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Tartuce, Flávio Direito Civil, v. 6 : Direito das Sucessões / Flávio Tartuce, José Fernando Simão; prefácio Zeno Veloso. – 6. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2013. Bibliografia ISBN 978-85-309-4676-0 1. Herança e sucessão. I. Título. II. Título: Sucessões. 07-0355. CDU: 347.65(81)
Aos saudosos civilistas do século XX, dentre eles ORLANDO GOMES, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, SILVIO RODRIGUES, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO e RUBENS LIMONGI FRANÇA. Por terem deixado importante legado para a nova geração.
NOTA DOS AUTORES À 6.ª EDIÇÃO
A mudança de configuração dos livros desta coleção alcançou os seus fins, quais sejam de atingir principalmente o público universitário dos cursos de graduação e pós-graduação. No último ano muitos professores e faculdades do Brasil passaram a adotar as obras, inclusive como leitura obrigatória, o que muito nos honra. Visando a ampliar ainda mais a utilização dos livros, incluímos nesta edição novas posições doutrinárias, originárias de reflexões surgidas no último ano. Também foram incluídos os principais julgados de 2012, notadamente os publicados nos Informativos de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Ademais, o texto foi revisado, ampliado e atualizado. Atendendo aos pedidos de leitores, novas questões, aplicadas nas principais provas e certames, foram incluídas ao final de cada capítulo. O perfil do estudante contemporâneo é de pretender exercitar, desde os bancos da graduação, os testes pelos quais passará em toda a sua carreira jurídica. Espera-se que novos horizontes sejam conquistados no ano de 2013 e que a obra cresça ainda mais.
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São Paulo, dezembro de 2012
PREFÁCIO
Este volume 6 do Direito Civil, série “Concursos Públicos”, da Editora Método, trata do Direito das Sucessões. E trata muito bem, com profundidade e carinho. Superou minhas melhores expectativas. É um livro excelente. Flávio Tartuce e José Fernando Simão, meus jovens e diletos amigos, companheiros de muitas jornadas acadêmicas, especialmente de congressos do nosso IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, produziram uma obra que não deixa nada a dever às melhores que se escreveram sobre o tema. Destina-se, precipuamente, aos que vão se submeter a concursos públicos, mas ultrapassou esse limite. Vai muito mais adiante. É trabalho de vulto, repleto de informações, de utilidade imensa para estudantes, advogados, juízes e operadores jurídicos em geral. Vai estar presente nas bibliotecas dos melhores cursos de graduação e pós-graduação. Em quatro capítulos, partindo das regras gerais e conceitos básicos, prosseguindo com a sucessão legítima e a testamentária, terminando com inventário e partilha, o conteúdo temático é ampla e satisfatoriamente atendido. Nada ficou faltando. Além do que é comum e constante em qualquer boa obra que trate da matéria, José Fernando Simão e Flávio
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Tartuce fugiram do óbvio e atacaram muitos aspectos controvertidos, analisaram inúmeros pontos polêmicos do direito sucessório. Na sucessão legítima, destaco as lições a respeito dos cônjuges e dos companheiros; na testamentária, a interpretação correta e progressista sobre as formas e formalidades dos atos de última vontade. A doutrina vem cuidadosamente exposta, numa linguagem elegante e ao mesmo tempo simples e acessível. Jurista com estilo confuso e empolado bom jurista não é. Mas os autores apontam, ainda, a jurisprudência, os enunciados aprovados nas Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Conselho da Justiça Federal e pelo STJ, e apresentam as opiniões de abalizados civilistas, antigos e modernos. Ressalte-se que Tartuce e Simão, sabiamente, não confundem os planos do mundo jurídico – existência, validade, eficácia – e analisam os fatos jurídicos ligados à sucessão mortis causa com base nas concepções sobre o assunto expostas genialmente por Pontes de Miranda. Melhor inspirados não poderiam estar. Consciente de que não devo me alongar neste prefácio, vou abreviá-lo, para que o leitor chegue logo ao principal e sinta o enorme prazer e grande proveito da leitura deste livro admirável. Zeno Veloso Professor de Direito Civil e Constitucional. Doutor Honoris Causa da Universidade da Amazônia. Notório Saber reconhecido pela Universidade Federal do Pará.
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Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
Nota da Editora: o Acordo Ortográfico foi aplicado integralmente nesta obra.
SUMÁRIO
1. REGRAS GERAIS 1.1 Introdução 1.2 Da herança e de sua administração 1.2.1 Da natureza jurídica da herança – regras quanto à cessão de direitos hereditários 1.2.2 Da abertura do processo de inventário 1.3 Da vocação hereditária 1.3.1 Daqueles que herdam por sucessão legítima 1.3.2 Daqueles que testamentária
herdam
pela
sucessão
1.3.3 Daqueles não legitimados a suceder 1.4 Da aceitação e da renúncia à herança 1.4.1 Das regras de aceitação ou adição da herança 1.4.2 Das regras quanto à renúncia da herança 1.4.3 Das regras comuns à aceitação e à renúncia da herança 1.5 Dos excluídos da sucessão: da indignidade e da deserdação 1.5.1 Das regras gerais da indignidade e da deserdação
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1.5.2 Dos efeitos pessoais da indignidade e a dúvida quanto à deserdação 1.5.3 Da legitimidade para a propositura das demandas e seus prazos 1.5.4 Dos motivos para a exclusão 1.5.4.1 Dos motivos comuns à indignidade e à deserdação 1.5.4.2 Dos motivos exclusivos à deserdação 1.5.5 Do herdeiro aparente e da validade de seus atos 1.5.6 Do perdão ou remissão do indigno 1.6 Da herança jacente e da herança vacante 1.6.1 Conceitos de jacência e de vacância. Natureza jurídica 1.6.2 Do procedimento de jacência 1.6.3 Da declaração de vacância 1.6.4 Natureza jurídica da sentença de vacância. Questões de direito intertemporal 1.7 Da petição de herança 1.8 Resumo esquemático 1.9 Questões correlatas Gabarito 2. DA SUCESSÃO LEGÍTIMA 2.1 Considerações iniciais sobre a ordem de vocação hereditária 2.1.1 Conceitos fundamentais
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2.1.2 Duas regras fundamentais da sucessão legítima e suas exceções 2.1.2.1 Primeira regra fundamental da sucessão legítima 2.1.2.2 Segunda regra fundamental da sucessão legítima 2.1.2.3 Das exceções. O estudo específico do direito de representação 2.2 A sucessão legítima na linha reta descendente 2.2.1 Regras específicas e casos práticos de sucessão na linha descendente 2.2.2 Alterações e acréscimos sobre o tema. Análise do Projeto de Lei 699/2011 2.3 A sucessão legítima na linha reta ascendente 2.4
A sucessão legítima controvertidas
do
cônjuge.
Questões
2.4.1 Análise do Código Civil de 1916 2.4.2 O Código Civil de 2002 2.4.2.1 Requisitos necessários para que o cônjuge seja herdeiro – art. 1.830 do CC 2.4.2.2 A concorrência sucessória com os descendentes do morto – art. 1.829, I, do CC 2.4.2.2.1 Regime de bens do casamento. Meação x Sucessão 2.4.2.2.2 Regimes em que o cônjuge não concorrerá com os descendentes
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2.4.2.2.3 Regimes em que o cônjuge concorrerá com os descendentes 2.4.2.2.4 O quinhão do cônjuge que concorre com os descendentes 2.4.2.3 A concorrência sucessória do cônjuge com os ascendentes do morto – art. 1.829, II, do CC 2.4.2.3.1 Quando haverá concorrência entre cônjuge e ascendentes? 2.4.2.3.2 Qual o quinhão que receberá o cônjuge do falecido se concorrer com os ascendentes? 2.4.2.4 O cônjuge como herdeiro da totalidade dos bens 2.4.2.5 O projeto de alteração do art. 1.829 do atual CC: PL 699/2011 2.4.2.6 O direito de habitação do cônjuge supérstite. Análise do art. 1.831 do CC 2.5 A sucessão legítima do companheiro. Questões polêmicas 2.5.1 As leis da união estável – Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 2.5.2 O Código Civil de 2002 e a sucessão do companheiro 2.5.2.1 A massa patrimonial que herda o companheiro. Análise do art. 1.790, caput, do CC
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2.5.2.2 A concorrência sucessória do companheiro com os descendentes do falecido. O art. 1.790, I e II, do CC 2.5.2.3 A concorrência sucessória do companheiro com os ascendentes do falecido. O art. 1.790, III, do CC 2.5.2.4 A concorrência sucessória com os colaterais do falecido. O art. 1.790, III, do CC 2.5.2.5 A concorrência sucessória com o Município. O art. 1.790, IV, do CC 2.5.2.6 Os projetos de reforma do art. 1.790 do CC 2.5.2.7 A concorrência sucessória do companheiro com o cônjuge sobrevivente 2.5.2.8 O direito de habitação do companheiro sobrevivo 2.5.2.9 O debate quanto à inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC 2.6 a sucessão legítima na linha colateral 2.7 Os herdeiros necessários 2.7.1 Quem são os herdeiros necessários? 2.7.2 A legítima e a disponível 2.8 Resumo esquemático 2.9 Questões correlatas Gabarito 3. SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA
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3.1 Dos testamentos em geral e da capacidade de testar 3.1.1 Dos testamentos em geral 3.1.2 Da capacidade de testar 3.2 Das formas ordinárias de testamento e suas regras gerais 3.2.1 Do testamento público 3.2.2 Do testamento cerrado 3.2.3 Do testamento particular 3.3 Dos testamentos especiais 3.3.1 Do testamento marítimo e do testamento aeronáutico 3.3.2 Do testamento militar 3.4 A polêmica do testamento vital ou biológico 3.5 Dos codicilos 3.6 das disposições testamentárias 3.6.1 Regras interpretativas 3.6.2 Regras proibitivas e restritivas – da cláusula de inalienabilidade 3.6.3 Regras permissivas 3.7 Dos legados 3.7.1 Noções gerais 3.7.2 Das modalidades de legado 3.7.2.1 Legado de coisa alheia 3.7.2.2 Legado que só pertence em parte ao testador
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3.7.2.3 Legado de coisa singular 3.7.2.4 Legado de coisa localizada 3.7.2.5 Legado de crédito – legatum nominis 3.7.2.6 Legado de alimentos 3.7.2.7 Legado de usufruto 3.7.2.8 Legado de imóvel 3.7.3 Dos efeitos do legado 3.7.3.1 Do pagamento do legado – transmissão da posse e da propriedade do bem legado 3.7.3.2 Do pagamento do legado – legado de renda vitalícia ou de prestação periódica 3.7.3.3 Do pagamento do legado – legado de coisa incerta 3.7.3.4 Do pagamento do legado – da responsabilidade e das despesas 3.7.3.5 Da caducidade dos legados 3.8 Do direito de acrescer entre herdeiros e legatários 3.8.1 Conceito de direito de acrescer e regramentos básicos 3.8.2 Regras quanto ao direito de acrescer constantes do Código Civil em vigor 3.9 Das substituições testamentárias. conceitos iniciais e espécies 3.9.1 Da substituição vulgar ou ordinária 3.9.1.1 Regras gerais
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3.9.1.2 Das espécies de substituição vulgar ou ordinária 3.9.2 Da substituição fideicomissária 3.10 Da revogação do testamento, de sua nulidade e caducidade 3.10.1 Da nulidade absoluta ou relativa do testamento 3.10.1.1 Da nulidade absoluta do testamento 3.10.1.2 Da nulidade relativa ou anulabilidade do testamento 3.10.1.3 Da conversão do testamento nulo ou anulável 3.10.2 Revogação do testamento 3.10.3 Da caducidade do testamento 3.11 Da redução das disposições testamentárias e do rompimento do testamento 3.11.1 Conceito de testamentárias
redução
das
disposições
3.11.1.1 Das regras gerais de redução das disposições testamentárias 3.11.1.2 Das regras de redução em se tratando de bem imóvel 3.11.2 Do rompimento do testamento 3.12 Do testamenteiro 3.12.1 Espécies e regras gerais 3.12.2 Das funções do testamenteiro 3.12.3 Do direito à vintena
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3.12.4 Da extinção da testamentaria 3.13 Resumo esquemático 3.14 Questões correlatas Gabarito 4. DO INVENTÁRIO E DA PARTILHA 4.1 Do inventário. Conceito e procedimentos 4.2 Das espécies de inventário e seus procedimentos 4.2.1 Inventário judicial 4.2.1.1 Inventário judicial pelo rito tradicional – arts. 982 a 1.030 do CPC 4.2.1.2 Inventário judicial pelo rito sumário 4.2.1.3 Inventário judicial pelo rito do arrolamento comum 4.2.2 Inventário administrativa
extrajudicial
ou
por
via
4.3 Da pena de sonegados 4.4 Do pagamento das dívidas 4.5 Da colação ou conferência e redução das doações inoficiosas 4.5.1 Colação 4.5.2 Redução das doações inoficiosas 4.6 Da partilha 4.6.1 Partilha amigável ou extrajudicial 4.6.2 Partilha judicial 4.6.3 Partilha em vida
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4.7 Da garantia dos quinhões hereditários. a responsabilidade pela evicção 4.8 Da anulação, da rescisão e da nulidade da partilha 4.9 Dos pedidos de alvarás em inventário 4.10 Resumo esquemático 4.1 1 Questões correlatas Gabarito BIBLIOGRAFIA
REGRAS GERAIS
Sumário: 1.1 Introdução – 1.2 Da herança e de sua administração: 1.2.1 Da natureza jurídica da herança – regras quanto à cessão de direitos hereditários; 1.2.2 Da abertura do processo de inventário – 1.3 Da vocação hereditária: 1.3.1 Daqueles que herdam por sucessão legítima; 1.3.2 Daqueles que herdam pela sucessão testamentária; 1.3.3 Daqueles não legitimados a suceder – 1.4 Da aceitação e da renúncia à herança: 1.4.1 Das regras de aceitação ou adição da herança; 1.4.2 Das regras quanto à renúncia da herança; 1.4.3 Das regras comuns à aceitação e à
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renúncia da herança – 1.5 Dos excluídos da sucessão: da indignidade e da deserdação: 1.5.1 Das regras gerais da indignidade e da deserdação; 1.5.2 Dos efeitos pessoais da indignidade e a dúvida quanto à deserdação; 1.5.3 Da legitimidade para a propositura das demandas e seus prazos; 1.5.4 Dos motivos para a exclusão; 1.5.5 Do herdeiro aparente e da validade de seus atos; 1.5.6 Do perdão ou remissão do indigno – 1.6 Da herança jacente e da herança vacante: 1.6.1 Conceitos de jacência e de vacância. Natureza jurídica; 1.6.2 Do procedimento de jacência; 1.6.3 Da declaração de vacância; 1.6.4 Natureza jurídica da sentença de vacância. Questões de direito intertemporal – 1.7 Da petição de herança – 1.8 Resumo esquemático – 1.9 Questões correlatas – Gabarito.
1.1 INTRODUÇÃO Explica Euclides de Oliveira que “de origem latina, a palavra sucessão significa, dentre outras acepções, suceder, vir após, entrar no lugar de outrem. Dá a ideia de substituição de pessoa no desempenho de certa atividade, cargo ou função, como de uso na atuação política ou empresarial, ou da transmissão da propriedade de bens pela troca dos titulares, tal seu emprego nos negócios jurídicos, em que ao alienante sucede o adquirente”
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(OLIVEIRA, Euclides. Direito de herança..., 2005, p. 50). Realmente, o vocábulo sucessão tem uma pluralidade de significados para o Direito, já que qualquer transmissão de bens importa em sucessão. Desse modo, podemos dizer que há dois tipos de sucessão: a sucessão por ato entre vivos (inter vivos) e aquela por força da morte (causa mortis). A sucessão por ato entre vivos ocorre quando o acordo entre as partes transfere certos bens, como é comum nos contratos. A título de exemplo, é o que ocorre em negócios jurídicos bilaterais ou plurilaterais de cunho patrimonial, caso da doação, da permuta ou da compra e venda. Não é esse o tema de estudo no presente volume da coleção, eis que o Direito Contratual está analisado no Volume 3 desta série. Por outro lado, o chamado Direito das sucessões cuida da transmissão de bens realizada com o advento da morte de determinada pessoa. Lembra Clóvis Beviláqua que “sucessão em sentido geral e vulgar é a sequência de fenômenos ou fatos que aparecem uns após outros, ora vinculados por uma relação de causa, ora conjuntos por outras relações. A sucessão mortis causa ou hereditária é aquela em que há transmissão de direitos e obrigações de uma pessoa morta a outra sobreviva em virtude da lei ou da vontade do transmissor” (Direito das sucessões..., 1932, p. 15). De qualquer forma, não se pode confundir ou embaralhar a sucessão inter vivos com a sucessão mortis causa. Isso justifica a redação do art. 426 do CC atual, pelo qual não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva. O dispositivo em questão veda os pactos sucessórios ou pacta corvina.
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Assim sendo, por meio da sucessão mortis causa, que estudamos neste livro, ocorre a transmissão do patrimônio do falecido, ou seja, de suas relações jurídicas em geral, sejam elas ativas (créditos) ou passivas (débitos). Tal sucessão é chamada de sucessão hereditária. Juridicamente, costuma-se chamar o falecido, seja ele do sexo masculino ou do feminino, de de cujus, ou seja, daquele de quem a sucessão se trata (de cujus sucessione agitur). O Código Civil consagra duas espécies de sucessão causa mortis. A primeira delas é denominada sucessão legítima, pois os bens do falecido seguirão a ordem de vocação hereditária prevista em lei (art. 1.829 do CC). Diz-se legítima, pois decorre da lei, da norma jurídica. Entendemos que o termo sucessão legítima não é dos melhores, pois dá a falsa impressão de que haveria uma sucessão ilegítima. Entretanto, apesar da crítica, a expressão está cunhada historicamente e acompanha, há muito, a legislação brasileira. A segunda forma é a sucessão testamentária, cujos efeitos decorrem do ato de última vontade do falecido que deixa testamento ou codicilo (art. 1.786 do CC). No presente trabalho, o Capítulo 2 cuidará da sucessão legítima e o Capítulo 3, da testamentária. A sucessão será legítima se não houver ato de última vontade. Também será legítima a sucessão se esse ato de disposição for nulo (problema a atingir o plano da validade) ou sofrer caducidade (plano da eficácia), nos termos do art. 1.788 do CC. Na qualidade de negócio jurídico que é, o testamento será nulo ou anulável dependendo do vício que o atingir; e
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sofrerá caducidade quando a disposição testamentária, apesar de válida, não prevalecer por obstáculo superveniente ao momento da testificação (DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2005, v. 6, p. 267). Por fim, a sucessão será legítima se o testamento não abarcar todos os bens deixados pelo falecido (art. 1.788 do CC). Dessa forma, se o testador legar uma casa ao seu sobrinho João, todos os seus demais bens, bem como as suas dívidas, seguirão a ordem de vocação hereditária, sendo a sucessão legítima nesse caso. Esse último dispositivo citado sofre críticas da doutrina, pois, como bem explica Ricardo Fiuza, “o Código Civil incorre na erronia já verificada no Código Civil de 1916. Analisando o art. 1.575 do Código Civil de 1916 – que equivale à parte final do art. 1.788 – Clóvis Beviláqua expõe que sua redação é censurável por discrepar da técnica jurídica, e por não dar ao pensamento da lei toda a extensão necessária. O pecado técnico, diz Clóvis, está em usar o vocábulo nulo, para significar nulo e anulado; a insuficiência da expressão consiste em reduzir a ineficácia do testamento aos casos de caducidade e nulidade, deixando de mencionar, como se estivessem contidas nestas palavras, as ideias de ruptura e anulação” (FIUZA, Ricardo. O novo Código Civil e as propostas..., 2004, p. 289). Diante disso, propõe-se a seguinte redação ao artigo nos termos do Projeto de Lei 699/2011, antigo PL 6.960/2002, de autoria do Deputado Fiuza: “Art. 1.788. Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, romper-se, ou for inválido”.
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Mesmo sem a aprovação da proposição, a leitura a ser feita do dispositivo é exatamente a projetada, em decorrência da lógica do razoável. Ora, se o testamento não produzir efeitos, quer seja em razão de sua nulidade absoluta ou relativa, quer seja pelos fenômenos da caducidade ou do seu rompimento, a sucessão seguirá a ordem de vocação hereditária. Quanto à liberdade de testar, esta não é plena, sofrendo limitações de ordem pública. Isso porque determina o Código Civil que, havendo herdeiros necessários, o testador só pode dispor da metade de seus bens (art. 1.789 do CC). Trata-se do respeito à legítima, porção que, por força de lei, pertencerá aos herdeiros necessários, ou seja, aos descendentes, aos ascendentes e ao cônjuge sobrevivente (art. 1.845 do CC). Os herdeiros necessários são também chamados de herdeiros legitimários ou forçados. É de se ressaltar que a parte restante da herança é chamada de parte disponível e, portanto, pode ser objeto de testamento livremente. Dúvida comum da prática sucessória diz respeito à igualdade sucessória dos filhos. É possível que um pai deixe mais bens para um filho do que para o outro? A resposta é a seguinte: em se tratando da porção legítima, nula será qualquer disposição desigualando os herdeiros necessários. Já com relação à disponível, a vontade do morto é soberana, e este poderá deixar toda a porção disponível apenas para um de seus filhos. Assim, é comum verificar que pais preocupados com seu filho portador de necessidades especiais deixem para ele, além da legítima a que tem direito, toda a parte disponível. Também é comum que um pai que goste mais de um filho do que dos outros beneficie este com a parte disponível em detrimento dos demais.
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Com a morte da pessoa natural é aberta a sucessão. Observe-se que a abertura da sucessão não se confunde com a abertura do processo de inventário. A morte põe fim à personalidade jurídica material, aquela relacionada com os direitos patrimoniais, e nesse momento está aberta a sucessão. Mas qual a importância de saber em que momento ocorreu a morte? A primeira razão dessa importância é que a lei que regula a sucessão é aquela do momento do falecimento (art. 1.787 do CC). Sendo assim, se a pessoa faleceu até o dia 10 de janeiro de 2003, sua sucessão será regida pelo Código Civil de 1916, bem como pelas Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 no caso de uma união estável. Em reforço à norma em questão, dispõe o Código Civil de 2002 que: “Art. 2.041. As disposições deste Código relativas à ordem da vocação hereditária (arts. 1.829 a 1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto na lei anterior (Lei 3.071, de 1.º de janeiro de 1916)”. Sobre o tema, proferiu a 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decisão que contraria diretamente a norma em questão, no julgamento do Recurso especial n. 1.111.095. O caso é curioso e merece destaque. Em 1950, determinado casal, por meio de pacto antenupcial, adotou o regime de separação total de bens, e depois se contraiu núpcias. Em junho de 2001, o marido lavrou testamento público, que incluía a totalidade de seu patrimônio, nomeando como seu único herdeiro um sobrinho. Note-se que como o testamento foi celebrado na vigência do Código Civil de 1916, época em que o cônjuge não era herdeiro necessário, o negócio poderia produzir efeitos e a esposa nada receberia.
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Contudo, o óbito ocorreu em maio de 2004, ou seja, já na vigência do atual Código Civil, contando o cônjuge com a proteção da legítima (art. 1.845 do CC/2002). Por óbvio, que em se aplicando o que dispõe o art. 1.787 da atual codificação caberia ao Tribunal determinar a redução das disposições testamentárias deixando 50% da herança ao sobrinho (herdeiro testamentário) e 50% à esposa (herdeira necessária). Entretanto, a decisão surpreende por seus argumentos. Segundo o relator, Ministro Fernando Gonçalves, fixado o regime de separação de bens, em pacto antenupcial firmado sob a proteção do Código Civil de 1916, em estrita observância ao princípio da autonomia da vontade, lei alguma posterior poderia alterá-lo por se tratar de ato jurídico perfeito. Assim, entendeu o Superior Tribunal de Justiça que excepcionalmente pode ser afastada a regra do art. 1.787 do Código Civil de 2002 (data do julgamento: 01.10.2009). A decisão, em nossa opinião, revela grave equívoco e afronta literalmente o texto de lei. A vontade do morto não é absoluta e soberana. O pacto antenupcial não produz efeitos após a morte dos cônjuges. A autonomia privada sofre limitação na ordem pública e a liberdade de testar encontra na legítima seu grande freio. Em suma, não haveria qualquer razão para se afastar a incidência do atual Código Civil e garantir ao cônjuge sua participação na herança. Em nosso entender, a decisão não merece maior nota em razão de sua fragilidade conceitual. Pois bem, a segunda razão de importância relativa a quando ocorre a morte é que a legitimação para suceder se verifica no momento em que se abre a sucessão (art. 1.787
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do CC). O revogado Código Civil mencionava, em seu art. 1.577, a “capacidade para suceder”. Explica José Luiz Gavião de Almeida que “não se duvida da existência de ensinamento no sentido da diferenciação entre os termos capacidade e legitimação, estando aquela ligada à aquisição ou exercício de direito e esta à peculiar situação de alguém frente a certos bens, certas pessoas ou certos interesses. Melhor era a utilização da expressão capacidade, entendida ela em termos genéricos” (Código Civil..., 2003, p. 41). Contudo, em sentido contrário, apontam Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado o acerto do diploma ao substituir as expressões “capacidade para suceder” por “legitimação para suceder”. Explicam esses autores que “capacidade para suceder (leia-se capacidade de direito) é a aptidão genérica para a aquisição de direitos sucessórios por qualquer pessoa, existente ou futura, desde que designadas em lei ou testamento. Já a legitimação é a aptidão específica para receber a herança. Não a possui, por exemplo, o indigno, ainda que plenamente capaz, nem o cônjuge separado de fato há mais de dois anos, com a ressalva do disposto no art. 1.830” (Código Civil..., 2005, p. 909). Nesse fogo cruzado doutrinário, entendemos que em certos casos o Código Civil cuida da capacidade como algo genérico e em outros da legitimação como algo específico. Desse modo, ambas devem estar presentes no momento da abertura da sucessão. Dessa forma, na sucessão legítima – aquela que decore da lei e não de testamento –, com a morte do de cujus verifica-se a capacidade sucessória do herdeiro.
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Quanto à sucessão testamentária, duas observações são pertinentes. A primeira delas é que, se o herdeiro nomeado em testamento tinha legitimação para suceder na época em que o testamento foi feito, mas a perdeu no momento do falecimento, não será considerado herdeiro. Já aquele herdeiro que não tinha legitimação quando o testamento foi feito, mas a adquiriu posteriormente, receberá a herança normalmente. Não se pode confundir a capacidade de quem faz o testamento – capacidade testamentária ativa –, com a legitimidade ou capacidade do herdeiro em receber a herança – capacidade testamentária passiva. Assim, para avaliar a capacidade do testador (ativa), deve-se seguir a lei do momento da elaboração do testamento (art. 1.861 do CC). Prevê esse comando legal que “a incapacidade superveniente do testador não invalida o testamento, nem o testamento do incapaz se valida com a superveniência da capacidade”. Já a avaliação da capacidade ou legitimidade dos herdeiros nomeados em testamento se dá no momento da abertura da sucessão (art. 1.787 do CC). Um exemplo pode ajudar a esclarecer a questão. Determinado marido elabora um testamento deixando a parte disponível de seus bens à sua esposa e, posteriormente, em razão de esclerose, torna-se absolutamente incapaz. Em razão da doença, a esposa o abandona, vindo ele a falecer cinco anos depois do divórcio do casal. No caso descrito, o testador era capaz no momento da elaboração do testamento e sua incapacidade superveniente não retira a validade do testamento (art. 1.861 do CC). Sua esposa tinha legitimidade para receber a herança quando o testamento foi feito,
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mas perdeu-a no momento da abertura, pois já se encontrava divorciada. Não será herdeira, portanto. Só será herdeiro do falecido aquele que, no momento de sua morte estiver vivo. Ilustrando, se o filho morreu segundos antes de seu pai, não poderá ser seu herdeiro, por lhe faltar capacidade de direito decorrente da personalidade jurídica material. Como decorrência desse fato, não há relação sucessória entre os comorientes, pois, em caso de comoriência, impossível atestar a pré-morte (art. 8.º do CC: “Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos”). O mesmo deve ser dito se pais e filhos falecerem na mesma ocasião, ou seja, também incidirão os efeitos da comoriência. Nesse sentido, é interessante transcrever o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo: “Comoriência – Óbito de pais e filhos na mesma ocasião – Não transmissão de bens entre eles – Menor que não deixa bens, irmãos ou descendentes, apenas ascendentes – Abertura do inventário dos bens deixados pelos pais – Determinação judicial de abertura de inventário dos bens deixados pelo menor – Desnecessidade, entretanto – Inteligência do art. 11 do Código Civil de 1.916 (8.º, do novo) – Decisão reformada – Agravo provido” (TJSP, Agravo de instrumento 335.348-4/0, 10.ª Câmara de Direito Privado, Limeira, Rel. João Carlos Saletti, j. 31.08.2004, v.u.).
Sobre o tema, dúvida comum se dá no tocante à possibilidade de o herdeiro de um dos comorientes ser chamado a receber a herança do outro. Imaginemos um acidente de carro em que falecem A e seu filho B, sem
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possibilidade de prova da pré-morte, ocorrendo a comoriência. A tem como descendentes seu filho C e seu neto D, que é filho de B. Como se divide a herança? O quadro a seguir demonstra a situação fática relatada.
Nesse caso, como explicam Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira, D receberia a herança de qualquer maneira “tanto no caso de premoriência de A (pois metade de seus bens se transmitiria a B, e deste a D), como na situação inversa, de falecimento anterior de B (D sucederia por representação de B). Em nenhuma hipótese haveria sucessão exclusiva de C (que só teria direito à metade da herança), de sorte que irrelevante a verificação de comoriência, na espécie, para fins sucessórios” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 48). Em resumo, D receberia 50% e C os outros 50%.
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Também é esse o entendimento de Álvaro Villaça Azevedo e Gustavo René Nicolau que concluem: “o raciocínio que se impõe é o de que – na hipótese de seu pai falecer antes de seu avô – o neto já tem direito de representação, quanto mais se o pai faleceu junto com o avô e o resultado prático se mantém novamente” (Código Civil..., 2007, p. 42). Os doutrinadores transcrevem decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo nesse sentido: “Investigação de paternidade cumulada com petição de herança. Extinção do processo quanto à petição de herança. Reconhecida a comoriência entre os supostos pai e avó. Transmissão inocorrida de bens. Necessidade de declaração da filiação para, por representação, pleitear direito à herança da suposta avó. Pedido juridicamente possível. Inexistência de interesse processual. Recurso improvido” (TJSP, Agravo de instrumento 246.920-4/8-Pedreira, 4.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Carlos Stroppa, 12.09.2002, v.u.).
Sobre o pagamento de impostos, formulamos pergunta a Euclides de Oliveira que, gentilmente e por e-mail, nos respondeu o seguinte: “em se tratando de comoriência, a transmissão dá-se direta ao neto D. Haverá incidência do imposto sobre a transmissão de bens imóveis causa mortis apenas uma vez, como se fosse sucessão por representação de B. Para a dupla incidência do tributo seria preciso que houvesse prova da pós-moriência do neto D”. Outra razão de importância quanto ao momento da morte é que, ocorrendo esta e sendo aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784 do CC). Este é o princípio da saisine, um dos mais importantes do Direito Civil.
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A origem da expressão se encontra no Direito Gaulês, ou seja, nos primórdios do Direito francês. Explicam Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado que “le mort saisit le vif, ou seja, com a morte, a herança transmite-se imediatamente aos sucessores, independentemente de qualquer ato do herdeiro. A aceitação da herança tem natureza confirmatória” (Código Civil..., 2005, p. 907). As origens históricas do instituto são minuciosamente ensinadas por Eduardo de Oliveira Leite, que afirma ser “regra costumeira que era expressa pelo adágio aceito desde o século XIII em todos os lugares: ‘Le mort saisit le vif’ (O morto prende o vivo) ou por uma forma um pouco menos lapidar: ‘Le mort saisit le vif, son hoir pel plus proche, habile à lui succéder’ (O morto prende o vivo, seu herdeiro mais próximo, hábil a lhe suceder). É um dos exemplos mais antigos de normas pertencendo ao direito comum costumeiro” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 8). Ocorre, no momento da morte, a delação – também denominada de devolução sucessória ou delação hereditária –, segundo a qual os bens passam do patrimônio do falecido ao patrimônio dos herdeiros, os novos titulares. É o período que medeia entre a abertura da sucessão e a aceitação ou renúncia da herança (BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual..., 2004, v. 4, p. 186). Lembra Eduardo de Oliveira Leite que “o direito impõe, através de uma ficção jurídica, a transmissão da herança, garantindo a continuidade na titularidade das relações jurídicas do defunto (...). Na impossibilidade de se admitir que um patrimônio fique sem titular, o direito sucessório atinge, via transmissão imediata, a permanência da propriedade na pessoa dos herdeiros” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 5).
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Aponta José Luiz Gavião de Almeida o acerto da redação do art. 1.784 do atual Código Civil, ao excluir as expressões “domínio e posse”, contidas no art. 1.572 do Código Civil revogado, pois “poderia o autor da herança deixar, por testamento, bens sobre os quais não tinha a propriedade, posto de terceiros ou de um dos beneficiados. Nesse caso, não se poderia entender que esses bens, que poderiam compor a herança, seriam transmitidos imediatamente após a morte do de cujus a seus herdeiros” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 30). Nesse sentido, pode o falecido deixar como legado um bem que não lhe pertence, mas que pertence a terceiros. Imaginemos a seguinte disposição: “Deixo meus bens a meu sobrinho João, que deverá entregar seu carro a meu sobrinho José”. Trata-se da hipótese de sublegado, na qual o beneficiado pela deixa é chamado de sublegatário (item 3.6.2.1 da presente obra). Percebe-se, nesse contexto, que é possível que o testador determine ao herdeiro a entrega de bem do próprio herdeiro ao legatário. Como não tem o testador poder de legar bem alheio, essa disposição, em princípio, é ineficaz, pois o herdeiro terá possibilidade de decidir se entrega ou não a coisa legada. Trata-se de decisão que decorre do princípio da autonomia privada, não podendo o herdeiro ser constrangido a entregar o bem que lhe pertence. Se o herdeiro aceitar cumprir a determinação, recebe a herança do falecido; caso contrário, entende-se que renunciou. No caso descrito, a posse do bem que pertence a um terceiro não se transfere com o falecimento do de cujus ao legatário. Sobre a não transmissão automática da posse da herança, deve-se frisar que, no caso de legado, ela também
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não ocorre. Enquanto, na qualidade de proprietário, a posse indireta do bem é transmitida ao legatário, a posse direta do bem não é transmitida automaticamente com o falecimento. A posse direta permanece com o herdeiro até que o legatário exerça o direito de pedir. Não pode o legatário entrar por autoridade própria na posse da coisa legada, ou seja, deve pedir ao herdeiro e, quando autorizado por ele, entrará na posse (item 3.6.3.1 deste livro). Observe-se que no sistema sucessório atual não se faz necessária a transcrição no registro de imóveis para que se verifique a transmissão da propriedade, pois o Código insistiu “na sistemática da transmissão instantânea da propriedade dos bens hereditários aos herdeiros, legítimos ou testamentários. Mas não repetiu a disposição que estabelecia que os atos cuja transcrição era obrigatória só transferia a propriedade com ela. Assim, a discussão antes existente sobre o momento da transmissão da propriedade, criada com a vinda da Lei de Registros Públicos, foi solucionada pelo novo Código Civil” ( ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil..., 2003, p. 32). Isso não significa dizer que a partilha dos bens não deva ser transcrita no Registro de Imóveis por força do art. 167, I, 24 da Lei 6.015/1973. Na verdade, isso apenas significa que não se discute mais qual o momento de transmissão da propriedade: o da morte do de cujus ou o do registro. A transmissão, agora e sem mais dúvidas, ocorre com a morte. Sendo assim, se a posse dos bens, em regra, é transmitida desde logo aos herdeiros, poderão estes se valer das ações possessórias para a proteção dos bens herdados. A exemplificar a prática, poderão ingressar com interdito
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proibitório em caso de ameaça de invasão de terras; com ação de manutenção de posse em casos de turbação ou atentados repentinos à posse; ou com ação de reintegração de posse em caso de invasão consolidada, isto é, de esbulho possessório. A jurisprudência do STJ, aliás, já entendeu que é possível a propositura de ação possessória do espólio contra um dos herdeiros, ou mesmo de um herdeiro contra o outro, sendo interessante transcrever a ementa de um desses julgados: “Civil e processo civil. Sucessão. Ação de reintegração de posse. Espólio contra herdeiro. Em linha de princípio, pode a viúva inventariante, em seu nome ou em nome do espólio, promover ação de reintegração de posse contra herdeiro que praticar esbulho em bem da herança, mas essa regra deve ser interpretada com temperamento. Pelas peculiaridades da espécie, a ocupação de imóvel do espólio, por um dos herdeiros, não configura esbulho. Recurso conhecido e provido” (STJ, REsp 515175/RJ (200300502138), 513783 Recurso Especial, 4.ª T., j. 02.09.2003, DJ 03.11.2003, p. 322, RSTJ 175/457, RT 821/207).
Superado esse ponto, determina o art. 1.785 da atual codificação privada que: “A sucessão abre-se no lugar do último domicílio do falecido”. Sobre o tema, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro assim decidiu: “É competente para o processamento do inventário o foro em que a autora sempre manteve como seu domicílio, sendo que a constituição de residência temporária em outra Comarca não acarreta o deslocamento da competência. A competência para o processo sucessório é relativa, não podendo ser arguida de ofício” (TJRJ, Agravo de
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instrumento 2007.002.36145, 11.ª Câmara Cível, Des. José C. Figueiredo, j. 09.01.2008). Entretanto, pode ocorrer, conforme lecionam Sílvio de Salvo Venosa e Débora Gozzo, “de o falecido ter vários domicílios, isto é, várias residências, onde pode ser encontrado (CC, art. 70). Se esse for o caso, processar-se-á o inventário em qualquer deles, p. ex., no que for mais conveniente aos interesses dos herdeiros ou do consorte supérstite ou naquele em que se deu o óbito” (Comentários..., 2003, p. 37). O Código de Processo Civil complementa a regra em análise, prevendo que o foro do domicílio do autor da herança, no Brasil, é o competente para o inventário, a partilha, a arrecadação, o cumprimento de disposições de última vontade e todas as ações em que o espólio for réu, ainda que o óbito tenha ocorrido no estrangeiro (art. 96 do CPC). Porém, será competente: o foro da situação dos bens, se o autor da herança não possuía domicílio certo; e o foro do lugar em que ocorreu o óbito, se o autor da herança não tinha domicílio certo e possuía bens em lugares diferentes (art. 96, parágrafo único, do CPC). Lembre-se que o Código Civil admite o chamado domicílio eventual, também denominado habitação ou moradia, ou seja, o domicílio da pessoa que não tenha residência fixa será o local onde for encontrada (art. 73 do CC). São os casos do circense, do nômade, do cigano ou do peregrino. Nessas hipóteses, aplicando-se a última regra processual transcrita, o domicílio será aquele do lugar dos bens. Por fim, se o morto tiver bens em mais de um domicílio, o foro será o do lugar em que se encontrava quando morreu (art. 96, II, do CPC).
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O art. 96 do CPC contém regra de competência territorial de foro e não de juízo, como explica a jurista Patricia Miranda Pizzol (Código de Processo Civil interpretado, 2007, p. 265). E procedente é a crítica de Celso Agrícola Barbi a respeito do inciso II do art. 96, pois o legislador escolheu “um lugar onde pode não estar situado nenhum dos bens. Preferível teria sido estabelecer o foro concorrente, em qualquer dos lugares onde houver bens do falecido” (Comentários..., 1999, v. 1, p. 321). O último dispositivo material das disposições gerais do direito das sucessões trata da sucessão do companheiro, o polêmico e tão criticado art. 1.790 do CC. A sua localização topológica no Código Civil suscita debates intermináveis na doutrina, mas não verificaremos a questão por hora. Entendemos que a sucessão do companheiro merece tratamento junto à ordem de vocação hereditária e, assim, será estudada quando do exame da sucessão legítima (Capítulo 2).
1.2 DA HERANÇA E DE SUA ADMINISTRAÇÃO Logo após as disposições gerais sobre o Direito Sucessório, o Código Civil de 1916 continha um capítulo cuidando da transmissão da herança. O novo diploma civil, por outro lado, traz agora um capítulo denominado “Da Herança e sua Administração”. Nesse capítulo, o atual Código privado informa a natureza jurídica da herança, bem como especifica as regras de sua transmissão. Vejamos essas regras importantes, de forma pontual.
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1.2.1 Da natureza jurídica da herança – regras quanto à cessão de direitos hereditários Sabe-se que a sucessão aberta é considerada um bem imóvel por força de lei, ou seja, um bem imóvel por determinação legal (art. 80, II, do CC), ainda que a universalidade em questão seja composta apenas por coisas móveis, tais como veículos, dinheiro, ações etc. Isso significa que, na qualidade de bem imóvel, a transmissão da herança exige escritura pública (art. 1.793, caput, do CC), sob pena de nulidade absoluta do ato de disposição, pois preterida uma solenidade que a lei considera essencial para a validade do ato (art. 166, IV, do CC). Vale dizer ainda que é imprescindível a outorga do cônjuge do disponente se o regime de casamento não for o da separação absoluta (art. 1.647, I, do CC). A cessão do quinhão hereditário pode ser onerosa ou gratuita. A herança também constitui uma universalidade ou universidade de direito (art. 91 do CC), sendo considerada indivisível também por força de lei, pois, conforme o art. 1.791 do atual Código, “a herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros”. Por se tratar de bem indivisível, os herdeiros serão condôminos até que ocorra a partilha. Como explica Washington de Barros Monteiro, “o herdeiro tem direito sobre uma parte ideal do acervo hereditário, que só na partilha será definido e individualizado. Enquanto se processa o inventário dos bens deixados, ativos e passivos, essa massa deve ficar sob a administração de alguém, o administrador provisório e depois o inventariante, que velará pela sua guarda e manutenção até que, pela partilha, seja objeto de divisão, concretizando-se o quinhão de cada um, que
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receberá então os bens que lhe tocaram” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., 2003, v. 6, p. 34). Em complemento, ensina-nos o mestre Silvio Rodrigues que, apesar do princípio da saisine, “o inventariante conserva a posse direta dos bens do espólio, os herdeiros adquirem a posse indireta. Ambos ostentam simultaneamente a condição de possuidores” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 15). Nesse sentido, decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: “1. A abertura da sucessão e a transmissão da herança aos herdeiros ocorre no momento da morte do titular do patrimônio. É nesse momento que nasce a indivisão do monte hereditário, até a partilha final, o que significa dizer que todos os herdeiros têm os mesmos direitos e deveres em relação ao todo. 2. A função do inventariante consiste na administração dos bens do espólio, não lhe sendo admitida a venda de bem de qualquer espécie sem oitiva dos interessados e autorização judicial, consoante determina o art. 992, I, do CPC” (TJRJ, Apelação Cível 2007.001.64225, Rel. Des. Benedicto Abicair, j. 23.01.2008).
Assim sendo, os frutos produzidos pelos bens da herança pertencerão a todos os herdeiros de acordo com seus respectivos quinhões, sendo certo que todos deverão arcar com as despesas de manutenção dos bens comuns na mesma proporção. Isso porque há um condomínio entre os herdeiros, aplicando-se a regra que enuncia a divisão igualitária em casos tais, prevista no art. 1.315 do CC. Outra decorrência da indivisibilidade e do desdobramento da posse é que cada um dos condôminos poderá exigir a coisa de quem injustamente a detenha. É o que se denomina direito de sequela, que é garantido a todos os herdeiros.
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Em decorrência ainda da indivisibilidade da herança, podemos chegar a duas importantes conclusões. A primeira delas é que é ineficaz a cessão pelo coerdeiro do seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente (art. 1.793, § 2.º, do CC). Isso significa que se o herdeiro alienar uma casa que compõe a herança (note-se que ele não está cedendo uma universalidade – seu quinhão – mas um bem determinado), a alienação não produzirá efeitos, ou seja, será ineficaz. Não se pode falar, aqui, em nulidade absoluta ou relativa (plano da validade), mas apenas que a lei lhe retira os efeitos (plano da eficácia). Com a partilha, se o bem tocar ao herdeiro que fez a cessão, esta produzirá efeitos normalmente. Não há que se falar, ainda, na necessidade de autorização judicial para tanto, mas será essencial a escritura pública, sob pena de nulidade de ato (art. 1.793, caput, do CC). A segunda conclusão é que, antes da partilha, será ineficaz a disposição, por qualquer herdeiro e sem prévia autorização do juiz da sucessão, de bem componente do acervo hereditário, se ainda pendente a indivisibilidade (art. 1.793, § 3.º, do CC). Em uma primeira leitura, parece que a redação do art. 1.793, § 3.º, repete o § 2.º do mesmo dispositivo (“É ineficaz a cessão, pelo coerdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente”). Explica José Luiz Gavião de Almeida que se o dispositivo legal fosse mais bem interpretado encerraria determinação diversa, porque “inicialmente, então, veda que mesmo o herdeiro único faça disposição sobre bem certo, enquanto não ultimado inventário, pois até esse ato
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permanece a indivisibilidade da herança. A esse entendimento leva-nos o art. 1.791, ao dizer que a herança se defere como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. A contrario senso, mesmo que apenas um seja o herdeiro, a herança também se transfere como um todo único” (Código Civil..., 2003, p. 88). Concordamos com as palavras do Desembargador paulista e Professor da USP. Em outras palavras, pelo dispositivo em comento, é essencial à eficácia da alienação a autorização judicial, além da forma pública para sua validade. Nesse sentido, esclarecem Jones Figueirêdo Alves e Mario Luiz Delgado que “a alienação de bem determinado que compõe o acervo hereditário, pode ser feita pelo inventariante, desde que haja prévia autorização do juiz da sucessão (CPC, art. 992, I)” (Código Civil..., 2005, p. 915). Pois bem, dessas conclusões, podemos chegar ao seguinte resumo esquemático, o que facilita a visualização da matéria: – Se o herdeiro desejar transferir o seu quinhão hereditário (parte da universalidade), que significa transferir as dívidas e os bens recebidos, deverá fazê-lo por forma pública, não necessitando de autorização judicial para que essa disposição produza efeitos. – Se o herdeiro resolver transferir apenas seu direito sobre um bem determinado, a cessão será ineficaz até a partilha, produzindo efeitos se o bem tocar ao herdeiro que fez a disposição.
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– Se o herdeiro resolver alienar o bem em si, poderá fazê-lo desde que obtenha autorização judicial, sob pena de ineficácia do ato. Não se trata de cessão de herança, mas de venda de um bem determinado do acervo patrimonial.
Sobre a extensão da cessão dos direitos hereditários, o Código Civil determina que esses direitos, conferidos ao herdeiro em consequência de substituição ou de direito de acrescer, presumem-se não abrangidos pela cessão feita anteriormente (art. 1.793, § 1.º). Isso significa que caso o herdeiro cedente receba mais direitos em razão do direito de acrescer ou da substituição testamentária (itens 3.7 e 3.8), após ocorrer a cessão, o cessionário, em princípio, não receberá a parte acrescida ou o que recebeu em substituição. Acreditamos que a norma é perfeitamente justa, pois como recebeu o herdeiro cedente mais direitos apenas após efetivada a cessão, ou seja, direitos que não tinha na época da transmissão, tais direitos ao cedente pertencerão, salvo previsão do contrato de cessão em sentido contrário. A cessão não poderia englobar direitos que o próprio cedente desconhecia. O direito de acrescer e a substituição são exceções à regra de que se vários são os herdeiros ou legatários beneficiados por uma disposição testamentária, a renúncia ou exclusão de um deles significa que o seu quinhão será dividido entre os herdeiros legítimos. A matéria ainda será por nós tratada em momento oportuno. Cumpre destacar que o Código Civil de 2002 criou uma disposição expressa sobre o direito de preferência entre os coerdeiros, qual seja, a determinação pela qual o
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coerdeiro não poderá ceder a sua quota hereditária a pessoa estranha à sucessão, se outro coerdeiro a quiser, tanto por tanto (art. 1.794 do CC). A regra é decorrência natural da indivisibilidade e guarda forte relação com a questão da venda de bem indivisível em condomínio, prevista na disciplina do contrato de compra e venda (art. 504 do CC). Como já escreveu um dos coautores da presente obra, “Em se tratando de coisa indivisível, os condôminos sofrem certas limitações impostas pelo direito no tocante à alienação de sua parte na coisa comum. A razão decorre do princípio pelo qual o condômino de coisa divisível permanece no regime de condomínio porque quer, pois a qualquer tempo pode manejar a ação divisória e colocar um fim ao condomínio. Já para o condômino de coisa indivisível não há essa possibilidade: a única forma de extinção do condomínio é a alienação da coisa comum, para que o valor apurado seja repartido pelos coproprietários. Como o Código Civil pretende facilitar a extinção de condomínio, e todas as regras que existem são nesse sentido, pois o condomínio é a mãe das discórdias (condominium mater rixarum est), não pode o condômino de coisa indivisível vender sua parte sem dar direito de preferência aos outros condôminos (CC, art. 504). Com a preferência (a lei utiliza a expressão tanto por tanto), o Código facilita a extinção do condomínio” (SIMÃO, José Fernando. Direito civil..., 2005, v. 5, p. 106). Vale dizer que a preferência existe nos casos de dação em pagamento e de venda do quinhão. Nos casos de alienação gratuita ou de permuta, essa preferência não existe. Não sendo essa preferência respeitada, o coerdeiro preterido terá direito à adjudicação do quinhão, e depositando o preço, haverá para si a quota cedida a estranho, se
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o requerer até 180 dias após a referida transmissão (art. 1.795 do CC). Observe-se que fixa a lei idêntico prazo previsto na venda de bem indivisível em que houve preterição do condômino, com a ressalva de não mencionar o início de sua contagem, o que gera enorme controvérsia, conforme apontado no Volume 3 desta coleção (art. 504 do CC). Nos dois casos, contudo, o prazo é decadencial, pois a ação de adjudicação tem natureza constitutiva (critério científico de Agnelo Amorim Filho – RT 300/7 e 744/725). Nesse mesmo sentido, quanto ao art. 1.795 do CC, posicionam-se Zeno Veloso (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.490), Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado (Código Civil..., 2005, p. 1.796) e Eduardo de Oliveira Leite (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 87). De pronto, surge a seguinte questão: o prazo se inicia com a alienação do quinhão ou quando dela têm ciência os coerdeiros preteridos? No tocante à venda, ao estudar o art. 504 do Código Civil a doutrina se divide. Seguindo a noção jurídica de decadência, o prazo se iniciará quando da venda da coisa ao estranho, e não sofrerá suspensão ou interrupção, segundo Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil..., 2005, v. III, p. 52). Para Carlos Roberto Gonçalves, em se tratando de bens imóveis, o prazo se inicia com o registro imobiliário, em razão da publicidade (Direito civil..., 2004, v. III, p. 219). E com relação à cessão do quinhão hereditário? A doutrina silencia-se sobre a questão. Apenas José Luiz Gavião de Almeida afirma que “nem se poderia considerar termo inicial do prazo para que fizessem valer seus
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direitos uma data da qual não tiveram ciência. Os prazos decadenciais, e o disposto no art. 1.795 é um deles, faz perecer o direito de agir pela inércia de seu titular. Mas não se pode entender desidioso aquele que não teve oportunidade de defender seus interesses” (Código Civil..., 2003, p. 91). Assim, entende o autor que o prazo se inicia quando o juiz do inventário determinar a manifestação dos coerdeiros com relação à cessão. O coautor desse livro, Flávio Tartuce, também pensa dessa forma, particularmente diante do princípio da boa-fé objetiva, que valoriza a informação e a ciência dos atos pelas partes envolvidas. Mas a questão é polêmica, pois em regra a decadência surge com o próprio direito potestativo a que se refere. Assim, em mais de um dispositivo de lei o prazo decadencial se inicia com a celebração do negócio jurídico e não com o seu conhecimento. Como exemplo de prazo decadencial que se inicia com sua celebração, pode-se citar o prazo para anulação do negócio jurídico em que haja vício do consentimento (art. 178 do CC), salvo no caso da coação e de atos de incapazes. Por isso, entende o coautor José Fernando Simão que contar o prazo antes da ciência do coerdeiro seria regra muito injusta, pois haveria a decadência extinguindo direitos, sem que houvesse inércia do titular. Por outro lado, em se tratando de exercício de direito potestativo, pretende a lei uma rápida solução, sob pena de criar insegurança jurídica. Sem prejuízo dessas polêmicas, caso haja mais de um herdeiro interessado no quinhão, entre eles se distribuirá o quinhão cedido, na proporção das respectivas quotas hereditárias (art. 1.795, parágrafo único, do CC). É interessante notar que a lei não cria critérios de desempate entre os coerdeiros que queiram exercer suas preferências.
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Todos os interessados ficam com o quinhão na proporção de sua participação na herança. Em reforço, é importante dizer que a lei garante a preferência apenas entre os coerdeiros. Já para o legatário não haveria o direito de preferência, pois este sucede a título singular, recebendo um bem destacado e individualizado da herança. Dessa forma, a alienação do bem legado não gera o tão repudiado condomínio que a norma jurídica pretende evitar. Por outro lado, bem pondera José Luiz Gavião de Almeida que, “se forem duas pessoas beneficiadas com um único legado, melhor que, na cessão de direitos de um, tenha o outro preferência. Da mesma forma, evita-se a formação de comunhão entre estranhos. Se o art. 1.795 não justificasse a aplicação do direito de preferência, por aplicação analógica, justificaria a prioridade o art. 1.322 do mesmo Código, regra geral de preferência entre os condôminos” (Código Civil..., 2003, p. 90). Realmente, em se tratando de legado de bem indivisível, as regras referentes à preferência e as suas consequências devem ser respeitadas. Se o bem for divisível, não há que se falar em preferência, por razões óbvias. Encerrada a discussão dessa intrincada matéria, passaremos ao estudo da abertura do processo de inventário. 1.2.2 Da abertura do processo de inventário Dispõe o art. 1.796 da atual codificação privada que decorridos 30 dias após a abertura da sucessão, instaurarse-á o inventário do patrimônio hereditário perante o juízo competente no lugar da sucessão, para fins de liquidação e, quando for o caso, de partilha da herança. Com sua
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habitual erudição, Sílvio de Salvo Venosa diz que “a palavra inventário decorre do verbo invenire, do latim: encontrar, achar, descobrir, inventar e do verbo inventum: invento, invenção, descoberta. A finalidade do inventário é, pois, achar, descobrir, descrever os bens da herança, seu ativo e seu passivo, herdeiros, cônjuge, credores, etc.” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 46). A relação feita pelo autor paulista em tom didático serve para elucidar o conteúdo do inventário. Em sentido contrário, determina o Código de Processo Civil que o inventário seja aberto no prazo de 60 dias (Lei 11.441/2007). O Estatuto Processual determina, ainda, o encerramento do inventário em doze meses (nova redação do art. 983 do CPC determinada pela Lei 11.441/2007). Destaque-se que, com a edição da lei retromencionada revogou-se o parágrafo único do dispositivo processual em questão, que previa a possibilidade de o juiz, a requerimento do inventariante, dilatar esse prazo se houvesse motivo justo. Com a nova redação, pode o juiz, tanto de ofício quanto a requerimento das partes, dilatar os prazos em questão. O Código Civil de 2002, de maneira precavida, deixa de mencionar o prazo de encerramento, mesmo porque, dependendo da Comarca, do volume de trabalho forense e das sempre presentes greves do Poder Judiciário, o prazo pode ultrapassar em muito os doze meses. Ademais, a fixação de prazo final se revela inútil, pois não há sanção prevista para o seu descumprimento, salvo a eventual remoção do inventariante, caso ocorra desídia no cumprimento de suas funções (art. 995, II, do CPC).
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Mesmo assim, surge uma dúvida que pode ser formulada: o descumprimento do prazo de 60 dias para a abertura de inventário é acompanhado de sanção? De início, também não haverá sanção civil, mas permite-se que, com o atraso, qualquer interessado peça a abertura (art. 988 do CPC), ou mesmo que o inventário seja aberto de ofício pelo juiz (art. 989 do CPC). O dever de requerer o inventário é daquele que está na posse e na administração dos bens do espólio, que é denominado administrador provisório (art. 987 do CPC). Todavia, também têm legitimidade para requerer a abertura de inventário as seguintes pessoas, conforme o art. 988 do CPC: I – o cônjuge supérstite; II – o herdeiro; III – o legatário; IV – o testamenteiro; V – o cessionário do herdeiro ou do legatário; VI – o credor do herdeiro, do legatário ou do autor da herança; VII – o síndico da falência do herdeiro, do legatário, do autor da herança ou do cônjuge supérstite; VIII – o Ministério Público, havendo herdeiros incapazes; e IX – a Fazenda Pública, quando tiver interesse.
Caso o atraso na abertura do inventário seja superior a sessenta dias, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira explicam que isso “acarreta acréscimo dos encargos fiscais, pela incidência de multa de 10% sobre o imposto a
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recolher, além dos juros de mora. Se o atraso for superior a 180 dias, a multa será de 20%” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 329). Previsões nesse sentido constam do art. 21, I, da Lei Estadual paulista 10.705/2000, que dispõe sobre a instituição do imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos – ITCMD. É de se observar que essa penalidade tributária é prevista para as sucessões que se derem apenas no Estado de São Paulo. A título de exemplo, em Minas Gerais, o imposto é regido pela Lei Estadual 14.941/2003. No Estado do Rio de Janeiro, é regido pela Lei Estadual 11.427/1989, com as suas posteriores modificações. No Maranhão, é disciplinado pela Lei Estadual 4.912, de 29 de dezembro de 1988. Até que o inventariante preste o compromisso, nos termos do art. 990, parágrafo único, do Estatuto Processual, continuará o espólio na posse do administrador provisório (art. 985 do CPC). Esse administrador representa ativa e passivamente o espólio, sendo obrigado a trazer ao acervo os frutos que desde a abertura da sucessão houver percebido. Além disso, o mesmo tem direito ao reembolso das despesas necessárias e úteis realizadas na administração, respondendo pelo dano a que, por dolo ou culpa, der causa quando de sua atuação. Tudo isso consta do art. 986 do CPC. Percebe-se por todas essas regras que antes da assunção da inventariança os bens do espólio não podem ficar abandonados à própria sorte, razão pela qual o Código de Processo Civil criou a figura do administrador provisório, com poderes temporários, para zelar pelo espólio e representá-lo, até a nomeação do inventariante e seu correspondente compromisso. Terá o administrador poderes
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de representação do espólio, sendo que a sua administração se encerra com o início da inventariança. Pois bem, a dúvida que surge é: quem será esse administrador provisório? Coube ao Código Civil indicar a quem caberá essa administração provisória dos bens, de forma sucessiva, conforme art. 1.797, a saber: 1.º) ao cônjuge ou companheiro, se com o outro convivia ao tempo da abertura da sucessão; 2.º) ao herdeiro que estiver na posse e administração dos bens, e, se houver mais de um nessas condições, ao mais velho; 3.º) ao testamenteiro; 4.º) a pessoa de confiança do juiz, na falta ou escusa das indicadas nos incisos antecedentes, ou quando tiverem de ser afastadas por motivo grave levado ao conhecimento do juiz.
Sobre o tema, é interessante a decisão do Tribunal do Rio de Janeiro no tocante ao companheiro homoafetivo que foi admitido como administrador provisório, conferindo-lhe a prerrogativa de requerer o inventário, mas não a qualidade de herdeiro: “Verifica-se que o autor, ora Apelante, encontra-se na posse e administração dos bens do espólio, uma vez que o falecido, conforme o declarado à fls. 24/25 deixou 50% de um bem imóvel, sendo o apelante proprietário dos outros 50%, de acordo com a escritura de compra e venda constante à fls. 27/28. Assim, tem-se que o Apelante figura como administrador provisório, art. 987 do CPC. Tal condição lhe confere a prerrogativa de requerer o inventário e a partilha. Assim, ao
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contrário do decidido na d. sentença, tem-se que o autor tem legitimidade para requerer a abertura do inventário. Contudo, tal não lhe confere a qualidade de herdeiro, eis que tal condição não pode ser alcançada diante dos termos do § 3.º do art. 226 da CF. Correto o julgado neste ponto. Sentença que se anula, determinando-se o prosseguimento do feito. Recurso provido, em parte” (TJRJ, Apelação Cível 2006.001.09399, Rel. Des. Ronaldo Rocha Passos, j. 11.03.2008). O administrador provisório, em princípio, será aquele que estiver na posse da herança, pois não se trata de pessoa indicada pelo juiz, mas sim em razão de situação de fato. Nesse sentido, afirma o processualista Antonio Carlos Marcato “que é lícito concluir que seu exercício independa da nomeação judicial. O encargo será normalmente atribuído àquela pessoa que já esteja na posse e na administração dos bens integrantes do espólio” (Código de Processo Civil..., 2004, p. 2.480). Entre os civilistas, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira entendem que a ordem prevista no art. 1.797 do CC é apenas de preferência e deve ser seguida pelo juiz, sucessivamente (Inventários e partilhas..., 2006, p. 344). Tal premissa foi confirmada recentemente pelo STJ, ao atribuir a condição ao cônjuge supérstite. O julgado foi assim publicado no Informativo n. 432 daquele Tribunal Superior: “Representação judicial. Administrador provisório. A Turma reiterou o entendimento de que, enquanto não nomeado inventariante e prestado o compromisso (arts. 985 e 986 do CPC), a representação ativa e passiva do espólio caberá ao administrador provisório, o qual, usualmente, é o cônjuge supérstite, uma vez que detém a posse direta e a administração dos bens hereditários (art. 1.579 do CC/1916,
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derrogado pelo art. 990, I a IV, do CPC e art. 1.797 do CC/ 2002). Assim, apesar de a herança ser transmitida ao tempo da morte do de cujus (princípio saisine), os herdeiros ficarão apenas com a posse indireta dos bens, pois a administração da massa hereditária será, inicialmente, do administrador provisório, que representará o espólio judicial e extrajudicialmente, até ser aberto o inventário com a nomeação do inventariante, a quem incumbirá representar definitivamente o espólio (art. 12, V, do CPC). Precedentes citados: REsp 81.173-GO, DJ 2/9/1996, e REsp 4.386-MA, DJ 29/ 10/1990” (STJ, REsp 777.566/RS, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS, j. 27.04.2010).
Para concluirmos o presente tópico, como lembra Sílvio de Salvo Venosa, “na prática, somente em heranças de vulto, ou quando há dificuldade para nomear-se um inventariante, é que surge o administrador provisório” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 48). Em outras palavras, a sua atuação não é a regra, mas a exceção, ou seja, só ocorre em casos excepcionais.
1.3 DA VOCAÇÃO HEREDITÁRIA Ao tratar da vocação para herdar, cuida o Código Civil de prever aqueles que poderão ser herdeiros legítimos ou testamentários, quando da abertura da sucessão, bem como aqueles que não poderão suceder em determinadas situações específicas. Em suma, trata a lei de terminar a capacidade para suceder, rompendo com o sistema do revogado Código Civil, que apenas se preocupava com a capacidade testamentária
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passiva (arts. 1.717 e 1.718 do CC/1916). Dessa forma, a matéria em questão se divide em três partes: 1.ª parte – daqueles que poderão ser herdeiros legítimos; 2.ª parte – daqueles que poderão ser herdeiros testamentários; e 3.ª parte – daqueles que não poderão ser herdeiros.
Estudaremos essas situações de forma separada e detalhada, a partir do presente momento. 1.3.1 Daqueles que herdam por sucessão legítima De acordo com o art. 1.798 do atual Código Civil, legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. O dispositivo legal acaba por reforçar a regra pela qual quem não tem personalidade jurídica material ao tempo da morte do falecido não terá direitos sucessórios. Por oportuno, anotese que somente a pessoa natural, e não a pessoa jurídica, herda pela sucessão legítima. Não só as pessoas já nascidas, como também os nascituros, ou seja, aqueles que já foram concebidos, mas ainda não nasceram, terão direito a suceder legitimamente seus parentes, independentemente da existência de testamento que os beneficie. A respeito dos direitos sucessórios do nascituro, esclarece Zeno Veloso que “o conceptus (nascituro) é chamado à sucessão, mas o direito sucessório só estará definido e consolidado se nascer com vida, quando adquire a personalidade civil ou capacidade de direito. O nascituro é ente em formação (spes hominis), um ser que
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ainda não nasceu. Se o concebido nascer morto, a sucessão é ineficaz” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.492). Pois bem, entendem ambos os autores da presente obra que os direitos patrimoniais do nascituro são subordinados a condição resolutiva, ou seja, ao nascimento com vida. O nascituro terá direito, inclusive, a um curador ao ventre, caso seus pais tenham sido destituídos do poder familiar (art. 878, parágrafo único, do CPC). Certa corrente doutrinária, encabeçada por Maria Helena Diniz, aponta que os conceitos de embrião e de nascituro não se confundem. Isso porque o nascituro já se encontra nidificado no ventre materno. Por outra via, segundo essa corrente, as técnicas de reprodução assistida podem gerar embriões, que, antes da implantação no útero materno, não são considerados nascituros. Entretanto, a questão não é tão simples quanto pode parecer. O problema dos embriões e suas consequências é brilhantemente exposto por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka no seguinte sentido: “o problema não mais se refere aos nascituros que se encontravam implantados no útero materno, senão aos embriões, congelados em laboratório. Assiste-lhes a condição de nascituros? Ou, ao contrário, são considerados prole eventual, já que não se sabe se serão efetivamente alojados em útero apto a gestálos? A resposta que se dê gerará diferentes soluções no que toca ao destino da pessoa que morta. Se forem considerados nascituros, terão adquirido a propriedade da quota-parte que lhes toque, o que pode causar inconvenientes gravíssimos se alguns forem embriões congelados. Se, por outro lado, forem considerados prole eventual, afastados da sucessão legítima, poderão restar excluídos
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da sucessão do pai ou da mãe que não conheceram, mas a quem devem a paternidade biológica” ( CAHALI, Francisco e HIRONAKA, Giselda. Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 356). Diante dessa situação de dúvida, há quem entenda que o nascituro e apenas ele sucede legitimamente e não os embriões. Nesse sentido, cristalina é a lição de Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira, pela qual “exige-se, ao invés, que ocorra a implantação no útero materno (in anima nobile), onde ocorre a nidação, possibilitando seu regular desenvolvimento até o nascimento com vida” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 41). Também Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado entendem que a lei “ao se referir a pessoas ‘já concebidas’, está fazendo alusão ao nascituro, cujo conceito pressupõe gravidez, excluindo, portanto, dentre os legitimados a suceder, o embrião congelado in vitro, bem como os filhos havidos por inseminação artificial ocorrida após a abertura da sucessão” (Código Civil..., 2005, p. 918). Em sentido contrário e não menos contundente, levando-se em conta que se presumem concebidas na constância do casamento as pessoas nascidas, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga (art. 1.597, IV, do CC), Zeno Veloso afirma que “não tenho dúvida de garantir que, mesmo depois da morte do pai, vindo o embrião a ser implantado e havendo termo na gravidez, o nascimento com vida e consequente aquisição de personalidade, este filho posterior é herdeiro, porque estava concebido quando o genitor faleceu, e dado ao princípio da igualdade dos filhos da Constituição Federal, art. 227, § 6.º” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.494).
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Francisco José Cahali, ao comentar a questão, assume postura crítica ao dispositivo e afirma que “embora a contragosto, concluímos terem os filhos assim concebidos o mesmo direito sucessório que qualquer outro filho, havido pelos meios naturais. E estaremos diante de tormentoso problema quando verificado o nascimento após anos do término do inventário, pois toda a destinação patrimonial estará comprometida” (CAHALI, Francisco e HIRONAKA, Giselda. Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 132). Maria Helena Diniz separa os conceitos de personalidade jurídica formal e material e afirma que “poder-se-ia até mesmo afirmar que na vida intrauterina tem o nascituro e na vida extrauterina tem o embrião concebido in vitro personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos, ou melhor, aos direitos da personalidade, visto ter carga genética diferenciada desde a concepção, seja ela in vivo ou in vitro, passando a ter personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais e obrigacionais que se encontravam em estado potencial, somente com o nascimento com vida (CC, art. 1.800, § 3.º). Se nascer com vida adquire personalidade jurídica material, mas se tal não ocorrer, nenhum direito patrimonial terá” e conclui “não distinguimos os concebidos dos obtidos in vitro” (Curso..., 2004, v. 1, p. 185). O coautor Flávio Tartuce é partidário desse entendimento, conforme consta do Volume 1 da presente coleção, no seu Capítulo 3 (TARTUCE, Flávio. Direito civil..., 2011, v. 1). Ao tratar da questão do nascituro e do embrião, não podemos deixar de citar as lições de Silmara Juny de Abreu Chinellato. Para a Professora Titular da USP, valendo-se das lições de bioética, embrião é apenas uma das fases de desenvolvimento do ovo fecundado (zigoto,
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mórula, blástula, embrião e feto) e é termo não jurídico, mas próprio da medicina, apesar de sua utilização em leis e documentos internacionais. Assim, o vocábulo jurídico ‘nascituro’ inclui o embrião pré-implantatório, qual seja, aquele que ainda não foi inserido no ventre materno. A professora entende, portanto, que quer tenha o embrião sido ou não implantando no útero da mulher, é considerado nascituro e tem seus direitos protegidos, inclusive para fins de sucessão legítima. Deve ser tido como herdeiro legítimo, se houver coincidência entre a mãe que o gera e o gesta depois de um tempo de crioconservação (Estatuto jurídico..., Questões controvertidas..., 2007, v. 6, p. 52). Quando da III Jornada de Direito Civil realizada em Brasília, em dezembro de 2004, ao analisar o tema, os membros da comissão de família e sucessões decidiram por maioria que: “A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança” (Enunciado n. 267 do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça). Em resumo, naquele importante evento entendeu-se que o embrião também é considerado sucessor legítimo. Ambos os autores da presente obra não concordam com tal posição, pois acreditam que o embrião, apesar de ter personalidade formal (direitos da personalidade), não tem a personalidade jurídica material (direitos patrimoniais), e só será herdeiro por força de disposição testamentária.
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Ressaltamos, assim, a grande polêmica envolvendo o tema em questão, que é dos mais complexos para a ciência do direito. Para encerrar, em nossa opinião, para a sucessão legítima, a regra de que a pessoa deva existir não comporta exceções, diferentemente do que ocorre na sucessão testamentária, em que podem ser chamadas a suceder pessoas não concebidas (art. 1.799, I, do CC). 1.3.2 Daqueles que herdam pela sucessão testamentária a) Aqueles ainda não concebidos Permite o Código Civil que, por meio de ato de última vontade, o falecido nomeie como seu herdeiro pessoa ainda não concebida no momento de sua morte, filha de pessoa por ele indicada que deve estar viva quando da sua morte (art. 1.799, I, do CC). Trata-se, portanto, da nomeação de um concepturo (nondum concepti) como herdeiro, pois o concepturo é a pessoa que ainda não foi concebida e difere do nascituro que já se encontra nidificado no ventre materno. Fazendo confrontação importante, lembre-se de que o Código Civil revogado utilizava a expressão prole eventual (art. 1.718 do CC/1916). Segundo Zeno Veloso, prole tem um significado mais amplo: linhagem, geração, progênie, descendência (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.495). Sendo assim, a primeira observação que se faz é que não poderá o testador nomear como herdeiro a sua própria prole eventual, pois o Código Civil em vigor determina expressamente que a pessoa cuja prole será beneficiada deve
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estar viva no momento da abertura da sucessão. A ilustrar, o testador nomeia o primeiro filho de seu sobrinho João como sendo o seu herdeiro. Se na morte do testador, João já tiver morrido, a disposição testamentária caduca, porque, apesar de válida, não prevalecerá por obstáculo superveniente ao momento da elaboração do testamento. A segunda observação importante sobre a questão é que não se trata necessariamente de substituição fideicomissária, que ainda será estudada no presente livro (item 3.8). Isso porque na substituição fideicomissária o testador nomeia João seu herdeiro (fiduciário), e este transmitirá quando de sua morte os bens do testador a seu primeiro filho (fideicomissário). O art. 1.799, I, do CC, permite que o testador nomeie diretamente e não por meio de substituição o concepturo como seu único herdeiro. A grande questão que se coloca é a insegurança do instituto por dois motivos distintos. O primeiro deles refere-se ao prazo que se deverá aguardar até que se saiba se realmente o concepturo beneficiado nascerá com vida e adquirirá os bens herdados. O segundo motivo decorre da seguinte indagação: quem cuidará dos bens testados, sendo responsável por sua conservação até o nascimento com vida do concepturo? No que tange ao primeiro motivo, se decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos. Essa regra pode ser retirada do art. 1.800, § 4.º, do CC/ 2002, que não encontra correspondente na codificação anterior. A título ilustrativo, a não concepção em dois anos
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contados da abertura da sucessão também é causa de caducidade do testamento, devendo a herança seguir para os herdeiros legítimos, salvo expressa determinação de substituição testamentária. A resposta à última pergunta formulada é que os bens da herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a um curador nomeado pelo juiz (art. 1.800, caput, do CC). O curador será, salvo disposição testamentária em contrário, a pessoa cujo filho o testador esperava ter por herdeiro (art. 1.800, § 1.º, do CC). Exemplificando, se o testador deixar seus bens ao primeiro filho do sobrinho João, será ele nomeado curador para a administração dos bens, até que o concepturo nasça com vida ou, decorridos os dois anos, até que a herança seja entregue aos herdeiros necessários. Poderá o juiz nomear, ainda, como curador dos bens do concepturo, as pessoas indicadas no art. 1.775 do Código Civil (art. 1.800, § 1.º, do CC). Primeiramente, são elas o cônjuge ou o companheiro, não separado judicialmente ou de fato. A menção ao separado judicialmente deve ser lida com reservas, eis que ambos os autores desta obra seguem a corrente doutrinária e jurisprudencial que prega o fim da separação judicial desde a entrada em vigor da Emenda Constitucional 66, de 13 de julho de 2010. Desse modo, o dispositivo somente se aplica às pessoas separadas judicialmente quando da entrada em vigor da mencionada Emenda do Divórcio. O tema do fim da separação de direito está aprofundado no Volume 5 da coleção. Na falta do cônjuge ou do companheiro, são indicados pela lei o pai ou a mãe do falecido. Na falta destes, é
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indicado o descendente que se demonstrar mais apto e, entre os descendentes, os mais próximos precedem aos mais remotos. Por fim, na falta das pessoas mencionadas, compete ao juiz a escolha do curador (curador dativo). O dispositivo não se aplica bem à hipótese, pois o concepturo não terá cônjuge ou companheiro, muito menos descendentes. Ora, se não foi concebido ainda, como pode ser casado ou ter filhos? Realmente, do artigo em questão aplicar-se-ia apenas a nomeação de pessoa de confiança do juiz. Isso porque os pais do concepturo são naturalmente os curadores por força do art. 1.800, § 1.º, do CC. Em sua ausência, nomeará o juiz pessoa de sua confiança para assumir a guarda e conservação dos bens testados. Percebendo o equívoco da lei, o PL 699/2011, antigo Projeto 6.960/2002, de autoria do Deputado Fiuza, pretende alterar o dispositivo que teria a seguinte redação: “Art. 1.800 (...) § 1.º Salvo disposição testamentária em contrário, a curatela caberá à pessoa cujo filho o testador esperava ter por herdeiro, e, sucessivamente, às pessoas indicadas no art. 1.797”. Vale ressaltar que as pessoas indicadas no art. 1.797 do CC são o cônjuge ou companheiro, se com o outro convivia ao tempo da abertura da sucessão; o herdeiro que estiver na posse e administração dos bens, e, se houver mais de um nessas condições, ao mais velho; o testamenteiro; e a pessoa de confiança do juiz, na falta ou escusa das indicadas, ou quando tiverem de ser afastadas por motivo grave levado ao conhecimento do juiz. Note-se que com relação ao cônjuge o projeto não resolve os problemas, pois o concepturo não tem cônjuge nem companheiro.
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Entretanto, quanto às demais pessoas, a solução é bastante adequada. Os poderes, deveres e responsabilidades do curador, assim nomeado, regem-se pelas disposições concernentes à curatela dos incapazes, no que couber (art. 1.800, § 2.º, do CC). Na realidade, invoca o atual Código Civil para o caso em questão as regras da tutela por força do art. 1.774, pelo qual: “Aplicam-se à curatela as disposições concernentes à tutela, com as modificações dos artigos seguintes”. Lembre-se, por oportuno, de que o Código Civil de 2002 passou a tratar da curatela do nascituro no seu art. 1.779, mas nada disciplinou sobre a matéria. Sendo assim, podem o tutor e, assim, também o curador do concepturo receber as rendas e pensões do concepturo, e as quantias a ele devidas; fazer-lhe as despesas de administração, conservação e melhoramentos de seus bens; alienar os bens testados destinados a venda; promover-lhe, mediante preço conveniente, a locação bens de raiz. Entretanto, não faz sentido imaginar que o curador do concepturo poderia realizar gastos com sua educação, pois ele ainda não nasceu, nem poderia aceitar a herança, pois o estaria fazendo sob condição suspensiva, o que é expressamente vedado pelo art. 1.808 do CC/2002. Bem lembra José Luiz Gavião de Almeida que o Código criou um grande problema porque “não deu solução o legislador para a titularidade desses bens, apenas determinou fossem eles confiados a curador nomeado pelo juiz, o que não resolve alguns problemas decorrentes, como a responsabilidade pelo fato da coisa, em regra do proprietário, que ainda não existe; ou a possibilidade de aquisição pela simples ocupação, já que se trata de coisa
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sem dono. Melhor era a opção pela sucessão provisória, entregando-se aos herdeiros legítimos, até o advento da condição suspensiva imposta, qual seja o nascimento com vida do contemplado” (Código Civil..., 2003, p. 110). Mais uma vez, tem razão o ilustre Desembargador e Professor da USP. Diante disso, deve-se concluir que os bens ficam na titularidade do espólio, que, na qualidade de ente despersonalizado, tem a chamada personalidade jurídica esdrúxula, ou seja, uma capacidade provisória até a sua extinção. A extinção ocorrerá ao fim dos dois anos, quando nascer, com vida, o concepturo ou os bens forem entregues ao sucessor legítimo. É absolutamente necessário que o concepturo nasça com vida para que possa adquirir os bens testados e seus frutos e rendimentos relativos à deixa (art. 1.800, § 3.º, do CC). Interessante frisar que frutos e rendimentos constituem, entre si, expressões redundantes, antes existentes no art. 60 do revogado Código Civil. Isso porque os rendimentos são espécies de frutos, ou seja, são os frutos civis (sobre o tema: TARTUCE, Flávio. Direito civil..., 2011, v. 1 – Capítulo 5). Questão interessante que surge é saber o que ocorre se, ao invés de concepção, houver adoção, situação em que o filho adotivo preenche a condição de “filhos ainda não concebidos” contida no art. 1.799, I, do Código Civil em vigor. Para Zeno Veloso, a expressão inclui a adoção “não só por força da determinação expressa do princípio igualitário do art. 227, par. 6.º, da Constituição Federal, como do disposto no art. 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.495). O autor paraense, aqui, é acompanhado por Sílvio de Salvo Venosa e Débora Gozzo (Comentários..., 2004, p. 82), por
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Francisco José Cahali (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 130), e por Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira (Inventários e partilhas..., 2006, p. 45). Esse é, portanto, o entendimento majoritário da doutrina atual, para fins da prática sucessória. Por outro lado, Washington de Barros Monteiro é categórico ao afirmar que “a prole eventual a que se referia o Código Civil de 1916, como frisa o Ministro Hahnemann Guimarães, seria a descendência natural, compreensiva de filhos legítimos, legitimados ou ilegítimos, mas filhos carnais”, pois de outra forma “fácil seria burlar a disposição testamentária bastando-lhe realizar o ato de adoção” (Curso..., 2003, v. 6, p. 44). Para nós, é mais acertada a primeira das posições. Fazer qualquer distinção entre o filho adotivo e o biológico não se coaduna com o sistema constitucional e cheira a ranço do passado. Justamente por isso é que o último entendimento é totalmente ultrapassado. Se o testador quiser limitar a qualidade de herdeiros aos filhos biológicos ainda não concebidos, que o faça expressamente por testamento. b) Pessoas jurídicas Como outrora mencionado, a pessoa jurídica não tem capacidade para herdar por sucessão legítima, pois esta somente decorre do parentesco, do casamento ou da união estável. Por outro lado, nada impede que a pessoa jurídica seja nomeada herdeira ou legatária de determinado bem do de cujus pela forma testamentária. Nesse sentido, determina o Código Civil em vigor que podem ser chamadas a suceder por testamento as pessoas
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jurídicas (art. 1.799, II), existentes no momento do falecimento do testador. Isso porque, se ainda não existirem, não terão personalidade e a consequente capacidade jurídica para herdar. Para tanto, lembre-se que a pessoa jurídica de Direito Privado, tratada no art. 44 do CC, adquire personalidade com a inscrição de seu ato constitutivo no respectivo registro (art. 45). Se não vier a existir essa pessoa jurídica, ocorrerá a caducidade do testamento e os bens reverterão aos herdeiros legítimos. De qualquer forma, em sentido contrário, entende Eduardo de Oliveira Leite que “quanto às associações sem personalidade jurídica a deixa em seu favor é considerada feita aos respectivos associados, salvo se o testador a tiver condicionado à aquisição da personalidade jurídica. No tocante às sociedades sem personalidade jurídica, igualmente a deixa considera-se feita aos seus sócios, nessa qualidade e acresce ao patrimônio coletivo” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 110). Vale dizer que a tese defendida pelo autor paranaense, apesar de plausível, é minoritária. Também podem suceder por testamento as pessoas jurídicas cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação (art. 1.799, III, do CC). Trata-se de exceção em que será sucessora a pessoa jurídica que ainda não existe, mas que é criada por meio de testamento. Para esse caso, salienta José Luiz Gavião de Almeida que “no entanto, se os bens destinados a uma fundação não existente forem insuficientes para a sua constituição, será a deixa incorporada a outra fundação de fins iguais ou semelhantes. Não se trata de aplicação da sucessão legítima, pois nesta não se admite transmissão à pessoa jurídica. Não se trata de substituição, pois dispensa
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o legislador a indicação do testador. E não se trata de direito de acrescer, pois não há necessidade de essa outra fundação estar contemplada entre os herdeiros e os legatários. É regra excepcional, que tem natureza jurídica de sucessão anômala” (Código Civil..., 2003, p. 108). Mais uma vez, como não poderia ser diferente, filia-se ao professor da Universidade de São Paulo, sendo certo que esse entendimento parece ter fundamento no art. 69 do CC em vigor, segundo o qual, no caso de dissolução de uma fundação, os bens serão incorporados por outra fundação que tenha finalidade igual ou semelhante, em não havendo previsão de destinação no próprio estatuto. Curiosa questão diz respeito à personalidade jurídica das organizações religiosas, que são pessoas jurídicas de Direito Privado, por força do art. 44, IV, do CC. Isso porque, em se tratando da Igreja Católica, muitas vezes, o testador deixa o bem para certa Diocese ou paróquia. A indagação que se formula é se essas paróquias e dioceses têm ou não personalidade para receber os bens testados. Em texto datado de 1981, Antonio Chaves explica ser questão controversa a da propriedade dos bens eclesiásticos. Nada impede que as dioceses – representadas pelo bispo como chefe da respectiva igreja –, e as paróquias, que são sua subdivisão – representadas pelo pároco –, sejam admitidas como pessoas jurídicas autônomas (RT 548, v. 548, p. 15). Nesse sentido, já se entendeu que não está a Mitra Diocesana impedida de adquirir imóvel por usucapião. Tendo obtido personalidade jurídica definida e inscrição como contribuinte nas repartições fiscais, logrou a Mitra realizar a secularização da instituição religiosa que representa na região (TJSP, Embargos Infringentes
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115.748-1, Rel. Des. Ernani de Paiva, j. 29.10.1990, RJTJESP-Lex, v. 132, p. 357). Em outro julgado do TJSP, decidiu-se que “os legados feitos a um santo, a Deus, a Jesus Cristo, se julgam feitos à Igreja Paroquial do lugar onde o testador tinha seu domicílio e se Jesus Cristo é o herdeiro, assim deve compreender a Igreja em seu lugar. (...) E se é a Igreja Católica a entidade que contém o santo adorado, a ela se destinará o imóvel, que essa é a verdadeira intenção dos fiéis” (TJSP, Apelação Cível 56.651-1, Rel. Des. Toledo César, j. 24.09.1985, RJTJESP-Lex, v. 100, p. 273). Da mesma forma, admitindo-se a personalidade jurídica da diocese, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul decidiu que se a doação foi destinada à Nossa Senhora da Abadia, deve-se retificar o registro imobiliário para que, no lugar do santo, fique constando o nome da diocese da localização do imóvel, tendo presente que a Igreja, que é quem encarna seus símbolos, tem existência real e personalidade jurídica e é o agente capaz a que a lei se refere para a validade do ato jurídico (TJMS, Apelação Cível 184/82, Rel. Des. Mendes Fontoura, j. 04.10.1982, Revista de Direito Imobiliário, n. 12, p. 95). Segundo o relator do julgado, a doação para a santa trata de erro plenamente justificável, porque as partes sabiam que a doação era para a Igreja em homenagem à santa e, por isso, o padre ali estava como representante da Igreja. A questão não é pacífica. Conforme também já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, a personalidade jurídica das capelas e igrejas paroquiais distintas da Arquidiocese é bastante discutível, porque, embora tenham elas o direito de celebrar atos, manter registros, herdar
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bens e movimentar contas, sua situação patrimonial deverá ser atendida pela Arquidiocese (TJSP, Agravo de Instrumento 120.882-1, Rel. Des. Toledo César, j. 20.03.1990, RJTJESP-Lex, v. 128, p. 346). Note-se que a conclusão a que se chega é que, como a sucessão em favor da Igreja ou de qualquer outra pessoa jurídica se dá por testamento, deve-se aproveitar a vontade do testador e não simplesmente considerar nulo ou ineficaz o testamento em favor de certa paróquia ou diocese, mesmo que não tenham personalidade jurídica. 1.3.3 Daqueles não legitimados a suceder A lei determina que certas pessoas, apesar de terem capacidade de direito e de exercício, não têm legitimação ou legitimidade sucessória. A norma jurídica, aqui, trata de casos relacionados com a sucessão testamentária. De antemão, frise-se que não se trata de incapacidade em geral, mas de falta de legitimação, pois o direito à sucessão é específico de certas pessoas com relação a certos testadores. Em sentido contrário, José Luiz Gavião de Almeida (Código Civil..., 2003, p. 112) e Eduardo de Oliveira Leite (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 113) entendem se tratar de ausência de capacidade sucessória. Assim, não têm legitimidade para suceder por testamento ou por legado as seguintes pessoas: a) A pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, nem o seu cônjuge ou companheiro, ou os seus ascendentes e irmãos (art. 1.801, I, do CC).
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A regra tem motivo óbvio, pois beneficiar aquele que escreveu o testamento, ou parentes deste, a pedido do testador, seria criar enorme possibilidade para fraudes. A suspeição é clara, uma vez que aquele que escreveu o testamento poderia frustrar a confiança do testador e dele se beneficiar. O dispositivo citado não menciona o descendente daquele que escreveu a rogo como pessoa não legitimada à sucessão, mas, por força do art. 1.802, parágrafo único, do CC, este também se inclui como não legitimado. A limitação se aplica ao testamento cerrado (que pode ser escrito a rogo do testador), mas não ao particular, que deverá ser escrito necessariamente pelo próprio testador, sob pena de nulidade do ato (art. 1.876, caput, do CC). Quanto aos testamentos especiais, podem ser escritos a rogo, eis que os testamentos marítimo e aeronáutico podem assumir a forma cerrada (art. 1.888, caput, do CC). b) As testemunhas do testamento (art. 1.801, II, do CC). A testemunha não pode ter interesse no ato, sob pena de, quando consultada a testar sua validade ou veracidade, faltar com a verdade como forma de preservação de seus interesses pessoais. Entende José Luiz Gavião de Almeida que “caso haja testemunha beneficiada, o testamento apenas é ineficaz com relação à deixa, podendo ser aproveitado quanto às demais disposições” (Código Civil..., 2003, p. 114), apesar de o art. 1.802 do CC expressamente determinar a sua nulidade. O entendimento do jurista parece perfeito pela aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos.
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Desse modo, estirpa-se a cláusula ineficaz e se aproveita o resto do ato. Esse entendimento, contudo, deve ser considerado como minoritário diante do teor taxativo da lei. c) O concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos (art. 1.800, III, do CC). De imediato, percebe-se que a lei se equivoca redondamente ao utilizar o termo concubino. Isso porque, como se sabe, o concubino é a pessoa que tem uma relação não eventual com quem está legalmente impedido de se casar (art. 1.727 do CC). Note-se que há ressalva admitindo a nomeação do concubino como herdeiro, se o testador estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos. Ora, se houver separação de fato e não necessariamente há mais de cinco anos, a relação não eventual entre homem e mulher, pública, contínua e duradoura com o intuito de constituir família será uma união estável (art. 1.723, § 1.º, do CC). Como se sabe, a união estável, que constitui uma entidade familiar com proteção constitucional, não se confunde com o concubinato, mera sociedade de fato. Parece-nos que o legislador, aqui, está totalmente desatualizado em relação ao que consta do próprio Código Civil em vigor. Caberia a ele diferenciar o concubino do companheiro, como o fez no livro de Direito de Família e não criar verdadeira confusão terminológica. Diante disso, as conclusões a que se pode chegar diante da má redação do dispositivo são as seguintes:
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1.ª) Não tem legitimação sucessória para ser nomeado herdeiro ou legatário o concubino, ou seja, a pessoa que vive relação não eventual, mas está impedida de se casar. É o caso do homem casado que lega bem à sua amante. 2.ª) Se ocorrer união estável, ou seja, a relação não eventual de homem e mulher que não estão impedidos de se casar, o mesmo se dizendo para o separado de fato ou separado judicial ou extrajudicialmente, não haverá qualquer impedimento à nomeação dos companheiros como herdeiro ou legatário, sendo desnecessária a existência de cinco anos de separação de fato.
Aliás, quanto ao lapso temporal mencionado na lei, ensina o jurista Zeno Veloso que “esse prazo é excessivo e até entra em contradição com a regra do art. 1.830, que não reconhece direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, estava separado de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.499). Exatamente por isto, propõe o Deputado Ricardo Fiúza a alteração do dispositivo em comento por meio do Projeto 699/ 2011, originalmente 6.960/2002, no seguinte sentido: “Art. 1.801 (...) III – o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge”. Pelo projeto, retira-se a questão do prazo e admite-se que o concubino seja nomeado herdeiro por testamento, se o testador estiver separado de fato de seu cônjuge, sem culpa sua. De qualquer forma, não nos parece adequada a proposta. De início, se houve separação de fato, não estaremos diante de concubino, mas sim de companheiro. Segundo, não há motivo para se discutir culpa com o
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intuito de verificar a legitimação sucessória do companheiro, o que está em sintonia com a mitigação ou desaparecimento da análise da culpa no Direito de Família. Com a separação de fato, pode o testador nomear o companheiro seu herdeiro, tendo ele culpa ou não em sua separação. Concluímos que melhor seria que o dispositivo simplesmente se limitasse à possibilidade de nomear como herdeiro ou legatário o concubino de pessoa casada, mas não separada de fato ou judicial ou extrajudicialmente. Essa é, em nossa opinião, a interpretação que deve ser feita do dispositivo em análise, particularmente em interpretação sistemática com as regras da união estável (arts. 1.723 a 1.727 do CC). Na III Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em dezembro de 2004, concluiu-se exatamente nesse sentido, com a aprovação do Enunciado n. 269, nos seguintes termos: “A vedação do art. 1.801, III, do Código Civil não se aplica à união estável, independentemente do período de separação de fato (art. 1.723, § 1.º)”. d) O tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou escrivão, perante quem se fizer, assim como o que fizer ou aprovar o testamento (art. 1.801, IV, do CC). Por óbvio, não poderia haver para aquele que escreve o testamento ou o aprova interesse no patrimônio do falecido. Aqui poderia ocorrer de a vontade de quem redige o testamento se suplantar à vontade do próprio falecido, o que justifica plenamente a falta de legitimação.
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Superada a análise daqueles que não têm legitimação para suceder, determina o Código Civil que serão nulas as disposições testamentárias em favor dessas pessoas, ou, ainda, quando simuladas sob a forma de contrato oneroso, ou feitas mediante interposta pessoa (art. 1.802, caput, do CC). O parágrafo único do dispositivo presume como pessoas interpostas os ascendentes, os descendentes, os irmãos e o cônjuge ou o companheiro do não legitimado a suceder. Vamos aqui aprofundar a análise de todo o dispositivo. Realmente, o testador, para burlar a proibição legal, poderá se valer de determinados expedientes eivados de simulação. Esse vício social, a simulação, pode ser conceituado como sendo o desacordo intencional entre a vontade interna e a vontade declarada, no sentido de criar aparentemente um negócio jurídico que, de fato, não existe; ou de ocultar, sob determinada aparência, o negócio realmente pretendido. Como se sabe, uma das inovações do atual Código Civil está em prever que o negócio simulado é nulo (nulidade absoluta), e não apenas anulável, não havendo mais a outrora existente previsão de nulidade relativa (art. 167 do CC/2002). Vejamos alguns casos práticos. O primeiro deles está presente no caso de venda simulada do bem. É exemplo clássico da doutrina o homem casado que simula a venda de imóvel a sua amante concubina para encobrir doação. O exemplo não cuida de situação de deixa testamentária nula, mas de contrato nulo, por encobrir a doação.
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Na realidade, parece-nos que Clóvis Beviláqua dá exemplos mais coerentes da situação: “O testador, por exemplo, faz declaração falsa de que vendeu a coisa legada ao incapaz, ou institui em favor dele uma pensão, como pagamento de dinheiro que simula ter recebido, ou o nomeia seu testamenteiro para que receba a título de prêmio aquilo que não poderia receber em legado” (Código Civil..., 1955, v. VI, p. 144). Entendemos que não é necessário que o Código Civil preveja serem nulas as disposições simuladas sob a forma de contrato oneroso, pois a simulação, por si só já é nula, conforme o citado art. 167 da codificação privada. Entretanto, o alcance que deve ter a norma em questão é que, sendo simulado o contrato oneroso para favorecer pessoa não legitimada a receber, nulo também será o negócio dissimulado, oculto, não sobrevivendo quando da nulificação do contrato oneroso. Com a nulidade do negócio simulado (contrato oneroso), desaparece também o negócio dissimulado (deixa testamentária à pessoa não legitimada). Ilustrando, se o testador vende uma casa à testemunha testamentária para encobrir sua disposição de última vontade, nula será a venda – contrato oneroso – e também a disposição encoberta. Dessa forma, não é aplicada a regra do art. 167, caput, do CC para o caso em questão, pela qual será válido o negócio dissimulado se o for na substância e na forma. Isso porque a simulação aqui é de extrema gravidade, não se justificando a aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos, até porque a eventual manutenção do negócio jurídico violaria o art. 426 do CC, que traz a notória separação entre os institutos que produzem efeitos inter vivos (contratos) e mortis causa (testamentos). Vale
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dizer que, se o princípio da conservação dos contratos e negócios jurídicos é inspirada na função social dos contratos (Enunciado n. 22 CJF/STJ), o art. 426 do CC também o é (TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos..., 2005, p. 142). O segundo expediente vedado pelo art. 1.802, parágrafo único, do CC é a interposição de pessoas, o que também acarreta nulidade absoluta da disposição testamentária. Para exemplificar, se o testador casado não lega o bem à sua amante, mas ao irmão dela, ocorre a interposição de pessoas por simulação relativa subjetiva, ou seja, a parte celebra o negócio com uma parte na aparência, mas com outra na essência, entrando no negócio a figura do testa de ferro, laranja ou homem de palha, que muitas vezes substitui somente de fato aquela pessoa que realmente celebra o negócio jurídico ou contrato. Em se tratando de herança ou legado a ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro de pessoa não legitimada, a simulação se presume irrefragavelmente (presunção iure et de iure), ou seja, de maneira absoluta, para não admitir prova em sentido contrário. Explica Eduardo de Oliveira Leite que “desde a proposta tradicional de Clóvis Beviláqua (A interposição dispensa prova. Resulta de uma presunção legal que não admite prova em contrário) até à doutrina atual (Trata-se, segundo a doutrina de uma presunção juris et de jure, conforme reconhecem Pontes de Miranda, Eduardo Espínola e Orosimbo Nonato), a ideia de que a presunção do citado artigo é iure et de iure sempre se manteve incólume no direito sucessório brasileiro” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 118).
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Também entendem ser a presunção absoluta ou iure et de iure Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (Curso avançado..., 2003, p. 359), Zeno Veloso (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.501), Washington de Barros Monteiro (Curso..., 2003, v. 6, p. 48), Sílvio de Salvo Venosa (Comentários..., 2004, p. 100) e Maria Helena Diniz (Código Civil anotado..., 11. ed., 2002, p. 1.476). Assim sendo, esse entendimento deve ser considerado como o majoritário para a prática do Direito das Sucessões. Caso sejam outras as pessoas interpostas que não as mencionadas no dispositivo, necessária será a prova da simulação para a nulidade da disposição. Em qualquer caso, por se tratar de negócio nulo, não há prazos para a sua declaração (art. 169 do CC), sendo a ação declaratória correspondente imprescritível. Por fim, como forma de superar uma antiga discussão, que não prospera nos dias atuais, pois perdeu toda a sua razão de ser em razão da igualdade constitucional dos filhos (art. 227, § 6.º, da CF/1988), afirma o Código Civil que é lícita a deixa ao filho do concubino, quando também o for do testador (art. 1.803 do CC). Ora, em se tratando de filho do testador, sendo ele filho da esposa, da companheira, da concubina, da namorada, ou de um caso, a deixa será válida sem sombra de dúvidas. Inútil a disposição de lei que apenas repetiu o teor da Súmula 447 do Supremo Tribunal Federal, que data de priscas eras: “É válida a disposição testamentária em favor de filho adulterino do testador com sua concubina”. Anote-se que a ementa é de 1.º de outubro de 1964 e não tem mais aplicação diante da igualdade entre filhos consagrada pelo Texto Maior.
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Encerrando o tema, não nos parece adequada a explicação de Sílvio de Salvo Venosa e Débora Gozzo, pela qual “a leitura do texto sob comento leva à exegese de que o legislador refere-se ao filho do testador casado – concubino – que não tenha sido por ele reconhecido” (Comentários..., 2004, p. 102). Parece-nos que, na verdade, a ideia do legislador foi a de afastar a possível interpretação pela qual a deixa em favor do filho do testador e de sua concubina seria forma de beneficiá-la, por meio de interposta pessoa, qual seja o filho do casal. Exatamente corroborando com nossa opinião, a lição de Washington de Barros Monteiro, que compila antiga decisão do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “não há interposição proibida na deixa a filhos da concubina, se são também do testador”. Explica, ainda, que em tal hipótese, o favorecido é realmente o filho, e não a mãe, não se podendo naquele vislumbrar simples presta-nome, porque ao pai compete precipuamente velar pela sorte e pelo futuro da prole, fornecendo-lhe os recursos necessários à sua sobrevivência (Curso..., 2003, v. 6, p. 49).
1.4 DA ACEITAÇÃO E DA RENÚNCIA À HERANÇA Determina a lei que, aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão (art. 1.804, caput, do CC). Em complemento, a transmissão tem-se por não verificada quando o herdeiro renuncia à herança (art. 1.804, parágrafo único, do CC).
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Em que pese a lei apenas mencionar a aceitação e renúncia da herança, essas previsões também se aplicam aos legados, pois o art. 1.808, § 1.º, do CC, expressamente prevê a possibilidade de aceitação ou renúncia à disposição sucessória específica, nos seguintes termos: “O herdeiro, a quem se testarem legados, pode aceitá-los, renunciando a herança; ou, aceitando-a, repudiá-los”. Facilitando o trabalho didático, o estudo das regras da aceitação e da renúncia da herança será dividido em três partes. Na primeira, serão abordadas as regras de aceitação da herança, na segunda parte, as regras de renúncia e, na terceira e última parte, serão trabalhados os preceitos comuns a ambos os institutos. 1.4.1 Das regras de aceitação ou adição da herança Segundo Flávio Augusto Monteiro de Barros, a aceitação ou adição da herança “é o ato pelo qual o herdeiro confirma seu desejo de receber a herança” (Manual..., 2004, v. 4, p. 186). Trata-se de um ato jurídico unilateral que produz efeitos independentemente da concordância de terceiros, tendo, portanto, natureza não receptícia, pois não precisa de comunicação para produzir efeitos. Diante desse conceito, é de se indagar se mesmo havendo a transmissão da herança ao herdeiro, pelo princípio da saisine, ainda se faz necessária a aceitação. A resposta é positiva, pois antes da aceitação existe uma situação provisória que findará com este ato do herdeiro. Em suma, a aceitação da herança é ato de mera confirmação. Assim o é, mesmo porque o herdeiro tem o direito de sê-lo, se quiser, não sendo obrigado a tanto. Em outras palavras, não
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vale a máxima filius ergo heres (ou seja, o filho é obrigatoriamente herdeiro). Entendemos que a aceitação é ato jurídico em sentido estrito (stricto sensu), e não negócio jurídico, pois seus efeitos decorrem somente da lei e não da convenção das partes. Nesse sentido, proíbe o legislador a aceitação parcial, sob termo ou condição (art. 1.808, caput, do CC). Segue-se, em tal ponto, a definição de Marcos Bernardes de Mello, segundo a qual o ato jurídico em sentido estrito constitui um “fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fático a manifestação ou declaração unilateral de vontade cujos efeitos jurídicos são prefixados pelas normas jurídicas e invariáveis, não cabendo às pessoas qualquer poder de escolha da categoria jurídica ou de estruturação do conteúdo das relações respectivas” (Teoria do fato jurídico..., 1995, p. 137). Os efeitos da aceitação da herança são retroativos à data da abertura da sucessão, tendo conteúdo apenas declaratório e não constitutivo. O legislador brasileiro adotou um sistema híbrido ou eclético de aquisição sucessória, como bem explica Eduardo de Oliveira Leite, pois “a aquisição se dá pela aceitação, é o que expressamente estabelece o art. 1.804 (Aceita a herança...) e de forma automática (... torna-se definitiva a sua transmissão desde a abertura da sucessão)” (Comentários..., 2004, p. 124). Realmente, como aqui foi dito, a aceitação confirma a aquisição que já existe desde o momento em que ocorreu o falecimento e a abertura da sucessão. De acordo com o art. 1.805 do CC em vigor, duas são as formas de aceitação da herança:
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a) Aceitação expressa – é aquela que se faz por declaração escrita. Não restringindo a lei, poderá o escrito ser público ou particular, mas nenhum efeito terá se for apenas verbal. Portanto, não se poderá valer de prova testemunhal para comprovar a aceitação verbal. b) Aceitação tácita – aquela pela qual o herdeiro ou legatário pratica atos que indicam a aceitação e que, portanto, são incompatíveis com a ideia de repúdio aos bens herdados. É o caso do herdeiro que paga os tributos do imóvel e que contrata funcionários para a sua conservação. Em síntese, haverá aceitação tácita se o herdeiro pratica atos definitivos de administração do espólio ou dos bens do falecido, havendo atos próprios da qualidade de herdeiro.
Para que se evite qualquer confusão entre a aceitação tácita e a prática de certos atos, enuncia o Código Civil em vigor que não exprimem a aceitação de herança os atos oficiosos, como o funeral do finado, os meramente conservatórios, ou os de administração e guarda provisória (art. 1.805, § 1.º, do CC). Na verdade, esses atos são simples favores à pessoa do morto ou aos seus herdeiros, inexistindo a clara vontade de aceitar a herança. Decorrem da generosidade daquele que os pratica, como forma de resolver problemas urgentes que não poderiam esperar. Para facilitar a compreensão da aceitação tácita, podemos nos valer da noção contida no art. 476 do Código Civil italiano, reproduzida por Zeno Veloso, nos seguintes termos: “A aceitação é tácita quando o chamado à herança pratica um ato que pressupõe, necessariamente, a sua vontade de aceitar e que não teria o direito de fazê-lo, senão na qualidade de herdeiro” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.503).
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Curiosa é a regra segundo a qual não importa igualmente a aceitação da herança sua cessão gratuita, pura e simples, aos demais coerdeiros (art. 1.805, § 2.º, do CC), introduzida pelo Código Civil de 2002 e que reproduz parcialmente o art. 1.582 do diploma revogado. Se houve a cessão de direitos aos coerdeiros é porque se aceitou a herança. Ninguém pode transmitir direitos que não tem. Explica Eduardo de Oliveira Leite que “na realidade, embora o legislador equivocadamente refira-se à ‘cessão’, que implica a ideia de transferência de um direito que se acha em nosso patrimônio, está a se referir à renúncia, que indica abstenção, recusa da herança. Estamos diante de um caso típico de repúdio tácito” (Comentários..., 2004, p. 129). Zeno Veloso também mostra sua estranheza em relação ao dispositivo, porque “no rigor dos princípios, se há cessão de direitos, temos que houve aceitação e posterior transmissão da herança para os cessionários. Mas a lei considera que não houve aceitação, pois, no caso, a herança vai ficar com as mesmas pessoas que seriam chamadas para ocupar a quota do cedente, se ele tivesse renunciado” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.503). Como se nota, o art. 1.805, § 2.º, do CC é amplamente criticado, o que se justifica. Aliás, ainda sob a égide do Código Civil de 1916, dizia Clóvis Beviláqua que “melhor fôra usar o termo renúncia que indica abstenção, recusa da herança, do que cessão, que implica a ideia de transferência de um direito que se acha em nosso patrimônio” (Código Civil..., 1955, v. VI, p. 22). Nesse sentido, concorda-se mais uma vez com José Luiz Gavião de Almeida que “a renúncia, porém, beneficiaria os mesmos coerdeiros, sem necessidade de pagamento de imposto de transmissão inter vivos. Provocaria idêntico efeito, apenas
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por outra via. Se idêntica a situação, não pode a cessão gratuita de todos os bens para os demais coerdeiros ter efeitos jurídicos diversos da renúncia” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 129). Note-se que mesmo equivalendo à renúncia, para que a cessão tenha validade, seguirá a forma pública nos termos do art. 1.793, caput, do atual CC. Superada a crítica, para alguns autores, como é o caso de Flávio Augusto Monteiro de Barros, existiria uma terceira forma de aceitação, a presumida, pois o Código Civil não estabeleceu prazos para a aceitação (Manual..., 2004, v. 4, p. 187). Nesses termos, o interessado na declaração de aceitação do herdeiro poderá, vinte dias após aberta a sucessão, requerer ao juiz prazo razoável, não maior de trinta dias, para nele se pronunciar o herdeiro (art. 1.807 do CC). No caso em questão, para essa doutrina, o silêncio do herdeiro significa sua aceitação tácita. O que se pode perceber é que se trata de exceção à regra pela qual o silêncio não produz efeitos jurídicos (quem cala não consente), que pode ser retirada do art. 111 da atual codificação privada. Nessas hipóteses, deve-se entender que são interessados em requerer judicialmente a aceitação não só os demais herdeiros, como também os credores do herdeiro. Conforme consta do art. 1.809 do CC, o direito de aceitar a herança não é personalíssimo e se transfere aos filhos do herdeiro caso este faleça antes de ter aceitado a herança expressa ou tacitamente. Pelo próprio comando legal, a exceção se verifica quando a herança foi instituída ao herdeiro sob condição suspensiva ainda não verificada. Trata-se da sucessão do direito de aceitar (jure transmissionis).
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Têm razão Sílvio de Salvo Venosa e Débora Gozzo ao explicarem tal exceção que se “a herança só seria adquirida com o implemento de um evento futuro e incerto estipulado pelo testador, o herdeiro que faleceu antes da verificação da condição suspensiva, não tem direito à herança. Em outras palavras, seus herdeiros também não terão direito a ela” (Comentários..., 2004, p. 122). A regra decorre do fato de a condição suspensiva não gerar direito adquirido, mas mero direito eventual (art. 125 do CC). A título de exemplo, se o testador deixar uma casa ao jogador de futebol, sob condição de a seleção brasileira se tornar hexacampeã do mundo, antes de o evento ocorrer o jogador não tem direito adquirido. Se vier a falecer, sem aceitar a herança, seus herdeiros não poderão aceitá-la. Superada a exceção, voltemos à regra da possibilidade de aceitação pelos herdeiros. Surge aqui uma dúvida importante: e se um herdeiro aceitar a herança e o outro renunciar a ela? Esclarece José Luiz Gavião de Almeida que isso “não significa ofensa ao princípio da indivisibilidade da herança o fato de, existindo mais de um herdeiro do herdeiro falecido, um deles acolher a herança e o outro a recusar. O Código Civil italiano resolve expressamente a questão, determinando que, nesse caso, aquele que aceita a herança adquire todos os direitos e fica sujeito a todos os encargos da sucessão, enquanto o que renuncia fica alheio a ela” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 139). Filia-se à solução alvitrada, pois aceita a herança por um dos herdeiros e recusada pelo outro, ocorre fenômeno semelhante à renúncia, pelo qual a herança volta ao monte e se partilha entre os demais herdeiros – no caso aqueles que a aceitaram.
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Encerrando o tópico, interessante é a disposição prevista pelo Código Civil de 2002 e inexistente no revogado Código Civil, segundo a qual “os chamados à sucessão do herdeiro falecido antes da aceitação, desde que concordem em receber a segunda herança, poderão aceitar ou renunciar à primeira” (art. 1.809, parágrafo único). Tem lógica a regra criada, pois se os herdeiros da pessoa falecida não aceitarem receber a sua própria herança, não receberão o poder de aceitar aquela que pertenceria ao falecido. Ilustrando, se João morre antes de aceitar a herança deixada por sua tia Maria, seus dois filhos terão o direito de aceitála. A solução é que primeiramente os filhos aceitem a herança deixada por seu pai João para só, então, aceitar ou renunciar à herança que o pai deles recebera de Maria. 1.4.2 Das regras quanto à renúncia da herança A renúncia da herança constitui um ato jurídico unilateral e não receptício, pelo qual o herdeiro ou legatário recusa a herança ou o legado, não criando, consequentemente, qualquer direito ao renunciante, pois se considera que ele nunca tivesse sido herdeiro. A renúncia à herança não pode ocorrer antes da abertura da sucessão, ou seja, antes da morte de seu autor, sob pena de nulidade absoluta, por se tratar de pacto sucessório (art. 426 do CC). Os efeitos da renúncia são retroativos à data da abertura da sucessão, ou seja, são ex tunc (art. 1.804, caput, do CC). Em razão da retroatividade, os filhos do renunciante não herdam por representação, pois a renúncia significa que o renunciante nunca foi herdeiro. Nesse sentido, prevê a primeira parte do art. 1.811 do CC que “ninguém pode suceder, representando herdeiro renunciante”. Aliás, se o
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renunciante ou o seu herdeiro não recebem os bens do falecido, como decorrência lógica não podem transmiti-los a terceiros. Quanto ao destino dos bens depois de efetivada a renúncia, será estudado em momento oportuno. Como ocorre com a aceitação, a renúncia da herança também tem natureza de ato jurídico em sentido estrito (stricto sensu), pois os seus efeitos decorrem apenas da norma jurídica, e não da vontade do renunciante, conforme consta do art. 1.808 do CC. A doutrina costuma separar a renúncia abdicativa da renúncia translativa. De acordo com essa estrutura conceitual, a renúncia será abdicativa quando o declarante simplesmente diz que não aceita a herança ou o legado, que será devolvido ao monte hereditário, visando à partilha entre os herdeiros legítimos. Por outra via, será translativa, ou in favorem, aquela renúncia em que o herdeiro recebe a herança e a transfere a certa pessoa. Entendemos que, tecnicamente, a renúncia in favorem não é renúncia, mas sim uma cessão de direitos. Isso porque, a chamada renúncia in favorem necessita da aceitação do beneficiado para se aperfeiçoar. Desse modo, se for onerosa, corresponde a uma compra e venda; e se for gratuita corresponde a uma doação. Por não admitirmos a natureza de renúncia, em se tratando de negócio jurídico, dever-se-á seguir a forma prevista no art. 1.793 do Código Civil, ou seja, a forma pública. A grande diferença entre os dois tipos de renúncia é que se realmente for abdicativa, não haverá a incidência de imposto inter vivos, pois se trata de ato unilateral e não bilateral. Se for translativa, haverá a incidência de
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impostos inter vivos. Nesse sentido, aliás, entendeu o Superior Tribunal de Justiça: “A renúncia de todos os herdeiros da mesma classe, em favor do monte, não impede seus filhos de sucederem por direito próprio ou por cabeça. Esta renúncia não configura doação ou alienação à viúva, não caracterizando o fato gerador do ITBI, que é a transmissão da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis” (STJ, 1.ª T., REsp 36.076/MG, Rel. Min. Garcia Vieira, j. 03.12.1998, DJ 29.03.1999, p. 76). Na mesma linha, vejamos recente julgado do Tribunal do Rio de Janeiro: “Renúncia abdicativa. Não incidência do ITD. Agravo de Instrumento. Inventário. Aceitação tácita. Retratação. Renúncia abdicativa. Não incidência de Imposto sobre Doações – ITD. Recurso dirigido contra decisão que indeferiu pedido de abstenção do pagamento do ITD em razão da renúncia manifestada por um dos herdeiros em favor do monte, por entender configurada a renúncia translatícia. Embora o decurso de mais de 4 anos do pedido de abertura de Inventário e apresentação das primeiras declarações configure aceitação tácita da herança, irretratável pelo art. 1.812 do CC/2002, a lei vigente, tanto à época da abertura da sucessão (CC/1916) como da aceitação, permitia no art. 1.590, 2ª Parte, a retratação da aceitação, de forma que, durante o procedimento do Inventário, enquanto não homologada a partilha, poderia o aceitante se arrepender, com efeitos ex tunc, como se nunca tivesse sido chamado a suceder. Hipótese em que ocorreu a renúncia abdicativa, posto que em favor do monte, não incidindo o Imposto sobre Doações. Orientação do C. Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a renúncia translativa deve implicar, a um só tempo, aceitação tácita da herança e a subsequente destinação desta a beneficiário certo, o que não ocorre quando há abdicação em favor do monte partível,
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sem a intenção de ceder os direitos hereditários, como se doação fosse a herdeiro determinado. Conhecimento e provimento do Agravo” (TJRJ, Agravo de Instrumento 2009.002. 43047, 16.ª Câmara Cível, Italva, Rel. Des. Mario Robert Mannheimer, j. 25.05.2010, v.u.).
Para renunciar à herança, deve o declarante fazê-lo por instrumento público ou termo judicial, sendo nula a renúncia por instrumento particular (art. 1.806 do CC). Nota-se que a lei não permite a renúncia tácita, mas apenas a expressa, pois isso é forma de dar maior segurança ao instituto. Para elucidar o campo prático de atuação dessa vedação, transcreve-se o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Inventário. Partilha. Nulidade. Exclusão de herdeiro necessário. Inadmissibilidade de renúncia tácita. 1. Não existe renúncia tácita da herança; a renúncia da herança deve ser expressa sempre e constar de instrumento público ou termo judicial. Inteligência do art. 1.806 do CCB. 2. A exclusão de herdeiro necessário na partilha contamina de nulidade o ato divisório, devendo ser desconstituída a sentença homologatória a fim de que seja refeita a partilha dos bens, contemplando corretamente os quinhões legitimários. Recurso provido” (TJRS, 7.ª Câmara Cível, Proc. 70011821550, Comarca de Caxias do Sul, Rel. Juiz Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 10.08.2005).
Cumpre destacar que a forma tácita pode gerar dúvidas sobre se houve ou não a efetiva renúncia. Ao criticar o texto legal, esclarece Zeno Veloso que “o termo judicial também é instrumento público e o que o art. 1.806 quis dizer é que a renúncia da herança deve constar expressamente da escritura pública ou termo judicial” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.504).
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Questão relevante é saber se a renúncia da herança exige a vênia conjugal para a sua validade. José Luiz Gavião de Almeida pondera que “sendo ato unilateral, de não aceitação de direito hereditário, não se pode exigir a anuência do cônjuge. Esta se faz necessária nos casos de disposição patrimonial relativa a bem imóvel. Aqui não há ato de disposição, mas de não aceitação. Para dispor, há necessidade de ser titular do direito, situação que não acontece quando da renúncia” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 132). Nesse sentido, Maria Helena Diniz afirma que “renúncia e aceitação da herança é ato próprio de quem é herdeiro, regendo-se pelo direito das sucessões e não de família, logo o art. 1.647 não é aplicável” (Curso..., 2005, v. 6, p. 75). Entretanto, em sentido contrário, entendemos que a renúncia da herança necessita, para sua validade, da concordância do cônjuge do renunciante, salvo se casado pelo regime da separação absoluta de bens (art. 1.647 do CC), pois a sucessão aberta é considerada bem imóvel (art. 80, II, do CC). Nesse sentido posicionam-se, entre outros, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira (Inventários e partilhas..., 2006, p. 57), Zeno Veloso (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.504), Francisco José Cahali (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 100) e Sílvio de Salvo Venosa e Débora Gozzo (Comentários..., 2004, p. 114). Além disso, há um ato de disposição, nos exatos termos do art. 1.647, I, do CC. Sobre a questão da desnecessidade em caso de regime da separação absoluta de bens, vale dizer que a regra entrou em vigor com o Código Civil de 2002, pois a
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concordância era necessária qualquer que fosse o regime de bens, na vigência do Código Civil de 1916 (art. 235). Diante disso, a questão que surge é a seguinte: a nova disposição atinge as pessoas casadas sob a vigência do Código Civil de 1916 ou apenas as casadas pelo sistema do Código Civil de 2002? A dúvida decorre da regra de transição prevista no Código Civil de 2002, pela qual o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior é o por ele estabelecido (art. 2.039 do CC/2002). Para parte da doutrina, o artigo impediria que os casados sob a vigência do revogado Código Civil, pelo regime da separação absoluta, alienassem bens imóveis sem a concordância do cônjuge (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil..., 2005, v. 6). Entretanto, a doutrina majoritária, à qual os presentes autores filiam, afirma que, por força do disposto no art. 2.035 do CC em vigor, em se tratando de validade do negócio jurídico, deve ser aplicada a lei do momento de sua celebração. Assim sendo, se a renúncia à herança for praticada na vigência do Código Civil de 2002 e o regime de bens for o da separação absoluta, a vênia está dispensada. Já se a renúncia se realizou na vigência do revogado Código Civil, a vênia era imprescindível qualquer que fosse o regime de bens, e sua ausência geraria a nulidade do negócio jurídico. Nesse sentido, cuidando da venda de imóveis, impecável a decisão do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, relatada pelo Desembargador José Mário Antônio Cardinale, datado de 7 de julho de 2005:
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“Registro de Imóveis – Escritura pública de venda e compra – Recusa com base no art. 235, I, do Código Civil de 1916, combinado com o art. 2.039 do Código Civil de 2002 – Ausência de outorga uxória – Dúvida improcedente – Formalidade legal não inerente ao regime de bens adotado – Incidência do art. 1.647, I, do diploma atual, que não afeta ou modifica tal regime – Registro cabível – Recurso não provido. E, da mesma forma, não merece guarida o entendimento de que a aplicação imediata de seu artigo 1.647, I (dispensando a autorização quando o regime for o da separação absoluta), viola ato jurídico perfeito, qual seja o pacto antenupcial celebrado sob a égide da legislação pretérita. Tal pacto versa, evidentemente, sobre o regime de bens em si e não acerca de aspectos exteriores a ele, como o que aqui se examina. Assim, impende concluir que os negócios jurídicos realizados na vigência do velho Código Civil, envolvendo imóveis de pessoas casadas, obedecem às regras por ele estabelecidas, enquanto aqueles celebrados sob a vigência do novo estatuto substantivo respeitarão as normas previstas neste último, de modo a dispensar a autorização do outro cônjuge nos casos de alienação e oneração de imóveis quando o regime for o da separação, ainda que o alienante tenha se casado com pacto de incomunicabilidade patrimonial sob a égide da legislação anterior” (TJSP, Apelação Cível 356-6/6).
Com a efetivação da renúncia válida na sucessão legítima, a parte do renunciante acresce aos demais herdeiros da mesma classe e sendo ele o único daquela classe, devolve-se sua parte aos da classe subsequente (art. 1.810 do CC). O texto, na sua literalidade, deve ser compreendido da seguinte maneira: a quota do renunciante será partilhada entre os herdeiros de mesma classe que recebem a herança conjuntamente ao renunciante.
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O conceito de classe será explicado com detalhes no Capítulo 2 da presente obra, que cuida da sucessão legítima. De maneira sucinta são classes de herdeiros aquelas estabelecidas no revogado art. 1.603 do CC/1916 e no art. 1.829 do Código Civil em vigor: os descendentes, os ascendentes, o cônjuge sobrevivente e os colaterais até 4.º grau; bem como o companheiro (art. 1.790 do CC/2002). A título de ilustração, se estiverem B, C e D na qualidade de descendentes e únicos herdeiros do falecido, e renunciando o primeiro à herança, a sua quota será dividida em partes iguais entre C e D, pois os três são herdeiros da mesma classe (a dos descendentes). Vejamos o diagrama sucessório para o caso em questão:
Por outro lado, se o falecido deixou apenas José, seu único filho, e Antonio e Deise, seus pais, e nenhum outro parente, cônjuge ou companheiro, se José renunciar à herança, inexistindo outros descendentes, a herança vai para a classe dos ascendentes, e Antonio e Deise a partilharão. Cabe salientar que ninguém pode suceder representando herdeiro renunciante. Se, porém, ele for o único
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legítimo da sua classe, ou se todos os outros da mesma classe renunciarem à herança, poderão os filhos vir à sucessão, por direito próprio, e por cabeça, segundo enuncia a segunda parte do art. 1.811 do atual CC. Exemplificando, se o falecido deixa dois filhos e três netos, e o falecido não era casado nem vivia em união estável, caso todos os filhos renunciem à herança, os três netos receberão por direito próprio e não por representação. Vejamos a situação no diagrama sucessório esquematizado a seguir:
Outra situação de renúncia que vale a pena mencionar é a seguinte: o falecido deixa dois filhos e três netos, e o falecido não era casado nem vivia em união estável, e apenas um de seus filhos renuncia. A herança pertencerá na totalidade ao outro filho, conforme o esquema a seguir:
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Importante frisar que nos parece muito adequada e pertinente a lição de José Luiz Gavião de Almeida ao afirmar que a regra contida no art. 1.810 está incompleta, pois “não recebem todos os da mesma classe, mas os da mesma classe, grau e linha do renunciante” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 141). Para o jurista citado, caso o falecido deixe como únicos herdeiros os seus ascendentes, sendo dois avós maternos e dois paternos, caso a avó materna renuncie, seu quinhão irá apenas para o avô materno e não para os demais ascendentes. Com a solução apontada concorda também Euclides de Oliveira que em e-mail aos autores dessa obra assim se posicionou: “realmente, a mens legis é a de que a cota do renunciante fique para os coerdeiros não só da mesma classe (dicção do art. 1.810), mas também do mesmo grau (é claro, se não traria distorções absurdas) e, no caso dos ascendentes, ao da mesma linha, porque esse é o critério de transmissão a essa classe de herdeiros (art. 1.836, § 2.º)”.
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Entre os vários autores pesquisados, encontramos apenas duas menções à tese defendida pelo mestre por último citado, com a qual concordamos integralmente. Primeiramente, nesse mesmo sentido, Clóvis Beviláqua afirma que “se o renunciante for neto, a sua parte será devolvida a seus irmãos e, na falta destes, aos outros herdeiros” (Código Civil..., v. VI, p. 30). Além dele, Carvalho Santos, com base nas lições de Baudry-Whal, Pacifici Mazzoni, Laurent e Demolombe, segue idêntica linha de raciocínio. Para ele, o entendimento toma por base a ideia de que o renunciante nunca foi herdeiro (Código Civil..., 1937, v. XXII, p. 179). Assim, se o falecido A deixar como únicos herdeiros seus netos D e E, irmãos e filhos de B (que morreu antes de seu pai A), bem como F e G, irmãos e filhos de C (que também morreu antes de sue pai A) e caso o neto D renuncie à herança (de acordo com José Luiz Gavião de Almeida, com amparo em Carvalho Santos) a situação da herança seria a seguinte: o neto E ficaria com 50% dos bens e F e G com os outros 50%. Vejamos o diagrama:
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Se adotássemos a interpretação literal do dispositivo que é mencionada pela maioria da doutrina, o quinhão do neto renunciante D seria dividido em três partes iguais pelos netos E, F e G. Vejamos o novo diagrama:
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A questão é polêmica. Entretanto, o espírito do legislador não foi o de devolver a quota do renunciante a todos da mesma classe, mas sim da mesma classe, grau e linha. Analisemos mais um exemplo de Carvalho Santos sobre o tema da renúncia (Código Civil brasileiro..., 1937, v. XXII, p. 180): A, por testamento, deixa sua herança para B e C que não são parentes entre si, mas apenas amigos do falecido. B falece antes de manifestar sua aceitação e deixa dois filhos D e E. E renuncia à herança e D a aceita. Quem recolhe o seu quinhão? C como herdeiro testamentário ou D como irmão do renunciante? A resposta é D, por ser da mesma classe de E.
Frise-se que na sucessão testamentária, a renúncia pode implicar direito de acrescer ou substituição, conforme será analisado em momento oportuno nesta obra.
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Para concluir o estudo da renúncia da herança, devese entender que, no momento em que o herdeiro prejudicar os seus credores, renunciando à herança, poderão eles, com autorização do juiz, aceitá-la em nome do renunciante (art. 1.813, caput, do CC). Trata-se de situação em que o herdeiro renuncia à herança como forma de prejudicar seus próprios credores. Repare que a lei não menciona credores do falecido, mesmo porque os credores do falecido não precisam “aceitar” a sua herança, podendo se habilitar no inventário para o pagamento. Cabe salientar que não se está diante da figura da fraude contra credores como vício do negócio jurídico, que exige a presença dos elementos objetivo (eventus damni) e subjetivo (consilium fraudis), atinge o plano da validade do negócio jurídico e gera a anulabilidade do ato por expressa determinação legal (art. 171, II, do CC). No caso da aceitação pelos credores do herdeiro renunciante, não se discute a sua validade, mas apenas a sua eficácia. Assim, a questão se situa no último degrau da Escada Ponteana, à luz da clássica divisão, concebida por Pontes de Miranda, de divisão dos atos e negócios jurídicos em três planos: plano da existência (1.º degrau), plano da validade (2.º degrau) e plano da eficácia (3.º degrau). Desse modo, conferem-se apenas efeitos parciais a essa aceitação pelos credores, uma vez que, pagas as dívidas do renunciante, prevalece a renúncia quanto ao remanescente, que será devolvido aos demais herdeiros, o que pode ser retirado do art. 1.808, § 2.º, do CC (“O herdeiro, chamado, na mesma sucessão, a mais de um quinhão hereditário, sob títulos sucessórios diversos, pode livremente deliberar quanto aos quinhões que aceita e aos
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que renuncia”). Portanto, a renúncia produz efeitos, por exemplo, em relação aos herdeiros do renunciante que não herdam por representação. Seria esse ato dos credores, realmente, uma forma de aceitação? A resposta é negativa, pois se o credor agisse na qualidade de mandatário ou representante do herdeiro ao aceitar a herança, ainda que bens restassem ou sobrassem, após pagas as dívidas, este remanescente pertenceria ao renunciante, o que não ocorre no caso descrito. É o que Eduardo de Oliveira Leite chama de sub-rogação de credores em exceção ao princípio da pessoalidade (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 151). Não poderia também se tratar de fraude contra credores pelo fato de o credor do herdeiro, ao se tornar credor, não poder contar com um patrimônio que este ainda não dispunha, como garantia da dívida. Havia, no momento da concessão do crédito, apenas uma expectativa de direito, pois o devedor poderia nada receber quando do falecimento do de cujus, quer seja pelo fato de pré-morrer ao autor da herança, ou por ser declarado indigno ou deserdado, ou simplesmente pelo fato de o autor da herança nada deixar ao falecer. Os credores não podem contar com bens inexistentes no patrimônio do falecido no momento em que a dívida surgiu. Portanto, não será necessária nenhuma demanda assemelhada à ação pauliana a ser movida pelos credores do renunciante no caso descrito. A habilitação dos credores no inventário será feita no prazo de 30 dias seguintes ao conhecimento da renúncia, sob pena de decadência (art. 1.813, § 1.º, do CC). Entretanto, como bem salienta Washington de Barros
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Monteiro, “se o processo se acha encerrado, tornar-se-á inviável a aceitação da herança pelos credores. Será o caso, então, de repetir para estes, o velho brocardo dormientibus non succurit jus” (Curso..., 2003, v. 6, p. 57). Ainda sobre o tema, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira afirmam que o “o pedido de aceitação de herança por credor de herdeiro renunciante formulado após o julgamento da partilha, não pode ser concedido se não interposto recurso na qualidade de terceiro prejudicado, deixando ocorrer o trânsito em julgado” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 58). A lei não admite expressamente o mesmo direito aos credores do legatário. Assim, surge a seguinte dúvida: poderiam os seus credores aceitar o legado a que se renunciou? Para Washington de Barros Monteiro a resposta é negativa, “porque semelhante recusa pode ser fruto de ponderosas razões de ordem moral e também porque contra a vontade não se faz benefício (invito beneficium non datur)” (Curso..., 2003, v. 6, p. 57). Parece acertada a opinião em sentido contrário de José Luiz Gavião de Almeida, segundo a qual “também há benefício ao herdeiro instituído, que não se pode entender seja afastada a regra do art. 1.813. E as ponderosas razões para não se aceitar, podem existir também na herança. (...) A dificuldade de inclusão dos credores do legatário estaria, exclusivamente, na literalidade do dispositivo” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 151). Mais uma vez, a doutrina atual do Direito Civil prevalece sobre a anterior.
