Costa Junior, Ademas. A Margem Narrativa Do Tempo De Areia Da História..docx

  • Uploaded by: Stella Rodriguez
  • 0
  • 0
  • November 2019
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Costa Junior, Ademas. A Margem Narrativa Do Tempo De Areia Da História..docx as PDF for free.

More details

  • Words: 5,814
  • Pages: 15
A margem narrativa do tempo de areia da história Pescadores Artesanais de Itaipu Ademas Pereira da Costa Junior1 LABHOI/UFF/CNPQ Resumo O leitor encontrará nas próximas páginas uma abordagem ilustrativa, que problematiza as narrativas orais dos pescadores artesanais de Itaipu, cotejadas principalmente coma composição dos elementos presentes em suas atividades tradicionais. Em especial com percepção do tempo bipartido entre Inverno e Verão que deriva da pescaria de Arrasto em Itaipu. Este artigo busca manter um vinculo continuo com as referências mobilizadas pelos pescadores para justificar a sua perspectiva diante da experiência vivida no cotidiano da praia. Que pela sensibilidade e um contato profundo com a dinâmica da natureza local reverbera as transformações aceleradas. Sendo que o seu principal fator, na Região Oceânica de Niterói, é a especulação imobiliária. As reflexões buscam compreender brevemente o sentido do posicionamento de alguns dos seus membros, na sua relação com a tradição e com a natureza. Onde ambas as dimensões se refletem na sua percepção do tempo. Colocando em evidência como os processos históricos fundam identidades narrativas.

Palavras Chaves: Pescadores Artesanais de Itaipu. Narrativas. Demandas Socioambientais. 1

Estudante da graduação em história. Este artigo surge como um fruto das primeiras considerações que se desenvolveram no meu projeto de iniciação cientifica junto ao laboratório de história oral e imagem LABHOI-UFF.

Commented [SR1]: Sobre o tempo, Pritchard

Introdução: As próximas páginas estão divididas em cinco partes, que delimitam a abordagem desse artigo. Elas se somam para formar um quadro amplo de reflexões Orientadas a partir da interface do Tempo com a Experiência e da Memória com a Narrativa. Buscando o desafio de produzir uma relação de justaposição entre essas dimensões. Assim em um primeiro momento, em A margem de Itaipu começo com uma breve exposição do um quadro histórico de longa duração, aproximando ao passado recente que é problematizado a fim de produzir um primeiro contraste. Esse primeiro contraste serve de solo para as seções seguintes. Adentrando concentricamente às orientações de relação do tempo presente com essas impressões do passado, justificadas nas narrativas como “usos do passado”. Reverberando uma expectativa e um sentido para a ação. Assim foram selecionados três depoimentos de pescadores que se situam em diferentes posições da comunidade e reconhecidas em diferentes níveis como lideranças políticas. Em as Faces da Tradição acompanho as narrativas de Robson Dutra mestre e pescador de arrasto, que explica a relação da comunidade com o tempo, e como as transformações em Itaipu influenciaram no cotidiano da comunidade, que mesmo assim conhece e reconhece Itaipu como uma praia só. Em Demandas Socioambientais, Jairo pescador conselheiro da RESEX-Itaipu e da associação de moradores da comunidade, justifica o seu posicionamento diante das transformações para a preservação da “cultura e tradicionalidade do pescador”. E em “O bem dizer” Maurinho expressa a sua relação com a tradição esclarecendo a sua condição de experiência no presente. Momento em que sua intenção narrativa coloca em evidência a existência de alguns padrões de formulação. Para chegar à Conclusão essas reflexões se orientam a problematizar a constituição da identidade narrativa. Buscando traçar um plano de analise que permita ter acesso a forma como a comunidade reflete sobre a sua própria história.

A margem de Itaipu. Itaipu é atualmente um dos principais bairros da Região Oceânica, ligado ao centro da cidade de Niterói, a qual pertence, por cerca de onze quilômetros de estrada. As novas obras da Transoceânica e a abertura do túnel Charitas-Cafubá, promovidas pela prefeitura, reforçaram, nos últimos anos, o ideal de desenvolvimento urbano que

