Curso De Introdução à Humanidades

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ENGENHO DA MENTE

FILOSOFIA SOCIOLOGIA ANTROPOLOGIA LITERATURA CURSO DE INTRODUÇÃO

Verão, 2004

SOCIOLOGIA,ANTROPOLOGIA, FILOSOFIAELITERATURA CURSO DE INTRODUÇÃO FELIX QUI POTUIT RERUM COGNOSCERE CAUSAS (Feliz de quem pôde conhecer a causa das coisas) “existe um vínculo indissolúvel entre a objetividade do conhecimento e a autonomia da consciência individual” (Isolda)

A apalavra “sábio” se prende em suas origens a palavra grega Sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sysiphos, o homem do gosto mais apurado. Um apurado degustar e distinguir parece ser, segundo a consciência do povo, a arte peculiar do pensador. A Engenho da mente - assessoria em educação - tem o propósito de complementar o ensino fundamental, médio e pré-vestibular para um sabor distinto dos conteúdos das apostilas. Experimentando áreas do saber como a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia e a Literatura buscamos uma formação mais humana e mais sólida. Assim desdobramos o trabalho do pensador , sempre tão solitário, em seminários, palestras, aulas particulares, em precepção, enfim. A Engenho da mente visa dar preciosas indicações de como ligar as idéias mais abstratas as coisas da vida concreta, o universo, o mundo, a sociedade, a sua cidade, seu bairro, sua universidade, sua escola, sua casa, seus pais, a você e Deus. Assim, poderemos compreender a estreita ligação da palavra saborear com a palavra sabedoria. Nas praças de Atenas ou nas ruas de Paris, na tranqüilidade do seu quarto ou no tormento das ruas, daremos voz ao escândalo continuo que é o pensar: um perguntar sem tréguas sobre Deus, sobre o mundo e sobre nós mesmos.

FILOSOFIA Tales ou o nascimento da Filosofia Sócrates ou o escândalo de perguntar Platão ou o amor filosófico Aristóteles ou o filósofo como homem do mundo Agostinho ou a serventia do pecado São Tomás de Aquino ou o intelecto batizado Descartes ou o filósofo atrás da máscara

Tales ou o nascimento da Filosofia Quando perguntamos pela raiz da filosofia, comportamo-nos tal qual o ancião à perguntar pelo próprio passado nebuloso que ainda residi em suas lembranças, não obtendo respostas definitivas, perguntaremos pela origem de todas as coisas, pela própria origem da vida, o que nos levaria a reflexões filosóficas. Poderíamos afirmar que a origem de certas reflexões estaria em Hesíodo, ou em Homero, e ainda mais genealógico que ela tenha surgido no Oriente e que fora Adão o primeiro de todos os filósofos. Entretanto Aristóteles, o primeiro historiador da filosofia, defendia que a ciência e a filosofia só poderiam ter começado quando as necessidades externas tivessem sido satisfeitas, pelo menos em certa medida, e que os homens dispusessem de tempo ocioso para que a reflexão se ice a conceitos filosóficos. Isso teria ocorrido pela primeira vez entre os sacerdotes egípcios, daí o fruto da matemática e da astronomia ter-se crescido nesses povos, consideraríamos simultaneamente o fato de que Adão, como diz a Bíblia, tinha que ganhar o pão com o suor do seu rosto, não o restando tempo para pensamentos profundos, elevaríamos assim a conclusão de que é do ócio de um grande mercador, como se referia Aristóteles a Tales de Mileto, que vem ao mundo a filosofia. Esse astuto homem de negócios percebeu que a colheita de olivas seria abundante, comprou todas as mós de azeite disponíveis e as arrendou a um alto preço, tornandose rico e respeitável. Essa história, que não se sabe da afirmação de sua veracidade, poderia passar oculta diante do brilhantismo que Tales desenvolveu na vida Política, em seus estudos Matemáticos e maiormente em Astronomia, pois é deste último que advém o pleno reconhecimento público quando o mesmo prevê um eclipse solar no dia 28 de maio de 585 a.C. Dada a digna ociosidade, esse homem incapaz de perceber o mundo que o rodeava, várias vezes era enganado e reconhecido como ingênuo, certa feita, ao observar o céu, por um descuido que é peculiar aos filósofos, caí num poço e é satirizado por uma serva Trácia que não o poupa de levar a publico que a aquele que queria saber o que estava no céu, permanecia oculto o que estava presente... Ingênuo e Inocente são os adjetivos que predicam os filósofos diante dos mais corriqueiros problemas hodiernos, esse parece responde-los com a obviedade inocente ridícula aos olhos dos homens da práxis, mas se um dia, por acidente, for a ele perguntado o que é o homem? As sátiras hodiernas e tributáveis se tornariam risíveis em suas alegações ante as questões fundamentais da existência residida no âmago dos filósofos. Daí Platão e Aristóteles o considerarem o primeiro filósofo, pois indagara qual a essência de tudo isso? O que há por trás da multiplicidade de formas do mundo? De onde vem, de onde surge? Qual a origem? O que é o Um, o princípio que tudo compreende, que faz que tudo venha a ser, seja e permaneça? Mesmo não formuladas dessa forma as questões fundamentais da existência perpassaram a alma do mais ilustre filho

da rica cidade de Mileto, perguntava-se pela origem de tudo, e após notar que dos cadáveres de todas as substâncias, de uma macieira ou de um homem, o que se esvaia na morte era a água, e que essa, se reencontrava depois de toda a sua viagem novamente no Mar, essa era então a origem de tudo. Tales é um materialista! poderia alegar então o leitor, mas o que dizer da frase: “tudo está cheio de Deuses” do mesmo filho de Mileto? Cria-se então, um impasse para nós e para toda a filosofia “ou-ou”? ou materialista ou o princípio Divino? Aristóteles resolve o problema observando que o Oceano, a que se refere Tales, é como o rio originário que, segundo as lendas antigas, banhava a terra e era considerado o pai de todas as coisas. O Estige, rio da morte, no juramento dos Deuses é invocado como o rio que separa o mundo dos vivos e o mundo das sombras. Esse lendário rio original e a mágica sacralidade do juramento como mítica potência do originário, da divindade da origem, pois a água e Deus vivificam tudo em que penetram, em todo o real atuam como força Divina. É diante da confusão do mundo exterior, que o homem se volta para si e urge em suas entranhas a miséria de esclarecer sua crise, a da religião e a do tempo, tendo como ponto arquimédico a sabedoria competente ao homem, sem o desamparo da meditação da verdade do saber mítico e religioso na busca da fundura oculta da realidade, Sobretudo hoje, subsiste a filosofia o perigo de que, em sua postura de defesa contra essa forma de saber, os “filósofos” cheguem a uma interpretação do mundo para qual só existam coisas materiais. O risco é que essa interpretação faça submergir no oceano o que a filosofia possui de mais profundo em sua gênese, que é a tarefa do filósofo sentar-se, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento dos astros, dos ventos, das chuvas, a manipulação misteriosa das ferramentas que o tempo emprega em suas transformações e nos desígnios insondáveis e sinuosos da existência...

Sócrates ou o escândalo de perguntar (470 – 399 a.C.) Quando discorremos sobre a vida de Sócrates é concomitante discorrermos também a respeito de sua mulher Xantipa. O leitor poderia indagar sobre o que a mulher de Sócrates tem a ver com sua filosofia? Pois bem, ao avesso da chamada limpeza ideológica, religiosa, pregada pelo modismo filosófico da filosofia oriunda do chamado círculo de Viena (1929 – 1938), Sócrates e sua filosofia são totalmente influenciados por Xantipa, segundo Nietzsche: “Sócrates encontrou a mulher de que precisava... De fato, Xantipa o empurra cada vez mais para dentro de sua peculiar vocação”. Como isso pode ser verdadeiro? Pois é justamente da penúria de perpetrar o marido ao trabalho que Xantipa faz seu alento de impedi-lo de vagabundear, certa feita, a mesma arrancou sua manta no mercado público para que esse retornasse a casa. O filósofo, como soldado aposentado ganhava seu dinheiro com pequenas moedas que encontrava nas ruas e com biscates de empreiteiro, o que chamamos hoje de pedreiro, na construção de casas. Por isso, Sócrates após ser acertado pela água arremessada de um pote por Xantipa, discorre a seguinte frase: “não disse que Xantipa, quando troveja, manda também a chuva”, por isso ele acreditava que quem desse conta de Xantipa, facilmente se entenderia também com outros homens. É a somatória desses acidentes que leva Sócrates a vida pública, visitar feiras e praças esportivas a dialogar com todo tipo de gente, feirantes, escravos, proprietários de terras, artistas, legisladores, enfim, causando com o escândalo de perguntar que as pessoas revelem que não entendem do que falam e, covardemente não conhecem a si mesmas. Eis o valor da indagação filosófica, sem o que a vida não é digna de ser vivida segundo Sócrates. O vagabundo loquaz, isto é, o vagabundo falante, de certo, não caberia ao estereotipo do vagabundo que foge aos exercícios físicos, Sócrates além da ginástica praticava dança, afirma-se que possuía primorosa constituição física e que em batalha agira com a desenvoltura dos bravos, chegando a ficar imóvel pensando horas a fio sobre o gelo. Suas questões tinham como mosca o homem, afastado de Tales, afirmava não haver nenhum interesse por qualquer estudo da natureza. Criara um método, a maiêutica, a arte da parteira, pois dizia que nada se ensina, mas apenas se favorece a criação intelectual dos ouvintes, em Teeteto, de Platão, Sócrates compara seus ensinamentos a essa arte, porquanto consistem em dar a luz conhecimentos que se formam na mete dos discípulos: “Tenho isso em comum com as parteiras: sou estéril de sabedoria, e aquilo que há anos muitos censuram em mim, que interrogo os outros, mas nunca respondo por mim porque não tenho pensamentos sábios a expor, é censura justa” (Teet., 15c). A escolha de um método e não de uma ontologia, isto é, uma realidade, encontra-se firmemente assentada na interrogação, pois a diferença do método para a ontologia, que adiante veremos no platonismo, pode ser exemplificada, embora os exemplos nada digam de verdadeiro, na cilada que produz o relativismo antropológico, quando esse afirma serem as culturas unicamente distintas e jamais uma superior á outra esquece de dizer que enquanto método isso é claro que funciona, no entanto, quando essa característica assume ares de realidade, corremos o risco de considerar que o sacrifício antropofágico dos filhos mais novos dos índios tupinambás é equivalente a adoção de órfãos no cristianismo. O que seria mais reto entre os dois?

Portanto, se o homem não se pergunta se seus atos são decisivos para o seu destino post mortem? dá-se que nem humano é, torna-se um bicho acuado, não se importando com o reto pensar, com que se saiba o que se diz, com que se preste conta sobre si mesmo. Daí a identificação entre o conhecimento e a virtude, pois Sócrates considerava possível ensinar e aprender a virtude, dizia que “para o homem, uma vida sem provação não é digna de ser vivida”. Diante da crise do espírito grego, sua decadência, para ele perguntar significa ter a coragem de suportar também o amargor da verdade, a compreensão da miséria humana que as pessoas negligenciam à elas mesmas. E quem é que gosta de ser exposto à sua própria ignorância, e além disso, em praça pública? Eis a causa do desprezo dos atenienses por Sócrates. A ironia com que afirmava: “só sei que nada sei” conferindo ao adversário o epílogo: “mas sei que sei mais que vocês que não sabem que nada sabem” foi classifica na história da filosofia, como bem a utilizou o filósofo renascentista Nicolau de Cusa, como a sábia ignorância (douta ignorância). Esse modelo de prática filosófica que se tornara Sócrates, com a peculiaridade de insistentemente enfiar o dedo nas feridas dos atenienses, cercando-se de jovens discípulos, concedeu-lhe a acusação de corruptor de menores e dos valores hodiernos, foi condenado à morte, passagem que se tornou clássica em que ele toma a taça de cicuta, advertindo que toda certeza advém de uma voz interior que se manifesta como advertência para o espírito, do qual a conclusão de seu discurso de defesa dá o testemunho: “é chegada a hora de partir: A mim, para morrer, a vós, para viver. Quem de nós enfrentará o melhor destino é desconhecido de todos, exceto de Deus”.

Platão ou o amor filosófico (429 – 327 a.C) O termo “amor platônico” têm sido o único feitio público de lembrança da filosofia de Platão, cobiça-se alguém, possuidor do intuito socrático, perguntar pela relação da frase com o filósofo, este estaria fatalmente diante de uma atração espiritual. O platonismo reaparece de tempos em tempos como uma estrutura interna e organizadora do mundo, mais que uma filosofia é um universal humano, uma manifestação que influenciou todas as estruturas do ocidente, penetrou no pensamento Judaico, Cristão, Islâmico, Cartesiano, Kantiano, Marxista, Círculo Vienense, enfim. Uma das representações mais fiéis do que foi a filosofia platônica está no quadro A Filosofia do renascentista Rafael, onde encerra como figuras centrais Platão a segurar seu livro Timeu e seu discípulo Aristóteles, a segurar seu livro Ética. Rafael se apresenta como grande conhecedor da antiguidade clássica, principalmente na escolha do professor e de seu mais brilhante discípulo como figuras centrais de todo o pensamento do ocidente, quando observamos o braço direito de Platão abrangendo a horizontal e elevando o antebraço na verticalização deste em linha reta até o indicador estar erigido para o céu, intuímos desse gesto todo o fundamento da filosofia platônica, pois Platão ali aponta para o mundo das idéias, onde se situa o objeto de conhecimento do filósofo, por ser este, de um status diferente da multiplicidade da natureza, sendo único, imóvel e imutável. A essência imutável enquanto objeto de indagação do filósofo, só poderia se traduzir numa matemática geométrica e num intelecto, pois quando refletimos sobre um triangulo sabemos que ele imutavelmente terá três lados, podendo ser isósceles ou de qualquer outra propriedade de triângulo, sempre terá três lados únicos, imóveis e imutáveis que essencialmente lhe fazem ser triângulo. Por isso, o filósofo afirma que o mundo ideal está na idéia única, imóvel e imutável e se se segue segundo a essência, seria uma grande insensatez se não se considerasse que a beleza em todos os corpos é uma só e a mesma. E quando compreendido isso, ao filósofo mostrar-se-á o amor por todos os belos corpos, vindo a desprezar e menosprezar a perseguição exagerada de um único. Em seguida, virá a consideração da beleza nas almas mais valorosa do que o amor, porque conforme esse contemple a beleza em sua multiplicidade, deixará de servir a uma única beleza... e virá a se ocupar com o vasto mar do belo e dar a luz muitos belos e grandiosos dizeres e pensamentos em abjurado amor pela sabedoria, até que, então fortalecido e tendo crescido, contemplará aquele único conhecimento que se volta para a sabedoria como tal, a idéia única que reduz a unidade todas as outras idéias na totalidade, o que é perpétuo, o que nem nasce nem morre, nem cresce nem decresce e todas as coisas belas participam dele em certo modo... Quando Platão por meio das palavras de Sócrates, que segundo sabemos, jamais escreveu coisa alguma, narra o amor de Sócrates por meio do reto amor por garotos, inicia-se a contemplação por aquele belo quase se tocando o objetivo, por isso que isso significa dirigir-se as coisas do amor, e do amor do próprio belo que se comece a ascensão de maneira contínua, como bem podemos conferir nas frases de Sócrates: “de um copo belo a dois e de dois a todos, dos corpos belos aos belos modos de vida, dos modos de vida aos belos conhecimentos, dos conhecimentos, enfim, ao conhecimento que a nada mais se refere do que ao próprio belo...” O fato de Sócrates ter recusado as incessantes propostas sexuais de seu mais brilhante discípulo, Alcebíades, estas não nos colocam perante a defesa da limitação sensual como um método, em vez disso, dá ao belo uma dignidade delimitada, mas o exacerbando a uma forma mais elevada de desejo. Para além das belezas dos corpos, das almas, da condução da vida e do conhecimento, o amor platônico insta pela beleza em si mesma, onde no belo urge a aspiração pela idéia do belo, pelo arquétipo do belo: a doutrina das idéias. Encontramos portanto nas linhas anteriores a demonstração de uma superioridade da sabedoria sobre o saber, uma vez que existe uma sabedoria, simultaneamente

encerra a existência da virtude e da justiça, daí o objetivo político de se escrever A República, pois como meta final da sabedoria, temos a realização da justiça nas relações humanas e portanto em cada homem. Diante dessas reflexões, Platão descobre que o homem sabe desde sempre, originariamente, o que é a justiça e o que são as outras virtudes. O homem trás em sua alma arquétipos de todos esses retos modos de comportamento e esses devem determinar a sua ação. Vemo-nos diante da idéia de uma ontologia, leia-se uma realidade, pois o que até então era método para Sócrates, isto é, o diálogo, a dialética entre dois ou mais homens que perguntavam e respondiam como método de investigação conjunta, para Platão, tornava-se um simples ponto de partida para chegar aos princípios, dos quais depois se pode chegar as condições últimas, definindo-a uma idéia de tal modo que ela pudesse ser comunicada a todos. Quando nos deparamos na venda com outra pessoa, da memória que permanece dessa, tempos após o encontro, uma abstração, já que não podemos consumir o outro fisicamente, podemos então vislumbrar a idéia abstrata desse outro, desse ente, o arquétipo desse ente, podendo dizer daí então, que aquilo que vemos é um homem, um crime, uma árvore, uma boa ação. O real originário está dessa forma livre de toda transitoriedade, toda multiplicidade, mas a ele se destina, porém, toda a aspiração do mundo como um todo, isto é, o transitório aspira o eterno universal: esse é, para Platão, o segredo da realidade. Conhecer para ele é relembrar, pois o homem se lembra de uma contemplação originária desse arquétipo, a qual precisa ter ocorrido antes de sua existência temporal. Assim, a doutrina da idéia conduz necessariamente a suposição de uma preexistência da alma e, conseqüentemente, à certeza da imortalidade. A nostalgia como aspiração para retornar de onde veio, a libertação das cobiças sensuais e de, já nesta existência terrena, alcançar a contemplação das idéias nas coisas mesmas. É pois esse o “maior bem que, como dádiva dos deuses, coubesse ou viesse a caber aos mortais”, pois arrancando o homem de sua existência cotidiana e elevando-o para o mundo das idéias, a filosofia iguala-se a sabedoria, objeto essencial da filosofia. Esse caráter ideário de Platão levou-o a atitudes reformistas, quando esse então decide apoiar um golpe de Estado numa cidade próxima a Atenas, sob o comando de um ex-aluno é preso e vendido como escravo sendo só liberto após a venda do mesmo para seus leais alunos. Mas do filósofo vale por acabamento as palavras de Platão na República: “Por sua natureza ele aspira ao ser. Não pode deter-se nas muitas singularidades, das quais apenas acredita que sejam. Contrariamente, prossegue e não se desencoraja nem abandona o Eros antes de ter apreendido a natureza daquilo que é... Quando tiver se aproximado do que verdadeiramente é e se unindo a ele, criando assim razão e verdade, então terá alcançado o conhecimento. Agora vive de verdade, cresce e estará livre de suas dores”. Eis então a paixão daquele que filosofa, a paixão sem a qual não existiria nenhuma procura pelo verdadeiro eterno.

Aristóteles ou o filósofo como homem do mundo (384 – 322 a.C) “Ecce Homo” ... Eis o homem que Dante em sua Divina Comédia apresenta como “o mestre de todos os sábios”, não por acaso, mas toda a obra recebe a luz da tradição filosófica, assim como a escola peripatética, o aristotelismo árabe com Avicena e Averróis, o aristotelismo cristão medieval com Tomás de Aquino, o aristotelismo judeu com Maimônides, o aristotelismo do renascimento entre várias outras tendências do mundo medieval e moderno. Nascido qual a fina flor ante o deserto da provinciana cidade de Estagira como filho de um “piluleiro”, ofício de farmácia que era característico ao médico, f` ôra a Atenas decidido a estudar filosofia após refletir sobre a resposta do oráculo sobre o que deveria fazer. O fato de os filósofos serem famosos pelo desprendimento das coisas materiais parece não se adequar a Aristóteles, pois se vestia suntuosamente não dispensando anéis e cabelos bem cuidados dentro do que um relator da época acrescenta que: “ele era fraco sobre as pernas e de olhos pequenos” e “ceceava um pouco com a língua”. No tempo de Aristóteles a filosofia era uma ocupação bastante abrangente, pois se ocupava do saber e de toda a ciência que um estadista, militar ou educador tinham como base para a vida. “O leitor” parece ter sido o apelido que seu mestre Platão lhe dera, é do mestre também a fala: “Aristóteles escoiceou-me como fazem poltros novos com a própria mãe”. Do maior filósofo fôra ser mestre do maior gênio militar de seu tempo: Alexandre, o Grande, um garoto ainda de treze anos. Difícil é precisar a contribuição do filósofo sobre o desenvolvimento do futuro estadista e general, mas é no mínimo estranho que, por alguns anos, poder e espírito conviveram na sua expressão mais elevada: o futuro conquistador do mundo e o homem que, em sentido universal, conquistaria o cosmos espiritual. Depois da estranha morte de Alexandre e de acusações de traição da parte dos atenienses que bradavam ser ele cooperador das invasões macedônicas por ter sido professor de Alexandre, Aristóteles permanece na sua escola perambulante, isto é, peripatética afirmando que Atenas já havia assassinado de maneira injusta Sócrates, um dos seus grandes filósofos e que os cidadãos não deveriam cometer o mesmo erro duas vezes. É na escola peripatética que o mestre de todos os sábios se preocupa com a realidade da multiplicidade da natureza, autenticando a pintura de Rafael que o coloca ao lado do mestre Platão com o braço direito apontado diagonalmente em linha reta do ombro até o indicador para a terra. Pois é da intuição, entendendo intuição como as possibilidade e impossibilidades que a realidade de um objeto apresenta dessa imagem, que podemos dizer que Aristóteles, contrariando o mestre Platão, considerava que nada há na natureza tão insignificante que não valha a pena ser estudado, já que, em todos os casos, o verdadeiro objeto de investigação é a substância das coisas. O que é o ser? O que é a substancia? Enfim, o que fundamenta todo o real, sua origem e seu destino? Sabe-se que apenas trinta por cento das obras de Aristóteles chegaram até nosso conhecimento e desses trinta, noventa por cento de suas principais obras, muitas em forma de apostilas de aulas, de difícil interpretação, o que não nos impede de fundamentar sua filosofia como a fundadora da ciência ocidental. No entanto, é na substância que reside o homem do mundo, sua metafísica ontológica, na qual não se pode conceber o ser vivente como um mero amontoado de partes ou como um mero aparelho mecânico, o ser vivo como um organismo, um todo que empresta sentido as suas partes. Aristóteles não para apenas no domínio da vida, dirige-se a totalidade do mundo: os céus, os astros, a terra. Parte da investigação sobre a essência dos organismos, pois esses são coesos por manterem uma unidade singular como um todo e como tal é conduzido pelo fato de possuir uma finalidade e um motivo. Estes últimos, não são como em Platão, lançados de fora, como forma de um eidos ti, uma certa forma que dá forma à matéria informe, pois para Aristóteles é um eidós tino, forma “de” uma certa coisa, captada das coisas sensíveis, e é nestas que descobrimos o inteligível, en tois eidesi tois aisthetois tà noetà éstin.