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Superada a análise dessas regras específicas, veremos o estudo das regras comuns à aceitação e à renúncia da herança. 1.4.3 Das regras comuns à aceitação e à renúncia da herança Além de regras específicas relativas aos institutos aqui estudados, o Código Civil de 2002 traz regras comuns quanto à aceitação e à renúncia da herança. A primeira regra que se observa é que tanto a renúncia quanto a aceitação da herança são irrevogáveis (art. 1.812 do CC). De fato, não é o herdeiro obrigado a aceitar a herança, tendo ampla liberdade para repudiá-la. Contudo, os atos de aceitação e de renúncia não comportam arrependimento em razão da insegurança jurídica que isso criaria. Justamente por isso, na visão romana, a aceitação era tradicionalmente irrevogável (semel heres semper heres). O que se percebe quanto ao tema é que o Código Civil em vigor rompe com o sistema do seu antecessor, que previa que a aceitação poderia se revogada desde que não causasse prejuízos a terceiros (art. 1.590 do CC/1916). Também, o Código Civil de 2002 não reproduz o equívoco conceitual desse dispositivo anterior, que determinava ser retratável a renúncia decorrente de violência, erro ou dolo. Realmente, a coação, o dolo e o erro são motivos para a anulação do negócio jurídico, já que afetam sua validade de forma até sanável. Na Escada Ponteana, os motivos de nulidade ou de anulabilidade atuam no plano da validade (2.º degrau). Por outro lado, a revogação por vontade de uma das partes, como espécie de resilição
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unilateral, atinge o plano da eficácia do negócio jurídico (3.º degrau). Em resumo, tanto a aceitação quanto a renúncia poderão ser anuladas em razão de vícios do consentimento, independentemente de previsão legal expressa, em decorrência dos vícios, constantes na Parte Geral do Código Civil, nos prazos do art. 178 do diploma civil. Outra importante regra sobre a aceitação e a renúncia é aquela que diz que não se pode aceitar ou renunciar a herança sob condição ou termo (art. 1.808, caput, do CC). Isso significa que os efeitos da aceitação e da renúncia não poderão estar subordinados a um evento futuro e incerto – condição –, nem a um evento futuro e certo – termo. A título de exemplo, não pode o herdeiro João aceitar a herança se o herdeiro José a ela renunciar (condição suspensiva). Também não poderá o herdeiro Pedro aceitar a herança até o ano de 2010 (termo resolutivo). Pois bem, mas qual seria a consequência dessa aceitação ou renúncia sob condição ou termo? Na doutrina clássica, o questionamento é respondido com brilhantismo por Carvalho Santos, no sentido de que, em se tratando de “aceitação, a condição ou o termo, a que o herdeiro a tivesse sujeitado, seria considerado não escrito, precisamente porque a renúncia não se presume, enquanto que a aceitação se presume ainda que em caso de dúvida ou incerteza. No tocante à renúncia, a condição e o termo que fossem opostos tirar-lhe-iam toda a validade. Tratar-se-ia de um ato nulo” (Código Civil brasileiro..., 1937, v. XXII, p. 140). Também a herança não pode ser aceita ou renunciada em partes, mas apenas como um todo em razão de sua
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indivisibilidade, regra esta que também é extraída do art. 1.808, caput, da atual codificação. Como visto, a herança constitui uma universalidade de direito e, portanto, não pode o herdeiro aceitar apenas certos bens ou direitos e renunciar a outros. Seria bom e agradável se ele pudesse aceitar apenas os bens e renunciar às dívidas, mas isso o herdeiro, por razões óbvias, não pode fazer. Todavia, a regra em comento comporta duas exceções. A primeira dessas exceções refere-se ao herdeiro a quem se testarem legados, que pode aceitá-los, renunciando à herança; ou, aceitando-a, repudiá-los (art. 1.808, § 1.º, do CC). Realmente, se o herdeiro também for nomeado como legatário, recebe a universalidade dos bens (a herança), bem como o bem destacado e singular (legado). A renúncia e a aceitação de um ou de outro não fere a ideia de indivisibilidade da herança como universalidade de direito que é. Ocorre, no caso em questão, uma diversidade de causas sucessórias. No campo prático, se João e José são herdeiros legítimos do testador e José também é nomeado legatário de um piano, o último poderá aceitar a herança repudiando ao piano ou aceitar este e repudiar a herança. A regra é bastante lógica, pois, se o testamento vier a ser anulado ou revogado pelo testador, José perde o legado, mas não a condição de herdeiro legítimo. Como segunda exceção, há o caso do herdeiro chamado, na mesma sucessão, a mais de um quinhão hereditário, sob títulos sucessórios diversos. Pelo que consta do art. 1.808, § 2.º, do CC, esse herdeiro pode, livremente, deliberar quanto aos quinhões que aceita e que renuncia. Ilustrando, se João e José são filhos do testador e José
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recebe, em virtude de testamento, a parte disponível terá direito a dois quinhões hereditários – o da sucessão legítima e o da testamentária –, e poderá aceitar um quinhão e renunciar ao outro. Nesse ponto, surge mais uma dúvida: se o testador deixou dois legados em favor de seu sobrinho João, poderia o legatário aceitar um e repudiar o outro? A resposta é “depende”. Deve-se verificar a vontade do testador, como lembra Carvalho Santos, “a fim de verificar se ele quis global ou divisível o legado; na dúvida é de concluir pela aceitação na íntegra, considerada nula a renúncia parcial” (Código Civil brasileiro..., v. XXII, p. 142). Por outro lado, se “um de dois irmãos, herdeiros necessários, falece, renuncia ou é considerado indigno sem deixar representante, a sua parte acresce ao sobrevivo. Mas este recolhe a totalidade da herança por título único, pelo que não poderia pretender aceitar o que lhe estava sendo deferido originalmente e recusar o acréscimo que lhe veio pela pré-morte, renúncia ou indignidade do irmão” (ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil..., 2003, p. 138). Em se tratando de direito de acrescer, não se pode aceitar a herança ou legado e repudiar o acréscimo ou vice-versa. Com a análise dessas duas exceções, sendo a última a mais polêmica, encerra-se o estudo da aceitação e da renúncia à herança. A partir do presente momento, passase a analisar os excluídos da sucessão.
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1.5 DOS EXCLUÍDOS DA SUCESSÃO: DA INDIGNIDADE E DA DESERDAÇÃO 1.5.1 Das regras gerais da indignidade e da deserdação No capítulo V do Título I, constante do livro do Direito das Sucessões, cuida o legislador, sob a rubrica “Dos Excluídos da Sucessão”, da hipótese de indignidade e as suas consequências. Mais à frente, ao tratar da sucessão testamentária, no capítulo X do Título III, cuida a lei do instituto da deserdação. Como se percebe, diante dessa organização topográfica, pode-se concluir que os institutos jurídicos previstos são totalmente distintos. Mesmo assim, por uma questão didática, resolvemos abordar conjuntamente as duas categorias, apontando as suas semelhanças e as suas diferenças. A opção tem a sua razão de ser, eis que, na prática, os aplicadores do Direito costumam confundir ambos os institutos como se sinônimos fossem. Isso porque as causas de indignidade são causas também de deserdação (arts. 1.814 e 1.962 do CC). Trata-se de um ledo engano, que se revela imperdoável. Dos conceitos dos institutos podemos perceber tanto as suas semelhanças quanto as suas diferenças. Na doutrina clássica, Clóvis Beviláqua explica que a “deserdação é o ato pelo qual o herdeiro necessário é privado de sua porção legítima e só pode ser efetuada por testamento” (Direito das sucessões..., 1932, p. 297). Já a indignidade, na definição de Washington de Barros Monteiro, “é a pena civil cominada ao herdeiro acusado de atos criminosos ou reprováveis contra o de cujus. Com a prática
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desses atos, incompatibiliza-se ele com a posição de herdeiro, tornando-se incapaz de suceder” (Curso..., 2003, v. 6, p. 62). A questão inicial que se coloca é saber se o indigno e o deserdado são realmente incapazes de receber a herança ou se lhes falta legitimação. Para Francisco Cahali, “embora didaticamente tratada em conjunto com a legitimação, a exclusão por indignidade representa mais propriamente a retirada do direito à herança de quem é sucessor capaz, em virtude de atos de ingratidão” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 135). Silvio Rodrigues apresenta o debate nos seguintes termos: “Escritores modernos e antigos insistem na diferença que existe entre incapacidade para suceder, que é a inaptidão de alguém para receber uma herança por razões de ordem geral que independam de seu mérito ou demérito e, indignidade, que é a perda da herança, com pena imposta ao sucessor capaz, em virtude de atos de ingratidão por ele praticados contra o defunto. No dizer de Planiol, a indignidade supõe capacidade para suceder e se funda em motivos pessoais do indigno” (Direito civil..., v. 7, p. 66). Já Washington de Barros Monteiro trabalha os institutos como causas de incapacidades (Curso..., 2003, v. 6, p. 63). Mas, em sentido contrário, Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado tratam a matéria como motivo de falta de legitimação (Código Civil..., 2005, p. 909). Essa última interpretação parece ser a mais adequada, pois o caso, realmente, é de falta de capacidade especial exigida para herdar. Contribui para o debate o jurista Eduardo de Oliveira Leite, para quem “a incapacidade é a falta de aptidão para adquirir direitos, enquanto a indignidade é a perda desta aptidão por culpa do beneficiado” (Comentários..., 2004,
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v. XXI, p. 157). Como se pode perceber, aquele que atentou dolosamente contra a vida do pai é civilmente capaz (capacidade genérica), mas não legitimado a suceder (situação específica); pode comprar bens, vendê-los ou doá-los, mas lhe falta legitimidade naquela sucessão. Após essa visão estrutural, será traçado um importante paralelo entre a indignidade e a deserdação, de forma pontual. a) Semelhanças entre os institutos: – Tanto o indigno quanto o deserdado terão a mesma pena, qual seja a não participação da sucessão do falecido e um mesmo fundamento: a vontade do morto que “não desejaria, por certo, fossem seus bens recolhidos por quem se mostrou capaz de tão grave insídia” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., 2003, v. 6, p. 62). – Tanto a indignidade quanto a deserdação deverão ser necessariamente confirmadas por sentença (arts. 1.815 e 1.965 do CC), sob pena de não produzirem efeitos e o herdeiro participar normalmente da sucessão. Nesse ponto, vale dizer que, quando do assassinato do casal Von Richthofen, foi proposto perante o Congresso Nacional o Projeto de Lei 141/2003, de autoria do Deputado fluminense Paulo Baltazar, que pretendia alterar o art. 92 do Código Penal, para que a exclusão da sucessão passasse a ser efeito automático da sentença condenatória. O projeto acrescia o seguinte inciso ao citado art. 92 do CP: “IV – A exclusão dos herdeiros ou legatários que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente”. Quanto aos motivos do projeto de lei, seriam eles os seguintes: “O caso recente noticiado com destaque em
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todos os meios de comunicação – o de Suzane Loise Von Richthofen pelo assassinato dos seus genitores – Manfred e Marísia, é, hoje, alvo prioritário do estudo de criminalistas, psicoterapeutas, psiquiatras e legisladores que tentam barrar a onda de violência familiar. Este tipo de delito é gravíssimo e deve ser reprimido com penas severas, porém não deixará de existir, já que, desde os tempos bíblicos, ele ocorre, vez por outra motivado pela ganância humana ou pela insensatez dos que deveriam amar àqueles a quem o Direito salvaguarda a legitimidade da Sucessão, seja na qualidade de herdeiro ou de legatário, em vez disso expõe a fragilidade dos valores morais e humanos de uma sociedade que regula através do Estado os limites da vida familiar”. – Tanto a ação de indignidade quanto a de deserdação só podem ser propostas após a morte do de cujus, pois o direito à herança só surge quando se abre a sucessão, o que não impede que, ainda em vida, ocorra uma medida cautelar de produção antecipada de provas. – As causas de indignidade coincidem com as de deserdação e vêm previstas no art. 1.814 do Código Civil em vigor. Entretanto, consagra a lei algumas causas exclusivas para a deserdação (art. 1.962 do CC). Essas causas, segundo o entendimento majoritário, são causas taxativas (numerus clausus), e não meramente exemplificativas (numerus apertus). Em sentido contrário, entende Carlos Eduardo Minozzo Polleto, com base nas lições de José de Oliveira Ascensão, que enquanto na técnica taxativa (numerus clausus) “a norma fixa todas as especificações possíveis”, restando vedada à analogia, na enumeração exemplificativa (numerus apertus), se acolhe tanto a analogia legis como a analogia iuris, situando-se entre essas duas a tipologia delimitativa, em que “somente é possível a elaboração de novas figuras análogas a algum dos tipos normativamente previstos”, ou seja, admite-se somente o uso
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da analogia legis (limitada). Assim, as causas de deserdação e de extinção do poder familiar, bem como as que autorizam a revogação da doação, por exemplo, podem ser perfeitamente aplicadas para afastar o sucessor por indignidade. Desse modo, ainda que a recusa injustificada da prestação de alimentos ao de cuius não esteja prevista no rol das causas de indignidade, assim poderá se considerar, aplicando-se, por analogia, o disposto no inciso IV do artigo 557 do CC/2002, que cuida da revogação da doação por ingratidão do donatário que, podendo ministrar, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava (A exclusão da sucessão..., 2009, p. 148).
b) Diferenças entre os institutos. – Enquanto a indignidade decorre de determinação legal e da vontade dos interessados, que devem propor ação judicial para que seja reconhecida, a deserdação resulta da vontade do falecido, que assim a determina por meio de testamento. – A indignidade é matéria de sucessão legítima e testamentária; já a deserdação apenas envolve a sucessão testamentária. Isso não quer dizer que os efeitos da deserdação não alteram a sucessão legítima, mas sim que a deserdação só se faz por testamento, cabendo ao testador declarar expressamente os seus motivos, sob pena de esta não valer (art. 1.964 do CC). – A pena de indignidade pode ser cominada aos herdeiros necessários (filhos, netos, pais, cônjuge) ou aos herdeiros facultativos (sobrinhos, tios, primos, tios-avôs, sobrinhosnetos ou mesmo estranhos nomeados herdeiros por testamento). Por outra via, a pena de deserdação só atinge os herdeiros necessários, sendo forma própria para lhes retirar o direito à legítima (art. 1.961 do CC). Um exemplo esclarece a questão. Se o sobrinho, herdeiro facultativo,
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assassina dolosamente seu tio, os demais herdeiros podem propor a ação de exclusão por indignidade. Se o sobrinho, nomeado em testamento, tenta matar seu tio e não consegue, o tio não precisará deserdá-lo para afastálo da sucessão. Como não é herdeiro necessário, basta que o tio faça outro testamento que não o contemple. Por outro lado, se o filho tenta matar o pai dolosamente e não consegue, os demais herdeiros podem propor a ação de indignidade ou o pai, se quiser, pode deserdá-lo por testamento. – Explica José Luiz Gavião de Almeida que “até circunstâncias posteriores à morte do autor da herança podem ser reconhecidas como provocadoras da indignidade. A deserdação só se estabelece por causas anteriores à morte do autor da herança, pois só se estabelece pela via testamentária” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 157). – Enquanto o indigno entra na posse dos bens da herança desde logo, pois a indignidade decorre de ação judicial que a constitua, o deserdado não entra na posse de forma imediata, pois enquanto “não se decida a veracidade das causas da deserdação, os bens da herança permanecerão em depósito, na posse e guarda do inventariante, do testamenteiro ou quem o juiz indicar para tal mister” (CAHALI, FRANCISCO e HIRONAKA, GISELDA, Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 372). A ação apenas confirmará as causas da deserdação.
Por derradeiro, apontadas as diferenças, percebe-se, desde logo que, no famoso caso de homicídio ocorrido em São Paulo constante da proposta legislativa aqui mencionada, não pode se tratar de situação de deserdação, pois esta só corre por testamento. O caso é de indignidade evidente.
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1.5.2 Dos efeitos pessoais da indignidade e a dúvida quanto à deserdação Uma dúvida que surge quando do estudo das diferenças entre os institutos em comento decorre da previsão contida no art. 1.816 do Código Civil em vigor, a saber: “São pessoais os efeitos da exclusão; os descendentes do herdeiro excluído sucedem, como se ele morto fosse antes da abertura da sucessão”. Pelo que consta desse comando legal, em se tratando de indignidade, a pena não atinge os sucessores do indigno que não serão punidos pelos atos reprováveis deste, o que é aplicação do princípio da intranscendência ou da personalidade da pena. Portanto, se o indigno é excluído da sucessão de seu pai, seus filhos herdam por representação, instituto este que será estudado no próximo capítulo da presente obra. Nesse sentido, se A, pai de B e C, sem cônjuge ou companheiro, falece em razão de homicídio doloso praticado por seu filho B, com a declaração de indignidade deste, a herança será apenas de C. Entretanto, se B tinha dois filhos D e E, serão eles os herdeiros de 50% da herança por representação a seu pai B. Vejamos o diagrama sucessório, do último caso relatado, a seguir:
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Para a efetividade da punição prevista para o indigno, caso seus descendentes (que herdaram por representação) sejam menores, não pode o excluído, na qualidade de genitor, administrar os bens herdados. Também, não seria completa a pena se, em caso de morte de seus filhos, o indigno recebesse em sucessão os bens em questão. Por isso determina o Código Civil que o excluído da sucessão não terá direito ao usufruto ou à administração dos bens que a seus sucessores couberem na herança, nem à sucessão eventual desses bens (art. 1.816, parágrafo único, do CC). No último exemplo, se D vier a falecer, os bens que ele recebeu do avô A, por representação, não se transmitirão a seu pai B, considerado indigno. Entretanto, os demais bens que pertençam a D (excluindo-se os recebidos de A), serão transmitidos ao seu pai B.
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Com relação ao revogado Código Civil percebe-se que se trocou a expressão “filhos”, contida no art. 1.602 daquele diploma, por “sucessores” (art. 1.816, parágrafo único, do CC/2002). Parece correta a ampliação legal ocorrida, pois em certas hipóteses o chamado a suceder não será o filho, mas sim um parente colateral do indigno. Vejamos um exemplo desse último caso: C e D são irmãos, sendo que os ascendentes de ambos já são falecidos, ou seja, ambos não têm pais, avós etc. Os seus únicos parentes sucessíveis vivos são seus tios A e B. Caso o sobrinho C mate seu tio A, a herança ficará divida entre seu tio B e seu irmão D. Assim, visualiza-se o seguinte diagrama sucessório:
Por outro lado, se o tio B vier a falecer posteriormente, a herança que recebeu de A não será transmitida a C (indigno), razão pela qual está correto o Código Civil em vigor ao falar que os bens não se transmitem ao sucessor e
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não apenas ao filho. Vejamos o diagrama sucessório com relação aos bens de A e também de B:
A questão que precisa ser analisada é se, em caso de deserdação, podem os descendentes do deserdado herdar por representação, já que não há menção expressa no Código Civil de 2002. De imediato, pode-se dizer que a questão é polêmica. O sempre citado José Luiz Gavião de Almeida entende que enquanto a “indignidade gera efeitos pessoais ao indigno, a deserdação atinge os herdeiros do deserdado, conquanto esta observação não seja pacífica” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 156). Washington de Barros Monteiro chegou à conclusão de que o tratamento diferenciado o ocorre em razão “de que o Código Civil de 1916 não fazia referência, quanto à deserdação, a efeito previsto da indignidade, que não excluía da herança os sucessores do indigno” (Curso..., 2003, v. 6, p. 247). Em sua atualização por Ana Cristina Barros Monteiro França Pinto, a
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orientação muda para que haja identidade dos institutos quanto a tais efeitos, sob o argumento de ser “forçoso reconhecer que ante a natureza de penalidade que acompanha a deserdação, seus efeitos hão de ser pessoais, não podendo ir além da pessoa que de forma tão reprovável procedeu” (Curso..., 2003, v. 6, p. 247). Carvalho Santos compila voto da lavra de Joaquim Celidonio, Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, do distante ano de 1931, que conclui, após análise de legislação estrangeira, que ocorre a representação dos descendentes do deserdado de acordo com o Código Civil argentino (art. 3.749), o Código Civil espanhol (art. 857) e o Código Civil uruguaio (art. 902). A conclusão é que não é diferente o sistema brasileiro (Código Civil brasileiro..., 1937, v. 22, p. 234). Silvio Rodrigues entende que os efeitos dos institutos são idênticos, sendo tal posição justificável e conveniente, pois “justificável, porque constitui mera aplicação de um princípio geral de direito, que impede a punição do inocente, consagrando a ideia de personalização da pena (...) e conveniente porque, sendo a deserdação um instituto enormemente combatido, deve-se restringir ao invés de aumentar o seu alcance” (Direito civil..., v. 7, p. 262). Essa é exatamente a nossa opinião, no sentido de que tantos os descendentes do deserdado quanto os do indigno herdarão por representação. De qualquer forma, a celeuma será definitivamente sepultada, pelo menos aparentemente, se aprovado for o PL 699/2011, antigo PL 6.960/2002, que cria um § 2.º ao art. 1.965, nos seguintes termos: “§ 2.º São pessoais os efeitos da deserdação: os descendentes do herdeiro
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deserdado sucedem, como se ele morto fosse antes da abertura da sucessão. Mas o deserdado não terá direito ao usufruto ou à administração dos bens que a seus sucessores couberem na herança, nem à sucessão eventual desses bens”. Como se nota, a posição dos últimos juristas citados está de acordo com o entendimento constante da proposta de lei. Justamente por isso, tal posicionamento pode ser considerado como majoritário para os devidos fins. 1.5.3 Da legitimidade para a propositura das demandas e seus prazos Outro aspecto importante a ser observado diz respeito à legitimidade para a propositura das ações objetivando a indignidade e a deserdação. Vejamos essas regras. De início, importante dizer que, na hipótese de deserdação, o ônus de provar a causa estabelecida em testamento será daquele a quem a deserdação aproveita, ou seja, ao herdeiro ou legatário que se beneficiem com a deserdação (art. 1.965 do CC). Já no caso de indignidade é omissa a lei quanto à legitimidade para a propositura da demanda. No silêncio da lei e por se tratar de matéria patrimonial e que não interessa à ordem pública, entendemos que apenas os interessados na indignidade podem pleiteála. Explica José Luiz Gavião de Almeida que “a legitimidade estabelece-se pelo interesse material em disputa. Aquele que pode vir a se beneficiar com a decisão judicial na ação de indignidade pode promover essa ação” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 164).
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Sendo assim, não teria o Ministério Público legitimidade para tanto, salvo se objetivasse a exclusão dos herdeiros para a vacância da herança. Mesmo porque, em se tratando de questão meramente patrimonial, não há interesse público envolvido. Supondo que o MP agisse contra a vontade dos herdeiros e propusesse a ação de indignidade contra um deles, que matou dolosamente seu pai. Tendo em vista a discordância dos demais herdeiros, irmãos do deserdado, poderiam eles beneficiar o deserdado por meios indiretos, tais como depósitos em dinheiro na conta do último. Inócua a ação promovida, então. A questão, entretanto, não é pacífica. Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado anotam a opinião de diversos autores no tocante à legitimidade que transcrevemos: “Ressalta Giselda Maria Fernandes Novais Hironaka que ‘não terá legitimidade ativa aquele que, embora sucessor do ofendido, não se beneficiar diretamente com a exclusão. Assim, o irmão do indigno parece não ter legitimidade para propor a ação quando o indigno tiver filhos, uma vez que operada a exclusão estes herdarão no lugar do ofensor’. No mesmo sentido Guilherme Calmon Nogueira da Gama, a negar, inclusive, a legitimidade ativa do Ministério Público, mesmo nos casos de homicídio. Silvio Venosa e Maria Helena Diniz defendem expressamente a legitimidade do MP, na omissão dos herdeiros” (Código Civil..., 2005, p. 931).
Como se pode perceber, trata-se de questão controvertida na prática do Direito das Sucessões. Na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em setembro de 2002, prevaleceu
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o entendimento pelo qual teria o MP legitimidade, diante do Enunciado n. 116, com o seguinte teor: “O Ministério Público, por força do art. 1.815 do Código Civil, desde que presente o interesse público, tem legitimidade para promover a ação visando à declaração da indignidade do herdeiro ou legatário”. Concluindo, pode-se considerar que esse é o entendimento majoritário, inclusive por ser a posição de Sílvio Venosa e Maria Helena Diniz. Tanto a indignidade quanto a deserdação deverão ser necessariamente confirmadas por sentença, o que pode ser retirado dos arts. 1.815 e 1.965 do CC, respectivamente. Isso, sob pena de não produzirem efeitos, fazendo que o herdeiro participe normalmente da sucessão. Em ambas as hipóteses, o prazo para a demanda é decadencial, pois a ação terá natureza constitutiva negativa, levando-se em conta o critério científico para distinguir a prescrição da decadência criado por Agnelo Amorim Filho (RT 300/7 e 744/725). Quanto ao prazo, a diferença está no termo inicial de contagem para o seu reconhecimento. A ação contra o indigno deve ser proposta no prazo de quatro anos, contados da abertura da sucessão (art. 1.815, parágrafo único, do CC), enquanto a ação contra o deserdado deve ser proposta também em quatro anos, mas contados da abertura do testamento (art. 1.965, parágrafo único, do CC). Essa diferença é substancial e deve se observada em eventual comparação entre os institutos. Cabe observar, ainda, sobre o tema, que o PL 699/ 2011, antigo PL 6.960/2002, de autoria original do Deputado Ricardo Fiuza, pretende modificar o prazo para a propositura das demandas, sob o argumento de que é
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excessivamente longo o prazo de quatro anos. O projeto de alteração legislativa, para as hipóteses de indignidade, pretende reduzir o prazo para dois anos, contados da abertura da sucessão, alterando-se o parágrafo único do art. 1.815. Para os casos de deserdação, a proposta é de redução também para dois anos, contados da abertura da sucessão (alteração do parágrafo único do art. 1.965, que se transformaria em § 1.º). O motivo para se alterar o termo inicial do prazo, que passaria a ser o momento da abertura da sucessão e não do testamento, decorre das críticas formuladas por Zeno Veloso, que inspiraram o projeto. Afirma o doutrinador que iniciar o prazo com a abertura do testamento “é um equívoco! O testamento público sempre é aberto; o particular, igualmente, é aberto. Esses testamentos não se abrem, apresentam-se ao juiz, com a morte do testador. Testamento fechado e que deve ser aberto pelo juiz, falecido o testador é o cerrado” (Comentários..., 2003, p. 337). Entendemos que as críticas procedem. Todavia, quando da abertura da sucessão (morte do de cujus), nem sempre o testamento é levado ao juízo para a sua apresentação. Na prática, podem se passar meses ou anos até que a deserdação seja conhecida. Concluímos que seria ideal que o prazo decadencial se iniciasse com a apresentação do testamento em juízo, momento em que se torna conhecido de todos. Nosso entendimento está amparado no direito à informação, que mantém relação direta com a boa-fé objetiva e a eticidade, um dos baluartes da nova codificação privada.
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1.5.4 Dos motivos para a exclusão O estudo dos motivos que levam à indignidade e à deserdação se divide em duas partes. Na primeira delas, há causas comuns que podem ser motivo tanto de deserdação quanto de indignidade. Estão previstas no art. 1.814 do Código Civil em vigor. Na segunda parte, os arts. 1.962 e 1.963 do CC cuidam de causas exclusivas para a deserdação, além daquelas comuns a ambos os institutos. A divisão a seguir tem intuito didático, visando a tornar mais fácil o trabalho do leitor. 1.5.4.1 Dos motivos comuns à indignidade e à deserdação Os motivos que levam tanto à indignidade quanto à deserdação estão relacionados no art. 1.814 do CC, sendo excluído da sucessão os herdeiros ou legatários: I – Que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente.
A pena não se restringe ao homicídio consumado, mas também ao tentado, exigindo que haja a intenção de matar, tratando, portanto, apenas de homicídio doloso e não do culposo. Tem lógica a previsão legal. Se por uma fatalidade o filho atropela e mata seu pai, não haveria por que puni-lo com a exclusão da sucessão. Explica Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka os vocábulos autor, coautor e partícipe nos seguintes termos:
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“autor é aquele único indivíduo que pratica o delito, possuindo domínio sobre a consumação do fato. Coautores são os indivíduos que praticam, em conjunto, a ação criminosa, dividindo as tarefas como se de uma sociedade se tratasse; ambos possuiriam aqui o domínio referido, uns porque realizaram materialmente a conduta, outros porque a imaginaram, ordenaram, podendo, a qualquer tempo, ordenar sua interrupção. Partícipes são aqueles que, sem cometer uma ação tipificada no âmbito penal, contribuem para a ação criminosa do autor ou dos coautores” (Comentários..., 2003, v. 20, p. 146). Dúvida comum suscitada diz respeito à necessidade ou não de sentença penal condenatória para que se opere a indignidade no âmbito do Direito Civil. A doutrina não tem dúvidas em afirmar a desnecessidade de sentença penal condenatória, diante da notória divisão da responsabilidade civil e criminal, constante do art. 935 do CC em vigor (“A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”). José Luiz Gavião de Almeida explica que “a interpretação que se deu ao dispositivo paradigma foi no sentido da desnecessidade da condenação criminal. A lei normalmente fala, expressamente, quando a condenação é necessária, como faz no art. 1.521, VII, do novo Código. Mas se houver anterior condenação criminal, tal situação torna desnecessário novo pronunciamento judicial a respeito (art. 935)” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 159). Em idêntico sentido, retomando a lição de Beviláqua, assevera Sílvio de Salvo Venosa que “para a incidência da norma basta que tenha havido o crime, não se
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dependendo para a condenação por indignidade do resultado da ação no campo penal” (Código Civil..., 1955, v. VI, p. 138). Zeno Veloso, comparando o sistema brasileiro com o português e o francês, afirma que enquanto aqueles sistemas exigem a prévia condenação criminal, “nem o Código Civil de 1916, nem o presente mencionam o pressuposto da condenação criminal. É possível, portanto, no juízo cível, ser verificada a situação e declarada por sentença a exclusão do indigno” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.510). Também Flávio Augusto Monteiro de Barros afirma que “o reconhecimento da indignidade não depende de condenação criminal” (Manual..., 2004, v. 4, p. 197). Concorda-se com a doutrina majoritária no sentido de que a prova do fato que conduz à indignidade bem como à deserdação, no homicídio doloso, tentado ou consumado, pode ser feita tanto no juízo cível quanto no criminal. Além disso, não ocorrerá a suspensão de uma ação em razão da existência da outra, eis que os objetivos em ambas são diferentes. O objetivo na ação penal é a condenação em pena privativa de liberdade daquele que, com sua conduta, ofende a ordem pública e, portanto, sofre sanção pessoal. No juízo cível o objetivo é diverso, uma vez que se trata apenas de uma questão patrimonial, sem relação com a ordem pública, e cuja sanção não será pessoal, mas apenas a exclusão da herança com a perda de bens herdados. Com a sentença penal condenatória, sequer será necessária a ação para declaração por indignidade movida no juízo cível, podendo o próprio juiz do inventário
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reconhecer a indignidade (ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 162). O estudioso mais ávido por informações pode lançar a seguinte pergunta: e se o indigno for absolvido no juízo penal, mas condenado no juízo cível? Não haveria contradição nas decisões? A pergunta é excelente, típica dos alunos mais preparados. A resposta vem a seguir. Se a sentença criminal for absolutória por negativa de autoria ou por inexistência do fato (art. 386, I, do CPP), não se pode reconhecer a indignidade no juízo cível, por força do citado art. 935 do CC (BARROS, Flávio Monteiro de. Manual..., 2004, v. 4, p. 197; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários..., 2003, v. 20, p. 147; VELOSO, Zeno. Novo Código Civil..., 2006, p. 1.510; VENOSA, Sílvio de Salvo e GOZZO, Débora. Comentários..., 2004, p. 138). Entretanto, se a absolvição decorrer da circunstância de não haver prova da existência do fato no juízo criminal (art. 386, II, do CPP), de não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal (art. 386, IV, do CPP) ou de não existir prova suficiente para a condenação (art. 386, VI, do CPP), não haverá impedimento à declaração cível de indignidade. Ademais, a legítima defesa, o estado de necessidade e o exercício regular de um direito são, como regra geral, fatos lícitos para o Direito Civil (art. 188 do CC) e que, portanto, não geram a exclusão por indignidade nem admitem a deserdação de quem os pratica. Em reforço, lembre-se de que tais atos não são considerados crimes para o direito penal (art. 23 do CP).
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Um último esclarecimento deve ser feito. Na verdade, trata-se de outra indagação que surge. O fato de existir processo-crime em trâmite para se apurar a prática de homicídio doloso, seja ele tentado ou consumado, suspende os prazos para as ações cíveis, para decretar a indignidade ou para confirmar a deserdação? A resposta é negativa. Os prazos das ações são de natureza decadencial e, portanto, não se interrompem ou suspendem, salvo expressa previsão legal (art. 207 do CC). Os fatores que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição, em regra, não se aplicam à decadência. Note-se que a previsão contida em lei é de suspensão da prescrição, e não da decadência, até a sentença penal definitiva quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal (art. 200 do CC). II – Que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro.
A interpretação do inciso pode ser dividida em duas partes. A primeira parte envolve a denunciação caluniosa em juízo do autor da herança. A denunciação caluniosa está prevista no art. 339 do Código Penal, nos seguintes termos: “Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente” (com redação dada pela Lei 10.028/2000). Nessa hipótese, não há necessidade de condenação pelo crime de denunciação no juízo criminal para que haja
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a exclusão de quem a praticou no juízo cível. Destaque-se que a prova da denunciação pode ser feita diretamente no juízo cível. A segunda parte do artigo gera maior debate. Isso porque também pode ser excluído da sucessão aquele que incorrer em crime contra a honra do autor da herança ou de seu cônjuge ou companheiro. Como se sabe, os crimes contra a honra são a injúria, a calúnia e a difamação (arts. 138 a 140 do CP). Cabem breves notas sobre os tipos penais. Nos termos do art. 138, caput e § 1.º, do Código Penal, é crime caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime e incorre na mesma pena quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga. Explicam Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Jr. e Fábio M. A. Delmanto que imputar é atribuir, propalar é propagar, espalhar, e divulgar é tornar público, bastando para tanto que se dê conhecimento a uma só pessoa, pois não se pode confundir o ato (divulgar) com o resultado (divulgação) (Código Penal..., 2007, p. 405). Difamar alguém é imputar fato ofensivo à sua reputação, conforme dispõe o art. 139 do Código Penal. Ensinam os Delmanto que a conduta é imputar (atribuir), e o fato deve ser determinado, mas não precisa ser especificado em todas as suas circunstâncias. A imputação não necessita ser falsa. Ainda que verdadeira, haverá o delito. A atribuição deve chegar ao conhecimento de terceira pessoa, não se caracterizando o delito, se é o próprio ofendido quem leva ao conhecimento de outro (Código Penal..., 2007, p. 411).
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Por fim, pratica injúria quem ofende a dignidade ou decoro de alguém (art. 140 do CP). Enquanto na calúnia ataca-se a honra objetiva da pessoa, ou seja, a imagem que terceiros dela têm, na injúria o objeto jurídico é a honra subjetiva, ou seja, o sentimento que a pessoa tem de si mesma. Note-se que a expressão “incorrer em crime” indica que houve necessariamente a condenação criminal (ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 161; Hironaka, Giselda Maria Fernandes Novaes, Comentários..., 2003, v. 20, p. 149; RODRIGUES, Silvio. Direito civil..., 2002, v. 7, p. 69; DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2005, v. 6, p. 54). Essa é a correta interpretação do dispositivo e a que deve ser utilizada para as mais diversas finalidades. III – Que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
A hipótese que se estuda é aquela em que o herdeiro ou legatário tenta impedir o falecido de, livremente, dispor de seus bens, empregando para tanto violência (coação), com o intuito de evitar que o testamento seja cumprido. Resume bem a situação Maria Helena Diniz, ao afirmar que a lei pune o “herdeiro que, fraudulenta, dolosa ou coativamente, praticar atos, omissões, corrupção, alterações, falsificação, inutilização, ocultação, atentando contra essa liberdade de testar ou obstando a execução do ato de última vontade” (Curso..., 2005, v. 6, p. 55). Pode ser citado como exemplo o caso do herdeiro que rompe o lacre do testamento cerrado. Um outro caso a ser
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mencionado é o do herdeiro que rasura o testamento particular. Pode-se mencionar, também, o caso do herdeiro que não informa a existência de um testamento público do qual tem ciência, para evitar a divisão da herança com terceiros, impedindo que se dê cumprimento à vontade do morto e cometendo ato suficiente para sua exclusão. Da mesma forma, será excluído da sucessão o herdeiro que impede o de cujus de fazer testamento desejado, ou exige ser beneficiado pelo testamento usando de coação ou dolo e, também, do herdeiro que impede a revogação do testamento. Como se pode perceber, não estamos diante de crimes tipificados pelo Código Penal, razão pela qual a prova se dará no juízo cível. 1.5.4.2 Dos motivos exclusivos à deserdação Os motivos exclusivos à deserdação são aqueles contidos nos arts. 1.962 e 1.963 do Código Civil em vigor. As regras de ambos os artigos guardam reciprocidade. As previsões do art. 1.962 do CC cuidam das hipóteses de deserdação dos descendentes por seus ascendentes, ou seja, quando o filho ou neto pratica determinados atos contra seu pai ou avô e, por testamento, perde a legítima que lhe tocaria. Já o art. 1.963 do CC se preocupa com a situação inversa, ou seja, com as hipóteses em que os ascendentes praticam atos contra os descendentes, ou seja, o pai ou o avô pratica atos contra seu filho ou neto, que permitem sua exclusão da sucessão. Curiosamente, o Código Civil de 2002 tornou o cônjuge herdeiro necessário (art. 1.845), mas não criou
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hipótese específica para a sua deserdação, como o fez com os descendentes e ascendentes. O art. 1.961 da atual codificação dispõe apenas que os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão. Nesse sentido, Zeno Veloso conclui que “embora o Código inclua o cônjuge no elenco dos herdeiros necessários, não o relacionou como passível de ser deserdado” (Comentários..., 2003, v. 21, p. 311). Realmente, em se tratando de rol taxativo (numerus clausus), suas hipóteses não podem ser ampliadas. Como se pode perceber, as normas aqui analisadas são restritivas de direito, não admitindo interpretação extensiva ou aplicação da analogia. Concluímos, assim, que o cônjuge só pode ser deserdado pelos motivos previstos no art. 1.814, em razão do dispositivo do art. 1.961; mas não pelos motivos previstos nos arts. 1.962 e 1.963, todos da atual codificação. Nesse sentido, Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado afirmam que “em que pese a omissão, a solução é facilmente encontrada dentro do próprio sistema do Código Civil. É que as hipóteses de deserdação não se restringem àquelas previstas nos arts. 1.962 e 1.963, mas também abrangem todas as causas pelas quais os herdeiros podem ser excluídos da sucessão” (Código Civil..., 2005, p. 997). Para solucionar a divergência, o PL 699/2011 pretende criar o art. 1.963-A com a seguinte redação: “Art. 1.963-A. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação do cônjuge: I – prática de ato que importe grave violação dos deveres do casamento, ou que determine a perda do poder familiar; II – recusar-se, injustificadamente, a dar alimentos ao outro cônjuge ou aos
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filhos comuns; III – desamparo do outro cônjuge ou do descendente comum com deficiência mental ou grave enfermidade”. Realmente, as causas exclusivas de deserdação decorrem do fato de o herdeiro necessário ter o direito à legítima, direito este que é intocável. Por uma questão lógica, tendo um bônus, terá também alguns ônus, que, se descumpridos, permitem ao falecido retirar dos herdeiros a legítima. São quatro os motivos que permitem a deserdação quer do ascendente pelo descendente, quer do descendente pelo ascendente, reunindo o que consta dos arts. 1.962 e 1.963 do atual CC: I – Ofensa física Para Washington de Barros Monteiro, “ofensas físicas, ainda que de natureza leve, autorizam a deserdação. Sevícia demonstra desamor, falta de carinho e respeito, legitimando por isso a deserdação. Mas a cominação da pena civil não depende da prévia decisão da justiça repressiva” (Curso..., 2003, v. 6, p. 241). Clara e contundente a lição de Zeno Veloso no sentido de que “não há que se distinguir ou questionar, nesse caso, se a ofensa foi leve, ou grave, se a dor causada foi, ou não profunda. O filho desnaturado que ousa agredir fisicamente e macular, por exemplo, o santo rosto de sua mãe, já demonstra o desvio de caráter, a tendência animalesca, pouco importando a intensidade da agressão, que, em qualquer circunstância, é ofensa brutal, estúpida e inominável” (Comentários..., 2003, v. 21, p. 330).
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Entretanto, a ofensa física do pai com relação ao filho deve ser analisada em duas situações distintas. Se o menor ainda está sob o poder familiar, antes de completar 18 anos ou se emancipar, sua educação inclui a possibilidade de castigos moderados. Dentro do limite do bom senso e da moderação, o castigo não constitui injúria grave, em que pese conhecermos a posição de doutrinadores e psicólogos completamente avessos a qualquer punição física, por mais moderada que seja. De qualquer modo, a relação pai e filho não pode ser uma relação ditatorial na vigência desse poder, o que fere o espírito de família democrática, que é pregado atualmente. Por outro lado, findo o poder familiar, não há mais a possibilidade de se aplicar castigo na relação filial. II – Injúria grave Na doutrina clássica, Clóvis Beviláqua chama de degenerado aquele que ultraja seu ascendente ou descendente (Código Civil..., 1955, v. VI, p. 174). A figura da injúria grave é complexa “e tem encontrado na doutrina brasileira as mais diversas exegeses. Quanto à gravidade é questão que deve ser apreciada levando-se em consideração as circunstâncias de cada caso particular” (LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários..., 2004, v. XXI, p. 640). Mais uma vez, Zeno Veloso explica que a injúria se manifesta pela palavra “através da expressão verbal, oral, ou por escrito (telegramas, cartas, bilhetes, etc.), bem como por atos (gestos obscenos, condutas desonrosas)” (Comentários..., 2003, v. 21, p. 330). A injúria grave atinge a honra subjetiva do agredido, ou seja, a sua autoestima, o que ele pensa de si mesmo. O ofendido se sente humilhado em seu brio, desrespeitado
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na sua integridade físico-psíquica, um direito da personalidade. É importante ressaltar que a injúria não exige que terceiros conheçam o seu conteúdo, nem que a humilhação seja pública, atingindo a honra subjetiva da pessoa. Também é pertinente enfatizar que o que para certa família pode constituir injúria grave, para outra pode significar apenas uma forma comum de se relacionar. O uso de palavras de baixo calão, comum para certas pessoas, pode ser considerado extremamente ofensivo por outras. Além disso, muitas vezes, o palavrão é utilizado de maneira jocosa e tolerado por alguns, mas considerado injúria grave por outros. Por fim, a época e o local do ato também influenciam a noção de injúria grave. O rigor da criação dos filhos existentes outrora não mais se verifica em grande parte das famílias atuais ou pós-modernas. Portanto, a época em que as palavras foram proferidas deve contar na análise judicial da expressão injúria grave, o que nos traz a ideia de interpretação dos fatos de acordo com o meio social (princípio da socialidade). III – Os descendentes que tiverem relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto e os ascendentes que tiverem relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta. As relações ilícitas devem ser consideradas como expressão sinônima de relação de cunho afetivo, íntimo ou sexual. Dessa forma, beijos lascivos, sexo oral, cópula carnal são consideradas relações ilícitas. Um romance tórrido e oculto entre o descendente e sua madrasta é o típico
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exemplo doutrinário para a hipótese. É a lascívia, a concupiscência. Confessamos, entretanto, que a hipótese lembra mais os folhetins e as novelas do que a vida real. De pouca aplicação prática, permaneceu no Código Civil de 2002 pelo amor às tradições. De qualquer forma, numa visão atual, a doutrina aponta que “pouco importa que tais relações sejam hetero ou homossexuais. Não há que se distinguir” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil..., 2003, v. 7, p. 294). Imperioso frisar que em se tratando de pena civil, suas hipóteses não podem ser ampliadas. Assim, note-se que a relação ilícita entre o descendente e o companheiro do ascendente não admite a deserdação, porque a lei menciona expressamente a expressão madrasta e padrasto (art. 1.962, III, do CC). Nesse sentido, aliás, posiciona-se Washington de Barros Monteiro (Curso..., 2003, v. 6, p. 242). Na doutrina contemporânea, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira lembram que as causas “constituem numerus clausus, por isso não admitem interpretação extensiva, para outros atos de ingratidão ou de ofensa à pessoa do autor da herança” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 54). Entretanto, em sentido contrário, Zeno Veloso explica que “há o art. 1.595, que edita que o liame jurídico da afinidade se estabelece entre cada companheiro e os parentes do outro, aditando o parágrafo segundo do art. 1.595 que, na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução da união estável, que a originou. Acho que o filho que mantém relações ilícitas com a companheira do pai, pode, sim, ser deserdado, e não estou recorrendo à analogia, mas fazendo uma interpretação compreensiva, teleológica, entendendo que a referida causa faz parte da regra legal” (Comentários..., 2003, v. 21, p. 334). Sua opinião é
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compartilhada por Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 294). Como se nota, a questão não é pacífica na doutrina. Na opinião dos presentes autores, parece ser mais adequada a interpretação restritiva. Não que deva ser tolerada a relação ilícita do descendente com o companheiro ou companheira de seu pai. Entretanto, o fato de inexistir previsão legal deixou de fora tal hipótese de deserdação. Lembre-se que é nula a pena sem prévia cominação legal (nulla poena sine lege). Além disso, pode-se utilizar o argumento de que a norma restritiva de direitos não admite interpretação extensiva. IV – O desamparo pelo descendente do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade, bem como o desamparo pelo ascendente do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade. A hipótese legal é curiosa. Se o ascendente estiver em alienação mental, falta-lhe discernimento para testar e nulo será o seu testamento (art. 1.860 do CC). Portanto, torna-se inócua a previsão legal em um primeiro momento. Entretanto, se a alienação mental for temporária, recuperando o ascendente as suas faculdades, poderá se valer de testamento para deserdar os descendentes, já que o testamento é um ato personalíssimo. No mesmo sentido a deficiência mental do descendente, pois se lhe reduzir o discernimento, não poderá testar validamente. Já a enfermidade grave pode ser de ordem física e não retirar o seu discernimento para testar. Imagine-se um pai acometido de câncer que, em estado terminal, é abandonado por seu filho.
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Entendemos que não se deve restringir a noção de desamparo apenas ao aspecto material, pois a lei não o qualifica. Na realidade, o abandono moral ou afetivo pode ser pior e mais nefasto que o material. Além de constituir ato ilícito que gera a possibilidade, em nossa opinião, de indenização, o abandono moral e afetivo pode gerar ainda a deserdação. Trata-se de aplicação do valor jurídico do afeto. 1.5.5 Do herdeiro aparente e da validade de seus atos Como outrora ressaltado, a indignidade, no sistema brasileiro, não produz efeitos automáticos e necessita de sentença judicial para o seu reconhecimento. Em outras palavras, só será indigno o herdeiro após o trânsito em julgado da sentença que reconheça a indignidade. Porém, é preciso analisar a condição desse herdeiro antes do reconhecimento da exclusão, bem como a validade dos atos por ele praticados. O herdeiro nessa situação é denominado herdeiro aparente ou putativo, ou seja, é aquele que aos olhos do mundo aparenta ser realmente herdeiro, quando, na realidade, não o é, em razão do ato de indignidade praticado. Frise-se que dois são os grupos de requisitos essenciais para caracterizar a aparência de um direito: os objetivos e os subjetivos. Os requisitos objetivos são: a) uma situação de fato cercada de circunstâncias tais que manifestamente a apresentem como se fosse uma segura situação de direito; b) uma situação de fato que assim possa ser considerada
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segundo a ordem geral e normal das coisas; c) que, nas situações acima, apresente-se o titular aparente como se fosse o titular legítimo, ou o seu direito como se realmente existisse. Por outra via, os requisitos subjetivos são: a) a incidência em erro de quem, de boa-fé, considere a mencionada situação de fato como sendo uma situação de direito; b) a escusabilidade desse erro apreciada segundo a situação pessoal de quem nele incorreu (RÁO, Vicente. Ato jurídico..., 1999, p. 243). Quando decretada a exclusão do herdeiro, a sentença produz efeitos retroativos (ex tunc) e, portanto, o herdeiro fica excluído desde o momento da abertura da sucessão (RODRIGUES, Silvio. Direito civil..., 2002, v. 7, p. 73; VELOSO, Zeno. Novo Código Civil..., 2006, p. 1.514; DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2005, v. 6, p. 57, BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil..., 1955, v. VI, p. 40). Aliás, nem poderia ser diferente, pois a perda da condição de herdeiro não produz efeitos apenas com a sentença que a reconhece (efeitos ex nunc). Vale dizer que, se assim fosse, o herdeiro poderia se valer desse fato para alienar todos os bens recebidos e, quando da declaração da indignidade, não mais possuir patrimônio, escapando da punição legal. Entretanto, a análise da validade dos negócios jurídicos praticados pelo herdeiro aparente será feita à luz do princípio da boa-fé. Trata-se da análise da boa-fé subjetiva, ou seja, de um estado de consciência, em que o que se verifica é o conhecimento ou não de determinado fato. Nesse sentido, Judith Martins-Costa explica que boafé subjetiva denota estado de consciência, ou de um
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convencimento individual de obrar em conformidade ao direito. Esta se aplica no campo dos direitos reais e é subjetiva, pois se analisa a intenção do sujeito da relação jurídica. Já a boa-fé objetiva é modelo de conduta social, verdadeiro arquétipo, standard jurídico, segundo o qual cada pessoa deve obrar como um homem com retidão, com probidade, lealdade e honestidade (A boa-fé..., 1999, p. 411). A boa-fé subjetiva é chamada de boa-fé-crença, ou também de boa-fé em sentido psicológico e corresponde à Guten Glauben prevista no BGB (PASQUALOTTO. A boafé..., 1997, p. 111). É a consciência ou ausência desta diante de determinada situação jurídica. Como define Menezes Cordeiro, a boa-fé subjetiva é uma qualidade reportada ao sujeito, e a lei civil reconhece a locução inversa – má-fé – e consagra-a, associando-lhe efeitos diversos (Da boa-fé..., 2001, p. 407). Especificamente com relação ao herdeiro aparente, serão válidos os seguintes atos: – Os atos onerosos de alienações realizados para terceiros de boa-fé, ou seja, para aqueles que desconheciam a indignidade do herdeiro. Realmente, se estivermos diante de terceiros que creem estarem comprando bens do herdeiro de fato, não poderiam eles ser prejudicados pela posterior declaração de indignidade, ainda que esta produza efeitos retroativos. A regra guarda relação com a disposição referente à fraude contra credores, em que terceiros de boa-fé devem ter os negócios jurídicos preservados (art. 159 do CC).
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Portanto, se antes de intentada a ação de exclusão o herdeiro aparente aliena o imóvel ao terceiro que desconhece a indignidade, a venda será válida. Em sendo válida, surgem direitos do herdeiro real com relação ao aparente. No caso concreto, imagine-se que com a indignidade os bens do falecido passem a seu sobrinho, único parente na ordem de vocação hereditária. O sobrinho, na qualidade de herdeiro real, poderá cobrar perdas e danos do herdeiro aparente indigno que vendeu o imóvel. Reconhece Silvio Rodrigues que, pela lógica, também a alienação a terceiro de boa-fé seria nula, “pois é óbvio que não pode dispor daquilo que não é seu. Nemo ad allium transferre potest quam ipse habet. Essa concepção, todavia, a despeito da lógica irretorquível, colide com o princípio de maior interesse, ou seja, o de respeito à boa-fé dos adquirentes que, inspirados em erro comum e invencível, acreditaram na condição de herdeiro do excluído” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 74). Como se nota, o próprio jurista reconhece o equívoco do primeiro posicionamento. – Os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro aparente. Como há uma autorização legal para essa administração, não há que se falar em qualquer nulidade ou anulabilidade do ato, desde que o mesmo não contenha os vícios regulares dos atos e negócios jurídicos (arts. 166, 167 e 171 do CC). Superado tal ponto, por outro lado, não serão válidos (nulidade absoluta) os seguintes atos praticados pelo herdeiro aparente:
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– Os atos onerosos de alienações realizados para terceiros de má-fé, ou seja, para aqueles que conheciam a indignidade do herdeiro e mesmo assim adquiriram bens sabendo que não pertenciam realmente ao herdeiro aparente. Se estivermos diante de terceiros que sabiam da aparência e mesmo assim celebraram negócios jurídicos com o indigno, impõe-se a nulidade do negócio, pois a máfé não pode ser protegida. É notório que a torpeza é repudiada pelo ordenamento. Protege-se o herdeiro real em detrimento do terceiro de má-fé. Nesse caso, a nulidade está presente, pois o conteúdo do negócio é ilícito (art. 166, II, do CC) e está presente a fraude à lei imperativa (art. 166, VI, do CC), uma vez que a lei enuncia que a herança será do herdeiro real, o que comporta análise caso a caso. Vale dizer, inclusive, que pode até estar configurada a simulação em algumas hipóteses, o que também é motivo de nulidade absoluta (art. 167 do CC). Então, se após intentada a ação de exclusão do indigno, este aliena o imóvel a terceiro, há uma presunção absoluta, e que não admite prova em sentido contrário (iure et de iure), de que a indignidade é conhecida e a venda, consequentemente, será nula. Em sendo nula, surgem direitos do herdeiro real contra o terceiro que agiu de má-fé e que não pode ser beneficiado por sua torpeza. No caso concreto, imagine-se que, com a indignidade, os bens do falecido passem a seu sobrinho, único parente na ordem de vocação hereditária. O sobrinho, na qualidade de herdeiro real, poderá nulificar a venda realizada ao terceiro de má-fé, que poderá cobrar o que pagou do herdeiro aparente. Surge, com a declaração da nulidade, uma relação entre o herdeiro aparente e o terceiro de má-fé.
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– Os atos gratuitos de alienações realizados para terceiros, independentemente de sua boa ou má-fé, ou seja, será indiferente o fato de o terceiro conhecer ou não a indignidade do herdeiro de quem adquirira gratuitamente os bens. A regra, mais uma vez, guarda relação, mas não identidade, com a fraude contra credores, prevista entre os arts. 158 a 165 do CC. Isso porque quanto à fraude o negócio é meramente anulável (art. 178 do CC). Já as alienações praticadas pelo herdeiro aparente são nulas. Nessa hipótese, temos de um lado um terceiro que ganhou um bem, por meio de uma doação, que de fato não pertencia ao herdeiro aparente, mas sim ao herdeiro real. De outro, o herdeiro real que teve um prejuízo com a alienação gratuita efetuada pelo herdeiro aparente. O legislador fez uma escolha, pois entre conferir um lucro ao terceiro (qui certat de lucro captando) ou evitar um prejuízo causado ao herdeiro real pela alienação gratuita efetivada pelo herdeiro aparente (qui certat de damno vitando), preferiu evitar o prejuízo a conceder o lucro. Em conclusão, a alienação gratuita é nula, sendo irrelevante a boa ou má-fé do terceiro. Mais uma vez, pode-se falar em fraude à lei imperativa (art. 166, VI, do CC), pois a lei determina que a herança será do herdeiro real. Com a declaração de indignidade, os bens da herança devem ser restituídos aos herdeiros reais. Tais bens são chamados de ereptícios, segundo a nossa doutrina de referência (VELOSO, Zeno. Novo Código Civil..., 2006, p. 1.514). Da mesma forma, os frutos produzidos pelos bens também deverão ser restituídos pelo excluído da sucessão,
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pois a eficácia da declaração é retroativa (art. 1.817, parágrafo único, do CC). A lei menciona a devolução dos frutos e rendimentos, o que, conforme antes explicamos, não revela boa técnica, uma vez que os rendimentos nada mais são que espécie de frutos, os chamados frutos civis (aluguéis de imóvel, juros da capital, dividendos de ações, entre outros). Por outro lado, pelo mesmo dispositivo citado, o herdeiro aparente terá direito a ser indenizado pela conservação dos bens. Todavia, não determina o Código Civil quais seriam as espécies de despesas reembolsáveis. Silvio Rodrigues afirma que seriam “todas as que teve o indigno com a conservação dos bens hereditários, conferindo ao juiz um maior arbítrio no fixar tais despesas, para evitar que os beneficiados com a exclusão aufiram vantagens indevidas, coibindo-se, afinal, o enriquecimento sem causa (CC, art. 884)” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 76). Não nos parece ser esta a melhor interpretação. Na qualidade de indigno, ciente dos atos praticados contra o falecido, entendemos que sua situação se equipara à do possuidor de má-fé, e, portanto, suportará tais consequências. Essa é a opinião de Clóvis Beviláqua (Código Civil..., 1955, v. VI, p. 40) e Maria Helena Diniz (Curso..., 2005, v. 6, p. 58). Curioso notar, por outra via, que Silvio Rodrigues também reconhece que o indigno “não ignora a existência do vício que lhe impede adquirir o domínio e a posse da herança”, sendo, portanto, possuidor de má-fé (Direito civil..., 1995, v. 7, p. 73). Percebemos certa contradição nos ensinamentos do saudoso mestre, o que não exclui o brilhantismo do seu trabalho.
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Em conclusão e encerrando o tratamento do tema, ao herdeiro indigno, na qualidade de possuidor de má-fé, devem ser aplicadas duas seguintes regras: 1.ª Regra – O herdeiro indigno responde pela perda, ou deterioração da coisa, ainda que acidentais, salvo se provar que de igual modo se teriam dado, estando ela na posse do herdeiro real (art. 1.218 do CC). 2.ª Regra – Só serão ressarcidas as benfeitorias necessárias e não lhe assiste o direito de retenção pela importância destas, nem o de levantar as voluptuárias (art. 1.220 do CC).
1.5.6 Do perdão ou remissão do indigno Confrontando mais uma vez os institutos aqui estudados, se com relação ao deserdado não há que se falar em perdão, com relação ao indigno o perdão é possível. Isso porque a deserdação decorre da vontade do falecido e se instrumentaliza por meio de testamento. Vislumbrando a regra, se o testador quiser perdoar o deserdado, basta que não determine a sua deserdação; se já o deserdou, basta revogar o testamento para que a deserdação não produza os seus efeitos jurídicos. Com relação ao indigno a situação é diferente. Como o reconhecimento da indignidade decorrerá de um procedimento judicial a ser proposto pelos interessados na sucessão, o indigno pode ser perdoado pela pessoa contra quem praticou atos que conduziriam à indignidade. Aquele que incorreu em atos que determinem a exclusão da herança será admitido a suceder, se o ofendido o tiver
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expressamente reabilitado em testamento, ou em outro ato autêntico (art. 1.818 do CC). Esse fenômeno é denominado perdão, remissão ou reabilitação do indigno. Não se admite no sistema brasileiro, como regra, o perdão tácito, mas apenas sua modalidade expressa, razão pela qual deve constar de testamento ou outro ato autêntico. A exceção está presente no parágrafo único do art. 1.818 do Código Civil em vigor, pelo qual “não havendo reabilitação expressa, o indigno, contemplado em testamento do ofendido, quando o testador, ao testar, já conhecia a causa da indignidade, pode suceder no limite da disposição testamentária”. Sobre o testamento que reabilita o indigno, a lei não exige forma e, portanto, pode o testador se valer de uma das formas ordinárias de testar (testamento público, cerrado ou particular) ou mesmo das formas extraordinárias (testamento militar, marítimo ou aeronáutico). É importante ressaltar que também o codicilo é instrumento hábil para conceder o perdão ao indigno, segundo ensinam Sílvio de Salvo Venosa e Débora Gozzo (Comentários..., 2004, p. 351). A locução “ato autêntico”, constante do caput do art. 1.818 do CC, segundo Zeno Veloso, “suscita ambiguidade e imprecisão”. Conclui o renomado professor que “o que o art. 1.818 chamou de ato autêntico, sem dúvida, é a escritura pública, e melhor seria se tivesse se utilizado da denominação própria e inequívoca” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.515). Em razão do afirmado, explica Sílvio de Salvo Venosa que, mesmo “se o testamento caducar, tal não tira a eficácia do perdão, pois que o testamento continua válido,
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como ato autêntico, para as disposições não patrimoniais (...). Como a reabilitação do indigno pode ser feita tanto por testamento como por ato autêntico, qualquer escrito público do ofendido contra o qual não se suspeita de sua autenticidade, o perdão do indigno, mesmo em um testamento inválido deve ser visto por esse prisma. Só que, nesse caso, o testamento deve ser público” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 80). Caio Mário da Silva Pereira lembra sobre o tema que se o testamento inválido for cerrado ou particular, “não valendo como testamento, não terá efeito algum como ato autêntico. Orosimbo Nonato, à sua vez, apoiado em bons argumentos, sustenta a ineficácia da reabilitação, se for nulo o instrumento que a contém, porque requer, além da capacidade do remitente, a forma prescrita” (Instituições..., 1997, v. 6, p. 35-37). Entendemos que se o testamento for anulável, por vício de vontade (erro, dolo, coação), não poderá o perdão produzir efeitos. Igualmente, sendo o testamento cerrado ou particular, sua invalidade o retira do mundo jurídico e não produzirá efeitos, sendo, portanto, ineficaz o perdão. Já o testamento público, se faltar determinada solenidade que o torne nulo, como, por exemplo, havendo a presença de apenas uma testemunha, pode servir ao perdão do indigno. Nessa hipótese, em razão da nulidade do testamento, considera-se o instrumento apenas uma escritura pública – que para a validade não precisa de qualquer testemunha, bastando que seja lavrado pelo tabelião. Trata-se, portanto, de documento autêntico, o que pode ser retirado do art. 1.818, caput, do CC.
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Segundo a doutrina nacional, uma das características do perdão é a sua irretratabilidade, “não mais se reconhecendo aos coerdeiros legitimação para reabrir o debate” (DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2005, v. 6, p. 60; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários..., 2003, v. 20, p. 167). Realmente, se fosse retratável, a insegurança jurídica seria flagrante. Desse modo, uma vez concedido, não terá o de cujus possibilidade de arrependimento. Nesse sentido, ainda que o testamento em que se concedeu o perdão seja revogado pelo próprio testador, o perdão terá produzido efeitos, não sendo necessário que o novo testamento novamente mencione o perdão já concedido anteriormente. Sobre o perdão, afirma Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka que este é sempre concedido in totum, ou seja, na totalidade, pois “não se admite que o ofendido perdoe seu ofensor em parte. Se mais de um tiverem sido os atos ofensivos e o de cujus tiver liberado seu sucessor de um ou alguns deles, permanecerá a possibilidade de que o ofensor seja excluído da sucessão” (Comentários..., 2003, p. 166). A lição da mestra se aplica no tocante ao perdão expresso. Com relação ao perdão tácito, conforme será visto a seguir, a situação é outra. Isso porque inovou o Código Civil de 2002 ao permitir o perdão tácito do indigno quando o testador, ao testar, já conhecia a causa da indignidade, e contempla o indigno no testamento. Este poderá suceder apenas no limite da disposição testamentária, se não havia reabilitação expressa do indigno, conforme o outrora comentado parágrafo único do art. 1.818.
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Tendo em vista o teor do próprio art. 1.818 do CC, que admite a reabilitação tácita, deve-se ressaltar que esta é limitada ao teor do testamento. A título de exemplo, se determinada pessoa tenta matar seu pai e, depois, for beneficiada como legatária de um imóvel no testamento, o perdão tácito só produz efeitos para que possa receber o legado, mas não a reabilita como herdeira de toda a herança. A exemplificar, se o filho indigno receber por testamento a quota disponível, não poderá perdê-la porque houve perdão tácito do testador. Porém, poderá perder a legítima, pois o perdão não foi expresso. Com tal ilustração encerra-se o estudo da indignidade e da deserdação. No final do capítulo, um resumo esquemático confrontará ambos os conceitos de forma simplificada.
1.6 DA HERANÇA JACENTE E DA HERANÇA VACANTE 1.6.1 Conceitos de jacência e de vacância. Natureza jurídica O destino da herança, com a abertura da sucessão, é a sua entrega aos herdeiros, que, pelo princípio da saisine, recebem desde logo a propriedade dos bens (art. 1.784 do CC). Entretanto, pode ocorrer de o falecido não ter deixado herdeiros legítimos nem testamentários. Os herdeiros legítimos, como é notório, são os descendentes, os ascendentes, o cônjuge, o companheiro e o colateral até o 4.º grau (art. 1.829 do CC). Os herdeiros testamentários são
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aqueles nomeados por ato de última vontade, seja ele um testamento ou um codicilo. Ocorrendo a morte de alguém, os bens da herança devem ser arrecadados e ficam sob a guarda e a administração de um curador até a sua entrega ao sucessor ou a declaração de vacância (art. 1.819 do CC). Esse é o fenômeno da jacência da herança. O conceito vem de Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira, no sentido de que “é aquela cujos sucessores não são conhecidos ou que não foi aceita pelas pessoas com direito à sucessão. A jacência constitui-se em fase provisória e temporária, de expectativa de surgimento de interessados na herança” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 209). Importante frisar que a jacência é provisória, pois terminará com a entrega da herança aos herdeiros ou com a declaração de vacância. Em síntese, trata-se de uma situação que logo findará. Nesse ponto a jacência difere da vacância. Explica Sebastião Amorim que “considera-se vacante a herança, quando, realizadas todas as diligências, inclusive com a publicação de editais, e passado um ano, não surgirem pessoas sucessíveis, deferindo-se os bens arrecadados ao ente público designado na lei” (Heranças jacente..., Questões..., 2005, v. 3, p. 361). Sobre a natureza jurídica da herança jacente e da herança vacante, não se pode afirmar que se tratam de pessoas jurídicas, pois não têm personalidade jurídica. Há, apenas, um conjunto de bens arrecadados. Por isso é que se afirma tratar-se de entes despersonalizados. Além disso, pode-se dizer que, por opção do legislador, a herança jacente e vacante não consta do elenco do
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art. 44 do Código Civil, se seguido o entendimento de que o rol constante desse dispositivo é taxativo (numerus clausus). Aqui, com a finalidade de justificar a existência e a capacidade de direito da pessoa jurídica, adota-se a teoria da realidade das instituições jurídicas (Hauriou), chamada de teoria institucionalista. A personalidade deriva do Direito, pois já se privaram seres humanos da personalidade (v.g. os escravos, que eram considerados pelos romanos como coisas). Derivando do Direito, é este que pode concedê-la a um grupamento de pessoas ou de bens que tenha por escopo a realização de interesses humanos. Então, a personalidade jurídica é um atributo que a ordem jurídica estatal outorga a entes que o merecem. De qualquer forma, há quem entenda que o rol constante do art. 44 do CC não é taxativo, mas exemplificativo (numerus apertus), eis que o Código Civil de 2002 adota um sistema aberto. Esse entendimento consta do Enunciado n. 144 CJF/STJ, aprovado na III Jornada de Direito Civil, sendo compartilhado pelo coautor Flávio Tartuce. Mesmo sendo o rol do art. 44 do Código Civil aberto, o presente autor entende que a herança jacente e a vacante não têm personalidade jurídica, pois os atributos materiais e formais da pessoa jurídica de Direito Privado não estão presentes. Pois bem, em ambos os casos, na jacência e na vacância, trata-se de um complexo de relações jurídicas que serão transmitidas aos herdeiros – caso surjam – ou transmitidas definitivamente ao ente público (hipótese de vacância). Apesar desse reconhecimento, é interessante frisar que o Código de Processo Civil reconhece que as heranças
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jacente e vacante poderão ser representadas em juízo ativa ou passivamente por seu curador (art. 12, IV, do CPC). Mesmo assim, vale repetir que o entendimento doutrinário majoritário aponta serem entes despersonalizados, ou seja, são massas patrimoniais especiais que tendem a desaparecer. Até esse seu desaparecimento, a lei lhes concede capacidade processual ou uma personalidade jurídica esdrúxula. Para Sílvio de Salvo Venosa, há uma “entidade com personificação anômala” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 62). Por fim observa Maria Helena Diniz que a herança jacente não se confunde com o espólio “que designa a sucessão aberta até a partilha dos bens, porque ambos os institutos são entes despersonalizados. Todavia, diferem entre si, pois no espólio os herdeiros legítimos ou testamentários são conhecidos, ao passo que na herança jacente se configura uma situação de fato em que ocorre a abertura da sucessão, porém não existe quem se intitule herdeiro” (Curso..., 2005, v. 6, p. 88). 1.6.2 Do procedimento de jacência O procedimento quanto à jacência se divide em três fases: fase de arrecadação dos bens, fase de publicação de editais e fase de entrega dos bens. De início, falecendo alguém sem deixar testamento nem herdeiro legítimo notoriamente conhecido, os bens da herança, depois de arrecadados, ficarão sob a guarda e a administração de um curador (art. 1.819 do CC e art. 1.143 do CPC).
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O juiz da Comarca em que tiver domicílio o falecido procederá sem perda de tempo à arrecadação de todos os seus bens (art. 1.142 do CPC). Para tanto, comparecerá o juiz ao domicílio do falecido, acompanhado do escrivão, que lavrará de tudo termo circunstanciado. Eventualmente, deverá estar acompanhado do curador já nomeado, ou de um depositário que se responsabilizará pelo espólio, até que o juiz nomeie um curador de sua confiança (art. 1.145, § 1.º, do CC). Em casos tais, os bens devem ser entregues ao curador, somente sendo entregues a um depositário se não houver curador nomeado. Em casos excepcionais, quando o juiz, por motivo justificado, não puder comparecer, poderá requer que a autoridade judicial proceda à arrecadação que por ele deveria ser presidida (art. 1.148 do CPC). Nessas hipóteses excepcionais, duas testemunhas assistirão às diligências e, havendo necessidade de apor selos, estes só poderão ser abertos pelo juiz (art. 1.148, parágrafo único, do CPC). O órgão do Ministério Público e o representante da Fazenda Pública serão intimados a assistir à arrecadação, que se realizará, porém, estejam eles presentes ou não (art. 1.145, § 2.º, do CPC). Como se percebe, a participação desses entes não é obrigatória, mas apenas facultativa. A arrecadação, ensina Sílvio de Salvo Venosa, “é um procedimento cautelar: os bens são arrecadados para evitar uma dilapidação por terceiros oportunistas, em prol dos futuros herdeiros a serem encontrados ou, em última análise o Estado, que também é herdeiro” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 64). Filiamo-nos a esse entendimento, de que se trata de um procedimento de cautela, apesar de,
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pelo Código Civil de 2002, não podermos considerar o Estado herdeiro. Não determina a lei quem seja o curador a ser nomeado, mas Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira afirmam que o “curador deve ser criteriosamente escolhido, entre pessoas que mereçam a confiança do juiz, e que tenham recursos para se dedicar com desprendimento, capacidade e organização à administração eficiente dos bens até que recebam destinação legal. Conforme seja a entidade beneficiária, por normal destinação dos bens arrecadados em herança jacente (desde que convertida em vacante), bom é que se nomeie curador dentre elementos habilitados daquela própria instituição (no Estado de São Paulo há provimento dispondo nesse sentido)” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 214). Apesar dessa falta de previsão quanto à pessoa, o Código de Processo Civil, em seu art. 1.144, detalha as funções do curador, quais sejam: I – representar a herança em juízo ou fora dele, com assistência do órgão do Ministério Público; II – ter em boa guarda e conservação os bens arrecadados e promover a arrecadação de outros porventura existentes; III – executar as medidas conservatórias dos direitos da herança; IV – apresentar mensalmente ao juiz um balancete da receita e da despesa; e V – prestar contas ao final de sua gestão.
Dessas atribuições percebe-se que o curador pode defender a posse dos bens por meio das ações possessórias;
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pode interromper a prescrição de dívidas cujo falecido era credor; pode propor demandas judiciais tais como a cobrança de aluguéis de inquilinos de bem que componha a herança jacente; pode contratar funcionários para a manutenção dos bens, ou seja, pode praticar todos os atos necessários à conservação dos bens e que evitem o seu perecimento. A função do curador não é gratuita. Explica Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka que “o curador faz jus à remuneração fixada pelo magistrado que preside o processo, que levará em conta, para tal fixação, o tempo de serviço estimado, as dificuldades para a sua execução, o montante dos bens, além de sua situação, cabendo, quanto a isso, lembrar que os bens situados em comarcas diversas serão arrecadados por carta precatória mandada expedir pelo juiz processante (CPC, art. 1.149)” (Comentários..., 2003, v. 20, p. 173). O que se nota é que o objetivo da arrecadação será a conservação dos bens para a sua entrega aos eventuais herdeiros. Exatamente por isso, deve o juiz, durante a arrecadação, inquirir os moradores da casa e da vizinhança sobre a qualificação do falecido, o paradeiro de seus sucessores e a existência de outros bens, lavrando-se de tudo um auto de inquirição e informação (art. 1.150 do CPC). Com essas informações, poderá o juiz localizar todos os bens do falecido para a sua adequada conservação pelo curador. Sem prejuízo de tudo isso, caberá ao juiz, no ato de arrecadação, examinar reservadamente os papéis, as cartas missivas e os livros domésticos. Verificando que não apresentam interesse, mandará empacotá-los e lacrá-los
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para serem assim entregues aos sucessores do falecido, ou queimados quando os bens forem declarados vacantes (art. 1.147 do CPC). Aqui, surge uma dúvida: qual seria o interesse que os documentos poderiam apresentar? Parece que interessam ao juiz os documentos que permitem a identificação de eventuais herdeiros, sua qualificação e até a sua localização. Podemos aqui citar um envelope com o nome de um sobrinho, um cartão postal com notícias de um irmão ou mesmo um telegrama com notícias de um filho que mora em outra localidade. Também interessam documentos relativos aos bens do falecido: sua declaração de renda, os extratos bancários, escrituras de bens imóveis, dados de um cofre bancário e assim por diante. O exame deve ser feito de maneira reservada, como forma de respeito à intimidade do morto, não havendo razão para o juiz devassá-la a terceiros. Nesse sentido, pode-se aqui citar as previsões segundo as quais a vida privada da pessoa natural é inviolável (art. 21 do CC e art. 5.º, X, da CF/1988). A preocupação legal com o sigilo e a intimidade do falecido prossegue quando o Código de Processo Civil determina que os documentos e missivas devem ser empacotados e lacrados para sua entrega aos sucessores (art. 1.147 do CPC). Como se pode perceber, os direitos da personalidade produzem efeitos post mortem, mesmo quando a personalidade jurídica material não mais existe. Pode-se afirmar, nesse sentido, que os direitos da personalidade do morto, a sua personalidade jurídica formal, permanecem após o falecimento, o que pode ser retirado da análise dos arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, ambos da atual codificação privada.
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A prova de que a arrecadação visa a resguardar os interesses de eventuais herdeiros pode ser evidenciada porque não se fará a arrecadação, ou suspender-se-á esta quando iniciada, se o cônjuge, o herdeiro ou o testamenteiro notoriamente reconhecido se apresentar para reclamar os bens e não houver oposição motivada do curador, de qualquer interessado, do órgão do Ministério Público ou do representante da Fazenda Pública (art. 1.151 do CPC). Imagine-se o caso prático da esposa que após trinta dias de viagem retorna a casa e encontra o juiz arrecadando os bens em virtude do falecimento de seu marido no período. Nesse caso descrito, não há razão para se prosseguir a arrecadação, pois existe um herdeiro que terá o encargo de conservar os bens. Pois bem, cabe ao curador apresentar um inventário, ou seja, uma lista com os bens do falecido e a sua descrição. Praticadas as diligências de arrecadação e ultimado o inventário, serão expedidos editais na forma da lei processual (art. 1.820 do CC). Como formalidades essenciais, devem ocorrer três publicações dos editais no órgão oficial (na imprensa oficial) e na imprensa da comarca. A imprensa será a da comarca em que tramita a declaração de jacência, ou seja, a do domicílio do falecido (art. 1.142 do CPC). Os prazos para a publicação de editais estão previstos no art. 1.152 do CPC e são os seguintes: – a primeira publicação – logo após a arrecadação; – a segunda publicação – 30 dias após a primeira publicação; – a terceira publicação – 30 dias após a segunda ou 60 dias após a primeira publicação.
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Essa é a interpretação do art. 1.152 do CPC que entendemos ser a mais adequada. Seguimos, nesse ponto, as palavras de Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 66), Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira (Inventários e partilhas..., 2006, p. 215), todos magistrados. Mas, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em sentido diferente, entende que serão quatro as publicações do edital, sendo a primeira quando da arrecadação, a segunda 30 dias depois desta, a terceira 60 dias após a arrecadação e, finalmente, a quarta 90 dias após a primeira publicação (Comentários..., 2003, v. 20, p. 174). O que se percebe é que a questão não é tão pacífica assim na doutrina. Terá o herdeiro prazo para se habilitar de seis meses, contados da publicação do primeiro edital. A habilitação se faz em autos em apenso ao da arrecadação de bens, sendo que, se julgada procedente a habilitação do herdeiro, reconhecida a qualidade do testamenteiro ou provada a identidade do cônjuge, a arrecadação converterse-á em inventário (art. 1.153 do CPC). Nesses casos, devem ser ouvidos na habilitação o membro do Ministério Público e o curador da herança jacente. Quem pode pleitear a habilitação? A resposta é: qualquer herdeiro legítimo, seja ele necessário ou facultativo, bem como os nomeados por testamento ou codicilo. É pertinente notar que é possível que o herdeiro se habilite mesmo decorridos os seis meses previstos no Código de Processo Civil, sendo que o descumprimento do prazo não lhe traz uma sanção. Isso se comprova pelo fato de que o parágrafo único do art. 1.822 do Código Civil expressamente afirma que os parentes colaterais só estão
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excluídos da sucessão se não se habilitarem até a declaração de vacância. Não afirma o Código Civil se “não pleitearem a herança”, mas se utiliza expressamente do vocábulo “habilitar”. Portanto... Explica José Luiz Gavião de Almeida que, apesar do expresso afastamento dos colaterais, os demais herdeiros, sejam parentes em linha reta, o cônjuge ou o companheiro, conservam o direito de requerer a habilitação, até a declaração de vacância (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 183). Em sentido contrário, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka entende que até seis meses contados da publicação do primeiro edital, podem os herdeiros se valer da habilitação. Mas, “terminado o prazo, os eventuais herdeiros não poderão mais requerer o reconhecimento de seus direitos sucessórios mediante processo de habilitação, podendo fazê-lo, entretanto, por meio de ação direta proposta nas varas especializadas, e não mais no juízo onde se processou a sucessão. A essa solução se chega mediante recurso à analogia, com os casos de herdeiros que busquem ter reconhecida sua qualidade, depois de terem sido declarados vagos os bens (CPC, art. 1.158). É que a lei silencia quanto aos herdeiros que busquem tal reconhecimento no lapso temporal de seis meses compreendido entre o termo final do prazo de habilitação e a declaração de vacância. Tal lapso temporal destina-se ao julgamento de seu pedido antes da declaração de vacância” (Comentários..., 2003, v. 20, p. 186). A questão é controversa. Razão parece ter a doutrina que afirma que a habilitação pode ocorrer até a declaração de vacância. Após tal declaração, os colaterais ficam excluídos da sucessão e os demais herdeiros, legítimos ou
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testamentários, só poderão pleitear o direito em ação própria. Se a habilitação for julgada improcedente, converte-se a herança jacente em vacante, sendo que, caso haja mais de uma habilitação, a conversão só se dá quando a última for julgada improcedente (art. 1.157, parágrafo único, do CPC). Sobre o tema, explicamos melhor a seguir quando tratamos da vacância. Encerrando o estudo da jacência, duas regras são relevantes e devem ser mencionadas. A primeira é que, enquanto se arrecadam os bens e se publicam os editais, alguns bens que compõem a herança jacente podem ser alienados por meio de autorização judicial nas seguintes hipóteses. Esses bens estão elencados no art. 1.155 do CPC, a saber: I – bens móveis, se forem de conservação difícil ou dispendiosa; II – bens semoventes, quando não empregados na exploração de alguma indústria; III – títulos e papéis de crédito, havendo fundado receio de depreciação; IV – ações de sociedade quando, reclamada a integralização, não dispuser a herança de dinheiro para o pagamento; e V – bens imóveis se ameaçarem ruína, não convindo a reparação ou se estiverem hipotecados e vencer-se a dívida, não havendo dinheiro para o pagamento.
A venda das ações da sociedade e do bem hipotecado poderá ser evitada se a Fazenda Pública ou o habilitando adiantar a importância para as despesas necessárias, no
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primeiro caso para a integralização, e no segundo, para a remição da hipoteca (art. 1.155, parágrafo único, do CPC). Já os bens com valor de afeição, como retratos, objetos de uso pessoal, livros e obras de arte só serão alienados depois de declarada a vacância da herança (art. 1.156 do CPC). A regra tem lógica, eis que bens de valor sentimental podem representar muito ao herdeiro que eventualmente apareça e se habilite. Nada justifica a venda das fotografias da lua de mel do falecido, do quadro que foi presente dos filhos quando das bodas de ouro do casal, ou da aliança de diamantes que pertencia à falecida. A segunda regra a ser comentada é que os credores da herança podem se habilitar como nos inventários ou propor a ação de cobrança (art. 1.154 do CPC). Nesse caso, cabe ao curador providenciar a defesa da herança jacente, contratar advogados e impugnar a habilitação incorreta ou contestar a ação direta de cobrança. O direito dos credores se limita às forças da herança (art. 1.820 do CC). Isso significa que as dívidas são arcadas pela herança jacente e pelos bens que a compõem, não sendo de responsabilidade pessoal de eventuais herdeiros que se habilitem ou do Estado que a receba na condição de herança declarada vacante. Por óbvio, não poderia ser diferente. Se no sistema brasileiro poderá o credor do herdeiro aceitar a herança quando este a recusar, sendo possível também aos credores habilitar seus créditos no inventário, da mesma forma poderão se habilitar junto à herança jacente.
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1.6.3 Da declaração de vacância A lei consagra duas situações diversas em que se decretará a vacância da herança. A primeira delas ocorre quando todos os chamados a suceder renunciarem à herança (art. 1.823 do CC). Em caso de renúncia de todos os herdeiros, desnecessária seria a publicação de editais e todos os demais trâmites legais exigidos durante o período de vacância. Com a renúncia de todos os herdeiros, sejam eles legítimos ou testamentários, a vacância se decreta de imediato, encerrando a jacência. Se a jacência é fase preliminar à vacância, ocorrendo a renúncia dispensa-se a fase preliminar. Trata-se de uma vacância sumária, nas palavras de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (Comentários..., 2003, v. 20, p. 192). O segundo caso está presente quando, após praticadas todas as diligências de arrecadação e ultimado o inventário, forem expedidos os editais. Decorrido um ano da primeira publicação dos editais, sem que haja herdeiro habilitado – quer porque não apareceu, quer porque apareceu, mas suas habilitações foram julgadas improcedentes –, ou sem que penda habilitação, haverá a declaração de vacância (art. 1.820 do CC e art. 1.157 do CPC). Note-se que o fato de não ocorrer habilitação no prazo de seis meses previsto no art. 1.152 do CPC não permite a declaração de vacância, senão antes de decorridos outros seis meses. Realmente, o prazo inicial de seis meses não se revela útil, pois não é dotado de sanção. Isso em nossa opinião, ainda que discordemos da mestra Giselda Maria
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Fernandes Novaes Hironaka (Comentários..., 2003, v. 20, p. 186). Entretanto, se passado um ano da publicação e decretada a vacância, temos duas consequências: 1.ª) Os herdeiros colaterais não poderão mais pleitear a herança, sendo excluídos da sucessão (art. 1.822, parágrafo único, do CC). Esclarecendo, no tocante a irmãos, tios, sobrinhos, primos-irmãos, tios-avós e sobrinhos-netos do falecido, a declaração de vacância os excluirá definitivamente da sucessão. Cabe uma importante nota com relação aos colaterais. Mesmo Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, que tem posição divergente sobre o prazo de seis meses para a habilitação, entende que os colaterais poderão, passados os seis meses, mas antes de declarada a vacância, pleitear o reconhecimento da sua qualidade de herdeiros por meio de ação própria, por ser “a mais justa das soluções hermenêuticas” (Comentários..., 2003, v. 20, p. 188). 2.ª) Os demais herdeiros, sejam eles legítimos ou testamentários, não podem ser considerados prejudicados pela declaração de vacância, porque ainda poderão requerer o recolhimento da herança, desde que o façam no prazo de cinco anos contados da abertura da sucessão (art. 1.822 do CC). Isso por meio de “ação direta, sendo-lhes vedado pretender seus direitos por meio de habilitação (art. 1.158 do CPC)” (ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 183).
Pois bem, mas a qual pessoa jurídica de direito público se destinam os bens com a declaração de vacância? Se os bens se localizarem em Municípios ou no Distrito Federal, a estes pertencerão respectivamente. Se os bens se localizarem em um Território, pertencerão à União
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(art. 1.822 do CC). Deve-se frisar que, atualmente, não existem mais Territórios federais, pois depois da Constituição Federal de 1988 estes foram extintos, uma vez que Roraima e Rondônia se tornaram Estados. Vale também dizer que a Lei 8.049, de 20 de junho de 1990, já havia instituído o Município (ou Distrito Federal) como destinatário da herança vacante, em detrimento do Estado e da União. Em razão da lei em questão, percebe-se que foi revogada a disposição do art. 1.143 do Código de Processo Civil, que determinava que a herança seria incorporada ao domínio da União, do Estado ou do Distrito Federal. No Estado de São Paulo, antes da vigência da Lei 8.049/1990, os bens lá situados eram entregues apenas à Universidade de São Paulo (Decreto 27.219-A/1957) e, a partir de 1985 (Decreto estadual 23.296, de 1.º de março de 1895) os bens caberiam à USP, à UNESP ou à UNICAMP, conforme suas áreas de influência (AMORIM, Sebastião e OLIVEIRA, Euclides de. Inventários e partilhas..., 2006, p. 221). Entretanto, com a alteração legislativa de 1990, ocorreu a revogação dos decretos em questão e os bens passaram a pertencer ao Município. Por fim, superada a questão a respeito de qual ente público recebe os bens da herança vacante, cabe salientar que até que se complete o período de cinco anos, o ente público tem a propriedade resolúvel dos bens. Isso porque, se os herdeiros pleitearem por ação própria e que deverá ser movida nas varas especializadas – se contra o Município ou Distrito Federal nas varas da Fazenda Pública, se houver, e se contra a União, nas varas da Justiça Federal, se houver –, perdem a União, os
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Municípios e o Distrito Federal a propriedade dos bens, que só se torna plena após os referidos cinco anos. Podemos resumir as ideias em questão com o magistério de Francisco Cahali, pelo qual a vacância: 1 – “transfere a titularidade da herança ao Poder Público (Município, Distrito Federal e União, conforme o caso), conferindo-lhe, inicialmente, a propriedade resolúvel dos bens, para, após o prazo legal, outorgar-lhe o domínio pleno sobre o acervo patrimonial”; 2 – “encerra a herança jacente, pondo fim à atuação do curador, dispensando-o dos deveres de guarda, conservação e administração do acervo hereditário, uma vez transferida a titularidade da herança ao Poder Público”; 3 – “não mais permite a habilitação de herdeiros ou credores, sendo que qualquer direito destes só poderá ser reclamado em ação direta”; 4 – “ficam excluídos definitivamente da sucessão os colaterais”; 5 – “passados cinco anos da abertura da sucessão, incorpora-se definitivamente a herança ao domínio público, cessando para qualquer herdeiro o direito de pleiteá-la” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 118). Como última nota que deve ser feita a respeito do tema, lembramos que o Poder Público não pode renunciar à herança recebida, em razão da inalienabilidade do bem público prevista em lei (arts. 100 e 101 do CC). 1.6.4 Natureza jurídica da sentença de vacância. Questões de direito intertemporal A natureza jurídica da sentença de vacância será de fundamental importância para a solução de dois diferentes
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problemas. O primeiro diz respeito à mudança do ente público beneficiado pelos bens da herança vacante. Explicam Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira que, para as sucessões abertas antes de 20 de junho de 1990, “ainda que a sentença declaratória de vacância seja proferida depois, competem os bens ao Estado, uma vez que a capacidade para suceder é a do tempo da abertura da sucessão, regulando-se conforme a lei então em vigor” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 219). Por outro lado, para as sucessões abertas após tal data, os bens pertencerão aos Municípios, Distrito Federal ou União. Todavia, Sebastião Amorim frisa que a questão é polêmica. Em artigo sobre o tema, explica que há duas correntes diferentes sobre a natureza jurídica da sentença de vacância: uma que entende ser declaratória e a outra constitutiva: “no primeiro caso, aplicado o preceito da saesina juris, considera-se a transmissão da data do óbito do autor da herança. Então, a sentença declaratória de vacância teria efeitos ex nunc, propiciando a adjudicação de bens ao Estado, em face da norma legal que vigia na época (...). Há entendimento contrário, no sentido de que sendo o óbito anterior à Lei Federal 8.049, de 20 de junho de 1990, e considerando-se como constitutiva de direito a posterior sentença de vacância, competiriam os bens ao novo ente público beneficiário, isto é ao Município” (Heranças jacente..., Questões..., 2005, v. 3, p. 370). A base jurídica da segunda tese é que é indispensável a declaração de vacância para que o bem se incorpore ao patrimônio do ente público, pois, antes disso, há apenas uma expectativa de direito, já que se aguarda a habilitação de um eventual herdeiro. Conclui Sebastião Amorim que
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tal tese é vitoriosa no Superior Tribunal de Justiça, mormente nas 3.ª e 4.ª Turmas em que se pacificou o entendimento (Heranças jacente..., Questões..., 2005, v. 3, p. 370). Assim, esse é o entendimento que deve ser tido como majoritário. Entretanto, não podemos deixar de manifestar nossa discordância. A lei que rege a sucessão é aquela do momento de sua abertura. O momento em que a herança foi incorporada nos parece irrelevante, pois deve-se verificar qual ente público estava legitimado a receber os bens quando do falecimento do de cujus. As palavras do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em seu voto constante do REsp 61.885/SP, nos parecem perfeitas: “se ao tempo da sucessão, a lei vigente atribuía ao Estado os bens da herança jacente, a ele deverão ser transferidos, ainda que a transmissão do domínio tenha ocorrido quando em vigor a Lei 8.049/1990, que atribui ao Município a herança jacente”. Nesse sentido igualmente é a lição de Flávio Monteiro de Barros: “a sentença de vacância é meramente declaratória, de modo que a transmissão da propriedade operouse, por força do princípio da saisine, com a abertura da sucessão, destinando-se, portanto, a herança vacante às fundações universitárias” (Manual..., 2004, v. 4, p. 196). O segundo problema decorrente da natureza jurídica da sentença de vacância é a verificação da possibilidade ou não de usucapião dos bens que compõem a herança jacente. Também aqui duas são as correntes que se formam, como resume de maneira clara Flávio Monteiro de Barros “para uns, é possível usucapião de herança jacente se o usucapiente completar o prazo de usucapião antes da
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sentença de vacância. Argumenta-se que essa sentença de vacância é constitutiva, funcionando como o fato gerador da transmissão da propriedade ao Município (...). Os adeptos desse ponto de vista acrescentam, ainda, que o princípio da saisine não é aplicável ao Município na medida em que este não é herdeiro, mas mero destinatário da herança. Outros sustentam a tese da inadmissibilidade da usucapião. Argumentam que o Município, por força do princípio da saisine, adquire a propriedade da herança desde o momento da abertura da sucessão” (Manual..., 2004, v. 4, p. 196). Sebastião Amorim lembra o julgamento da Apelação Cível 69.391 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, na qual se discutiu o tema, sendo que o acórdão foi objeto de ação rescisória (115.824-1). Nesta última, houve séria divergência e, por maioria de votos, decidiu-se que “só após a declaração de vacância da herança que ocorre cinco anos após a abertura da sucessão, é que os bens passam ao domínio do Estado”. Mas, pelos votos vencidos, “em apoio à tese da saesina juris, que a passagem ou incorporação definitiva ao domínio público, previstos no art. 1.594, CC/ 1916 (art. 1.822 do novo CC) são fatos subsequentes à transmissão, e à posse da herança que se dá, desde logo a abertura da sucessão, aos herdeiros – art. 1.572, CC/1916 (art. 1.784 do novo CC)”. Se adotarmos a teoria da natureza constitutiva, apenas com a declaração de vacância o bem se torna público e insuscetível de usucapião. Assim, se o prazo se iniciou e concluiu antes da declaração, o bem pode ser usucapido por qualquer pessoa. Porém, se o prazo não se ultimou e a vacância for declarada, o bem passa a ser inalienável e não
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pode mais ser objeto de usucapião, estando presente a imprescritibilidade. Por outro caminho, se adotarmos a natureza meramente declaratória da sentença, com a morte o bem passou ao domínio do Poder Público, sendo impossível a usucapião, salvo se, antes da morte, o prazo já havia se esgotado. Flávio Monteiro de Barros adota a segunda teoria e afirma que “a tese de que a sentença de vacância é constitutiva consagra a teoria de que a herança jacente é um patrimônio sem sujeito, contradizendo as noções mais certas acerca da natureza do direito” (Manual..., 2004, v. 4, p. 196). Apoia a ideia de natureza constitutiva Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, ao afirmar que “o Estado, como se viu, não adquire os bens do acervo no momento da morte do autor da herança. A lei, buscando privilegiar os herdeiros ignorados, garante-lhes o prazo para que venham requerer o reconhecimento de sua condição de herdeiro. Disso se afirma que o Estado não é herdeiro”. E conclui a professora explicando que “apenas herda porque o Estado é a personificação da comunidade em que o de cujus viveu, havendo um afeto presumido do morto, se inexistentes parentes sucessíveis” (Comentários..., 2003, p. 191). Gustavo Rene Nicolau, com base nas lições de Nelson Nery Junior, também se filia à natureza constitutiva (Direito civil..., 2005, v. 9, p. 55). Como somos adeptos da teoria declaratória, somente poderão ser usucapidos os bens que compõem a herança jacente se o prazo estiver preenchido antes da abertura da sucessão. Nessa hipótese, o direito do usucapiente já se incorporou ao seu patrimônio antes mesmo de o bem se
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tornar público e, consequentemente, insuscetível de ser usucapido. Após esse fogo cruzado da doutrina, encerra-se o estudo da herança jacente e vacante e passa-se ao estudo da petição de herança.
1.7 DA PETIÇÃO DE HERANÇA O Código Civil de 1916 não continha regras referentes à petição de herança, apesar de a matéria ter sido cuidadosamente estudada pela doutrina. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka define a ação de petição de herança como a “pretensão deduzida em juízo pelo herdeiro preterido, no sentido de lhe ser deferida quer a quota-parte que lhe caberia, quer, ainda, a totalidade da herança, reconhecendo-se, em todo caso, a qualidade de herdeiro que lhe é natural” (Comentários..., 2003, v. 20, p. 193). É a chamada petitio hereditatis. No Código Civil de 2002, a matéria está tratada nos arts. 1.824 a 1.828. Imagine-se o caso de um filho não reconhecido por seu pai e que, após a morte deste, obtém decisão judicial favorável e definitiva que o declara filho. Com a morte do pai, os bens podem ter sido distribuídos entre os demais filhos, hipótese em que este novo herdeiro necessário terá direito a apenas parte do patrimônio de seu pai. Por outro lado, imagine-se que ocorra o rompimento do testamento. Se o testador deixou todos os bens a um sobrinho, na ignorância da existência desse filho, o testamento estará rompido, e o filho terá direito a todos os bens do falecido.
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O que se pode concluir é que o objetivo da petição de herança é duplo. O primeiro deles é a declaração do direito sucessório do herdeiro. O segundo objetivo é a condenação na restituição dos bens ou da quota que lhe pertence (art. 1.824 do CC). No campo prático, percebe-se que pode o filho não reconhecido do falecido pleitear na investigatória de paternidade todos os bens a que teria direito na condição de herdeiro necessário, por meio da petição de herança. A ação, indiscutivelmente, é de natureza real, pois, por força do art. 80, II, do Código Civil, a sucessão aberta constitui um bem imóvel (ALVES, Jones Figueirêdo; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil..., 2005, p. 936). Ainda quanto à ação, explica Zeno Veloso que “o réu é a pessoa que não tem título legítimo de herdeiro e, não obstante, possui bens da herança total ou parcialmente (...) ou seja, no polo passivo desta ação está o falso herdeiro, ou o que possui a herança, ou parte dela, sem título algum” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.521). Disso se percebe que poderá ser réu o indigno declarado por sentença, ou mesmo o herdeiro aparente, no caso de rompimento do testamento, bem como o herdeiro testamentário cujo testamento foi anulado. Deve-se frisar que a ação de petição não se confunde com a reivindicatória, apesar de ambas terem natureza real. Luciano Vianna Araújo esclarece que “na ação de petição de herança o autor pede o reconhecimento de sua qualidade de herdeiro e, sucessivamente, a restituição da herança, no todo ou em parte. Na ação reivindicatória, sem discutir a condição de herdeiro, o autor pretende a restituição do acervo hereditário que se encontra na posse
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de outra pessoa estranha à sucessão” (A petição de herança. Questões..., 2003, v. 1, p. 466). Exemplos podem ajudar a esclarecer. O falecido tem como únicos parentes dois sobrinhos, José e Maria, sendo que apenas José, por testamento, é nomeado herdeiro de todos os bens. Maria propõe ação anulatória de testamento em razão de coação. Conjuntamente com o pedido de anulabilidade, Maria proporá petição de herança, pois o que se discute é a sua condição de herdeira. Também a companheira que tiver a união estável reconhecida pode pedir a herança, bem como os direitos sucessórios dela decorrentes. Vislumbrando uma situação prática, se os bens do falecido foram partilhados entre os seus descendentes, mas, provada a união estável e a condição de herdeira da companheira, terá esta direito à petição de herança. Por outro lado, se um bem que compõe o acervo se encontrar em mãos de um terceiro que o adquiriu por meio de falsa procuração, a ação do herdeiro contra ele será a reivindicatória. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka também demonstra que “a reivindicatória mostra-se a ação própria do legatário que quer ver satisfeito o pagamento da herança que lhe é devida a título singular, mas nunca do herdeiro universal” (Comentários..., 2003, p. 194). Caio Mário da Silva Pereira, secundado por Zeno Veloso, afirma que “a petitio hereditatis deve intentar-se contra um possuidor pro herede, não sendo cabida contra um possuidor ordinário, que detenha os bens da herança a outro título, pois neste último caso a ação cabível será a
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reivindicatória” (apud Novo Código Civil..., 2006, p. 1.521). Essa é a corrente majoritária à qual nos filiamos, mas há divergências. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, por exemplo, entende que a petição de herança pode ser requerida contra quaisquer terceiros que possuam os bens, sejam eles herdeiros ou não, por força da parte final do art. 1.824 do CC, que assim dispõe: “contra quem, na qualidade de herdeiro, ou mesmo sem título, a possua”. Encerrando o estudo do tema, completamos a diferenciação com a observação de Luciano Vianna Araújo: “na petição de herança pleiteia-se uma universalidade (a herança ou parte dela) enquanto na ação reivindicatória se pretende bem (bens) específico(s). Por isso, não há a necessidade de se individualizar, na inicial, da ação de petição de herança, cada um dos bens que se encontram na posse do réu. Julgado procedente o pedido, o demandado deve restituir todos os bens do acervo hereditário. Ao contrário, na ação reivindicatória, faz-se necessária a correta e precisa individualização dos bens objeto do pedido (art. 286 do CPC)” (A petição de herança..., Questões..., 2003, v. 1, p. 467). O prazo para a propositura da demanda de petição de herança é questão das mais controvertidas. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka afirma categoricamente que “a petição de herança não prescreve. A ação é imprescritível, podendo, por isso, ser intentada a qualquer tempo. Isso sim se passa porque a qualidade de herdeiro não se perde (semel heres, semper heres)” (Comentários..., 2003, v. 20, p. 196). Jones Figueirêdo
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Alves e Mário Luiz Delgado compilam a lição de Orlando Gomes no mesmo sentido, com a ressalva de que o herdeiro aparente poderá usucapir os bens recebidos, na convicção de que lhe pertenciam (Código Civil..., 2005, p. 937). Realmente, essa foi a solução do legislador português: “Art. 2.075. 1. O herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título. 2. A acção pode ser intentada a todo o tempo, sem prejuízo da aplicação das regras da usucapião relativamente a cada uma das coisas possuídas, e do disposto no art. 2.059”. Zeno Veloso relembra que o anteprojeto revisto de 1972 continha disposição semelhante “A petição de herança é imprescritível, ressalvadas as regras sobre a usucapião relativamente a cada um dos bens singulares do acervo”. Mas a Comissão que elaborou o anteprojeto mudou a orientação (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.521). Esse é igualmente o entendimento de Flávio Tartuce, que entende haver um caráter predominantemente declaratório na ação de petição de herança, envolvendo ainda o direito fundamental à herança, previsto no art. 5.º, XXX, da CF/1988. Entretanto, José Fernando Simão entende não ser esta a melhor solução ao problema, pois a petição de herança é ação com conteúdo condenatório evidente. Sendo dotada de pedido de dar – entrega dos bens que compõem o acervo hereditário –, existe uma pretensão, que se extingue pela prescrição (art. 189 do CC). Em outras palavras, pode-se dizer que pretensão é a possibilidade conferida ao credor, autor da ação de petição de herança,
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de exigir do devedor, réu da ação, o cumprimento da prestação (entrega dos bens). Seguindo essa lógica, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 149 com a seguinte regra: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança”. Com isso Caio Mário da Silva Pereira afirmava que o herdeiro não teria “mais direito à herança depois de decorridos 20 anos da abertura da sucessão (petição de herança)” (Instituições..., 1997, v. 6, p. 55). O prazo invocado pelo professor era o maior prazo previsto no revogado Código Civil, aquele que estava no caput do art. 177 do CC/1976. Os julgados da época ajudam a esclarecer a questão: “Quanto à nulidade pleiteada pelo herdeiro que não interveio na partilha, não pairava dúvida quanto a seu prazo prescricional de 20 anos, o mesmo que o da ação de petição de herança, de que é inseparável. A respeito dessa interdependência, ponderou o v. Acórdão proferido pelo STF publicado na RTJ 52/193: ‘Partilha. Nulidade. O julgamento da procedência da petição de herança importa a nulidade da partilha’” (TJRJ, 6.ª Câmara Cível, Apelação Cível 9.047, Rel. Des. Basileu Ribeiro Filho, j. 30.08.1979, RT 543/211). “Partilha. Nulidade. Herdeiro necessário excluído. Art. 1.030 do CPC. Para anular a partilha, os herdeiros dela excluídos, que não participaram do inventário, devem utilizarse da ação de nulidade ou petição de herança vintenária e não da rescisória” (STF, RE 93.700, Rel. Min. Rafael Mayer, DJU 22.10.1982, RT 567/235). “O pai da autora faleceu em 29.12.1977, tendo sido requerido o inventário em 11.01.1978 e julgada a partilha em 06.12.1979. A ação de investigação de paternidade foi ajuizada em 03.04.1978 e reconhecida a paternidade em
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18.09.1981. Em 19.03.1983 promoveu-se a ação postulando a invalidade da partilha e a consequente inclusão da autora para fins de recebimento de seu quinhão hereditário. (...) A autora, não tendo participado do inventário, não foi alcançada pela sentença. Assim, a ação que deveria manejar é a anulatória como o fez e não a rescisória” (TJMG, Apelação Cível 72.690, Rel. Des. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 14.04.1988, RT 631/199).
Como se verifica, reconhecida a qualidade de herdeiro, as decisões consideravam o prazo para a petição de herança, coincidente com o da anulação da partilha, como sendo de 20 anos, nos termos do caput do art. 177 do CC/ 1916. Assim, para Zeno Veloso o prazo agora seria de dez anos (art. 205 do CC). Em idêntico sentido, Sílvio de Salvo Venosa afirma que “o prazo extintivo para essa ação iniciase com a abertura da sucessão e, no novo sistema é de 10 anos, prazo máximo permitido no ordenamento. No sistema de 1916, o prazo era de 20 anos (Súmula 149 do STF)” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 349). Também Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira seguem idêntica orientação, frisando que o prazo se inicia com a abertura da sucessão, “salvo se o herdeiro é menor impúbere, havendo que se aguardar o atingimento de sua capacidade relativa” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 324). Como foi dito, José Fernando Simão concorda com essa última doutrina majoritária citada. Em se tratando de pretensão, estará realmente sujeita ao prazo prescricional de dez anos previsto no art. 205 do Código Civil. Para essa corrente, a imprescritibilidade não se coaduna com a petição de herança em razão de seu caráter eminentemente patrimonial e por envolver uma prestação de dar.
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Esse último entendimento também deve ser adotado na prática do Direito das Sucessões, pois consubstanciado em súmula do Supremo Tribunal Federal confirmada pela doutrina. Conforme salientado em capítulo próprio, a herança é um todo uno e indivisível, aplicando-se as regras relativas ao condomínio até que ocorra a partilha (art. 1.791 do CC). Assim sendo, a ação de petição de herança, ainda que exercida por um só dos herdeiros, poderá compreender todos os bens hereditários (art. 1.825 do CC). É semelhante à regra presente no condomínio, pela qual qualquer um dos condôminos tem direito de defender a coisa como um todo, mesmo sendo titular de apenas parte dela. Perante terceiros, que não os demais condôminos (no caso, coerdeiros), cada herdeiro age como se fosse proprietário exclusivo do todo. Nesses exatos termos, determina o art. 1.314 do Código Civil em vigor que cada condômino pode usar da coisa conforme a sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la. Bem ponderada a observação de Eduardo de Oliveira Leite de que “uma coisa é a relação de cotitularidade entre os diferentes coerdeiros; e outra a relação singular de cada um deles com terceiros possuidores, ou meros detentores dos bens hereditários, em que a lide confere legitimidade, através da petição de herança, para cada um deles agir em nome ou no interesse de todos os demais” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 201). Duas dúvidas podem surgir: a ação de petição de herança inclui os frutos produzidos pelo bem que compõe o
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acervo hereditário demandado? Haverá direito de indenização pelas benfeitorias realizadas no bem? A resposta das questões se dá de acordo com a boa ou má-fé do herdeiro que se encontra na posse dos bens da herança, o que pode ser retirado do art. 1.826 do CC, pelo qual: “O possuidor da herança está obrigado à restituição dos bens do acervo, fixando-se-lhe a responsabilidade segundo a sua posse, observado o disposto nos arts. 1.214 a 1.222. Parágrafo único. A partir da citação, a responsabilidade do possuidor se há de aferir pelas regras concernentes à posse de má-fé e à mora”. A título de exemplo, se o sobrinho do falecido estava na posse dos bens que recebera por testamento, acreditando ser o único herdeiro e, posteriormente, ocorre o fenômeno do rompimento do testamento em que aparece um filho até então desconhecido (art. 1.973 do CC), perderá o sobrinho toda a herança que deverá ser restituída ao filho do falecido. Como o sobrinho estava de boa-fé, pois ignorava o fato de que não era realmente o herdeiro (boa-fé subjetiva), terá os seguintes direitos e deveres: – Direito aos frutos percebidos (art. 1.214 do CC). – Dever de restituição dos frutos pendentes ao tempo em que cessar a boa-fé, depois de deduzidas as despesas da produção e custeio (art. 1.214, parágrafo único, do CC). – Dever de restituição dos frutos colhidos com antecipação (art. 1.214, parágrafo único, do CC). – Não responderá pela perda ou deterioração da coisa a que não der causa (art. 1.217 do CC). – Tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem
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pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, podendo exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis (art. 1.219 do CC). – O herdeiro autor da ação de petição de herança, quando obrigado a indenizar as benfeitorias ao possuidor de boafé, deverá fazê-lo pelo seu valor atual (art. 1.222 do CC).
Como se pode perceber, a boa-fé se refere à ignorância de uma situação, ou seja, desconhece o sujeito que perdeu a qualidade de herdeiro, e se trata, portanto, da boa-fé subjetiva aquela estudada quando dos institutos possessórios. Se, por outro lado, o sobrinho coage seu tio a fazer testamento deserdando o filho e tornando-o seu único herdeiro, e o testamento for anulado em razão do vício do consentimento, é porque o sobrinho, réu da ação de petição de herança, estava agindo de má-fé, pois sabia que não tinha direito aos bens do acervo hereditário. No caso descrito, o sobrinho terá os seguintes direitos e deveres: – Responderá por todos os frutos colhidos e percebidos, bem como pelos que, por culpa sua, deixou de perceber, desde o momento em que se constituiu de má-fé; tem direito às despesas da produção e custeio (art. 1.216 do CC). – Responderá pela perda, ou deterioração da coisa, ainda que acidentais, salvo se provar que de igual modo se teriam dado, estando ela na posse do autor da ação de petição da herança (art. 1.218 do CC). – Serão ressarcidas somente as benfeitorias necessárias, não tendo o direito de retenção pela importância destas, nem o de levantar as voluptuárias (art. 1.220 do CC).
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– O herdeiro autor da ação de petição de herança, quando obrigado a indenizar as benfeitorias ao possuidor de máfé, tem o direito de optar entre o seu valor atual e o seu custo (art. 1.222 do CC).
Vale repetir que a boa-fé cessa com a citação do réu na ação de petição de herança e, a partir de então, devem ser aplicadas as regras referentes à má-fé (art. 1.826, parágrafo único, do CC). Ainda em relação à petição de herança, estabelece o art. 1.827 que o herdeiro pode demandar os bens da herança mesmo que em poder de terceiro, sem prejuízo da responsabilidade do possuidor originário pelo valor dos bens alienados. Em complemento, enuncia o parágrafo único do referido dispositivo que são eficazes as alienações feitas, a título oneroso, pelo herdeiro aparente a terceiros de boa-fé. Mais uma vez, lembre-se que o herdeiro aparente é aquele que não tem a titularidade dos direitos sucessórios, mas se apresenta como tal. O que a norma visa a proteger é a boa-fé daquele que realiza o negócio com a pessoa que se apresenta como herdeira. Por isso, trata-se de norma com interessante efeito prático, que prestigia a eticidade, um dos princípios do atual Código Civil de 2002, segundo Miguel Reale. Por fim, o herdeiro aparente que de boa-fé houver pago um legado não estará obrigado a prestar o equivalente ao verdadeiro sucessor. Entretanto, conforme o art. 1.828 do CC, fica ressalvado ao herdeiro real o direito de proceder contra aquele que recebeu a coisa. O objetivo, aqui, é proteger a boa-fé justamente do herdeiro aparente.
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1.8 RESUMO ESQUEMÁTICO REGRAS BÁSICAS DA SUCESSÃO – Art. 1.784 do CC. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (princípio da saisine). Herdeiro legítimo é aquele apontado pela lei; herdeiro testamentário é aquele nomeado por testamento, legado ou codicilo (art. 1.796 do CC). – Art. 1.785 do CC. A sucessão deve ser aberta no lugar do último domicílio do falecido, o que é importante para o processamento do inventário. – Art. 1.787 do CC. A sucessão e a legitimação para suceder serão reguladas pela lei do tempo da abertura da sucessão, o que é fundamental para resolver problemas de Direito Intertemporal, surgidos principalmente com a entrada em vigor do novo Código Civil. – Art. 1.788 do CC. Se a pessoa falecer sem testamento, a sua herança será transmitida aos herdeiros legítimos. O mesmo vale para os casos de ausência de testamento ou de caducidade ou nulidade do ato de disposição. – Art. 1.789 do CC. Havendo herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge), o testador somente poderá dispor de metade da herança. Trata-se da famosa proteção da legítima, que é a quota dos herdeiros necessários. DA HERANÇA E DE SUA ADMINISTRAÇÃO – A herança defere-se de forma unitária, ainda que haja pluralidade de herdeiros. A herança, antes da
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partilha, constitui um bem imóvel por determinação legal, indivisível e universal (universalidade jurídica) – art. 1.791 do CC. A herança é administrada pelo inventariante, que exerce um mandato legal. – O herdeiro não pode responder além das forças da herança (art. 1.792 do CC). – É possível a nomeação de um administrador provisório da herança, antes da nomeação do inventariante, conforme o rol constante do art. 1.797 do CC. ACEITAÇÃO E RENÚNCIA DA HERANÇA – ACEITAÇÃO: ato pelo qual o herdeiro manifesta a sua vontade de receber os bens do falecido. Trata-se de um ato jurídico unilateral, que produz efeitos independentemente da concordância de terceiros, tendo, portanto, natureza não receptícia, pois não precisa de comunicação para produzir efeitos. A aceitação da herança pode ser assim classificada: a) Aceitação expressa – é aquela que se faz por declaração escrita. Não restringindo a lei, poderá o escrito ser público ou particular, mas nenhum efeito terá se for apenas verbal. Portanto, não se poderá valer de prova testemunhal para comprovar a aceitação verbal. b) Aceitação tácita – aquela pela qual o herdeiro ou legatário pratica atos que indicam a aceitação e que, portanto, são incompatíveis com a ideia de repúdio aos bens herdados. É o caso do herdeiro que paga os tributos do imóvel e que contrata funcionários para a sua conservação.
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– RENÚNCIA: a renúncia da herança constitui um ato jurídico unilateral e não receptício, pelo qual o herdeiro ou legatário recusa a herança ou o legado, não criando, consequentemente, qualquer direito àquele que renunciou, pois se considera que ele nunca foi herdeiro. Para renunciar à herança, deve o declarante fazê-lo por instrumento público ou termo judicial, sendo nula a renúncia por instrumento particular (art. 1.806 do CC). A lei não permite a renúncia tácita, mas apenas a expressa, pois isso é forma de dar maior segurança ao instituto. DIFERENÇAS ENTRE EXCLUSÃO DA HERANÇA POR INDIGNIDADE E DESERDAÇÃO TABELA COMPARATIVA Indignidade
Deserdação
Decorre de determinação legal e da vontade dos interessados, que devem promover a ação de indignidade.
Decorre da vontade do falecido, por meio de testamento.
Matéria de sucessão legítima e testamentária.
Matéria de sucessão testamentária.
A pena de indignidade pode atingir tanto os herdeiros necessários quanto os herdeiros facultativos.
A pena da deserdação só atinge os herdeiros necessários.
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Pode estar relacionada com causas anteriores ou posteriores à morte do autor da herança.
Apenas relacionadas com causas anteriores à morte do autor da herança, já que decorre de disposição de vontade.
O indigno entra na posse dos bens da herança, pois a indignidade depende de ação judicial.
O deserdado não entra na posse de forma imediata.
– HERANÇA JACENTE E VACANTE Ocorrendo a morte de alguém, os bens da herança devem ser arrecadados e ficam sob a guarda e a administração de um curador até a sua entrega ao sucessor ou a declaração de vacância (art. 1.819 do CC). Esse é o fenômeno da jacência da herança. Importante frisar que a jacência é provisória, pois terminará com a entrega da herança aos herdeiros ou com a declaração de vacância. Nesse ponto a jacência difere da vacância. Explica Sebastião Amorim que “considera-se vacante a herança, quando, realizadas todas as diligências, inclusive com a publicação de editais, e passado um ano, não surgirem pessoas sucessíveis, deferindo-se os bens arrecadados ao ente público designado na lei” (Heranças jacente..., Questões controvertidas..., 2005, v. 3, p. 361). Sobre a natureza jurídica da herança jacente e da herança vacante, não se pode afirmar que se tratam de pessoas jurídicas, pois não há uma personalidade jurídica, havendo apenas um conjunto de bens arrecadados. Por isso é que se afirma tratarse de entes despersonalizados. Quanto aos
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procedimentos, há um detalhamento tanto no CC quanto no CPC, cujo estudo aprofundado recomendamos ao leitor. – PETIÇÃO DE HERANÇA Inovação do Código Civil atual, prevê o seu art. 1.820 que o herdeiro pode, em ação de petição de herança, demandar o reconhecimento de seu direito sucessório, para obter a restituição da herança, ou de parte dela, contra quem, na qualidade de herdeiro, ou mesmo sem título, a possua. O exemplo típico de aplicação do instituto envolve os casos de investigação de paternidade. Para esses casos, prevê a Súmula 149 do STF que é imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança. O entendimento majoritário manda aplicar para esses casos o prazo prescricional geral de 10 anos, previsto no art. 205 do CC/2002.
1.9 QUESTÕES CORRELATAS 1. (183.º Magistratura SP – VUNESP) Assinale a alternativa correta. (A) Regula a sucessão a lei vigente ao tempo da abertura do inventário. (B) A sucessão abre-se no lugar do falecimento. (C) É possível a aceitação parcial da herança. (D) O ato de renúncia da herança é passível de revogação.
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(E) Os descendentes de herdeiro excluído sucedem como se ele fosse morto antes da abertura da sucessão. 2. (MP/ES – 2005) De acordo com a legislação em vigor, a sentença que determina a abertura da sucessão provisória só produzirá efeito: (A) Um ano depois de publicada pela imprensa. (B) Cento e cinquenta dias depois de publicada pela imprensa. (C) Três anos depois de publicada pela imprensa. (D) Dois anos depois de publicada pela imprensa. (E) Cento e oitenta dias depois de publicada pela imprensa. 3. (MP/ES – 2005) Consoante o Código Civil pátrio todas as assertivas abaixo estão corretas, exceto: (A) Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente. (B) Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhes caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado a família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar. (C) Os descendentes da mesma classe têm os mesmos direitos à sucessão de seus ascendentes. (D)
Os descendentes ascendentes.
não
podem
deserdar
os
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(E) Na linha descendente, os filhos sucedem por cabeça, e os outros descendentes, por cabeça ou por estirpe, conforme se achem ou não no mesmo grau. 4. (TJ/SP 176.º) Analise as assertivas a seguir. I – O direito dos coerdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, é indivisível até o julgamento da partilha; depois disso, tal direito fica circunscrito aos bens de seu quinhão. II – Não estão sujeitas à colação as doações remuneratórias de serviços feitos ao ascendente. III – Sucedendo aos avós por representação de seus pais, os netos estão dispensados de trazer à colação o que os pais teriam de conferir, desde que o hajam herdado. IV – O valor da colação dos bens doados será aquele que vigorar no momento da abertura da sucessão. É
correto dizer assertivas
que
são
verdadeiras
somente
as
(A) I e IV. (B) I e III. (C) II e III. (D) I e II. 5. (MP/MG INCORRETA.
XLVI)
Assinale
a
alternativa
(A) O reconhecimento de filho extraconjugal pode ser feito antes do nascimento ou posteriormente ao seu falecimento, desde que ele deixe descendentes.
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(B) Os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência, mais os de guarda, sustento e educação dos filhos compõem o contexto da união estável como exigência legal. (C) A doação e o legado, sendo negócios jurídicos benéficos, devem ter sua interpretação restrita, tal como a renúncia. (D) O CC/2002 abandonou a regra de igualdade das legítimas, quando o cônjuge concorre com filhos comuns e filhos só do autor da herança. (E) O indigno, contemplado em testamento do ofendido, quando o testador já conhecia a causa da indignidade, receberá o bem legado e, reabilitado que fora, a herança. 6. (MP/SP 84.º) Assinale a alternativa falsa. (A) Se o herdeiro prejudicar os seus credores, renunciando à herança, poderão estes, com autorização do juiz, aceitá-la em nome do renunciante. (B) O herdeiro que possui filhos menores não pode renunciar à herança; se o fizer, estes poderão suceder no lugar do renunciante, exercendo o direito de representação. (C) A morte, a abertura da sucessão e a transmissão da herança aos herdeiros ocorrem num só momento. (D) Os filhos do herdeiro excluído por indignidade serão chamados a sucedê-lo, como se morto fosse antes da abertura da sucessão. (E) O autor de homicídio doloso contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, mesmo condenado por sentença penal, somente será excluído da
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sucessão mediante pedido teressado, em ação própria.
expresso
de
in-
7. (IX Procurador do Estado – GO) Assinale a alternativa correta: (A) o direito de representação dá-se na linha reta ascendente, mas nunca na descendente e excepcionalmente na linha colateral; (B) o direito de representação dá-se exclusivamente na linha transversal; (C) o direito de representação dá-se na linha reta descendente, mas nunca na ascendente e excepcionalmente na linha transversal; (D) o renunciante à herança de uma pessoa não poderá representá-la na sucessão de outra. 8. (IX Procurador do Estado – GO) Assinale a alternativa correta: (A) o credor de dívida líquida e certa ainda não vencida, pode requerer habilitação no inventário; (B)
o legatário é sempre parte ilegítima manifestar-se sobre as dívidas do espólio;
para
(C) nenhum dos coerdeiros pode reclamar a universalidade da herança ao terceiro, que indevidamente a possua, não podendo este opor-lhe, em exceção, o caráter parcial do seu direito nos bens da sucessão; (D) ao cego só se permite o testamento particular. 9. (TJ/SP 178.º) Só uma destas afirmativas é verdadeira. Indique-a.
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(A) Será igual o quinhão de cada herdeiro quando concorrerem à herança irmãos bilaterais com irmãos unilaterais do falecido. (B) A herança transmite-se aos herdeiros na data da distribuição do inventário. (C) Somente as pessoas já nascidas no momento da abertura da sucessão têm legitimidade para suceder. (D) Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente. 10. (Magistratura/PR – 2012) Assinale a alternativa correta. (A) Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher e não tendo o poder familiar. (B) A sucessão e a legitimação para suceder são reguladas pela lei vigente ao tempo do nascimento do de cujus. (C) Com dissolução da sociedade conjugal, extinguese o bem de família convencional. (D) O direito à meação não é renunciável, mas é cessível ou penhorável na vigência do regime matrimonial. 11. (MP/AP – 2005) Assinale a alternativa correta. Decorrido um ano da arrecadação dos bens do ausente, ou, se ele deixou representante ou procurador, em se passando três anos e não havendo interessados na sucessão provisória, a quem cumpre requerer ao juízo competente que se declare a ausência e se abra provisoriamente a sucessão?
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(A) Ao cônjuge não separado judicialmente; (B)
Aos herdeiros testamentários;
presumidos,
legítimos
ou
(C) Ao Ministério Público; (D) Aos credores de obrigações vencidas e não pagas. 12. (MP/GO – 2005) É correto afirmar: (A) Abre-se a sucessão com a morte do autor da herança, sendo permitido ao coerdeiro, a partir de então, alienar seu direito hereditário sob qualquer bem da herança considerado singularmente; (B) O inventário e a partilha devem ser requeridos dentro do prazo de trinta dias contados da abertura da sucessão, podendo este prazo ser dilatado pelo juiz, havendo motivo justo, mediante requerimento do interessado; (C) O direito dos coerdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, enquanto indivisível os bens, será regulado pelas normas relativas ao condomínio, podendo, no entanto, qualquer dos coerdeiros exercer os seus direitos, obedecidas as normas da indivisão; (D) Concorrendo com herdeiro de que for ascendente, a cota do cônjuge não poderá ser inferior a um terço da herança. 13. (TJ/SP 174.º) A sucessão de bens de estrangeiros, por morte ou ausência, quando situados tais bens no Brasil, será regulada (A) sempre pela lei do país em que era domiciliado o defunto ou o desaparecido.
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(B) sempre pela lei brasileira, quanto aos imóveis, e sempre pela lei do país onde era domiciliado o defunto ou o desaparecido, quanto aos bens não imóveis. (C) sempre pela lei brasileira, desde que aqui aberta a sucessão. (D) pela lei brasileira, em benefício do cônjuge brasileiro, companheiro ou companheira brasileiros legitimados à sucessão, ou dos filhos brasileiros, ou quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do defunto ou desaparecido. 14. (TJ/SP 174.º) O direito à sucessão aberta considera-se para os efeitos legais (A) bem imóvel. (B) bem móvel. (C) bem incorpóreo. (D) bem móvel ou imóvel, conforme resulte de ser apreciado em si mesmo o que o integre, tendo em vista o fato de ser ou não suscetível de se mover. 15. (MP/MG XLIV – 2004) Assinale a proposição INCORRETA. (A) Na promessa de cessão de direitos cabe a preferência ao sublocatário e, em seguida, ao locatário, estando o imóvel sublocado; (B) apesar de não ser declarado falido, o administrador da sociedade limitada fica sujeito a todas as obrigações impostas em lei ao falido; (C) intimado o órgão do Ministério Público, o juiz dirigir-se-á à residência do falecido para
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arrecadar a herança jacente, esteja ou não presente o MP; (D) o advogado apresentará nos autos a cessão de direito hereditário do menor, lavrada em instrumento público, representado o menor pela mãe, cônjuge supérstite; (E) sendo resolutiva a condição, o negócio jurídico produzirá seus efeitos, gerando direitos adquiridos, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido, enquanto ela não se realizar. 16. (MP/MG XLIV – 2004) Assinale a alternativa CORRETA. (A) A herança destinada aos legitimários é imutável, não importando o número de herdeiros, se poucos ou muitos, se todos ou alguns se habilitaram; (B)
existindo herdeiro interditado, seu curador poderá requerer partilha amigável, comprovadamente vantajosa, ainda que o testador o proíba;
(C) para igualar as legítimas, o ascendente, concorrendo com o cônjuge, deverá colacionar os bens que recebeu em doação, do seu finado filho; (D) o contrato de locação, com renovação compulsória garantida pela Lei n.8245/91,poderá prever sua rescisão de pleno direito, com a decretação da falência; (E) omitida pelo procurador do absolutamente incapaz, o juiz não pode, embora provocado pelo Ministério Público, suprir, de ofício, a alegação de prescrição.
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17. (Procurador do Estado/MS – 2004) Analisando figuras próprias do direito civil, assinale a alternativa falsa: (A) Comoriência é presunção de morte, da qual decorre a abertura de uma única cadeia sucessória; (B) Codicilo é disposição de última vontade externada por documento escrito, referente a desejos e bens móveis de pequena monta, tenha ou não o de cujus deixado testamento; (C) Aquestos são os bens adquiridos na constância do casamento; (D) Herança jacente é aquela cujos herdeiros não são ainda conhecidos. Herança vacante é a que não foi disputada, com êxito, por quaisquer herdeiros, e declarada de ninguém; (E) A sucessão por cabeça se dá quando todos os descendentes são do mesmo grau e por estirpe se de diversos graus. 18. (VUNESP/2010 – Analista de Promotoria – 2.ª fase) Assinale a alternativa correta. (A) No casamento sob o regime da comunhão universal de bens, o cônjuge sobrevivente participa da herança deixada pelo outro, concorrendo com os filhos do casal, cabendo-lhe igual quinhão ao dos que sucederem por cabeça. (B) Colação é o ato mediante o qual o coerdeiro, para assegurar a igualdade das legítimas dos demais, devolve à massa hereditária, em espécie, o bem recebido em doação pelo autor da herança. (C) Estão sujeitos à colação os herdeiros necessários do autor da herança, mesmo aqueles renunciantes ou declarados indignos.
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(D) A pena de sonegados só se pode requerer e impor em ação movida somente pelos herdeiros do autor da herança. (E) No caso de deserdação, os motivos que a ensejam podem ser posteriores à morte do autor da herança e afasta apenas os herdeiros necessários. 19. (MP/ES – CESPE/2010) Assinale a opção correta com referência ao direito sucessório dos cônjuges e companheiros. (A) O companheiro não concorre com os parentes colaterais do falecido. (B) Havendo filhos exclusivos do(a) falecido(a), o(a) companheiro(a) herdará uma quota equivalente à que lhes for atribuída. (C) O direito hereditário do companheiro restringe-se aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. (D) No regime de separação obrigatória, o cônjuge sobrevivo herda porque não tem direito à meação. (E) O cônjuge sobrevivo tem direito real de habitação e de usufruto. 20. (VUNESP/2010 – Analista de Promotoria – 1.ª fase) Considere as afirmações seguintes: I – tanto o instituto da indignidade quanto o da deserdação procuram afastar da herança aquele que a ela não faz jus, em razão de reprovável conduta que teve em relação ao autor sucessionis, ou, ainda, contra seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
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II – a pena de indignidade é cominada pela própria lei, nos casos expressos que enumera, ao passo que a deserdação repousa na vontade exclusiva do de cujus que a impõe ao culpado, em ato de última vontade, desde que fundada em motivo legal; III – somente a autoria em crime de homicídio doloso, tentado ou consumado contra o autor da herança, pode afastar o herdeiro da sucessão. Está correto o contido em (A) I, II e III. (B) I e III, apenas. (C) II e III, apenas. (D) I e II, apenas. (E) I, apenas.
GABARITO 1–E
2–E
3–D
4–D
5–E
6–B
7–C
8–A
9–D
10 – A
11 – C
12 – C
13 – D
14 – A
15 – D
16 – A
17 – A
18 – C
19 – C
20 – D
DA SUCESSÃO LEGÍTIMA
Sumário: 2.1 Considerações iniciais sobre a ordem de vocação hereditária: 2.1.1 Conceitos fundamentais; 2.1.2 Duas regras fundamentais da sucessão legítima e suas exceções – 2.2 A sucessão legítima na linha reta descendente: 2.2.1 Regras específi cas e casos práticos de sucessão na linha descendente; 2.2.2 Alterações e acréscimos sobre o tema. Análise do Projeto de Lei 699/2011 – 2.3 A sucessão legítima na linha reta ascendente – 2.4 A sucessão legítima do cônjuge. Questões controvertidas: 2.4.1 Análise do Código Civil de 1916; 2.4.2 O Código Civil de 2002 – 2.5 A
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sucessão legítima do companheiro. Questões polêmicas: 2.5.1 As leis da união estável – Leis 8.971/1994 e 9.278/1996; 2.5.2 O Código Civil de 2002 e a sucessão do companheiro – 2.6 A sucessão legítima na linha colateral – 2.7 Os herdeiros necessários: 2.7.1 Quem são os herdeiros necessários?; 2.7.2 A legítima e a disponível – 2.8 Resumo esquemático – 2.9 Questões correlatas – Gabarito.
