Aspectos Legais E éticos Da Doação De órgãos.docx

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ASPECTOS LEGAIS E ÉTICOS DA DOAÇÃO DE ÓRGÃOS: A VONTADE DO DOADOR COMO UM DIREITO DA PERSONALIDADE1 O DIREITO À REALIZAÇÃO DE TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS COMO UM DIREITO DA PERSONALIDADE Bruna Sebastiani Baptista2 Carlos Felipe Veiga de Souza3 Jaqueline Reginaldo de Almeida4 Tatiane Meinhard Lowe5 Vitória Damião da Silva6 RESUMO O presente estudo tem como objetivo analisar se o procedimento de doação de órgãos e tecidos adotado pelo Brasil resguarda os direitos da personalidade do potencial doador. Para isso, a pesquisa traçou conceitos gerais sobre o Biodireito, a evolução das ciências médicas e a importância da preservação da dignidade humana em todos os procedimentos concernentes à disponibilização do corpo humano. Em seguida, o trabalho analisa o histórico das legislações brasileiras sobre doação de órgãos e tecidos e discorre os mandamentos nucleares da legislação vigente, para, desse modo, debater o direito à realização de transplante de órgãos e tecidos como um dos direitos da personalidade. A lei 9.434 de 1997 é plausível, entretanto silencia a vontade do potencial doador, visto que deixa a última palavra à família em relação à retirada dos órgãos e tecidos post mortem. Os direitos da personalidade, garantidos constitucionalmente, são manifestação dos direitos fundamentais e, seguramente, abrangem o direito à disponibilização do corpo ou de partes do corpo, vivo ou morto, respeitados os limites abalizados pelo ordenamento jurídico. Palavras-chave: Doação de órgãos e tecidos. Transplantes. Direitos da personalidade.

INTRODUÇÃO Depois de uma longa história de tentativas fracassadas, atualmente os transplantes de órgãos e tecido representam uma das maiores conquistas da modernidade no tocante a técnicas de preservação e prolongamento da vida. O Direito, que tem como principal origem as transformações do meio social, preza as questões funcionais e sociais do corpo humano, reconhecendo este como a expressão da personalidade humana. O corpo é disponível, dentro 1

Artigo científico elaborado na disciplina de Medicina Legal do Curso de Direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo - IESA, sob orientação da Professora Clarissa Bohrer. 2 Acadêmica do 4° período do Curso de Direito do IESA. E-mail: [email protected]. 3 Acadêmico do 4° período do Curso de Direito do IESA. E-mail: [email protected]. 4 Acadêmica do 4° período do Curso de Direito do IESA. E-mail: [email protected]. 5 Acadêmica do 4° período do Curso de Direito do IESA. E-mail: [email protected]. 6 Acadêmica do 4° período do Curso de Direito do IESA. E-mail: [email protected].

de certos limites legais e constitucionais, com o intuito de preservar valores superiores e solidários dentro da sociedade. Logo, o direito ao corpo vivo ou ao cadáver integra a personalidade do indivíduo, isto é, configura-se como um direito personalíssimo. No que concerne à forma de obtenção de órgãos e tecidos, questões relevantes como a espontaneidade no ato de doar e o respeito à vontade expressada, carecem ser resguardadas pelas ordenações jurídicas contemporâneas. O presente artigo tem como finalidade investigar o processo de doação de órgãos e tecidos dentro do ordenamento jurídico brasileiro, tendo como enfoque principal a análise da preservação da vontade de “doar” ou “não doar” expressada pelo indivíduo em vida. Para tanto, o trabalho contempla, no primeiro momento, breves considerações sobre a evolução das ciências da vida, o Biodireito e a dignidade humana como mandamento nuclear do Direito moderno. Em seguida, o estudo percorre brevemente as legislações brasileiras sobre doação de órgãos e tecidos, traçando também as principais perspectivas da legislação vigente, para assim chegar ao ponto decisivo do trabalho, que é a analise do direito ao corpo como um dos direitos da personalidade. A pesquisa procura demostrar, em conformidade com a doutrina moderna, que o ato de disposição de partes do corpo humano, vivo ou morto, deve, em primeiro lugar, considerar a volição do disponente, sob pena de violar direitos fundamentais da personalidade humana.