Porém, em que consistem finalidade e motivo na substância? Na enteléquia, tendência para realizar-se em suas possibilidades mais amplas, a essência da planta é a propensão de realizar-se como planta em todas as suas possibilidades, pois toda a substância trás em si seu motivo e sua finalidade e se atualiza conforme essa tendência interna. Daí todas as substancias aspirarem a sua própria perfeição, assim como a natureza e o Mundo vivemesseímpetodeauto-realizaçãoeauto-aperfeiçoamento,essateleologiauniversaltambém é vivida pelo homem, pois o mesmo tende para o que é bom para ele no intuito de se realizar e aperfeiçoar tanto quanto possível o que é em sua essência. O que ocorre é que o homem tem que se transformar em homem, pois aí esta a sua destinação mais própria. “Torna-te o que tu és” é a máxima humanista aristotélica, mas como me tornar a minha essência se ela é o meu máximo? Bom, se a natureza que não faz nada de insensato fez também o homem, deve telo feito com o fim de que se realize o que unicamente no homem pode ser realizado: justamente espírito, razão, logos. Reside nesses três pilares o sentido da existência humana, aperfeiçoar as faculdades próprias do homem, aquilo que ele é e não pode deixar de ser, sua essência necessária, quod quid erat esse, que se torne o que se é: o ser racional. No grupo de textos reunidos no Organon, no inicio de Analíticos, que com os estóicos recebe o nome de lógica, o pai da lógica ocidental, reconhece a verdadeira essência do homem no logos, o homem deve de modo acertado buscar sua essência mais própria no conhecimento desse logos. Mas o que se entende por logos? Tanto para os gregos quanto para Aristóteles o logos é a capacidade de conhecer as coisas e de leva-las a manifestação, isto é, de desvelar o mundo, conhecer o mundo, e não de domina-lo como faz o pensamento moderno. Eis o resultado profundo de reflexões acerca do homem e não da arrogância intelectual, pois em termos coloquiais a filosofia é a demonstração do senso comum e a forma mais elevada da vida intelectual seria daquele que conhece, não daquele que age. No entanto, se na lógica demonstramos uma coisa verdadeiramente existente, uma premissa passível de demonstração, resta ao diálogo, isto é, a dialética, forma que o mestre escolheu para escrever a maioria dos seus livros, a busca de premissas prováveis, isto é, a triagem dos argumentos confrontando-os com os vários “prós” e “contras” de maneira que se guarde igual chance a todos, para ver qual deles se sustenta, isto é, fica de pé. Do confronto crítico de várias possibilidades acabamos fechando as alternativas até que num certo momento temos uma certa intelecção ou intuição dos princípios que governam aquele assunto. Oras, se todo raciocínio lógico parte de premissas demonstráveis e você na maioria das vezes tem premissas prováveis, o que você tem de fazer é uma espécie de raciocínio lógico ao contrário, das conseqüências para as premissas prováveis como fim último, pois aí reside o método aristotélico, não como fizeram crer a maioria de seus tradutores e comentadores acreditando ser a lógica a evolução da obra do mestre esses processos estão todos descritos em pormenores no livro Tópicos. .AessefimúltimodetodaaspiraçãonomundoAristóteleschama de primeiro motor, realidade pura, o ímpeto constante para realização e para perfeição, o fundamento imóvel do qual surgemtodososdemaismovimentos.Paraohomemdomundo a ultima palavra não é o mundo, mas Deus. Mas não se trata do Deus Cristão que de fora da existência ao mundo, na organização do caos, mas sim a divindade como fim ultimo e imanente a ele. O primeiro no ser como ultimo no conhecer. Portanto, aquilo que o homem é apenas de modo imperfeito – que, porém é o que há de mais elevado no mundo -, na divindadedeveserperfeição:logos,razão.Daíserparaofilosofo aDivindadeopuropensar sobresimesma, umacontemplação daessênciaquenosrevelaumpensamentodeorigemreligiosa. Quemcontemplouomundo,temenfimdebastar-seasimesmo no saber da divindade, eis a tarefa de todo homem manifesta em sua Ética: “Não se deve escutar a advertência daqueles que dizem que o homem deve pensar apenas no humano, o mortal apenas no mortal; antes, devemos empenhar-nos, tanto quanto possível, em ser imortais”.

Agostinho ou a serventia do pecado (354 – 430) Aquele que diante do Bispo de Hipona perguntasse pelo passado do mesmo correria o risco de se assustar com os diversos caminhos da juventude de Agostinho, como é que um homem com a índole de rebelde e gatuno noturno de transeuntes indefesos chegou a se tornar um dos Padres da Igreja? De Hipona quando jovem, segue para Cartago e Roma para aprender retórica, torna-se brilhante professor da disciplina em Milão. Na aparente vida ordeira de um mestre sabe-se que ele engravida uma prostituta a qual ama profundamente dando-lhe filho de presente. Com o tempo a amante e a vida hedonista de um romano tardio é repudiada pelos tormentos escrupulosos de Agostinho. Distante da juventude ele é Batizado aos trinta e três anos, deixando Milão para retornar para sua Hipona vindo a ser contrario a sua vontade Bispo, pois tinha que administrar os bens da igreja não lhe restando tempo para filosofia. Ainda assim resta-lhe o mosteiro laico onde escreve uma gama de tratados teológicos e filosóficos que viria a intervir no Mundo após as disputas espirituais e religiosas de seu tempo. Aos setenta e dois anos se retira para em solidão esperar a morte e num olhar retrospectivo de sua vida confere a ela um amontoado de pecados, um Santo não encerraria tão humanamente sua vida, mas é da humanidade do homem que se afere a sua medida, pela amplidão das possibilidades que esse pode atravessar e que de fato atravessa, por isso a servidão do pecado na juventude, pois esse o arremessa como o objeto mesmo de sua reflexão com a tenacidade que nenhum pensador antes tenha feito. “Tornei-me para mim mesmo uma pergunta” é a frase que demonstra a reflexão franca na exibição dos pecados cicatrizados numa vida, daí seu livro Confissões demonstrar que em todos os acontecimentos que descreve de sua vida regressa, encontra a si mesmo e instrui-se a compreender a si mesmo. A contemplação de si mesmo validada na afirmativa da essência humana estar situada, não com o futuro que é o futuro do presente, e nem com o passado, que é passado do presente, mas sim com o eterno e imutável presente, que assiste o movimento do tempo de uma esfera ulterior imutável situada além e que se acrescenta ao ser vivente na sua pluralidade de formas substanciais é o argumento ontológico de Agostinho. O homem alcança a verdade através da contemplação de si mesmo: “Não saias de ti; volta-te para ti mesmo; pois a verdade habita no interior do homem” – conforme olha para o seu interior esse rompe com o ideal grego do homem como membro dos cosmos, ou como aqueles que agem em comunidade, e tão pouco, como os neoplatônicos que acreditam ser ele apenas uma parte projetada de Deus na terra. Há algo de errado no homem pois ele vive no erro e anseia por escapar a esses grilhões por achar insuportável viver nessa condição. “Nosso coração é inquieto” afirma o Santo ante a confusão e a nostalgia que distinguem a inquietude humana: “Tu nos criaste para Ti, e nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em ti” . Assume diante de suas confissões a miséria humana e procura salva-la na divindade perguntando pelo homem e por Deus, combinando-os num único grande problema: “Quero conhecer Deus e a alma. E de resto nada? Não, absolutamente nada”. Esse desacerto que o Santo filósofo acredita existir no homem é exacerbado quando colocado diante de Deus, sendo apenas solúvelseconcebidocomopecado,opecadooriginalquedesde Adão,teriacorrompidoaessênciaboadohomemcondenandoo a não ser mais sem pecado. Os leitores poderiam argüir que Agostinho comete um erro quando soluciona o desacerto do homem com Deus, no

pecado original, pois se esse é determinado desde sua origem, o homem então, não tem culpa alguma de agir erroneamente, pois nascera assinalado. Por isso o Santo dizia que o pecado não pode ser sem a culpa, pois assim esvaziáramolo de significação, a culpa só pode ser atribuída se aquele que age for ele mesmo responsável por suas ações, isto é, se ele for entendido como um ser livre. Como conciliar o conflito do determinismo do pecado original e do livre arbítrio? Através da predestinação, isto é, da iluminação divina, segundo a qual toda a ação humana estaria desde a gênese determinada nos inescrutáveis desígnios de Deus, que salva quem quiser e condena quem quiser, assim a mente humana não pode funcionar sem a ação iluminadora, predestinada e imediata de Deus não podendo encontrar a certeza fora das regras eternas e imutáveis da sabedoria Divina. Quando Agostinho faz demasiada honra ao homem, atribuindo-lhe a liberdade, reduz as honras de Deus. O pensamento de Deus levado às últimas conseqüências exige que se lhe atribua a liberdade absoluta, e somente a ele, ainda que isso seja de impossível compreensão para o homem, pois se trata de curvar ante o mistério divino. Para o Santo a razão natural é incapaz de obter um conhecimento seguro sobre Deus, dá-se que essa cognocisbilidade é revelada e acolhida pela fé, sua teologia da fé pode ser assim expressada: “Nós somos demasiadamente fracos para encontrar a verdade com a mera razão; por isso a autoriadade dos escritos sagrados nos é necessária”. O primado da fé não pode ser derrubado, por mais que o Santo insista em que não se pode abandonar a compreensão racional que existe somente na dependência da fé, que é o que afere a veracidade da razão, ultrapassando a mesma, que é submetida ao juízo da fé e que por isso mesmo é superior a razão, entretanto, aquilo que ultrapassa a razão é Deus, daí se conclui que o critério da verdade deve existir. É quando o homem contempla a si mesmo e a sua situação no mundo, perguntando quem é Deus? a quem finalmente o homem e o mundo devem a sua existência? que ele se mantém contemplando de modo indireto, e não imediato, a única forma de conhecer Deus. Desse modo, o conhecimento de Deus se dá na experiência que o homem tem de si mesmo... na aspiração ao bem, ao objeto supremo de toda nostalgia, ao bem supremo. Agostinho acha que também pela razão natural é possível conhecer as determinações mais gerais da essência de Deus, que segundo a tradição cristã nos criou com sua imagem e semelhança, assentando-nos na condição de criatura, e que essa criatura, apesar da pequena escala, traz os vestígios do Criador em si e em toda a realidade para que a partir desses vestígios possamos inferir a respeito do autor da obra. Essa apreensão indireta da essência de Deus com base no método da analogia através do caminho do entendimento natural chega a um dos fundamentais mistérios do cristianismo, o da trindade pois, segundo o Santo o homem tem condições para isso quando observa a si mesmo e constata que tem uma formação triádica, que consiste na: memória, na vontade e no entendimento, que são únicos, porém em relação uns com os outros. Dá-se que se assim se manifesta no entendimento natural, isto é, no homem, também se manifestará na constituição de Deus que criou todo o real e o próprio homem. Esse pensamento indistinto entre teologia e filosofia quando se debruça sobre si mesmo, sobre o homem, sobre a substancia para usando um termo aristotélico, debruça-se numa das questões mais fundamentais da metafísica que é o tempo do homem. Isso o projeta como o grande teólogo da história e filósofo da história do Ocidente. A história como cenário do conflito humano entre o Reino do Diabo, do Mundo e de Deus, manifestados em épocas marcadas pelas lutas que se iniciam antes de Adão com a queda de Lúcifer, e encontra seu meio na vinda de Cristo, e seu fim no juízo final e na plena realização do Reino de Deus. Mas para ele não é, como crêem por exemplo os marxianos, o homem e sua ação que conduz os eventos decisivos da história, mas à vontade de Deus. Em todas as questões do Santo Agostinho esse tocou no domínio do homem e no domínio de Deus, com o empenho de atingir a compreensão das coisas divinas a partir do homem. Talvez nenhum filósofo tenha penetrado tanto nos mistérios de Deus. Entretanto nos mistérios do homem são acessíveis apenas, a aquele que for ele mesmo um homem, como foi Agostinho, isto é, um homem com todos os predicados humanos do homem. “Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, que não é futura nem passada, determina o futuro e o passado? Acaso poderá realizar isto minha mão? Ou está minha língua, com a palavra, poderia realizar tal obra?” (Confissões, livro XI)

São Tomás de Aquino ou o intelecto batizado (1224/5 – 1274) O “boi mudo”, assim era apelidado Tomás por seus companheiros, gordo e quieto eram suas capitais características, no entanto dentro daquela calmaria escondia mares revoltos que não queriam se expor de forma alguma se não apenas por um acidente. Nisso situava seu mais profundo compromisso com a filosofia, quando descoberto por um dos companheiros, pede insistentemente para que não se desvende que era dono das soluções para os problemas do professor. Quando submerso em reflexões, esquecesse totalmente das coisas corriqueiras a tal ponto de num jantar a convite de Luis o Santo, Rei da França, esmurrar a mesa e gritar “Assim deve-se argumentar contra a heresia dos maniqueus” enquanto todos se manifestaram estupefatos o Rei, digno do predicado que viria a ter, ordena que anotem as suas falas. Filho de família nobre destinado a ocupar um vantajoso cargo na Igreja, prefere a mendicância da recém fundada ordem dominicana que através do ideal ascético tenta conduzir o cristianismo, saturado em seu tempo, para uma vida segundo o Evangelho. Maus vistos em seu tempo os dominicanos sofrem com o ostracismo publico levando a importante Universidade de Paris recusar acolhida ao seu corpo docente, proibindo os estudantes de comparecerem a exposição inaugural de Tomás. Certa feita, o grande teólogo e filósofo Alberto Magno, professor de Tomás, diante da gozação dos alunos responde: “Vós o chamai de boi mudo; eu, porém, vos digo que o mugir desse boi se elevará tão alto que preenchera o mundo inteiro”. A fusão da teologia cristã com a filosofia grega que Agostinho propusera, isto é, a síntese da razão natural e da fé, na qual a razão se submete por completo a fé, para que daí a seu ofício desenvolva-se de modo pleno, chegara a seu ápice com Anselmo de Canterbury, fora questionada pela influência deAristóteles no Mundo Árabe, irrompendo nos livros deAvicena que chegavam até as mãos de Tomás, até penetrar por completo no pensamento ocidental. Uma filosofia que restituísse a dignidade da própria filosofia em presença da teologia ao invés de vela apenas como auxiliar como pregava o sólido pensamento cristão, pareceria no mínimo perigoso. Um sistema como o de Aristóteles que abarcava dentro de sua filosofia um conhecimento fechado da natureza, do homem, do cosmos e de Deus causou pânico entre os teólogos, justamente num momento de crise surge um pensamento que daria suporte ao mundano, criando o problema da coexistência de duas verdades, a da fé e a da razão. Aí que se assenta a genialidade de Tomás, pois é do esforço de concatenar a fé e a razão no homem, sem sobrepor uma a outra, contra o grande risco da dissolução do homem e do que ele próprio. Em volumosas obras como a Suma Teológica e a Suma contra os gentis como em todos seus escritos Tomás procura analisar a razão e a fé e o que pertence a cada uma delas. Para Tomás a fé relacionava-se com as coisas metafísicas já a razão natural atinha-se às coisas mundanas. E nessas ultimas tínhamos que decorrer racionalmente. O leitor mais atento, por analogia, ao ler o parágrafo anterior, chegaria a conclusão agostiniana da superioridade da fé sobre a razão como iluminação divina para a solução do impasse que criava a dupla verdade. Contudo, segundo Tomás, tal domínio trata-se mais do mundo sensível que da iluminação,poisopontoarquimedicodopensamentomundanoéemaltograumaisdaexperiência sensível, experiência essa que tem como critério de verdade a compreensão racional. Essa dignidade da razão da a ela possibilidades de apreensão do metafísico mas desde que esse esteja na realidade do mundo, isto é, uma metafísica ontológica como propunha Aristóteles, negando a dupla verdade com a prudência de preservar a integridade do espírito humano. Fé e Razão são galhos do mesmo tronco que é Deus, e se Deus criou ambas, seria uma contradição elas se desmentirem dada à mesma origem. A Fé não pode ser anti-racional, assim como a razão não pode instruir nada que conteste a fé. Demonstrar os “preâmbulos da fé” é a tarefa da razão segundo Tomás, eis a primazia da fé sobre a razão, eis a face cristã que vê na verdade da fé a perfeição ante a verdade da razão natural É a Fé que conduz a razão a atualizar potencialidades elevadas. “A Graça não suspende a natureza, mas a completa”.

O Apolíneo grego não obstante de suas rédeas virtuosas colocadas por Agostinho, se manifesta firme e estrutural na filosofia teológica cristã, quando Tomás resgata a forma substancial como encarnação e parte do Divino, trás consigo novamente as formas estéticas do mundano, da “mundanalidade”. Além da multiplicidade formas buscava a essência universal das coisas, debruçando-se sobre elas no conhecimento da matéria e da forma, considerando a matéria apenas amalgama da forma que se manifesta sobre ela, vê nas formas a essencial indubitável das coisas, como no sentido aristotélico, em que as formas são a essência das coisas enquanto se desenvolvam nelas dinamicamente. Diferentemente de Aristóteles acredita que as formas ou essencialidades existem originariamente como idéias no espírito de Deus, e a filosofia quando abstrai a essencialidade da realidade reflete os pensamentos de Deus. Para ele a uma gradação na reflexão que Deus tem do Mundo, poisquantomaiselevadaaformasobreamatéria,maiselevada a sua realidade, por exemplo na planta temos uma faculdade vegetativa, no animal uma sensitiva e no homem além da vegetativa e sensitiva uma alma espiritual e portanto imortal, masaindaligadaaocorpo,porissomaisacimaestãoasformas dos espíritos incorpóreos: os anjos. Mas estes também são imperfeitos, são puros, mas criados pelo incriado: Deus. Qual fusão do Mundo Grego com o Mundo Medieval, uma vez que se o mundo inteiro é como dizia os gregos, uma tendência incessante da possibilidade para a realidade, então a realidade mais pura exclui toda possibilidade, e essa é Deus. Essa realidade máxima e ultima de Deus extraída da enteléquia aristotélica, colocava Deus no devir do Mundo, não como parte, mas como supremo princípio imóvel de todas as coisas para qual tudo se movimenta. Distante do princípio grego de um Deus que organiza o caos Tomás se debruça sobre a questão do Deus Cristão, para ele Deus não penas sustenta todas as disposições do mundo como pensaAristóteles, mas é como o princípio de todo acontecer, como o criador do mundo. ÉatravésdaanalogiadoserqueTomássedebruçasobreomistériodaTrindadeedaEncarnação, poisobservaquetodarealidadetemseuserpormeiodeparticipaçãoemDeusenquantorealidade absoluta, assim, Deus e o homem não são os mesmos, mas também não são totalmente diferentes, são semelhantes, mas sem dúvida de grandezas diversas. E Deus somos em parte, e enquanto somos, somos semelhantes a Ele, o princípio, mas Deus não é semelhante a nós... Longedeumpanteísmoqueincorreramospensadoresárabes,oSantoafirmaqueaidéiadacriação pressupõeumadistanciainfinitaentrecriadorecriatura,reconciliando-oassim,comoprincípiocristão. E é da base desse mundo criado, isto é, esse Deus em parte, queTomás concebe a capacidade da razão natural compreender, pela analogia, a existência de Deus. Não na realidade da alma como afirmava Agostinho, mas sim na realidade do mundo, pois se este é finito não pode ter seu fundamento em si mesmo, remetendo-nos a Deus enquanto criador. Se tudo tem uma causa criadora, o leitor poderia chegar a questão de que se Deus criou o mundo quem criou Deus? Não se pode como bem salientou Tomás, regredir ao infinito na cadeia das causas, pois tem de haver uma causa primeira. Dá-se que o homem foi criado por Deus e criar significa comunicar a criatura algo da própria essência. Mas outra vez, por analogia, o leitor poderia indagar que se somos semelhantes a Deus e somos finitos, também Deus é finito? Eis a função da fé, jamais o homem finito pode desvendar a totalidade da infinitude de Deus, pois somos semelhantes a ele em parte, mas ele não é semelhante a nós, por isso que na analogia o finito tem de ser negado e ultrapassado pela validação da fé. “O supremo saber de Deus, que podemos obter nesta vida, consiste em saber que ele esta acima de tudo que dele pensamos”.

SãoTomásantesdoterminodaSumateológicaabdica-sedapenaeapresentaoseuconhecimentode modo indiscutível na frase; “Não posso mais; ante o que vi, tudo que escrevi se me parece com palha”.