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A ORDEM DE VOCAÇÃO HEREDITÁRIA 2.1.1 Conceitos fundamentais A sucessão legítima, conforme mencionado anteriormente, recebe esta designação por decorrer da lei, mais especificamente das disposições contidas entre os arts. 1.829 a 1.856 do Código Civil em vigor. Essa forma de sucessão opõe-se à sucessão testamentária, pois esta toma por base um ato de última vontade do falecido, que pode se consubstanciar por meio de um testamento ou de um codicilo (arts. 1.857 a 1.990 do CC). Partindo-se dessa fundamental diferença, enquanto na sucessão testamentária serão sucessores a título singular (legatários) ou universal (herdeiros) as pessoas indicadas pelo próprio falecido, em se tratando de sucessão
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legítima cabe à lei indicar a ordem de vocação hereditária, ou seja, quem são as pessoas chamadas a suceder. Podem ser imaginadas algumas situações em que a ordem de vocação hereditária, ou seja, o chamamento legal será aplicado. Na primeira delas, lembre-se a hipótese em que o falecido não deixou ato de última vontade, situação em que a vontade do morto é substituída pela da lei. Em uma segunda hipótese, o falecido fez testamento dispondo apenas sobre parte de seus bens, situação em que a parte do patrimônio não contemplada pelo instrumento seguirá as regras da sucessão legítima. Por fim, também são aplicadas as regras da sucessão legítima na hipótese de nulidade do testamento (testamento existente, mas inválido) ou de sua caducidade (testamento existente, válido, mas ineficaz), matérias estas que explicaremos no próximo capítulo do presente livro. Para entender a ordem de vocação hereditária e suas regras, necessário se faz a fixação de determinados conceitos de Direito das Sucessões. Muitos desses conceitos, aliás, têm relação com o Direito de Família, particularmente com o parentesco, e foram estudados no volume anterior dessa coleção. Vejamos tais categorias, que são fundamentais para a prática sucessionista: a) LINHA DE PARENTESCO. Sobre o tema, a clara lição de Itabaiana de Oliveira “É a série de pessoas provindas do mesmo progenitor, que se denomina tronco e pode ser reta ou colateral” (Tratado..., 1952, v. 1, p. 65). Inicialmente, presente o parentesco em linha reta quando as pessoas estão umas para com as outras na
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relação de ascendentes e descendentes (art. 1.591 do CC). O parentesco em linha reta é infinito, ou seja, não há limites. Nesse sentido, haverá um ascendente quando na árvore genealógica subimos de uma pessoa para seus pais, avós, bisavós etc. Buscam-se os procriadores de certa pessoa. Por outra via, surgirá o descendente quando descemos de uma pessoa para seus filhos, netos, bisnetos etc. Buscam-se os procriados de certa pessoa. A relação de parentesco será paterna quando se referir à família do pai de certa pessoa, sendo materna quando se referir à família da mãe de certa pessoa. Em determinadas situações, ocorre a divisão da herança entre as linhas materna e paterna. Assim, quando a lei determina a divisão em linhas, metade da herança vai para a família do pai e metade para a família da mãe. O parentesco é colateral, transversal ou oblíquo quando as pessoas provêm de um só tronco, sem descenderem umas das outras (art. 1.592 do CC). Desse modo, são parentes colaterais os irmãos (2.º grau), o tio e o sobrinho (3.º grau), os primos-irmãos, os sobrinhos-netos e os tiosavós (4.º grau). Não há parentesco colateral além do 4.º grau, conforme determina o referido dispositivo. b) CLASSE DE HERDEIROS. A classe é um determinado grupo de herdeiros que guarda semelhanças entre si. Sendo assim, a primeira classe de herdeiros é a dos descendentes do falecido, ou seja, aqueles que têm como semelhança o fato de, na árvore genealógica, encontrarem-se na posição de filhos, netos, bisnetos,
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tataranetos. Os descendentes são parentes em linha reta e não em linha transversal ou colateral do falecido (art. 1.591 do CC). Dessa forma, o sobrinho do morto não é considerado seu descendente. A segunda classe de herdeiros é a dos ascendentes. Em termos de árvore genealógica, são aqueles que vierem antes do morto, tendo com ele parentesco em linha reta (art. 1.591 do CC). São ascendentes os pais, os avós, os bisavós etc. É bom ressaltar que o tio-avô não é ascendente, mas sim parente colateral ou transversal do falecido. A terceira classe de herdeiros é a do cônjuge e a do companheiro. Entre os cônjuges e entre os companheiros não há parentesco, como se sabe, pois parentesco, na definição de Itabaiana de Oliveira, “é um nexo que une uma pessoa a outra por laços de sangue, ou por criação artificial da lei, ou que aproxima uma pessoa dos parentes da outra, em virtude de relações sexuais entre elas” (Tratado..., 1952, v. 1, p. 64). De qualquer forma, conforme será demonstrado, criou o Código Civil de 2002 uma concorrência sucessória entre o cônjuge e os descendentes (dependendo do regime de bens do casamento), entre o cônjuge e os ascendentes (independentemente do regime de bens), bem como a concorrência entre o companheiro e os descendentes, ascendentes e colaterais do falecido. Em razão da grande polêmica, a matéria é tratada em tópico específico a seguir. A quarta e última classe é a dos parentes colaterais ou transversais. Entre os parentes colaterais não há relação de descendência ou ascendência (art. 1.592 do CC). Os colaterais não são parentes em linha reta. A relação entre os parentes colaterais decorre do fato de estes terem um
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ancestral comum, mas não em linha reta. A título de ilustração, lembre-se de que a ideia de classes também é bastante antiga. Com feição muito parecida com a atual, surgiu no Direito Justinianeu com as Novelas 118 (543 d.C.) e 127 (548 d.C.) ambas do século VI d.C. c) GRAUS. Os graus de parentesco decorrem do número de gerações que separa determinadas pessoas. A sua contagem dependerá do tipo de parentesco (art. 1.594 do CC). Se contarmos o grau de parentesco entre o neto e o avô, teremos o parentesco de 2.º grau, pois o avô é parente em 1.º grau de seu filho (uma geração) e em 2.º grau de seu neto (mais uma geração). Vejamos o diagrama de parentesco:
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Percebe-se que cada traço vertical do diagrama que separa um parente de outro corresponde a uma geração. Entre o avô e neto o parentesco é de 2.º grau em linha reta. Entre pai e filho é de 1.º grau em linha reta.
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Por outra via, na linha colateral, a contagem de graus exige que se encontre um ancestral comum entre os parentes cujo grau se pretende contar. Determina o Código Civil que na linha colateral também sejam contados os graus pelo número de gerações, subindo de um dos parentes até o ascendente comum, e descendo até encontrar o outro parente (art. 1.594 do CC). A regra básica para não errar essa contagem é subir ao máximo, para depois descer, conforme apontado no volume anterior da presente coleção (Volume 5). Repise-se, ainda, que essa linha colateral pode ser igual ou desigual, caso os parentes distem igualmente ou não do mesmo tronco comum. Visualizando, os irmãos são parentes colaterais ou transversais em 2.º grau igual. Um grau separa o irmão A de seu pai e outro grau separa o pai do irmão B. Para não errar na conta, deve-se contar o número de “saltos” (gerações) que se dá na árvore genealógica. Vejamos o diagrama:
Por que se trata de parentesco colateral em 2.º grau igual? Para que saibamos se os graus são iguais ou desiguais, temos que verificar quantos graus subimos na árvore familiar e quantos graus descemos até chegar ao parente procurado. Seguindo o diagrama acima,
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contamos, na subida, um único grau que separa A de seu pai e, na descida, apenas um grau que separa o pai de B (que é seu filho e irmão de A). Havendo um grau de cada lado, os graus são iguais. Já o sobrinho é parente colateral em terceiro grau desigual de seu tio. Vamos partir do sobrinho e chegar ao tio na árvore da família. Entre o sobrinho e seu pai há um grau; entre seu pai e seu avô outro grau e, por fim, entre o avô e o tio há mais um grau. São três graus desiguais que separam o tio do sobrinho. Vejamos o diagrama.
Em suma, para que se conclua se os graus são iguais ou desiguais, há a necessidade de se verificar quantos graus se sobe na árvore familiar e quantos graus se desce até chegar ao parente procurado. Seguindo o diagrama acima, contamos, na subida, dois graus que separam A de seu avô e, na descida, apenas um grau que separa o avô de B (que é seu filho e tio de A). Havendo dois graus de um lado e apenas um grau do outro, os graus são desiguais. Por fim, são parentes colaterais em 4.º grau os tiosavós, os primos-irmãos e os sobrinhos-netos.
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A contagem de graus é fundamental para que sejam resolvidos problemas de destino da herança. Todas as regras envolvem a contagem de graus, podendo qualquer erro gerar um enorme problema na solução das questões práticas. Encerrando, tendo sido explicados os conceitos de linha, classe e grau, para facilitar a consulta e possibilitar a rápida identificação dos graus de parentesco, elaboramos uma tabela de auxílio de todo o parentesco consanguíneo até o quarto grau, lembrando que o parentesco colateral não passa desse limite e o parentesco em linha reta é infinito. GRAU
I– Primeiro grau
LINHA
EXEMPLOS
a) Linha Reta ascendente
Meu pai e minha mãe
b) Linha Reta descendente
Meu filho e minha filha
EXPLICAÇÃO
Observação: Não há parente colateral de primeiro grau
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GRAU
II – Segundo grau
III – Terceiro grau
LINHA
EXEMPLOS
a) Linha Reta ascendente
Meu avô e minha avó
b) Linha Reta descendente
Meu neto e minha neta
c) Linha Colateral
Meu irmão e minha irmã
a) Linha Reta ascendente
Meu bisavô e minha bisavó
b) Linha Reta descendente
Meu bisneto e minha bisneta
c) Linha Colateral
EXPLICAÇÃO
Meu tio e minha tia
Irmãos de meu pai ou de minha mãe
Meu sobrinho e minha sobrinha
Filhos de meu irmão ou de minha irmã
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GRAU
LINHA
EXEMPLOS
a) Linha Reta ascendente
Meu trisavô e minha trisavó
b) Linha Reta descendente
Meu trisneto e minha trisneta
IV – Quarto grau c) Linha Colateral
EXPLICAÇÃO
Meu sobrinhoneto e minha sobrinhaneta
Filhos de minha sobrinha ou de meu sobrinho
Meu tio-avô e minha tia-avó
Irmãos de meu avô ou de minha avó
Meu primoirmão e minha prima-irmã
Filhos do meu tio ou da minha tia
2.1.2 Duas regras fundamentais da sucessão legítima e suas exceções 2.1.2.1 Primeira regra fundamental da sucessão legítima Toda sucessão legítima toma por base o seguinte fundamento: como o falecido não fez testamento, presume a
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lei sua vontade, determinando o destino de seus bens. Em outras palavras, presume-se a afetividade do falecido para com seus parentes, cônjuges e companheiros. A ordem de chamamento dos parentes, cônjuge ou companheiro do falecido decorre, em princípio, dessa presunção legal de afetividade. Isso serve para responder indagações do tipo: por que os sobrinhos do falecido nada herdam se este tiver filhos? Ora, porque a lei presume que, em uma situação de normalidade, a pessoa dedica mais carinho e afeto a seu filho do que a seu sobrinho e, portanto, deseja que seus bens sejam transmitidos ao primeiro. Da mesma forma, por que na hipótese em que a pessoa falece deixando seu filho vivo e também seu pai, a lei determina que a herança vá para o filho? Porque a lei presume que, em uma situação de normalidade, a pessoa dedica mais carinho e afeto a seu filho do que a seu pai e, portanto, tem como vontade presumida que seus bens sejam para ele transmitidos. Com essa presunção evidente, cria-se a ordem de vocação hereditária. Se os filhos dão continuidade à estirpe dos pais, nada mais justo que sejam eles os primeiros a receber sua herança. Surge, então, a primeira regra muito importante: a existência de herdeiros de uma classe exclui do chamamento à sucessão herdeiros da classe seguinte. Se essa primeira regra era praticamente absoluta na vigência do Código Civil de 1916 e na legislação da união estável (Leis 8.971/1994 e 9.278/1996), no sistema do Código Civil de 2002 deve a mesma ser vista com cautela. Isso porque contém o atual Código Civil severas ressalvas
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ou exceções à sua aplicação. Assim, uma presunção que era absoluta e inquebrável (iure et de iure) passou a ser relativa, comportando exceções (iuris tantum). Como primeira exceção, haverá concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes do falecido em certas situações, dependendo do regime de bens do casamento (art. 1.829, I, do CC/2002). Ato contínuo, haverá concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente e os ascendentes do falecido qualquer que seja o regime de bens (art. 1.829, II, do CC/2002). Também haverá concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os descendentes do falecido sobre os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável (art. 1.790, I e II, do CC/2002). Não obstante tudo isso, haverá concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e ascendentes ou colaterais do falecido sobre os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável (art. 1.790, I e II, do CC/2002). Por fim, haverá o direito real de habitação ao cônjuge, independentemente do regime de bens e de sua participação na herança (art. 1.831 do CC/2002). Todos esses temas serão explicados de maneira minuciosa no presente capítulo. Pois bem, verifiquemos alguns desdobramentos práticos das normas em estudo. Se o falecido A deixar seu filho e seu pai, não tendo cônjuge ou companheira, todos os bens irão para o filho, e o pai do morto nada receberá. A classe dos descendentes exclui do chamamento a classe dos ascendentes. Vejamos o diagrama sucessório:
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Da mesma forma, se A falecer, sem ter esposa ou companheira, e deixar seu pai e seus irmãos vivos, o pai (ascendente) recebe toda a herança e os irmãos (colaterais) nada recebem. Vejamos novamente o diagrama sucessório:
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Por fim, se A falecer sem descendentes ou ascendentes, deixando cônjuge vivo, independentemente do regime de bens, ainda que tenha sobrinhos ou irmãos, o cônjuge receberá toda a herança, e os parentes colaterais nada receberão. 2.1.2.2 Segunda regra fundamental da sucessão legítima A segunda regra sucessória é a seguinte: dentro de uma classe de herdeiros, os herdeiros de grau mais próximo excluem da sucessão os de grau mais remoto. A regra em questão é basilar para a compreensão da sucessão legítima, sendo certo que existia quando da vigência do Código Civil de 1916 (arts. 1.604 e 1.613 do CC/1916) e é repetida e reafirmada no Código Civil de 2002 (arts. 1.833, 1.835 e 1.840). Na realidade, a regra é muito antiga e já na Lei das XII Tábuas de 450 a.C., dentro da segunda classe de herdeiros, os agnados (que não se encontravam sob o pátrio poder – patria potestas do de cujus), de grau mais próximo, excluíam os de grau mais remoto. Ilustrando, se o falecido deixa dois filhos (descendentes de 1.º grau) e um neto (descendente de 2.º grau), não tendo esposa ou companheira, apenas os dois filhos
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recolherão a herança; o neto nada receberá. Vejamos a situação descrita no esquema a seguir:
Da mesma forma, se o falecido A deixar seus dois irmãos B e C (colaterais em 2.º grau) e um tio D (colateral em 3.º grau) vivos, em não tendo descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro, os irmãos tudo receberão. Elucidando, lembre-se que o termo premorto significa que o avô e o pai de A já eram falecidos quando A morreu. Esquematizando:
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Analisadas essas duas importantes regras basilares, passa-se ao estudo das suas exceções. 2.1.2.3 Das exceções. O estudo específico do direito de representação Duas são as exceções à regra pela qual dentro de uma classe de herdeiros, os herdeiros de grau mais próximo excluem da sucessão os de grau mais remoto. A primeira delas refere-se à classe dos colaterais. Se o tio do morto (parente em 3.º grau) concorrer com o sobrinho do morto (parente também em 3.º grau), o sobrinho do morto ficará com toda a herança (art. 1.843 do CC). Apesar do tio do morto e do sobrinho serem ambos parentes colaterais de 3.º grau, não havendo, portanto, grau mais remoto, por opção do legislador o sobrinho ficará com a totalidade da herança. A segunda exceção refere-se ao direito de representação, tratado entre os arts. 1.851 a 1.856 do CC em vigor e que passamos a estudar.
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Apesar da diferença de graus, alguns parentes do falecido que estariam excluídos da sucessão por serem parentes de grau mais remoto receberão parte da herança em razão do direito de representação, que só ocorre quando houver diversidade de graus. Portanto, se todos os herdeiros chamados a suceder forem de mesmo grau, não haverá direito de representação. Desse modo, dá-se o direito de representação quando a lei chama certos parentes do falecido a suceder em todos os direitos em que ele sucederia se vivo fosse (art. 1.851 do CC). Em complemento, prevê o art. 1.854 do CC que os representantes só podem herdar, como tais, o que herdaria o representado se vivo fosse. Conforme frisa José Luiz Gavião de Almeida, “os chamados representantes, na verdade, não o são. Não recebem pelo representado, mas no lugar dele. Não estariam representando outros herdeiros, mas os substituindo. Por isso a expressão por direito de substituição seria mais apropriada” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 270). Em razão dessa crítica, que já é antiga, Washington de Barros Monteiro propõe a seguinte divisão: vocação hereditária direta e vocação hereditária indireta. Será “direta, quando o título de herdeiro resulta da atribuição direta feita pela lei, ou pelo testador; indireta, quando o título de herdeiro promana da lei, mas a primeira vocação não pode se efetivar pela ausência do convocado, substituído por seu descendente” (Curso..., 2003, v. 6, p. 117). Tais expressões podem ser utilizadas na prática sucessória. Consigne-se que os representantes recebem exatamente aquilo que o representado receberia se vivo fosse,
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ou seja, nem mais, nem menos; e, por isso, o quinhão do representado será repartido por igual entre os representantes (art. 1.855 do CC). Explica Clóvis Beviláqua que se trata de “um preceito de equidade, que tem por fim reparar, do ponto de vista hereditário, o mal sofrido pelo descendente com a morte prematura do ascendente” (Código Civil..., 1955, v. VI, p. 65). A representação é própria da sucessão legítima e não se aplica à sucessão testamentária. Isso porque também decorre da presunção de afetividade do falecido com relação a determinados parentes. Em suma, imagina a lei que se um testamento fosse elaborado, tais parentes seriam beneficiados. Analisando um caso prático, se o herdeiro testamentário falecer antes da morte do testador, o testamento caducará, e os filhos do herdeiro nomeado não terão direito aos bens testados. As liberalidades feitas por testamento entendem-se personalíssimas e, portanto, feitas em favor de certa pessoa designada no ato de última vontade, o que não gera direitos aos herdeiros do beneficiado pelo testamento. A forma de evitar esse problema será a nomeação de substitutos testamentários, conforme veremos (Capítulo 3, item 3.8). Apenas para anotar, é interessante perceber que o Anteprojeto Orlando Gomes pretendia criar a representação na sucessão testamentária, mas a ideia não vingou e o Código Civil de 2002 reproduziu exatamente as regras do Código Civil de 1916. Por outro lado, em determinadas situações, com o falecimento do herdeiro legítimo, ou excepcionalmente, com a sua declaração de indignidade ou de deserdação,
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parentes de grau mais remoto serão chamados a suceder pelo direito de representação. Itabaiana de Oliveira resume com excelência a questão: “a representação é uma ficção da lei e ocorre quando, morrendo o presumido herdeiro antes da abertura da sucessão em seu favor, são chamados a suceder seus descendentes, em concorrência com outros descendentes mais próximos do autor da herança, a ocupar o lugar do presumido herdeiro, substituindo-o e verificando-se, então, a desigualdade de graus de parentesco, para com o autor da herança, desde o momento da abertura da sucessão” (Tratado..., 1952, v. 1, p. 156). A decorrência prática da representação é que a partilha dos bens do falecido se dá por estirpe. Então, os bens que caberiam ao representado serão divididos entre os membros de sua família, ou seja, justamente de sua estirpe. Já quando não há representação, os herdeiros recebem por direito próprio e a partilha da herança se dá por cabeça. Assim, se os herdeiros concorrerem em grau de igualdade, desde o momento da abertura da sucessão, a herança será dividida em partes iguais e essa sucessão se dará por direito próprio e a partilha por cabeça. Facilitando o trabalho de compreensão, vejamos o tratamento diferenciado das hipóteses em que há ou não o referido direito de representação. a) Hipóteses em que há direito de representação (jure repraesentationis) Como base do que consta do atual Código Civil, podemos apontar as seguintes situações em que caberá a sucessão por representação e a partilha por estirpe:
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– Na linha reta descendente, quando concorrerem descendentes de grau mais próximo e de grau mais remoto no momento da abertura da sucessão. Na linha descendente o direito de representação é ilimitado (art. 1.852 do CC). – Na linha colateral, quando os irmãos do morto (parentes em 2.º grau) concorrerem com sobrinho do morto (parentes em 3.º grau). Esse é o único caso de representação admitido na linha colateral (art. 1.853 do CC). – Quando o herdeiro legítimo é declarado indigno ou deserdado e seus descendentes são chamados a suceder (art. 1.816 do CC). – Na hipótese de o renunciante à herança de uma pessoa representá-la na sucessão de outra (art. 1.856 do CC). Um exemplo prático ajuda na análise da norma e evita a confusão com a matéria da renúncia. Já foi dito no capítulo anterior do presente livro que os filhos do renunciante não são chamados à sucessão representando-o. Vejamos o diagrama esquematizando a matéria:
Como outro exemplo, imagine-se que B não renuncie a herança de seu pai A. Se D renunciar à herança de seu pai B que falece antes do avô A, quando este último (o avô) vier a falecer, poderá D aceitar a herança, representando seu pai B. Isso porque a renúncia se interpreta
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restritivamente. A expressão premorto significa que B morreu antes de seu pai A. Vejamos um novo diagrama que demonstra a sucessão de A:
b) Hipóteses em que não há direito de representação e sim direito próprio (jure proprio) Também com base na atual codificação privada, não caberá a sucessão por representação, mas sim por direito próprio, sendo a partilha por cabeça, nos seguintes casos: – Na linha ascendente. Na linha ascendente nunca ocorre o direito de representação por opção legislativa (art. 1.852 do CC). – Quando houver concorrência na linha colateral entre parentes de 3.º e de 4.º graus. O parente de 3.º grau herda a totalidade da herança e o de 4.º grau nada recebe – sobre o tema, recomenda-se a leitura do presente capítulo no item 2.6. – Quando o falecido só deixar parentes colaterais de 4.º grau.
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– Quando houver renúncia da herança. Os filhos da pessoa que renunciou não são chamados a suceder, pois o quinhão será repartido entre os demais herdeiros da classe do renunciante.
Resumindo, um quadro comparativo ajudará a visualizar as situações descritas: Igualdade ou não de graus
Tipo de sucessão
Tipo de partilha
Hipóteses legais
– Falecido deixa apena filhos como herdeiros
– Falecido deixa apena netos como herdeiros Se houver igualdade de graus dos herdeiros no momento do falecimento
Sucessão por direito próprio (jure proprio)
Partilha por cabeça (in capita)
– Falecido deixa apena ascendentes como herdeiros
– Falecido deixa apena irmãos como herdeiros
– Falecido deixa apena sobrinhos como herdeiros
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Igualdade ou não de graus
Tipo de sucessão
Tipo de partilha
Hipóteses legais
– Falecido deixa apena colaterais em 3.º grau (deixa só tio ou só sobrinhos)
– Falecido deixa apena colaterais em 4.º grau (deixa só tios-avós, sobrinhos-ne tos e/ou primosirmãos) Se houver desigualdade de graus dos herdeiros no momento do falecimento e a lei determinar a sucessão de parentes de grau mais remoto
Sucessão por representação (jure repraesentationis)
Partilha por estirpe (in stirpes)
– Falecido deixa descendentes d diversos graus (filhos vivos e neto filhos de um filha premorta)
– Falecido deixa irmãos e sobrinhos (filhos de um
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Igualdade ou não de graus
Tipo de sucessão
Tipo de partilha
Hipóteses legais irmão premorto)
– Falecido deixa dois fi hos, sendo um deles indigno. Os fil hos do indigno sucedem por representaçã
Com esse quadro encerra-se o tratamento da matéria, apenas em uma análise preliminar. Serão expostos exemplos práticos sobre a representação nas seções subsequentes, conforme o oportuno estudo das classes de herdeiros.
2.2 A SUCESSÃO LEGÍTIMA NA LINHA RETA DESCENDENTE 2.2.1 Regras específicas e casos práticos de sucessão na linha descendente A primeira classe de herdeiros chamada a suceder é a dos descendentes.
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Para fins didáticos e com o fito de evitar confusões na compreensão da questão, em todas as nossas hipóteses o falecido não tem cônjuge ou companheiro, pois essas questões envolvendo particularmente a concorrência do cônjuge/companheiro serão trabalhadas mais adiante. Se no momento da abertura da sucessão o falecido deixar descendentes, ascendentes e colaterais e for aplicada a regra pela qual a existência de herdeiros de uma classe exclui os herdeiros da classe subsequente (primeira regra fundamental do direito sucessório), apenas os descendentes serão chamados a suceder. Assim sendo, os ascendentes e colaterais não terão direitos sucessórios. Além disso, deve-se observar que os descendentes são herdeiros necessários e terão o direito à legítima, ou seja, a 50% do patrimônio do falecido (art. 1.845 do CC). Vejamos algumas regras e casos práticos relacionados. a) Entre os descendentes, os de grau mais próximo excluem os de grau mais remoto, salvo o direito de representação (art. 1.833 do CC) Se A falece e deixa dois filhos (descendentes de 1.º grau) e três netos (descendentes de 2.º grau), todos os bens serão partilhados entre os filhos, pois o grau mais próximo exclui o grau mais remoto. Vejamos o diagrama:
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Entretanto, estabelece a lei o direito de representação ilimitado na linha descendente. Exemplo disto se verifica quando A falece, sem cônjuge ou companheiro e deixa como herdeiros seu filho B (descendente de 1.º grau) e seus netos D e E (descendentes de 2.º grau), filhos de seu filho C (premorto). A expressão premorto significa que C morreu antes seu pai A. Haverá representação em razão da diversidade de graus. Nesse caso, 50% da herança serão do filho B e 50% pertencerá, por representação, a D e E (estirpe de C), sendo que cada neto recebe 25% dos bens. Vejamos:
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Podemos dar mais um exemplo de representação na linha descendente. A falece e deixa os seguintes descendentes vivos: filho B, neto D e bisnetos F e G. O filho C, pai do neto E é premorto. O neto E, pai dos bisnetos F e G também é premorto. A herança ficará dividida da seguinte maneira: – 50% para o filho B. – 25% para o neto D. – 12,5% para cada um dos bisnetos F e G.
b) Se todos os descendentes forem de mesmo grau, todos recebem por direito próprio, e a partilha será por cabeça (art. 1.835 do CC) Para ilustrar, se A falece e deixa três filhos (todos descendentes de 1.º grau), a herança será dividida em partes iguais. Vejamos:
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Da mesma forma, se todos os filhos forem premortos e, no momento da sucessão, o falecido deixou apenas netos (todos descendentes de 2.º grau), os netos receberão por direito próprio, não havendo representação. Só haveria representação se houvesse descendentes em graus diversos, mas como todos são descendentes de mesmo grau, a partilha se dará por cabeça. Vejamos:
Uma outra situação pode ser objeto de dúvida. c) Se todos os representantes de uma geração desaparecerem, os da linha subsequente são chamados a herdar por direito próprio ou por representação? A resposta é: herdarão por direito próprio. Exemplificando, se A falece e deixa seus netos D e F vivos, bem como seus bisnetos G e H, e premortos, seus filhos B (pai de D) e C (pai de E e F) e o neto E (pai dos bisnetos G e H), a herança será assim partilhada: – D – 1/3 da herança por direito próprio. – F – 1/3 da herança por direito próprio. – G e H – 1/6 da herança cada um em representação a E.
Em esquema:
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Superada a análise desses casos práticos, veremos as propostas legislativas de alteração da matéria, o que serve como complementação ao estudo. 2.2.2 Alterações e acréscimos sobre o tema. Análise do Projeto de Lei 699/2011 O art. 1.834 do Código Civil em vigor, sem correspondente no Código Civil de 1916, determina que “os descendentes da mesma classe têm os mesmos direitos à sucessão de seus ascendentes”. É evidente a inutilidade do dispositivo, isso porque todos os descendentes estão na mesma classe. Portanto, a leitura que deve ser feita do dispositivo é a seguinte: todos os descendentes têm iguais direitos. A regra decorre da Constituição Federal, que, em seu art. 227, § 6.º, proíbe qualquer discriminação entre os filhos, sejam eles advindos de casamento, de união estável ou de adoção. Aliás, não se pode admitir, em hipótese alguma, a utilização das expressões filhos incestuosos ou adulterinos, terminologia arcaica e totalmente condenável. De qualquer forma, entendemos que correta seria a seguinte leitura do dispositivo em comento: os
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descendentes de mesmo grau têm os mesmos direitos à sucessão de seus ascendentes. Realmente, se todos os descendentes são filhos do falecido, receberão quinhão igual da herança, partilhando-a por cabeça, conforme explicamos acima. Para tornar útil o dispositivo, o Projeto 699/2011, originalmente apresentado com o número 6.960/2002, de autoria do deputado Ricardo Fiúza, pretende modificar a norma em questão. Nesse contexto sugere a seguinte redação: “Art. 1.834. Os descendentes do mesmo grau, qualquer que seja a origem do parentesco, têm os mesmos direitos à sucessão de seus ascendentes”. As justificativas originais de Ricardo Fiúza seguem exatamente o que se expôs: “Os descendentes já são de uma mesma classe. O que o dispositivo quis dizer, atualizando a regra do art. 1.605 do Código Civil de 1916, é que estão proibidas quaisquer discriminações ou restrições, baseadas na origem do parentesco. (...) Obviamente, o princípio da não discriminação, até por ser uma regra fundamental, se estende e projeta a todos os descendentes. Para efeitos sucessórios, aos descendentes que estejam no mesmo grau” (O novo Código Civil..., 2004, p. 299). Além da modificação da redação do art. 1.834 do CC, o antigo Projeto Ricardo Fiúza pretende acrescentar um parágrafo único ao art. 1.835, com o seguinte teor: “Se não houver pai ou mãe, o filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho, e desde que prove a necessidade disto, terá, ainda, direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a
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inventariar, enquanto permanecer na situação que justificou esse benefício”. O Código Civil de 1916 já criava direito real de habitação ao filho portador de deficiência que o impossibilita ao trabalho (art. 1.611, § 3.º, do CC/1916), em razão do disposto na Lei 10.050/2000. O que se percebe é que o projeto pretende criar um direito real sobre coisa alheia a favor do filho (desde que ausentes seus pais), que seja portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho e que tenha necessidade pode morar gratuitamente no imóvel que pertencerá aos demais descendentes. A proposta tem inegável valor social e com ela concordamos integralmente, visando à manutenção de um patrimônio mínimo a favor da pessoa humana, sendo importante lembrar a célebre teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, de Luiz Edson Fachin. Além disso, deve-se apontar sempre a proteção constitucional da moradia, constante do art. 6.º, caput, da Constituição Federal de 1988. Surge, aqui e mais uma vez, a faceta do Direito Civil Personalizado que propomos, aquele que se preocupa com a proteção da dignidade da pessoa humana, nos termos do art. 1.º, III, da CF/1988. O direito real de habitação seria instituído sob condição resolutiva. Se cessada a situação que ensejava o benefício, este se resolverá. Ricardo Fiúza explica que “o dispositivo enfaticamente protege o portador de deficiência e não a figura do filho em si, partindo-se da máxima aristotélica de que a igualdade faz-se a partir do tratamento desigual conferido aos desiguais, posto que aquele se encontra em situação desfavorável, como o deficiente e o consumidor, por exemplo, precisa ser tratado com deferência, ou seja, precisa de um sistema que o guarneça com
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muito mais empenho que os demais. Fato é que dito dispositivo pouco conhecido, pouco discutido e pouco aplicado, deixou de figurar no novo Código Civil, em evidente retrocesso legislativo, do chamado direito civil constitucional, que simplesmente o ignorou, como se desconhecesse sua relevância” (O novo Código Civil..., 2004, p. 300). Filia-se ao pensamento que funda a projeção legislativa. Tal como se encontra o Código Civil, verifica-se um claro retrocesso da lei em prejuízo de pessoas portadoras de necessidades especiais, o que não se coaduna com o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no Texto Maior e sempre invocado.
2.3 A SUCESSÃO LEGÍTIMA NA LINHA RETA ASCENDENTE A segunda classe de herdeiros chamada a suceder é a dos ascendentes. Para fins didáticos e com o fito de evitar confusões na compreensão da questão, repetimos a observação feita anteriormente de que em todas as hipóteses aqui tratadas o falecido não deixa cônjuge ou companheiro, pois essas questões serão trabalhadas nas próximas seções do presente capítulo. Se, no momento da abertura da sucessão, o falecido não deixar descendentes, mas deixar ascendentes e parentes colaterais, aplicando-se a regra pela qual a existência de herdeiros de uma classe exclui os herdeiros da classe subsequente, apenas os ascendentes são chamados a suceder (art. 1.836 do CC). Em casos tais, diante da ordem sucessória outrora comentada, os colaterais não terão qualquer direito sucessório. Além disso, deve-se lembrar
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que os ascendentes são herdeiros necessários e terão o direito à legítima (art. 1.845 do CC). Vejamos algumas regras e as suas decorrências práticas: a) Na classe dos ascendentes, o grau mais próximo exclui o mais remoto, sem distinção de linhas (art. 1.836, § 1.º, do CC). Não há direito de representação na linha ascendente. Se A falece e deixa sua mãe e seu pai vivos (ambos ascendentes de 1.º grau), seu pai recebe 50% da herança e sua mãe os outros 50%, mesmo que seus avós maternos e paternos (ascendentes em 2.º grau) sejam vivos. Esquematizando:
Entretanto, se A falece deixando vivo seu pai (ascendente em 1.º grau) e sendo premorta a sua mãe, mesmo que sejam vivos seus avós maternos (ascendentes em 2.º grau), seu pai recolherá a totalidade da herança, pois o grau mais próximo (1.º grau) exclui o grau mais remoto
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(2.º grau). Não há direito de representação na linha ascendente. Vejamos:
b) Havendo igualdade em graus e diversidade em linhas, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra metade aos da linha materna (art. 1.836, § 2.º, do CC). A regra cuida da chamada sucessão por linhas (in lineas). A sucessão ocorre por direito próprio (como já frisado à exaustão, não há representação na linha ascendente), mas a partilha da herança se dá por linhas: metade para a linha materna e metade para a linha paterna. Dois exemplos são relevantes. Se o falecido deixar apenas seus avós paternos e avós maternos vivos (todos ascendentes em 2.º grau), pois seu
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pai e sua mãe são premortos, cada um dos avós receberá 25% da herança que se dividiu em linhas: 50% para a linha paterna e 50% para a linha materna. O gráfico esquemático pode ser assim concebido:
Já se o falecido deixar como herdeiros apenas sua avó paterna (ascendente em 2.º grau) e seus dois avós maternos (também ascendentes em 2.º grau), pois seu pai e sua mãe são premortos, cada um dos avós maternos receberá 25% da herança e a avó paterna 50%, eis que a herança se dividiu em linhas de 50% para a linha paterna e 50% para a linha materna:
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O seguinte quadro esquemático ajudará a entender as questões expostas: Igualdade ou não de linhas
Se houver igualdade de graus e igualdade de linha do ascendente no momento do falecimento
Tipo de sucessão
Sucessão por direito próprio (jure proprio)
Tipo de partilha
Hipóteses legais
Partilha por cabeça (in capita)
– Falecido deixa apenas mãe ou pai vivos e nenhum avô materno ou paterno – Falecido deixa apenas seus
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avós paternos – Falecido deixa apenas seus avós maternos
Se houver igualdade de graus e desigualdade de linhas dos ascendentes no momento do falecimento
Sucessão por direito próprio (jure proprio)
– Falecido deixa a mãe e o pai vivos Partilha por linhas (in linea)
– Falecido deixa vivos um ou ambos os avós paternos e um ou ambos os avós maternos
Como última observação, consigne-se que os ascendentes por afinidade – sogro ou sogra do falecido – nada recebem com a sua morte, porque a herança se transmite aos ascendentes que são parentes consanguíneos ou por adoção – pais biológicos, adotivos ou socioafetivos –, mas não por afinidade. Quanto à parentalidade socioafetiva, sugere-se a leitura do Volume 5 da presente coleção (TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil..., 2011).
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2.4 A SUCESSÃO LEGÍTIMA DO CÔNJUGE. QUESTÕES CONTROVERTIDAS 2.4.1 Análise do Código Civil de 1916 No Código de 1916, estava a ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.603, que transcrevemos: “Art. 1.603. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais; V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União.”
Pelo dispositivo analisado, deixando o de cujus descendentes, os ascendentes, cônjuge e colaterais não eram chamados a suceder. Dessa forma, pelo Código Civil de 1916 deveria ser cumprida a vontade presumida do morto, antes analisada. Tendo filhos, presumia-se que o falecido gostaria que todos os seus bens fossem entre eles partilhados, assim não havia concorrência com os ascendentes ou mesmo com o cônjuge do falecido. Por outro lado, se não deixasse descendentes, chamava-se a segunda classe de herdeiros, os ascendentes. No último caso, excluídos estavam o cônjuge e os colaterais. Ato contínuo, não havendo descendentes nem ascendentes, o cônjuge era chamado à sucessão. Por fim, se o falecido não deixasse
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descendentes, ascendentes ou cônjuge, só então os colaterais eram chamados à sucessão. Como dizia Itabaiana de Oliveira, “esta ordem se distingue por sua simplicidade e corresponde, com a possível exatidão, ao conceito de família, e, substituindo a este sentimento, há o de pátria, que se refere no direito hereditário com a sucessão do Fisco” (Tratado..., 1952, v. 1, p. 171). Isso porque, na vigência do Código revogado, aplicava-se a regra pela qual a existência de herdeiros de uma classe exclui do chamamento da sucessão herdeiros da classe seguinte. Inexistia, como regra, a concorrência sucessória entre o cônjuge e os descendentes ou ascendentes do falecido. A sucessão, na opinião dos presentes autores, era mais simples e assim deveria ter sido mantida, deixando de criar uma série de dificuldades que surgiram para os aplicadores do Direito a partir da nova codificação privada. Pois bem, no sistema anterior, exceção era feita à regra contida no art. 1.611 do revogado Código Civil, que fora inserido por força do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121, de 27.08.1962). Transcreve-se o artigo em questão: “Art. 1.611. À falta de descendentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal. (Redação dada pela Lei 6.515, de 26.12.1977) § 1.º O cônjuge viúvo, se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filhos, deste ou do casal, e à metade, se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do de cujus.
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§ 2.º Ao cônjuge sobrevivente, casado sob regime de comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar.”
Pelo comando legal transcrito, é de se observar que na vigência do Código Civil de 1916, de acordo com o regime de bens do casamento, quando do falecimento de um dos cônjuges o outro teria os seguintes direitos: a) Usufruto dos bens do falecido nas hipóteses de concorrer com descendentes ou ascendentes do de cujus, desde que casado fosse pelo regime da comunhão parcial ou da separação de bens. Tratava-se do que outrora se denominava usufruto vidual. Em concorrência com os descendentes do falecido, o cônjuge tinha direito de usufruto sobre 1/4 dos bens do morto. Se o morto não deixasse descendentes, mas apenas ascendentes, o usufruto se dava com relação à metade dos bens. b) Direito real de habitação sobre o imóvel do casal, caso fosse casado com o falecido pelo regime da comunhão universal de bens.
Percebe-se que a participação do cônjuge em concorrência com os descendentes ou ascendentes do falecido não se dava com relação à propriedade dos bens, ou seja, criavam-se direitos reais sobre coisas alheias: o usufruto e o direito real de habitação. O objetivo da regra então vigente era o de garantir certo amparo ao cônjuge, casado sob o regime da separação de bens e da comunhão parcial, eis que este não sucederia o falecido na qualidade de herdeiro e poderia ficar
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desamparado. Isso porque, em razão do regime escolhido pelos cônjuges, com a morte, os bens iriam para os descendentes ou para os ascendentes, de acordo com a regra sucessória contida no art. 1.603 do CC/1916. Pelo sistema anterior, como visto, a existência de herdeiros de uma classe excluía os da classe subsequente. Dessa forma, com o usufruto vidual, minimizava-se a regra sucessória em questão e garantia-se, pelo menos, que o cônjuge sobrevivente tivesse certos rendimentos, que seriam maiores se concorresse com os ascendentes do falecido (metade dos bens), e menores se concorresse com os descendentes (1/4 dos bens). Em se tratando de comunhão universal, a preocupação era outra. Neste regime, o cônjuge, na qualidade de meeiro, não ficaria desamparado, pois afinal já era proprietário de 50% dos bens do falecido. No entanto, corria o risco de ficar sem um imóvel para morar, se os descendentes do de cujus resolvessem vender o imóvel no qual residia o viúvo ou a viúva. O que se percebia, com a previsão de direito real de habitação, é que o problema era solucionado, pois o cônjuge, já sendo meeiro, teria um imóvel garantido para a sua residência, podendo morar gratuitamente no imóvel enquanto permanecesse viúvo. Concluindo, o cônjuge sobrevivente concorria com os descendentes e com os ascendentes apenas na qualidade de usufrutuário ou de titular do direito de habitação, mas não como coproprietário dos bens deixados. Esse era o sistema anterior, bem mais simples do que o atual. Mesmo assim, as críticas ao dispositivo não eram poucas. Isso porque, realmente, garantir ao viúvo ou à viúva a condição de usufrutuários, apenas e tão somente, gerava
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problemas práticos intermináveis. Os filhos (descendentes) ou os pais (ascendentes) do falecido, na qualidade de proprietários dos bens herdados, criavam inúmeras dificuldades ao viúvo usufrutuário, pois este direito real somente recaía sobre parte dos bens e não sobre a sua integralidade. Afirmava Álvaro Villaça Azevedo, enquanto vigente o Código Civil de 1916, que muito estorvo causava a regra, pois na prática atrapalhava o direito dos herdeiros (Estatuto da família..., 2002, p. 337). Rolf Madaleno listava os problemas do instituto: “começa que bloqueava a livre disposição dos bens herdados, que ficavam presos pelo usufruto que se estendia sobre a generalidade dos bens deixados de herança. Sempre foi muito discutido o caráter alimentar do usufruto vidual, permitindo sua dispensa quando o viúvo recebesse bens considerados suficientes para garantir a sua subsistência pessoal” (Direito de família..., 2004, p. 113). Silvio Rodrigues, antes da mudança legislativa, engrossava o coro de críticos à questão do usufruto vidual, afirmando que “as hipóteses contempladas no direito brasileiro são, de certo modo, tímidas, ao lado das soluções encontradas alhures, em que se vê a cada passo a preocupação do legislador em proteger o cônjuge sobrevivente” (Direito civil..., 1995, v. 7, p. 79). Por fim, inexistindo ascendentes ou descendentes, o cônjuge sobrevivente, independentemente do regime de bens, recebia a totalidade da herança (art. 1.611, caput, do CC/1916). Aliás, era equívoco comum imaginar que o cônjuge não herdaria todos os bens se casado fosse pelo regime da
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separação obrigatória (art. 258, parágrafo único, do CC/ 1916). Não se tratava da verdade, mas sim de um engano. Em todos os regimes de bens, sem qualquer exceção, falecendo o cônjuge sem descendentes ou ascendentes, o viúvo ou a viúva herdavam a totalidade dos bens, regra esta que se manteve no Código Civil de 2002, conforme será explicado a seguir. A regra segundo a qual os colaterais do falecido (irmãos, sobrinhos) só herdam caso não haja cônjuge, não é nova no sistema brasileiro e já existia mesmo antes da vigência do Código Civil de 1916. Isso porque o Decreto 1.839, de 31 de dezembro de 1907, conhecido por Lei Feliciano Penna, em seu art. 1.º, elevou o cônjuge à terceira classe e colocou os colaterais na quarta classe, independentemente do regime de bens do casamento. Para ilustrar, elucidativo e claro o julgado do Tribunal de Minas Gerais sobre o tema: “1 – À inteligência do art. 1.603, do Código Civil/1916, a sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais; V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União, artigo correspondente ao 1.829, do Código Civil/2002, o qual não inovou a ordem de vocação hereditária, mantendo o cônjuge sobrevivente em terceiro lugar, antes dos colaterais. 2 – Desta forma, infere-se, então, que é a cônjuge sobrevivente a contemplada, na ordem de vocação hereditária, conforme disposto nos artigos supratranscritos, sendo irrelevante o regime de bens, vez que a lei não faz qualquer distinção nesse sentido. 3 – Preliminar rejeitada; recurso a que se dá provimento” (TJMG, 6.ª Câmara Cível, Apelação Cível 1.0625.02.020322-4/001-São João DelRey/MG, Rel. Des. Batista Franco, j. 23.08.2005, v.u.).
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Pode-se concluir que, com relação ao cônjuge, a concorrência sucessória durante a vigência do Código Civil de 1916 era a exceção e não a regra. Com essa conclusão, verifica-se o confuso tratamento trazido pela nova codificação privada. 2.4.2 O Código Civil de 2002 Em razão das críticas apontadas quanto aos problemas surgidos em decorrência do usufruto vidual, particularmente diante de sua pequena proteção ao cônjuge sobrevivente e ao enorme embaraço aos herdeiros, o Código Civil de 2002 rompeu com o sistema tradicional, abolindo essa forma de usufruto. A nova ordem de vocação hereditária revoluciona, complica e até choca os aplicadores do Direito. Complica, pois as redações defeituosas dos dispositivos geram polêmicas infindáveis e quiçá instransponíveis, razão pela qual mais de um projeto legislativo pretende a sua alteração. Revoluciona, porque determina a concorrência sucessória do cônjuge com descendentes e ascendentes do falecido. Choca, pois a situação nova altera a norma imbricada na mente e no coração dos brasileiros no seguinte sentido: com a minha morte, meus bens pertencerão a meus filhos. Como se pode perceber, várias são as críticas em relação ao dispositivo que consagra a ordem sucessória, prevendo especificamente a concorrência do cônjuge como herdeiro. Transcreve-se o art. 1.829 do CC em vigor, que será objeto de nosso estudo aprofundado:
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“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais” (destacamos).
Não se pode negar que a ideia de que o cônjuge será chamado à sucessão conjuntamente com os descendentes e ascendentes do falecido tem a sua razão de ser. Preocupou-se o legislador em evitar que, com o falecimento de alguém, todos os seus bens passassem à propriedade dos descendentes e o viúvo ou viúva ficassem à míngua, sem condições de sobreviver. O dispositivo, concebido nos idos das décadas de 1960 a 1970, tomava por base a família da época, ou seja, uma família extremamente sólida, baseada exclusivamente no casamento, que, até então, era indissolúvel. Lembre-se que, quando do Projeto de Código Civil, em 1974, sequer existia a possibilidade de divórcio no ordenamento jurídico nacional. Naquela época não se imaginava que o casamento sofreria um processo de banalização cujo resultado significaria efemeridade. Hoje, estatisticamente, sabe-se que uma boa parte dos casamentos não ultrapassa a barreira dos dez anos. Certamente, ao prever a concorrência, não
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pensou o legislador que um dispositivo concebido na década de 1960 teria aplicação 40 anos depois. O resultado desse anacronismo é de verdadeira perplexidade por parte de todos. Doutrinadores se digladiam tentando dar operabilidade ao sistema, enquanto a população, atônita, sem nada compreender, pergunta aos advogados o que ocorrerá com seu patrimônio após a morte. Sobre tal intrincada questão, interessante transcrever as palavras de crítica de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, constantes em seu trabalho de titularidade na Faculdade de Direito da USP: “Um fato parece-nos absolutamente certo, contudo, nos casos de concorrência sucessória, aos quais nos referimos como de difícil ou complicada a solução do dimensionamento dos quinhões para cada concorrente, em razão do que existe na Legislação Civil de 2002: os eventuais desacertos, ou as eventuais decisões judiciais díspares que acontecem aqui e ali, neste país imenso, não resultam, ao menos desta feita, de insuficiência ou do desmando judiciário, mas tão somente da falha do legislador, por ter produzido, não acidentalmente, um vazio de previsão” (Morrer..., 2011, p. 462).
A problemática do direito das sucessões revela-se tão evidente que dois importantes projetos de lei tramitam no Congresso Nacional objetivando profundas reformas estruturais nessa parte do Código Civil, projetos que serão devidamente estudados no presente livro. Enquanto as reformas não chegam, o Poder Judiciário é chamado a se manifestar sobre a questão e cabe à doutrina o estudo dos problemas e das suas possíveis soluções. Até o momento, não há julgados apontando para
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a solução da maioria dos problemas criados pela nova regra. Além da questão intrincada da concorrência sucessória criada pelo novo sistema privado, outro ponto importante a ser salientado é que o cônjuge foi alçado à condição de herdeiro necessário (art. 1.845 do CC), tendo direito à legítima. Em outras palavras, deixa o cônjuge de ser herdeiro facultativo e passa a ser necessário. Conforme será exposto, a condição de herdeiro necessário gerou ao cônjuge enorme proteção, mas não só. Isso porque, em determinadas situações a concorrência com aos descendentes, aliada ao fato de ser o cônjuge herdeiro necessário, gera uma indesejada sociedade quanto à herança do falecido. Antes do estudo específico da concorrência sucessória entre o cônjuge e os demais herdeiros do falecido, que rompeu com a tradição outrora existente, é preciso separar o estudo da sucessão do cônjuge em etapas, que elaboramos na forma de indagações, que são basicamente cinco. Esse caminho foi adotado visando apenas dar um tom didático à presente obra. Vejamos essas formulações. 1.ª indagação: O cônjuge herda os bens deixados pelo falecido? A resposta está no art. 1.830 do CC em vigor, que será ainda analisado. Sendo o cônjuge herdeiro e a resposta afirmativa, a situação se desdobra nos casos em que o morto deixou descendentes ou ascendentes.
Se o falecido deixou descendentes, surgirão as seguintes perguntas:
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2.ª indagação: Sendo a resposta acima positiva, o cônjuge dividirá os bens herdados com os descendentes do falecido? A resposta está no art. 1.829, I, do CC. 3.ª indagação: Sendo a última resposta positiva, qual o quinhão que receberá o cônjuge do falecido? A resposta está no art. 1.832 do CC.
Se o falecido deixou apenas ascendentes e a resposta à primeira pergunta for positiva, nasce a seguinte pergunta: 4.ª indagação: Qual o quinhão que receberá o cônjuge do falecido concorrendo com os ascendentes? A resposta está no art. 1.837 do CC.
Se o falecido não deixou descendentes nem ascendentes, e a resposta à primeira pergunta for positiva, surge a última questão: 5.ª indagação: Se o falecido não deixou descendentes nem ascendentes, o regime de bens altera a situação sucessória do cônjuge? A resposta está no art. 1.838 do CC.
Nosso estudo seguirá a ordem lógica proposta, e os dispositivos legais indicados serão analisados com profundidade. 2.4.2.1 Requisitos necessários para que o cônjuge seja herdeiro – art. 1.830 do CC A primeira indagação a ser respondida é se o cônjuge herda os bens deixados pelo falecido. A resposta, como antes demonstrado, está no art. 1.830 do CC. Caso a resposta seja positiva, as indagações prosseguem. Caso a
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resposta seja negativa, nenhuma participação terá o cônjuge na sucessão do falecido. Pois bem, enuncia o art. 1.830 da atual codificação que: “Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”. Assim, pelo comando legal destacado, são requisitos para que o cônjuge seja chamado à sucessão: a) O cônjuge não pode estar separado judicialmente nem divorciado. No sistema anterior à Emenda do Divórcio (EC 66/ 2010), a separação judicial colocava termo à sociedade conjugal, enquanto o divórcio gerava o fim do casamento e do vínculo que dele decorre. A partir da aprovação da citada Emenda, que alterou o art. 226, § 6.º, da CF/1988, retirando a menção à prévia separação judicial, parte considerável da doutrina e da jurisprudência passou a entender pelo fim da separação de direito, a englobar a separação judicial e a extrajudicial. Essa é a opinião dos presentes autores, que seguem a linha pregada pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), idealizador da Emenda. Nessa linha, o casamento e a sociedade conjugal somente podem ser dissolvidos pelo divórcio. Ressalte-se que o tema está aprofundado no Volume 5 da presente coleção, que trata do Direito de Família. Pois bem, pela redação literal do dispositivo, em ambos os casos, de separação judicial ou divórcio, o cônjuge
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não mais sucederá. Em suma, acertadamente, o diploma vigente afasta o antigo cônjuge da sucessão. Não seria lógico incluí-lo, uma vez que os cônjuges não são parentes entre si. Em reforço, também seria inaceitável dizer que, rompida a sociedade ou o vínculo matrimonial, existiria relação sucessória. Com o fim do casamento, não há qualquer motivo jurídico para chamar o antigo cônjuge à sucessão. Anote-se que a menção ao separado judicialmente deve ser lida com ressalvas, apenas se aplicando às pessoas que se encontram em tal situação na entrada em vigor da Emenda do Divórcio, o que ocorreu em 13 de julho de 2010. Surge então uma questão de dúvida: caso haja processo de separação judicial ou de divórcio em curso e um dos cônjuges vier a falecer, o sobrevivente será herdeiro? Para José Luiz Gavião de Almeida a resposta é positiva: “pendente a ação dissolutória, a morte de um dos cônjuges torna prejudicada a lide, pondo fim ao processo. Embora a decisão cautelar pudesse, se o feito chegasse ao fim, fazer retroagir os efeitos da sentença de desfazimento da sociedade ou do casamento, isso não é mais possível pelo encerramento antecipado e sem decisão de mérito da lide matrimonial. Sem sentença, há que se entender mantido o casamento e, por isso, o direito sucessório do cônjuge sobrevivente é resguardado” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 215). Em idêntico sentido, Mário Luiz Delgado entende que “nos casos de separação judicial ou divórcio, o direito sucessório do cônjuge só está afastado depois de homologada a separação judicial consensual ou de divórcio direto, que só produz efeitos ex nunc” (Controvérsias..., Questões..., 2005, v. 3, p. 425).
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Superado esse requisito, veremos o próximo, para que o cônjuge seja reconhecido como herdeiro. b) O cônjuge não pode estar separado de fato há mais de dois anos. Originalmente, a norma se justificava, pois a separação de fato por mais de dois anos possibilitava o divórcio direto e, então, como regra, o cônjuge sobrevivente não seria herdeiro. Com a Emenda Constitucional 66/2010 o divórcio poderá ser requerido a qualquer tempo pelos cônjuges, sem a exigência de qualquer prazo. De toda sorte, a norma infraconstitucional não foi alterada, continuando, a priori, em vigor. De qualquer modo, mesmo se estiver separado de fato há mais de dois anos, o cônjuge poderá ainda ser chamado à sucessão, por se tratar de presunção relativa, como lembra Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (Comentários..., 2003, v. 20, p. 221). Contudo, essa presunção poderá ser afastada pelo cônjuge sobrevivente. Esclarecendo, se estiver separado de fato há mais de dois anos, poderá o cônjuge ser herdeiro se provar que a convivência se tornou impossível sem sua culpa. A ressalva do dispositivo merece censura em razão dos inúmeros conflitos que a matéria probatória pode gerar, mormente porque o falecido, por razões evidentes, não poderá se defender no caso concreto. O debate sobre a culpa, para o Direito de Família, já é, por si, matéria que não agrada, pois os conflitos só tendem a se potencializar, tornando mais conturbadas as sensíveis relações humanas envolvendo entes ligados por vínculo familiar. Justamente por isso há uma forte corrente
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doutrinária e jurisprudencial que defende a mitigação da análise da culpa nas ações de Direito de Família. O próprio Superior Tribunal de Justiça vinha mitigando a análise do elemento culpa em alguns casos, sendo interessante aqui transcrever um desses julgados: “Separação judicial. Pedido intentado com base na culpa exclusiva do cônjuge mulher. Decisão que acolhe a pretensão em face da insuportabilidade da vida em comum, independentemente da verificação da culpa em relação a ambos os litigantes. Admissibilidade. – A despeito de o pedido inicial atribuir culpa exclusiva à ré e de inexistir reconvenção, ainda que não comprovada tal culpabilidade, é possível ao Julgador levar em consideração outros fatos que tornem evidente a insustentabilidade da vida em comum e, diante disso, decretar a separação judicial do casal. – Hipótese em que da decretação da separação judicial não surte consequências jurídicas relevantes. Embargos de divergência conhecidos, mas rejeitados” (STJ, 2.ª Seção, EREsp 466.329/RS, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 14.09.2005, DJ 1.º.02.2006, p. 427).
Ademais, com a entrada em vigor da Emenda do Divórcio, é forte a corrente que prega o desaparecimento total da culpa no sistema de dissolução do casamento. Resumindo a forma de pensar dessa corrente, vejamos as palavras do presidente do IBDFAM Rodrigo da Cunha Pereira: “Substituir o discurso da culpa pelo discurso da responsabilidade significa a possibilidade do sujeito depararse consigo mesmo e entender o próprio desamparo, que é natural de cada ser humano. O amor acaba, mas não precisamos materializá-lo em litígio através de processos judiciais.
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A nova redação do art. 226, § 6.º, da Constituição da República, consolidando a evolução doutrinária e jurisprudencial ao eliminar a possibilidade de discussão da culpa pelo fim de um casamento, instala um novo ciclo na história do direito de família no Brasil e propicia a compreensão de que não é necessário fazer do fim do amor uma tragédia, ou pelo menos uma tragédia judicial” (Divórcio..., 2010, p. 52).
Em reforço, no Direito das Sucessões, o problema da análise da culpa se acentua, eis que o litígio ocorrerá entre o cônjuge supérstite e os herdeiros do falecido. Caberá ao cônjuge sobrevivente o ônus de provar que “a convivência se tornou impossível”, gerando a separação de fato não por sua culpa. Na realidade, na maioria das vezes, isso significará dizer que a culpa foi do falecido. E o falecido não está vivo para se defender! Ilustrando, se a mulher saiu de casa, pois era espancada pelo marido e ocorreu tal separação de fato por mais de dois anos, ela terá direito sucessório, desde que prove tal fato. Estaremos diante de hipótese em que fatos serão levantados e provados também contra a honra e moral do falecido, sem que este possa se defender. Em muitas situações, estará presente verdadeira lesão aos direitos da personalidade do morto. Nesse sentido, Zeno Veloso já explicava que, “em muitos casos, não será fácil produzir a prova de quem teve culpa pela extinção da convivência, considerando, especialmente, que um dos parceiros já morreu. Este artigo, com suas regras e exceções, dará margem a inúmeras questões, para discussões intermináveis” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.528). Euclides de Oliveira igualmente tecia críticas contundentes ao dispositivo, pois afirmava
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que não se trata de uma solução completa, “uma vez que faz subsistir o direito sucessório do cônjuge separado de fato há menos de dois anos, ou há mais de 2 anos, sem culpa sua (...). Num primeiro exame, afigura-se excessiva a estipulação do prazo de dois anos de ruptura da vida em comum, bastando que se compare com o prazo de um ano de separação de fato, suficiente para a separação judicial sem culpa (art. 1.572, § 1.º, do Código Civil, como igualmente dispunha o art. 5.º, § 1.º, da Lei 6.515/1977). Não obstante isso, o dispositivo introduz a possibilidade de discussão de culpa no âmbito do processo de inventário, para a apuração das causas da separação de fato, o que se mostra inadmissível, exigindo o incursionamento das partes às vias ordinárias, por se tratar de questão de alta indagação, pendente de dilação probatória” (Direito de herança..., 2005, p. 128). Sustentávamos, em edições anteriores desta obra, que o debate da culpa deveria ocorrer em ação autônoma, não nos autos do inventário, ou seja, haveria uma reserva de quinhão em favor do cônjuge, enquanto se discutia sua qualidade de herdeiro. Se não fosse reconhecida tal qualidade, haveria partilha do quinhão reservado aos demais herdeiros, mas, se reconhecida sua condição, teria direito ao quinhão reservado. Com o desaparecimento da culpa do sistema divorcista, tal entendimento anterior deve ser visto com ressalvas Sobre a questão, de maneira poética, frisa Rolf Madaleno que “corpos e espíritos separados não podem gerar comunicação patrimonial fundada apenas no registro meramente cartorial do casamento. Mola-mestra da comunicação dos bens é a convivência conjugal, sendo que a simples separação de fato desativa o regime
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patrimonial”. E o próprio autor não deixava de criticar a redação do atual art. 1.830 ao afirmar que “importa o fato da separação e não sua causa, pois a autoria culposa não refaz o vínculo e nem restaura a coabitação, mote exclusivo da hígida comunicação de bens. A prova judicial de o cônjuge sobrevivente haver sido inocentemente abandonado pelo autor da herança ou sair pesquisando qualquer causa subjetiva da separação fatual para caçar a culpa de uma decisão unilateral é, mais uma vez, andar na contramão do direito familista brasileiro, que desde a Lei do Divórcio de 1977 já havia vencido estes ranços culturais” (Direito de família..., 2004, p. 119). As palavras do jurista merecem o nosso apoio. Na verdade, com a Emenda Constitucional 66/2010, a culpa deve ser tida como abolida no debate sucessório, pois se é irrelevante o motivo que levou o casamento a acabar, e tal motivo sequer pode ser abordado para impedir o fim do vínculo, razão não há para sua discussão após a morte de um dos cônjuges. Da mesma forma, a norma exigia uma separação de fato por mais de dois anos para que o cônjuge perdesse a qualidade de herdeiro. Buscando-se a teleologia da regra, resta claro que tal prazo mantinha estreita relação com o prazo necessário ao divórcio direto (art. 1.580, § 2.º, do CC). Quem poderia se divorciar em razão da separação de fato, perderia assim, a qualidade de herdeiro. A partir da Emenda do Divórcio, basta que tenha havido a separação de fato para que possa ocorrer o divórcio e, portanto, qualquer debate de prazos ou de culpa perdeu o objeto em matéria sucessória. Em suma, o dispositivo de lei passa a ser lido da seguinte maneira: “Art. 1.830.
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Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados de direito ou de fato”. A menção aos “separados de direito” tem incidência às pessoas que se encontravam em tal situação com a entrada em vigor da EC 66/2010. A título de ilustração, imagine-se o marido que, não mais amando sua esposa, sai do lar conjugal abandonando-a, e passa a residir com outra mulher em união estável. Após 30 anos de separação de fato, o varão falece. Indaga-se: quem terá direito sucessório em relação aos seus bens? Pela interpretação que os presentes autores seguem, em regra, o direito sucessório não será reconhecido à esposa, diante da prolongada separação de fato. Voltando ao ponto central da discussão, fica evidenciado que não fez o legislador uma boa escolha ao adotar a possibilidade de litígio quanto à culpa na separação de fato para fins de o cônjuge ser ou não considerado herdeiro. A entrada em vigor da Emenda do Divórcio tem a função de encerrar a questão. 2.4.2.2 A concorrência sucessória com os descendentes do morto – art. 1.829, I, do CC 2.4.2.2.1 Regime de bens do casamento. Meação x Sucessão Pois bem, caso a primeira resposta antes formulada seja negativa, ou seja, se o cônjuge não estiver legitimado a suceder, os bens do falecido passarão integralmente às demais classes de herdeiros (descendentes, ascendentes,
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colaterais) ou ao Município, e não receberá o cônjuge a herança. Todavia, caso a primeira resposta seja positiva, ou seja, se o cônjuge for considerado herdeiro legitimado a suceder o falecido, cabe a análise de sua concorrência com os descendentes do morto. Isso porque, em determinadas situações, o cônjuge concorrerá com os descendentes (ele e os descendentes dividem a herança); e em outras situações apenas os descendentes receberão a herança (o cônjuge não recebe). O critério utilizado pelo legislador para saber se haverá uma não concorrência é o do regime de bens do casamento. A observação evidente é que, pelo novo diploma civil, haverá concorrência entre cônjuge e descendentes do autor da herança, como regra, o que pode ser retirado do disposto no art. 1.829, I, do CC/2002. Essa é uma mudança estrutural importante em relação à codificação anterior. A premissa que se adota para a interpretação do dispositivo em questão é a intenção do legislador em não deixar o cônjuge sobrevivente em desamparo ao concorrer com os descendentes. Parte-se do princípio pelo qual, em havendo meação, afastada estará a sucessão por concorrência com os descendentes. E por que se adota a premissa em questão? Porque o legislador de 2002 retirou da codificação os dispositivos referentes ao usufruto vidual para alçar o cônjuge à qualidade de herdeiro concorrente, tirando-lhe o direito de usufruto (direito real limitado) para lhe garantir o direito de propriedade, mais amplo, como se sabe. Nesse sentido, excluindo a existência do usufruto em caso de falecimento
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sob a vigência do atual Código Civil, decidiu o Tribunal Paulista: “Usufruto vidual. Falecimento do autor da herança quando já em vigor o Código Civil de 2002. Impossibilidade de aplicação do disposto do art. 1.611, § 1.º, do Código Civil de 1916. Prevalência da nova legislação ante as circunstâncias. Incidência dos arts. 1.787, 1.791, 1.831 e 1.829, I, do Código Civil de 2002. Recurso não provido. Ementa oficial: Inventário. Pedido a envolver direito sobre usufruto vidual. Falecimento do autor da herança quando já em vigor o Código Civil de 2002. Alegado direito à aplicação do disposto no art. 1.611, § 1.º, do CC de 1916. Impossibilidade de retroação. Aplicação da nova legislação, nas circunstâncias. Arts. 1.787, 1.829, I, 1.791 e 1.831. Decisão de indeferimento em primeiro grau. Recurso da viúva não provido” (TJSP, Agravo de Instrumento 316.674-4/9-00-Batatais, 4.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. J. G. Jacobina Rabello, j. 06.11.2003, v.u., JTJ 274/371).
Antes de dar sequência aos estudos, é preciso afastar uma dúvida presente na cabeça de muitas pessoas: as diferenças entre meação e sucessão. Quando são estudados os regimes de bens do casamento (confira o volume de Direito de Família desta coleção), percebe-se que a lei tipifica quatro regimes: a comunhão parcial de bens (regime legal), a comunhão universal de bens, a participação final nos aquestos e a separação de bens. Cada um dos regimes terá suas regras próprias e dependendo do regime adotado, poderão ter os cônjuges duas espécies de bens: os comuns e os particulares.
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Serão bens comuns aqueles de propriedade tanto do marido quanto da esposa (50% cada), dependendo do regime de bens adotado. Alguns exemplos ajudam a esclarecer a questão. Se o casal adotou o regime da comunhão universal, todos os bens que eles comprarem durante o casamento, ou mesmo os bens que os cônjuges ganharem (por doação) ou receberem em herança, serão bens comuns e pertencerão 50% ao marido e 50% à esposa. Essa conclusão pode se retirada da regra básica do regime, constante do art. 1.667 do CC. Se o regime for o da comunhão parcial, todos os bens comprados pelo marido ou pela esposa, ainda que em nome de apenas um dos cônjuges, na constância do casamento pertencerão a ambos, sendo considerados bens comuns, nos termos do art. 1.660, I, do CC. Nesse caso, a divisão também ocorrerá na proporção de 50% para cada um dos cônjuges. Note-se que, com relação aos bens comuns, marido e esposa são coproprietários, tecnicamente chamados de comunheiros. Isso é o que justamente constitui a meação. É importante dizer que a meação não surge com a morte de um dos cônjuges; ela existe durante o período em que durar o casamento. A meação é instituto de Direito de Família, eis que mantém relação com o regime de bens. Não constitui, portanto, instituto de Direito Sucessório. A título prático e utilizando a corriqueira afirmação de Zeno Veloso, está incorreta a afirmação de uma viúva nos seguintes termos: “Eu era casada com o meu marido pelo regime da comunhão universal. Ele morreu e eu vou herdar metade dos bens”. Ora, metade dos bens já era da viúva, em regime de condomínio. Não se herda a meação!!! A
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resposta para esse caso seria: “Minha senhora, a metade dos bens já é sua!”. Em outras palavras, com relação aos bens comuns, com o fim do casamento cada cônjuge terá direito a 50% dos bens, na qualidade de condômino – sua meação. É patrimônio que já lhe pertence. Destacamos esse esclarecimento, para fins didáticos: Se houver separação judicial ou divórcio, cada cônjuge ficará com 50% dos bens comuns, pois são coproprietários desses bens. Caso haja morte de um dos cônjuges, o outro não recebe a meação que já lhe pertence por força do direito de propriedade.
Serão bens particulares aqueles que pertencerem a apenas um dos cônjuges, sem a participação do outro. Pertencem 100% ao marido ou 100% à esposa. Com relação aos bens particulares, não há comunhão, não há copropriedade e, sendo assim, não há meação. Exemplo clássico de bem particular é aquele que a pessoa casada pelo regime da comunhão parcial de bens tinha antes de se casar (art. 1.659, I, do CC). Também, será bem particular a herança recebida por um dos cônjuges casado no regime da comunhão parcial de bens (art. 1.659, I, do CC). No regime da separação convencional de bens, todos os bens são particulares por força do pacto antenupcial. Não há patrimônio comum. Destaca-se:
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Como se percebe, caso haja separação judicial ou divórcio, os bens particulares não serão divididos, pois não há meação, sendo estes de exclusiva propriedade do cônjuge titular (marido ou esposa).
Em conclusão, os conceitos de meação e de herança não se confundem. Os bens que compõem a herança do falecido podem ser comuns ou particulares. Se forem bens comuns, como o falecido não é proprietário de 100%, mas apenas de 50%, tendo o cônjuge sobrevivente a sua meação (50%), os outros 50% do patrimônio farão parte da herança. Se forem bens particulares, como o falecido é proprietário de 100%, não haverá meação, e a totalidade dos bens fará parte da herança. Como síntese do tema, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira concluem que “uma coisa é a meação, que decorre do regime de bens e preexiste ao óbito do cônjuge, devendo ser apurada sempre que dissolvida a sociedade conjugal. Diversamente, herança é a parte do patrimônio que pertencia ao falecido, transmitindo-se a seus sucessores legítimos ou testamentários” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 95). Superada a questão da meação e sua diferença para a herança, temos que responder à seguinte pergunta: em que regimes de bens o cônjuge dividirá os bens herdados com os descendentes do falecido? A resposta está no art. 1.829, I, do Código Civil, que passaremos a abordar de forma detalhada.
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2.4.2.2.2 Regimes em que o cônjuge não concorrerá com os descendentes Pelo que consta do art. 1.829, I, do CC, nos regimes a seguir estudados, o cônjuge não dividirá a herança deixada pelo falecido, que irá integralmente para os descendentes. a) Na comunhão universal de bens. O cônjuge supérstite já terá direito à meação e, por essa razão, o legislador entendeu que não haverá o direito à concorrência, já que o sobrevivente terá bens próprios suficientes para garantir o seu sustento. Note-se que, pela comunhão universal, os bens que pertencem ao marido, em regra, também pertencem à esposa e vice-versa. Assim, estará garantida ao sobrevivente sua meação e seu amparo. Eduardo de Oliveira Leite é claro quanto ao regime da comunhão universal de bens: “não há que se falar em concorrência do cônjuge sobrevivente, uma vez que, já meeiro (em decorrência do regime da comunhão), está economicamente amparado. Nem seria justo que além da meação concorresse com aquela classe de herdeiros. Tal bis in idem fica negado peremptoriamente pela sistemática abraçada pelo legislador nacional” (Comentários..., 2004, p. 218). Um exemplo prático resolve a questão. João, casado com Maria pelo regime da comunhão universal de bens, falece e deixa uma casa e dois filhos. De início, separa-se a meação de Maria (50% da casa), e a herança (50% da casa que pertencia a João) será apenas dos dois filhos do casal.
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Maria é meeira, mas não é herdeira em concorrência com os descendentes. Em resumo, fica assim o diagrama patrimonial, de divisão dos bens: – 50% dos bens – meação de Maria; – 50% dos bens – herança a ser partilhada entre os filhos do casal.
Entretanto, um aspecto interessante de se ressaltar é que mesmo no regime da comunhão universal podem existir bens que não são comuns, mas que pertencem a apenas um dos cônjuges, sendo, portanto, bens particulares. Tais bens estão previstos no art. 1.668 do Código Civil em vigor. Para exemplificar, se o marido receber uma casa em doação gravada com cláusula de incomunicabilidade, apesar de casado pelo regime da comunhão universal de bens, a casa será bem particular e não haverá meação. José Luiz Gavião de Almeida explica que “é equivocada a ideia de que o cônjuge, casado pelo regime da comunhão universal de bens, sempre recebe. Por isso, o dispositivo deve ser entendido no sentido que ficará ele privado da sucessão concorrente se houver patrimônio comum. Não havendo, cabe-lhe quota na sucessão dos bens particulares do falecido” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 224). Não é outra a opinião de Francisco Cahali, para quem “haverá de se questionar se terá o viúvo direito sucessório, quando casado no regime da comunhão universal de bens, ou qualquer outro regime convencional, e o falecido possuir apenas bens particulares (p. ex. gravados por cláusula
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de incomunicabilidade na doação ou por testamento). A coerência recomenda seja deferida a sucessão ao cônjuge sobre os bens particulares, se a estes for restrita a herança do viúvo, a despeito da literalidade do texto ser de diverso conteúdo” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 214). Leciona Miguel Reale que com a mudança do regime legal pelo advento da Lei 6.515/1977, que era o da comunhão universal e passou a ser o da comunhão parcial, “tornou-se evidente que o cônjuge, sobretudo quando desprovido de recursos, corria o risco de nada herdar no tocante aos bens particulares do falecido, cabendo a herança por inteiro aos descendentes ou ascendentes. Daí a ideia de tornar o cônjuge concorrente aos bens particulares do autor da herança” (História do novo Código Civil..., 2005, v. 1, p. 230). Seguindo o espírito da legislação, pelo qual em havendo meação não há concorrência com os descendentes, porque o cônjuge não estará desamparado, parece lógica a opinião dos mestres segundo a qual, se houver bem particular, apesar de o regime ser o da comunhão universal, deverá haver concorrência sucessória. A interpretação literal pela qual não haverá concorrência sobre os bens particulares torna o casamento pelo regime da comunhão universal menos protetivo aos cônjuges que o da comunhão parcial em termos de concorrência com os descendentes, conforme será demonstrado no presente capítulo. b) Na separação obrigatória de bens (art. 1.641 do CC).
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Duas são as razões para que não haja a concorrência sucessória entre o cônjuge e os descendentes na hipótese de separação obrigatória de bens. A primeira razão decorre dos motivos que impõem aos nubentes o regime da separação de bens, que estão previstos no art. 1.641 do CC/2002. Vale dizer que há um erro na remissão do legislador, que menciona, no art. 1.829, I, o art. 1.640, parágrafo único. Nessas hipóteses, a lei impediu a escolha livre de um regime de bens, impondo a separação, razão pela qual ela é chamada de separação obrigatória. José Luiz Gavião de Almeida explica que “a intenção do legislador foi manter a vontade da lei e não partilhar os bens na dissolução matrimonial involuntária. Não se entregam os bens ao casado pelo regime da separação, quando o casamento tem fim pela morte de um dos consortes” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 226). Realmente, não faria sentido permitir a lei a concorrência do cônjuge casado pelo regime da separação obrigatória com os descendentes do falecido. Se a lei impediu a comunhão em vida, razão terá para impedir a concorrência post mortem. A regra tem a sua lógica, portanto. A razão para a existência do regime da separação obrigatória seria a proteção de determinadas pessoas que poderiam ser prejudicadas pelo casamento. Entendeu o legislador originalmente que o maior de 60 anos poderia ser enganado por certa jovem, que estaria interessada mais em seus dotes financeiros do que em suas habilidades e características pessoais (art. 1.641, II, do CC), o que, para nós, diga-se de passagem, é um absurdo. Não se olvide que
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a recente Lei 12.344, de 9 de dezembro de 2010, aumentou tal idade para 70 anos, alterando o dispositivo do CC/ 2002. Na opinião dos presentes autores, o aumento da idade não resolve o problema de inconstitucionalidade da norma, que traz em seu bojo preconceito contra o idoso, em clara lesão ao art. 5.º, caput, da CF/1998. Superada a crítica, desse modo, em caso de dissolução voluntária (divórcio) ou involuntária (morte) do casamento, não haveria razão para permitir que a esposa viesse a receber parte dos bens do casal. Encerrando, o que é vedado por lei não pode ser contornado pela própria lei em manifesta contradição ao espírito da separação de bens (LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários..., 2004, p. 220). A segunda razão para justificar a disposição é a manutenção do disposto na Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. Vale dizer que a súmula é de 3 de abril de 1964. Como já exposto no volume anterior desta coleção, a aplicabilidade da súmula divide os autores da presente obra (TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil..., 2011). Mantida a aplicação da súmula mesmo na vigência do CC/2002, a concorrência seria descabida, pois os cônjuges casados pelo regime da separação legal teriam direito de partilhar os aquestos, ou seja, os bens adquiridos na constância do casamento. Com esta partilha, o cônjuge sobrevivente disporia de bens para sobreviver, conforme afirma Eduardo de Oliveira Leite (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 221).
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A súmula tem por objetivo afastar o odioso enriquecimento sem causa de um dos cônjuges em detrimento do outro, eis que, muitas vezes, apenas o marido trabalha fora da residência e amealha bens apenas em seu nome, mas posteriormente se verifica que a esposa cuidava do lar e da família. Esse é o argumento principal daqueles que defendem a sua vigência, caso de Flávio Tartuce. Note-se que a súmula deixa duas dúvidas, ambas solucionadas pela doutrina e pela jurisprudência. A primeira é saber quais são os bens que se comunicam; se todos os bens ou apenas os adquiridos a título oneroso (aquestos). A resposta é que apenas os aquestos se comunicam, já que a súmula nasce a partir do art. 259 do Código Civil anterior, pelo qual: “Embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento”. Outra dúvida que surge é se há a necessidade ou não do esforço comum. Aqui, não há unanimidade no próprio Superior Tribunal de Justiça. Para José Fernando Simão, a resposta é negativa, no sentido de que pela Súmula 377 do STF, ainda que inexista esforço comum, haveria a comunicação dos bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento, ainda que esteja apenas no nome de um dos cônjuges. Nesse sentido: “Direito civil. Regime legal de separação legal de bens. Aquestos. Súmula 377. Esforço comum. 1. A viúva foi casada com o de cujus por aproximadamente 40 (quarenta) anos, pelo regime da separação de bens, por imposição do art. 258, parágrafo único, I, do Código Civil de 1916. 2. Nestas
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circunstâncias, incide a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, que, por sinal, não cogita de esforço comum, presumido, neste caso, segundo entendimento pretoriano majoritário. 3. Recurso especial não conhecido” (STJ, 4.ª T., REsp 154.896/RJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 20.11.2003, DJ 1.º.12.2003, p. 357).
Todavia, Flávio Tartuce entende ser necessária esta prova, o que também está de acordo com outros julgados daquele mesmo Tribunal: “Casamento. Regime de bens. Separação legal. Aquestos. Comunicação. Comunicam-se os aquestos adquiridos na vigência do regime de separação legal, pelo esforço comum. Recurso não conhecido” (STJ, 4.ª T., REsp 442.165-RS, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 05.09.2002, DJ 28.10.2002, p. 327; veja também: REsp 138.431-RJ, JBCC 189/326; REsp 1.615-GO; REsp 234.482-SP; RDTJRJ 43/71, RDR 16/270). Pois bem, para aqueles que entendem que a Súmula 377 do STF não tem mais aplicação, a constatação que se faz é a seguinte: tanto o regime da separação convencional sem exclusão expressa dos aquestos quanto o da separação obrigatória não eram regimes de separação absoluta de bens, pois em ambos havia, quer por força de lei (art. 259 do CC/1916) quer por força da jurisprudência (Súmula 377 do STF), a comunhão dos bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento. Entretanto, para essa corrente, com a vigência do novo Código Civil, o art. 259 do CC/1916 foi revogado e não encontra correspondente legal. A primeira conclusão a que se chega é que, após a vigência do Código Civil de 2002, a separação convencional de bens é realmente uma separação absoluta, não havendo a comunhão dos aquestos.
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A divergência a respeito da aplicação ou não da Súmula 377 do STF também divide a doutrina. Para Francisco Cahali, em atualização à obra de Silvio Rodrigues, a súmula está superada e não é mais aplicável à separação obrigatória, que passa a ser um regime de efetiva separação de bens. Mesmo porque sua origem remonta ao art. 259, que não encontra correspondente (Direito civil..., 2004, v. 6, p. 148). Em idêntico sentido entendem Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado (Código Civil..., 2005, p. 942), José Fernando Simão e Euclides de Oliveira. O último, em mensagem eletrônica enviada aos autores, afirma que a súmula perdeu o suporte legal com a revogação do art. 259 do CC/1916 e pergunta: “Revogada a lei não se tem como automaticamente prejudicada, vencida, desfalecida, insubsistente a jurisprudência que naquela se baseava?”. Em sentido contrário, pugnando pela vigência e aplicação da Súmula 377 do STF, entre outros, Silvio de Salvo Venosa (Direito civil..., 2003, v. 6, p. 345), Rolf Madaleno (Direito de família..., 2004, p. 115) e Flávio Tartuce. O fundamento para a permanência de aplicação do entendimento sumular, como antes mencionado, é o de que a Súmula evita o enriquecimento sem causa de um dos cônjuges em detrimento do outro, até porque a comunicação exige o esforço comum, conforme orientação parcial do STJ. Seguindo a trilha desse posicionamento, é de se apontar que o enriquecimento sem causa é vedado no art. 884 do Código Civil em vigor. Também como reforço para fortalecer a tese da vigência da Súmula 377 do STF, pode-se remontar à análise histórica do Projeto de Código Civil. Isso porque o art.
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1.641 do antigo Projeto tinha a seguinte redação: “É obrigatório o regime da separação de bens no casamento, sem a comunhão de aquestos: (...)”. A parte final foi suprimida pela Câmara dos Deputados com a seguinte justificativa: “em se tratando de regime da separação de bens, os aquestos provenientes do esforço comum devem se comunicar, em exegese que se afeiçoa à evolução do pensamento jurídico e repudia o enriquecimento sem causa, estando sumulada pelo Supremo Tribunal Federal (Súmula 377)”. Bem, se a súmula estiver mantida, a separação obrigatória não será absoluta. Desse modo, haverá bens comuns (adquiridos a título oneroso na constância do casamento) e bens particulares do falecido. Sobre os bens comuns, o cônjuge do falecido terá direito à meação, mas não terá direito à concorrência com os descendentes por força da expressa disposição do art. 1.829, I, do Código Civil. Quanto aos bens particulares do falecido, não terá direito a nada. Caso não tenha mais aplicação a Súmula 377 do STF, a consequência será oposta e a separação obrigatória poderá ser considerada uma separação absoluta. Assim, o cônjuge não terá direito à meação, nem à concorrência sucessória com os descendentes. Se essa segunda interpretação prevalecer, entende Rolf Madaleno que estarão reduzidas sensivelmente “as históricas conquistas, num inegável retrocesso constitucional” (Direito de família..., 2004, p. 115). Quem terá razão no embate em questão? Trata-se de uma das questões mais controvertidas do Direito de Família e do Direito das Sucessões na atualidade. Para
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sintetizar todo o exposto, como resumo da matéria, vejamos os argumentos de ambos os autores da presente obra. Entende José Fernando Simão não ter mais aplicação a disposição. Isso porque a Súmula 377 do STF não evita o enriquecimento sem causa mas, contrariamente, gera o enriquecimento sem causa. Em razão da súmula, a comunhão dos aquestos é considerada automática, independentemente da prova de esforço comum. Exemplificando, se um senhor de 90 anos se casa com uma moça de 18 anos, pelo regime da separação obrigatória em razão da idade, e depois de casado adquire uma casa e um carro, os bens são considerados aquestos em decorrência da súmula, e a jovem nubente terá direito automaticamente à meação. E por quê? Porque a Súmula 377 não exige prova do esforço comum, segundo entendimento parcial do STJ. Em conclusão, seguindo o entendimento do coautor José Fernando Simão, a Súmula 377 do STF deve ser entendida como não mais aplicável. Caso um dos cônjuges casados pelo regime da separação obrigatória de bens tenha efetivamente contribuído com a aquisição dos bens fazendo a prova do esforço comum, terá direito à participação sobre eles. Afasta-se definitivamente a presunção contida na Súmula 377 e a separação obrigatória passa a ser considerada realmente absoluta. Portanto, o cônjuge não terá direito à meação nem à concorrência sucessória com os descendentes. Em sentido contrário, entende Flávio Tartuce que a súmula continua valendo e que haverá comunhão dos bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento. Isso porque a Súmula 377 do STF exige a prova do esforço comum. Então, sobre os bens comuns, o
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cônjuge do falecido terá direito à meação, mas não terá direito à concorrência com os descendentes por força da expressa disposição do art. 1.829, I, do Código Civil. Na verdade, percebe-se que a divergência entre os autores da presente obra surge quanto à necessidade de prova ou não do esforço comum para a comunicação. Sugere-se ao aplicar do Direito que leia os argumentos expostos e que tome uma posição lúcida e pessoal para a prática sucessionista. Em razão dessas divergências e das inúmeras críticas que o regime da separação obrigatória sofre, o Estatuto das Famílias, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (PL 2.285/2007, apresentado pelo deputado Sérgio Barradas Carneiro), suprime tal regime, retirando-se da lei as situações em que se imporia a separação contra a vontade dos nubentes. c) Na comunhão parcial de bens, em que o falecido não deixa bens particulares. Se, no regime da comunhão parcial de bens, o autor da herança não deixou bens particulares, os bens deixados são todos comuns e quanto a eles o sobrevivente já tem sua meação. Dessa forma, a comunhão parcial sem bens particulares se aproxima da comunhão universal porque os bens são de propriedade do marido (50%) e da mulher (50%). Em havendo meação, não há que se falar em concorrência sucessória com os descendentes, pois o cônjuge sobrevivente não estará desamparado. Superada a análise dessas hipóteses, serão vistos os casos em que o cônjuge concorrerá com os descendentes.
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2.4.2.2.3 Regimes em que o cônjuge concorrerá com os descendentes Nos regimes a seguir estudados, o cônjuge dividirá a herança deixada pelo falecido com os descendentes. Ressalte-se que, no presente tópico, ainda não será discutido qual quinhão será atribuído ao cônjuge, mas apenas as hipóteses de concorrência com os descendentes. a) Na separação convencional de bens. Com a revogação do art. 259 do Código Civil de 1916, conforme explicado anteriormente, fica claro que não haverá comunicação de qualquer tipo de bem, mesmo em caso de silêncio do pacto antenupcial quanto aos aquestos, quando os cônjuges adotarem o regime da separação de bens. Fica definitivamente superada a questão e não haverá a comunicação de nenhum bem adquirido durante o casamento, se os cônjuges optarem pelo regime da separação convencional de bens. Consequentemente, ao final do casamento, o cônjuge sobrevivente pode ficar desamparado. Não havendo meação, haverá sucessão em concorrência com os descendentes. As críticas ao dispositivo não são poucas. Isso porque, mesmo os cônjuges optando pela separação convencional e absoluta de bens, exatamente com o fito de evitar a comunicação de bens presentes, pretéritos e futuros, com o falecimento de um deles, o outro será herdeiro em concorrência com os descendentes. Não se pode esquecer que, ainda que o falecido elabore testamento, não poderá o cônjuge ser privado de
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sua legítima por se tratar de herdeiro necessário. Então, geralmente, perguntam os nossos alunos: não poderia o falecido doar todos os seus bens a seus filhos para evitar a concorrência sucessória? A resposta é: a doação será nula, por força do art. 549 do Código Civil, que veda a doação inoficiosa. A lei criou situação que não pode ser superada por meio de testamento ou de contrato. A concorrência ocorrerá pelo menos em relação à legítima, querendo o falecido ou não. Reconhece Euclides de Oliveira que “boa parte dos problemas se resolveria com a exclusão do cônjuge do rol de herdeiros necessários, abrindo campo ao titular dos bens para dispor sobre sua sucessão mediante partilha em vida (por doação) ou por disposição testamentária, sem as peias do respeito à legítima do cônjuge” (Direito de herança..., 2005, p. 103). Entretanto, não quis o legislador permitir que o falecido deixasse o cônjuge em desamparo. Cercou, limitou e restringiu de maneira eficaz a vontade do morto, que terá que garantir ao cônjuge supérstite pelo menos seu quinhão da legítima. Essa é a orientação da doutrina majoritária e é aquela que deve ser seguida. Em sentido contrário, menciona-se a opinião de Miguel Reale. Em polêmico artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, de 12 de abril de 2003, defendeu o sistematizador do Código Civil de 2002 que o art. 1.829, I, do diploma, ao mencionar o regime da separação obrigatória de bens, disse menos do que deveria, e, portanto, também estaria excluído da concorrência com os descendentes o cônjuge casado pelo regime da separação convencional de bens. Reale conclui que não concorrem com os descendentes os cônjuges casados pelo regime da separação de bens, seja ela obrigatória (art. 1.641 do CC)
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ou convencional (art. 1.687 do CC), em razão de uma interpretação sistemática e não isolada do art. 1.829. Para que não pairem dúvidas, transcrevemos as palavras do próprio Miguel Reale: “Essa minha conclusão ainda mais se impõe ao verificarmos que, se o cônjuge casado no regime de separação de bens fosse considerado herdeiro necessário do autor da herança, estaríamos ferindo substancialmente o disposto no art. 1.687, sem o qual desapareceria todo o regime da separação de bens, em razão do conflito inadmissível entre esse artigo e o art. 1.829, I, fato que jamais poderá ocorrer numa codificação à qual é inerente o princípio da unidade sistemática (...). ‘Em um código os artigos se interpretam uns pelos outros’. Eis a primeira regra de hermenêutica jurídica estabelecida pelo jurisconsulto Jean Portalis, um dos principais elaboradores do Código Napoleão” (História..., 2005, v. 1, p. 229).
Conclui o Professor Reale seu artigo com a seguinte nota: “se no entanto, apesar da argumentação por mim desenvolvida, ainda persistir a dúvida sobre o inc. I do art. 1.829, o remédio será emendá-lo, eliminando o adjetivo ‘obrigatória’”. Em contraponto à opinião de Miguel Reale, Carlos Alberto Dabus Maluf afirma de maneira enfática que “com efeito, se o próprio articulista entende que deverá haver uma alteração legislativa para deixar claro que o cônjuge casado no regime da separação convencional de bens não é herdeiro necessário, nos é lícito concluir que enquanto não ocorrer a alteração por ele proposta o cônjuge que convolou núpcias no regime da separação convencional de bens é sim herdeiro necessário. De mais a mais, a norma em debate é clara e ‘in claris cessat interpretatio’. Assim
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concluímos que o cônjuge sobrevivente casado no regime da separação convencional de bens é herdeiro necessário, não estando abrangido pelas exceções previstas no inciso I do artigo 1.829 do Código Civil de 2002 e, que só perderá ele esta condição quando ocorrer uma alteração legislativa eliminando o adjetivo ‘obrigatória’” (A sucessão do cônjuge... Disponível em:
. Acesso em: 5 jun. 2008). Na linha das últimas palavras transcritas, discorda-se do saudoso Mestre Reale. O regime de bens da separação convencional não fica esvaziado com a regra de concorrência sucessória. Todas as regras produzirão seus efeitos caso ocorra a separação judicial ou o divórcio do casal. Se o combinado pelo pacto antenupcial foi a inexistência de meação, esta não ocorrerá entre os cônjuges. Isso não significa dizer que não haverá futura concorrência sucessória. Repita-se, durante a vida dos cônjuges o regime produzirá todos os efeitos por ele almejados. Contudo, caso o casamento termine pela morte, não poderiam os cônjuges exigir que o regime escolhido produzisse efeitos para além de sua vida. Então, se quiserem evitar o inconveniente da concorrência sucessória, poderão alterar o regime de bens (art. 1.639 do CC) ou mesmo optar pelo fim do casamento. Caso permaneçam casados, a concorrência será inevitável. Nos dizeres de Mário Luiz Delgado, “afirmação que deve ser rechaçada é a de que, ao atribuir direito sucessório ao cônjuge casado sob o regime da separação convencional de bens, teria o legislador invadido a autonomia privada e abalado os pilares do regime da separação por
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permitir a comunicação post mortem do patrimônio. (...) Não se trata de comunicação de patrimônio, não se podendo confundir regime de bens com direito sucessório. Com a morte extinguiu-se o regime e o que está em discussão é o direito do cônjuge a uma pequena parte da herança...” (Controvérsias..., Questões..., 2005, v. 3, p. 433). De qualquer forma, como bem ponderado por Dabus Maluf, para prevalecer o entendimento do Professor Reale, será necessária alteração legislativa, que, assim, só atingirá as sucessões abertas após sua efetivação. Apesar das críticas formuladas, seguindo a lição de Miguel Reale, compila-se trecho da decisão de primeiro grau, proferida nos autos do Inventário 000.03.096723-6, que tramita pela 7.ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central da Capital de São Paulo: “Trata-se de inventário onde os herdeiros testamentários da falecida opõem-se às primeiras declarações prestadas pelo inventariante, sustentando que o viúvo não é herdeiro necessário, em razão do casamento celebrado pelo regime da separação total de bens. Além disso, o viúvo, em testamento, não teria sido contemplado pela falecida. Nesse caso, aquele casado em regime de separação total de bens não pode ser entendido como herdeiro necessário, sob pena de se desconsiderar a natureza do regime escolhido” (Juíza Adaísa Bernardi Isaac Halpern, 19 de julho de 2004). A decisão transcrita foi reformada e, em absoluta conformidade com a posição e ensinamentos da doutrina, o TJSP proferiu acórdão cuja ementa se transcreve: “Inventário. Cônjuge sobrevivente. Ausência de descendentes e ascendentes. Condição de herdeiro necessário único e não concorrente (art. 1.829, III, do CC), ao qual deve ser
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assegurada a legítima no espólio de sua falecida esposa, independentemente do regime de bens adotado no casamento, no caso o da separação convencional. Incidência dos arts. 1.838 e 1.845 do CC. Impugnação dos herdeiros testamentários que até redundou na exclusão do cônjuge do cargo de inventariante, afastada. Decisão reformada. Agravo provido” (TJSP, 1.ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento 364.580-4/6, Rel. Des. José Roberto Bedran, j. 22.02.2005, v.u.).
Como não poderia ser diferente, vemos com bons olhos e concordamos com a reforma daquela decisão. O Tribunal Paulista, em situação semelhante, demonstrou entender que, realmente, haverá a concorrência com os descendentes na hipótese de casamento pelo regime da separação convencional de bens: “Inventário. Viúva casada com o autor da herança no regime de separação convencional de bens. Direito de sucessão legítima em concorrência com a filha do falecido. Inteligência do art. 1.829, I, do Código Civil. Vedação que somente ocorre, entre outras causas, se o regime de casamento for o de separação obrigatória de bens. Recurso improvido” (TJSP, 3.ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento 313.414-4/1-Barretos, Rel. Des. Flávio Pinheiro, j. 04.11.2003, v.u., RJ 314/102). O Tribunal de Justiça do Pará, do mesmo modo, seguiu tal orientação ao garantir ao cônjuge casado pelo regime da separação convencional a participação na herança: “Agravo de instrumento. Direito de família. Sucessão. Cônjuge sobrevivente contemplado como herdeiro necessário. Inteligência do art. 1.829 do Código Civil. I –
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Admite-se o cônjuge casado pelo regime voluntário de separação de bens como herdeiro necessário concorrendo com os descendentes em iguais partes no inventário. O verdadeiro sentido do inciso I do artigo 1.829 do novo Código Civil é segundo o qual a sucessão legítima cabe, em primeira linha, aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime de comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória de bens (artigo 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares. II – Agravo de instrumento conhecido e improvido” (TJPA, Processo 200630046066, Agravo de Instrumento, 1.ª Câmara Cível Isolada, Comarca: Belém, Publicação: 13.04.2007, Rel. Leonardo de Noronha Tavares).
Apenas para demonstrar como a questão não é pacífica, e, para tanto, há um longo caminho a percorrer, o Tribunal de Justiça de São Paulo já proferiu decisão em sentido contrário: “Sucessão. Tendo o autor apelante casado com a ‘de cujus’ pelo regime da separação convencional de bens, incide na hipótese o inciso I do artigo 1.829 do Código Civil/2002, equiparada a separação convencional à obrigatória, a impedir que o cônjuge sobrevivente ostente a qualidade de herdeiro. Artigos 1.829, I, 1.640, 1.641, I e II e III, todos do Código Civil de 2002. Ação improcedente. Recurso improvido” (TJSP, Apelação Cível 535.332.4/6-00, Des. Beretta da Silveira, j. 27.11.2007).
Esse também foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema. No Recurso Especial 992.749/ MS, decidiu a Terceira Turma do STJ o seguinte: “O regime de separação obrigatória de bens previsto no art.
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1.829, inc. I, do CC/2002, é gênero que congrega duas espécies: (i) separação legal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime da separação de bens à sua observância. Não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte” (Informativo n. 418 do STJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 1.º.12.2009). Mostrar a fragilidade dos argumentos adotados se faz necessário. Basicamente dois são os argumentos equivocados que serviram de fundamento à decisão. O primeiro deles é o seguinte: “O regime de separação obrigatória de bens previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/ 02, é gênero que congrega duas espécies: (i) separação legal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes”. O grande problema do argumento é que ele não encontra guarida na doutrina pátria. Trata-se, na verdade, de tese que contraria todas as lições, dos civilistas mais antigos aos mais novos. A doutrina brasileira repudia tal entendimento, sendo que, partindo das lições de Beviláqua e chegando a Maria Helena Diniz, o desacerto da informação contida no acórdão revela-se evidente. A separação obrigatória não é gênero e não congrega duas espécies. Trata-se de equívoco conceitual. A separação de bens é que constitui gênero que congrega duas espécies: (a) separação convencional (que decorre de pacto antenupcial) e (b) separação obrigatória ou legal (regra restritiva prevista no art. 1.641). Assim, o primeiro
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fundamento não é suficiente para afastar a concorrência sucessória das pessoas casadas pelo regime da separação obrigatória. O segundo fundamento é igualmente frágil (“Não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte”). Ora, afirmar que o regime de bens obriga as partes depois de sua morte revela teratologia. Obrigação, como se sabe, é o vínculo jurídico entre o credor e o devedor. Na realidade, o que afirma o julgado, utilizando-se inadequadamente a palavra obriga, é que o regime de bens produz efeitos depois da morte dos cônjuges e, portanto, após findo o casamento. Isso porque a morte põe fim ao casamento, permitindo, inclusive, que o supérstite se case novamente. A morte põe fim à sociedade conjugal por força expressa do art. 1.571, I, do Código Civil e, sendo assim, o regime de bens também se extingue com a morte. Na verdade, pretende a decisão em comento utilizarse da ideia de ultratividade, ou seja, a eficácia de um instituto que não mais existe. Repita-se que se a morte extingue o casamento, extingue a sociedade conjugal e também o regime de bens, não se admitindo que o instituto permaneça produzindo efeitos depois de extinto. Haveria algo como uma eficácia póstuma do regime de bens que um dia existiu. Curiosa a interpretação jurisprudencial, porque, novamente, não encontra guarida na doutrina pátria. Na verdade, o julgado assim concluiu para tentar resolver caso específico, de suposto “golpe do baú”.
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Resolveu-se o problema na espécie, mas criaram-se muitos outros, pela geração de grande incerteza e dúvida para a doutrina e para a jurisprudência nacionais. Como bem aponta Zeno Veloso, ao comentar tal julgado, “Apesar desse julgado da Terceira Turma do STJ – que deverá ficar sozinho –, vão prevalecer e continuar sendo aplicadas as disposições do Código Civil: o cônjuge casado sob o regime da separação obrigatória de bens não concorre com os descendentes do de cujus; o cônjuge casado sob o regime da separação convencional de bens concorre, sim, com os descendentes do falecido. É a doutrina adotada neste livro” (VELOSO, Zeno. Direito hereditário..., 2010, p. 72). Merece relevo o fato de que os ensinamentos acima foram adotados pela 2.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em decisão do final do ano de 2011, que afasta a concorrência sucessória do cônjuge no regime da separação convencional de bens. O acórdão foi assim ementado: “Agravo de Instrumento. Inventário. Decisão que declarou que o cônjuge supérstite não é herdeiro nem meeiro. Viúva que foi casada com o autor da herança pelo regime da separação convencional. Decisão que contraria a lei, em especial os artigos 1.845 e 1.829 do Código Civil. Decisão reformada. Agravo provido” (TJSP, Agravo de Instrumento 0007645-96.2011, Agravantes: Silvia Maria Aranha Matarazzo (inventariante) e outro, Agravada: Flavia Matarazzo, Comarca: São Paulo, Rel. Des. José Carlos Ferreira Alves, j. 04.10.2011).
Como se pode perceber, já há resistências em relação ao julgado pronunciado pelo Superior Tribunal de Justiça, aqui devidamente criticado.
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b) Na comunhão parcial em que o autor da herança deixou bens particulares. Esta hipótese é uma das mais tormentosas para a doutrina. Isso porque surge a seguinte dúvida: se o autor da herança deixou bens particulares, concorreria o cônjuge com os descendentes na totalidade da herança inclusive com relação aos bens em que há meação ou apenas quanto aos bens particulares? Antes do estudo das correntes doutrinárias, para que se perceba a dificuldade do tema, compilamos a observação de Fernando Gaburri de Souza Lima: “independentemente de se considerar uma hipótese mais ou menos justa que a outra, a maior dificuldade reside justamente na perfeita possibilidade de se adotar tanto um quanto o outro posicionamento, uma vez que ambos são juridicamente sustentáveis” (Questões..., Direito civil..., 2006, p. 886). Pois bem, vejamos as duas correntes que surgem. 1.ª corrente – Seguindo o espírito do legislador, pelo qual, em havendo meação, não há sucessão em concorrência com os descendentes, conclui-se que o cônjuge só concorreria quanto aos bens particulares e não quanto àqueles em que já teria o direito à meação. Nesse sentido é a lição de José Luiz Gavião de Almeida: “A regra é que o cônjuge sobrevivo recolha na existência de bens particulares. Mas, por óbvio, tem sucessão concorrente apenas com relação a esses bens particulares, não aos comuns, pois desses já retirou sua meação” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 227). O argumento que nos parece cabal e que confirma o acerto desta primeira posição vem de Euclides de Oliveira:
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“O assunto é manifestamente polêmico, porém comporta distinta solução, em harmonia com o sistema legislativo, que, ao excepcionar da concorrência na herança o cônjuge casado no regime da comunhão universal de bens, deixou clara a opção de que, havendo direito de meação, não há direito de herança em concorrência com os descendentes” (Direito de herança..., 2005, p. 108). Essa parece ser a mais correta interpretação do dispositivo na opinião compartilhada dos autores da presente obra. Se no regime da comunhão universal de bens não há concorrência em razão da meação existente, com relação à comunhão parcial de bens a concorrência só pode se verificar quanto aos bens particulares, mas jamais com relação aos bens comuns. São adeptos desta corrente Flávio Monteiro de Barros, Eduardo de Oliveira Leite, Christiano Cassettari, Francisco José Cahali, Gustavo Rene Nicolau, Jorge Shiguemitsu Fujita, Mário Luiz Delgado, Euclides de Oliveira, Sebastião Amorim, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno e Zeno Veloso. Para tanto, confira-se a tabela organizada por Christiano Cassettari e publicada na obra de Francisco José Cahali (Família e sucessões..., 2004, v. 2, p. 329). Na III Jornada de Direito Civil realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal nos dias 1.º a 3 de dezembro de 2004, acolheu-se a tese supra, pelo teor do Enunciado n. 270 CJF/STJ, a saber: “O art. 1.829, inciso I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido
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possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência restringe-se a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes”. Um exemplo ajudará a visualizar a situação prática. João possui um apartamento adquirido no ano de 1990 e se casa com Maria no ano de 1995 pelo regime da comunhão parcial de bens. O casal tem dois filhos. Já casados, João adquire uma casa de praia em 2004 e falece em 2005. Como fazemos o inventário de João de acordo com a primeira corrente, sem levar em conta, ainda, as frações de divisão? Vejamos no diagrama a seguir: Dos bens particulares – não há meação e 100% do bem será partilhado: – Um apartamento: partilhado entre Maria e os dois filhos de João. Dos bens comuns – 50% pertencem a Maria – meação: – Uma casa de praia – 50% (herança) – será partilhada apenas entre os filhos de João.
A solução que se propõe não é inovadora e não destoa do sistema. O Código Civil de 1916 previa, para os cônjuges casados pelo regime da comunhão parcial de bens, o direito ao usufruto vidual, ou seja, o direito ao usufruto de 1/4 dos bens do falecido, que eram transmitidos aos descendentes (geralmente filhos) quando do falecimento. Note-se que o Código Civil de 1916 não condicionava tal direito e, pelo texto da lei, o usufruto existiria mesmo nas
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hipóteses em que o cônjuge viúvo fosse proprietário de bens em razão de sua meação. Entretanto, a jurisprudência interpretou de maneira restritiva o dispositivo em questão. Entendem os Tribunais que, se o cônjuge sobrevivente tiver bens de sua meação que lhe garantam a subsistência, não teria direito ao usufruto vidual. Sugere-se, para maiores detalhes sobre o tema, a leitura do acórdão cuja ementa transcreve-se: “Inventário. Usufruto vidual. Regime de comunhão parcial. Viúva meeira nos aquestos. Reconhecida a comunhão dos aquestos, não tem a viúva meeira, ainda que casada sob regime diverso do da comunhão universal de bens, direito ao usufruto vidual previsto no art. 1.611, par. 1.º, do Código Civil. Precedente do STF” (RSTJ 64/210, RT 710/ 178, Rel. Min. Barros Monteiro). Portanto, tendo a jurisprudência limitado o usufruto vidual, abre-se um precedente para que, agora, sejam limitados os direitos sucessórios do cônjuge casado pela comunhão parcial em concorrência com os descendentes do falecido. Nesse sentido, recentemente decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo: “Quanto aos embargos de Ivana, o Acórdão declarou que ela participa da sucessão dos bens particulares (competindo definir quais sejam) por ser casada no regime de comunhão parcial. No entanto, gravou, com equívoco, que deveria ela recolher uma quota proporcional, o que não se faz de acordo com as regras da sucessão. A viúva não é meeira dos bens e deve participar de todos os bens particulares” (TJSP, Embargos de declaração 635.958-4/3-01, 4.ª Câmara de Direito Privado, Comarca de Araçatuba, Rel. Des. Enio Zuliani, j. 10.12.2009).
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2.ª corrente – A posição majoritária, entretanto, não é pacífica e há argumentos favoráveis à ideia de que o cônjuge participaria da sucessão no tocante à totalidade da herança, surgindo aqui a segunda corrente. Maria Helena Diniz, adepta dessa segunda corrente, afirma que da leitura do art. 1.829, I, do Código Civil “infere-se que se erigiu o regime matrimonial de bens do casamento como mero requisito ao direito de suceder do cônjuge, em concorrência com os descendentes do autor da herança. (...) Meação não é herança, pois os bens comuns são divididos, visto que a porção ideal deles já lhe pertencia. Havendo patrimônio particular, o cônjuge sobrevivo receberá a sua meação, se casado sob o regime da comunhão parcial de bens, e uma parcela sobre todo o acervo hereditário” (grifamos) (Curso..., 2005, v. 6, p. 125). São adeptos desta corrente, atualmente minoritária, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Inácio de Carvalho Neto e Luiz Paulo Vieira de Carvalho, cujos entendimentos também constam da tabela publicada na obra de Francisco José Cahali, antes referenciada. O mesmo exemplo que foi exposto acima ajudará a visualizar a situação prática de acordo com a segunda corrente. João possui um apartamento adquirido no ano de 1990 e se casa com Maria no ano de 1995 pelo regime da comunhão parcial de bens. O casal tem dois filhos. Já casados, João adquire uma casa de praia em 2004 e falece em 2005. Como deve ser feito o inventário de João de acordo com a segunda corrente? Vejamos a divisão: Dos bens particulares – não há meação e 100% do bem será partilhado:
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– Um apartamento: partilhado entre Maria e os dois filhos de João. Dos bens comuns – 50% pertencem à Maria – meação: – Uma casa de praia – 50% (herança) – será partilhada entre Maria e os dois filhos de João.
Como se nota Maria concorre com os filhos na totalidade de herança, seja o bem comum ou particular. Imagine-se um exemplo didático, extremo e jocoso, mas que facilmente demonstra a injustiça da segunda corrente. João, solteiro, proprietário de um Fusca 74, casa-se com Maria pelo regime da comunhão parcial de bens em 1978. Após o casamento, compra vários bens: fazendas, iates, carros importados, apartamentos no Brasil e no exterior e conserva o Fusca consigo, como memória de seus tempos de pobreza. Tem dois filhos. Falece em 2004. Maria já é meeira das fazendas, iates, carros importados, apartamentos no Brasil e no exterior, não tendo direito à meação apenas sobre o Fusca 74, que é bem particular. Seria justo imaginar que além da meação (50% de todos os bens), teriam os filhos de João que dividir com Maria a herança total (50% dos bens e 100% do Fusca) apenas pelo fato de existir um bem particular? E se João tivesse vendido o Fusca um dia antes de falecer? Como com a venda do bem particular todos os bens restantes são comuns, Maria não teria direito a concorrer com os filhos, pois ficaria apenas com sua meação garantida pelo regime de bens.
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Será que a existência de um bem particular (um Fusca 74 cujo valor é ínfimo) pode significar a completa alteração das regras sucessórias? A resposta é negativa, no nosso entender. A existência de bem particular só significa que o cônjuge concorrerá com os descendentes com relação a este bem particular e não quanto à totalidade da herança, o que ampara a primeira corrente. 3.ª corrente – Pode ser apontada uma terceira corrente a respeito do tema, defendida exclusivamente por Maria Berenice Dias em seu artigo denominado Ponto-evírgula, que se encontra publicado no sítio de um dos autores da presente obra (Disponível em: www.flaviotartuce.adv.br. Acesso em: 28 ago. 2006). Por essa terceira corrente, a concorrência sucessória entre cônjuge e descendentes só ocorre com relação aos bens comuns e não com relação aos particulares. Transcreve-se trecho do artigo que revela a arguta opinião da desembargadora gaúcha e sua linha de raciocínio: “Ao depois, é usado o sinal de pontuação ponto-e-vírgula, que tem por finalidade estabelecer um seccionamento entre duas ideias. Assim, imperioso reconhecer que a parte final da norma regula o direito concorrente quando o regime é o da comunhão parcial. Aqui abre a lei duas hipóteses, a depender da existência ou não de bens particulares. De forma clara diz o texto: no regime da comunhão parcial há a concorrência ‘se’ o autor da herança não houver deixado bens particulares. A contrario sensu, se deixou bens exclusivos, o cônjuge não concorrerá com os descendentes.
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Outra não pode ser a leitura deste artigo. Não há como ‘transportar’ para o momento em que é tratado o regime da comunhão parcial a expressão ‘salvo se’, utilizada exclusivamente para excluir a concorrência nas duas primeiras modalidades, ou seja, no regime da comunhão e no da separação legal. Não existe dupla negativa no dispositivo legal, pois na parte final – após o ponto-e-vírgula – passa a lei a tratar de hipótese diversa, ou seja, o regime da comunhão parcial, oportunidade em que é feita a distinção quanto à existência ou não de bens particulares. Essa diferenciação nem cabe nos regimes antecedentes, daí a divisão levada a efeito por meio do ponto-e-vírgula. Imperiosa a correta compreensão da norma legal, até porque, ao colocar ‘o ponto na vírgula’, o legislador visou, exatamente, afastar a perplexidade que tem assaltado todos os intérpretes do novo Código. Quando o regime é o da comunhão parcial e não existem bens particulares, significa que todo o acervo hereditário foi adquirido depois do casamento, ocorrendo a presunção da mútua colaboração em sua formação, o que torna razoável que o cônjuge, além da meação, concorra com os filhos na herança. No entanto, quando há bens amealhados antes do casamento, nada justifica que participe o cônjuge desse acervo. Tal não se coaduna com a natureza do regime da comunhão parcial, sendo descabido que venha o cônjuge sobrevivente a herdar parte do patrimônio quando da morte do par”.
Em resumo, segundo Maria Berenice Dias não haveria razão para a concorrência sucessória quanto aos bens particulares, pois não foram eles frutos do esforço comum do casal. Já com relação aos bens comuns, justo seria que o cônjuge além de meeiro fosse herdeiro em concorrência com os descendentes, pois os bens foram adquiridos na
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constância do casamento como resultado da colaboração recíproca. Mantendo a sequência do estudo, será trabalhado mais uma vez o exemplo prático da sucessão de João à luz da terceira teoria. João possui um apartamento adquirido no ano de 1990 e se casa com Maria no ano de 1995 pelo regime da comunhão parcial de bens. O casal tem dois filhos. Já casados, João adquire uma casa de praia em 2004 e falece em 2005. Como fazemos o inventário de João de acordo com a terceira corrente? Vejamos o quadro de divisão patrimonial: Dos bens particulares – não há meação e 100% do bem será partilhado: – Um apartamento: partilhado apenas entre os dois filhos de João. Dos bens comuns – 50% pertencem à Maria – meação: – Uma casa de praia – 50% (herança) – será partilhada entre Maria e os dois filhos de João.
Não há como concordar com essa última corrente, que salientamos ser isolada. Apesar de a respeitarmos, esta vertente não pode ser adotada por contrariar o espírito do que consta do Código Civil de 2002. De toda sorte, destaque-se que há decisão do STJ que chega a mencionar uma quarta corrente. Na verdade, trata-se de acórdão que aplica o entendimento de Maria Berenice Dias para a união estável:
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“(...). A regra do art. 1.829, I, do CC/2002, que seria aplicável caso a companheira tivesse se casado com o ‘de cujus’ pelo regime da comunhão parcial de bens, tem interpretação muito controvertida na doutrina, identificando-se três correntes de pensamento sobre a matéria: (i) a primeira, baseada no Enunciado n. 270 das Jornadas de Direito Civil, estabelece que a sucessão do cônjuge, pela comunhão parcial, somente se dá na hipótese em que o falecido tenha deixado bens particulares, incidindo apenas sobre esses bens; (ii) a segunda, capitaneada por parte da doutrina, defende que a sucessão na comunhão parcial também ocorre apenas se o ‘de cujus’ tiver deixado bens particulares, mas incide sobre todo o patrimônio, sem distinção; (iii) a terceira defende que a sucessão do cônjuge, na comunhão parcial, só ocorre se o falecido não tiver deixado bens particulares. (...). É possível encontrar, paralelamente às três linhas de interpretação do art. 1.829, I, do CC/2002 defendidas pela doutrina, uma quarta linha de interpretação, que toma em consideração a vontade manifestada no momento da celebração do casamento, como norte para a interpretação das regras sucessórias. Impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/ 2002, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia privada e da consequente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa-fé; a eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica. Até o advento da Lei 6.515/1977 (Lei do Divórcio), vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança, por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal; a partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o
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regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/ 2002. Preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados apenas entre os descendentes. Recurso especial improvido” (STJ, REsp 1.117.563/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 17.12.2009, DJe 06.04.2010).
Superado esse ponto de controvérsia, voltamos ao estudo dos regimes em que o cônjuge concorre com os descendentes. c) Na participação final nos aquestos. Não pretendemos na presente obra abordar minuciosamente o regime em questão, mesmo porque o estudo foi realizado em nosso volume de Direito de Família (Volume 5 desta coleção). Ademais, o regime não é bom, tem sérios problemas e não tem sido adotado usualmente, diante da sua conhecida complexidade, razão até da sua denominação como um regime contábil e complexo. Entendemos que não é nem será utilizado em razão da regulamentação obscura e tratamento pouco claro que lhe foi dispensado pelo Código Civil em vigor, entre os arts. 1.672 e 1.698. Em síntese, no regime de participação final nos aquestos, cada cônjuge possui patrimônio próprio, cabendo-lhe, à época da dissolução da sociedade conjugal, direito à metade dos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na constância do casamento (art. 1.672 do CC). Desse modo, não há dúvidas de que durante o casamento haverá
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uma separação de bens. No caso de dissolução, não há mais propriamente uma meação, como consagra o Código Civil, mas uma participação de acordo com a contribuição de cada um para a aquisição do patrimônio, a título oneroso. Conforme o art. 1.673 do CC, integram o patrimônio próprio os bens que cada cônjuge possuía ao casar e os por ele adquiridos, a qualquer título, na constância do casamento. A administração desses bens é exclusiva de cada cônjuge, que os poderá livremente alienar, se forem móveis, na constância da união. Como se pode perceber, aqui reside a diferença em relação à comunhão parcial, pois no último caso os bens adquiridos durante a união, em regra, presumem-se de ambos. Mas, ocorrendo a dissolução da sociedade conjugal na participação final nos aquestos, deverá ser apurado o montante dos aquestos (parte comunicável), excluindo-se da soma dos patrimônios próprios alguns bens, previstos no art. 1.674 do CC. Note-se que há duas massas patrimoniais: os aquestos, sobre os quais haverá a participação quando do fim do casamento, e os demais bens, sobre os quais não há meação, sendo bens particulares. Em razão da existência de participação em certos bens (aquestos) e inexistência quanto a outros (bens particulares), três situações distintas podem ser imaginadas. A primeira situação é aquela em que todos os bens deixados pelo cônjuge falecido são bens particulares. Nessa hipótese o cônjuge supérstite não terá direito à participação sobre eles, mas apenas direito sucessório em concorrência com os descendentes.
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A segunda está presente quando todos os bens deixados pelo falecido são aquestos. Nesse caso o cônjuge supérstite terá direito à participação sobre todos eles em decorrência do regime, mas não terá direito sucessório em concorrência com os descendentes. Havendo participação em vida, não haverá concorrência quando da morte. Por fim, pode-se falar da situação em que o falecido deixa aquestos em que há a participação do cônjuge viúvo e bens particulares em que não há a participação. Nesse caso, quanto aos aquestos, em que há participação em razão do regime, não terá o viúvo direito sucessório em concorrência com os descendentes; quanto aos demais bens, como não tem direito à participação, terá a concorrência sucessória. Euclides de Oliveira resume a problemática dizendo que “pela similitude com a comunhão parcial, quanto aos efeitos finais da apuração da meação sobre os bens havidos durante a convivência (por isso comuns sujeitos à meação), subentende-se que a hipótese comporta a mesma solução ditada pela lei para a concorrência sucessória do cônjuge casado no regime comunitário, ou seja, concorrência incidente apenas sobre os bens particulares do autor da herança” (Direito de herança..., 2005, p. 110). Concorda-se integralmente com o jurista paulista. Também, em idêntico sentido, o Desembargador José Luiz Gavião de Almeida afirma que a “similitude desse regime poderia ensejar soluções semelhantes às mencionadas” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 227). Em se tratando de um regime híbrido (separação durante o casamento e comunhão parcial após a sua dissolução), entende Mário Luiz Delgado que ao regime da
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participação final nos aquestos se aplicam “as mesmas regras da comunhão parcial no tocante à concorrência do cônjuge com os descendentes” (Controvérsias..., Questões..., 2005, v. 3, p. 436). Foi também nesse sentido o alcance do Enunciado n. 270 da III Jornada de Direito Civil, outrora transcrito, mas que merece mais uma vez uma leitura: “O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando, casados no regime da participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipótese em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes”. Superada a análise detalhada de todos os casos de concorrência da sucessão do cônjuge, aprofundaremos ainda mais o estudo, para verificar em quais hipóteses o quinhão do cônjuge concorrerá com os descendentes, em todas as situações descritas. 2.4.2.2.4 O quinhão do cônjuge que concorre com os descendentes Superadas as duas primeiras perguntas que foram formuladas no início do estudo da sucessão do cônjuge (O cônjuge herda os bens deixados pelo falecido? O cônjuge dividirá os bens herdados com os descendentes do falecido?), e sendo ambas respondidas afirmativamente, para a conclusão do estudo da concorrência entre cônjuge e descendentes, precisamos responder à derradeira questão: Qual o quinhão da herança que receberá o cônjuge do
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falecido em concorrendo com os descendentes? A resposta pode ser retirada do art. 1.832 do Código Civil em vigor. Como regra, o dispositivo citado determina que o cônjuge herdará quinhão igual ao dos descendentes que sucederem por cabeça. Entretanto, o artigo faz uma ressalva: a quota do cônjuge não poderá ser inferior a 1/4 se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer. Aqui, é importante diferenciar a situação dos filhos comuns em relação aos filhos exclusivos. Há duas situações diversas em princípio: casos em que o cônjuge é ascendente dos herdeiros com quem concorrer – filiação comum – e casos em que o cônjuge viúvo não é ascendente dos herdeiros com quem concorrer – filiação exclusiva. Nesse primeiro momento, saliente-se que não vamos analisar a chamada filiação híbrida, em que o falecido deixa descendentes comuns e exclusivos. Exemplifica-se com as seguintes hipóteses em que o falecido deixa: a) Cônjuge e um filho (comum ou não): 1/2 para o filho e 1/2 para o cônjuge. b) Cônjuge e dois filhos (comuns ou não): 1/3 para o cônjuge e 1/3 para cada filho. c) Cônjuge e três filhos (comuns ou não): 1/4 para o cônjuge e 1/4 para cada filho. d) Cônjuge e quatro filhos comuns: 1/4 para o cônjuge e 3/4 a serem divididos entre os quatro filhos. Há uma reserva de quinhão. e) Cônjuge e quatro filhos só do falecido (exclusivos): 1/5 para o cônjuge e 1/5 para cada filho.
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Percebe-se que, caso o cônjuge sobrevivente seja ascendente dos herdeiros com quem concorrer, jamais receberá quota inferior a 1/4, ou seja, 25% da herança. O que se nota, portanto, é que se criou um verdadeiro piso sucessório. A diferença entre a filiação comum e a filiação exclusiva só surge a partir do momento em que deixa o falecido quatro filhos (descendentes) ou mais. Vejamos uma tabela ilustrativa da situação com os cálculos de quinhões em porcentagens: Cônjuge concorrendo apenas com filhos comuns (colunas 1 e 2) e apenas com filhos exclusivos (colunas 3 e 4).
Coluna 1
Coluna 2
Filho(s) comum(ns)
Divisão da herança
1 filho
50% da herança para o cônjuge e 50% para o filho
2 filhos
33,33% da herança para o cônjuge e 33,33%
Coluna 3
Coluna 4
Filho(s) exclusivo(s)
Divisão da herança
1 filho
50% da herança para o cônjuge e 50% para o filho
2 filhos
33,33% da herança para o cônjuge e 33,33%
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para cada filho
para cada filho
3 filhos
25% da herança para o cônjuge e 25% para cada filho
3 filhos
25% da herança para o cônjuge e 25% para cada filho
4 filhos
25% da herança para cônjuge e 18,75% para cada filho
4 filhos
20% da herança para cônjuge e 20% para cada filho
5 filhos
25% da herança para cônjuge e 15% para cada filho
5 filhos
16,66% da herança para cônjuge e 16,66% para cada filho
6 filhos
25% da herança
6 filhos
14,285% da
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para cônjuge e 12,5% para cada filho
herança para cônjuge e 14,285% para cada filho
Observa-se, em conclusão, que, quando concorre com filhos exclusivos do autor da herança, terá o cônjuge menor participação nos bens deixados, se comparado à hipótese em que concorre com os descendentes comuns com a garantia do piso de 25%. Apesar de nossos exemplos envolverem a existência de filhos (descendentes de 1.º grau), a norma se aplica também à hipótese de concorrência com netos, bisnetos ou quaisquer outros descendentes de maior grau, caso em que o cônjuge receberá quinhão igual ao que o descendente receber sucedendo por direito próprio. Neste ponto da obra, começaremos a criar situações reais e da vida da pessoa comum. Para tanto, juntaremos as regras estudadas neste capítulo, em especial as referentes ao item 2.2 do presente capítulo. Aqui, o falecido sempre casado, deixa descendentes, e o cônjuge será sempre herdeiro em concorrência com eles. Vejamos tais casos práticos: 1.º caso – Concorrência entre o cônjuge e os descendentes do falecido, sendo que os descendentes de grau mais próximo excluem os de grau mais remoto, salvo o direito de representação (art. 1.833 do CC).
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Se A falece, casado, e deixa dois filhos (comuns ou exclusivos – descendentes de 1.º grau) e três netos (descendentes de 2.º grau), todos os bens serão partilhados entre os filhos e o cônjuge, pois os descendentes de grau mais próximo excluem os de grau mais remoto na seguinte proporção: – 1/3 para o cônjuge; – 1/3 para o filho B; – 1/3 para o filho C.
Vejamos o diagrama:
Entretanto, prevê a lei direito de representação ilimitado na linha descendente. Exemplo disso se verifica quando A, casado, falece e deixa como herdeiros seu filho B (descendente de 1.º grau) e seus netos D e E (descendentes de 2.º grau), filhos de seu filho C (premorto). A expressão premorto significa que C morreu antes de seu pai A. Haverá representação em razão da diversidade de graus.
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Nesse caso, a herança será do cônjuge de A, de seu filho B (que herda por direito próprio e partilha por cabeça) e dos netos D e E (que herdam por representação, já que são da estirpe de C). O cônjuge terá direito a quinhão igual ao que recebem os descendentes por cabeça. Assim, a herança será dividida na seguinte proporção: – 1/3 para o cônjuge de A; – 1/3 para B (direito próprio); – 1/6 para o neto D (representação); – 1/6 para o neto E (representação).
Vejamos o diagrama:
Pode ser apontado mais um exemplo de representação na linha descendente. A, casado, falece e deixa os seguintes descendentes vivos: filhos B e D, neto E e bisnetos G e H. O filho C, pai dos netos E e F, é premorto. O
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neto F, pai dos bisnetos G e H, também é premorto. A herança ficará dividida da seguinte maneira: – 25% para o cônjuge (direito próprio); – 25% para o filho B (direito próprio); – 25% para o filho D (direito próprio); – 12,5% para o neto E (representação); – 6,25% para cada um dos bisnetos G e H (representação).
2.º caso – Se todos os descendentes forem de mesmo grau, todos receberão por direito próprio, e a partilha será por cabeça (art. 1.835 do CC). Em conclusão, se todos os filhos forem premortos e, no momento da abertura da sucessão, o falecido deixou o cônjuge e apenas netos – todos descendentes de 2.º grau –, os netos receberão por direito próprio e não haverá representação. Vejamos:
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3.º caso – Se todos os representantes de uma geração desaparecerem, os da linha subsequente serão chamados a herdar por direito próprio ou por representação? A resposta é que herdarão por direito próprio. Se A, casado, falece, deixando seus netos D e F vivos, bem como seus bisnetos G e H. Ao mesmo tempo seu filho B, pai de D, é premorto; seu filho C, pai de E e F, também é premorto; e E, neto do falecido e pai dos bisnetos G e H, também é premorto. A herança então será assim partilhada: – 25% para o cônjuge; – 25% para o neto D (direito próprio); – 25% para o neto F (direito próprio); – 12,5% para cada um dos bisnetos G e H (representação a E).
Esquematizando:
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Analisadas essas situações, chegou o momento de abordar a denominada filiação híbrida, hipótese em que o cônjuge concorre com filhos comuns e exclusivos do autor da herança ao mesmo tempo. Trata-se de uma das maiores polêmicas envolvendo o Direito Sucessório atual. A grande dúvida que surge é: nessa sucessão híbrida, haveria ou não a reserva de 1/4 da herança para o cônjuge? Algumas correntes doutrinárias se formaram para responder a essa pergunta. Vejamos essas correntes, e quais são as respostas dadas ao questionamento acima formulado. 1.ª corrente – SIM, no caso de filiação híbrida, há a reserva de 1/4 da herança. Afirma Sílvio de Salvo Venosa que “se, porém, concorrer com descendentes comuns e descendentes apenas do de cujus, há que se entender que se aplica a garantia mínima da quarta parte” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 109). Essa também é a opinião de Francisco José Cahali, que bem ilustra a questão “sendo a prole só do falecido a participação é uma; mas se o
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sobrevivente for ascendente dos herdeiros com quem concorrer, está abrangida a situação híbrida, devendo, pois, ser reservada sua parcela mínima de 1/4 na herança, pois não fala a lei em ascendente de todos os herdeiros com quem disputar, ou único ascendente dos descendentes” (grifos no original) (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 216). É essa mesma a conclusão de José Fernando Simão sobre o tema. Se a lei não exigiu que concorresse o cônjuge com a totalidade dos descendentes para ter o direito à reserva de 1/4 da herança, basta que um descendente seja comum para que a reserva exista, ainda que o falecido tenha deixado outros descendentes exclusivos. Ademais, essa posição privilegia o cônjuge com relação aos descendentes e atende ao objetivo do sistema de concorrência criado pelo Código Civil de 2002. Toda a mudança legislativa teve por escopo a proteção do cônjuge, ainda que em detrimento da participação dos descendentes na sucessão. A reserva da quarta parte vem de encontro com o objetivo do legislador: o amparo ao cônjuge sobrevivente. Vale dizer que, para fins da prática sucessória, esta posição se verifica como minoritária na doutrina pátria. 2.ª corrente – NÃO, no caso de filiação híbrida, não há a reserva de 1/4. Nesse diapasão, explicam Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira que “pode-se interpretar a disposição do art. 1.832 em caráter restritivo, ou seja, de que o cônjuge somente terá assegurada a quarta parte da herança se for ascendente de todos os herdeiros com quem concorrer. Assim, havendo outros herdeiros em concurso, ao cônjuge caberá quota igual a cada um dos
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descendentes, sem a reserva daquela fração mínima. Tal solução, além de manifesta simplificação da partilha, resguarda o direito de igualdade dos filhos na percepção de seus quinhões hereditários” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 100). Maria Helena Diniz entende que “surge aqui uma lacuna normativa a ser preenchida pelo critério apontado no art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil, que é o princípio da igualdade jurídica de todos os filhos (Constituição Federal, art. 227, § 6.º), consagrado pelo nosso direito positivo. Se assim é, só importa, para fins sucessórios, a relação de filiação com o de cujus (autor da herança) e não a existente com o cônjuge supérstite. Por isso, para que não haja cotas diferentes entre os filhos do falecido, diante da omissão legal, parece-nos que este deveria receber quinhão igual ao dos filhos exclusivos, que herdam por cabeça, não se aplicando a quota hereditária mínima de 1/4. (...) Assim sendo, ante a lacuna normativa, aplicar-se-ia o princípio geral de direito constitucional da igualdade jurídica dos filhos (LICC, art. 4.º) e o critério do justum (LICC, art. 5.º)” (Curso..., 2005, v. 6, p. 129). Essa é a interpretação dominante à qual está filiado Flávio Tartuce, seguindo as palavras da professora da PUC/SP. São adeptos desta corrente Christiano Cassettari, Guilherme Calmon da Gama, Gustavo Rene Nicolau, Jorge Shiguemitsu Fujita, Inacio de Carvalho Neto, Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno e Zeno Veloso, conforme a referenciada tabela de Francisco Cahali (Família e sucessões..., 2004, v. II, p. 329). Adotando a premissa, na V Jornada de Direito Civil aprovouse o seguinte enunciado: “Na concorrência entre o cônjuge e os herdeiros do de cujus, não será reservada a quarta
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parte da herança para o sobrevivente no caso de filiação híbrida” (Enunciado n. 527). Para Mário Luiz Delgado, a intenção do legislador “foi beneficiar o cônjuge, mas sem prejudicar tanto os filhos. Se todos os filhos são comuns, a reserva da quarta parte, ainda que implique em eventual diminuição do quinhão dos filhos, não lhes trará maiores prejuízos, uma vez que o montante a maior destinado ao cônjuge futuramente reverterá aos filhos. Em princípio, os filhos comuns terminarão herdando parte dos bens que ficam reservados ao cônjuge sobrevivente” (Controvérsias..., Questões..., 2005, v. 3, p. 438). 3.ª corrente – A terceira corrente é aquela que traz as teorias de sub-herança, buscando soluções matemáticas para o problema da concorrência do cônjuge na sucessão híbrida. Vejamos essas teorias. – Teoria de Eduardo de Oliveira Leite É a teoria pela qual se adota uma “composição pela solução mista, dividindo-se proporcionalmente a herança, segundo a quantidade de descendentes, com posterior abatimento da reserva na quota dos herdeiros comuns” (A nova ordem..., Questões..., 2003, v. 1, p. 459). Imagine-se que o falecido tenha deixado 5 filhos, sendo 3 comuns e 2 exclusivos, além de seu cônjuge. Consideraremos que a herança é de R$ 100.000,00. Vamos seguir os passos indicados pelo professor Eduardo de Oliveira Leite: 1.º passo – Divisão da herança entre todos os filhos – R$ 20.000,00 para cada filho.
