser aprovadas pelo Conselho do Mercado Comum.96 As regras mencionadas devem garantir que cada uma das partes na controvérsia tenha plena oportunidade de ser ouvida e de apresentar seus argumentos e assegurar que os processos se realizem de forma expedita.97

4.3.1 Mecanismos expeditos No Capítulo II do Protocolo de Olivos foi prevista a possibilidade de estabelecer mecanismos de solução especial para as diferenças que existam entre os Estados-Partes versadas sobre aspectos técnicos que se regulem em instrumentos de políticas comerciais comuns. A norma responde às propostas que se negociaram no Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais do MERCOSUL, quando 94. 95. 96. 97.

PO, art. 33. PO, art. 51.2. PO, art. 51.1. PO, art. 51.3. 180

o Brasil defendeu a necessidade de introduzir alguns procedimentos simplificados para conflitos que se originem em temas pontuais como é o caso do regime de origem98. Conquanto a introdução de procedimentos expeditos possa dar lugar a resultados eficazes, tal como foi recolhido no Protocolo de Olivos aparece como uma medida incerta; mais ainda ao deixar ao arbítrio do Conselho do Mercado Comum a determinação de quando será necessário implementar estes mecanismos, bem como definir e aprovar as regras de funcionamento, o alcance dos procedimentos e a natureza dos pronunciamentos que se emitam. Estimamos que fosse conveniente regular esta matéria com maior precisão ao invés de propor seu tratamento sem oferecer maiores detalhes.

4.4 Medidas provisórias, excepcionais e de urgência O Tribunal Arbitral Ad Hoc poderá, por solicitação da parte interessada, e na medida em que existam presunções fundamentadas de que a manutenção da situação poderá ocasionar danos graves e irreparáveis a uma das partes na controvérsia, ditar as medidas provisórias que considere apropriadas para prevenir tais prejuízos.99 O Tribunal poderá, também, a qualquer momento, tornar sem efeito tais medidas.100 Caso o laudo seja objeto de recurso de revisão, as medidas provisórias que não tenham sido deixadas sem efeito antes da emissão do mesmo se manterão até o tratamento do tema na primeira reunião do Tribunal Permanente de Revisão, que deverá resolver sobre sua manutenção ou extinção.101 98. Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais do MERCOSUL, Ata 2/00, Buenos Aires, 30 e 31 de maio de 2000. 99. PO, art. 15.1. 100. PO, art. 15.2. 101. PO, art. 15.3. 181

O Conselho do Mercado Comum poderá estabelecer procedimentos especiais para atender casos excepcionais de urgência que possam ocasionar danos irreparáveis às partes.102

4.5 As fases do procedimento

4.5.1 Negociações diretas Os Estados-Partes numa controvérsia procurarão resolvêla, antes de tudo, mediante negociações diretas.103 As negociações diretas não poderão, salvo acordo entre as partes na controvérsia, exceder um prazo de quinze dias a partir da data em que uma delas comunicou à outra a decisão de iniciar a controvérsia.104 Os Estados-Partes em uma controvérsia informarão ao Grupo Mercado Comum, por intermédio da Secretaria Administrativa do MERCOSUL, sobre as gestões que se realizarem durante as negociações e os resultados das mesmas.105

4.5.2 Procedimento opcional ante o Grupo Mercado Comum Se mediante as negociações diretas não se alcançar um acordo ou se a controvérsia for solucionada apenas parcialmente, os Estados-Partes na controvérsia poderão, de comum acordo, submetê-la à consideração do Grupo Mercado Comum.106 Nesse caso, o Grupo avaliará a situação, dando oportunidade às partes na controvérsia para que exponham suas respectivas 102. PO, art. 24. 103. PO, art. 4. 104. PO, art. 5.1. 105. PO, art. 5.2. 106. PO, art. 6.2. 182

posições, requerendo, quando considere necessário, o assessoramento de especialistas.107 Os gastos relativos ao assessoramento de especialistas serão custeados em montantes iguais pelos Estados-Partes na controvérsia ou na proporção que determine o Grupo Mercado Comum.108 A controvérsia também poderá ser levada à consideração do Grupo Mercado Comum se outro Estado, que não seja parte na controvérsia, solicitar, justificadamente, tal procedimento ao término das negociações diretas. Nesse caso, o procedimento arbitral que se tenha iniciado pelo Estado-Parte demandante não será interrompido, salvo acordo entre os Estados-Partes na controvérsia.109 Se a controvérsia for submetida ao Grupo Mercado Comum pelos Estados-Partes na controvérsia, o Grupo formulará recomendações que, se possível, deverão ser expressas e detalhadas, visando à solução da divergência.110 Se a controvérsia for levada à consideração do Grupo Mercado Comum a pedido de um Estado que dela não é parte, o Grupo Mercado Comum poderá formular comentários ou recomendações a respeito.111 O procedimento opcional ante o Grupo Mercado Comum não poderá estender-se por um prazo superior a trinta dias a partir da data da reunião em que a controvérsia foi submetida à sua consideração.112 A intervenção do Grupo Mercado Comum deixou de ser uma fase obrigatória para converter-se num estágio optativo, dependendo do acordo das partes113. Esta formulação que aparece desde os primeiros esboços da reforma do mecanismo de solução de controvérsias, esteve presen107. PO, art. 6.2(i). Especialistas selecionados da lista referida no art. 43 do PO. 108. PO, art. 6.2(ii). 109. PO, art. 6.3. 110. PO, art. 7.1. 111. PO, art. 7.2. 112. PO, art. 8. 113. PO, art. 6. 183

te da pauta do Conselho do Mercado Comum à hora de aprovar a Decisão N° 25/2000. Com efeito, a proposta de agilizar os processos existentes se ajusta com a solução adotada. No transcurso da existência do MERCOSUL, esta fase conhecida como a etapa institucional114, não se caracterizou por desempenhar um papel importante na solução das controvérsias. O Uruguai pode ter avaliado esta falta de operatividade, que só suscitava um maior desgaste às partes na medida em que demoravam as atuações, pois foi mais longe ainda do que seus sócios e na sua proposta suprimiu a intervenção do Grupo Mercado Comum do mecanismo de solução de conflitos. Do sistema vigente antes do Protocolo de Olivos é importante mencionar a Comissão de Comércio do MERCOSUL. Este órgão participa, segundo o disposto no Anexo ao Protocolo de Ouro Preto, que trata do procedimento geral para reclamações ante a Comissão de Comércio do MERCOSUL, nas regulamentações ditadas por força de sua intervenção como alternativa para encaminhar as reclamações dos Estados-Partes ou de particulares, efetuadas ante a Seção Nacional da Comissão de Comércio do MERCOSUL. A Comissão de Comércio vinha desenvolvendo uma tarefa importante em sua atividade de articuladora de consultas e centralizava as mesmas num número muito mais significativo do que o Grupo Mercado Comum; no entanto, quanto às soluções alcançadas, cabe reiterar o mencionado sobre o Grupo Mercado Comum no que tange aos exíguos ganhos obtidos. Observa-se que a composição de ambos os órgãos, Grupo Mercado Comum e Comissão de Comércio do MERCOSUL, responde ao modelo intergovernamental. Bem assinalado o seu caráter técnico nas discussões que operavam no âmbito da Comissão de Comércio do MERCOSUL, sugerindo que o diálogo em seu seio era menos politizado do que aquele que tinha lugar no âmbito do Grupo Mercado Comum. 114. BOLDORINI, Protocolo de Brasilia para la solución de controversias, Santa Fe, 1994, p. 475. 184

A observação sobre a estrutura, permite inferir também que o Grupo Mercado Comum pode ser considerado um órgão não só superior à Comissão de Comércio do MERCOSUL, senão também com um caráter governamental mais notório115. O fato de não interferir na solução do conflito foi destacado como um modo de despolitização das controvérsias entre os Estados-Partes, na medida em que se entendia oferecer-lhes maior possibilidade de predizer institucionalmente os resultados, facilitando um avanço para uma interpretação uniforme do conjunto normativo do MERCOSUL e para a criação de uma jurisprudência comum116. O Protocolo de Olivos resgata a experiência institucional do bloco já que mantém vigente o procedimento ante a Comissão de Comércio do MERCOSUL, ainda que derrogando o Protocolo de Brasília e seu Regulamento. A faculdade de não submeter uma controvérsia ao Grupo Mercado Comum deve ser avaliada, desde uma perspectiva operativa, no sentido de reconhecer que conquanto é uma inovação, não muda radicalmente a estrutura do sistema anterior de solução de diferenças. Sendo que as decisões do Grupo Mercado Comum são tomadas por consenso, sob o guarda-chuva do sistema vigente, é suficiente que o Estado-Parte que decide levar a controvérsia ao Tribunal Arbitral vote contra a recomendação do Grupo Mercado Comum para conseguir seu propósito. Segundo esta ótica, a alteração incorporada por Olivos é só uma maneira de não procrastinar a solução da controvérsia117.

115. MORAES, O novo sistema jurisdicional do Mercosul: um primeiro olhar sobre o Protocolo de Olivos, São Paulo, 2002, p. 57. 116. REDRADO, 2002: “el Protocolo funcionará como una instancia de revisión jurídica, que despolitiza el sistema actual a la vez que lo mejora, a la luz de la experiencia obtenida con las diversas controversias suscitadas y los distintos laudos dictados para resolverlas”. 117. MORAES, O novo sistema jurisdicional do Mercosul: um primeiro olhar sobre o Protocolo de Olivos, São Paulo, 2002, p. 65. 185

4.5.3 Procedimento ante o Tribunal Arbitral Ad Hoc O procedimento arbitral ad hoc poderá ser iniciado diretamente por qualquer dos Estados-Partes envolvidos se mediante as negociações diretas não se alcançar um acordo, ou se a controvérsia for solucionada apenas parcialmente.118 Caso o procedimento opcional ante o Grupo Mercado Comum, igualmente, não tiver sido possível para solucionar a controvérsia, qualquer dos Estados-Partes poderá iniciar o procedimento arbitral ad hoc.119 A decisão de recorrer ao procedimento arbitral ad hoc será120 comunicada à Secretaria Administrativa do MERCOSUL.121 A Secretaria Administrativa notificará, de imediato, a comunicação ao outro ou aos outros Estados envolvidos na controvérsia e ao Grupo Mercado Comum.122 A Secretaria Administrativa do MERCOSUL se encarregará das gestões administrativas que lhe sejam requeridas para a tramitação dos procedimentos.123 O Tribunal Arbitral Ad Hoc emitirá o laudo num prazo de sessenta dias, prorrogáveis por decisão do próprio Tribunal por um prazo máximo de trinta dias, contado a partir da comunicação efetuada pela Secretaria Administrativa do MERCOSUL às partes e aos demais árbitros, informando a aceitação pelo árbitro presidente de sua designação.124