Descartes ou o filósofo atrás da máscara (1596 – 1650) “Do mesmo modo que os atores colocam uma máscara, para que a vergonha não se reflita em suas faces, assim me penetro no teatro do mundo – mascarado”

Cristão ou não foram os predicados que sempre acompanharam a obra de Descartes. Seria essa a justificativa de se usar uma máscara? que obscuridades se escondem por trás da máscara do filósofo René Descartes. O título de sua primeira meditação de Descartes: “Das coisas que se podem colocar em dúvida” leva-nos a uma “errante” destruição dos valores tradicionais da filosofia. Em seu caminho humano pelo “grande livro do mundo”, Descartes mergulha num universo infinito e múltiplo em que tudo que é apresentado como saber inquestionável parece-lhe altamente duvidoso. Descartes acha o “grande livro do mundo” em Paris, mais que em qualquer outro lugar. Estabelecido na cidade luz, Descartes compartilha da vida social da cidade, cujo o qual se enfastia, se isolando em seus aposentos afasta-se da família e dos amigos. Sabe-se que certa feita alistou-se no serviço militar, vindo a servir tropas conduzidas por Mauricio de Nassau e que tenha tido um feito vitorioso contra o ataque de navios piratas. Contornando a Europa quando civil, vindo a residir em Amsterdã, local em que poderia “ na solidão” viver apenas para as descobertas do espírito humano, o que exigiria a mais ampla e radical derrubada das convicções professadas pelo filosofo até agora, porém agora se dedicaria não mais ao “grande livro do mundo”, mas a investigação de si mesmo. Cansado das imperfeições da natureza, resolve vestir à máscara do homem, e neste, também pela dúvida sistemática vê imperfeição e susto, retomando o leito do pensamento e fé nas suas meditações. O que Descartes pretende depois da destruição das estruturas é a questão metafísica e, sobretudo, da existência de Deus e da natureza da alma humana, assim, quer ocupar-se desses temas antiqüíssimos da filosofia com sua nova metodologia, estabelecida segundo o modelo exato das matemáticas, convencido de poder dar-lhes uma solução válida. Para Descartes, filosofar significa propor as perguntas metafísicas e antes de tudo, trata de descobrir um fundamento seguro, ou seja, um ponto que fosse imediatamente certo e esclarecedor como os axiomas matemáticos, de tal modo que pudesse suportar todo o edifício da filosofia, para que assim, chegasse a um princípio absoluto. Porém, é necessário ser dono do martelo que destruirá todas as certezas provisórias e colocará em dúvida o que até então tinha se tornado verdade indubitável. Descartes só se diz capaz de tal evento em sua maturidade e afirma a necessidade de se começar tudo pelos fundamentos, e que para essa empreitada se realize, é necessário contrariar as tradições, procurando estabelecer algo firme e constante na ciência. Com enorme audácia, empreende uma nova fundamentação da filosofia, mas diante do abismo que se abrira aos seus pés se assusta e recua para as soluções do pensamento e fé antigos. O fundador da geometria analítica empreendeu sua vida na tentativa de infiltrar o método exato das matemáticas na filosofia, com o fim de que ela pudesse igualar-se com a certeza e a evidencia das ciências geométricas imóveis e imutáveis. Descartes queria trazer a luz a filosofias que até então permanecera, segundo ele, na escuridão, mas como corroborar seu projeto com seu Cristianismo? A única solução era propor as perguntas metafísicas, sobretudo da existência de Deus e da natureza da alma humana. Para efetivação de tal projeto megalômano, necessitava estabelecer um ponto arquimédico que pudesse imediatamente esclarecer como os axiomas matemáticos, um princípio absoluto, uma verdade indubitável. Mas como chegar a uma verdade indubitável se o homem vive em estado de dúvida? Primeiro é preciso por em dúvida tudo o que até então era considerado verdade indubitável, sua tarefa é: “demolir tudo desde a base e começar de novo desde o alicerce”.

É dessa dúvida radical que atentara toda a filosofia moderna, no sujeito livre para por em duvida a realidade do mundo externo, duvidar que as coisas sejam verdadeiramente como aparecem ao homem ou, mesmo, que existam. Esse argumento coloca-nos a beira do abismo cartesiano, a dúvida exacerbada pelo argumento de que toda nossa vida pode ser um sonho incessante, e da incapacidade para se saber se tudo não passa de ilusão, coloca em xeque a própria existência corporal. No entanto, resta-nos uma saída para esse estado de dúvida que são as verdades imóveis, tanto no sonho quanto no pensamento, essas são por exemplo, a frase de que dois e dois são quatro ou conceitos básicos como forma, dilatação, espaço, tempo. Contudo se essas verdades não estando em Deus como na Idade Média, não estando na natureza como para os gregos, estaria então, assentada no pensamento do homem, mas se esse pensamento, devido a sua natureza humana, estivesse enganado até quando se considera mais certo? Seriamos errantes, teríamos em nossa constituição um ardil fundamental que defendida a idéia da criação do homem – como o faz Descartes – chegaríamos à conclusão de que Deus teria criado o homem errante em sua essência, aí Ele seria, não “a fonte da verdade” como afirmam a teologia e a filosofia, mas sim um “demônio maligno”, um “Deus embusteiro”. Descartes estremeceu quando se deparou ante essas constatações, teve medo de expressá-los, mas é sintomático que tenha pensado nisso mesmo não escrevendo. Quando viu que a dúvida radical levaria o homem a correr o risco de afundar-se na noite do ceticismo definitivo, destruindo toda a certeza da tradição que afirmava que o conhecimento estava assentado no homem como parte análoga do Criador e que, por isso mesmo, compreendido na verdade de Deus, Descartes considerou estar rodeado de “trevas impenetráveis”. Certo amigo de Descartes perguntou se um de seus leitores morresse antes de saber que além desse pântano duvidoso existe uma saída, não estaria fazendo que esse pobre homem que perdera sua crença, perdesse também a bem aventurança, por culpa do filosofo? Mas para Descartes o momento em que se desmoronam todas as certezas surge uma nova certeza, pois é da duvida que deriva a certeza originaria, pois quando duvido, eu, aquele que duvida, existe. Essa certeza interna não pode ser destruída nem mesmo se Deus for um enganador. Ainda que ele me enganasse, ainda existiria eu, o enganado que “penso logo existo” – cogito ergo sum -, e “duvido, logo existo” ou “sou enganado, logo existo”. É daí que Descartes retira o lugar da certeza originaria de Deus e o coloca, num giro no homem determinando toda filosofia posterior. É na independência do eu, a fundamentação filosofia primordial e decisiva do filosofo. Esse eu seria de uma natureza pensante e nada mais, um solipsismo, isto é, uma forma de acreditar que a única realidade existente é a do eu pensante, por exemplo: se você morresse hoje morreriam também toda a realidade externa a você porque eles só existem porque você pensa neles. Isso é uma “coisa pensante” pois o eu, que só vive na consciência, perde o contato com as coisas. Eis o nascimento da divisão moderna da realidade em sujeitos desligados do mundo, por um lado, e puros objetos, por outro, que pesa hoje em dia sobre a filosofia. Sendo o conhecimento na filosofia clássica fundado na unidade entre o sujeito e o objeto, a separação desses elementos que são constituídos pela realidade substancial das coisas o fundamento de toda a filosofia denominada moderna. Agora o sujeito não é mais objeto de si mesmo na apreensão do conhecimento, pois as coisas passam a ser o que pensamos que elas são e não mais o que eram na realidade dada.

Resta-lhe apenas Deus, mas esse Deus só pode se dar no homem finito e imperfeito, até mesmo em suas afirmações mais profícuas, se engendrado no homem por Deus. O infinito como tal é precisamente mais perfeito que o finito. Mas como isso se dá? Descartes afirma que de forma direta como uma certeza originária já que o homem não pode produzi-la por não abarcar o infinito. Esse círculo vicioso de compreensão imediata e certeza originaria mais contribuem para colocar o leitor em duvida do que esclarece as questões propostas, a tentativa de Descartes reconstruir a metafísica é fadada ao descrédito de quem percebe suas máscaras. Por mais que aleguem ser ele o maior influenciador das filosofias posteriores com traços metafísicos, ou iluministas e até niilistas, sua filosofia só faz crer que o conhecimento de que a certeza da existência de Deus pertence originariamente ao homem, quanto a sua própria existência, e que bem próximo dessa certeza mora também a dúvida que se volta, no final das contas, contra o próprio criador e que a ameaça entregar a liberdade do eu ao abismo sem fundo. Se a frase em que se define como “um homem que caminha só em meio às trevas” estiver correta, Descartes percebeu que sua proposta de fazer da filosofia um campo seguro como o das matemáticas pelo meio da dúvida metódica, levava em si mesma a possibilidade perigosa de destruir definitivamente a certeza metafísica que tanto fez para reestruturar depois que a demoliu. Talvez seja por isso que se oculte atrás da máscara.

SOCIOLOGIA O contexto histórico e intelectual do surgimento da Sociologia Émile Durkheim Max Weber Karl Marx Maquiavel e seu impactante pragmatismo político

O contexto histórico e intelectual do surgimento da Sociologia O objetivo deste artigo é, mesmo que sumariamente, fornecer ao leitor os conceitos fundamentais dos três principais autores da sociologia clássica (Durkheim; Weber e Marx), principalmente no que se refere às suas contribuições metodológicas: o funcionalismo positivista; a sociologia compreensiva e o materialismo histórico e dialético. Além disto, busca-se atentar para os desdobramentos políticos proporcionados por estas formulações teóricas, principalmente aqueles tributários do marxismo. A sociologia é uma ciência bastante jovem, nascida na segunda metade do século XIX, e que busca explicar a vida social através de um arcabouço teórico-conceitual constituído a partir de um conjunto de métodos e técnicas específicos. Para melhor compreender esta ciência, faz-se necessário atentar para o contexto histórico e intelectual de seu nascimento, ou seja, de um lado, há que se analisar o processo de constituição do capitalismo moderno, com suas vicissitudes e contradições; e de outro, há que se buscar as referências intelectuais que vinham se processando desde o renascimento cultural do século XV. Esta contextualização é extremamente importante, visto que a sociologia, desde seu nascimento, teve (e tem) por objetivo interferir na organização social, alterando (ou mantendo) as relações sociais de poder instituídas. A revolução industrial, muito mais do que a introdução da máquina a vapor, significou o estabelecimento de novas relações sociais de produção: de um lado, o empresário capitalista que concentrou os meios de produção e, de outro, uma gigantesca massa de homens, mulheres e crianças miseráveis, submetidas a jornadas de trabalho dramáticas e extenuantes. O êxodo rural levou a uma urbanização acelerada, com efeitos catastróficos: aumento da prostituição, do alcoolismo, da criminalidade, de epidemias, da mortalidade, etc. Em suma: a Revolução Industrial criou o proletariado urbano que, à medida que vivenciava as condições a que era submetido, articulavase e identificava-se enquanto classe social. Foi este novo contexto (o desfazer-se de um mundo e o fazer-se de outro) que se tornou matéria-prima para as primeiras análises sociológicas, na medida em produzia novas relações econômicas e sociais. Segundo Martins, “A sociologia constitui em certa medida uma resposta intelectual às novas situações colocadas pela revolução industrial”1 Além da Revolução Industrial, as transformações intelectuais que vinham se processando desde o Renascimento (século XV) também influenciaram o pensamento sociológico. A observação e o experimentalismo, largamente utilizados pelas as ciências naturais, eram agora reivindicados para o estudo da sociedade, com o propósito de se formular leis gerais que retirassem dos “deuses” o poder sobre o “devir” histórico, recolocando, assim, o homem enquanto sujeito da história. Nesse sentido, os iluministas (século XVIII) contribuíram de forma significativa, denunciando as instituições do Antigo Regime, como “irracionais” e “injustas”, que atentavam contra a liberdade individual e a igualdade social. Desta forma, os pensadores iluministas conferiram ao conhecimento um caráter crítico e negador da realidade sobre a qual se debruçavam. Em poucas palavras, os pensadores burgueses se valiam do conhecimento nascente como instrumento de luta contra o absolutismo e as instituições feudais, que dificultavam a plena constituição da empresa racional capitalista.

Os ventos revolucionários (revoluções industrial e francesa) desorganizaram a sociedade feudal. A tarefa que se colocava, então, aos primeiros sociólogos era, portanto, a compreensão das leis que regiam os fatos sociais, para assim, reorganizar e reordenar a nova sociedade, com vistas ao progresso econômico e social. Visto que a sociologia nasceu em meio ao antagonismo de classes típico do capitalismo (burguesia x proletariado), esta ciência foi e é objeto de disputas acirradas acerca de seu objeto de estudo e de seus métodos de análise, gerando assim distintas “escolas sociológicas” que sustentaram e sustentam posições políticas. 1 MARTINS, Carlos Benedito. O que é sociologia. Coleção Primeiros Passos, nº 57. São Paulo, Brasiliense, 1994. 38ª edição, p.16.

Os fundadores da sociologia (Comte e Durkheim), ao mesmo tempo em que foram influenciados pelos iluministas, o foram também pelos chamados “profetas do passado” (pensadores conservadores), que não viam progresso numa sociedade alicerçada na indústria, na cidade e na ciência, na medida em que estas transformações colocavam em risco a propriedade, a autoridade, a religião e, portanto, a vida. Não é mera coincidência o fato de que os primeiros estudos sociológicos atentarem para instituições sociais como a família e a religião, e sua significância para a manutenção da ordem social. Foi neste contexto que a ciência substituiu a religião, enquanto elemento de conservação e reprodução da vida social. Portanto, no momento de sua formação, a sociologia assumiu um caráter conservador, buscando por fim ao estado de “anarquia” e “desordem” reinantes naqueles tempos. Augusto Comte, por exemplo, buscava com sua filosofia positiva, a reconciliação entre a “ordem” (defendida pelos conservadores) e o “progresso” (defendido pelos iluministas). Para ele, a ordem era condição fundamental para o progresso. Porém, não foi a sociologia nascida do espírito positivista que questionou os fundamentos da sociedade capitalista. Somente mais tarde, com os movimentos socialistas, a sociologia se tornou manancial teórico para a luta dos trabalhadores. Feitas as apresentações, vejamos, agora, os elementos fundamentais da teoria sociológica clássica.

Émile Durkheim (1858 – 1917) Um dos grandes méritos de Durkheim foi, sem dúvidas, estabelecer a especificidade do objeto sociológico, conferindo assim caráter científico à sociologia nascente. Segundo ele, a sociologia pode ser definida como a “ciência das instituições”, como a ciência dos “comportamentos instituídos” pela sociedade. Para compreender as “regularidades” presentes nas instituições e nos comportamentos instituídos nas diversas sociedades, elaborou o conceito de fato social, que abarca “toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter”.2

Em outras palavras, os fatos sociais constituem a moral social e, para reconhecêlos, é necessário atentar para seus efeitos sobre a coletividade, determinando sua coesão, ou não. Devem, ao mesmo tempo, apresentar existência objetiva, independentemente dos desejos individuais; exterioridade, na medida em que age sobre os indivíduos; e coerção, impondo-se aos indivíduos de forma mais ou menos violenta. Dessa forma, dadas as especificidades do fato social, parece justo buscarmos sua explicação não no indivíduo, mas na vida coletiva, na medida em que “uma coletividade tem as suas formas específicas de pensar e de sentir, às quais os seus membros se sujeitam, mas que diferem daquelas que eles praticariam se fossem abandonados a si mesmos. Jamais o indivíduo, por si só, poderia ter constituído o que quer que fosse que se assemelhasse à idéia de deuses, aos mitos e aos dogmas das religiões, à idéia de dever e da disciplina moral.”3

Assim, os fatos sociais são formados pelas representações coletivas, ou seja, pela idéia que a sociedade faz dela mesma, formada a partir do acúmulo de experiências ao longo de gerações e manifestando-se através dos conceitos, traduzidos nas normas de convivência e na comunidade lingüística de um grupo ou nação. As normas que unem os membros de um grupo se manifestam de maneira mais ou menos intensa dependendo do grau de solidariedade que ali impere. Alguns fatos sociais estão menos consolidados, como a moda, e por isso são denominados como maneiras de agir. Outros fatos sociais encontram-se cristalizados, como as normas jurídicas e a língua, sendo denominados como maneiras de ser. Mesmo que em graus diversos, ambos existem externa e independentemente dos indivíduos, ao mesmo tempo em que se lhe impõem. São, portanto, fatos sociais. Um argumento bastante forte no sentido de se provar a objetividade, a exterioridade e a coerção presentes nos fatos sociais é sua necessidade de imposição aos indivíduos desde a mais tenra idade: o que faz a família, ensinando-nos normas de comportamento social? O que faz a escola? Educamos e somos educados não como queremos, mas seguindo normas de valoração socialmente atribuídas. Por outro lado, esta adequação ao sistema não significa a impossibilidade de erguerse contra ele, dependendo de quão grave for a ofensa cometida, mas deve-se estar ciente do preço a ser pago. Que o digam as bruxas e os hereges, durante a Idade Média. Que o digam os defensores do aborto, da descriminalização das drogas ou da união civil entre homossexuais. Outro aspecto bastante interessante sobre os fatos sociais diz respeito à sua dualidade. Na medida em que o fato social reside na moral coletiva e não no indivíduo que o encarna, nos é imposto através da coerção. Portanto, era-se de esperar que a ele resistíssemos, mas ao contrário, a ele aderimos, pois tudo o que eleva a sociedade também nos eleva. Mesmo que nos seja penoso, nós o desejamos, pois sua existência nos precede e sucede, garantindo a continuidade do grupo. Segundo Durkheim, “ao mesmo tempo em que as instituições se impõem a nós, aderimos a elas; elas comandam e nós as queremos; elas nos constrangem, e nós encontramos vantagem em seu funcionamento e no próprio constrangimento.”4

Estabelecida a especificidade do objeto de estudo, Durkheim preocupou-se com o método que deveria orientar as pesquisas sociológicas, garantindo a objetividade do

2 As Regras do Método Sociológico. 3 Formas Elementares da Vida Religiosa. 4 As Regras do Método Sociológico.

conhecimento, proporcionando assim caráter científico à nova disciplina acadêmica. Neste sentido, na própria gênese do método funcionalista (tributário do método positivista) 5 , é evidente a influência exercida pelas ciências naturais, notadamente pela biologia. Não é mera coincidência a larga utilização de termos como organismo social, tecido social, atomização e tantos outros na elaboração de seus conceitos. O primeiro e mais importante procedimento do sociólogo ao analisar os fatos sociais deve ser sua coisificação, pois somente tratando-os como coisas nos é possível afastar as pré-noções e os pré-conceitos que povoam nossa mente, e impedem o acesso ao verdadeiro conhecimento. Para Durkheim, “A coisa se opõe à idéia (...) É coisa todo objeto do conhecimento que a inteligência não penetra de maneira natural (...) tudo o que o espírito não pode chegar a compreender senão sob a condição de sair de si mesmo, por meio da observação e da experimentação, passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente acessíveis para os menos visíveis e profundos”.6

Este distanciamento em relação ao objeto é uma conseqüência direta da concepção durkheimiana de ciência, que busca conhecer as relações causais existentes na sociedade, não se preocupando com julgamentos de valor acerca do que é observado. Em outros termos, Durkheim propõe a cisão entre sujeito do conhecimento e objeto a ser conhecido. Uma implicação política desta concepção metodológica é, sem dúvida, a incapacidade do sujeito ser construtor de sua própria história, aparecendo, antes, como mero resultado do jogo de forças existentes na sociedade. Delimitado o objeto e exposto o método, passemos a uma das principais preocupações de Durkheim: o que mantinha os homens unidos em sociedade? Para responder esta questão, elaborou o conceito de solidariedade social, que seria o responsável pela coesão dos grupos sociais, em graus diversos, dependendo da similaridade ou não das consciências individuais ao ser social. Tal preocupação decorre da situação concreta da França no século XIX, onde a rápida industrialização e urbanização haviam destruído as formas de solidariedade social existentes no Antigo Regime, sem contudo substituí-las por outras. Em outros termos, imperava o desregramento social.7 Assim, quanto maior for a consciência coletiva, maior será a coesão social daquele grupo, e menores serão, portanto, as possibilidades do indivíduo manifestar-se, diferenciando-se do grupo. Por outro lado, quanto menor for a consciência coletiva, menor será a coesão social e, logo, as possibilidades do indivíduo diferenciar-se do grupo aumentam consideravelmente.

5 Sobre o positivismo, consultar, entre outros: RIBEIRO Jr., João. O que e positivismo. Coleção Primeiros Passos, n 72; São Paulo, editora brasiliense, 8ª edição, s/d. (1º edição, 1982) 6 As Regras do Método Sociológico. 7 Sobre as condições sociais da França no século XIX, consultar, entre outros: BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. Coleção Tudo é História, nº 52; São Paulo, editora brasiliense, 1982. 8 A Divisão do Trabalho Social.