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2.º passo – Divisão da herança em blocos – Bloco A – Filhos comuns – R$ 60.000,00 (porque são 3). Bloco B – filhos exclusivos – R$ 40.000,00 (porque são 2). 3.º passo – Sobre o valor do bloco A (sub-herança dos filhos comuns), haveria a reserva de quinhão de 1/4 para o cônjuge que corresponde a R$ 15.000,00 (correspondente a 1/4 de R$ 60.000,00) e os outros R$ 45.000,00 seriam partilhados entre os 3 filhos comuns. Divisão final da herança Cônjuge – 1/4 reservado da parte dos filhos comuns
R$ 15.000,00
R$ 15.000,00
Quota de cada filho comum
R$ 15.000,00
(x 3) R$ 45.000,00
Quota de cada filho exclusivo
R$ 20.000,00
(x 2) R$ 40.000,00
Total
R$ 100.000,00
Finaliza Eduardo de Oliveira Leite seus estudos afirmando que “a hipótese sob comento atende tanto o preceito constitucional (art. 227, § 6.º), quanto a legislação infraconstitucional (art. 1.832 do CC). (...) Como se percebe, a composição matemática atende a todos os preceitos legais envolvidos (arts. 1.829 e 1.832), garantindo a igualdade de quinhões atribuíveis a cada um dos descendentes conforme determina o texto legal” (A nova ordem..., Questões..., 2003, v. 1, p. 460).
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Discorda-se do jurista, pois ao final os filhos exclusivos receberão quinhão maior que os filhos comuns. Ainda que, no futuro, com a morte do cônjuge recebam estes herdeiros exclusivos os bens, trata-se de situação incerta, uma vez que o cônjuge poderá ter vendido todos os bens ou mesmo os perdido para seus credores. Entendemos que, se seguida a proposta, alguns filhos receberão mais e outros menos e não estará observada a igualdade constitucional. – Teoria apresentada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka A querida mestra aventa uma outra solução para o problema, mas deixa claro que não é a solução ideal e que, portanto, não conta com o seu apoio (Concorrência do companheiro e do cônjuge, na sucessão dos descendentes. Disponível em: < www.professorsimao.com.br> e <www.flaviotartuce.adv.br>. Acesso em: 28 ago. 2006). Imagine-se que o falecido, casado, deixa 2 filhos comuns e 3 exclusivos, sendo sua herança de R$ 100.000,00. Vamos seguir os passos indicados pela professora Giselda Hironaka: 1.º) Divisão da herança entre todos os filhos – R$ 20.000,00 para cada filho. 2.º) Criação de duas sub-heranças – Filhos comuns: R$ 40.000,00; e não comuns: R$ 60.000,00. 3.º) Concorrência no quinhão dos filhos exclusivos: R$ 60.000,00 divididos em 4 partes (três quotas para os filhos e uma para o cônjuge) – Cônjuge ficaria com R$ 15.000,00.
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4.º) Concorrência no quinhão dos filhos comuns: R$ 40.000,00 divididos em 3 partes (duas quotas para os filhos e uma para o cônjuge) – Cônjuge ficaria com R$ 13.333,33. 5.º) Somam-se os quinhões do cônjuge nas sub-heranças – Total: R$ 15.000,00 + R$ 13.333,33 = R$ 28.333,33. 6.º) Pergunta: o valor de R$ 28.333,33 é superior a 25% da herança? SIM, pois 25% da herança significa a importância de R$ 25.000,00. Então, esse valor corresponde à parte do cônjuge na sucessão. Divisão final da herança
Cônjuge
R$ 28.333,33
R$ 28.333,33
Quota de cada filho comum
R$ 13.333,33
(x 2) R$ 26.666,67
Quota de cada filho exclusivo
R$ 15.000,00
(x 3) R$ 45.000,00
Total
R$ 100.000,00
A teoria analisada, porém não defendida pela professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, comporta o seguinte desdobramento: imagine-se que se trata de 4 filhos comuns e 4 exclusivos do autor da herança, cuja herança deixada é R$ 100.000,00. Seguindo os passos indicados pela Professora Titular da USP: 1.º) Divisão da herança entre todos os filhos – R$ 12.500,00 para cada filho (100 dividido por 8).
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2.º) Criação de duas sub-heranças – Filhos comuns: R$ 50.000,00; filhos não comuns: R$ 50.000,00. 3.º) Concorrência no quinhão dos filhos exclusivos: R$ 50.000,00 divididos em 5 partes (quatro quotas para os filhos e uma para o cônjuge) – Cônjuge ficaria com R$ 10.000,00. 4.º) Concorrência no quinhão dos filhos exclusivos: R$ 50.000,00 divididos em 5 partes (quatro quotas para os filhos e uma para o cônjuge) – Cônjuge ficaria com R$ 10.000,00. 5.º) Somam-se os quinhões do cônjuge nas sub-heranças – Total: R$ 10.000,00 + R$ 10.000,00 = R$ 20.000,00. 6.º) Pergunta: o valor de R$ 20.000,00 é superior ou igual a 25% da herança? NÃO, pois 25% da herança significa R$ 25.000,00. Então, o valor da diferença (R$ 25.000,00 – R$ 20.000,00) de R$ 5.000,00 deverá ser descontado da quota dos filhos comuns. Desse modo, a quota dos filhos comuns deixa de ser R$ 40.000,00 e passa a ser R$ 35.000,00. Divisão final da herança Cônjuge (reserva de 25%)
R$ 25.000,00
R$ 25.000,00
Quota de cada filho comum
R$ 8.750,00
(x 4) R$ 35.000,00
Quota de cada filho exclusivo
R$ 10.000,00
(x 4) R$ 40.000,00
Total
R$ 100.000,00
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– Teoria de Flávio Augusto Monteiro de Barros O professor paulista também apresenta proposta diferente daquelas até agora estudadas (Manual..., 2004, v. 4, p. 208). Vejamos os passos que são por ele apontados: 1.ª) Divide-se a herança pela soma dos herdeiros, isto é, o total de filhos e cônjuge. 2.ª) Subtrai-se da herança a parte dos filhos incomuns (exclusivos). 3.ª) Apura-se 1/4 sobre a herança, sem a parte dos filhos incomuns, encontrando, desse modo, o quinhão do cônjuge. 4.ª) Subtrai-se da herança a parte do cônjuge, dividindo o resultado pelo número de filhos.
Vamos ao exemplo apontado por Flávio Monteiro de Barros. O falecido deixa o cônjuge, 4 filhos comuns e 1 filho exclusivo e a herança de R$ 1.200,00. 1.ª) Divide-se a herança de R$ 1.200,00 por 6, totalizando a importância de R$ 200,00. 2.ª) Retira-se da herança a parte do filho exclusivo, restando a importância de R$ 1.000,00. 3.ª) Apura-se a parte do cônjuge que corresponde a 1/4 da herança, sem a parte do filho exclusivo, vale dizer 1/4 sobre R$ 1.000,00, totalizando a importância de R$ 250,00. Este é o valor que o cônjuge herdará. 4.ª) Subtrai-se da herança a parte do cônjuge, dividindo o resultado entre os filhos, ou seja, R$ 1.200,00 – R$ 250,00 = R$ 950,00. Dividindo-se essa importância pelo número de filhos apura-se a quantia de R$ 190,00, que é o quinhão que corresponde a cada filho.
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Analisadas essas teorias, é de se apontar que a professora Giselda Hironaka critica veementemente todas as soluções apontadas pela doutrina para resolver a questão da filiação híbrida (Concorrência do companheiro e do cônjuge, na sucessão dos descendentes. Disponível em: <www.professorsimao.com.br> e <www.flaviotartuce.adv.br>. Acesso em: 28 ago.2006). Vejamos as suas críticas de forma pontual: 1.ª crítica – Reserva do piso de 1/4 em hipótese de filiação híbrida “Solução desse jaez representaria, no entanto, um certo prejuízo aos descendentes exclusivos do falecido, os quais, por não serem descendentes do cônjuge com quem concorrem, restariam afastados de parte mais ou menos substanciosa do patrimônio exclusivo de seu ascendente morto. Contudo, essa solução poderá ser objeto de crítica por parte de certo segmento hermeneuta, sob a alegação de que, aplicando-a, não se satisfará o espírito do legislador do novo Código Civil, uma vez que este pretendeu privilegiar o cônjuge supérstite – dirão estes críticos – nestas condições de reserva de parte ideal, tão somente quando tal cônjuge fosse também ascendente dos herdeiros de primeira classe com quem concorresse. Ora, se sujeita a essa crítica, tal proposta não deveria prevalecer como possível, não obstante garanta quinhões iguais aos filhos de ambos os grupos (comuns e exclusivos) e ao cônjuge sobrevivente”.
2.ª crítica – Sem a reserva de 1/4 na hipótese de filiação híbrida “Da mesma forma com a qual se cuidou de refutar a proposta anterior, também aqui se pode chegar à mesma
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conclusão de inobservância do espírito do legislador do Código Civil. Mas, aqui, tal inobservância se verifica na exata medida em que o tratamento de todos os descendentes do de cujus como seus descendentes exclusivos acabaria por afastar a reserva da quarta parte do monte partível garantida ao cônjuge sobrevivo, como forma de lhe garantir um maior amparo em sua viuvez. Tratá-los, aos descendentes todos, como se fossem descendentes exclusivos do falecido representa solução que fecha os olhos a uma verdade natural (descendentes por laços biológicos) ou civil (descendentes em razão de uma adoção verificada), que é a única verdade que o legislador tomou como autorizadora de uma maior proteção dispensada ao cônjuge que sobreviver.”
3.ª crítica – Divisão da herança em blocos (subheranças) “Ora, é muito fácil observar que, senão em circunstância real excepcionalíssima, essa composição matemática não conseguiria atender aos preceitos legais envolvidos (arts. 1.829, I, e 1.832), e não garantiria a igualdade de quinhões atribuíveis a cada um dos descendentes da mesma classe, conforme determina o art. 1.834, de caráter constitucional. Quer dizer, nem se conseguiria obter – por esta proposta imaginada conciliatória – iguais quinhões para os herdeiros da mesma classe (comuns ou exclusivos), nem seria razoável que a quarta parte garantida ao cônjuge fosse complementada por subtração levada a cabo tão somente sobre a parte do acervo destinada aos descendentes comuns”.
Conclui a professora seu raciocínio com a seguinte ponderação: “não há posição firme e definitiva. A jurisprudência variará perigosamente e a solução é a mudança da lei ou a consolidação de súmula”.
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Em razão desta conclusão, o PL 4.944/2005, de relatoria do Deputado Antonio Carlos Biscaia e que refletia os estudos do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), pretendia promover a seguinte alteração à redação do art. 1.832: “Em concorrência com os descendentes, caberá ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivente parte igual àquela que couber a cada um dos herdeiros que sucederem por cabeça”. Todavia, o PL 4.944/2005 foi arquivado nos termos do art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, pelo término do ano legislativo. No momento, aguarda-se o projeto do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) denominado Estatuto das Heranças, para futuros comentários na presente obra. O que se percebe, na prática, é que as críticas da professora Giselda Hironaka procedem e se justificam. Para aqueles que necessitam de soluções imediatas, recomenda-se que seja adotado o entendimento exposto como majoritário, isto é, de que não deve ocorrer a reserva de 1/4 ao cônjuge na concorrência híbrida com os descendentes do falecido. Superado o estudo da concorrência do cônjuge com os descendentes, passaremos à análise da concorrência com os ascendentes do falecido. 2.4.2.3 A concorrência sucessória do cônjuge com os ascendentes do morto – art. 1.829, II, do CC Depois do complexo estudo da concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do falecido, necessária se faz a análise da situação em que o falecido deixa cônjuge e ascendentes.
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Considerando que o cônjuge preenche os requisitos previstos no art. 1.830 do CC e, portanto, é herdeiro do falecido; e considerando ainda que o falecido não deixou descendentes, os ascendentes são chamados a suceder em concorrência com o cônjuge. Vejamos os desdobramentos dessa concorrência específica. 2.4.2.3.1 Quando haverá concorrência entre cônjuge e ascendentes? A matéria aqui se revela bem mais simples de explicar. Isso porque o cônjuge concorre com os ascendentes do falecido qualquer que seja o regime de bens do casamento. Em suma, a resposta à pergunta é: sempre. A herança será dividida entre o cônjuge e os ascendentes se o regime do casamento for o da separação obrigatória de bens, separação convencional de bens, comunhão parcial com ou sem bens particulares, comunhão universal de bens ou participação final nos aquestos. Não há, aqui, que se fazer distinção, como ocorre na concorrência do cônjuge com os descendentes. Nesse sentido, já se decidiu: “Na inexistência de herdeiros descendentes, de rigor a participação dos ascendentes na sucessão, em concorrência com o cônjuge supérstite independentemente do regime de bens adotado entre este e o de cujus. Recurso provido” (TJRS, 8.ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento 70010678290-Porto Alegre-RS, Rel. Des. Catarina Rita Krieger Martins, j. 12.05.2005, v.u.). Mais uma vez, frise-se que a divisão da herança, como instituto de direito sucessório, não se confunde com a meação patrimonial, que existirá ou não, conforme o
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regime de bens, que é estudado em Direito de Família. Alguns exemplos podem ajudar na compreensão da questão. – João, casado pelo regime da comunhão universal de bens, falece e deixa como herdeiros apenas Maria, sua esposa, e seus pais. Como fica a sucessão? Vejamos: Dos bens comuns – 50% do patrimônio constitui a meação de Maria em razão do regime de casamento da comunhão universal. Ressaltamos novamente que meação não é herança! – 50% dos bens que pertenciam a João constituem a herança e serão partilhados entre seu pai, sua mãe e Maria.
Apesar de ter a meação garantida pelo regime de bens adotado, o cônjuge terá também a concorrência sucessória sobre a herança. – João possui um apartamento adquirido no ano de 1990 e se casa com Maria no ano de 1995 pelo regime da comunhão parcial de bens. Já casados, João adquire uma casa de praia em 2004 e falece em 2005. João falece e deixa seus pais vivos (sogros de Maria). Como fazer o inventário de João, sem levar em conta as frações dos quinhões? Dos bens particulares – não há meação e 100% do bem serão partilhados: – Um apartamento: partilhado entre Maria e os pais de João.
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Dos bens comuns – 50% pertence a Maria a título de meação: – Uma casa de praia – 50% (herança) – será partilhada entre Maria e os pais de João.
– João, casado pelo regime da separação convencional e absoluta de bens, falece e deixa como herdeiros apenas Maria, sua esposa, e seus pais. Como fazer o inventário de João sem levar em conta as frações dos quinhões? Dos bens particulares – 100% do patrimônio compõe a herança, pois não há meação em razão do regime de casamento. – 100% do patrimônio que pertencia a João constitui a herança que será partilhada entre seu pai, sua mãe e Maria.
Verificamos, então, que a concorrência entre o cônjuge e os ascendentes ocorrerá em todo e qualquer regime de bens adotado pelos cônjuges. Cabe, então, responder qual será o quinhão do cônjuge na hipótese de concorrência com os ascendentes. 2.4.2.3.2 Qual o quinhão que receberá o cônjuge do falecido se concorrer com os ascendentes? A resposta está no art. 1.837 do Código Civil, cuja redação é seguinte: “Concorrendo com ascendentes em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente,
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ou se maior aquele grau”. Vejamos algumas decorrências práticas do dispositivo destacado. a) Se o cônjuge concorrer com o pai e com a mãe do falecido, a herança deve ser dividida em três partes iguais, cabendo 1/3 ao pai, 1/3 à mãe e 1/3 ao cônjuge supérstite. Analisa-se, então, um caso concreto em que as regras referentes à sucessão na linha ascendente são aplicadas conjuntamente com as regras relacionadas à concorrência do cônjuge. Conforme exposto outrora, na classe dos ascendentes, o de grau mais próximo exclui o mais remoto, sem distinção de linhas (art. 1.836, § 1.º, do CC). Além disso, não há direito de representação na linha ascendente. Se A, casado, falece e deixa sua mãe e seu pai vivos (ambos ascendentes de 1.º grau), seu pai receberá 1/3 da herança, sua mãe 1/3 e o cônjuge 1/3, mesmo que seus avós maternos e paternos (ascendentes em 2.º grau) sejam vivos.
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b) Se o cônjuge concorrer apenas com o pai, apenas com a mãe ou com outro ascendente qualquer, terá direito à metade da herança. Um primeiro caso prático a ser pensado é o seguinte: se A, casado, falece deixando vivo seu pai (ascendente em 1.º grau) e sendo premorta a sua mãe, mesmo que sejam vivos seus avós maternos (ascendentes em 2.º grau), seu pai recolherá 50% da herança e o cônjuge 50%, pois o grau mais próximo (pai – 1.º grau) exclui o mais remoto (avós – 2.º grau).
Em havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna (art. 1.836, § 2.º, do CC). A regra cuida da chamada sucessão por linhas (in lineas). A sucessão ocorre por direito próprio, mas a partilha
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da herança se dá por linhas: metade para a linha materna e metade para a linha paterna. Dois exemplos são relevantes. Se o falecido, casado, deixar apenas seus avós paternos e avós maternos vivos (todos ascendentes em 2.º grau) e tendo em vista que seu pai e sua mãe são premortos, o cônjuge receberá 50% da herança, e cada um dos avós receberá 12,5% da herança, eis que, descontado o quinhão do cônjuge, esta se dividiu em linhas: 25% da herança para a linha paterna e 25% para a linha materna.
Se o falecido, casado, deixar como herdeiros apenas sua avó paterna (ascendente em 2.º grau) e seus dois avós maternos (também ascendentes em 2.º grau) e tendo em vista que seu pai e sua mãe são premortos, o cônjuge receberá 50% da herança, cada um dos avós maternos receberá 12,5% da herança, e a avó paterna receberá 25%, eis que, descontado o quinhão do cônjuge, a herança se
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dividiu em linhas: 25% da herança para a linha paterna e 25% para a linha materna.
Analisados esses casos de divisão dos quinhões, vejamos o tratamento do cônjuge como herdeiro integral, sem concorrer com ascendentes ou descendentes, ainda aprofundando o estudo do polêmico art. 1.829 do atual CC. 2.4.2.4 O cônjuge como herdeiro da totalidade dos bens Para encerrarmos as questões que nos propusemos a responder no início deste capítulo, cabe a derradeira indagação: Se o falecido não deixou descendentes nem ascendentes, o regime de bens altera a situação sucessória do cônjuge?
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Não havendo descendentes ou ascendentes, o cônjuge recolherá a totalidade da herança, independentemente do regime de bens do casamento. A resposta à indagação é, portanto: não. Isso porque o cônjuge sobrevivente é o terceiro na ordem de vocação hereditária (art. 1.829, III, do CC), e a sua posição independe do regime de bens do casamento. Os colaterais não concorrem com o cônjuge em hipótese alguma. Só serão chamados a suceder os colaterais caso o cônjuge não preencha os requisitos contidos no art. 1.830 do CC, já estudado. Deve ser repetida uma observação já feita anteriormente, no sentido de tratar-se de um equívoco comum imaginar que o cônjuge não herda todos os bens se casado for pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641 do CC). Não se trata de verdade, mas sim de um grande engano. Isso porque a meação não se confunde com a herança. Em outras palavras, em todos os regimes de bens, sem qualquer exceção, falecendo o cônjuge sem descendentes ou ascendentes, o viúvo ou a viúva herdam a totalidade dos bens. Nesse sentido, do Tribunal de São Paulo: “Vocação hereditária. Cônjuge sobrevivente à falta de descendentes ou ascendentes. Irrelevância do regime de bens do casamento. Inteligência dos arts. 1.603, III, do Código Civil de 1916, 1.829, III, e 1.830, do Código Civil de 2002. Recurso não provido. Ementa oficial: Sucessão. Cônjuge sobrevivente (arts. 1.603, III, do CC de 1916 e 1.829, III, do CC de 2002). No caso de inexistir descendência ou ascendência para suceder o finado, a herança, em sua totalidade, destina-se à viúva, independente de o casamento ter sido celebrado sob o regime de separação obrigatória de bens, por figurar o cônjuge supérstite, com exclusividade, na
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terceira linha da ordem sucessória, desde que não separado (jurídica ou de fato) há dois anos (art. 1.830, do novo CC); o propósito dos colaterais, de inversão dessa regra, não encontra amparo legítimo, na lei ou na regra moral das obrigações. Não provimento” (TJSP, 3.ª Câmara de Direito Privado, AC 139.185-4/7-SP, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 03.06.2003, v.u., JTJ 269/226).
É interessante uma nota histórica sobre o tema. No sistema das Ordenações Filipinas de 1.603, o cônjuge só herdaria na inexistência de colaterais até o 10.º grau do falecido (“Título XCIV – Falecendo o homem casado abintestado e não tendo ele parente até 10.º grau contado segundo o Direito Civil, que seus bens deva herdar e ficando sua mulher viva, a qual juntamente com ele estava e vivia em casa teúda e manteúda como mulher com seu marido, ela será universal herdeira”). Da mesma forma, a Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas reproduz a disposição no seu art. 980: “Na linha colateral, além dos irmãos e filhos de irmãos a posse civil transmite-se aos mais próximos parentes até o 10.º grau, por Direito Civil, que tiverem à herança um direito certo e indubitável”. Foi a Lei Feliciano Penna (Decreto 1.839, de 31 de dezembro de 1907) que alterou a questão e colocou o cônjuge, independentemente do regime de bens, como terceiro na vocação hereditária. Desde 1907, então, os colaterais nada recebem na existência de cônjuge herdeiro. Como a sucessão legítima decorre da ordem de vocação hereditária, que presume a vontade do falecido e seu afeto quanto a certas pessoas, não faria sentido imaginar que o falecido tem mais estima por seus irmãos e
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sobrinhos do que por sua esposa. E, se realmente tiver maior apreço, este não é presumido. Portanto, respeitando a porção legítima, poderá a pessoa fazer testamento em favor dos colaterais quanto à porção disponível. 2.4.2.5 O projeto de alteração do art. 1.829 do atual CC: PL 699/2011 Em decorrência das inúmeras críticas relevantes suscitadas pela doutrina, entendeu-se ser de extrema importância a reforma de determinados artigos do novo Código Civil, razão pela qual, ainda no ano de 2002, mais exatamente no dia 12 de junho e durante o período de vacância da atual codificação, propôs o deputado Ricardo Fiúza alterações substanciais de vários dispositivos, que consubstanciam o conhecido e sempre citado PL 6960/ 2002, que recentemente recebeu a numeração PL 699/ 2011. Curiosamente, no tocante à sucessão, o princípio que norteia o Projeto Fiúza é o da manutenção do atual art. 1.829, I, que trata da sucessão do cônjuge em concorrência com os descendentes. A única reforma proposta com relação à sucessão do cônjuge seria a correção do inciso I do art. 1.829 quanto à remissão equivocada ao art. 1.640, parágrafo único. Assim, com o PL 699/2011, o art. 1.829, I, teria a seguinte redação: “aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.641); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares”.
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O original projeto Fiúza, em nossa opinião, é de pouca valia para a solução dos problemas sucessórios com relação ao cônjuge, razão pela qual apenas o mencionamos, sem nos determos em sua análise mais profunda. Com todo o respeito, parece-nos que a proposta de alteração é tímida. No tocante ao PL 4.944/2005, que comentávamos na 1.ª edição desta obra de maneira minuciosa, cabe um esclarecimento. Desde a 2.ª edição, deixamos de comentar o Projeto Legislativo pelo fato de ter sido arquivado em 31 de janeiro de 2007, nos termos do art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, pelo término do ano legislativo. Desse modo, para a análise de novos projetos, é preciso aguardar o Estatuto das Heranças, projeto que atualmente está sendo elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). 2.4.2.6 O direito de habitação do cônjuge supérstite. Análise do art. 1.831 do CC Como é notório, o direito real de habitação é uma das espécies de direito real sobre coisa alheia de gozo ou de fruição (art. 1.225, VI, do CC). Em se tratando de direito real sobre coisa alheia, é imperioso imaginar que sobre um mesmo imóvel coexistem dois direitos reais de titulares distintos: há a propriedade de certa pessoa que está limitada em razão do direito de habitação de outra. O titular do direito real de habitação pode morar gratuitamente em um imóvel que não lhe pertence. Trata-se de um direito de gozo sobre o imóvel alheio bastante limitado. Isso porque somente seu titular poderá residir no
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imóvel, não podendo alugá-lo nem emprestá-lo a terceiro. Quando se afirmar que o titular residirá gratuitamente, isso quer dizer que o dono do imóvel não receberá qualquer remuneração, ou seja, não poderá cobrar do titular do direito de habitação qualquer espécie de aluguel ou outra forma de remuneração. Entretanto, ao titular do direito real de habitação são atribuídos alguns deveres que devem ser observados. De início, cabe a ele o pagamento dos tributos incidentes sobre o imóvel, das despesas condominiais ordinárias decorrentes do uso da coisa, bem como de todas as despesas ordinárias para a sua conservação e manutenção. Se o beneficiado não cumprir os seus deveres, poderá o proprietário pedir judicialmente a extinção do direito real de habitação. Existem duas espécies de direito real de habitação. A primeira é a chamada voluntária, em que as partes avençam o direito por escritura pública que será registrada no Cartório de Registro de Imóveis. A segunda decorre de previsão legal (independe da vontade das partes) e dispensa o registro imobiliário (art. 167, I, 7, da Lei 6.015/1977 – Lei de Registros Públicos). É sobre essa segunda espécie que cuidaremos a seguir. O Código Civil de 2002 ampliou o direito real de habitação com relação ao cônjuge sobrevivente. Isso porque, enquanto na sistemática do Código Civil de 1916 só teria o direito o cônjuge casado pelo regime da comunhão universal (art. 1.611, § 2.º), no sistema do atual Código o cônjuge sobrevivente tem o direito de habitação independentemente do regime de bens do casamento (art. 1.831 do CC/ 2002). É a redação do atual dispositivo legal:
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“Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”.
A segunda e interessante mudança é que no Código Civil revogado o direito real de habitação se extinguia em duas situações: – por termo incerto, ou seja, quando da morte de seu beneficiário; – por condição resolutiva, enquanto não constituir novo casamento.
O Código Civil de 2002 amplia o limite temporal do direito real de habitação do cônjuge, que não mais se extingue em razão de novo casamento ou união estável, mas apenas quando da morte do titular. Em outras palavras, trata-se de um direito real de gozo ou fruição vitalício. A situação pode se configurar bastante injusta, como lembram Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado, pois “mesmo depois de casado com um terceiro, continuará no imóvel, em prejuízo dos demais herdeiros que sequer aluguel poderão cobrar” (Código Civil..., 2005, p. 949). Para remediar esse problema, o PL 699/2011 pretende alterar o dispositivo em comento, que passaria a ter a seguinte redação: “Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, enquanto permanecer viúvo ou não constituir união estável, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel
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destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar” (grifamos). Outro problema bastante sério que se geraria pela redação do atual art. 1.831 do CC, segundo parte da doutrina, seria a possibilidade de criação do chamado direito real de habitação de segundo grau. Imagine-se um caso prático para a explicação do problema. João, com 87 anos de idade e pai de dois filhos, casa-se com Maria, de 18 anos, pelo regime da separação obrigatória de bens. Com a morte de João, Maria não será herdeira em concorrência com os filhos de João, mas terá garantido o direito real de habitação. Anos depois de sua viuvez, Maria se casa com Pedro, rapaz de 21 anos. Maria falece. Pedro, na qualidade de marido de Maria, teria o chamado direito real de habitação de segundo grau, mesmo sem ter participação na herança dela e independentemente do regime de bens. Os filhos de João que tiveram que suportar o direito real de habitação de Maria, mulher de seu pai, agora teriam que suportar o de Pedro, marido de sua madrasta. Não se filia à tese exposta. Isso porque, ao direito real de habitação, aplicam-se, no que couber, as regras do usufruto (art. 1.416 do CC). Nesse sentido, o usufruto é direito personalíssimo e intransferível, ou seja, extingue-se com a morte do usufrutuário. Da mesma forma, o direito de habitação o é, ou seja, com a morte do titular, o direito se extingue e não se transfere para terceiros, razão pela qual, no caso exemplificado, Pedro não seria titular do direito. Outra questão interessante diz respeito à extensão do direito real de habitação, pois o atual art. 1.831 do CC limita o direito dizendo que este existe desde que seja o único
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imóvel daquela natureza a inventariar. Qual seria o alcance da dicção legal? Se o falecido deixou mais de um imóvel residencial, perderia o cônjuge supérstite seu direito real de habitação? Explica Francisco José Cahali que “se outros imóveis existirem no inventário, também destinados à residência da família, ficará privado o cônjuge sobrevivente do direito real de habitação sobre qualquer deles, sem prejuízo, naturalmente, de sua eventual meação ou quinhão hereditário” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 218). Em outro sentido, afirma Zeno Veloso que “se existirem outros bens imóveis da mesma natureza no espólio, que possam ser utilizados para moradia do cônjuge sobrevivente, não incide o aludido direito real de habitação” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.528). Parece que realmente a posição de Zeno Veloso é a que deve prevalecer, com o endosso de José Luiz Gavião de Almeida, nos seguintes termos: “a existência de outros imóveis residenciais não afasta o direito real de habitação sobre o bem que servia de moradia à família do falecido. Nesse caso, o imóvel ofertado em substituição não pode ser de conforto inferior. Deve-se garantir ao cônjuge sobrevivente a mesma situação que desfrutava em sua residência anterior” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 220). Essa última é a melhor posição à luz do Direito Civil Constitucional e do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF/1988). Além disso, nunca se pode esquecer da proteção da moradia, constante do art. 6.º, caput, da Constituição Federal de 1988. Ilógico seria imaginar que, se o falecido deixou um único imóvel
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residencial, o direito de habitação existe, mas se o falecido deixou mais de um imóvel residencial, o direito desaparece, pelo contrário, se deixou apenas um imóvel, sobre aquele recairá o direito real de habitação. Se deixou mais de um, o direito de habitação recairá sobre um deles, desde que o cônjuge sobrevivente tenha um imóvel para residir, em condições semelhantes àquelas em que vivia no imóvel com o falecido. A melhor interpretação a ser feita do dispositivo é que o direito de habitação recairá, preferencialmente, sobre o imóvel residencial em que o cônjuge morava com o falecido. O debate dessa questão pode ser encerrado com as palavras de José Luiz Gavião de Almeida nos seguintes termos: “a interpretação da perda somente da residência familiar, mas não do direito real de habitação, é fórmula que não ofende a literalidade da lei e ampara situação não imaginada pelo legislador atual nos quase 30 anos que teve para a elaboração deste novo Código Civil” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 221). Cabe também a análise de outro ponto polêmico. O direito real de habitação é absoluto ou pode ser renunciado? Mário Luiz Delgado, em mensagem eletrônica aos presentes autores, sustenta a posição de que não se trata de direito absoluto e que pode ser renunciado. São suas palavras: “1. São duas coisas distintas: uma coisa é o direito à moradia, que é direito da personalidade. Outra é o direito de habitação, que é direito real, e cuja transmissibilidade é de sua própria essência. Essa distinção foi bem posta na obra do
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Sergio Iglesias Nunes de Souza, cuja (re) leitura indicaria para aprofundarmos esse debate. 2. A habitação é o espaço físico e pode ser perfeitamente renunciado ou alienado. Aquele que é proprietário de um único imóvel, por exemplo, não está impedido de aliená-lo somente porque se trata de um bem de família. 3. O direito à moradia não pode ser confundido com qualquer direito real incidente sobre a habitação. Trata-se de um dos direitos imprescindíveis ao mínimo existencial e deve ser assegurado independentemente da titularidade dominial da habitação. Mesmo renunciando ao direito real de habitação, a viúva poderia, por exemplo, dispor de recursos para morar dignamente em outro local. 4. Como direito social, a proteção à moradia tem como destinatário imediato o Estado, que não pode legislar contra essa proteção, como fez com o fiador, mas não constitui óbice legal à disponibilidade do direito real de habitação”.
O entendimento do jurista consubstancia o Enunciado n. 271 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça, de sua autoria: “Art. 1.831. O cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação, nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança”. Consigne-se que o coautor Flávio Tartuce é um dos críticos do enunciado em questão, apesar de muito respeitar o seu autor. Isso porque o enunciado acaba trazendo, de forma indireta, a renúncia a um direito fundamental consagrado no art. 6.º, caput, da Constituição Federal: o direito à moradia. Contra o teor do enunciado cite-se a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, segundo a qual as
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normas que protegem a pessoa humana, previstas no Texto Maior, têm aplicação imediata nas relações privadas ou particulares. Em outras palavras, as normas que consagram os direitos fundamentais da pessoa não são somente dirigidas ao Estado ou ao legislador (normas programáticas), mas também às pessoas como um todo. Essa aplicação imediata abrange também os direitos sociais, como decorrência do princípio da solidariedade social, na busca de uma sociedade mais justa e solidária (art. 3.º, I, da CF/1988). Nesse sentido, vale transcrever os ensinamentos de Daniel Sarmento: “Existe uma série de razões que justifica, hoje, a concepção de que, ao lado do dever primário do Estado de garantir os direitos sociais, é possível também visualizar um dever secundário da sociedade de assegurá-los. Em primeiro lugar, porque as relações privadas que se desenvolvem sob o pálio da Constituição não estão isentas da incidência dos valores constitucionais, que impõe sua conformação a parâmetros materiais de justiça, nos quais desponta a ideia de solidariedade. Além disto, diante da decantada crise de financiamento do Welfare State, que o impede de atender a todas as demandas sociais relevantes, é importante encontrar outros corresponsáveis que – sem exclusão da obrigação primária do Estado – possam contribuir para amenizar o dramático quadro de miséria hoje existente, assumindo tarefas ligadas à garantia de condições mínimas para os excluídos, não já agora, por caridade ou filantropia, mas no cumprimento de deveres juridicamente exigíveis. Assim, é possível afirmar que quando a Constituição estabelece como um dos objetivos fundamentais da República brasileira ‘construir uma sociedade mais justa, livre e solidária’, ela não está apenas enunciando uma diretriz política desvestida de qualquer eficácia normativa. Pelo contrário, ela expressa um
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princípio jurídico, que, apesar de sua abertura e indeterminação semântica, é dotado de algum grau de eficácia imediata e que pode atuar, no mínimo, como vetor interpretativo da ordem jurídica como um todo” (SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais..., 2004, p. 337).
Diante dessa importante tese, pode-se dizer qual autonomia privada, ou seja, o direito que a pessoa tem de se autorregulamentar, encontra limitações em normas de ordem pública, algumas de índole constitucional, como aquela que assegura o direito à moradia. E esse direito deve ser reconhecido pelos particulares, membros de uma relação jurídica de cunho privado. Como reforço, pode ser citado o art. 11 do atual Código Civil, segundo o qual os direitos da personalidade, aqueles inerentes à pessoa humana e à sua dignidade, são irrenunciáveis em regra. Reside aqui mais um argumento contra o Enunciado n. 271 CJF/STJ, pois a renúncia à moradia é nula, por ter conteúdo ilícito (art. 166, II, do CC). Superado esse interessante debate, como última e importante nota a ser feita, destaque-se que o direito real de habitação previsto em lei só estará presente quando houver a morte de um dos cônjuges. Em caso de separação ou divórcio, não haverá direito real de habitação para o cônjuge separado ou divorciado.
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2.5 A SUCESSÃO LEGÍTIMA DO COMPANHEIRO. QUESTÕES POLÊMICAS 2.5.1 As leis da união estável – Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 Com relação aos companheiros, antes da vigência do Código Civil de 2002, a situação sucessória era semelhante àquela dos cônjuges. Isso porque, em atenção ao preceito constitucional (art. 226, § 3.º, da CF), o legislador infraconstitucional editou duas diferentes leis regulamentando a união estável. As Leis 8.971/1994 e 9.278/1996, que disciplinavam o instituto, não criavam para o companheiro sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes ou ascendentes do falecido sobre a propriedade dos bens. Apenas criavam direitos reais sobre coisas alheias: usufruto ou direito real de habitação, em analogia ao casamento. De início, previa o art. 2.º da Lei 8.971/1994: “Art. 2.º As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições: I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos ou comuns; II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;
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III – na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.”
Em complemento, a Lei 9.278/1996 acrescentou direitos sucessórios aos companheiros no seu art. 7.º, parágrafo único, pelo qual: “Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”. Em suma, sob a égide das leis anteriores que regulamentavam a união estável, o companheiro sobrevivente teria os seguintes direitos sucessórios: – Usufruto dos bens do falecido nas hipóteses de concorrência com descendentes ou ascendentes do de cujus. Em concorrência com os descendentes do falecido, o companheiro tinha direito de usufruto sobre 1/4 dos bens do morto. Se o morto não deixasse descendentes, mas apenas ascendentes, o usufruto do companheiro se dava com relação a metade dos bens. – Direito real de habitação enquanto vivesse ou não constituísse uma nova união ou casamento, haveria o direito real relativamente ao imóvel destinado à residência da família.
O que se percebia era que, enquanto os cônjuges não teriam de forma cumulada o usufruto e o direito real de habitação, em razão dos diferentes regimes de bens, os companheiros acabavam acumulando ambos os direitos, em concorrência sucessória com os ascendentes e descendentes do falecido. A situação anterior era injusta? Aos
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presentes autores parece que sim, pelo fato de a sistemática anterior conferir mais direitos aos companheiros do que aos cônjuges. Francisco José Cahali abordou de maneira clara o problema, reconhecendo a profundidade do tema e afirmando que “apenas como registro, temos a posição inclinada no sentido de que ambos os efeitos sucessórios (usufruto e habitação) devem ser aplicados, para as sucessões abertas na legislação revogada, sob os mesmos pressupostos, na união estável e no casamento, guardada a grande diferença que entre eles existe no tocante ao regime de bens” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 227). O professor menciona, também, a solução de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, segundo a qual, “consequentemente, para evitar a inconstitucionalidade do dispositivo legal, pois estaria criando mais direitos aos companheiros se comparados aos casados sob regime diverso da comunhão universal de bens, deve ser considerada a cláusula de maior favorecimento, no sentido de alargar o direito real de habitação entre os casados para todo e qualquer regime, aliás, como já ocorre no direito de propriedade. Assim, o art. 1.612, § 2.º, do Código Civil de 1916 deve sofrer uma modificação em seu alcance, para estender o benefício a todo e qualquer regime matrimonial e não somente à comunhão universal” (CAHALI, Francisco José. Curso avançado..., v. 6, p. 227). Para Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, a Lei 9.278/1996 apenas supriu um esquecimento do legislador de 1994, não havendo problemas no tocante à mesma (Comentários..., 2003, v. 20, p. 55).
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Na solução deste conflito de normas, segundo José Luiz Gavião de Almeida, “prevaleceu o entendimento no sentido de que a Lei 8.971/94 trouxe regra geral de caráter sucessório. A Lei 9.278/96 trouxe regra de caráter especial. E norma especial não revoga a geral (art. 2.º, § 2.º, da Lei de Introdução ao Código Civil)” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 68). Nesse sentido, pugnando pela manutenção de ambos os diplomas no tocante ao direito sucessório, decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “Recurso especial. União estável. Direito de herança. Lei 8.971/1994. Lei 9.278/1996. Com a entrada em vigor da Lei 9.278/1996 não foi revogado o art. 2.º da Lei 8.971/1994 que garante à companheira sobrevivente direito à totalidade da herança, quando inexistirem ascendentes e descendentes. Quanto aos direitos do companheiro sobrevivente não há incompatibilidade entre a Lei 9.278/1996 e a Lei 8.971/1994, sendo possível a convivência dos dois diplomas” (STJ, REsp 747.619/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., j. 07.06.2005, DJ 1.º.07.2005, p. 534).
Esclarecedor é o voto da Ministra Relatora: “O direito à sucessão, por exemplo, foi definido apenas pela Lei 8.971/94, tendo sido omissa quanto ao ponto a norma posterior que estabeleceu apenas o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente quando dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes. Assim, enquanto a norma anterior conferiu à companheira o direito à totalidade da herança, quando inexistirem ascendentes ou descendentes, e, se houver filhos, ao usufruto da quarta parte dos bens do falecido enquanto não constituir nova união; a lei posterior, como já esclarecido, tratou somente
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do direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família. Portanto, quanto aos direitos do companheiro sobrevivente, não há incompatibilidade entre as normas, mas integração, sendo possível a convivência dos dois diplomas”. É interessante frisar a controvérsia da questão. Sobre o tema, no julgamento do REsp 418.365/SP, o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito explicou que o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu “que a autora não tem direito à herança porque não é herdeira ao fundamento de que a Lei 9.278/1996 revogou a Lei 8.971/1994, sendo que com relação ao direito à herança (art. 2.°, III, da Lei 8.971/1994) a lei nova é omissa e neste aspecto poder-se-ia entender que não há incompatibilidade entre as duas leis, embora a nova regule o § 3.° do art. 226 da Constituição Federal e a união estável. Para o Tribunal local, a Lei 9.278/1996 previu apenas o direito real de habitação para o sobrevivente sobre o imóvel da residência da família (art. 7.°, parágrafo único). Tal dispositivo revogou as disposições da lei anterior que concediam o direito de usufruto, posto que tanto a lei antiga quanto a nova estabeleceram direito real sobre coisa alheia e o direito de habitação é mais restrito do que o de usufruto, que o pode conter, além de ser localizado no imóvel de residência da família”. Os argumentos do Tribunal de Justiça não vingaram no Superior Tribunal de Justiça e a decisão foi diametralmente oposta. São as palavras do Ministro Relator “A lei anterior não cuidou do direito real de habitação, tratando do usufruto nos casos que especifica. Ora, a meu sentir, se não houve expressa revogação da parte relativa à
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sucessão, isto é, do direito da companheira ou companheiro à herança, não há razão para considerar que houve regulação diversa na lei posterior a provocar a incidência da última parte do art. 2.°, § 1.°, da Lei de Introdução ao Código Civil. Em conclusão, entendo que permanece em vigor o art. 2.º da Lei 8.971/1994, que disciplina o direito da companheira ou companheiro à herança, não o revogando o advento da Lei 9.278/1996” (STJ, REsp 418.365/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, 3.ª T., j. 21.11.2002, DJ 28.04.2003, p. 198).
De qualquer forma, sobre o tema da concorrência sucessória na união estável, indispensável que se anote a lição de Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira, no sentido de que “por essas disposições das leis da união estável verifica-se grande avanço em favor dos direitos dos companheiros, por sua equiparação aos direitos dos cônjuges no plano sucessório. Há quem critique essa posição, entendendo que seria suficiente a meação dos bens adquiridos em conjunto, como já reconhecia a jurisprudência (Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal) e veio a ser contemplado na legislação especial. Outros acham descabida a concessão do usufruto parcial, por resultar em indesejável associação de interesses dos companheiros com descendentes ou ascendentes do autor da herança, considerando-se que em geral falta um bom nível de convivência entre eles. Também há quem defenda a concessão ao companheiro sobrevivente tão só do direito real de habitação sobre o imóvel inventariado que lhe sirva de residência, entendendo que essa previsão, contida na Lei 9.278/96, afasta os demais direitos sucessórios tratados na Lei 8.971/94” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 163). Como se vê, várias eram as opiniões quanto aos direitos
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sucessórios que eram reconhecidos aos companheiros ou conviventes, pela legislação anterior. Superado esse ponto e por fim, previa a legislação anterior que, não tendo o falecido descendentes ou ascendentes, a totalidade dos seus bens era herdada pelo seu companheiro sobrevivente (art. 2.º, III, da Lei 8.971/ 1994). Assim, mesmo se o falecido tivesse irmãos, sobrinhos ou tios, todos os seus bens passavam ao companheiro sobrevivente, inexistindo concorrência sucessória nesses casos. Em suma, pode-se concluir que, com relação aos companheiros, a concorrência sucessória era excepcional, não constituindo regra. 2.5.2 O Código Civil de 2002 e a sucessão do companheiro De início, cabe ponderar que o Código Civil de 2002 sequer acertou quanto à localização topológica da matéria que aqui estamos estudando. Isso porque a sucessão do companheiro é trabalhada num único dispositivo, que se localiza junto às disposições gerais da sucessão, sendo que, evidentemente, deveria estar alocada no Título II (Sucessão Legítima) em seu capítulo I, qual seja aquele que trata da ordem de vocação hereditária. Ora, essa péssima localização, na visão de boa parte da doutrina, reflete a má vontade com que se tratou da sucessão do companheiro. Nas palavras de Rolf Madaleno, “mais uma vez resta discriminada a relação afetiva oriunda da união estável que perde sensível espaço no campo dos direitos que já haviam sido conquistados após o advento da Carta Política de 1988, em nada sendo
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modificada a atual redação do novo Código Civil e será tarefa pertinaz da jurisprudência corrigir estas flagrantes distorções deixadas pelo legislador responsável pela nova codificação civil” (Direito de família..., 2004, p. 113). O artigo está mal localizado, também segundo o mestre Zeno Veloso (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.484). Mal não, o dispositivo está pessimamente localizado! Vale dizer, aliás, que o atual art. 1.790 do CC/2002, que trata do tema, sequer constava do Projeto 634/1975, tendo sido introduzido pelo então Senador Nelson Carneiro, no ano de 1997. A grande crítica da doutrina sobre a sucessão dos companheiros é rebatida por Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado, com base no Relatório final ao projeto, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza. Apontam os doutrinadores que “as diretrizes imprimidas à elaboração do Projeto, fiéis nesse ponto às regras constitucionais e legais vigorantes, aconselham ou, melhor dizendo, impõem um tratamento diversificado, no plano sucessório, das figuras do cônjuge supérstite e do companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer superposição ou confusão de direitos à sucessão aberta. Impossibilitado que seja um tratamento igualitário, inclusive por descaracterizar tanto a união estável – enquanto instituição-meio – quanto o casamento – instituição-fim – na conformidade do preceito constitucional” (Código Civil..., 2005, p. 910). Com relação à sucessão dos companheiros, exatamente como ocorreu quanto aos cônjuges, a situação também se revela complicada e pouco operacional. Porém, sensíveis são os prejuízos sofridos pelos companheiros quanto às novas regras sucessórias, contrariamente aos cônjuges, que amealharam direitos com a edição da nova codificação.
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A polêmica gira em torno do art. 1.790 do atual Código Civil, um dispositivo que merece, sem dúvidas, transcrição mais do que destacada, pois sobre ele aprofundaremos os nossos estudos: “Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança” (grifamos).
De uma leitura imediata do comando legal transcrito, podemos retirar a conclusão de que, com relação aos companheiros, a concorrência sucessória que era excepcional no sistema anterior ao Código Civil de 2002 passou a ser a regra no novo sistema privado. Trata-se de um giro de cento e oitenta graus, uma total reviravolta no tratamento da matéria. Deve-se frisar que, a partir da vigência do Código Civil de 2002, estando instituída a concorrência sucessória do companheiro com descendentes e ascendentes do falecido, ocorreu a revogação tácita do art. 2.º da Lei 8.971/1994 que previa, nas mesmas hipóteses, o usufruto em favor do companheiro. A concorrência prevista no art. 1.790 do CC
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garante a copropriedade ao companheiro revelando-se incompatível com o usufruto anteriormente previsto, que só garantia um direito real sobre coisa alheia. Sobre o tema, conclui-se que a concorrência tal como atualmente estabelecida, por motivo de lógica, exclui a possibilidade de reconhecimento de usufruto em favor de companheiro. Curiosamente, o Tribunal de Justiça do Paraná, contrariando a unanimidade da doutrina, assim decidiu: “1. O art. 1.790 do Código Civil não revogou o art. 2.º da Lei 8.971/94. 2. Primeiramente, por não haver sido dado tratamento integral à matéria disciplinada pela lei anterior, o que afasta a revogação tácita prevista pelo artigo 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil. 3. Ainda, por conta do artigo 9.º da Lei Complementar 95/1998 (com redação dada pela Lei Complementar 107/2001), faz-se necessária previsão expressa (por meio de cláusula revogatória) de leis conflitantes revogadas pela atual. No caso do Código Civil, esta cláusula revogatória está positivada no artigo 2.045, e não abrangeu leis específicas que tratam da união estável. 4. Assim, deixar de reconhecer o direito ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, não aplicando a Lei 8.971/1994, por considerála revogada pelo Código Civil de 2002, significa relegar ao desamparo o companheiro supérstite na hipótese de não haver patrimônio comum, pois quando se trata de sucessão de companheiro, as leis anteriores são de aplicação necessária face às lacunas existentes no atual diploma civil, que cuidou do direito sucessório na união estável apenas no art. 1790, sem fazer qualquer referência ao usufruto vidual” (TJPR, Agravo de Instrumento 366.279-3-Curitiba, 19.ª Vara Cível, Rel. Des. Fernando Wolff Bodziak, j. 25.04.2007).
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Superada a questão de direito intertemporal, dividiremos a análise do tema da sucessão do companheiro em duas partes, que serão as respostas às tormentosas perguntas: Quais bens herda o companheiro? Quanto herda o companheiro? Com relação ao quanto a ser herdado, cuidaremos da concorrência com os descendentes exclusivos ou comuns do de cujus, bem como com ascendentes e colaterais. Por fim, estudaremos se ocorrerá ou não a concorrência entre o companheiro e o Município. Destaque-se, de imediato, que várias são as questões controvertidas que surgem da complicada sucessão do companheiro. De toda sorte, cabe esclarecer que a sucessão do companheiro também engloba as pessoas que vivem em união homoafetiva, ou seja, a união entre pessoas do mesmo sexo. Como é notório, o Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011, julgou a ADIN 4.277/DF e a ADPF 132/RJ, concluindo que todas as regras da união estável aplicamse à união homoafetiva, sem qualquer exceção (publicação no Informativo n. 625 do STF). Desse modo, o art. 1.790 do CC e as outras regras sucessórias relativas à união estável incidem para tais entidades familiares. 2.5.2.1 A massa patrimonial que herda o companheiro. Análise do art. 1.790, caput, do CC A primeira pergunta a ser respondida é a seguinte: Quais bens serão herdados pelo companheiro? O art. 1.790 do CC, em seu caput, delimita a participação do companheiro na sucessão do falecido apenas quanto aos “bens adquiridos onerosamente na vigência da união
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estável”. Pelo que consta do comando legal em comento, como primeira premissa, temos que efetuar a divisão do patrimônio do companheiro falecido em dois blocos distintos: – O primeiro bloco é composto apenas pelos bens móveis e imóveis que o falecido adquiriu onerosamente depois de iniciada a união. São os bens comprados pelo falecido ou os que ele recebeu em dação em pagamento. – O segundo bloco é composto por todos os demais bens, sejam eles móveis ou imóveis, desde que existentes antes do início da união, ou mesmo aqueles adquiridos a título gratuito (doação, sucessão) após o início da união.
Superada essa divisão, que tem interessante intuito didático, imagine-se a situação geral em que os companheiros não elaboraram contrato escrito, visando à regulamentação de suas relações patrimoniais (contrato de convivência). Conforme está exposto em nosso livro referente ao Direito de Família, o regime de bens imposto à união estável, na ausência de contrato escrito entre os companheiros, é o da comunhão parcial (art. 1.725 do CC). Em razão das regras desse regime, particularmente aquelas constantes dos arts. 1.559 e 1.660 do CC, pode-se concluir que com relação aos bens adquiridos a título oneroso, no curso da união estável, os companheiros terão direito à sua meação (art. 1.660, I, do CC). Desse modo, considerando-se a inexistência de qualquer contrato escrito entre as partes, o companheiro do falecido, por força da comunhão parcial, será dono de metade dos bens adquiridos a título oneroso na constância
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da união e, quando do falecimento, participará também da sucessão em concorrência com os descendentes, os ascendentes e os colaterais do convivente falecido. Sobre o tema, lembre-se mais uma vez que a meação – instituto de Direito de Família – não constitui herança – categoria de Direito Sucessório. Com relação aos demais bens do acervo hereditário, ou seja, quanto ao segundo bloco, em se tratando de bens que foram adquiridos gratuitamente pelo falecido, ou mesmo se este os recebeu por herança, o companheiro não terá direito à meação, em razão do regime da comunhão parcial de bens, bem como não terá direito a concorrer com os herdeiros do falecido. Os bens adquiridos por fato eventual, tais como os prêmios de loteria ou sorteios, compõem o segundo bloco e quanto a eles não haverá participação sucessória do companheiro. Também entende Francisco José Cahali que os bens sub-rogados pertencem ao segundo bloco e sobre eles o companheiro não terá direito sucessório, pois “não é pela forma de aquisição, mas pelo acréscimo patrimonial, efetivo ou real, que se identifica a parcela da herança na qual participará o companheiro sobrevivente” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 230). Como exemplo de bem sub-rogado, pode ser citada a casa que é comprada durante a união estável, com recursos da venda de uma outra casa que pertencia exclusivamente ao companheiro antes dela se iniciar. Destaque-se que quanto aos bens sobre os quais o companheiro tem a meação decorrente da comunhão parcial, terá também direito à sucessão. Já com relação aos bens particulares, o companheiro não tem a meação,
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em decorrência do regime e não tem também qualquer direito sucessório. Curiosamente, fica a conclusão de que com relação à sucessão do companheiro a regra será a seguinte: quanto aos bens em que há meação, o companheiro também será herdeiro. Sobre os bens em que não há meação, o companheiro também não terá direitos sucessórios. Como se nota, as regras diferem completamente das previstas para a sucessão do cônjuge, razão pela qual, conforme oportunamente será explicado, há julgados entendendo pela inconstitucionalidade do dispositivo relativo à união estável (cf. item 2.5.2.9). Mas há ainda a situação especial, em que os companheiros elaboraram um contrato escrito quanto ao regime patrimonial da convivência. Ora, caso os companheiros tenham elaborado contrato escrito para regular a sua convivência, a situação patrimonial do casal será regida pelas determinações do contrato. Muitas variantes podem ser imaginadas em casos tais e seria praticamente impossível abordar todas elas. De qualquer forma, algo deve ser esclarecido. O fato de o contrato entre os companheiros ter alterado a relação patrimonial existente entre eles não altera a regra sucessória prevista no art. 1.790 do CC. Aliás, deve-se lembrar que qualquer disposição contratual a respeito da sucessão será nula de pleno direito por se tratar de pacto sucessório ou pacta corvina, vedado por lei (art. 426 do CC). A nulidade é virtual, pois a lei veda o ato sem cominar sanção específica – art. 166, VII, do CC. Sobre o tema, vale dizer que um dos coautores da
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obra fez trabalho aprofundado (SIMÃO, José Fernando. Direito civil..., 2005, v. 5. p. 31). Alguns situação.
exemplos
práticos
podem
esclarecer
a
Os companheiros podem, por meio de contrato escrito, estabelecer que adotam a regra da comunhão universal de bens e que todos os bens presentes, pretéritos e futuros pertencerão a ambos os companheiros na proporção de 50% para cada um. Isso significa que se o companheiro ganhou uma fazenda, a companheira terá 50% do bem (meação); e se o companheiro comprou uma casa de praia a companheira também terá 50% (meação), por força do contrato de convivência. Por outro lado, se o companheiro falecer, deixando dois filhos, terá a companheira direito sucessório apenas em relação à casa de praia, mas não à fazenda. Isso por força do art. 1.790 do CC. Vejamos o exemplo, de forma destacada: Bens do falecido Fazenda: – 50% (meação) pertencem à companheira por força do contrato escrito; – 50% (herança) serão partilhados apenas entre os filhos do falecido. Casa de praia: – 50% (meação) pertencem à companheira por força do contrato escrito; – 50% (herança) serão partilhados entre a companheira e os filhos do falecido.
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Imagine-se uma segunda hipótese em que os companheiros, por meio de um contrato escrito, adotaram a regra da separação absoluta de bens, não havendo meação de nenhum bem, seja ele presente, pretérito ou futuro. Isso significa que se o companheiro recebeu uma fazenda, a companheira não terá direito à meação e o companheiro será dono de 100% do bem. Do mesmo modo ocorrerá se o companheiro comprou uma casa de praia, por força do que consta do contrato de convivência. Por outro lado, se o companheiro falecer, deixando dois filhos, terá a companheira direito sucessório apenas em relação à casa de praia, mas não à fazenda (art. 1.790 do CC). Esquematizando com detalhes: Bens do falecido Fazenda – 100% (herança) serão partilhados apenas entre os filhos do falecido. Casa de praia – 100% (herança) serão partilhados entre a companheira e os filhos do falecido.
Em suma, a conclusão a que se chega com a leitura do art. 1.790 do CC é que a disposição contratual só terá o condão de criar ou afastar a meação, mas não alterará as regras sucessórias. Nesse sentido, enfatiza Francisco José Cahali que “em nada importa o regime patrimonial, se da comunhão parcial, ou de outra previsão contratual, sendo irrelevante, ainda, eventual titularidade do viúvo sobre parte deste acervo” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p.
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229). Sílvio de Salvo Venosa também segue esse entendimento ao afirmar que “o contrato escrito que define eventual regime patrimonial entre os companheiros não pode substituir o testamento” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 119). Como não poderia ser diferente, concorda-se de forma integral com os doutrinadores citados. Superada a questão da massa patrimonial, sobre a qual haverá participação do companheiro em termos sucessórios, caberá a resposta a uma segunda questão: Quanto herda o companheiro? A questão não é das mais fáceis, como se verá no tópico a seguir. 2.5.2.2 A concorrência sucessória do companheiro com os descendentes do falecido. O art. 1.790, I e II, do CC De imediato, é importante diferenciar duas situações diversas envolvendo a concorrência sucessória do companheiro em relação aos descendentes do falecido. A primeira delas é aquela em que o companheiro é ascendente dos herdeiros com quem concorre (filiação comum). Além dessa situação, temos outra envolvendo aqueles casos em que o companheiro sobrevivo não é ascendente dos herdeiros com quem concorrer (filiação exclusiva). Nesse primeiro momento, não analisaremos a chamada filiação híbrida – expressão criada por Giselda Hironaka –, em que o falecido deixa descendentes comuns e exclusivos ao mesmo tempo. No caso de filiação comum, de acordo com o art. 1.790, I, do CC, o companheiro, se concorrer com filhos
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comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho. Filhos comuns devem ser compreendidos como sendo aqueles que são filhos tanto do falecido quanto do companheiro herdeiro. Em outras palavras, a companheira é mãe dos herdeiros com quem concorre. Nessa hipótese, a lei determina que o companheiro herdeiro receba quota equivalente àquela que receberem os filhos. A título de exemplo, se o companheiro, ao falecer, tinha dois bens: uma casa de praia que herdou de seu pai (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum) e deixou dois filhos comuns e sua companheira, os bens serão partilhados da seguinte forma: Bens do falecido Apartamento – Bem comum – 50% (meação) pertencem à companheira; – 50% (herança) serão partilhados entre a companheira e os dois filhos comuns do falecido, ficando cada um com 1/3 dos 50%. Casa de praia – Bem particular – 100% (herança) serão partilhados apenas entre os dois filhos comuns do falecido, na proporção de 50% para cada um.
É importante notar que a lei, no inc. I do art. 1.790 do CC, não utiliza a expressão descendentes comuns, mas filhos comuns. Diante desse detalhe legislativo, surge uma dúvida: isso quer dizer que, se o companheiro falece e
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deixa apenas netos comuns – filhos de filhos comuns dos companheiros –, a regra deixaria de ser aplicada? Em uma interpretação literal, a resposta seria afirmativa e aplicar-se-ia o inc. III do art. 1.790 do CC, pelo qual “se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança”. Entretanto, a maioria absoluta da doutrina entende que o inc. I do art. 1.790 deve ser aplicado também aos netos comuns. Essa é a interpretação dominante à qual se filiam os autores da presente obra. Do mesmo modo, são adeptos dessa corrente Francisco José Cahali, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Christiano Cassettari, Guilherme Calmon da Gama, Gustavo Rene Nicolau, Jorge Shiguemitsu Fujita, Inacio de Carvalho Neto, Rodrigo da Cunha Pereira, Euclides de Oliveira, Sebastião Amorim, Rolf Madaleno e Zeno Veloso, conforme aquela tabela organizada pelo professor Francisco Cahali antes referenciada (Família e sucessões..., 2004, v. II, p. 329). Confirmando esse entendimento majoritário, prevê o Enunciado n. 266 CJF/STJ, aprovado na III Jornada de Direito Civil: “Art. 1.790. Aplica-se o inc. I do art. 1.790 também na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes comuns, e não apenas na concorrência com filhos comuns”. O enunciado é de autoria justamente do professor Francisco Cahali, e o seu teor é que deve ser adotado para a prática do Direito das Sucessões. Em suma, prevalece então o entendimento pelo qual o inciso I do art. 1.790 do CC deve ser lido da seguinte maneira: se concorrer com descendentes comuns, terá
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direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao descendente. Por outro lado, se o companheiro concorrer apenas com descendentes do falecido (são os chamados filhos exclusivos), determina o art. 1.790, II, do CC, que lhe tocará a metade do que couber a cada um daqueles. Desse modo, filhos exclusivos são os filhos apenas do falecido, mas não do companheiro sobrevivente. Portanto, o companheiro dividirá a herança com aqueles que não são seus parentes consanguíneos. Exemplificamos: se o companheiro, ao falecer, tinha dois bens, uma casa de praia que herdou de seu pai (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum) e deixou dois filhos exclusivos e sua companheira, os bens serão partilhados da seguinte forma: Bens do falecido Apartamento – Bem comum – 50% (meação) pertencem à companheira; – 50% (herança) serão partilhados entre a companheira (1/5) e os dois filhos exclusivos (2/5 para cada) do falecido. Casa de praia – Bem particular – 100% (herança) serão partilhados apenas entre os dois filhos exclusivos do falecido, na proporção de 50% para cada filho.
A regra que se estabelece é que o companheiro recebe meia quota (x) e, portanto, o filho exclusivo recebe o dobro disso (2x). Imagine-se a hipótese em que o falecido deixa
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três filhos exclusivos e a companheira. Para cada filho exclusivo deve-se atribuir 2x (2x X 3 = 6x). Para a companheira atribuímos 1x. Somemos as quotas dos filhos e da companheira: 6x + 1x = 7x. O número 7 será o divisor da fração, e a herança será distribuída da seguinte forma: – para o companheiro: 1/7 da herança; – para cada filho exclusivo do falecido: 2/7 da herança.
A tabela a seguir facilitará a compreensão: Número de filhos exclusivos do falecido (atribuir 2x a cada um) 1 filho Quota – 2 x 2 filhos Quota – 4 x 3 filhos Quota – 6 x
Companheira (atribuir 1x sempre)
1 Quota – 1 x
1 Quota – 1 x
1 Quota – 1 x
Soma das quotas
Divisão da herança
3x
1/3 para a companheira e 2/3 para o filho
5x
1/5 para a companheira e 2/5 para cada filho
7x
1/7 para a companheira e 2/7 para cada filho
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4 filhos Quota – 8 x 5 filhos Quota – 10 x 6 filhos Quota – 12 x 7 filhos Quota – 14 x 8 filhos Quota – 16 x
1 Quota – 1 x
1 Quota – 1 x
1 Quota – 1 x
1 Quota – 1 x
1 Quota – 1 x
9x
1/9 para a companheira e 2/9 para cada filho
11 x
1/11 para a companheira e 2/11 para cada filho
13 x
1/13 para a companheira e 2/13 para cada filho
15 x
1/15 para a companheira e 2/15 para cada filho
17 x
1/17 para a companheira e 2/17 para cada filho
Do mesmo modo, ilustrando a incidência do art. 1.790, inc. II, do CC, cabe transcrever acórdão publicado no Informativo n. 474 do STJ: “Companheira. Herança. Concorrência. Único filho. Trata-se de REsp em que a discussão cinge-se à possibilidade de a companheira ainda não reconhecida por sentença como tal receber por herança verbas advindas do trabalho pessoal do falecido e, em caso positivo, concorrendo com o único filho dele, à proporção correspondente ao seu direito.
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A Turma, ao prosseguir o julgamento, após sua renovação, por maioria, entendeu que, em se tratando de direito sucessório, incide o mandamento do art. 1.790, II, do CC/ 2002. Assim, consignou-se que, concorrendo a companheira com o descendente exclusivo do autor da herança, calculada esta sobre todo o patrimônio adquirido pelo falecido durante a convivência, cabe a ela metade da quota-parte destinada ao herdeiro, vale dizer, 1/3 do patrimônio a ser partilhado. Diante desse fundamento, entre outros, por maioria, deu-se parcial provimento ao recurso para determinar a liberação de 2/3 do valor depositado e retido, descontando-se as parcelas adiantadas ao recorrente, até o trânsito em julgado de todas as ações de reconhecimento de união estável que tramitam envolvendo o autor da herança” (STJ, REsp 887.990/PE, Rel. originário Min. Fernando Gonçalves, Rel. para acórdão Min. Luis Felipe Salomão (art. 52, IV, b, do RISTJ), j. 24.05.2011).
José Luiz Gavião de Almeida rechaça a interpretação literal do inc. II do art. 1.790 do CC, apontando que “o mandamento legal entrega parte invariável ao companheiro, a qual será sempre de 1/3 da herança, independentemente do número de descendentes do sucedido. Se um apenas o sucedido, toca-lhe 1/3 da herança enquanto o herdeiro filho recebe 2/3 dos bens transmitidos. Se quatro os descendentes, o companheiro, a quem cabe a metade do que cada herdeiro vier a receber, recolherá 1/3 da herança; nesta última hipótese cada descendente ficará com 1/6 da herança, isto metade do que recolherá o companheiro. (...) A interpretação que se pode dar ao inciso II do art. 1.790 é de que o companheiro sobrevivente, concorrendo com filho apenas do sucedido, receberá metade do que cada qual dos filhos vier a levantar. Se a cada filho cabe R$ 1.000,00, não importando o número de filhos, ao
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companheiro serão entregues R$ 500,00” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 70). A tese do professor da USP é exatamente o que foi apontado no último quadro montado. Pois bem, chegou o momento de discutir uma das maiores polêmicas que envolvem o Direito das Sucessões. O problema ocorre na situação batizada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka de filiação híbrida, em que concorrem com o companheiro os filhos comuns e exclusivos do falecido. Repise-se que se trata de uma das mais complicadas problemáticas trazidas pelo Código Civil de 2002 como um todo. A pergunta central da polêmica é a seguinte: em concorrendo com filhos híbridos (filhos comuns + filhos exclusivos), o companheiro recebe uma quota ou meiaquota do que couber a esses? Algumas correntes doutrinárias se formaram para responder à pergunta. 1.ª Corrente: O companheiro recebe uma quota. Por meio de uma interpretação literal do dispositivo, chega-se à conclusão que é defendida por Sílvio de Salvo Venosa, segundo a qual, na hipótese de filiação híbrida, aplicamos o inc. I do art. 1.790 do CC, e a companheira terá quota igual à dos filhos. “A solução é dividi-la igualitariamente, incluindo o companheiro ou companheira. Essa conclusão deflui da junção dos dois incisos, pois não há que se admitir outra solução, uma vez que os filhos, não importando a origem, possuem os mesmos direitos hereditários” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil..., 2003, v. 7, p. 121). Essa solução é adotada porque o dispositivo não
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afirma que o inciso I se aplica se o companheiro só concorrer com filhos comuns. Não exige a lei esta exclusividade que restringiria a aplicação do inciso. Esse é o entendimento do coautor José Fernando Simão e de grande parte da doutrina. Assim, são adeptos dessa corrente Francisco José Cahali, Christiano Cassettari, Guilherme Calmon da Gama, Jorge Shiguemitsu Fujita, Inácio de Carvalho Neto, Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Berenice Dias, Rolf Madaleno e Mário Luiz Delgado (CAHALI, Francisco José. Família e sucessões..., 2004, v. II, p. 329). Pelo número de doutrinadores que seguem esse entendimento, o mesmo deve ser adotado para a prática sucessória. De qualquer modo, observe-se que se adotada esta corrente o companheiro sai privilegiado com relação aos descendentes. Por outro lado, como a primeira teoria é menos benéfica aos filhos, parte da doutrina segue outra linha de raciocínio. 2.ª Corrente: O companheiro recebe meia quota Isso porque a interpretação visa à proteção dos descendentes, e, portanto, em caso de filiação híbrida, o companheiro só teria direito à metade do quinhão que for atribuído a cada filho. Em síntese, aplica-se à filiação híbrida o art. 1.790, II, do CC. Nesse sentido, afirma Euclides de Oliveira que “em face da diversidade de posicionamentos por omissão e dubiedade da norma legal, penso que a interpretação mais consentânea e que poderá vingar no tumulto interpretativo da disposição em comento será a de atribuir ao
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companheiro quota igual à dos descendentes apenas quando seja ascendente de todos os habilitados na herança” (Direito de herança..., 2005, p. 171). Essa é a interpretação à qual está filiado o coautor Flávio Tartuce. Também são adeptos dessa corrente Gustavo Rene Nicolau, Maria Helena Diniz e Zeno Veloso (CAHALI, Francisco José. Família e sucessões..., 2004, v. II, p. 329). Maria Helena Diniz justifica sua opinião afirmando que “aplicando-se o art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil, que privilegia o princípio da igualdade jurídica de todos os filhos (Constituição Federal, art. 227, § 6.º), só importará, na sucessão, o vínculo de filiação com o auctor successionis e não o existente entre o companheiro sobrevivente, que, por isso, terá, nessa hipótese, direito à metade do que couber a cada um dos descendentes” (Curso..., 2005, v. 6, p. 142). O coautor Flávio Tartuce segue o entendimento da professora da PUC/SP, que foi sua orientadora de mestrado. Isso porque, se a herança for do falecido, havendo uma situação de dúvida, deve-se interpretar que todos os filhos são daquele que morreu. Assim sendo, aplica-se o inc. II do art. 1.790 do CC. Essa posição privilegia os filhos em detrimento da companheira. Argumento a favor dessa corrente é que se a companheira receber quota igual, quando falecer, devolverá os bens recebidos apenas aos filhos comuns, por ser mãe destes, em evidente prejuízo aos filhos exclusivos. José Luiz Gavião de Almeida também segue esse entendimento e leciona que “essa interpretação melhor se adapta à intenção do legislador que privilegiou o filho antes do cônjuge ou do companheiro” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 71). Consigne-se que essa interpretação
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prevaleceu em recente julgado do Tribunal Paulista que merece destaque: “Companheira que concorre com filho comum e filho exclusivo do autor da herança. Ausência de regra legal específica para a hipótese. Solução que contempla o direito sucessório da companheira apenas no que toca à metade do que couber a cada um dos filhos. Aplicação por analogia do art. 1.790, II, do CC, de modo a preservar a igualdade entre os filhos. Observância do art. 227, § 6.º, CF/88 e do art. 1.834 do CC. Recurso não provido” (TJSP, Agravo 652.505-4/0-00, 5.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Roberto Mac Craken, j. 09.09.2009).
3.ª Corrente: teoria da sub-herança A teoria de sub-herança é explicada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, que, aliás, com ela não concorda (Comentários..., 2003, v. 20, p. 63). Para a sua visualização, vejamos os passos indicados pela professora: 1.º) Divide-se a herança em dois blocos, um dos filhos comuns e outro dos não comuns. 2.º) O companheiro teria uma quota igual à dos filhos comuns na sub-herança destes. 3.º) O companheiro teria metade da quota dos não comuns na sub-herança destes. 4.º) Somam-se as quotas do companheiro obtidas nos passo anteriores e se conclui qual será a sua participação na herança.
A título de exemplo, imagine-se uma herança no importe de R$ 100.000,00, e que o falecido tenha deixado três filhos comuns e dois filhos exclusivos (filiação
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híbrida). Nesse caso, cada filho teria direito a R$ 20.000,00 (R$ 100.000,00 divididos por 5). Assim, a herança dos filhos comuns seria de R$ 60.000,00 (R$ 20.000,00 X 3) e seria dividida em quatro partes (três dos filhos e uma da companheira). Obedece-se ao disposto no inc. I do art. 1.790. A companheira teria direito a R$ 15.000,00. Já a sub-herança dos filhos exclusivos seria de R$ 40.000,00 (R$ 20.000,00 X 2) e seria dividida em cinco partes (duas para cada filho exclusivo e uma para a companheira). A companheira teria direito a R$ 8.000,00. Vejamos todos esses cálculos, de forma detalhada, na tabela a seguir: Divisão final da herança
Companheiro
R$ 15.000,00 + R$ 8.000,00 = R$ 23.000,00
R$ 23.000,00
Quota de cada filho comum
R$ 15.000,00
(x 3) R$ 45.000,00
Quota de cada filho exclusivo
R$ 16.000,00
(x 2) R$ 32.000,00
Total
R$ 100.000,00
O grande problema da teoria é que a mesma gera uma desigualdade entre os filhos, ferindo os ditames constitucionais. Em suma, essa teoria é inaplicável diante da
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igualdade entre filhos prevista no art. 227, § 6.º, da CF/ 1988. Acompanhamos, então, a crítica contunde formulada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (Comentários..., 2003, v. 20, p. 64). 4.ª Corrente: A teoria da proporção: a Fórmula Tusa O professor e amigo Gabriele Tusa parte da seguinte premissa para resolver a situação da filiação híbrida: o legislador não deixou lacuna no Código Civil, mas sim uma situação em que os incisos I e II do art. 1.790 podem ser conciliados desde que lidos conjuntamente. O autor da fórmula, mestre e doutor pela Universidade de São Paulo, defendeu a sua tese em trabalho científico apresentado no V Congresso Brasileiro de Direito de Família do IBDFAM, realizado em outubro de 2005 na cidade de Belo Horizonte (MG). No VII Congresso do IBDFAM, em 2009, a premissa foi mais uma vez exposta. Por esse caminho, leva-se em conta que o objetivo do legislador, em caso de filiação híbrida, foi o seguinte: se concorrer com filhos comuns e com filhos exclusivos, a companheira não receberá nem 1 nem metade, mas um coeficiente maior que metade (nunca menor) e menor que 1 (nunca maior), que variará de acordo com o número de filhos do falecido. Se o falecido deixou mais filhos comuns, o coeficiente deve ser mais próximo de 1 (aproxima-se do inc. I do art. 1.790 do CC). Se o falecido deixou mais filhos exclusivos, o coeficiente deve ser mais próximo de 1/2 (aproxima-se do inc. II do art. 1.790 do CC).
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Um exemplo prático ajuda a intelecção do problema. O falecido deixa três filhos comuns e dois exclusivos. Como se calcula o coeficiente? Calcula-se da seguinte forma: 3 x1 + 2 x1/2 ÷ 5 = 4/5 (que equivale a 0,8 – menor que 1 e maior que 1/2). Somam-se: número de filhos comuns (x1) com número de filhos exclusivos (x1/2) e depois se divide pelo número total de filhos (comuns e exclusivos). Como então se chega, agora, aos quinhões de cada filho e da companheira? Todos os filhos têm quinhão igual (5 filhos = 5x), e a companheira tem o coeficiente 0,8x. Chegamos ao seguinte cálculo 5x + 0,8x = 100%, então x é igual a 17,24% (100 dividido por 5,8). Dessa forma, cada filho receberá x, ou seja, 17,24%, e a companheira receberá 13,79% (17,24 multiplicado pelo coeficiente 0,8). Vejamos uma tabela com os cálculos da Fórmula Tusa:
Número de filhos comuns
9 filhos
Número de filhos exclusivos
Coeficiente
1 filho
9x1 + 1x1/2 ÷ 10 = 9,5/10 = 0,95
Soma dos quinhões dos filhos e da companheira
Div nal her
10x + 0,95x = 100%
Cad rece 9,13 o co heir 8,67
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1 filho
2 filhos
9 filhos
1x1 + 9x1/2 ÷ 10 = 5,5/10 = 0,55
2 filhos
2x1 + 2x1/2 ÷ 4 = 3/4 = 0,75%
10x + 0,55x = 100%
Cad rece 9,47 com rece 5,21
4x + 0,75x = 100%
Cad rece 21,0 o co heir 15,7
Esses três exemplos são bem ilustrativos da lógica da Fórmula Tusa. No primeiro exemplo da tabela, o número de filhos comuns é grande, e o de filhos exclusivos pequeno. Logo, o quinhão do companheiro (9,13%) fica muito próximo do quinhão dos filhos (8,67%). A quota é quase igual, o que se aproxima da determinação do inc. I do art. 1.790 do CC. No segundo exemplo inverte-se a situação, pois o número de filhos exclusivos é grande e o de filhos comuns é pequeno. Logo, o quinhão do companheiro (5,21%) fica muito próximo da metade do quinhão dos filhos (9,47%). A quota é quase igual à metade do que recebem os filhos, o que se aproxima da determinação do inc. II do art. 1.790 do CC. No terceiro e último exemplo é idêntico o número de filhos comuns e de filhos exclusivos. Logo, o companheiro fica em situação intermediária, não recebendo quota igual
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(1) nem metade (0,5), mas recebendo 0,75 do que recebem os filhos. A fim de tornar operável a solução preconizada por Gabriele Tusa, o economista Fernando Curi Peres, do Departamento de Sociologia e Economia da ESALQ/USP, traduziu os princípios em verdadeira fórmula aritmética, que é a seguinte:
Legenda: X = o quinhão hereditário que caberá a cada um dos filhos. C = o quinhão hereditário que caberá ao companheiro sobrevivente. H = o valor dos bens hereditários sobre os quais recairá a concorrência do companheiro sobrevivente. F = o número de descendentes comuns com os quais concorra o companheiro sobrevivente. S = o número de descendentes exclusivos com os quais concorra o companheiro sobrevivente.
A fórmula foi reproduzida, de maneira pioneira, por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em sua
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segunda edição dos Comentários ao Código Civil, da Editora Saraiva, que assim esclarece a questão: “Como ressaltado, os resultados que serão alcançados com a aplicação dessa fórmula variam proporcionalmente conforme o número de filhos exclusivos do falecido e o número de filhos comuns a ele e ao convivente sobrevivo. A variação é diretamente proporcional, ou seja, quanto maior o número de filhos comuns relativamente ao número de filhos exclusivos, maior será a quota cabível ao companheiro sobrevivente, pois que, se apenas descendentes comuns houvesse, estes receberiam quota idêntica à que caberia àquele (inc. II), ao passo que se maior for o número de descendentes exclusivos, menor será a quota do companheiro e mais próxima ela se encontrará da metade do quinhão que aqueles recebem (inc. I)” (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários..., 2007, v. 20, p. 66-67).
Portanto, com base na ideia de ponderação, a fórmula poderá ser utilizada em qualquer hipótese de concorrência do companheiro com filhos exclusivos e comuns do falecido. A solução é engenhosa e genial. Entretanto, não temos certeza de que sua operacionalidade esteja garantida. As contas geram números decimais que fracionam a herança de maneira complexa. De qualquer forma, é uma solução que não fere a igualdade dos filhos e atende ao espírito do legislador. Havendo dedicação do aplicador do Direito, a mesma pode ser aplicada. Tendo parâmetros matemáticos, a fórmula pode ser adotada na prática sucessória. Superada a análise de todas as concorrências sucessórias do companheiro com os descendentes, parte-se à análise da concorrência com os ascendentes.
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2.5.2.3 A concorrência sucessória do companheiro com os ascendentes do falecido. O art. 1.790, III, do CC Se o companheiro falecido não deixou descendentes, serão chamados à sucessão os ascendentes do falecido em concorrência com o companheiro (art. 1.790, III, do CC). Nessa hipótese, o companheiro receberá 1/3 da herança. Alguns exemplos ajudam a esclarecer a questão. De qualquer forma, vale dizer que nesse momento necessária será a aplicação das regras referentes à sucessão na linha ascendente, vide item 2.3 do presente capítulo. Vejamos algumas situações práticas. – Se João, companheiro de Maria, ao falecer sem descendentes tinha dois bens, uma casa de praia que comprou antes do início da união estável (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum) e deixou sua mãe viva, os bens serão partilhados da seguinte forma: Bens do falecido Apartamento – Bem comum (art. 1.790, III, e 1.836, caput, do CC) – 50% (meação) pertencem à companheira; – 50% (herança) serão partilhados entre a companheira (1/3) e a mãe do falecido (2/3). Casa de praia – Bem particular (art. 1.790, caput, e 1.836, caput, do CC) – 100% (herança) serão apenas da mãe do falecido.
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– Se João, companheiro de Maria, ao falecer sem descendentes, tinha dois bens, uma casa de praia que comprou antes do início da união estável (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum) e deixou sua mãe e seu pai vivos, os bens serão partilhados assim: Bens do falecido Apartamento – Bem comum (arts. 1.790, III, e 1.836, § 2.º, do CC) – 50% (meação) pertencem à companheira; – 50% (herança) serão partilhados entre a companheira (1/3) e a mãe do falecido (1/3) e o pai do falecido (1/3). Casa de praia – Bem particular (art. 1.790, caput, e 1.836, § 2.º, do CC) – 100% (herança) serão partilhados entre a mãe do falecido (1/2) e do pai do falecido (1/2).
– João, companheiro de Maria, ao falecer sem descendentes, tinha dois bens: uma casa de praia que comprou antes do início da união estável (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum) e deixou seus avós maternos vivos e sua avó paterna viva, pois seu pai e sua mãe eram premortos. Nesse caso, a divisão da herança será a seguinte: Bens do falecido Apartamento – Bem comum (art. 1.790, III, e 1.836, § 2.º, do CC)
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– 50% (meação) pertencem à companheira; – 50% (herança) serão partilhados entre a companheira (1/3), a avó paterna do falecido (1/3), a avó materna do falecido (1/6) e o avô paterno do falecido (1/6). Casa de praia – Bem particular (art. 1.790, caput, e 1.836, § 2.º, do CC) – 100% (herança) serão partilhados entre a avó paterna do falecido (1/2), a avó materna do falecido (1/ 4) e o avô paterno do falecido (1/4).
Como se percebe, a concorrência do companheiro com os ascendentes do falecido não gera maiores dificuldades. 2.5.2.4 A concorrência sucessória com os colaterais do falecido. O art. 1.790, III, do CC Se o companheiro falecido não deixou descendentes nem ascendentes, mas deixou parentes colaterais até o 4.º grau (art. 1.839 do CC), estes serão chamados a suceder em concorrência com o companheiro sobrevivo. Isso porque o art. 1.790, III, do CC, menciona parentes sucessíveis, tendo o companheiro direito a um terço da herança em casos tais. Vejamos quem são esses parentes colaterais sucessíveis. Serão herdeiros o irmão do morto (parente colateral em 2. º grau), o sobrinho e o tio do morto (colateral em 3.º grau), bem como o tio-avô, o sobrinho-neto e o primoirmão (parentes colaterais em 4.º grau).
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Exemplifica-se. João, companheiro de Maria, ao falecer sem descendentes nem ascendentes, tinha dois bens: uma casa de praia que comprou antes do início da união estável (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum). Deixou seu tio-avô vivo. Nesse caso, a divisão da herança será a seguinte: Bens do falecido Apartamento – Bem comum (arts. 1.790, III, e 1.839 do CC) – 50% (meação) pertencem à companheira; – 50% (herança) serão partilhados entre a companheira (1/3) e o tio-avô do falecido (2/3). Casa de praia – Bem particular (arts. 1.790, caput, e 1.839 do CC) – 100% (herança) será apenas do tio-avô do falecido.
Imaginar que um sobrinho do morto, um primo-irmão ou um tio-avô terão mais direitos que a companheira de uma vida causa certo espanto. Note-se que, diversamente do que ocorre com o cônjuge supérstite, que herda a herança como um todo, havendo apenas parentes colaterais até 4.º grau, o companheiro sobrevivo concorrerá e dividirá a herança com estes. Na opinião destes autores, trata-se de um flagrante retrocesso, uma vez que a Lei 8.971/1994 garantia aos companheiros o direito de recolher a totalidade da herança caso o falecido deixasse apenas colaterais (art. 2.º,
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III). Quanto ao tema, ao mencionar a doutrina portuguesa de Vital Moreira e J. J. Gomes Canotilho, afirma Ingo Wolfgang Sarlet que a proibição de retrocesso “pode ser considerada uma das consequências da perspectiva jurídico-subjetiva dos direitos fundamentais sociais na sua dimensão prestacional, que, nesse contexto, assume condição de verdadeiros direitos de defesa contra medidas de cunho retrocessivo, que tenham por objeto a sua destruição ou redução” (Eficácia..., Revista Brasileira de Direito..., 1.º sem. de 2005, v. 28, p. 118). A norma é injusta sem sombra de dúvidas, e, para alguns, inconstitucional, conforme será exposto adiante, razão pela qual merecem aplausos os projetos de reforma que oportunamente serão estudados. 2.5.2.5 A concorrência sucessória com o Município. O art. 1.790, IV, do CC Determina o inc. IV do art. 1.790 do CC que, não havendo parentes sucessíveis, terá o companheiro direito à totalidade da herança. Desse modo, se o falecido não deixou descendentes, ascendentes ou colaterais até o 4.º grau, o companheiro receberá a herança em sua totalidade. Mas cabe a seguinte indagação: o inc. IV do art. 1.790 do CC manteria relação com o caput do art. 1.790 e, portanto, o companheiro teria direito à totalidade da herança composta apenas pelos bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável ou de todos os bens deixados pelo falecido, inclusive os particulares? Se a resposta for a de que o inc. IV deve ser interpretado à luz do caput, a consequência é que os bens
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adquiridos a título oneroso serão herdados pelo companheiro e os bens particulares serão considerados parte de herança vacante e atribuídos aos Estado (Município ou Distrito Federal). São adeptos dessa corrente Francisco José Cahali, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Mário Luiz Delgado, Inacio de Carvalho Neto, Rodrigo da Cunha Pereira e Zeno Veloso (Família e sucessões..., 2004, v. II, p. 329). Francisco José Cahali justifica sua opinião dizendo que, mesmo não havendo parentes sucessíveis, “a totalidade da herança a que se refere o inciso é aquela prevista no caput, ou seja, limitada aos bens adquiridos onerosamente na constância da união. Assim, sendo maior o patrimônio do falecido, aqueles bens não contemplados no caput serão tidos como herança jacente” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 231). A título de ilustração, João, companheiro de Maria, ao falecer sem descendentes, ascendentes, ou colaterais, tinha dois bens: uma casa de praia que comprou antes do início da união estável (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum). Nesse caso, a divisão da herança será a seguinte: Bens do falecido Apartamento – Bem comum (art. 1.790, caput e inc. IV, do CC) – 50% (meação) pertencem à companheira; – 50% (herança) pertencerão apenas à companheira. Casa de praia – Bem particular (art. 1.790, caput e inc. IV, do CC) – 100% (herança) serão apenas do Município.
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Por outro lado, se a resposta for a de que o inc. IV deve ser interpretado desvinculado do caput, de acordo com o sistema criado pelo Código Civil de 2002, a consequência é que os bens que irão compor o acervo hereditário serão todos aqueles deixados pelo falecido, independentemente do título de aquisição. Isso porque o Código Civil, em seu art. 1.844, determina que “não sobrevivendo cônjuge, ou companheiro, nem parente algum sucessível, ou tendo eles renunciado à herança, esta se devolve ao Município ou ao Distrito Federal, se localizada nas respectivas circunscrições, ou à União, quando situada em território federal” (destacamos). Exemplificamos como ficam as situações práticas. João, companheiro de Maria, ao falecer sem descendentes, ascendentes ou colaterais, tinha dois bens: uma casa de praia que comprou antes do início da união estável (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum). Nesse caso, a divisão da herança será a seguinte: Bens do falecido Apartamento – Bem comum (art. 1.790, caput e inc. IV, do CC) – 50% (meação) pertencem à companheira; – 50% (herança) pertencerão apenas à companheira. Casa de praia – Bem particular (art. 1.790, IV, e art. 1.844 do CC) – 100% (herança) serão apenas da companheira.
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Essa segunda posição parece-nos a mais acertada. Isso porque o art. 1.844 do CC, que trata da herança vacante, é expresso ao afirmar que a herança só será devolvida ao Município se não houver cônjuge, companheiro ou nenhum parente sucessível. Contrario sensu, se houver o companheiro, o Município estará excluído da sucessão. Só se realmente não houver cônjuge ou companheiro a herança será considerada vacante. A conclusão se coaduna com a própria lição de Itabaiana de Oliveira, já compilada no presente livro a respeito da ordem de vocação hereditária: “esta ordem se distingue por sua simplicidade e corresponde, com a possível exatidão, ao conceito de família, e, substituindo a este sentimento, há o de pátria, que se refere no direito hereditário com a sucessão do Fisco” (Tratado..., 1952, v. 1, p. 171). O sentimento de família prepondera sobre o de Pátria. Havendo família, a Pátria fica em segundo lugar... Em conclusão, havendo companheiro sobrevivo, o Município nada herdará. São adeptos desta corrente, Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira Leite, Gustavo Rene Nicolau, Jorge Shiguemitsu Fujita, Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira (Família e sucessões..., 2004, v. II, p. 329). Esse entendimento pode ser adotado como majoritário, sendo também dele adeptos os coautores Flávio Tartuce e José Fernando Simão. Maria Helena Diniz contribui decisivamente com a questão nos seguintes termos: “Se o Município, a União e o Distrito Federal só é sucessor irregular da pessoa que falece sem deixar herdeiro, como poderia se admitir que receba parte do acervo hereditário concorrendo com herdeiro sui generis (sucessor regular), que, no artigo sub examine, seria o companheiro? Na herança
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vacante configura-se uma situação de fato em que ocorre a abertura da sucessão, porém não existe quem se intitule herdeiro. Por não existir herdeiro um sucessor regular, é que o Poder Público entra como sucessor irregular. (...) Isto seria mais justo, pois seria inadmissível a exclusão do companheiro sobrevivente, que possuía laços de afetividade com o de cujus, do direito à totalidade da herança, dando prevalência à entidade pública. Se assim não fosse, instaurar-se-ia no sistema uma lacuna axiológica. Aplicando-se o art. 5.º da LICC, procura-se a solução mais justa, amparando o companheiro sobrevivente” (Curso..., 2005, v. 6, p. 143).
Concluímos nossas ponderações sobre o tema observando que o Código Civil de 2002 representa um grande retrocesso com relação às leis anteriores que regulavam a matéria da união estável. Ainda que não se atribua ao termo retrocesso qualquer cunho valorativo ou peso moral, certo é que muitos dos direitos obtidos pelos companheiros após anos de construção doutrinária e jurisprudencial restaram drasticamente reduzidos, o que certamente será causa de frustração para muitos. Por outro lado, o Código Civil de 2002, ao contrário do que faziam as leis anteriormente vigentes, afasta a figura da união estável da figura do casamento, criando direitos sucessórios bem distintos com relação a esses institutos. Com a vigência do Código Civil de 2002 afasta-se a ideia de que casar ou não é indiferente, porquanto os casados voltam a ter mais direitos que os companheiros por força da revogação das Leis 8.971/1994 e 9.278/1996, que praticamente equiparavam a união estável ao casamento, pelo menos em matéria sucessória.
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2.5.2.6 Os projetos de reforma do art. 1.790 do CC Diante do verdadeiro caos instituído pelo legislador do Código Civil de 2002, conforme demonstrado, a necessidade de reforma do art. 1.790 da atual codificação se faz imperiosa. Em razão dos clamores da doutrina, há um principal projeto de alteração em trâmite no Congresso Nacional, que abordaremos no presente estudo. Trata-se do PL 699/2011, cujo número original era PL 6.960/2002, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza. O segundo projeto que era analisado na primeira edição dessa obra era o PL 4.944/2005, de relatoria do Deputado Antonio Biscaia, e que era fruto dos estudos do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, mas que, desde 31 de janeiro de 2007, encontra-se arquivado. Assim, deixamos de explicá-lo de maneira minuciosa. Aguardamos, ainda, a elaboração do Estatuto das Heranças pelo IBDFAM para oportunos comentários. Em decorrência das inúmeras críticas relevantes suscitadas pela doutrina, entendeu-se ser de extrema importância a reforma do artigo em questão, razão pela qual, ainda no ano de 2002 e durante o período de vacância do Código, propôs originalmente o deputado Ricardo Fiúza a alteração substancial do art. 1.790 do CC. O princípio que norteia o antigo Projeto Fiúza é o da manutenção do atual art. 1.829, I, do CC, que trata da sucessão do cônjuge em concorrência com os descendentes. O marco divisório entre a concorrência ou não com os descendentes seria o regime de bens dos companheiros. São criadas regras análogas para a sucessão do companheiro, sem que haja uma equiparação ao cônjuge, já que o
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companheiro terá sempre meia quota em concorrência com ascendentes e descendentes. O projeto consegue afastar as críticas formuladas contra o atual art. 1.790 do CC. Inicialmente, o caput teria a seguinte redação: “o companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte”. O que se percebe é que o projeto acaba com a divisão entre bens adquiridos onerosamente e demais bens. Neste ponto, o Projeto Fiúza aproxima a sucessão do companheiro à do cônjuge, determinando a sucessão do companheiro em todo e qualquer bem que pertencer ao falecido, independentemente de sua forma de aquisição. O inciso I trata da concorrência com os descendentes, nos seguintes termos: “em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641)”. O projeto também afasta a expressão filhos contida no inc. I do atual art. 1.790 e utiliza corretamente o termo “descendentes”, não mais diferenciando os comuns dos não comuns. Dessa forma, põe fim ao debate relativo à filiação híbrida e garante aos companheiros uma quota equivalente à metade do que couber a cada um dos descendentes. Prevalece, pelo PL 699/2011, o entendimento que beneficia os filhos, reduzindo a participação sucessória do companheiro, tese à qual adere Flávio Tartuce.
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Além disso, o projeto exclui a participação dos companheiros na herança, se houve comunhão de bens durante a união estável e o falecido não deixou bens particulares. Note-se que, pelo PL 699/2011, se o falecido deixou bens comuns, o companheiro já tem sua meação e, portanto, não participa da sucessão em concorrência com os descendentes. A regra toma por base a sucessão do cônjuge, que, na hipótese em que tem direito à meação de bens, não concorre com os descendentes na sucessão (art. 1.829, I, do CC). Se houver bens particulares, como não há meação, o companheiro concorre com os descendentes do falecido. Dúvida interessante diz respeito ao regime de bens aplicado aos companheiros na hipótese em que, se fosse se casar, teriam obrigatoriamente como regime a separação de bens. Poderiam os companheiros adotar qualquer regime se, em caso de casamento, fosse-lhes imposta a separação obrigatória? A matéria é bastante debatida no Volume 5 desta coleção. De qualquer forma, a proposta que se explica responde esta indagação. Se os companheiros casados fossem, o regime seria o da separação obrigatória (art. 1.641 do CC) e não haveria concorrência sucessória com os descendentes (art. 1.829, I, do CC). Por meio do dispositivo projetado fica claro que, mesmo em não se casando, mas sim convivendo em união estável, não haverá concorrência sucessória nessa hipótese. O Projeto 699/2011 pretende a evitar as críticas de que a união estável traria situação mais vantajosa aos conviventes do que o casamento aos cônjuges. Assim, não
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havendo a concorrência no casamento, pelo projeto, a mesma concorrência não haverá na união estável. Em concorrência com os ascendentes, o companheiro terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes (Projeto Fiúza, art. 1.790, II). A situação do companheiro melhorará bastante com o projeto, no tocante à concorrência com ascendentes. Isso porque, na redação atual do art. 1.790, II, o companheiro tem direito a apenas 1/3 da herança, composta dos bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável. Mesmo assim, os cônjuges ficam em situação privilegiada nos termos do art. 1.837 do CC (“Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau”). Ainda, pelo PL 699/2011, na hipótese de inexistência de descendentes e de ascendentes, o companheiro recolherá a totalidade da herança, afastando-se a odiosa concorrência com os parentes colaterais criada pela redação atual do art. 1.790, III, do Código Civil. Nesse ponto, o projeto merece uma salva de palmas. Como conclusão, ressalte-se que, se aprovado o antigo Projeto Fiúza, resolvidos estarão os problemas referentes à filiação híbrida, a questão da concorrência do companheiro com colaterais do falecido, bem como qualquer hipótese de parte da herança ser considerada vacante e, portanto, de propriedade do Município. Concluindo, vemos com bons olhos a proposta legislativa, sendo certo que, apesar de não ideal, no tocante ao direito sucessório do companheiro, melhorará a situação atual. Acompanharemos o trâmite do projeto de lei em
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questão, bem como o futuro Estatuto das Heranças em fase de elaboração pelo IBDFAM, visando a atualizar a presente obra. Na verdade, esperamos que um bom espírito político guie os encaminhamentos das propostas no futuro. Quem sabe seria até o caso de uniformização dos projetos legislativos, pelo bem do Direito Civil brasileiro e de toda a sociedade. 2.5.2.7 A concorrência sucessória do companheiro com o cônjuge sobrevivente De maneira bastante inusitada, permite o Código Civil de 2002, em situação peculiar, que tanto o cônjuge como o companheiro venham a concorrer pela herança do falecido. Isso mesmo: é possível a concorrência entre cônjuge e companheiro. Isso porque se o cônjuge estiver separado de fato há menos de dois anos ou se estiver separado de fato há mais de dois anos e não tiver culpa pelo fim da união, terá direito sucessório garantido por força de lei. Nesse sentido, lembramos os comentários outrora feitos em relação ao art. 1.830 do CC em vigor, notadamente pela atualização que lhe foi dada com a Emenda Constitucional 66/ 2010, conhecida como Emenda do Divórcio. Ora, após a separação de fato, pode o falecido ter iniciado união estável, mesmo sem ter se separado judicialmente, por expressa autorização do art. 1.723, § 1.º, do CC. Nesse contexto, em determinadas situações, pode o falecido deixar cônjuge e companheiro, estando ambos habilitados a suceder de maneira concorrente. Como resolver a situação não prevista expressamente pelo legislador?
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Trata-se de mais um problema criado pelo Novo Direito Sucessório Brasileiro. E o problema surge justamente porque o Código Civil admite que o separado de fato constitua uma união estável com terceiro (art. 1.723, § 1.º, do CC). Francisco José Cahali não fica alheio à questão, ensinando que “Existe um conflito de normas, na medida em que duas pessoas, pela análise fria dos textos, seriam titulares da mesma herança. Para convivência das regras, caracterizada a união estável, há que se prestigiar o companheiro viúvo, em detrimento do cônjuge, integrante formal de matrimônio falido, apenas subsistente no registro civil. Mas, à evidência, não se privará o cônjuge de eventual meação sobre o patrimônio adquirido na constância do casamento, bens estes a cuja comunhão o companheiro não terá direito, pois adquiridos anteriormente à união estável” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 236). Eduardo de Oliveira Leite aponta solução em outro sentido. Mencionando o entendimento de Guilherme Calmon da Gama, o autor paranaense leciona que “será de considerar, nesta hipótese excepcional, que o companheiro e o cônjuge herdam conjuntamente a herança deixada pelo falecido, devendo-se considerar a conjunção aditiva ‘e’ no inciso III do art. 1.603 Código Civil – de 1916 –, para o fim de se deferir a sucessão legítima” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 234). Anote-se, nesse sentido, que o último doutrinador citado aprovou enunciado na V Jornada de Direito Civil, nos seguintes termos: “Os arts. 1.723, § 1.º, 1.790, 1.829 e 1.830, do Código Civil, admitem a concorrência sucessória entre cônjuge e companheiro sobreviventes na sucessão legítima, quanto aos
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bens adquiridos onerosamente na união estável” (Enunciado n. 525). José Luiz Gavião de Almeida indica uma terceira possibilidade para a solução da questão: “não se pode excluir o direito sucessório do cônjuge, porque não pode ser ele penalizado pela separação que não causou. Mas não parece justo excluir o novo companheiro de qualquer participação da herança, se já constituiu união estável, duradoura e antiga. Fica, nessa hipótese, o companheiro com direito a um terço dos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Para tal entendimento, há que se ampliar a expressão parentes sucessíveis utilizada tanto no inciso III como no inciso IV do art. 1.790, para abranger qualquer pessoa beneficiada pelas regras da sucessão legítima, ou seja, qualquer daquelas constantes da ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 217). Euclides de Oliveira prega a aplicação da justiça salomônica, “em que os bens devam ser partilhados meio a meio entre cônjuge e companheiro sobreviventes” (Direito de herança..., 2005, p. 182). A questão é polêmica, mas, a título de contribuição, apresentamos uma outra solução que nos parece mais justa para o problema. Considerando-se toda a orientação jurisprudencial vigente no sentido de que a separação de fato põe fim ao regime de bens, dividiríamos o patrimônio do falecido em dois montes. O primeiro monte seria composto pelos bens adquiridos na constância fática do casamento. Quanto a esses bens, apenas o cônjuge teria direitos sucessórios, não sendo herdados pelo companheiro.
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A segunda massa de bens seria composta pelos bens adquiridos durante a união estável. Relativamente a tais bens, necessária se faz uma segunda divisão para atender ao caput do art. 1.790 do CC, nos seguintes termos: – se os bens foram adquiridos a título oneroso, a sucessão se defere apenas ao companheiro sobrevivente; – se os bens foram adquiridos a outro título, como o companheiro não é herdeiro, pertencerão apenas ao cônjuge sobrevivente.
A solução em questão é adotada por Eduardo de Oliveira Leite no tocante ao direito real de habitação quando tanto o cônjuge como o companheiro tiverem este direito assegurado. Nesse sentido, ensina o jurista paranaense que “A solução possível é viável desde que pautada pelo bom senso e razoabilidade. Se o único imóvel fora adquirido na constância do casamento, não há dúvida que a habitação deferir-se-ia ao cônjuge sobrevivente, independentemente de eventual meação; se, ao contrário, fosse resultado da união estável, competiria ao companheiro, sobrevivente” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 234). Christiano Cassettari discorda da solução apresentada. Afirma o doutrinador que o casamento se dissolve com o fim do afeto e não com a separação de direito ou com o divórcio. Assim sendo, a separação de fato já demonstra a inexistência de afeto entre o casal, motivo pelo qual seria inconcebível a possibilidade de concorrência entre cônjuge e companheiro. Conclui Cassettari o seguinte: o cônjuge receberá sua meação até a separação de fato e o companheiro sua meação do período compreendido entre a separação de fato e a morte do companheiro, mas, com
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relação à herança, esta será dividida somente entre os parentes do falecido em concorrência com o companheiro sobrevivente, pessoa escolhida pelo morto para constituir o relacionamento afetivo (Direito das sucessões..., 2008, p. 104). Deve ficar claro que o posicionamento proposto pelos autores desta obra vige se mantida a interpretação literal do art. 1.830 do CC, notadamente pela menção à culpa. Todavia, se seguida a interpretação antes proposta, no sentido de não se reconhecer direitos sucessórios ao cônjuge separado de fato, somente o companheiro herdará, na linha da última proposta apontada. Como se pode perceber, trata-se de mais uma questão controvertida, sendo certo que deverá ser solucionada pela jurisprudência no futuro. Ademais, a Emenda Constitucional 66/2010 acabou por tornar a questão ainda mais polêmica, pela nova interpretação que pode ser dada ao art. 1.830 do CC. 2.5.2.8 O direito de habitação do companheiro sobrevivo Contrariamente ao que determinava o parágrafo único do art. 7.º da Lei 9.278/1996, o Código Civil de 2002 não contém regra expressa a respeito do direito real de habitação caso venha a falecer um dos companheiros. O silêncio do Código Civil de 2002 gerou uma pergunta: teria o companheiro sobrevivente direito real de habitação garantido? Duas correntes se formaram para responder à questão. Para a primeira corrente, a resposta é negativa. Isso porque como o art. 1.790 do CC regula inteiramente a sucessão do companheiro, as leis da união estável estão
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definitivamente revogadas (ab-rogação), não havendo omissão do legislador sobre o tema, mas verdadeiro silêncio eloquente – beredts Schweigen. Esse entendimento pode ser percebido pela leitura da obra de Silvio Rodrigues, na atualização de Zeno Veloso (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 119). Aliás, Zeno Veloso explica que “o silêncio eloquente é situação diversa e inconfundível. O legislador não mencionou ou não previu dada situação porque consciente e deliberadamente, não quis fazê-la, não admitia a hipótese, repele-a, rejeita-a, e a falta de menção é o sinal inequívoco desse propósito de cortar, excluir, suprimir. Se se trata não de lacuna, mas de silêncio eloquente da lei, o intérprete não pode preencher o vazio, recorrer à analogia, superar a deficiência, suprir a incompletude, pois simplesmente não há vazio, não há omissão que deva ser composta ou resolvida” (Direito real..., Questões..., 2004, v. 1, p. 415). Francisco José Cahali tem a mesma opinião, afirmando que “em nosso entender houve revogação dos artigos referidos por incompatibilidade com a nova lei” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 233). São adeptos desta corrente Inácio de Carvalho Neto e Mário Luiz Delgado (CAHALI, Francisco José. Família e sucessões..., 2004, v. II, p. 329). Também entende assim o professor Flávio Augusto Monteiro de Barros, diante do que consta do art. 2.043 do atual CC, que teria trazido a revogação de todos os preceitos materiais que não foram incorporados pelo novo Código Civil (Manual..., 2006, v. 4, p. 216).
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Contudo, vale dizer que esse entendimento doutrinário é minoritário para a prática do Direito das Sucessões. A segunda corrente, majoritária, entende que o direito real de habitação dos companheiros continua garantido. Maria Helena Diniz, em verdadeira aula sobre o Direito Intertemporal, afirma que estamos diante de “um caso de antinomia de segundo grau, ou seja, um conflito entre norma anterior especial (art. 7.º da Lei 9.278/1996) e norma posterior geral (art. 1.831 do CC), que, por sua vez, gera antinomia entre o critério da especialidade e o cronológico, para a qual valeria o macrocritério lex posterior generalis non derogat priori speciali, segundo o qual a regra da especialidade prevaleceria sobre a cronológica. Com isso, a Lei 9.278/1996 seria mais forte, ante o princípio da especialidade. (...) ante a dúvida, surgirá então uma antinomia real de segundo grau ou lacuna de conflito (ausência de critério ou metacritério normativo) que só pode ser solucionada pelos critérios apontados pelos arts. 4.º e 5.º da LICC. Deveras, num caso extremo de falta de um critério que possa resolver a antinomia de segundo grau, o critério dos critérios para solucionar o conflito seria o princípio supremo da justiça: entre duas normas incompatíveis dever-se-á escolher a mais justa” (Curso..., 2005, v. 6, p. 148). Essa é a interpretação que prevalece na doutrina e que apoiamos integralmente. Nesse sentido, aliás, prevê o Enunciado n. 117 CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, que: “Art. 1.831. O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art.
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6.º, caput, da CF/88”. Não há dúvidas de que o enunciado doutrinário traz como conteúdo o Direito Civil Constitucional, pois vai buscar na proteção da moradia, prevista na Constituição Federal, um argumento para sustentar a permanência de um direito de natureza privada. Também são adeptos dessa corrente Christiano Cassettari, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Gustavo Rene Nicolau, Jorge Shiguemitsu Fujita, Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira (CAHALI, Francisco José. Família e sucessões..., 2004, v. II, p. 329). Seguindo essa corrente doutrinária, que tem sido ampla a majoritariamente adotada pelos Tribunais Estaduais, há também as seguintes decisões: “Ainda que o direito real de habitação da companheira decorra de lei (Lei 9.278/96, não revogada pelo Código Civil de 2002), para que lhe seja assegurado o direito de habitar a coisa alheia sem a devida instituição através de registro imobiliário, imprescindível a demonstração de que o imóvel pertencia ao ‘de cujus’, o que não ocorre no caso em exame” (TJRS, 7.ª Câmara Cível, Apelação Cível 70021127683, Rel. Ricardo Raupp Ruschel, j. 26.09.2007). “Tem-se entendido que apesar de o Código Civil/2002 (art. 1.831), nas expressões ‘cônjuge sobrevivente’, não conferir expressamente o direito de habitação àquele que viver em união estável, tal direito subsiste no ordenamento jurídico, assegurado pela Lei 9.278/96 (art. 7.º, parágrafo único), porquanto não há incompatibilidade entre ambas as legislações, tanto que a CF, para determinados fins, equiparou o casamento à união estável” (TJRS, 8.ª Câmara Cível, Apelação Cível 70019828201, Rel. Luiz Ari Azambuja Ramos, j. 02.08.2007).
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“O art. 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/96 assegura ao convivente sobrevivente da relação estável direito real de habitação no imóvel em que residia com o falecido, não importando que o bem tenha sido adquirido antes do relacionamento, mesmo porque o direito real de habitação está calcado nos princípios da solidariedade e mútua assistência, ínsitos a união estável. Apelação desprovida” (TJRS, 8.ª Câmara Cível, Apelação Cível 70009713736, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, j. 21.10.2004). “Não se desconhece que o novo Código Civil não dispôs expressamente acerca do direito real de HABITAÇÃO do companheiro, prevendo-o apenas para o cônjuge sobrevivente, na forma do seu art. 1.831. Todavia, reconhece-se a vigência da Lei 9.278/96, que não foi revogada pelo novo Código Civil e é plenamente compatível com os preceitos da Constituição Federal, de valorização da entidade familiar e dos direitos da companheira” (TJMG, 3.ª Câmara Cível, Agravo 1.0145.06.339966-4/001, Rel. Des. Albergaria Costa, j. 19.07.2007). “Extinção de condomínio. Bem imóvel utilizado pela companheira sobrevivente. Residência da família. Direito real de habitação. Independente da contribuição para a aquisição do imóvel, é assegurado pelo novo Código Civil ao cônjuge sobrevivente o direito real de habitação relativo ao único imóvel destinado à residência da família, regra que é estendida à companheira, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade, até porque o Código vigente não revogou a Lei 9.278/96, que também assegura o direito real de habitação quando do falecimento de um dos conviventes da união estável” (TJMG, 11.ª CÂMARA de Direito Privado, Apelação Cível 1.0441.05.001560-7/001, Rel. Duarte de Paula, j. 02.08.2006).
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“União estável. Direito real de habitação estabelecido ao companheiro. Novo código civil. Prevalecimento de vigência do disposto no parágrafo único do art. 7.º da Lei 9.278/96” (TJPR, 12.ª Câmara Cível, Acórdão 6.651, Processo 0417391-5-01, Des. José Cichoki Neto, j. 15.08.2007). “Diante desta circunstância o direito real de habitação deve ser garantido ao companheiro sobrevivente, pois se trata de entidade familiar. Neste sentido se apresenta a disposição da Constituição Federal, art. 226, § 3.º, e a Lei 9.278/96, artigo 7.º, parágrafo único (...). Não se pode alegar a revogação da citada lei, pois ela não é incompatível com o novo Código Civil, não tendo sido revogada pelo mesmo, e, mesmo entendendo-se revogada a Lei, poderia se utilizar o direito real de habitação pela aplicação do artigo 1.831 do Código Civil e da Constituição Federal” (TJPR, 8.ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento 170.813-0, Rel. Des. Celso Rotoli de Macedo, j. 20.04.2005). “Apelação cível. Ação reivindicatória. União estável. Direito real de habitação garantido ao ex-convivente. Art. 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996. Posse injusta. Não configuração. Pressupostos não demonstrados. Carência de ação. Recurso conhecido e improvido. Decisão unânime. – A intenção do legislador, ao assegurar àqueles que viviam em regime de união estável o direito real de habitação foi justamente proteger a entidade familiar, quer seja constituída pelo casamento ou pela união estável, dando efetividade ao disposto no art. 226, § 3.º, da Constituição Federal. – Referida norma tem nítido conteúdo social, de modo que a sua interpretação deve privilegiar o direito à moradia do companheiro sobrevivente, sendo irrelevante se o beneficiário possua ou não direito à meação ou à sucessão do imóvel em que residia a família, bem como a existência de herdeiros ou condôminos, sob pena de esvaziamento da ratio essendi da norma. – Ausente um dos requisitos, no caso, a posse
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injusta do réu, há de ser julgada improcedente a ação reivindicatória” (TJSE, Apelação Cível 0022/2009, 9.ª Vara Cível, Rel. Des. Cláudio Dinart Déda Chagas, j. 17.11.2009). “Apelação cível. Ação executiva lato sensu. Reintegração de posse. Actio manejada pelo espólio em face de ex-companheira do falecido. Bem ocupado pela ré que servia de morada para o casal. Alegação de posse adquirida mediante sucessão universal. I – Data do falecimento. CC/02 incidente sobre a união estável referida. Direito real de habitação estendido à companheira. Art. 1.831 do CC/02. Analogia legis. Incidência do dispositivo à espécie. Novel legislação civil que, de qualquer sorte, não revogou expressamente a Lei 9.278/96. II – Imóvel adquirido antes da união estável. Irrelevância. Direito real que não se confunde com a meação. Direito de habitação reconhecido. Esbulho inexistente. Proteção possessória negada ao espólio. Companheira mantida na posse do bem. Sentença reformada. Recurso provido” (TJSC, Apelação Cível. 2008.001068-9, Joinville, Rel. Henry Petry Junior, 3.ª Câmara de Direito Civil , 08.06.2009). “União estável. Companheiro sobrevivente. Fixação de aluguel em favor do condômino. Descabimento. Direito real de moradia conferido ao companheiro ou cônjuge supérstite que não admite contrapartida aos demais condôminos ou herdeiros, sob pena de se desvirtuar o instituto. Recurso provido” (TJSP, Agravo de Instrumento 622.097-4/1-00, 7.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Alvaro Passo, j. 05.08.2009).
Na mesma linha, acórdão recente do Superior Tribunal de Justiça que, implicitamente, reconheceu o direito real de habitação do companheiro, a merecer o apoio dos presentes autores:
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“Direito Civil. Sucessões. Direito real de habitação do cônjuge supérstite. Evolução legislativa. Situação jurídica mais vantajosa para o companheiro que para o cônjuge. Equiparação da União Estável. 1 – O CC/1916, com a redação que lhe foi dada pelo Estatuto da Mulher Casada, conferia ao cônjuge sobrevivente direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, desde que casado sob o Regime da Comunhão Universal de Bens. 2 – A Lei n.º 9.278/1996 conferiu direito equivalente aos companheiros e o CC/2002 abandonou a postura restritiva do anterior, estendendo o benefício a todos os cônjuges sobreviventes, independentemente do regime de bens do casamento. 3 – A CF (art. 226, § 3.º), ao incumbir o legislador de criar uma moldura normativa isonômica entre a união estável e o casamento, conduz também o intérprete da norma a concluir pela derrogação parcial do § 2.º do art. 1.611 do CC/1916, de modo a equiparar a situação do cônjuge e do companheiro no que respeita ao direito real de habitação, em antecipação ao que foi finalmente reconhecido pelo CC/2002. 4 – Recurso Especial improvido” (STJ, REsp 821.660/DF, 3.ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 14.06.2011, v.u.).
Pois bem, mas para a solução da ausência de previsão do direito real de habitação aos companheiros, o projeto de alteração do Código Civil enuncia expressamente o direito em questão. Assim, o PL 699/2011 pretende acrescentar um parágrafo único ao art. 1.790 do CC, para que dele conste o seguinte: “Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”. Dessa forma, o denominado Projeto Fiúza garante ao companheiro e ao cônjuge
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o direito real de habitação em idênticas condições, pois não só acrescenta um parágrafo ao art. 1.790 como altera a redação do art. 1.831, no seguinte sentido: “haverá direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar, enquanto o cônjuge ou companheiro não constituírem novo casamento ou união estável”. Percebe-se que a norma projetada constitui mais um argumento para dizer que o companheiro tem a seu favor o direito real de habitação. Encerrando o tema, frise-se que o direito real de habitação do companheiro só surge em razão do falecimento e não da extinção em vida da união estável. Nesse sentido: “Direito real de habitação. Descabimento, na hipótese. Uma vez dissolvida a união estável por circunstâncias que não o evento morte, não há falar em direito real de habitação” (TJRS, 7.ª Câmara Cível, Apelação Cível 70020799003, Rel. Ricardo Raupp Ruschel, j. 24.10.2007). No que toca à extinção do direito de habitação, interessante a decisão do Superior Tribunal de Justiça a respeito da renúncia ao direito de usufruto e seus efeitos sobre o direito real de habitação: “Direito real de habitação. Art. 1.611, § 2.º, do Código Civil de 1916. Usufruto. Renúncia do usufruto: repercussão no direito real de habitação. Registro imobiliário do direito real de habitação. Precedentes da Corte. 1. A renúncia ao usufruto não alcança o direito real de habitação, que decorre de lei e se destina a proteger o cônjuge sobrevivente mantendo-o no imóvel destinado à residência da família. 2. O direito real de habitação não exige o registro imobiliário” (STJ, 3.ª T.,
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REsp 565.820/PR, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 16.09.2004, DJ 14.03.2005, p. 323). 2.5.2.9 O debate quanto à inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC De início, é interessante notar que a simples leitura do Código Civil não é suficiente para a compreensão das regras sucessórias referentes ao companheiro. Os Tribunais têm realizado leituras muitas vezes completamente dissociadas do texto da lei, afastando-se do que pretendeu o legislador e mostrando que o Direito não se confunde com a lei. Ora, a lei é fonte do direito, mas não o próprio direito. Se a lei não se enquadra no sistema, cabe à doutrina e à jurisprudência ajustá-la ou extirpá-la do sistema jurídico. Em reforço, não vivemos o império do Estado de Legalidade, mas do Estado de Direito. O debate travado em nossos Tribunais a respeito da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil passa, necessariamente, pela interpretação que recebe o art. 226, § 3.º, da Constituição Federal que ora transcrevemos: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3.º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (destacamos).
O fato de a lei dever facilitar a união estável em casamento significa, para alguns, que o casamento é instituto hierarquicamente superior à união estável e,
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portanto, qualquer vantagem que a lei ordinária atribua à união estável, que supere as vantagens do casamento, seria considerada inconstitucional. Para outros, a determinação constitucional apenas impede que a lei infraconstitucional dificulte a conversão da união estável em casamento. Seria uma norma proibitiva da imposição de qualquer dificuldade, mas não geradora de hierarquia entre as duas formas de constituição de família. São essas duas visões antagônicas do Texto Constitucional que refletem os pensamentos presentes nos julgados que comentaremos a seguir. Assim, passa-se à análise de alguns julgados que cuidam da constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, pontualmente. Deve ficar claro que a tese de inconstitucionalidade é defendida por alguns de nossos maiores sucessionistas, caso de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em sua tese de titularidade defendida na Faculdade de Direito da USP. Suas palavras merecem relevo: “Por todas as letras e críticas, parece ser muito clara a urgente necessidade de exclusão ou reforma que merece o Código Civil, na regulamentação dos direitos sucessórios do companheiro, para que a pecha da inconstitucionalidade seja afastada e para que a recolocação das disposições relativas àqueles que viverem unidos estavelmente encontre seu lugar perfeito e adequado, isto é, que venham a integrar, no campo legislativo da sucessão legítima, o espaço especialmente deferido à ordem da vocação hereditária” (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer..., 2011, p. 378).
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a) Inconstitucionalidade por preterição do companheiro e favorecimento dos colaterais Determinada pessoa falece após dez anos de união estável e deixa como único parente seu irmão (colateral de segundo grau). Em virtude do art. 1790, III, do Código Civil, o companheiro só seria herdeiro dos bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável e, nessa hipótese, caberia ao companheiro 1/3 da herança e ao irmão os 2/3 restantes. Os argumentos do companheiro se baseavam na inconstitucionalidade do dispositivo “vez que a nova lei rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violando os princípios fundamentais da igualdade e dignidade”. Nesse sentido, Renato Felipe de Souza, advogado em Santa Catarina, em seu artigo Anotações sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790, III, do Código Civil brasileiro (disponível em: <www.professorsimao.com.br>. Acesso em: 9 jun. 2008), observa que: “Verifica-se, pois, que o CC/2002, quando tratou da sucessão dos companheiros, rebaixou o status do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge, ao diferenciar o regime de sucessão na herança. Trata-se, pois, de regra inconstitucional, uma vez que vulnerou os princípios da igualdade e da dignidade (...) Assim, uma vez dada à execução a uma norma constitucional de caráter programático, através de lei infraconstitucional, não pode o legislador ordinário retroceder através de edição de lei ordinária superveniente que venha a reduzir o alcance da norma constitucional, sob pena de ser declarada inconstitucional”.
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A decisão relatada pelo Desembargador Ricardo Raupp Ruschel da 7.ª Câmara Cível do Tribunal Gaúcho, de 12 de setembro de 2007, destaca a controvérsia em debate: “no caso em exame, o ponto nodal da discussão diz com o direito ou não de o recorrente, na condição de companheiro, herdar a totalidade da herança de alguém que não deixou descendentes ou ascendentes. Se a ele se confere o status de cônjuge, ou se se lhe impõe as disposições do Código Civil de 2002, onde restou estabelecida, mediante interpretação restritivamente literal, distinção entre cônjuge e companheiro, conferindo àquele privilégio sucessório em relação a este” (destacamos) (TJRS, Acórdão 70020389284). Realmente, o tratamento do cônjuge como herdeiro e do companheiro são absolutamente distintos. Essa diferença de tratamento tem por consequência rebaixar a família decorrente da união estável, como se ainda pudéssemos falar em uma família legítima. Sábias as palavras do Relator: “... importa, ao fim e ao cabo, em conferir odioso tratamento desigual entre cônjuge e companheiro, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei. Não se pode perder de vista, ademais, que a própria Constituição Federal, ao dispor no § 3.º do artigo 226 que, para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros. Tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil (Lei 8.971/94 e Lei 9.278/
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96). Não é aceitável, assim, que prevaleça a interpretação literal do artigo 1.790 do CC/2002, cuja sucessão do companheiro na totalidade dos bens é relegada à remotíssima hipótese de, na falta de descendentes e ascendentes, inexistirem, também, ‘parentes sucessíveis’, o que implicaria em verdadeiro retrocesso social frente à evolução doutrinária e jurisprudencial do instituto da união estável havida até então”.
Por fim, invocou o Relator o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, que ocorreria por parte do irmão da autora da herança em detrimento do companheiro supérstite, que com a falecida convivia desde o ano de 1995, para declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790, III. Afastou-se, então, o irmão da falecida para que a herança fosse integralmente deferida ao companheiro. Essa decisão pioneira encontra, hoje, reflexos em diversos julgados dos Tribunais brasileiros e é compartilhada pelos autores da presente obra. Vejamos duas ementas jurisprudenciais que merecem relevo, a primeira do próprio Tribunal Gaúcho e a segunda do Tribunal Paulista: “Agravo de instrumento. Inventário. Companheiro sobrevivente. Direito à totalidade da herança. Parentes colaterais. Exclusão dos irmãos da sucessão. Inaplicabilidade do art. 1.790, inc. III, do CC/02. Incidente de inconstitucionalidade. Art. 480 do CPC. Não se aplica a regra contida no art. 1.790, inc. III, do CC/02, por afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de igualdade, já que o art. 226, § 3.º, da CF, deu tratamento paritário ao instituto da união estável em relação ao casamento. Assim, devem ser excluídos da sucessão os parentes colaterais, tendo o companheiro o direito à totalidade da herança.
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Incidente de inconstitucionalidade arguido, de ofício, na forma do art. 480 do CPC. Incidente rejeitado, por maioria. Recurso desprovido, por maioria” (TJRS, Agravo de Instrumento 70017169335, Porto Alegre, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, DJERS 27.11.2009, p. 38). “Inventário. Sucessão do companheiro. Inconstitucionalidade do art. 1790 III, do CC/02. Falecida a companheira, sem deixar descendentes ou ascendentes, herda com exclusividade seu companheiro. Interpretação sistemática da atual ordem constitucional. Art. 1.829, III, CC/02 c/c 226 CF. Falecido o companheiro-herdeiro no curso do inventário, sucede-o seu filho, único herdeiro, ao qual devem ser adjudicados todos os bens inventariados, em detrimento dos colaterais da autora da herança. Recurso provido” (TJSP, Agravo de Instrumento 654.999.4/7, Acórdão 4034200, São Paulo, 4.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Teixeira Leite, j. 27.08.2009, DJESP 23.09.2009).
Ademais, como se extrai de julgados paulistas da 4.ª Câmara de Direito Privado, “uma interpretação literal e exegética do artigo 1.790 – tão ao gosto do pensamento liberal que orientou o Código Civil de 1916 – levaria à fácil conclusão de que o regime radicalmente distinto da sucessão do companheiro nada mais é do que a melhor expressão da norma constitucional, que não equiparou o casamento à união estável, mas, ao invés, conferiu primazia ao primeiro. Essa conclusão, a meu ver, não pode prevalecer, sob a ótica civil-constitucional. Óbvio que o casamento não se equipara à união estável, podendo gerar – como gera – direitos e deveres distintos a cônjuges e companheiros. O que se discute é a possibilidade da legislação infraconstitucional alijar, de modo tão grave, alguns direitos fundamentais anteriormente assegurados a
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partícipes de entidades familiares constitucionalmente reconhecidas, em especial o direito à herança” (TJSP, Agravo de Instrumento 567.929.4/0-00, j. 11.9.2008 e Agravo de Instrumento 654.999-4/7-00, j. 27.08.2009). Várias decisões se sucederam a respeito da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, merecendo ainda colação, para os devidos aprofundamentos, com menção à presente obra: “Arrolamento. Companheiro sobrevivente. Reconhecimento incidental da união estável, à vista das provas produzidas nos autos. Possibilidade. Exclusão do colateral. Inaplicabilidade do art. 1.790, III, do CC, por afronta aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana e leitura sistematizada do próprio Código Civil. Equiparação ao cônjuge supérstite. Precedentes. Agravo improvido” (TJSP, Agravo de Instrumento 609.024-4/4-00, São Paulo, Rel. Caetano Lagrasta, 8.ª Câmara de Direito Privado, j. 06.05.2009).
Contudo, a questão não é pacífica, havendo decisões que determinam a suspensão do processo, pois, por se tratar de inconstitucionalidade, a questão deve ser decidida pelo Órgão Especial do Tribunal Estadual, de acordo com o art. 97 da Constituição Federal. Nessa linha de pensamento: “Agravo de instrumento. Constitucional. Arguição de inconstitucionalidade acatada pelo magistrado de 1.º grau. Artigo 1.790, inciso III, do Código Civil. Recurso que visa o reconhecimento da constitucionalidade da norma legal. Competência para julgá-la do órgão especial. Art. 97 da Constituição Federal. Suspensão do julgamento do recurso de agravo. Remessa dos autos ao órgão especial. 1. Nos
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tribunais em que há órgão especial, a declaração de inconstitucionalidade de Lei ou ato normativo do poder público, tanto a hipótese de controle concentrado como na de incidental, por força da norma contida no art. 97 da Constituição Federal, somente pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta dos membros que o compõem. 2. Se os integrantes do órgão fracionário – Câmara Cível – se inclinam em manter a arguição de inconstitucionalidade formulada pelos recorridos em 1.º grau, o julgamento do recurso de agravo de instrumento deve ser suspenso, com a remessa dos autos ao órgão especial para que o incidente de inconstitucionalidade seja julgado, ficando a câmara, quando os autos lhe forem restituídos para que o julgamento do recurso tenha prosseguimento, vinculada, quanto à questão constitucional, à decisão do órgão especial” (TJPR, Agravo de Instrumento 0536589-9, Curitiba, 12.ª Câmara Cível, Rel. Des. Costa Barros, DJPR 29.06.2009, p. 223). “Agravo de instrumento. Inventário. Companheiro sobrevivente. Direito à totalidade da herança. Colaterais. Exclusão do processo. Cabimento. Inconstitucionalidade. Artigo 1.790, inciso III do Código Civil. A decisão agravada está correta. No caso, apenas o companheiro sobrevivente tem direito sucessório, não havendo razão para os parentes colaterais permanecerem no inventário. As regras sucessórias previstas para a sucessão entre companheiros no Novo Código Civil são inconstitucionais. Isso porque a nova Lei substantiva – artigo 1.790, inciso III do Código Civil – rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite. Violação dos princípios fundamentais da igualdade e da dignidade. Diante do reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei acima citada, deve o incidente de inconstitucionalidade ser apreciado pelo Tribunal Pleno desta Corte de Justiça, mediante seu Órgão Especial, nos termos do artigo 97 da Constituição Federal, artigo 481 e seguintes do Código de Processo Civil e artigo 209 do RITJRGS. Incidente de inconstitucionalidade
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suscitado” (TJRS, Agravo de Instrumento 70027138007, Porto Alegre, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, j. 18.12.2008, DOERS 11.03.2009, p. 31).
Consigne-se que uma terceira corrente afasta de plano a inconstitucionalidade e determina que os bens onerosamente adquiridos na constância da união estável sejam entregues ao companheiro (1/3) e concorrência com os colaterais (2/3). Em suma, apega-se à literalidade da norma: “Agravo de instrumento. Inventário. Companheiro sobrevivente. Herança. Participação. Concorrência com descendentes. Artigo 1.790 do Código Civil. Privilégio em relação a cônjuge sobrevivente. Alegação de inconstitucionalidade. Ofensa ao princípio da isonomia. Inexistência. A Constituição Federal não equiparou o instituto da união estável ao do casamento, tendo tão somente reconhecido aquele como entidade familiar (art. 226, § 3.º, CF). Dessa forma, é possível verificar que a legislação civil buscou resguardar, de forma especial, o direito do cônjuge, o qual possui prerrogativas que não são asseguradas ao companheiro. Sendo assim, o tratamento diferenciado dado pelo Código Civil a esses institutos, especialmente no tocante ao direito sobre a participação na herança do companheiro ou cônjuge falecido, não ofende o princípio da isonomia, mesmo que, em determinados casos, como o dos presentes autos, possa parecer que o companheiro tenha sido privilegiado. O artigo 1.790 do Código Civil, portanto, é constitucional, pois não fere o princípio da isonomia” (TJDF, Recurso 2009.00.2.001862-2, Acórdão 355.492, 1.ª Turma Cível, Rel. Des. Natanael Caetano, DJDFTE 12.05.2009, p. 81). “Ação de declaração de união estável. Reconhecimento da convivência com animus maritallis somente a partir do ano
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de 2002. Inexistência de prova robusta capaz de comprovar as alegações autorais quanto ao início do relacionamento amoroso no ano de 1992. Alegada inconstitucionalidade dos artigos 1.790, inciso III e 1.845 do novo Código Civil que se rejeita. À companheira apenas se defere o direito sucessório à herança deixada pelo companheiro falecido, quando verificada a ausência de quaisquer descendentes, ascendentes ou herdeiros colaterais. Apelos improvidos. Sentença mantida” (TJRJ, Apelação 0005772-50.2007.8.19.0209 (2008.001.51945), 10.ª Câmara Cível, Rel. Des. Celso Peres, j. 21.01.2009). “Vigora, portanto, na hipótese, a norma do artigo 1.790, III, do Código Civil. Até mesmo porque, da leitura do artigo 226, § 3.º, CF/88, não se conclui que o casamento seja igual, para todos os efeitos, à união estável, já que a norma maior determina que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, nada mais. No caso em exame, o agravo deve ser provido, devendo ser alterada a decisão agravada, aplicando-se a norma expressa do artigo 1.790, III, do Código Civil. Do exposto, voto pelo provimento do recurso, para que sejam mantidos os herdeiros colaterais no inventário” (TJRJ, Agravo de Instrumento 72023423833, 8.ª Câmara Cível, j. 12.06.2008). “Ocorrida a morte na vigência do atual Código, suas regras sucessórias são aplicáveis. Ele trata sobre sucessão e união estável, não deixando espaço para vigência de disposições de leis anteriores que tratavam de forma diversa dessas matérias. Houve revogação do disposto no art. 2.º, da Lei n. 8.971/94. Não há a inconstitucionalidade pretendida. O art. 226 da Constituição Federal não equipara o casamento à união estável. Se o fizesse, não se preocuparia em que a lei facilitasse a conversão da primeira em casamento, porque, estando os dois institutos equiparados, a conversão seria absolutamente inútil” (TJSP, Agravo de
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Instrumento 641.861-4/8, 10.ª Câmara, Rel. Des. Mauricio Vidigal, j. 25.08.2009).