118. PO, art. 6.1. 119. PO, art. 9.1. 120. Mesmo que a redação não expresse uma obrigação (“poderá”), o recurso ao tribunal arbitral “deverá” ser comunicado à Secretaria Administrativa do MERCOSUL. 121. PO, art. 9.1. 122. PO, art. 9.2. 123. PO, art. 9.3. 124. PO, art. 16. 186

4.5.3.1 Objeto da controvérsia O objeto da controvérsia ficará determinado pelos textos de apresentação e de resposta apresentados ante o Tribunal Arbitral Ad Hoc, não podendo ser ampliado posteriormente.125 As alegações que as partes apresentem nos textos mencionados no item anterior se basearão nas questões que foram consideradas nas etapas prévias, contempladas no Protocolo de Olivos e no Anexo ao Protocolo de Ouro Preto.126 Os Estados-Partes na controvérsia informarão ao Tribunal Arbitral Ad Hoc, nos textos mencionados, sobre as instâncias cumpridas com anterioridade ao procedimento arbitral e farão uma exposição dos fundamentos de fato e de direito de suas respectivas posições.127 O Protocolo de Olivos ao prescrever que o objeto da controvérsia fica determinado pelos textos de apresentação e resposta dos Estados-Partes sem que possam ampliar-se as questões a fatos não considerados nas etapas prévias à arbitragem, precisa uma questão que deu lugar a interpretações diversas do Protocolo de Brasília quando regulamentava o item128. Segundo uma das posturas, o objeto da controvérsia ficava estabelecido pelas alegações sustentadas nas etapas prévias à arbitragem129. Neste sentido o Tribunal Arbitral Ad Hoc que proferiu o primeiro laudo arbitral sustentou que tanto o Protocolo de Brasília como o Protocolo de Ouro Preto, ao preverem etapas prévias à arbitragem, impunham que não pudessem adicionar-se na última instância questões não suscitadas nos escalões anteriores e que os documentos de apresentação e de contestação ante o 125. PO, art. 14.1. 126. PO, art. 14.2. 127. PO, art. 14.3. 128. PO, art. 28. 129. Exemplo: primeiro e segundo laudos do MERCOSUL, Argentina contra o Brasil, sobre Comunicados DECEX e SECEX (28/4/99) e Subsídios à Produção e Exportação de Carne de Porco (27/9/99). 187

tribunal têm de ajustar-se a essa regra. Se o objeto da controvérsia foi fixado na etapa de negociações diplomáticas, a partir de então já não pode ter modificação do objeto da controvérsia pelas partes envolvidas. Se fossem admitidas na fase arbitral reclamações não alegadas na fase anterior, se estaria aceitando que se pode obviar a fase diplomática para ir diretamente à fase arbitral, o que viola o conteúdo e o espírito do procedimento de solução de controvérsias do MERCOSUL.130 Enquanto a outra posição se baseava em que a matéria do conflito é a que surge dos documentos da reclamação e da resposta apresentados pelas partes ante o tribunal arbitral, ainda quando estes contenham imputações não alegadas com anterioridade131. Nesta linha o terceiro Tribunal Arbitral Ad Hoc do MERCOSUL sustentou que interpretava o art. 28 do Protocolo de Brasília no sentido de que o reclamante e/ou reclamado podem definir o objeto da controvérsia até a apresentação dos textos de reclamação e/ ou de resposta, de modo que as partes estabeleceriam o objeto da disputa nesses textos. O dispositivo referido exige ao tribunal o exame do conteúdo completo das duas apresentações, inclusive o petitório. As diferenças apontadas conduziram a adotar soluções divergentes, situação que deixa uma vez mais descoberta a necessidade de avançar para uma interpretação uniforme do direito do MERCOSUL. Em relação ao objeto da controvérsia e o tratamento que recebeu dos tribunais ad hoc, dois aspectos merecem esclarecimento. Primeiro interessa determinar se é necessário que se observem em forma sucessiva os mecanismos de solução de controvérsias previstos nos Protocolos de Brasília e Ouro Preto. Logo, esclarecer se no procedimento arbitral se pode introduzir ou não, 130. Primeiro laudo do MERCOSUL, § 53. 131. Terceiro laudo arbitral, Brasil contra a Argentina, sobre Medidas de Salvaguarda sobre Produtos Têxteis. 188

alegações não formuladas nas etapas anteriores132. Ainda que o problema se torne abstrato sob o mecanismo de Olivos que expressamente se pronuncia sobre ambas as questões, é oportuno um breve comentário. Quanto à primeira questão, os tribunais arbitrais reconheceram a necessidade de respeitar as etapas previstas nos meios consagrados nos instrumentos jurídicos do MERCOSUL. Assim se observa das opiniões vertidas pelos árbitros dos laudos citados quando se examinou se foram cumpridas as etapas prévias à arbitragem. O outro tema, que se refere a introduzirem-se novas imputações na fase arbitral, gera diferenças entre o disposto por um lado, no primeiro e no segundo laudo arbitral, e por outro, no terceiro laudo. Neste último caso, ao considerar o tribunal a alegação da Argentina, não obstante concluir que as questões alegadas pelo Brasil na reclamação apresentada na instância arbitral eram mais extensas do que aquelas formuladas nas etapas anteriores de solução de controvérsias, admitiu que integrassem a reclamação. A argumentação é a seguinte: “O objeto da presente controvérsia é o descrito na apresentação do Brasil e na resposta da Argentina. A objeção argentina à definição do objeto da controvérsia feita pelo Brasil não é consistente com o Artigo 28 do Regulamento do Protocolo de Brasília em virtude de que o Brasil definiu o objeto da controvérsia em seu trabalho escrito de apresentação, portanto, o Tribunal não levará em consideração a objeção anteriormente apresentada.”133

A objeção argentina se sustentou em que o texto da reclamação apresentada pelo Brasil ao Tribunal continha imputações 132. REY CARO, Apostillas sobre el derecho del Mercosur y la jurisprudencia arbitral, Madrid, 2001, p. 421. 133. Terceiro laudo do MERCOSUL, nota de rodapé n. 13. 189

que eram mais extensas do que o país especificou nas primeiras etapas para a resolução da controvérsia. Como deveria interpretar-se, em nosso juízo, o art. 28 do Protocolo de Brasília? Uma interpretação literal da norma permitiria aceitar-se a decisão do terceiro laudo arbitral, no entanto uma hermenêutica aplicada na perspectiva teleológica e atendendo ao mecanismo considerado em sua integridade, a interpretação conforme as argumentações contidas no terceiro laudo arbitral, conduzem a um efeito refratário ao desejado. Admitir a possibilidade de que se valorizem formulações das partes na instância arbitral, quando não foram sustentadas nas etapas prévias, violenta o texto e o espírito que primou ao projetar-se o sistema de Brasília, e mais ainda, é contrário aos elementares princípios de justiça e à prática nos mecanismos internacionais de solução de controvérsias.

4.5.4 Procedimento ante o Tribunal Permanente de Revisão Qualquer das partes na controvérsia poderá apresentar um recurso de revisão do laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc ao Tribunal Permanente de Revisão, em prazo não superior a quinze dias a partir da notificação do laudo.134 O recurso estará limitado a questões de direito tratadas na controvérsia e às interpretações jurídicas desenvolvidas no laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc.135 Caso um Estado-Parte interponha recurso de revisão, o cumprimento do laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc será suspenso durante o trâmite do mesmo.136 134. PO, art. 17.1. 135. PO, art. 17.2. 136. PO, art. 29.2. 190

Os laudos dos Tribunais Ad Hoc emitidos com base no “princípio ex aequo et bono” não serão suscetíveis de recurso de revisão.137 A Secretaria Administrativa do MERCOSUL estará encarregada das gestões administrativas que lhe sejam requeridas para o trâmite dos procedimentos e manterá informados os EstadosPartes na controvérsia e o Grupo Mercado Comum.138 A outra parte na controvérsia terá direito a contestar o recurso de revisão interposto, dentro do prazo de quinze dias de notificada à apresentação de tal recurso.139 O Tribunal Permanente de Revisão pronunciar-se-á sobre o recurso em um prazo máximo de trinta dias, contado a partir da apresentação da contestação referida no item anterior ou do vencimento do prazo para a referida apresentação, conforme o caso. Por decisão do tribunal de revisão, o prazo de trinta dias poderá ser prorrogado por mais quinze dias.140 O Tribunal Permanente de Revisão poderá confirmar, modificar ou revogar a fundamentação jurídica e as decisões do Tribunal Arbitral Ad Hoc.141 O laudo do Tribunal Permanente de Revisão será definitivo e prevalecerá sobre o laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc.142 Obviamente, a inovação mais importante que foi introduzida pelo texto de Olivos reside na criação de um Tribunal Permanente de Revisão, ao que se lhe atribui o caráter de permanente143. Mais do que um órgão permanente é um tribunal disponível que difere em muito, do caráter permanente que têm tribunais de outros modelos de integração. 137. PO, art. 17.3. 138. PO, art. 17.4. 139. PO, art. 21.1. 140. PO, art. 21.2. 141. PO, art. 22.1. 142. PO, art. 22.2. 143. PO, art. 19. 191

São variadas as razões que impediram a criação de um Tribunal permanente no sentido cabal do termo, isto é, caracterizado pela dedicação total de seus membros às funções atribuídas. Descartamos uma análise ao motivo principal pelo qual não é possível um tribunal supranacional, pois é sabido que o obstáculo é de neto conteúdo constitucional, pela falta de delegação de competências para órgãos legiferantes e jurisdicionais. A razão, que em nosso juízo, impediu criar um tribunal arbitral permanente se deve à onerosidade que isso acarretaria. Não só pelo que implica o tribunal em si, senão por todo o aparelho burocrático que se requer para seu funcionamento com caráter estável. Quanto à designação do quinto árbitro se reconhece aos Estados-Partes uma ampla margem para fixar os critérios que estimem mais convenientes, sempre que exista acordo entre eles. Quais são os pontos que podem afastar-se deste disposto? Entendemos que não é sobre a duração do mandato (3 anos), senão sobre a possibilidade de renová-lo. Também poderão acordar que o candidato seja extrazona. Podem estabelecer outro sistema para a eleição do quinto árbitro quando não existe unanimidade, descartando o sorteio na Secretaria Administrativa do MERCOSUL? Parece que isso é possível em virtude do disposto no artigo 18.4 do Protocolo de Olivos, quando deixa facultado ao acordo conjunto dos Estados-Partes fixar os critérios de sua designação. Não acreditamos possível que possa adotar-se uma alternativa distinta ao proposto quanto à exigência da unanimidade, pese a que a norma exprime que os “Estados-Partes, de comum acordo, poderão definir outros critérios para a designação do quinto árbitro”144. Também podem definir o modo de funcionamento do Tribunal segundo o número dos Estados-Partes da controvérsia. O Protocolo distingue quando o conflito envolva a dois Estados-Partes e quando a controvérsia envolva a mais de dois Estados-Partes. 144. PO, art. 18.4. 192