Nas “sociedades simples” vigora a solidariedade mecânica. Os elementos que compõem a coletividade encontram-se unidos pela similitude, sendo portanto tão solidários, que a própria idéia de indivíduo perde o sentido. Exemplos deste tipo de solidariedade encontravam-se na África e na Ásia, onde reminiscências do passado podiam ser observadas sob as formas de “hordas” e “clãs”, sociedades “inorganizadas”, nas quais o tipo coletivo superava, em força, o tipo individual. Com o aumento da densidade moral, proporcionado pela urbanização, e com o aumento da densidade material, proporcionado pela industrialização, surgiram as “sociedades complexas”, nas quais vigora a solidariedade orgânica, conseqüência direta do processo de divisão social do trabalho. Nesta situação, o indivíduo ressurge, na medida em que se diferencia no interior do “organismo social”, e nele integrandose pela função que desempenha na produção, tanto que “chegará o dia em que toda organização social e política terá uma base exclusivamente ou quase exclusivamente profissional.”8

Como dito anteriormente, buscando a objetividade do conhecimento, Durkheim condenava a utilização de pré-conceitos na análise sociológica. Como, então, estabelecer um critério objetivo que diferenciasse as sociedades simples das

sociedades complexas? Visto que um fato social se manifesta pelo seu efeito na coletividade, Durkheim elegeu as normas do direito como um fato social capaz de possibilitar a comparação entre os tipos de sociedades, e assim diferencia-las no que se refere às formas de solidariedade. Nas “sociedades primitivas” onde o tipo coletivo é forte, a atitude desviante é considerada uma ofensa ao grupo e, portanto, com base no costume, o infrator é punido de forma repressiva, impondo-lhe uma humilhação pública, privando-o do convívio social e, não raro, privando-o da própria vida. Tomemos como exemplo a moral islâmica, pela qual uma adúltera deve ser punida com o apedrejamento público: o adultério fere a todos, e não apenas ao marido traído. Mesmo porque as punições recobrem-se de caráter ritualístico, o que reanima e vivifica os laços de solidariedade perturbados pela ofensa. “Quando reclamamos a repressão ao crime, não somos a nós que queremos pessoalmente vingar, mas a algo de sagrado que sentimos, mais ou menos confusamente fora e acima de nós”.9 Nas “sociedades complexas” onde o tipo coletivo é fraco e, portanto, os indivíduos encontram-se unidos pela dessemelhança. Nestas sociedades, a atitude desviante de seus membros é punida com base num código racionalmente estabelecido, através da aplicação de penas restituitórias, pelas quais o infrator é obrigado a restabelecer o estado das coisas e das relações afetadas por sua conduta. Exemplos destas penas podem ser observados nos códigos civil e comercial. Em suma, é agindo sobre os indivíduos que o fato social se manifesta, unindo-os por semelhança ou por dessemelhança, de maneira mais ou menos intensa. Em uma de suas mais instigantes obras, Durkheim analisou o suicídio enquanto fato social. Aparentemente, os motivos que levam um indivíduo a retirar a própria vida deveriam ser buscados na psicologia. Porém, por ser o suicídio um fato social, seus motivos devem ser buscados na maneira pela qual o indivíduo se relaciona com o tipo coletivo no qual está inserido. Desta perspectiva, o suicídio deve ser encarado como algo exterior ao indivíduo. São três os tipos de suicídio. O suicídio egoísta ocorre quando o indivíduo sente-se deprimido, desamparado. Tal situação ocorre em sociedades que atravessam processos de desintegração do tipo coletivo: a sociedade moderna, na qual o indivíduo é forte o suficiente para negar, egoisticamente, a moral coletiva enfraquecida. O suicídio altruísta, mais freqüente nas sociedades simples, ocorre justamente naqueles grupos em que a moral coletiva é forte e, por aceita-la inconteste e integralmente, o indivíduo aceita privar-se da própria vida em nome de um tipo social forte, em nome da coletividade. Não são outros os sentimentos manifestados no 11 de setembro. O suicídio, neste caso, é um dever, uma honra que, se não cumprido, resulta em perda da estima pública. Por fim, há o suicídio anômico, que acomete os indivíduos justamente devido a não existência de uma moral coletiva forte. Mais comum nas “sociedades complexas”, o suicídio anômico pode ser considerado a atitude extrema de quem não suportou o estado de anomia social, não suportou a frouxidão dos laços sociais dos quais depende para sentir-se pertencente a um determinado grupo. Este tipo de suicídio seria o resultado da ausência de normas, fruto do processo de decomposição de antigas formas de solidariedades social, sem que estas fossem substituídas por novas formas. Era a sociedade industrial que assistia ao fim dos mecanismos que controlavam as paixões e os humores individuais: a família, a religião e a corporação de ofício haviam, enfim, perdido seu poder coercitivo e moralizador. Segundo Durkheim, “moral é tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o indivíduo a contar com seu próximo, a regular seus movimentos com base em outra coisa que não os impulsos de seu egoísmo e a moralidade é tanto mais sólida quanto mais numerosos e fortes são esses laços.”10 Assim, o estado de anomia que se verificava na França da segunda metade do século XIX era, antes de tudo, o resultado de uma crise moral, que livre dos laços regulamentadores e protetores do mundo feudal, ainda não havia encontrado novos mecanismos de solidariedade social. Em outras palavras, o desenvolvimento material não foi acompanhado do desenvolvimento de uma moralidade capaz de conter os interesses e estabelecer limites, manifestado-se sobretudo nas desordens e nos conflitos sociais, que remetiam a sociedade novamente ao “estado de natureza”, assim como foi definido por Hobbes no século XVII.

9 A Divisão do Trabalho Social. 10 A divisão do Trabalho Social.

11 A Divisão do Trabalho Social.

A revolução industrial trouxe nefandos efeitos sobre a família, que de estendida, passou a ser nuclear, quando não se desintegrou totalmente diante da miséria e do desespero. As religiões, expostas a multiplicidade das correntes de pensamento, perdeu seu caráter sagrado, perdeu seu poder de coerção. As corporações de ofício haviam ruído, e com elas, suas regulamentações sobre a atividade econômica. Diante de tanto desregramento, Durkheim aponta a divisão social do trabalho como a nova fonte possível de solidariedade social, substituindo o papel antes desempenhado pela família. E se o grupo profissional ainda não desempenha tal função, isso é devido a uma anômica divisão do trabalho que, por sua vez, precisa ser corrigida. Para que a divisão do trabalho gere solidariedade, faz-se necessário que os trabalhadores percebam que “suas ações têm um fim fora de si mesmas, Daí por especial e uniforme que possa ser sua atividade, é a de um ser inteligente, porque ela tem um sentido e ele o sabe”.11 Nesta perspectiva, a luta de classes que sacudiu a Europa durante quase todo o século XIX é vista como uma anormalidade no nível das relações sociais. Durkheim explica a regularidade, não sua quebra. Assim, a moral é desejada e desejável, visto que é sobre ela que a própria sociedade se sustenta, e é somente em sociedade que somos humanos, que dominamos as paixões e passamos a considerar outros interesses que não os próprios. Para substituir a religião, enquanto fator moralizador, Durkheim propõe que se crie uma espécie de religião laica, fundada na razão, que exerceria um poder coercitivo, autorizado pela própria crença social atribuída a racionalidade, que se manifesta sob a forma de conceitos, de categorias do entendimento que expressam “coisas” sociais. Aqui, novamente, se pode observar um tributo ao positivismo, visto que Comte também havia proposto um sistema político-religioso destinado a reformar a sociedade, através de seu “tratado de sociologia instituindo a religião da humanidade”.

Max Weber (1864 – 1920) O pensamento weberiano pode ser enquadrado no contexto geral de crítica ao positivismo, até então reinante nas ciências humanas. Neste sentido, podemos afirmar que trouxe nova luz metodológica às explicações sociológicas, na medida em que estabeleceu diferenças substanciais entre as “ciências da natureza” e as “ciências do espírito”. Herdeiro intelectual de Wilhelm Dilthey (1833-1911), de quem foi secretário particular, Weber adota a distinção entre explicação e compreensão. Segundo Tragtenberg, “A compreensão seria o modo típico de proceder das ciências humanas, que não estudam fatos que possam ser explicados propriamente, mas visam aos processos permanentemente vivos da experiência humana e procuram extrair deles seus sentido”12 Esta é a origem da sociologia compreensiva weberiana, que busca a “captação da relação de sentido” da ação humana. No entanto, é a partir do conceito de vontade de poder, elaborado por F. Nietzsche (1844-1900) que se torna possível a compreensão da realidade social, política e econômica. Além de Dilthey e Nietzsche, outro intelectual com quem Weber dialoga é o próprio Marx, com quem compartilha o mesmo tema: o capitalismo ocidental. No entanto, critica de maneira ácida o monismo causal (de ordem econômica) tão comum no marxismo vulgar. Portanto, foi justamente na busca de novas formas de explicar o devir que Weber recuperou o sentido atribuído às idéias dos agentes históricos, como instrumento para a compreensão de aspectos de uma realidade que, no seu todo, é incompreensível, mas que tem uma marca inquestionável: a marcha da racionalidade. Para Weber, a sociologia é a ciência que busca apreender o sentido contido numa ação social, observando as “regularidades” expressas nos usos, nos costumes e nas situações de interesse, estabelecendo relações possíveis, a fim de captar e interpretar a “conexão de sentido em que se inclui uma ação”, dando-lhe, portanto, caráter social. Assim, ganha destaque em sua construção teórica o conceito de ação social, entendido como um “ato, omissão ou permissão”, dotado de sentido subjetivo, socialmente atribuído pelo sujeito da ação. Visto que a realidade, como se nos apresenta, é incognoscível, Weber elabora tipos ideais a partir dos quais busca explicar os sentidos atribuídos às condutas humanas, estabelecendo uma escala valorativa que parte da irracionalidade e, à medida que o mundo se desencanta, avança rumo a total e completa racionalidade. Definidos a partir de critérios subjetivos do cientista, ironicamente são os tipos ideais os responsáveis metodológicos pela objetividade do pensamento weberiano. Neste sentido, o tipo ideal constitui-se numa abstração elaborada a partir da observação empírica, naquilo que ele tem de particular e não naquilo que ele tem de genérico, como propunham os positivistas. O tipo ideal aponta para como se daria a ação se seu sentido fosse racionalmente atribuído, orientando se para um determinado fim e, para isso, utilizando-se dos meios mais eficazes possíveis. Somente a partir deste tipo de abstração do real seria possível comparar as realidades concretas umas em relação às outras, do resultaria a objetividade do conhecimento científico. São quatro os tipos ideais de ação social, que justamente por serem construções intelectuais, muito dificilmente se verificam empiricamente em estado puro, apresentando-se, no mais das vezes, de forma difusa. As ações sociais racionais, cujos sentidos são atribuídos com relação aos fins e aos valores, podem, por excelência, ser observadas nas condutas econômicas e científicas; por outro lado, as ações sociais irracionais têm seus sentidos atribuídos pelo afeto e pela tradição, típicos de sociedades que ainda não se encontram no mesmo nível civilizatório da sociedade européia, e que por isso são denominadas “sociedades simples”. A diferença entre os tipos ideais de ações sociais é, portanto, determinada pelo sentido subjetivo atribuído pelo agente da ação. Por outro lado, isto não quer dizer que o sujeito possui um leque infinito de opções de sentidos. Estes são franqueados pelo grupo social, que os tem muito bem definidos, numa escala de valores positivos e negativos, expressos através das regras de etiqueta, no uso da norma culta da língua, no gosto

12 TRAGTENBERG, Maurício. “Apresentação”. In: WEBER, Max. Os Economistas, São Paulo, Nova Cultural, 1997, p.06.

artístico, etc. Outra decorrência metodológica de tal conceituação diz respeito aos limites da sociologia, visto sua dificuldade em apreender os sentidos atribuídos em ações pautadas pelo afeto e pela tradição, portanto não racionais. Cabe uma distinção entre ação social e modo de conduta. O modo de conduta não é dotado de sentido subjetivo, visto tratar-se de uma ação homogênea, na qual o sujeito perde-se na totalidade; ou tratar-se de uma ação de massa, na qual não se pode identificar os sentidos individualmente atribuídos.

13 Economia e Sociedade, p. 49. 14 Economia e Sociedade.

Quando vários agentes entram em contato estabelece-se uma relação social, na qual os agentes dotam suas ações de sentido subjetivo referindo-se mutuamente, mesmo que não haja coincidência de significados. Agem estabelecendo probabilidades esperadas de conduta, atribuem significado à própria ação a partir do significado que acreditam que o outro a ela esteja atribuindo. Quando o que baliza os significados das ações é a razão, mais facilmente estas relações são expressas sob a forma de normas, ou seja, relações sociais dotadas de racionalidade e, portanto, capazes de sustentar uma relação associativa, visto que o sentido da ação de seus membros será atribuído com relação a fins e valores. Porém, quando os significados das ações sociais são fundados no sentimento irracional (afetivo ou tradicional) de pertencimento mútuo, temos uma relação comunitária, típica das chamadas “sociedades simples”. Como dito anteriormente, para Weber a multiplicidade do real é impenetrável ao espírito, em sua totalidade, na medida em que o econômico, o jurídico, o político, o social e o cultural constituem-se em “esferas” autônomas da existência, com lógicas próprias, e que se combinando das mais diversas formas, dão origem às mais diversas configurações sociais. Em alguns casos, o agente da ação dota-a de significado combinando a partir de duas ou mais “esferas” e, ao sociólogo cabe buscar, através do método compreensivo, as conexões de sentido. Esta construção teórica tem por objetivo, entre outros, proceder ao estudo de um dos temas mais caros à sociologia, qual seja: a hierarquia social ou, em outros termos, a distribuição do poder dentro de determinados agrupamentos sociais. Assim, para responder o por que os sujeitos históricos aceitam seus “papéis sociais”, Weber elabora sua clássica distinção entre os conceitos de poder e dominação: “Poder significa a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social, mesmo contra toda a resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade”13

Por outro lado, o conceito de dominação busca compreender a probabilidade de obediência ao poder, definindo-o como “um estado de coisas pelo qual uma vontade manifesta (mandato) do dominador ou dos dominadores influi sobre os atos de outros (do dominado ou dos dominados), de tal modo que em um grau socialmente relevante, estes atos têm lugar como se os dominados tivessem adotado, por si mesmos e como máxima de sua ação, o conteúdo do mandato (obediência).”14

A partir desta distinção, Weber busca apreender os mecanismos que fazem com que os homens acreditem na legitimidade, na validez de determinado ordenamento social. Por exemplo: Na sociedade feudal, o critério de valoração social era dado pela origem; na sociedade capitalista, pela propriedade de certos bens econômicos que determina a posição social. Em outras palavras, Weber procura quais são as orientações que seguem os sujeitos ao atribuírem sentido às suas ações: tradição; afeto; valores; fins. Nesta perspectiva, novos tipos ideais são concebidos para se explicar a distribuição do poder dentro de determinada ordem social: classe, relacionada a riqueza; estamento, relacionado a distinção; e partido, relacionado ao poder político. Ocorre uma distinção a partir da situação de classe quando as ações sociais dos sujeitos recebem significados definidos pelo mercado, como a propriedade

ou não dos fatores de produção. A própria definição weberiana para classe social revela a centralidade do mercado: “falamos de uma classe quando: 1) é comum a um certo número de pessoas um componente causal específico de suas probabilidades de existência na medida que 2) tal componente esteja representado exclusivamente por interesses lucrativos e de posse de bens 3) em condições determinadas pelo mercado (de bens ou de trabalho)”.15

Outra é a situação quando a distinção dentro do grupo for dada pelo pertencimento a grupos de status, e celebrado por ritos e convenções sociais, com destaque para o casamento endogâmico. É bastante clara a distinção entre uma ordem social centrada no econômico e outra no prestígio: “em oposição às classes, os estamentos são normalmente comunidades, ainda que, com freqüência de caráter amorfo. Em oposição à ‘situação de classe” condicionada por motivos puramente econômicos, chamaremos ‘situação estamental’ a todo componente típico do destino vital humano condicionado por uma estimativa específica – positiva ou negativa – da ‘honra’ adscrita a alguma qualidade comum a muitas pessoas (...) Quanto ao seu conteúdo, a honra correspondente ao estamento é normalmente expressa, antes de tudo, na exigência de um modo de vida determinado para todos os que queiram pertencer ao seu círculo”.16

Como para Weber as sociedade marcham a passos largos para a racionalidade total, cada vez menos a distribuição do poder vai basear-se na distinção de status e, cada vez mais, na ordem econômica. No entanto, mesmo assim, a tipificação com base no status constitui-se um recurso intelectual ainda capaz de apreender a realidade social. Enfim, tanto uma como outra ordem social, ao nível da disputa pelo poder, geram partidos, cuja ação é sempre racional, pautada pelo fim último de obtenção do domínio sobre o aparelho coercitivo, transformando-se assim em poder político. O conceito de dominação ocupa posição central na obra de Weber, na medida em que este se preocupa com os processos sociais que conferem validade a uma ordem, que mantém persistentes no tempo os sentidos atribuídos às ações sociais. Em outros termos, o que produz a legitimidade da dominação? Posto que Weber busca compreender como se processa a produção da legitimidade, atentemos para as três formas possíveis (tipos ideais) de dominação legítima: a tradicional, a carismática e a legal. “A autoridade do ‘ontem eterno’, isto é, dos mores santificados pelo reconhecimento inimaginavelmente antigo e da orientação habitual para o conformismo. É o domínio ‘tradicional’ exercido pelo patriarca e pelo príncipe patrimonial de outrora (...) Há a autoridade do dom da graça (carisma) extraordinário e pessoal, a dedicação absolutamente pessoal e a confiança pessoal na revelação, heroísmo ou outras qualidades da liderança individual. É o domínio ‘carismático’ exercido pelo profeta ou – no campo da política – pelo senhor de guerra eleito, pelo governante plebiscitário, o grande demagogo ou o líder do partido político. (...) Finalmente, há o domínio da ‘legalidade’, em virtude da fé na validade do estatuto legal e da ‘competência’ funcional, baseada em regras racionalmente criadas. Nesse caso, espera-se o cumprimento das obrigações estatutárias. É o domínio exercido pelo moderno ‘servidor de estado’ e por todos os portadores do poder que, sob este aspecto a ele se assemelham.” 17

Influenciado pelo conceito de “vontade de poder”, Weber afirma que classes, estamentos e partidos são fenômenos de distribuição do poder no interior de uma ordem social, e que é no interior das estruturas de dominação que se dá a luta pela dominação, encarnada nas relações sociais, nas quais os agentes tentam validar (legitimar) valores e fins como motores das ações sociais. Embora a estrutura de poder burocrática seja a forma mais racional de organização da dominação, ela pode ser abalada pelo surgimento da liderança carismática que, por seus atributos pessoais, torna legítimas as regras por ela criadas ou reveladas. Talvez a obra mais conhecida de Weber seja “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, na qual o autor demonstra como o protestantismo legitimou a racionalização das condutas sociais de seus fiéis, estimulando a prática capitalista. A Reforma Protestante, vetou a salvação pela contemplação, impondo aos crentes a necessidade de uma vida santa, acética, determinando, assim, os sentidos que os sujeitos davam às suas ações sociais, principalmente às econômicas. Foi justamente a vasta presença de protestantes nos países de capitalismo avançado que sugeriu a Weber a possível relação entre a ética calvinista e o capitalismo moderno. Segundo preceitos religiosos, para o calvinista, “a perda de tempo (...) é o primeiro e o principal de todos os pecados (....) A perda de tempo através da vida

15 Economia e Sociedade. 16 Economia e Sociedade. 17 A Política como Vocação.

social, conversas ociosas, do luxo e mesmo do sono além do necessário para a saúde (...) é absolutamente dispensável do ponto de vista moral.”18 “Tempo é dinheiro”. “O bom pagador é dono da bolsa alheia”. Estas são máximas que podem ser citadas como demonstração do quanto a ética religiosa influiu no comportamento econômico dos crentes, que então tomam o trabalho como um valor em si mesmo, como uma manifestação da graça divina. “Na verdade, o que é aqui pregado não é uma simples técnica de vida, mas sim uma ética peculiar, cuja infração não é tratada como uma tolice, mas como um esquecimento do dever. (...) Não é o mero bom senso comercial (...) mas sim um ethos.”19 De fato, este ethos religioso resultou diretamente em capitalistas empreendedores e trabalhadores disciplinados e dedicados. Assim, influindo decisivamente na vida e na prática econômica, Weber evidenciou outras causas possíveis na constituição do capitalismo ocidental, além das determinações econômicas do marxismo, o que não significa esvaziar seu conteúdo. Expostos, mesmo que sumariamente, os conceitos centrais da sociologia weberiana, resta-nos refletir um pouco mais acerca da prática metodológica da sociologia compreensiva, bem como acerca das conseqüências sociais da racionalização.

18 A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 19 A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Diferentemente de Durkheim, Weber não acredita na coisificação, no afastamento das pré-noções, visto que na própria seleção do que será estudado, o sociólogo manifesta seus valores subjetivos. Mesmo assim, faz-se necessário um instrumento conceitual que guie o pesquisador na busca de conexões causais, o conceito de tipo ideal, que almeja captar e explicar os traços essenciais daquelas conexões. Mas se os valores do cientista se manifestam na delimitação do objeto, como garantir a objetividade do conhecimento científico? Como se relacionam ciência e valores? A razão guiará o cientista na seleção e ponderação dos valores que balizarão sua pesquisa e condicionarão seus resultados. Novamente a razão. A humanidade caminha para a racionalização das ações e das relações sociais, regulamentadas, cada vez mais pela burocracia, enquanto instrumento de dominação legitima. Weber defende o estabelecimento de uma dominação racional-legal capaz de otimizar a gestão dos negócios do Estado e, assim, serve de inspiração para grande parte das ciências administrativa e política. Por outro lado, esta mesma tendência à racionalização da vida promoveu o desencantamento do mundo, vazio de rituais, vazio de símbolos, vazio do sagrado. Ou seja, chato pra caramba.

Karl Marx (1818 – 1883) Dentre os autores clássicos, provavelmente, Marx seja o mais amado e, ao mesmo tempo, mais odiado. Durante todo o século XX, a ciência e os movimentos políticos centraram suas discussões e disputas na afirmação ou na negação da teoria marxista. Herdeiro do ideário iluminista, Marx acreditava que a razão era o instrumento não só capaz de apreender a realidade, mas também, de construção de uma sociedade mais justa, na qual a noção de progresso levaria à humanidade à liberdade e à total realização das potencialidades individuais e coletivas. Pensador e homem de ação, Marx legou-nos uma vasta obra, de difícil leitura, da qual retiramos apenas alguns conceitos fundamentais. O método de análise marxiano parte da dialética hegeliana, para subvertê-la. Num clichê: Marx busca, com seu método, proceder a “negação da negação”. Hegel (17701831) identifica, com sua filosofia, o papel desempenhado pela contradição e pelo conflito como sendo a própria substância da realidade que se supera constantemente, num processo de conservação, negação e síntese, apontando para a transitoriedade do pensamento, bem como das formas econômicas e sociais por ele geradas. Porém, para Hegel, este movimento de superação ocorre nos espíritos humanos, onde a definição do termo só ocorre pelo seu contrário. Marx se apropria de tal procedimento e o amplia, na medida em que se vale dele para analisar o processo de produção, conferindo-lhe materialidade histórica. Nas palavras do próprio Marx: “Meu método dialético não apenas difere em sua base do hegeliano como, além disso, é totalmente inverso deste. Para Hegel, o movimento do pensamento, que ele encarna com o nome de Idéia, é o demiurgo da realidade, que não é mais do que a forma fenomênica da Idéia. Para mim, ao contrário, o movimento do pensamento é o reflexo do movimento real, transportado e transposto no cérebro do homem... a compreensão positiva das coisas existentes inclui, ao mesmo tempo, o conhecimento de sua negação fatal, de sua destruição necessária, porque ao captar o próprio movimento, do qual todas as formas acabadas são apenas uma configuração transitória, nada pode detê-la, porque em essência é crítica e revolucionária.”20

Em outros termos, o método dialético permite que a análise sociológica entenda as transformações sociais e econômicas, pois é através da análise critica da realidade que o pensamento identifica e analisa o que é, e ao mesmo tempo, apreende o “vir a ser” contido naquilo que é, sob a tensão da contradição. A riqueza gerada com o advento da sociedade industrial trouxe consigo seu contrário, ou seja, uma massa de trabalhadores miseráveis. Eis a mais gritante das contradições do sistema capitalista que, em si, contém sua própria superação. Marx, utilizando-se do método dialético,e negando o idealismo hegeliano, parte da análise do real, pois “são os indivíduos reais, sua ação e as suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas, como as produzidas por sua própria ação(...) O primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos.”21 E aquilo que os indivíduos são (ou pensam que são) parte de suas condições materiais de existência, pois todo o edifício marxista se ergue sobre a base da infra-estrutura econômica, sobre a forma como os homens produzem os bens materiais e imateriais de sua própria existência. Desta forma, nega a naturalidade e o caráter eterno do modo de produção burguês, apontando para sua historicidade e, portanto, para sua transitoriedade. De posse de seu materialismo histórico e dialético, Marx identifica na produção material da existência a centralidade de sua construção teórica, atentando para suas formas de produção e reprodução, pois ele: “...os homens devem estar em condições de viver para ‘fazer a história’. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental e toda história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos.”22

20 O Capital. 21 MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo, Hucitec, 1987, 6ª edição, p.p. 26-27. 22 MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo, Hucitec, 1987, 6ª edição, p.39.