para ela se projetou. Principalmente impelido a favorecer aos interesses da especulação imobiliária. Dentre as transformações mais nítidas que se deram de um modo aceleradoe em um limiar de menos de quatro décadas- estão: o surgimento de loteamentos inteiros e de suas vias expressas. Preenchidas em um cotidiano marcado pelo movimento sazonal de veículos particulares que caracterizam o perfil ocupacional da região como uma cidade dormitório. Assim como a presença de pequenos prédios comerciais, e uma feição geral de casas e condomínios de classe média. Nos fins de semana suas praias se encontram quase sempre lotadas por turistas e moradores locais. Mas isso- é obvio- nem sempre foi assim. Parte desse complexo se compreendia pela existência de algumas fazendas, tais como a Fazenda do Mato e Fazenda Itaipu. A região era conhecida por produzir produtos agrícolas como o Café a Laranja e Cana, possuindo também alguns engenhos para beneficiar o açúcar. As famílias de pescadores artesanais vivam ha gerações à margem das praias e lagoas, usufruindo da coleta do pescado e de frutos do mar, que abastecia o consumo local e regional. E mesmo que a comunidade estivesse submetida, com a fundação da colônia de pescadores na década de 20, a prerrogativas institucionais claras, como o pertencimento à terceira força da marinha, ou submetida às suas intervenções diretas em quesito de jurisprudência2, pouco do seu cotidiano e das suas tradições se afetaram em decorrência disso. Mantinha-se o ritmo do cotidiano, e a dinâmica da pesca em referência ao Arrasto de praia, com as canoas grandes, que dividiam espaço na praia ao lado das casas e barracões de pesca feitos com material encontrado na região3. As transformações mais incisivas tiveram início partir da década de 40 e com a intensificação do processo de desenvolvimentista4 vivido pela sociedade brasileira nas décadas seguintes. Nesse momento algumas áreas rurais passaram a se transformar mais rapidamente, por meio de um processo continuo de urbanização. E em consequência do desmantelamento dessas fazendas, surgiam novos loteamentos que formaram os seus atuais bairros. O que gerava conflitos cada vez mais delicados, em relação à propriedade, com seus antigos moradores. Em Itaipu um exemplo desse incidente é a suposta compra das terras da antiga Fazenda Itaipu no ano de 1943 por Francisco

2

Cf. RESENDE Cf. KANT DE LIMA. 1997. PESSANHA 2003. 4 Cf. BIELSCHOWSKI,R. 1988. 3

Pizarro. A Companhia Territorial de Itaipu, de sua propriedade, visou explorar a região com projeto de loteamento denominado Cidade Balneária de Itaipu. Que revia o beneficiamento da área de 6 milhões de km² com sistemas de água e esgoto, assim como a existência de praças, comércio, escolas e hospitais. Parte desse projeto foi incorporada com a compra de 89% das ações da Companhia Territorial de Itaipu, na década de 70, pela Veplan uma antiga incorporadora de imóveis que se fundiu ao renomado escritório de engenharia de H.C Cordeiro Guerra 5 . Por meio desse negócio surgia ama nova empresa a Veplan Residência Empreendimentos e Construções S/A, a qual os jornais da época celebravam como a maior empresa do ramo imobiliário do Brasil. Uma das diferenças fundamentais do projeto, era a idéia de fazer de Itaipu a primeira “comunidade planejada 6 ” em território nacional. A existência de marinas dentro da lagoa de Itaipu era um ponto mais que notável em meio aos seus projetos. E para ser executado a Marinha em 19797 emitiu nota concedendo aval para a construção do canal que ainda nos dias de hoje delimita a divisão da praia de Itaipu em duas. Abrindo com isso a barra da lagoa. Um dos braços operacionais dessa empresa se dedicava diretamente à esse empreendimento o seu nome Veplan Residência Companhia Territorial de Itaipu. E tinha entre seus diretores a curiosa presença do ex-ministro do planejamento Reis Velloso. O resultado dessas obras é ainda nos dias de hoje a existência de um contraste, mais que marcante entre os bairros de Itaipu e Camboinhas. Nesse processo famílias inteiras de pescadores foram retiradas da beira da praia, afetando diretamente o cotidiano da pesca em Itaipu.

As Faces da Tradição Atualmente a praia de Itaipu se vê limitada à sua margem esquerda, que junto ao morro das andorinhas, e circunscrita pelas ilhas do filho da mãe e do pai fazem parte do Parque Estadual da Serra da Tiririca, e também do território pesqueiro da Reserva Extrativista Marinha de Itaipu. Do outro lado do canal fundou-se, Camboinhas, uma praia reservada aos interesses da classe média urbana que passou a habitar 5

H. C CORDEIRO Guerra e Veplan concluem incorporação. Jornal do Comercio 31 de Julho de 1973 COMUNIDADE Planejada de Itaipu. Jornal do Brasil 26 de Julho de 1978

6

7

MARINHA informa que autorizou as obras da Veplan em Itaipu. O Fluminense. Niterói. 20 de Outubro de 1979