Como se pode notar, a questão é controversa, havendo uma verdadeira Torre de Babel na jurisprudência nacional. Mas não é só, havendo outra tese de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. b) Inconstitucionalidade por privilegiar a união estável se comparada ao casamento Em determinado inventário em trâmite perante uma das comarcas do Estado de São Paulo, discutia-se qual seria o quinhão sucessório que pertenceria à companheira do falecido, que deixara três descendentes exclusivos como herdeiros (filhos de uma união anterior) e um filho comum (julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Agravo 467.591-4/7-00, 9.ª Câmara de Direito Privado, data de registro: 29.01.2007). A decisão de primeira instância determinou que a companheira ficasse com 50% dos bens adquiridos a título oneroso no curso da união estável, a título de meação, e que os outros 50% fossem partilhados da seguinte forma: a companheira receberia metade do que couber a cada um dos filhos (art. 1790, II, do CC). A companheira agravou da decisão objetivando debater a celeuma decorrente da filiação híbrida, construção de Giselda Hironaka. Isso porque, se o falecido deixou filhos exclusivos e filhos comuns, a doutrina se digladia quanto à quota que caberá ao companheiro, ou seja, se quota igual a dos filhos (art. 1.790, I, do CC) ou apenas metade da quota (art. 1.790, II, do CC). A companheira
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entendia que teria quota igual e os filhos, por óbvio, admitiam que ela teria apenas metade da quota. Surpreendeu a decisão do Tribunal que simplesmente afastou a aplicação do dispositivo por entendê-lo inconstitucional. De acordo com o relator Desembargador Grava Brasil, “como se depreende dos mencionados textos legais, o cônjuge, casado com comunhão parcial, tem direito à meação dos bens adquiridos a título oneroso e concorre com os descendentes ou, na sua falta, com os ascendentes, em relação aos bens particulares deixados pelo de cujus. O sentido de restringir a sucessão aos bens particulares decorre do reconhecimento da meação sobre os bens comuns, resguardando e amparando os direitos dos descendentes (ou ascendentes), evitando incidir sobre um mesmo patrimônio direito de meação e direito de sucessão. Todavia, se essa interpretação se aplica – e nesse sentido vem sendo pacificada – ao cônjuge casado no regime da comunhão parcial, por força do artigo 226, § 3.º, da Constituição Federal, e do artigo 1.725, do Código Civil, o mesmo tratamento haverá de ser dispensado à união estável. Eis, no entanto, que se invoca o artigo 1.790, do Código Civil, que, em conflito com os dispositivos antes mencionados, disciplina o direito sucessório do companheiro de forma diferenciada, atribuindo-se, em princípio, direito de meação e direito sucessório incidindo sobre o mesmo monte-mor. Em outras palavras, a interpretação isolada do dispositivo e sua aplicação irrestrita, levaria, necessariamente, a conceder tratamento privilegiado ao companheiro, em manifesta violação da equidade com o cônjuge, e em prejuízo direto ao herdeiro” (destacamos). Desse modo, conclui o julgador: “Em tese, os companheiros poderão estabelecer contrato escrito, afastando a
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comunicação dos bens adquiridos onerosamente, todavia, reconhecida a regularidade do pacto, aplicar-se-ia a regra sucessória do artigo 1.790, impedindo que o companheiro ficasse sem nenhuma participação. No caso dos autos, por exemplo, ausente contrato escrito, inexistindo bens particulares e reconhecida a meação, a parte da meação que comporá a herança, deverá ser repartida apenas entre os herdeiros” (destaca-se). Aplicou o julgado a máxima pela qual se há meação, não haverá concorrência sucessória com os descendentes. Fato é que a regra é prevista pela lei na hipótese de falecimento do cônjuge (art. 1.829, I, do CC), em razão do entendimento do julgador, foi aplicada também à união estável, afastando-se do texto legal (art. 1.790 do CC). Reformou-se, de ofício, o plano de partilha apresentado, determinando que os interessados apresentem novo plano, com a exclusão da concorrência sucessória da companheira, preservando-se apenas a meação. Em sentido muito próximo, consigne-se que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal já entendeu pela necessidade de adequação do art. 1.790 do Código Civil, apesar de não concluir pela sua inconstitucionalidade: “Direito das sucessões. Apelação cível. Inventário. Cerceamento de defesa. Inocorrência. União estável. Direito sucessório do companheiro. Privilégio em detrimento do cônjuge. Adequação do art. 1.790 do Código Civil. A diferenciação dos direitos sucessórios previstas no Código Civil entre o cônjuge e companheiro coloca este em situação de vantagem em relação àquele, à medida que, de acordo com as novas regras, o companheiro sobrevivente, além da meação a que tem direito em relação aos bens adquiridos
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onerosamente na vigência da união estável, passou a fazer jus também a uma quota parte na sucessão, em concorrência com os herdeiros comuns. 3. Em virtude das inúmeras críticas dirigidas aos artigos 1.790 e 1.829 do Código Civil, certamente será necessária a reforma do texto legal para equilibrar o desejo do legislador constituinte aos dispositivos constantes do código. Contudo, não é o caso de declaração de inconstitucionalidade, mas de adequação da norma ao caso concreto, buscando a solução que melhor distribua a justiça. 4. Exclusão do direito do companheiro à concorrência na herança com os demais herdeiros, eis que já tem direito a meação do bem comum do casal. 5. Recurso provido. Sentença reformada, com a expedição de novo formal de partilha” (TJDF, Recurso 2006.05.1.004528-7, Acórdão 375.003, 3.ª Turma Cível, Rel. Des. Mario-Zam Belmiro, DJDFTE 14.09.2009, p. 209).
Contudo, é de se frisar que o próprio Tribunal de Justiça de São Paulo em caso análogo afastou a tese da inconstitucionalidade e concedeu ao companheiro a meação e a participação sucessória. Vejamos: “Tecem os agravantes algumas considerações acerca da inconstitucionalidade do inciso I do artigo 1.790, do CC, que prevê que o companheiro participará da sucessão do outro e, concorrendo com os filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho. Segundo os agravantes, tal disposição é inconstitucional, pois esbarra no princípio de que aos conviventes não pode ser dado mais que aos cônjuges. Entretanto, em que pese não ter a Constituição Federal equiparado o instituto da união estável ao do casamento, tendo tão somente estabelecido, no artigo 226, § 3.º, que ‘para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’, da leitura desse mesmo dispositivo se vê que
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realmente não se poderia concluir pela equiparação da união estável com o casamento, pois tal entendimento implicaria na desnecessidade de se converter a união estável. 3. Não se entrevê, pois a propalada violação ao princípio da isonomia, não sendo caso de discutir a existência de privilégio de um em detrimento do outro (casamento/união estável), uma vez que reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, apenas cuidou a legislação pátria de destinar regramento diverso para o cônjuge e para o companheiro” (TJSP, Agravo de Instrumento 578.361-4/2-00, 10.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Testa Marchi, j. 1.º.12.2009).
Em conclusão, dos diversos julgados apontados, muitos deles apontam a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, mas seus fundamentos são diversos. Alguns acórdãos, por considerarem que o companheiro não deve concorrer com parentes colaterais do falecido; e outros, por entenderem que o companheiro não pode ter situação de privilégio em relação ao cônjuge e, portanto, se o cônjuge que tem a meação não terá concorrência sucessória com os descendentes, o mesmo deve ocorrer com relação ao companheiro. Existem também as decisões que concluem pela ausência de inconstitucionalidade do art. 1.790, pois a Constituição Federal de 1988 trata de maneira diversa o casamento e a união estável, o que justifica o tratamento diferenciado no âmbito sucessório. Nessa linha, já decidiram o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP, Processo 0434423-72.2010.8.26.0000 (990.10.434423-9, Órgão Especial, Rel. Corrêa Viana, j. 14.09.2011) e o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS, Incidente 70032664054,
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Antônio Prado, Órgão Especial, Rel. Des. Luiz Felipe Silveira Difini, j. 16.11.2009, DJERS 03.12.2009, p. 1). De toda sorte, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Paraná entendeu de forma diversa, ou seja, pela inconstitucionalidade do inc. III do art. 1.790, por introduzir tratamento desfavorável ao convivente (TJPR, Incidente de Declaração de Inconstitucionalidade 536.589-9/01, da 18.ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Suscitante: 12.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Rel. Des. Sérgio Arenhart, j. 04.12.2009). Na mesma linha, decisão de 2011 do Superior Tribunal de Justiça que remete o processo ao Órgão Especial daquele Tribunal, em observância ao art. 97 da CF/1988, que consagra a reserva de plenário: “Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade. Art. 1.790, incisos III e IV do Código Civil de 2002. União estável. Sucessão do companheiro. Concorrência com parentes sucessíveis. Preenchidos os requisitos legais e regimentais, cabível o incidente de inconstitucionalidade dos incisos, III e IV, do art. 1790, Código Civil, diante do intenso debate doutrinário e jurisprudencial acerca da matéria tratada” (STJ, AI no REsp 1.135.354/PB, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4.ª Turma, j. 24.05.2011, DJe 02.06.2011).
Atualizando a obra, destaque-se que, em outubro de 2012, o Órgão Especial dessa Corte Superior concluiu pela não apreciação dessa inconstitucionalidade suscitada pela Quarta Turma, eis que o recurso próprio para tanto deve ser o extraordinário, a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (publicado no Informativo n. 505 do STJ). Em suma, a questão da inconstitucionalidade não foi resolvida
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em sede de Superior Tribunal de Justiça, aguardando-se eventual julgamento pelo STF. Com a decisio, o recurso especial deve voltar à Quarta Turma para ser julgado apenas nos aspectos infraconstitucionais. Por todo o exposto, constata-se que a questão da sucessão do companheiro continua por demais tormentosa, necessitando de um árduo trabalho da doutrina e dos Tribunais para ser solucionada definitivamente. Cumpre aguardar novos posicionamentos dos Tribunais Superiores, para que a questão atinja um mínimo de estabilidade.
2.6 A SUCESSÃO LEGÍTIMA NA LINHA COLATERAL Conforme visto nos capítulos anteriores, com relação aos colaterais pudemos observar o seguinte: 1.º) Somente são considerados herdeiros os parentes colaterais do falecido até o 4.º grau (arts. 1.592 e 1.839 do CC). São herdeiros: irmãos, tios, sobrinhos, tio-avô, sobrinhoneto e primo-irmão. 2.º) Os colaterais não são herdeiros necessários e, portanto, para excluí-los da sucessão, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar (art. 1.850 do CC). Por esse fato, são denominados de herdeiros facultativos. Diante disso, não há que se falar em deserdação do parente colateral; basta que o testador faça testamento deixando seus bens para terceiros para que automaticamente o colateral nada receba.
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3.º) Em havendo descendentes, ascendentes ou cônjuge sobrevivente, nas condições previstas no art. 1.830 do CC, os colaterais nada herdam, estando excluídos da sucessão. 4.º) Em havendo companheiro sobrevivente, não deixando o falecido descendentes ou ascendentes, os colaterais serão herdeiros (art. 1.790, III, do CC), da seguinte forma: da totalidade dos bens não adquiridos a título oneroso na constância da união estável ou concorrentes na proporção de 1/3 dos bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável.
Superadas as observações iniciais, parte-se para a análise das regras específicas sobre a sucessão legítima na linha colateral. De início, em relação aos irmãos (colaterais de 2.º grau), é preciso lembrar a sua classificação. Primeiramente, há os irmãos bilaterais ou germanos, que são aqueles que descendem do mesmo pai e da mesma mãe. Para alguns, esse parentesco é chamado de complexo ou completo, pois vem tanto do pai quanto da mãe. Deixando o falecido apenas irmãos bilaterais (parentes em 2.º grau), terão eles direito ao mesmo quinhão da herança. Note-se que no exemplo abaixo o pai de A é premorto, ou seja, faleceu antes de A. Vejamos o esquema sucessório:
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Já os irmãos unilaterais, popularmente chamados de meio-irmãos, são aqueles que descendem de apenas um progenitor (art. 1.842 do CC). Para alguns, o parentesco com o irmão unilateral e seus descendentes seria simples ou incompleto. Aprofundando, divide-se em: a) irmãos unilaterais consanguíneos – são os que têm o mesmo pai, mas mães diferentes; e b) irmãos unilaterais uterinos – são os que têm a mesma mãe, mas pais diferentes. Ilustrando, deixando o falecido apenas irmãos unilaterais (parentes em 2.º grau), terão eles direito ao mesmo quinhão da herança. Vejamos:
Pois bem, se em uma determinada situação sucessória, concorrem irmãos bilaterais e unilaterais, os irmãos unilaterais recebem metade do que recebem os bilaterais. É o que prevê o art. 1.841 do CC. Vejamos o diagrama:
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A regra que se estabelece é que o meio-irmão recebe meia quota (x) e, portanto, o irmão bilateral recebe o dobro deste (2x). Exemplificando, imaginemos a hipótese em que o falecido deixa dois irmãos bilaterais e três irmãos unilaterais. Para cada irmão bilateral deve-se atribuir 2x (2x X 2 = 4x). Para cada irmão unilateral atribuímos x (x X 3 = 3x). Somemos as quotas de todos os irmãos: 4x + 3x = 7x. O número 7 será o divisor da fração, e a herança será distribuída da seguinte forma: – para cada irmão bilateral, a fração de 2/7 da herança; – para cada irmão unilateral, 1/7 da herança.
Vejamos essa divisão, de forma esquematizada:
Para facilitar o cálculo, lançamos na tabela a seguir as situações e os resultados da divisão da herança:
Número de irmãos bilaterais
Número de irmãos unilaterais (atribuir 1x para cada)
Soma das quotas
Divisão da herança
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(atribuir 2x para cada) 1 Quota – 2x 1 Quota – 2x 2 Quota – 4x 2 Quota – 4x 2 Quota – 4x 3 Quota – 6x 3
1 Quota – 1x
2 Quota – 2x
1 Quota – 1x
2 Quota – 2x
3 Quota – 3x
2 Quota – 2x 3 Quota – 3x
3x
2/3 para o bilateral e 1/3 para o unilateral
4x
2/4 para o bilateral e 1/4 para cada unilateral
5x
2/5 para cada bilateral e 1/5 para o unilateral
6x
2/6 para cada bilateral e 1/6 para cada unilateral
7x
2/7 para cada bilateral e 1/7 para cada unilateral
8x
2/8 para cada bilateral e 1/8 para cada unilateral
9x
2/9 para cada bilateral e 1/9
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Quota – 6x 3 Quota – 6x 4 Quota – 8x
para cada unilateral 4 Quota – 4x
3 Quota – 3x
10x
2/10 para cada bilateral e 1/10 para cada unilateral
11x
2/11 para cada bilateral e 1/11 para cada unilateral
Poder-se-ia até alegar a inconstitucionalidade do art. 1.841 do CC, pois o dispositivo traria uma discriminação dos irmãos, o que seria uma violação à isonomia constitucional prevista no art. 5.º, caput, do Texto Maior. Os presentes autores não pensam de forma. Isso porque o princípio da isonomia pode ser consubstanciado naquela velha oração de Ruy Barbosa no sentido de que a lei deve tratar de maneira igual os iguais, e de maneira desigual os desiguais. Os irmãos bilaterais e unilaterais estão em situação de desigualdade fática, justificando-se o tratamento desigual que lhe é dado quanto à herança. Assim, pela especialidade constante da segunda parte da isonomia, justifica-se a constitucionalidade do dispositivo privado. Esse entendimento é compartilhado por Inácio de Carvalho Neto (A constitucional... Disponível em: <www.flaviotartuce.adv.br>. Acesso em: 31 ago. 2006). Seguindo no estudo da sucessão dos colaterais, salientamos que na linha colateral existe um único caso de representação, presente quando o sobrinho do falecido
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(parente em 3.º grau) concorrer com o irmão do morto (parente em 2.º grau). Imagine-se a hipótese em que A falece, deixando seu irmão bilateral C (parente em 2.º grau) e seus sobrinhos D e E (parentes em 3.º grau), filhos de B, seu irmão bilateral premorto. A herança se divide da seguinte forma: – C: 50% por direito próprio (partilha por cabeça); – D e E: 25% para cada por representação (partilha por estirpe).
Vejamos, mais uma vez, de forma esquematizada:
Imagine-se ainda uma segunda hipótese, de concorrência entre os irmãos do morto (parentes em 2.º grau) e os sobrinhos do morto (parentes em 3.º grau). A falece, deixando seu irmão bilateral C (parente em 2.º grau), seus sobrinhos E e F (parentes em 3.º grau), filhos de B, seu irmão bilateral premorto e seu sobrinho G, (parente em 3.º grau), filho de D, seu irmão unilateral premorto. A herança se divide da seguinte forma: – C (irmão bilateral): 2/5 da herança por direito próprio (partilha por cabeça);
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– E e F (sobrinhos representando irmão bilateral): 1/5 para cada por representação (partilha por estirpe); – G (sobrinho representando irmão unilateral): 1/5 da herança por representação (partilha por estirpe).
Percebe-se que e E e F recebem o que seu pai receberia se vivo fosse. Da mesma forma, G recebe o que seu pai receberia se vivo fosse. Como E e F são filhos de irmão bilateral, herdam o dobro do que herda G, filho de irmão unilateral (art. 1.841 do CC). Vejamos o gráfico:
Para dar sequência às hipóteses de sucessão do colateral, temos a situação em que A falece sem deixar irmãos, mas apenas sobrinhos. Deixando somente estes (sobrinhos – todos parentes de 3.º grau), filhos de irmãos bilaterais, todos receberão quinhão igual e por direito próprio (art. 1.843, § 3.º, do CC). Não havendo parentes de grau mais próximo concorrendo com parentes de grau mais remoto, não há que se falar em direito de representação (art. 1.843, § 1.º, do CC). Esquematizando:
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Da mesma forma, se A falece e só deixa sobrinhos (todos parentes de 3.º grau), filhos de irmãos unilaterais (art. 1.843, § 3.º, do CC), nesse caso todos receberão quinhão igual e também por direito próprio. Não havendo parentes de grau mais próximo concorrendo com parentes de grau mais remoto, não há que se falar em representação (art. 1.843, § 1.º). Eis o gráfico:
Cabe ainda a análise da concorrência sucessória entre sobrinhos filhos de irmão bilateral e sobrinhos filhos de irmão unilateral. Determina a lei que se concorrerem
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filhos de irmãos bilaterais com filhos de irmãos unilaterais, cada um destes herdará a metade do que herdar cada um daqueles (art. 1.843, § 2.º, do CC). Nesse sentido, se o falecido deixou como únicos herdeiros os sobrinhos D e E, filhos de seu irmão bilateral B, premorto, e seus sobrinhos F e G, filhos de seu irmão unilateral C, premorto, todos os sobrinhos herdarão por direito próprio – a partilha será por cabeça e não haverá representação – e a herança será divida da seguinte maneira: – 2/6 para o sobrinho D; – 2/6 para o sobrinho E; – 1/6 para o sobrinho F; – 1/6 para o sobrinho G.
Note-se que no caso de concorrência de sobrinhos que sejam filhos de irmãos unilaterais e bilaterais, a tabela de cálculos que usamos para os irmãos é plenamente aplicável, pois os sobrinhos herdam por direito próprio, não havendo direito de representação.
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Ainda ilustrando, se o falecido deixou como únicos herdeiros os sobrinhos E e F, filhos de seu irmão bilateral B, premorto, e seus sobrinhos G e H, filhos de seu irmão unilateral C, premorto, e seu sobrinho I, filho de seu irmão bilateral D, todos os sobrinhos herdam por direito próprio (a partilha será por cabeça, e não haverá representação), e a herança será divida da seguinte maneira: – 2/8 para o sobrinho E; – 2/8 para o sobrinho F; – 2/8 para o sobrinho I; – 1/8 para o sobrinho G; – 1/8 para o sobrinho H.
Vejamos o diagrama:
Cabe igualmente o estudo de uma situação bastante especial e que traz exceção à regra. É o estudo da concorrência dos colaterais de 3.º grau. O tio do morto e o sobrinho do morto são colaterais de 3.º grau. Vamos contar o grau de parentesco para, então, verificarmos a questão sucessória.
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O tio do falecido é seu parente colateral de 3.º grau, pois um grau separa o falecido de seu pai (“subindo”), o outro separa seu pai de seu avô (“subindo”), e o último separa seu avô de seu tio (“descendo”). O sobrinho do morto também é seu parente colateral em 3.º grau, pois um grau separa o sobrinho do morto de seu pai, que é irmão do morto (“subindo”), outro grau separa o irmão do morto de seu pai (“subindo”), e o último grau separa o pai do morto dele mesmo (“descendo”). Vejamos o diagrama de parentesco:
Tendo em vista que ambos são parentes de 3.º grau, pela regra geral a herança deveria ser partilhada igualmente entre o tio do morto e o sobrinho do morto, ou seja, 50% para cada um. Entretanto, o legislador optou por solução diferente, deixando 100% da herança para o sobrinho do falecido e nada para o tio do morto (art. 1.843, caput, do CC).
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Não se trata, por óbvio, de direito de representação, porque, conforme já dito e repetido, só há direito de representação se houver diversidade de graus. No caso em estudo, só temos parentes de 3.º grau. Transcreve-se o dispositivo para a devida compreensão: “Art. 1.843. Na falta de irmãos, herdarão os filhos destes e, não os havendo, os tios”. E agora a sua tradução: na falta de irmãos do morto (parentes em 2.º grau do falecido), herdarão os filhos destes (sobrinhos do morto e, portanto, parentes em 3.º grau do falecido). Realmente, pela regra geral, parente de grau mais próximo – irmão – exclui o de grau mais remoto – sobrinho). Por fim, não havendo sobrinhos (colateral de 3.º grau), herdará o tio do morto (também colateral de 3.º grau e por isso a lei diz “e, não os havendo, os tios”). No presente momento, pode o estudioso do Direito Sucessório formular a seguinte pergunta: por que a opção do legislador em beneficiar o sobrinho do morto em detrimento do tio do falecido? Como primeiro argumento, pode-se pensar que o falecido tenha uma relação afetiva mais estreita com seus sobrinhos (filhos de sua irmã ou irmão) do que com seu tio (irmão de seu pai ou de sua mãe). Como segundo argumento, imagina o legislador que enquanto o sobrinho do morto é alguém jovem, iniciando a vida, o tio do falecido é mais velho e já está com sua vida resolvida. Assim, melhor beneficiar aquele que mais precisaria de ajuda e auxílio. O último argumento parece-nos bem plausível, mas, na realidade, a regra toma por base uma questão histórica que remonta ao direito romano, mais especificamente às Novelas CXVIII (543 d.C.) e CXXVII (548 d.C.) de Justiniano.
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As Novelas CXVIII e CXXVII de Justiniano modificam profundamente a questão da sucessão na linha colateral. Explica Moreira Alves, ao mencionar a sucessão dos ingênuos, ou seja, pessoas livres que nunca foram escravas, que se o de cujus deixar somente irmãos e irmãs germanos e seus filhos, os irmãos herdam por cabeça (direito próprio) e, caso um deles seja falecido e tenha filhos, os sobrinhos sucedem por representação (partilha por estirpe) (Direito romano, 1986, v. 2, p. 482). Eugéne Petit, em seu Tratado Elementar de Direito Romano, conclui que se o falecido deixasse apenas sobrinhos, apesar da Novela CXVIII nada mencionar, a lógica e espírito geral da Novela impunha a divisão por estirpes, ou seja, o direito de representação seria mantido ainda que só sobrinhos houvesse (lembra que essa é a posição de Accursio, seguido por Dumoulin, mas não de Azón, para quem a herança seria partilhada por cabeça) (Tratado elementar..., 2003, p. 801). Dessa forma, conclui o doutrinador que os sobrinhos do morto sempre herdavam, no direito romano, por representação e nunca por direito próprio. Da leitura da Novela CXVIII, concluindo-se que os sobrinhos sempre herdam por representação (são parentes de 3.º grau, mas representam herdeiros de 2.º grau), facilmente se conclui que se concorrerem com os tios do falecido (parentes de 3.º grau), os sobrinhos recebem 100% da herança, pois estão representando seus pais (irmãos do falecido), que são parentes de 2.º grau. Recebem tudo, pois seriam considerados, em razão da representação, parentes de 2.º grau.
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Sobre a questão, ao comentar as Ordenações Filipinas de 1.603 em suas Instituições de Direito Civil português, esclarece Coelho da Rocha que os colaterais sucedem na falta de descendente e ascendente na ordem seguinte: o direito de representação não aproveita senão aos sobrinhos, filhos de irmão ou irmã do defunto e, por isso, os tios do defunto, ainda que estejam no mesmo grau, são excluídos pelos sobrinhos deste, mas não pelos filhos dos sobrinhos (Instituições..., 1907, t. I, p. 235). Teixeira de Freitas, ao analisar o art. 972 de sua Consolidação das leis civis, sobre a classe dos colaterais, explica que os sobrinhos sucedem por direito de representação e, por isso, precedem aos tios do falecido, posto que, como eles, sejam colaterais em 3.º grau. É como se seus pais (irmãos do morto e parentes de 2.º grau) vivos fossem. Todos os demais colaterais, com exceção dos sobrinhos, herdam per capta, não havendo representação (Novella 118, Capítulo 3.º, § 1.º) (Consolidação..., 2003, v. II, p. 577). Esse é o fundamento histórico da regra presente nos arts. 1.617 do CC/1916 e 1.843 do CC/2002. Como os sobrinhos herdavam sempre representando os irmãos do morto, estariam um grau na frente dos tios do falecido. Entretanto, para finalizar a questão, deve-se lembrar que apesar da existência do fundamento histórico, no direito brasileiro, desde a vigência do CC/1916, em havendo somente sobrinhos do falecido, estes herdam por direito próprio e não por representação (art. 1.843, § 1.º, do CC). Conclui-se, portanto, que o fundamento histórico se afasta do direito posto, mas, de qualquer forma, os sobrinhos do morto herdam 100% dos bens quando
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concorrerem com o tio do falecido em razão da expressa previsão legal. De qualquer modo, reconhecemos que se o falecido não concordar com a determinação legal, poderá fazer um testamento beneficiando seu tio em detrimento de seu sobrinho, uma vez que o colateral é herdeiro facultativo e não necessário. Resumindo, três conclusões sobre o tema resumem a questão: 1.ª conclusão: se o falecido deixar apenas sobrinhos, os sobrinhos herdam tudo. 2.ª conclusão: se o falecido deixar sobrinhos e seu tio, os sobrinhos herdam tudo. 3.ª conclusão: se o falecido deixar apenas tios, os tios herdam tudo.
Dessa forma, não haverá divisão da herança entre o tio do morto (colateral de 3.º grau) e o sobrinho do morto (colateral de 3.º grau). O último caso prático sucessório com relação ao parente colateral, trata da questão do colateral de 4.º grau. Anote-se que são colaterais de 4.º grau o tio-avô, o sobrinho-neto e o primo-irmão. Historicamente, a questão da sucessão do colateral sofreu fortes alterações. Na legislação que antecedeu ao Código Civil de 1916, eram herdeiros os colaterais até 10.º grau (Título XCIV das Ordenações Filipinas e artigo 980 da Consolidação das Leis Civis). O Projeto Clóvis Beviláqua, valendo-se da previsão do Decreto 1.839 de 1907 (Lei Feliciano Penna), já reduzia o
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parentesco colateral para 6.º grau (art. 1.783 do Projeto) e assim o fazia o Código Civil de 1916 em seu art. 1.612. Curiosas são as alterações em matéria de sucessão na linha colateral. O Decreto-lei 1.907, de 20 de dezembro de 1919, alterou o art. 1.612 do CC/1916, para limitar a linha colateral até 2.º grau. Esse decreto-lei foi revogado pelo art. 4.º do Decreto-lei 8.027, de 22 de novembro de 1945, que ampliou o direito hereditário ao parente colateral de 3.º grau (RODRIGUES, Silvio. Direito civil..., 2002, v. 7, p. 120). Finalmente, o Decreto-lei 9.461, de julho de 1946, alterou o Código Civil então vigente para que a vocação se limitasse ao 4.º grau e a regra manteve-se no Código Civil de 2002. A sucessão do colateral de 4.º grau é muito simples, uma vez que não há representação e estes só herdarão por direito próprio. Sendo assim, caso o falecido deixe qualquer colateral de 2.º ou de 3.º grau, o de 4.º grau nada herdará, pois os de grau mais próximo excluem os de grau mais remoto (art. 1.840 do CC). Analisemos algumas situações práticas sobre o tema. Se A falece e deixa como herdeiros seu sobrinho (3.º grau) e seu sobrinho-neto (4.º grau), o sobrinho herdará 100% dos bens. Eis o diagrama concreto:
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Se A falece, deixando como únicos herdeiros seu sobrinho-neto (4.º grau) e seu tio (3.º grau), o tio receberá 100% da herança, pois o herdeiro de grau mais próximo exclui o de grau mais remoto. Vejamos:
Não haveria direito de representação no caso em comento? A resposta é não, pois não há direito de representação em se tratando de colateral de 4.º grau, que só herda por direito próprio!
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Vejamos agora uma situação em que o colateral de 4.º grau será herdeiro. Se A falece e deixa vivo seu sobrinho-neto e seu tioavô, ambos colaterais de 4.º grau, cada um deles recolherá 50% da herança. O tio-avô concorrerá com o sobrinhoneto, e a herança ficará dividida em partes iguais. Esquematizando:
É interessante notar que o Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão tautológica, por erro na contagem de graus de parentesco, determinou a concorrência do
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parente em 4.º grau (prima-irmã) com os tios do falecido (colaterais em 3.º grau). Vamos à árvore genealógica da família em que o Sr. José Eugênio é o falecido de quem a sucessão se trata.
Ora, a Sra. Luciana não é sobrinha do falecido, mas sua prima-irmã (colateral de 4.º grau) e nada deve receber, pois os tios do falecido (Maria de Lourdes, Agenor e Ida), na qualidade de parentes colaterais em 3.º grau, tudo herdam (grau mais próximo exclui mais remoto). Não há representação quanto aos colaterais de 4.º grau, que só herdam por direito próprio. A ementa do estranho julgado é a seguinte: “Sucessão. Ausência de cônjuge supérstite e descendentes diretos. Tios ascendentes herdeiros, um deles premoriente ao ‘de cujus’. Direito de representação da sobrinha” (TJSP, 5.ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento 400.146-4/7, Rel. Oldemar Azevedo, publicada em 16.07.2007). Se sobrinha fosse, o julgado estaria correto... Ainda no tocante à classe dos colaterais, certas indagações precisam ser respondidas. Aqui pode surgir a
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dúvida: mas se concorrem o tio do morto e o sobrinho do morto, não será o caso de o sobrinho ficar com 100% do patrimônio conforme aqui já explicado? Vamos examinar bem a questão. Se concorrerem à herança o sobrinho do morto (colateral de 3.º grau) e o tio do morto (também colateral de 3.º grau), o sobrinho do morto recolherá 100% da herança por força da exceção contida no art. 1.843, caput, do CC. Já explicamos esse caso. Por outro lado, se concorrerem à herança o sobrinhoneto do morto (colateral de 4.º grau) e o tio-avô do morto (também colateral de 4.º grau), a herança será divida entre eles por força da regra pela qual os herdeiros de mesmo grau dividem a herança em partes iguais. Para a exclusão do tio-avô precisaríamos de regra expressa que inexiste no Código Civil. Não se poderia excluí-lo da sucessão por analogia. Como se sabe, as normas restritivas de direitos não admitem aplicação por analogia ou interpretação extensiva, o que visa proteger e resguardar direitos e a autonomia privada. Outra dúvida que surge é a seguinte: caso o sobrinhoneto seja neto de um irmão unilateral do falecido (meioirmão), terá ele direito a uma quota igual à que cabe ao sobrinho-neto que é neto de um irmão bilateral do falecido? A questão tem sua razão de ser. Isso porque, conforme antes estudado, se concorrerem à herança irmãos bilaterais e unilaterais do falecido, os unilaterais terão direito à metade do que couber aos bilaterais (art. 1.841 do CC). Da mesma forma, os sobrinhos, filhos de irmãos unilaterais, terão direito à metade do que couber aos sobrinhos, filhos de irmãos bilaterais (art. 1.843, § 3.º, do CC).
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Pela lógica, sendo o sobrinho-neto neto de irmão unilateral do falecido, teria ele também a metade da quota que caberia ao sobrinho-neto, neto de irmão bilateral do falecido. Entretanto, não é essa a interpretação que se faz. Explica José Luiz Gavião de Almeida que “não previu o Código a hipótese de esses colaterais receberem de forma diversa consoante venham de parentesco simples ou complexo. Não se pode, por isso, estabelecer aos sobrinhos-netos de parentesco incompleto metade da capacidade sucessória que têm os sobrinhos-netos de parentesco completo. A capacidade é regra. A incapacidade, total ou parcial, é exceção, que, no caso, não veio prevista” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 245). Concordamos integralmente, mais uma vez, com os argumentos do professor da USP e desembargador do TJSP. Zeno Veloso segue o mesmo raciocínio, lecionando que “sendo chamados à sucessão parentes colaterais do quarto-grau, segue-se a regra geral, e todos sucedem por cabeça, não importando que alguns tenham duplo vínculo com o falecido e outros, vínculo singelo ou unilateral. Primos, tios-avós, sobrinhos-netos, que sejam parentes do hereditando por dupla linhagem, não terão, por essa circunstância, nenhuma vantagem” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.539). Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka contribui com a solução da questão. “A regra, portanto, é que chegando-se ao 4.º grau de vocação hereditária, todos os primos serão chamados, como também os tios-avós e eventuais sobrinhos-netos do autor da herança, concorrendo todos eles em igualdades de condições. Isso se deve ao fato de que não pode o intérprete da lei distinguir onde o legislador não o fez” (Comentários..., 2003, v. 20, p. 247).
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Como última nota a respeito da sucessão do colateral, Silvio Rodrigues entendia que o legislador se revelava demais generoso ao chamar à sucessão o colateral de 4.º grau, não devendo ter ido além do 3.º (Direito civil..., 1995, v. 7, p. 12). O Projeto 634/1975 seguia tal orientação e limitava os direitos sucessórios apenas ao colateral até 3.º grau. A justificativa que se dá à proposta é que os parentes em quarto grau são, na grande maioria das vezes, muito distantes do falecido e, não havendo convivência, não haveria também o afeto presumido, essencial à sucessão legítima, que os habilitaria a receber a herança do falecido. Sobre o tema do parentesco em 4.º grau, cabe, ainda, mencionar-se o Projeto de Lei 2.285/2007, de autoria do Deputado Sérgio Barradas Carneiro, chamado de Estatuto das Famílias, que pretende a completa revogação do Livro de Família do atual Código Civil. Em seu art. 12, o Estatuto das Famílias mantém o parentesco colateral até 4.º grau. Em conclusão sobre o tema da sucessão na linha colateral, observa-se que as regras existentes no Código Civil de 1916 são idênticas àquelas contida no Código Civil de 2002.
2.7 OS HERDEIROS NECESSÁRIOS 2.7.1 Quem são os herdeiros necessários? Conforme foi explicado em mais de uma ocasião na presente obra, a liberdade de testar no direito brasileiro não é ilimitada. Pelo contrário, tendo o falecido
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determinados parentes, o Código Civil limita o direito de dispor gratuitamente de seus bens. Por essa estrutura, a existência dos chamados herdeiros necessários limita o direito de doar (disposição inter vivos) e de testar (disposição mortis causa). Caso a doação exceda aquilo que o doador poderia deixar por testamento, será chamada de inoficiosa e nula quanto ao excedente (art. 549 do CC). Por outro lado, se houver invasão à legítima no testamento, verifica-se o instituto da redução das disposições testamentárias, conforme estudaremos no próximo capítulo da presente obra. Mas quem são os herdeiros necessários? No sistema do Código Civil de 1916 os herdeiros necessários eram os descendentes e os ascendentes (art. 1.721 do CC/1916). O Código Civil de 2002 estendeu a qualidade de herdeiro necessário também ao cônjuge. Os herdeiros necessários terão direito à legítima, também chamada de reserva legal, ou seja, a metade dos bens da herança (art. 1.846 do CC). Quando se fala em metade dos bens, por óbvio, trata a lei dos bens de propriedade do falecido, devendo ser descontada eventual meação pertencente ao cônjuge existente em decorrência do regime de bens. Exatamente por isso explicamos detalhadamente a diferença entre meação e sucessão. Os demais herdeiros, ou seja, os parentes colaterais do falecido e os companheiros são chamados de herdeiros facultativos, já que não têm direito à legítima. Diferenciando as duas classes de herdeiros quanto aos efeitos, enquanto os herdeiros necessários têm pleno direito à metade dos bens do falecido, só podendo ser dela privados por meio de deserdação, os herdeiros facultativos só herdam
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se não houver ato de última vontade do testador em sentido contrário. Nesse sentido, determina o art. 1.850 do CC em vigor que “para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar”. A regra é inútil e incompleta. Inútil porque se os colaterais não são herdeiros necessários, por óbvio basta que o testador elabore testamento sem os contemplar para que eles automaticamente nada herdem. E incompleta porque se o companheiro também é herdeiro facultativo, deveria o dispositivo mencioná-lo em sua redação. Na prática, se o testador falece sem descendentes, ascendentes ou cônjuge, pode testar ilimitadamente e dar a seus bens o destino que bem entender. Em outras palavras, não será o testador obrigado a deixar bens a seus colaterais ou a seu companheiro, podendo testar em favor de terceiros a totalidade de seus bens. Retomando, sintetizando e reunindo tudo o que foi exposto até este ponto da obra, os herdeiros podem ser divididos em duas classes: os legítimos (que são chamados a suceder pela ordem de vocação hereditária: arts. 1.790 e 1.829 do CC) e os testamentários (que são chamados a suceder em razão de ato de última vontade do falecido). Os herdeiros legítimos se dividem em necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge) e facultativos (colateral até 4.º grau e companheiro). O gráfico abaixo demonstra essa classificação:
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Porém, com relação ao companheiro, em que pese a doutrina majoritária excluí-lo da condição de herdeiro necessário, alguns autores entendem que o companheiro também seria herdeiro necessário. São adeptos desta corrente minoritária Caio Mário da Silva Pereira, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Maria Berenice Dias e Luiz Paulo Vieira de Carvalho. Em sentido oposto, consideram o companheiro como sendo herdeiro facultativo Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira Leite, Francisco Cahali, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo Rene Nicolau, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Fujita, Maria Helena Daneluzzi, Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira, Sílvio de Salvo Venosa e Zeno Veloso (CAHALI, Francisco José. Família e sucessões..., 2004, v. II, p. 329). Também são filiados a essa última corrente os presentes autores. Esse é o entendimento que deve ser considerado como majoritário para os devidos fins. Como última nota a ser feita no tocante aos herdeiros necessários, o PL 4.944/2005 pretendia devolver ao
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cônjuge a condição de herdeiro facultativo e não necessário, alterando a redação do art. 1.845 do CC da seguinte forma: “São herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes”. Havia argumentos favoráveis ao projeto de lei, mas ele foi arquivado. 2.7.2 A legítima e a disponível Em razão da existência de herdeiros necessários, o patrimônio do falecido se divide em duas partes: a legítima e a quota disponível. Enquanto a primeira pertencerá aos herdeiros necessários, a segunda pode ser objeto de testamento pelo falecido. Como se calcula a legítima? Calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes no momento da abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação (art. 1.847 do CC). O cálculo é feito da seguinte maneira, segundo Silvio Rodrigues (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 125): 100% do patrimônio do falecido – valor de suas dívidas e despesas de funeral = X (herança líquida) X (herança líquida) deve ser dividido por 2: X1 será a disponível e a outra metade será X2. Ao valor de X2 deverão ser somados os valores dos bens doados como antecipação de legítima (aqueles que não ficaram dispensados da colação). Ao final dessa soma, chega-se ao valor da legítima.
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De qualquer forma, é correta a observação de Eduardo de Oliveira Leite de que “o montante da legítima não se conhece no momento da abertura da sucessão, mas, tão somente, no curso do inventário, quando será feita a avaliação definitiva do efetivo da herança” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 270). Com relação à legítima, não poderão os herdeiros necessários sofrer qualquer restrição ou limitação. Ilustrando, se o pai falece e deixa como únicos herdeiros dois filhos, cada um deles terá o direito a 25% dos bens a título de legítima. Não poderia o pai, com relação à legítima, deixar 49% dos bens a um filho e 1% ao outro. Já quanto à quota disponível, a liberdade de testar é plena. A título de exemplo, se o pai quiser beneficiar um dos filhos com toda a sua quota disponível, poderá fazê-lo, pois o princípio da igualdade dos filhos se restringe ao valor da legítima. Portanto, tendo o pai como únicos herdeiros seus dois filhos, sendo que um deles necessita mais de dinheiro do que o outro, poderá o pai, no tocante à disponível, deixála, por testamento, a apenas um dos filhos. Sua herança ficaria, então, dividida da seguinte forma: Porção legítima (50% dos bens): 25% para o filho João e 25% para o filho José; Parte disponível (50% dos bens): por testamento deixada apenas ao filho João.
Com relação à legítima, não só o falecido sofre limitação no tocante a sua distribuição, pois esta
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necessariamente pertencerá aos herdeiros necessários. Também há limitações no direito de apor as cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade, pois essas cláusulas apostas sobre a legítima devem ser justificadas pelo testador (art. 1.848 do CC). Como última nota a fazer, mesmo os bens da legítima clausulados pela inalienabilidade poderão ser excepcionalmente vendidos desde que haja autorização judicial, e os novos bens ficarão sub-rogados nos ônus dos primeiros (art. 1.848, § 1.º, do CC). O tema está aprofundado no próximo capítulo desta obra. Relativamente à parte disponível, esta poderá ser clausulada de acordo com a vontade do testador sem que haja necessidade de motivação ou justificação. Além de limitar as cláusulas em questão, o legislador determinou que “não é permitido ao testador estabelecer a conversão dos bens da legítima em outros de espécie diversa” (art. 1.848, § 1.º, do CC). A conversão significa que o testador determina em seu ato de última vontade a venda de bens deixados que devem ser trocados por outros. Exemplo disso se verificaria se fosse determinado à herdeira a venda da fazenda para a aquisição de títulos da dívida pública. Segundo José Luiz Gavião de Almeida, a conversão se daria se o testador “para melhor garantir a igualdade dos herdeiros, determinar a transformação dos bens em outros da mesma espécie, ou estabelecer que fossem substituídos por outros de melhor ou mais fácil administração” (Código Civil..., 2003, v. XVIII, p. 263). Fica proibida, segundo Eduardo de Oliveira Leite, “a conversão de bens móveis em imóveis, ou vice-versa, de dinheiro em
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bens, de imóveis urbanos em rurais ou vice-versa, de ações nominativas em preferenciais” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 277). Discussão que surgia na doutrina durante a vigência do Código Civil de 1916, época em que a conversão era permitida, era se primeiro os bens deveriam ser partilhados e depois convertidos ou primeiro convertidos e depois partilhados. A discussão perdeu sua razão de ser pela proibição ora vigente (art. 1.848, § 1.º, do CC/2002).
2.8 RESUMO ESQUEMÁTICO Direito Sucessório no Novo Código Civil: Casamento e União Estável Por Francisco José Cahali – Colaboração: Christiano Cassettari, Eduardo Avian e Elisa Messias Paolucci Fonte: Coletânea Orientações Pioneiras. In: Família e Sucessões no CC/2002-II, São Paulo: RT, 2006.
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2.9 QUESTÕES CORRELATAS 1. (Magistratura PE – FCC/2011) Na sucessão legítima (A) os filhos sucedem por cabeça e os outros descendentes apenas por estirpe. (B) em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente, apenas se casado sob o regime da comunhão universal ou parcial de bens. (C) sendo chamados a suceder os colaterais, na falta de irmãos sucederão os tios e não os havendo os filhos dos irmãos. (D) em falta de descendente e ascendente, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente, mesmo que casado tiver sido sob o regime da separação obrigatória de bens. (E) na classe dos ascendentes não há exclusão por grau, todos sendo aquinhoados em igualdade. 2. (183.º Magistratura SP – VUNESP) Assinale a alternativa correta. (A) Na falta de descendentes, será deferida a sucessão por inteiro aos ascendentes. (B) Na classe dos colaterais, os mais próximos excluem os mais remotos, mas os filhos de irmãos do falecido herdam por representação. (C) Não concorrendo à herança irmão bilateral, os unilaterais herdarão metade do que herdaria aquele.
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(D) O valor correspondente a legado deixado a herdeiro necessário será abatido da parte que lhe couber na legítima. (E) O direito de representação pode dar-se na linha ascendente. 3. (Ministério Público/PR – 2011) Antônio foi casado com Cecília por 10 anos, sendo que do casamento adveio o nascimento de três filhos, Daniel, Elisa e Fabio. Cecília faleceu no último dia 30 de novembro de 2009. Sem ter feito o inventário dos bens da sua falecida esposa e, por conseguinte, sem ter dado partilha aos herdeiros desta, Antônio se casou com Bruna no 1.º de janeiro de 2010, subordinando-se ao regime de bens daí decorrente. No dia 10 de outubro de 2010, nasce Helena, filha de Antônio com Bruna. No dia de hoje, Antônio vem a falecer. Diante dos fatos narrados, assinale a alternativa correta: (A) a herança de Antônio será dividida, em partes iguais, apenas entre os seus quatro filhos. (B) a quarta parte da herança de Antônio caberá a Bruna, sendo que os outros três quartos serão divididos igualmente entre os quatro filhos de Antônio. (C) a herança de Antônio será dividida, em cinco partes iguais, ou seja, entre os seus quatro filhos e a viúva. (D) metade da herança de Antônio caberá a Helena, e a outra metade será dividida entre os três filhos advindos do primeiro casamento.
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(E) Bruna terá direito à meação dos bens deixados por Antônio, cabendo aos quatro filhos a divisão do remanescente em partes iguais. 4. (TJ/SP 177.º) Sobre a sucessão legítima e a ordem da vocação hereditária, assinale a resposta correta. (A) Quando o cônjuge supérstite concorre à herança com ascendentes do falecido, cabe-lhe a metade da herança, mas se concorrer com um só ascendente ou estiver no segundo grau na linha ascendente de parentesco, cabem-lhe 2/3 (dois terços) da herança. (B) O cônjuge supérstite concorre à herança com os descendentes do de cujus, salvo se o casamento se deu pelo regime da separação total de bens; ou, se o foi pelo regime da comunhão parcial, o cônjuge falecido não houver deixado bens particulares seus. (C) O cônjuge supérstite, quando concorre à herança com descendentes do de cujus, terá direito a quinhão hereditário correspondente a 50% (cinquenta por cento) do quinhão dos descendentes que sucederem por cabeça; a 1/4 (um quarto) da herança, quando a sucessão dos descendentes se der por estirpe. (D) O cônjuge supérstite, qualquer que seja o regime do casamento, concorre à herança com os ascendentes do de cujus. 5. (TJ/SP 176.º) Analise as assertivas abaixo. I – São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
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II – Quando todos os chamados a suceder renunciarem à herança, será ela desde logo declarada vacante. III – Abre-se a sucessão no lugar onde situada a maior parte dos bens do de cujus. IV – O (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito, na sucessão, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, ainda que haja filhos deste ou filhos comuns. Pode-se afirmar que as únicas assertivas verdadeiras são as dos itens (A) I e III. (B) II e IV. (C) I e II. (D) II e III. 6. (MP/SP 83.º) É correto reconhecer, que na falta de ascendentes e descendentes, a sucessão será deferida totalmente ao cônjuge sobrevivente, se ao tempo da morte do outro a sociedade conjugal não estava dissolvida. Diante de tal assertiva será acertado afirmar que (A) na hipótese de o casamento ter sido celebrado sob o regime da comunhão parcial, e não possuindo o morto bens particulares, o cônjuge sobrevivente participa da herança, sem direito à meação. (B) no regime de separação obrigatória, o cônjuge sobrevivente figurará como meeiro e poderá, outrossim, ser herdeiro concorrente, por não haver impedimento legal nesse sentido. (C) separado apenas de fato o casal quando da morte de um dos cônjuges, e estando cada um deles convivendo com terceiro na época do falecimento,
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essa circunstância mostra-se como sendo intransponível obstáculo para a obtenção do direito sucessório. (D) quando em concurso com descendentes, o cônjuge sobrevivente só participará da herança do outro se o regime de bens for o da separação voluntária, ou da comunhão parcial de bens quanto aos bens particulares do morto, ou seja, aqueles que não entram na comunhão. (E) se o cônjuge sobrevivente vier a concorrer com os genitores do de cujus, tocar-lhe-á metade da herança; se apenas com um descendente do primeiro grau, um terço; se com ascendentes de grau maior, também a metade. 7. (Procurador do Estado/SP – FCC/2012) “A” era casada sob o regime da comunhão parcial de bens com “B”. “B” faleceu em 2011 e deixou um imóvel por ele adquirido antes do casamento, usado como moradia do casal. Não há descendentes, mas dois ascendentes em primeiro grau vivos. Neste caso, (A) além de receber fração ideal de 1/3 do imóvel como herdeira necessária, “A” tem direito real de habitação, que se constitui a partir do registro do formal de partilha no Cartório de Imóveis. (B) “A” tem direito real de habitação, participa da herança na qualidade de herdeira necessária e recebe a metade ideal do imóvel, cabendo a cada ascendente fração ideal de 1/4 do bem. (C) “A” tem direito real de habitação, cabendo a cada herdeiro fração ideal de 1/3 do imóvel. (D) por se tratar de bem incomunicável, “A” não participa da sucessão, mas tem direito real de
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habitação, cabendo a cada ascendente metade ideal do imóvel. (E) em razão do regime de bens que regeu o casamento, “A” tem direito ao usufruto da metade do imóvel, cabendo, a cada herdeiro, fração ideal de 1/3 do bem. 8. (VIII Exame de Ordem Unificado – FGV) Com relação ao direito sucessório, assinale a afirmativa correta. (A) O cônjuge sobrevivente, mesmo se constituir nova família, continuará a ter direito real de habitação sobre o imóvel em que residiu com seu finado cônjuge. (B) A exclusão por indignidade pode ocorrer a partir da necessidade de que o herdeiro tenha agido sempre com dolo e por uma conduta comissiva. (C) A deserdação é forma de afastar do processo sucessório tanto o herdeiro legítimo quanto o legatário. (D) Os efeitos da indignidade não retroagem à data da abertura da sucessão, tendo, portanto, efeito ex nunc. 9. (VII Exame de Ordem Unificado – FGV) Edgar, solteiro, maior e capaz, faleceu deixando bens, mas sem deixar testamento e contando com dois filhos maiores, capazes e também solteiros, Lúcio e Arthur. Lúcio foi regularmente excluído da sucessão de Edgar, por tê-lo acusado caluniosamente em juízo, conforme apurado na esfera criminal. Sabendo-se que Lúcio possui um filho menor, chamado Miguel, assinale a alternativa correta.
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(A) O quinhão de Lúcio será acrescido à parte da herança a ser recebida por seu irmão, Arthur, tendo em vista que Lúcio é considerado como se morto fosse antes da abertura da sucessão. (B) O quinhão de Lúcio será herdado por Miguel, seu filho, por representação, tendo em vista que Lúcio é considerado como se morto fosse antes da abertura da sucessão. (C) O quinhão de Lúcio será acrescido à parte da herança a ser recebida por seu irmão, Arthur, tendo em vista que a exclusão do herdeiro produz os mesmos efeitos da renúncia à herança. (D) O quinhão de Lúcio se equipara, para todos os efeitos legais, à herança jacente, ficando sob a guarda e administração de um curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância. 10. (VI Exame de Ordem Unificado – FGV) José, solteiro, possui três irmãos: Raul, Ralph e Randolph. Raul era pai de Mauro e Mário. Mário era pai de Augusto e Alberto. Faleceram, em virtude de acidente automobilístico, Raul e Mário, na data de 15/4/2005. Posteriormente, José veio a falecer em 1.º/5/2006. Sabendo-se que a herança de José é de R$ 90.000,00, como ficará a partilha de seus bens? (A) Como José não possui descendente, a partilha deverá ser feita entre os irmãos. E, como não há direito de representação entre os filhos de irmão, Ralph e Randolph receberão cada um R$ 45.000,00. (B) Ralph e Randolph devem receber R$ 30.000,00 cada. A parte que caberá a Raul deve ser
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repartida entre Mauro e Mário. Sendo Mário premorto, seus filhos Alberto e Augusto devem receber a quantia que lhe caberia. Assim, Mauro deve receber R$ 15.0000,00, e Alberto e Augusto devem receber R$ 7.500,00 cada um. (C) Ralph e Randolph receberão R$ 30.000,00 cada um. O restante (R$ 30.000,00) será entregue a Mauro, por direito de representação de seu pai premorto. (D) Ralph e Randolph receberão R$ 30.000,00 cada um. O restante, na falta de outro colateral vivo, será entregue ao Município, Distrito Federal ou União. 11. (TJ/SP – 182.º) Quanto ao direito sucessório brasileiro, a família matrimonial e a família fundada na união estável diferem (A) apenas em relação à participação do sobrevivente na legítima e à influência do momento de aquisição do bem herdado pelo sobrevivente. (B) apenas em relação à situação do sobrevivente na ordem de vocação hereditária, à influência do momento de aquisição do bem herdado pelo sobrevivente e à concorrência com os demais herdeiros. (C) apenas em relação à influência do momento de aquisição do bem herdado pelo sobrevivente e à concorrência com os demais herdeiros. (D) em relação à participação do sobrevivente na legítima, à influência do momento de aquisição do bem herdado pelo sobrevivente, à situação do sobrevivente na ordem de vocação e à concorrência com os demais herdeiros.
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12. (TJ/SP – 182.º) O direito de representação (A)
verifica-se ascendente.
na
linha
reta
descendente
e
(B) inexiste na linha colateral. (C) implica divisão por estirpe. (D) implica divisão por cabeça. 13. (TJ/MG – 2009) Marque a opção CORRETA. José, solteiro e sem deixar descendentes e ascendentes, falece, deixando a inventariar a quantia de R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais). Duas irmãs lhe sobrevivem, bem como duas sobrinhas e um sobrinho neto (filho de uma sobrinha premorta), assinalando-se que esses sobrinhos descendem de um irmão premorto de José. Então, concorrerão à sucessão: (A) somente as irmãs vivas de José. (B) todos os parentes acima citados, inclusive o sobrinho-neto, porque, na hipótese, a sucessão se defere até o quarto grau de parentesco, herdando todos em partes iguais, por representação. (C) as irmãs de José e as filhas do irmão premorto, estas por representação. O sobrinho neto não herdará. A herança será dividida em 3 (três) partes iguais. As irmãs do falecido herdam por cabeça e as sobrinhas por estirpe. (D) todos os parentes acima citados, inclusive o sobrinho-neto, sendo que a herança será dividida em 4 (quatro) partes iguais. As irmãs do falecido herdarão uma parte cada uma e as sobrinhas e o sobrinho-neto a outra parte, que será dividida entre eles em partes iguais.
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14. (Magistratura/PR – 2012) Sobre o direito das sucessões, assinale a alternativa correta. (A) De acordo com o Código Civil, é permitido que seja feito testamento conjuntivo. (B) Ao cego só se permite o testamento público. (C) Quando a cláusula testamentária for suscetível de várias interpretações, subsistirá a que melhor assegure a observância dos direitos dos herdeiros. (D) É anulável a disposição que deixe a arbítrio do herdeiro, ou de outrem, fixar o valor do legado. 15. (MP/RN – 2009) Com relação ao direito das obrigações, da família, das sucessões e da propriedade imaterial, assinale a opção correta. (A) Em decorrência do direito de representação, os descendentes de herdeiro excluído sucedem no lugar deste. (B) Caducará o legado se o legatário falecer depois do legante. (C) O fideicomisso poderá abranger, no todo ou em parte, a legítima fideicomitente. (D) Direitos patrimoniais do autor são aqueles em que se reconhece a paternidade da obra, sendo, portanto, inseparáveis de seu autor, perpétuos, inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis. (E) O aval posterior ao vencimento do título de crédito é ineficaz. 16. (MP/PE – 2008) Concorrendo à herança do falecido irmãos bilaterais com irmãos unilaterais, (A) todos herdarão em partes iguais.
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(B) cada um destes herdará metade do que cada um daqueles herdar. (C) somente herdarão os irmãos unilaterais. (D) somente herdarão os irmãos bilaterais. (E) estes somente herdarão se habitarem imóvel do falecido. 17. (26.º Procurador da República – MPF 2012) Em matéria de sucessões: (A) Ao cônjuge supérstite cabe sempre, em primeiro lugar, a investidura na inventariança; (B) Havendo testamento contemplando o primeiro filho, o Código Civil dispõe que, nascendo gêmeos, serão estes considerados de igual idade para tal fim; (C) A declaração de vacância, quando não aparecerem herdeiros, incorpora a herança definitivamente ao patrimônio público; (D) A indignidade do herdeiro é uma pena e, se ele falecer antes da sua declaração por sentença, seu direito hereditário passa aos sucessores. 18. (OAB Nacional 2009 – I) A respeito do direito das sucessões, julgue os itens subsequentes. I – O herdeiro necessário não perderá o direito à legítima se também lhe forem deixados bens em testamento que constituam a parte disponível do testador. II – No casamento putativo, o cônjuge de boa-fé sucederá o falecido se a sentença anulatória do casamento for posterior à morte do cônjuge de cuja sucessão se trata. III – O Código Civil, em se tratando de sucessão legítima, assegura ao cônjuge sobrevivente, caso o
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casamento tenha sido efetuado no regime da comunhão universal de bens, o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança. IV – O testamento pode ser feito diretamente pelo representante legal do testador. A quantidade de itens certos é igual a (A) 1. (B) 2. (C) 3. (D) 4. 19. (VUNESP/Magistratura/RJ/2012) Considerando as disposições positivadas no Código Civil, é correto afirmar sobre a sucessão dos ascendentes: (A) Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, participação final nos aquestos, ou da separação obrigatória de bens se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança houver deixado bens particulares. (B) Na falta de descendentes, são chamados a suceder os ascendentes em concorrência com o cônjuge ou companheiro sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão parcial de bens, ou da separação obrigatória, desde que haja bens particulares. (C) Havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna.
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(D) Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará a metade da herança; caberlhe-á um quarto desta se houver um só ascendente ou se maior for aquele grau. 20. (PGE/PE – 2009) Acerca da disciplina jurídica da sucessão legítima e testamentária, assinale a opção correta. (A) Podem ser nomeados legatários o concubino do testador casado, bem como o filho de ambos. (B) Na sucessão testamentária, podem ser chamados a suceder os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que estas estejam vivas ao abrir-se a sucessão. (C) A renúncia à herança pode ser tácita, tendo eficácia a partir do momento em que for exarada a declaração de vontade informal. (D) A declaração de vacância da herança, em razão da não identificação de herdeiros, determina a incorporação da herança ao patrimônio do estado federado onde faleceu o autor da herança. (E) No casamento, diante da ausência de descendentes ou de ascendentes, defere-se a herança ao cônjuge sobrevivente em concorrência com os colaterais. 21. (MP/SE – CESPE/2010) Assinale a opção correta com relação às sucessões legítima e testamentária. (A) Considere a seguinte situação hipotética. José, viúvo, faleceu sem deixar testamento conhecido. Deixou quatro filhos (sendo um premorto) e três netos (descendentes do filho premorto). Nessa
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situação, no caso de concorrência entre irmãos e sobrinhos (estes filhos do irmão premorto), os primeiros sucederão por cabeça, e os últimos, por estirpe. Por isso, a herança deverá ser divida em quatro partes iguais, subdividindo-se uma delas entre os três sobrinhos. (B) Considere a seguinte situação hipotética. Aline vivia em união estável com Jorge, o qual possuía um imóvel adquirido antes do início dessa união, época em que esse bem foi avaliado em R$ 100.000,00. Na constância da união, o casal vendeu o imóvel de propriedade de Jorge e, com os recursos advindos das poupanças de ambos, adquiriu outro imóvel no valor de R$ 400.000,00. Nessa situação, se Jorge falecer sem deixar parentes sucessíveis, Aline terá direito a recolher a herança em sua totalidade. (C) O herdeiro que não foi parte no processo de inventário pode recorrer a ação de nulidade e pleitear seu quinhão hereditário, no prazo prescricional de um ano, a contar do trânsito em julgado da ação que homologou a partilha. (D) A sucessão por direito de representação pressupõe que o herdeiro necessário, ascendente ou descendente em linha reta tenha morrido antes da abertura da sucessão para a qual se habilitaram os representantes. (E) O testamento é ato personalíssimo e que não pode ser modificado após declaração de vontade do testador.
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GABARITO 1–D
2–B
3–A
4–D
5–C
6–D
7–C
8–A
9–B
10 – C
11 – D
12 – C
13 – C
14 – B
15 – A
16 – B
17 – D
18 – B
19 – C
20 – B
21 – A
SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA
Sumário: 3.1 Dos testamentos em geral e da capacidade de testar: 3.1.1 Dos testamentos em geral; 3.1.2 Da capacidade de testar – 3.2 Das formas ordinárias de testamento e suas regras gerais: 3.2.1 Do testamento público; 3.2.2 Do testamento cerrado; 3.2.3 Do testamento particular – 3.3 Dos testamentos especiais: 3.3.1 Do testamento marítimo e do testamento aeronáutico; 3.3.2 Do testamento militar – 3.4 A polêmica do testamento vital ou biológico – 3.5 Dos codicilos – 3.6 Das disposições testamentárias: 3.6.1 Regras interpretativas; 3.6.2 Regras
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proibitivas e restritivas – da cláusula de inalienabilidade; 3.6.3 Regras permissivas – 3.7 Dos legados: 3.7.1 Noções gerais; 3.7.2 Das modalidades de legado; 3.7.3 Dos efeitos do legado – 3.8 Do direito de acrescer entre herdeiros e legatários: 3.8.1 Conceito de direito de acrescer e regramentos básicos; 3.8.2 Regras quanto ao direito de acrescer constantes do Código Civil em vigor – 3.9 Das substituições testamentárias. Conceitos iniciais e espécies: 3.9.1 Da substituição vulgar ou ordinária; 3.9.2 Da substituição fideicomissária – 3.10 Da revogação do testamento, de sua nulidade e caducidade: 3.10.1 Da nulidade absoluta ou relativa do testamento; 3.10.2 Revogação do testamento; 3.10.3 Da caducidade do testamento – 3.11 Da redução das disposições testamentárias e do rompimento do testamento: 3.11.1 Conceito de redução das disposições testamentárias; 3.11.2 Do rompimento do testamento – 3.12 Do testamenteiro: 3.12.1 Espécies e regras gerais; 3.12.2 Das funções do testamenteiro; 3.12.3 Do direito à vintena; 3.12.4 Da extinção da testamentária – 3.13 Resumo esquemático – 3.14 Questões correlatas – Gabarito.
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3.1 DOS TESTAMENTOS EM GERAL E DA CAPACIDADE DE TESTAR 3.1.1 Dos testamentos em geral Estudadas as regras da sucessão legítima, o Código Civil cuida, então, da sucessão testamentária. Como outrora demonstrado até de forma exaustiva, enquanto na sucessão legítima os bens do falecido seguem a ordem de vocação hereditária prevista nos confusos arts. 1.829 e 1.790 do CC, em se tratando de sucessão testamentária a vontade do morto é que determinará o encaminhamento dos seus bens. É claro que a vontade não será absoluta, mas sim explicitada dentro de limites previstos pela lei, que, caso inobservados, podem gerar vícios insanáveis e a nulidade do ato de última vontade. Como se sabe, o princípio da autonomia privada, que rege a vontade da pessoa humana, vem encontrando limites previstos na legislação, principalmente em normas de ordem pública. Não traz o Código Civil o conceito de testamento. O revogado diploma dizia que testamento é “o ato revogável pelo qual alguém, de conformidade com a lei, dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio, para depois da sua morte” (art. 1.626 do CC/1916). A ausência de definição no novo diploma segue a ideia segundo a qual não cabe ao legislador dar conceitos dos institutos. Mesmo porque, ao conceituar o testamento, severas críticas sofreu o diploma revogado, eis que a doutrina considerava incompleta a definição contida no art. 1.626. Pondera Silvio Rodrigues que as críticas existiam “não só por omitir a circunstância
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de ser o testamento ato pessoal, unilateral, solene e gratuito, como também por circunscrever o objeto do testamento à mera disposição de bens” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 145). De qualquer modo, é importante apontar que o novo Código Civil adota o princípio da operabilidade, sendo um de seus sentidos a facilitação da interpretação do Direito Privado. Um dos sinais dessa facilitação é justamente a conceituação dos institutos pela norma jurídica, o que se percebe por vezes na codificação. Não foi o que aconteceu com o testamento, cabendo à doutrina conceituá-lo. Se é verdade que a grande maioria dos dispositivos de lei relacionados com o testamento cuida de disposições patrimoniais, não é verdade que o testamento não possa conter disposição de outra natureza. Pode o testador, por meio do ato de última vontade, reconhecer o filho, por exemplo (art. 1.609, III, do CC). Mesmo assim, o forte caráter patrimonial do instituto se revela quando o legislador inicia o tratamento da matéria determinando que toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade de seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte (art. 1.857 do CC/2002). Pois bem, na classificação dos fatos jurídicos humanos lícitos, esclarecemos que esses são de três tipos: a) Atos-fatos jurídicos – são aqueles fatos em que a vontade do agente que os pratica é desprezada pelo direito, que apenas se preocupa com seus efeitos. Em outras palavras, trata-se de um fato jurídico qualificado por uma vontade não relevante juridicamente. A questão da incapacidade do agente não é considerada, eis que o importante são as consequências fáticas. Podem ser citados como exemplos
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desses atos-fatos os atos materiais ou reais que são simples atuações humanas tendentes a produzir efeitos jurídicos previstos em lei, caso da descoberta de um tesouro e da especificação (arts. 1.269 a 1.271 do CC em vigor). b) Atos jurídicos em sentido estrito ou stricto sensu – aqueles que geram consequências jurídicas que estão somente previstas em lei. A vontade do agente é desprestigiada, pois apenas participa da formação do ato, mas não de suas consequências. Um bom exemplo é o reconhecimento de filho, uma vez que após o pai reconhecer a criança, todas as consequências advêm da lei, sendo que a vontade do pai não pode regulamentar aqueles efeitos de forma diversa. Os atos jurídicos em sentido estrito estão tratados pelo art. 185 do atual Código Civil, que prevê a aplicação a eles dos dispositivos relativos aos negócios jurídicos, no que couber. c) Negócios jurídicos – as partes celebram o ato com intuito de alcançar um efeito jurídico determinado. É a declaração de vontade em que o agente persegue determinado efeito jurídico. Dessa forma, os sujeitos de direito podem regular, nos limites legais, seus interesses particulares. Como outrora afirmou um dos autores dessa obra, o negócio jurídico é “toda ação humana, de autonomia privada, com a qual os particulares regulam por si os próprios interesses, havendo uma composição de vontades, cujo conteúdo deve ser lícito” (TARTUCE, Flávio. Direito civil..., 2009, v. 1, p. 322).
Por tais conceitos, dúvida não há de que são exemplos clássicos de negócio jurídico o contrato e o testamento. A grande diferença entre eles está na natureza jurídica e na produção de efeitos. Sobre a natureza jurídica do instituto é importante enfatizar que o testamento é negócio jurídico:
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a) Unilateral – porque se aperfeiçoa com uma única vontade. Basta a vontade do declarante (testador) para que o negócio produza efeitos jurídicos. A aceitação ou renúncia dos bens deixados manifestada pelo beneficiário do testamento é irrelevante. b) Gratuito – pois não existe vantagem para o autor da herança. Não se trata de um negócio jurídico oneroso, não havendo qualquer remuneração ou contraprestação para a aquisição dos bens. c) Mortis causa – pois só produz efeitos após a morte do testador; antes dela o testamento é ato ineficaz. De qualquer forma, antes da morte do testador, o testamento existe (plano da existência), é válido (se seguir as formalidades prescritas em lei – plano da validade) e apenas é ineficaz (plano da eficácia). Fazendo confrontação importante, lembre-se que o contrato é o negócio jurídico inter vivos por excelência, pois produz efeitos, em regra, a partir da celebração. d) Formal – pois a lei contém todas as formalidades necessárias à validade do negócio jurídico. Faltando as formalidades, a sanção será a nulidade do testamento, nos termos do art. 166, IV e V, do atual Código. e) Revogável – porque o falecido pode revogá-lo ou modificá-lo a qualquer momento. Qualquer cláusula prevendo a irrevogabilidade será considerada nula e não produzirá efeitos, nos termos do art. 1.858 do Código em vigor. f) Ato personalíssimo – porque ninguém poderá testar conjuntamente em um mesmo instrumento ou mesmo por procuração. Se mais de uma pessoa testar em um mesmo instrumento, o testamento é nulo, pois o mesmo art. 1.858 enuncia que o testamento é ato personalíssimo.
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Reunindo essas características, imperioso anotar que o Código Civil português define o testamento como sendo o ato unilateral revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois de sua morte, de todos os seus bens ou parte deles. As disposições de caráter não patrimonial que a lei permite inserir no testamento são válidas se fizerem parte do ato revestido da forma testamentária, ainda que nele não figurem disposições patrimoniais (art. 2.179 do CC português). Em nossa opinião, o testamento é um negócio jurídico unilateral, personalíssimo e revogável, pelo qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou não, para depois de sua morte. Esse seria um conceito interessante e didático para as provas em geral e para a prática sucessória. Não existe relação necessária entre testamento e patrimônio. Nada impede que o testador só mencione questões patrimoniais em seu ato de última vontade; pode, também, nada dizer a esse respeito. Por fim, o testamento pode conter os dois tipos de disposições: de caráter patrimonial e não patrimonial (art. 1.857, § 2.º, do CC). Em termos patrimoniais, conforme já explicado à exaustão, em havendo herdeiros necessários, não pode o disponente testar ou legar parte dos bens que invada a legítima (art. 1.857, § 1.º, do CC). Caso o testamento abarque a legítima, poderemos estar diante de redução das disposições testamentárias ou de rompimento do testamento, conforme será estudado em momento oportuno. Em termos não patrimoniais, explica Zeno Veloso que o testamento pode ser feito para “o reconhecimento de filiação, a deserdação, a reabilitação do indigno, a nomeação
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do tutor para filhos menores, de testamenteiro, a confissão a respeito de qualquer fato, dar instruções sobre o seu funeral, determinar sufrágios por almas, dispor de uma ou de várias partes do corpo para fins terapêuticos e revogar testamento anterior. São disposições autônomas, não patrimoniais, embora algumas delas de reflexos patrimoniais” (Comentários..., 2003, v. 21, p. 3). Lembramos, ainda, que por testamento pode-se criar uma fundação (art. 62 do CC), instituir um condomínio edilício (art. 1.332 do CC) ou uma servidão (art. 1.378 do CC), bem como criar bem de família voluntário ou convencional (art. 1.711 do CC). Para terminar a presente seção, lembre-se de que, desde o direito romano, entende-se que a vontade do testador deve prevalecer sobre a sucessão legítima, buscando dar cumprimento ao ato de última vontade. É o chamado favor testamenti. 3.1.2 Da capacidade de testar A capacidade para testar não se confunde com a capacidade genérica para a prática dos atos da vida civil em geral. Isso porque, segundo o Código Civil, não podem testar os relativa ou os absolutamente incapazes. A consequência da incapacidade é a nulidade do testamento, nos termos do art. 166, I, do atual Código. Deve-se, contudo, ressalvar que o menor púbere, com 16 anos completos, é relativamente capaz nos termos do art. 4.º, I, da codificação em vigor, mas poderá testar validamente (art. 1.860, parágrafo único, do CC), e sem a necessidade de qualquer assistência de seus pais ou tutores. Aliás, se a assistência fosse necessária, o caráter
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personalíssimo e revogável do testamento estaria bastante comprometido, o que até poderia ser tido como motivo de nulidade do testamento, pelo que consta do citado art. 1.858 do Código Civil. Além disso, aqueles que forem legal ou voluntariamente emancipados poderão testar validamente, pois adquirem a capacidade plena por força da própria emancipação (art. 5.º, parágrafo único, I, do CC). Também não poderão testar aqueles que, apesar de juridicamente capazes, não tiverem pleno discernimento (art. 1.860 do CC). Assim, alargam-se as situações de incapacidade. Como é cediço, as incapacidades em razão de doenças ou vícios (drogas, álcool) necessitam de declaração judicial, ou seja, o seu reconhecimento não é automático. Desse modo, imagine-se a situação de determinada pessoa muito idosa e com graves problemas de esclerose que não tenha sido judicialmente interditada e declarada incapaz. Nesse caso, será civilmente capaz, mas pela falta de discernimento será incapaz para a prática do testamento. Entretanto, o Código Civil cometeu flagrante equívoco ao não esclarecer com precisão o alcance do seu art. 1.860. Pela leitura, poder-se-ia concluir, por exemplo, que os ébrios ou toxicômanos (relativamente incapazes) não podem fazer testamento. Pondera Zeno Veloso que “não há razão para se decidir que os ébrios habituais, os viciados em tóxico e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido (reduzido, note-se bem) sejam proibidos de testar. Quanto a estes últimos, se, apesar de reduzido, diminuído o discernimento, tenham entendimento ou compreensão suficiente para saber o que estão fazendo
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no momento em que outorgam a disposição de última vontade, isso é bastante e vale o testamento. E o ébrio habitual pode estar sóbrio quando testa; o viciado em tóxico pode estar livre do poder das drogas no momento em que dispõe causa mortis” (Comentários..., p. 30). Além disso, parece curioso, por exemplo, a eventual determinação pela qual o pródigo não possa testar livremente. Nesse sentido, o próprio Código Civil, em seu art. 1.782, não prevê o testamento entre os atos que não podem ser praticados sem assistência por este incapaz. E também não haveria razão para tanto, tendo em vista que a proteção do pródigo visa a impedir que este atinja um estado de miserabilidade e passe a depender dos amigos, parentes ou do Estado. Em suma, entendemos que o pródigo poderá testar livremente, não sendo considerado incapaz nos termos do art. 1.860 do Código em vigor. Esse também é o entendimento majoritário da doutrina. Para corrigir os desacertos apontados, o Projeto 699/ 2011, antigo PL 6.960/2002, de autoria original do deputado Ricardo Fiuza, pretende alterar o art. 1.860, que passaria a ter a seguinte redação: “Além dos absolutamente incapazes, não podem testar os que, no ato de fazêlo, não tiverem o necessário discernimento”. A justificativa da proposta, segundo o saudoso Deputado Fiuza, é que “trata-se de um equívoco que precisa ser corrigido, sabendo-se que o testamento outorgado por incapaz é nulo de pleno direito. Não há razão para proibir que os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham discernimento reduzido, sejam proibidos de testar se, apesar de reduzido, tem entendimento e compreensão suficiente para saber o que estão fazendo, no momento em que outorgam a disposição de
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última vontade” (FIUZA, Ricardo. O novo Código Civil e as propostas..., 2004, p. 303). Concorda-se integralmente com a proposta, diante do seu tom didático e esclarecedor, filiado à doutrina majoritária. Não podem testar, ainda, as pessoas jurídicas, pois a prerrogativa de elaborar atos de última vontade é exclusiva das pessoas naturais. Nesse sentido, explica Itabaiana de Oliveira que “a capacidade de testamentária ativa é um direito das pessoas naturais, que se não estende às pessoas jurídicas, porque, se elas são perpétuas, não estão sujeitas ao acidente da morte, e, se são temporárias, a sua extinção, que é um fenômeno essencialmente diverso da morte, é um acontecimento previsto, que, de modo algum, justificaria a disposição de bens por testamento” (Tratado..., 1952, v. 2, p. 410). Questão importante a ser apontada é que a lei que rege a capacidade de testar é aquela do momento em que o testamento é elaborado e não do momento da abertura da sucessão, quando a disposição de última vontade produz efeitos. Dessa forma, se o testador com plena capacidade civil elabora um testamento e posteriormente se torna incapaz, o testamento é considerado válido. Por outro lado, se pessoa incapaz elabora um testamento e, posteriormente se torna capaz, o testamento continua sendo nulo. Nesse sentido é a determinação do art. 1.861 do atual Código Civil, pelo qual a incapacidade superveniente do testador não invalida o testamento, nem o testamento do incapaz se valida com a superveniência da capacidade. Vale lembrar que, visando resolver questões de direito intertemporal, determina o Código Civil de 2002 que a lei do momento da conclusão do negócio jurídico é aquela
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que deve ser aplicada para a verificação de sua validade (art. 2.035, caput). Trata-se da aplicação do princípio tempus regit actum. Portanto, a capacidade testamentária para os testamentos elaborados na vigência do Código Civil de 1916 deverá seguir o disposto no art. 1.627 daquele Código, mesmo que a morte do testador tenha ocorrido na vigência do Código Civil de 2002. Por fim, para aqueles que elaboraram seus testamentos a partir de 11 de janeiro de 2003, data da entrada em vigor do novo Código Civil, a capacidade testamentária ativa se verifica à luz do disposto no art. 1.860 do atual Código Civil.
3.2 DAS FORMAS ORDINÁRIAS DE TESTAMENTO E SUAS REGRAS GERAIS As formas ordinárias ou comuns de testar são também conhecidas por formas comuns ou vulgares, e são elas, segundo o art. 1.862 do CC: a) o testamento público (arts. 1.864 a 1.867 do CC); b) o testamento cerrado (arts. 1.868 a 1.875 do CC); e c) o testamento particular (arts. 1.876 a 1.880 do CC).
A essas formas ordinárias se opõem as chamadas formas extraordinárias ou especiais, que são admitidas pelo legislador excepcionalmente e nos casos especificamente admitidos por lei: os testamentos militar, marítimo e aeronáutico.
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Como questão jurídica importante, se não forem seguidas as formas previstas em lei, o testamento será nulo, não se admitindo no Brasil a ampla liberdade de opção, ou seja, a autonomia privada plena para testar. Pelo contrário, se o testamento não seguir alguma das modalidades em estudo, será considerado nulo e não produzirá os efeitos almejados pelo testador. Exemplificando, não se admite o chamado testamento nuncupativo em que o testador verbalmente narra perante testemunhas sua última vontade, quando está prestes a morrer. A lei só admite o casamento nuncupativo (in extremis) e o testamento militar nuncupativo para os feridos em guerra (art. 1.896 do CC). Assim, se João, percebendo que a morte está próxima, reúne em seu leito seus filhos e expõe sua última vontade, o testamento será nulo de pleno direito (nulidade absoluta, por infringência à forma ou às solenidades prescritas – art. 166, IV e V, do CC). Nessa hipótese, a sucessão passará a ser a legítima, seguindo a ordem prevista no art. 1.829 do CC. A solenidade é essencial para a validade do testamento em razão de sua importância, estando no segundo degrau da Escada Ponteana. Lembramos que a Escada Ponteana está de acordo com a concepção de Pontes de Miranda quanto à divisão do negócio jurídico em três planos: plano da existência (1.º degrau), plano da validade (2.º degrau) e plano da eficácia (3.º degrau). Como o testamento altera o destino da herança e afasta a vocação hereditária, o legislador é muito rígido quanto às formalidades necessárias para a sua validade, de modo a garantir que realmente a vontade ali contida seja a do falecido. Vale dizer que, como a questão é de ordem
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pública, essa nulidade poderá ser declarada de ofício pelo juiz (art. 168, parágrafo único, do CC). Além disso, a nulidade não é sanada pelo decurso de prazo (art. 169 do CC), sendo a ação correspondente para pleitear a nulidade do ato de natureza imprescritível. De qualquer forma, interessante comentar que o Superior Tribunal de Justiça mitigou a exigência das formalidades, admitindo que o testamento fosse provado pela via testemunhal. Elucidativa a transcrição desse importante julgado, conforme o Informativo n. 295 daquele E. Tribunal: “O Tribunal a quo assentou que o testador estava em seu juízo perfeito, que elaborou o testamento por livre e espontânea vontade e confirmou a autenticidade da assinatura. Em momento algum, os ora recorrentes alegaram que houve falsidade na assinatura ou que o testamento não refletia a vontade do de cujus. Contestou a inobservância na formalidade (art. 1.876, § 2.º, CC/2002) para a confecção do ato, qual seja, a falta de leitura do testamento perante as três testemunhas reunidas concomitantemente. Então, a Turma não conheceu do recurso, por entender que, apesar de ser um ato solene, não se deve priorizar a forma em detrimento da vontade do testador. Ademais, na espécie, foi o próprio testador que levou o documento para as três testemunhas assinarem, restando induvidosa sua vontade” (STJ, REsp 828.616-MG, Rel. Min. Castro Filho, j. 05.09.2006).
A mitigação das formalidades do testamento parece ser a tendência daquele Tribunal Superior, que tem privilegiado a vontade do testador. A título contínuo de ilustração, colaciona-se acórdão assim publicado no seu Informativo n. 435:
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“Testamento. Formalidades. Extensão. Busca-se, no recurso, a nulidade de testamento, aduzindo o ora recorrente que a escritura não foi lavrada pelo oficial de cartório, mas por terceiro, bem como que as cinco testemunhas não acompanharam integralmente o ato. O tribunal a quo afirmou que não foi o tabelião que lavrou o testamento, mas isso foi feito sob sua supervisão, pois ali se encontrava, tendo, inclusive, lido e subscrito o ato na presença das cinco testemunhas. Ressaltou, ainda, que, diante da realidade dos tabelionatos, não se pode exigir que o próprio titular, em todos os casos, escreva, datilografe ou digite as palavras ditadas ou declaradas pelo testador. Daí, não há que declarar nulo o testamento que não foi lavrado pelo titular da serventia, mas possui os requisitos mínimos de segurança, de autenticidade e de fidelidade. Quanto à questão de as cinco testemunhas não terem acompanhado integralmente a lavratura de testamento, o TJ afirmou que quatro se faziam presentes e cinco ouviram a leitura integral dos últimos desejos da testadora, feita pelo titular da serventia. Assim, a Turma não conheceu do recurso por entender que o vício formal somente invalidará o ato quando comprometer sua essência, qual seja, a livre manifestação da vontade da testadora, sob pena de prestigiar a literalidade em detrimento da outorga legal à disponibilização patrimonial pelo seu titular. Não havendo fraude ou incoerência nas disposições de última vontade e não evidenciada incapacidade mental da testadora, não há falar em nulidade no caso. Precedente citado: REsp 302.767-PR, DJ 24/9/2001” (STJ, REsp 600.746/PR, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 20.05.2010).
Deve-se frisar que será nulo o contrato que tiver por objeto a herança de pessoa viva (art. 426 do CC), diante da conhecida divisão entre os atos inter vivos e mortis causa. São os chamados pactos sucessórios (pacta corvina), conceito tradicional do Direito Civil, com origem romana. A
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título de exemplo, se em um contrato de união estável estabelecerem os companheiros regras patrimoniais para a hipótese de falecimento de um deles, a cláusula será nula por ferir norma de ordem pública. O caso é de nulidade virtual, pois a lei proíbe o ato sem cominar sanção (art. 166, VII, do CC). Como decorrência da regra de separação dos atos inter vivos e mortis causa, o Código Civil proíbe o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo (art. 1.863 do CC). O testamento conjuntivo ou de mão comum é aquele feito per mais de uma pessoa no mesmo instrumento. Na realidade, a proibição desse tipo de testamento não tem relação com a forma, mas sim com o fato de o legislador entender que o testamento é ato personalíssimo e que não pode ser feito por duas pessoas, sob pena de assumir caráter contratual repudiado pelo ordenamento e lhe retirar uma de suas principais características: a pessoalidade e a revogabilidade a qualquer tempo. Explica Silvio Rodrigues que o testamento “será simultâneo, quando os testadores dispõem em benefício de terceiros; recíproco quando os testadores instituem um ao outro como herdeiros, de modo que o sobrevivente recolha a herança do outro; e correspectivo quando o benefício outorgado por um dos testadores ao outro, retribui vantagem correspondente” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 157). Assim, é simultâneo o testamento quando João e Maria nomeiam no mesmo testamento Pedro como herdeiro. Será recíproco o testamento quando João dispuser que em seu falecimento seus bens serão de Maria e Maria, no mesmo instrumento, fizer idêntica disposição a favor
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de João. Por fim, será correspectivo se João deixar sua casa para Maria e Maria deixar sua casa para João. No último caso, há uma troca de benefícios entre os testadores num mesmo instrumento. Note-se que a lei não impede que, em instrumentos separados, os cônjuges façam disposições simétricas. Podem duas pessoas, na mesma data, perante o mesmo Tabelião, elaborar dois testamentos outorgando-se os bens reciprocamente, desde que em instrumentos separados. Ilustrando, o marido pode testar os bens disponíveis a sua mulher em um instrumento, bem como a esposa pode testar os bens ao marido em outro instrumento, ainda que celebrados na mesma data. Em análise comparada que pode interessar, lembra Washington de Barros Monteiro que em países como Suécia e Inglaterra são permitidos e muito comuns os testamentos conjuntivos efetuados por marido e mulher (Curso..., 2003, v. 6, p. 133). Exemplificando, Zeno Veloso transcreve o art. 2.265 do Código Civil alemão: “um testamento de mão comum só pode ser outorgado pelos cônjuges” (Novo Código Civil..., p. 1.560). Nosso ordenamento, entretanto, não admite, nem mesmo entre os cônjuges, essa modalidade testamentária. Superada essa análise introdutória, passa-se ao estudo das formas de testamento previstas no Código Civil em vigor. 3.2.1 Do testamento público O testamento público é aquele elaborado pelo tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas (art.
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1.864, I, do CC). Portanto, a elaboração de testamento público é de competência do Tabelionato de Notas. Assevera Washington de Barros Monteiro que “a lei não diz, mas a primeira preocupação do serventuário é a de certificar-se cuidadosamente da identidade do testador, não só da identidade como também da sua sanidade mental. Está em jogo o supremum judicium defuncti, em que a vontade do testador se assemelha à vontade do legislador” (Curso..., 2003, v. 6, p. 134). Isso não quer dizer que o tabelião deva exigir exame de sanidade mental do testador, mas apenas significa que, se for evidente o seu estado de demência ou houver dúvidas sobre sua sanidade, deve o tabelião se negar a lavrar o testamento. Aponta Zeno Veloso que “o serviço notarial é exercido em caráter privado, por delegação do Poder Público, como enuncia o art. 236, caput, da Constituição Federal, que foi regulamentado pela Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, cujo art. 7.º, II, dispõe que compete aos tabeliães de notas, com exclusividade, lavrar os testamentos públicos e aprovar os cerrados. O art. 20 dessa lei autoriza os notários, para o desempenho de suas funções, a contratar escreventes, dentre eles escolhendo os substitutos” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.561). A Lei 8.935/1994, em seu art. 20, § 4.º, proibia aos substitutos que lavrassem testamentos. O dispositivo considera-se tacitamente revogado com a vigência do Código Civil de 2002 em razão da incompatibilidade das normas, eis que o art. 1.864, I, prevê a possibilidade de atuação do substituto. Curioso notar que a Lei estadual paulista 12.227, de 12 de janeiro de 2006, reproduz a orientação da Lei federal 8.935/1994, em seu art. 13, § 2.º, contrariando expressamente o texto do Código Civil de
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2002. Não há dúvidas de que se deve considerar que essa lei estadual não tem mais aplicação, pois a lei codificada prevalece tendo em vista o critério hierárquico (norma superior prevalece sobre inferior). Quanto às formalidades do ato, nada impede que o testador apresente minuta de seu testamento, bem como eventuais notas ou apontamentos, segundo o mesmo inciso I do art. 1.864 do CC. Porém, a lavratura será realizada pelo próprio tabelião ou por seu substituto. A lavratura do instrumento no livro próprio pode ser feita por meio manual – que praticamente não mais ocorre –, ou por meio mecânico, tal como a máquina de escrever ou o computador. A declaração deve ser inserida em partes impressas do livro de notas, com a assinatura e a rubrica do testador em todas as páginas (art. 1.864, parágrafo único, do CC). O texto deve ser escrito em português, embora a lei não diga isso expressamente. No que concerne a esse requisito, lembra Maria Helena Diniz que, nos termos do art. 205, § 4.º, do CC, “se qualquer dos comparecentes não souber a língua nacional e o tabelião não entender o idioma em que se expressa, deverá comparecer tradutor público para servir de intérprete, ou, não o havendo na localidade, outra pessoa capaz que, a juízo do tabelião, tenha idoneidade e conhecimento bastantes” (Curso..., 2005, v. 6, p. 204). Depois de lavrado, o testamento será lido em voz alta pelo tabelião ao testador na presença de duas testemunhas, ou pelo próprio testador às testemunhas, se este assim desejar (art. 1.864, II, do CC/2002). No revogado Código Civil, o número de testemunhas era de cinco (art. 1.632 do CC/1916), sendo certo que a redução do número
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de testemunhas mantém relação com o princípio da operabilidade, no sentido de facilitação do Direito Civil. Devese perceber que a presença das testemunhas à leitura é essencial, e a sua ausência acarreta a nulidade do testamento, pois, se assinarem posteriormente, não poderão comprovar se a declaração corresponde à vontade do falecido. Como bem aponta Zeno Veloso, a legislação reconhece o princípio da unidade ou unicidade do ato testamentário. São suas palavras: “Desde o direito romano, a unidade do ato testamentário (uno actu), ou melhor dizendo, a unidade do contexto (uno contextu), é uma rigorosa exigência: o tabelião e as testemunhas devem estar presentes simultaneamente, do começo até o fim da solenidade, sem intervalos e lacunas. Mas o tema não deve escravizar-se à rigidez romana, merecendo temperamentos, uma interpretação inteligente, considerando as circunstâncias de cada caso, que consinta breves interrupções, por falta de energia elétrica, para resolver uma emergência passageira, para o atendimento de um telefonema urgente, ou para remediar uma necessidade corporal do tabelião ou das testemunhas, por exemplo” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.562).
A ilustrar a pregada flexibilização, cabe colacionar julgado publicado no Informativo n. 457 do STJ, de novembro de 2010: “Testamento. Princípio da unicidade. O testamento em questão foi lavrado da seguinte forma: primeiro, o oficial do cartório remeteu espécie de minuta do testamento ao testador octogenário (de delicada saúde), que fez nela correções, e, só após isso, foi à residência do testador com o texto final
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do testamento, que foi lido pelo oficial e assinado pelo testador e testemunhas. Nesse contexto, não há como ter por ofendido o art. 1.632 do CC/1916 pela falta de observância do princípio da unicidade do ato; pois, antes de tudo, há que privilegiar a vontade do testador, ainda que se sustente a ocorrência de eventual inobservância dos requisitos formais do testamento. Tal não ocorreria se existente fato concreto passível de causar dúvidas quanto à própria faculdade do testador de livremente dispor de seus bens, o que não é o caso, pois o TJ afastou a alegação de incapacidade mental do testador no momento da elaboração do testamento, decisão contra a qual sequer se insurgiram os recorrentes. Assim, as assertivas do TJ referentes à perfeição formal do ato testamentário (certificada pelo oficial), sua veracidade e regularidade encontram-se abrigadas na Súm. n. 7-STJ, que impede sua revisão nesta sede especial. Ao acolher esse entendimento, a Turma, dando prosseguimento ao julgamento, negou provimento ao especial. O voto vista do Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS) alude a parecer inserto nos autos que assinala ser possível mitigar as formalidades testamentárias desde que justificado, como no caso. Já o Min. Sidnei Beneti ressaltou que essa é interpretação mais moderna das formalidades constantes do art. 1.632 do CC/1916, que dizem respeito a outros tempos em que os documentos realmente se produziam manuscritos e diretamente na presença de todas as pessoas envolvidas. Precedentes citados do STF: RE 21.731-CE, DJ 5/10/1953; do STJ: REsp 1.001.674-SC, DJe 15/10/2010; REsp 223.799-SP, DJ 17/12/1999; REsp 828.616-MG, DJ 23/10/2006, e REsp 228-MG, DJ 4/12/1989” (STJ, REsp 753.261/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 23.11.2010).
Superado tal ponto, cabe uma indagação de direito intertemporal: se o testamento público foi celebrado na vigência do revogado Código Civil e só contou com a
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presença de duas testemunhas, mas o falecimento só se deu na vigência do Código Civil de 2002, o testamento será válido ou nulo? Pelo Código Civil argentino, art. 3.625, há previsão expressa determinando que “a validade do testamento depende da observância da lei que o rege no tempo em que foi feito. Uma lei posterior não traz mudança alguma, nem a favor, nem em prejuízo do testamento, mesmo que ocorra ainda vivo o testador”. Para o direito brasileiro a resposta é que o testamento será nulo, pois a lei que se aplica no tocante à validade é a do momento da celebração. No caso em questão, mais uma vez, aplica-se o art. 2.035, caput, importante norma de direito intertemporal do atual Código Civil que adota a divisão do negócio jurídico em três planos do negócio jurídico, conforme ensina Pontes de Miranda. Ainda quanto ao ato em si, terminada a leitura, deve o instrumento ser assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião (art. 1.864, III, do CC). Caso o testador não saiba assinar ou não o possa fazer – imaginemos que tenha quebrado as mãos ou tenha sido vítima de um derrame cerebral –, o tabelião declarará a impossibilidade e assinará pelo testador, bem como uma das testemunhas a seu pedido, a seu rogo (art. 1.865 do CC). Nesse caso, não é necessário que um terceiro, que não o tabelião ou a testemunha, assine por ele. Com relação aos surdos, problema surge quando da elaboração de testamento sob a forma pública, eis que o deficiente auditivo não tem como conferir a leitura oral, exigência esta decorrente da lei quando adotada essa forma. Entretanto, o Código Civil resolve a questão da seguinte maneira, pois se o surdo souber ler, poderá ele, pessoalmente, efetuar a leitura e depois assinar o
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testamento. Se não souber, deve designar quem o leia (art. 1.866 do CC), ou seja, alguém que não seja o tabelião ou as testemunhas, devendo todas essas circunstâncias constar do testamento. No último caso, nada impede que um terceiro presente assine a rogo, a pedido do testador, mas isto não se faz necessário. Com relação aos cegos, determina a lei que estes só poderão testar por instrumento público, que lhe será lido duas vezes em voz alta: uma pelo tabelião ou substituto e outra por uma das testemunhas designadas pelo testador (art. 1.867 do CC), constando tudo isso no testamento. A dupla leitura é imprescindível em razão da deficiência visual do testador, e a não realização da segunda leitura implica nulidade do testamento, por desrespeito à solenidade. Por se tratar de solenidade legal, tal exigência não pode ser dispensada pelo testador, ainda que confie plenamente no tabelião. Nas hipóteses em que o herdeiro ou legatário beneficiado for uma associação de caráter beneficente, os tabeliães quando lavrarem escrituras públicas de testamento deverão consultar o testador sobre a conveniência de se comunicarem, por escrito, com a entidade ou entidades favorecidas. Idêntica consulta será formulada nas hipóteses de escritura pública de revogação de testamentos ou de cláusulas testamentárias favoráveis àquelas associações. No caso do Estado de São Paulo, as comunicações desejadas limitar-se-ão ao nome do testador e à data, número do livro e folhas da escritura pública de testamento ou de revogação (Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, Provimento n. 25 de 2005, no Capítulo XIV – Do serviço notarial, Seção I, item 8).
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É necessário frisar que, apesar de ser elaborado pela forma pública, o testamento não deveria ser deixado à disposição de todos para consulta, pois só produzirá efeitos após a morte do testador. O conceito de publicidade não significa amplo acesso a toda e qualquer pessoa, incluindo-se aí eventuais curiosos. Melhor seria entender que o acesso não é realmente livre, pois qualquer pessoa poderia, conhecendo o conteúdo do testamento, pressionar o testador para alterá-lo. De qualquer forma, não há nada na atual legislação que impeça o acesso ao instrumento por esses curiosos. O Projeto 699/2011, de autoria original do Deputado Ricardo Fiuza, pretende acrescentar um § 2.º ao art. 1.864, para dele fazer constar o seguinte: “A certidão do testamento público, enquanto vivo o testador, só poderá ser fornecida a requerimento deste e ou por ordem judicial”. Pois bem, visando a regulamentar a questão da publicidade, em São Paulo, no ano de 2002, o Colégio Notarial criou o Registro Central de Testamentos. Trata-se de um banco de dados com todos os cartórios da capital que registra a existência de mais de 200 mil testamentos e sua eventual revogação desde a década de 1970. Para disciplinar o assunto, as Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, por meio do Provimento 25 de 2005 (item 26 da Seção XIV), determinam que os serventuários dos Cartórios de Notas e dos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais e Anexos de Notas de todo o Estado de São Paulo remetam ao Colégio Notarial do Brasil, Seção de São Paulo, até o 5.º dia útil de cada mês, relação em ordem alfabética dos nomes constantes dos testamentos lavrados em seus livros, e suas revogações, e dos instrumentos de aprovação
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de testamentos cerrados, ou informação negativa da prática de qualquer desses atos. Assim, requerida a abertura da sucessão, poderão os MM. Juízes de Direito do Estado de São Paulo oficiar ao Colégio Notarial do Brasil, Seção de São Paulo, solicitando informação sobre a existência de testamento. O item 26 ainda determina que a informação sobre a existência ou não de testamento de pessoa comprovadamente falecida somente será fornecida mediante requisição judicial ou a pedido do interessado deferido pelo juiz corregedor permanente da Comarca. O interessado deverá recolher a importância equivalente a 0,5 UFESP (Unidade Fiscal do Estado de São Paulo) e apresentar a requisição diretamente ao Colégio Notarial do Brasil, Seção de São Paulo. Isso, inclusive por vale postal ou ordem de pagamento, salvo em caso de assistência judiciária. Como se percebe, portanto, o acesso ao testamento público no Estado de São Paulo já foi restringido pelas normas da Corregedoria do Tribunal de Justiça. Para a consulta ao texto integral das normas, veja-se o site da Associação dos Registradores do Estado de São Paulo (. Acesso em: 15 jul. 2006). O Código de Processo Civil traz normas procedimentais específicas a respeito do testamento público. A primeira delas enuncia que qualquer interessado poderá, exibindo-lhe o traslado ou a certidão, requerer ao juiz que ordene o cumprimento do testamento (art. 1.128 do CPC), independentemente da atitude do testamenteiro que tem o dever legal de fazê-lo. Em seguida, lavra-se o auto de abertura, que, rubricado pelo juiz e assinado pelo apresentante, mencionará a
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data e o lugar em que o testamento foi aberto; o nome do apresentante e como houve ele o testamento; a data e o lugar do falecimento do testador; e qualquer circunstância digna de nota, encontrada no invólucro ou no interior do testamento (art. 1.125 do CPC). Os autos serão conclusos e o juiz, ouvido o órgão do Ministério Público, mandará registrar, arquivar e cumprir o testamento, se lhe não achar vício externo, que o torne suspeito de nulidade ou falsidade (art. 1.126 do CPC). O testamento será registrado e arquivado no cartório, devendo o escrivão remeter uma cópia, no prazo de oito dias, à repartição fiscal, para fiscalização do recolhimento de impostos eventualmente devidos (art. 1.126, parágrafo único, do CPC). A finalidade desse envio é a verificação e a apuração de impostos, segundo aponta a doutrina processualista (MARCATO, Antonio Carlos. Código..., 2004, p. 2.630). Curioso notar que, mesmo se não houver disposição patrimonial, o testamento obrigatoriamente deve ser remetido ao fisco. Por fim, feito o registro, o escrivão intimará o testamenteiro nomeado a assinar, no prazo de cinco dias, o termo da testamentaria. Se não houver testamenteiro nomeado, estiver ele ausente ou não aceitar o encargo, o escrivão certificará a ocorrência e fará os autos conclusos, caso em que o juiz nomeará testamenteiro dativo, observando-se a preferência legal (art. 1.127 do CPC). Após a assinatura do termo de aceitação da testamentaria, o escrivão extrairá cópia autêntica do testamento para ser juntada aos autos de inventário ou de arrecadação da herança. Findo está o procedimento de abertura, registro e cumprimento de testamento. Destaque-se, contudo,
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que não poderá ser herdeiro ou legatário o tabelião ou o escrivão que elaborar ou aprovar o testamento (art. 1.801, IV, do CC). Encerrando, interessante apontar que a grande vantagem do testamento público é que este não se perderá, pois ficará arquivado no Tabelionato de Notas, sendo grandes as chances de ser cumprido. Em síntese, pode-se dizer que a segurança de o seu conteúdo ser efetivado na prática é maior. Sua desvantagem se verifica no custo a ser pago ao Tabelião, que nem sempre pode ser arcado pela parte. 3.2.2 Do testamento cerrado O testamento cerrado é aquele escrito pelo próprio testador ou por outra pessoa a seu pedido, sendo assinado por aquele e entregue ao tabelião ou a seu substituto para aprovação (art. 1.868, caput, do CC). Note-se que nessa forma testamentária o conteúdo não será conhecido por terceiros, e nem necessariamente pelo tabelião, que apenas fará a aprovação. Daí a sua outra denominação – testamento místico –, pois o seu conteúdo é um mistério; antes de sua abertura, apenas o testador conhece seu conteúdo. Qualquer pessoa, parente ou não do testador, pode escrever o testamento a seu pedido, mas será nulo o negócio jurídico se tal pessoa for beneficiária dos bens, bem como se o beneficiário for cônjuge, companheiro, ascendente ou irmão de quem escreveu a pedido do testador (art. 1.801, I, do CC). Da mesma forma, a lei não impede que o tabelião que escreveu o testamento a pedido do testador o aprove (art. 1.870 do CC), mas tal oficial não poderá ser nomeado
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como herdeiro ou legatário, sob pena nulidade absoluta da disposição (art. 1.801, IV, do CC). Todas essas normas têm conteúdo ético indiscutível, visando afastar qualquer dúvida quanto à vontade do testador, o que motiva serem os casos de nulidade absoluta. O instrumento do testamento cerrado poderá ser escrito mecanicamente – por meio de máquina de escrever ou computador –, e, sendo assim, o testador deverá assinar todas as páginas (art. 1.868, parágrafo único, do CC), para que se evitem eventuais trocas de páginas com alteração de conteúdo. A ausência das assinaturas nulifica o testamento cuja veracidade seria questionável. Ainda quanto às formalidades, nada impede que o testamento cerrado seja escrito em idioma estrangeiro pelo próprio testador ou a seu rogo. É o que enuncia o art. 1.871 do atual Código. Por outra via, o surdo-mudo, e também aquele que só é mudo, que optar por utilizar a modalidade de testamento cerrado deverá escrevê-lo de próprio punho e assiná-lo, não podendo se valer de meios mecânicos, conferindo assim maior autenticidade à cédula (art. 1.873 do CC). Nesse caso, pelo mesmo dispositivo, a cédula deve ser entregue perante duas testemunhas, e o testador deve escrever na face externa do papel ou do envoltório que aquele é o seu testamento cuja aprovação pede, no exato momento em que fizer a entrega. Como explica Clóvis Beviláqua, o ato deve ser assim “por não poder o testador enunciar, de viva voz, a sua vontade de obter a aprovação do testamento, é que a lei lhe faculta manifestá-la por escrito, na face externa do papel ou do envoltório, na presença das testemunhas”
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(Código Civil..., 1955, v. VI, p. 85). Segundo o entendimento majoritário da doutrina, caso de Washington de Barros Monteiro (Curso..., 2003, v. 6, p. 140) e de Maria Helena Diniz (Curso..., 2005, v. 6, p. 215), a limitação só atinge os mudos e os surdos-mudos. É de se observar que o apenas surdo não sofreria tais limitações, pois pode expor sua vontade e pedir oralmente a aprovação. Entretanto, em sentido contrário está Silvio Rodrigues (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 163). Retornando à análise das formalidades do testamento cerrado, o testador deve declarar que o testamento é seu e que quer a sua aprovação pelo tabelião (art. 1.868, II, do CC). A intervenção do tabelião nessa modalidade é imprescindível, sendo considerada uma espécie de testamento notarial. O tabelião pode ou não ter conhecimento do conteúdo do testamento. Se tiver, o testamento permanece válido. Se não tiver, a validade é a mesma. Em seguida, o tabelião lavra o auto de aprovação na presença de duas testemunhas e lê o auto (e não o conteúdo do testamento) ao testador e às testemunhas (art. 1.864, III, do CC). O auto de aprovação, conforme leciona Zeno Veloso, é “um instrumento público, um ato notarial, e não tem objetivo de examinar e confirmar o conteúdo do testamento, de suas cláusulas e disposições, mas, apenas, atestar a identidade do testador e das testemunhas, e verificar se o documento não contém irregularidades formais, como espaços em branco, borrões, rasuras ou entrelinhas que possam causar dúvidas ou questões” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.565). No revogado Código Civil, o número de testemunhas era de cinco (art. 1.638 do CC), havendo nessa redução do
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número de testemunhas o reconhecimento da facilitação do Direito Civil (princípio da operabilidade). Note-se que a presença das testemunhas à leitura do auto de aprovação é essencial, e sua ausência acarreta a nulidade do testamento, pois na hipótese de as assinaturas terem sido apostas em momento posterior, não seria possível comprovar se realmente aquele testamento foi o apresentado pelo testador ao tabelião. Mais uma vez, se o testamento público foi celebrado na vigência do revogado Código Civil e só contou com a presença de duas testemunhas – quando o regime anterior exigia a presença de cinco testemunhas –, mas o falecimento só se deu na vigência do Código Civil de 2002, o testamento será nulo. Isso porque a lei que se aplica para verificar a validade do negócio jurídico é a do momento da celebração. Trata-se de outra aplicação do sempre comentado art. 2.035, caput, do CC. Pois bem, logo após o testador declarar que aquele é o seu testamento, de imediato deve o tabelião lavrar o auto de aprovação, sempre em português, ainda que o testamento tenha sido redigido em outro idioma (art. 1.869 do CC). O auto começará a ser escrito logo após a última palavra escrita na cédula testamentária pelo testador (ou de quem a escreveu a seu pedido), devendo ser assinado por ele, pelas testemunhas e pelo tabelião (art. 1.868, IV, do CC). Se não houver espaço em branco na última folha do testamento, para o início da redação do auto de aprovação, como cautela para que se evite qualquer problema de alteração ou de complemento futuro, o tabelião deverá apor seu sinal público, iniciar o auto de aprovação em outra
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folha, e nele mencionar tal fato (art. 1.869, parágrafo único, do CC). Terminada a lavratura do auto, o testamento deverá ser cerrado (fechado) e cosido (costurado). Explica Maria Helena Diniz que o tabelião dobrará o auto de aprovação, juntamente com a cédula testamentária, num só invólucro, que será por ele cerrado e cosido com cinco pontos de retrós, segundo a praxe cartorária, lacrando-se o testamento nos pontos de costura (Curso..., 2005, v. 6, p 213). Silvio Rodrigues, esclarecendo que não se trata de determinação legal, afirma que o tabelião coloca “pingos de lacre sobre os nós da linha que utilizaram para coser o testamento” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 163). Depois de aprovado e cerrado, o testamento deve ser entregue ao testador. O tabelião, que não fica com cópia do mesmo e sem conhecer o conteúdo da disposição, apenas lança em seu livro a nota do lugar, dia e ano em que o testamento foi aprovado e entregue (art. 1.874 do CC). O grande problema do testamento cerrado é o seu possível extravio. Isso porque o instrumento fica em poder do testador ou de pessoa por ele escolhida e só poderá ser aberto pelo juiz quando da morte do testador, que, antes, deverá verificar se o mesmo está intacto (art. 1.125 do CPC). O rompimento do lacre pelo próprio testador significa a revogação do testamento. Nesse sentido, falecido o testador, cabe a verificação de vício externo que o torne eivado de nulidade ou suspeito de falsidade (art. 1.875 do CC). Após sua abertura e leitura pelo juiz, seguirá os mesmos trâmites referentes ao testamento público, que se
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encerram quando é extraída a cópia para juntar ao inventário (art. 1.127, parágrafo único, do CPC). Já foi explicado detalhadamente o procedimento do testamento público no item anterior, que também se aplica ao testamento cerrado. Prevê o art. 1.872 do CC que não podem se valer dessa forma de testamento as pessoas que não saibam ou possam ler, pois é essencial que se certifiquem do conteúdo escrito do testamento que será entregue ao tabelião para aprovação. Assim, não poderão se utilizar dela os analfabetos ou os cegos. Para concluir, Silvio Rodrigues tece feroz crítica ao testamento cerrado, chamando-o de velharia que só tem por vantagem o sigilo de suas disposições (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 163). Não discordamos do mestre da Universidade de São Paulo. Seus inconvenientes são enormes e seus benefícios muito pequenos, principalmente se pensarmos sob o ponto de vista prático. Em termos processuais, aplica-se ao testamento cerrado os mesmos procedimentos descritos para o testamento público, que estão previstos nos arts. 1.125 a 1.127 do CPC e que foram descritos na presente obra. 3.2.3 Do testamento particular A última forma ordinária de testar é a particular, que também é denominada hológrafa (grafa-se também ológrafa), uma vez que pode ser redigida pelo próprio testador sem a participação de tabelião ou funcionário do Estado. Segundo Eduardo de Oliveira Leite, a forma correta de grafia é “hológrafa”, já que “etimologicamente a
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expressão deriva do grego holos – inteiro ou completo – e graphien – escrever. Ou seja, inteiramente escrito” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 379). Conforme bem explica Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, “determina a lei que o próprio testador redija, leia e assine. Assim, a holografia – ser inteiramente escrito – e a autografia – ser escrito pelo testador – são características do testamento particular que se têm como essenciais, restando infirmado de nulidade se ocorrer sua inobservância” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 287). Isso não quer dizer que o testador não se possa utilizar de meios mecânicos, tais como um computador, para redigir o testamento, ou redigi-lo de próprio punho (art. 1.876 do CC). Se redigido de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade que o testamento seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever (art. 1.876, § 1.º, do CC). Note-se que “quem escreveu” só pode ter sido o próprio testador, já que o testamento particular escrito ou assinado a rogo, a pedido, é nulo de pleno direito, por desrespeito à forma (art. 166, IV, do CC). O revogado Código Civil exigia a presença de cinco testemunhas. É de se observar que a redução facilita o cumprimento da exigência, valendo as mesmas observações feitas quanto ao testamento público e ao cerrado quanto à validade do negócio jurídico. Se o negócio foi celebrado na vigência do Código Civil revogado, só será válido se contiver cinco testemunhas, ainda que a morte ocorra na vigência do Código Civil de 2002.
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Filia-se às críticas do mestre paraense e profundo conhecedor da matéria, Zeno Veloso, para quem o Código Civil de 2002 perdeu uma ótima oportunidade de tornar mais viável a elaboração de testamento particular no Brasil, eis que não ocorreram mudanças realmente importantes no tocante à matéria (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.571). Nesse contexto, poderia o Código Civil ter adotado a forma hológrafa simplificada, que dispensaria a presença de testemunhas. Isso incentivaria a elaboração de testamentos, o que não é comum entre nós. Se elaborado por processo mecânico, o testamento particular não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão (art. 1.876, § 2.º, do CC). Garante-se, assim, respeito à vontade do testador, que, por meio de rasuras ou espaços em branco, pode ter sua vontade alterada completamente. Ilustrando, imaginemos que a palavra “não” riscada de certa sentença altere todo o testamento. Nada impede que o testamento particular seja escrito em língua estrangeira, desde que todas as testemunhas que o assinem compreendam o idioma (art. 1.880 do CC). Pondera Sílvio de Salvo Venosa que, se uma das testemunhas não souber o idioma, nulo será o testamento (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 177). O artigo diz o óbvio, pois se não compreenderem o idioma, não compreenderão a disposição testamentária e não serão de nenhuma valia no momento da confirmação. Para a validade de tal forma de testamento a lei não exige a aposição de data e local da elaboração do testamento (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil..., 2003, v.
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7, p. 177; DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2005, v. 6, p. 216; CAHALI, FRANCISCO e HIRONAKA, GISELDA. Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 290), mas apenas a assinatura do disponente. Obrigatoriamente, o testamento deve ser lido pelo testador, não se admitindo que terceiros o façam. Essa leitura deverá ocorrer na presença das testemunhas, seja ele escrito de próprio punho ou por meio mecânico. Com a morte do testador, determina a lei que o testamento seja publicado em juízo, com a citação dos herdeiros legítimos, ou seja, daqueles a quem caberia a herança ou legado se testamento não houvesse (art. 1.877 do CC). Poderão requerer a publicação do testamento em juízo o herdeiro, o legatário ou o testamenteiro, inquirindo-se as testemunhas que lhe ouviram a leitura e, depois disso, o assinaram (art. 1.130 do CPC). A norma processual prevê, ainda, que a petição requerendo a publicação será instruída com a cédula do testamento particular (art. 1.130, parágrafo único, do CPC). Diferentemente do que ocorre com os testamentos público e cerrado, explica Antonio Carlos Marcato, “cuja idoneidade resulta, em princípio ou da aprovação do tabelião (no caso do testamento cerrado) ou de sua participação (no caso de testamento público), o testamento particular é elaborado pelo próprio testador e assinado por três testemunhas, daí a necessidade de verificação judicial de sua autenticidade e validade” (Código de Processo Civil..., 2004, p. 2.635). Assim, seguindo a Escada Ponteana, falta ao testamento particular eficácia quando da morte do testador. Esta eficácia decorre de sua confirmação e do cumpra-se do juiz, conforme aponta a
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respeitável doutrina de Zeno Veloso (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.573). Além dos herdeiros legítimos que receberiam a herança se o falecido tivesse morrido ab intestato, serão chamados para a inquirição o testamenteiro, os herdeiros e os legatários que não tiverem requerido a publicação e o Ministério Público (art. 1.131 do CPC). As testemunhas deverão ser inquiridas, facultando-se aos interessados, no prazo comum de cinco dias, manifestarem-se sobre o testamento. Explica, mais uma vez, Antonio Carlos Marcato que a aferição terá por objetivo verificar a capacidade testamentária do testador e a sucessória do herdeiro, bem como a observância dos requisitos formais na feitura do testamento e se no momento em que testou, o testador tinha pleno discernimento do ato e manifestou livremente a sua vontade (Código de Processo Civil..., 2004, p. 2.636). Ainda no tocante aos procedimentos de abertura, podem os interessados presentes, devidamente representados por seus advogados, formular perguntas às testemunhas. Se as testemunhas estiverem de acordo quanto ao fato da disposição ou pelo menos sobre a leitura perante elas, e se reconhecerem sua própria assinatura bem como a do testador, o testamento será confirmado (art. 1.878 do CC). Explica Maria Helena Diniz que “não se exige que se recordem do conteúdo do testamento; basta que declarem que a leitura do testamento foi feita perante elas e que reconheçam suas assinaturas e a do testador e a veracidade do ato” (Curso..., 2005, v. 6, p. 217). Determinava o Código de Processo Civil em seu art. 1.133 que “se pelo menos três testemunhas contestes
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reconhecerem que é autêntico o testamento, o juiz, ouvido o órgão do Ministério Público, o confirmará”. Entendemos, assim como Antonio Carlos Marcato que o dispositivo foi revogado pela introdução de duas novas normas no ordenamento jurídico nacional (Código de Processo Civil..., 2004, p. 2.637): 1.º) Se faltarem testemunhas, por morte ou ausência, e se pelo menos uma delas o reconhecer, o testamento poderá ser confirmado, se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade (art. 1.878, parágrafo único, do CC). Sobre a hipótese em questão, bem lembra Sílvio de Salvo Venosa que “o testamento, qualquer que seja sua modalidade, é um dos negócios mais suscetíveis a fraudes e ataques de nulidade. Toda a carga de responsabilidade, neste caso, é transferida ao juiz que poderá confirmar o testamento perante apenas uma das testemunhas” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 178). 2.º) Em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz (art. 1.879 do CC). Em realidade, frisa Zeno Veloso que o Código cria uma modalidade diferente de testamento, ou seja, o testamento elaborado em circunstâncias excepcionais, que impedem ou dificultam extremamente o testador de se valer de outras formas de testar ou do próprio testamento particular em sua configuração normal (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.574).
Sobre o último caso, devemos observar que a expressão circunstâncias excepcionais, constante do art. 1.879, constitui uma cláusula geral, um conceito aberto deixado pelo legislador para preenchimento caso a caso. Ora, diversas são as situações em que é possível imaginar
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alguém impedido de testar normalmente, como, por exemplo, se alguém estiver correndo sério perigo de vida em razão de uma onda de violência que atinge uma grande cidade; se estiver perdido na selva sem conseguir achar a civilização; ou, por fim, em sendo um náufrago perdido em uma ilha. Exemplo colhido do Tribunal Paulista, além de esclarecedor, preenche de maneira adequada a expressão e atende ao espírito da lei. Determinada pessoa, prestes a fazer uma séria cirurgia, temeroso quanto à possibilidade de falecimento, lavrou de próprio punho testamento particular, que não contou com a presença de testemunhas. Vejamos a ementa da decisão: “Testamento. Particular. Excepcional. Documento lavrado de próprio punho, quando da iminência de o disponente, temeroso de vir a falecer, ser submetido a cirurgia. Validade. Excepcionalidade devidamente declarada, consistente no temor da morte quando do procedimento cirúrgico. Ausência de identificação das testemunhas. Irrelevância. Dispensa das mesmas pelo art. 1.879 do CC. Recurso provido. A excepcionalidade exigida está, por sua vez, devidamente declarada no documento em exame. O testador fez consignar expressamente que temia por sua morte na cirurgia; por isso, naquele ato, deixava seu imóvel à apelante que, segundo consta, com ele vivia em regime de união estável. Justamente a proximidade da morte do dispoente e a impossibilidade dele recorrer às formas ordinárias têm sido apontadas pela doutrina como exemplo de situações excepcionais autorizadoras do ato” (TJSP, Apelação Cível 434.146-4/0-00, 7.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Álvaro Passos, j. 21.05.2008).
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Entendemos, ainda, que a cautela do juiz deve ser enorme no caso em questão, como é comum no preenchimento das cláusulas gerais. Imagine-se a hipótese em que o testador é forçado a redigir o testamento e logo após é morto pelo beneficiário. Deve o juiz inquirir cuidadosamente as partes interessadas, buscando a real verdade dos fatos e declarando eventual nulidade do testamento que tenha por objetivo fraudar direitos sucessórios. Encerrando o estudo do tema, concorda-se integralmente com Eduardo de Oliveira Leite quando afirma que “a aceitação do testamento particular, sem testemunhas, atinge frontalmente a sistemática empregada no capítulo III do direito sucessório nacional, ou bem, em respeito à coerência, mantém-se um sistema formalista; ou bem abandona-se o excessivo formalismo e, em atitude coerente, resgata-se a forma simplificada de testar privadamente” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 396).
3.3 DOS TESTAMENTOS ESPECIAIS Conforme dito anteriormente, o testamento é um ato solene e, portanto, deverá observar, para a sua validade, as formas previstas em lei, sob pena de nulidade sendo exatamente por esse motivo que não são admitidas outras formas especiais de testar, além das previstas na codificação em vigor (art. 1.887 do CC). Depois de estudadas as formas ordinárias de testar (pública, cerrada e particular), necessária se faz a análise das chamadas formas extraordinárias ou especiais (art. 1.886 do CC): o testamento marítimo e o testamento aeronáutico (arts. 1.888 a 1.892); bem como o testamento
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militar (arts. 1.893 a 1.896 do CC). Passaremos ao estudo dessas formas testamentárias de modo pontual. 3.3.1 Do testamento marítimo e do testamento aeronáutico Não podemos iniciar a abordagem do tema sem tecer a consideração de que se o brasileiro não tem por hábito testar pelas formas ordinárias, as formas extraordinárias são resquícios históricos e de pouquíssima ou nenhuma utilidade. Na opinião dos presentes autores, as categorias permanecem no Código Civil de 2002 como mero capricho do legislador, que, por exemplo, revogou o regime dotal para o casamento, mas ainda manteve as formas especiais de testamento seguindo a máxima pela qual o que abunda não prejudica. Enquanto o Código Civil revogado só tratava do testamento marítimo, ou seja, daquele feito por quem está em viagem a bordo de navio nacional, seja ele de guerra ou mercante, o Código Civil de 2002 passou a cuidar também do testamento aeronáutico, para quem estiver a bordo de aeronave militar ou comercial. Ambas as formas especiais estão previstas nos arts. 1.888 e 1889 da atual codificação, respectivamente. Já fomos indagados na prática do porquê de a lei não cuidar do testamento ferroviário ou rodoviário. A resposta é simples. Aquele que viaja de trem ou de ônibus está em terra e pode, a qualquer momento, descer do transporte para testar por uma das formas ordinárias solenes (testamento público ou cerrado). Já os que se encontram em navios ou aeronaves não poderão testar pelas formas
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ordinárias em razão do impedimento físico de sair do navio em meio ao oceano ou do avião em pleno voo. Exatamente em razão da ratio legis é que será nulo o testamento marítimo se, no momento em que foi realizado, ainda que no curso de uma viagem, o navio estava em porto onde o testador pudesse desembarcar e testar na forma ordinária (art. 1.892 do CC). Superado esse ponto, importante dizer que as regras do testamento marítimo e do aeronáutico são idênticas. A primeira delas é a de que aquele que estiver em navio nacional deverá testar perante o comandante – autoridade presente –, e também na presença de duas testemunhas, podendo-se utilizar da forma cerrada ou pública (art. 1.888 do CC). Da mesma forma, se estiver em aeronave, poderá testar perante pessoa designada pelo comandante e também perante duas testemunhas (art. 1.889 do CC). Essa pessoa designada pode ser um comissário de bordo, o copiloto, ou ainda um passageiro qualquer. Percebe-se que essa pessoa designada e o comandante do navio desempenharão as funções do tabelião. Em se valendo da forma pública, o comandante (de navio ou aeronave) ou pessoa por ele designada lavra o testamento no diário de bordo, colhe a assinatura do testador e das duas testemunhas. Se o testador não puder ou não souber assinar, a autoridade declarará tal fato, assinando pelo testador e, a seu rogo, também uma das testemunhas. Aplica-se, portanto, a regra antes estudada prevista no art. 1.865 da norma codificada. Utilizando o testador a forma cerrada, o comandante (de navio ou aeronave) ou a pessoa por ele designada lavra
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no diário de bordo o auto de aprovação que também é assinado pelo testador e pelas testemunhas. Muito procedente é a indagação que faz Eduardo de Oliveira Leite sobre o disposto no art. 1.888, que determina que o testamento especial marítimo ou militar seja feito “da forma que corresponda ao testamento público ou cerrado” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 415). A dúvida que surge é: todas as exigências previstas para as formas ordinárias devem ser respeitadas pelas formas especiais sob pena de nulidade? Realmente, a falta de regulamentação adequada e clara pode gerar confusões insuperáveis sobre o tema. Ora, se exigidas fossem exatamente as mesmas formalidades, concluiríamos que as formas especiais, na verdade, não são especiais e seguem as formas ordinárias, com todos os seus requisitos. Criar-se-ia o seguinte contrassenso: se as formas especiais são permitidas exatamente por não ser possível ao testador a adoção da forma ordinária, como podem seus requisitos ser idênticos? Zeno Veloso indica o real alcance do dispositivo ao comentar que “advirta-se, no entanto, que essa aplicação dos preceitos referentes às duas formas ordinárias indicadas no art. 1.888, não deve ser feita mecanicamente, com extremo rigor e compreensão literal. A parificação não pode ser absoluta e completa, senão o testamento marítimo não passaria de um testamento público ou cerrado feito sobre as águas, e tendo o comandante do navio como notário. Não é esta, com certeza a ratio legis” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.581). Concordamos com o mestre paraense.
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Outra regra importante é a de que cabe ao comandante a guarda do testamento marítimo e aeronáutico que deverá ser entregue às autoridades administrativas do primeiro porto ou aeroporto nacional, contra recibo averbado no diário de bordo (art. 1.890 do CC). Prevê ainda o Código Civil que perderão a eficácia o testamento marítimo e aeronáutico se o testador não morrer na viagem ou nos noventa dias subsequentes ao seu desembarque em terra e, ainda assim, não tiver feito, na forma ordinária, outro testamento (art. 1.891 do CC). É o que se denomina caducidade do testamento. A razão de ser da norma é clara, uma vez que as formas especiais de testar são excepcionais e só podem ser utilizadas caso o testador não possa se valer das ordinárias. No caso em questão, não morrendo o testador e chegando em terra firme, terá 90 dias para se valer de uma das formas ordinárias de testar, sob pena de caducidade e consequente ineficácia das disposições testamentárias. Por fim, como o Código Civil não limita os testamentos aeronáuticos às aeronaves nacionais, sobre a lei que deve reger o testamento, observa Washington de Barros Monteiro que “embora omisso o texto legal, considera-se o princípio locus regit actum, devendo o testamento observar a forma do lugar em que está sendo concretizado; como a aeronave brasileira é considerada território brasileiro, é a lei brasileira que segue a solenidade desse testamento, segue-se que é a equipamento de nacionalidade brasileira que ele se refere” (Curso..., 2006, v. 6, p. 156). Em termos processuais, determina o Código de Processo Civil que as disposições referentes aos testamentos
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particulares se aplicam ao testamento marítimo, e, portanto, também ao testamento aeronáutico (art. 1.134 do CC). Sendo assim, tais modalidades de testamento devem ser obrigatoriamente confirmadas pelo juiz, conforme expusemos no presente capítulo. 3.3.2 Do testamento militar Permite a lei o testamento feito pelos militares e pelos não militares a serviço das Forças Armadas em campanha, dentro do País ou fora dele, assim como em praça sitiada ou que esteja com as comunicações interrompidas (art. 1.893 do CC). Como se pode perceber, diante da nossa falta de tradição beligerante, essa forma testamentária tem pouca aplicação prática. Recentemente, pode ser citado o exemplo das tropas brasileiras enviadas ao Haiti pela ONU, em missão de paz. Todavia, mais uma vez, permite a lei a forma especial em razão da impossibilidade de utilização da forma ordinária. O militar em campanha ou mesmo o civil que esteja servindo às Forças Armadas não poderá testar pelas formas ordinárias em razão das dificuldades inerentes à campanha militar. Mas quem são os civis em campanha? Washington de Barros Monteiro menciona os médicos, os cirurgiões, os enfermeiros, os observadores os oficiais, os repórteres, os engenheiros, os telegrafistas e os capelães, ocupados em operações de guerra, dentro ou fora do nosso País (Curso..., 2003, v. 6, p. 156). Quanto às formas do testamento militar, três são as previstas em lei:
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a) Forma que se assemelha à pública. Determina o art. 1.893 do atual Código que não havendo tabelião ou seu substituto legal, o testamento militar pode ser feito ante duas ou três testemunhas. Se o testador não puder, ou não souber assinar, assinará por ele uma das testemunhas. Enumera a lei possíveis autoridades presentes para que façam as vezes de tabelião: se o testador pertencer a corpo ou seção de corpo destacado, o testamento será escrito pelo respectivo comandante, ainda que de graduação ou posto inferior; se o testador estiver em tratamento em hospital, o testamento será escrito pelo respectivo oficial de saúde, ou pelo diretor do estabelecimento e, por fim, se o testador for o oficial mais graduado, o testamento será escrito por aquele que o substituir (art. 1.893, §§ 1.º a 3.º, do CC). b) Forma que se assemelha ao testamento cerrado. Se o testador souber escrever, poderá fazer o testamento de próprio punho, contanto que o date e assine por extenso, e o apresente aberto ou cerrado, na presença de duas testemunhas ao auditor, ou ao oficial de patente, que lhe faça as vezes nesse mister (art. 1.894 do CC). Deve ser hológrafo e também autógrafo, pois deve ser datado e assinado por extenso pelo próprio testador. c) Testamento militar nuncupativo. Aqueles que podem se valer do testamento militar e que estejam empenhados em combate ou feridas podem testar oralmente, confiando sua última vontade a duas testemunhas (art. 1.896 do CC).
Em regra, perderá a eficácia o testamento militar se o testador estiver por noventa dias seguidos em lugar onde possa fazer, na forma ordinária, outro testamento (art. 1.895 do CC). No entanto, se o testamento foi feito pelo testador, de próprio punho, na forma cerrada ou pública, com a nota de aprovação do oficial, o testamento será eficaz mesmo decorridos 90 dias.
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Também perderá a eficácia o testamento militar elaborado na forma nuncupativa se o testador não morrer na guerra ou convalescer dos ferimentos (art. 1.896, parágrafo único, do CC). Realmente, a solução legal tinha que ser esta, já que a forma nuncupativa é bastante perigosa, eis que, não havendo registro escrito, a probabilidade de não corresponder à real vontade do testador é enorme. Mais uma vez, há a chamada caducidade do testamento (plano da eficácia na Escada Ponteana). O motivo é o mesmo, ou seja, as formas especiais de testar são excepcionais e só podem ser utilizadas caso o testador não possa se valer das ordinárias. No caso do testamento nuncupativo, não morrendo o testador ou estando por 90 dias seguidos em lugar onde possa testar por uma das formas ordinárias (para o testamento militar público ou cerrado), ocorre a ineficácia das disposições testamentárias. Por fim, determina o Código de Processo Civil que as disposições referentes aos testamentos particulares se aplicam ao testamento militar (art. 1.134 do CPC). Elucidando o alcance da norma, tal modalidade de testamento deve ser obrigatoriamente confirmada pelo juiz, conforme expusemos no presente capítulo. Analisadas todas as formas possíveis de testamento, passaremos ao estudo dos codicilos.