E, para se manterem vivos, os homens trabalham. Nesta perspectiva, o conceito de trabalho ganha relevância, entendido como as relações que os homens estabelecem com a natureza e entre si, para a produção e reprodução da vida, acumulando conhecimento que, ao longo de gerações, é transmitido pela cultura. Notemos que, para produzir os meios materiais necessários à vida, os homens estabelecem relações sociais. Porém, estas relações sociais de produção dependem do grau de desenvolvimento das forças produtivas que, por sua vez, demonstram o grau de domínio humano sobre a natureza. Em conjunto, forças produtivas e relações sociais de produção determinam as formas assumidas pelas diversas sociedades ao longo da história. Em resumo, o conceito de forças produtivas refere-se aos instrumentos e habilidades que possibilitam o controle das condições naturais, e seu desenvolvimento é cumulativo (máquina à vapor, energia elétrica, energia atômica). O conceito de relações sociais de produção faz referência à maneira como os homens se organizam para produzir; implica em diferentes formas de divisão do trabalho, em diferentes formas organização da produção e distribuição, de posse e propriedade dos meios de produção, bem como em suas garantias legais, constituindo-se, dessa forma, no substrato para a estruturação das classes sociais. È importante notar, mais uma vez, que as relações sociais de produção e o nível técnico as forças produtivas são produzidos por homens e mulheres durante o processo de produção e reprodução da vida material e, portanto, são históricos, são transitórios. Nas palavras de Marx: “... o moinho movido a braço nos dá a sociedade dos senhores feudais; o moinho movido a vapor, a sociedade dos capitalistas industriais. Os homens, ao estabelecerem relações sociais vinculadas ao desenvolvimento de sua produção material, criam também os princípios, as idéias e as categorias conformes às suas relações sociais. Portanto, estas idéias, estas categorias, são tão pouco eternas quanto as relações às quais servem de expressão.”23

Valendo-nos da metáfora do edifício social, pensemos as forças produtivas e as relações sociais de produção formando, juntas, a infra-estrutura da sociedade; esta, sobre si, sustenta uma série de representações coletivas ideologizadas, como a moral, a religião, os códigos jurídicos, etc., ou seja, sustentando a supra-estrutura. Nas palavras de Marx: 23 MARX, Karl. Miséria de la filosofía. Respuesta a la filosofía de la miséria del señor Proudhon.Buenos Aires, Siglo XXI, 1974. p. 91. 24 A Ideologia Alemã.

“A consciência nunca pode Ser mais que o Ser consciente, e o Ser dos homens é o seu processo da vida real (...) Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência.”24

A relação de determinação entre a infra e a supra-estrutura é objeto de acalorados debates no interior do pensamento marxista (e quantos reivindicam, ou reivindicaram o marxismo!). Num degradê que vai de Louis Althusser à E. P. Thompson há muitas interpretações possíveis. Em nosso entender, há que se perceber que entre elas existe, sim, uma relação dialética, na qual são possíveis múltiplas determinações. Não entender isso, é desperdiçar o essencial do pensamento marxista: sua filosofia da história. Foi o desenvolvimento das forças produtivas (e sua conseqüente divisão do trabalho) que gerou o excedente material possível de ser apropriado por não produtores, do que resulta surgimento das classes sociais, entendidas enquanto “lugar” ocupado no processo produtivo, representadas através de um esquema dicotômico: escravos e patrícios; servos e senhores; proletários e burgueses. A constatação da existência das classes sociais, bem como da relação entre elas, permitiu a elaboração de vários outros conceitos que foram apropriados pelo vocabulário político marxista, tais como: exploração; opressão e alienação.

É certo que a posição em relação aos meios de produção determina que a classe que os possua expresse sua potência ao nível da supra-estrutura, elaborando formas ideológicas de representação. “Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam todo âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda extensão e, conseqüentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores de idéias, que regulem a produção e a distribuição das idéias de seu tempo e que suas idéias sejam, por isso mesmo, as idéias dominantes da época.”25

Se as classes existem e ocupam posições distintas no processo produtivo; e se existe a apropriação, por parte de uns, da produção realizada por todos, existe uma contradição latente, que se sustenta na exploração econômica e nas diversas formas de opressão política, social, intelectual, etc. Se existe a contradição, é lícito supormos que as classes sociais se apresentam em luta. E é através da luta de classes que as contradições existentes no sistema fazem com que este supere a si mesmo, numa nova síntese histórica. Nesta luta, a classe explorada assume o papel de classe revolucionária, ao menos potencialmente. “As condições econômicas transformam primeiro a massa da população do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Assim, pois, esta massa já é uma classe com respeito ao capital, mas ainda não é uma classe para si. Na luta (...) esta massa se une, se constitui como classe para si.”26

Assim, fica claro que a efetivação do potencial revolucionário depende da capacidade da classe superar o estado de alienação em que se encontra: de classe em si, é necessário que se transforme em classe para si, num salto qualitativo proporcionado pela consciência de classe. Não foi isso que fez a burguesia francesa ao cortar a cabeça do rei? É da percepção da não correspondência entre as forças produtivas e as relações de produção que surgem as condições materiais para a consciência de classe, porque escancara aos explorados suas reais condições de existência, fazendo com que surjam interesses comuns que se opõem a outros interesses, gerando assim identidades de classe. Considerando que, em sua obra, Marx fez apenas apontamentos sobre as classes, nos parece oportuno reproduzir, aqui, a concepção de classe social com a qual mais nos identificamos, assim formulada por E. P. Thompson: “a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram - ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais.”27

Tais considerações que, assim apresentadas, nos parecem elementares, foram na verdade fruto de uma demorada e cuidadosa análise do funcionamento do sistema capitalista, considerado por Marx como a forma mais evoluída das formações sócioeconômicas já existentes. Nesse sentido, Marx se esforça por entender as relações de classe no sistema capitalista. Sua análise parte do concreto, parte da análise da mercadoria, visto que sob o capitalismo tudo se transformou em mercadoria, a forma mais elementar da riqueza capitalista. Porém, sob a mercadoria se esconde uma dupla identidade: valor de uso, quer satisfaça uma necessidade na esfera do consumo; valor de troca, quer seja produzida com vistas a realizar-se no mercado. Toda mercadoria contém valor de troca, medido pelo tempo de trabalho social nela contido, que se materializa no valor de uso. Sob o sistema capitalista, tudo se transforma em mercadoria, inclusive a capacidade humana de trabalhar. A força de trabalho é também uma mercadoria, porém bastante distinta das demais, pois possui uma característica que lhe é própria: é a única mercadoria capaz de criar valor. No nível das aparências, ao nível do mercado, a mercadoria força de trabalho é livremente trocada por uma determinada quantidade de dinheiro, capaz de garantir a reprodução da força de trabalho. Tem-se a impressão que sujeitos livres e juridicamente iguais trocam mercadorias de valor equivalente. Mas não, posto que a

25 MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo, Hucitec, 1987, 6ª edição, p.72. 26 Miséria da Filosofia. 27 THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. A Árvore da Liberdade. Vol. I. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 10.

mercadoria força de trabalho, ao transformar-se em trabalho efetivamente realizado, produz um valor superior àquele que lhe foi pago sob a forma de salário. Este sobre trabalho, realizado e não pago, recebe o nome de mais-valia, fonte do lucro capitalista, e expressão do nível de exploração à que o proletariado é submetido. A contradição, que ao nível do mercado é imperceptível, ao nível da produção se revela em toda sua nudez. Para subverter esta contradição, para subverter esta negação, faz-se necessário nega-la também. Assim, a negação da negação não é mais do que a afirmação. A afirmação de um novo modo de organizar a produção. Contudo, a afirmação de uma nova sociedade impõe a necessidade de fazer ruir a sociedade capitalista, através de uma revolução que já se anuncia.

28 Manifesto do Partido Comunista.

“As relações burguesas de produção e troca, as relações burguesas de propriedade, toda essa sociedade burguesa moderna, que fez surgir tão potentes meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não é capaz de dominar as potências infernais que desencadeou com seus conjuros. As armas de que a burguesia se serviu para derrubar o feudalismo voltamse hoje contra a própria burguesia. Porém a burguesia não forjou somente as armas que lhe darão a morte; produziu também os homens que empunharão essas armas – os operários modernos, os proletários.”28

Assim, o proletariado, agente revolucionário por excelência, é o único capaz de por fim a apropriação privada dos meios de produção, alterando a base econômica da sociedade e, conseqüentemente, toda a supra-estrutura ideológica. Dessa forma, abrir-se-ia um novo período na história, denominado de ditadura do proletariado, única forma capaz de barrar a tentativa de contra-revolução que, com certeza, seria tentada pela burguesia expropriada. Porém, como fazer com que os proletariados cumpram seu desígnio histórico? A resposta resiste no desmascaramento do caráter fetichista da mercadoria, que faz com que os homens não tomem consciência do real processo de exploração a que estão submetidos. Não são as mercadorias que se relacionam per se, e sim, os homens que se relacionam no mercado enquanto portadores de mercadorias. Vistos os elementos fundamentais das três principais “escolas sociológicas”, passemos agora à uma breve análise da teoria política gramisciniana que, em nosso entender, constitui uma das leituras mais significativas da prática política esboçada na teoria marxista. Em outros termos, buscamos uma interpretação alternativa à leitura leninista da teoria da revolução. Porém, para proceder tal análise, nos vemos obrigados a retomar os aspectos principais do pensamento maquiaveliano, buscando entender como o fundador da ciência política influencia e dá sentido à obra marxista.

Maquiavel e seu impactante pragmatismo político O pai da ciência política, como é denominado por muitos, foi iniciador e, ao mesmo tempo, o mais fecundo realizador dessa tendência à racionalização da prática política. Filho do Renascimento Italiano em sua fase mais brilhante, o Quintecento (século XVI), Nicolau Maquiavel (1496-1527) foi um homem da práxis (prática). Funcionário do governo florentino, escreveu sua obra máxima “O Príncipe” num momento em que enfrentou um exílio não-voluntário, e portanto afastado de suas funções administrativas. O livro é um verdadeiro manual de conduta e procedimento na política e foi concebido em meio ao contexto de formação das monarquias nacionais européias. Justamente, o tipo de centralização política que Maquiavel deseja para a Itália, que naquele momento estava fragmentada em um grande número de principados e repúblicas, além do estados pontifícios, em poder da Igreja Católica. Maquiavel inaugura uma nova forma de se pensar a política e o Estado, diferente daquela até então utilizada pelos gregos e pela igreja. E este rompimento com a tradição idealista decorre de seu método, que busca a verità effettuale, ou a verdade efetiva das coisas. Ao nível da política, afirma-se que para ela existe uma moral própria, uma moral política, que difere da moral privada. A política é amoral. No que se refere ao Estado, seja ele Principado ou República, Maquiavél aponta como o único capaz de pôr fim ao estado de anarquia, que para ele em uma dupla origem: De um lado, existem traços imutáveis na natureza humana. Os homens são “em geral, ingratos, volúveis, dissimulados, covardes e ambiciosos de dinheiro...”29 . De outro lado, o Estado é o palco onde se dá a disputa política entre duas forças opostas, “...e isto provém do fato de que o povo não deseja ser governado nem oprimido pelos grandes e estes querem governar e oprimir o povo.”30 Uma questão acerca do pensamento de Maquiavel, sobre a qual muito se discute, diz respeito a quem se dedicava “O Príncipe”. Embora o autor o tenha dedicado à família Médici, então governantes de Florença, muitos estudiosos afirmam que, na verdade, Maquiavel, ao falar do poder, fala também sobre a liberdade, instruindo sua conquista e manutenção. Segundo a teoria maquiavélica (esse termo não é usado aqui de forma pejorativa, como se costuma fazer), o verdadeiro príncipe é aquele governante que tem em seu espírito as benesses da virtù, ou seja, a capacidade de conquistar, manter e expandir seu governo. Para realizar esse grandioso feito, deve-se obedecer a algumas condutas, que acompanham todos aqueles que triunfam na arte da política. Além da virtù, ou seja, dos atributos pessoais do governante, este deve encontrar a Fortuna, ou seja, a “sorte” no que se refere a uma conjuntura política e econômica que lhe seja favorável. Em primeiro lugar, um príncipe deve sentir-se à vontade para utilizar a força e a violência (fundamentos do poder) como formas de impor sua autoridade sobre os outros homens, desde que o Poder de Estado seja seu objetivo. “Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam podido fazer obedecer suas constituições se estivessem desarmados (...). Não pode haver boas leis onde não haja boas armas”.

Amanutenção dos exércitos é fundamental para quem quer manter-se no poder. Podemos afirmar inclusive, que a fonte teórica que deu respaldo a formação dos exércitos modernos foi o pensamento maquiavélico, já que naquele momento, os reis hesitavam em armar a população com medo de possíveis revoltas aos seus próprios governos. Mas, o pensador insiste que a utilização de exércitos mercenários (prática muito comum naquele momento) é nociva aos próprios governantes, que podem ficar à mercê de generais inescrupulosos. Sendo assim, só a criação de um exército profissional e regular tornaria o rei livre dos riscos de se depender tanto do povo, quanto dos mercenários. O uso inevitável da força nos remete a outro ponto fundamental da obra. Trata-se, em segundo lugar, da dicotomia vivida pelo Príncipe: ser amado ou temido. Para o pensador ser amado por seus súditos é muito importante. Porém, ser temido é uma questão de sobrevivência ao governante. O príncipe deve ser amado e temido e, na

29 MACHIAVELLI, Niccolò. O Príncipe. São Paulo, Hemus, 1977. p. 94.

possibilidade de dispor de ambos os sentimentos, que seja temido. Deve-se, contudo, evitar que o temor leve ao ódio, já que este suplanta a temeridade e inspira a insubordinação. Aquele que ama pode entregar-se num determinado momento à ingratidão, e dessa maneira à traição. Já aquele que teme, e que tem certeza da punição está mais apto à subordinação. “(...) E os homens receiam menos ofender aquele que se faz amar do que aquele que se faz temer: o amor mantém-se vinculado à gratidão, esse vínculo, por serem míseros os homens, rompe-o toda ocasião conveniente; ao passo que o temor é mantido pelo receio aos castigos, e jamais faz com que te abandonem”. 30 MACHIAVELLI, Niccolò. O Príncipe. São Paulo, Hemus, 1977. p. 56.

Essa dupla abordagem leva ao cerne de toda forma de dominação política: o uso do discurso para se garantir o consentimento; e o uso da força para se fazer consentir mesmo quando não se deseja. A partir desses componentes, e a legalidade de sua utilização prevista em lei, o príncipe ganha a Legitimidade para governar. Não há governo sem a relação consentimento/força e legalidade/legitimidade. Em terceiro Lugar, a idéia de que a política não se enquadra na valoração moral. Por isso mesmo o discurso religioso está afastado do fazer político de Maquiavel. Esta idéia o torna surpreendentemente moderno e pragmático. Prega a benevolência quando necessário, e na mesma medida, prega o assassinato, se necessário. Temos aqui a parte mais divulgada (e distorcida) do pensamento maquiavélico, já que esse pragmatismo deve estar a serviço da realização do governo e da construção do Estado. Não se aplica, logicamente, ao conjunto de ações cotidianas do homem. Para Maquiavel, o Estado, e seus dirigentes devem agir dessa maneira para instaurar a ordem, justamente para que o convívio social seja pautado pela paz e respeito à lei. Muitos interpretaram e sintetizaram essa linha de raciocínio através da máxima “os fins justificam os meios”, ou seja os objetivos (conquistar, manter e expandir o poder) justificam os métodos (ser amado ou temido; ter consentimento ou valer-se da força). Não foi exatamente isso o que afirmou, pelo menos não com essas palavras. O que escreveu, foi que “Muita gente imaginou repúblicas ou principados que jamais foram vistos ou de cuja real existência jamais se teve notícia. E é tão diferente o como se vive do como deveria viver, que aquele que desatento ao que se faz e se atém ao que se deveria fazer aprende antes a maneira de arruinar-se do que preservar-se. Assim, o homem que queira em tudo agir como bom acabará em meio a tantos que não são bons. Daí ser necessário a um príncipe, para manter-se, aprender a não ser bom, e usar ou não usar o aprendido, de acordo com a necessidade.”

“Daí ser necessário a um príncipe, para manter-se, aprender a não ser bom, e usar ou não usar o aprendido, de acordo com a necessidade.” Aí está presente e sintetizado todo o pragmatismo de Maquiavel, o fio condutor de sua lógica. A obra, e todo seu conteúdo, sofreram uma implacável perseguição, tanto política (O Príncipe estava citado no Index, lista de livros proibidos pela Igreja Católica, no período da Contra-Reforma), quanto intelectual. O “maquiavelismo” tornou-se sinônimo de falta de escrúpulos e imoralidade, quase um xingamento. O que não é justo – concordando-se ou não com sua teoria com a grandeza de seu pensamento, já que n’O Príncipe encontram-se as mais fundamentais ações do fazer político. Além disso Maquiavel propõe uma amoralidade política, e não uma imoralidade política. Ou seja, a política tem moral própria e apartada do conjunto de relações econômicas, sociais e culturais de uma sociedade. Por último vale ressaltar, que apesar do alto grau de valorização do homem e suas realizações geradas pela Renascimento, Maquiavel compartilha de uma concepção muito difundida na sua época: em sociedade, os homens sempre fazem e se utilizam de atitudes pouco nobres, como a ingratidão, a traição e avareza e a violência e que só utilizando-se desses mesmos artifícios é que o príncipe conseguirá promover a paz e a concordância entre os homens. Thomas Hobbes também compartilha dessa idéia.

Penetrar o pensamento de Gramsci é um desafio e tanto, mesmo porque a maneira como sua produção veio a lume dificulta, e muito, esta tarefa. Seus escritos encontram-se espalhados nos “Cadernos do Cárcere”, produzidos durante sua longa estadia como “hóspede” de Mussolini, na Itália Fascista do período Entre-Guerras (1918-1939), tendo que burlar seus censores a partir de uma escrita difusa e quase enigmática. O Salto que se dá aqui, ignorando todo o conteúdo da teoria política do século XIX, justifica-se pelo fato que originalidade desse século deve-se ao discurso de Karl Marx e Max Weber, autores suficientemente abordados na parte dedicada à Sociologia desse curso. Por outro lado, Gramsci realiza uma revitalização do conteúdo das teorias políticas que analisamos a pouco, que é de fundamental importância para a compreensão da atualidade. Seu legado foi de enorme influência para as atividades políticas dos socialistas europeus do século XX. Realizou, em sua teorização singular, a junção dos conceitos marxistas sobre a teoria da revolução com a tradição do pensamento político clássico de autores como Nicolau Maquiavel e Jean-Jacques Rousseau. Gramsci elabora uma análise voltada para práxis política de construção do socialismo por vias democráticas. Para o autor, a destruição do capitalismo se realiza através da organização da Vontade Geral do proletariado (os trabalhadores) a partir da organização do Partido Comunista, que em sua concepção apresenta-se como o Príncipe Moderno. Sendo o delineador das ações políticas do proletariado, o partido tem que desenvolver uma linha de atuação parlamentar que possibilite a constituição de uma hegemonia política, ou seja, a conquista democrática das instituições políticas burguesas a partir de uma maioria atuante que, gradativamente reorganiza o Estado Capitalista para um Estado Socialista. Assim, Gramsci delega ao partido a tarefa de agir para a formação de um mundo socialista, mas este nunca deve abster-se de levar em consideração aquilo que o proletariado quer como rumo apropriado para esse objetivo. Assim como, para Maquiavel, o Príncipe é o condutor da grandeza realizada na conquista, manutenção e expansão do Estado (o agente político privilegiado dessa virtú), o partido comunista é, para Gramsci, o condutor para a conquista, manutenção e expansão do socialismo. Por outro lado, assim como o governante é apenas o realizador da Vontade Geral do Povo – o verdadeiro soberano, o partido, para Gramsci, é constituído e utilizado para realização da Vontade Geral do Proletariado, o verdadeiro soberano da política do mundo contemporâneo. “O moderno príncipe, o mito-príncipe, não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto; só pode ser um organismo; um elemento complexo da sociedade no qual já se tenha iniciado a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na ação. Este organismo já é determinado pelo desenvolvimento histórico, é o partido político: a primeira célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a ser tornar universais e totais” (Antonio Gramsci – Maquiavel, a política e o Estado Moderno). Além disso o partido tem também o dever de educar o proletariado para a práxis política. Realizando uma união de esforços entre o intelectual tradicional (o homem das teorias e dos livros) ao intelectual orgânico (o líder oriundo do proletariado e que constitui a pedra fundamental do partido). A partir disso, as condições para a revolução socialista deixam de ser meramente materiais (a exploração do proletariado pela burguesia) para ganhar uma esfera quase espiritual de necessidade de criação de uma nova cultura, e assim da destruição plena e efetiva do Capitalismo. O universo gramsciniano foi muito importante para a formação da social-democracia européia no pós-guerra (1945) e do socialismo não-armado, parlamentar, que acredita conseguir a construção do socialismo por vias democráticas. No Brasil, a maior expressão dessa tendência foi a criação, no final dos anos setenta, do Partido dos Trabalhadores.

