Enquanto Môo Ossos E Fabrico Tintas

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Enquanto môo ossos e fabrico tintas

Há três dias, enquanto esperava o ônibus na parada do Mercado, eu olhava para meus tênis gastos e meus cadarços soltos com dois nós rebeldes. Suas cores tinham sido modificadas pela história das ruas, pelo ir e vir do Instituto de Artes e outras ruas de Porto Alegre. Olhando para o velho cadarço, senti-me como a personagem Griet, criada pela autora Tracy Chevalier, ao descrever pictoricamente suas roupas e outras coisas ao seu redor. A observação da jovem personagem remetia-me ao frescor da tinta sobre a lona, como se a história fosse, ao invés de contada num livro, pintada sobre uma tela. Esse livro pintado chama-se “A Moça com o Brinco de Pérolas”, que, logo nas primeiras páginas, mudou meus valores enquanto “crítico literário” mirim: eu estava errado ao não querer lê-lo, pois fui cativado por uma história sutil e surpreendente – sem assassinatos, heroísmos ou grandes sensações. Lembrava-me em muito, a minha própria vida. Finalmente o ônibus chegou e eu não precisava mais olhar para o meu tênis de cadarço rebelde. O sol já tinha partido há horas, e queria acomodar-me logo naquele veículo, para voltar à leitura sobre Griet e chegar logo em casa. Tinha no máximo três dias para completar uma reflexão sobre o romance de Tracy Chevalier, sobre uma jovem protestante que se tornou criada na casa do pintor Jan Vermeer, respeitado artista em Delft, na Holanda barroca. Pronto, começaria a sentir-me Griet em vários momentos. Uma Griet pintora. Não por ser criada. Nem por ser jovem, pois já beiro os 30, nestes tempos velozes. Mas por estar envolvido em interesses que, muitas vezes desconheço, envolvendo intrigas, jogos e arte. Penso, durante esta viagem no coletivo, que a Rua Senhor dos Passos não é muito diferente da Oude Langendijck, do século XVII. Passamos pelo túnel que atravessa parte da cidade. Um segundo depois da penumbra do túnel banhar meus olhos, o motorista liga uma série de luzes amareladas, com bastante preto e bem pouco vermelho, que curiosamente deixava o ambiente ainda mais escuro. Parei a leitura. Fui distraído com este diferente tipo de vela, bem no instante que Cornélia

olhava de soslaio para a jovem criada recém chegada na casa dos Vermeer. Pensei em quantas Cornélias e olhares assim passam desapercebidos. Não se trata de pessimismo, mas de realidade, assim como é o sistema de representação das naturezas-mortas de Vermeer, onde até mesmo a figura humana se parece com objetos. Assim que chegar em casa, meus pais estarão na sala vendo televisão, provavelmente o telejornal local enquanto aguardam o comercial seguinte, pensei. Meu pai perdeu o ofício, assim como o pai da Griet, entretanto não me tornei criada de madames com ela, mas tivemos de vender o apartamento no Jardim Botânico para pagar dívidas. Onde moro hoje, é perigoso e cheio de Cornélias... A luz da noite voltou e aquela luz amarela foi desligada pelo motorista. Poderei voltar a ler com mais concentração. E antes de mergulhar novamente na ficção, que parecia em parte, com a minha própria vida, dei uma olhada rápida pela janela do ônibus, e vi jovens caminhando e conversando alegremente, enquanto uma moça passeava com o cachorro de bairro e um mendigo coberto por trapos comia um pedaço de pão. Todos indo e vindo, assim como eu, exceto o mendigo, que não tinha escolha. Impressionante como uma piscada de olhos pode revelar tanta coisa. Durante a leitura, percebi este sentido de realidade numa composição que Jan Vermeer dá em sua “natureza nem um pouco morta” sobre a mesa e no tratamento de fundo da cena. Seus costumes são projetados nas escolhas e na disposição dos objetos no espaço, cujas consequências, certamente afetarão outros personagens da trama... Horas antes, durante à tarde, a professora Daniela me disse que eu poderia entregar-lhe o trabalho desta leitura de Tracy após o prazo, e, que assim, poderia obter um nota melhor. Confesso a ela (e a mim mesmo) que não tinha vontade de escrever sobre o Romance. Estava às vésperas de uma exposição que, desde janeiro trabalhara, sem falar nas aulas que ministro à noite, sobre publicidade, onde ganho algumas moedas que mal dão para pagar o transporte coletivo. Vermeer e um livro que se tornou filme de sucesso? Adiei a entrega do trabalho pela irresponsabilidade de uma “Griet pós-moderna” que havia me tornado pelo preconceito. E agora, um engarrafamento na rótula. Chegaria em casa mais tarde do que queria. Pelo menos, nenhum azulejo meu seria quebrado... Nesta tarde, 3 horas após o final da disciplina de história no Instituto de Artes, iniciei minha saga moderna para uma responsabilidade disciplinar. Ou apenas um remendo do inverso.