Commented [SR2]: Desenvolva

majoritariamente a região. Os pescadores e suas famílias foram impactados diretamente por esse processo. Reverberando na condição de manutenção das suas atividades tradicionais e na forma de se relacionar com a localidade. Quem nos expõe essas transformações de um modo mais claro é Robson Dutra, pescador artesanal de família tradicional, que ainda hoje é mestre do Arrasto de Itaipu. “Na década de setenta foi aberto um canal, aqui na praia de Itaipu - que tinha uma extensão de três quilômetros e setecentos metros ao total. Hoje a praia de Itaipu ficou resumida a setecentos metros. E por que a gente diz que Itaipu é uma praia só? O que dividiu, eu não sei, algumas pessoas falam a divisão do rico do pobre; enfim ou era a especulação imobiliária, cada um fala uma coisa e a gente não sabe a fundo. Eu sei que cada um tem a sua opinião. A minha opinião: a causa foi a especulação imobiliária, fizeram esse canal ai na praia de Itaipu que hoje é uma praia dividida, tanto é que o loteamento para o outro lado é denominado Camboinhas e o lado de cá ficou Itaipu. Por intermédio de que? Através de que? Por uma empresa que chegou ai, tirou os pescadores que lá residiam e fez um loteamento. Então quando a gente fala que Itaipu é uma praia só a gente conhece e reconhece Itaipu como uma coisa só. Os novatos, as pessoas que estão chegando, hoje talvez não saibam disso, entendeu? “Você vai a onde? Ah, eu vou em Camboinhas. Você vai a onde? Eu vou em Itaipu” Mas para o pescador, para a cria de Itaipu isso é uma coisa só. E com certeza foi a especulação imobiliária que fez com que essa divisão acontecesse.” (Robson Dutra 27/2/2018)

A sua narrativa emprega em diversos momentos não apenas um tom esclarecedor para essas transformações, mediante a perspectiva que assume para descrevê-las. Mas também surgem, a partir dela, características mais pontuais sobre um elo vital constituído entre os pescadores com a sua tradição de pesca, a sua dinâmica e o espaço da praia de Itaipu. A referência aos impactos e as transformações causadas pela especulação imobiliária, como a abertura do canal, progride em a uma relação com a vida dos pescadores na praia. Fazendo com que ocorra por sua parte uma re-apropriação da identidade social8. Sintetizada no momento em que Robinho diz: “Então quando a gente fala que Itaipu é uma praia só a gente conhece e reconhece Itaipu como uma coisa só.” Há também de se considerar que esse trecho põe em evidência, sobre tudo, a condição presente nas expressões possíveis que justificam o seu posicionamento diante das transformações, e lhe indicam o sentido9. Por intermédio do advérbio quando10que se incorpora o passado vivido na praia em referência a sua tradição, revelando a existência, e a possibilidade de leitura da 8

Cf. LATINI. 2006. Cf. RUSEN.2014. 10 Cf. GELL.2014. 9

dimensão temporal que lhe inerente. Algo que se esclarece enquanto um sentido próprio da experiência na associação dos eventos que envolviam a pesca e que capacitam um indivíduo a “conhecer” e “reconhecer” Itaipu como uma praia só. Também é possível notar que a preservação na memória do tempo dos eventos, ou da sua duração, transporta o quando ao contexto, que no presente da fala se revela, em um quadro descritivo das transformações. Essa “moldura temporal” representada no quando insere na composição dos eventos uma dimensão de referenciais necessários, para que os significados sejam agenciados na construção e na realização das relações no cotidiano. É portanto a partir da narrativa que o passado se alinha ao presente, e revela distensão do tempo imanente correspondente à vivência subjetiva da duração. Essa vivência se realiza na orientação para o agir cotidiano. Que é em si a referência inscrita nos significados dos elementos representados culturalmente e que associados estruturam o prisma das referências de memória, que justificam a extensão das ações no mundo e as suas expectativas. Como afirma Estevão Martins, é no “contraste entre a experiência do passado e do presente que o sentido surge na tomada de consciência de si, temporalmente, como sujeito pensante do seu meio social”11. O “conhecer” e o “reconhecer” também podem ser lidos como duas dimensões fundamentais que se apresentam como parte de um agenciamento dos “usos do passado”. Indicando a perspectiva de leitura e realização de uma expectativa sobre o mundo na ação. Sendo assim fica claro que presença do passado como lembrança, o presente como experiência e o futuro como expectativa são parte vital do arco que compõem o sentido da expressão narrativa. O sentido das experiências tal como se apresentam em seu depoimento, se revelam por contrastes indicando as mudanças e as transformações provocadas pelo desenvolvimento urbano, pela ausência do pescador de arrasto do espaço da praia, e o declínio dessas atividades. Provocadas pela especulação imobiliária. O uso do passado lhe oferece uma orientação para justificar o seu posicionamento enquanto parte de um grupo homogêneo a exemplo de ser um pescador de Itaipu, de família tradicional. Apontando então que a existência desses elementos é uma condição necessária de constituição da sua identidade narrativa12.