ANTROPOLOGIA A Antropologia e sua inserção no mundo das idéis sobre o homem O Evolucionismo O Funcionalismo O Estruturalismo As implicações antropológicas no discurso político da Modernidade As justificativas do poder estatal

A Antropologia e sua inserção no mundo das idéis sobre o homem Homem, Ser Humano ou Homo Sapiens Sapiens; os costumes, ritos e mitos; as relações entre as pessoas, os atos, as produções e as mentalidades... O Homem, eis o objeto de estudo a que se dirige a Antropologia. O ato de pensar sobre si mesmo é, talvez, uma das atividades mais antigas do ser humano. Buscar suas origens, pensar sua essência, especular sobre seu lugar no cosmos, na natureza, ou nas relações com outros seres humanos é uma ação constante e imprescindível. Ironicamente, pensar os homens em todas as suas implicações de um modo pretensamente “científico” tem sido umas das tarefas mais difíceis dos últimos dois séculos. Por isso mesmo, a antropologia foi, ao lado da sociologia e da psicologia as últimas áreas do conhecimento que ganharam o status de “ciência”. A mitologia, a religião, a arte e a filosofia, não fazem outra coisa (logicamente, cada uma ao seu modo) a não ser pensar o homem em suas relações com o mundo, seja ele físico ou metafísico. Porém, uma ciência do Homem só pode ser devidamente estabelecida em meados do século XIX, quando aqueles primeiros “antropólogos” conseguiram distinguir o olhar científico do olhar filosófico sobre o homem. Para conseguir tal façanha, foi necessário emprestar os métodos e os conceitos das ciências já estabelecidas, como a biologia, por exemplo, para desse modo, conseguir firmar-se, legitimar-se como uma disciplina estritamente científica. A Antropologia nasce, então, numa relação tempo-espaço (Século XIX-Europa) em que o capitalismo monopolista e imperialista das grandes potências industriais estende seus tentáculos por todas as partes do mundo. O outro se defronta de uma maneira cada vez mais intensa com o eu. Os “selvagens”, os “nativos”, os “silvícolas”, os “primitivos”, os “esquecidos por Deus” se defrontam, confrontam e se submetem à força tecnológica e econômica do Europeu, o “civilizado”, o “branco”, o “superior” o “eleito por Deus”. Em busca de mercado e matérias-primas, esse Super-Homem, anabolizado pela força de seu sistema econômico – o Capitalismo – foi corroendo formas tradicionais de vida e de concepção de mundo e seus saberes, em prol da “verdadeira” forma de vida, a moderna, através da “verdadeira” religião, o cristianismo e do “verdadeiro” saber, a Ciência. “Todas as relações fixas, imobilizadas, com sua aura de idéias e opiniões veneráveis, são descartadas: todas as novas relações, recém formadas, se tornam obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo que é sagrado se torna profano, e os homens são finalmente forçados com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e com a relação com os outros homens”1

A Antropologia (e a Sociologia) nasce nessa atmosfera criada pela expansão da civilização Ocidental, com todas as suas surpresas e contrastes proporcionados por esse encontro do eu com o outro. Como já foi dito, a preocupação em se estabelecer um tipo de observação e compreensão do Homem ou dos homens a partir de um procedimento estritamente científico fez com que os pais fundadores Augusto Comte, Émile Durkheim, James George Frazer e Lewis Henry Morgan, entre outros – procurassem abrigo nas ciências biológicas, principalmente nos seus métodos de investigação. Essa apropriação dos métodos utilizados principalmente pela biologia acontece justamente pela dificuldade de se compreender o homem a partir de sua especificidade em relação à natureza e aos fenômenos físicos. Como o Homem (sujeito que realiza a análise científica) pode observar e compreender o próprio Homem (objeto, aquilo que deve ser analisado) sem que se recorra a pré-julgamentos e por consequência à pré-conceitos, estabelecidos através da experiência da trajetória pessoal e sócio-cultural do observador (sujeito) da investigação científica?

1 Marx e Engels. O manifesto do Partido Comunista

A análise de uma célula feita por um biólogo não corre o risco do problema exposto acima, justamente porque seria muito difícil – ou no mínimo, muito estranho – este sujeito da investigação manter uma relação afetiva (subjetiva, como gostam os cientistas sociais) com o seu objeto de análise. Já nas Ciências Sociais este problema é sério e ronda as preocupações de seus pesquisadores até hoje. Durkheim, considerado tanto fundador da sociologia como da Antropologia defende que os fatos sociais devem ser tratados como coisas, caso contrário não se estaria fazendo outra coisa do que especulação (característica fundamental da Filosofia) ou na pior das hipóteses, apenas uma discussão superficial, o que alguns chamam de “senso comum”. Na tentativa de radicalizar o distanciamento entre sujeito e objeto, e assim garantir definitivamente a condição de ciência consolidada e legitimada pelas disciplinas científicas já estabelecidas como a Biologia, a Química e a Física; a Antropologia busca então, compreender o homem que está longe. Ou seja, busca a compreensão do outro, do primitivo, nativo ou selvagem. Daquele diferente do eu civilizado, europeu e Ocidental. De quebra, a Antropologia foi bem recebida no âmbito político, já que muito interessava aos governos dos países europeus e dos EUA, “conhecerem” a realidade dos povos nativos da África, Ásia e América Latina, o que facilitou muito suas estratégias de dominação político-econômica dessas regiões, em suas buscas por matérias-primas e mercados consumidores. 1.1 – O universo antropológico “(...)Transformado em Deus, este sapiens-demens fragmentou suas partículas e espargiu seu sêmem mágico sobre a face da Terra. Encantado com a própria imagem, lançou-se ensandecido em busca desse outro imaginário – seu duplo – réplica da sua percepção alucinada. A força dessa paixão levou a construir a ciência, a criar as artes, a brincar de guerra e, assustado com o seu poder, a refugiar-se na religião e na tirania”2

2 Edgard de Assis Carvalho – Polifônicas Idéias: Antropologia e Universalidade.

Da metade do século XIX para os dias atuais, a Antropologia transformou-se radicalmente, e ampliou seus horizontes, tanto nos métodos quanto no seu objeto de estudo, e principalmente, no resultado de suas pesquisas. De uma maneira geral e simplificada, devido aos limites desse trabalho, que é apresentar os conceitos fundamentais da disciplina, podemos afirmar que surgiram três grandes perspectivas téorico-metodológicas: o Evolucionismo, o Funcionalismo e o Estruturalismo. Cada uma apresenta, de formas diferentes, uma visão sobre o modo de organização da(s) sociedade(s) humana(s) seja na economia, sociedade e cultura. Essas três perspectivas levam e transitam a dois procedimentos da ação humana que decorrem desses estudos: 1º) Relativismo, a consideração de que as sociedades humanas são sempre muito diferentes e específicas, e que não há pontos em comum entre elas, são pautadas pela diversidade. Esse ponto de vista é defendido, principalmente pelo Funcionalismo; 2º) O Universalismo, que por sua vez defende a idéia de que os homens, para além de suas diferenças culturais tem, na verdade uma mesma matriz, uma alma universal. Esse olhar é defendido, guardadas profundas diferenças, tanto pelo Evolucionismo quanto pelo Estruturalismo. Os métodos e suas especificidades serão analisados em maior profundidade mais adiante, neste trabalho. Em relação ao seu objeto de estudo, houve o que François Laplantine denomina de um gradativo “alargamento do campo” de estudo que vai do outro ao eu, na medida que há um amadurecimento da ciência antropológica. Ou seja, do “selvagem” passase ao “camponês”, e desse para o “urbano”.

Podemos afirmar, portanto, que o esforço antropológico vai da tentativa de reconhecer a diferença entre os homens à busca de suas semelhanças, ou seja, à construção de entendimento dos homens em suas características universais. As palavras de Laplantine nos revelam que, “Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do Homem de que a Antropologia, como já dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta questão, é a sua aptidão praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de organização social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina notar, com a maior proximidade possível, que essas formas de comportamento e de ida em sociedade que tomávamos todos por inatas ( nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos de nossa existência...) são, na verdade produto de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos, tem em comum é a sua capacidade para se diferenciar uns dos outros para elaborar costumes, línguas, modos de conhecimento, instituições, jogos profundamente diversos; pois se algo natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é a sua aptidão à variação cultural”3

Laplantine também nos ajuda a compreender, que o projeto e o objetivo de uma ciência como a Antropologia consiste, “(...) portanto no reconhecimento, conhecimento, juntamente com a compreensão de uma humanidade plural (mas ao mesmo tempo, uma). Isso supõe ao mesmo tempo a ruptura com a figura da monotonia do duplo, do igual, do idêntico, e com a exclusão num irredutível “outro”. As sociedades mais diferentes da nossa, que consideramos espontaneamente como indiferenciadas, são na realidade tão diferentes entre si quanto o são da nossa. E mais ainda, elas são para cada uma delas muito raramente homogêneas (como seria de se esperar), mas, pelo contrário extremamente diversificada, participando ao mesmo tempo de uma comum humanidade”.4

Para conhecermos o homem em sua diversidade/unidade, a Antropologia precisa então se encarregar de algumas tarefas indispensáveis. Em primeiro lugar, é preciso ter sempre o objetivo de criar um corpo teórico que contenha alguns conceitos fundamentais como o de Natureza, Cultura, Sociedade e (não poderia faltar) Homem, como forma de nortear a construção do conhecimento pretendido pela disciplina; em segundo, esse saber não pode ser apenas teórico, mas para a própria construção da teoria, é preciso antes de uma abordagem empírica (real) das sociedades humanas, portanto, deve-se realizar uma observação (análise) para a partir daí, a construção de conceitos (síntese); em terceiro lugar, é muito importante que uma pesquisa antropológica se preocupe com o homem em sua totalidade, ou seja, em seus aspectos biológicos, econômicos (a forma pela qual ele extrai a produção e reprodução de sua vida através dos elementos da natureza), culturais (sua mentalidade, religiosidade, cosmologia...), lingüísticos (sua fala, idioma) e psicológico (a sua construção como individuo); em quarto e último lugar, pensar a diferença, como alternativa para pensar em si próprio, conhecer o outro como forma de compreensão do eu. A ultima consideração a se fazer, antes de se discutir as teorias antropológicas, é em relação aos níveis de pesquisa que se pode realizar no interior da disciplina. Segundo Levi-Strauss, são três esses momentos antropológicos, 1º) A etnografia – ato de se fazer a pesquisa empírica propriamente dita, ou seja, realizar a coleta de dados sobre a sociedade que se pretende estudar a partir das viagens de campo, a visita e convivência direta, e a descrição mais detalhada possível do seu cotidiano; 2º) A etnologia – consiste em realizar uma análise dos fatos e descrições recolhidos na etnografia, a fim de se encontrar as leis gerais de funcionamento da sociedade estudada, ou seja buscar a lógica dos fatos. 3º) A Antropologia - ultimo estágio da pesquisa, procura realizar uma análise comparativa de várias sociedades para, assim, chegar aos pontos comuns que caracterizam o Ser Humano em seu convívio social, ou seja as leis gerais que caracterizam o Homem e sua sociabilidade.

3 Francois Laplantine – Aprender antropologia 4 idem.

O Evolucionismo O conjunto de escritos e teorias que se convencionou denominar de “Evolucionismo”, inaugura a Antropologia como ciência. Nele, há um fazer científico inicial, incipiente, mas que marcou profundamente, não só a própria disciplina, mas praticamente toda construção do discurso do domínio do Ocidental (o Capitalismo europeu e norteamericano) sobre o resto do mundo. Mesmo criticado, contestado e desacreditado, o pensar evolucionista ronda as cabeças não só do universo científico, mas de todos. Já que toda vez que somos forçados a pensar as diferenças culturais – o índio, o argentino, ou outros inúmeros exemplos que poderiam ser citados - elas são colocadas invariavelmente em termo de superioridade (eu) e inferioridade (outro). Ou como gostavam os primeiros antropólogos evolucionistas, civilizado e primitivo. A antropologia, na verdade, lutou e luta até hoje para se livrar da herança evolucionista, tenta desacreditar sua própria produção, talvez por ter consciência dos grandes malefícios que esse tipo de pensamento trouxe a diversidade cultural da humanidade. Afinal de contas, se o eu é superior ao outro, como afirma o evolucionismo, o civilizado tem todo o direito de “ajudar” o primitivo a sair da condição de inferioridade. Essa tese levou à destruição de grande parte da variação cultural da humanidade, em nome de um ímpeto civilizador, logicamente identificado com o avanço do capitalismo europeu e norte-americano, como já se disse, sobre os países a América Latina, África e Ásia. Portanto, o evolucionismo, com seu status de olhar científico sobre as culturas, serviu como justificativa ideológica para a ação imperialista, muito comum no século XIX. Há ainda que se levar em conta que a Antropologia nasceu na Inglaterra, num momento em que esta dominava política e economicamente vastas áreas coloniais na África e na Ásia (os ingleses afirmavam arrogantemente que no seu império o sol nunca se punha). No Evolucionismo a Antropologia é simplesmente a ciência das sociedades primitivas. Entre o sujeito (o antropólogo) e o objeto (o homem “primitivo”) há um agente intermediário, o administrador colonial. A pesquisa é, na infinita maioria das vezes – feita através de questionários aplicados às populações nativas pelo administrador colonial de determinada área. Muitas vezes o material de pesquisa era apenas a experiência relatada desse funcionário em contato com o povo a ser estudado. Não é incrível, o antropólogo não se dava ao trabalho de conhecer o povo que seria analisado. Através de publicações como “O Casamento Primitivo” (Maclennan), “A Cultura primitiva” (Tylor), “A Sociedade Antiga” (Morgan) e “O Ramo de Ouro” (Frazer), o objetivo maior do evolucionismo era a construção de um corpo de idéias que possibilitasse um mapeamento do “primitivo” na tentativa de construção histórica pela qual o homem formou suas instituições culturais e como estas foram evoluindo para as formas encontradas dos países “avançados”. Nessa perspectiva, o homem civilizado se considera como o herdeiro de todo um esforço humano para a realização, através da história da humanidade, de sua cultura avançada. O primitivo então, aparece aos seus olhos como um eu-criança, ou seja, com um ancestral vivo, uma espécie de amostra, conservada nos “laboratórios” (as áreas tropicais e periféricas ao mundo europeu) pronto para ser usado para remontar a trajetória civilizatória da humanidade. Utilizando ao máximo o discurso biológico, a antropologia evolucionista vai além da apropriação do método das ciências naturais, mas também de seus resultados. A idéia de uma evolução cultural vem da formação do evolucionismo biológico formulado do Charles Darwin, em “A Origem das Espécies”. A seleção natural entre os “mais aptos” à sobrevivência em relação aos “menos aptos” pode ser facilmente transportada para o universo antropológico através da já desgastada idéia de primitivo (o menos apto) e civilizado (o mais apto). Haeckel chega mesmo afirmar que a Filogênese (formação e evolução

cultural do Homem) é decorrência direta da Ontogênese (formação e evolução da vida). Ou seja, que a evolução cultural é uma mera continuação da evolução da vida. Morgan (junto com Frazer, um dos evolucionistas mais influentes) defendeu a tese de que a humanidade atravessou por três “idades”, estágios evolutivos: (1) a Selvageria – nível sócio-cultural das populações indígenas brasileiras, os aborígines australianos e as populações tribais da África, entre outros; (2) a Barbárie – As grandes civilizações orientais (árabe, egípcia e hindu) e americanas (inca, mais e asteca); e (3) a Civilização – a Europa (germânica e anglo-saxônica) e norte-americana. Frazer, por sua vez, preocupou-se em demonstrar o processo evolutivo da religiosidade em seu Livro “O Ramo de Ouro”. Esse estudo das “crenças e superstições primitivas” leva em consideração que todo fato religioso é uma maneira que os homens encontraram para ordenar e classificar o desconhecido, a primeira forma do Homem classificar e explorar a Natureza. Desse modo, o primeiro “estágio” do entendimento do sobrenatural seria a Magia. Conforme a marcha evolutiva acontece, os homens constroem a Religião. Com o avanço civilizatório, os homens abandonariam a religião e se entregariam à Ciência, a forma mais “avançada” do homem conhecer e explorar a natureza e o Cosmos. Para Frazer, “A magia representa uma fase anterior, mais grosseira da História do Espírito Humano, pela qual todas as raças humanas passaram, ou estão passando, para dirigir-se para a religião e à ciência”.5

Como podemos perceber, o evolucionismo antropológico não foi mais do que uma tentativa de dar formato científico às ideais de superioridade européia presentes desde de o século XVI, com a aventura as Grandes Navegações e suas conseqüências, os Grandes Descobrimentos, e a formação do Sistema Colonial. E conseguiu dar sobrevida ao eurocentrismo – a idéia de uma Europa como centro e referência do mundo – inclusive em seus aspectos mais criminosos. A tão perigosa Superioridade Ariana, que alimentou o nazismo alemão, que sem contar a Hecatombe que costumamos denominar de II Guerra Mundial (1939-1945), promoveu o extermínio de pelo menos seis milhões de judeus nos campos de concentração nazistas. Na atual política externa dos EUA, que após 11 de Setembro de 2001, decidiu concentrar-se na promoção de “guerra preventivas” para a destruição de regimes políticos considerados inimigos, por supostamente darem cobertura e apoio financeiro à organizações terroristas, pode ser detectada vestígios de um discurso evolucionista. Já que a justificativa para a invasão do Iraque por forças angloamericanas, além das imaginárias armas químicas de Saddan, era a incapacidade do povo iraquiano de se livrar do seu ditador e implantar uma verdadeira democracia (logicamente nos moldes da democracia americana). Além do aspecto político-ideológico, o evolucionismo inverteu, por fim, uma regra básica do fazer científico, o que lhe desqualificou perante as outras teorias antropológicas e demonstrou a fraqueza de suas conclusões. Mencionou-se em alguns parágrafos anteriores desse texto, as tarefas indispensáveis da construção da antropologia como ciência. Dentre essas, existe a premissa de que a análise (observação etnográfica) deve anteceder a síntese (a construção de conceitos para uma formulação teórica). Pois bem, o que os nossos amigos evolucionistas fizeram, foi muito mais demonstrar a veracidade de uma tese do que realizar a verificação de uma hipótese (a construção de hipóteses prévias ao trabalho científico é comum e louvável em qualquer disciplina, seja nas ciências exatas, humanas ou biológicas). Porém esses antropólogos colhiam material etnográfico apenas para ilustrar uma teoria que já se tinha convicção. Os costumes, rituais e formas sociais eram utilizados para caracterizar cada estágio evolutivo previamente.

5 James George Frazer – O Ramo de Ouro.

O Funcionalismo A partir da virada do século XIX para o século XX, o discurso antropológico começa ganhar contornos bem diferenciados do Evolucionismo. Como vimos, o processo evolutivo proposto era de perspectiva essencialmente historicista. Essa visão histórica, a antropologia denomina de estudos sincrônicos, ou seja, uma abordagem analítica que leva em consideração as sociedades através do tempo. As fragilidades da teorização evolucionista levaram os antropólogos do início do século XX a procurar uma nova maneira de observação e análise das sociedades. A idéia era promover um corte nesse processo histórico enfatizado pelos evolucionistas e mergulhar no interior dos grupos humanos afim de se reconhecer a sua coerência interna, os seus mecanismos de organização e funcionamento. Seria como, por exemplo, se um biólogo deixasse de se preocupar com a evolução das espécies de uma maneira geral e pretendesse formular uma análise de apenas uma espécie, através da sua função vital, ou seja, este biólogo procuraria entender a lógica de funcionamento de cada órgão e a sua importância para o funcionamento de todo o corpo. Da mesma maneira, os antropólogos passaram a se ocupar, não com o processo, mais sim com a função. Os estudos passaram de tratados gerais sobre um tema (o casamento, a religião) para as monografias, que se organizavam como estudos de casos sobre um determinado grupo social, e tinham como critério de qualidade a descrição pormenorizada de todos os aspectos da vida social desse grupo. Assim, o objetivo era descobrir os mecanismos internos de ligação (a função) dos fatos e níveis sociais (ou as instituições sociais) em relação aquele “corpo social”. A essa perspectiva de estudo, uma espécie de análise fotográfica das sociedades, sem um olhar histórico, denominamos de estudos diacrônicos.

6 Francois Laplantine – Aprender antropologia

Essa revolução no pensamento antropológico vem acompanhada, também, de uma mudança de postura do próprio pesquisador em relação às sociedades a serem estudadas. “A revolução que ocorrerá na nossa disciplina durante o primeiro terço do século XX é considerável: ela põe fim à repartição de tarefas, até então habitualmente dividas entre o observador (viajante, missionário, administrador) entregue ao papel subalterno de provedor de informações, e pesquisador erudito, que, tendo permanecido na metrópole, recebe, analisa e interpreta – atividade nobre! – essas informações. O pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve deixar o seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como anfitriões que o recebem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condições de estudo radicalmente diferentes das que conheciam os viajantes do século XVIII e até o missionário ou o administrador do século XIX, residindo geralmente fora da sociedade indígena e obtendo informações por intermédio de tradutores e informadores: este último termo merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela primeira vez uma atividade ao ar livre, levada, como diz Malinovski, ‘ao vivo’, em uma ‘natureza imensa, virgem e aberta’ ”.6

Bronislaw Malinovski, o mais eminente dos antropólogos funcionalistas denominou essa postura de observação participante, o procedimento metodológico que estipula a participação do Antropólogo na vida cotidiana do grupo a ser analisado (o próprio Malinovski, chegou a passar quase três anos entre populações nativas da Austrália e do Pacífico Ocidental) por longos períodos de tempo, a fim de “impregnar-se” da vida cotidiana dos nativos, a ponto de pretender (há muita controvérsia entre os antropólogos sobre este ponto) captar o ponto de vista, a mentalidade do nativo. Essa compreensão das partes constitutivas de um grupo e suas funções para a reprodução da totalidade, é alcançada por uma espécie de fio condutor para extensão da observação. Busca-se então, a partir de um aspecto específico (as formas de casamento, a vida sexual), a compreensão de todos os níveis que compõem a realidade.