No primeiro caso, o Tribunal Permanente de Revisão estará integrado por um árbitro de cada um de ditos Estados e o presidente será eleito mediante sorteio realizado pelo diretor da Secretaria Administrativa do MERCOSUL entre os membros não nacionais dos Estados-Partes na controvérsia. Enquanto na outra hipótese o tribunal atua em seu conjunto ou pleno145. Para avançar na interpretação uniforme do direito do MERCOSUL, teria sido mais conveniente que em todos os casos o tribunal funcionasse integrado por todos os membros. Será difícil conseguir o objetivo de interpretação uniforme mediante o regime preceituado, pois a experiência nos conflitos levados ante os tribunais arbitrais ad hoc demonstra que as controvérsias se vieram apresentando entre dois Estados, conseqüentemente, a composição por três de seus membros, que serão diferentes segundo as partes na disputa, suscitará eventualmente distintas interpretações146. Em função do reenvio ao artigo que regulamenta as listas de árbitros para integrar o Tribunal Ad Hoc, a designação deve acompanhar-se com o curriculum vitae de cada candidato, admitindo-se o pedido de esclarecimentos a respeito das pessoas propostas e as objeções justificadas a respeito dos candidatos dos outros países. A Secretaria Administrativa do MERCOSUL tem a seu cargo todas as gestões administrativas para desenvolver os procedimentos necessários, bem como realizar as gestões tendentes a manter informados aos Estados-Partes na disputa e ao Grupo Mercado Comum. As partes poderão apresentar um recurso de revisão ante esse tribunal contra o laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc respeitando os prazos estabelecidos. O recurso se limitará às questões de direito tratadas na controvérsia e às interpretações jurídicas desenvolvidas no laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc que atua 145. PO, art. 20. 146. REY CARO, El Protocolo de Olivos para la solución de controversias en el Mercosur, Córdoba, p. 36. 193

como órgão de primeira instância, ficando excluídas deste modo todas as questões de fato147. Quando os laudos forem proferidos com base no princípio ex aequo et bono não poderá interpor-se recurso contra essa decisão. O Tribunal Permanente de Revisão tem competência para confirmar, modificar ou revogar os fundamentos jurídicos e os laudos do Tribunal Arbitral Ad Hoc. Contra seus pronunciamentos só é possível um recurso de esclarecimento com respeito à forma de cumprimento do laudo148; todavia o pronunciamento emanado do tribunal de revisão é definitivo e prevalece sobre o laudo proferido pelo Tribunal Arbitral Ad Hoc. Também assume competência per saltum, ou seja, que admite o acesso direto das partes uma vez que fracassaram as negociações diretas. As vantagens desta opção radicam em evitar dilações e diminuir os gastos que implicam submeter-se ao Tribunal Arbitral Ad Hoc como uma primeira instância jurisdicional. O inconveniente é o alcance da decisão no sentido de que esta não ficará sujeita a nenhum recurso de revisão e terá força de coisa julgada para as partes. Ademais, o Tribunal Permanente de Revisão tem competência para responder às opiniões consultivas que lhe sejam formuladas, ainda que este ponto dependa de regulamentação que elabore o Conselho do Mercado Comum para se conhecer como será efetivado o procedimento. Deverá conhecer assim mesmo, o tribunal de revisão, sobre as medidas provisionais que se tenham mantido quando o laudo foi objeto de recurso de revisão, devendo decidir na primeira reunião que efetue, uma vez interposto o recurso, sobre a continuidade ou cessação das mesmas. No suposto de que o Estado-Parte beneficiado pelo laudo considere que as medidas adotadas pelo obrigado não respondem 147. PO, art. 17. 148. PO, art. 28.1.

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ao cumprimento da decisão proferida, assumirá competência o Tribunal de Revisão no caso em que tenha intervindo, a fim de verificar o cumprimento. Também pode ocorrer que corresponda ao Tribunal Arbitral Ad Hoc entender do cumprimento do laudo se foi esse que o proferiu.

4.5.5 O procedimento no Tribunal Permanente de Revisão como instância única As partes na controvérsia, culminado o procedimento de negociação direta, poderão acordar expressamente submeter-se diretamente e em única instância ao Tribunal Permanente de Revisão, caso em que este terá as mesmas competências que um Tribunal Arbitral Ad Hoc.149 Nessas condições, os laudos do Tribunal Permanente de Revisão serão obrigatórios para os Estados-Partes na controvérsia a partir do recebimento da respectiva notificação, não estarão sujeitos a recursos de revisão e terão, com relação às partes, força de coisa julgada.150

Opiniões consultivas Durante as negociações prévias à assinatura do Protocolo de Olivos, como vimos, reconheceu-se à interpretação uniforme do acervo normativo do MERCOSUL significativa importância em termos de dotar ao esquema de previsibilidade e certeza. O principal problema radicou na busca do método mais idôneo para conseguir este propósito. Tendo-se insistido tanto na doutrina acerca dos benefícios que a interpretação uniforme do direito da integração produziria no desenvolvimento jurídico do processo, 149. PO, art. 23.1. Aplicando-se, no que corresponda os arts. 9, 12, 13, 14, 15 e 16 do PO. 150. PO, art. 23.2. 195

não surpreende que o Conselho do Mercado Comum tenha incluído a questão entre os temas enumerados para receber análises à hora de modificar o sistema de solução de conflitos do Protocolo de Brasília. A tal ponto se constituiu numa prioridade que se destacou que o legislador do MERCOSUL151 decidia modificar o sistema vigente frente à necessidade de garantir a correta interpretação, aplicação e cumprimento dos instrumentos fundamentais do processo de integração e do conjunto normativo do MERCOSUL, de forma consistente e sistemática com o fim de consolidar a segurança jurídica no bloco. Indagamos-nos, também, se é possível cumprir com esta finalidade através da norma que se sanciona? Trata-se de um propósito sumamente ambicioso que parte da premissa da existência de segurança jurídica no bloco – que focalizaremos mais adiante.

4.6 Laudos arbitrais Os laudos do Tribunal Arbitral Ad Hoc e os do Tribunal Permanente de Revisão serão adotados por maioria, serão fundamentados e assinados pelo presidente e pelos demais árbitros. Os árbitros não poderão fundamentar votos em dissidência e deverão manter a confidencialidade da votação. As deliberações também serão confidenciais e assim permanecerão em todo o momento.152 Os laudos dos Tribunais Arbitrais Ad Hoc são obrigatórios para os Estados-Partes na controvérsia a partir de sua notificação e terão, em relação a eles, força de coisa julgada se, transcorrido o prazo de quinze dias para interpor recurso de revisão, este não tenha sido interposto.153 151. Considerando do preâmbulo do Protocolo de Olivos. 152. PO, art. 25. 153. PO, arts. 26.1 e 17.1. 196

Os laudos do Tribunal Permanente de Revisão são inapeláveis, obrigatórios para os Estados-Partes na controvérsia a partir de sua notificação e terão, com relação a eles, força de coisa julgada.154 Os laudos deverão ser cumpridos na forma e com o alcance com que foram emitidos. A adoção de medidas compensatórias nos termos deste Protocolo não exime o Estado-Parte de sua obrigação de cumprir o laudo.155 Os laudos do Tribunal Ad Hoc ou os laudos do Tribunal Permanente de Revisão, conforme o caso, deverão ser cumpridos no prazo que os respectivos Tribunais estabelecerem. Se não for estabelecido um prazo, os laudos deverão ser cumpridos no prazo de trinta dias seguintes à data de sua notificação.156 O Estado-Parte obrigado a cumprir o laudo informará à outra parte na controvérsia, assim como ao Grupo Mercado Comum, por intermédio da Secretaria Administrativa do MERCOSUL, sobre as medidas que adotará para cumprir o laudo, dentro dos quinze dias contados desde sua notificação.157 Caso o Estado beneficiado pelo laudo entenda que as medidas adotadas não dão cumprimento ao mesmo, terá um prazo de trinta dias, a partir da adoção das mesmas, para levar a situação à consideração do Tribunal Arbitral Ad Hoc ou do Tribunal Permanente de Revisão, conforme o caso.158 O Tribunal respectivo terá um prazo de trinta dias a partir da data que tomou conhecimento da situação para dirimir as questões referidas no item anterior.159 Caso não seja possível a convocação do Tribunal Arbitral Ad Hoc que conheceu do caso, outro será conformado com os suplentes necessários.160 154. PO, art. 26.2. 155. PO, art. 27. 156. PO, art. 29.1. 157. PO, art. 29.3. 158. PO, art. 30.1. 159. PO, art. 30.2. 160. PO, art. 30.3, mencionados nos arts. 10.2 e 10.3. 197

4.6.1 Recurso de esclarecimento Qualquer dos Estados-Partes na controvérsia poderá solicitar um esclarecimento do laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc ou do Tribunal Permanente de Revisão e sobre a forma com que deverá cumprir-se o laudo, dentro de quinze dias subseqüentes à sua notificação.161 O Tribunal respectivo se manifestará sobre o recurso nos quinze dias subseqüentes à apresentação da referida solicitação e poderá outorgar um prazo adicional para o cumprimento do laudo.162

4.7 Acordo ou desistência da controvérsia Em qualquer fase dos procedimentos, o Estado que apresentou pedido de solução de controvérsia ou a reclamação poderá desistir das mesmas, ou os Estados-Partes envolvidos no caso poderão chegar a um acordo dando-se por concluída a controvérsia ou a reclamação, em ambos os casos. As desistências e acordos deverão ser comunicados por intermédio da Secretaria Administrativa do MERCOSUL ao Grupo Mercado Comum, ou ao tribunal que corresponda, conforme o caso.163

4.8 Confidencialidade Todos os documentos apresentados no âmbito dos procedimentos previstos no Protocolo de Olivos são de caráter reservado às partes na controvérsia, à exceção dos laudos arbitrais.164 Não obstante, o Conselho do Mercado Comum regulamentará a 161. PO, art. 28.1. 162. PO, art. 28.2. 163. PO, art. 45. 164. PO, art. 46.1. 198

modalidade de divulgação dos textos e apresentações relativos a controvérsias já concluídas.165 A critério da Seção Nacional do Grupo Mercado Comum de cada Estado-Parte do MERCOSUL e quando isso seja necessário para a elaboração das posições a serem apresentadas ante o Tribunal, esses documentos poderão ser dados a conhecer, exclusivamente, aos setores com interesse na questão.166