3.4 A POLÊMICA DO TESTAMENTO VITAL OU BIOLÓGICO A partir da 4.ª Edição desta obra, resolvemos incluir um tópico a respeito do tema do testamento vital ou
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biológico, assunto amplamente debatido no Brasil nos últimos anos. Tal modalidade é também denominada testamento em vida, testament de vie ou living will. Roxana Cardoso Brasileiro Borges conceitua o instituto como “o documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não tratamento deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade” (BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade..., 2005, p. 239). Para a jurista, o declarante, por meio do testamento vital, visa a influir sobre os profissionais da área de saúde, “no sentido do não tratamento, como vontade do paciente, que pode vir a estar impedido de manifestar sua vontade, em razão da doença” (BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade..., cit., p. 239). A primeira dúvida que surge em relação ao testamento vital é a seguinte: trata-se de um exercício admissível da autonomia privada ou de um exercício ilícito, com conteúdo nulo? Para responder a tal questão, é importante aqui, antes de qualquer conclusão, esclarecer os conceitos de eutanásia, distanásia e ortotanásia (como referências para pesquisa e conceituação: DINIZ, Maria Helena. O estado..., 2003, p. 320-361; BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade..., 2005, p. 233-239). De início, a eutanásia – na tradução etimológica literal boa morte –, significa a facilitação da morte, engendrada pelos profissionais da área da saúde. A eutanásia se dá por meio de utilização de técnicas que permitam a ocorrência da morte, de modo a ser menos dolorosa quanto possível ao paciente. Para tal prática, há a
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utilização de condutas ativas, como a conhecida máquina de suicídio, criada pelo médico norte-americano Jack Kevorkian, conhecido como Doutor Morte. Por outra via, a distanásia significa o prolongamento do processo de morte, por meio artificial, o que traz sofrimento ao paciente. Há, portanto, um prolongamento exagerado, uma obstinação terapêutica, que se mostra, na maioria das vezes, totalmente inútil. Como bem explica Maria Helena Diniz, “Pela distanásia, também designada obstinação terapêutica (L’acharment thérapeutique) ou futilidade médica (medical futility), tudo deve ser feito mesmo que cause sofrimento atroz ao paciente. Isso porque a distanásia é a morte lenta e com muito sofrimento. Trata-se do prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil” (DINIZ, Maria Helena. O estado..., cit., p. 336). Em suma, trata-se de medida que deve ser evitada tanto pelos profissionais da área da saúde quanto pelos componentes do meio social, pois “distorce objetivos da medicina”, como bem esclarece Leo Pessini (PESSINI, Leo. Questões... In: Garrafa, VOLNEI; PESSINI, Leo (Org.). Bioética..., 2003, p. 400). Por fim, a ortotanásia – na etimologia morte correta – é justamente a situação oposta à distanásia, ou seja, representa o não prolongamento, de forma artificial, do processo de morte (BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade..., 2005, p. 235). A ortotanásia é prática utilizada para não gerar ao paciente um sofrimento físico, psicológico e espiritual, presente, por exemplo, pelo não emprego de técnicas terapêuticas inúteis de prolongamento da vida.
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As três expressões devem ser esclarecidas, pois, aqui, será trabalhada a ideia de testamento vital ou biológico somente para os casos de ortotanásia. Quanto ao primeiro caso, da eutanásia, ainda estão pendentes muitas reflexões. Desse modo, delimitada a aplicação do conceito, a resposta destes autores é positiva quanto à possibilidade jurídica do instituto. A partir do conceito de autonomia privada, que vem a ser o direito que a pessoa tem de regulamentar os seus interesses, decorrentes dos princípios constitucionais da liberdade e da dignidade, trata-se de um exercício admissível da vontade humana. Isso porque a ortotanásia representa um correto meio-termo entre a eutanásia e a distanásia, uma sabedoria a ser procurada por todos os envolvidos com o fato, de todas as áreas do pensamento. Nesse contexto, merecem transcrições as palavras de Leo Pessini: “Nasce uma sabedoria a partir da reflexão, da aceitação e da assimilação do cuidado da vida humana no sofrimento do adeus final. Entre dois limites opostos: de um lado, a convicção profunda que brota das culturas das religiões de não matar ou abreviar a vida humana sofrida (eutanásia); de outro lado, a visão e o compromisso para não prolongar a dor, o sofrimento, a agonia, ou pura e simplesmente adiar a morte (distanásia, tratamento fútil, obstinação terapêutica). No não matar e no não agredir terapeuticamente está o amarás, isto é, o cuidado da dor e do sofrimento humano, que em última instância aceita a morte e faz desta experiência o último momento de crescimento de vida, como revela todo o trabalho pioneiro da médica psiquiatra norte-americana Elizabeth Kübler-Ross. É o ideal da ortotanásia” (PESSINI, Leo. Questões..., Bioética, p. 406).
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O conteúdo do que se denomina como testamento vital ou biológico visa, assim, a proteger a dignidade do paciente terminal, dentro da ideia do binômio beneficência/ não maleficência, sendo o art. 15 do Código Civil o suporte legal para a viabilidade do que se propõe pelo instituto. Mais do que isso, há uma proteção indireta da dignidade dos familiares do paciente terminal, que também sofrem com todos os males e as dores pelas quais passa a pessoa amada e querida. Nesse sentido, pode-se falar em solidariedade familiar, estribada na proteção constitucional da solidariedade social, nos termos do art. 3.º, I, da Constituição Federal de 1988. Compartilhamos, portanto e em certo sentido, com a opinião de Diaulas Costa Ribeiro, para quem: “A suspensão de esforço terapêutico necessita de uma manifestação de vontade do paciente, a qual deve ser feita antes da perda de sua capacidade civil, no contexto das diretivas antecipadas. Para que isso seja possível, quatro alternativas se apresentam: uma escritura pública feita em cartório, na qual o paciente declara não aceitar a obstinação terapêutica, nem ser mantido vivo por aparelhos, especificando, ainda, que tipo de tratamento tolerará; uma declaração escrita em documento partilhar, uma simples folha de papel assinada, de preferência com firma reconhecida; uma declaração feita a seu médico assistente – registrada em seu prontuário, com sua assinatura. A quarta alternativa refere-se àquele paciente que não teve oportunidade de elaborar diretivas antecipadas mas que declarou a amigos, familiares etc. sua rejeição ao esforço terapêutico nos casos de estado vegetativo permanente ou de doença mental: a justificação testemunhal da vontade” (RIBEIRO, Diaulas Costa. Um novo testamento... In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Anais ..., 2006, p. 281).
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A partir das palavras transcritas, insta perceber, quanto às formalidades, que o doutrinador coloca à disposição do paciente medidas formais e informais, bastando a prova de sua manifestação de vontade para que as suas decisões sejam respeitadas pelos envolvidos. No que tange à ética médica, a prática da ortotanásia foi reconhecida como válida e eficaz, inicialmente, pela Resolução 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina, cujos dispositivos fundamentais merecem transcrição integral, para leitura e reflexões: “Art. 1.º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1.º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2.º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3.º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Art. 2.º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.”
Todavia, a citada resolução do Conselho Federal de Medicina foi suspensa por decisão da 14.ª Vara Federal do Distrito Federal, com efeitos erga omnes. Vejamos o seu trecho principal:
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“Trata-se de ação civil pública, com pedido de antecipação de tutela, ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL contra o CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, questionando a Resolução CFM n.º 1.805/2006, que regulamenta a ortotanásia. Aduz, em apertada síntese, que o Conselho Federal de Medicina não tem poder regulamentar para estabelecer como conduta ética uma conduta que é tipificada como crime. O processo foi ajuizado em 09 de maio de 2007. (...). Na verdade, trata-se de questão imensamente debatida no mundo inteiro. Lembre-se, por exemplo, da repercussão do filme espanhol ‘Mar Adentro’ e do filme americano ‘Menina de Ouro’. E o debate não vem de hoje, nem se limita a alguns campos do conhecimento humano, como o Direito ou a Medicina, pois sobre tal questão há inclusive manifestação da Igreja, conforme a ‘Declaração sobre a Eutanásia’ da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, aprovada em 05 de maio de 1980, no sentido de que ‘na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso, o médico não tem motivos para se angustiar, como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa em perigo’. Entretanto, analisada a questão superficialmente, como convém em sede de tutela de urgência, e sob a perspectiva do Direito, tenho para mim que a tese trazida pelo Conselho Federal de Farmácia nas suas informações preliminares, no sentido de que a ortotanásia não antecipa o momento da morte, mas permite tão somente a morte em seu tempo natural e sem utilização de recursos extraordinários postos à disposição pelo atual estado da tecnologia, os quais apenas adiam a morte com sofrimento e angústia para o doente e sua família, não elide a circunstância segundo a qual tal conduta parece caracterizar crime de homicídio no Brasil, nos termos do art. 121, do Código Penal. E parece caracterizar
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crime porque o tipo penal previsto no sobredito art. 121, sempre abrangeu e parece abranger ainda tanto a eutanásia como a ortotanásia, a despeito da opinião de alguns juristas consagrados em sentido contrário. Tanto assim que, como bem asseverou o representante do Ministério Público Federal, em sua bem-elaborada petição inicial, tramita no Congresso Nacional o ‘anteprojeto de reforma da parte especial do Código Penal, colocando a eutanásia como privilégio ao homicídio e descriminando a ortotanásia’ (fl. 29). Desse modo, a glosa da ortotanásia do mencionado tipo penal não pode ser feita mediante resolução aprovada pelo Conselho Federal de Medicina, ainda que essa resolução venha de encontro aos anseios de parcela significativa da classe médica e até mesmo de outros setores da sociedade. Essa glosa há de ser feita, como foi feita em outros países, mediante lei aprovada pelo Parlamento, havendo inclusive projeto de lei nesse sentido tramitando no Congresso Nacional. (...). Mas a mera aparência desse conflito já é bastante para impor a suspensão da Resolução CFM n.º 1.805/2006, mormente quando se considera que sua vigência, iniciada com a publicação no DOU do dia 28 de novembro de 2006, traduz o placet do Conselho Federal de Medicina com a prática da ortotanásia, ou seja, traduz o placet do Conselho Federal de Medicina com a morte ou o fim da vida de pessoas doentes, fim da vida essa que é irreversível e não pode destarte aguardar a solução final do processo para ser tutelada judicialmente. Do exposto, DEFIRO A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA para suspender os efeitos da Resolução CFM n.º 1.805/2006. Intimem-se. Cite-se. Brasília, 23 de outubro de 2007. ROBERTO LUIS LUCHI DEMO. Juiz Federal Substituto da 14.ª Vara/DF”.
Posteriormente, o Novo Código de Ética Médica (Resolução 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina) retoma o tema, no seu art. 41, ao estabelecer que é vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido
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deste ou de seu representante legal. O parágrafo único da norma é que merece destaque, ao enunciar que “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. Como se pode perceber, o dispositivo autoriza a ortotanásia, dando suporte ético ao testamento vital ou biológico em casos tais. Mais recentemente, o mesmo Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 1.995/2012, que trata das “Diretivas Antecipadas de Vontade”. Pela nova norma, a vontade do paciente deve prevalecer sobre a dos seus representantes, o que representa uma notável valorização da autonomia privada. De acordo com a nova norma ética, “Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade” (art. 2.º, caput). Eventualmente, caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico (§ 1.º). Porém, de acordo com o § 3.º do dispositivo, “as diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares”. Cumpre destacar, por fim, que as diretivas antecipadas de vontade poderão ser registradas no prontuário médico, não se exigindo maiores formalidades para tanto (§ 4.º). Tendo sido consolidada a questão no âmbito da ética médica, espera-se que a prática seja disciplinada e
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autorizada por lei, aguardando-se a aprovação de um dos projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional. No plano doutrinário destaque-se a aprovação, na V Jornada de Direito Civil, de enunciado reconhecendo a possibilidade do testamento vital ou biológico, nos seguintes termos: “É válida a declaração de vontade, expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade” (Enunciado n. 528). Reconhecida a sua viabilidade ético-jurídica, fica uma dúvida. O testamento vital ou biológico constitui realmente um testamento, no sentido jurídico da expressão, ou o instituto é uma mera disposição unilateral de vontade? Como enquadrar esse instituto como categoria jurídica? Estamos inclinados a concluir que o instituto que se propõe não é realmente um testamento. Isso porque, conforme exposto, o testamento é instituto jurídico para produzir efeitos após a morte. Não é o que ocorre em regra, com o que se denomina como testamento vital ou biológico, que nos casos envolvendo o tratamento médico produz efeitos ainda antes da morte da pessoa, particularmente nos casos em que o paciente é terminal. Ademais, a forma desse ato é livre, nos termos do art. 107 do CC, bastando que seja devidamente constatada e provada, não se enquadrando nas complexas solenidades relativas ao testamento, um dos atos que apresenta um maior número de formalidades entre todos de Direito Privado.
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Em suma, trata-se, em regra, de um ato jurídico stricto sensu unilateral, que pode, sim, produzir efeitos, uma vez que o seu conteúdo é perfeitamente lícito. Eventualmente, apenas nos casos em que houver disposições não patrimoniais, como aquelas relativas à doação post mortem de partes do corpo (nos termos do art. 14 do Código Civil), ao destino do corpo, ao sufrágio da alma, ao enterro, entre outros, é que o instituto seria assemelhado a um testamento, na verdade, mais próximo de um codicilo, nos termos do art. 1.881 do atual Código Civil brasileiro. Concluindo, o que se percebe é que a expressão testamento vital ou biológico não é correta quanto à categorização jurídica, pois o que se propõe não é um testamento em si. Por isso, propomos que a sua denominação, na prática, seja alterada para declaração vital ou biológica.
3.5 DOS CODICILOS A palavra codicilo tem origem latina, significa pequeno código, pequeno escrito, e sua origem remonta à palavra codex. Trata-se de ato de última vontade, assim como é o testamento, mas um ato simplificado para o qual a lei não exige tanta solenidade em razão de seu objeto ser considerado de menor importância para o falecido e para os herdeiros. Exatamente por isso, o codicilo não serve para legar bens imóveis, pois é forma inadequada para tanto, sendo, portanto, nula disposição nesse sentido, por desrespeito à forma. O codicilo serve para legar móveis, roupas ou joias de pouco valor e de uso pessoal do falecido (art. 1.881 do CC). A noção de pouco valor não se afere em termos absolutos,
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mas sim relativos. Uma joia que valha muito pode ser de pequeno valor se comparada à totalidade dos bens do falecido. Nesse sentido, Zeno Veloso explica que “há que ser feito um balanço, uma comparação entre o valor da disposição contida no codicilo com o montante dos bens deixados pelo falecido. O que é muitíssimo e quase tudo para um homem de poucas posses pode não significar nada e coisa alguma para um milionário” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.576). Washington de Barros Monteiro vê “uma tendência no sentido de fixar-se determinada porcentagem: haver-se-á como de pequeno valor a liberalidade, podendo por isto ser objetivada num codicilo, se não ultrapassar 10% do valor do monte” (Curso..., 2003, v. 6, p. 153). Para ilustrar, sobre os bens que podem ser deixados em codicilo, já decidiu o Tribunal Gaúcho: “Ação anulatória de Codicilo. Meio hábil para legar bens móveis de reduzido valor. Redução das disposições. Excluem-se do codicilo joias e relógios – bens de alto valor – por serem incompatíveis com a natureza da disposição de vontade, restrita a bens móveis de reduzido valor” (TJRS, Apelação Cível 70015923808, Rel. Des. Brasil Santos, j. 29.11.2006).
No caso em tela, entendeu o Tribunal do Rio Grande do Sul que “o codicilo é o meio hábil para legar móveis, roupas ou joias, não muito valiosos, de seu uso pessoal. O instituto em questão deve se restringir a diminutas questões patrimoniais, na forma do disposto no art. 1.881 do Código Civil. No entanto, fica ao critério do julgador a apuração dos valores dos bens deixados por meio de codicilo. Sendo um critério subjetivo, os valores dos bens
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devem ser apurados e verificados em cada caso concreto, pelo juiz. Havendo bens de elevada monta, devem ser excluídos e integrar o monte-mor. Portanto, o Douto Julgador adequadamente excluiu do codicilo as joias deixadas para o filho Ricardo. Ocorre que tais joias não podem ser consideradas de pouco valor como constou no codicilo. São inúmeros relógios, alguns de ouro, outros de marca famosa (Cartier), além de várias joias de ouro, cujo valor não é insignificante. Assim, apenas devem ser desconsideradas as determinações constantes do codicilo sobre as joias, pois são bens de elevada monta, mantendo-se hígido o ato nas demais deliberações”. Note-se que pelo princípio da conservação dos negócios jurídicos, considerou-se o codicilo apenas ineficaz no tocante à parte dos bens de elevada monta legados em favor do filho do falecido. Não se reconheceu a invalidade do codicilo, pois este continua hígido, ou seja, válido e eficaz, quanto às demais disposições. Também é interessante a decisão do Tribunal de Minas Gerais que seguiu a ideia pela qual o pequeno valor dos bens deixados em codicilo se apura de acordo com o patrimônio do falecido: “Codicilo. ‘Donativo de pequeno valor’. Relatividade. Na falta de um critério legal para se aferir o ‘pequeno valor’ da doação, será este considerado em relação ao montante dos bens do espólio, além de dever-se respeitar a última vontade do doador, máxime não havendo herdeiro necessário” (TJMG, Processo 1.0000.00.160919-7/000(1), Rel. Des. Orlando Carvalho, j. 14.12.1999).
Superadas tais exemplificações, destaque-se que pode ainda o autor do codicilo fazer disposições sobre seu
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próprio enterro. A título de exemplo, o autor pode dizer que quer ser enterrado em um determinado cemitério de uma cidade do interior, onde estão os seus parentes, bem como determinar que seu desejo é ser cremado. Também o codicilo é meio idôneo para deixar esmolas de pouca monta a certas e determinadas pessoas, a estabelecimentos particulares de caridade ou de assistência pública e aos pobres de certo lugar. Para a interpretação dessa previsão, o Código Civil determina que a disposição geral em favor dos pobres se refere àqueles do lugar do domicílio do testador quando de sua morte (art. 1.902 do CC). Podem ainda ser objeto de codicilo: a) Sufrágios por intenção da alma do codicilante, como é o caso de celebração de uma missa na Igreja Católica (art. 1.998 do CC). b) Nomeação e substituição de testamenteiro (art. 1.883 do CC). c) Perdão do indigno (art. 1.818 do CC).
Diferentemente do testamento, o codicilo tem forma simplificada e basta que o seu autor redija um escrito particular, o date e assine, sem a necessidade de testemunhas ou de qualquer outra formalidade. Se não for datado ou assinado, o negócio jurídico em questão será nulo, também por desrespeito à forma. A lei não se refere expressamente à possibilidade de o codicilo ser redigido de forma mecânica, ou seja, por datilografia ou digitação, mas a doutrina e a jurisprudência admitem majoritariamente a validade dos codicilos elaborados dessa forma. Entendendo por essa
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possibilidade, transcreve-se Tribunal Paulista:
a
seguinte
decisão,
do
“Sucessão hereditária. Codicilo. Saque de valores consideráveis, mantidos em contas bancárias pelo ‘de cujus’, após seu falecimento. Existência de documento onde expôs, o falecido, desejo de que, por sua morte, o dinheiro depositado em caderneta de poupança ficasse para legatária. Disposição que não foi revogada por nenhuma outra. Juntada de outras declarações em que se dispôs sobre destino a ser dado a bens após a morte do declarante. Documentos que constituem inequivocamente manifestações de última vontade. Contas-conjuntas, outrossim, que revelam entre eles as primeiras declarações prestadas pela inventariante que não tem o condão de afastar o direito da requerida de receber o objeto da liberalidade. Recurso improvido” (TJSP, Apelação Cível 243.266-4/0-São Paulo, 1.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Elliot Akel, j. 02.09.2003, v.u.).
No caso em tela, como bem apreciado pelo Promotor de Justiça, com citação a outro julgado, “o fato de não ter sido observada a forma hológrafa, embora contrarie o contido no artigo 1.881, do Código Civil, não deve ser óbice à validade e eficácia do ato, na medida em que o codicilo foi devidamente datado e assinado pelo testador. Logo, não devem ser anuladas as disposições de última vontade do de cujus, por simples apego à forma legal, em detrimento da finalidade do ato e da vontade do autor da herança”. Em sentido contrário, defendendo a nulidade do testamento em casos tais, temos as extensas e históricas lições de Carlos Maximiliano: “O Código Civil consagrou a inovação contida nos arts. 2.456 a 2.458 do Projeto Coelho Rodrigues, adotada nos
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arts. 1.819 a 1.821 do Projeto de Beviláqua: o codicilo é escrito, datado e assinado pelo disponente e contém determinações sobre o seu enterro, esmolas de pouca monta a pessoas designadas ou aos pobres de certo lugar, nomeação ou substituição de testamenteiros, bem como legados de imóveis, roupas ou joias do uso pessoal do hereditando e não muito valiosas (arts. 1.651-53). Quanto à forma externa, adotou exclusivamente a hológrafa simplificada, em vigor na quase unanimidade dos países europeus para disposições de última vontade. Nenhuma das outras é admissível, conforme se infere das razões seguintes: a) Os preceitos sôbre a forma de atos jurídicos são de Direito estrito, não se entendem por analogia, não se transferem de uma para outra espécie. b) Em auxílio desta conclusão lógica vem o elemento histórico. Beviláqua propôs que fosse o codicilo – ‘escrito, datado e assinado por pessoa capaz de testar’. A comissão revisora preferiu manter o disposto na Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas; sugeriu o seguinte: ‘Art. 1.993. Os codicilos podem ser feitos por oficial público, ou cerrados com instrumento de aprovação nas costas, ou feitos e assinados pelo testador, ou por outrem a seu rogo’. Mantinha as três antigas formas – pública, cerrada e particular. O Relator Alfredo Pinto impugnou a galvanização do passado quando o codicilo desaparecera da legislação da quase unanimidade dos povos cultos; para não romper bruscamente com a tradição, transigia apenas relativamente ao codicilo hológrafo sugerido por Beviláqua e Coelho Rodrigues. A Câmara acompanhou Alfredo Pinto no restabelecimento do disposto no Projeto Clóvis; e o senado só modificou, ligeiramente, a redação. c) Enfim, a doutrina dos exegetas do Código generaliza-se no sentido de concluir pela existência exclusiva da forma codicilar hológrafa. 517 – A data é explicitamente exigida; portanto substancial; se falta, o documento perde o valor. Neste ponto o repositário de normas afastouse do sistema por êle adotado, por equívoco, provavelmente; pois não a considerou essencial em papéis em que sua
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enunciação teria maior utilidade – nos testamentos, por exemplo. 518 – Por ser o codicilo um pequeno testamento, não se faz mister discorrer sobre requisitos comuns aos dois modos de dispor do patrimônio causa mortis: tudo quanto foi ou será exposto a respeito da capacidade, forma em geral e hológrafa em particular, se aplica também ao codicilo. Consequentemente, não pode ser datilografado, nem pelo próprio disponente. Embora assinado por ele: se é hológrafo, é manuscrito. A Comissão Revisora propôs que fosse escrito ‘pelo testador, ou por outrem a seu rogo’. O congresso preferiu a forma hológrafa simplificada e verdadeira, dos Projetos Beviláqua e Coelho Rodrigues. Logo, prevalece apenas o que é manuscrito e assinado pelo disponente” (Direito das sucessões..., 1964, v. I, p. 522-524).
Por oportuno, aproveitamos para indicar julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que segue as lições de Carlos Maximiliano e declara nulo o codicilo feito por meio mecânico, ou seja, em inobservância da forma prescrita em lei: “Verifica-se dos autos que o codicilo foi datilografado, exigindo-se para a validade formal do mesmo que tenha sido manuscrito, ou seja, que tenha a forma hológrafa. Assim, dou provimento ao recurso, para desconsiderar as determinações constantes do codicilo, por dispor sobre bens de elevada monta, mas sobretudo por impropriedade formal, consistente na ausência de forma hológrafa” (TJRS, Apelação Cível 70006548143, Des. Stangler Pereira, j. 09.06.2005). Deve-se frisar que o excesso de formalismo defendido por Carlos Maximiliano e adotado no julgado em questão afasta-se das ideias de eticidade e operabilidade que, como elementos estruturantes do Código Civil de 2002, devem ser observados. Desse modo, a forma mecânica do
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testamento particular deve ser aceita, não causando sua invalidade. A única ressalva a ser feita é que, assim como ocorre com testamento particular, se o codicilo for feito mecanicamente, todas as páginas deverão estar assinadas pelo autor do codicilo. Nesse sentido, o Projeto 699/2011, antigo PL 6.960/2002, corrige o equívoco do atual Código Civil e acrescenta um parágrafo único ao art. 1.881, nos seguintes termos: “O escrito particular pode ser redigido ou digitado mecanicamente, desde que seu autor numere e autentique, com a sua assinatura, todas as páginas”. Quanto à capacidade para fazer codicilo, é a mesma que se exige para testar, já que ambos são atos de última vontade. O testamento e o codicilo podem conviver juntamente, segundo o nosso ordenamento jurídico. Dessa forma, mesmo havendo um testamento, nada impede que o testador elabore ainda um codicilo (art. 1.882 do CC). Por outro lado, ainda que não queira fazer um testamento, poderá a pessoa fazer um codicilo, prevalecendo o princípio da autonomia entre os institutos. Interessante notar que o codicilo pode ser revogado por outro codicilo que faça expressa menção à revogação (revogação expressa) ou que contenha disposição incompatível com o codicilo anterior (revogação tácita). Por outro lado, a elaboração de testamento posterior significa a automática revogação do codicilo anterior, se o testamento não o confirmar ou modificar (art. 1.884 do CC). Vale aqui dizer que o nosso ordenamento não trata da chamada cláusula codicilar, segundo a qual o testamento
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nulo deve ser aceito, ao menos, como codicilo. Nesse sentido, da antiga jurisprudência superior: “Testamento hológrafo. Nulidade declarada sem a atenuação de valer ele como codicilo. Em nosso direito vigente perdeu o codicilo feição de testamento menos solene, para tornar-se apenas, numa declaração hológrafa, de efeitos e objeto limitados, escrito, datado e assinado por pessoa capaz de testar. Testamento hológrafo. Nulidade. Codicilo. Art. 4.º do Código de Processo Civil. Inocorrência de vulneração de letra de lei” (STF, 2.ª T., RE 18.012, Rel. Min. Orosimbo Nonato, j. 23.01.1951, Ementário 32-02/637).
Dúvida que surge sobre o tema é se poderia um codicilo revogar um testamento. A resposta parece ser, em regra, negativa. O codicilo não tem o condão de revogar o testamento, mas o testamento pode revogar o codicilo, conforme explicam Sebastião Amorim (Código Civil..., 2004, v. XIX, p. 295) e Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 303). Em sentido contrário, afirma Zeno Veloso que, se o codicilo posterior regular matéria contida em testamento anterior e tiver conteúdo possível, poderia haver revogação parcial do testamento (Comentários..., 2003, v. 21, p. 157). Para exemplificar, se o testador deixar todos os seus bens ao sobrinho João e depois, por codicilo posterior, deixar apenas o seu piano à sobrinha Maria, teria havido revogação parcial do testamento. Apesar desse exemplo interessante, a questão é controvertida. Por fim, se o codicilo estiver fechado, sua abertura seguirá os moldes do procedimento previsto para a abertura do testamento cerrado (art. 1.885 do CC). Em casos tais, o juiz, após verificar se o codicilo está intacto, o abrirá
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e mandará que o escrivão o leia em presença de quem o entregou, lavrando-se, em seguida o auto de abertura, que será rubricado pelo juiz e assinado pelo apresentante (art. 1.125 do CPC). Por um equívoco evidente, o Código de Processo Civil determina que as regras referentes ao testamento particular se aplicam aos codicilos (art. 1.134, IV, do CPC). O equívoco é notado por Sílvio de Salvo Venosa ao firmar que, no codicilo, “não há testemunhas a serem inquiridas” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 189).
3.6 DAS DISPOSIÇÕES TESTAMENTÁRIAS Como explica Silvio Rodrigues, quando trata do Capítulo VI do Título III, que se denomina “Das disposições testamentárias”, “o legislador edita algumas regras que têm caráter meramente interpretativo da vontade do testador. Ao lado destas, encontram-se outras que são permissivas ou proibitivas de determinados comportamentos” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 180). Seguiremos a lição do mestre da Universidade de São Paulo e analisaremos os arts. 1.897 a 1.911 da atual codificação, separandoos de acordo com o tipo de regra que contém, já salientando que a grande maioria das normas tem por objetivo interpretar a vontade do falecido, que não restou clara na deixa testamentária. 3.6.1 Regras interpretativas Em se tratando de regras interpretativas, procura o legislador suprir a vontade do falecido, buscando seu real
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alcance, quando a disposição de última vontade não é suficientemente clara. Na realidade, teria o legislador duas opções diante da falta de clareza e da dificuldade em fazer cumprir a vontade do morto. A primeira seria simplesmente ter por não escrita a cláusula testamentária, desprezando-se a vontade do falecido em razão da obscuridade. Nesse caso, seria o testador punido por sua falta de clareza, retirando os efeitos da deixa em questão. Contudo, o direito brasileiro, que cultua a inatacável vontade do de cujus, faz opção diametralmente oposta, e busca, no texto da lei, dar sentido à vontade que não foi expressa de maneira cristalina. Em reforço, deve-se deixar claro que as regras aqui estudadas não são normas de ordem pública, mas sim formas de preencher eventuais lacunas na vontade do falecido. Se a vontade for clara e puder ser cumprida, essas regras não serão sequer aplicadas. Itabaiana de Oliveira compilou algumas regras interessantes sobre a interpretação da vontade do falecido (Tratado..., 1952, v. 2, p. 522): 1) A vontade do testador deve ser interpretada do modo mais amplo, o que mantém relação com a máxima in testamentis plenius voluntates testantium interpretamur. 2) A disposição de vontade do de cujus deve ser cumprida (defuncti dispositio custodiatur). 3) Deve-se buscar o sentido mais cômodo ao objeto de que se trata e à natureza do ato. 4) Deve-se preferir o sentido próprio geralmente aceito das palavras, e entender o que, em tais casos, comumente se costuma fazer.
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5) As palavras devem ser interpretadas em seu sentido. 6) Quando uma cláusula testamentária é suscetível de dois sentidos, deve-se entender aquele em que pode ter efeito, e não aquele em que nenhum efeito teria.
A principal regra de interpretação é aquela que determina que “quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador” (art. 1.899 do CC). Em nossa opinião, retoma-se o disposto no art. 112 do Código Civil em vigor, para os negócios jurídicos em geral, in verbis: “Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. O que se percebe é a busca da vontade declarada pelo falecido e não simplesmente a vontade interna que não se manifestou. O preceito tem como inspiração a teoria da confiança, que decorre da boa-fé objetiva e se afasta da teoria subjetivista da declaração. Explica Sílvio de Salvo Venosa que “a interpretação do testamento faz-se sob os mesmos princípios de qualquer ato ou negócio jurídico. O intérprete deve procurar a real intenção do testador. Os métodos são os de interpretação em geral: estuda-se a redação, a concatenação lógica, as diversas cláusulas em conjunto, o momento em que foi elaborado o testamento, o local, a época da vida do testador e seu estado de saúde, as pessoas que o cercavam e com ele conviviam na época, seus amigos e inimigos, seus gostos e desgostos, amores e desamores, tudo, enfim, que sirva para ilustrar o intérprete, o julgador, em última análise, do real sentido de sua vontade” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 193).
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Note-se que a determinação da busca pela vontade real deve ter como base a disposição testamentária em si. Seguindo esse caminho, o intérprete não pode abandonar a declaração manifestada na letra do testamento, sem freios, para buscar a vontade do testador (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil..., 2003, v. 7, p. 194). Passa-se então à análise pontual das regras interpretativas previstas na atual codificação civil. Com relação aos beneficiários de certa disposição, caso o testamento se refira aos “pobres, estabelecimentos particulares de caridade ou de assistência pública” e não mencione exatamente as pessoas ou entidades beneficiadas, entender-se-á que são os pobres do lugar do domicílio do testador ao tempo de sua morte ou os estabelecimentos lá localizados (art. 1.902 do CC). Em casos tais, os estabelecimentos particulares terão preferência sobre os públicos (art. 1.902, parágrafo único, do CC). A regra é perfeitamente lógica. Se o testador pretende beneficiar determinada instituição indeterminada, presume-se que a vontade do falecido seja de beneficiar alguma entidade de seu domicílio, ainda que venha a falecer longe dele. Mas se indicar a localidade da instituição, valerá o local previsto em testamento. Com relação ao montante a ser recebido pelos herdeiros ou legatários nomeados, se o testamento nomear dois ou mais herdeiros, sem discriminar a parte de cada um, partilhar-se-á por igual, entre todos, a porção disponível do testador (art. 1.904 do CC). A título de exemplo, se Mário nomear João e José como seus herdeiros, cada um deles terá direito à metade da herança, que se presume dividida em partes iguais. Vale dizer que o texto legal traz
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como conteúdo a regra do concursu partes fiunt, da divisão igualitária em referência à obrigação divisível (art. 257 do CC). Por outro lado, o Código Civil prossegue na interpretação da vontade do morto de acordo com a forma pela qual foi redigida a deixa testamentária. Se o testador nomear certos herdeiros individualmente e outros coletivamente, a herança será dividida em tantas quotas quantos forem os indivíduos e os grupos designados (art. 1.905 do CC). Portanto, se o falecido deixar seus bens para Pedro, João, Maria e José, a herança será dividida em quatro partes iguais. Porém, se o falecido deixar seus bens para Pedro, João e também para Maria e José, estes em conjunto, criaram-se três grupos: 1/3 para Pedro, 1/3 para João e 1/3 a ser dividido entre Maria e José. Da mesma forma, se o falecido deixar os bens a Pedro, a Paulo e aos filhos de Antonio, a divisão será em três partes. A regra pela qual, “se forem determinadas as quotas de cada herdeiro, e não absorverem toda a herança, o remanescente pertencerá aos herdeiros legítimos, segundo a ordem da vocação hereditária”, prevista no art. 1.906 do atual Código, realmente nos parece inútil, como aponta Silvio Rodrigues (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 183). Por óbvio, se não contemplados todos os bens em testamento, ou se parte deles for expressamente excluída, seu destino será os herdeiros legítimos, de acordo com a ordem de vocação hereditária. Da mesma forma ocorrerá se um bem certo e determinado for excluído pelo testador (art. 1.908 do CC).
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Mais uma vez ilustrando, se o testador deixar 1/3 de seus bens ao sobrinho Pedro e 1/3 ao São Paulo Futebol Clube, e nada mencionar com relação ao 1/3 restante, tal quinhão seguirá a ordem de vocação hereditária. Da mesma forma ocorrerá se deixar todos os seus bens a Maria, com exceção de um piano. No último caso, o piano será partilhado pelos herdeiros legítimos. Por outro lado, se forem determinados os quinhões de uns e não os de outros herdeiros, distribuir-se-á por igual a estes últimos o que restar, depois de completas as porções hereditárias dos primeiros (art. 1.907 do CC). Desse modo, se o testador deixar 1/4 de seus bens a Pedro e 1/4 a Maria e o restante a João, Antonio, José e Fernando, entregam-se aos dois primeiros seus respectivos quinhões e os 2/4 restantes serão divididos em partes iguais entre João, Antonio, José e Fernando, restando 1/8 para cada um deles. Superada a análise dessas intricadas regras de interpretação, todas ilustradas, vejamos o estudo das cláusulas restritivas. 3.6.2 Regras proibitivas e restritivas – da cláusula de inalienabilidade As regras proibitivas limitam a vontade do testador, ora retirando a validade, ora a eficácia da deixa testamentária, bem como restringindo a ampla liberdade do testador. Como se nota, as cláusulas em questão são restritivas da autonomia privada, da vontade plena do autor da herança.
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A primeira delas trata da designação do tempo em que deva começar ou cessar o direito do herdeiro, devendo ser considerada não escrita, salvo nas disposições fideicomissárias. É o que prevê o art. 1.898 do atual Código Civil. Em suma, não admite a lei que haja herdeiro instituído a termo, mas apenas sob condição (art. 1.897 do CC). Explica Silvio Rodrigues que a regra visa “evitar a insegurança que se pode estabelecer nas relações jurídicas, em virtude da transmissão de bens a termo. Com efeito, é fácil analisar o inconveniente que representa o fato de ficar o direito do herdeiro testamentário suspenso até o advento do termo inicial ou de excluir-se tal direito por ocorrência do termo final” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 184). Contudo, não nos parece menos insegura a permissão de herdeiro sob condição. Além disso, se é permitido o fideicomisso, apesar de sua limitação, não compreendemos os reais motivos que levaram o legislador brasileiro a manter a limitação já existente no Código Civil de 1916 (art. 1.665). De qualquer forma, a norma está em vigor, tendo plena aplicação. Como a lei só menciona a proibição de herdeiro nomeado a termo, mas não de legatário, e como as regras restritivas de direito não podem sofrer interpretação extensiva, só se pode concluir que é permitida a nomeação de legatário a termo, como aponta a maioria da doutrina (RODRIGUES, Silvio. Direito civil..., 2002, v. 7, p. 184; VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil..., 2003, v. 7, p. 197; AMORIM, Sebastião Luiz. Código Civil..., 2004, v. XIX, p. 144). O legado de usufruto e de alimentos podem ser constituídos a termo.
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A consequência da nomeação de herdeiro a termo não macula a nomeação em si, que apenas ter-se-á por não escrita, sendo o herdeiro nomeado e desconsiderado o termo. Aproveita-se a parte permitida da declaração, desconsiderando-se apenas a vedada por lei, aplicando-se diretamente o princípio da conservação dos negócios jurídicos (utile per inutile non vitiatur). Se houver dúvida a respeito da existência de um termo ou de uma condição, deve-se concluir pela inexistência do elemento acidental, entendendo-se que a disposição é pura ou simples (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil..., 2003, v. 7, p. 197). Também será nula a disposição em determinadas situações que digam respeito à pessoa do beneficiado pela deixa testamentária. Conforme explica Eduardo de Oliveira Leite “a lei fulmina de nulidade porque contraria a liberdade essencial das disposições de última vontade e transforma em convenção o que a lei quer que seja espontânea manifestação unilateral” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 461). Desse modo, enuncia o art. 1.900 do CC que é nula a disposição: I – Que institua herdeiro ou legatário sob a condição captatória de que este disponha, também por testamento, em benefício do testador, ou de terceiro. A condição captatória é aquela em que a vontade do morto não é externada livremente, quer seja porque houve dolo quer porque decorreu de pacto sucessório (BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil..., 1955, v. VI, p. 103). Entretanto, explica Silvio Rodrigues que “não se trata da proibição genérica da captação dolosa da vontade, em que a cláusula testamentária é anulável, com base no art. 171,
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II, do Código Civil, em virtude da existência de um vício da vontade, ou seja, o dolo, mas de uma nulidade absoluta, inspirada na mesma ideia de interesse geral, que veda os pactos sucessórios” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 185). O que se percebe é que o tratamento legislativo é diverso daquele constante da Parte Geral do Código Civil. Em verdade, estamos diante de regra que decorre do art. 426 do CC, daquela notória divisão entre institutos contratuais e sucessórios, pelo qual é nulo o contrato que tenha por objeto herança de pessoa viva (pacta corvina). Sendo assim, também é nula a cláusula testamentária em que há uma troca de favores pela qual o testador declara que nomeia certa pessoa herdeira sob a condição de ela nomear um terceiro como herdeiro. Como exemplo, “deixo meus bens a Pablo se ele deixar todos os seus bens a Rodolfo”. II – Que se refira a pessoa incerta, cuja identidade não se possa averiguar. Nessa hipótese, sendo impossível a identificação do herdeiro, a deixa testamentária é nula, por não atingir resultado algum. É decorrência do brocardo ad impossibilia nemo tenetur. Entretanto, o próprio Código Civil determina ser válida a disposição em favor de pessoa incerta que deva ser determinada por terceiro, dentre duas ou mais pessoas mencionadas pelo testador, ou pertencentes a uma família, ou a um corpo coletivo, ou a um estabelecimento por ele designado (art. 1.901, I, do CC). Nesse caso, a deixa é válida, pois apesar de indeterminada num primeiro
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momento a pessoa é determinável em razão das características apontadas pelo próprio testador. Como ilustração, se o testador deixar os bens à pessoa mais valorosa da cidade, a disposição é nula. Por outro lado, se deixar à pessoa que recebe menor salário de sua família, trata-se de disposição válida, por ser determinável objetivamente o herdeiro. Relata Washington de Barros Monteiro que Alexandre Magno, imperador macedônico e grande conquistador da Antiguidade, já moribundo, teria deixado sua herança “ao mais digno” (Curso..., 2003, v. 6, p. 170). Para o direito brasileiro, a disposição seria nula. III – Que favoreça a pessoa incerta, cometendo a determinação de sua identidade a terceiro. Diz Clóvis Beviláqua que “a pessoa incerta, para o direito romano, era aquela que o testador não podia fazer uma ideia clara. Hoje, devemos considerar pessoas incertas as indeterminadas, porque se o beneficiado pelo testamento não pode ser determinado, a disposição é irrealizável” (Código Civil..., 1955, v. VI, p. 103). A diferença entre esta hipótese e a anterior é que, na primeira, a pessoa incerta era indicada pelo próprio testador. Nesta, o testador delegaria ao terceiro indicado o direito de testar, o que revela afronta ao princípio básico do testamento, pelo qual este é ato personalíssimo e intransferível. IV – Que deixe a arbítrio do herdeiro, ou de outrem, fixar o valor do legado. Novamente, a razão da nulidade é óbvia, pois se o testador deixasse a terceiros a fixação do legado, estaria transferindo o próprio direito de testar, que é personalíssimo. O
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objeto do legado deve ser determinado ou determinável de acordo com os elementos contidos no próprio testamento, para que a efetiva vontade do morto, e não a do herdeiro ou legatário, seja respeitada. Aliás, todas as condições de certo negócio deixadas ao arbítrio de certa pessoa são nulas, por aplicação analógica da regra que proíbe a condição puramente potestativa (art. 122 do CC). Como exceção ao dispositivo, valerá a disposição em remuneração de serviços prestados ao testador, por ocasião da moléstia de que faleceu, ainda que fique ao arbítrio do herdeiro ou de outrem determinar o valor do legado (art. 1.901, II, do CC). Trata-se de uma sucessão onerosa, pois a deixa não constitui verdadeira liberalidade, já que o beneficiário prestou serviços ao falecido. O instituto traz situação que se assemelha à doação remuneratória que é feita para agradecer a um serviço prestado por uma pessoa que não se torna credora em razão deste, bem como em agradecimento por determinada atitude do donatário. Como dispõe o art. 540 do atual Código, não se trata de um ato de liberalidade em si, mas somente na parte que exceder o serviço prestado. Vale dizer, contudo, que a diferença entre os institutos é que, na doação, o disponente celebra contrato que produz efeitos em vida. Já na disposição testamentária, esta só produz efeitos após sua morte. V – Que favoreça as pessoas a que se referem os arts. 1.801 e 1.802. A lei impede que sejam nomeados em testamento, como esclarece Zeno Veloso, “determinadas pessoas, em atenção à situação especial em que se encontram,
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possibilitando influências, captação dolosa da vontade, sugestões, comprometendo a autonomia da vontade do testador, tornando a disposição suspeita ou duvidosa” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.499). São elas: – A pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, o seu cônjuge ou companheiro, ou os seus ascendentes e irmãos. – As testemunhas do testamento. – O concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos. – O tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou escrivão, perante quem se fizer, assim como o que fizer ou aprovar o testamento ou pessoas não legitimadas a suceder, ainda quando simuladas sob a forma de contrato oneroso, ou feitas mediante interposta pessoa.
A matéria foi analisada no primeiro capítulo da obra, quando do estudo das regras gerais (item 1.3.3). Também determina a lei que o erro quanto à indicação da pessoa do herdeiro ou do legatário, ou da coisa legada, anula a disposição (art. 1.903 do CC). Entretanto, não será nula a cláusula se, pelo contexto do testamento, por outros documentos ou por fatos inequívocos, for possível identificar a pessoa ou coisa a que o testador queria referir-se. Assim o é em decorrência do princípio da conservação do negócio jurídico, bem como em razão da busca incansável do legislador em respeitar e dar efetividade à vontade do morto (preservação da autonomia privada). Uma exceção a essa proteção, contudo, pode ser encontrada no art. 1.910 do CC, pelo qual a ineficácia de uma disposição
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testamentária importa a das outras que, sem aquela, não teriam sido determinadas pelo testador. Nas palavras de Zeno Veloso, “o erro, tanto na designação da pessoa do herdeiro ou do legatário (error in personam), como em relação à coisa legada, anula a disposição. Este é um caso particular de anulabilidade, pois o erro essencial ou substancial, além deste caso, determina a anulabilidade do testamento (art. 1.859 do CC) ou da disposição testamentária (art. 1.909 do CC). Se o erro é acidental, superável, vencível, não há por que deixar de obedecer à vontade do testador” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.596). No mesmo sentido, Sílvio de Salvo Venosa afirma que “a regra é óbvia e dispensável” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 199) em decorrência das regras previstas na Parte Geral do Código Civil, que cuidam do vício do consentimento como causa de anulabilidade ou de nulidade relativa dos negócios jurídicos (art. 138 do CC). Vale dizer, todavia, que, nos casos de erro, dolo e coação, o parágrafo único do art. 1.909 do CC consagra um prazo decadencial de quatro anos, contados de quando o interessado tiver conhecimento do vício, para anular o testamento. O tratamento é diferente do que consta da parte geral, pois ali o prazo será contado da celebração do negócio ou de quando cessar a coação (art. 178, I e II, do CC). Ainda no tocante às disposições testamentárias, permite o legislador que o falecido clausule a herança com a incomunicabilidade, a impenhorabilidade e a inalienabilidade do bem. Todas essas cláusulas são restritivas de direitos, estando previstas no art. 1.911 do CC.
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A cláusula de inalienabilidade impede que o herdeiro ou legatário transfira a propriedade da coisa herdada ou legada. Com essa cláusula, impossível será sua venda, dação em pagamento, doação ou permuta. Nos termos da segunda parte do art. 86 do atual Código, o bem passa a ser inconsumível (inconsuntibilidade jurídica). Em obra sobre o tema, Carlos Alberto Dabus Maluf explica que “nessa indisponibilidade do bem, nessa paralisação por algum tempo, em um patrimônio, com a impossibilidade de transferência ou alienação por seu proprietário é que consiste o sentido jurídico, a essência da cláusula de inalienabilidade” (Das cláusulas..., 1986, p. 39). Para o Professor Titular da USP, a cláusula de inalienabilidade pode ser de quatro espécies (DABUS MALUF, Carlos Alberto. Das cláusulas..., 1986, p. 40): – Inalienabilidade absoluta: é aquela que proíbe a alienação de todos os bens a quem quer que seja. – Inalienabilidade relativa: é aquela em que é permitida a alienação a determinadas pessoas ou quando estiver restrita a certos bens da herança. – Inalienabilidade vitalícia: é aquela em que a proibição dura a vida toda do herdeiro ou legatário, sendo proibida a sua perpetuidade (ou seja, se o testador determinar que seus efeitos ultrapassam a vida do beneficiário). Nessa situação, a cláusula obrigatoriamente se extingue com a morte do herdeiro ou legatário. – Inalienabilidade temporária: é aquela que termina com o advento do termo ou realização de certa condição.
Pois bem, não há dúvidas de que, caso o bem clausulado com a inalienabilidade seja vendido, o negócio será
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considerado nulo, pois o seu objeto é ilícito (art. 104, II, do CC). Anote-se, em reforço, que a inalienabilidade não é absoluta. Isso porque o herdeiro ou o legatário poderá perder a propriedade do bem em decorrência de desapropriação, ou, ainda, mediante ação judicial, solicitar a venda do bem clausulado. Em ambos os casos, o produto apurado, quer seja o dinheiro decorrente da desapropriação, quer seja um novo bem adquirido com o dinheiro daquele clausulado, estará sujeito também à inalienabilidade (art. 1.911, parágrafo único, do CC). Também são efeitos da cláusula de inalienabilidade a incomunicabilidade e a impenhorabilidade do bem. Assim, a simples menção à inalienabilidade acarreta automaticamente a incomunicabilidade e a impenhorabilidade da herança testada. Esse efeito também consta do caput do art. 1.911 do CC. Nesse sentido, explicava Clóvis Beviláqua na vigência da lei anterior que “estabelecida a inalienabilidade temporária ou vitalícia, enquanto ela perdura, o bem está isento de usucapião ordinário, e de penhora, porque o bem inalienável não pode ser transferido a outrem e nem por outrem adquirido” (Código Civil..., 1955, v. 6, p. 110). A cláusula de incomunicabilidade significa que o bem permanece exclusivamente no patrimônio do beneficiado, independentemente do regime de bens do casamento. Com a aposição da cláusula, se o testador falece e deixa os bens a seu sobrinho, mesmo se este for casado pelo regime da comunhão universal de bens, sua esposa não terá nenhum direito sobre os bens, em clara exceção à regra do regime (art. 1.668, I, do CC). Importante anotar que a
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Súmula 49 do Supremo Tribunal Federal já dispunha que a cláusula de incomunicabilidade estava contida na cláusula de inalienabilidade. Em uma visão tradicional, poder-se-ia afirmar que a cláusula de incomunicabilidade seria forma de proteção do herdeiro, que pode escolher mal seu cônjuge e, em caso de separação judicial ou divórcio, ter que partilhar o patrimônio herdado. Porém, acreditamos que na realidade pós-moderna é melhor afirmar que a referida cláusula é apenas um exercício da autonomia privada que decorre da lei. De qualquer modo, como bem leciona Carlos Alberto Dabus Maluf, “se os bens inalienáveis entrassem na comunhão, passariam a pertencer em parte ao outro cônjuge; entrariam em partilha pela dissolução da sociedade conjugal e poderiam tocar a pessoas estranhas ao cônjuge que os recebeu com cláusula de inalienabilidade. Nada mais contrário aos fins da lei, que manda cumprir a risca a vontade do testador expressa por essa cláusula” (Das cláusulas..., 1986, p. 49). Tem razão o professor da USP ao justificar que a inalienabilidade deve gerar a incomunicabilidade. A cláusula de impenhorabilidade significa que os bens não poderão ser objeto de penhora por parte de credores do herdeiro ou legatário. Nas palavras de Sílvio de Salvo Venosa, “já, de princípio, diga-se que a inalienabilidade abrange também a impenhorabilidade. Se assim não fosse, facilmente se fraudaria a impossibilidade de alienar. Basta que um credor, em crédito e execução simulados, levasse o bem à penhora, praça e consequente alienação a terceiros” (Código Civil..., 2003, v. 7, p. 214). Essa cláusula de
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proteção é oponível a todos os credores sem distinção de origem do crédito ou data de seu vencimento. Em outras palavras, é a garantia que tem o titular de um bem clausulado ao ser acionado por seus credores por um negócio malsucedido, explica Carlos Alberto Dabus Maluf (Das cláusulas..., 1986, p. 53). Contudo, o professor aponta a que “ela se opõe às dívidas do herdeiro ou legatário, e não as do autor da liberalidade, ou seja, o testador” (Das cláusulas..., 1986, p. 54). Nesse sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “Recurso especial. Sucessão. Dívidas do morto. Testamento que grava os imóveis deixados com cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade. Possibilidade de penhora, em execução movida por credor do de cujus. 1. Os bens deixados em herança, ainda que gravados com cláusula de inalienabilidade ou de impenhorabilidade, respondem pelas dívidas do morto. 2. Por força do art. 1.676 do Código Civil de 1916, as dívidas dos herdeiros não serão pagas com os bens que lhes foram transmitidos em herança, quando gravados com cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade, por disposição de última vontade. Tais bens respondem, entretanto, pelas dívidas contraídas pelo autor da herança. 3. A cláusula testamentária de inalienabilidade não impede a penhora em execução contra o espólio” (STJ, 3.ª T., REsp 998.031/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 11.12.2007, DJ 19.12.2007, p. 1.230).
Ressalta também Carlos Alberto Dabus Maluf, com base nos estudos de Itabaiana de Oliveira que “se os credores de herdeiro devedor são anteriores à herança, não podem julgar-se prejudicados, pois a herança, então, mera possibilidade, não fazia parte ainda do patrimônio do devedor; se posteriores à aquisição da herança por parte do
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herdeiro, já encontram os frutos e rendimentos dessa herança sujeitos à condição de impenhorabilidade, não podendo, por isso, alegar a ignorância desse fato” (Das cláusulas..., 1986, p. 54). Mais uma vez, tem razão o professor das Arcadas. Ainda quanto às cláusulas, quatro observações merecem ser feitas. A primeira delas é que tanto a incomunicabilidade quanto a impenhorabilidade podem ser temporárias ou vitalícias. A segunda observação a ser feita é que as cláusulas se extinguem automaticamente com a morte do herdeiro que recebeu os bens clausulados, não se transferindo a seus herdeiros, sob pena de perpetuidade não admitida por lei. No caso da incomunicabilidade, a cláusula se extingue quando o bem é vendido ou doado. A terceira observação é que a incomunicabilidade e a impenhorabilidade não geram automaticamente a inalienabilidade. Como a norma do art. 1.911 do CC é restritiva, não merece interpretação extensiva. A quarta observação, na verdade, é uma pergunta: a inalienabilidade e a impenhorabilidade do bem principal atingem automaticamente seus frutos? A matéria é controvertida. Para Sílvio de Salvo Venosa, isso só ocorrerá se houver declaração expressa do testador (Código Civil..., 2003, v. 7, p. 214). Para Maria Helena Diniz, a impenhorabilidade pode se estender aos frutos e rendimentos, desde que mediante cláusula expressa, “todavia, não se considera justo estender a inalienabilidade aos frutos e rendimentos porque o direito do beneficiado reduzir-se-ia a nada; além de não ter a disponibilidade do bem, não
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poderia aproveitar suas rendas” (Curso..., 2005, v. 6, p. 237). No Estatuto Processual em vigor admite-se a penhora dos frutos e rendimentos dos bens inalienáveis, à falta de outros bens, salvo se destinados à satisfação de prestação alimentícia (art. 650 do CPC com a redação dada pela Lei 11.382/2006). Washington de Barros Monteiro admite que a questão é controversa e “existem prestigiosas decisões e expressivos ensinamentos” em ambos os sentidos. Para nós essa extensão somente é possível se houver previsão expressa, pois as cláusulas não admitem interpretação extensiva. Assim já decidiu o Tribunal do Rio Grande do Sul, admitindo a penhora dos frutos: “Pela extensão das áreas pertencentes ao executado, possível inferir que os ganhos auferidos com a atividade agrícola não se destinam apenas à sua subsistência e de sua família. Ressalte-se que neste e em outros processos, conforme evidenciam as partes litigantes, a impenhorabilidade dos imóveis foi declarada em virtude de estarem gravados em favor da União e em garantia de cédulas rurais. Tal impenhorabilidade não se estende aos frutos respectivos. Aplicável, por analogia, o disposto no art. 650 do CPC” (TJRS, Agravo de Instrumento 70022816268, Rel. Des. Orlando Heemann Junior, j. 13.03.2008).
Ainda ilustrando a prática, o Tribunal de Minas Gerais também entendeu pela penhorabilidade dos frutos na ausência de cláusula expressa: “O fato de o bem locado ser gravado com cláusula de impenhorabilidade não afasta a possibilidade dos respectivos alugueres serem penhorados, pois, para tal, seria necessária cláusula expressa estendendo a impenhorabilidade do bem
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aos seus frutos e rendimentos” (TJMG, Processo 2.0000.00.415512-6/000(1), Rel. Des. Elias Camilo, j. 11.03.2004). “Agravo. Execução. Impenhorabilidade. Plantação. Frutos. São penhoráveis os frutos percebidos, assim considerados o produto que, embora havido de um bem impenhorável, tenha dele se separado, pela pessoa que o possuía” (TJMG, Processo 2.0000.00.375949-9/000(1), Rel. Des. Eulina do Carmo Almeida, j. 22.08.2002).
Por outra via, demonstrando como a questão é controversa, o Tribunal Gaúcho já afastou a possibilidade de penhora: “Agravo de instrumento. Tratando-se de imóvel gravado com cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade são impenhoráveis os frutos e rendimentos do bem. Agravo improvido” (TJRS, 11.ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento 198103491, Rel. Manoel Velocino Pereira Dutra, j. 28.04.1999).
Ato contínuo de ilustração, a impenhorabilidade dos frutos foi reconhecida pelo mesmo Tribunal quando a cláusula testamentária expressamente a menciona: “Bens imóveis gravados com as cláusulas de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade, inclusive quanto aos frutos e rendimentos. Se a testadora ou doadora tornou impenhorável não só o bem imóvel como também seus frutos e rendimentos, não cabe a penhora dos aluguéis” (TJRS, 16.ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento 70003336047, Rel. Genacéia da Silva Alberton, j. 28.11.2001).
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Em conclusão, a par dos conflitos jurisprudenciais, entendemos que a simples cláusula de impenhorabilidade ou inalienabilidade do principal não atinge os frutos que, como acessórios, poderão ser penhorados. Apenas com a menção expressa na cláusula aposta à liberalidade é que a impenhorabilidade atinge os frutos. Outro ponto interessante é que, na hipótese de o testador desejar criar apenas a incomunicabilidade ou a impenhorabilidade, poderá fazê-lo não mencionando a inalienabilidade. Se, por outro lado, desejar apenas a cláusula de inalienabilidade, sem que esta inclua a incomunicabilidade ou a impenhorabilidade, poderá mencionar expressamente no testamento que a inalienabilidade não implica automaticamente a incomunicabilidade ou a impenhorabilidade. Isso porque, quando o art. 1.911 do CC dispõe que “a cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade”, apenas estende os efeitos da deixa. A norma não é de ordem pública, mas sim de ordem privada, admitindo previsão em contrário de acordo com a vontade do falecido. O art. 1.848, caput, do atual Código cria verdadeira restrição à previsão das cláusulas à legítima. Vejamos o teor integral do dispositivo. “Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima. § 1.º Não é permitido ao testador estabelecer a conversão dos bens da legítima em outros de espécie diversa.
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§ 2.º Mediante autorização judicial e havendo justa causa, podem ser alienados os bens gravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados nos ônus dos primeiros”.
Determina o caput do comando legal destacado que se forem apostas as cláusulas restritivas de direito à legítima, caberá ao testador motivá-las, justificá-las, sob pena de, se impugnadas, não valerem. Assim, poderá o herdeiro impugná-las judicialmente requerendo sua nulidade por ausência de motivação ou por serem injustas. Essa ação declaratória de nulidade de cláusula, para nós, é imprescritível, pois além da questão envolver nulidade absoluta (ordem pública), tem caráter predominantemente declaratório (critério científico de Agnelo Amorim Filho – RT 300/7 e 744/725). O § 1.º do dispositivo visa a proteger a legítima, prevendo não ser possível, por meio de cláusula testamentária, retirar o caráter de proteção da cota dos herdeiros necessários. A conversão significa a determinação do testador para que os bens da legítima fossem transformados em outros, ou seja, o testador deixa uma fazenda e determina que esta seja alienada e com o dinheiro se adquiram títulos da dívida pública (conversão). A partilha em vida não se confunde com a conversão, mas a questão será tratada de maneira mais profunda no Capítulo 4 da presente obra. De acordo com o § 2.º do art. 1.848 do CC, é possível retirar a cláusula de inalienabilidade instituída mediante ação judicial específica e desde que haja, mais uma vez, justa causa para tanto. Trata-se do abrandamento das cláusulas vitalícias, o que teve aplicação recente na
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jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai de acórdão assim publicado no seu Informativo n. 468: “Testamento. Cláusulas vitalícias. Abrandamento. A Turma asseverou ser possível, em situações excepcionais de necessidade financeira, flexibilizar a vedação do art. 1.676 do CC/1916 e abrandar as cláusulas vitalícias de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade impostas em testamento. Na espécie, a autora recorrida, ao promover o procedimento especial de jurisdição voluntária na origem, requereu o levantamento das cláusulas incidentes sobre o imóvel rural deixado por sua avó sob a alegação de que estaria passando por graves dificuldades financeiras. De acordo com a Min. Relatora, o legislador, ao editar o referido dispositivo, buscou responder às preocupações familiares, assegurando aos descendentes a proteção do patrimônio, o bem-estar e o amparo financeiro diante das incertezas de ordem econômica e social. Contudo, consignou que, havendo alterações supervenientes e significativas na situação fática do herdeiro, como na hipótese dos autos, a impossibilidade de desconstituir os referidos gravames pode ocasionar-lhe maiores prejuízos. Assim, ressaltou que a limitação do direito de dispor livremente dos bens não pode ser absoluta, devendo ser avaliada à luz da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana. Afirmou ainda que o abrandamento dessas cláusulas constitui medida que melhor atende à vontade do testador nos termos dos arts. 85 e 1.666 do CC/1916. Por fim, frisou que o art. 1.911, parágrafo único, do CC/2002 passou a possibilitar a alienação de bens por conveniência econômica mediante autorização judicial. Precedente citado: REsp 10.020-SP, DJ 14/10/1996” (STJ, REsp 1.158.679-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.04.2011).
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Especifica a lei, ainda, que os produtos dessa venda também estarão protegidos pelas cláusulas antes instituídas. A título de exemplo, uma mulher recebe como herança um bem com a cláusula de inalienabilidade. Trata-se de um imóvel que vale R$ 100.000,00. Entretanto, o seu marido fica gravemente doente e não pode mais trabalhar, sofrendo essa família um sério desfalque em suas rendas. Nesse caso, pode ser proposta uma demanda visando a autorizar a venda do imóvel. Após a autorização judicial, o imóvel poderá ser vendido, permitindo que a família pague as dívidas anteriores e, ainda, deposite um bom numerário em conta-poupança, conforme determinar a sentença. Se com o restante a herdeira comprar uma casa no valor de R$ 30.000,00, sobre este bem incidirão as cláusulas anteriores, pois produto da alienação autorizada. Pois bem, quanto ao caput do art. 1.848, o coautor Flávio Tartuce até via com bons olhos a necessidade de justificativa para as cláusulas. Entretanto, como interroga Zeno Veloso, “por que impor ao testador o constrangimento de afirmar, justamente no ato de disposição de sua última vontade, que estabelece a inalienabilidade porque seu filho é um gastador, um perdulário e que, provavelmente, vai arruinar ou dilapidar o patrimônio que receberá, ficando na miséria? Ou que ordena a impenhorabilidade porque o herdeiro é viciado no jogo, em bebidas, ou em tóxicos, e vai assumir dívidas, comprometendo os bens de sua legítima? Ou que determina a incomunicabilidade porque seu filho casou-se com uma aventureira, que só do marido apaixonado e lerdo consegue esconder o objetivo de enriquecer, dando o golpe do baú?” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.544). Os ensinamentos do professor paraense fizeram Flávio Tartuce mudar seu entendimento,
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pois muitas vezes a justificativa da cláusula pode até se revelar violadora da dignidade humana, como nos exemplos citados. Realmente a questão de justificativa das cláusulas é bastante subjetiva e será analisada pelo juiz à luz do caso concreto e sempre com base na ideia de função social da propriedade. Um bem inalienável pode, em certos casos, não atender a sua função social, cabendo ao juiz verificar as razões do falecido, que não poderá justificá-las por razões óbvias. Aconselha-se, na prática, que o testador não meça palavras no momento da justificativa para que se evite a futura alegação de nulidade da cláusula. Entretanto, essas palavras encontram limites na proteção máxima da pessoa, particularmente no princípio da dignidade humana. O que se percebe, na realidade, é que a expressão justa causa constante do art. 1.848 do CC é mais uma cláusula geral, uma janela aberta deixada pelo legislador, para preenchimento caso a caso. Conclui-se, ainda, que a intenção do legislador foi realmente limitar os poderes do falecido sobre a legítima, eis que nunca foram vistas com bons olhos as restrições impostas pelo testador. Isso porque denotam certo egoísmo do morto e trazem, na maior parte das vezes, sérios prejuízos aos herdeiros. Deve-se salientar, ainda, que o Projeto 699/2011, antigo PL 6.960/2002, de autoria do Deputado Ricardo Fiuza, pretende alterar o art. 1.848 para que seja acrescido um § 3.º com a seguinte redação: “Ao testador é facultado, livremente, impor a cláusula de incomunicabilidade”. Pela proposta legislativa, não haveria mais a necessidade de
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justificativa para a cláusula de incomunicabilidade. Com isso se abrandam os problemas citados por Zeno Veloso, idealizador da proposta. A necessidade de motivação inexistia na vigência do Código Civil revogado. Uma questão fica definitivamente resolvida, uma vez que se o testamento foi elaborado na vigência do CC/1916 e a morte do testador ocorreu na vigência daquele diploma, o CC/2002 não retroage e, portanto, não há que se exigir a dita motivação às cláusulas testamentárias. Assim já concluiu o Tribunal Mineiro: “No caso, a sucessão foi aberta em 2001, antes, portanto, da entrada em vigor do novo Código, de forma que a espécie está regida pelo Código Civil anterior e não pelo atual. Aquele não exigia condição ou motivação da cláusula. Este é ínsito, porque as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade, de incomunicabilidade foram instituídas no Direito Pátrio como forma de proteger o patrimônio deixado para herdeiros contra riscos diversos que poderiam levar à perda, à dilapidação ou ao seu desvio. Essa é a motivação da cláusula, de forma que há uma motivação implícita, que não precisa estar expressa, mesmo porque o Código Civil antigo não a exigia” (TJMG, 4.ª Câmara Cível, Processo 1.0378.06.019568-2/001(1), Rel. Des. Moreira Diniz, j. 25.10.2007).
Todavia, mais uma vez, surge um conflito de direito intertemporal que precisa ser esclarecido. Se o testamento foi elaborado na vigência do Código Civil de 1916 – sem a motivação das cláusulas –, mas a sucessão ocorreu já na vigência do Código Civil de 2002 – que prevê a necessidade de motivação –, as cláusulas produzirão efeitos?
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Para responder a isso será necessário analisar o art. 2.042 do Código Civil, disposição final e transitória da atual codificação privada: “Art. 2.042. Aplica-se o disposto no caput do art. 1.848, quando aberta a sucessão no prazo de um ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior, Lei 3.071, de 1.º de janeiro de 1916; se, no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição”.
Qual seria o real alcance do artigo em questão? Duas são as possíveis interpretações: 1.ª) O artigo determina ao testador que, no prazo de um ano, justifique as cláusulas sob pena de não valerem se o óbito ocorrer durante esse período (entre 11 de janeiro de 2003 e 11 de janeiro de 2004). 2.ª) O comando legal em questão concede ao testador o prazo de um ano para que justifique as cláusulas, sob pena de não valerem se o óbito ocorrer após o decurso desse prazo, ou seja, se o falecimento ocorrer a partir de 11 de janeiro de 2004.
Em julgamento realizado pela 5.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em 17 de agosto de 2005 (Agravo de Instrumento 361.729.4/ 5-00, Rel. Des. Marcus Andrade) decidiu-se da seguinte maneira: “Sucessão testamentária. Cláusulas de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade dos bens sem que apontada a justa causa. Invalidade. Testamento elaborado em 30 de outubro de 2002. Falecimento ocorrido em 22 de setembro de 2003. Aplicação dos
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artigos 1.848 e 2.042, ambos do Código Civil. Intenção de não aditar que se delineia ante o decurso de quase 9 meses do prazo. Restrição que não prevalece” (destacamos). A decisão adotou a primeira das possíveis interpretações, que, segundo o nosso entendimento, não é a melhor. A interpretação adotada pelos Ilustres Desembargadores foi a literal ou a gramatical. Da leitura do dispositivo poder-se-ia inferir que o Código Civil de 2002 determinou ao testador que motivasse as cláusulas, sob pena de não valerem naquele período de um ano. Se essa interpretação fosse a correta, perguntamos: por que a norma consta das disposições finais e transitórias que cuidam de direito intertemporal? Explicamos a partir de premissas formuladas. – Premissa n. 1: Para as sucessões abertas na vigência do novo Código Civil, as cláusulas precisam ser motivadas, sob pena de não valerem (art. 1.848). – Premissa n. 2: Para as sucessões abertas no prazo de um ano a partir da vigência do novo Código Civil (entre 11 de janeiro de 2003 e 11 de janeiro de 2004) as cláusulas precisam ser motivadas, sob pena de não valerem (art. 2.042). – Conclusão: O art. 2.042 é inútil, pois só repete o teor do art. 1.848 e não trata de regra de transição, já que em toda e qualquer sucessão aberta após 11 de janeiro de 2003 as cláusulas necessitam de justificativa.
O alcance da regra é o direito intertemporal. Desse modo, se a sucessão for aberta entre 11 de janeiro de 2003 e 11 de janeiro de 2004 as cláusulas não precisam de motivação ou justificativa, pois tal prazo é aquele concedido
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para a motivação. Entretanto, se o óbito ocorrer após 11 de janeiro de 2004, a motivação é necessária. Em verdade, o Código Civil, em seu art. 2.042, suspende os efeitos do art. 1.848 por mais um ano. Assim, a disposição dali constante só passou a produzir efeitos em 11 de janeiro de 2004 e não antes. Aliás, com relação às sociedades e associações, o mesmo fenômeno ocorreu (art. 2.031) e, mesmo com as alterações posteriores (Lei 10.838/2004, Medida Provisória 234/2005 e Lei 11.127/2005), as regras do Código Civil não produziram efeitos até janeiro de 2007. Portanto, parece-nos equivocada a decisão supratranscrita. Nesse sentido, afirma Mário Luiz Delgado que, para as sucessões abertas no interstício desse prazo, valem as restrições, independentemente de justificação no testamento. Ocorrendo a abertura da sucessão depois de expirado o prazo de um ano, as cláusulas restritivas não justificadas serão tidas como não escritas, sem qualquer comprometimento da validade do testamento (Problemas..., 2004, p. 143). Outra não é a lição do mestre paraense Zeno Veloso sobre o tema: “obviamente, para as sucessões que se abrirem depois de um ano da entrada em vigor do novo Código Civil, aplica-se o que determina o caput do art. 1.848” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.699). Resumindo, as conclusões a que se chega são as seguintes: 1) Para o testamento elaborado sob a vigência do Código Civil de 1916 e ocorrendo a morte sob a vigência desse diploma: não há necessidade de justificação de cláusulas.
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2) Para o testamento elaborado sob a vigência do Código Civil de 1916 e ocorrendo a morte sob a vigência do Código Civil de 2002: não há necessidade de justificação de cláusulas se o óbito ocorreu entre 11 de janeiro de 2003 e 11 de janeiro de 2004. 3) Para o testamento elaborado sob a vigência do Código Civil de 1916 e com morte ocorrida sob a vigência do Código Civil de 2002: há necessidade de justificação de cláusulas se o óbito ocorreu a partir de 11 de janeiro de 2004. 4) Para o testamento elaborado sob a vigência do Código Civil de 2002: sempre haverá necessidade de motivação das cláusulas.
Exatamente nessa linha de deduções, decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Apelação cível. Registro de testamento. Possibilidade de cláusula de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade inserta em testamento, sem escusa de justa causa, para as sucessões abertas até um ano após a entrada em vigor do novo Código Civil. Inteligência do artigo 2.042, do Código Civil vigente. Apelação desprovida. À análise do instrumento público de testamento, se constata, prontamente, a inexistência de qualquer aditamento relacionando justa causa à cláusula condicional. Desse modo, resta obtemperar, como bem salientado pelo magistrado singular, a sucessão foi aberta no prazo de um ano após a entrada em vigor do Código Civil de 2002. No caso dos autos, o óbito da testadora ocorreu em 05 de agosto de 2003, decorridos sete meses da promulgação do novel diploma civil, razão pela qual se tem como válida a última disposição da falecida, no ponto, ainda que condicionada” (TJRS, 5.ª Câmara Cível, Apelação Cível 70014654560, Rel. Ana Maria Nedel Scalzilli, j. 25.05.2007).
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Com essa polêmica questão de direito intertemporal encerra-se o estudo das regras proibitivas. 3.6.3 Regras permissivas As regras permissivas decorrem do art. 1.897 do atual Código, que expressamente permite a nomeação de herdeiro ou legatário pura e simplesmente, sob condição, para certo fim ou modo e por certo motivo. Trata-se de situação em que o plano da eficácia do negócio jurídico está afetado pela vontade do falecido (3.º degrau da Escada Ponteana). Se nenhum elemento for previsto no testamento, considera-se a nomeação pura e simples, passando a produzir efeitos desde a morte do testador. Como visto, pelo princípio da saisine, com a morte de alguém a propriedade e a posse de seus bens se transferem aos herdeiros, sendo que, quanto ao legatário, a posse lhe será transferida oportunamente. Os elementos acidentais do negócio jurídico surgem para alterar esses efeitos normais do testamento. Assim, depreende-se do estudo da Parte Geral do Código Civil que a condição subordina os efeitos do testamento a um evento futuro e incerto (art. 121 do CC). Observe-se que o direito sob condição não se considera adquirido, sendo apenas um direito eventual que pode ser conservado por seu titular (art. 130 do CC). Realmente, será condicional a nomeação se o testador estabelecer que o sobrinho só será seu herdeiro se estiver formado em medicina. Trata-se de condição positiva, pois ocorrendo o fato a disposição se torna eficaz. Poderá,
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também, ser negativa se o falecido estipular que somente deixará bens ao sobrinho se ele não tiver casa própria. No último caso, para que a pessoa assuma a qualidade de herdeiro, o fato previsto pelo testador (“ter casa própria”) não pode ter ocorrido. Remontando ao estudo da condição constante da Parte Geral da codificação, também aqui é importante apontar que esta pode ser classificada de acordo com os seguintes critérios: I) Quanto aos efeitos: • Condição suspensiva: é aquela que impede que a avença produza efeitos até o advento da condição, ou seja, subordina a eficácia do negócio a um evento futuro e incerto. Exemplo: serás meu herdeiro se estiveres casado. Antes do evento – casamento – o beneficiário tem apenas direito eventual e, por isso, não pode exigir a entrega da herança. • Condição resolutiva: é aquela em que o negócio produz efeitos desde logo, podendo tornar-se sem efeito se a condição ocorrer. Aqui há uma subordinação da ineficácia do negócio a um evento futuro e incerto. Exemplo: será legatário de uma casa, mas, se adquirir outra no período de um ano, deixará de sê-lo. Ocorrendo a compra, a deixa testamentária perde seus efeitos. Com a verificação da condição, extingue-se o direito do legatário, mas os efeitos produzidos antes da verificação mantêm-se, desde que compatíveis com a natureza da condição e com os ditames da boa-fé. Portanto, no exemplo citado, todos os frutos que o herdeiro recebeu não necessitam ser restituídos com o advento da condição resolutiva. Entretanto, se o legatário sob condição resolutiva vendeu a casa a terceiro que conhecia a condição, a venda estará desfeita quando se resolver a sua qualidade.
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II) Quanto à origem, levando-se em conta a vontade das partes: • Condição puramente potestativa: é aquela que subordina os efeitos do negócio jurídico à vontade exclusiva de uma das partes, ao seu inteiro arbítrio, sem a interferência de ato externo. Exemplo: nomeio João meu herdeiro, se aprouver a Carlos. Conforme consagra o Código Civil em vigor, é nula essa condição, o que pode gerar a nulidade do negócio como um todo (art. 122 do CC). • Condição potestativa simplesmente ou meramente potestativa: é aquela que subordina os efeitos do negócio jurídico à vontade de uma das partes e também a um acontecimento que escapa de sua alçada. Exemplo: nomeio João legatário de minha casa se ele conseguir um emprego no Hospital. O ato de conseguir o emprego dependerá da vontade do legatário, mas não só. Depende também do tempo, da existência de vagas, da aprovação pelo empregador etc. A doutrina exemplifica como condição meramente potestativa a frase do devedor: Devo, não nego, mas pago quando puder! A condição meramente potestativa é plenamente válida.
III) Quanto à licitude: • Condições ilícitas: são aquelas contrárias à lei, à ordem pública e aos bons costumes (art. 122 do CC). Como exemplo de condição contra os bons costumes, temos aquela em que o testador nomeia João seu herdeiro, se este trair sua esposa mensalmente. Além disso, será condição contrária à ordem pública aquela em que o testador legar um bem a seu sobrinho, desde que este se case com sua própria mãe, havendo um incesto. Também serão consideradas ilícitas as condições que privam o negócio jurídico de qualquer efeito, o que se denomina condição perplexa (ou
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incompreensível ou contraditória). Ilustrando, será perplexa a condição se o testador nomear João seu único herdeiro, caso ele transfira todos os bens recebidos a uma instituição de caridade. Por fim, são ilícitas as condições que sujeitam o negócio jurídico ao puro arbítrio de uma das partes, ou seja, as condições puramente potestativas. • Condições lícitas: são definidas por exclusão, desde que não estejam contidas na categoria anterior.
Importante apontar que, em se tratando de condição ilícita, nulas serão a condição e a deixa testamentária, o que não significa, necessariamente, que todo o testamento será nulo, pois se aplica o brocardo utile per inutile non vitiatur, do qual decorre o princípio da conservação dos negócios jurídicos. A título de exemplo, se eu nomear no testamento João como legatário de meu carro desde que ele mate seu próprio pai, sendo José o herdeiro do restante dos bens, a nulidade do legado em favor de João não contaminará a nomeação do herdeiro José. Superado o estudo da condição, percebe-se que o art. 1.897 não faz menção à nomeação de herdeiro a termo, sendo a sua redação: “Art. 1.897. A nomeação de herdeiro, ou legatário, pode fazer-se pura e simplesmente, sob condição, para certo fim ou modo, ou por certo motivo”. Como é notório, o termo subordina os efeitos do negócio jurídico a um evento futuro e certo e gera ao titular do negócio um direito adquirido, e não apenas direito eventual. A dúvida que surge quanto ao tema é a seguinte: é possível a inserção de um termo no testamento? A resposta é negativa. O art. 1.898 do CC, antes estudado, proíbe expressamente a instituição de herdeiro a termo,
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salvo na hipótese de substituição fideicomissária. A matéria será mais bem explicada quando do tratamento dos legados. Outro problema prático que surge é como distinguir o termo da condição para fins de verificação da validade da disposição testamentária. Esclarecendo, explica Itabaiana de Oliveira que: “a disposição é a termo a) se certo o acontecimento (dies certus an) e certa a época de sua realização (dies certus quando), o dia 1.º de janeiro, ou de hoje a 30 dias, porque a referência é feita para um tempo fixado no calendário, ou porque pode ser desde logo calculado; b) se é certo o acontecimento (dies certus an) e incerta a época de sua realização (dies incertus quando), no dia em que falecer Tício, porque a morte é certa, embora incerto o seu dia. É condicional: a) se incerto o acontecimento (dies incertus an), mas determinando para certa época em que poderá se realizar (dies certus quando), no dia da maioridade de Tício, por que este pode morrer antes de atingi-la; b) se é incerto o acontecimento (dies incertus an), é também incerta a época em que poderá se realizar (dies incertus quando), exemplo, no dia do casamento de Tício – porque o casamento pode deixar de efetuar-se” (Tratado..., 1952, v. 2, p. 492). Permite ainda a lei que o herdeiro ou legatário seja nomeado por disposição modal (com encargo ou modo). Trata-se de um gravame, um verdadeiro ônus que acompanha a liberalidade e que pode ser imposto pelo testador em benefício próprio ou de terceiros. Exemplos: nomeio João meu legatário, com o encargo de ele construir uma estátua em minha homenagem ou de um terceiro; nomeio Maria minha herdeira com o encargo de ela cuidar de minha tia idosa na cidade de Jaú, Estado de São Paulo.
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É muito importante perceber que o encargo não se confunde com a condição, pois enquanto a condição impede a aquisição e o exercício do direito, o encargo só impede o exercício do direito e não a aquisição, incorporando, consequentemente, o direito ao patrimônio do herdeiro ou legatário nomeado. Dessa forma, determina o Código Civil que o encargo não suspende a aquisição nem o exercício do direito, salvo quando expressamente imposto no negócio jurídico pelo disponente como condição suspensiva (art. 136 do CC). Além disso, considera-se não escrito o encargo ilícito ou impossível, salvo se constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que se invalida o negócio jurídico (art. 137 do CC). Lembre-se de que o herdeiro ou legatário com encargo pode ser obrigado pelo beneficiário a prestar uma caução chamada de muciana se assim o exigirem os interessados. Essa caução recebe esse nome em homenagem a seu autor Mucio Sevola (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., 2003, v. 6, p. 161). Caso o encargo não seja executado pelo herdeiro ou legatário, explica Sílvio de Salvo Venosa que “o encargo pode ser exigido em ação judicial por qualquer interessado. Assim, qualquer coerdeiro pode fazê-lo, já que sem o encargo a coisa voltará a ser partilhada entre os demais herdeiros, se assim dispôs o testador. Caso contrário, o herdeiro ou legatário não é despojado da coisa, mas submete-se a perdas e danos. Vale, outrossim, o exame da vontade do testador” (Direito civil..., v. 7, p. 196). Zeno Veloso, com base nos ensinamentos de Pontes de Miranda, não segue a opinião de Sílvio de Salvo Venosa e explica que “a inexecução do encargo não tem a
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consequência de, ipso iure, tornar ineficaz a disposição. Os herdeiros do testador, ou quem apresente interesse legítimo, podem requerer em juízo a ineficácia da liberalidade, e a sentença opera efeitos ex nunc” (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.591). Silvio Rodrigues, por outro lado, reconhece que “em nenhum lugar declarou o legislador, genericamente, que o descumprimento do encargo infirma a eficácia de liberalidade. O princípio apenas se encontra afirmado especificamente, para o caso de doação onerosa, no art. 562 do Código Civil. A doutrina, entretanto, opina torrencialmente no sentido de que, descumprido o encargo, pode qualquer interessado promover a declaração de ineficácia da deixa testamentária, a fim de que os bens da herança ou do legado, em virtude de sentença judicial, saiam do patrimônio do beneficiário inadimplente e passem a quem de direito” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 189). Em caso de expressa previsão testamentária pela qual o descumprimento do encargo gera sua ineficácia, decidiu o Tribunal Gaúcho, em decisão da relatoria da Des. Maria Berenice Dias: “Cláusula testamentária. Condicionado o legado ao cumprimento de determinados encargos, o seu inadimplemento implica a revogação do benefício. Apelo improvido. O testador, em seu testamento, determinou que a universalidade de seus bens passasse aos apelantes, desde que cumpridas certas condições, as quais, em síntese, diziam com seu bem-estar. E previa que, em caso de inadimplemento, os bens passariam ao sobrinho. (...) O contexto dos autos corrobora as alegações da inicial no sentido de que os recorrentes efetivamente não se desincumbiram dos encargos a que se condicionava o benefício. Farta é a prova documental
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evidenciando as ameaças e os maus-tratos infligidos ao falecido enquanto sob os cuidados dos apelantes. Portanto, não resta dúvida de que os encargos estipulados não foram satisfatoriamente adimplidos pelos recorrentes, o que impõe que se reconheça caberem exclusivamente ao apelado os bens deixados pelo falecido, conforme estabelecido no próprio testamento” (TJRS, 7.ª Câmara Cível, Apelação Cível 70001169655, Rel. Maria Berenice Dias, j. 09.08.2000).
Discorda-se da opinião da doutrina majoritária. Realmente, a inexecução do encargo permite a revogação da doação pelo próprio doador, ou por seus herdeiros, em caso do homicídio doloso, caso este venha a falecer (art. 561 do CC). Já com relação à herança, não havendo previsão expressa, por ser norma restritiva de direito, não comporta interpretação analógica. Em nossa opinião, o beneficiário do encargo pode exigir o seu cumprimento e, se o encargo for de interesse geral, o Ministério Público também pode exigir o seu cumprimento. Como exemplo do último caso, cite-se o encargo de construir uma biblioteca ou de preservar certo parque florestal. Entretanto, caso fosse acolhida a opinião da doutrina majoritária, qual seria o prazo para o interessado exigir a ineficácia da deixa testamentária pelo não cumprimento do encargo? Se adotarmos a ideia de que o encargo é uma contraprestação, seu inadimplemento seguiria o prazo prescricional para a resolução do negócio jurídico (dez anos nos termos do art. 205 do CC). Contudo, se nos afastarmos do caráter de contraprestação, aproximar-nos-íamos da hipótese de revogação por ingratidão sujeita ao prazo decadencial (um ano nos termos do art. 559 do CC). Luciano de Camargo Penteado, ao trabalhar o encargo instituído
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no contrato de doação, colabora imensamente com a solução do problema ao dizer que não há a necessidade de cumular o pedido de revogação da doação por inexecução do encargo com a reivindicação, porque a sentença já contém a condenação por obrigação de dar coisa certa. Explica, também, que o caso é mais assemelhado a uma busca do bem porque se frustrou um fim jurídico específico, como na resolução dos contratos bilaterais, embora o descumprimento do encargo seja diverso dela, do que à ideia de revogação decorrente de ingratidão (Doação..., 2004, p. 183). Seguindo essa corrente quanto ao prazo, pode-se dizer que o próprio art. 559 do CC, ao fixar o prazo da revogação da doação por ingratidão, supostamente deixa claro que a norma não atinge as hipóteses de inexecução do modo. Isso porque o termo inicial da decadência não é a ocorrência do fato, mas sim quando “chegue ao conhecimento do doador o fato que a autorizar, e de ter sido o donatário o seu autor”. Assim, o coautor José Fernando Simão entende que não faz sentido estender a regra de um ano para a inexecução do encargo, eis que, em ocorrendo o descumprimento do modo, não haverá discussão sobre autoria de fatos, nem mesmo a necessidade de que algum fato chegue ao conhecimento do doador. Em conclusão, a hipótese de revogação da doação por inexecução do encargo não estará sujeita ao prazo decadencial de um ano, mas sim ao prazo de resolução dos contratos por inadimplemento do contratante, ou seja, o prazo de 10 anos contados da inexecução (art. 205 do CC). Da mesma forma, o prazo para se declarar a ineficácia da deixa por inexecução do encargo é de dez anos contados da inexecução, se aceita tal possibilidade como frisado anteriormente.
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Em sentido contrário, o coautor Flávio Tartuce entende que o prazo para a revogação da doação é decadencial de um ano, por analogia à revogação por ingratidão. Além disso, essa revogação não está sujeita a prazo prescricional, pois o encargo não é uma contraprestação, mas um ônus. Dessa forma, há um direito potestativo de revogação, o que justifica a aplicação do prazo decadencial. O prazo prescricional não pode ser aplicado, uma vez que é próprio das ações condenatórias, o que não é o caso. Por fim, se admitido fosse que os interessados promovessem a declaração de ineficácia da deixa testamentária, tal prazo seria decadencial de um ano. De qualquer forma, vale lembrar o alerta feito em outro volume dessa coleção, de que o tema é controvertido, envolvendo empolgante debate doutrinário e jurisprudencial (TARTUCE, Flávio. Direito civil..., 2010, v. 3, p. 341-344). Superada essa discussão, permite ainda o Código Civil que a nomeação de herdeiro ou legatário seja para certo modo ou fim ou por certo motivo (art. 1.897 do CC). A noção de motivo certo nos remete à ideia de que o testador declara as razões subjetivas que o levaram a escolher certa pessoa como herdeira ou legatária. O testador justifica a sua escolha e dá os motivos para tanto, levando-nos à noção de falso motivo, previsto no art. 140 do CC. Se o motivo for declarado como razão determinante da deixa testamentária e se revelar falso, pode-se anular o negócio jurídico por erro essencial (arts. 138, 171, II, e 178, II, do CC). É exemplo de nomeação de herdeiro por motivo certo a hipótese em que o falecido nomeia João seu herdeiro,
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declarando que assim o faz pelo fato de ter sido ele o bombeiro que lhe salvou a vida em outra oportunidade, quando, na verdade, posteriormente, descobriu-se que o bombeiro foi José. Como outro exemplo, se o testador nomeia determinada pessoa legatária e declara que só o fez em remuneração a certo serviço que, na verdade, não foi prestado pelo nomeado. A análise que deve ser feita no caso concreto é se o motivo realmente foi determinante para a nomeação do herdeiro ou se ocorreu simples menção de um fato. Para terminar, quanto à classificação do motivo, temos dois tipos: 1.º) O motivo impulsivo, que é meramente acessório à disposição e não é a sua razão determinante. Se, por exemplo, o falecido nomear seu sobrinho médico João como único herdeiro e João não for médico, mas sim dentista, a deixa valerá, pois a qualificação do sobrinho não foi o motivo determinante para a nomeação. 2.º) O motivo final, que é realmente a razão pela qual a deixa foi feita, sendo sua razão determinante. Ilustrando, se o testador deixar a casa para o sobrinho João porque ele é médico, sendo que na realidade ele é dentista, a deixa perde efeitos.
Superada a análise dessas cláusulas permissivas do testamento, encerramos o seu estudo. O momento agora é de discorrer sobre o controvertido instituto do legado.
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3.7 DOS LEGADOS 3.7.1 Noções gerais O legado é a forma de disposição mortis causa a título singular. Segundo Maria Helena Diniz, o legado recai necessariamente sobre uma coisa determinada ou uma cifra em dinheiro, sendo, por isso, uma forma de sucessão causa mortis a título singular que se assemelha a uma doação, dela diferindo pelo fato de ser unilateral e só produzir efeitos com o falecimento do de cujus (Curso..., 2005, v. 6, p. 299). Em outras palavras, trata-se de deixa testamentária pela qual um bem ou certos bens são atribuídos a certa pessoa, seja ela herdeira ou não, em decorrência da vontade do falecido. Segundo Sebastião Amorim, caso o herdeiro seja nomeado legatário, o legado recebe o nome de legado precípuo ou prelegado (Código Civil..., 2004, v. XIX, p. 178). Em se tratando de legado, estamos diante de sucessão a título singular, diferentemente do que ocorre com a herança na qual o herdeiro recebe os bens a título universal. Tanto o herdeiro quanto o legatário são sucessores do falecido em razão de sua morte. Assim, o legatário necessariamente será nomeado por testamento ou codicilo e, em regra, não suportará as dívidas da herança. Pessoas nomeadas em testamento para receber o carro do falecido, os bens contidos em seu cofre, um terço do apartamento de praia ou determinada quantia em dinheiro são exemplos de legatários. Na prática, percebe-se que são três as pessoas presentes no legado. Primeiro, o testador, também
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chamado de legante; o legatário, que é o beneficiado pela deixa e o onerado, aquele que irá cumprir o legado. Caso o testador não nomeie um herdeiro específico para dar cumprimento ao legado, todos os herdeiros serão responsáveis pelo seu cumprimento. O Código Civil de 2002 divide a disciplina dos legados em três partes: – Disposições gerais – arts. 1.912 a 1.922 do CC. – Dos efeitos dos legados e seu pagamento – arts. 1.923 a 1.938 do CC. – Da caducidade dos legados – arts. 1.939 a 1.940 do CC.
Estudaremos oportunamente esses dispositivos legais. Agora analisaremos as modalidades de legado. 3.7.2 Das modalidades de legado O Código Civil cuida de várias modalidades específicas de legado de acordo com o tipo de bem deixado pelo testador ao legatário. De acordo com essas especificidades do bem legado, quer seja ele do testador, quer seja do legatário, e sendo a coisa certa ou incerta, haverá previsão legal específica sobre o legado. Vejamos. 3.7.2.1 Legado de coisa alheia Em decorrência do princípio geral pelo qual ninguém pode transferir mais direitos do que possui, se o testador contemplar o legatário com um bem alheio, ou seja, que não é de propriedade do falecido, em regra, tal disposição será ineficaz, não produzindo, portanto, efeitos jurídicos
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(art. 1.912 do CC). De acordo com a chamada Escada Ponteana, que segue a divisão do negócio jurídico em três planos, conforme ensinamentos de Pontes de Miranda (planos de existência, validade e eficácia), essa situação de atribuir bem alheio não atinge a validade da disposição (2.º degrau), mas apenas lhe retira os efeitos (3.º degrau). Entretanto, podemos explicar três situações de exceção em que o legado de coisa alheia produzirá efeitos: a) Se o bem não pertencia ao testador no momento em que testou, mas lhe pertencer no momento da abertura da sucessão.
Como o testamento é negócio jurídico unilateral que só produz efeitos após a morte de seu autor, deve-se verificar a propriedade do bem legado no momento da abertura da sucessão. Caso, nesse momento, pertença o bem ao testador, o legado é considerado eficaz. Nas palavras de Maria Helena Diniz, “a aquisição ulterior produz efeito retrooperante, convalidando o ato” (Curso..., 2005, v. 6, p. 303). b) Se o testador determinar que o herdeiro entregue bem que lhe pertence ao legatário.
Isso se verifica quando o testador assim dispuser: “deixo meus bens a meu sobrinho João, que deverá entregar seu carro a meu sobrinho José”. É a hipótese de sublegado na qual o beneficiado pela deixa é chamado de sublegatário. É possível que o testador determine ao herdeiro a entrega de bem do próprio herdeiro ao legatário. Como não
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tem o testador poder de legar bem alheio, essa disposição, em princípio é ineficaz, pois o herdeiro terá possibilidade de decidir se entrega ou não a coisa legada. Trata-se de decisão que decorre do princípio da autonomia privada, não podendo o herdeiro ser constrangido a entregar o bem que lhe pertence. Nesse caso, a liberalidade vem acompanhada de um encargo, já que traz um ônus ao herdeiro. Se executado o encargo ou modo, o herdeiro receberá a herança. Caso o ônus seja descumprido pela não entrega do bem, considera-se que o herdeiro renunciou à herança (art. 1.913 do CC). A noção de ônus se revela perfeita no caso em questão. Isso porque, segundo Antunes Varela, “o ônus exigirá do sujeito que realize determinada conduta sob pena de não alcançar um benefício ou suportar certo prejuízo” (Das obrigações..., 2003, v. I, p. 57). O ônus será apenas do herdeiro nomeado a entregar o bem, o qual poderá cobrar regressivamente dos demais herdeiros a quota de cada um, salvo disposição em contrário do testador (art. 1.935 do CC). Exemplificando, se quatro herdeiros recebem a herança e apenas João tem o ônus de entregar ao legatário um carro de sua propriedade no valor de R$ 20.000,00, após a entrega do bem poderá cobrar de cada um dos herdeiros a importância de R$ 5.000,00, ou seja, suas quotas, pois não há solidariedade presumida pelo sistema do Código Civil brasileiro (art. 265 do CC). c) Caso o legado seja de coisa genérica, ou seja, aquela determinada apenas quanto a seu gênero, qualidade e quantidade, ainda que não mais exista no patrimônio do testador.
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Nessa hipótese o legado é considerado eficaz (art. 1.915 do CC). Trata-se de decorrência lógica do princípio pelo qual genus non perit, ou seja, o gênero não perece (art. 246 do CC). Ilustrando, se o testador legar 100 sacas de café, ainda que no seu patrimônio inexistam sacas ou existam apenas 20, o legado é eficaz e caberá ao herdeiro obter o restante delas e entregá-las ao legatário. Isso seria impossível em se tratando de coisa certa que, perecendo, extingue a obrigação, já que não pode ser substituída por outra. No caso em questão, sendo a coisa certa, há caducidade do legado (art. 1.939, III, do CC). Haverá, assim, um encargo para o herdeiro de adquirir o gênero legado. Nessa situação, terá o herdeiro onerado o direito de cobrar dos demais os valores e gastos com a aquisição do gênero (art. 1.935 do CC), sempre de maneira divisível e não solidária. No entanto, o testador pode prever expressamente o contrário, ou seja, que o direito de regresso não poderá ser exercido. O legatário terá o direito de exigir que o herdeiro cumpra o encargo utilizando-se dos meios coercitivos para execução da obrigação de fazer e para a entrega de coisa (arts. 247 a 249 do CC e arts. 461 e 461-A do CPC). Cabe ressaltar que o testador pode elaborar o legado coisa quase genérica. É aquele em que o testador limita o gênero legado. Exemplificando, se legar cem cabeças de boi das quinhentas que tem em sua fazenda, caso as quinhentas cabeças pereçam, o legado é ineficaz, pois o gênero estava restrito pela própria vontade do testador. Não se aplica, então, o comentado art. 1.915 do CC. Sendo o legado acompanhado de encargo, aplicam-se ao legatário as regras referentes à doação com encargo
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(art. 1.938 do CC), em especial a regra do art. 553 da codificação em vigor. No caso em questão, entende Sílvio de Salvo Venosa que, caso o legatário descumpra o encargo, haverá verdadeira anulação do legado, que retornará ao monte hereditário (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 242). 3.7.2.2 Legado que só pertence em parte ao testador Caso o testador deixe bens ao legatário que apenas em parte lhe pertençam, por decorrência lógica do princípio pelo qual ninguém pode transmitir mais direitos do que possui, o legado será eficaz quanto aos bens pertencentes ao testador e parcialmente ineficaz quanto aos demais bens (art. 1.914 do CC). Quanto à parte ineficaz, aplicamse as regras expostas no item anterior. Em idêntico sentido, se o testador legar bens que existam em quantidade inferior à coisa legada (art. 1.916 do CC). A título de exemplo, se legar dois quadros de Portinari, mas apenas um existir quando do falecimento em virtude de o outro ter sido roubado, vale o legado quanto ao quadro existente. As regras tomam por base o princípio da conservação do negócio jurídico que produzirá, ainda que parcialmente, os efeitos almejados pelo testador. 3.7.2.3 Legado de coisa singular Caso o legado recaia sobre coisa singular, este só terá eficácia se, quando do momento do falecimento, o bem se achar entre os bens da herança (art. 1.916 do CC). A coisa singularizada é aquela infungível, que, além de ser indicada quanto à qualidade e quantidade, é única. Exemplo
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disso ocorre quando o testador constitui como legado determinado bem imóvel localizado na Av. Paulista, n. 575, em São Paulo. Se o bem não mais estiver no patrimônio do falecido quando da abertura da sucessão, o legado é ineficaz. Da mesma forma se for legado o boi da raça Nelore Xanegu. Se o touro morrer antes de aberta a sucessão, será ineficaz o legado. Na hipótese em que a coisa legada existir entre os bens do testador, mas em quantidade inferior à do legado, este será eficaz apenas quanto à existente. 3.7.2.4 Legado de coisa localizada O testador, em vez de simplesmente indicar o bem legado, pode mencionar no testamento o lugar no qual os bens se encontram. Isso se verifica, por exemplo, na hipótese em que o testador legar todos os bens que estão em certo cofre, ou os móveis que estão na sala de jantar, ou todos os dólares que se encontram sob seu colchão. Caso os bens legados tenham sido removidos pelo autor da sucessão, entende-se que a deixa se tornou ineficaz por vontade do próprio falecido. Trata-se de interpretação do art. 1.917 da atual codificação, pela qual o legado de coisa certa que deva encontrar-se em determinado lugar só terá eficácia se nele for achada, salvo se removida a título transitório. A regra comporta uma exceção: se os bens foram removidos em caráter transitório, ou seja, em caráter não definitivo, o legado produzirá seus efeitos. Para ilustrar, se os móveis da sala foram retirados em razão de obras, o legado ainda é eficaz. Por outra via, se os mesmos móveis foram vendidos pelo testador, que precisava de dinheiro, ou enviados pelo próprio testador à sua casa de praia, o legado se tornará ineficaz.
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Certo é que, se terceiros removerem os bens do lugar indicado pelo falecido, o legado é considerado eficaz e, portanto, o legatário, como novo proprietário, poderá reivindicá-los de quem injustamente os possua. 3.7.2.5 Legado de crédito – legatum nominis O crédito, apesar de ser bem imaterial, pode ser objeto de legado, pois dotado de valor econômico. Com a morte, em se tratando de sucessão legítima, o herdeiro receberá todos os bens (inclusive os créditos) e as dívidas do falecido. Portanto, se o falecido quiser destacar um crédito que tem para receber e constituir um legado, cujo objeto é o próprio crédito, poderá fazê-lo. Note-se que, em vida, a pessoa poderia fazer uma cessão gratuita do crédito (art. 286 do CC). Quando da morte, basta que faça um testamento legando o crédito. A diferença entre a cessão gratuita de crédito e o legado é que a primeira decorre de negócio jurídico inter vivos e o segundo, de negócio mortis causa. A eficácia do legado dependerá da extensão do crédito testado e do valor deste quando da abertura da sucessão (art. 1.918 do CC). Ilustrando, se o crédito legado for de R$ 100.000,00, mas o devedor já pagou R$ 20.000,00 ao credor antes de sua morte, o crédito legado será de apenas R$ 80.000,00. Sendo legado o crédito, estarão abrangidos todos os seus acessórios, tais como juros, multa e garantias, incidindo a regra pela qual o acessório segue o principal. Caso o crédito esteja representado por um título de crédito (ex.: nota promissória ou letra de câmbio), deverá
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o herdeiro entregá-lo ao legatário como forma de cumprimento da deixa testamentária. Essa é a conclusão a ser retirada do art. 1.918, § 1.º, do atual Código. O legado pode envolver uma quitação de dívida em que o testador é o credor e o legatário é o devedor. Nessa hipótese, caso o credor (testador) tenha em seu poder notas promissórias representativas de sua dívida, o herdeiro deverá entregá-las ao devedor, na qualidade de legatário beneficiado. Percebe-se que a situação é analógica à da remissão (perdão) de dívidas que poderia ter ocorrido durante a vida do testador (art. 385 do CC). A quitação legada só pode abranger dívidas do legatário que já existiam quando da elaboração do testamento e não as posteriores (art. 1.918, § 2.º, do CC). Se surgiram novas dívidas entre a feitura do testamento e a morte do falecido, estas não estarão quitadas, salvo se o testador expressamente dispuser quanto às dívidas vincendas. Por outro lado, se por ocasião da morte do testador a dívida já estava quitada, o legado caducará, não se conferindo ao legatário a ação de repetição de indébito (BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual..., 2004, v. 4, p. 239). 3.7.2.6 Legado de alimentos Pode o testador instituir em favor do legatário o chamado legado de alimentos, ou seja, de valores indispensáveis à subsistência do legatário. Não se trata de fixação de legado representado por um pagamento mensal de certa quantia ao legatário. Isso porque, se legada certa quantia mensal, não haverá nenhuma relação entre ela e o valor
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necessário à subsistência. Deve o testador ser expresso no sentido de tratar de legado com fins alimentares. Surge uma dívida de valor e não de dinheiro (art. 1.710 do CC). Sobre o tema já decidiu o Tribunal do Rio Grande do Sul: “Legado. Cumprimento. Alimentos. Fixação. A disposição deve ser interpretada em atenção à vontade da testadora, buscando-se sempre atender o desejo de sua volição. Assim, quando determina que a beneficiária tenha casa, sustento, vestuário e saúde, indubitavelmente indicou um legado de alimentos, que são periódicos por natureza, devendo persistir enquanto viva a pessoa indicada e ser cumprido com as forças apreciáveis da herança. Apelações desprovidas” (TJRS, Apelação Cível 70009068198, 7.ª Câmara Cível, Rel. José Carlos Teixeira Giorgis, j. 03.11.2004).
Nesse contexto, o legado de alimentos abrange o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver (art. 1.920 do CC). Se o legatário for menor, inclui também a educação. A hipótese é de legado a termo, sujeito a evento futuro e certo. Desse modo, caso opte por ele, o testador pode, nesse caso, estabelecer termo distinto da morte do legatário. Como exemplo, pode ser citado o caso de legado de alimentos pelo prazo de cinco anos contados da abertura da sucessão. Se não houver valor fixado pelo próprio testador, caberá ao juiz fixá-lo considerando as necessidades do legatário beneficiado e também as forças da herança, uma vez que por elas será o encargo suportado. Conforme explica Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, nesse caso o quantum alimentar poderá ser alterado se também se alterarem as causas que determinam sua fixação e, graças a
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sua finalidade, será sempre inalienável e impenhorável (Curso avançado..., 2006, v. 6, p. 403). Segundo Flávio Augusto Monteiro de Barros, “o legado de alimentos, em vez de ser extraído da herança, pode ser imposto como encargo ao herdeiro ou legatário, assumindo o perfil de sublegado. Exemplo: diz o testador – Paulo é meu herdeiro, desde que pague uma pensão alimentícia de R$ 500,00 para Maria” (Manual..., 2. ed., 2006, v. 4, p. 240). 3.7.2.7 Legado de usufruto O usufruto é uma das espécies de direito real sobre a coisa alheia previsto no Código Civil (art. 1.225, IV, do CC). Segundo Washington de Barros Monteiro, “trata-se de um direito real de fruir as utilidades e os frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade” (Curso..., 2003, v. 3, p. 293, atualizada por Carlos Alberto Dabus Maluf). Por meio do usufruto, ficam cindidos os poderes da propriedade, ficando o nu-proprietário privado do uso e da fruição da coisa, sendo a posse direta transferida ao usufrutuário. Em razão de seu conteúdo econômico, o usufruto pode ser instituído por meio do legado, ou seja, pode ser objeto dessa forma de sucessão singular. O legado de usufruto poderá ser feito sob termo ou sob condição. Caso o testamento silencie a respeito, o usufruto será considerado vitalício. Se o legado de usufruto for em favor de pessoa jurídica, estará limitado ao prazo máximo de 30 anos, por aplicação analógica ao que dispõe
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o art. 1.410, III, do CC. É possível, mais uma vez, o legado a termo. Vale dizer que a instituição de legado de usufruto sofre a seguinte limitação: o testador não pode criar um legado de usufruto sucessivo, ou seja, o usufruto do bem para João, sendo que depois da morte de João, este passa para José. Como se sabe, a única forma de sucessividade admitida por lei seria a substituição fideicomissária que será analisada oportunamente. Deve-se salientar, por fim, conforme ensina Itabaiana de Oliveira, que se certa pessoa for usufrutuária, não poderá legar tal usufruto, pois, com sua morte, o usufruto se extingue e, portanto, estaria dispondo sobre direito de terceiro, ou seja, do nu-proprietário, que terá a propriedade consolidada (Tratado..., 1952, v. 2, p. 555). Interessante é a regra do art. 1.946 do Código Civil a respeito do direito de acrescer entre os usufrutuários. Isso porque o usufruto voluntário pode surgir por um ato inter vivos (acordo de instituição de usufruto) ou por um ato mortis causa (testamento criando o usufruto). Se tiver por origem um ato inter vivos, falecendo um dos usufrutuários, haverá extinção parcial do usufruto, como regra, e o nu-proprietário receberá a parte extinta (art. 1.411 do CC). Assim, se o instituidor desejar que ocorra o acréscimo, tal direito deve estar expresso no ato de instituição. Por outro lado, se o usufruto decorrer de ato de última vontade, o direito de acrescer entre usufrutuários é automático, pois assim dispõe o art. 1.946 do Código Civil: “Legado um só usufruto conjuntamente a duas ou mais pessoas, a parte da que faltar acresce aos colegatários”.
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Deve estar presente, para tanto, a conjunção re et verbis, conforme será explicado no item 3.7 referente ao direito de acrescer. Sobre o tema do usufruto como direito real sobre coisa alheia, recomenda-se a leitura do volume 4 da presente coleção (TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito civil..., 2010, v. 4, p. 366-382). 3.7.2.8 Legado de imóvel Se determinada pessoa legar um imóvel, coisa certa, e depois adquirir novos imóveis, mesmo que contíguos, o legado não compreende as novas aquisições (art. 1.922 do CC). O legado se restringe ao bem indicado no testamento, não podendo ser ampliado por interpretação, mas apenas por expressa declaração do falecido. Vejamos um exemplo. Se o testador lega o terreno localizado na Praça Geraldo da Silva Maia n. 100, em Passos, Minas Gerais, ainda que após o testamento o testador venha a comprar o terreno vizinho, a nova aquisição não comporá o legado, salvo se assim expressamente determinar. Não há relação entre o bem novo e o antigo. Entretanto, ressalva Itabaiana de Oliveira que se o testador, depois de ter legado um terreno fechado, aumenta-lhe o recinto, é sua intenção compreender no legado tudo quanto se acha cercado e, portanto, esse aumento não se considera nova aquisição (Tratado..., 1952, v. 2, p. 559). Por fim, se o testador, após a elaboração do testamento, realizar benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias no bem legado, estas pertencerão ao legatário, eis
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que o acessório segue o principal (art. 1.922, parágrafo único, do CC). 3.7.3 Dos efeitos do legado 3.7.3.1 Do pagamento do legado – transmissão da posse e da propriedade do bem legado Desde a abertura da sucessão, com a morte do testador e pelo princípio da saisine, passa o legatário a ser, de imediato, proprietário do bem testado (art. 1.784 do CC). A única exceção se dá quando o bem é legado com condição suspensiva (art. 1.923 do CC). Isso porque, nos negócios celebrados sob condição suspensiva (aquela que subordina os seus efeitos a um evento futuro e incerto), não há direito adquirido, mas sim direito eventual (art. 130 do CC). Exemplo de legado sob condição suspensiva se verifica quando o testador deixa um carro para o sobrinho legatário desde que este ingresse na faculdade de Direito. Como consequência da imediata transferência da propriedade, todos os frutos produzidos pela coisa, após a morte do testador, pertencem ao legatário, por se tratarem de bens acessórios (art. 1.923, § 2.º, do CC). Certo é que se o legado for a termo ou sob condição, antes do advento destes os frutos não pertencem ao legatário. Para ilustrar, se o testador deixa o bem ao legatário a partir do dia 10 de janeiro do ano de 2010 – termo inicial ou suspensivo –, o último só terá direito aos frutos produzidos após tal data. Todos os frutos produzidos no período entre a morte do testador e a data prevista pertencerão a seus herdeiros. Pode, ainda, o testador prever um termo inicial para o
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recebimento dos frutos (ex.: o legatário receberá os frutos a partir de dois anos contados da morte do testador). Ainda com relação aos frutos produzidos pelo legado, curiosa é a regra prevista no art. 1.925 do CC para o legado em dinheiro. Nessa espécie de legado, os juros só passam a ser devidos ao legatário quando for constituída em mora a pessoa obrigada a prestá-lo. O fundamento da regra, segundo Carvalho Santos, é o seguinte: “A quantia em dinheiro considerada genericamente, ou como parte efetiva do patrimônio do testador, é considerada mera quantidade e não capital frutífero. Para que vença juros, por isto mesmo, se faz necessário seja constituída em mora a pessoa obrigada” (Código Civil..., 1937, v. XXIII, p. 449). Para Itabaiana de Oliveira, por ser o dinheiro bem fungível, a morte do testador não lhe transfere o domínio, nos moldes do que ocorre com os bens infungíveis, passando ao legatário apenas o direito de exigi-lo judicialmente, caso o herdeiro não o entregue (Tratado..., 1952, v. 2, p. 566). As explicações da doutrina não nos convencem, e nesse ponto concordamos com Silvio Rodrigues (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 211). O herdeiro fica com os juros produzidos entre a morte do testador e sua constituição em mora, em evidente enriquecimento sem causa diante do legatário, o que fere o princípio da eticidade, um dos regramentos básicos do Código Civil de 2002. Quanto à correção monetária, não há dúvidas, uma vez que o valor deve ser entregue ao legatário monetariamente corrigido, eis que a correção apenas recompõe o valor de compra da moeda corrido pela inflação.
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Pelo fato de assumir a qualidade de proprietário do bem em decorrência da abertura da sucessão, somente a posse indireta do bem é transmitida ao legatário, permanecendo a posse direta com o herdeiro até que este o entregue ou até a partilha. Não pode o legatário entrar por autoridade própria na posse da coisa legada, ou seja, deve pedir ao herdeiro e, quando autorizado por ele, entrar na posse (art. 1.923, § 1.º, do CC). O direito de pedir deverá ser formulado ao testamenteiro ou inventariante (se um deles estiver na posse do bem), a certos herdeiros (se o testador assim o determinar) ou a todos os herdeiros conjuntamente, conforme explica Itabaiana de Oliveira (Tratado..., 1952, v. 2, p. 563). Nos termos do art. 1.924 do atual Código, fica suspensa a possibilidade de exercício do direito de pedir em três casos: 1.º) Quando o legado for sob condição suspensiva, até que se verifique a condição. 2.º) Quando o legado for a termo, até que este se verifique. 3.º) Quando pender litígio sobre a validade do testamento. Nesse caso, necessário será aguardar o trânsito em julgado da demanda e o seu desfecho. Entretanto, se a discussão versar sobre determinada cláusula apenas, como por exemplo o reconhecimento de um filho, a regra não se aplica, pois o vício de uma cláusula não contamina o todo, podendo o legatário pedir o legado desde logo.
Explica Washington de Barros Monteiro que o pedido de entrega do legado deve ser feito judicialmente perante o Juízo do inventário, sendo ouvidos antes da decisão judicial: o testamenteiro, os herdeiros e a Fazenda. São suas palavras: “Deferido, lavrar-se-á o termo de entrega ou de
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pagamento, observadas as formalidades legais. Observese, porém, desde logo, que o legado não pode ser entregue sem prévio pagamento de direitos fiscais” (Curso..., 2003, v. 6, p. 199). Qualquer uma das partes ouvidas poderá discordar da entrega da posse do legado, desde que justifique os motivos para tanto. Um motivo relevante para impedir a transferência do legado está presente quando o falecido morreu insolvente e, assim, o bem legado será partilhado entre seus credores. Nesse caso, será necessário ao legatário aguardar a partilha para que a posse lhe seja transferida. Caso venha a falecer o legatário, o direito de pedir se transfere aos seus herdeiros, pois a propriedade já lhe foi transmitida com a morte do testador. O pedido de entrega pode ser deduzido pelo legatário nos autos do inventário. Todavia, se o herdeiro se recusar a entregar o bem legado, caberá ao legatário a propositura de ação reivindicatória autônoma. 3.7.3.2 Do pagamento do legado – legado de renda vitalícia ou de prestação periódica Em se tratando de legado de renda vitalícia (prestação paga até a morte do beneficiário) ou de pensão periódica (paga em certo período de tempo), determina o Código Civil que estas serão devidas a partir do momento da morte do testador (art. 1.926 do CC). Em casos tais, o pagamento deverá ocorrer da forma determinada pelo testador. Caso o legado determine o pagamento sem mencionar o seu termo inicial, a sua morte será considerada como tal
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marco (art. 1.927 do CC). A título de exemplo, se o legado determinar o pagamento de uma quantia a cada 30 dias, a primeira prestação vencerá 30 dias após sua morte e assim sucessivamente. De resto, existe grande semelhança entre tais modalidades de legado e o contrato de constituição de renda (arts. 810 a 813 do CC), sendo certo que a diferença se dá pelo fato de o legado só produzir efeitos mortis causa e a constituição de renda efeitos inter vivos. Se o pagamento for feito uma vez por ano, morrendo o legatário no primeiro dia do ano, terão os herdeiros o direito de exigir a prestação por inteiro, pois esta não é adquirida dia a dia, como ocorre na constituição de rendas (art. 811 do CC), mas por inteiro, no primeiro dia do período (art. 1.927 do CC). Ainda que seja adquirida no início do período de forma integral, a prestação só será exigível ao final do período estipulado. Aplica-se ao caso o art. 1.928 do CC, pelo qual “Sendo periódicas as prestações, só no termo de cada período se poderão exigir”. O direito se adquire no primeiro dia, mas sob termo suspensivo, ou seja, os efeitos ficam suspensos até o último dia do período, não podendo ser exigido antes disso. Isso porque o direito existe, é válido, mas não é eficaz, de acordo com os planos do negócio jurídico magistralmente explicados por Pontes de Miranda. Exemplificando, se o testador legar a importância mensal de R$ 1.000,00 ao legatário, e morrer no dia 31 de dezembro de 2006, no dia 1.º de janeiro de 2007 o legatário já terá direito ao valor integral de R$ 1.000,00, que só será exigível em 1 de fevereiro de 2007. Após o prazo de
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exigibilidade, inicia-se o prazo de prescrição da pretensão, que será de três anos (art. 206, § 3.º, II, do atual CC). Entretanto, se a renda tiver caráter alimentar, estaremos diante de exceção à regra, e o pagamento deverá ser feito não ao final, mas no início de cada período (art. 1.928, parágrafo único, do CC). 3.7.3.3 Do pagamento do legado – legado de coisa incerta A coisa incerta é aquela determinada pelo seu gênero, qualidade e quantidade; o objeto é indeterminado, porém determinável. Para ilustrar, o legado será de coisa incerta se o testador legar cem bois nelores do seu lote que contém quinhentos animais dessa raça. As regras da obrigação de dar coisa incerta, previstas nos arts. 243 a 246 do atual Código, são aplicadas ao legado. Como, em regra, o devedor tem o fardo obrigacional, será dele o direito de escolha das coisas a serem entregues ao credor, salvo se o contrário não resultar do título da obrigação, que no caso seria o testamento (art. 244 do CC). Dessa forma, o herdeiro, considerado o devedor, terá o direito de escolher quais bens deve entregar ao legatário, não podendo entregar os de pior qualidade, pois o critério adotado pelo legislador foi o do fator médio ou meiotermo (arts. 244 e 1.929 do CC). A regra atende aos princípios da eticidade e da equivalência das prestações. A escolha da coisa média é boa e justa para o herdeiro e para o legatário. Da mesma forma é possível que o testador determine que a escolha será feita por um terceiro (legatum electionis) que não seja o herdeiro nem o legatário. Este
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terceiro deve seguir idêntico critério, o de entrega da coisa média, segundo prevê o art. 1.930 da atual codificação privada. Pelo mesmo dispositivo, se esse terceiro não quiser nem puder exercer o ato, ao juiz competirá fazê-lo, também guardado o meio-termo entre as congêneres de melhor e pior qualidade. Por fim, poderá o testador determinar que o próprio legatário escolha a coisa legada dentro do gênero (legatum optionis). Nesse caso, poderá o legatário escolher a melhor coisa do gênero, não sendo obrigatório seguir o critério do meio-termo, conforme o art. 1.931 da atual codificação. O motivo para tanto seria o fato de que, se o testador deu poderes de escolha ao legatário, na qualidade de credor, é justamente porque pretendia que este exercesse livremente a opção, sem peias. Nos dizeres de Antunes Varela, “as partes devem contar com todas as prestações possíveis contidas no vínculo obrigacional, e não é aplicável à escolha, o princípio de que ela deva obedecer a regras de equidade” (Das obrigações..., 2003, v. I, p. 834). Em que pese o apoio da doutrina, a regra nos parece injusta e, em decorrência da boa-fé e do respeito à igualdade das partes, não poderia o legatário ser tratado de maneira diferente do herdeiro, salvo se houvesse expressa disposição testamentária nesse sentido. De qualquer modo, a parte final do art. 1.931 mitiga a regra, prevendo que se não houver uma coisa melhor, a coisa dada será outra congênere, do mesmo tipo, observado o meio-termo previsto no outrora comentado art. 1.929. Em se tratando de legado alternativo, que é aquele que recai sobre uma ou outra coisa, determina a lei que a escolha será do herdeiro, na qualidade de devedor que é (art. 1.932 do CC). Como se vê, o legado alternativo segue
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a regra geral da obrigação alternativa (art. 252, caput, do CC). A obrigação alternativa é aquela que contém duas ou mais prestações em seu vínculo, e o devedor dela se exonera entregando apenas uma; há dois ou mais objetos no vínculo (in obligatione) e apenas um na execução (in solutione). Caso haja perda de um ou de todos os objetos alternativamente legados, devem ser aplicadas as regras dos arts. 254 e 255 do CC, analisando-se a culpa ou não do devedor na perda, bem como a quem competia o direito de escolha. Isso porque o art. 1.940 do Código Civil trata apenas parcialmente do tema, ao dispor que se uma das coisas legadas perecer – no todo ou em parte –, o legado subsiste quanto ao remanescente, ao que sobrar. No silêncio do testamento, a escolha competirá ao herdeiro e não ao legatário (art. 1.932). Caso o direito de escolha seja do legatário ou do herdeiro e estes venham a falecer antes do exercício do direito que lhe é atribuído, este se transfere a seus herdeiros (art. 1.933 do CC). Caso haja mais de um herdeiro para efetuar a escolha, esta deve ser feita por unanimidade e não por maioria, por aplicação analógica do art. 252, § 3.º, do CC. Pelo mesmo dispositivo, caso não haja unanimidade, o juiz deverá fixar prazo para a decisão dos herdeiros e, se, mesmo assim, não houver consenso, o juiz decidirá. 3.7.3.4 Do pagamento do legado – da responsabilidade e das despesas Caberá a todos os herdeiros o cumprimento do legado, salvo disposição específica do testador em sentido diverso
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(art. 1.934 do CC). Isso porque, sendo sucessor a título universal, é o herdeiro quem recebe todo o patrimônio (ativo e passivo) do falecido, e dele deve destacar o bem legado. Desse modo, cada herdeiro responde proporcionalmente por seu quinhão pelo legado a ser pago. Caso inexistam herdeiros e a herança seja toda dividida em legados, os legatários assumirão o dever de entrega dos bens, na proporção do que herdaram. Se houver apenas um herdeiro ou legatário indicado pelo testador, somente a ele caberá o cumprimento do legado, podendo, então, cobrar dos demais herdeiros regressivamente seus quinhões na dívida, salvo se o contrário expressamente dispôs o testador (art. 1.935 do CC). Por fim, determina a lei que quando indicados mais de um herdeiro ou legatário para o cumprimento do encargo, os onerados dividirão entre si o ônus, na proporção do que recebam da herança (art. 1.934, parágrafo único, do CC). Com isso, afasta-se da regra que presume a divisão do ônus em partes iguais (concursu partes fiunt), para seguir o montante dos quinhões. Com uma concreção prática, a regra ficará bem compreendida. Em razão do testamento, João recebe 60% da herança, José recebe 30% e Pedro apenas 10%, e o testador institui Maria legatária da importância de R$ 1.000,00. Se o testador determinar que João cumpra o legado, somente ele será responsável pelo pagamento da importância de R$ 1.000,00. Contudo, após pagá-la, poderá cobrar regressivamente de José a quantia de R$ 300,00 e de Pedro, R$ 100,00, ou seja, proporcionalmente às suas quotas. Se o testador nada determinar sobre a quem cumpre o legado, todos os herdeiros serão responsáveis pelo
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pagamento, mas não de maneira solidária e sim divisível, de acordo com o quinhão herdado. No exemplo citado, João responderá por R$ 600,00, José por R$ 300,00 e Pedro por R$ 100,00. Da mesma forma, se o testador, no presente exemplo, determinar que o herdeiro João deve entregar à legatária Maria o carro de R$ 10.000,00 que pertence a João, este poderá optar, nos termos do art. 1.935 do CC, por: – entregar seu carro à legatária e cobrar dos demais herdeiros suas quotas na dívida, ou seja, R$ 3.000,00 de José e R$ 1.000,00 de Pedro; ou – não cumprir a ordem do testador, o que significa renúncia à herança.
As despesas e os riscos da entrega da coisa correm por conta do legatário, salvo disposição em contrário do testador (art. 1.936 do CC). Isso porque, com a morte do testador, o legatário se tornou dono do objeto legado, recebendo os seus frutos e arcando com os seus custos. Sendo proprietário, aplica-se o brocardo res perit domino, ou seja, a coisa perece para o dono. Cabe ao legatário pagar o imposto de transmissão do bem. Nas sábias palavras de Washington de Barros Monteiro, “deve suportar ainda outros gastos que se tornem imprescindíveis (guarda, depósito, embalagem, transporte, sustento); os incômodos devem ser sofridos, curialmente, por aquele que aufere vantagens (ubi commoda, ibi et incommoda)” (Curso..., 2003, v. 6, p. 206). Por fim, o bem legado será entregue com os seus acessórios, no lugar e no estado em que se achava ao falecer o testador, passando ao legatário com todos os encargos que o
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onerarem (art. 1.937 do CC). Esclarecendo, é o caso de todas as obrigações propter rem incidentes sobre a coisa e que acompanham o direito de propriedade (dívidas de condomínio ou IPTU existentes, também as referentes ao foro ou laudêmio, em se tratando de bem enfitêutico), bem como dos ônus reais (hipoteca, penhor ou anticrese). 3.7.3.5 Da caducidade dos legados A caducidade significa a ineficácia do legado por acontecimentos verificados após ter sido elaborada a liberalidade pelo testador, conforme define Sebastião Amorim (Código Civil..., 2004, v. XIX, p. 208). O legado, instituído de forma válida e eficaz, em razão de certos motivos de fato ou de direito, perde sua força, sendo então impossível seu cumprimento ou ficando a deixa sem sentido. Vale dizer que não se trata de nulidade da disposição por vício de consentimento ou em razão de incapacidade absoluta do testador. De acordo com os planos do negócio, ou, didaticamente, a Escada Ponteana, a caducidade do legado se encontra no plano da eficácia e não no da existência ou da validade. As razões para a caducidade podem ser de ordem objetiva, ou seja, dizer respeito ao objeto legado, ou de ordem subjetiva, quando o motivo se referir à pessoa do legatário (art. 1.939 do CC). Vejamos esse tratamento diferenciado. São razões de ordem objetiva para a caducidade dos legados:
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a) Transformação da coisa: se depois do testamento, o testador modifica a coisa legada, ao ponto de já não ter a forma nem lhe caber a denominação que possuía (art. 1.939, I, do CC). Para Eduardo de Oliveira Leite, a hipótese se aplica quando a coisa legada sofrer especificação (hipótese de ouro em barras que é transformado em anéis, ou seja, de alteração da coisa por um trabalho humano); confusão (quando duas coisas líquidas ou gasosas se misturam, tais como vinho e água), comistão (quando duas coisas sólidas se misturam, tais como o sal e o açúcar) ou quando ocorre adjunção (sobreposição de coisas, tal como a tinta que é aplicada sobre a tela, formando um todo) (Direito civil..., 2004, v. 6, p. 249). É importante destacar que a caducidade só ocorre quando a transformação da coisa é feita pelo testador ou à sua ordem. Na hipótese de alteração provocada por terceiro ou de caso fortuito, o legado subsistirá. b) Alienação da coisa: se o testador, por qualquer título, alienar no todo ou em parte a coisa legada. Nesse caso, o legado caducará até onde a coisa deixou de pertencer ao testador (art. 1.939, II, do CC). Se, em vida, o testador alienou a coisa e esta não é mais do proprietário, clara está a sua intenção de retirar os efeitos do legado, razão pela qual há caducidade, não sendo relevante se a alienação foi a título oneroso ou gratuito. c) Perecimento da coisa: se a coisa perecer ou for evicta, vivo ou morto o testador, sem culpa do herdeiro ou do legatário incumbido do seu cumprimento (art. 1.939, III, do CC). Caso a coisa pereça por força maior ou caso fortuito ou, ainda, em razão da evicção (quando um terceiro chamado evictor prova ser o real proprietário do objeto legado), o legado caducará sem culpa do herdeiro e, portanto, haverá apenas a extinção da obrigação de entregá-la. Em outras palavras, ocorrerá a sua resolução sem culpa.
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Se o perecimento for parcial, o legado persistirá quanto à parte intacta (art. 1.940 do CC).
Interessante notar que se o legado desaparece depois da morte do testador, seja por caso fortuito (evento totalmente imprevisível) ou força maior (evento previsível, mas inevitável), o legatário, na qualidade de dono da coisa, suportará a perda (res perit domino). O legatário só não suportará tal perda se o herdeiro devedor estiver em mora, pois, nesse caso, o herdeiro suportará os ônus do caso fortuito e da força maior. No último caso, como se vê, aplicase a regra do art. 399 do CC. Por outro lado, caso o perecimento ou a evicção decorra de negligência ou imprudência do herdeiro, ocorrerá a resolução culposa, hipótese em que terá o culpado o dever de indenizar o legatário. Pois bem, por outra via, são razões de ordem subjetiva da caducidade: a) Indignidade: se o legatário for excluído da sucessão, nos termos do art. 1.815 do CC, conforme a previsão do art. 1.939, IV. Por óbvio, se excluído da sucessão, perde o legatário a legitimidade para suceder o falecido e não poderá ser beneficiado pelo legado. b) Premoriência: se o legatário falecer antes do testador (art. 1.939, V, do CC). Ora, se for premorto o legatário, não terá ele capacidade de direito, pois sua personalidade material, para suceder, extinguiu-se com a sua morte. Vale lembrar que é requisito essencial para que a pessoa seja herdeira ou legatária que esteja viva quando da abertura da sucessão.
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Além das hipóteses previstas no já analisado art. 1.939 do CC, o legado caducará quando houver renúncia do legatário, quando este falecer antes do implemento da condição suspensiva e quando for incapaz de suceder ao tempo da abertura da sucessão (art. 1.801 do CC). Superado o estudo da caducidade do legado, passaremos ao direito de acrescer entre herdeiros e legatários.
3.8 DO DIREITO DE ACRESCER ENTRE HERDEIROS E LEGATÁRIOS Em regra, se são vários os herdeiros ou os legatários beneficiados por uma disposição testamentária, a renúncia ou a exclusão de um deles significa que o seu quinhão será dividido entre os herdeiros legítimos, conforme explica Silvio Rodrigues (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 211). A exceção se verifica quando o testador nomear um substituto ou quando se verificar o direito de acrescer. Nas próximas seções (itens 3.7 e 3.8), trabalharemos em partes separadas exatamente as situações excepcionais em que o quinhão não irá para o herdeiro legítimo, mas sim ao substituto, ou acrescerá ao quinhão do herdeiro ou legatário nomeado em testamento. 3.8.1 Conceito de direito de acrescer e regramentos básicos Conforme leciona Washington de Barros Monteiro, o direito de acrescer se verifica quando o testador contempla várias pessoas, deixando-lhes a mesma herança ou
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legado, em porções não determinadas. Se, por qualquer motivo, vem a faltar um dos concorrentes, sua parte acresce aos demais (Curso..., 2003, v. 6, p. 215). O instituto não é privativo do direito das sucessões, pois ocorre também nos atos entre vivos. São exemplos de direito de acrescer inter vivos: – A Lei 9.610/1998, que trata dos direitos autorais, determina, em seu art. 42, que “acrescer-se-ão aos dos sobreviventes os direitos do coautor que falecer sem sucessores”. – O usufruto instituído por ato inter vivos em favor de mais de uma pessoa, em regra, não gera direito de acrescer, caso um dos usufrutuários faleça. Entretanto, o instituidor do usufruto pode determinar o direito de acrescer (art. 1.411 do CC). – A doação realizada a mais de um donatário, denominada doação conjuntiva, não gera o direito de acrescer entre os donatários, em regra. Entretanto, uma forma de sucessão irregular ou anômala admitida no ordenamento se verifica na doação conjunta realizada para os cônjuges. Isso porque determina o Código Civil que se, em tal caso, os donatários forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo (art. 551, parágrafo único, do CC). Como se vê, trata-se de um direito de acrescer de origem legal.
Pois bem, a justificativa ao direito de acrescer é o que a doutrina chama de jus non decrescendi (ou jus accrescendi), ou seja, o direito de não ver diminuído o seu quinhão. Tratando-se de direito de acrescer nas relações sucessórias, as regras do instituto só incidem sobre a sucessão testamentária.