MARTINS 2018. “Tempo. Experiência. Reflexão. Medida.” Artigo de conferência in: Escritas da História. O tempo pragmática no pensamento histórico. ICHF 9/4/2018 14 hrs. 12 Cf.RICOUER 2010. 11

Commented [SR3]: Kossellec

Culturalmente a identidade também se reflete como sentido, uma vez que ambas as categorias se constituem na experiência e de uma orientação subjetiva que se dá estruturando padrões de relação com o tempo 13. Portando é preciso por em evidência que o identidade ou sentido da narrativa são um mesmo que representa um arranjo. Articulando em seu intimo as dimensões do tempo cósmico e exterior, com o tempo fenomenológico e imanente. A solução a este aparente impasse é do filosofo francês Paul Ricouer, em Tempo e Narrativa. O problema colocado pela aporia Agostiniana sobre o conteúdo apreensão do Tempo14 da distentio animi na intentio animi só pode ser superado na composição da mimesis 15 , que é a sua via poética “invertida”. Onde a experiência do tempo é figurada pela narrativa. Dito de outro modo, a narrativa é a dimensão do tempo transformado em tempo humano e nessa acepção potencialmente histórico. Acessível em múltiplas perspectivas e formas de expressão. Que nesse caso será observada à luz dos elementos constituintes da tradição dos pescadores artesanais, em especial o Arrasto de Praia. É então, partir da tradição do Arrasto, da qual deriva a dimensão do tempo vivido como duração, ou mais precisamente do “tempo estrutural” para essa comunidade, tal como foi descrita por Roberto Kant de Lima, como parte dos prognósticos que compõe os “saberes naturalísticos” da manutenção da pesca, em seu trabalho etnográfico produzido na década de 70, e a sua relação com produção de uma identidade social dos pescadores de Itaipu, que busco estabelecer a principal referência. Traçando um quadro de analise das transformações ocorridas na região e seus desdobramentos na perspectiva dos representantes dessa comunidade. O esclarecimento dessa posição vem da seguinte conclusão do autor em “Pescadores de Itaipu: Meio Ambiente Conflito e Ritual no Litoral do Estado do Rio de Janeiro” “O “tempo ecológico”, então, é ao mesmo tempo interior e exterior ao grupo social, que dele se apropria, interpretando-o e classificando-o na infindável tarefa de sobrepor a cultura a natureza. [...] A visão cíclica da pesca em Itaipu divide o ano em duas estações que se caracterizam por morfologias 13

Cf. RUSEN. 2014. A intentio assim como a distentio animi é em Ricouer uma leitura de marcadores temporais subjetivos, que extrai do livro XI das Confissões de Agostinho. Uma e outra representariam modos de percepção e da passagem do tempo. “(o) lado do que passa, enquanto distinto do presente pontual” RICOUER 2010. p.33 15 A mimesis seria a “imitação ou a representação da ação no registro da linguagem métrica” que permite a figuração da percepção da experiência da passagem do tempo, tornando-a acessível por meio da narrativa. Idem. p.58-68 14

distintas do grupo. “Inverno” e o “Verão” são assim mais que duas estações do ano. Constituem-se em verdadeiros polos de atração de significados sociais. O inverno organiza, aglutina; o verão desorganiza e dispersa. Em torno do inverno, a pesca da tainha vai-se constituir em verdadeiro “símbolo nodal” de Itaipu.” (KANT DE LIMA, 1997 p. 128)