1 BIODIREITO, DIGNIDADE HUMANA E TRANSPLANTES Na pós-modernidade todos os ramos da ciência evoluíram consideravelmente, assim como a ciência médica, trazendo contribuições para que a vida do homem seja usufruída em plenitude. Caminhando lado a lado aos avanços científicos, experimentais e tecnológicos está o Biodireito, uma nova especialidade que emanou da fusão entre a bioética e o Direito, buscando o equilíbrio entre o progresso nas ciências médicas e afins trazidos à humanidade com os valores e princípios cultivados e considerados fundamentais em cada cultura e sociedade. O Biodireito busca evitar praticas abusivas, ilegais e discriminatórias, criando um elo entre a evolução e o cuidado, para que a dignidade humana seja preservada, assim como a segurança jurídica, visto que nem tudo cientificamente possível é juridicamente aceitável. A evolução da ciência deve encontrar nos direitos humanos o seu limite ético, tendo em vista que a dignidade humana é o princípio norteador do direito brasileiro. O direito à vida digna, à integridade física e psíquica são bases para tal princípio e, a partir daí, estabeleceu-se uma nova forma de pensar e materializar todo o ordenamento jurídico. Hodiernamente, de

acordo com Andiara Roberta Silva de Oliveira e Theobaldo Spengler Neto (2014), a dignidade humana incorporou-se no constitucionalismo moderno, sendo considerada como o princípio e o fim do Direito, seja no plano nacional ou internacional. Por isso, a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar a inviolabilidade do direito à vida. Catão salienta que o fenômeno bioético surge da preocupação com a ética, particularmente relacionada com os progressos das ciências da vida, mostrando “um forte sentimento de defesa e salvaguarda da pessoa humana, em sua individualidade e universalidade” (2004, p. 33). Notoriamente a vida é a fonte de onde advêm todos os valores do direito contemporâneo, visto que é o bem jurídico mais importante. “A doação de órgãos e tecidos sempre fora admitida com o intuito de suprir a deficiência de um órgão já existente ou até mesmo para salvar vidas que já não são mais dignas” (OLIVEIRA; SPENGLER NETO, 2014). A própria Constituição Federal de 1988 autoriza, no seu art. 199, § 4°, a remoção de órgãos, tecidos e substancias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. Os transplantes de órgãos e tecidos encontram-se em voga há muito tempo, mas tiveram a sua prática eficaz nas duas últimas décadas do século passado. A sua ideia vem desde o início da história da civilização mundial. Registros das primeiras experiências realizadas, muitas vezes lendárias, remontam a épocas anteriores a Cristo (OLIVEIRA; SPENGLER NETO, 2014, p. 53).

A Carta Magna brasileira contempla amplamente o direito à vida e, esse valoroso direito não pode ser garantido apenas por meio da repreensão dos atos de agressão física ao ser humano, visto que a preservação da vida deve estender-se a todos os processos de sua preservação assegurados pelas terapias recuperadoras. “Portanto, quando o tratamento convencional para doenças não surte resultado para o indivíduo, o transplante de órgãos surge como meio capaz de prolongar a vida do efêmero” (CATÃO, 2004, p. 90). É imensurável o número de pessoas que necessitam de tecidos ou órgãos para a melhora da saúde ou, até mesmo, para preservar a vida. Adriana Maluf (2013), explica que com o avanço da medicina no último século e com a necessidade de salvar vidas com a descoberta de novas técnicas, criou-se a possibilidade da realização de transplantes de órgãos e de tecidos. O transplante de órgãos e tecidos, leciona Elida Séguim, “é uma técnica cirúrgica que consiste em retirar o material genético, células, tecidos ou órgãos de um organismo e implantá-lo em outro ser, da mesma espécie ou de espécie diferente” (2005, p. 107). Para Marconi do Ó Catão a palavra transplante alude ato ou ação de arrancar de um lugar e plantar