4.9 Prazos estabelecidos no Protocolo de Olivos Todos os prazos estabelecidos no Protocolo de Olivos são peremptórios e serão contados por dias corridos a partir do dia seguinte ao ato ou fato a que se referem. Não obstante, se o vencimento do prazo para apresentar um texto ou cumprir uma diligência não ocorrer em dia útil na sede da Secretaria Administrativa do MERCOSUL, a apresentação do texto ou cumprimento da diligência poderão ser feitos no primeiro dia útil imediatamente posterior a essa data.167 O acordo das partes prevalece sobre a regra, pois todos os prazos previstos no Protocolo de Olivos poderão ser modificados de comum acordo pelas partes na controvérsia. Os prazos previstos para os procedimentos tramitados ante os Tribunais Arbitrais Ad Hoc e ante o Tribunal Permanente de Revisão poderão ser modificados quando as partes na controvérsia o solicitarem ao respectivo Tribunal e este o conceder.168

165. PO, art. 46.3. 166. PO, art. 46.2. 167. PO, art. 48.1. 168. PO, art. 48.2. 199

5. DIREITO APLICÁVEL NA SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS NO MERCOSUL Os Tribunais Arbitrais Ad Hoc e o Tribunal Permanente de Revisão decidirão a controvérsia com base no direito da integração originário (Tratado de Assunção, no Protocolo de Ouro Preto, nos protocolos e acordos celebrados no marco do Tratado de Assunção); no direito da integração derivado (Decisões do Conselho do Mercado Comum, nas Resoluções do Grupo Mercado Comum e nas Diretrizes da Comissão de Comércio do MERCOSUL); e no direito internacional público (princípios e regras de Direito Internacional aplicáveis à matéria).169 O Protocolo de Olivos não restringe a faculdade dos Tribunais Arbitrais Ad Hoc ou a do Tribunal Permanente de Revisão, quando atue como instância direta e única170, de decidir a controvérsia ex aequo et bono, sempre que as partes assim acordarem.171

5.1 Princípios recepcionados pelo Protocolo de Olivos

5.1.1 Princípio da celeridade processual Estabeleceram-se termos breves a fim de agilizar as atuações, oferecendo assim maiores garantias de celeridade às partes. Por exemplo, o tribunal permanente poderá prorrogar o prazo de trinta dias fixado para pronunciar-se no recurso de revisão, por um lapso de apenas quinze dias172. Também concerne ao princípio de celeridade, a faculdade reconhecida às partes de elidir a jurisdição do Tribunal Arbitral Ad Hoc e submeter-se diretamente ao Tribunal Permanente de Revisão. 169. PO, art. 34.1. 170. PO, art. 23. 171. PO, art. 34.2. 172. PO, art. 21. 200

5.1.2 Princípio da especificidade Admitir-se-ão procedimentos especiais para casos excepcionais de urgência, quando a dilação possa provocar danos irreparáveis às partes. A qualificação será estabelecida pelo Conselho do Mercado Comum173.

5.1.3 Princípio da autonomia da vontade Foi reconhecido um amplo espaço à vontade das partes, no sentido de que poderão modificar de comum acordo, regras estabelecidas em matéria de procedimentos e prazos. Quando se trata de prazos referentes aos procedimentos em trâmite ante as instâncias jurisdicionais, conquanto as partes possam modificar os mesmos, a decisão final fica sujeita à decisão dos tribunais arbitrais. No que se refere ao funcionamento do tribunal, também se destaca um papel importante para este princípio; ao estabelecer regras segundo as quais se a controvérsia se der entre dois ou mais Estados-Partes e o modo de composição do Tribunal Permanente de Revisão num e noutro caso, as partes poderão modificar as disposições previstas. De comum acordo estão facultadas a definição dos critérios para a designação do quinto árbitro, a renovação de seu cargo e sua qualidade extrazona.174

5.1.4 Princípio da confidencialidade Impera com relação a todos os documentos apresentados no âmbito dos procedimentos previstos no Protocolo de Olivos.175 173. PO, art. 24. 174. PO, art. 20.3. 175. PO, art. 46. 201

5.1.5 O princípio de segurança jurídica Como ponto de partida é mister precisar o que entendemos por segurança jurídica. Numerosos conceitos foram elaborados para chegar a uma definição deste princípio que se relaciona diretamente com a previsibilidade e possibilidade de predizer os atos jurídicos; seu respeito permite aos sujeitos prever ou predizer as conseqüências jurídicas que se produzirão de acordo com um determinado marco normativo. O conceito de segurança jurídica é um elemento chave para penetrar na natureza do direito que se une tanto à idéia de justiça como a de ordem social. Abarca duas perspectivas básicas: uma objetiva, definida como o resultado que se consegue ao aplicar o direito ou como um efeito da ordem; e outra subjetiva que consiste no convencimento de que os direitos são respeitados e que as relações jurídicas estão sempre reguladas pela lei176. Frente a iguais circunstâncias se produzirão iguais resultados e neste fator é onde a interpretação uniforme do direito adquire singular importância. No âmbito do MERCOSUL se gera um ordenamento normativo complexo177 e assistemático178 cuja vigência é inerente à vontade política dos Estados dependendo do nível de compromisso que se estabelece entre eles. As características institucionais 176. Ver MARTINEZ PAZ, Introducción al derecho, Buenos Aires, 1991, p. 325; KEMELMAJER DE CARLUCCI, Seguridad y Justicia, 1993; LORENZETTI, Las normas fundamentales de derecho privado, Santa Fe, 1995, p. 227. 177. A complexidade do direito do bloco se suscita como conseqüência da estrutura institucional. As normas não gozam de efeito direto e tampouco são de aplicação imediata, salvo as que expressamente se estabelecem no Protocolo de Ouro Preto. Ver DREYZIN DE KLOR, Algunas reflexiones sobre la cooperación jurisdiccional internacional en torno a la calidad del derecho de la integración, Santa Fe, 2000. 178. Pelas razões apontadas na nota anterior, as fontes jurídicas do MERCOSUL não integram o ordenamento jurídico nacional enquanto os Estados-Partes não procedem ao depósito do instrumento de ratificação e cumprem o procedimento para a sua vigência conforme estabelecido no Protocolo de Ouro Preto. 202

e jurídicas do modelo de integração estabelecido nas fontes originárias - em relação à solução de conflitos - levaram a optar pelos chamados métodos alternativos, a saber: as negociações diretas, a mediação e a arbitragem. A experiência acumulada durante a vigência desse mecanismo de solução de controvérsias denota que não resultou o mais adequado para outorgar previsibilidade e possibilidade de predizer as normas e também não se incorporaram métodos que permitam afirmar até que ponto o sistema contribui para a interpretação uniforme do direito erigido em seu âmbito. Isso, sem prejuízo de reconhecer que os tribunais arbitrais têm recorrido em numerosas oportunidades aos precedentes formados pelos laudos anteriores para basear suas argumentações e decisões. Entretanto, também se afastaram em vários casos dos precedentes, através de uma hermenêutica que suscita divergentes resultados em supostos equivalentes179. Outro fator a destacar é que estamos nos referindo à atuação nos tribunais arbitrais ad hoc sem fazer menção alguma às jurisdições nacionais; focalizamos o tema na perspectiva plasmada no Protocolo de Brasília. Quando são os tribunais nacionais os que interpretam e aplicam o direito do MERCOSUL, eventualmente com parâmetros distintos ao tribunal arbitral em casos equivalentes180, não há senão que acudir às respectivas legislações nacionais e aos princípios de hierarquia que se reconhecem entre o ordenamento nacional e o internacional. 179. Um dos exemplos de determinação do objeto da controvérsia é o primeiro laudo arbitral, no qual se efetuou uma interpretação do art. 25 do Protocolo de Brasília que difere da realizada pelo Tribunal Ad hoc que apreciou o segundo conflito decidido. 180. O tribunal arbitral que decidiu sobre a “Prohibición de Importación de Neumáticos Remoldeados (Remolded) Procedentes de Uruguay”, considerou que as normas brasileiras que restringiam a importação de pneumáticos recapados são contrárias ao Tratado de Assunção; entretanto, em 9/2/ 2002 o Tribunal Federal da 4ª Região (RS, SC, PR), seguindo uma posição consolidada na judicatura do Brasil, convalidou tal legislação. 203

A assertiva efetuada conduz diretamente a observar de que modo a União Européia encarou a matéria. O princípio de segurança jurídica naquele modelo de integração foi relacionado com vários aspectos cujo ponto de convergência é a primazia do direito comunitário sobre o direito interno, entre eles: a segurança jurídica na integração do direito comunitário; a segurança jurídica e a incompatibilidade entre direito comunitário e direito interno; a segurança jurídica e a forma de execução do direito comunitário181. Sobre cada uma destas questões se pronunciou o Tribunal de Justiça da União Européia eliminando a incerteza nas situações conflitantes e estabelecendo axiomas que se erigem como garantias sobre as quais se constrói a integração européia182. A relevância de avançar para uma interpretação uniforme do direito do MERCOSUL articulando os meios idôneos é o núcleo central em torno do qual deve girar o mecanismo de solução de conflitos. Conquanto todas as inovações acordadas no novo texto se concentram na idéia de afiançar e consolidar a segurança jurídica no bloco, entendemos que na medida em que não se estabeleçam os métodos necessários para confluir na adoção deste mecanismo, os direitos dos cidadãos não estarão devidamente resguardados.

5.2 A interpretação uniforme como instrumento da integração A interpretação uniforme do ordenamento da integração depende de sua unidade extrínseca e intrínseca, isto é, da adequação da conduta dos Estados e dos particulares com esse 181. Ver ALONSO GARCÍA, Derecho comunitario: sistema constitucional y administrativo de la Comunidad Europea, Madrid, 1995, p. 286. 182. Exemplos de precedentes no TJCE: “Comisión v. Italia”, 21/9/1978 (69/ 77); “Comisión v. Bélgica”, 6/5/1980 (102/79); “Comisión v. Italia”, 3/3/ 1988 (116/89); “Comisión v. Países Bajos”, 20/3/1986 (72/85); “Comisión v. Francia”, 4/4/1974 (167/73). 204

ordenamento183. Conquanto seu cumprimento e aplicação se produzam em Estados-nacionais distintos, sob autoridades nacionais com critérios interpretativos divergentes fruto de idiossincrasias, histórias e realidades jurídicas heterogêneas, a falta de uniformidade interpretativa permite violentar princípios sustentadores do processo, particularmente a igualdade dos Estados-Partes184. Os países envolvidos são os destinatários desse acervo jurídico, ou seja, os governos e os particulares – pessoas físicas e jurídicas – que negociam no marco da lei vigente, pelo que essa diversidade interpretativa dos juízes nacionais ou dos árbitros designados para solucionar o conflito, põe em perigo a unidade do ordenamento da integração. Neste ponto resulta inevitável acudir novamente ao modelo da União Européia que reflete a importância que teve a interpretação uniforme do ordenamento comunitário realizada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias no desenvolvimento desse processo. Lembremos que a missão específica desse tribunal, definida nos Tratados fundacionais, é garantir o respeito do Direito na interpretação e aplicação dos Tratados185. Entre as vias pelas quais se tem acesso ao Tribunal de Justiça da União Européia, nos interessa referir à questão prejudicial, já que atendo-nos às declarações efetuadas por funcionários governamentais, parece que o Protocolo de Olivos através do mecanismo de consultas que prescreve aspira a conseguir uma in183. JIMENEZ DE ARÉCHAGA; PAOLILLO, Control de la legalidad de los actos comunitarios e interpretación unitaria del Derecho de la Integración, Buenos Aires, 1967, p. 11. 184. MASNATTA, Perspectivas para el sistema definitivo de solución de controversias en el Mercosur, 2002: “al referirse a la interpretación uniforme, señala que se busca resguardar el principio de igualdad entre los Estados Partes y preservar toda distorsión en la competencia de sujetos individuales o empresariales”. 185. CECA, art.31; CEE, art. 164; CEEA, art. 136; versão compilada do Tratado que institui a Comunidade Européia, art. 220.