Essa dimensão do tempo, bipartida entre o inverno e verão permanece ainda nos dias de hoje, mesmo que tenham ocorrido algumas variações pontuais na forma como a comunidade emprega as suas atividades no cotidiano 16 . Principalmente influenciada pelo contexto das transformações desenroladas durante as décadas de oitenta e noventa. Quando a Região Oceânica continuou a ser palco do acirramento progressivo do crescimento urbano em Niterói. Em decorrência desse processo, e principalmente devido às consequências das obras da Veplan, que tiveram início uma década antes, algumas famílias de pescadores foram deslocadas para longe da praia de Itaipu. Indo morar em bairros vizinhos como Engenho do Mato, Maravista, Terra Nova e até mesmo em outras cidades como São Gonçalo. Alguns desses pescadores se viram obrigados a ocupar outras funções no mercado de trabalho. E os que tinham sorte permaneciam na praia executando atividades em consonância a prática de pesca, como a venda de frutos do mar nos bares ou comercialização de peixes. Outros passaram a trabalhar no comércio local, como na segurança de alguns condomínios, na jardinagem, nos mercados e também como pedreiros. O movimento sazonal dos pescadores acompanhou o decaimento da tradição da pesca de Arrasto, paralelamente um aumento progressivo no número de pescarias de Emalhe17. A comunidade se viu diante de um quadro brusco de alterações nas dinâmicas do cotidiano. Algo que se refletiu na própria organização da pescaria. Sendo evidenciado por Bruno Mibielli, ao apontar para a inversão do prognóstico do Tempo para essa comunidade. Onde o inverno perdia a importância e verão passava a ser a época do ano onde as expectativas de ganho na pesca eram maiores. Principalmente justificada a ele por Mestre Cambuci ao lhe descrever sobre o “sumiço da tainha”. Naquele momento, em 2004, a pescaria de Emalhe estava em número superior ao Arrasto, diferente do que acontecia na década de setenta. Onde a segunda também era o principal meio de constituição da identidade de pescador de Itaipu. As mudanças pareciam incidir então 16

Cf. MIBIELLI 2004-2013 Idem.

17

Commented [SR4]: Descrever como funcionam essas tenicas em relação a dispositivos e organização social, coletiva individual gastos etc

sob um aspecto cada vez mais intimo à comunidade. Seria possível fazer uma associação com uma mudança substâncial na dinâmica de relação com o cotidiano com as transformações ocorridas na região? Assim como um processo de aceleração do mesmo, que o colocaria também como uma manifestação regional do processo de globalização vivido pela sociedade contemporânea?

Commented [SR5]: Temporalidade da paisagem

O fato é que alguns pescadores, talvez motivados pela maior facilidade oferecida pelos petrechos industriais que se inseriam, e pela possibilidade de ganhos individuais, foram progressivamente migrando para a pescaria de Emalhe. Outro elemento que pode ter sido determinante é que ela permite uma maior flexibilidade na relação dos pescadores com o mar o espaço da praia e outras atividades que pratiquem durante o dia. Para Mauro por exemplo esse fator o permitia dar continuidade à pescaria de Arrasto, sendo que era parte era dividida com outro companheiro que pescava junto com ele em sua campanha. Alguns tornavam a atividade seu principal meio de vida, mas também trabalhavam em outras funções, chegando a pescar eventualmente nas duas campanhas de Arrasto ainda em atividade permanente. Tudo indica que com o contraste dessas dinâmicas também revela a distinção de regimes18 da forma de se experimentar o tempo. Mesmo que continuem à representar o tempo sob a mesma estrutura bipartida. Assim voltemos à expressão narrativa dessas mudanças: “A pesca da Tainha foi o que eu peguei pequeno. A pesca da Tainha era tradição aqui, hoje não tem mais o pescado. Não tem mais a Tainha e também não tem mais o pescador para a Tainha. Não tem o aparelho adequado, o que eu digo que seja o aparelho adequado, é uma canoa maior do que essa esta aqui. Na pesca da Tainha a gente precisa de um determinado numero de pescadores com prática, hoje não. [...] A gente tem que ter o cara que é o vigia é o olheiro ele ficava lá em baixo em Camboinhas. Na verdade a gente fala em Camboinhas mas isso aqui era uma praia só né? Camboinhas e Itaipu é uma praia só. Não existe Camboinhas e Itaipu, para o pescador isso aqui é uma praia só.[...]. É, era o pescado do inverno era a tainha, hoje não, a pescaria de arrasto, a pescaria de lanço que é o lanço a sorte, por isso tem o nome de lanço ela hoje é o ano todo. Pelas dificuldades pela escassez da Tainha então a gente vai o ano todo com essa pesca de lanço a sorte. Mas antigamente não. Antigamente que eu falo a quinze anos atrás, dez anos atrás tinha a pesca da Tainha. Esperava chegar em maio, abril pra gente pescar até agosto. Ai ficava focado só na Tainha.” (Robson Dutra 27/2/2018)

Robinho é um dos poucos pescadores na praia que se dedica exclusivamente ao Arrasto. A sua intenção presente incorpora a dimensão do tempo estruturada no arrasto 18