Ainda segundo as percepções de Malinovski, a análise etnográfica deve dar conta de três níveis da realidade social que está sendo observada: o fazer, o falar e o pensar. O primeiro nível é a análise do modo em que a sociedade se organiza para a produção e reprodução de suas necessidade de sobrevivência, ou seja, aquilo que Karl Marx denominou de modo de produção econômico. O segundo, o falar, analisa as relações do indivíduo com o grupo e a suas regras sociais. O terceiro nível, o pensar, tenta esclarecer a forma pela qual os componentes do grupo constituem a sua visão de mundo (cosmologia), ou seja, a mentalidade expressa nas concepções sobre o natural o sobrenatural e sobre o próprio homem. Outro grande funcionalista foi o antropólogo americano Franz Boas. Pioneiro nas pesquisas de campo, Boas, que tinha uma postura metodológica muito semelhante a de Malinovski, elevou a patamares de obsessão a descrição das sociedades que analisou. Seu ponto de vista micro-sociológico (considerava as sociedades como totalidades autônomas) era caracterizado pela rigorosa atenção a tudo que era específico no grupo. Todo costume deve ser anotado, analisado e relacionado com outro costume para se compreender a função de cada aspecto em relação ao todo. Boas descrevia exaustivamente todas as receitas das culinárias dos povos que estudou, preocupava-se com as notas musicais utilizadas nas músicas nativas e com os trançados dos artefatos de palha construídos pelas mulheres. O funcionalismo foi coroamento da Antropologia como disciplina científica, livrandose dos limites eurocêntricos do evolucionismo e constituindo o fazer antropológico original, cada vez mais afastado dos esquemas teóricos emprestados de outras ciências. O método de pesquisa que chamamos de “observação participante” (invenção funcionalista) é peça fundamental em praticamente todos os estudos antropológicos atuais, e está longe de ser considerado como instrumento dispensável pelos antropólogos. O funcionalismo, nos ensinou ainda, que cada grupo deve ser considerado por suas características próprias, sem recorrer a juízos de valor preexistentes, e sem comparações amparadas em um discurso primitivo/civilizado. Por fim, com os pesquisadores funcionalistas aprendemos que cada povo, sociedade ou civilização tem a sua racionalidade própria. Se, por um lado, o funcionalismo conseguiu amenizar os problemas gerados pelo discurso evolucionista, por outro, conseguiu criar os seus próprios problemas. Em primeiro lugar, podemos afirmar sem correr grandes riscos, que o funcionalismo é pobre em elaboração teórica. Os funcionalistas realizaram grandes pesquisas descritivas, mas não conseguiram criar conceitos que pudessem desmascarar as relações sociais para além de sua própria aparência, sem contudo atingir sua essência. Os estudos funcionalistas estão repletos de descrições sobre rituais mágicos, mas nenhum deles conseguiu avaliar a importância da magia como umas das formas do homem compreender e manipular a natureza. Em segundo, a idéia de que cada costume, prática ritual, ou instituição cultural (o casamento, as regras de parentesco, etc.) tem a sua função específica e contribui para a formação do “corpo” social, criou a idéia de que os grupos humanos se organizam de forma sempre harmoniosa e positiva, e não leva em conta as contradições e conflitos entre os homens na luta pelo poder político e as relações de desigualdade que são conseqüência dessa luta (nunca é demais lembrar que todo grupo social tem as suas desigualdades, sejam elas mais ou menos contrastantes). Além disso, a visão diacrônica (a análise das partes constitutivas da totalidade social de um grupo, na forma em que é encontrada pelo observador) criou a falsa idéia de que os povos tradicionais e não-ocidentais não tem História. O funcionalismo negou o dinamismo dessas sociedades e as interpretou como estáticas. Em terceiro lugar, (talvez esse seja o maior erro dos funcionalistas), esses pesquisadores despregaram conscientemente a presença do colonizador europeu,

assim como a transformações sociais decorrentes desse contato nos povos tradicionais e nativos. Malinoviski varria a aldeia trobriandesa em que realizou suas pesquisas para não se incomodar com a latas de sardinha consumidas pelos trobriandeses. Evans-Pritchard, que elaborou uma magistral etnografia sobre os Nuer, povo africano, descreveu a importante função do gado bovino para a reprodução social do grupo, sem contudo, explicar que os africanos só conheceram a pecuária bovina através da presença inglesa no continente. Com isso tentavam preservar uma ilusória perspectiva purista, em que a chegada do dominador não era considerada para se observar a coerência interna das sociedades. Em quarto e último lugar, o funcionalismo gerou o procedimento relativista na observação e posicionamento político sobre os povos não-ocidentais. Sendo as culturas sempre específicas e suas práticas culturais sempre determinadas pela sua função em relação ao contexto particular de cada povo, restringiu-se a capacidade da Antropologia de compreender os grupos humanos em suas características universais. Não se pode, através do funcionalismo, formular uma teoria geral sobre o Homem, e sim conhecimentos específicos sobre cada grupo humano, numa perspectiva científica fragmentada e limitada. Se o evolucionismo considera o homem não-ocidental como “primitivo” na escala de evolução humana, o funcionalismo separou os homens em realidades totalmente excludentes. Se por um lado aprendemos respeitar as diferenças culturais, por outro, não há possibilidade de levar-se em consideração um projeto político em comum, já que todos são radicalmente diferentes. Eu e o outro, um e o diverso. Algumas vezes, diverso apenas enquanto partícipe ou não de um lugar: a consciência (o espaço onde o eu se reconhece). Tão diverso que faz parte de um mundo desconhecido. Como no Descobrimento da América, marca um encontro a partir do qual o mundo nunca mais será o mesmo, encontro com um outro tão diverso, que, de tão diverso, muitas vezes nem sequer se sabia se era realmente outro. A resposta etnocêntrica (evolucionista) apontava que o outro era, na verdade, o mesmo, diferenciado cronologicamente, tratava-se de um eu-criança, cuja descoberta marcaria, na verdade, um encontro com a origem da única humanidade que se entendia como tal, a do homem ocidental. E mais nada. O ensinamento a ser tirado dessa ‘situação colonial’ poderia ser de resgatar uma certa ingenuidade, perdida pelo Ocidente: Olha o outro e você estará se olhando. Mas de que maneira? O homem americano primitivo era um espelho onde o homem ocidental veria refletida a sua imagem ancestral, uma imagem que teria sido abandonada em nome da civilização: o diverso apareceria como um. A resposta relativista (funcionalista) aponta que o outro era, na verdade, um ser tão diverso que nada nele poderia lembrar um eu sobre si mesmo. Um outro que não poderia ser medido de maneira alguma em relação ao um. O relativismo representou uma forma de redenção da Antropologia, que passou a ser visualizada como uma ciência que, em nome do ‘respeito à diferença’, poderia remediar todos os danos causados pela visão etnocêntrica. Isso fez do antropólogo um sujeito que procurava agir como se não estivesse sujeitado à sua própria realidade cultural, despido de toda possibilidade crítica e que paradoxalmente, teria como missão preservar o outro de si mesmo, uma vez que tratava-se de preservá-lo da civilização ocidental, da qual, quisesse ou não ele fazia parte. O um (eu) e o diverso (outro) tornam-se, ambos diversos. 7 Edgard de Assis Carvalho – Polifônicas Idéias: Antropologia e Universalidade.

Mas, se o diverso é o um como quer o etnocentrismo ou se o um e o diverso são ambos diversos como sugere o relativismo, Onde fica o Universo?7

O Estruturalismo Até agora pudemos avaliar o desenvolvimento e o amadurecimento da Antropologia a partir de seus dois universos teóricos mais importantes: o Evolucionismo e o Funcionalismo. Conhecemos tanto os seus méritos quanto os seus limites e pudemos reconhecer que uma ciência jovem como essa, está em constante busca para o aperfeiçoamento e lapidação. O Estruturalismo entra para a história da Antropologia como um salto qualitativo que vai contribuir enormemente para o estabelecimento da disciplina entre as mais importantes para o entendimento do ser humano. Com a visão estruturalista, ganhase um complexo corpo teórico que vai ter a pretensão de explicar a essência do Homem para além de suas diferenças culturais e buscar a universalidade das práticas sócio-culturais, aquelas características que definem o que é o ser humano em relação ao domínio da natureza. Como veremos, a compreensão dos aspectos fundamentais que caracterizam o humano acontece num nível de realidade que a Antropologia até então não tinha conseguido atingir: o inconsciente. Até o funcionalismo, o nível de realidade social pesquisado era do empírico, o palpável e o concreto. A partir de agora o homem real e a sua diversidade vai gradativamente deixando de existir pela análise estrutural e, no seu lugar, vão surgindo os elementos estruturais do inconsciente humano, lugar onde residem as peças fundamentais que determinam de que forma serão constituídas as diferentes maneiras de organização social do homem. Para o estruturalismo, a magia não “representa uma fase anterior, mais grosseira da história do espírito humano” (como diria o evolucionista Frazer), muito inferior à ciência, mas sim, uma outra maneira de se fazer Ciência. A medicina indígena (caracterizada pelos seus rituais de feitiçaria) não seria mera superstição inferior à medicina ocidental, mas sim uma outra forma de medicina. A magia se apresenta às realidades de formas muito diferentes, mas, justamente por sua estrutura se encontrar no inconsciente de todos os homens, é porque ela se encontra espalhada nas mais diferentes culturas ao redor do globo. O criador e principal defensor da antropologia estrutural é Claude Levi-Strauss, antropólogo francês que está entre os mais importantes personagens da ciência no século XX. Homem de pensamento fecundo, complexo e abstrato, conseguiu colocar a Antropologia no centro das discussões teóricas, principalmente com pensadores de outras áreas do conhecimento científico, pelo caráter inovador e polêmico de suas idéias. Porém a teoria estrutural não foi uma criação original de Levi-Strauss. Ele apenas transportou e adaptou à antropologia, o método conhecido de “Lingüística estrutural”, formulado principalmente pelo russo Roman Jacobson. Além disso o tema “inconsciente” é presença constante nos debates científicos do século XX, desde a publicação de “A Interpretação dos Sonhos” de Sigmund Freud, em 1900. Há porém uma diferença fundamental entre o inconsciente freudiano para o levistraussiano: para o primeiro a atividade inconsciente tem ação individual enquanto que para o segundo essa mesma atividade é irredutivelmente social, coletiva. O método consiste, então, em promover análises, a partir de três etapas: (1) a descrição dos grupos sociais, o trabalho etnográfico; (2) a criação de conceitos que expliquem essa realidade observada, o trabalho etnológico; e, (3) a generalização que procura atingir elementos estruturais e inconscientes das relações sociais a partir da comparação dos conceitos criados pelo nível etnológico da pesquisa de realidades diferentes e determinados por temas. Usemos o exemplo da medicina indígena e em grupos nativos de outras partes do mundo (xamanismo). A partir da realização de etnografias sobre o xamanismo em diferentes culturas, criam-se conceitos que explicam os aspectos gerais do xamanismo, e por último, faz-se a comparação teórica com outras formas de medicina, para encontrar-lhes aspectos comuns, que não são encontrados na realidade empírica, mas que expliquem de uma maneira muito geral, a importância e organização da medicina para o homem. As preocupações de Levi-Strauss ao longo de sua vida acadêmica se concentram em duas áreas fundamentais: o parentesco e o pensamento. Ao se debruçar nos estudos sobre parentesco, Levi-Strauss criou uma elaboração teórica em seu livro “As Estruturas Elementares do Parentesco”, com o objetivo de desmascarar o ponto fundamental de diferenciação entre o que é domínio da natureza do que é domínio da cultura no homem. Em outros termos, ele tentou discernir o que

o homem tem de instintivo e de cultural na sua vida social. Após uma pesquisa exaustiva e prolongada de análise de muitos sistema de parentesco, recolhidos de etnografias sobre grupos sociais de todas a parte do mundo, Levi-Strauss chegou a conclusão de que a diferenciação entre natureza e cultura é o tabu do incesto. Leva em consideração para formular a análise, de que o instinto é uma pulsão vital que está presente em todos os indivíduos de uma mesma espécie – por isso universal – e que o ato cultural é uma escolha (inconsciente) que cada grupo humano faz para organizar-se para a busca de suas satisfações básicas na natureza (comer, beber, vestir, compreender o mundo em sua volta, etc.) – por isso particular. O autor nos afirma, então, que o incesto (a proibição da prática sexual em círculos familiares restritos, por exemplo, pai/filha, mãe/filho irmão/irmã) é uma prática cultural com amplitude instintiva, já que esse tabu é encontrado em todas as sociedades humanas (universalismo instintivo), mas apresenta-se em formas diferenciadas (porém em número limitado) nos diversos grupos sociais humanos (particularismo cultural). O incesto seria, então, o ponto fundamental de diferenciação entre natureza e cultura e a própria instituição da cultura que nasceria junto com o aparecimento do Homo Sapiens. Levi-Strauss nos afirma que a cultura (que pode ser definida como o conjunto de relações – sociais, econômicas, políticas e culturais – de um grupo), nasce justamente para garantir ao homem sua inserção e sustento na natureza e ocupa o lugar em que os instintos se ausentam, e que a partir de seu desenvolvimento, esses mesmos instintos tenderiam a desaparecer, sendo ocupados totalmente pelos fatores culturais. Além disso ele considera que todo universo cultural é um domínio da comunicação, não só no sentido estrito da palavra, mas numa perspectiva mais ampla. Os homens comunicam-se constantemente para estabelecer alianças, que fundam, por sua vez a sociabilidade. Essas trocas seriam de três espécies: de mulheres (parentesco), de bens (economia) e palavras (lingüística). O incesto nasceria como uma necessidade de trocar mulheres. Mas porque trocar mulheres? O autor afirma que “expulsar” as mulheres do círculo familiar cumpre dois papéis importantes para a sociabilidade do grupo: (1) evita que os homens disputem entre si as mulheres do seu grupo, o que poderia significar desagregação social e (2) garante alianças políticas com outros grupos, ato fundamental para a preservação e defesa nos tempos difíceis, em que aparecem as guerras ou períodos de grande escassez alimentar. Essas afirmações se destacam do conjunto da obra levi-straussiana tanto pela sua interessante originalidade, quanto pela fúria despertada entre as lideranças do movimento feminista francês nos anos 50 e 60 do século passado. A teoria do pensamento selvagem, também foi um ponto de destaque em sua obra. A grande preocupação de Levi-Strauss é criticar as teorias sobre o pensamento na antropologia que consideravam o pensamento não-ocidental como inferior em qualidade ao pensamento ocidental, caracterizado pela lógica científica. Sua teoria é elaborada na obra “o Pensamento Selvagem”, tem complemento em inúmeras publicações, organizadas nos livros “Antropologia Estrutural I e II e é finalmente completada em sua obra monumental, “As Mito-lógicas”. Para esse pensador, a importância do homem em conhecer a natureza, nasce não só das exigências de suprir as suas necessidades básicas de sobrevivência, mas também vontade (inconsciente, é claro) de colocar ordem no caos aparente da natureza e do cosmos. Essa dupla carência, organiza tanto o pensamento científico, quanto o não-científico. O pensamento selvagem (e não dos selvagens, como LeviStrauss gosta de ressaltar, já que ele está presente no nosso cotidiano, por exemplo na poesia) é organizado como mitológico-simbólico. Enquanto a ciência fundamentase na lógica - a observação empírica que busca construir conceitos e teorias a partir de leis gerais - o mito fundamenta-se numa perspectiva analógica.

O conhecimento analógico se caracteriza pela significação (busca de sentido e significado) a partir da relação de coisas de naturezas diferenciadas, ligadas pela comparação. A forma inicial dessa comparação se faz pela relação Homem/Natureza. Para conhecer a natureza o homem a humaniza, ou seja, lhe confere características humanas como maneira de classificar os fenômenos naturais. Da mesma maneira, mas num processo inverso, para se identificar e se caracterizar socialmente, o homem se naturaliza, portanto lhe confere características que são próprias dos fenômenos naturais que vivencia. “A felicidade é uma gota de orvalho numa pétala de flor, Voa tranqüila, depois de leve oscila, E cai como uma lágrima de dor.”

Vinícius de Morais e a sua inspiração poética nos dão um ótimo exemplo. Para definir o caráter efêmero e passageiro da felicidade (expressão humana), ele utilizase de uma imagem natural – “a gota de orvalho numa pétala de flor”. O que ele produz é uma pequena demonstração de naturalização do que é uma experiência essencialmente humana. Esse magnífico jogo de espelhos para a construção de um conhecimento da natureza e do próprio homem, não se limita a conhecer, mas também a intervir e manipular tanto o domínio natural quanto o social, afinal de contas, uma natureza com dotes humanos, é uma natureza mágica. A magia se apresenta como a forma de ação humana na natureza, mas também, na própria sociedade, pois a posse do discurso mágico por alguns membros de determinado grupo, lhes confere poder político sobre esse mesmo grupo. O discurso mágico-religioso é portanto uma forma legítima de conhecimento e fonte de poder, pois quem conhece e manipula a natureza, tem a chave de acesso daquilo que os seres humanos necessitam para a sua sobrevivência e por isso deve ser respeitado. Os feiticeiros e xamãs têm grandes poderes para influenciar a vida social de seus grupos, já que suas ações podem mudar o curso dos fenômenos naturais e humanos, como por exemplo, na arte de curar. Em dois trabalhos de extrema importância para a história da Antropologia – A Eficácia Simbólica e O Feiticeiro e sua Magia (ambos compõem, entre outros estudos, a obra Antropologia Estrutural ‘I’) – Levi-Strauss demonstra que o xamanismo (nome genérico dado às práticas médicas pautadas por intervenções mágicas) tem poder real de cura a partir da utilização que o xamã faz da eficácia simbólica. Esse conceito demonstra que quando o doente e o grupo social estão realmente convencidos do poder operado pelo feiticeiro, se realiza uma ação psicológica que desencadeia um processo de ação fisiológica de cura no doente, já que o ritual se orienta a dar uma explicação (um significado) sobrenatural à causa da doença, amenizando, assim, as angústias sentidas pelo doente e pelo grupo, que não encontravam respostas para origem de seus males. O autor faz uma comparação desse processo com a ação do psicólogo, que resolve os traumas dos seus pacientes através de um esforço de reconhecimento dos problemas que originaram a sua falta de auto-aceitação individual e que lhe dificulta o convívio social, ou seja, fazendo com que seu paciente atribua explicações coerentes para as suas dificuldades, dessa maneira encontrando a sua própria “cura”. A diferença, diz Levi-Strauss, entre o psicólogo e o feiticeiro, seria que, enquanto o primeiro usa uma ação psicológica (a terapia) para resolver problemas psicológicos (os traumas), o segundo utiliza uma ação psicológica (o ritual xamanístico) para resolver problemas fisiológicos (a doença). Portanto, o feiticeiro seria um agente de cura que estaria no meio do caminho entre o psicanalista e o médico. Essa ciência do concreto, na concepção levi-straussiana, tem o mesmo status que a ciência, já que o conhecimento científico conheceu seu esplendor nos últimos duzentos anos, enquanto que o conhecimento mitológico garantiu a sobrevivência da humanidade nos últimos dez mil anos. Essas considerações introdutórias sobre a visão estrutural de Levi-Strauss têm como objetivo demonstrar o quanto a antropologia ganhou em riqueza teórica a partir dos seus trabalhos. As características universalizantes do inconsciente humano e a determinação de seus aspectos sobre a realidade social do homem, demonstram que, na verdade, as diferenças culturais são conteúdos variáveis de um conjunto de estruturas invariáveis. A universalidade do homem está mascarada pela diversidade. Levando a análise além da realidade concreta, Levi-Strauss nos evidencia que o

caráter universal do homem se realiza nessa diversidade aparente, já que ele usa as mesmas estruturas inconscientes do pensamento de maneiras diferentes, na construção de realidades culturais a partir dos desafios que o mundo natural lhe impõe. “O homem é semelhante ao jogador pegando na mão, ao sentar à mesa, cartas que não inventou, já que o jogo de baralho é um dado da história e da civilização. Em segundo lugar, cada repartição das cartas resulta de uma distribuição contingente entre os jogadores, e se dá independentemente da vontade de cada um. Existem as distribuições que são sofridas, mas cada sociedade, como cada jogador, interpreta nos termos de vários sistemas, que podem ser comuns ou particulares: regras de um jogo ou regras de uma tática. E sabe-se bem que, com a mesma distribuição, jogadores diferentes não fornecerão a mesma partida, embora não possam, compelidos também pelas regras, fornecer uma determinada distribuição de qualquer partida”.8 8 Claude Levi-Strauss – A Análise Estrutural Em Antropologia

As criticas existem e são muitas. Para os que não concordam com o estruturalismo (e eles tem uma certa razão), Levi-Strauss matou o homem, ou melhor, o fez parecer uma mera marionete nas mãos de uma estrutura inconsciente, onde as realizações humanas significam muito pouca coisa. O homem não seria senhor do seu destino, mas um figurante manipulado por este. A história teria pouca ou nenhuma importância, já que esta é o reino da ação humana. Para os marxistas (apesar de existir uma perspectiva estruturalista no interior do marxismo) e existencialistas, que consideram o homem agente privilegiado da História e senhor do seu destino, o estruturalismo seria quase uma aberração. De qualquer forma, não há como negar o enriquecimento e a complexidade que Antropologia conheceu após o surgimento da análise estrutural. Além disso, o mundo não-ocidental ganhou dignidade ao ser colocado em pé de igualdade com o universo cultural do ocidente. Atualmente, alguns ramos da disciplina vêm tentando flexibilizar a rigidez estrutural, a partir do estabelecimento de diálogos teóricos com outras visões sobre o homem, como por exemplo, o marxismo antropológico, a partir do cruzamento das idéias de Karl Marx com o mundo conceitual de Levi-Strauss.