205

terpretação uniforme do direito do bloco, cujos parâmetros se achariam no modelo europeu186. Um importante número dos julgados transcendentais proferidos pelo tribunal comunitário o foram por este procedimento considerado “o instrumento, por excelência da integração jurídica comunitária”187. Nessa linha bem se afirma que “a pedra angular da Comunidade não é só uma mesma norma comum, senão dita norma interpretada e aplicada da mesma maneira em toda a extensão de um mesmo território pelos Tribunais de todos os Estados-Membros”188. Mediante o recurso prejudicial, cuja finalidade é justamente procurar uma interpretação uniforme do direito comunitário e a garantia da sua correta exegese, o tribunal deve pronunciar-se quando se lhe requer sobre o direito originário e sobre sua validez, interpretação dos atos adotados pelas instituições da Comunidade e sobre a interpretação dos estatutos dos organismos criados por um ato do Conselho. Em conseqüência não se inclui o pronunciamento sobre aspectos litigiosos de natureza fática189. É fundamental assinalar que são os magistrados nacionais que conhecem de um conflito, que tramita sob suas jurisdições, quem pode ou deve, ao ter dúvidas sobre a interpretação ou a validez do ordenamento aplicável190, consultar o órgão supranacional a fim de que este se pronuncie a respeito com caráter prévio191. 186. REDRADO, 2002: “avanzar hacia una interpretación uniforme del conjunto normativo del Mercosur y hacia la creación de una jurisprudencia común”. 187. Ver KEMELMAJER DE CARLUCCI, El juez frente al derecho comunitario. 188. R. LECOURT, apud ALONSO GARCÍA, Derecho comunitario: sistema constitucional y administrativo de la Comunidad Europea, Madrid, 1995, p. 325. 189. TCE, art. 177; versão compilada do Tratado que institui a Comunidade Européia, art. 234. 190. Não deve tratar-se de um “ato claro”, ver MOLINA DEL POZO, La teoría del acto claro, Santa Fe, 1999, p. 527-567. 191. O tribunal supranacional deve pronunciar-se sobre o direito e não sobre os fatos, é por isso que se diz que se faz de uma maneira “abstrata”. FUENTELAJA PASTOR, El proceso judicial comunitario, 1996, p. 225. 206

Essa consulta que realiza o juiz nacional, conhecida também como reenvio prejudicial192, gera entre o tribunal supranacional e os juízes dos países membros um duplo vínculo. Por um lado, estabelece um procedimento de cooperação para uniformizar a interpretação e a aplicação do direito comunitário, no sentido de que, enquanto o juiz nacional é quem resolve o litígio – que se suspende até tanto se pronuncie o tribunal supranacional – este órgão se avoca às questões de interpretação e de validez sem que nenhum deles interfira na tarefa do outro193. O Tribunal de Justiça na União Européia é o órgão encarregado de marcar as pautas comuns que guiam aos tribunais nacionais no momento de velar pela aplicação correta do direito comunitário; de sorte tal que se produz uma extensão da comunidade desde a fase de produção normativa à instância aplicativa através da interpretação uniforme das normas194. Por outro lado, as sentenças que provêm do órgão supranacional, ao serem vinculantes, geram um laço de subordinação que nada tem que ver com uma relação de hierarquia, já que não se trata de um recurso direto, que faz às vezes de uma cassação comunitária após esgotadas as instâncias ante os tribunais nacionais195. Além desta breve referência, podemos anotar como caracteres próprios da questão prejudicial, os seguintes: 192. Tanto a Comunidade Européia desde seu início, como a Comunidade Andina desde a criação do Tribunal de Justiça do Acordo de Cartagena (Tratado de 1979, vigente desde 1983), estabelecem a questão de interpretação prejudicial com numerosas semelhanças e algumas diferenças, a caracterização de cada uma delas pode ver-se em: CZAR DE ZALDUENDO, La integración económica y la interpretación uniforme del derecho. 193. KEMELMAJER DE CARLUCCI, El juez frente al derecho comunitario. 194. ALONSO GARCÍA, Derecho comunitario: sistema constitucional y administrativo de la Comunidad Europea, Madrid, 1995, p. 326. 195. CZAR DE ZALDUENDO, La integración económica y la interpretación uniforme del derecho, p. 1044, diz: “en la CE no se pretendió instaurar una relación de jerarquía del tribunal europeo sobre los jueces y cortes nacionales pues esto era algo que los Estados no estaban dispuestos a aceptar pacíficamente”.

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g)

h)

se propõe quando exista um litígio em curso perante tribunais nacionais, ou seja, no marco de uma controvérsia real e efetiva; o juiz nacional deve ter uma dúvida razoável sobre a norma comunitária que deve aplicar, ou seja, que não deve tratar-se de um ato claro; a matéria objeto de consulta pode ser de interpretação ou de validez; a questão proposta não deve ter sido objeto de uma decisão a título prejudicial com anterioridade, isto é, não deve tratar-se de um ato esclarecido; o Tribunal de Justiça da União Européia se pronuncia sobre o direito e não sobre os fatos em conflito, por isso se diz que o faz de maneira abstrata; as partes no conflito não o são na questão prejudicial, conquanto se lhes permite comparecer ante o tribunal comunitário para apresentarem observações escritas ou orais; ainda que a consulta proposta pelo tribunal nacional seja facultativa, quando se trata de um órgão judicial de última instância passa a ser obrigatória; o acórdão do tribunal comunitário é vinculante para o juiz que o solicitou, que deverá resolver o caso conforme essa interpretação196. Seu caráter vinculante se estende a todas as instituições comunitárias e autoridades nacionais, incluindo os órgãos jurisdicionais à hora de aplicar o direito comunitário.

5.2.1 Interpretação uniforme no Protocolo de Olivos No Capítulo III, o Protocolo de Olivos, prevê a possibilidade de estabelecer mecanismos relativos à solicitação de opiniões 196. Caracterização desta questão inspirada em: CZAR DE ZALDUENDO, La integración económica y la interpretación uniforme del derecho, p. 1042.

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consultivas ao Tribunal Permanente de Revisão, prescrevendo que o Conselho do Mercado Comum é o órgão encarregado de definir o alcance e os procedimentos de tais mecanismos197. Interrogamos-nos se se trataria da semente de uma interpretação uniforme do acervo jurídico do MERCOSUL? Pode-se admitir que a realização de consultas constitua um instrumento no processo que implica para as partes contar com maiores possibilidades de predição, tentando desta maneira evitar a promoção de contendas. A natureza preventiva da consulta poderia contribuir para criar um clima de observância do ordenamento do MERCOSUL198. A delegação do Uruguai sustentou que possibilitar as consultas sobre o ordenamento jurídico brindaria às partes maior certeza sobre seus direitos e obrigações. O Grupo de Alto Nível incorporou essa temática propondo duas alternativas. Numa alternativa, os Estados-Partes poderiam solicitar essas opiniões consultivas de modo conjunto ao Tribunal Permanente de Revisão sobre a interpretação e aplicação do ordenamento originário e derivado. Como fundamento se argumentou: “procurar prevenir uma eventual controvérsia, como requerer uma expressão de opinião não vinculada a uma eventual controvérsia específica”. A outra alternativa – que foi a adotada pelo Protocolo de Olivos de forma quase textual – não inclui a parte final da proposta do Grupo de Alto Nível quando estabelecia expressamente que tais opiniões consultivas não teriam caráter obrigatório199. Primeiramente, como afirma Rei Caro, teria sido mais adequado regular diretamente a questão no Protocolo e determinar de forma expressa o caráter ou valor das opiniões solicitadas ao Tribunal Permanente de Revisão ao invés de deixar liberada a 197. PO, art. 3. 198. Bases apresentadas pelo Uruguai. 199. REY CARO, El Protocolo de Olivos para la solución de controversias en el Mercosur, p. 14. 209

regulamentação à discricionariedade do Conselho do Mercado Comum, órgão que segundo se estabelece poderá ou não regular a matéria200. Em segundo lugar, comparar este mecanismo de opiniões consultivas - sobre o qual nada se disse - com o que implica interpretar de maneira uniforme o direito do MERCOSUL resulta pouco alcançável, tal como observamos nas breves considerações sobre o reenvio prejudicial, seu alcance e condicionamentos, ao menos não parece ter-se cumprido o mandato da Decisão N° 25/ 2000. Consideramos que a disposição incorporada no Protocolo de Olivos não é um meio idôneo para atingir o propósito que não se estabeleceu na disposição referida, que era uma preocupação ao longo de todas as negociações preliminares. Um terceiro argumento, que se desprende de um fator enlaçado com a formulação anterior, que não se pode deixar de mencionar, é que a prejudicialidade requer que sejam os próprios juízes nacionais quem a pleiteiem. No instrumento aprovado não se lhes reconhece aos tribunais dos Estados-Partes legitimação alguma para propor a consulta ao Tribunal Permanente de Revisão. O Protocolo de Olivos não faz referência a quem tem legitimidade para efetuar a consulta, seria importante habilitar os juízes nacionais a tal efeito, o que logicamente necessitaria inexoravelmente de uma modificação muito mais profunda. Um grave obstáculo para avançar por este caminho esbarra nas diferenças substanciais que se apresentam a partir do disposto nas Constituições dos Estados-Partes. As Cartas da Argentina e do Paraguai adotaram fórmulas pelas quais se reconhecem a prevalência normativa do ordenamento da integração sobre o interno. No entanto, as Constituições do Brasil e do Uruguai não foram modificadas para acompanhar o processo. Além disso, o Brasil estabelece a aplicabilidade da lei local posterior sobre o ordenamento internacional, ficando prejudicado neste 200. REY CARO, El Protocolo de Olivos para la solución de controversias en el Mercosur, p. 15. 210

último o direito da integração. A jurisprudência brasileira reflete uma obediência literal a esta regra. Portanto, nos casos de conflito entre o ordenamento jurídico do MERCOSUL e as normas de direito interno, primam as regras de fonte interna com a conseqüente falta de segurança jurídica e de previsibilidade para os operadores da região. A função consultiva do tribunal de revisão, cujos alcances se encontram pendentes de definição, pode chegar a representar no futuro uma fórmula dinâmica e prometedora para conseguir relacionar a justiça do MERCOSUL com os tribunais locais dos Estados-Partes201. Entretanto, no momento atual, a reforma produzida não implica mais do que um efêmero avanço sobre o mecanismo vigente. Em todo caso, terá que aguardar a regulamentação para verificar-se a sua operatividade.