Cf.GELL. Alfred. 2014

Commented [SR6]:

como referência para justificar as transformações, como a ausência do pescador e da tainha e as suas causas, compondo assim parte fundamental da sua identidade narrativa. Causas que também se revelam em alterações significativas 19 dentro da dinâmica do Arrasto, pela ausência do “vigia” na modalidade de Cerco. A distinção por contraste não só funda as relações entre as referências de memória e a vivência do presente, mas também as delimitam como as partes compostas. Revelando uma condição necessária do processo de significação do sentido da experiência do tempo. Que podem se manifestar de formas diferentes, dependendo do posicionamento e da perspectiva de cada individuo dentro da organização cultural da comunidade. Portanto essa relação pode manter referência a padrões de interpretação já estabelecidos ou modificá-los em acordo com as circunstâncias em que se experimenta a transformação. As Demandas Socioambientais Jairo é uma das principais lideranças políticas da comunidade, conselheiro da associação de moradores e da reserva extrativista marinha de Itaipu ao lado de Seu Chico. Ele possui uma única embarcação, baleeira, com a qual pesca sozinho na modalidade de Emalhe. O contato mantido com ele se dava tanto no espaço da praia quanto nas reuniões do conselho da RESEX. Ao iniciar a entrevista não foi preciso lhe fazer pergunta alguma, e ele seguiu com a sua narrativa de um modo espontâneo. Falou continuamente durante vinte minutos sobre a situação da pesca e da tradição em Itaipu. Sua um dos pontos centrais envolvia principalmente as questões dos recursos naturais do território pesqueiro e os conflitos, sempre insistindo que este era o melhor tema para se falar. Seu argumento também abordava a questão o beneficiamento dos “pequenos produtores” e da “segurança alimentar” que mantém como um dos principais vínculos pesca artesanal com a dimensão econômica a qual estava inserida. Apesar de não pescar no Arrasto, Jairo reconhece, assim como os demais pescadores, que esta modalidade é o maior símbolo da tradição da pesca artesanal de Itaipu. Uma das principais máximas que pude constatar durante o campo é a sua afirmativa de que “meio ambiente não é só o peixe”. Algo que cristalizava o sentido do seu posicionamento no presente, a justificar os vínculos com a sua trajetória e a continuidade de sua tradição sob o prisma dos conflitos socioambientais. Surge novamente algo de interessante quando percebemos a relação das transformações ocorridas com o sentido que as narrativas expressam na sua

19

Cf. MIBIELLI. 2004-2013

correspondência com a dimensão do tempo vivido. E como uma se insere na outra, lhe dando um novo sentido de acordo com o contexto compartilhado, a ação executada ou a palavra falada. Modificando os assim os padrões de formação da memória que progressivamente podem ser inseridos como parte fundamental da sua identidade social “Meu nome é Jairo Augusto da Silva sou pescador artesanal, sou tradicional da praia de Itaipu. Família tradicional. E hoje eu ocupo o cargo de conselheiro da reserva extrativista, foi implantada em 2013 pelo Estado em função de proteger o recurso natural e a cultura. A cultura e a tradicionalidade do pescador. E no momento a gente esta/ devidos os conflitos socioambientais ocorridos no nosso território pesqueiro nós pleiteamos a reserva extrativista em função de proteger, como eu falei, e amenizar os conflitos aqui existentes. Porque desde a década de sessenta a gente começou a conflitar com a empresa imobiliária o empreendimento imobiliário e com a produção do petróleo brasileiro, e a pesca industrial. E são e todo o crescimento de grande impacto, nós fomos muito oprimidos por essas questões que eu citei. E a gente analisou que a reserva extrativista marinha seria uma forma que abrange mais a pesca artesanal com seus direitos socioambientais que a gente tanto necessita. Que é a proteção do recurso natural e a manutenção da cultura e do modo de vida e a questão fundiária, e a organização fundiária dessa comunidade pesqueira”. Jairo de Souza Freitas 27/1/2018.

Jairo faz parte da mesma geração que Robson Dutra e assim como ele ao narrar se situa em meio às suas tradições associando o seu posicionamento sua identidade coletiva como pescador artesanal e tradicional. Existe ai então a possibilidade de identificar a perspectiva que assumem sobre nas relações do cotidiano. Um cotidiano que encontra novos contornos. A sua vivência enquanto sujeito, parte das referências significativas para ações estabelecias pela comunidade. Mas esse circuito de informações compartilhado pela tradição parece não oferecer meios suficientes para explicar o sentido das transformações que passaram a ocorrer nas ultimas 3 décadas. Legitimava o seu posicionamento de um modo específico enquanto membro da comunidade de pescadores, no momento em que sua postura representava não só a si enquanto parte daquela tradição, mas a uma trajetória que se confundia com a da categoria de pescadores artesanais de um modo mais abrangente. Onde o aspecto de liderança excedia os limites físicos da sua comunidade. Jairo também participa do fórum das comunidades tradicionais. Crítico das transformações ele articula a ela uma relação com os elementos da sua tradição para se situar e justificar sua perspectiva. Associando uma causalidade com o desenvolvimento urbano da região representado pela especulação imobiliária, e disputas pelos recursos naturais. Onde a preservação dos mesmos se alinha a