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São regramentos básicos ou princípios do direito de acrescer: 1.º) O direito de acrescer decorre da vontade presumida do testador quando, pela mesma disposição testamentária, nomeia herdeiros para toda a herança ou para uma quota dela, ou então deixa vários legatários para uma coisa ou parte dela (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., 2003, v. 6, p. 216). Portanto, as normas em questão só serão aplicadas na ausência de clareza da vontade do testador. Sendo clara a vontade, as regras não terão incidência. 2.º) O direito de acrescer pode ocorrer entre herdeiros e legatários, pois a lei não restringe a sua aplicação. 3.º) Quando se verifica o direito de acrescer, além do benefício que recebem, o herdeiro ou o legatário também ficam com o encargo e as obrigações que oneravam o patrimônio (art. 1.943, parágrafo único, do CC). Suponhamos que o testador tenha deixado os seus bens a José e a Flávio, determinando a este último o encargo de doar R$ 1.000,00 por mês a uma instituição de caridade. Caso Flávio renuncie à herança, e José tenha o acréscimo em seu direito, ficando com todos os bens da herança, José também receberá o encargo que era só de Flávio. A exceção se verifica apenas se o encargo for personalíssimo, hipótese em que não se transfere ao coerdeiro. Exemplo de encargo personalíssimo se daria se Flávio, pintor, tivesse o encargo de retratar a família do falecido testador. José, médico, não responderia pelo encargo, apesar de ocorrer o acréscimo. 4.º) O herdeiro ou legatário não pode receber a herança ou legado repudiando apenas o acréscimo que lhe caiba por força de lei (art. 1.945 do CC). Se o testador legar o imóvel a João e José, renunciando este ao legado, automaticamente haverá acréscimo à parte de João. Não pode João aceitar 50% da casa legada e repudiar a outra metade
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acrescida, pois não se admite a aceitação de partes da herança (art. 1.808 do CC). Como exceção, admite a lei o repúdio se o acréscimo vier acompanhado de encargos especiais. Nesse caso, repudiado o acréscimo, este pertencerá ao beneficiário do encargo. Exemplificamos: o testador nomeia João e José legatários do imóvel e determina que João terá o encargo de cuidar da tia idosa do testador. Caso surja para José o direito de acrescer, ele poderá repudiar o acréscimo e, no caso, a tia idosa receberá a metade do bem que caberia ao legatário João. 5.º) A presença da conjunção re et verbis, em que, por meio de uma única disposição, o testador nomeia o sucessor para uma coisa, ou para uma universalidade, sem menção de frações (RODRIGUES, Silvio. Direito civil..., 2002, v. 7, p. 224). Assim: “Deixo a herança para José e João”. Re é a coisa deixada e verbis significa que foi deixada numa mesma frase. Esclarece Itabaiana de Oliveira que é a conjunção mista: na coisa e por palavras (Tratado..., 1952, v. 2, p. 504). 6.º) A presença da conjunção re tantum em que a mesma coisa é deixada para pessoas distintas, mas em cláusulas testamentárias diferentes. Dispõe o testador: “Deixo minha casa para João”. E, depois, no mesmo testamento: “Deixo, também, minha casa para José”. É a conjunção real: somente na coisa. Note-se que a aplicação do direito de acrescer ocorre por ser a coisa indivisível. Se fosse divisível, não haveria o direito de acrescer. 7.º) Por fim, existe ainda a conjunção verbis tantum em que a mesma coisa, na mesma frase, é deixada para mais de uma pessoa em quotas. É a conjunção verbal: somente por palavras. “Deixo metade de minha casa para José e metade para João”. Nesse caso, o direito de acrescer não se verifica.
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3.8.2 Regras quanto ao direito de acrescer constantes do Código Civil em vigor O Código Civil traz algumas regras sobre o direito de acrescer, nos arts. 1.941 a 1.946, que devem ser estudadas. Vejamos essas regras de forma pontual, aprofundando-as com exemplos práticos. Primeiro, quando vários herdeiros, pela mesma disposição testamentária, forem conjuntamente chamados à herança em quinhões não determinados, e qualquer deles não puder ou não quiser aceitá-la, a sua parte acrescerá à dos coerdeiros, salvo o direito do substituto (art. 1.941 do CC). A ilustrar, se deixar meus bens para João e José, e José falecer antes do testador, há o direito de acrescer. Nesse caso, João recolherá toda a herança. Da mesma forma, haverá direito de acrescer se o testador nomear Pedro e Paulo herdeiros de 1/3 de seus bens. É a conjunção re et verbis. E na hipótese de o testador deixar metade dos bens para Pedro e a outra para Maria e João? O direito de acrescer só se verificará entre Maria e João (conjunção mista ou re et verbis), mas não com relação a Pedro (conjunção verbal ou verbis tantum). Washington de Barros Monteiro explica que “o art. 1.941 também se aplica quando os herdeiros são chamados, coletivamente, a recolher a herança ou certa porção dela, mas não é imprescindível que a convocação se realize pela mesma frase. Desse modo, ainda que o testador empregue frases diversas, haverá disposição conjunta (re
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tantum), se atribuir indeterminadamente a mesma coisa a pessoas diferentes” (Curso..., 2003, v. 6, p. 226). Não haverá direito de acrescer se houver especificação de quotas para os coerdeiros. Vejamos: deixo 1/3 de meus bens para Maria, 1/3 para Pedro e 1/3 para José; a mesma estipulação poderia ser feita da seguinte forma: “Deixo os meus bens a José, Maria e Pedro divididos em três partes iguais” (verbis tantum). Perceba a sutileza dos detalhes na interpretação que a lei faz da vontade do morto. Se o testador apenas disser que deixa seus bens para Maria e José (conjunção mista ou re et verbis) existirá o direito de acrescer entre os herdeiros, mas se disser que os deixa “em partes iguais” (conjunção verbal ou verbis tantum) o direito de acrescer não existirá. Em conclusão, caso se verifique o direito de acrescer e não exista determinação de substituição, o coerdeiro acrescentará o seu quinhão à parte dos coerdeiros conjuntos nas seguintes hipóteses: a) se o coerdeiro morrer antes do testador; b) se renunciar a herança ou legado, ou destes for excluído; ou c) se a condição sob a qual foi instituído não se verificar (art. 1.943 do CC). Por outro lado, caso o direito de acrescer não se verifique, bem como não haja herdeiro substituto nomeado, os bens serão entregues aos herdeiros legítimos, seguindo a ordem de sucessão legítima ou de vocação hereditária (art. 1.944 do CC). Superada essa discussão, haverá direito de acrescer entre os colegatários nomeados conjuntamente a respeito de uma só coisa, determinada e certa, ou quando o objeto do legado não puder ser dividido sem risco de desvalorização (art. 1.942 do CC). Trata-se de conjunção mista ou re
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et verbis. Para ilustrar, se eu deixar minha casa para João e Pedro, haverá o direito de acrescer entre os colegatários. Se o bem for divisível, cada legatário receberá uma parte dos bens e, portanto, não haverá direito de acrescer. Conforme explica Itabaiana de Oliveira, “se o objeto do legado for divisível, desaparece o direito de acrescer, embora não fizesse, entre colegatários, distribuição de partes. Exemplo: ‘Deixo a Pedro meu terreno A’ e, depois, em frase distinta: ‘Deixo a Paulo meu terreno A’. Nesse ponto, nosso Código Civil se afastou da doutrina romana, que admitia, sempre, o direito de acrescer na conjunção real (re tantum), sem distinguir se o objeto era ou não divisível” (Tratado..., 1952, v. 2, p. 511). Não existindo o direito de acrescer entre os legatários, o que acontece com a quota vaga? O Código Civil responde a questão, no seu art. 1.944, parágrafo único, segundo o qual: “Não existindo o direito de acrescer entre os colegatários, a quota do que faltar acresce ao herdeiro ou ao legatário incumbido de satisfazer esse legado, ou a todos os herdeiros, na proporção dos seus quinhões, se o legado se deduziu da herança”. Elucidando esse dispositivo, são percebidas duas situações: 1.ª) Se o testador impôs ao herdeiro ou legatário um certo encargo e não se tratando de hipótese que autoriza o direito de acrescer, o ônus incidente sobre a quota vaga será extinto. Se o testador nomeou João herdeiro com o encargo de pagar R$ 1.000,00 para Maria e R$ 1.000,00 para José, e caso este último venha a falecer antes da morte do testador, o herdeiro João ficará desobrigado a
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pagar essa importância, não sendo acrescentada à quota da colegatária Maria. 2.ª) Se o testador nomeou João legatário de metade da casa e José legatário da outra metade (conjunção verbal ou verbis tantum), não haverá o direito de acrescer se no momento da abertura da sucessão José for premorto. Nesse caso, a sua quota será devolvida aos herdeiros legítimos e seguirá a ordem de vocação hereditária (art. 1.829 do CC).
Encerrando o tema, se o legado consistir em um só usufruto, conjuntamente a duas ou mais pessoas, a parte da que faltar acrescerá, em regra, a dos colegatários (art. 1.946 do CC). Trata-se de hipótese de conjunção mista (ou re et verbis). Mas se não houver conjunção entre os colegatários, ou se, apesar de conjuntos, só lhes foi legada certa parte do usufruto, consolidar-se-ão na propriedade as quotas dos que faltarem, à medida que eles forem faltando (art. 1.946, parágrafo único, do CC). Como se vê, não haverá o direito de acrescer. Da mesma forma ocorrerá se for legada parte certa do usufruto (conjunção verbal ou verbis tantum). Para exemplificar, se o testador deixar 50% do usufruto da casa para João e 50% para José, com a morte de João não haverá acréscimo em favor de José, mas sim a consolidação de 50% em favor do nu-proprietário. Superada a análise do direito de acrescer, passamos ao estudo das substituições testamentárias.
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3.9 DAS SUBSTITUIÇÕES TESTAMENTÁRIAS. CONCEITOS INICIAIS E ESPÉCIES Partindo-se da premissa pela qual, na sucessão testamentária, é a vontade do morto que determina quem será ou não seu sucessor, seja a título singular (legatário), seja a título universal (herdeiro), uma pergunta que deve ser feita é a seguinte: caso o testador deixe seus bens a determinada pessoa, mas esta vier a morrer antes mesmo do testador, para quem irá a herança? Poder-se-ia imaginar que os bens iriam para os herdeiros da pessoa nomeada no testamento. A resposta estaria equivocada, pois se o testador nomeou certa pessoa em seu testamento, não há intenção de que seus bens sejam entregues aos herdeiros da pessoa nomeada. Assim, caso o testador faleça e seu herdeiro nomeado por testamento já tenha falecido (seja premorto), não se aplica à sucessão testamentária o instituto da representação. Em resumo, ressalvadas as hipóteses acima estudadas de direito de acrescer, haverá caducidade do testamento, que nenhum efeito produzirá, e, portanto, a herança seguirá a ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829 da codificação privada. Dessa forma, para que a sua vontade seja efetivamente cumprida, pode o testador inserir a cláusula de substituição testamentária, pela qual alguém será substituto do herdeiro nomeado, caso este não queira ou não possa suceder. Trata-se da segunda exceção à regra segundo a qual os bens seriam entregues aos herdeiros legítimos. A
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primeira exceção, por óbvio, se dá no direito de acrescer, anteriormente estudado. Pela substituição, indica o testador não só um herdeiro ou legatário em 1.º grau, como também um substituto em 2.º grau. Silvio Rodrigues define o instituto da substituição como sendo aquele que “resulta de uma disposição testamentária em que o testador indica uma terceira pessoa para receber uma gratificação testamentária, na falta de herdeiro, ou legatário, indicado em primeiro lugar, ou após este” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 240). Visto o seu conceito, podemos dizer, primeiramente, que duas são as espécies de substituição: a substituição vulgar e a fideicomissária. A substituição será vulgar quando o testador nomear outra pessoa para receber a herança caso o herdeiro ou o legatário não possa (exemplo: premorte do herdeiro) ou não queira recebê-la (exemplo: renúncia do herdeiro), nos termos do art. 1.947 do CC. Por outra via, a substituição será fideicomissária quando o testador nomear certo herdeiro ou legatário (fiduciário), estabelecendo que este, com o advento de certo termo ou condição, transmita a herança à pessoa ainda não concebida quando da morte do testador (fideicomissário), nos termos do art. 1.951 do CC em vigor. Como é óbvio, o fideicomisso não pode ser instituído por contrato, sob pena de infringir a proibição do pacto sucessório, constante do art. 426 do CC. Nessa linha, na V Jornada de Direito Civil aprovou-se o seguinte enunciado doutrinário: “O fideicomisso, previsto no art. 1.951 do Código Civil, somente pode ser instituído por testamento” (Enunciado n. 529).
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Historicamente, explica Sebastião Amorim que a doutrina criava duas categorias especiais de substituição. Chamava-se de pupilar a substituição pela qual o pai nomeava herdeiro para o filho, no caso em que este viesse a falecer sem prole e na maioridade. Havia também a substituição quase pupilar ou exemplar quando o ascendente nomeava substituto ao descendente impedido de testar por insanidade ou deficiência mental (Código civil..., 2004, v. XIX, p. 239). Essas expressões, eventualmente, podem ser solicitadas em provas de graduação e em concursos públicos de maior complexidade. Segundo Maria Helena Diniz, são princípios que regem a substituição testamentária: a) “o substituto deve ter capacidade para ser instituído em 1.º grau, sendo certo que a existência da capacidade do substituo é a do tempo da abertura da sucessão; b) podem ser dados muitos substitutos a um só herdeiro ou um substituto a um único herdeiro; c) não é permitida a substituição de mais de um grau (art. 1.959 do CC); d) a substituição é uma instituição condicional, porém pode ser subordinada a outra condição, termo ou encargo; e) o substituto pode ser nomeado no mesmo testamento em que for feita a substituição ou em cédula testamentária posterior, desde que observados os requisitos subjetivos e formais; f) o substituto deve cumprir o encargo ou condição imposta ao substituído, exceto se o disponente estabeleceu diferentemente, ou se o contrário resultar da natureza da condição ou do encargo (art. 1.949 do CC)” (Curso..., 2005, v. 6, p. 333).
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Analisadas essas regras introdutórias sobre o tema, parte-se ao estudo específico das espécies de substituição testamentária. 3.9.1 Da substituição vulgar ou ordinária 3.9.1.1 Regras gerais Trata-se de uma substituição direta em que nenhuma pessoa se interpõe entre o testador e o substituto. Em suma, o testador pode substituir outra pessoa ao herdeiro ou ao legatário nomeado, para o caso de um ou outro não querer ou não poder aceitar a herança ou o legado (art. 1.947 do CC). Presume-se que a substituição foi determinada para as alternativas de “não querer” e “não poder”, ainda que o testador só a uma se refira. Vislumbrando um caso prático, ocorre substituição vulgar quando o testador nomeia Pablo seu herdeiro, sendo que, caso ele não queira ou não possa receber a herança, esta será de Rodolfo. Como se trata de substituição, o substituto fica, em regra, sujeito ao encargo ou condição imposta ao substituído (art. 1.949 do CC). Em outro exemplo, se o testador deixar a casa ao legatário Fernando com o encargo de ele construir uma biblioteca para determinado Município, e nomear Flávio seu substituto, o encargo da construção passará ao último. A regra comporta exceções. Se o encargo for personalíssimo, por exemplo, este não se transfere ao substituto. Portanto, se o testador deixar o carro ao sobrinho
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Fernando, que é escultor, com o encargo de ele realizar uma escultura do falecido, e nomear Flávio, dentista, como substituto, o encargo, por sua natureza, não será transferido ao substituto. Por fim, ressalta-se que nada impede que o testador nomeie vários substitutos sucessivamente. Isso porque, com a nomeação sucessiva, caso o primeiro da lista possa ou queira receber a herança, automaticamente todos os substitutos subsequentes deixarão de ter direito sobre a mesma. Dessa forma, pode o testador nomear Fernando seu herdeiro e, caso ele não queira ou não possa receber a herança, esta passa a Flávio; caso este também não a queira ou não possa recebê-la, a herança passará para Maria Helena, e assim sucessivamente. Portanto, cria-se uma sequência: Fernando, Flávio e Maria Helena. Se o primeiro aceitar a herança, não terão direitos os demais nomeados. Esta é a orientação mais adequada para nós. Finalizando, se o testador deixar seus bens para Fernando, sendo que, em sua falta, herdarão Flávio, Maria Helena e Sílvio, na ordem estabelecida, primeiro um e depois o outro, entende-se que os vários substitutos herdam simultaneamente, já que não existe substituição além de segundo grau, nos termos do art. 1.959 do atual CC (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., 2003, v. 6, p. 225). 3.9.1.2 Das espécies de substituição vulgar ou ordinária São três as espécies de substituição ordinária ou vulgar:
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a) substituição singular; b) substituição plural; e c) substituição recíproca.
De início, será singular a substituição em que o testador nomear um herdeiro ou um legatário e apenas um substituto. Como exemplo: “nomeio João meu herdeiro, e se ele não quiser ou não puder Pedro receberá a herança”. Será plural a substituição se houver um herdeiro nomeado e dois ou mais para substituí-lo. Nessa situação, os substitutos serão chamados de maneira simultânea. Por exemplo: “nomeio João meu herdeiro, e se ele não quiser ou não puder Pedro e Maria receberão a herança”. Por fim, será recíproca a substituição na hipótese em que dois ou mais herdeiros são nomeados e substituindose uns aos outros. Vejamos: “nomeio João e Maria meus herdeiros, e se um deles não quiser ou não puder o outro receberá a herança”. A possibilidade dessas espécies decorre da permissão do art. 1.948 do atual Código, segundo o qual: “também é lícito ao testador substituir muitas pessoas por uma só, ou vice-versa, e ainda substituir com reciprocidade ou sem ela”. O quadro a seguir exemplifica apontadas:
Espécie de substituição
Herdeiro ou herdeiros nomeados (substituídos)
essas espécies
Herdeiro substituto ou Herdeiros substitutos
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Vulgar singular
João
Pedro
Vulgar plural
João
Pedro e Maria
Vulgar recíproca
João e Maria
Maria e João
Maria Helena Diniz (Curso..., 2005, v. 6, p. 335), seguindo o entendimento de Itabaiana de Oliveira, afirma que a substituição recíproca seria espécie autônoma e não subespécie da substituição vulgar, apesar de o doutrinador afirmar que esta é direta e participa da natureza da vulgar (Tratado..., 1952, v. 2, p. 586). Entendemos que não há motivos para tal separação. Seguimos a lógica do sistema pela qual a substituição recíproca é subespécie da substituição vulgar, por ser direta, conforme aponta parte da doutrina tradicional (RODRIGUES, Silvio. Direito civil..., 2002, v. 7, p. 243, MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., 2003, v. 6, p. 225). Quanto à doutrina contemporânea, Eduardo de Oliveira Leite (Direito civil..., 2004, v. 6, p. 269) informa que a substituição recíproca se divide em geral, quando todos substituem o herdeiro ou legatário que faltar; e em particular ou especial, quando os legatários determinados substituem outros determinados reciprocamente. Como exemplo da última espécie pode ser citado o seguinte caso: “deixo a herança para Pedro, Maria, Antonio e João, sendo que se Pedro ou Maria não quiserem ou não puderem receber a herança, serão substitutos recíprocos entre si, o mesmo ocorrendo quanto a Antonio e João”. Assim, Pedro só substitui Maria e vice-versa, e Antonio só substitui João e vice-versa.
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No tocante à substituição recíproca, determina o Código Civil que se, entre muitos coerdeiros ou legatários de partes desiguais, for estabelecida substituição recíproca, a proporção dos quinhões fixada na primeira disposição entender-se-á mantida na segunda. Entretanto, se com as outras anteriormente nomeadas for incluída mais alguma pessoa na substituição, o quinhão vago pertencerá em partes iguais aos substitutos (art. 1.950 do CC). Separaremos o comando legal em duas partes, exemplificando-o por meio de casos práticos: 1) Se o testador deixar 3/6 de sua herança a João, 2/6 a José e 1/6 a Maria, nomeando-os reciprocamente substitutos caso um deles não queira ou não possa receber; caso João seja declarado indigno e excluído por sentença da sucessão, seu quinhão será dividido entre José (2/6) e Maria (1/6), respeitando-se a proporção determinada. 2) Se o testador deixar 3/6 de sua herança a João, 2/6 a José e 1/6 a Maria, nomeando-os reciprocamente substitutos, bem como Antonio como substituto, caso um deles não queira ou não possa receber; se João renunciar à herança, seu quinhão será dividido entre José (1/6), Maria (1/6) e Antonio (1/6) em partes iguais.
Elucidado o dispositivo, passaremos ao estudo da substituição fideicomissária. 3.9.2 Da substituição fideicomissária Nos termos do art. 1.951 do atual Código, será fideicomissária a substituição quando o testador (fideicomitente) nomear certo herdeiro ou legatário (fiduciário), estabelecendo que este, com o advento de
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certo termo ou condição, transmita a herança a pessoa ainda não concebida quando da morte do testador (fideicomissário). O esquema abaixo demonstra como funciona essa forma de substituição testamentária:
Como se nota, trata-se de modalidade indireta de substituição, pois o fiduciário recebe a herança que será transmitida ao fideicomissário. A título de ilustração, ocorrerá quando o testador assim dispuser: “Deixo meus bens a meu sobrinho José, que, quando falecer, deverá transmitilos a seu primeiro filho” (prole eventual). No fideicomisso, conforme explica Sílvio de Salvo Venosa, o testador institui dois sucessores sucessivos: há uma dupla transmissão, pois fiduciário e fideicomissário são ambos sucessores do de cujus (Direito civil, 2003, v. 7, p. 268). É importante dizer que na substituição fideicomissária não há relação sucessória entre o fiduciário e o fideicomissário, sendo certo que, nesse sentido, a Lei estadual paulista 9.591/1966 (art. 15), estabelecia que, quando da morte do testador, deveria o fiduciário recolher o imposto com redução de 50%, e o fideicomissário também com redução de 50% quando entrasse na posse dos bens. A atual lei paulista (Lei 10.705/2000) não reproduz o dispositivo em questão, determinando apenas que o imposto deve ser recolhido pelo fiduciário (art. 7.º).
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Da mesma forma, determina a lei que o fideicomissário responde pelos encargos da herança que ainda restarem, quando a receber (art. 1.957 do CC). Para autores como Silvio Rodrigues, a substituição fideicomissária é sinônima de substituição compendiosa (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 240). Em idêntico sentido, Itabaiana de Oliveira afirma que “a substituição também se denomina indireta, porque é concebida em termos oblíquos e deprecativos. É a mesma substituição compendiosa das Ordenações, liv. 4.º, tít. 87, § 12. Chama-se compendiosa porque, debaixo de um compêndio, ou resumo de palavras, contém, em si, muitas substituições. A substituição fideicomissária não difere da compendiosa senão nas palavras: em vez de usar de palavras imperativas – seja herdeiro Paulo, usa das deprecativas – e lhe rogo que deixe a herança a Paulo” (Tratado..., 1952, v. 2, p. 589). Em sentido contrário, afirma Washington de Barros Monteiro que a compendiosa “é assim chamada porque, sob compêndio de palavras, abrange várias substituições de natureza diferente (sub compendio verborum, continebat plures substitutiones). Na verdade, constitui misto de substituição vulgar e de substituição fideicomissária” (Curso..., 2003, v. 6, p. 237). Seguem o entendimento do último doutrinador Maria Helena Diniz (Curso..., 2005, v. 6, p. 335) e Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 269). Assim, para os juristas citados, seria compendiosa a substituição se o testador determinasse o seguinte: “Deixo meus bens para João, que os transmitirá ao primeiro filho de José. Caso João não queria ou não possa receber, os bens ficarão com José, que deverá transmitilos a seu primeiro filho”. Esse último entendimento deve
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ser considerado sucessória.
como
majoritário
para
a
prática
Não se pode esquecer que o fideicomisso toma por base a confiança do testador (fideicomitente) na pessoa do fiduciário. Lembramos, nesse sentido, que a expressão fidúcia significa justamente confiança. O Código Civil de 2002 limita a possibilidade de instituição de fideicomisso, pois apenas o admite quando o fideicomissário for pessoa não concebida ao tempo da morte do testador, ou seja, a chamada prole eventual (art. 1.952 do CC). Sob a égide do revogado Código Civil, poderia ser fideicomissária qualquer pessoa, mesmo se nascida ou concebida. A limitação imposta pelo novo diploma desencoraja o fideicomisso, já que, na prática, grande será o risco de não surgir a prole eventual e caducar o fideicomisso no caso concreto. O Código Civil determina ainda que se ao tempo da morte do testador já houver nascido o fideicomissário, adquirirá este a propriedade dos bens fideicometidos, convertendo-se em usufruto o direito do fiduciário (art. 1.952, parágrafo único, do CC). Nessa hipótese, a propriedade dos bens não é transmitida ao fiduciário, que receberá apenas o direito real de usufruto e, com ele, a posse direta dos bens, enquanto a nua-propriedade ficará com o fideicomissário. Não informa a lei o prazo máximo de duração desse usufruto, permitindo, assim, a sua previsão vitalícia se não houver disposição do testador em sentido contrário. Pois bem, são três as espécies de substituição fideicomissária:
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a) Substituição fideicomissária por morte do fiduciário – caso nada diga o testador, a transmissão dos bens do fiduciário ao fideicomissário ocorre com a morte do primeiro (fideicomisso quum morietur). b) Substituição fideicomissária sob certa condição – é aquela relacionada com um evento futuro e incerto. A título de exemplo: “deixo os bens ao fiduciário João que os transmitirá ao primeiro filho de meu sobrinho Pedro, se este for homem”. Caso seja menina a filha de Pedro, não haverá a transmissão ao fideicomissário. c) Substituição fideicomissária a termo – está relacionada com um evento futuro e certo. Exemplo: “deixo os bens ao fiduciário João pelo prazo de 10 anos, após o que este, então, os transmitirá ao primeiro filho de meu sobrinho Pedro”. Há um prazo determinado para que os bens sejam transmitidos ao fideicomissário.
Com relação ao fideicomissário, sob sua propriedade penderá condição suspensiva. Já a propriedade do fiduciário é resolúvel e restrita, cabendo a ele proceder ao inventário dos bens gravados e prestar caução de restituílos, se assim o exigir o fideicomissário (art. 1.953 do CC). Dúvida comum que surge é se o fiduciário poderá vender os bens recebidos. A resposta é positiva, pois na qualidade de proprietário poderá usar, gozar, dispor, gravar ou reivindicar os bens. Contudo, a venda ou a hipoteca por ele constituída torna-se ineficaz em relação ao fideicomissário quando ocorrer a resolução da propriedade, conforme nos aponta a melhor doutrina (DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2005, v. 6, p. 339). Isso porque, em se tratando de bens imóveis, da matrícula constará o registro do fideicomisso,
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afastando eventual boa-fé de terceiros que sejam titulares de direitos reais. Como bem pondera Sílvio de Salvo Venosa, em se tratando de bem móvel, tendo em vista a facilidade de sua transmissão, difícil será o seu controle e por essa razão deve o fiduciário prestar caução (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 274). A caução é prestada por processo cautelar devidamente disciplinado pelos arts. 826 a 838 do CPC. Caso não possa prestar a caução exigida, o fiduciário não entrará na posse dos bens. Mais uma vez, não se pode esquecer que o fideicomisso toma por base a confiança do testador ou fideicomitente na pessoa do fiduciário. De qualquer forma, se “confiar desconfiando”, nada impede que clausule os bens com a cláusula de inalienabilidade, o que sequer necessitará de justificativa, já que os bens deixados em testamento não compõem a legítima, mas sim a porção disponível (art. 1.848 do CC). Caso o testador crie um fideicomisso além do 2.º grau, este será nulo quanto aos graus excedentes (arts. 1.959 e 1.960 da atual codificação). No campo prático, se João for nomeado fiduciário e o primeiro filho de José, fideicomissário (prole futura), não pode o testador determinar que, depois, seus bens devam ser entregues pelo primeiro filho de José ao primeiro filho de Maria. No caso em questão, estaria sendo criado um 3.º grau de fideicomisso que, portanto, é nulo. Vale dizer que a nulidade de parte da instituição não contamina a parte válida, o que é aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos (utile per inutile non vitiatur).
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Contudo, poderá ocorrer o fenômeno da caducidade do fideicomisso. A caducidade resulta de certas causas, em consequência das quais a disposição testamentária, ainda que válida, não produz efeitos. A caducidade se verifica pela recusa ou incapacidade do fideicomissário, ou pela perda da coisa legada, conforme ensina Itabaiana de Oliveira (Tratado..., 1952, v. 2, p. 599). Assim, caduca o fideicomisso se o fideicomissário renunciar à herança ou ao legado (art. 1.954 do CC). Nesses casos, deixa de ser resolúvel a propriedade do fiduciário, passando a haver, a partir da renúncia, uma propriedade plena. Lembramos, por oportuno, que a renúncia só pode ocorrer depois de aberta a sucessão. Em outras palavras, só pode renunciar o fideicomissário após a morte do testador, mas não precisará aguardar a morte do fiduciário, pois não há relação sucessória entre ambos, como outrora foi exposto. Também caduca o fideicomisso se for a termo e o fideicomissário morrer antes do fiduciário (art. 1.958 do CC), ou se a prole eventual não vier a existir no prazo estipulado pelo testador. Na ausência de prazo, caduca a disposição se, decorridos dois anos da abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro-fideicomissário, o que é aplicação do art. 1.800, § 4.º, do CC. Em outro tipo de situação, o bem poderá ser transmitido diretamente ao fideicomissário. Um desses casos está presente na hipótese em que fiduciário renuncia à herança, podendo o fideicomissário aceitá-la, situação em que, na realidade, atinge-se o fim do fideicomisso de maneira direta, recebendo o fideicomissário, desde logo, a propriedade plena do bem.
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Com a transmissão dos bens fideicometidos ao fideicomissário, este recebe os bens deixados pelo testador, bem como eventual acréscimo adquirido ou obtido pelo fiduciário (art. 1.956 do CC). Quanto a eventual direito de acrescer, a matéria foi tratada nos arts. 1.941 a 1.943 do CC, como já estudado.
3.10 DA REVOGAÇÃO DO TESTAMENTO, DE SUA NULIDADE E CADUCIDADE Itabaiana de Oliveira explica como se diferencia a nulidade da revogação e da caducidade: “I – a nulidade do testamento sempre dá lugar à sucessão legítima; II – a revogação do testamento dá lugar: a) à sucessão legítima se for total; b) à sucessão testamentária se for parcial; III – a caducidade dá lugar: a) à sucessão legítima – se a ineficácia abranger a todos os herdeiros ou legatários e eles não tiverem substitutos; b) à sucessão testamentária – se, não abranger todos os herdeiros ou legatários e não tendo eles substitutos, houver o direito de acrescer entre eles” (Tratado..., 1952, v. 2, p. 613). Se a questão for analisada à luz da teoria de Pontes de Miranda ou, para fins didáticos, pela chamada Escada Ponteana, parece claro que a nulidade atinge a validade do testamento enquanto a revogação e a caducidade apenas atingem a sua eficácia. Feito tal esclarecimento, passase ao estudo das nulidades (plano da validade – segundo degrau) e, posteriormente, da revogação e da caducidade (plano da eficácia – terceiro degrau) dos testamentos.
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3.10.1 Da nulidade absoluta ou relativa do testamento Na qualidade de negócio jurídico que é, o testamento será nulo ou anulável dependendo do vício que o atingir e, como afirma Maria Helena Diniz, “para produzir efeitos, precisará satisfazer não só condições intrínsecas, atinentes à vontade legalmente manifestada do disponente, mas também extrínsecas, que objetivam assegurar a autenticidade daquela manifestação volitiva, aplicando-se os arts. 166 e 171 do Código Civil” (Curso..., 2005, v. 6, p. 269). Sendo assim, se a lei determinar a nulidade absoluta do negócio jurídico é porque entende que este fere norma de ordem pública e, portanto, reage de maneira violenta, inquinando o negócio com um vício insanável que não se convalida com o decurso do prazo. Como é notório, não há prazos para a declaração da nulidade absoluta, eis que a ação será de natureza essencialmente declaratória (art. 169 do CC). Por outro lado, se o vício do negócio apenas significar forma de proteção aos particulares, ou seja, matéria que não interessa à ordem pública, o negócio será anulável (nulidade relativa), e, portanto, poderá ser confirmado pelas partes interessadas, sendo que a nulidade relativa se convalida com o decurso do tempo. Exatamente por isso, para as hipóteses de anulabilidade, prevê a lei prazos decadenciais para a sua decretação. A afirmação decorre do fato de a ação a ser proposta ter natureza constitutiva negativa, de acordo com os critérios científicos para distinguir a prescrição da decadência propostos por Agnelo Amorim Filho (RT 300/7 e 744/725).
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Sendo a nulidade absoluta, poderá ser alegada pelo Ministério Público ou por qualquer interessado, devendo ser pronunciada pelo juiz de ofício, independentemente de provocação (art. 168 do CC). Já a nulidade relativa só pode ser alegada pelos interessados e conhecida pelo juiz, se provocado. Analisado esse panorama geral da matéria, passaremos ao estudo dos casos específicos de nulidade absoluta e relativa do testamento, respectivamente. 3.10.1.1 Da nulidade absoluta do testamento São hipóteses de nulidade absoluta do testamento: – Se feito por pessoa absolutamente incapaz de testar (art. 1.860 do CC). Com relação à idade, deve-se frisar que os maiores de 16 anos podem testar validamente (art. 1.860, parágrafo único, do CC). – Se o beneficiário nomeado não possuir capacidade para adquirir por testamento, como, por exemplo, as pessoas não concebidas até a morte do testador (art. 1.799, I, do CC), com exceção da disposição em favor de prole eventual ou de fideicomisso. – Sendo ilícito ou impossível o objeto (art. 166, II, do CC). Assim, se o testador deixar um bem público em testamento, nulo será o negócio, por impossibilidade jurídica do objeto. – Se o testamento não seguir a forma prescrita em lei (art. 166, IV, do CC). Conforme já exposto quando do estudo das espécies de testamento, a ausência de formalidades ou solenidade torna o testamento nulo. Apenas a título de exemplo, anote-se o caso de um testamento público feito por pessoa que não é tabelião, mas que se passa por tal. Não restam dúvidas de que o testamento será nulo.
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– Se não for observada alguma solenidade que a lei considere essencial (art. 166, V, do CC). Exemplificando, será nulo o testamento público feito por pessoa cega, em que não tenha ocorrido sua dupla leitura, uma pelo tabelião e outra por uma testemunha (art. 1.867 do CC). – Quando a lei taxativamente assim o declarar (nulidade textual – art. 166, VII, do CC) ou lhe negar efeitos. Nesse sentido é nulo o testamento conjuntivo, ou seja, aquele feito por mais de uma pessoa (art. 1.863 do CC). – Se as suas disposições forem nulas (art. 1.900 do CC). Assim, é nulo o testamento que institua herdeiro ou legatário sob a condição captatória de que este disponha, também por testamento, em benefício do testador ou de terceiro; que se refira a pessoa incerta, cuja identidade não se possa averiguar; que favoreça a pessoa incerta, cometendo a determinação de sua identidade a terceiro; que deixe a arbítrio do herdeiro, ou de outrem, fixar o valor do legado; que favoreça as pessoas não legitimadas a suceder. Já explicamos detalhadamente toda a matéria no presente capítulo quando do estudo das disposições testamentárias.
Em ocorrendo nulidade absoluta do testamento, em princípio, deveríamos afirmar que os interessados não teriam prazo para pleiteá-la. Entretanto, o Código Civil de 2002 contém intrigante disposição, no seguinte sentido: “Art. 1.859. Extingue-se em cinco anos o direito de impugnar a validade do testamento, contado o prazo da data do seu registro”. A dúvida que surge é: o prazo em questão se aplica às hipóteses de nulidade absoluta acima descritas? Destaquese, de imediato, que a questão é muito controvertida na doutrina.
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A resposta é afirmativa para Eduardo de Oliveira Leite, que, ao comentar o dispositivo, leciona que “o artigo se refere expressamente à impugnação da validade do testamento, quebrando a regra geral expressa no art. 169 do Código Civil onde o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo” (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 319). Trilha o mesmo caminho o mestre Zeno Veloso ao explicar que “não se pode questionar a validade do testamento em vida do testador. O testamento é um negócio jurídico mortis causa e somente com a abertura da sucessão é que a alegação de sua invalidade tem pertinência e poderá ser apresentada. Como a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir: o aludido prazo de caducidade se aplica tanto ao caso de nulidade como de anulabilidade” (Comentários..., 2003, v. 21, p. 21). Gustavo Rene Nicolau afirma que parece ser esta a solução adotada, ou seja, em matéria de testamento ocorre exceção à regra do art. 169 do Código Civil (Direito civil: sucessões..., 2005, v. 9, p. 113). Do mesmo modo Sílvio de Salvo Venosa e Débora Gozzo são enfáticos ao afirmar que o prazo se aplica tanto à hipótese de nulidade relativa quanto de nulidade absoluta: “Tendo em vista a instabilidade que pode representar uma nulidade latente em um testamento, decorrido o prazo de cinco anos de seu registro, não permite mais o ordenamento discutir sua validade. Portanto, mesmo a nulidade do testamento não pode ser discutida após esse prazo. Aliás, não só no testamento, mas nos negócios jurídicos em geral não há conveniência de que um negócio permaneça indefinidamente com a possibilidade de uma declaração de nulidade” (Comentários..., 2004, p. 275).
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No mesmo sentido a opinião de Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado (Código Civil..., 2005, p. 964). De início, cabe uma observação, eis que o prazo em questão é realmente de natureza decadencial, já que trata de desconstituição do negócio jurídico, nos termos da lição de Agnelo Amorim Filho. Porém, causa perplexidade ao estudioso imaginar que o testamento, apesar de ser um negócio jurídico, não segue a máxima milenar de Paulo pela qual quod initium vitiosum est, non potest tractus temporis convalescere, ou seja, que a nulidade absoluta não convalesce com o tempo. Por isso é que entendemos que o dispositivo somente se aplica à nulidade relativa. No caso de nulidade absoluta do testamento, a ação correspondente é imprescritível. O nosso entendimento, diga-se de passagem, é minoritário na doutrina. Aliás, se analisada a matéria à luz do direito estrangeiro, notamos que o Código Civil português contém regra específica sobre o tema: “Art. 2.308. (Caducidade da acção). 1. A acção de nulidade do testamento ou de disposição testamentária caduca ao fim de dez anos, a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da nulidade. 2. Sendo anulável o testamento ou a disposição, a acção caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da anulabilidade”.
No sistema português, a lei cria prazos distintos para a declaração de nulidade relativa e nulidade absoluta. Em sentido semelhante, o Código Civil italiano, em seu art.
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591, consagra que será nulo o testamento feito por pessoa incapaz de testar e que a ação prescreve em cinco anos da data em que foi dada a execução das disposições (Texto original: “Nei casi d’incapacità preveduti dal presente articolo il testamento può essere impugnato da chiunque vi ha interesse. L’azione si prescrive nel termine di cinque anni dal giorno in cui è stata data esecuzione alle disposizioni testamentarie”). Não nos agrada a disposição. Imaginar a convalidação do testamento como um negócio jurídico é negar a essência do instituto da nulidade absoluta. Porque um contrato feito por um menor de 12 anos é totalmente nulo e o seu testamento, após cinco anos, se convalida? Por que a preterição de formalidade na compra e venda de bem imóvel cujo valor supere 30 vezes o salário-mínimo torna o negócio nulo e um testamento público em que não há testemunhas pode ser convalidado após cinco anos? Fica a nossa crítica. Todavia, na prática prevalece a lição de toda a doutrina mencionada: o art. 1.859 constitui exceção à regra pela qual a nulidade absoluta não se convalida. Vale dizer, ainda, que o PL 699/2011, antigo PL 6.960/2002, de autoria original do Deputado Fiuza, pretende alterar o dispositivo, que passaria a ter a seguinte redação: “Art. 1.859. Extingue-se em cinco anos o direito de requerer a declaração de nulidade do testamento ou de disposição testamentária, e em quatro anos o de pleitear a anulação do testamento ou de disposição testamentária, contado o prazo da data do registro do testamento”. Note-se que se aprovado o projeto, será retirada do texto de lei a expressão “direito de impugnar a validade”, para constar expressamente “declaração de nulidade” e
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“pleitear a anulação”. A justificativa do autor do projeto, o deputado Ricardo Fiuza, é que “como a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir: o prazo de caducidade se aplica tanto ao caso de nulidade como de anulabilidade” (O novo Código Civil..., 2004, p. 301). Como fica claro, o projeto está de acordo com a doutrina majoritária citada, com a qual não concordamos. Por fim, saliente-se que, seguindo a Escada Ponteana, se o testamento for inexistente em razão, por exemplo, de ausência de vontade do testador, não haverá prazos para a sua declaração, pois, observa Zeno Veloso, “a inexistência é uma categoria jurídica diversa. Embora a inexistência seja o grau máximo de ineficácia, nada tem a ver, ontologicamente com invalidade” (Comentários..., 2003, v. 21, p. 26). Com a observação concorda o coautor José Fernando Simão, que admite a adoção dos três planos do negócio pelo Código Civil de 2002. Já o coautor Flávio Tartuce, como consta do Volume 1 desta coleção, não é totalmente adepto do plano da existência do negócio jurídico. 3.10.1.2 Da nulidade relativa ou anulabilidade do testamento As causas de nulidade relativa ou anulabilidade do testamento são, pelo menos em parte, as mesmas dos negócios jurídicos em geral, ou seja, o erro, o dolo e a coação (art. 1.909 do CC). Maria Helena Diniz aventa a possibilidade de nulidade relativa por fraude contra credores, quando, por exemplo, no testamento, “o próprio testador reconhece dívidas” (Curso..., 2005, v. 6, p. 276). Concordamos com a jurista e
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entendemos ser possível anular um testamento se esse vício social do negócio jurídico estiver presente. Resume de maneira clara as causas de nulidade relativa do testamento Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, a saber: “a) erro substancial na designação de herdeiro, de legatário ou da própria coisa legada; b) dolo capaz de induzir o testador em erro ou de mantê-lo sob erro em que já se encontrava; c) coação contra o testador, impedindo-o livremente de testar; d) fraude, como, por exemplo, o reconhecimento de dívida inexistentes pelo testador, com o intuito de enganar os seus credores, futuros credores do espólio” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 390). Sobre os prazos para a declaração de nulidade relativa, algumas ponderações se fazem necessárias. Para os negócios jurídicos em geral, pela regra geral do art. 179 do CC, quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato. Por outra via, o art. 178 da codificação traz regras específicas para a anulação de negócio jurídico em razão de seus defeitos. Pelo último comando legal, é de quatro anos o prazo de decadência para pleitear a anulação do negócio jurídico, contados, no caso de coação, do dia em que ela cessar. Já nos casos de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, o prazo será contado do dia em que se realizou o negócio jurídico. Pois bem, com relação aos testamentos, temos dois prazos previstos em lei:
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1) Prazo decadencial de cinco anos contado do registro do testamento para a declaração de sua nulidade absoluta ou para o reconhecimento da nulidade relativa (art. 1.859 do CC). 2) Prazo decadencial de quatro anos para anular a disposição testamentária inquinada de erro, dolo, coação, iniciando-se a sua contagem a partir do momento em que o interessado tem conhecimento do vício (art. 1.909, parágrafo único, do CC).
A dúvida que surge é: como conciliar os prazos gerais do negócio jurídico com os prazos especiais, aparentemente conflitantes? A resposta é a seguinte: – Se o testamento for nulo ou sendo nula uma de suas cláusulas, o prazo para a sua declaração será de cinco anos contados de seu registro, sob pena de decadência (art. 1.859 do CC). Isso, seguindo aquele entendimento doutrinário majoritário criticado pelos autores da presente obra. É a hipótese de nulidade absoluta total ou parcial. – Se o testamento como um todo for anulável, o prazo para o reconhecimento da anulabilidade será de cinco anos, contados de seu registro, sob pena de decadência (art. 1.859 do CC). É a hipótese de nulidade relativa total. – Se uma ou algumas das cláusulas testamentárias forem anuláveis por erro, dolo ou coação, o prazo para sua declaração será de quatro anos, contados a partir do momento em que o interessado tiver conhecimento do vício (art. 1.909, parágrafo único, do CC). É a hipótese de nulidade relativa parcial, com expressa previsão legal. – Se a nulidade for de apenas uma cláusula e não se tratar de erro, dolo ou coação, o prazo para o reconhecimento da nulidade relativa deverá ser de cinco anos, contados do
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registro do testamento, sob pena de decadência (art. 1.859 do CC). É a hipótese de nulidade relativa parcial, sem expressa previsão com referência a prazos.
Como bem pondera Sílvio de Salvo Venosa, “o prazo de quatro anos do art. 1.909 não coincide com o prazo do art. 1.859, nem coincidem os termos iniciais de ambos os dispositivos. Essa dicotomia é altamente inconveniente” (Comentários..., 2003, v. 7, p. 395). Há ainda uma crítica a ser apontada. A crítica que se faz ao parágrafo único do art. 1.909 do atual Código Civil é que o prazo para anular as disposições decorrentes de erro, dolo e coação é contado a partir do momento em que o interessado tiver conhecimento. Explica Ricardo Fiúza, ao justificar o Projeto 6.960/2002, atualmente PL 699/ 2011, de sua autoria, que o prazo “é elástico, não tem termo inicial rígido, certo, e embora possa servir melhor ao interesse puramente individual, não convém à sociedade, pois introduz um fator de insegurança jurídica” (O novo Código Civil..., 2004, p. 302). A crítica realmente procede. É curioso notar que o dispositivo em questão se afasta completamente de toda a sistemática do Código Civil de 2002. Isso porque, em matéria de erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo, os chamados vícios do consentimento, os prazos para a anulação, todos de natureza decadencial, iniciam-se quando da celebração do negócio jurídico (art. 178 do CC), com exceção da coação, cujo prazo se inicia quando cessa a violência. Aliás, no que concerne ao casamento, também a lei determina que o prazo é de três anos para a sua anulação quando motivada em erro essencial quanto à pessoa do cônjuge (art. 1.560, III, do CC) e de quatro anos com
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relação à coação (art. 1.560, IV, do CC), iniciando-se os prazos quando da celebração do casamento (art. 1.560, caput, do CC). Portanto, realmente seria melhor a adoção da solução contida no Projeto Ricardo Fiuza, pela qual o parágrafo único do art. 1.909 passaria a ter a seguinte redação: “Extingue-se em quatro anos o direito de anular a disposição, contados da data do registro do testamento” (PL 699/2011). Cabe salientar um ponto importante com relação à coação. Em se tratando de coação física, a chamada vis absoluta, conclui-se que inexiste a vontade, hipótese em que o contrato seria nulo para aqueles que entendem que o Código Civil não adota o plano da existência e, portanto, o prazo para a declaração de nulidade do testamento seria de cinco anos (art. 1.859 do CC). Já para aqueles que admitem a adoção do plano da existência, ocorrendo coação física, o negócio não se considera existente e, portanto, não há prazos para a declaração. Para finalizar a questão da nulidade relativa, deve-se frisar que a nulidade de uma cláusula não contamina, em regra, as demais, em decorrência do brocardo utile per inutile non vitiatur, ou, na versão atual, diante do princípio da conservação do negócio jurídico. Entretanto, se a nulidade atingir certa cláusula sem a qual outras não teriam sido determinadas pelo testador, a nulidade pode contaminar mais de uma disposição (art. 1.910 do CC). A lei trata a questão sob a ótica da ineficácia, aqui entendida em sentido amplo, ou seja, também aplicada à nulidade. Se as partes do testamento puderem ser separadas, a nulidade de uma cláusula não atingirá as demais. A título
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ilustrativo, se o testador, sob coação, lega uma casa ao sobrinho Marcos e, por livre e espontânea vontade outra ao sobrinho Lucas, a nulidade do legado conferido a Marcos não contamina o legado deixado a Lucas. 3.10.1.3 Da conversão do testamento nulo ou anulável Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, de forma direta e brilhante, sintetiza a questão que será tratada no presente item da seguinte forma: “O ponto central desse assunto diz respeito à seguinte indagação: em face de um testamento nulo – por ausência de atendimento a requisito essencial – seria possível validá-lo sob outra forma modal, desde que essa outra inexigisse os requisitos que deflagraram a nulidade do primeiro instrumento?” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 294). Quanto ao tema, explica Gustavo Rene Nicolau que “o negócio nulo não pode ser confirmado pelas partes, prerrogativa esta exclusiva dos negócios anuláveis. Porém, o Código reserva a possibilidade de conversão do negócio jurídico nulo em outro perfeitamente válido” (Direito civil: parte geral..., 2005, v. 3, p. 174). Realmente, o Código Civil, em seu art. 170, dispõe que: “Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”. Deve-se ressaltar que a nulidade absoluta decorre de afronta à norma de ordem pública, e, portanto, nem a vontade das partes, nem o decurso do tempo terão o condão de sanar o ato contaminado, sendo impossível sua
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confirmação ou ratificação, seja ela tácita ou expressa, em regra. Contudo, conforme amplamente esclarecido, quanto ao testamento, após 5 anos a nulidade é convalidade (art. 1.859). Como último recurso no intuito de salvar o negócio jurídico, apesar de padecer de vício insanável, permite a lei sua conversão. Trata-se de decorrência direta do princípio da conservação dos negócios jurídicos. Ainda que o negócio almejado seja declarado nulo, a vontade do declarante ainda produzirá efeitos sob a forma de outro negócio. Não poderia ser menos esclarecedora a definição de Zeno Veloso sobre o tema, em obra que é referência no estudo da invalidade do negócio jurídico: “um dado negócio jurídico, por exemplo, por causa de falhas, defeitos e omissões na sua formação, entrou no mundo jurídico, porém não atendeu às exigências legais para a sua validade. Mas o que se apresenta, o que, afinal, foi feito e realizado, embora insuficiente para aquele determinado negócio, é suficiente e bastante, entretanto, para a validade de outro negócio, que tem conexidade e semelhança com o inválido. A este fenômeno dá-se o nome de conversão” (Invalidade do negócio..., 2005, p. 120). A conversão é expressamente prevista no Código Civil português, que, em seu art. 293, determina: “(Conversão). O negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade”.
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No caso brasileiro, os requisitos necessários para a conversão do negócio são os seguintes: – Requisito objetivo: o segundo negócio, em que se converteu o nulo, tenha por suporte os mesmos elementos fáticos deste, ou seja, “a manifestação de vontade, o conteúdo, a causa, a tipicidade ou licitude, a capacidade, a legitimidade e a possibilidade do objeto” (TRIGINELLI, Wania do Carmo de Carvalho. Conversão..., 2003, p. 99). Sobre os requisitos objetivos, o Enunciado n. 13 aprovado na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, assim dispõe: “O aspecto objetivo da conversão requer a existência do suporte fático no negócio a converter-se”. – Requisito subjetivo: exige-se a intenção das partes em obter o efeito prático resultante do negócio em que se converte o inválido. Realmente, se não houver vontade das partes em celebrar o novo negócio, não haveria sentido algum em determinar a conversão, pois a vontade é o elemento que fundamenta o negócio jurídico. A ausência de vontade, para alguns, como o coautor Flávio Tartuce, geraria a nulidade absoluta do negócio jurídico, e para outros, como o coautor José Fernando Simão, a sua inexistência.
Por fim, quanto às espécies de conversão fala-se em: – Conversão formal ou legal: segundo Zeno Veloso, “ocorre quando um dado negócio pode ser celebrado por várias formas e, sendo inválido na forma em que foi feito, é aproveitado, entretanto, e validado sob forma diversa, desde que, é claro, tenha atendido aos requisitos desta” (Invalidade..., 2005, p. 123). Pensemos no seguinte exemplo: os contratantes decidem celebrar um contrato de locação por escritura pública, apesar de esta não ser exigida
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por lei para a validade da locação. A escritura é lavrada por pessoa que não trabalha no tabelionato, mas se passa por tabelião. O contrato de locação por escritura pública será nulo; no entanto, será aproveitado como contrato de locação por instrumento particular. Note-se que o negócio jurídico continua sendo o mesmo: um contrato de locação, razão pela qual a doutrina entende que não haveria realmente uma conversão do negócio, já que “o negócio é o mesmo, embora com forma diferente” (VELOSO, Zeno. Invalidade..., 2005, p. 123). – Conversão substancial: é aquela em que conteúdo negocial é convertido, ou seja, altera-se o tipo contratual. Assim, se o sujeito assina uma nota promissória sem a presença de todos os requisitos formais, como, por exemplo, a falta da denominação “nota promissória” no corpo do título, o negócio se converte em confissão de dívida. Fábio Ulhoa Coelho, por exemplo, menciona o caso em que ocorre a criação de uma fundação por instrumento particular e esta se converte em doação dos bens (Curso..., 2003, v. I, p. 350). Ocorrendo a conversão substancial, devem ser aplicadas ao negócio as regras referentes ao negócio convertido e não àquele nulo.
Com relação ao testamento, é possível imaginar situações de conversão formal e de conversão substancial. Primeiramente, um testamento cujo objeto seja um bem de pequeno valor que foi feito sem assinatura de testemunhas pode converter-se em codicilo (conversão substancial). A jurisprudência nacional vem admitindo essa forma de conversão (RT 327/277). Vale dizer que o Código Civil italiano traz exemplo clássico de conversão formal de testamento. O diploma determina em seu art. 607 que o testamento cerrado, uma vez que não tenha as características preenchidas, terá
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efeito como testamento hológrafo, contanto que preencha os requisitos deste (“Il testamento segreto, che manca di qualche requisito suo proprio, ha effetto come testamento olografo, qualora di questo abbia i requisiti”). Imagine-se um testamento público que conta com a assinatura de quatro testemunhas (apesar de a lei só exigir duas), que, por um lapso, deixa de ser assinado pelo Tabelião. Como instrumento público, o testamento é nulo, mas converte-se em testamento particular (que só exige a presença de três testemunhas), ocorrendo a conversão formal, pois a forma pública nula converte-se em forma particular válida. Note-se que o negócio jurídico original é um testamento e o convertido também o é. Por outro lado, uma doação mortis causa pode se converter em legado se presentes os requisitos formais de validade. Sobre o tema, explica Wania do Carmo de Carvalho Triginelli que “no sistema jurídico brasileiro não é pacífica a admissão da figura da doação mortis causa, embora pareça ser possível aceitá-la até pelo fato (não só) de o art. 314 do Código Civil de 1916 a ela se referir expressamente, apesar de a referência encontrar-se no tópico destinado à doação propter nuptias. Admitida a figura no sistema jurídico brasileiro, o caso referido seria típico de conversão do negócio jurídico” (Conversão..., 2003, p. 166). Em conclusão, com a expressa disposição do art. 170 do CC de 2002, a conversão do testamento nulo não só se torna possível, afastando qualquer debate que existia sob a égide do revogado Código Civil, como também desejável, pois dá efetividade à vontade do morto, preservando a sua autonomia privada e conservando o negócio jurídico celebrado.
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Assim, conclui-se o seguinte: – Se passar dos 5 anos do registro do testamento sem sua impugnação, o testamento nulo é considerado válido (art. 1.859 do CC), sanando-se a nulidade. – Se dentro dos 5 anos algum interessado requerer a nulidade do testamento (total e absoluta), ainda poderá ocorrer sua conversão se preenchidos os requisitos apontados.
3.10.2 Revogação do testamento A noção de revogação implica a perda de eficácia do testamento por vontade de quem o testou, pois este é essencialmente revogável, conforme leciona Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 302). Como se percebe, a revogação é fato superveniente (ou posterior) à formação do testamento. A revogação pode ser conceituada como sendo o ato de vontade do testador que difere da nulidade relativa ou absoluta do testamento. As nulidades surgem antes da realização do ato ou simultaneamente a este, ou seja, são motivos anteriores à celebração do ato. A revogação será admitida ainda que o próprio testador tenha dito ser o seu testamento irrevogável (art. 1.858 do CC). A cláusula de irrevogabilidade do testamento não produz efeitos e tem-se por não escrita, já que entra em conflito com a própria natureza jurídica do instituto. Assim, a regra máxima com relação à revogação é aquela que determina que o testamento pode ser revogado pelo mesmo modo e forma como pode ser feito (art. 1.969 do CC). Nesse sentido, não deve imaginar o leitor que o
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testamento público, por ser solene, não possa ser revogado pelo testamento particular. Testamentos elaborados pela forma ordinária podem ser revogados por outros válidos praticados por forma extraordinária e vice-versa. Qualquer forma válida de testamento revoga outra forma de testamento. Portanto, o testamento particular pode revogar o testamento cerrado ou o público, assim como o testamento militar pode revogar o público, o particular ou o cerrado. Contudo, deve-se frisar que o codicilo não tem o condão de revogar o testamento, mas o testamento pode revogar o codicilo, conforme explicam Sebastião Amorim (Código Civil..., 2004, v. XIX, p. 295) e Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 303). Em sentido contrário, afirma Zeno Veloso que se o codicilo posterior regular a matéria contida em testamento anterior e tenha conteúdo possível, poderá haver revogação parcial do testamento (Comentários..., 2003, v. 21, p. 157). Exemplificando, se o testador deixar todos os seus bens ao sobrinho Daniel e depois, por codicilo posterior, deixar apenas o seu piano à sobrinha Fernanda, teria havido revogação parcial. Também há de se apontar que não será possível a revogação do testamento por simples escritura pública. Como toda e qualquer revogação, a do testamento poderá ser total ou parcial (art. 1.970 do CC). Em certas situações, pode o testador apenas revogar determinada disposição que institui um legado ou cria certa restrição (v.g., a cláusula de incomunicabilidade), hipótese em que a revogação será parcial. Nesse último caso, o antigo testamento subsistirá quanto às demais disposições.
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A revogação poderá ser expressa, caso o testador declare sua vontade em revogar o testamento anterior; ou tácita, se simplesmente fizer novo testamento com disposições contrárias às do testamento anterior. Ilustrando, se no primeiro testamento o falecido deixar seu carro para o sobrinho Alexandre e em testamento posterior deixar todos os seus bens ao sobrinho Renato, o segundo testamento, por ser posterior, revogará o primeiro. Ilustrando, sobre o tema da revogação tácita já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Consoante o teor das disposições de vontade do testador, insertas no testamento posterior, realizado em 15.08.2001, observa-se que tanto os bens legados, como os legatários contemplados, são totalmente diversos da disposição realizada em benefício da autora, sendo forçoso concluir que ambos são independentes entre si. Importa mencionar, primeiramente, que os preceitos esculpidos nos artigos 1.746 e 1.747 do Código Civil de 1916, que regulavam a revogação de testamento, foram reproduzidos, em linhas gerais, nos artigos 1969, 1970 e seguintes do novo Código Civil. Portanto, continua íntegro o raciocínio de que o testamento pode ser revogado pelo mesmo modo e forma como foi feito, mediante revogação parcial ou total. Já se o novo testamento, no que interessa, não contiver cláusula revogatória expressa, o anterior continuará subsistindo em tudo aquilo que não for contrário ao posterior” (TJRS, Apelação Cível 70014619456, 8.ª Câmara Cível, Rel. Luiz Ari Azambuja Ramos, j. 01.06.2006).
Porém, se a contradição ocorrer em um mesmo testamento, não se aplicará critério pelo qual a cláusula posterior revoga anterior. Conclui Washington de Barros Monteiro que as disposições contraditórias em um mesmo testamento anulam-se (Curso..., 2003, v. 6, p. 257).
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O testamento revogador produz seus efeitos ainda que ocorra a sua caducidade por exclusão do herdeiro nomeado – que é declarado indigno por sentença –, pela renúncia do beneficiário nomeado, ou por sua incapacidade. Ainda que tais situações ocorram, considera-se revogado o testamento anterior (art. 1.971 do CC). A revogação só não produz efeitos em caso de anulabilidade do testamento revogador por vícios (v.g. dolo, coação) ou havendo infração à solenidade essencial (v.g. testamento público sem testemunhas). Três últimas observações devem ser feitas quanto à revogação do testamento. A primeira é que a simples revogação do testamento revogador não devolve eficácia ao testamento anteriormente revogado. Em suma, não se verifica o fenômeno automático da repristinação para os casos em questão. Imagine-se que o testador fez um testamento em 2001, um segundo em 2002 revogando expressamente o primeiro, e um terceiro em 2005 revogando expressamente o segundo. A revogação do segundo testamento não revigora o primeiro anteriormente revogado, salvo declaração de vontade do testador nesse sentido. No exemplo em questão, o falecido morreu sem testamento (ab intestato). A segunda observação é que, se o testador ou terceiro, com seu consentimento, abrir ou dilacerar o testamento cerrado ocorrerá a sua revogação (art. 1.972 do CC). Todavia, afirma Maria Helena Diniz que “como o que importa é o animus do testador, não há a presunção absoluta; assim sendo, poderão subsistir tais testamentos se se provar que o rompimento foi acidental; daí a matéria de fato ser apreciada pelo magistrado no caso concreto”
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(Curso..., 2005, v. 6, p. 265). Apesar de respeitável, esse entendimento é considerado minoritário. Por fim, como terceira observação, em consequência da revogação teremos a sucessão legítima, se esta for total, ou a sucessão testamentária, se esta for parcial. 3.10.3 Da caducidade do testamento Segundo Maria Helena Diniz, ocorre a caducidade de um testamento quando a disposição testamentária, apesar de válida, não prevalecerá por obstáculo superveniente ao momento da testificação (Curso..., 2005, v. 6, p. 267). Assim sendo, são hipóteses de caducidade do testamento: a) Se o herdeiro ou o legatário nomeado morrer antes do testador ou no mesmo momento que ele (art. 1.943 do CC). Como se sabe, é requisito básico para que o herdeiro tenha capacidade sucessória que esteja vivo quando da abertura da sucessão. Caso seja premorto ao testador, não será seu sucessor, e o testamento caducará. Da mesma forma, se houver comoriência, inexistirá relação sucessória entre os falecidos (art. 8.º do CC). Lembre-se que a comoriência é aquela situação em que duas pessoas falecem numa mesma ocasião, não sendo possível apontar quem faleceu primeiro, presumindo então a lei que faleceram ao mesmo tempo. b) Se os herdeiros ou legatários falecerem depois do testador, mas antes do implemento da condição fixada no testamento (evento futuro e incerto). c) Se a condição suspensiva imposta não se realizar. A ilustrar, se o testador determinou: “deixo meus bens a meu sobrinho João se ele estiver casado quando de minha morte”, e se, ao morrer, João estiver divorciado, a
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condição não se verificou, o que gera a caducidade do testamento. d) Se o herdeiro for incapaz de herdar (art. 1.801 do CC) ou renunciar à herança ou ao legado (art. 1.808 do CC), ou tiver sido excluído da sucessão (art. 1.814 do CC). e) Se o testador fez testamento marítimo ou aeronáutico e não morreu na viagem, nem nos 90 dias subsequentes ao seu desembarque em lugar em que poderia testar de forma ordinária (art. 1.981 do CC). f) Nos termos do art. 1.895 do atual Código, se o testador faz testamento militar e, não morrendo na campanha, esteja, por 90 dias seguidos, em lugar onde possa testar na forma ordinária, salvo se esse testamento apresentar as solenidades previstas no art. 1.894 do CC. g) Em se tratando de coisa certa, perecendo esta sem culpa do herdeiro, extingue-se a obrigação, já que não pode o objeto certo ser substituído por outro. Também aqui há caducidade do legado (art. 1.939, III, do CC). h) Se, depois do testamento, o testador modificar a coisa legada, a ponto de esta já não ter a forma nem lhe caber a denominação que possuía (art. 1.939, I, do CC).
Para terminar, como consequência da caducidade, ocorrerá a sucessão legítima se a ineficácia abranger a todos os herdeiros ou aos legatários, e eles não tiverem substitutos. Eventualmente, ocorrerá a sucessão testamentária se não abranger todos os herdeiros ou legatários e, não tendo eles substitutos, houver o direito de acrescer entre eles.
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3.11 DA REDUÇÃO DAS DISPOSIÇÕES TESTAMENTÁRIAS E DO ROMPIMENTO DO TESTAMENTO 3.11.1 Conceito de redução das disposições testamentárias A redução das disposições testamentárias decorre do princípio pelo qual a existência da legítima preserva o direito dos herdeiros necessários (art. 1.845 do CC). Conforme outrora explicado, a legítima corresponde a 50% dos bens deixados pelo falecido, sempre se descontando eventual meação do cônjuge ou da companheira, que como vimos não constitui um direito sucessório. Desse modo, caso haja invasão da legítima quando da elaboração do testamento, em prejuízo aos herdeiros necessários, a sanção prevista em lei será a redução das disposições testamentárias, não se falando em anulação ou nulidade do testamento. Isso porque a liberdade ou autonomia de testar é limitada por normas de ordem pública. A redução ocorrerá se, no momento da elaboração do testamento, o herdeiro necessário já existir. É o caso do pai que, tendo filhos, deixa 60% de seus bens ao seu time de futebol. Nesse caso, o juiz reduzirá a disposição em favor do time para apenas 50%, preservando a legítima do filho. A redução aqui estudada, por óbvio, não se confunde com a hipótese de rompimento do testamento (arts. 1.973 a 1.975 do CC), em que surge um herdeiro necessário
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desconhecido do testador, conforme será explicado a seguir, e cujas consequências são totalmente diferentes. É importante ressaltar que os motivos que levaram o testador a invadir a legítima (v.g., erro de cálculo, desconhecimento da lei ou intenção de prejudicar os herdeiros necessários) são irrelevantes para que ocorra a redução, bastando que, objetivamente, por meio de cálculos, seja constatado que o direito à legítima foi desrespeitado. Como bem explica Silvio Rodrigues, “o direito que a lei reconhece aos herdeiros necessários seria nenhum se ela não o garantisse com uma sanção. Essa sanção consiste na prerrogativa concedida ao herdeiro, porventura prejudicado pelas excessivas liberalidades do finado, de pleitear a redução destas, a fim de não ficar lesada a quota reservatária” (Direito civil, 2002, v. 7, p. 231). Por outro lado, importante fato é salientado por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka: “o que se descortina, principalmente, nesse assunto é uma dicotômica atenção do legislador, que, por um lado, não perde de vista o interesse jurídico dos sucessores com direito à legítima, mas, por outro, não se limita a desconsiderar a derradeira vontade do testador” (Curso avançado..., 2003, v. 6, p. 342). Portanto, as disposições que excederem a parte disponível reduzir-seão aos limites dela (art. 1.967 do CC). Um bom exemplo de redução das disposições testamentárias se verifica na hipótese em que certa pessoa, casada, faz um testamento deixando a totalidade de bens para seu sobrinho. Note-se que o cônjuge, na sistemática do revogado Código Civil, não era herdeiro necessário, e, portanto, tal testamento produziria normalmente seus efeitos se o testador falecesse na vigência daquele diploma.
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Contudo, se o testador falece na vigência do atual Código Civil, o testamento é parcialmente ineficaz, pois em razão da disposição do art. 1.845 do Código Civil o cônjuge é herdeiro necessário. Ocorrendo a redução, o sobrinho fica com 50% dos bens (parte disponível) e o cônjuge com 50% (legítima). Apenas a título de nota, o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.111.095, decisão comentada no Capítulo 1 da presente obra, decidiu pela não aplicação do Código Civil de 2002, preservando-se, de maneira equivocada, a eficácia plena do testamento em favor do sobrinho (Ver Capítulo1 da obra, item 1.1). Fazendo um paralelo interessante, no caso de doação (negócio inter vivos), se o doador dispuser de parte superior àquela que poderia deixar por testamento no momento da doação, verifica-se a chamada doação inoficiosa, que é nula quanto ao excesso (art. 549 do CC). Percebe-se, assim, que o Código Civil comina sanções diversas ao excesso inoficioso. Se o doador invade a legítima, doando a parte inoficiosa, a doação será nula, atingindo-se o plano da validade do negócio jurídico inter vivos. Por outro lado, se a ofensa à legítima se dá por meio de ato de última vontade (testamento), não há mácula à validade, mas apenas quanto aos efeitos que serão modificados pelo juiz (plano da eficácia). A redução poderá ocorrer nos próprios autos do inventário, já que não se trata de questão de alta indagação a vedar a sua análise. Entretanto, como leciona Sílvio de Salvo Venosa, “não satisfeito qualquer interessado, ou não sendo possível a redução no curso do inventário, há que se recorrer à ação própria de redução (denominada
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tradicionalmente de actio in rem scripta)”. Essa ação só poderá ser proposta após a morte do testador, momento em que o testamento começa a produzir seus efeitos, já que ninguém é considerado herdeiro antes de aberta a sucessão. Por se tratar de interesse privado, podem os herdeiros necessários prejudicados renunciar ao direito de promover essa demanda. E, por óbvio, não poderia ser diferente. Se ninguém é obrigado a receber a herança, podendo, inclusive, a ela renunciar, não haveria motivos para que não fosse possível a renúncia ao direito de pleitear a redução. 3.11.1.1 Das regras gerais de redução das disposições testamentárias O Código Civil traz um conjunto de regras quanto ao tema, um verdadeiro roteiro, para que se faça a redução das disposições testamentárias (art. 1.967 do CC). Vejamos todas essa regras, mais uma vez de forma pontual e exemplificando o seu conteúdo. 1.º) Devem ser reduzidas as quotas deixadas aos herdeiros proporcionalmente ao quinhão de cada um. Assim, se o testador, tendo um filho, deixar 60% de seus bens ao sobrinho João, caberá a redução em 10% para resguardar a legítima. 2.º) Se a redução dos herdeiros não for suficiente, devem-se reduzir os legados. Vejamos dois exemplos práticos.
Exemplo 1. A redução da herança é suficiente. O testador, tendo filho, deixa seus bens ao seu amigo João (conta bancária de R$ 20.000,00) e um imóvel legado em favor do sobrinho José (que vale R$ 10.000,00), sendo certo
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que o total de seu patrimônio é de R$ 30.000,00. João é herdeiro e José legatário. Note-se que o filho do testador (herdeiro necessário) nada receberia em razão do testamento. Patrimônio total do falecido
Legítima – 50%
Redução necessária
R$ 30.000,00
R$ 15.000,00
R$ 15.000,00
Nessa situação, caberá a entrega da importância de R$ 15.000,00 ao filho do testador, a ser realizada pelo herdeiro João, tendo ele direito ao restante (R$ 5.000,00). Reduz-se apenas a herança, permanecendo intacto o legado. Exemplo 2. A redução da herança não é suficiente. O testador, tendo filho, deixa seus bens ao seu amigo João (conta bancária de R$ 20.000,00) e um carro legado em favor do sobrinho José (que vale R$ 50.000,00), sendo certo que o total de seu patrimônio é de R$ 70.000,00. João é herdeiro e José legatário. Note-se que o filho do testador (herdeiro necessário) nada receberia em razão do testamento. Patrimônio total do falecido
Legítima – 50%
Redução necessária
R$ 70.000,00
R$ 35.000,00
R$ 35.000,00
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Na última situação, caberá a entrega ao filho do testador da importância de R$ 20.000,00 que pertenceria ao herdeiro João, que, então, nada receberá. Reduz-se primeiramente a herança. Como a redução não atingiu o valor necessário, o legatário perde o valor de R$ 15.000,00, referente à parte do carro legado. Assim, o filho receberá a importância em bem e dinheiro correspondente à legítima, que é de R$ 35.000,00. As regras acima explicadas não são de ordem pública, mas apenas refletem a possível vontade do testador, que poderá, entretanto, estipular como proceder à redução testamentária (art. 1.967, § 2.º, do CC). Exemplificando de outra forma, se o testador, tendo filho, deixa todo o seu patrimônio distribuído em testamento da seguinte forma: seus bens a seu amigo João (conta bancária de R$ 20.000,00) e suas ações legadas em favor do sobrinho José (que valem R$ 50.000,00). Contudo, determina no testamento que a redução se faça primeiramente no legado. Considerando-se que o total de seu patrimônio é de R$ 70.000,00, a redução será feita assim: caberá a entrega ao filho do testador da importância de R$ 35.000,00 correspondentes às ações legadas que pertenceriam a José, que então receberá apenas R$ 15.000,00. Já com relação ao herdeiro João, como a redução do legado atingiu o valor necessário, a herança lhe será entregue integralmente. Superada a análise das regras gerais, passaremos ao estudo de regras específicas de redução testamentária em se tratando de bem imóvel.
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3.11.1.2 Das regras de redução em se tratando de bem imóvel Caso a redução deva ser feita sobre um bem imóvel, as regras do Código Civil, previstas no art. 1.968, são as seguintes: a) Se o imóvel for divisível (exemplo: um terreno), far-se-á a divisão de maneira a respeitar a legítima. Assim, se a redução ocorrer em 40% do imóvel, divide-se o terreno em duas partes: uma de 40% em favor do herdeiro necessário, como forma de preservação de legítima; e outra de 60% para o herdeiro nomeado em testamento. Não haverá condomínio, mas divisão e, portanto, dois imóveis novos surgirão a partir desse fracionamento. b) Em caso de imóvel indivisível (exemplo: um apartamento), são as possíveis consequências da redução:
1.ª consequência – Caso o excesso seja superior a 1/4 do valor do bem, o herdeiro necessário ficará com a propriedade e o legatário beneficiado com o prédio só terá direito de exigir deste o valor da parte disponível (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., 2003, v. 6, p. 253). Exemplificando, se o único bem do testador, um imóvel no importe de R$ 100.000,00, for deixado ao sobrinho João, e seu filho, herdeiro necessário nada recebe, deve-se realizar o seguinte cálculo:
Patrimônio total do falecido
Legítima
Redução necessária
Excesso a ser reduzido
O exc maio valor do
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R$ 100.000,00
R$ 50.000,00
R$ 50.000,00
R$ 50.000,00
SIM, p corres
R$ 25
Como conclusão, o imóvel ficará com o herdeiro necessário e o legatário João terá direito de exigir o pagamento de R$ 50.000,00 em dinheiro. 2.ª consequência – Caso o excesso não seja superior a 1/4 do valor do bem, o herdeiro necessário não ficará com a propriedade, que pertencerá ao legatário beneficiado, que, entretanto, deverá pagar em dinheiro ao herdeiro necessário o valor correspondente à legítima (RODRIGUES, Silvio. Direito civil..., 2002, v. 7, p. 237). Para ilustrar, se o testador deixar ao sobrinho João um imóvel no importe de R$ 100.000,00 e a importância de R$ 40.000,00 ao seu filho, herdeiro necessário, deve-se realizar o seguinte cálculo:
Patrimônio total do falecido
Legítima
Redução necessária
Excesso a ser reduzido
R$ 140.000,00
R$ 70.000,00
R$ 30.000,00
R$ 30.000,00
O exc maio valor do
SIM, p corres
R$ 25
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Desse modo, o imóvel ficará com o legatário João, e o filho, herdeiro necessário, terá o direito de exigir o pagamento de R$ 30.000,00 em dinheiro. 3.ª consequência – Caso o legatário beneficiado pelo legado de bem imóvel indivisível seja também herdeiro necessário, poderá inteirar sua legítima no próprio imóvel, desde que a soma do valor do legado e da legítima representem o valor total do imóvel. 3.11.2 Do rompimento do testamento Segundo a doutrina, o rompimento do testamento, também denominado de revogação legal, verifica-se quando ocorre a superveniência de descendente sucessível do testador que este desconhecia quando testou, ou porque o reconheceu, nasceu ou adotou posteriormente à elaboração do testamento (LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito civil..., 2004, v. 6, p. 306). Note-se que o rompimento significa a total desconsideração do conteúdo do testamento, como se nunca tivesse existido, razão pela qual o termo revogação legal exprime bem o alcance do instituto que ora se comenta. Vale dizer que o rompimento do testamento é também chamado de revogação ficta ou presumida. Nas hipóteses em questão, presume a lei que a vontade do testador seria a completa revogação do testamento como um todo, deixando a inteireza de seus bens para o filho que desconhecia quando testou, ou para aquele que reconheceu, adotou ou ainda que nasceu após o testamento ter sido feito.
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O que se percebe é que, em decorrência de uma circunstância posterior, alteraram-se as condições que existiam quando da elaboração do testamento. Presume a lei que, se soubesse da existência de um filho, o testador teria preferido lhe deixar toda a herança a testá-la a terceiros. O nascimento de um filho, neto ou bisneto é suficiente para romper o testamento. Ilustrando, imagine-se o caso de o testador elaborar testamento deixando todos os bens para o seu sobrinho, logo após a morte de seu único filho. Posteriormente, a esposa de seu filho, esperando um filho deste, dá a luz uma menina. O nascimento da neta rompe o testamento. Trata-se de presunção de afetividade criada pela lei. Isso porque, pela experiência cotidiana, nota-se que, tendo a pessoa descendente, não há o costume de se elaborar testamento em favor de sobrinho ou quem quer que seja. Presume-se, então, que se o falecido conhecesse o herdeiro, não teria feito testamento beneficiando terceiros. Interessante notar, entretanto, que caso o testador já tenha um filho ou neto e venha a nascer outro após a elaboração do testamento, isto não acarretará a ruptura. Como esclarece Washington de Barros Monteiro, “o testamento só se rompe com a superveniência de filhos, quando o testador não os tinha anteriormente; se os possuía quando testou, o nascimento não provoca a ruptio testamenti” (Curso..., 2003, v. 6, 259). Note-se que se, sabendo da existência de um filho, deixa o falecido todos os bens a seu sobrinho, deve ocorrer a redução das disposições, como outrora analisado. É requisito essencial para que haja o rompimento que o descendente esteja vivo quando da morte do testador
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(art. 1.973 do CC). Isso porque, em caso de pré-morte do herdeiro, o testamento não estará rompido. Assim, se João não tinha nenhum filho quando fez seu testamento, mas nasce-lhe um dias depois, o testamento estará rompido no caso de João falecer e seu filho estar vivo nesse momento. É a morte de João o momento em que se verifica o rompimento. Do ponto de vista prático, segundo Maria Helena Diniz, o rompimento ocorre sem que seja necessária ação especial, pois pode ser declarado no próprio inventário (Curso..., 2005, v. 6, p. 267). Filia-se mais uma vez ao seu entendimento. Determina a lei, ainda, que o testamento se rompe se feito na ignorância de existirem outros herdeiros necessários (art. 1.974 do CC). Exemplificando, se o filho pensa que seu pai faleceu em razão de seu desaparecimento por um longo período, mas este depois retorna, o testamento estará rompido. Por outro lado, em decisão interessante sobre a questão, o Tribunal do Rio Grande do Sul já entendeu que, se o falecido tinha uma filha decorrente de seu casamento e elabora testamento deixando-lhe a parte disponível, o posterior reconhecimento por meio de ação judicial de duas outras filhas das quais o testador tinha ciência não causa o rompimento do ato de última vontade. Vejamos tal acórdão: “Ao prever o rompimento do testamento o legislador presume que o testador não disporia dos seus bens por testamento se tivesse filhos ou, desconhecendo a existência destes, viesse posteriormente a deles tomar conhecimento. Bem analisando os dispositivos retro referidos tem-se que,
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pelo art. 1973, rompe-se o testamento se sobrevém determinado descendente ao testador que não o tinha ao tempo da confecção do testamento, ou desconhecia sua existência. O art. 1974 refere-se ao rompimento do testamento quando o testador ignora a existência de herdeiros necessários de forma geral. Para que ocorra o rompimento do testamento, portanto, basta que sobrevenha novo descendente ao testador, ou venha ele a tomar conhecimento de sua existência em momento posterior ao testamento. Portanto, se já sabia da existência desse descendente no momento da lavratura do testamento, não haverá justificativa para o rompimento do testamento, pois resta claro, nesta circunstância, que desejou beneficiar um dos descendentes, em detrimento dos demais, o que é perfeitamente lídimo, desde que se limite à sua parte disponível (art. 1.975, CC)” (TJRS, Agravo de Instrumento 70015732878, 7.ª Câmara Cível, Rel. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 06.09.2006).
Intrigante questão diz respeito ao cônjuge que passou a ser considerado herdeiro necessário pelo Código Civil de 2002 (art. 1.845), mas não o era pela sistemática do Código Civil de 1916. Imaginemos o testamento elaborado na vigência do Código Civil de 1916 por um sujeito casado, que não tenha descendentes ou ascendentes, deixando todos os seus bens para um sobrinho. Seu falecimento se dá na vigência do Código Civil de 2002. Será que o testamento considera-se rompido? A resposta é negativa. Euclides de Oliveira, em e-mail pessoal enviado ao coautor José Fernando Simão, afirma que “parece-me que a hipótese não é de rompimento, mas de simples redução testamentária. O rompimento a que alude o art. 1.974 do Código Civil diz com o desconhecimento da existência de pessoa sucessível. Aplica-se, por exemplo, quando o
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testador supõe que o pai, desaparecido, esteja morto, quando em verdade permanece vivo. Da mesma forma, se o cônjuge ausente reaparece, então o testamento que omitisse seus direitos como herdeiro necessário estaria rompido, por força da lei, na suposição de que, se o testador soubesse, não teria disposto em benefício de outrem. Ainda que depois, pela mudança do Código, o cônjuge tenha passado a ser herdeiro necessário, tal fato não atinge por inteiro a prévia disposição de última vontade. A solução, portanto, será simplesmente a de reduzir o testamento à parte disponível, nos termos do art. 1.967 do CC, de modo a garantir a legítima que a lei agora manda atribuir ao cônjuge sobrevivo”. Sobre o tema, decidiu o Tribunal Gaúcho que, se o cônjuge, casado pelo regime da separação convencional de bens, foi beneficiado pelo testamento com a metade dos bens do falecido e a outra metade foi destinada a um sobrinho, não há que se falar em rompimento, mas sim dar-se cumprimento ao ato de última vontade. A decisão merece destaque: “O testamento foi lavrado enquanto vigente o Código Civil de 1916, onde a Cônjuge não estava contemplada, ainda, como herdeira. Necessária, o que veio a se materializar agora com o seu ordenamento, além de que o casal não tinha filhos ou pais. Desta forma, e por isso, o testador instituiu sua mulher como herdeira universal, junto com o agravante, pois era casado pelo regime da separação obrigatória, podendo dispor da ‘totalidade do acervo’. Ou seja, em vista do regime adotado não havia meação nem herança, o que possibilitava o testador dispor de todo o seu patrimônio, endereçando metade a cada um. Em outras palavras, não havia ‘sucessão legítima’ pela falta de herdeiros necessários, nem
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‘meação’, eis que o regime adotado era da separação universal. Portanto, restava uma ‘sucessão testamentária’, onde ditas partes foram instituídas. Não há porque se cogitar, agora, de eventual ‘meação’ ou ‘herança’, mas apenas de ‘legados’ aos herdeiros testamentários, tal como ordenou a primeira decisão judicial, com o que se respeita a vontade do testador” (TJRS, Agravo de Instrumento 70008701724, 7.ª Câmara Cível, Rel. José Carlos Teixeira Giorgis, j. 26.05.2004).
Superados esses pontos, não se rompe o testamento nas seguintes hipóteses: 1.ª) O testador que elabora cláusula dispondo expressamente como ficará sua herança caso surja um herdeiro necessário. Se previr esta possibilidade, não há razão para rompimento do testamento, pois este só ocorre pela presunção legal segundo a qual o testador revogaria o testamento caso surgissem herdeiros necessários desconhecidos ou que não existiam quando da elaboração do testamento. 2.ª) Caso o testador apenas deixe em testamento a metade de seus bens e não contemple os herdeiros necessários de cuja existência saiba, ou quando os exclua dessa parte (art. 1.975 do CC). Ora, se o testador não dispõe da totalidade de seus bens, mas apenas de metade, surgindo o herdeiro necessário, terá ele direito à outra metade, em concorrência com os outros herdeiros necessários que o de cujus tiver. Da mesma forma, se houver cláusula excluindo os herdeiros necessários da porção disposta em testamento, o surgimento de um novo herdeiro não afetará a vontade do morto, que é, justamente, de deixar a porção disponível para terceiros que não sejam herdeiros necessários. Nesse sentido, a seguinte cláusula: “Deixo a parte disponível de meus bens a meu sobrinho João, excluindo meus filhos da participação quanto a tal parte”.
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Para findar o estudo da matéria, é de se apontar que a liberdade do testador com relação à parte disponível é total, como lembra Eduardo de Oliveira Leite e, caso haja invasão à legítima, estaremos diante de caso de redução das disposições e não de rompimento (Direito civil..., 2004, v. 6, p. 307).
3.12 DO TESTAMENTEIRO 3.12.1 Espécies e regras gerais O testamenteiro é a pessoa nomeada em testamento para cumprir a disposição de última vontade do falecido. Para De Plácido e Silva, o testamenteiro é a “pessoa a quem se cometem os encargos de uma testamentaria, para que cumpra as disposições de um testamento”. Tal instituto tem caráter personalíssimo, constituindo uma atribuição de ordem privada, um ato jurídico lato sensu formal regido pela autonomia privada (Vocabulário..., 1976, p. 1.550). O que se percebe é que o testamenteiro tem o encargo complexo e importantíssimo de execução do testamento. Deve-se dizer que não exerce uma função pública, nem um múnus público, mas um cargo estritamente privado, um serviço de amigo, de caráter essencialmente facultativo, de forma que ninguém é obrigado a aceitar a função, nas palavras de Eduardo de Oliveira Leite (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 680). Conforme ensina Washington de Barros Monteiro, “pode acontecer que o testador não tenha herdeiros,
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nestes não confie inteiramente, tenha dúvida sobre sua diligência e capacidade, ou ocorra a colisão de interesse entre várias disposições” (Curso..., 2003, v. 6, p. 261). Nesses casos, surge a necessidade de nomeação de um administrador do testamento ou legado, por ato de última vontade. Frise-se que não há obrigatoriedade em sua nomeação, por se tratar de opção do testador. A ausência de testamenteiro não gera invalidade do testamento. Quanto à natureza jurídica do instituto, calorosos são os debates, encarando alguns autores a testamentaria como um mandato especial, post mortem, ou um mandato sem representação, que se assemelha a uma gestão de negócios. Pela primeira corrente, à qual aderimos, na testamentaria há um mandato legal como instituto sui generis, autônomo em relação aos demais institutos de representação previstos no Direito Contratual Civil ou mesmo no Direito Empresarial. Aqui, o cargo de mandatário somente é exercido após a morte, uma modalidade de mandato a termo, indelegável e intransmissível. O testamenteiro pode ser nomeado pelo autor da herança por meio de testamento ou até mesmo codicilo. Permite-se que o falecido nomeie um ou mais testamenteiros para dar cumprimento ao testamento, podendo a nomeação ocorrer conjunta ou isoladamente (art. 1.976 do CC). Nada impede que o testador nomeie como testamenteiro um parente, o cônjuge, um amigo, ou ainda um herdeiro ou legatário nomeados no testamento. Contudo, é necessário que o testamenteiro seja pessoa capaz, já que
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terá funções a desempenhar, que não podem ser exercidas pelos absoluta ou relativamente incapazes. Segundo Maria Helena Diniz, a testamentaria não pode ser concedida “a certas pessoas, embora tenha capacidade jurídica, como: as que têm débito com o testador, ou que estiverem litigando com os herdeiros, ou que forem inimigas do disponente e de seus sucessores (CC, art. 1.735 – aplicação analógica)” (Curso..., 2005, v. 6, p. 282). A capacidade para ser testamenteiro encontra os mesmos pressupostos da capacidade civil da pessoa natural. Por ser cargo de confiança, a testamentaria não se transmite aos herdeiros do testamenteiro com sua morte, nem pode ser delegada (art. 1.985 do CC). Entretanto, pode o testamenteiro fazer-se representar em juízo e fora dele mediante mandato com poderes especiais. Por esse motivo, não poderia a testamentaria ser exercida por pessoa jurídica ou ente despersonalizado, argumento com o qual concordamos, inclusive por vedar a “profissionalização” do instituto. As espécies de testamenteiros variam de acordo com a maneira como são indicados. Explica Silvio Rodrigues que o testamenteiro chama-se instituído se for nomeado pelo testador; dativo se o for pelo juiz; universal se for aquele a quem se confere a posse e a administração da herança; ou particular, aquele que não desfruta dessa posse e dessa administração (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 277). Assim sendo, não havendo testamenteiro nomeado, a testamentaria será dativa e competirá ao cônjuge ou, na falta deste, ao herdeiro nomeado pelo juiz (art. 1.984 do CC).
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O termo cabeça de casal foi substituído pela expressão cônjuge, mais adequada à realidade atual do Direito de Família. Isso porque a ideia de Família Democrática está relacionada a várias cabeças e não a somente uma. Deve-se ressaltar que se o cônjuge for separado de fato há mais de dois anos, não há razão para sua nomeação, pois sequer estará assegurada a sua participação na herança em determinadas situações (art. 1.830 do CC). Também, nesse caso, em ocorrendo ausência, não será o cônjuge nomeado curador (art. 25 do atual Código). O testamenteiro universal, por expressa vontade do falecido, recebe a posse e a administração da herança, ou de parte dela, desde que não tenha o de cujus cônjuge ou herdeiros necessários (art. 1.977 do CC). A norma é redundante, pois o cônjuge também é herdeiro necessário no sistema do Código Civil de 2002 (art. 1.845 do CC). Como bem lembra Clóvis Beviláqua, se a herança for totalmente dividida em legados, o testamenteiro terá a posse e a administração da herança, ainda que não lha tenha concedido expressamente o testador (Código Civil..., 1955, v. VI, p. 185). Na verdade, a nomeação do testamenteiro universal sofre limites, pois existindo herdeiros necessários respeita-se a vontade do morto quanto ao testamenteiro nomeado, mas a posse dos bens não lhe é entregue. Ocorre a simples ineficácia de parte da deixa testamentária em decorrência do brocardo pelo qual utile per inutile non vitiatur. Por outro lado, mesmo sendo universal o testamenteiro, podem os herdeiros requerer a partilha imediata ou a devolução da herança, habilitando o testamenteiro com
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os meios necessários para o cumprimento dos legados ou dando caução de prestá-los (art. 1.977, parágrafo único, do CC). Tal substituição somente poderá ocorrer se na situação fática o herdeiro solicitante estiver em plenas condições de assumir a administração da herança ou em melhor situação que o testamenteiro nomeado. E essa constatação e decisão cabem, sem dúvida, ao juiz. Nesse sentido, para Clóvis Beviláqua, “o herdeiro é dono e possuidor dos bens deixados. Se ele habilita o testamenteiro a cumprir as disposições de última vontade do testador, quanto aos legados e outros objetos declarados no testamento, não há mais fundamento para que esse estranho se conserve na posse e administração da herança” (Código Civil..., 1955, v. VI, p. 186). Pelo fato de o testamenteiro, nessa situação especial, estar com a posse dos bens da herança, caberá a ele requerer o inventário e fazer cumprir o testamento (art. 1.978 do CC). Isso não significa que será ele necessariamente o inventariante, pois o Código de Processo Civil determina que o juiz nomeará inventariante de acordo com a seguinte ordem: o cônjuge sobrevivente casado sob o regime de comunhão universal, desde que estivesse convivendo com o outro ao tempo da morte deste; o herdeiro que se achar na posse e administração do espólio, se não houver cônjuge supérstite ou este não puder ser nomeado; qualquer herdeiro, nenhum estando na posse e administração do espólio; o testamenteiro, se lhe foi confiada a administração do espólio ou toda a herança estiver distribuída em legados; o inventariante judicial, se houver; ou pessoa estranha idônea, onde não houver inventariante judicial (art. 990 do CPC).
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Sob outro prisma, a administração, assim como no mandato, pode assumir a forma singular, quando a função de testamenteiro é exercida somente por uma pessoa; ou plural, nas formas solidária, conjuntiva (conjunta), fracionária ou sucessiva. Deve-se aplicar, como primeira regra, a previsão de última vontade do testador. Se há na administração, por exemplo, ordem sucessiva estipulada pelo testador, deverão agir os testamenteiros um na falta do outro, como ocorre no mandato sucessivo e na substituição fideicomissária. Se não há previsão de ordem sucessiva, a testamentaria assume a forma de mandato conjuntivo ou solidário. Mais uma vez, a autonomia privada é dominante: se o autor da herança não determinar a atuação isolada de qualquer um dos instituídos (mandato plural solidário), deverão estes atuar conjuntamente. Nesse sentido, transcreve-se: “Testamento. Nomeação de mais de um testamenteiro para atuação conjunta, inobstante a ordem de nomeação. Admissibilidade. Inteligência dos arts. 1.753 do Código Civil e 1.127 do Código de Processo Civil. Recurso não provido” (TJSP, 1.ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento 244.169-1/ SP, Rel. Erbetta Filho, j. 11.04.1995, v.u.).
Cabe então, perquirir se a nomeação se deu in solidum, hipótese em que um dos testamenteiros poderá, sem o concurso dos demais, executar o testamento. Se não houver menção expressa do disponente, entender-se-á que a testamentaria deve ser executada por todos os testamenteiros, em conjunto, hipótese em que, havendo divergência entre eles, prevalecerá o voto da maioria e, havendo
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empate, decidirá o herdeiro ou o magistrado, se o herdeiro se escusar (DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2005, v. 6, p. 284). A consequência da testamentaria conjunta é a responsabilidade solidária de todos os testamenteiros pelos atos praticados quanto aos bens confiados. Porém, se a nomeação for sucessiva ou, se conjunta, houver divisão das funções de cada testamenteiro, a solidariedade não ocorrerá (art. 1.986 do CC). Anote-se que a solidariedade não se presume, decorrendo de lei ou da vontade das partes (art. 286 do CC). A razão de ser daquela regra, explica Washington de Barros Monteiro, é que “são eles escolhidos pelo testador e não pelos herdeiros. Quis a lei, prudentemente, que estes, obrigados a respeitar a vontade do de cujus, ficassem plenamente garantidos” (Curso..., 2003, v. 6, p. 269). Deve-se salientar que a testamentaria impõe ao testamenteiro uma limitação, qual seja a de não poder comprar bens da herança, ainda que em hasta pública (art. 497, I, do CC). Trata-se de limitação à liberdade de contratar, o que pode ser causa de nulidade absoluta do contrato, caso realizado. 3.12.2 Das funções do testamenteiro Na sistemática do Código Civil em vigor, são funções do testamenteiro: 1.ª função – Requerer o registro do testamento.
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Esse pedido de registro pode ser feito pelo próprio testamenteiro, por qualquer interessado ou pelo juiz, que poderá determiná-lo de ofício (art. 1.979 do CC). Explica Eduardo de Oliveira Leite que o registro dos testamentos efetua-se no juízo da execução e consiste na transcrição do testamento em livro próprio existente em cada cartório. Em seguida, esse registro deve ser remetido à repartição fiscal, para também ser inscrito em livro respectivo, devendo também a inscrição ficar constando dos autos, mediante declaração do representante do fisco (Comentários..., 2004, v. XXI, p. 690). Como se vê, tratase de formalidade legal preliminar ao cumprimento das disposições testamentárias. O Código de Processo Civil determina que o juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer interessado, ordenará ao detentor de testamento que o exiba em juízo para os fins legais, se ele, após a morte do testador, não se tiver antecipado em fazê-lo, sob pena de busca e apreensão (art. 1.129 do CPC). Se os interessados têm o direito de requerer o registro, o testamenteiro tem um verdadeiro dever. Não exercendo, nesse contexto, tal atribuição, poderá ser-lhe imputada culpa in omittendo (culpa por omissão, negligência), com a consequente responsabilidade civil por má administração. Diante dessa possibilidade de responsabilização e pela sistemática dos poderes e das atribuições da testamentaria, entendemos que pode o testamenteiro promover ação de obrigação de fazer em face daquela pessoa que mantém o testamento em sua posse e se nega a levá-lo a registro.
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2.ª função – Cumprir as disposições testamentárias no prazo marcado pelo testador e prestar contas do que recebeu e despendeu, sendo responsável enquanto durar a execução do testamento (art. 1.980 do CC e art. 1.137, I, do CPC). Na realidade, o testamenteiro está na posse e na administração de bens que não lhe pertencem ou que lhe pertencem apenas em parte, caso seja herdeiro ou legatário. O Código Civil em vigor se utiliza do termo “dar contas”, quando a expressão adequada seria “prestar contas”. Assim como o tutor e o curador administram patrimônio alheio, o testamenteiro deve prestar contas aos herdeiros e legatários de sua administração. Caso o testamenteiro seja o único herdeiro dos bens testados, desnecessária será a prestação de contas para si mesmo, pois se os créditos ou débitos existirem, serão todos de si mesmo. Aqui surge outra dúvida: poderia o testamenteiro ser dispensado pelo falecido de prestar contas de sua gestão? A resposta é negativa, pois a lei determina ser ineficaz, ou seja, não produzir efeitos, a disposição que o libera desse encargo (art. 1.135, parágrafo único, do CPC). Entendemos que o prazo dos herdeiros para exigir a prestação de contas é de natureza prescricional e de 10 anos (art. 205 do CC), pois a obrigação do testamenteiro é realizar uma prestação, ou seja, uma obrigação de fazer e, portanto, para os herdeiros e legatários surge a pretensão no momento em que o testamenteiro deveria prestar contas, mas não o fez. Nesse sentido filiam-se Itabaiana de Oliveira, ao comentar o art. 177 do revogado Código Civil
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(Tratado...., 1952, v. 2, p. 685), e Maria Helena Diniz (Curso..., 2005, v. 6, p. 291). Em decisão semelhante, relativa à obrigação do mandatário de prestar contas, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que o prazo seria de 20 anos, no sistema do Código Civil de 1916, contados do momento posterior à prática dos atos. Afirma a Ministra Fátima Nancy Andrighi, em seu voto: “Portanto, também a pretensão de exigir as contas, e o cômputo do respectivo prazo prescricional, só pode nascer em momento ulterior à prática dos atos para os quais se outorgaram os poderes” (STJ, REsp 474.983/RJ, 3.ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 03.06.2003, DJ 04.08.2003, p. 297). Como se nota, o entendimento aqui defendido pode ser apontado como majoritário, pois adotado pela jurisprudência. Pois bem, o principal dever do testamenteiro é cumprir a disposição testamentária no prazo estipulado ou, em sua ausência, no prazo legal de 180 dias, contados da aceitação da testamentaria (art. 1.983 do CC). A prestação de contas deve ocorrer após tal prazo e no juízo do inventário (art. 1.135 do CPC). Não impede a lei que o juiz prorrogue o prazo caso, por motivos não imputáveis ao testamenteiro, seja este muito exíguo para o cumprimento das disposições (art. 1.983, parágrafo único, do CC). Vale dizer que no revogado Código Civil esse prazo era de um ano, norma que não está mais em vigor (art. 1.762 do CC/1916). Lembre-se de que a redução de prazos ocorreu em todo o sistema do Código Civil de 2002, exigindo das pessoas maior rapidez na busca por seus direitos, bem como na execução de seus deveres.
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Concorda-se com Zeno Veloso quando afirma que o art. 1.983 estaria mais bem localizado se fosse o parágrafo único do art. 1.980, pois a ele se relaciona (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.652). Também é importante apontar que o Código de Processo Civil confere a prerrogativa ao testamenteiro de pedir ao juiz que lhe conceda os meios necessários para cumprir a disposição testamentária (art. 1.137, IV, do CPC), o que lhe permite pedir a dilação do prazo, desde que justifique as razões para tanto. Itabaiana de Oliveira salienta que são justos motivos para a prorrogação do prazo as seguintes situações: litígios sobre os bens da herança, impossibilidade de cumprimento por dificuldades de liquidação, e impedimentos que, evidentemente, tenham impossibilitado a execução do testamento, não provindo eles da mora, ou da negligência do testamenteiro (Tratado..., 1952, v. 2, p. 686). Por fim, interessante observar que, conforme já debatido, há na testamentaria um mandato sui generis, podendo o testamenteiro responder perante terceiros – ou mesmo perante os herdeiros –, por uma má administração (culposa ou dolosa) dos bens. 3.ª função – Defender a validade do testamento, com ou sem ajuda do inventariante ou dos herdeiros instituídos (art. 1.981 do CC e art. 1.137, II, do CPC). Isso significa que na ação em que se discute a validade do testamento, a citação do testamenteiro é obrigatória, sob pena de nulidade do processo.
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Fazendo um paralelo interessante, o revogado Código Civil previa a existência do curador do vínculo para defender o casamento em caso de ação de anulação, enquanto o atual diploma incumbe o testamenteiro de proteger o testamento dos ataques de herdeiros, legatários ou terceiros, com o objetivo de fazer cumprir a última vontade do falecido. Problema surge se a nulidade for evidente e inquestionável, ou se contiver disposição ilegal. Explica Washington de Barros Monteiro que surgem duas correntes em dissídio: “A primeira afirma que o testamenteiro não se acha obrigado a sustentar os atos de última vontade que não se revistam de validade, ou que encerrem cláusulas ilegais. É o ponto de Clóvis Beviláqua. Para outros, todavia, lícito não é ao testamenteiro transigir acerca da validade do ato; cabe-lhe, portanto, sem vacilações, não importam as circunstâncias, pugnar pela sua subsistência e legitimidade. Nesse sentido, Pontes de Miranda” (Curso..., 2003, v. 6, p. 267). A segunda corrente, adotada pelo autor, entende que se o testamenteiro não quiser defender o testamento deverá desistir do cargo. Parece-nos mais lógica e adequada ao princípio da boa-fé a primeira das duas correntes. Imagine-se o caso em que o testador lega um bem a João com o encargo de assassinar certa pessoa. Como defender o indefensável? A cláusula é nula. Entretanto, se dúvidas houver quanto à sua validade, o testamenteiro deve defender a vontade do morto com persistência. Mais uma vez, a decisão se dá à luz do caso concreto e da eticidade.
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4.ª função – Requerer o inventário dos bens, caso esteja na posse da herança – testamentaria a título universal (art. 1.978 do CC). Dúvida que surge, nesse caso, é quem responde se o inventário não for aberto no prazo legal de 30 dias pelo Código Civil (60 dias pelo CPC), gerando a imposição de multa ao espólio. Pela essência de mandato desta testamentaria universal, sendo inerente ao ato a boa administração por conta do testamenteiro, ousamos imputar a ele tal multa no caso de não abertura do inventário por sua conduta culposa ou dolosa. Porém, pela sistemática lógica da responsabilidade civil, se tal impossibilidade for causada por conduta de algum ou de todos os herdeiros, haverá excludente de responsabilidade para o testamenteiro ou, eventualmente, responsabilidade concorrente. 5.ª função – Cumprir as demais atribuições previstas no testamento pelo próprio testador, nos limites da lei (art. 1.982 do CC) e as determinadas por lei (art. 1.137 do CPC). Cabe ao testamenteiro defender a posse dos bens da herança (art. 1.137, III, do CPC). Para tanto, pode se valer da legítima defesa da posse, do desforço pessoal ou das ações possessórias (art. 1.210 do CC). De acordo com o sentido da testamentaria, representando o instituto uma espécie de mandato especial, conforme expusemos, deverá o testamenteiro agir de acordo com as disposições de vontade estabelecidas pelo autor da herança. Assim é, pois a testamentaria é similar ao mandato pelo elemento fidúcia, eis que o mandatário não pode
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desprezar as orientações do mandante, por representar marcha no sentido contrário à representação. Finalmente, é de se lembrar a advertência consubstanciada no final do art. 1.982 do CC: nos limites da lei. Dessa forma, não podem essas obrigações secundárias se sobreporem às atividades inerentes à administração do testamento. Exatamente por isso o testamenteiro terá que prestar contas, ainda que o testador as dispense (art. 1.135, parágrafo único, do CPC). 3.12.3 Do direito à vintena O principal direito do testamenteiro será o de receber uma remuneração pelo seu trabalho e esforço despendido. Essa remuneração se chama prêmio ou vintena. Chama-se vintena porque na falta de determinação do testador, o testamenteiro recebe 1/20 avos ou 5% sobre a herança líquida, fixando o juiz o valor de acordo com a dificuldade na execução do testamento (art. 1.987 do CC e art. 1.138 do CPC). De Plácido e Silva demonstrava, com o brilhantismo que lhe era peculiar, a origem histórica da expressão, até o advento do Código Civil de 1916: “Na linguagem testamentária, a vintena vem, tradicionalmente, designando a retribuição, ou a comissão que cabe ao testamenteiro, em compensação aos serviços que presta na execução do testamento. E, originariamente, assim se fixou a expressão porque era essa retribuição correspondente à vigésima parte do valor apurado no espólio.
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Modernamente, o Código Civil chama-a de prêmio. E, nos termos no Dec. n. 834, de 1.851, deixou de ser a vigésima parte (vintena), para ser fixada na base de 5% sobre a terça, quando não estipulada expressamente pelo testador. O Código Civil estabeleceu nova regra, no art. 1.756. A vintena será de um quinto (5%) sobre o valor líquido da herança, quando não há herdeiros necessários, ou sobre a metade disponível, em caso contrário, desde que o testador não a tenha estabelecido” (Vocabulário jurídico, 1976, v. IV, p. 1.657).
O Código de Processo Civil determina que o prêmio não pode exceder os 5% (art. 1.138, § 1.º, do CPC), nos termos também do revogado Código Civil de 1916 (art. 1.766 do CPC). No sistema atual, impõem-se limites mínimos e máximos para a fixação da remuneração do testamenteiro (1 a 5% conforme art. 1.987) e dificilmente o juiz fixará importância superior aos 5% previstos em lei, quer seja pela tradição da vintena, quer seja pela ausência, na maioria dos casos, de trabalho que o exija. Quando a lei determina que o cálculo incida sobre a herança líquida, deve-se apenas considerar a herança objeto do testamento e não todos os bens deixados pelo falecido. Conforme afirmam Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 319) e Maria Helena Diniz (Curso..., 2005, v. 6, p. 287), a legítima não deve ser computada. No mesmo sentido, Clóvis Beviláqua esclarece que “a herança a que se refere o Código é a testamentária, pois que, para a execução da última vontade do falecido, é que existe o testamenteiro, que nada tem com a sucessão legítima. Se a sucessão for em parte legítima e em parte testamentária, por ter o de cujus usado do seu direito de disposição mortis causa, somente sobre a parte contemplada em
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testamento deve ser calculado o prêmio” (Código Civil..., 1955, v. VI, p. 197). O valor deverá ser pago da parte disponível se houver herdeiro necessário (art. 1.987, parágrafo único, do CC). O motivo da regra é que não deve o herdeiro necessário sofrer redução da legítima para que o testamento seja cumprido, nem se cogita que os herdeiros paguem tal quantia com seus bens pessoais. A determinação da lei apenas indica de qual parte da herança deve sair o pagamento do prêmio. Nesse sentido, ilustre-se com decisão do Tribunal de Minas Gerais: “O prêmio a ser pago ao testamenteiro deverá ser retirado da parte disponível da herança. A lei dispõe que a vintena deve ser retirada da herança, e não do patrimônio dos herdeiros. Assim, consoante o art. 1.017 e seu § 3.º, podem ser separados bens, tantos quantos forem necessários para o pagamento do prêmio do testamenteiro e nos termos do § 4.º, se o testamenteiro requerer que, em vez de dinheiro, lhe sejam adjudicados, para o seu pagamento, os bens já reservados, o Juiz pode lhe deferir a adjudicação dos bens suficientes para o pagamento de seu prêmio, que constitui dívida do espólio de não dos herdeiros. Impossível condicionar a entrega do formal de partilha e a adjudicação integral dos bens, de forma genérica, ao pagamento do prêmio, o que ofende as disposições do referido art. 1.017” (TJMG, Processo 1.0702.98.009407-3/002(1), Rel. Des. Vanessa Verdolim Hudson Andrade, j. 12.06.2007).
Isso não quer dizer que o cálculo da vintena seja necessariamente sobre a parte disponível como um todo. Isso porque se o testador legou apenas um imóvel a seu sobrinho, a vintena deve ser calculada sobre o valor deste bem e não sobre toda a parte disponível. Conforme explica
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Silvio Rodrigues, se, “por testamento, só abranger parte dos bens, o testamenteiro terá direito a uma percentagem apenas sobre os valores abrangidos em testamento” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 281). Nesse sentido decidiu o mesmo Tribunal Mineiro: “Inventário. Testamento. Vintena. Testamenteiro. Herança líquida. Improvimento da irresignação. Inteligência do art. 1.987 do Código Civil e art. 1.138 do CPC. A herança líquida que servirá como base de cálculo para a incidência da percentagem determinada pelo Julgador monocrático limita-se à herança testamentária, ou seja, a porção distribuída em testamento” (TJMG, Processo 1.0518.04.072649-0/001(1), Rel. Des. Dorival Guimarães Pereira, j. 12.01.2006).
Entretanto, em sentido contrário, já entendeu o Superior Tribunal de Justiça que: “Testamenteiro. Prêmio tem como base de cálculo o total da herança líquida, ainda que haja herdeiros necessários, e não apenas a metade disponível, ou os bens de que dispôs em testamento o de cujus. Pelo pagamento, entretanto, não responderão as legítimas dos herdeiros necessários, deduzindo-se o prêmio da metade disponível” (3.ª T., REsp 39.891/SP, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 04.10.1994, DJ 24.10.1994, p. 28.753).
Outro problema que surge é: teria o herdeiro ou o legatário nomeado como testamenteiro em testamento o direito à vintena? Pela redação do art. 1.988 do Código Civil, a resposta é negativa: “O herdeiro ou o legatário nomeado testamenteiro poderá preferir o prêmio à herança ou ao legado”.
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Nesse diapasão, pela leitura do dispositivo conclui-se que só o testamenteiro que não foi nomeado herdeiro ou legatário pelo testador teria o direito ao prêmio, já que, se nomeado, a remuneração seria desnecessária em razão dos bens que recebeu em testamento. Entretanto, permite o artigo em questão que ele faça uma opção. Caso a coisa legada ou a herança deixada sejam de valor inferior à vintena, pode o testamenteiro preferir a vintena, abrindo mão, portanto, dos bens que receberia pela disposição testamentária. O espírito da lei é que se o testador deixou bens ao testamenteiro, sua remuneração não será necessária, pois já foi compensado pelos serviços em decorrência dos bens que receberá. Por outra via, como lembra Maria Helena Diniz “se o testador expressamente autorizar, poderá o testamenteiro receber cumulativamente prêmio e legado ou herança” (Curso..., 2005, v. 6, p. 286). Da mesma forma, não terá direito ao prêmio o testamenteiro casado sob o regime da comunhão de bens com herdeiro ou legatário do testador, que, também, poderá optar entre receber os bens testados ou a vintena (art. 1.138, § 2.º, do CPC). Já se o testamenteiro for herdeiro legítimo não beneficiado pelo testamento, sua condição de herdeiro não decorre do testamento, mas “preponderante, da lei. A vontade do testador entra em segunda linha. Por nosso direito, a testamentária é cargo remunerado; se o herdeiro legítimo tivesse de exercê-lo sem direito a prêmio, seria gratuito, mas gratuito somente para ele, que para os demais seria remunerado” (BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil..., 1955, v. VI, p. 195). Assim, conclui-se que o herdeiro
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legítimo, quando testamenteiro, teria direito à vintena. Em sentido contrário, entendendo que não teria o herdeiro legítimo direito à vintena, temos Washington de Barros Monteiro que segue as lições de Carvalho Santos e Carlos Maximiliano (Curso..., 2003, v. 6, p. 270). Como bem lembra Silvio Rodrigues, “após alguma hesitação, hoje a grande maioria dos doutrinadores e dos julgados entende que o herdeiro legítimo tem direito à vintena quando exercer a testamentaria” (Direito civil..., 2002, v. 7, p. 281). O pagamento do prêmio será feito em dinheiro em decorrência da aplicação do princípio do nominalismo, previsto no art. 315 do CC em vigor. Em regra, não é permitido o pagamento em bens, salvo nas hipóteses em que o testamenteiro for meeiro, entenda-se o caso de ser cônjuge do falecido casado pelo regime da comunhão de bens. Ainda que as dívidas absorvam todo o acervo, a retribuição continua devida e será arbitrada pelo juiz, tirando-se do monte (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., 2003, v. 6, p. 271). Perde o direito ao prêmio o testamenteiro que for removido ou não der cumprimento ao testamento (art. 1.989 do CC). Na hipótese em que o testamenteiro perder a vintena em decorrência de má administração, haverá uma cláusula de reversão presumida, retornando o prêmio ao monte-mor, para ser distribuído entre os herdeiros necessários, se for o caso, ou entre os herdeiros testamentários. Se o prêmio for arbitrado pelo juiz, não há que se falar em reversão, eis que a vintena não é sequer destacada do montante sucessório para pagamento do testamenteiro.
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No caso de substituição do testamenteiro por nomeação do Magistrado, terá o novo administrador direito ao prêmio, devido caráter remuneratório da testamentaria. 3.12.4 Da extinção da testamentaria A forma normal de extinção se verifica quando o testamenteiro cumpre sua função, executando as disposições testamentárias e prestando contas de sua administração. Em resumo, a extinção normal ocorre com o cumprimento do mandato especial. Todavia, a extinção pode ocorrer antes de seu termo, pela vontade do testamenteiro ou por remoção requerida pelos herdeiros ou interessados. No caso de vontade do testamenteiro, deverá requerer a demissão do encargo ao juiz, alegando causa legítima, sendo que, depois de ouvidos os interessados e o Ministério Público, o juiz decidirá (art. 1.141 do CPC). Já a remoção ocorre quando forem glosadas despesas ilegais ou em discordância com o testamento (art. 1.140, I, do CPC) ou, ainda, se o testamenteiro não cumprir as disposições testamentárias (art. 1.140, II, do CPC). Como o testamenteiro pode estar na administração da herança, deverá prestar contas de seu mister. Caso das contas apresentadas forem glosadas (retiradas) as despesas, entende-se que o testamenteiro não agiu corretamente e perderá o cargo e o direito à vintena (art. 1.989 do CC e art. 1.140 do CPC). Concordamos com Sílvio de Salvo Venosa que “sempre, há que se conceder direito de defesa ao testamenteiro. Situação haverá, contudo, em que a suspensão imediata do cargo se faz necessária,
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dependendo da gravidade da situação enfrentada. Pode o juiz usar do poder geral de cautela conferido pelo CPC” (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 321).
3.13 RESUMO ESQUEMÁTICO
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3.14 QUESTÕES CORRELATAS 1. (Defensoria Pública/RS – 2011) Assinale a alternativa que contém a afirmação correta em relação ao assunto indicado. Direito das Sucessões. (A) Na sucessão universal, o direito de propriedade imobiliária transmite-se quando do registro dos formais de partilha no Ofício do Registro de Imóveis. (B) Conforme regra expressa do Código Civil, são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes, os cônjuges e os companheiros. (C) O testador não pode, mesmo justificando, estabelecer cláusula de impenhorabilidade sobre os bens da legítima. (D) O direito de representação, no direito sucessório, dá-se apenas na linha reta descendente e ascendente. (E) O prazo de decadência para anular disposição testamentária inquinada de coação é de quatro anos, contados de quando o interessado tiver conhecimento do vício. 2. (MP/ES – 2005) O testamento cerrado será aberto: (A) Por um dos herdeiros. (B) Por um escrevente autorizado pelo tabelião. (C) Pelo juiz. (D) Pela viúva meeira. (E) Pelo tabelião que o lavrou.
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3. (19.º PGR/MPF – Procurador da República – 2002) A respeito do testamento, podemos afirmar que: (A) apresentando o testamento cerrado violação externa, deverá o juiz declará-lo nulo; (B) o direito de acrescer beneficia o herdeiro, quando, além de seu quinhão determinado, for nominado substituto do quinhão de outro herdeiro que não possa ou não queira recebê-lo; (C) o testamento comporta condição suspensiva ou resolutiva, mas a impossibilidade ou ilicitude da mesma invalida o testamento; (D) quando o testador declara o motivo da liberalidade, como razão determinante, verificada a falsa causa, é possível sua anulação por erro. 4. (MP/MG INCORRETA.
XLVI)
Assinale
a
alternativa
(A) Público é o testamento lavrado no Cartório Civil de Pessoas Naturais, ditado pelo testador, na presença de duas testemunhas, perante o oficial e assinado por todos. (B) O cônjuge, casado em regime de separação convencional, separado de fato há quinze meses, concorre com os descendentes comuns, deixados pelo falecido. (C) A morosidade na aplicação dos recursos pertencentes ao tutelado, evitando perda do poder de compra do dinheiro, obriga o tutor a ressarcir por eventuais prejuízos causados. (D) A oposição dos impedimentos matrimoniais é facultada a qualquer pessoa maior e capaz, tendo ou não relacionamento com os nubentes.
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(E) O MP, vencido o prazo de existência da fundação, promoverá a sua extinção, providenciando a incorporação do patrimônio a outra congênere. 5. (TJ/MT – 2004) Cleusa, solteira e sem descendentes ou ascendentes, deixou todos os seus bens, em partes iguais, para suas duas primas, Maria e Antônia, por meio de testamento cerrado. Por ocasião da morte da testadora, Maria já havia falecido, deixando como herdeiros necessários seus filhos, João e Pedro. Antônia, uma das beneficiárias do testamento, promoveu a abertura do inventário. Considerando a situação hipotética apresentada, assinale a opção correta. (A) Antônia é a herdeira universal dos bens deixados por Cleusa, porque Maria, tendo falecido antes da testadora, não possui capacidade jurídica para herdar ou transmitir a herança como legatária. (B) A quota-parte da beneficiária Maria, falecida antes da testadora, deve ser dividida entre os seus herdeiros legítimos. (C) Na situação considerada, não houve disposição testamentária determinando o quinhão de cada legatária, pois receberam em partes iguais. Por se tratar de testamento cerrado, o quinhão deixado à herdeira testamentária premorta deve ser objeto de decisão em ação própria, em que o juiz deverá interpretar a vontade da testadora. (D) A cláusula testamentária que determinou que os bens ficarão em partes iguais para Maria e Antônia tem de ser interpretada como destinação conjunta, havendo solidariedade entre as colegatárias. Assim, o patrimônio foi deixado a duas
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pessoas e, como uma das beneficiárias faleceu, o acervo patrimonial passará integralmente à sobrevivente. 6. (TJ/SP 177.º) Sobre sucessão testamentária, assinale a resposta correta. (A) Em testamento, pode o testador dispor livremente de seus bens, dentro da quota do disponível e respeitada a legítima dos herdeiros necessários; mas, se a disposição testamentária extravasar, em valores ou bens, a quota do disponível, e alcançar a legítima dos herdeiros necessários, nulo será o testamento. (B) O legado de usufruto, sem fixação de tempo, entende-se vitalício para o legatário; mas, se ele falecer antes do testador, caducará o legado, sem que os herdeiros dele, legatário, possam sucedêlo, recolhendo o legado por representação a qualquer título. (C) A pena cominada por sonegados, em que o herdeiro sonega bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam em seu poder, ou omitindo-os à colação a que estiver obrigado a levá-los, é da perda, pelo herdeiro que assim proceder, da metade do seu quinhão hereditário, que lhe será aplicada, antes da partilha, nos próprios autos do inventário. (D) As doações em vida, como antecipação da legítima a algum herdeiro necessário, estão sujeitas à colação, a fim de igualar as legítimas dos herdeiros, só podendo ser dispensada em testamento e desde que expressamente assim disposto pelo testador.
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7. (MP/SP 84.º) Assinale a alternativa falsa. (A) O testador pode impor cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade sobre a parte disponível. (B) O testador pode impor cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade sobre os bens da legítima, desde que declare a existência de justa causa. (C) Se o legatário falecer antes do testador, o legado poderá ser vindicado pelos herdeiros do legatário, desde que o façam no prazo previsto em lei. (D)
O legado é testamentária.
figura
exclusiva
da
sucessão
(E) É válida a disposição testamentária em favor de pessoa incerta que deva ser determinada por terceiro, dentre duas ou mais pessoas mencionadas pelo testador. 8. (MP/GO – 2005) Examine as assertivas abaixo: I – Na falta de descendentes e de ascendentes do morto, ao cônjuge sobrevivente será deferida a sucessão por inteiro, salvo se casado no regime de comunhão universal de bens com o autor da herança. II – Permite-se ao testador estabelecer cláusulas restritivas (inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade) sobre os bens da porção disponível. Vedada é, porém, em qualquer caso, a imposição de tais cláusulas sobre os bens da legítima. III – Para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar.
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IV – Na linha transversal, somente se dá o direito de representação em favor dos filhos de irmãos do falecido, quando com irmão deste concorrerem. (A) I e II são corretas; (B) II e III são corretas; (C) III e IV são corretas; (D) I e IV são corretas. 9. (Procurador do Estado/PR – 2002) Antônio, casado com Maria, é proprietário de um único imóvel, situado no município de Londrina. O bem foi adquirido antes do casamento, celebrado sob o regime de comunhão parcial de bens, de modo que se trata de bem particular do cônjuge varão. O casal não tem filhos. Os pais de Antônio são falecidos. Em 1998, Antônio faz testamento em que deixa como legado, para o Estado do Paraná, o único imóvel de sua propriedade, excluindo da sucessão sua esposa Maria. Em dezembro de 2001, Antônio vem a falecer. Todavia, em janeiro de 2002, Maria dá à luz um filho de Antônio que, nada obstante isso, nasce morto. Tal fato é devidamente constatado mediante perícia. A partir dos fatos narrados examine as seguintes afirmações: I) O Estado não fará jus ao legado, uma vez que, com o falecimento do filho do casal, herdeiro necessário, Maria herdará a integralidade do bem, exercendo seu direito de representação. II) O Estado fará jus ao legado, o que não ofende a disposição do Código Civil que põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
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III) Maria é herdeira necessária de Antônio, e não poderia ter sido excluída da sucessão. IV) O Estado do Paraná fará jus apenas a metade do imóvel legado, uma vez que, diante do direito de Maria sobre a legítima, impõe-se a redução da liberalidade inoficiosa praticada por Antônio. ALTERNATIVAS: (A) Estão corretas apenas as afirmações III e IV. (B) Estão corretas apenas as afirmações I e III. (C) Está correta apenas a afirmação I. (D) Está correta apenas a afirmação II. (E) Está correta apenas a afirmação III. 10. (TJ/SP 175.º) Assinale a alternativa incorreta a respeito do Direito das Sucessões. (A) O direito à sucessão aberta pode ser objeto de cessão por escritura pública, mas o coerdeiro não poderá ceder a sua quota hereditária a pessoa estranha à sucessão, se outro coerdeiro a quiser, tanto por tanto. (B) Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. (C) Na sucessão testamentária, não podem ser chamadas a suceder as pessoas jurídicas. (D) Em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz.
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11. (Magistratura/BA – CESPE/2012) Acerca do direito das sucessões, assinale a opção correta. (A) Testamento feito por deficiente mental se valida com a superveniência da capacidade. (B) É vedada a retratação da renúncia à herança, ainda que essa retratação não prejudique os credores. (C) Lei nova, se mais benéfica aos herdeiros, pode disciplinar sucessão aberta na vigência de lei anterior. (D) Falecido o herdeiro testamentário antes da morte do testador, seus descendentes, se houver, o sucederão. (E) Estando mortos todos os filhos do de cujus, os netos sucederão no direito à herança, de acordo com as quotas destinadas aos seus respectivos pais. 12. (VUNESP/Magistratura/RJ/2012) A revogação do testamento (A) não produzirá seus efeitos, ainda quando o testamento, que a encerra, vier a caducar por exclusão, incapacidade ou renúncia do herdeiro nele nomeado, assim como se o testamento revogatório for anulado por omissão ou infração de solenidades essenciais ou por vícios intrínsecos. (B) não produzirá seus efeitos, ainda quando o testamento, que a encerra, vier a caducar por exclusão, incapacidade ou renúncia do herdeiro nele nomeado; valendo, todavia, se o testamento revogatório for anulado por omissão ou infração de solenidades essenciais ou por vícios intrínsecos.
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(C) produzirá seus efeitos, ainda quando o testamento, que a encerra, vier a caducar por exclusão, incapacidade ou renúncia do herdeiro nele nomeado; não valerá, se o testamento revogatório for anulado por omissão ou infração de solenidades essenciais ou por vícios intrínsecos. (D) produzirá seus efeitos, ainda quando o testamento, que a encerra, vier a caducar por exclusão, incapacidade ou renúncia do herdeiro nele nomeado ou quando o testamento revogatório for anulado por omissão ou infração de solenidades essenciais ou por vícios intrínsecos. 13. (MP/MG XLIII – 2003) É correto afirmar, EXCETO: (A) A posse pode ser adquirida por terceiro, mesmo sem mandato, mas pendente de ratificação. (B) contrato, título à propriedade fiduciária, deverá, necessariamente, conter a descrição da coisa objeto da transferência, o total da dívida e a taxa de juros, se houver. (C) usufruto pode recair em títulos de crédito e, neste caso, o usufrutuário tem direito a cobrar as respectivas dívidas. (D) direito de representação na linha transversal se dá somente em favor dos filhos de irmãos do falecido, se com irmãos deste concorrerem. (E) direito de demandar a exclusão dos herdeiros extingue-se em quatro anos, a partir do falecimento do autor da herança e não são válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de boa-fé antes da sentença de exclusão.
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14. (MP/PB – 2005) Analise as assertivas sobre sucessão: I – Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por estirpe, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer; II – São herdeiros necessários apenas os descendentes e os ascendentes; III – É proibido o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo. Assinale a única opção correta: (A) Apenas a assertiva I é verdadeira; (B) Apenas a assertiva II é verdadeira; (C) Apenas a assertiva III é verdadeira; (D) As assertivas I e II são verdadeiras; (E) As assertivas I e III são verdadeiras.
GABARITO 1–E
2–C
3–D
4–A
5–B
6–B
7–C
8–C
9–D
10 – C
11 – B
12 – C
13 – E
14 – C
DO INVENTÁRIO E DA PARTILHA
Sumário: 4.1 Do inventário. Conceito e procedimentos – 4.2 Das espécies de inventário e seus procedimentos: 4.2.1 Inventário judicial; 4.2.2 Inventário extrajudicial ou por via administrativa – 4.3 Da pena de sonegados – 4.4 Do pagamento das dívidas – 4.5 Da colação ou conferência e redução das doações inofi ciosas: 4.5.1 Colação; 4.5.2 Redução das doações inofi ciosas – 4.6 Da partilha: 4.6.1 Partilha amigável ou extrajudicial; 4.6.2 Partilha judicial; 4.6.3 Partilha em vida – 4.7 Da garantia dos quinhões hereditários. A responsabilidade pela evicção –
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4.8 Da anulação, da rescisão e da nulidade da partilha – 4.9 Dos pedidos de alvarás em inventário – 4.10 Resumo esquemático – 4.11 Questões correlatas – Gabarito.
4.1 DO INVENTÁRIO. CONCEITO E PROCEDIMENTOS A encerrar a presente obra, é interessante o estudo do último título do direito sucessório, referente à sua instrumentalização, particularmente do inventário e da partilha. Na verdade, os institutos abordados a partir do presente momento complementam tudo o que foi visto anteriormente. Maria Helena Diniz conceitua o inventário como sendo “o processo judicial (CC, art. 1.796; CPC, art. 982) tendente à relação, descrição, avaliação e liquidação de todos os bens pertencentes ao de cujus ao tempo de sua morte, para distribuí-los entre seus sucessores” (Curso..., v. 6, p. 368). Ensina Zeno Veloso que o inventário tem por objetivo a arrecadação, a descrição e a avaliação dos bens e outros direitos pertencentes ao morto, bem como a discriminação, o pagamento das dívidas e dos impostos e os demais atos indispensáveis à liquidação do montante que era do falecido (Novo Código Civil..., 2006, p. 1.657). O que se almeja, nesse contexto, é a liquidação dos bens e a divisão patrimonial do acervo hereditário. Quanto ao instituto, há um único dispositivo inicial no Código Civil de 2002, o art. 1.991, segundo o qual: “Desde a assinatura do compromisso até a homologação da
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partilha, a administração da herança será exercida pelo inventariante”. Como exposto, o inventariante é o administrador do espólio, conjunto de bens formado com a morte de alguém, que constitui um ente despersonalizado. Age o inventariante com um mandato legal, após a devida nomeação pelo juiz. Na realidade, os principais procedimentos quanto ao inventário estão previstos no Código de Processo Civil, particularmente entre os seus arts. 982 a 1.021. Apesar de alguns desses dispositivos do CPC já terem sido comentados, para fins didáticos é interessante fazer uma análise detalhada desses comandos legais no presente capítulo, visando a facilitar o seu estudo pelo leitor. O primeiro deles é o art. 982 do CPC, alterado pela edição da Lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007. Em sua redação original, determinava a lei que se procederia ao inventário judicial, ainda que todas as partes fossem capazes. Assim, em regra, o procedimento de inventário era tido como o procedimento necessário para a partilha de bens do falecido, mesmo havendo plena capacidade e acordo entre os seus herdeiros. Por outro lado, com a aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei 4.725/2004, convertido na Lei 11.441/2007, a questão foi profundamente alterada. A redação atual do art. 982, já alterada pela Lei 11.965/2009 pela menção ao defensor público, é a seguinte: “Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário. § 1.º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados
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de cada uma delas ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. § 2.º A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei”. Note-se que em sendo as partes capazes e inexistindo testamento, poderão os herdeiros optar pelo inventário extrajudicial. Não se trata de forma obrigatória, mas sim facultativa. Caso prefiram o inventário judicial ao extrajudicial, poderão os herdeiros dele se utilizar seguindo todas as normas do CPC que serão comentadas no presente capítulo. O Código de Processo Civil, pela ordem, também traz regras quanto às colações (arts. 1.014 a 1.016), ao pagamento das dívidas (arts. 1.017 a 1.021), à partilha (arts. 1.022 a 1.030) e ao arrolamento (arts. 1.031 a 1.038). Trata-se de regras procedimentais também importantes no processo de inventário. Por razões didáticas, analisaremos essas regras nos tópicos correspondentes a seguir, após a análise das espécies de inventário e seus correspondentes procedimentos. Ao final do capítulo apresentaremos um esquema com todo o procedimento aqui estudado.
4.2 DAS ESPÉCIES DE INVENTÁRIO E SEUS PROCEDIMENTOS Após a edição da Lei 11.441/2007, a classificação do inventário sofreu profunda alteração. Isso porque o inventário deve ser dividido em judicial e extrajudicial. Assim, primeiramente, serão analisados todos os
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dispositivos do CPC sobre o inventário judicial e, por fim, a questão da forma extrajudicial. 4.2.1 Inventário judicial Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim, em sua obra considerada clássica a respeito do tema, apresentam três espécies de inventário judicial. Vejamos essa importante visão doutrinária (Inventários e partilhas..., p. 338): a) Inventário judicial pelo rito tradicional – está previsto nos arts. 982 a 1.030 do CPC. b) Inventário judicial pelo rito do arrolamento sumário – está previsto no art. 1.031 do CPC, sendo cabível quando todos os interessados forem maiores e capazes, abrangendo bens de quaisquer valores. c) Inventário judicial pelo rito do arrolamento comum – está previsto no art. 1.036 do CPC, sendo cabível quando os bens do espólio forem de valor igual ou menor que 2.000 OTN.