6. MEDIDAS COMPENSATÓRIAS

6.1 Aplicação de medidas compensatórias Se um Estado-Parte na controvérsia não cumprir total ou parcialmente o laudo do Tribunal Arbitral, a outra parte na controvérsia terá a faculdade, dentro do prazo de um ano, contado a partir do dia seguinte ao término do prazo estipulado para cumprimento do laudo202, e independentemente de recorrer aos procedimentos de reconsideração do tribunal203, de iniciar a aplicação de medidas compensatórias temporárias, tais como a suspensão 201. Ver ESTOUP, Algunas reflexiones sobre la competencia del nuevo Tribunal Permanente de Revisión del Mercosur, 2002. 202. PO, art. 29.1. 203. PO, art. 30. 211

de concessões ou outras obrigações equivalentes, com vistas a obter o cumprimento do laudo.204 O Estado-Parte beneficiado pelo laudo procurará, em primeiro lugar, suspender as concessões ou obrigações equivalentes no mesmo setor ou setores afetados. Caso considere impraticável ou ineficaz a suspensão no mesmo setor, poderá suspender concessões ou obrigações em outro setor, devendo indicar as razões que fundamentam essa decisão.205 As medidas compensatórias a serem tomadas deverão ser informadas expressamente pelo Estado-Parte que as aplicará, com uma antecedência mínima de quinze dias, ao Estado-Parte que deva cumprir o laudo.206

6.2 Faculdade de questionar medidas compensatórias Caso o Estado-Parte beneficiado pelo laudo aplique medidas compensatórias por considerar insuficiente o cumprimento do mesmo, mas o Estado-Parte obrigado a cumprir o laudo considerar que as medidas adotadas são satisfatórias, este último terá um prazo de quinze dias, contado a partir da notificação207, para levar esta situação à consideração do Tribunal Arbitral Ad Hoc ou do Tribunal Permanente de Revisão, conforme o caso, o qual terá um prazo de trinta dias desde a sua constituição para se pronunciar sobre o assunto.208 Caso o Estado-Parte obrigado a cumprir o laudo considere excessivas as medidas compensatórias aplicadas, poderá solicitar, até quinze dias depois da aplicação dessas medidas, que o tribunal ad hoc ou o tribunal permanente, conforme corresponda, 204. PO, art. 31.1. 205. PO, art. 31.2. 206. PO, art. 31.3. 207. PO, art. 31.3. 208. PO, art. 32.1. 212

se pronuncie a respeito, em um prazo não superior a trinta dias, contado a partir da sua constituição.209 O tribunal pronunciar-se-á sobre as medidas compensatórias adotadas. Avaliará, conforme o caso, a fundamentação apresentada para aplicá-las em um setor distinto daquele afetado, assim como sua proporcionalidade com relação às conseqüências derivadas do não cumprimento do laudo.210 Ao analisar a proporcionalidade, o tribunal deverá levar em consideração, entre outros elementos, o volume e/ou o valor de comércio no setor afetado, bem como qualquer outro prejuízo ou fator que tenha incidido na determinação do nível ou montante das medidas compensatórias.211 O Estado-Parte que aplicou as medidas deverá adequá-las à decisão do tribunal em um prazo máximo de dez dias, salvo se o tribunal estabelecer outro prazo.212 Uma vez proferido o laudo o Estado-Parte obrigado na controvérsia deve cumpri-lo, sem prejuízo das medidas compensatórias que se adotem213. Estas podem consistir na suspensão de concessões ou outras equivalentes, procurando em primeiro termo, que recaiam no mesmo setor ou setores afetados, e só quando não seja possível se atinja a outro setor. Nesta hipótese, o Estado-Parte que adote as medidas deverá justificar as razões que fundamentam sua decisão. Não se prevêem compensações pecuniárias. Quando o Estado beneficiado aplique medidas compensatórias por entender insuficiente seu ressarcimento mediante o cumprimento do laudo, enquanto o Estado obrigado a reparar sustente o contrário, a diferença se elucidará ante o tribunal que tiver proferido a sentença. 209. PO, art. 32.2. 210. PO, art. 32.2(i). 211. PO, art. 32.2(ii). 212. PO, art. 32.3. 213. PO, art. 27. 213

Interrogamos-nos sobre o que sucederia na hipótese contrária, isto é, quando as medidas compensatórias adotadas resultassem excessivas? Ainda que o Protocolo de Olivos não diga nada ao respeito, estimamos que assista ao prejudicado o direito de ir ante o tribunal que interveio na solução da controvérsia.

7. RECLAMAÇÕES DE PARTICULARES Pese a que o Uruguai tenha defendido com sólidos argumentos a necessidade de habilitar o acesso dos particulares ao tribunal de solução de controvérsias do MERCOSUL, manteve-se em linhas gerais o mecanismo de Brasília. Não se introduziram mudanças favoráveis e a inovação produzida merece uma crítica ao limitar a intervenção do particular no procedimento de consultas. Em conseqüência, não obstante a importância que revestem os particulares para o processo de integração, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas de caráter privado, continuam tendo uma participação restrita na condição de denunciantes e não de litigantes, sendo condição para acionar o procedimento arbitral a aceitação do Estado-Parte onde residem habitualmente ou tenham a sede de seus negócios. O que mantém os atores privados, principalmente as empresas, na mesma condição que têm ante o direito internacional público em geral.

7.1 Âmbito de aplicação do procedimento de reclamação de particulares O procedimento do Protocolo de Olivos é aplicável às reclamações efetuadas por particulares, pessoas físicas ou jurídicas, em razão da sanção ou aplicação, por qualquer dos Estados-Partes, de medidas legais ou administrativas de efeito restritivo, discriminatórias ou de concorrência desleal, em violação do direito 214

originário do MERCOSUL (Tratado de Assunção, Protocolo de Ouro Preto, protocolos e acordos celebrados no marco do Tratado de Assunção) e do seu direito derivado (Decisões do Conselho do Mercado Comum, Resoluções do Grupo Mercado Comum e Diretrizes da Comissão de Comércio do MERCOSUL).214

7.2 Início do trâmite da reclamação de particulares Os particulares afetados formalizarão as reclamações ante a Seção Nacional do Grupo Mercado Comum do Estado-Parte onde tenham sua residência habitual ou a sede de seus negócios.215 Os particulares deverão fornecer elementos que permitam determinar a veracidade da violação e a existência ou ameaça de um prejuízo, para que a reclamação216 seja admitida pela Seção Nacional e para que seja avaliada pelo Grupo Mercado Comum e pelo grupo de especialistas, se for convocado.217

7.3 Procedimento da reclamação de particulares A menos que a reclamação de particulares se refira a uma questão que tenha motivado o início de um procedimento de Solução de Controvérsias (negociação direta, intervenção do Grupo Mercado Comum, procedimento arbitral ad hoc ou procedimento de revisão), a Seção Nacional do Grupo Mercado Comum que tenha admitido a reclamação218 deverá entabular consultas com a Seção Nacional do Grupo Mercado Comum do Estado-Parte a que se atribui a violação, a fim de buscar, mediante consultas, uma solução imediata à questão levantada. Tais consultas se darão por 214. PO, art. 39. 215. PO, art. 40.1. 216. PO, art. 40. 217. PO, art. 40.2. 218. PO, art. 40. 215

concluídas automaticamente e sem mais trâmites se a questão não tiver sido resolvida em um prazo de quinze dias contado a partir da comunicação da reclamação ao Estado-Parte a que se atribui a violação, salvo se as partes decidirem outro prazo.219 Finalizadas as consultas, sem que se tenha alcançado uma solução, a Seção Nacional do Grupo Mercado Comum elevará a reclamação sem mais trâmite ao Grupo Mercado Comum.220

7.4 Intervenção do Grupo Mercado Comum no procedimento de reclamação de particulares Recebida a reclamação de particular, o Grupo Mercado Comum avaliará os requisitos estabelecidos (violação do direito originário ou derivado do MERCOSUL e a existência ou ameaça de um prejuízo)221, sobre os quais se baseou sua admissão pela Seção Nacional, na primeira reunião subseqüente ao seu recebimento. Se concluir que não estão reunidos os requisitos necessários para dar-lhe curso, rejeitará a reclamação sem mais trâmite, devendo pronunciar-se por consenso.222 Se o Grupo Mercado Comum não rejeitar a reclamação, esta considerar-se-á admitida. Neste caso, o Grupo Mercado Comum procederá de imediato à convocação de um grupo de especialistas que deverá emitir um parecer sobre sua procedência, no prazo improrrogável de trinta dias contado a partir da sua designação.223 Nesse prazo, o grupo de especialistas dará oportunidade ao particular reclamante e aos Estados envolvidos na reclamação de serem ouvidos e de apresentarem seus argumentos, em audiência conjunta.224 219. PO, art. 41.1. 220. PO, art. 41.2. 221. PO, art. 40.2. 222. PO, art. 42.1. 223. PO, art. 42.2. 224. PO, art. 42.3. 216