Sentado no saguão do antigo prédio abandonado pela burocracia e falta de memória do século XXI, iniciei a leitura de “A Moça com o Brinco de Pérolas”. Quando percebi que a história também era um ensaio sobre os costumes e os valores da época, fiquei impressionado. Na verdade, nem tanto, pois tinha assistido o filme no ano passado, e não tinha achado-o maravilhoso, exceto pela fotografia: descritiva e altamente pictórica. Daniela pediu que escrevêssemos sobre este livro de Chevalier, em especial, sobre o processo criativo descrito sobre o pintor, o seu modo de representação e significado, o mercado da arte e a pintura barroca holandesa, e claro, assuntos que julgaríamos pertinentes abordar sobre o tema “história da arte na Holanda do século XVII”. Não gostaria de ser chamado de um “barroco católico”, não iria idolatrar imagens do livro nem do filme, tampouco colocá-las na parede, perto da minha cama, para satisfazer um culto à Arte. Griet, a personagem, tinha sido educada como uma reformada protestante, e como tal, não idolatrava figuras divinas e nem estava acostumada a ver quadros pintados. Sua família era simples como a minha, antes mesmo do seu pai, dedicado ao ofício dos azulejos, ter perdido a visão num acidente. Meus pais um dia ficarão cegos de tanto assistir os programas televisivos diariamente, se é que já não estão, pensei assim que entrei em casa... Eles estavam sentados no sofá da sala, cada um numa poltrona, vendo a novela diária e não o telejornal como havia imaginado, pois tinha me atrasado naquela rótula enquanto lia a dependência comercial de Vermeer e o astuto Van Ruijven, o seu mecenas. Pois na Holanda protestante, a pintura barroca não era encomendada para ornamentar as igrejas católicas, mas sim para satisfazer os prazeres do colecionismo de mercadores, prática que se tornou moda e moeda naquela época. Nunca a arte tinha tornado-se uma moeda tão clara e sujeita às relações de oferta e procura. Se meu pai fosse artista naquela época, sadio como está (tirando a visão), poderia pintar para pagar as dívidas que adquiriu quando a indústria que ele gerenciava faliu. Ele já tinha 50 anos. E no início do século XXI, tecnológico e rápido, ele logo foi considerado “cego” também pelo mercado. Fui ao meu quarto, pequeno e precariamente arrumado pelas idas e vindas díárias, pois saio cedo, e retorno quando a lua ilumina a noite de todos, inclusive a do senhor que continua lá, comendo o resto do pão em trapos no bairro chique. Deixei a bolsa, os desenhos e a pasta preta que contém a fotocópia do livro que estava lendo sobre a cama, enquanto ia me lavar. Conversei um pouco com meus pais durante o lanche da noite, meus assuntos não os interessa, apenas se algum causa estranheza pela

distância dos nossos mundos, paradoxalmente, convivendo tão próximos. Eles tiveram uma vida sofrida, mas honrada. E hoje, cuidam mais dos netos do que deles próprios. Antes de dormir, peguei os escritos e me encostei na parede da cama para ler. A luz era mais dura que a do ônibus, entretanto nenhum túnel nem engarrafamento atrapalhariam minha leitura. Queria saber o aconteceria com a composição da cena que Jan Vermeer começaria a pintar. Griet medindo os objetos da natureza-morta para após limpá-los e Vermeer entrando no atelier para recomeçar o jogo de cena, sedução e composição. Após algumas páginas, sentindo mais o dia pesar sobre meus olhos, lia com atenção teimosa algumas páginas que me relembraria situações daquele costume. Acho que entendi mais sobre as relações entre arte e mercado, representação e semiótica e significado e valores. Pelo menos as do século XVII na Holanda. Finalmente meus olhos caíram. Estava iniciando a página 84. O interesse de Griet pela pintura e sua nova observação frente às cores. Nem por isso as coisas para ela e para meus sonhos seriam mais coloridas. --Acordei no dia seguinte disposto. Era cedo da manha, apenas meu pai já havia saído de casa, ele começou a trabalhar como motorista de resgate medico há alguns anos, pouco depois da venda do apartamento. Era um trabalho digno, porem o deixava carregado às vezes, com historias de morte e sofrimento. Levantei rápido e fui tomar café. O café era seco e seu gosto pouco mais quente que meu sangue. Realmente estava frio. Me lavei novamente para escrever um dia novo. E depois, ir ao Instituto de Artes, no centro da cidade, insistir na vida de artista que escolhi. Diferentemente da Griet, a personagem, eu pude escolher alguns caminhos, como o das artes, por exemplo. Fiquei impressionado quando a jovem na historia de Tracy, acaba por se tornar criada e mesmo sem saber como se comportar, demonstra ser uma grande observadora de seus costumes. Este e um ponto que julgo ser importante falar para Daniela, a professora, que embora Griet seja manipulada pelas tarefas diárias e desejos ocultos, consegue “compor-se” como um objeto vivo na cena. --Novamente os cadarços me olham e devolvo a atenção. São os mesmos, claro. Não tenho florins para novos. Eles serão meus companheiros de tráfego e memória urbana. Assim como as mãos machucadas e manchadas de tinta que ajudava a preparam ficavam registrada daquelas memórias que no final do romance, servirão de marcas de um tempo de prisão e descobertas para a personagem principal. O desejo entre Griet e Vermeer era claro. A sedução descrita entre eles era muito parecida como entre os gays, pensei, como a de pessoas que são julgadas a não poderem