em outro, “significa transferir o órgão ou porção deste de uma para outra parte do mesmo individuo, ou ainda, de individuo vivo ou morto para outro indivíduo” (2004, p. 199). Para Maria Helena Diniz (2006) o transplante é um procedimento cirúrgico substitutivo, se materializando pela retirada de algum órgão ou tecido humano, de corpo vivo ou morto, para utilização na própria pessoa ou em um receptor com finalidade terapêutica. É um procedimento substitutivo, pois visa suprir, no todo ou em parte, a função de outro órgão da mesma natureza que o perdido ou inutilizado. “Já o implante, por sua vez, dá-se quando tecidos mortos ou conservados são incluídos no corpo de alguém” (DINIZ, 2006, p. 329). A autora ainda ressalta que o transplante tão somente poderá ser empreendido em paciente com doença progressiva ou incapacitante e, além disso, irreversível por outras técnicas terapêuticas. À vista disso, Oliveira e Spengler Neto argumentam que a intervenção cirúrgica deve ser efetivada com restrições: somente quando forem esgotadas todas as possibilidades de tratamento com o paciente, como o tratamento clínico ou cirúrgico, sendo a única alternativa em caso de morte iminente, nunca deixando de zelar pelo direito fundamental à vida (2014, p. 56-57).

Usando como base a classificação de Rita de Cássia Curvo Leite (2000), Marconi do Ó Catão (2004) e Maria Helena Diniz (2006), pode-se classificar as modalidades de transplantes existente em: autotransplante, xenotransplante, isotransplante e alotransplante. No autotransplante o paciente é doador e receptor ao mesmo tempo, ou seja, transferem-se órgãos ou tecidos de um lugar a outro na mesma pessoa. Tal modalidade pode acontecer com a simples concordância do paciente, quando for capaz. O xenotransplante ocorre quando se transfere órgão ou tecido animal a um ser humano. De outro modo, o isotransplante é aquele que se dá entre pessoas com características genéticas idênticas, é o caso de gêmeos univitelinos, por exemplo. Por fim, o alotransplante ocorre quando o doador, que pode estar vivo ou morto, não tem as mesmas características do receptor. A cirurgia de transplante de órgãos e tecidos com finalidade terapêutica é um ato de disposição que envolve, pelo menos, dois sujeitos: o doador e o receptor. Um deles dispõe de seu corpo ou parte dele, em vida ou post mortem, e o outro recebe em vida com objetivos específicos de tratamento de saúde e manutenção da vida. Ora, para que se doe, e também para que se receba, é necessária a manifestação positiva de vontade.

2 PRINCIPAIS ASPECTOS DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA DE DOAÇÃO DE ÓRGÃOS E TECIDOS

O primeiro diploma legal brasileiro que tratou da extração de órgãos e tecidos foi a lei 4280 de 1963. O referido regulamento autorizava somente a doação de córneas de pessoa morta quando manifestada a vontade de doar em vida ou por meio do consentimento do cônjuge ou parente até segundo grau. Ademais, a legislação ainda permitia a autorização através de corporações religiosas ou civis das quais o falecido fazia parte. Em 1968 foi promulgada a lei 5479 que inovou na matéria relativas a doação de órgãos. A inovação legislativa regulamentou a doação post mortem e, ainda, a disposição de tecidos e órgãos de pessoas vivas. Essa foi uma importante inovação legislativa para a época, mas, infelizmente, havia muitos obstáculos que impediam a efetivação da lei. O número de doações nesse período era ínfimo. Depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, foi aprovada a lei 8489/92, juntamente com o Decreto 879 de 1993, estipulando que caso a pessoa não tenha expressado a vontade de doar em vida, os familiares poderiam verbalmente autorizar o médico a retirar os órgãos e tecidos. Em 1997 foi sancionada a lei 9.434, a qual gerou uma grande desavença na sociedade brasileira, dado que a lei adotou a manifestação da vontade presumida. Isto é, se o indivíduo não manifestasse durante e vida, por meio de inscrição em seus documentos, que não era um doador de órgãos, com a morte, presumidamente, era considerado doador de órgãos e tecidos. O intuito dessa legislação era solidário, pois visava aumentar o numero de doações dentro do Brasil. De forma nenhuma o consentimento presumido na doação de órgãos post mortem fere a autonomia ou os direitos da personalidade do potencial doador, visto que é possível opor-se à doação em vida. Contudo, com a falta de informação quanto ao procedimento de doação de órgãos, que persiste até hoje, a lei causou pânico e medo na maior parte da população, resultado totalmente ao contrario do que era esperado. A exigência de a opção “não doador” estar expressamente registrada na Carteira de Identidade ou na Carteira Nacional de Habilitação foi um aspecto que trouxe polêmica à população. Isso porque considerável parte da população brasileira não possuía nenhum tipo de documento e, portanto, presumia-se, de acordo com a lei, que essas pessoas eram doadoras. Acreditava-se, assim, que o mercado ilegal de órgãos poderia ser beneficiado, pois haveria a captação descontrolada de órgãos, segundo os leigos (OLIVEIRA; SPENGLER NETO, 2014, p. 73).