preservação da sua cultura. Que é uma forma específica de ler a natureza e o tempo. Representando uma relação entre os usos do passado e a margem contextual do presente que orienta a serem refletidas e formuladas, para garantir a continuidade da “cultura e a tradicionalidade do pescador”, como parte de demandas socioambientais. É possível, se seguirmos refletindo de acordo com as considerações até aqui colocadas, cogitar a existência de algum ponto de contato entre essas dinâmicas? Existe uma correspondência da aceleração do seu cotidiano a uma institucionalização dessas relações com a natureza? E o que isso revela sobre a contemporaneidade e a globalização? O “bem dizer” O convívio construído junto à comunidade de pescadores artesanais de Itaipu se deu por intermédio de Mauro de Souza Freitas. Durante o trabalho de campo junto a sua campanha de Arrasto, que se deu mais intensamente entre os meses de outubro de 2017 e Março de 2018. Foi a dinâmica construída naquele cotidiano o ponto de partida que pôs em evidência alguns contrastes vividos em Itaipu. Um deles era que Maurinho não se manifestava do mesmo modo tanto nas entrevistas, quanto nos dias em que participava da reunião da Reserva Extrativista Marinha de Itaipu. Onde é conselheiro e representante da modalidade de arrasto20. Além de pescar no Arrasto, Maurinho também é dono de duas baleeiras e pesca de rede de Emalhe, junto a mais um ajudante que também é membro de sua Campanha de Arrasto. Para refletir sobre essa situação é necessário novamente, ter como exemplo a seguinte passagem: “Na minha infância a praia era uma praia que não tinha desenvolvimento? Era uma praia, bem dizer, que não tinha desenvolvimento imobiliário. Era bem dizer, restinga, era mato, não tinha poluição, não tinha muitas luzes na praia para/ porque a luz forte atrapalha muito os peixes? Ai não tinha muitas luzes na praia, não tinha poluição e não tinha muito barco industrial. Ai, bem dizer, a pesca era muito boa, nada atrapalhava a gente nessa época. Ai dava muito peixe.” Mauro de Souza Freitas 27/1/2018

Como já vimos a percepção do tempo se expressa no sentido das definições mobilizadas durante o ato narrar. Assim, para Maurinho, a descrição do cotidiano vivido na praia surge, naturalmente, comparação com o que ocorria no passado. Apontando também as principais causas para as mudanças. Essas imagens do cotidiano são 20

Para mais informações sobre a RESEX-Itaipu e a sua relação com as transformações ocorridas no cotidiano dos pescadores de Itaipu Cf. MENEZES, Allan Sinclair Haynes de. A Reserva Extrativista Marinha de Itaipu: Areificação de uma identidade ligada ao mar. Niterói, 2014. 102p. Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Direito.

contrastadas à dinâmica da prática de pesca. E ambas agem como marcos delimitadores do seu posicionamento reflexivo. De modo semelhante como ocorre com Robinho, o “uso do passado” pressupõe o conhecimento e reconhecimento de algo. De uma dinâmica própria que dê sentido às ações desenvolvidas no cotidiano, que se reflete na disposição dos elementos significativos, e se realiza em torno deles na própria experiência. A manifestação dos elementos do vocabulário que caracterizam a sua fala nos termos do “bem dizer” surge como um fenômeno que busca uma síntese que preenche a forma da narrativa. Correspondendo às transformações vividas em seu cotidiano. Algo que se manifesta quando pretende superar a ausência dos termos significantes que orientariam a sua fala nesses momentos. Pertencentes à formulação da linguagem institucional, técnica e científica. E mesmo que o conteúdo correspondesse às suas experiências vividas em torno do cotidiano tradicional, Maurinho buscou deixar clara essa mudança de sentido. Modificando a sua forma aparente. Que modifica também o seu próprio posicionamento. Assim pela sua criatividade oral, ele articulou dois termos da fala “comum” para produzir e manifestar a sua intenção e sentido narrativo. Fica claro que isso se deu em referência à percepção do outro ao qual ele se dirige. Afirmando a necessidade de existir um parâmetro de relação que iguale o posicionamento argumentativo e o entendimento. Conclusão É o tempo, junto com a memória a experiência e a narrativa que se permeia toda a pesquisa. Com ele se estabeleceu um critério, como o ponto arquimediano das reflexões. A ele se põe referência como o elemento mais importante que estrutura o pensamento histórico21. O marco inicial da década de 70 permitiu considerar diversas dimensões do cotidiano da comunidade de Itaipu, da sua tradição de pesca de arrasto, a relação dos pescadores entre si e com a natureza. Também foi possível dimensionar os impactos causados pelas obras da Veplan e pelo processo de adensamento urbano vivido pela região oceânica que era representado para a comunidade em três momentos que marcam o início das transformações. 1) A chegada da Veplan, as vezes descrita como a “especulação imobiliária” ou o “progresso”. 2) A saída das famílias dos