7.5 Grupo de especialistas para dar parecer sobre procedência da reclamação de particulares O grupo de especialistas225 será composto de três membros designados pelo Grupo Mercado Comum ou, na falta de acordo sobre um ou mais especialistas, estes serão escolhidos por votação que os Estados-Partes do MERCOSUL realizarão dentre os integrantes de uma lista de vinte e quatro especialistas. A Secretaria Administrativa do MERCOSUL comunicará ao Grupo Mercado Comum o nome do especialista ou dos especialistas que tiverem recebido o maior número de votos. Neste último caso, e salvo se o Grupo Mercado Comum decidir de outra maneira, um dos especialistas designados não poderá ser nacional do Estado contra o qual foi formulada a reclamação, nem do Estado no qual o particular formalizou sua reclamação226. Com o fim de constituir a lista dos especialistas, cada um dos Estados-Partes designará seis pessoas de reconhecida competência nas questões que possam ser objeto de reclamação. Esta lista ficará registrada na Secretaria Administrativa do MERCOSUL.227 Os gastos derivados da atuação do grupo de especialistas serão custeados na proporção que determinar o Grupo Mercado Comum ou, na falta de acordo, em montantes iguais pelos Estados-Partes diretamente envolvidos na reclamação.228 O grupo de especialistas elevará seu parecer ao Grupo Mercado Comum. Se, em parecer unânime, se verificar a procedência da reclamação formulada contra um Estado-Parte, qualquer outro Estado-Parte poderá requerer-lhe a adoção de medidas corretivas ou a anulação das medidas questionadas. Se o requerimento não 225. PO, art. 42.2. 226. PO, art. 40 e art. 43.1. 227. PO, art. 43.2. 228. PO, art. 43.3. 217

prosperar num prazo de quinze dias, o Estado-Parte que o efetuou poderá recorrer diretamente ao procedimento arbitral.229 Recebido um parecer que considere improcedente a reclamação por unanimidade, o Grupo Mercado Comum imediatamente dará por concluída a mesma no âmbito da reclamação de particulares.230 Caso o grupo de especialistas não alcance unanimidade para emitir um parecer, elevará suas distintas conclusões ao Grupo Mercado Comum que, imediatamente, dará por concluída a reclamação no mesmo âmbito.231 A conclusão da reclamação por parte do Grupo Mercado Comum, nos casos de improcedência da reclamação por parecer unânime dos especialistas ou falta de unanimidade, não impedirá que o Estado-Parte reclamante dê início aos procedimentos de negociação direta, intervenção do Grupo Mercado Comum ou procedimento arbitral ad hoc.232

8. O REGULAMENTO DO PROTOCOLO DE OLIVOS PARA A SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS NO MERCOSUL Na Reunião de Cúpula do MERCOSUL233, realizada em Montevidéu no mês de dezembro de 2003, foi aprovado o Regulamento do Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias no MERCOSUL234, decisão que não necessita ser incorporada aos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados-Partes por regulamentar aspectos do funcionamento do bloco. 229. PO, art. 44.1(i). Procedimento arbitral previsto no PO, Cap. VI. 230. PO, art. 44.1(ii). 231. PO, art. 44.1(iii). 232. PO, art. 44.2. 233. XXV Reunião do CMC, Montevidéu, 15/12/2003. 234. MERCOSUL/CMC/DEC. N° 37/03. 218

O Protocolo de Olivos dispunha que o Conselho do Mercado Comum deveria aprovar a regulamentação do instrumento de solução de controvérsias235, o que se tornava necessário uma vez em vigência o Protocolo para efeitos de assegurar a efetividade de seus mecanismos e a maior segurança jurídica do processo de integração. Primeiramente, no que se refere ao regulamento dos procedimentos nas controvérsias entre os Estados-Partes, estabelece as regras sobre a eleição de foro, que deve ser expressa antes do início do procedimento236. A eleição se refere ao sistema do MERCOSUL e da Organização Mundial do Comércio. Ficou pendente a regulamentação relacionada a sistemas de solução de controvérsias de outros esquemas preferenciais de comércio237. Regula as opiniões consultivas perante o Tribunal Permanente de Revisão, estabelece a legitimação para solicitá-las; os requisitos quanto à tramitação da solicitação dos Estados-Partes, dos órgãos do MERCOSUL e dos Tribunais Superiores de Justiça dos Estados-Partes; as formalidades da apresentação da solicitação; para emitir a opinião, como será integrado o Tribunal, a convocação e o seu funcionamento; as atuações do Tribunal; o conteúdo, a conclusão do procedimento e os efeitos das opiniões consultivas; os impedimentos para o Tribunal manifestar-se; e, a publicação das opiniões consultivas. A solicitação de opinião consultiva por parte dos Tribunais Superiores de Justiça dos Estados-Partes do MERCOSUL é uma circunstância que, sem dúvida, envolve uma problemática que gerará não poucos debates, além de poder considerar-se uma novidade transcendental no sistema. Os limites que surgem da disposição ficam sujeitos a duas observações. Por um lado, o âmbito material, já que as opiniões consultivas poderão versar sobre a interpretação jurídica da normativa do MERCOSUL, sempre que se vinculem com causas que estejam em tramitação 235. PO, art. 47. 236. Procedimento previsto no PO, arts. 4 e 41. 237. Regulamento do PO, art. 1.5. 219

no Poder Judiciário do Estado-Parte solicitante. Por outro, o âmbito funcional cuja regulamentação dependerá de consulta aos Tribunais Superiores de Justiça dos Estados-Partes.238 Quanto à implementação das opiniões consultivas, estas se apresentarão por escrito e aos efeitos de proferir a opinião do tribunal permanente, exige-se a integração do órgão por todos seus membros. Uma especial referência nos interessa acerca dos efeitos destas opiniões, emitidas pelo Tribunal Permanente de Revisão, pois não serão vinculantes nem obrigatórias.239 As disposições incluem a regulamentação das diferentes etapas da solução de controvérsias, isto é, as negociações diretas, a intervenção do Grupo Mercado Comum, o procedimento arbitral ad hoc e o procedimento de revisão. No regulamento das negociações diretas, estabelece que elas serão conduzidas pelos coordenadores nacionais do Grupo Mercado Comum dos Estados-Partes na controvérsia ou pelos representantes que eles designarem; registrando em atas o resultado das negociações, que uma vez concluídas, serão dadas a conhecer ao Grupo, através da Secretaria Administrativa do MERCOSUL. Regula a intervenção do Grupo Mercado Comum para a solução de controvérsia e a intervenção a pedido de um Estado que não seja parte na mesma; sendo importante observar que as recomendações e comentários do Grupo ficam vinculados às propostas para solucionar a divergência e requerem a cooperação dos Estados-Partes em sua elaboração. No que se refere ao procedimento arbitral ad hoc, regula o início da etapa arbitral; os impedimentos para a designação do árbitro; o sorteio de árbitros; os termos da declaração a ser assinada pelos árbitros designados; sobre a lista de árbitros trata da solicitação de esclarecimentos a respeito dos árbitros propostos, das objeções aos candidatos para integrar a lista de terceiros árbitros e 238. Regulamento do PO, art. 4. 239. Regulamento do PO, art. 11. 220

da modificação das listas; da designação dos representantes e assessores das partes e da unificação de representação; do objeto da controvérsia; dos descumprimentos processuais; das medidas provisórias; e da prorrogação do prazo para emitir o laudo arbitral. Cabe uma referência especial à revelia da parte demandada, que se caracteriza pela não concorrência às audiências fixadas ou não dar cumprimento a qualquer outro ato processual a que esteja obrigada. O efeito da revelia consiste na tramitação dos procedimentos sem a participação do demandado, que todavia deve ser notificado de todos os atos que correspondam.240 No procedimento de revisão ante o Tribunal Permanente de Revisão são regulamentadas: a composição do Tribunal; os termos da declaração dos integrantes; o funcionamento com três árbitros e com cinco árbitros; a secretaria do Tribunal; o recurso de revisão, especialmente aspectos da interposição, apresentação, admissibilidade e translado; a contestação e a tramitação do recurso de revisão; a prorrogação do prazo para emitir o laudo; bem como o acesso direto ao Tribunal. No que se refere aos laudos arbitrais, dispõe sobre o conteúdo, a notificação e a publicação; o recurso de esclarecimento; e, a divergência sobre o cumprimento. Distinguindo-se entre os que emanam do Tribunal Arbitral Ad Hoc e os que provêm do Tribunal Permanente de Revisão. O pedido de recurso de esclarecimento, segundo prevê, especificará detalhadamente os pontos do laudo sobre os quais se solicita esclarecimento, podendo solicitar-se indicações sobre a forma de cumpri-lo.241 Sobre as medidas compensatórias e a proporcionalidade, é importante destacar que o Estado que alegue que as medidas compensatórias aplicadas são excessivas deve apresentar perante o Tribunal que corresponda a justificativa de sua posição. Neste caso, para facilitar a tarefa do Tribunal, que deverá pronunciarse sobre a proporcionalidade das medidas compensatórias adotadas, 240. Regulamento do PO, art. 28.3. 241. Regulamento do PO, art. 42. 221

o Estado parte na controvérsia que as aplica proporcionará informação detalhada referente, entre outros elementos, ao volume e/ ou valor do comércio no setor afetado, assim como todo outro prejuízo ou fator que haja incidido na determinação do nível ou montante das medidas compensatórias.242 A Sede do Tribunal Permanente de Revisão será a cidade de Assunção, e a República do Paraguai determinará o local de seu funcionamento.243 Sobre a reclamação de particulares, dispõe sobre o início do trâmite; as consultas entre Estados; a elevação da reclamação ao Grupo Mercado Comum; o grupo de especialistas; a modificação da lista de especialistas; o modelo de declaração a ser assinada pelos especialistas convocados; o procedimento do grupo de especialistas; os gastos dos especialistas; o parecer do grupo de especialistas; e as regras de procedimento. No que se refere às listas de especialistas, destacamos que cada Estado-Parte poderá modificar a qualquer momento os candidatos por ele designados, que a partir do momento em que uma controvérsia ou reclamação seja submetida ao Grupo Mercado Comum, os Estados-Partes não poderão modificar, para esse caso, a lista registrada na Secretaria Administrativa do MERCOSUL.

9. O SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS DO MERCOSUL Após analisar os temas que a nosso critério se revestiram de particular relevância em função das inovações que foram introduzidas pelo Protocolo de Olivos no sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL, resulta lógico interrogar-nos 242. Regulamento do PO, art. 44. 243. Regulamento do PO, art. 45.