Para alguns autores, como Aline Mignon Almeida (2000), tal legislação já foi criada condenada ao fracasso, tendo em vista que a sociedade brasileira não tinha nenhum conhecimento sobre a retirada de órgãos para doação e, ainda, muitos tinham medo de ficar doentes e serem mortos dentro do hospital para a coleta de seus órgãos. Outrossim, a norma feria o direito ao próprio corpo, que é um direito personalíssimo, no qual nem o próprio

Estado tem legitimidade para atingir, da mesma maneira que ofendia outros direitos da personalidade, como, por exemplo, a própria liberdade. Distintamente, para outros estudiosos, a lei que estabelecia o consentimento presumido do doador, quando não existisse manifestação em contrário, certificava a importância do direito à saúde e a solidariedade, argumentando que na vida em sociedade cada um tem o dever um participar e contribuir de forma solidária. De acordo com Nanni (1999), a doação de órgãos é uma forma de participação solidária, já que doar partes do corpo que se tornam inúteis após o falecimento é uma forma de salvaguardar o direito fundamental à vida. Diante de muitos conflitos populares foi editada a Medida Provisória nº 1.718 em 1998 que modificou a lei 9.434/97, fixando que na ausência da manifestação da vontade do de cujus, podem o pai, a mãe, filho ou cônjuge manifestar-se contra à doação, ou seja, se o potencial doador não tivesse expressado sua vontade de doar em vida, a família deveria ser consultada. A lei nº 10.211 de março de 2001 oficialmente modificou a lei 9.434/97, instituindo a obrigatoriedade de consulta à família da pessoa falecida, mesmo que essa tenha manifestado de forma expressa a vontade de ser doadora post mortem de órgãos e tecidos, o que também causa muita divergência e será debatido no próximo tópico. A redação atual do artigo 4° da lei assevera que a retirada dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. Vale ressaltar alguns pontos importantes da lei 9.434/97 que dispõe sobre doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano dentro do território brasileiro, em vigor atualmente. A lei citada encontra alicerce na Constituição Federal, no art. 199, § 4°, e nos artigos 13, 14 e 15. O Código Civil de 2002 autoriza a disposição do próprio corpo para fins de transplante, bem como a disposição gratuita do próprio corpo com objetivo cientifico ou altruístico, no todo ou em parte, para depois da morte, assegurando ainda que o ato de disposição pode ser revogado a qualquer tempo. Indispensável salientar que a comercialização de órgãos e tecidos do corpo humano, vivo ou morto, é terminantemente vedada pelo texto constitucional. A lei 9.434/97 estabelece que a realização de transplantes ou enxertos de partes do corpo humano, órgãos ou tecidos poderá ser realizado por estabelecimento de saúde, público ou privado, por equipes médico-cirúrgicas de remoção previamente autorizadas pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde (SUS). A retirada de órgãos ou tecidos post mortem será precedida, necessariamente, de diagnostico de morte encefálica, que deve ser constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e

transplante, mediante utilização de critérios clínicos definidos pela resolução 1.480/1997 do Conselho Federal de Medicina. A resolução define que a morte encefálica será caracterizada através de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempos variáveis e próprios para cada faxa etária. O art. 5° da resolução determina os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica, de acordo com a idade da pessoa: de 7 dias a 12 meses incompletos – 48 horas; de 2 meses a 1 ano incompleto – 24 horas; de 1 ano a 2 anos incompletos – 12 horas; acima de 2 anos – 6 horas. Além disso, tais exames complementares para a comprovação da morte encefálica devem demostrar de forma inequívoca a ausência de atividade elétrica cerebral ou ausência de atividade metabólica cerebral ou a ausência de perfusão sanguínea cerebral. A lei ainda admite a presença de um médico de confiança da família do falecido no ato da comprovação da morte encefálica, justamente para dar a total segurança aos familiares no que tange ao procedimento. Aqui o legislador também teve a intenção de dificultar o tráfico de órgãos e tecidos. A morte encefálica pode ser claramente diagnosticada e documentada através do exame da circulação cerebral, realizado com técnicas extremamente seguras, embora existam opiniões contrárias, justificando a opção de pessoas leigas pela não doação dos órgãos. Por algum tempo, as condições de circulação sanguínea e de respiração da pessoa acidentada poderão ser mantidas por meios artificiais, até que seja viabilizada a remoção dos órgãos para transplante. Entretanto, ela já está morta (OLIVEIRA; SPENGLER NETO, 2014, p. 64).