Partimos ao estudo dessas modalidades de inventário judicial, de forma pontual. 4.2.1.1 Inventário judicial pelo rito tradicional – arts. 982 a 1.030 do CPC O art. 983 do CPC, outrora comentado, enuncia que o inventário e a partilha devem ser requeridos dentro de 60 (sessenta) dias a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subsequentes. Deve-se ressaltar que o parágrafo único desse dispositivo, que
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previa a possibilidade de o juiz da causa dilatar o último prazo havendo motivo justo, foi revogado pela Lei 11.441/ 2007. Atualmente, determina o art. 983 do CPC que o juiz pode prorrogar o prazo de ofício ou a requerimento das partes. Como estudado, a grande crítica que se faz ao dispositivo é que ele não consagra sanção em caso de descumprimento do mencionado prazo. No entanto, a ausência de previsão não impede que cada Estado institua uma multa como sanção pelo retardamento do início ou da ultimação do inventário, não havendo qualquer inconstitucionalidade (Súmula 542 do STF). A legitimidade para requerer a abertura do inventário e a respectiva partilha consta no art. 987 do CPC, a favor de quem estiver na posse e na administração do espólio. Esse requerimento, por óbvio, será instruído com a certidão de óbito do autor da herança (art. 987, parágrafo único, do CPC). Nos termos do art. 988 do CPC, têm, contudo, legitimidade concorrente para requerer a abertura: I – o cônjuge supérstite; II – o herdeiro; III – o legatário; IV – o testamenteiro; V – o cessionário do herdeiro ou do legatário; VI – o credor do herdeiro, do legatário ou do autor da herança; VII – o síndico da falência do herdeiro, do legatário, do autor da herança ou do cônjuge supérstite;
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VIII – o Ministério Público, havendo herdeiros incapazes; IX – a Fazenda Pública, quando tiver interesse.
Apesar da ausência de menção expressa, o companheiro ou companheira do falecido tem legitimidade para a abertura do inventário. Ademais, debatia-se se o companheiro homoafetivo também teria a referida legitimidade. Com a decisão do Supremo Tribunal Federal de maio de 2011, não resta a menor dúvida quanto à equiparação da união homoafetiva à união estável entre pessoas de sexos distintos, o que engloba as regras relativas ao inventário (ver Informativo n. 625 do STF). Segundo a jurisprudência, se o herdeiro não faz a abertura, poderá fazê-lo qualquer credor, justamente pela legitimidade concorrente prevista nesse dispositivo processual: “Inventário. Reclamação. Art. 1.000, inc. II, CPC. Pedido de abertura do processo de inventário e exercício da inventariança. Legitimidade do credor. Existência de herdeiros necessários. Ordem legal. 1. Decorrido in albis o prazo para a abertura do inventário de que trata o art. 983 do CPC, tem legitimidade concorrente qualquer interessado, inclusive o credor do herdeiro. Inteligência do art. 988, inc. VI, CPC. 2. No entanto, essa legitimidade para abrir o inventário não afeta a legitimação para o exercício da inventariança, devendo ser nomeado para tal múnus o herdeiro necessário que estiver na posse dos bens e administração do espólio, já que não há cônjuge supérstite. Inteligência do art. 990, II, do CPC. Recurso provido, por maioria” (TJRS, 7.ª Câmara Cível, Proc. 70010615953, Juiz Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Origem: Comarca de Caxias do Sul, j. 23.02.2005).
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Caso nenhuma das pessoas mencionadas nos últimos dispositivos requeira a abertura do inventário no prazo legal, o juiz poderá fazê-lo de ofício (art. 989 do CPC). Para Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, trata-se de uma exceção ao princípio da inércia da jurisdição, ne procedat judex ex officio, prevista no art. 262 do CPC (Código de Processo Civil..., p. 1.016). Nesse sentido já se decidiu: “Civil. Inventário. Abertura ex officio. Arts. 987 e 988 do CPC. Ao tomar conhecimento de que ultrapassado o prazo (art. 983 do CPC) ninguém requereu a abertura do inventário, o juiz deve fazê-lo de ofício. A norma do art. 989 do CPC é imperativa” (STJ, 3.ª T., REsp 515.034/RS, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 08.03.2007, DJ 26.03.2007, p. 231). Como não poderia ser diferente, pensamos como os renomados juristas paulistas e concordamos com o julgado mencionado. O administrador do inventário é denominado inventariante. Até que o inventariante preste o compromisso, continuará o espólio na posse do administrador provisório nomeado pelo juiz (art. 985 do CPC). Já explicamos que esse administrador representa ativa e passivamente o espólio, sendo obrigado a trazer ao acervo os frutos que desde a abertura da sucessão foram percebidos. Além disso, tem o administrador direito ao reembolso das despesas necessárias e úteis que fez na administração, respondendo pelo dano a que, por dolo ou culpa, der causa quando da sua atuação (art. 986 do CPC). Como se vê, a sua responsabilidade depende da prova de culpa, sendo, portanto, hipótese de responsabilidade subjetiva. O tratamento do administrador é o mesmo previsto para um
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possuidor de boa-fé, eis que ele exerce um mandato legal, por nomeação do juiz da causa. O art. 990 do CPC enuncia as pessoas que podem ser nomeadas pelo juiz como inventariante, a saber: “I – o cônjuge ou companheiro sobrevivente, desde que estivesse convivendo com o outro ao tempo da morte deste; II – o herdeiro que se achar na posse e administração do espólio, se não houver cônjuge ou companheiro sobrevivente ou estes não puderem ser nomeados; III – qualquer herdeiro, nenhum estando na posse e administração do espólio; IV – o testamenteiro, se lhe foi confiada a administração do espólio ou toda a herança estiver distribuída em legados; V – o inventariante judicial, se houver; VI – pessoa estranha idônea, onde não houver inventariante judicial”.
Note-se que o dispositivo em questão foi alterado pela Lei 12.195, de 2010, que trouxe duas interessantes mudanças. A primeira é aquela que extirpou do Código de Processo Civil a regra pela qual apenas seria nomeado inventariante o cônjuge casado pelo regime da comunhão de bens. A mudança é curiosa, mas tem sua razão de ser. Pelas regras sucessórias atuais, ainda que o cônjuge seja casado pelo regime da separação convencional de bens, e inexista meação, poderá ser herdeiro em concorrência com os descendentes, nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil (cf. Capítulo 2). A segunda mudança é aquela que acrescentou o companheiro ao rol de possíveis inventariantes. Mesmo antes
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da alteração legal, em razão da proteção constitucional da união estável constante do art. 226, § 3.º, da CF/1988, já lhe era garantido tal direito, que, agora, passa a ser reconhecido pela lei ordinária. Por óbvio que a norma do Estatuto Processual estava desatualizada, uma vez que foi elaborada em período anterior ao reconhecimento da união estável como entidade familiar. Nesse sentido, aos Tribunais cumpria o dever de suprir a lacuna legal existente até a reforma de 2010. Ilustrando: “Inventário. Companheira do de cujus que pretende nomeação como inventariante. Inteligência do art. 990, inciso I, do CPC. Observados § 3.º do art. 226 da CF e arts. 1.790 e 1.797 do Código Civil. Recurso provido” (TJSP, Agravo de Instrumento 378.513-4/9-, 5.ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, Rel. Francisco Casconi, j. 27.07.2005, v.u.) “Agravo de Instrumento. Inventário. Nomeação da companheira para o exercício da inventariança. Alegação de ofensa à ordem estabelecida pelo art. 990 do CPC. Inocorrência. I – Não contraria o artigo 990 do Código de Processo Civil a decisão que nomeia como inventariante pessoa que conviveu em união familiar estável com o extinto, durante mais de quatro anos, e que, inclusive, está na administração dos bens por ele deixados. II – A ordem estabelecida no art. 990 do CPC, não se reveste de caráter absoluto, podendo ser inobservada quando verificado pelo Juiz, a existência de pessoa mais apta para o exercício da inventariança. III – Havendo reconhecimento expresso por parte da agravante da convivência ‘more uxório’ da agravada com o inventariado, desnecessário se mostra o ajuizamento de ação para o reconhecimento judicial da união estável, podendo a companheira ser nomeada inventariante. Recurso conhecido e
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improvido. Decisão unânime” (TJSE, Agravo de Instrumento 2001203806, Des. Clara Leite de Rezende, j. 18.11.2002).
A união estável é entidade familiar constitucionalmente protegida, não havendo qualquer razão para não se admitir o companheiro do falecido como inventariante. Com relação ao tema, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já admitia, inclusive, a legitimidade do companheiro homoafetivo: “Sucessões. Inventário. Agravo de instrumento. União homoafetiva. Nomeação do sedizente companheiro como inventariante. Possibilidade no caso concreto. Ainda que a alegada união homoafetiva mantida entre o recorrente e o de cujus dependa do reconhecimento na via própria, ante a discordância da herdeira ascendente, o sedizente companheiro pode ser nomeado inventariante por se encontrar na posse e administração consentida dos bens inventariados, além de gozar de boa reputação e confiança entre os diretamente interessados na sucessão. Deve-se ter presente que inventariante é a pessoa física a quem é atribuído o múnus de representar o espólio, zelar pelos bens que o compõem, administrá-lo e praticar todos os atos processuais necessários para que o inventário se ultime, em atenção também ao interesse público. Tarefa que, pelos indícios colhidos, será mais eficientemente exercida pelo recorrente. Consagrado o entendimento segundo o qual a ordem legal de nomeação do inventariante (art. 990, CPC) pode ser relativizada quando assim o exigir o caso concreto. Ausência de risco de dilapidação do patrimônio inventariado. Recurso provido (art. 557, § 1.º-A, CPC)” (TJRS, Agravo de Instrumento 70022651475, 7.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Maria Berenice Dias, j. 19.12.2007).
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Repise-se que, com a decisão do Supremo Tribunal Federal de maio de 2011, não resta a menor dúvida sobre a legitimidade do companheiro homoafetivo para o inventário, pois as regras relativas à união estável aplicamse, por analogia, à união homoafetiva (Informativo n. 625 do STF). Assim, decisões como a acima transcrita devem ser constantes em nossos Tribunais. A respeito do inventariante judicial, previsto no inciso V do referido dispositivo, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira apontam ser uma figura totalmente em desuso entre nós (Inventários e partilhas..., 2004, p. 344). Sobre a figura do inventariante dativo (art. 990, VI, do CPC), este “assume os direitos e deveres da inventariança, mas, nos termos do § 1.º do art. 12 do Código de Processo Civil, não é o representante do espólio em Juízo, uma vez que, em tal hipótese, ‘todos os herdeiros e sucessores do falecido serão autores ou réus nas ações em que o espólio for parte’” (AMORIM, Sebastião e OLIVEIRA, Euclides. Inventários e partilhas..., 2006, p. 345). O entendimento majoritário da doutrina é de que o art. 990 do CPC traz uma ordem que deve ser respeitada pelo magistrado (NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil..., 2006, p. 1.017; e DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2005, v. 6, p. 371). Assim sendo, não caberia uma nomeação aleatória pelo juiz da causa, pois a lei presume que as pessoas constantes do dispositivo são, pela ordem, as mais indicadas para assumir a incumbência. Todavia, desta constatação surgem algumas dúvidas práticas.
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A primeira delas refere-se, a saber, se essa ordem é absoluta. O Superior Tribunal de Justiça já entendeu que não: “Inventário. Nomeação de inventariante. Alegação de ofensa ao art. 990 do Código de Processo Civil. Impugnação formulada por um dos herdeiros do de cujus à pessoa nomeada, cessionário de direitos hereditários e dela credor por vultosa soma. Matéria fático-probatória. Recurso especial inadmissível. A ordem prevista no art. 990 do CPC não é absoluta, podendo ser alterada em situação de fato excepcional. Em sede de recurso especial não se reexamina matéria fático-probatória. Incidência da Súmula 7-STJ. Recurso especial não conhecido” (STJ, 4.ª T., REsp 402.891/ RJ (200200013491), 608057 Recurso Especial, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 1.º.03.2005, Sucessivos: REsp 422.081-M 2002/0034112-0, j. 17.03.2005, DJ 02.05.2005, p. 354; REsp 407.952-ES 2002/0009525-7, j. 17.03.2005, DJ 02.05.2005, p. 354, DJ 02.05.2005, p. 353).
Destaque-se que a premissa foi confirmada em julgado mais recente, assim publicado no Informativo n. 373 do STJ, em caso envolvendo nomeação de inventariante dativo: “Nomeação. Inventariante dativo. Noticiam os autos que a justificativa para a nomeação de inventariante dativo foi a animosidade entre as partes: de um lado a viúva, casada sob regime de comunhão universal de bens e a, até então, única filha conhecida do falecido; do outro, o recém-descoberto filho menor, possível herdeiro, representado pela mãe. Apontam que tal animosidade é compreensível e até mesmo esperada, assim como o questionamento quanto à filiação do menor, uma vez que a esposa e a filha só souberam da existência do filho a partir de observação na certidão de óbito
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lançada em função da apresentação da certidão de nascimento do menor, em que o ora falecido anteriormente o reconhecera como filho. Questiona o REsp se houve violação à ordem legal de nomeação de inventariante conforme prevista no art. 990 do CPC. Isso posto, a Min. Relatora observa que este Tribunal já definiu não ter caráter absoluto aquela ordem para nomeação de inventariante, podendo ser alterada em situação de fato excepcional, quando o juiz tiver fundadas razões para tanto, como no caso de existência de litigiosidade entre partes. Diante do exposto, a Turma não conheceu do recurso, pois a firme convicção do juízo formada a partir dos elementos fáticos do processo veda o reexame em REsp (Súm. n. 7-STJ). Precedentes citados: REsp 402.891-RJ, DJ 2/5/2005; REsp 283.994-SP, DJ 7/5/ 2001, e REsp 88.296-SP, DJ 8/2/1999” (STJ, REsp 1.055.633-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 21.10.2008).
Pois bem, a segunda dúvida é saber se a ordem do dispositivo pode ser quebrada por força de testamento que nomeia o inventariante. Entendemos que a previsão de cláusula que nomeia inventariante não obsta que o juiz siga a ordem do art. 990 do CPC, pois este deve ser analisado de acordo com o caso concreto. Pode-se até defender que o dispositivo constitui um preceito de ordem pública, que não pode ser contrariado pela última disposição de vontade do morto. De qualquer forma, vale repetir que a ordem não é absoluta, mesmo sendo a norma cogente. O inventariante, intimado da nomeação, prestará, dentro de cinco dias, o compromisso de bem e fielmente desempenhará o cargo (art. 990, parágrafo único, do CPC). No tocante às suas atribuições, dispõe o art. 12, V, do CPC que o inventariante deve representar ativa e passivamente o espólio. Em complemento, o art. 991 do
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Estatuto Processual em vigor traz essa e outras incumbências ao inventariante, a saber: I – Representar o espólio ativa e passivamente, em juízo ou fora dele, observando-se, quanto ao dativo, o disposto no art. 12, § 1.º, do CPC, já analisado. II – Administrar o espólio, velando-lhe os bens com a mesma diligência como se seus fossem. Na visão atual do Direito Privado, pode-se associar a sua conduta à lealdade decorrente da boa-fé objetiva. III – Prestar as primeiras e últimas declarações pessoalmente ou por procurador com poderes especiais. IV – Exibir em cartório, a qualquer tempo, para exame das partes, os documentos relativos ao espólio. V – Juntar aos autos certidão do testamento, se houver. VI – Trazer à colação os bens recebidos pelo herdeiro ausente, renunciante ou excluído. VII – Prestar contas de sua gestão ao deixar o cargo ou sempre que o juiz lhe determinar. VIII – Requerer a declaração de insolvência do falecido, se for o caso.
Ainda complementando, o art. 992 do CPC lista outras incumbências do inventariante, que necessitam, no entanto, de autorização do juiz da causa e da oitiva dos interessados, sob pena de nulidade absoluta do ato (NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil..., 2006, p. 1.016). Esses atos são: a) alienação de bens de qualquer espécie; b) transação em juízo ou fora dele; c) pagamento de dívidas do espólio; d) pagamento das despesas necessárias para a conservação e o melhoramento dos bens do espólio.
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Seguindo na análise dos procedimentos relacionados com o inventário, preconiza o art. 993 do CPC que dentro de 20 dias, contados da data em que prestou o compromisso, fará o inventariante as primeiras declarações, das quais se lavrará termo circunstanciado. O dispositivo determina ainda que no termo, assinado pelo juiz, escrivão e inventariante, serão exarados: I – o nome, estado, idade e domicílio do autor da herança, dia e lugar em que faleceu, bem ainda se deixou testamento; II – o nome, estado, idade e residência dos herdeiros e, havendo cônjuge supérstite, o regime de bens do casamento; III – a qualidade dos herdeiros e o grau de seu parentesco com o inventariado; IV – a relação completa e individuada de todos os bens do espólio e dos alheios que nele forem encontrados, descrevendo-se: a) os imóveis, com as suas especificações, nomeadamente local em que se encontram, extensão da área, limites, confrontações, benfeitorias, origem dos títulos, números das transcrições aquisitivas e ônus que os gravam; b) os móveis, com os sinais característicos; c) os semoventes, seu número, espécies, marcas e sinais distintivos; d) o dinheiro, as joias, os objetos de ouro e prata, e as pedras preciosas, declarando-se-lhes especificadamente a qualidade, o peso e a importância; e) os títulos da dívida pública, bem como as ações, cotas e títulos de sociedade, mencionando-se-lhes o número, o valor e a data;
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f) as dívidas ativas e passivas, indicando-se-lhes as datas, títulos, origem da obrigação, bem como os nomes dos credores e dos devedores; g) direitos e ações; h) o valor corrente de cada um dos bens do espólio.
Como se pode perceber, a relação é bem detalhada pela lei, e deve ser respeitada para que o processamento do inventário tenha correto seguimento, sem qualquer nulidade processual. Nesse processamento, enuncia o parágrafo único do art. 993 do CPC que o juiz determinará, ato contínuo, que se proceda: ao balanço do estabelecimento, se o autor da herança era comerciante em nome individual; e à apuração de haveres, se o autor da herança era sócio de sociedade não anônima. Os dispositivos a seguir preveem penalidades contra o inventariante. No que concerne à pena de sonegados, que ainda será estudada, expressa o art. 994 do CPC que “só se pode arguir de sonegação ao inventariante depois de encerrada a descrição dos bens, com a declaração, por ele feita, de não existirem outros por inventariar”. Como se sabe, quando for citado, nos termos do art. 999 do CPC, o inventariante herdeiro terá a oportunidade de informar e descrever quais os bens do falecido que estão na sua posse. Se assim não o fizer, estará sujeito às penas legais, que ainda serão abordadas. O art. 995 do CPC trata das hipóteses em que o inventariante pode ser removido. A primeira hipótese de remoção ocorre se não prestar, no prazo legal, as primeiras e
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as últimas declarações. A segunda se efetiva se não der ao inventário andamento regular, suscitando dúvidas infundadas ou praticando atos meramente protelatórios. O terceiro caso de remoção ocorre se, por culpa sua, se deteriorarem, forem dilapidados ou sofrerem danos os bens do espólio. Também será removido o inventariante que não defender o espólio nas ações em que for citado, deixar de cobrar dívidas ativas ou não promover as medidas necessárias para evitar o perecimento de direitos. O quinto caso de remoção está presente quando o inventariante não presta contas ou se aquelas que prestar não forem julgadas boas. Por fim, haverá remoção do inventariante se ele sonegar, ocultar ou desviar bens do espólio. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite a remoção de ofício, sendo interessante a transcrição da seguinte ementa: “Remoção de inventariante. Ausência de cerceamento de defesa. 1. Não se configura o cerceamento de defesa no caso de remoção de inventariante quando está presente o contraditório, e pode o Juiz, constatado qualquer dos vícios do art. 995 do Código de Processo Civil, promover de ofício a remoção. 2. Recurso especial não conhecido” (STJ, 3.ª T., REsp 539.898/MA (200300644088), 616051 Recurso Especial, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 29.03.2005, DJ 06.06.2005, p. 318).
Mesmo sendo admitida essa remoção de ofício, o Código de Processo Civil consagra procedimentos para que esta ocorra. Primeiramente, requerida a remoção com fundamento em quaisquer dos motivos elencados, o inventariante será intimado para, no prazo de cinco dias, defender-se e produzir provas (art. 996). Vale dizer que o
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incidente da remoção correrá em apenso aos autos do inventário (art. 996, parágrafo único, do CPC). Decorrido o prazo, com ou sem a defesa do inventariante, o juiz decidirá (art. 997 do CPC). Se remover o inventariante, o juiz nomeará outro, observada a ordem estabelecida no art. 990 do CPC, já analisado. Mesmo diante do teor da ementa transcrita, percebe-se que o contraditório deve ser instituído no processo de remoção do inventariante. Decidindo pela remoção, o inventariante entregará imediatamente ao substituto os bens do espólio (art. 998 do CPC). No entanto, se deixar de fazê-lo, será compelido mediante mandado de busca e apreensão, no caso de bens móveis, ou de imissão na posse, no caso de bens imóveis. Dando continuidade ao estudo do procedimento de inventário, apresentadas as primeiras declarações, o juiz mandará citar, para os termos do inventário e partilha, o cônjuge, os herdeiros, os legatários, a Fazenda Pública, o Ministério Público, se houver herdeiro incapaz ou ausente, e o testamenteiro, se o finado deixou testamento (art. 999, caput, do CPC). Quanto à forma de citação, serão citadas por oficial de justiça somente as pessoas domiciliadas na comarca por onde corre o inventário ou que aí foram encontradas. Por outra via, serão citadas por edital, com o prazo de 20 a 60 dias, todas as demais, residentes assim no Brasil como no estrangeiro. Tal é a regra do art. 999, § 1.º, do CPC. Em alguns casos em que não há a manifestação do herdeiro, sem que se possa concluir pela aceitação ou recusa, a jurisprudência tem admitido a nomeação de um curador especial e provisório:
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“Citação. Edital. Inventário. Ausência de manifestação das legatárias. Comunicação havida entre as duas legatárias e a advogada do antigo testamento que não permite concluir pela aceitação ou recusa do legado por não aceitação do encargo. Necessidade de nomeação de curador especial que deve ser estendida na espécie. Art. 9.º, II, do Código de Processo Civil. Recurso provido em parte, dispensada a expedição de carta rogatória, devendo ser nomeado curador especial às legatárias citadas por edital” (TJSP, Agravo de Instrumento 315.142-4/4-São Paulo, 1.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Elliot Akel, j. 02.03.2004, v.u.).
Cumpre destacar que o Supremo Tribunal Federal debateu a constitucionalidade da norma, assim concluindo, conforme o seu Informativo n. 523: “O Tribunal, por maioria, desproveu recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, e declarou a constitucionalidade do art. 999, § 1.º, do CPC [“Art. 999. Feitas as primeiras declarações, o juiz mandará citar, para os termos do inventário e partilha, o cônjuge, os herdeiros, os legatários, a Fazenda Pública, o Ministério Público, se houver herdeiro incapaz ou ausente, e o testamenteiro, se o finado deixou testamento. § 1.º Citar-se-ão, conforme o disposto nos arts. 224 a 230, somente as pessoas domiciliadas na comarca por onde corre o inventário ou que aí foram encontradas; e por edital, com o prazo de 20 (vinte) a 60 (sessenta) dias, todas as demais, residentes, assim no Brasil como no estrangeiro.”]. O acórdão recorrido reputara válida a citação, por edital, de herdeiro e de seu cônjuge domiciliados em comarca diversa daquela em que processado o inventário. Os recorrentes alegavam que não deveriam ter sido citados por esse modo, haja vista possuírem endereço certo, e sustentavam ofensa aos princípios da isonomia, da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal no
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reconhecimento da constitucionalidade do referido dispositivo — v. Informativo n. 521. Salientando tratar-se de dispositivo vetusto, que já constava do Código de Processo Civil anterior, entendeu-se que a citação por edital em processo de inventário seria perfeitamente factível, até mesmo para se acelerar a prestação jurisdicional. Ressaltou-se, também, que qualquer irregularidade poderia ser enfrentada nas instâncias ordinárias. Vencido o Min. Marco Aurélio, que dava provimento ao recurso e assentava a inconstitucionalidade do art. 999, § 1.º, do CPC, ao fundamento de que o inventário se processa sob o ângulo da jurisdição voluntária, mas, a partir do momento em que a legislação indica o necessário conhecimento de herdeiros, sabendo-se quem eles são e onde estão, a ciência não poderia ser ficta, e sim realizada por meio de carta precatória, sob pena de se colocar em segundo plano a regra segundo a qual se deve, tanto quanto possível, promover a ciência de fato quanto ao curso do processo de inventário. Vencido, também, o Min. Celso de Mello, que acompanhava a divergência, e afirmava que a citação ficta, mediante edital, teria caráter excepcional e não viabilizaria o exercício pleno do direito ao contraditório” (STF, RE 552.598/RN, Rel. Min. Menezes Direito, 08.10.2008).
Ainda no que interessa aos procedimentos da citação, prevê o § 2.º do art. 999 do CPC que das primeiras declarações extrair-se-ão tantas cópias quantas forem as partes. Essa exigência tem por objetivo facilitar a citação, sendo certo que o oficial de justiça, ao proceder a ela, entregará um exemplar a cada parte (art. 999, § 3.º, do CPC). No que tange à Fazenda Pública, ao Ministério Público e eventual testamenteiro, incumbe ao escrivão remeter cópias dos autos (art. 999, § 4.º, do CPC). A última regra do mesmo modo vale para o advogado da parte que já estiver
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representada nos autos, visando a dar mais agilidade ao processamento do inventário. Concluídas as citações, abrir-se-á vista às partes, em cartório e pelo prazo comum de dez dias, para se manifestarem sobre as primeiras declarações (art. 1.000 do CPC). Nesse caso, cabe à parte do processo de inventário arguir erros e omissões, reclamar contra a nomeação do inventariante e contestar a qualidade de quem foi incluído no título de herdeiro. Em havendo impugnação quanto a erros e omissões, e julgada essa procedente, o juiz mandará retificar as primeiras declarações. Se o juiz acolher o pedido de reclamação da nomeação do inventariante, nomeará outro, observada a preferência legal do art. 990 do CPC. Por fim, verificando que a disputa sobre a qualidade de herdeiro constitui matéria de alta indagação, remeterá a parte para os meios ordinários e sobrestará, até o julgamento da ação, a entrega do quinhão que na partilha couber ao herdeiro admitido. Todas essas regras constam do parágrafo único do art. 1.000 do CPC. Em relação às questões de alta indagação que remetem a parte para os meios ordinários, podemos aqui trazer três exemplos jurisprudenciais. No primeiro deles, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que a existência de união estável visando ao ingresso da companheira na herança seria questão de alta indagação: “Agravo de Instrumento. Inventário. Reconhecimento de união estável. Questão de alta indagação. Remessa às vias ordinárias. 1. O inventário é um processo com contornos próprios, não havendo como nele serem discutidas questões
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de alta indagação. 2. Deve a pretensa ex-companheira ajuizar a ação própria para o reconhecimento da alegada união estável constituída com o falecido para ter reconhecido o seu direito, sendo aconselhável a suspensão do processo de inventário em razão de aparentemente não existirem ascendentes e descendentes do de cujus, caso em que, confirmada aquela união, terá a companheira direito à totalidade da herança (art. 2.º, inc. III, da Lei 8.971/1994). 3. Nega-se provimento ao recurso” (TJMG, 4.ª Câmara Cível, Proc. 1.0515.05.014147-9/0001-Piumhi, Rel. Célio César Paduani, j. 06.04.2006, v.u.).
Concorda-se com esse julgado, pois, como exposto no volume anterior dessa coleção, os elementos caracterizadores da união estável previstos pelo art. 1.723 do CC podem levantar séria polêmica, sendo necessária uma ação específica para o seu reconhecimento e posterior dissolução. Em outro caso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu ser questão de alta indagação a discussão a respeito da existência de dívidas com empregada. Vejamos a ementa do julgado: “A dívida com a empregada não é do espólio, sendo que a cessão de crédito e as dívidas representadas por notas promissórias, bem como as decorrentes do fornecimento de alimentação, constituem questões de alta indagação, devendo tal discussão ter lugar nas vias ordinárias. Recurso provido em parte” (TJRS, 7.ª Câmara Cível, Proc. 70011748951, Comarca de Lagoa Vermelha, Juiz Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 10.08.2005). Fez o mesmo aquele pioneiro Tribunal quanto às dívidas médicas relacionadas com o falecido e o seu funeral:
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“Inventário. Habilitação de crédito. Despesas médicas com o inventariado. Discordância. 1. Basta que não se verifique a concordância de um dos herdeiros apenas quanto ao crédito a ser habilitado, para que as partes sejam remetidas às vias ordinárias, mesmo que se trate de despesas médicas ou até funerárias com o inventariado. 2. A impugnação não necessita de maior fundamentação, pois a discussão deve ter lugar nas vias ordinárias, constituindo questão de alta indagação a ser solvida. Inteligência do art. 1.997, § 1.º, do CC, e art. 1.018 do CPC. Recurso do Espólio provido em parte e desprovido o dos credores” (TJRS, 7.ª Câmara Cível, Proc. 70010714004, Comarca de Porto Alegre, Juiz Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 18.05.2005).
O último caso, como se pode perceber, envolve uma habilitação de crédito no inventário, realizada por terceiro. A habilitação de crédito daquele que foi preterido, na verdade, consta do art. 1.001 do CPC, segundo o qual: “Aquele que se julgar preterido poderá demandar a sua admissão no inventário, requerendo-o antes da partilha. Ouvidas as partes no prazo de 10 (dez) dias, o juiz decidirá. Se não acolher o pedido, remeterá o requerente para os meios ordinários, mandando reservar, em poder do inventariante, o quinhão do herdeiro excluído até que se decida o litígio”. Conforme apontam Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim, o dispositivo aplica-se à companheira que não foi incluída no inventário, entendimento que deve ser considerado como majoritário para a prática cível e para as provas em geral (Inventários e partilhas..., 2006, p. 366). Em complemento, repise-se a regra do art. 984 do CPC, segundo a qual o juiz do inventário decidirá todas as questões de direito e também as de fato, quando tal fato se
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achar provado por documento, só remetendo para os meios ordinários as que demandarem alta indagação ou dependerem de outras provas. Os casos de remessa às vias ordinárias foram exemplificados pelos julgados antes colacionados. Encerrando essa fase, enuncia o art. 1.002 do CPC que a Fazenda Pública, no prazo de 20 dias, após a vista para a manifestação quanto às primeiras declarações, informará ao juízo, de acordo com os dados que constam de seu cadastro imobiliário, o valor dos bens de raiz descritos nas primeiras declarações. Depois dessa previsão, o CPC traz regras quanto à avaliação dos bens e ao cálculo do imposto (arts. 1.003 a 1.013). Vejamos essas regras, também de forma detalhada. A primeira delas prevê que, findo o prazo de dez dias para a manifestação quanto às primeiras declarações e não havendo qualquer impugnação ou já decidida a que tiver sido oposta, o juiz nomeará um perito para avaliar os bens do espólio se não houver na comarca avaliador judicial (art. 1.003 do CPC). Anotam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, com razão, que essa avaliação é dispensada, do ponto de vista fiscal, “quando já há prova do valor dos bens cadastrados pelo poder público municipal para fim de cobrança de IPTU” (Código de Processo Civil..., 2006, p. 1.021). Determina a lei, ainda, que, nos casos envolvendo estabelecimento comercial ou empresarial, o juiz nomeará um contador para levantar o balanço ou apurar os haveres (art. 1.003, parágrafo único, do CPC). Quanto aos procedimentos da avaliação, o perito deve seguir, no que forem aplicáveis, as regras previstas nos
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arts. 681 a 683 do CPC. É o que determina o art. 1.004 do mesmo Estatuto Processual. Vejamos as regras mencionadas nesse último dispositivo processual. O art. 681 do CPC prevê que o laudo do avaliador, que será apresentado em dez dias, conterá: a) a descrição dos bens, com os seus característicos, e a indicação do estado em que se encontram; b) o valor dos bens. No tocante a eventual imóvel que for suscetível de divisão cômoda, o perito-avaliador, tendo em conta o crédito reclamado, o avaliará em suas partes, sugerindo os possíveis desmembramentos (art. 681, parágrafo único, do CPC). Não se pode negar que o último dispositivo tem grande aplicação. Em casos de títulos da dívida pública, de ações de sociedades e de títulos de crédito negociáveis em bolsa, o valor a ser fixado será o da cotação oficial do dia, provada por certidão ou publicação no órgão oficial (art. 682 do CPC). Como o perito-avaliador é dotado de fé pública, a regra é a não repetição da avaliação. Entretanto, essa regra comporta exceções, pois o art. 683 do CPC trata da possibilidade de repetição quando: a) se provar erro ou dolo do avaliador; b) se verificar, posteriormente à avaliação, que houve diminuição do valor dos bens; c) houver fundada dúvida sobre o valor atribuído ao bem. Em sentido quase semelhante, aliás, é o art. 1.010 do CPC, quanto ao inventário. Vale dizer que, em casos de maior gravidade, pode ser requerida até a substituição do avaliador, inclusive em processo de inventário. Seguindo na análise da avaliação dos bens, o herdeiro que requerer, durante a avaliação, a presença do juiz e do
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escrivão, paga as despesas da diligência (art. 1.005 do CPC). Não se expedirá carta precatória para a avaliação de bens situados fora da comarca por onde corre o inventário se eles forem de pequeno valor ou perfeitamente conhecidos do perito nomeado (art. 1.006 do CPC). A norma tem a sua razão de ser, visando a uma maior agilidade ao processo de inventário, eis que, na grande maioria das vezes, as partes ou herdeiros estão muito ansiosos pelo seu fim. Em razão do pequeno valor, a demorada expedição da precatória traria mais ônus que benefícios aos interessados. Também visando à facilitação e à agilidade do procedimento, preconiza o art. 1.007 do CPC que, sendo capazes todas as partes, não se procederá à avaliação se a Fazenda Pública concordar expressamente com o valor atribuído, nas primeiras declarações, aos bens do espólio. Se os herdeiros concordarem com o valor dos bens declarados pela Fazenda Pública, a avaliação cingir-se-á aos demais, no caso, aos bens móveis (art. 1.008 do CPC). Entregue o laudo de avaliação, o juiz mandará que sobre ele se manifestem as partes no prazo de dez dias, que correrá em cartório. É o que consagra o art. 1.009 do CPC, sendo comum que as partes envolvidas com o inventário requeiram esclarecimentos ao perito avaliador. Os parágrafos do comando legal trazem outros detalhamentos importantes. Em primeiro lugar, havendo impugnação quanto ao valor atribuído aos bens pelo perito, o juiz a decidirá de plano, à vista do que constar dos autos (art. 1.009, § 1.º, do CPC). Julgando procedente a impugnação, determinará
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o juiz que o perito retifique a avaliação, observando os fundamentos da decisão (art. 1.009, § 2.º, do CPC). Sendo aceito o laudo pelas partes, ou sendo resolvidas as impugnações suscitadas a seu respeito, lavrar-se-á em seguida o termo de últimas declarações, no qual o inventariante poderá emendar, aditar ou completar as primeiras (art. 1.011 do CPC). Ouvidas as partes sobre as últimas declarações no prazo comum de dez dias, proceder-se-á ao cálculo do imposto, que varia de acordo com a legislação específica de cada Estado (art. 1.012 do CPC). A encerrar essa fase, feito o cálculo, sobre ele serão ouvidas todas as partes no prazo comum de cinco dias, que correrá em cartório e, em seguida, a Fazenda Pública (art. 1.013 do CPC). Se houver impugnação julgada procedente, ordenará o juiz novamente a remessa dos autos ao contador, determinando as alterações que devam ser feitas no cálculo (art. 1.013, § 1.º, do CPC). Cumprido o despacho, o juiz julgará o cálculo do imposto (art. 1.013, § 2.º, do CPC). Após, seguem o recolhimento de imposto e das custas e a partilha. Por fim, note-se que em razão de lei especial (art. 1.º da Lei 6.858/1980, e art. 1.º, parágrafo único, I, do Decreto 85.845/1981), o pagamento dos valores devidos ao empregado é pago aos sucessores independentemente de inventário ou arrolamento. Em suma, em se tratando de verbas trabalhistas, os valores podem ser partilhados entre os herdeiros diretamente pelo juízo do Trabalho, independentemente do inventário na esfera cível.
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4.2.1.2 Inventário judicial pelo rito sumário Quanto ao arrolamento sumário, é expresso o art. 1.031 do CPC, com a nova redação dada pela Lei 11.441/ 2007: “Art. 1.031. A partilha amigável, celebrada entre partes capazes, nos termos do art. 2.015 da Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, será homologada de plano pelo juiz, mediante a prova da quitação dos tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas, com observância dos arts. 1.032 a 1.035 desta Lei. § 1.º O disposto neste artigo aplica-se, também, ao pedido de adjudicação, quando houver herdeiro único. § 2.º Transitada em julgado a sentença de homologação de partilha ou adjudicação, o respectivo formal, bem como os alvarás referentes aos bens por ele abrangidos, só serão expedidos e entregues às partes após a comprovação, verificada pela Fazenda Pública, do pagamento de todos os tributos”.
Como o artigo em questão fazia remissão ao art. 1.773 do Código Civil de 1916, a Lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007, apenas alterou sua redação para que se faça remissão ao artigo correspondente, qual seja, o 2.015 do Código Civil de 2002. Frise-se que não há mudança no conteúdo da norma, mas simples adequação ao atual Código Civil. Prevê o art. 2.015 do CC/2002 que “Se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular, homologado pelo juiz”. Ensinam Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim que o arrolamento sumário é uma forma abreviada de
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inventário e partilha de bens, havendo concordância de todos os herdeiros, desde que maiores e capazes. Observam os juristas que, aqui, não importa os valores dos bens a serem partilhados (Inventários e partilhas..., 2006, p. 457). Em suma, pode-se dizer que o seu fator predominante é justamente o acordo entre as partes envolvidas. O procedimento, como o próprio nome já diz, é sumário, visando a uma maior celeridade na partilha de bens. Demonstrando esse intuito célere, dispõe o art. 1.032 do CPC que os herdeiros, na inicial: a) requererão ao juiz a nomeação do inventariante que designarem; b) declararão os títulos dos herdeiros e os bens do espólio; c) atribuirão o valor dos bens do espólio, para fins de partilha. Em regra, o arrolamento sumário não comporta a avaliação de bens do espólio para qualquer finalidade (art. 1.033 do CPC). A única ressalva feita pelo dispositivo refere-se à avaliação da reserva de bens (art. 1.035 do CPC). Também visando a uma maior simplicidade ou facilitação, no arrolamento sumário não serão conhecidas ou apreciadas questões relativas ao lançamento, ao pagamento ou à quitação de taxas judiciárias e de tributos incidentes sobre a transmissão da propriedade dos bens do espólio (art. 1.034 do CPC). A taxa judiciária, se devida, será calculada com base no valor atribuído pelos herdeiros, cabendo ao fisco, se apurar em processo administrativo valor diverso do estimado, exigir a eventual diferença pelos meios adequados ao lançamento de créditos tributários em geral (art. 1.034, § 1.º, do CPC). O imposto de transmissão será objeto de lançamento administrativo,
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conforme dispuser a legislação tributária, não ficando as autoridades fazendárias adstritas aos valores dos bens do espólio atribuídos pelos herdeiros (art. 1.034, § 2.º, do CPC). Por fim, encerrando os procedimentos, determina o art. 1.035 do Estatuto Processual que a existência de credores do espólio não impedirá a homologação da partilha ou da adjudicação, se forem reservados bens suficientes para o pagamento da dívida. Essa reserva de bens será realizada pelo valor estimado pelas partes, salvo se o credor, regularmente notificado, impugnar a estimativa. Nesse último caso, é que deverá ser realizada a única forma de avaliação admitida no arrolamento sumário (art. 1.035, parágrafo único, do CPC). 4.2.1.3 Inventário judicial pelo rito do arrolamento comum Como outrora destacado, o arrolamento comum é disciplinado pelo art. 1.036 do CPC. De acordo com o caput desse dispositivo, quando o valor dos bens do espólio for igual ou inferior a 2.000 Obrigações do Tesouro Nacional – OTN, o inventário processar-se-á na forma de arrolamento. Nesse caso, cabe ao inventariante nomeado, independentemente da assinatura de termo de compromisso, apresentar, com suas declarações, a atribuição do valor dos bens do espólio e o plano da partilha. Como se pode perceber, essa forma de arrolamento não leva em conta eventual acordo entre as partes interessadas, mas sim o valor dos bens inventariados.
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Sobre o valor de 2.000 OTN (Obrigações do Tesouro Nacional), tendo em vista a extinção do indexador pela Lei 7.730/1989, sua quantificação em reais é matéria conturbada. O índice é inadequado e defasado, sendo praticamente impossível saber o valor exato, como lembram Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim, que também sugerem mudança da lei para que conste o valor de 500 salários-mínimos como limite para a adoção do arrolamento em questão. Para os doutrinadores, no ano de 2006, se seguida a Tabela de atualização do Tribunal de Justiça de São Paulo, o valor de 2.000 OTN corresponderia a R$ 38.826,41 (Inventários e partilhas..., 2006, p. 503-504). No que toca aos procedimentos, se qualquer das partes ou o Ministério Público impugnar a estimativa anteriormente realizada pelo inventariante, o juiz nomeará um avaliador que oferecerá laudo em dez dias (art. 1.036, § 1.º, do CPC). O que se percebe é que a elaboração desse laudo diferencia o arrolamento comum do arrolamento sumário. Apresentado o laudo, o juiz, em audiência que designar, deliberará sobre a partilha, decidindo de plano todas as reclamações e mandando pagar as dívidas não impugnadas (art. 1.036, § 2.º, do CPC). Lavrar-se-á de tudo um só termo, assinado pelo juiz e pelas partes presentes (art. 1.036, § 3.º, do CPC). Podem ser aplicadas ao arrolamento comum, eventualmente, as disposições antes analisadas previstas no art. 1.034 do CPC, relativamente ao lançamento, ao pagamento e à quitação da taxa judiciária e do imposto sobre a transmissão da propriedade dos bens do espólio. É o que
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preconiza o § 4.º do art. 1.036 do CPC, que aproxima as duas formas de arrolamento. Por fim, provada a quitação dos tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas, o juiz julgará a partilha (art. 1.036, § 5.º, do CPC). Analisadas essas espécies de inventário, com enorme aplicação prática, interessante aqui anotar a existência de outras modalidades, que são muito bem apresentadas por Flávio Augusto Monteiro de Barros (Manual..., 2005, v. 1, p. 304 e 305): – Inventário orfanológico – havendo herdeiro menor, interdito, ausente ou desconhecido. – Inventário de provedoria – quando o de cujus houver deixado testamento ou codicilo. – Inventário de maiores – quando, não havendo testamento, todos os herdeiros forem maiores e capazes. – Inventário conjunto – aquele que abrange mais de um espólio. Segundo o professor paulista, seria possível em apenas duas hipóteses: 1.ª) quando o cônjuge meeiro falecer antes da partilha do premorto, sendo as duas heranças inventariadas e partilhadas de forma cumulativa, se os herdeiros forem os mesmos (art. 1.043 do CPC); 2.ª) quando, antes da partilha, falecer um dos herdeiros, que não possui outros bens, além daqueles da herança inventariada (art. 1.044 do CPC). Nos dois casos, o inventariante será o mesmo. – Inventário negativo – nas hipóteses em que o de cujus não deixa bens. No volume anterior dessa coleção vimos que há interesse em fazer esse inventário para que não se imponha a causa suspensiva do casamento prevista no art. 1.523, I, do CC. A jurisprudência vem reconhecendo sua
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viabilidade e possibilidade, mesmo que não haja um interesse patrimonial direto: “Inventário negativo. Possibilidade da declaração judicial da inexistência de bens em nome do de cujus. Interesse jurídico reconhecido. Afastamento do decreto de extinção do feito. Recurso provido” (TJSP, Apelação Cível 261.452-4/1-Suzano, 1.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Elliot Akel, j. 08.04.2003, v.u.).
4.2.2 Inventário extrajudicial ou por via administrativa Conforme foi ressaltado no início do presente capítulo, com a edição da Lei 11.441/2007, o art. 982 do CPC recebeu a seguinte redação, atualizada com a Lei 11.965/2009: “Art. 982. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário. § 1.º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por um advogado comum ou advogados de cada uma delas ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura contarão do ato notarial. § 2.º A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei.”
Desse modo, como ocorreu com relação à separação e ao divórcio extrajudicial, a lei foi demais concisa e disse muito pouco a respeito do tema, cabendo à doutrina e à
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jurisprudência sanar as dúvidas decorrentes desses institutos. A Resolução 35 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 24 de abril de 2007, é de profunda importância para a compreensão desse novo instituto, razão pela qual será mencionada no presente capítulo. A Resolução se divide em cinco seções, sendo que a Seção I, com regras de caráter geral, e a Seção II, com disposições referentes ao inventário e à partilha, são as que nos interessam para o estudo em questão. Os requisitos para que se possa utilizar a via administrativa são os seguintes: a) Todos os herdeiros devem ser capazes. A capacidade, mencionada na lei, é a capacidade de fato, ou seja, a aptidão para praticar pessoalmente os atos da vida civil (arts. 3.º e 4.º do CC). Caso o de cujus deixe herdeiro menor que seja emancipado, legal ou voluntariamente, poderá ser utilizada a via administrativa. A capacidade dos herdeiros deve ser verificada no momento da elaboração da escritura. Isso porque a incapacidade retira a validade do negócio jurídico e deve ser verificada no momento da celebração, não importando se, no momento da morte, o herdeiro era ou não capaz. Questão interessante é saber se, em razão da existência de nascituro no ventre materno, a via administrativa seria afastada. O nascituro está concebido e nidificado no ventre materno, mas ainda não nasceu. A questão esbarra no debate a respeito da personalidade jurídica do nascituro. Conforme esclarecido no Volume 1 da presente coleção, duas são as principais teorias no tocante ao início
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da personalidade jurídica do nascituro: a natalista e a concepcionista. Pela teoria natalista, o nascituro não poderia ser considerado pessoa, pois o Código Civil exigiria o nascimento com vida e o nascituro teria mera expectativa de direitos. São adeptos dessa teoria Silvio Rodrigues, San Tiago Dantas, Caio Mario da Silva Pereira e Sílvio de Salvo Venosa. De acordo com a teoria concepcionista, o nascituro é pessoa humana, tendo seus direitos resguardados pela lei. Seguem a teoria em questão Rubens Limongi França, Silmara Juny Chinellato, Giselda Hironaka, Francisco Amaral, Renan Lotufo e Maria Helena Diniz. Como já nos declaramos filiados à teoria concepcionista, em nossa conclusão a existência de nascituro impede a escolha da via extrajudicial. Nesse sentido o entendimento de Francisco José Cahali e Karin Regina Rick Rosa (Escrituras públicas..., 2007, p. 74) e Christiano Cassettari (Separação..., 2007, p. 100). b) Concordância de todos. Se houver litígio, por óbvio, só a via judicial poderá ser utilizada, uma vez que o inventário extrajudicial somente é viável juridicamente na hipótese de consenso entre os herdeiros. c) O falecido não pode ter deixado testamento. A questão da existência do testamento, por si só, não deve servir de impedimento à utilização da via extrajudicial. Desde que o testamento não tenha conteúdo patrimonial (ex.: testamento que reconhece um filho ou perdoa o indigno), a via extrajudicial pode ser adotada (CASSETTARI, Christiano. Separação..., 2007, p. 95).
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Juliana da Fonseca Bonates vai mais longe. Para ela, as razões para impedir a utilização da via extrajudicial não existem quando o falecido deixa apenas codicilo, e tampouco quando o testamento não realiza partilha alguma, limitando-se à revogação do testamento anterior, à deserdação de um herdeiro, ou, ainda, se o conteúdo patrimonial não for economicamente relevante: esmolas, funerais, etc. (Há hipóteses..., Separação..., 2007, p. 318). Superada a análise dos requisitos para a incidência da lei, é imperioso apontar que não há que falar em competência do Tabelião para a elaboração da escritura pública. Assim, qualquer Tabelião de Notas, independentemente de sua localização, bem como do domicílio do falecido ou da localização dos bens a serem inventariados. Ilógico seria a aplicação da regra de competência prevista no CPC para um ato extrajudicial. A Lei 8.935/1994, em seu art. 8.º, garante a liberdade da escolha do tabelião de notas, independentemente do domicílio das partes ou do lugar da situação dos bens objeto do ato. Nesse sentido, o art. 1.º da Resolução 35 do CNJ, cuja redação é a seguinte: “Para a lavratura dos atos notariais de que trata a Lei n. 11.441/07, é livre a escolha do tabelião de notas, não se aplicando as regras de competência do Código de Processo Civil”. Com relação à facultatividade da via extrajudicial, a simples leitura do art. 982 do CPC espanca qualquer dúvida ao mencionar que “poderá fazer-se o inventário”. Há uma opção das partes maiores e capazes quando o falecido não deixou testamento. Entretanto, no início do período de vigência da Lei 11.441/2007, alguns juízes
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acabavam extinguindo, de ofício, os inventários judiciais, sob o fundamento da inexistência de interesse de agir. A argumentação dessas decisões trilhava o caminho de que a Lei 11.441/2007, seguindo a atual tendência de modernização do Direito de Família e das Sucessões, e em conformidade com o projeto de agilização, racionalização e desburocratização do Poder Judiciário, veio a permitir inventários e partilhas extrajudiciais, sendo que essa via deveria ser a prioritária. Assim, o Poder Judiciário, cumprindo o anseio de toda a população, deveria se debruçar apenas sobre questões em que seja imprescindível sua atuação. Em que pese a clareza da fundamentação, com ela não se pode concordar. Se a lei confere uma opção aos interessados, não pode o juízo suprimi-la em nome da celeridade e do melhor atendimento jurisdicional. É direito do jurisdicionado levar ao Poder Judiciário a questão, ainda que não haja litígio. Exatamente por isso, a Resolução 35 do CNJ enuncia que é facultada aos interessados a opção pela via judicial ou extrajudicial; podendo ser solicitada, a qualquer momento, a suspensão, pelo prazo de trinta dias, ou a desistência da via judicial, para promoção da via extrajudicial. Também, a Portaria da CorregedoriaGeral de Justiça 1/2007, do Tribunal de Justiça de São Paulo, adota tal entendimento (item 1.1). Partindo para outra questão, não se deve esquecer que o sigilo pode ser requerido na hipótese de inventário judicial, enquanto que, em se tratando da via extrajudicial, a escritura é pública. A única questão a se ponderar é que se há um procedimento judicial em curso, necessária será sua suspensão ou desistência, pois o procedimento judicial exclui o extrajudicial e vice-versa (nesse sentido item 1.2 da
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Portaria CG 1, de 2007, do Tribunal de Justiça de São Paulo). Outro tema relevante diz respeito à eventual necessidade de homologação judicial da escritura pública. Se tal necessidade houvesse, o objetivo da lei, qual seja, a celeridade e a desburocratização estariam feridos mortalmente. A homologação é desnecessária. De certa maneira, a lei transfere ao Tabelião certo poder de fiscalização do ato e, portanto, inútil a homologação. Desse fato, conclui-se que a escritura pública é título hábil não só para o registro imobiliário – conforme expressa previsão do art. 982 do CPC –, mas também para a transferência de bens e direitos, bem como para a promoção de todos os atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores (DETRAN, Junta Comercial, Registro Civil de Pessoas Jurídicas, instituições financeiras, companhias telefônicas, etc.), nos termos do art. 3.º da Resolução 35 do CNJ. Essa mesma conclusão consta da Portaria 01/2007, da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo, item 1.3. Inútil seria a escritura pública de inventário referente a um carro, se o documento não pudesse ser registrado junto ao DETRAN. Isso restringiria a via administrativa apenas à partilha de imóveis. Com relação aos requisitos que devam constar da escritura, o art. 982 do CPC apenas menciona que as partes interessadas devem estar assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. O art. 8.º da Resolução 35 reforça essa determinação, prevendo que é necessária a presença do advogado,
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dispensada a procuração, ou do defensor público, na lavratura das escrituras decorrentes da Lei 11.441/2007, nelas constando seu nome e registro na Ordem dos Advogados do Brasil. No entanto, a dita resolução não menciona a consequência da ausência do profissional da área. Entendemos que a assinatura do advogado é solenidade essencial que, quando preterida, gera a nulidade absoluta do negócio jurídico, nos termos do art. 166, V, do CC. Sobre a indicação de profissional pelo Tabelião, para evitar verdadeira mercantilização em que os Tabelionatos poderiam contratar advogados apenas parra assinar escrituras públicas, o CNJ determina na Resolução 35/2007 ser vedada ao tabelião a indicação de advogado às partes, que deverão comparecer para o ato notarial acompanhadas de profissional de sua confiança. Se as partes não dispuserem de condições econômicas para contratar advogado, o tabelião deverá recomendar-lhes a Defensoria Pública, onde houver, ou, na sua falta, a Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (art. 9.º). Questão que merece ponderação diz respeito à necessidade ou não da nomeação de inventariante na escritura pública. O inventariante, como já estudado, é o administrador do inventário. Esse administrador representa ativa e passivamente o espólio. De acordo com o art. 11 da Resolução 35/2007, é obrigatória a nomeação de interessado, na escritura pública de inventário e partilha, para representar o espólio, com poderes de inventariante, no cumprimento de obrigações ativas ou passivas pendentes, sem necessidade de se seguir a ordem prevista no art. 990 do Código de Processo Civil.
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Mas a questão não é pacífica. Francisco José Cahali e Karin Regina Rick Rosa entendem que a nomeação é facultativa e só será necessária se o falecido deixou obrigações a serem cumpridas, como, por exemplo, a outorga de uma escritura (Escrituras públicas..., 2007, p. 74). A faculdade parece ser mais adequada e, nesse sentido, esclarecedora é a Portaria 1/2007 da Corregedoria do Tribunal Paulista, que dispõe que quando houver necessidade, pode ocorrer, na escritura pública, a nomeação de um (ou alguns) herdeiro(s), com os mesmos poderes de um inventariante, para representação do espólio no cumprimento de obrigações ativas ou passivas pendentes (v.g., levantamento de FGTS, de restituição de IR ou de valores depositados em bancos; comparecimento para a lavratura de outras escrituras, etc.). Uma vez que há consenso das partes, inexiste a necessidade de se seguir a ordem de nomeação do art. 990 do CPC (item 4.1). Pela obrigatoriedade da nomeação há o Provimento do TJBA (Provimento 04/2007, art. 31), do TJPR (Provimento 110 de março de 2007, item 11.11.7.1), do TJMT (Provimento 02/2007, Seção 7, item 9.7.5, VII) e do TJAC (Provimento 02/2007, Capítulo 4, art. 4.º, item VIII), sendo que os dois últimos provimentos determinam, ainda, que deva ser observada a ordem prevista no art. 990 do CPC. A Resolução 35 do CNJ ainda resolve a questão da possibilidade de inventário por procuração. Isso porque o seu art. 12 determina que se admitem inventário e partilha extrajudiciais com viúvo(a) ou herdeiro(s) capaz(es), inclusive por emancipação, representado(s) por procuração
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formalizada por instrumento público com poderes especiais, vedada a acumulação de funções de mandatário e de assistente das partes. Os Tribunais de Justiça têm determinações semelhantes, mas não mencionam a vedação à cumulação contida na Resolução 35. Nesse sentido, o TJSP (Portaria CG 01/2007, item 4.3), o TJAC (Provimento 02/ 2007, Capítulo IV, IV), o TJBA (Provimento 04/2007, art. 29, § 4.º) e o TJMT (Provimento 02/2007, Seção 7, item 9.7.5, IV). De acordo com o art. 25 da Resolução 35/2007 do CNJ, é admissível a sobrepartilha por escritura pública, ainda que referente a inventário e partilha judiciais já findos, mesmo que o herdeiro, hoje maior e capaz, fosse menor ou incapaz ao tempo do óbito ou do processo judicial. A regra tem sua razão de ser. A sobrepartilha ocorre quando certos bens não foram partilhados e o inventário já se encerrou. Também ocorre se certo bem foi simplesmente esquecido quando do inventário ou, ainda, se foi sonegado e agora deve ser partilhado (art. 1.040 do CPC). Aplicando-se a teoria de Pontes de Miranda com referência aos planos do negócio jurídico (Escada Ponteana), a Resolução do CNJ acerta ao mencionar que a sobrepartilha por escritura pública pode ocorrer ainda que o herdeiro capaz fosse incapaz na época do falecimento. Isso porque a capacidade de fato ou de exercício deve ser verificada no momento da celebração do negócio jurídico, qual seja, a assinatura da escritura (art. 2.035, caput, do CC). Nesse sentido, a Portaria CG 1/2007 do TJSP (itens 4.16 e 4.23), o Provimento 04/2007 do TJBA (art. 29, § 3.º), o Provimento 03/2007 do TJPB (art. 1.º, § 2.º) e o Provimento 110 do TJPR (item 11.11.3), sendo que os dois
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últimos não mencionam a questão da incapacidade dos herdeiros à época da sucessão. Por fim, em havendo um só herdeiro, maior e capaz, com direito à totalidade da herança, não haverá partilha, lavrando-se a escritura de inventário e adjudicação dos bens, nos termos da Resolução 35 do CNJ. A questão é óbvia. Não se partilha o que se defere a uma única pessoa. É realmente hipótese de adjudicação por escritura pública. Com esses importantes conceitos para a prática cível, para as provas de graduação e de pós-graduação, e para os concursos públicos, encerra-se o presente tópico. Seguindo na análise do Código Civil, passa-se ao estudo da pena de sonegados.
4.3 DA PENA DE SONEGADOS Enuncia o art. 1.992 do Código Civil em vigor que “o herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, estejam no poder de outrem; ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou ainda que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia”. Sonegados, portanto, são os bens que deveriam ter sido inventariados ou trazidos à colação, sendo ocultados pelo inventariante ou por algum dos herdeiros. O dispositivo conceitua a pena de sonegados, que vem a ser uma sanção ou penalidade civil imposta para os casos mencionados, de ocultação de bens da herança, gerando a perda do direito sobre os bens ocultados.
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Para essa imposição, exige-se a presença de dois elementos: um objetivo – a ocultação dos bens em si – e outro subjetivo – o ato malicioso do ocultador, o seu dolo, a sua intenção de prejudicar. O Código de Processo Civil determina no seu art. 1.040, I, que os bens sonegados ficarão sujeitos à sobrepartilha. Em relação ao elemento subjetivo, a doutrina se divide quanto à sua prova. Euclides de Oliveira, Sebastião Amorim (Inventários e partilhas..., 2006, p. 363), Maria Helena Diniz (Curso..., 2005, v. 6, p. 391) e Zeno Veloso (Comentários..., 2003, p. 398) entendem pela necessidade da prova do dolo por quem alega a ocultação. Por outra via, Sílvio de Salvo Venosa se posiciona no sentido de que, provado o elemento objetivo por parte do autor da ação – a sonegação dos bens –, cabe ao réu provar que a omissão não se deu por dolo (Direito civil..., 2003, v. 7, p. 355). Haveria, portanto, uma presunção simples contra o sonegador, que poderia provar a ausência de dolo para se livrar da penalidade imposta por lei. A primeira corrente doutrinária parece predominar atualmente em nossos Tribunais, razão pela qual deve ser considerada como majoritária. Nesse sentido: “Sonegados. Omissão de bem móvel que foi adquirido através de financiamento. Lucro decorrente de parceria rural. 1. A ação de sonegados pressupõe a ocultação dolosa de bens por quem deveria trazê-los à colação, sendo imprescindível provar não apenas a existência dos bens sonegados, mas, sobretudo, do dolo na ocultação. 2. A possibilidade de terem o inventariante e os herdeiros tido algum proveito econômico em razão de parceria rural e que não foi levado ao inventário não constitui hipótese de sonegação, pois o lucro depende de apuração e não se vislumbra dolo, e caso venha
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a ser apurado poderá ser alvo de sobrepartilha. 3. Também a não descrição no rol dos bens partilháveis de máquina colheitadeira, que foi adquirida mediante financiamento, não configura sonegado, pois não se verifica omissão dolosa, tratando-se de fato de todos conhecido, devendo tal bem ser objeto de sobrepartilha. Recurso desprovido” (TJRS, Apelação Cível 70020009254, 7.ª Câmara Cível, Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 08.08.2007). “Ação de sonegados. Imóvel destinado aos filhos em vida. Ocultação dolosa não configurada. Imóvel destinado aos filhos pelo pai, pela metade, em vida, ainda que em momentos distintos, não se configura em bem dolosamente ocultado. Logo, descabe ação de sonegados quanto ao mesmo. Apelação principal provida. Apelação adesiva improvida” (TJMG, Processo 1.0024.99.025790-9/001(2), 2.ª Câmara Cível, Rel. Des. Nilson Reis, j. 23.05.2006). “Inventário. Ação de sonegados. Pedido de nulidade de sentença. Inexistência de julgamento extra petita. Sentença determinando a sobrepartilha. Concessão aquém do pedido. Ocultação do imóvel. Ausência de prova de dolo do inventariante. Má-fé não caracterizada. Recurso adesivo sem preparo. Desatendimento ao art. 500, parágrafo único, do CPC. Improvimento do recurso principal e não conhecimento do adesivo” (TJSP, Apelação Cível 140.104-4/1-São Bernardo do Campo, 8.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Joaquim Garcia, j. 10.09.2003, v.u.).
Além dessa pena civil, se o sonegador for o próprio inventariante, será ele removido da inventariança (art. 1.993 do CC). Para tanto, deve-se provar a sonegação ou que ele negou a existência de bens indicados. O ônus dessa prova, por óbvio, também cabe a quem alega, nos termos do art.
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333, I, do CPC. Em suma, percebe-se que no caso de inventariante a pena de sonegados é dupla. Relativamente aos procedimentos, Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim ensinam que a sonegação deve ser arguida nos próprios autos do inventário e “havendo apresentação do bem, serão aditadas as declarações, para o regular seguimento do processo. Mas se persistir a recusa, a controvérsia haverá de ser resolvida em vias próprias, por meio da ação de sonegados” (Inventários e partilhas..., 2006, p. 363). Na grande maioria das vezes, estaremos diante de uma questão de alta indagação, o que justifica a ação específica. Essa ação somente pode ser promovida pelos herdeiros ou pelos credores da herança, conforme determina o art. 1.994 do CC em vigor, correndo no mesmo foro do inventário. Quanto ao prazo prescricional para a sua propositura, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem aplicando o prazo de 20 anos, constante do art. 177 do CC/1916, que deve ser contado da prática de cada ato irregular (STJ, REsp 26.650-SP, Lex-STJ 51/261, RSTJ 50/ 267, REsp 330.953/ES e REsp 259.406/PR). Adaptandose esse tratamento ao atual Código Civil, o prazo é de 10 anos, pelo que consta do seu art. 205 (AMORIM, Sebastião e OLIVEIRA, Euclides. Inventários e partilhas..., 2006, p. 360). Quanto à sentença que for proferida nessa ação, ela aproveitará aos demais interessados (art. 1.994, parágrafo único, do CC). Isso faz com que os bens sonegados voltem ao monte para serem sobrepartilhados. Em casos excepcionais, não sendo possível a restituição dos bens sonegados pelo sonegador, tendo em vista
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que já não os tem em seu poder, este pagará a importância correspondente aos valores que ocultou mais as perdas e danos. Essa é a regra prevista no art. 1.995 do CC, que deve ser analisada tendo como parâmetro o princípio da reparação integral dos danos. Desse modo, é possível o ressarcimento dos danos materiais – nas modalidades danos emergentes (valores que a pessoa efetivamente perdeu) e lucros cessantes (valores que a pessoa efetivamente deixou de lucrar) –, nos termos do art. 402 do CC. Sendo o caso, também são reparáveis os danos morais se o herdeiro ou credor sofrer um prejuízo imaterial que possa ser demonstrado. Anote-se que, nos termos dos arts. 403 do CC e 333, I, do CPC, cabe ao autor do pedido também provar esse prejuízo suportado. A terminar o tratamento da pena civil de sonegados, determina o art. 1.996 do CC quais os são momentos oportunos para arguir a sonegação, ou seja, para ingressar com a ação de sonegados. Quanto à sonegação praticada pelo inventariante, a alegação somente poderá ser feita depois de encerrada a descrição dos bens, com a declaração, por ele feita, de não existirem outros bens por inventariar (em regra, após as últimas declarações). Em relação ao herdeiro, somente cabe a arguição de sonegados depois de ele declarar no inventário que não possui tais bens. Se a ação for proposta antes desses momentos, deverá ser extinta sem a resolução do mérito, por falta de interesse de agir, não estando presente uma das condições da ação (art. 267, VI, do CPC).
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4.4 DO PAGAMENTO DAS DÍVIDAS O Código Civil e também o Código de Processo Civil preveem importantes regras quanto ao pagamento das dívidas do falecido, e que interessam diretamente ao inventário e à partilha. Começaremos pela análise das regras constantes do Código Civil de 2002. Inicialmente, dispõe o art. 1.997 do CC que a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido. No entanto, se a partilha já tiver sido feita, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube. De qualquer forma, vale dizer que há norma semelhante no art. 597 do CPC, segundo o qual “o espólio responde pelas dívidas do falecido; mas, feita a partilha, cada herdeiro responde por elas na proporção da parte que na herança lhe coube”. Por ambos os dispositivos, os herdeiros não podem responder além das forças da herança (ultra vires hereditatis). Não há previsão legal que determine que o herdeiro deva, com seu próprio patrimônio, pagar as dívidas do falecido. Se o falecido deixou mais dívida que patrimônio, faleceu em estado de insolvência e os credores não receberão o que lhes é devido. Além disso, os herdeiros têm alguns bens protegidos, caso do bem de família, seja legal (Lei 8.009/1990) seja convencional (arts. 1.711 a 1.722 do CC), mesmo que destinado à residência da pessoa solteira, divorciada ou viúva (Súmula 364 do STJ). Além do bem de família, podem ser citados os bens impenhoráveis, constantes do próprio Estatuto Processual, que mitigam a regra de
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responsabilidade patrimonial dos bens do devedor, também constante do art. 391 do atual CC. Em relação ao pagamento das dívidas, estabelece o § 1.º do art. 1.997 do CC que, quando, antes da partilha, for requerido no inventário o pagamento de dívidas constantes de documentos – desde que revestidos de formalidades legais, constituindo prova bastante da obrigação –, e houver impugnação, que não se funde na alegação de pagamento, acompanhada de prova valiosa, o juiz mandará reservar, em poder do inventariante, bens suficientes para a solução do débito, sobre os quais venha a recair oportunamente a execução. Nesse caso, o credor será obrigado a iniciar a ação de cobrança no prazo de trinta dias, sob pena de tornar sem nenhum efeito a reserva dos bens (art. 1.997, § 2.º, do CC). O prazo constante do dispositivo é decadencial, de perda ou caducidade do direito. Vale dizer que o prazo não se refere à prescrição da pretensão de cobrança da dívida, cujo caráter é eminentemente patrimonial e relacionado com a ação condenatória, mas apenas quanto à reserva de bens (critério científico de Agnelo Amorim Filho). No tocante às despesas funerárias do de cujus, haja ou não herdeiros legítimos, sairão do monte da herança (art. 1.998 do CC). É o caso de despesas com enterro, caixão, coroa de flores, velório e túmulo. Pelo mesmo comando legal, as despesas de sufrágios por alma do falecido só obrigarão a herança quando ordenadas em testamento ou codicilo. Como despesas de sufrágios por alma podem-se entender todas aquelas relacionadas com os valores gastos com missas em nome do falecido. Por essas despesas o
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monte só responde no caso de previsão decorrente da autonomia privada do morto. Eventualmente, pode estar presente uma situação em que um herdeiro deve determinada quantia a outro, particularmente porque o herdeiro pagou dívida do espólio com quantia própria. Nesses casos, havendo ação regressiva de um herdeiro contra os outros, já que pagou dívida comum, a parte do coerdeiro insolvente dividir-se-á proporcionalmente entre os demais (art. 1.999 do CC). Consagra-se o rateio da quota do insolvente, porque o pagamento realizado por apenas um herdeiro beneficiou a todos os demais. Ainda no tocante ao pagamento das dívidas, enuncia o art. 2.000 do CC que os legatários e os credores da herança podem exigir que do patrimônio do falecido se discrimine o do herdeiro e, em concurso com os credores do morto, serão preferidos no pagamento. Trata-se do que a doutrina denomina separação de bens do herdeiro, pois, como o herdeiro é titular da herança desde a abertura da sucessão, pode ocorrer dúvida quanto aos bens que compõem o seu patrimônio pessoal e aqueles que compunham o patrimônio do morto. A separação “tem o objetivo de evitar a confusão de patrimônios, e tornar discriminada a massa sobre a qual incidirá a execução dos credores e da qual sairá o pagamento dos legados. É a separatio bonorum do direito romano” (VELOSO, Zeno. Comentários..., 2003, p. 404). Por derradeiro quanto aos aspectos materiais, expressa o art. 2.001 do CC que, “se o herdeiro for devedor ao espólio, sua dívida será partilhada igualmente entre todos, salvo se a maioria consentir que o débito seja
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imputado inteiramente no quinhão do devedor”. O que se percebe é que a lei traz aqui uma espécie de compensação. Como regra, a compensação é proporcional a favor de cada um dos herdeiros restantes. Como exceção, a compensação ocorrerá somente em relação ao próprio crédito do herdeiro devedor. No tocante aos procedimentos, dispõe o art. 1.017, caput, do CPC que, antes da partilha, poderão os credores do espólio requerer ao juízo do inventário o pagamento das dívidas vencidas e exigíveis. A petição do credor, acompanhada de prova literal da dívida, será distribuída por dependência e autuada em apenso aos autos do processo de inventário (art. 1.017, § 1.º, do CPC). Trata-se do pedido de habilitação de crédito, muito comum na prática forense, que segue as regras de jurisdição voluntária. Concordando as partes com o pedido do credor, o juiz, ao declará-lo habilitado, mandará que se faça a separação de dinheiro ou, em sua falta, de bens suficientes para o seu pagamento (art. 1.017, § 2.º, do CPC). Separados os bens, tantos quantos forem necessários para o pagamento dos credores habilitados, o juiz mandará aliená-los em praça ou leilão, aplicando-se as regras específicas quanto à venda judicial previstas no Estatuto Processual em vigor (art. 1.017, § 3.º, do CPC). Se o credor requerer que, em vez de dinheiro, lhe sejam adjudicados, para o seu pagamento, os bens já reservados, o juiz deferir-lhe-á o pedido, concordando todas as partes (art. 1.017, § 4.º, do CPC). No caso da habilitação de crédito realizada por credor, não havendo concordância de todas as partes sobre o pedido de pagamento feito pelo credor, será ele remetido para os meios ordinários (art. 1.018 do CPC). A
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interpretação correta do dispositivo é que basta a discordância de um dos herdeiros para que surja a necessidade de uma ação específica para o pagamento da dívida. Nesse caso de discordância, porém, o juiz do inventário mandará reservar em poder do inventariante bens suficientes para pagar o credor, desde que a dívida conste de documento que comprove suficientemente a obrigação e, ainda, que a impugnação não esteja fundada em quitação (art. 1.018, parágrafo único, do CPC). É o caso de uma obrigação líquida (certa quanto à existência, determinada quanto ao valor) e vencida. O credor de dívida líquida e certa, ainda não vencida, também pode requerer habilitação no inventário, conforme consta do art. 1.019 do CPC. Concordando as partes com o pedido, o juiz, ao julgar habilitado o crédito, mandará que se faça separação de bens para o futuro pagamento. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery demonstram a diversidade dos procedimentos, particularmente quanto ao dispositivo anterior, pois “lá os bens são reservados para que se aguarde o pagamento, que os herdeiros não querem aceitar fazer; aqui os bens são reservados para que haja patrimônio para responder pela dívida que se irá vencer” (Código de Processo Civil..., 2006, p. 1.024). Prevê o art. 1.020 do CPC que o legatário também é parte legítima para manifestar-se sobre as dívidas do espólio quando toda a herança for dividida em legados ou quando o reconhecimento das dívidas importar redução dos legados. A norma se justifica pelo interesse direto do legatário nesses casos.
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Por fim, quanto aos procedimentos, sem prejuízo das regras específicas quanto à penhora, determina o art. 1.021 do CPC que é lícito aos herdeiros, ao separarem bens para o pagamento de dívidas, autorizar que o inventariante os nomeie à penhora no processo em que o espólio for executado.
4.5 DA COLAÇÃO OU CONFERÊNCIA E REDUÇÃO DAS DOAÇÕES INOFICIOSAS 4.5.1 Colação A colação (collatio) é conceituada pela doutrina como sendo “uma conferência dos bens da herança com outros transferidos pelo de cujus, em vida, aos seus descendentes, promovendo o retorno ao monte das liberalidades feitas pelo autor da herança antes de falecer, para uma equitativa apuração das quotas hereditárias dos sucessores legitimários” (DINIZ, Maria Helena. Código Civil..., 2006, p. 1.599). A matéria igualmente está tratada tanto no Código Civil (arts. 2.002 a 2.012) quanto no Código de Processo Civil (arts. 1.014 a 1.016). De início, o conceito de colação ou conferência pode ser retirado do art. 2.002 do CC, segundo o qual: “Os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação”. O próprio comando legal disciplina a sanção para o caso de o descendente não trazer o bem à
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colação: a pena civil de sonegados, já estudada. Dispõe o seu parágrafo único que, para o cálculo da legítima, o valor dos bens conferidos será computado na parte indisponível, sem aumentar a disponível. A colação está justificada na possibilidade de doação do ascendente ao descendente ou mesmo entre cônjuges, implicando esta em adiantamento da legítima, conforme consagra o art. 544 do atual Código Civil. Ensina Zeno Veloso que “a regra de que a doação é feita como adiantamento da legítima não é absoluta, cogente, inafastável, pois o ascendente-doador pode dispensar da colação as doações feitas ao descendente, seu herdeiro necessário, determinando que saiam de sua metade disponível, contanto que não a excedam, e computando o seu valor ao tempo da doação (art. 2.003, parágrafo único). Porém, se o ascendente silenciar, se não fizer expressamente a dispensa da colação, mandando embutir o que foi doado na sua parte disponível, a regra do art. 544 incide” (Comentários..., 2003, p. 405). Desse modo, a colação tem por fim igualar, na proporção estabelecida no próprio Código Civil, as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente, obrigando também os donatários que, ao tempo do falecimento do doador, já não possuírem os bens doados. É o que enuncia o art. 2.003 do atual Código Civil, dispositivo que coloca o cônjuge sobrevivente, ao lado dos descendentes, como pessoa obrigada a colacionar. Apesar de não mencionado nos comandos legais anteriores, filiamo-nos à corrente doutrinária pela qual o cônjuge também é destinatário do referido dever legal (DINIZ, Maria Helena. Código Civil..., 2003, p. 1.356; e VELOSO, Zeno. Comentários..., 2003, p. 417).
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A opinião que endossamos tem por fundamento a dicção do art. 544 do CC/2002, que expressamente consagra a doação entre cônjuges como adiantamento de legítima (“Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”). Quanto aos descendentes, é de se salientar que os filhos sempre terão o dever de colacionar; já quanto aos netos a questão merece certa ponderação. Se os netos receberam a herança por representação, colacionam o que seus pais colacionariam, ou seja, os bens que seu pai (premorto) recebeu diretamente por doação do avô, mesmo que o bem não mais exista. Vejamos um exemplo. Um pai recebe casa do avô em doação como adiantamento de legítima. Quando o avô falece, o pai já é premorto e seu filho – neto do falecido – é chamado a suceder em representação. Como o pai deveria colacionar a casa, seu filho – neto do falecido – colaciona, ainda que a casa já tenha sido vendida. Por outra via, se os netos receberam a herança por direito próprio, devem colacionar os bens que eles mesmos receberam por doação de seu avô. Essa é a disposição do art. 2.009 do CC. Quando os netos, representando os seus pais, sucederem aos avós, serão obrigados a trazer à colação, ainda que não o hajam herdado, o que os pais teriam de conferir. O dispositivo, assim, acaba transferindo o dever aos herdeiros daquele que deveria colacionar, quebrando com a regra pela qual a colação é pessoal. Os netos não colacionam os bens a eles doados diretamente por seu avô, se o seu pai estiver vivo no momento do óbito do avô, pois não são herdeiros do avô. O herdeiro
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é o pai, que por ser descendente de 1.º grau exclui os netos que são descendentes de 2.º grau. Também os netos não colacionam bens recebidos diretamente do avô quando herdarem por representação (pois estão substituindo o pai premorto). Um quadro com relação às doações realizadas ajudará a resolver a questão:
Partes na doação
Quem recebeu a herança do avô?
Devem os netos colacionar?
Doação feita pelo avô ao pai
Os netos em representação ao pai premorto
SIM. Se o seu pai vivo fosse, deveria colacionar, então os netos, como representantes, devem colacionar
Doação feita diretamente pelo avô aos netos
Os netos, por direito próprio, e não houve representação
SIM. Os netos deverão colacionar os bens que receberam
Doação feita diretamente pelo avô aos netos
O pai, pois está vivo no momento da sucessão do avô
NÃO. Os netos não devem colacionar, pois não são herdeiros de seu avô (são descendentes de 2.º grau)
Doação feita
Os netos em representação
NÃO. Os netos não devem colacionar os
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diretamente pelo avô aos netos
ao pai premorto
bens, pois, na sucessão, estão representando seu pai falecido
Os ascendentes e colaterais estão dispensados da colação, pois a lei não prevê que tais pessoas têm o referido dever. Diferentemente do sistema francês, por exemplo, em que se determina a colação pelo ascendente. Como a norma é restritiva de direitos, não merece interpretação extensiva. O mesmo deve ser dito quanto ao companheiro que, aqui, não está na mesma situação que o cônjuge, até porque o convivente não é herdeiro necessário, não tendo direito à legítima. Além disso, o companheiro não está mencionado no art. 544 do CC, que trata somente da doação entre cônjuges. O parágrafo único do art. 2.003 do CC expressa que, “se, computados os valores das doações feitas em adiantamento de legítima, não houver no acervo bens suficientes para igualar as legítimas dos descendentes e do cônjuge, os bens assim doados serão conferidos em espécie, ou, quando deles já não disponha o donatário, pelo seu valor ao tempo da liberalidade”. Interpretando o dispositivo, conforme ensina Maria Helena Diniz, nosso ordenamento jurídico adotou o sistema da colação em substância, pois “a mesma coisa doada em adiantamento da legítima ao descendente e ao cônjuge (arts. 544 e 2.003, parágrafo único, segunda parte, do Código Civil) deve ser trazida à colação. O ideal seria que o bem doado permanecesse com o donatário, seja ele descendente ou cônjuge e que, com os
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demais bens do acervo, fossem igualadas as legítimas dos outros herdeiros necessários. Entretanto, se, ao tempo da abertura da sucessão por morte do doador, não houver no acervo hereditário bens suficientes para igualar a legítima, a coisa doada deverá ser conferida em espécie, e se os donatários (descendentes ou cônjuge) não mais a tiverem, deverão trazer à colação o seu valor correspondente, hipótese em que se terá a colação ideal (RT 697:154). Tal valor é o que a coisa doada possuía ao tempo da liberalidade (DINIZ, Maria Helena. Código Civil..., 2003, p. 1.356). No que concerne ao valor de colação dos bens doados, será aquele, certo ou estimativo, que lhes atribuir o ato de liberalidade, ou seja, quando da doação (art. 2.004, caput, do CC). Relativamente ao valor estimativo, o juiz do inventário pode nomear um perito para a sua determinação, se houver dificuldades na fixação do quantum. Há certa contradição entre esse último comando legal e o art. 1.014 do CPC, segundo o qual: “No prazo estabelecido no art. 1.000, o herdeiro obrigado à colação conferirá por termo nos autos os bens que recebeu ou, se já os não possuir, trar-lhes-á o valor. Parágrafo único. Os bens que devem ser conferidos na partilha, assim como as acessões e benfeitorias que o donatário fez, calcular-se-ão pelo valor que tiverem ao tempo da abertura da sucessão”. A contradição está presente, pois o Código Civil menciona o valor do bem ao tempo da doação, enquanto o CPC fala no momento da abertura da sucessão. A solução é apontada por Zeno Veloso, que afirma que o Código Civil de 2002 revoga o art. 1.014 do Código de Processo Civil (Comentários..., 2003, p. 419). Trata-se de uma questão
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de direito intertemporal. Caso o falecimento tenha ocorrido em período anterior à vigência do Código Civil de 2002, as suas regras não produzem efeitos, aplicando-se apenas o previsto no Código de Processo Civil, ou seja, o valor dos bens a ser colacionado é o do tempo da abertura da sucessão. Já para as sucessões abertas na vigência do novo Código Civil, o valor é o do tempo da liberalidade. Aplica-se, assim, o art. 2.035 do Código Civil de 2002. No que interessa ao valor do bem ao tempo da doação, eventual valorização ou desvalorização da coisa deve ser desconsiderada, mas de qualquer forma o valor histórico deve ser monetariamente corrigido até o momento da abertura da sucessão (RODRIGUES, Silvio. Direito civil..., 2002, v. 7, p. 319; AMORIM, Sebastião e OLIVEIRA, Euclides. Inventários e partilhas..., 2006, p. 378). Em sentido contrário, apresentando solução diferente para sanar essa suposta antinomia jurídica, prevê o Enunciado n. 119 CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, que, “para evitar o enriquecimento sem causa, a colação será efetuada com base no valor da época da doação, nos termos do caput do art. 2.004, exclusivamente na hipótese em que o bem doado não mais pertença ao patrimônio do donatário. Se, ao contrário, o bem ainda integrar seu patrimônio, a colação se fará com base no valor do bem na época da abertura da sucessão, nos termos do art. 1.014 do CPC, de modo a preservar a quantia que efetivamente integrará a legítima quando esta se constituiu, ou seja, na data do óbito (resultado da interpretação sistemática do art. 2.004 e seus parágrafos, juntamente com os arts. 1.832 e 884 do Código Civil)”.
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Discordamos do teor do enunciado, pois nos parece que a regra no novo sistema é a colação em substância caso o bem ainda integre o patrimônio do donatário. Se do ato de doação não constar valor certo, nem houver estimação feita naquela época, os bens serão conferidos na partilha de acordo com o seu valor ao tempo da liberalidade (art. 2.004, § 1.º, do CC). Só o valor dos bens doados entrará em colação (art. 2.004, § 2.º, do CC). Pelo último dispositivo, não entram na colação os valores correspondentes às benfeitorias acrescidas, as quais pertencerão ao herdeiro donatário, correndo também à conta deste os rendimentos ou lucros (frutos civis), assim como as perdas e danos que os bens sofrerem, que deverão ser suportados pelo donatário. O art. 2.005 do atual Código Civil trata da dispensa da colação das doações que saíram da parte disponível da herança. A dispensa é possível, desde que tais liberalidades não excedam essa parte disponível, ou seja, desde que não ingressem na parte da legítima, computado o seu valor ao tempo da doação. A lei presume imputada na parte disponível a liberalidade feita a descendente que, ao tempo do ato, não seria chamado à sucessão na qualidade de herdeiro necessário (art. 2.005, parágrafo único, do CC). A presunção é relativa ou iuris tantum, e o exemplo a ser citado é o de uma doação realizada a um neto, cujo pai, sucessor legítimo, está vivo. Ainda no tocante à dispensa da colação, esta pode ser outorgada pelo doador em testamento, ou no próprio título de liberalidade (art. 2.006 do CC). Assim, a dispensa da colação também pode constar do próprio instrumento de doação, como decorrência da autonomia privada do
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doador. Para tanto, devem-se respeitar todos os requisitos de validade do negócio jurídico, extraídos do art. 104 do CC: partes capazes; vontade livre (sem vícios); objeto lícito, possível e determinado ou determinável; forma prescrita e não defesa em lei. Isso sob pena de nulidade (arts. 166 e 167 do CC) ou anulabilidade (art. 171 do CC) do ato de dispensa da colação. Não virão à colação os gastos ordinários do ascendente com o descendente, enquanto menor, em sua educação, estudos, sustento, vestuário, tratamento de enfermidades, enxoval, assim como as despesas de casamento, ou as feitas no interesse de sua defesa em processo-crime. É o que enuncia o art. 2.010 da atual codificação, que apesar da vedação do enriquecimento sem causa, entende que tais valores foram gastos não como liberalidades, mas como dever do ascendente. No mesmo sentido, as doações remuneratórias de serviços feitos ao ascendente também não estão sujeitas a colação (art. 2.011 do CC). As doações remuneratórias, nos termos do art. 540 do CC, não constituem ato de liberalidade, mas sim valores pagos por um serviço prestado. Se o serviço for feito pelo descendente no interesse do ascendente, não haverá necessidade de colacionar o bem doado. Ilustrando, podemos citar o caso de um filho que salva a vida de seu pai que iria se afogar, e recebe uma doação por sua atitude heroica. A norma é correta e perfeitamente justificável. Vale lembrar, ainda, que justamente pela inexistência de liberalidade é que a doação remuneratória não pode ser revogada por ingratidão (art. 564, I, do CC). Encerrando o tratamento no Código Civil, prescreve o seu art. 2.012 que, sendo feita a doação por ambos os
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cônjuges, no inventário de cada um se conferirá por metade. No caso em questão, serão aplicadas, de forma concomitante, as regras de procedimento vistas anteriormente. Como a norma não é restritiva, não vemos problemas em aplicá-la também para a união estável. Nesse sentido, ensina Zeno Veloso que, “dando uma interpretação compreensiva ao dispositivo, havemos de concluir que se aplica ao caso de a doação ser feita ao descendente por ambos os companheiros, se a família é constituída por uma união estável” (Comentários..., 2003, p. 432). No campo prático e processual, se o herdeiro negar o recebimento dos bens ou a obrigação de os conferir, o juiz, ouvidas as partes no prazo comum de cinco dias, decidirá à vista das alegações e provas produzidas. Essa é a regra do art. 1.016, caput, do CPC, sendo certo que essa decisão do juiz é interlocutória no processo de inventário, sendo passível de agravo (NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil..., 2006, p. 1.023). Mas, havendo questão de alta indagação, haverá remessa às vias ordinárias (art. 1.016, § 2.º, do CPC). Enquanto pender essa demanda, o herdeiro não poderá receber o seu quinhão hereditário, a não ser que preste caução correspondente ao valor dos bens discutidos em juízo. Por derradeiro, determina o CPC que, sendo declarada improcedente a oposição, se o herdeiro, no prazo improrrogável de cinco dias, não proceder à conferência, o juiz mandará sequestrar-lhe os bens sujeitos à colação, para serem inventariados e partilhados (art. 1.016, § 1.º, do CPC). Cabe, ainda, a imputação ao seu quinhão hereditário do valor desses bens, se já não os possuir.
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4.5.2 Redução das doações inoficiosas A colação dos bens doados não se confunde com a redução da doação inoficiosa. Se for o caso de uma doação que exceda a parte que poderia ser disposta (inoficiosa), fica ela sujeita a redução, conforme o art. 2.007 do CC. O dispositivo em questão é decorrência do art. 549 do mesmo Código, que considera nula a doação inoficiosa na parte que exceder o que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Haveria prazos para a redução da doação inoficiosa? Na opinião dos presentes autores, a resposta é negativa, pois, sendo nula, a ação é declaratória e não estaria sujeita a prazos. Ademais, nos termos do art. 169 do CC, a nulidade não convalesce pelo decurso do tempo. Assim, não há necessidade de aguardar o falecimento do doador para propositura da ação de redução, em caso de doação inoficiosa. Em outras palavras, poderá ser proposta, mesmo estando vivo o doador que instituiu a liberalidade viciada. Visando a esclarecer, o Projeto de Lei 699/2011 (antigo PL 6.960/2002) pretende acrescentar um parágrafo único ao art. 549, com o seguinte teor: “Art. 549. (...) Parágrafo único. A ação de nulidade pode ser intentada mesmo em vida do doador”. A proposta confirma o entendimento doutrinário atual, que já pode ser invocado na prática cível (ALVES, Jones Figueirêdo. Código Civil..., 2008, p. 500; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil..., 2007, v. III, p. 270). Todavia, quanto ao prazo, surge um outro entendimento no sentido de que, pelo fato de a questão envolver direitos patrimoniais, está sujeita a prazo prescricional, que é próprio dos direitos subjetivos. Como não há prazo
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especial previsto, deverá ser aplicado o prazo geral de prescrição. Na vigência do CC/1916 esse prazo era de vinte anos; na vigência do CC/2002 é de dez anos (art. 205). Quanto à aplicação do prazo geral de prescrição para essa hipótese, entendeu o Superior Tribunal de Justiça: “Civil e processual. Acórdão estadual. Nulidade não configurada. Ação de reconhecimento de simulação cumulada com ação de sonegados. Bens adquiridos pelo pai, em nome dos filhos varões. Inventário. Doação inoficiosa indireta. Prescrição. Prazo vintenário, contado da prática de cada ato. Colação dos próprios imóveis, quando ainda existentes no patrimônio dos réus. Exclusão das benfeitorias por eles realizadas. CC anterior, arts. 177, 1.787 e 1.732, § 2.º. Sucumbência recíproca. Redimensionamento. CPC, art. 21. Se a aquisição dos imóveis em nome dos herdeiros varões foi efetuada com recursos do pai, em doação inoficiosa, simulada, em detrimento dos direitos da filha autora, a prescrição da ação de anulação é vintenária, contada da prática de cada ato irregular. Achando-se os herdeiros varões ainda na titularidade dos imóveis, a colação deve se fazer sobre os mesmos e não meramente por seu valor, a teor dos arts. 1.787 e 1.792, § 2.º, do Código Civil anterior. Excluem-se da colação as benfeitorias agregadas aos imóveis realizadas pelos herdeiros que os detinham (art. 1.792, § 2.º). Sucumbência recíproca redimensionada, em face da alteração decorrente do acolhimento parcial das teses dos réus. Recurso especial conhecido em parte e provido” (STJ, REsp 259.406/PR (200000489140), 600816. Data da decisão: 17.02.2005, 4.ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 04.04.2005, p. 314).
Superada essa questão controvertida, os parágrafos do art. 2.007 do CC disciplinam essa redução. O excesso será apurado com base no valor que os bens doados tinham no
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momento da liberalidade (§ 1.º). A redução da liberalidade far-se-á pela restituição ao monte do excesso assim apurado (§ 2.º). De início, a restituição será em espécie. Se não mais existir o bem em poder do donatário, a redução será em dinheiro, segundo o seu valor ao tempo da abertura da sucessão. Em todos os casos, prevê a lei que devem ser observadas, no que forem aplicáveis, as regras previstas na codificação para a redução das disposições testamentárias. Também estará sujeita à redução a parte da doação feita a herdeiros necessários que exceder a legítima e mais a quota disponível (§ 3.º). Dessa forma, um herdeiro necessário que foi beneficiado além do que deveria também pode, por óbvio, ser atingido pela redução. Por fim, sendo várias as doações a herdeiros necessários, feitas em diferentes datas, serão elas reduzidas a partir da última, até a eliminação do excesso (§ 4.º). Além disso, enuncia o art. 2.008 do CC que aquele que renunciou à herança ou dela foi excluído deve, mesmo assim, conferir as doações recebidas, para o fim de repor o que exceder a parte disponível. Em suma, mesmo o renunciante à herança e o excluído por indignidade devem trazer à colação, no que tange à parte inoficiosa, os bens recebidos. A doutrina majoritária entende que o dispositivo também deve incluir aquele que foi deserdado, entendimento este que deve ser considerado para fins de provas, prática e concursos públicos (VELOSO, Zeno. Comentários..., 2003, p. 427; e DINIZ, Maria Helena. Código Civil..., 2003, p. 1.359). No mesmo sentido, aliás, determina o art. 1.015 do CPC que “o herdeiro que renunciou à herança ou o que
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dela foi excluído não se exime, pelo fato da renúncia ou da exclusão, de conferir, para o efeito de repor a parte inoficiosa, as liberalidades que houve do doador”. O § 1.º desse comando processual consagra a licitude do ato do donatário ao escolher, entre os bens doados, tantos quantos bastem para perfazer a legítima e a metade disponível, entrando na partilha o excedente para ser dividido entre os demais herdeiros. Em casos de exceção, se a parte inoficiosa da doação recair sobre bem imóvel, que não comporte divisão cômoda, o juiz determinará que sobre ela se proceda entre os herdeiros a licitação. Nessas situações, o donatário poderá concorrer na licitação e, em igualdade de condições, preferirá aos herdeiros (art. 1.015, § 2.º, do CPC). Como se pode perceber, o dispositivo processual traz aqui um direito de preferência a favor do donatário. Não se deve confundir a redução da doação inoficiosa com a redução das disposições testamentárias, que, conforme já visto ao se estudar o art. 1.967 do CC, trata das cláusulas previstas em testamento que invadem a legítima, as quais só produzirão efeitos após a morte do testador. A doação inoficiosa sujeita à redução que acabamos de estudar foi realizada em vida pelo falecido. Por fim, criamos alguns exemplos que ilustram bem a diferença entre a colação e a redução das doações inoficiosas e que podem ajudar na solução de questões práticas. EXEMPLO 1: José, que é pai de 2 filhos, doa sua casa (único bem) a seu sobrinho. Pergunta-se: Houve invasão da legítima? SIM.
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Deve haver redução da disposição? SIM. Existe o dever de colacionar o bem? NÃO, pois o sobrinho não precisa colacionar (art. 2.002 do CC). Dessa forma, deverão ser aplicadas as regras previstas no art. 2.007: Redução da doação em 50% da disposição para preservar a legítima, sendo atribuídos 50% da casa para os filhos (herdeiros necessários) e 50% para o sobrinho. E se a casa já foi vendida? Nesse caso, o sobrinho deverá colacionar em dinheiro o valor de 50% da casa, apurado na data da sucessão.
EXEMPLO 2: José, que é proprietário de duas casas de igual valor, doou uma delas a seu filho João. Antonio, seu outro filho, nada recebeu. Pergunta-se: Houve invasão da legítima? NÃO. Deve haver redução da disposição? NÃO. Existe o dever de colacionar o bem? Depende, podendo incidir as seguintes variações: NÃO. Se no título de doação consta expressamente que se trata de doação da parte disponível, não haverá necessidade de colação (art. 2.005 do CC). Dessa forma, a casa que sobrou no patrimônio do pai será dividida em partes iguais entre João e Antonio. Portanto, João receberá a casa doada e a metade da outra (que o pai deixou ao morrer), pois, em vida, pretendeu o pai deixar mais bens para este (da parte disponível) do que para o outro (Antonio).
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SIM. Se o título foi omisso ou declarou que se tratava de antecipação da legítima, então haverá necessidade de colacionar o bem. No entanto, pelo fato de o pai ter falecido e deixado uma casa restante em seu patrimônio e de este bem ser suficiente para igualar a legítima, não há que se colacionar a casa doada (em substância ou em seu valor em dinheiro), bastando atribuí-la ao herdeiro Antonio (art. 2.003, parágrafo único, do CC). Nesta segunda hipótese, João ficará com a casa que recebeu em doação e Antonio com aquela que seu pai deixou ao falecer. Portanto, ambos receberão idêntico patrimônio, pois presume-se que o pai, em vida, não pretendeu fazer diferença entre os seus filhos.
EXEMPLO 3: José, que é proprietário de uma casa, doou o bem a seu filho João. Antonio, seu outro filho, nada recebeu. Pergunta-se: Houve invasão da legítima? SIM. Deve haver redução da disposição? SIM. Como o pai doou 100% de seu patrimônio, invadiu a porção legítima. Logo, 50% do bem deve retornar, a título de redução, ao patrimônio do pai para serem partilhados entre os dois filhos. Existe o dever de colacionar o bem? Depende, podendo incidir as seguintes variações: NÃO. Se no título de doação declarou-se expressamente que se trata de doação da parte disponível, não haverá necessidade de proceder à colação (art. 2.005 do CC). Sendo assim, João ficará com 75% do bem (50% recebidos por doação e referentes à parte disponível dos bens de seu pai
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e 25% que receberá a título de sucessão), enquanto Antonio ficará com 25% (referentes à legítima). SIM. Se o título foi omisso ou declarou se tratar de antecipação da legítima, então haverá necessidade de colacionar os bens. Nesta situação, presume-se que o pai não pretendia fazer diferença entre os filhos, razão pela qual o bem deverá voltar ao seu patrimônio para ser igualmente dividido entre João e Antonio (50% para cada um).
EXEMPLO 4: José é proprietário de quatro casas de igual valor e pai de dois filhos, Antonio e João. Doou a João três casas, sendo que a primeira transmissão ocorreu em 1995, a segunda em 1998 e a terceira em 1999. A casa que sobrou permaneceu no patrimônio do pai. Pergunta-se: Houve invasão da legítima? SIM. Deve haver redução da disposição? SIM. Por quê? Em 1995 José doou uma de suas quatro casas a seu filho João, restando mais três em seu patrimônio. Não havia invasão da legítima. Em 1998, doou ao mesmo filho a segunda casa, o que também não causou invasão à legítima, pois o patrimônio considerado remonta à data da primeira doação. Posteriormente, em 1999, doou a terceira casa, invadindo, consequentemente, a legítima. Como fazer a redução (art. 2.007, §§ 2.º e 4.º)? A última casa doada (em 1999) deverá retornar ao patrimônio do de cujus em espécie (a própria casa). Entretanto, se a casa já foi vendida, deverá ser restituído o seu valor em dinheiro, segundo o valor da casa ao tempo da abertura da sucessão (art. 2.007, § 2.º).
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Existe o dever de colacionar o bem? Depende, podendo incidir as seguintes variações: NÃO. Se os títulos de doação declararem expressamente que se trata de doação da parte disponível, não haverá necessidade de proceder à colação (art. 2.005). Sendo assim, João ficará com as duas casas doadas em 1995 e 1998, a título de adiantamento da disponível. A casa doada em 1999, que retornou ao patrimônio do falecido pela redução da doação inoficiosa e a quarta casa serão partilhadas na proporção de 50% para João e 50% para Antonio. SIM. Se o título foi omisso ou declarou se tratar de antecipação de legítima, então haverá necessidade de colacionar os bens, pois nesta situação presume-se que o pai não pretendia fazer diferença entre os filhos. Pelo fato de a casa doada em 1999 (ou seu valor em dinheiro ao tempo da sucessão em caso de venda do bem – art. 2.007, § 2.º) ter retornado ao patrimônio do falecido por força da redução operada, a sucessão ficará da seguinte maneira: – por se tratar de antecipação de legítima, João deverá colacionar as casas recebidas em 1995 e 1998 e ficará com a propriedade de ambas; – Antonio ficará com as duas casas: aquela que ficou com seu pai ao falecer e aquela que era de João (doada em 1999), que retornou ao patrimônio do pai em razão da redução da doação inoficiosa.
Assim, o patrimônio foi igualmente dividido entre João e Antonio. EXEMPLO 5: José é proprietário de quatro casas de igual valor, doando todas elas para o seu filho João, sendo
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a primeira em 1995, a segunda em 1998, a terceira em 1999 e a quarta em 2000. Antonio, seu outro filho, nada recebeu. Pergunta-se: Houve invasão da legítima? SIM. Deve haver redução da disposição? SIM. Por quê? Em 1995, quando José era proprietário de quatro casas, doou uma delas, restando outras três em seu patrimônio, sem que tal ato caracterizasse invasão da legítima. Em 1998, doou a segunda casa, o que também não causa invasão à legítima, pois o patrimônio considerado remonta à data da primeira doação. Em 1999, quando doou a terceira a João, houve invasão à legítima, o mesmo ocorrendo em 2000, época em que o patrimônio foi exaurido. Como fazer a redução (art. 2.007, §§ 2.º e 4.º)? A última casa doada (em 2000) deverá retornar ao patrimônio do de cujus em espécie (a própria casa). Em razão de ainda persistir a insuficiência da legítima, também deverá retornar ao patrimônio a casa doada em 1999. Entretanto, se uma das casas já foi vendida, o seu valor em dinheiro, ao tempo da abertura da sucessão, deverá retornar ao monte (art. 2.007, § 2.º).
Existe o dever de colacionar o bem? Depende, podendo incidir as seguintes variações: NÃO. Se os títulos de doação declararem expressamente que se trata de doação da parte disponível, não haverá necessidade de proceder à colação (art. 2.005). Sendo assim, João ficará com as duas casas doadas em 1995 e 1998. As casas doadas em 1999 e 2000 retornarão ao patrimônio
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do pai em razão da redução e deverão ser partilhadas entre João e Antonio, na proporção de 50% para cada um. O primeiro filho receberá duas casas a título de adiantamento da parte disponível. SIM. Se o título foi omisso ou declarou se tratar de antecipação de legítima, então haverá necessidade de colacionar os bens. Nessa situação, presume-se que pelo fato de ter havido antecipação de legítima não pretendeu o pai fazer diferença entre os filhos. Sendo assim, as casas doadas em 1999 e 2000 (ou os seus respectivos valores em dinheiro ao tempo da sucessão em caso de venda do bem – art. 2.007, § 2.º) deverão retornar ao patrimônio do falecido por força da redução operada, ficando a sucessão da seguinte maneira: – por se tratar de antecipação de legítima, João deverá colacionar as casas doadas em 1995 e 1998 e ficará com a propriedade de ambas; – Antonio ficará com as duas casas restantes anteriormente doadas, mas que retornaram ao patrimônio do pai em razão da redução da doação inoficiosa.
Assim, o patrimônio foi igualmente dividido entre João e Antonio.
4.6 DA PARTILHA Com é notório, a partilha é o instituto jurídico pelo qual cessam a indivisibilidade e a imobilidade da herança, uma vez que os bens são divididos entre os herdeiros do falecido. Trata-se do momento pelo qual os herdeiros
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aguardam ansiosamente, sendo certo que a partilha tem efeito declaratório e não constitutivo (VELOSO, Zeno. Comentários..., 2003, p. 1.870). Em relação à matéria, também devem ser estudadas as regras previstas tanto no Código Civil (arts. 2.013 a 2.022) quanto no Código de Processo Civil (arts. 1.022 a 1.030). Passaremos à análise desses dispositivos. De início, prevê o Código Civil que o herdeiro pode sempre requerer a partilha, ainda que o testador o proíba, cabendo igual faculdade aos seus cessionários e credores (art. 2.013 do CC). Percebe-se que o direito à partilha constitui um direito do herdeiro inafastável pela vontade do testador. A partir dos ensinamentos da melhor doutrina, e pelo que consta do Código Civil, podem ser apontadas três espécies de partilha: a amigável (ou extrajudicial), a judicial e a em vida (DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2005, v. 6, p. 412). 4.6.1 Partilha amigável ou extrajudicial A partilha será amigável na hipótese em que todos os herdeiros forem capazes, fazendo-se por escritura pública, por termo nos autos do inventário ou por escrito particular, homologado pelo juiz (arts. 2.015 do CC e 1.029 do CPC). Nesse caso, não há qualquer conflito entre os herdeiros. A Lei 11.411, de 4 de janeiro de 2007 que instituiu o inventário extrajudicial, conforme dito anteriormente, alterou a redação do art. 1.031 do CPC para fins de adequação da remissão legislativa. Isso porque o CPC fazia remissão
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ao art. 1.773 do Código Civil de 1916 e, com a alteração, a remissão agora é feita ao art. 2.015 do Código Civil de 2002. Frise-se que não há alteração de conteúdo e, assim, tal mudança não produz qualquer feito prático. Aliás, a partir dessa constatação, conforme mensagem eletrônica enviada por Euclides de Oliveira aos autores desta obra, em 19 de janeiro de 2007, pode-se dizer que o inventário extrajudicial feito por escritura pública não necessita de posterior homologação judicial. Explica o mestre Euclides de Oliveira que “com efeito, o art. 1.º da Lei 11.441, ao dar nova redação ao art. 982 do CPC, contém duas disposições separadas por ponto e vírgula: primeiro, mantém o inventário judicial, ‘havendo testamento ou interessado incapaz’; depois, abre exceção para a hipótese de serem todos ‘capazes e concordes’, proclamando que poderão fazer o inventário e a partilha por escritura pública, ‘a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário’. Nada fala sobre homologação judicial. Sucede que o art. 2.º da nova lei, ao modificar o art. 1.031 do CPC, que cuida do arrolamento sumário, diz que a partilha amigável, celebrada por partes capazes, nos termos do art. 2.105 do CC, será ‘homologada de plano pelo juiz’. Então, nesses termos, seria necessária a homologação de todas as partilhas amigáveis celebradas por pessoas capazes e concordes? Não. O art. 1.031 do CPC precisava ser reparado, e por isso a nova redação, mas apenas para substituir a antiga referência ao art. 1.773 do CC revogado, pondo, em seu lugar, o art. 2.015 do atual CC, que cuida da partilha amigável”. Vai além Euclides de Oliveira: “O procedimento judicial, para tais casos, permanece mas fica reservado aos casos de exigência dessa via, quando haja testamento, ou
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quando as partes optem pela abertura do inventário em Juízo. Por outras palavras, mantém-se o art. 1.031 do CPC, com arrolamento sumário pela via judicial, mas só para as hipóteses em que seja necessária essa forma procedimental ou que essa seja escolhida pelas partes. Nos outros casos, quando não haja testamento e as partes maiores e capazes optem pela via administrativa, será bastante a escritura pública, como título hábil para o registro imobiliário, nos precisos termos da nova redação dada pelo art. 1.º da nova lei ao art. 982 do CPC. Não fosse assim, teríamos retornado à estaca zero do sistema legal anterior que sempre admitiu partilhas amigáveis por escritura pública nos inventários e arrolamentos sob homologação judicial. E a lei, nessa absurda situação, somente teria inovado com relação aos processos de separação e divórcio consensuais, fazendo tabula rasa da extensão ao inventário e partilha, constante da própria ementa que explicita o objetivo da norma inovadora. Anoto que os notários já estão praticando escrituras de inventário e partilha com plenos efeitos, independente de homologação judicial, e sem maiores questionamentos a esse respeito.” Como o objetivo da Lei 11.441/2007 foi a celeridade, diminuindo a burocracia, deve-se concordar plenamente com as palavras de Euclides de Oliveira. 4.6.2 Partilha judicial Essa espécie de partilha é obrigatória para os casos em que há divergência entre os herdeiros ou quando algum deles for incapaz (art. 2.016 do CC). O CPC traz procedimentos específicos. Vejamos tais regras.
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De início, dispõe o art. 1.022 do CPC que separados os bens para pagamento dos credores para a respectiva praça ou leilão, o juiz facultará às partes que, no prazo comum de dez dias, formulem o pedido de quinhão. Em seguida o juiz proferirá, também no prazo de dez dias, o despacho de deliberação da partilha, resolvendo os pedidos das partes e designando os bens que devem constituir quinhão de cada herdeiro e legatário. Nos termos do art. 1.023 do CPC, o partidor – denominação dada ao agente do órgão do Poder Judiciário responsável pela organização da partilha – fará o esboço da partilha de acordo com a decisão, observando nos pagamentos a seguinte ordem: 1.º) dívidas atendidas; 2.º) meação do cônjuge; 3.º) meação disponível; 4.º) quinhões hereditários, a começar pelo coerdeiro mais velho. Feito o esboço, dirão sobre ele as partes no prazo comum de cinco dias. Resolvidas as reclamações, será a partilha lançada nos autos (art. 1.024 do CPC). Enuncia o art. 1.025 do CPC que da partilha constará: I) Um auto de orçamento, que mencionará: a) os nomes do autor da herança, do inventariante, do cônjuge supérstite, dos herdeiros, dos legatários e dos credores admitidos; b) o ativo, o passivo e o líquido partível, com as necessárias especificações; c) o valor de cada quinhão. II) De uma folha de pagamento para cada parte, declarando a quota a pagar-lhe, a razão do pagamento, a relação dos bens que lhe compõem o quinhão, as características que os individualizam e os ônus que os gravam.
O auto e cada uma das folhas serão assinados pelo juiz e pelo escrivão (art. 1.025, parágrafo único, do CPC). Pago
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o imposto de transmissão a título de morte e juntada aos autos a certidão ou a informação negativa de dívida para com a Fazenda Pública, o juiz julgará por sentença a partilha (art. 1.026 do CPC). Trata-se da sentença homologatória da partilha, que é passível de recurso de apelação. Passada em julgado essa sentença, receberá o herdeiro os bens que lhe tocarem e um formal de partilha, que serve de prova da divisão dos bens, do qual constarão as seguintes peças, nos termos do art. 1.027 do CPC: I) termo de inventariante e título de herdeiros; II) avaliação dos bens que constituíram o quinhão do herdeiro; III) pagamento do quinhão hereditário; IV – quitação dos impostos; V – sentença. Vale dizer que o formal de partilha é fundamental para o registro da aquisição da propriedade imóvel, visando prová-la. Se for o caso, o formal de partilha poderá ser substituído por certidão do pagamento do quinhão hereditário, quando este não exceder cinco vezes o salário-mínimo vigente, na sede do juízo (art. 1.027, parágrafo único, do CPC). Nesse caso, se transcreverá na certidão a sentença de partilha transitada em julgado. Ainda depois de passar em julgado a sentença homologatória, a partilha poderá ser emendada nos mesmos autos do inventário, convindo todas as partes, quando tenha havido erro de fato na descrição dos bens (art. 1.028 do CPC). Sem prejuízo disso, preconiza o mesmo comando legal que o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, poderá, a qualquer tempo, corrigir-lhe as inexatidões materiais.
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4.6.3 Partilha em vida Constitui a forma de partilha feita por ascendente a descendentes, por ato inter vivos ou de última vontade, abrangendo os seus bens de forma total ou parcial, desde que respeitados os parâmetros legais, caso da reserva da legítima (art. 2.018 do CC); bem como o mínimo para que o estipulante viva com dignidade – estatuto jurídico do patrimônio mínimo, que pode ser retirado, por exemplo, do art. 548 do CC. Nesse sentido, também, pode o testador indicar os bens e valores que devem compor os quinhões hereditários (art. 2.014 do CC). Mais especificamente, determina tal dispositivo que pode o testador deliberar o procedimento da partilha, que prevalecerá, salvo se o valor dos bens não corresponder às quotas estabelecidas. Segundo Maria Helena Diniz, essa forma de partilha facilita a fase de liquidação do inventário no processo de partilha, “homologando-se a vontade do testador que propôs uma divisão legal e razoável” (Curso..., 2005, v. 6, p. 415). Como bem explica Zeno Veloso, a partilha em vida pode se realizar de duas maneiras. A primeira equivale a uma doação, e a divisão dos bens entre os herdeiros tem efeito imediato, antecipando o que estes iriam receber somente após a morte do ascendente (partilha-doação). A segunda é a partilha-testamento, feita no ato mortis causa, que só produz efeitos com a morte do ascendente e deve seguir a forma de testamento (Comentários..., 2003, p. 437). Superada a análise dessa relevante classificação, bem como dos seus respectivos procedimentos, o art. 2.017 do CC traz uma importante recomendação para todas as
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espécies de partilha, ao prever que, “no partilhar os bens, observar-se-á, quanto ao seu valor, natureza e qualidade, a maior igualdade possível”. Trata-se do princípio da igualdade da partilha, regramento importantíssimo para o instituto em estudo. Também no tocante aos procedimentos de todas as espécies de partilha, os bens insuscetíveis de divisão cômoda, que não couberem na meação do cônjuge sobrevivente ou no quinhão de um só herdeiro, serão vendidos judicialmente, partilhando-se o valor apurado, a não ser que haja acordo para serem adjudicados a todos (art. 2.019, caput, do CC). Contudo, não se fará a venda judicial se o cônjuge sobrevivente ou um ou mais herdeiros requererem lhes seja adjudicado o bem, reembolsando aos outros, em dinheiro, a diferença, após avaliação atualizada (art. 2.019, § 1.º, do CC). Se a adjudicação for requerida por mais de um herdeiro, observar-se-á o processo da licitação, e aquele que pagar o melhor preço ficará com o bem disputado (art. 2.019, § 2.º, do CC). Os herdeiros em posse dos bens da herança, o cônjuge sobrevivente e o inventariante são obrigados a trazer ao acervo os frutos que perceberam desde a abertura da sucessão (art. 2.020 do CC). Como os frutos são bens acessórios, por óbvio seguem o principal, compondo o acervo hereditário. Todavia, os herdeiros que estão com tais bens têm direito ao reembolso das despesas necessárias e úteis que fizeram, e respondem pelo dano a que, por dolo ou culpa, deram causa. Como se vê, o tratamento é semelhante ao possuidor de boa-fé, constante dos arts. 1.219 e 1.217 do CC, respectivamente.
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Se parte da herança consistir em bens remotos do lugar do inventário, litigiosos, ou de liquidação morosa ou difícil, poderá proceder-se, no prazo legal, à partilha dos outros, sobre os quais não paira a dificuldade de partilha ou a litigiosidade (art. 2.021 do CC). Nesse caso, deve-se reservar aqueles bens para uma ou mais sobrepartilhas, sob a guarda e a administração do mesmo ou de diverso inventariante, e consentimento da maioria dos herdeiros. Por fim, preconiza o Código Civil em vigor que também ficam sujeitos à sobrepartilha os bens sonegados e quaisquer outros bens da herança de que se tiver ciência após a partilha (art. 2.022 do CC). Somente para lembrar, a sobrepartilha importa em uma nova partilha de bens, devendo ser observados os procedimentos de acordo com as espécies já comentadas.
4.7 DA GARANTIA DOS QUINHÕES HEREDITÁRIOS. A RESPONSABILIDADE PELA EVICÇÃO Julgada a partilha no processo de inventário, cada um dos herdeiros terá direito aos bens correspondentes ao seu quinhão. Essa é a regra do art. 2.023 do CC, que traz como conteúdo a cessação do caráter imóvel e indivisível da herança, bem como o outrora citado caráter declaratório da partilha. Como efeito dessa declaração, os coerdeiros são reciprocamente obrigados a indenizar-se no caso de evicção dos bens aquinhoados (art. 2.024 do CC). A garantia
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quanto à evicção é a única prevista em relação à partilha, não havendo tratamento quanto aos vícios redibitórios, como acontece com relação aos contratos comutativos. Como é notório, a evicção constitui a perda de uma coisa em virtude de uma decisão judicial ou de ato administrativo que a atribui a terceiro (arts. 447 a 457 do CC). Assim, também quando da partilha há uma garantia legal em relação à evicção. A norma do art. 2.024 do CC se justifica, pois a regra da responsabilidade e dos efeitos referentes à evicção são contratuais e, como se sabe, os institutos de direito sucessório não recebem o mesmo tratamento que os contratos. Mas, eventualmente, cessa essa obrigação mútua, havendo convenção em contrário (art. 2.025 do CC). Nesse sentido, entendemos que são aplicáveis à partilha todas as regras referentes à evicção previstas na teoria geral dos contratos em seus arts. 447 a 457 do CC (confira-se o Volume 3 da presente coleção, Capítulo 5). Pelo mesmo dispositivo, cessa a garantia legal quanto à evicção e a responsabilidade dos demais herdeiros, se a perda ocorrer por culpa do evicto, ou por fato posterior à partilha. Em resumo, como se pode perceber, três são os casos em que não haverá mais a responsabilidade recíproca pela evicção: a) havendo acordo entre as partes sobre exclusão dessa responsabilidade; b) se a perda se der por culpa exclusiva de um dos herdeiros, não respondendo os demais; c) se a perda da coisa se der por fato posterior à partilha, como é o caso de extravio da coisa ou usucapião.
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Por fim, dispõe o art. 2.026 do CC que o evicto será indenizado pelos coerdeiros na proporção de suas quotas hereditárias. Mas, se algum dos herdeiros se achar insolvente, responderão os demais na mesma proporção pela sua parte, menos a quota que corresponderia ao indenizado.
4.8 DA ANULAÇÃO, DA RESCISÃO E DA NULIDADE DA PARTILHA A encerrar o livro sucessório, o Código Civil trata da anulação da partilha em um único dispositivo. Prevê o art. 2.027, caput, do CC que: “A partilha, uma vez feita e julgada, só é anulável pelos vícios e defeitos que invalidam, em geral, os negócios jurídicos”. Faz o mesmo, em parte, o art. 1.029, caput, do CPC, segundo o qual: “A partilha amigável, lavrada em instrumento público, reduzida a termo nos autos do inventário ou constante de escrito particular homologado pelo juiz, pode ser anulada, por dolo, coação, erro essencial ou intervenção de incapaz”. Desse modo, a partilha só é anulável nos casos previstos no art. 171 do CC, que trata das causas da anulabilidade do negócio jurídico, quais sejam a presença de incapacidade relativa do agente, o erro, o dolo, a coação, a lesão, o estado de perigo e a fraude contra credores. Consigne-se que o estado de perigo e a lesão não constam do CPC, pois a lei processual é anterior ao Código Civil de 2002, que introduziu essas duas novas formas de vícios do negócio jurídico. De qualquer forma, entendemos que é possível anular a partilha pela presença
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desses vícios, desde que estes ocorram na vigência do atual Código Civil, o que é aplicação do art. 2.035, caput, do CC. Em relação à fraude contra credores, compreendemos que esta pode gerar a anulação da partilha que não seja amigável. Quanto aos procedimentos, o parágrafo único do art. 2.027 do CC consagra prazo decadencial de um ano para anular a partilha. Como se vê, o dispositivo não trata do início da contagem do prazo, o que é elucidado pelo parágrafo único do art. 1.029 do CPC, pelo qual se decai do direito de propor ação anulatória de partilha amigável, em um ano, contado este prazo: – no caso de coação, do dia em que ela cessou; – no de erro ou dolo do dia em que se realizou o ato; – quanto ao incapaz, do dia em que cessar a incapacidade.
Não utilizaremos a expressão prevista no dispositivo do Código de Processo Civil “prescreve”, pois de acordo com o Código Civil e o critério científico de Agnelo Amorim filho, o prazo em estudo tem clara natureza decadencial, eis que a tutela pretendida é desconstitutiva da partilha. Por uma proximidade legal, entendemos que essa contagem também deve ser aplicada à partilha não amigável, por analogia (art. 4.º da Lei de Introdução). Do mesmo modo, aqui a lei silencia quanto ao estado de perigo e à lesão, situações que até podem ser raras, mas não impossíveis. Quanto à possibilidade de lesão, aliás, adverte Silvio de Salvo Venosa (Direito civil..., v. 7, p. 399). Nesses casos, o aplicador do direito deve procurar
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socorro em uma regra analógica, ou seja, aplicada na hipótese semelhante. Assim, aplicando-se o art. 1.029 do CPC, o prazo a ser considerado é de natureza decadencial e é de um ano, contado da data em que se realizou o ato (partilha). Além dos casos de anulação da partilha analisados, o art. 1.030 do CPC trata da rescisão da partilha julgada por sentença, por motivo posterior, a saber: I – nos casos de anulação da partilha; II – se feita com preterição de formalidades legais; III – se preteriu herdeiro ou incluiu quem não o seja.
Relativamente ao prazo para essa rescisão, a doutrina é unânime em apontar a aplicação do prazo decadencial de dois anos previsto para o ajuizamento de ação rescisória (art. 485 e ss. do CPC), contados do trânsito em julgado da homologação da partilha. É interessante perceber que a lei silencia quanto à nulidade da partilha. Por óbvio, aqui devem ser aplicadas as regras de nulidade do negócio jurídico, previstas nos arts. 166 e 167 do CC. Nesse sentido concluem Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil..., v. 7, p. 400), Maria Helena Diniz (Curso..., v. 6, p. 421) e Zeno Veloso (Comentários..., 2003, p. 443). Como os casos de nulidade absoluta não convalescem com o tempo (art. 169 do CC), entendemos que a ação de nulidade não está sujeita a prescrição ou decadência. Em relação ao último doutrinador, prefaciador desta obra, é sempre citado o seu convencimento de que, independentemente da forma como foi feita a partilha, se
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amigável ou judicial, havendo exclusão do herdeiro, a hipótese é de nulidade absoluta, “e o herdeiro prejudicado não fica adstrito à ação de anulação nem à rescisória, e seus respectivos prazos de decadência, podendo utilizar da querela nullitatis, da ação de nulidade ou de petição de herança, existindo decisões do STF (RE 97.546-2) e do STJ (REsp 45.693-2) que afirmam estar sujeita a prazo de prescrição longi temporis, de vinte anos, devendo ser observado que, por este Código, o prazo máximo de prescrição é de dez anos (art. 205)” (VELOSO, Zeno. Comentários..., 2003, p. 443). A única ressalva que deve ser feita é que o jurista, ao lado de outros e do entendimento majoritário, defende a aplicação da regra geral dos prazos de prescrição, que antes era de vinte anos (art. 177 do CC/1916) e agora de dez anos (art. 205 do CC/2002). Como já dissemos, para nós não há prazo para requerer a nulidade absoluta da partilha, até porque a questão é de ordem pública.
4.9 DOS PEDIDOS DE ALVARÁS EM INVENTÁRIO Além de todos os procedimentos analisados neste capítulo, é possível que, no inventário ou no arrolamento, constem pedidos de alvarás por parte dos herdeiros. Quanto ao tema, ensinam Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim que a expressão alvará tem o sentido de autorização, “por ser uma faculdade ou permissão ao interessado, sem obrigá-lo à utilização do instrumento. No campo dos inventários e arrolamentos, várias são as espécies de alvarás, conforme sejam requeridos nos autos do processo,
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ou em peças autônomas” (Inventários e partilhas..., p. 480). Aqui iremos demonstrar algumas formas de autorização que interessam à prática, seguindo o roteiro trilhado pela ótima obra dos doutrinadores paulistas. A forma mais comum de alvará é aquela denominada alvará incidental, “que será juntado aos autos, independentemente de distribuição, ensejando decisão interlocutória. As hipóteses mais comuns são de levantamento de depósitos, alienação, recebimento ou permuta de bens, outorga de escrituras, aplicação de numerários etc.” (AMORIM, Sebastião e OLIVEIRA, Euclides. Inventários e partilhas..., p. 481). Em relação aos procedimentos, lembram os juristas citados que deverá a Fazenda manifestarse, bem como o Ministério Público, quando houver interesses de incapazes ou ausentes. Após, essa manifestação, decidirá o juiz. Como essa decisão é interlocutória, estará sujeita a recurso de agravo. Ainda é possível o alvará em apenso na hipótese em que os pedidos são formulados por terceiros, que não os herdeiros, sendo o caso mais comum o de pedido de outorga de escritura definitiva de imóvel, conforme julgado a seguir: “Apelação Cível. Pedido de Alvará em Inventário para outorga de escritura definitiva de compra e venda a cessionários. Deferido o alvará para outorga de escritura ao comprador. Recurso provido” (TJSP, Apelação Cível 383.175-4/7-São Paulo, 5.ª Câmara de Direito Privado, Rel. A. C. Mathias Coltro, j. 1.º.06.2005, v.u.).
Nesse caso, além da manifestação da Fazenda e do Ministério Público, eventualmente deverão se manifestar os herdeiros do falecido, bem como o inventariante. Em
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havendo discordância ou divergência, o juiz do inventário pode determinar a instrução probatória. Decidindo o juiz, sua sentença estará sujeita a recurso de apelação. Com outra categoria importante, há o alvará independente ou autônomo, naqueles casos em que os bens deixados não necessitam de um processo de inventário ou de arrolamento. Como exposto, o art. 1.037 do CPC expressa prevê que independerá de inventário ou arrolamento o pagamento dos valores previstos na Lei 6.858/ 1980. Tais valores são aqueles que dependentes e sucessores deveriam ter recebido quando era vivo o falecido. A título de exemplo, podemos citar valores devidos a empregados do de cujus, levantamento de valores do FGTS, restituições de impostos de renda e levantamentos de saldos em contas bancárias, particularmente nos casos em que o pedido é formulado por pessoa que não seja dependente do falecido. Em relação ao procedimento, é ele bem simples, com pedido dirigido ao juiz do inventário, instruído com a devida prova documental, citando-se os herdeiros e a Fazenda Pública. O Ministério Público, mais uma vez, somente intervém nos caos envolvendo incapazes ou ausentes. Por fim, em algumas situações, dispensa-se até o pedido de alvará. É o caso de pedido formulado por quem é dependente do falecido, quanto ao levantamento de saldo de salários, FGTS, PIS/PASEP, saldos em bancos, restituição de tributos e seguro de vida. Nesses casos, cabe apenas um pedido administrativo perante a entidade pagadora ou depositária, sem a necessidade de intervenção judicial.
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4.10 RESUMO ESQUEMÁTICO Esquema judicial
do
procedimento
(arts. 982 a 1.021 do CPC)
do
inventário
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Fonte: Inventários e Partilhas. Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim. 18. ed. São Paulo: Leud, 2004 p. 386.
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4.11 QUESTÕES CORRELATAS 1. (MP/MG – 2011) Quanto ao Direito das Sucessões, é INCORRETO afirmar: (A) Os herdeiros capazes, bem como os incapazes, mediante representação por instrumento público, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular, homologado pelo juiz. (B) Os herdeiros em posse dos bens da herança, o cônjuge sobrevivente e o inventariante são obrigados a trazer ao acervo os frutos que perceberam, desde a abertura da sucessão; têm direito ao reembolso das despesas necessárias e úteis que fizeram, e respondem pelo dano a que, por dolo ou culpa, deram causa. (C) Ficam sujeitos a sobrepartilha os bens sonegados e quaisquer outros bens da herança de que se tiver ciência após a partilha. (D) A partilha, uma vez feita e julgada, só é anulável pelos vícios e defeitos que invalidam, em geral, os negócios jurídicos. 2. (MP/MG XLIV – 2004) Assinale a alternativa INCORRETA. (A) A lei não ilide a presunção legal da paternidade pelo simples fato de ter a mãe praticado e confessado o adultério na constância do casamento; (B) é defesa a condição puramente potestativa que obsta o negócio jurídico de todo efeito, mas são permitidas as condições que coadunam com a ordem jurídica;
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(C) o inventário, que será sempre judicial, deve ser requerido pelos herdeiros no prazo de 30 (trinta) dias e ultimando-o dentro de 1 (um) ano, salvo prorrogação por justa causa; (D) são bens particulares os vencimentos dos funcionários públicos, embora casados no regime de comunhão universal, sendo, portanto, incomunicáveis; (E) considera-se válida a emancipação voluntária concedida pelos pais, mediante escritura pública, sem homologação do Juiz e oitiva do Ministério Público (MP). 3. (MP/MG XLIV – 2004) Das alternativas abaixo: I – A sentença proferida em ação de sonegados, movida por um único herdeiro, aproveita aos credores dos demais herdeiros; II – não está sujeita ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) a empresa pública que presta serviços à população, aplicando-se a ela a legislação própria; III – pode ser excluído por indignidade o legatário que difama o testador três (3) anos após sua morte e concluído o inventário com partilha de bens; IV – verificando o Ministério Público que o pai aliena bens do filho, dilapidando seu patrimônio, poderá adotar medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e requerer em juízo a suspensão do poder familiar; V – pode o consumidor requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o CDC, não assegurando o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes.
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Estão CORRETAS: (A) somente I, II e V. (B) somente II, IV e V. (C) somente II, III e IV. (D) somente I, III e IV. (E) somente I, III e V. 4. (MP/ES – 2004) Assinale a alternativa correta: (A) O imposto sobre doação de bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal. (B) O vigente Sistema Tributário Nacional define o IPI como um imposto obrigatoriamente não cumulativo e seletivo, enquanto para o ICMS a adoção da não cumulatividade e da seletividade foi deixada a critério do legislador estadual. (C) O imposto provisório sobre a movimentação financeira (IPMF) e a contribuição provisória sobre a movimentação financeira (CPMF) foram instituídos pelo exercício da competência tributária residual da União Federal. (D) As contribuições para a manutenção da seguridade social são tributos não cumulativos. (E) O ISS, de competência dos Municípios e do Distrito federal, em razão de sua natureza de tributo indireto, é um imposto tipicamente não cumulativo. 5. (Juiz de Direito TJSP – 179º) Assinale a afirmação incorreta.
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(A) Compete ao inventariante dativo ajuizar ações em nome do espólio e defendê-lo nas ações que forem propostas em face dele. (B) No inventário, não havendo concordância de todas as partes sobre pedido de pagamento feito por credor do espólio, será ele remetido para os meios ordinários. (C) No inventário, a partilha, depois de transitada em julgado, poderá ser emendada nos mesmos autos para corrigir erro de fato na descrição dos bens, desde que concordes todas as partes. (D) Reservados bens para garantir os direitos de herdeiro excluído, a medida perderá eficácia se ele não propuser a ação ordinária que lhe competir no prazo de trinta dias contados da intimação da decisão que não o admitir no inventário. 6. (MP/PR 2009) A propósito da sucessão, pode-se afirmar: (A) A partilha por instrumento particular, uma vez firmada pelos herdeiros e homologada judicialmente, é anulável pelos vícios e defeitos que conduzem à anulabilidade dos atos jurídicos, respeitado, porém, o prazo decadencial de 01 (um) ano. (B) O direito de representação dá-se na linha reta descendente, não sendo outorgado em favor de ascendente; na linha transversal não há direito de representação, mesmo em favor dos filhos de irmãos do falecido, quando com irmãos deste vierem a concorrer. (C) É nula de pleno direito qualquer disposição testamentária que se revista de caráter não patrimonial.
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(D) A cláusula de inalienabilidade, instituída em testamento, poderá recair sobre os bens da legítima, a critério do testador, independentemente da existência de justa causa. (E) n.d.a. 7. (87.º MP/SP – 2010) Assinale a alternativa correta: (A) a abertura da sucessão ocorre com a distribuição do inventário dos bens deixados pelo “de cujus”. (B) realizada a partilha dos bens do falecido e havendo ainda dívidas, os herdeiros por elas respondem integralmente. (C) JOSÉ veio a falecer em decorrência de acidente de trânsito, sendo que seu irmão JOÃO, também vítima do mesmo acidente, sobreviveu por alguns dias, vindo a falecer. JOSÉ não possuía ascendentes, descendentes, cônjuge ou companheira, mas tão somente outros três irmãos. Aberta a sucessão e realizada a partilha, coube 1/4 (um quarto) dos bens por ele deixados a cada um dos irmãos. (D) aquele que pretender estabelecer disposições especiais sobre o seu enterro deverá fazê-lo, necessariamente, por meio de testamento público, cerrado ou particular. (E) o direito de representação, segundo estabelece o Código Civil, dá-se na linha ascendente e descendente, assim como na linha transversal, mas neste caso somente em favor dos filhos de irmãos do falecido.
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GABARITO 1–A
2–C
3–E
4–A
5–A
6–A
7–C
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