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acerca do resultado que a vigência do instrumento significará para o bloco. Assim, com base na idéia que primou na hora de planificar as mudanças e os temas incluídos na decisão do MERCOSUL pela qual se estabeleceram os pontos a serem objeto de análise especial, estimamos que o mandato não se cumpriu, ao menos, na dimensão esperada. Ao longo deste trabalho fomos apontando as reflexões que nos suscitaram as mudanças ocorridas; indubitavelmente a mais importante é aquela que torna possível um recurso de revisão ante um tribunal arbitral “disponível”. No que se relaciona ao tribunal ad hoc, este continuará atuando em tal caráter e com a natureza inter partes de seus pronunciamentos, o que dificulta, ainda que não exclui - como se adverte nos laudos arbitrais proferidos em seu marco - a conformação de uma jurisprudência própria que gere precedentes que possibilitem avançar para uma interpretação uniforme do acervo normativo do MERCOSUL. É certo que os princípios em que se fundaram os laudos arbitrais foram recepcionados nos sucessivos pronunciamentos. No entanto, tão certo como esta afirmação, é que em outras tantas oportunidades, os árbitros se afastaram efetuando interpretações divergentes. Em um e outro caso, estaríamos frente a parâmetros para os laudos que eventualmente se ditem no processo por futuros tribunais arbitrais. Assim mesmo, caberia destacar a importância que os decisórios dos tribunais do MERCOSUL deveriam assumir como fonte de fundamento de sentenças dos tribunais nacionais; com efeito, ao interpretar e aplicar o direito interno emanado na execução das obrigações derivadas do MERCOSUL, os órgãos jurisdicionais dos Estados teriam que iluminar-se por esse ordenamento. Mas essa não é a orientação que parece primar na atual conjuntura; negar-nos a reconhecer a realidade só por compartirmos uma visão netamente favorável ao novo ordenamento, importaria não diferenciar “o ser” do “dever ser”, atitude refratária ao propósito que nos guia. 223

O fato de que existam tribunais arbitrais, inclusive um tribunal permanente, não conduz a reconhecer a existência de supranacionalidade. A conformação de tribunais arbitrais é totalmente conforme com o desenvolvimento do direito internacional público e não, por isso, pode sustentar-se que se trate de órgãos supranacionais244. Quanto ao caráter obrigatório dos laudos, dita qualidade responde a um compromisso de jurisdição obrigatória entre os Estados-Partes do MERCOSUL245. Por outro lado, ainda que não tivesse jurisdição obrigatória, na medida que as partes decidem levar sua controvérsia ante um tribunal arbitral, comprometemse a aceitar seu resultado. Qual é então a situação com a qual nos defrontamos? Integramos um esquema que pretende ser um mercado comum, mas não o é; que aspira a atingir as quatro liberdades fundamentais (fato que se ratifica com a possível livre circulação de pessoas), mas não conhecemos a ciência certa como se implementará; não em poucas oportunidades nos comparamos com a Comunidade Européia e nos valemos de seus axiomas, quando somos o MERCOSUL e as diferenças com respeito a dito processo são notórias em numerosas ordens. As vantagens que oferece um tribunal supranacional ao dotar a um modelo de integração de legalidade, legitimidade e de princípios em muitos casos, sentados a partir da interpretação uniforme que realiza um órgão permanente dotado de competência a tal efeito, não é compatível com os sistemas legais dos Estados-Partes do MERCOSUL. Mais ainda, não se pressente vocação política para que num futuro próximo se revertam estas condições. Nos interrogamos se ante esta realidade, em função do que é o MERCOSUL, o Protocolo de Olivos significaria um avanço no caminho de sua institucionalização? 244. Exemplo: o tribunal arbitral em matéria de investimentos (ICSID) ao qual se submete um Estado e um particular. Não caberia afirmar que o ICSID seja um tribunal supranacional. 245. Protocolo de Brasília, art. 8. 224

Os particulares continuam dependendo da vontade dos Estados-Partes. É inegável que um passo para adiante foi dado. Entretanto, afirmar que a interpretação uniforme do direito do bloco será um fato a partir da previsão de recepcionar opiniões consultivas, ou que se consolidará a segurança jurídica através das mudanças que apenas matizam a imprevisibilidade e algumas incertezas reinantes no campo jurídico, é pecar de um otimismo que mais do que exagerado, é irreal. A aprovação do Protocolo de Olivos pelo Conselho do Mercado Comum é um fato positivo, mas não podemos sucumbir à ilusão de crer que estamos ante um MERCOSUL legitimado. Em todo caso, agora que parecem soprar novos ventos em nossos países, sejamos partícipes ativos fazendo valer nossa aspiração de justiça, desde o protagonismo que nos incumbe. O ano de 2006, que é a época prevista para adotar um mecanismo definitivo, está muito próximo. Afirma-se de maneira constante que tudo depende da vontade política; e que por acaso não é este o fiel reflexo da vontade dos habitantes do MERCOSUL? O anseio é a justiça, a aspiração é instalar um sistema sólido que respeite a separação e independência de poderes. A Fundação Konrad Adenauer nos brinda a oportunidade de dar a conhecer nossas idéias através desta publicação, tratando-se de um âmbito importante para manifestarmo-nos, sendo também, os permanentes encontros que se realizam com a finalidade de debater e formular propostas aos órgãos decisórios sobre matérias que influenciam no desenvolvimento sustentável da região e conseqüentemente com o melhoramento da qualidade de vida dos cidadãos. Este é um dos caminhos que temos para fazer chegar nossas reflexões a modo de sugestões. Coloquemos, como diz Adriana, o acento nas potencialidades sem esquecer as limitações, motivados pela idéia de que a melhor maneira de resolver as dificuldades é não tratando de deixálas de lado.

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10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Os Autores

Adriana Dreyzin de Klor Doutora em Direito e Ciências Sociais pela Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Professora de Direito Internacional Privado e Mercosul da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Professora e Pesquisadora Visitante no Programa de PósGraduação em Direito, área de Relações Internacionais, da Universidade Federal de Santa Catarina. Vice-Presidente da European Community Studies Association da América Latina. Membro da lista de árbitros argentinos do Mercosul. Luiz Otávio Pimentel Doutor em Direito Internacional pela Universidade de Barcelona, Espanha, e Universidade Nacional de Assunção, Paraguai. Professor de Fundamentos do Mercosul e Elementos de Direito Internacional no Programa de Pós-Graduação em Direito, área de Relações Internacionais, e co-Diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Presidente da European Community Studies Association da América Latina. Membro da lista de árbitros brasileiros do Mercosul. Patricia Luíza Kegel Doutora em Direito Internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina. Magister-Legum em Direito Constitucional Comparado pela Westfälische Wilhelms Universität Münster, Alemanha. Professora de Direito Internacional e Direito dos Blocos Econômicos Regionais, e Diretora do Centro de Ciências Jurídicas 235

da Universidade Regional de Blumenau. Vice-presidente da European Studies Association do Brasil. Membro da lista de árbitros brasileiros do Mercosul. Welber Barral Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo. Professor de Direito Internacional Econômico e Elementos de Direito Internacional no Programa de Pós-Graduação em Direito, área de Relações Internacionais, e co-Diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro da European Community Studies Association da América Latina. Membro da lista de árbitros brasileiros do Mercosul e da Organização Mundial do Comércio.

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EUROPA AMÉRICA LATINA: Análise e Informações é uma série de publicações editada pelo Centro de Estudos da Fundação Konrad Adenauer. O objetivo principal desta série é promover e fortalecer as relações entre Europa e América Latina através de análises e informações concisas e equilibradas sobre assuntos de interesse atual para as relações entre ambas regiões. N°15: III Cúpula América Latina, Caribe e União Européia: Considerações e Recomendações. Rio de Janeiro, Abril 2004, 55 páginas. N°14: Relações entre Europa Centro – Oriental e América Latina no início do século XXI. Rio de Janeiro, Janeiro 2004, 53 páginas. N°13: Brasil e seus vizinhos: Reivindicação de Liderança Regional na América do Sul. Rio de Janeiro, Setembro 2003, 72 páginas. N°12: MERCOSUL – União Européia. Bases e perspectivas da negociação. Rio de Janeiro, Julho 2003, 56 páginas. N°11: América Central e União Européia. As relações comerciais. Rio de Janeiro, Abril 2003, 61 páginas. N°10: A preparação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA): Desafios e estratégias das perspectivas do Brasil e da Comunidade Andina. Rio de Janeiro, Dezembro 2002, 49 páginas. N°9: Venezuela: democracia em crise? Rio de Janeiro, Dezembro 2002, 46 páginas.

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Anuário Brasil-Europa 2002 Solução de Controvérsias, Arbitragem Comercial e Propriedade Intelectual Rio de Janeiro, 2003 R$20,00 – 304 páginas O Anuário Brasil-Europa pretende acompanhar e documentar o desenvolvimento das relações mútuas entre o Brasil e a Europa. Seu objetivo é contribuir para o entendimento e o aprofundamento das relações euro-brasileiras, por meio de análises e documentações de temas e acontecimentos atuais. O presente anuário é composto de artigos de autores brasileiros, europeus e sul-americanos que tratam dos três temas acima mencionados relevantes para a agenda das relações entre Mercosul e União Européia, a saber: sistema de solução de controvérsias, arbitragem comercial e propriedade intelectual. São analisados também temas referentes ao processo de integração européia. Além disso, são descritos importantes eventos e encontros relativos ao relacionamento entre o Brasil e a Europa, com a apresentação de documentos e informações estatísticas. Na elaboração de um anuário como este, inevitavelmente haverá omissão e “lacunas”. É simplesmente impossível documentar “completamente” as múltiplas relações entre o Brasil e a Europa. Os editores agradecem todas as indicações e sugestões ao próximo Anuário 2003.

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ACORDO MERCOSUL – UNIÃO EUROPÉIA Além da Agricultura Mário Marconini e Renato Flôres (Orgs.) Rio de Janeiro, 2003 – 272 páginas – R$20,00 O ACORDO DE LIVRE COMÉRCIO Mercosul – União Européia, ora em negocição, abrange, direta ou indiretamente, uma vasta gama de assuntos. A correta percepção dos diversos temas envolvidos pode auxiliar significativamente o desenho de propostas viáveis, entendidas como as que, além de interessantes para ambos os lados, levariam em conta as restrições – internas ou externas a cada um dos blocos – com impacto significativo nas possíveis concessões e benefícios. A publicação desenvolve temas que, ou estão ligados a tais restrições, ou aprofundam o conhecimento de questões ou setores – fora do decantado setor agrícola – que poderiam auxiliar na composição de pacotes negociadores de interesse mútuo. Os temas abordados são: os condicionantes jurídicos às negociações comerciais da União Européia e sua influência para um acordo com o Mercosul, os efeitos do alargamento, a liberalização dos setrores de telecomunicações e de serviços técnicos profissionais no contexto do acordo comercial entre os dois blocos, e as perspectivas de um acordo Mercosul – União Européia para o comércio de manufaturados.

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Foro Empresarial MERCOSUR UNIÓN EUROPEA Recomendaciones para un Acuerdo de Libre Comercio Documentos de la IV Conferencia en Brasília Octubre – 2003 Rio de Janeiro, 2004 – 256 páginas – R$10,00 (edição bilíngüe espanholinglês) A promoção do diálogo bi-regional entre os países do Mercosul e da União Européia, assim como o intercâmbio de experiências e idéias sobre processos de integração regional e temas da cooperação internacional são objetivos fundamentais da Fundação Konrad Adenauer. Por isso, é acolhida a iniciativa do Forum Empresarial Mercosul União Européia de publicar os documentos e recomendações da IV Conferência Plenária realizada em Brasília em Outubro de 2003. Tais recomendações dizem respeito ao fortalecimento e aprofundamento das relações bilaterais, em direção ao Acordo de Associação Inter-regional União Européia – Mercosul. Este livro é uma iniciativa conjunta com o Forum Empresarial Mercosul União Européia, a fim de contribuir para o diálogo entre as comunidades empresariais e os líderes políticos da União Européia e do Mercosul, e também para levar o debate ao conhecimento do público interessado em geral.

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