A lei veda a remoção de órgãos e tecidos de pessoas falecidas não identificadas. Depois de retirados os tecidos, órgãos ou partes do corpo, o cadáver devera ser imediata e condignamente recomposto para ser entregue aos parentes ou responsáveis legais para o posterior sepultamento. Além disso, o ordenamento jurídico brasileiro autoriza à pessoa capaz a dispor gratuitamente de tecidos, órgãos ou partes do corpo vivo para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, ou para qualquer pessoa que não seja familiar, mediante autorização judicial, exceto no caso de doação de medula óssea, pois esta última prescinde de autorização do judiciário. No caso de doação durante a vida, a lei permite que sejam doados órgãos duplos, de tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça a continuidade da vida digna e normal do doador. Já, o autotransplante pode ser realizado apenas com o consentimento do próprio indivíduo, com simples registro em seu prontuário médico, quando for juridicamente capaz. Se for incapaz, basta a autorização dos pais ou responsáveis legais. Além disso, qualquer tipo de transplante ou enxerto depende de autorização expressa do receptor, que deve estar inscrito em lista única de espera, devendo este ser informado dos benefícios o dos riscos do

procedimento. Caso o receptor seja incapaz ou suas condições de saúde não possibilitem uma manifestação da vontade válida, o consentimento também deve ser dado pelos pais ou responsáveis legais. Em vários momentos a legislação deixa claro que a ato de disposição do corpo, seja para doação de órgãos, tecidos ou partes do corpo vivo ou morto, pode ser revogada livremente a qualquer momento. A lei prescreve que é obrigatório, para todos os estabelecimentos de saúde, notificar às centrais de captação e distribuição de órgãos da unidade federada onde ocorrer o diagnóstico de morte encefálica em pacientes por eles atendidos. Não obstante, a legislação vigente ainda prevê sanções penais e administrativas para aqueles que infringirem as disposições legais.

3

O

CONSENTIMENTO

DO

DOADOR

COMO

UM

DIREITO

DA

PERSONALIDADE O ordenamento jurídico brasileiro valoriza os direitos fundamentais e individuas. Dentro deste arcabouço jurídico está a possibilidade de disposição do próprio corpo e a autonomia da vontade do paciente, respeitados os limites de ordem pública para que sejam preservados os direitos humanos de todos os cidadãos. Todos sabem da importância das doações de órgãos e tecidos para a manutenção da vida de muitos seres humanos que encontram a última esperança de vida em um transplante, mas pouco se fala no consentimento expresso do doador. O direito à vida é um direito da personalidade de ordem física e ocupa a posição de máxima importância, é o bem maior dentro do âmbito jurídico, ao seu redor todos os demais bens gravitam. A relevância jurídica dos direitos da personalidade é afirmada através do processo de constitucionalização dos direitos e garantias fundamentais. Os direitos da personalidade tem o condão de materializar a proteção da dignidade humana, sendo esse um novo fundamento e um princípio norteador das relações civis modernas. A ideia de proteger o ser humano em si e não apenas o seu patrimônio, solidifica o principio da dignidade humana como um instituto constitucionalmente protegido. O respeito e a garantia aos direitos da personalidade são exigências do princípio da dignidade da pessoa humana. A tutela da personalidade está inserida na evolução das relações sociais, econômicas e jurídicas entre os homens e as regras da sociedade, “especialmente no que se refere ao reconhecimento igualitário da personalidade e da capacidade jurídica de todas as pessoas” (CATÃO, 2004, p. 93).