RUSEN apud MARTINS 2018. “Tempo. Experiência. Reflexão. Medida.” Artigo de conferência in: Escritas da História. O tempo pragmática no pensamento histórico. ICHF 9/4/2018 14 hrs. 21

pescadores da beira da praia. 3) A divisão de Itaipu e a criação de Camboinhas com a abertura do canal. Que passou a ser conhecido como Canal da Vergonha. Fazendo os pescadores continuassem a perceber Itaipu como “uma praia só”. Robinho sintetiza essa relação - “quando a gente fala que Itaipu é uma praia só a gente conhece e reconhece Itaipu como uma coisa só”. Os impactos ambientais também impactaram diretamente as suas atividades, e principalmente o Arrasto de Praia. Eventos que a partir da década de 80 impactaram diretamente no equilíbrio ecológico, diminuindo a quantidade e a qualidade dos peixes, que somado ao afastamento do pescador da beira da praia fez crescer o estimulo por outras modalidades de pesca. Como o Emalhe que pela sua dinâmica melhor se adaptava a esse contexto. Onde alguns pescadores também exerciam funções em outras atividades econômicas que se desenvolviam junto ao crescimento urbano. Principalmente no turismo vinculado ao espaço da praia. Assim com a construção dos acervos de entrevistas, de imagens do campo, e com as reportagens de jornal se contextualizou os desdobramentos das transformações dentro da tradição da comunidade e da sua percepção do tempo. Esses elementos eram agenciados como parte fundamental das referências que constituíam a identidade narrativa dos entrevistados. A partir deles o sentido à experiência do presente expressava o “uso do passado”. Indicando como os pescadores assimilavam novas dinâmicas ao quadro de significação das relações do seu cotidiano, com a comunidade e com a natureza. Sintetizadas como conflitos socioambientais. Transformavam-se na margem do tempo os padrões de memória e com eles, a forma de configuração das suas narrativas e da sua consciência histórica.

Bibliografia BIELSCHOWSKI, R. Pensamento econômico brasileiro 1930-1964: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Contraponto. Rio de Janeiro. 1988 GELL. Alfred. A Antropologia do Tempo: construções culturais de mapas e imagens temporais. Petrópolis. Vozes 2014. HESSE. Hermann. O jogo das contas de vidro. Brasiliense. São Paulo 1973 KANT DE LIMA, Roberto & PEREIRA, Luciana F. ''Pescadores de Itaipu: Meio Ambiente, conflito e ritual no litoral do Estado do Rio de Janeiro''. Niterói: Eduff, 1997.

LATINI, Juliana Lopes. Memória, Identidade Social e Conflito entre os pescadores de Itaipu. UFF: Niterói, 2006. MARTINS Estevão. “Tempo. Experiência. Reflexão. Medida.” Artigo de conferência in: Escritas da História. O tempo pragmática no pensamento histórico. ICHF 9/4/2018 14 hrs. MENEZES, Allan Sinclair Haynes de. A Reserva Extrativista Marinha de Itaipu: Areificação de uma identidade ligada ao mar. Niterói, 2014. MIBIELLI, Bruno Leipner. As ressignificações da pesca em Itaipu. 16 p. Artigo 2013 MIBIELLI, Bruno Leipner. Mestre Cambuci e “sumiço da tainha”: uma nova imagem de Itaipu. Niterói, UFF. 2004 PESSANHA, Elina Gonçalves da Fonte. Os companheiros: trabalho e sociabilidade na pesca de Itaipu. Niterói, RJ: EDUFF, 2003. RESENDE, Alberto Toledo. As Origens da Institucionalidade da Pesca Artesanal. In: Pesca artesanal e produção social do espaço. Desafios para a reflexão geográfica. Org: SILVA Catia Antônia. Consequência. Rio de Janeiro, 2014. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, v. 1& v. 3 , Campinas: Papirus, 1994. RUSEN. Jorn. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis. Vozes. 2014 Fontes Orais Jairo Augusto de Souza. 27/1/2018 Robson Dutra 27/2/2018 Mauro de Souza Freitas. 27/1/2018

Related Documents


More Documents from ""