compartilhar o mesmo mundo afetivo. Não sexualmente, claro. Mas o romance da vida real pode se dar sem um toque apenas, como no filme alemão “Bent”, onde dois homens, prisioneiros num campo de concentração, “transam” com o olhar. Com certeza, no filme, eles transam. Entretanto no livro, Chevalier, descreve o processo da pintura de Griet com menos sedução. --A estas alturas, já estava dentro do ônibus com destino ao mercado, entretanto já havia passado do túnel que encobrira minha visão na noite anterior. Não li muito. Geralmente meu dia começava após as 10. Eram apenas 8h e 15min. --Sai o ônibus segurando timidamente minhas coisas e com medo que tudo caísse no chão. Era normal eu sair de casa com muitos papéis, livros e `as vezes, até café. Infelizmente não pude ler o dia todo. Queria saber mais sobre o que Maria Thins faria com as decobertas de uma ajudante para seu genro. O que Cornélia poderia fazer contra Griet, e Tanakke, mudaria de humor, deixaria mais tarefas para a criada? Confesso que estava mais interessado no processo criativo de Jan. Como ele selecionava os objetos e que eram “apenas” objetos. Mas como objetos representam coisas? Como o sabor de alguns alimentos são tão gostosos? Coisas simples, sutis e triviais poderiam revelar tanto sobre os valores de determinado grupo. Não gostaria de viver naquela época. Ser mulher, criada e tratada como objeto. Sem poder fazer minhas escolhas. E nem sempre fazemos... --Não poderia me estender nestas reflexões, pois minha saga pela irresponsabilidade perdida estava se esgotando. Tinha poucas horas para terminar de escrever. O prazo esgotara-se. Tinha lecionado para uma turma apática na noite anterior. Era como se estivesse trabalhando no mercado de peixe que Griet adotara como oficio. Pois após a rede de intrigas e interesses acerca do desejo do mecenas Van Ruijven em ter um quadro da jovem e bela criada, e das estratégias criadas pela velha “marchand” Maria Thins para despistar a criada dos olhos dele, Jan Vermeer acaba por retratá-la sozinha em cena, onde a historia passa para seu curso final. Aula de cerâmica. Na verdade introdução à cerâmica. Nada de intrigas e sedução, apenas vidrados, barros e algumas caras sem cor. Impressionante que num espaço de arte haja

pessoas tão sem graça. As cores em seus rostos haviam fugido pela falta de significado que a arte encontra hoje. Quantas Tanakke e Martge existem por ai? Pessoas que apenas nascem e morrem. O brinco que Vermeer insiste ser necessário a composição final do quadro terá serias conseqüências para a jovem criada. Apenas um brinco de perolas poderá mudar a vida de Griet. Não tenho furo na orelha. --Já estava escrevendo o texto quando me dei conta da diferença que me separava da criada, Griet, presa em uma rede de intrigas, e eu: não sabia quanto eu valia, nem a quem eu poderia pagar por minha liberdade. Talvez 80 reais, pensei, para o teste de seleção no Instituto de Artes. Sim, sou um otimista. ---

Jorge Soledar / inverno de 2006.

* Reflexão sobre a obra “A Moca com o Brinco de Perola” de Tracy Chevalier, integrando estudos sobre a arte barroca, em especial, a pintura holandesa do séc. XVII, para A disciplina de Historia das Artes Visuais II, ministrada pela professora Dra. Daniela Kern, no Instituto de Artes da UFRGS. Porto Alegre, 30 de junho de 2006.

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