A concepção da autonomia da vontade, ou autonomia privada, progrediu tanto que se passou a enquadrar o chamado direito ao corpo como um dos direitos da personalidade. Diante do alcance da autonomia privada na esfera da disponibilização do corpo, obedecendo às limitações legais e constitucionais, consagra-se a manifestação da vontade na disposição do próprio corpo, contemporaneamente, como um dos direitos da personalidade, a qual constitui a possibilidade de o paciente participar das decisões sobre seu tratamento e alternativas terapêuticas que possam afetar sua integridade física ou psíquica. Para Catão (2004, p. 104) os direitos da personalidade “são aqueles inerentes à própria existência da pessoa humana, sendo a esta permitido, por meio da norma jurídica, defender um bem que a natureza lhe concedeu, ou seja, defender os direitos subjetivos, autorizados pelo direito objetivo, de usar e dispor do que lhe é próprio”. “No plano jurídico, a personalidade é o conjunto de faculdades e direitos em potencial que dá à pessoa humana o direito de ser sujeito de obrigações” (OLIVEIRA; SPENGLER NETO, 2014, p. 44). Os autores continuam a discorrer que a personalidade civil e jurídica inicia-se com a partir do nascimento com vida. Contudo, a lei garante direitos ao nascituro desde a sua concepção. Em contrapartida, a personalidade cessa com a morte, pois está põe fim aos direitos personalíssimos da pessoa. Sobre o assunto, é significativa a contribuição de Maria de Fátima Freire de Sá (2003), a qual afirma que com a morte terminada a vontade do homem, entretanto, antes da morte a pessoa pode ter querido e manifestado sua vontade, e a posterior morte não pode acabar com tal volição expressada em vida. Logo, é indiscutível que com a morte cessa a personalidade jurídica, ou seja, a aptidão para ser sujeito de relações jurídicas. Porém, conforme Catão isso não impede que haja bens da personalidade física e moral do morto que continuem a interferir no curso social e que, por isso mesmo, perduram no âmbito das relações jurídicas. É particularmente o caso do cadáver, das partes separadas do corpo, da identidade, da imagem, da honra e da vida privada (2014, p. 115).

Antônio Chaves (1986) enfatiza que o corpo é algo que a pessoa é, e não que a pessoa tem, ou seja, o corpo não é, de forma alguma, patrimonial. Logo, o direito ao próprio corpo também não se concebe como patrimonial, mas sim pessoal e de caráter especial, tendo por substância a sua livre disposição, dentro dos limites estabelecidos pela legislação vigente. Nanni ensina que “o cadáver é o prolongamento da pessoa humana, não estando à disposição de terceiros, com exceção se assim deliberar a pessoa” (1999, p. 283). Apesar disso, o diploma legal que trata da doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano limita, em certa medida, a autonomia e a vontade do falecido potencial doador, pois a lei deixa a ultima palavra, no que se refere à doação post mortem, para a família do falecido.

Para que os direitos fundamentais do doador não sejam violados, se faz necessário analisar em que medida a vontade do falecido é concretamente respeitada pelo Estado e pelos próprios familiares. É preciso atentar para o fato de que os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, segundo o código civil, e, segundo a doutrina, são indisponíveis, imprescritíveis, extrapatrimoniais e intangíveis pelo Estado. A partir da analise fria da letra da lei, art. 4° da lei 9.434/97, pode-se depreender que ainda quando em vida o indivíduo tenha manifestado expressamente sua vontade de doar órgãos e tecidos a autorização para a retirada depende exclusivamente da família, visto que as consignas feitas nos documentos – “doador de órgãos” ou “não doador de órgãos” – não tem mais validade legal. Em momento algum a lei reserva espaço para a vontade do falecido. Sem dúvida, a aplicação pura da legislação em discussão estará encarcerando a liberdade, a vontade e a autonomia do indivíduo. O pedido para a doação de órgãos do paciente à família acontece, geralmente, logo após a constatação da morte encefálica, momento em que a família está conturbada, tomada pelo medo e pela incerteza. Mesmo sabendo da vontade do falecido em ser um doador post mortem, nessa situação, a família não terá condições para tomar uma decisão totalmente autônoma em razão do estado de vulnerabilidade no qual se encontram. O Código Civil de 2002 é claro em seu art. 14: é validade a disposição gratuita do próprio corpo para fins científicos ou altruísticos, no todo ou em parte, para depois da morte. Com isso, é indiscutível que a disposição do corpo vivo ou do cadáver é um direito personalíssimo, devendo ser exercício pelo titular desse direito. Como a lei 9.434/97, em sua literalidade, ceifa a autonomia da vontade do individuo, foi aprovado em 2006, na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal o enunciado 277, que trata da prevalência da manifestação da vontade do doador de órgãos. De acordo com o enunciado, a manifestação expressa do doador em vida deve prevalecer sobre a vontade dos familiares, logo, a aplicação do art. 4° da lei 9.434/97 fica restrita à hipótese de silêncio do potencial doador. A tese levantada pela IV Jornada de Direito Civil vai totalmente de encontro com toda a doutrina moderna, dado que os direitos da personalidade são direitos fundamentais, e devem ser respeitados integralmente por todas as instituições sociais. Indubitavelmente que na doação de órgãos e tecidos, seja em vida, seja após a morte, a vontade do doador deve ser preservada ao máximo, pois a disposição de seu corpo é um direito personalíssimo, devendo o Direito respeitar apenas estabelecer limitações que visem preservar à integridade e à vida. Alaércio Cardoso postula que:

o sujeito tem o direito subjetivo personalíssimo de dispor de seu próprio corpo ou apenas parte dele, com efeitos post mortem, caracterizando esse ato de disposição negócio jurídico extrapatrimonial, decorrente do exercício da autonomia privada, sujeito às limitações e condições impostas pelo ordenamento jurídico (CARDOSO, 2002, p. 229)

Muitos estudantes, médicos e até mesmo juristas desconhecem tal enunciado do Conselho da Justiça Federal. Diante do exposto, é indispensável que a lei 9.434/97 seja alterada para que o respeito à liberdade e à autonomia sejam preservados em nosso país nos procedimentos de doação de órgãos. Atualmente o consentimento do doador é fundamental nos atos de disposição corporal. Por conseguinte, o direito ao transplante de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano configura-se como um dos direitos da personalidade. É um direito inerente à pessoa humana de caráter extrapatrimonial, mas não absoluto, pois está limitado aos preceitos legais e constitucionais. De resto, é preciso atentar para o fato de que a falta de informação ainda é o maior obstáculo no aumento do número de doações de órgãos e tecidos. Em um país como o Brasil, onde a ignorância no procedimento de doação de órgãos é muito grande, não se pode adotar o consentimento presumido pela legislação, como aconteceu no passado, visto que tal medida, por si só, não foi, e ainda hoje não será capaz de aumentar o número de doadores. Além do mais, para muitos, em função da própria cultura e da religião, o corpo ainda é concebido como algo absolutamente sagrado e intocável. Para a mudança deste cenário, é indispensável o trabalho de educação para a doação. Campanhas que informem os passos e os critérios objetivos do procedimento são as únicas alternativas que podem trazer segurança à população, incentivando assim a doação post mortem e fortalecendo a solidariedade.

CONCLUSÃO Nos dias que correm a humanidade conta com irrestritas condições racionais para tutelar a vida, o que não era integralmente possível no passado. A legislação brasileira que trata da doação de órgãos e tecidos em vigor é prospera e visa dar a maior segurança em todo o procedimento, tanto ao doador, quanto ao receptor e às famílias. Contudo, a lei 9434 de 1997, em seu artigo 4°, fere a autonomia e a vontade do indivíduo potencial doador ao afirmar que a doação de órgãos e tecidos post mortem depende de autorização do conjunge ou parente, maior de idade, obedecida a ordem sucessória, em linha reta ou colateral, até o segundo grau. O consentimento é um elemento central nos atos de disposição corporal e emana dos direitos fundamentais à liberdade, à autonomia e à autodeterminação.

Diante do exposto, é inegável que a vontade do indivíduo é fundamental no procedimento de retirada de órgãos e, por isso, deve ser integralmente respeitada quando manifestada em vida. O documento legal teria de ser alterado, a fim de respeitar a dignidade humana e os direitos da personalidade constitucionalmente protegidos e para compatibilizarse com os demais documentos jurídicos que salvaguardam os direitos da personalidade. A família deve ser ouvida e considerada somente quando o falecido não tenha se manifestado expressamente em vida favorável ou contrariamente à doação de órgãos e tecidos após sua morte. O direito a realização de transplante de órgãos e tecidos é, sem duvida, um dos direitos da personalidade e deve ser exercido consoante com os limites demarcados pela estrutura jurídica vigente.

REFERÊNCIAS ALMEIDA, Aline Mignon. Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2000. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 51. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. BRASIL. Lei n° 4.280, de 6 de Novembro de 1963. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2016. BRASIL. Lei n° 5.479, de 10 de Agosto de 1968. Disponível . Acesso em: 11 de outubro de 2016.

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