As implicações antropológicas no discurso político da Modernidade Desde o século XV, há uma longa caminhada das forças capitalistas em direção à construção de uma sociedade que lhe seja própria e ajustada aos seus interesses. Nesse processo histórico de afirmação da burguesia como classe hegemônica, houve a necessidade de criação de um espaço político apropriado aos seus objetivos econômicos de produção e comercialização; um espaço de uniformidade legal e burocrática, que garantisse a paz e normalidade necessária para essas atividades, muito diferente, é claro, da descentralização político-adminstrativa e sua consequente instabilidade social, tão característicos do feudalismo. Esse espaço seria, portanto, o Estado-Nação. Estado, na concepção moderna e política do termo, seria a organização políticoburocrática de um determinado espaço. Tendo como partes constitutivas fundamentais o governo, o corpo burocrático-administrativo, as leis e o monopólio da violência (exército e polícia). Nação, por sua vez, seria espaço onde o Estado exerce o seu poder, tendo como partes constitutivas um território e suas bem demarcadas fronteiras, um povo, um idioma oficial e a noção de pertencimento (identidade cultural) que esse povo deve ter para aceitar o comando do Estado. Como já vimos acima, a construção do Estado-nação decorre de uma maneira mais explicita, da crescente interferência de uma classe social específica – a burguesia – diretamente proporcional ao desenvolvimento das forças do sistema econômico que é comandado por ela – o capitalismo. Portanto, as noções introdutórias do pensamento político que vamos discutir estão em relação direta com o estabelecimento do capitalismo no mundo e o assalto ao poder que a burguesia realiza na medida em que vai se tornando a classe economicamente dominante em relação aos grupos que comandavam os destinos do mundo medieval (o clero católico e a nobreza feudal), ou mesmo quando esse mundo medieval não existia mais, a forma de comando que se apresentava como seu resquício, sua herança - o rei absolutista. Vale lembrar também que esse esforço realizado pela burguesia, resulta num processo de dessacralização (deslegitimação da dominação construída a partir do discurso religioso) do ato político que lentamente vai se fundamentando num processo de racionalização (legitimação do poder político a partir de um discurso racional, “científico”). Deus vai sendo substituído pelo próprio homem e suas realizações na política. Os autores que discutiremos mais adiante tentaram, com as suas construções teóricas, justificar a existência do Estado-Nação a partir de uma íntima relação com os objetivos sociais e econômicos vigentes desde o século XVI até os nossos dias. Daí deriva, também, a necessidade de afirmar quem deve comandar esse Estado. O rei, a burguesia, ou povo? Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau utilizaram uma metodologia teórico-filosófica - o contratualismo – que leva em consideração a observação das civilizações não-ocidentais (e mais especificamente a América indígena) para a análise da própria civilização européia, e obviamente, a justificação do Estado-Nacional. É muito importante ressaltar nesse momento, que esses filósofos dos séculos XVII e XVIII utilizaram um procedimento antropológico antes do surgimento como da antropologia como ciência. Porém, antes de analisar esses pensadores, vale discutir um aspecto fundamental do pensamento político e da própria política. A noção de poder. Para tanto, optou-se discutir as idéias de um pensador contemporâneo que analisou as relações de poder na sociedade capitalista de uma maneira muito ampla, que não se restringiu à ciência política, mas partiu da história e da antropologia: Michel Foucault. A escolha deliberada desse autor para compor este trabalho, justifica-se pelo fato de que sua obra tem relevância não só para o tema “poder”, mas para áreas importantes no universo contemporâneo das ciências sociais, como a sociologia do conhecimento, história das ciências, assim como a preocupação com grupos minoritários de nossa sociedade, como os “doentes” mentais, os homossexuais e a sexualidade infantil e feminina. Porém, existem outros autores contemporâneos que podem e devem ser levados em conta para uma análise mais aprofundada das relações de poder, como por exemplo Max Weber e Norberto Bobbio.

Michel Foucault e a relação saber-poder Pensador francês que incomodou e atrapalhou a bem demarcada controvérsia entre a fenomenologia marxista e o estruturalismo levi-straussiano, nos anos 50/60 e início dos 70, Michel Foucault chega a estabelecer, segundo Machado, “um novo caminho para as análises históricas sobre as ciências”9 , apesar do próprio pensador insistir no caráter sempre fragmentário de seus estudos. Foucault inicia sua trajetória intelectual na década de 50, a partir da construção de uma “arqueologia dos saberes” que possibilitasse compreender a emergência do humano como sujeito, ou seja, como ser construtor de conhecimentos positivos no seio da formação do capitalismo na Europa, entre os séculos XVIII e XIX. Vale dizer, a elaboração do homem como sujeito implica, também, na sua objetivação. Na ânsia repleta de interesses (econômicos, políticos) em conhecer, precisa empreender um conhecimento do próprio humano; portanto torna-se sujeito, será também objeto. O autor propõe, então, formular uma visão da forma como o conhecimento positivo, que se convencionou denominar de ciência, dominou e sufocou a possibilidade de existência das outras formas de conhecimento, deslegitimando-as. Descaracterizando as demais formas de conhecer, eliminou, também, suas respectivas formas de agir. Assim, no decorrer histórico das hostilidades e lutas entre esses saberes, aquele que se sobrepõe, formula, também, as relações de poder que vão domesticar, disciplinar as formas de ação do homem sobre o próprio homem. A cada livro publicado por Michel Foucault uma intercorrelação se impõe às suas preocupações teórico-metodológicas: a indissolúvel articulação entre saber e poder. Procurando formular uma análise em áreas “não-privilegiadas” e periféricas do conhecimento – os comportamentos “desviantes” como o do louco, seu primeiro foco de análise – Foucault procurou demonstrar que o saber sobre esse “desvio” implicava, primeiro, num esmagamento da outras interpretações sobre a loucura; segundo, na formulação de uma forma de agir sobre ela; e, terceiro, na sua institucionalização como prática de saneamento e recuperação, agindo em prol do “retorno” à “normalidade”. Além disso, que a fundamentação desse saber-poder sobre os desvios está em plena conformidade como a estrutura sócio-econômica vigente, o capitalismo, e com sua estruturação política maior, o Estado. É importante salientar, contudo, que o fato dessas formas articuladas de “saberpoder” estarem em plena conformidade com a macro-política do Estado - sendo este o correspondente supra-estrutural da infra-estrutura econômica capitalista – não significa ser apenas uma decorrência lógica das relações do poder estatal, ou meramente, uma de suas expressões. O autor insiste na sua autonomia, a partir da luta entre os vários saberes, sem obviamente, negar que esta autonomia é cooptada pela ação estatal. Qual seria então, o rascunho de uma conceituação teórica, ainda que em forma de apontamentos, sobre o poder? Uma maneira segura de iniciar essa discussão seria indicar o que o poder não é: uma coisa, algo palpável e material. O poder não é, também, uma instituição, apesar de sua realização se dar através de instituições. 9 Machado, R. “Por uma genealogia do poder”. In FOUCAULT, Michel. “Microfísica do Poder”. Rio de Janeiro: Edições Graal, 4ª edição, 1984, 295p. 10 Machado, R. “Por uma genealogia do poder”. In FOUCAULT, Michel. “Microfísica do Poder”. Rio de Janeiro: Edições Graal, 4ª edição, 1984, 295p. 11 DREYFUS, Hubert L. & RABINOW, Paul. “Michel Foucault: Uma Trajetória Filosófica – Para além do estruturalismo e da hermenêutica”. Tradução: Vera Porto Carrero. Introdução: Traduzida por Antonio Carlos Maia. FU, 2000, p. 229-249.

“Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante formação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social, como tal, constituída historicamente”. 10

Foucault nos afirma que o poder só acontece a partir do seu exercício; ou seja, não se detém poder, mas sim alguém que exerce poder. Por isso sua realização formulase através de uma relação. “Abordar o tema do poder através de uma análise do “como” é, então, operar diversos deslocamentos críticos com relação à suposição de um poder fundamental. É tomar por objeto de análise relações de poder e não um poder(...)”11

Além disso, não se configura uma relação de poder o exercício de dominação sobre algo; sobre alguma coisa, aí temos a noção de capacidade técnica. Não é poder, também, uma relação de comunicação, ou seja, a forma pela qual se “transmite uma informação através de uma língua, de um sistema, de signos ou de qualquer outro meio simbólico”(...), apesar de que, completa Foucault, “a produção de elementos significantes podem perfeitamente ter por objetivo ou por conseqüências efeitos de poder, que não simplesmente um aspecto dessas. Passando ou não por sistemas de comunicação as relações de poder tem sua especificidade”12 .

Por fim as relações de poder. O que seriam essas relações? Ou melhor, como se exerce as relações de poder em sua especificidade? Antes de qualquer coisa, uma relação de poder é uma ação de uns sobre outros, ou melhor, é ação de uns sobre a ação de outros, ou seja, para determinar-lhes a ação dentro de um campo de possibilidades. Antes de prosseguir o pensador nos adverte que, na sua concepção, não há espaço para a noção de consentimento dentro dessa conceituação; “(...) ele não é (o poder), em si mesmo, renúncia a uma liberdade, transferência de direito, poder de todos e de cada um a alguns (o que não impede que o consentimento possa ser uma condição para que a relação de poder exista e se mantenha); a relação de poder pode ser o efeito de um consentimento anterior ou permanente; ela não é, em sua própria natureza, a manifestação de um consenso”13 .

Assim como, o recurso de violência, para o autor, implica numa ação direta sobre o corpo, e não numa ação sobre a ação do outro: “Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; (...)”14 . Portanto a violência e o consentimento – dois fundamentos tão caros à teoria clássica sobre o poder – são colocados antes, em relação ao poder, como seus “instrumentos ou efeitos, não constituem, contudo, seu princípio ou sua natureza”15 . Vale afirmar aqui que esta visão periférica da importância do consentimento e da violência foi o suficiente para suscitar uma enorme controvérsia em relação aos cientistas políticos “tradicionais”, que podem enxergar aí uma tentativa de desmoronamento do universo teórico dos autores contratualistas, assim como todo o seu arcabouço conceitual acerca das relações entre sociedade e Estado. De qualquer forma, é importante salientar a necessidade que Foulcault tem de ultrapassar, sempre, a noção do Estado como fonte única de geração e exercício do poder, e que para ele, as relações de poder estendem-se quase que infinitamente na complexidade das relações do social, inclusive, e, justamente, em seus aspectos mais cotidianos e banais. Mesmo assim não deixa de ser uma discussão interessante promover um diálogo teórico entre esses dois universos conceituais. Mas retomando o empreendimento conceitual das relações de poder, Foucault, delimita, então, que sua natureza consiste num “modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes”. (o poder) se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que “o outro” (aquele sobre o qual se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de uma ação (ação governada, é certo) e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações efeitos, invenções possíveis.(...); ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, coage e impede totalmente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir, Uma ação sobre ações”. 16

Dessa maneira o ato de “conduzir condutas” que é próprio da relação de poder, se configura a partir da restrição do espectro de possibilidades de ação do dominado pelo dominador a uma ação, o que implica, então, agir sobre a liberdade dos outros de modo a determiná-la segundos os interesses de quem exerce o poder. “O poder, diz o autor, só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto livres – entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que tem diante de si um campo de possibilidades onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer”17 .

Além da relação de poder, implicar, necessariamente, numa refutação de parte do dominado, portanto, pela emergência de formas de resistência. Assim, a relação de dominação tem condição de existência, tanto o conflito imanente, quanto o jogo de relações estratégicas que impõe lógica de obtenção de empreendimentos para realizar as condições que compõe a relação de dominação. Nas palavras do próprio Foucault, “como não poderia haver relações de poder sem pontos de insubmissão, que, por definição, lhe escapam toda intensificação e toda a extensão das relações de poder, para submetê-lo conduzem apenas aos limites do exercício do poder; (...). Em suma, toda estratégia de confronto sonha tornar-se relação de poder; e toda relação de poder inclina-se, tanto ao seguir sua própria linha de desenvolvimento quanto ao se deparar frontais, a tornar-se a estratégia vencedora”18 .

12 Idem. 13 Idem. 14 Idem. 15 Idem. 16 Idem. 17 Idem. 18 Idem.

As justificativas do poder estatal Como vimos, Michel Foucault estabelece que as relações de poder estão disseminadas no amplo espectro de relações de uma sociedade, permeando as ações entre pais e filhos, professores e alunos, médico e doente, etc. Porém, mesmo reconhecendo esta infinidade de tipos de relações de poder, o autor não nega, contudo, a centralidade de uma forma específica: o poder estatal. Assim, o Estado, como o norteador das ações praticadas pelos indivíduos, categorias e classes sociais, encontrou, ao longo de seu processo histórico de formação (séculos XV-XVIII) uma série de pensadores dispostos a realizar a elaboração teórica das justificativas ideológicas de sua existência, e o que é mais importante, de seus objetivos. Os autores tratados aqui, como já se disse, contemplam uma visão sobre Estado fundamentada numa abordagem antropológica, sendo que outros autores e temas do universo político estão dimensionados em outras partes desta obra. Thomas Hobbes e o Estado Leviatã Este grande teórico do absolutismo vai, diferentemente do pensamento maquiavélico, utilizar-se de uma farta visão filosófica do homem para demonstrar aos homens reais de sua época, a necessidade do universo político endurecido pela autoridade e .pela constituição das leis. Hobbes é precursor de uma elaboração teórica muito utilizada nas idéias de fundamentação política até o final do século XIX (mas para justificar posicionamentos políticos diferenciados) denominada de contratualismo ou teoria do contrato social, apresentado em sua obra máxima O Leviatã ou a Matéria, a Forma e o Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil. Essa idéia nasce justamente no impacto das grandes transformações do século XV para o século XVI e se arrasta até os nossos dias. A transição Feudo-Capital nos trouxe a aventura magnífica das grandes navegações, com elas o Descobrimento da América, e a mais surpreendente das descobertas: o ser humano até então ignorado pela civilização européia: O Homem Americano (denominado por Colombo de índio). Esse encontro trouxe um impacto até então impensado na História da Humanidade, e, a partir dele, gerou um movimento duplo de reflexão: (1) afinal de contas, quem ou o que são os índios? São humanos como nós ou animais? E (2) nós, o que somos? Será que éramos índios? Se éramos como eles, o que nos fez mudar? Portanto, a curiosidade de se entender o outro levou à refletir sobre si mesmo. Hobbes elaborou um discurso de legitimação do absolutismo monárquico a partir desse tipo de reflexão. Para ele, o Homem americano, assim como o europeu num passado mais longínquo, é um Homem Natural, o homem que vive num Estado de Natureza. Como Maquiavel, esse pensador considera a essência da alma humana repleta de características maléficas. Sendo assim, como se comportaria esse humano em Estado Natural, ou seja em plena liberdade, sem qualquer compromisso com seus pares, sem reconhecer lei, autoridade ou propriedade? Homo homini lupos é a resposta que nos dá Hobbes: se a maldade orienta a ação humana e se essa humanidade encontrase em forma naturalizada, o homem é o lobo do próprio homem. O homem, livre de qualquer tipo de restrição exterior a sua individualidade não permite a convivência pacífica em sociedade, que por sua vez, torna estéril o desenvolvimento do seu lado construtivo e engenhoso. Portanto o Estado de Natureza é reino da guerra permanente, da violência, da morte e do assassinato. De que maneira os homens conseguiram reverter essa situação para estabelecer a paz e, ao mesmo tempo, construir positivamente seu universo cultural? A única alternativa – ele nos diz – é partir de um acordo entre os homens – o contrato social - estes renunciariam a esta

liberdade destrutiva e se submeteriam ao poder de um déspota (um príncipe, diria Maquiavel). Com isso, os homens transformariam esta liberdade abdicada em uma concentração de poderes manipulados com mãos de ferro por um único homem, sendo esta a única e derradeira oportunidade de construção de uma sociabilidade civilizada. Em outros termos, troca-se a liberdade política pela segurança, capaz de gerar a liberdade econômica e a elaboração de um universo cultural superior, pautados pela “verdadeira” religião – o Cristianismo – e pelo “verdadeiro” conhecimento – a Razão. Esse ser que despreza a própria liberdade por não saber controlá-la, necessita de uma força muito maior que a sua - a força acumulada de vários homens, mas orientada por apenas um – que é o Estado (civitas, em grego). Através da instituição do Estado, conheceríamos o nascimento de um novo homem – o Homem Artificial – que finalmente encontra a paz, a segurança e a felicidade plena (como vimos, condições necessárias por sua vez para o florescimento das ciências e das artes, bem como do desenvolvimento econômico). O homem, então estaria ambientado no Estado de Civilização. Para dar a dimensão da magnitude da força que caracteriza o Estado, que tem como tarefa instaurar a convivência pacifica entre os seres humanos, Hobbes utiliza uma alegoria bíblica, a do grande monstro Leviatã. A sua imagem está estampada na capa do livro (existem edições atuais que contém essa magnífica ilustração) e é a de um ser gigantesco que: “(...) é moreno, de vastos cabelos e bigodes, com um olhar fixo, penetrante, com um sorriso imperceptivelmente sarcástico (...). A parte visível de seu corpo, busto e braços, é feita de milhares de pequeninos indivíduos aglomerados. Com a mão direita empunha, erguendo-a acima do campo e da cidade, uma espada; com a esquerda uma cruz episcopal. Abaixo, enquadrando o título da obra, defrontam-se duas séries de emblemas em contrastes, uns de ordem temporal ou militar, outro de ordem espiritual; uma coroa, uma mitra, um canhão, os raios de excomunhão; uma batalha de cavalos empinados (...)”.19

Hobbes identifica, por fim, todos os benefícios da sua visão política que legitima o poder do soberano, e ao mesmo tempo, fundamenta a necessidade do Estado, da seguinte maneira: “(...) a arte do homem (...) pode fazer um animal artificial (...) Mais ainda, a arte pode imitar o homem, obra prima racional da natureza. Pois é justamente uma obra de arte esse grande Leviatã que se denomina coisa pública ou Estado (...), o qual não é mais do que um homem artificial, embora de estatura muito mais elevada e de força muito maior que a do homem natural, para cuja proteção e defesa foi imaginado. Nele a soberania é uma alma artificial, pois que dá a vida e o movimento a todo corpo(...). A recompensa e o castigo são seus nervos. A opulência e as riquezas de todos os seus particulares, a sua força. Salus Populis, a salvação do povo, é a sua função(...). A equidade e as leis são para ele razão e vontade artificiais. A concórdia é a sua saúde, a sedição, a sua doença e a guerra civil a sua morte. Enfim, os pactos e os contratos, que, na origem, presidiram a constituição, agregação e união das partes desse corpo político, assemelham-se ao fiat ou o façamos o homem, pronunciado por Deus na criação” (Thomas Hobbes – O Leviatã).

O pensamento hobbesiano vai exercer um profunda influência sobre a teorização e a prática política do século XVII até os nossos dias. Criou o fundamental conceito de Contrato Social que vai impor-se no Iluminismo do século XVIII para filósofos como John Locke e Jean Jacques Rousseau. E, no século XIX, influenciou o positivismo científico de Augusto Comte, Émile Durkheim e companhia, com as suas teorias amparadas na biologia, para a elaboração do conceito de corpo social.

19 Jean Jacques Chevalier – As Grandes Obras Políticas, de Maquiavel aos Nossos Dias.

John Locke e o individualismo político. Até agora pudemos constatar o quanto esses pensadores fundamentais da teoria política moderna levam em consideração tanto uma visão dignificante quanto degradante do Homem. Maquiavel e Hobbes acreditam na formação de estruturas políticas modernas (Estados) feitas pela eminência das ações humanas; mas acreditam, também que esta estrutura é imprescindível para minimizar o ímpeto auto destrutivo desse mesmo ser. Sinal dos tempos. Os séculos XVI e XVII foram marcados tanto pela ideal renascentista (o homem, obra prima da natureza) quanto pelo temor da Contra-reforma (o homem, esse ser nefasto que ousa se rebelar contra Deus). Essa intrigante contradição vai perdendo o seu sentido, à medida que os ventos do tempo trazem o século XVIII. Nesse século “iluminado” e “iluminista”, o ser humano perde sua face vil e mesquinha para ser, cada vez mais perfeito e repleto dos melhores aspectos que se pode reconhecer: do pensamento racional e científico e até uma certa ingenuidade, uma bondade natural, corrompida e aprisionada pelo pensamento religioso e pelos déspotas. Estes últimos os representantes de uma época de trevas e obscurantismo que o homem deve, utilizando suas forças benéficas, libertar-se o mais breve possível. Na verdade, essa visão exaltada do ser humano corresponde a um contexto de desenvolvimento econômico bem sucedido da burguesia européia, e principalmente inglesa, que está às portas da Revolução Industrial. A burguesia amadurece suas forças produtivas, torna-se a classe mais importante no contexto do Antigo Regime (séculos XVI/XVIII), sentindo-se forte e confiante para assaltar o poder político das mãos do Rei e do seu suporte burocrático-militar, a nobreza. Além disso, o mundo burguês, alicerçado no desenvolvimento tecno-científico, não vê mais razão para submeter-se ao discurso dogmático do Cristianismo. O homem está a procura de um outro Deus: ele próprio. John Locke está imerso nessa atmosfera. O inglês que pode ser considerado, sem sombra de dúvida, um iluminista, dirige toda a sua perspicácia intelectual a um decidido objetivo: deslegitimar o Absolutismo Monárquico. Para tanto, se utiliza da mesma estratégica teórica que Thomas Hobbes: a teoria do Contrato Social. Em sua obra, “O Ensaio Sobre o Governo Civil” (vale dizer, nome genérico, porque sua obra é composta por dois ensaios de denominação extensa), o Estado de Natureza não é o reino da destruição humana; antes seu espaço de felicidade. Ali o homem, já está dotado de suas capacidades nobres – a razão e a liberdade – e já tem o seu cantinho de realização – a propriedade (o canto do cisne para os ouvidos burgueses). Então, porque esse ser agraciado deixaria a natureza e abraçaria o Estado de Civilização? A explicação de Locke é que nesse universo natural impera também o individualismo. Não que esta seja uma característica maléfica, pois o homem se realiza nela, mas a ação individual pode levar a uma situação em que o bom senso não seja plenamente realizável, e o equilíbrio social possa estar ameaçado. Podemos afirmar, em síntese, que o homem é bom, mas ausência de regras para o convívio social pode colocar em risco sua vida feliz. Daí a necessidade do Contrato Social e do homem abdicar de apenas uma parte de sua liberdade para o estabelecimento de regras sociais (as leis) e de um governo, visando garantir a continuidade de seu mundo caracterizado pelo Equilíbrio, Razão, Auto-Determinação e Vontade. Porém os homens não vão renunciar facilmente do controle dos seus próprios destinos. No lugar de um déspota, eles se reservarão o direito de escolher seus próprios governantes, e se estes atentarem contra a liberdade daqueles que o escolheram, os homens tem um compromisso com a insubordinação. Portanto aos seres humanos cabe o direito de escolher e remover os seus líderes políticos, não ao seu bel prazer, pois há regulamentação através das leis, mas quando

essas ações forem necessárias para manutenção e perpetuação da sua liberdade natural. Locke estabelece também uma divisão nas formas de realização política por esse Estado Democrático, que serve tanto para racionalizar a competência dos governantes, quanto para evitar acumulação de poderes nas mãos de um só homem, e assim a sociedade não correr o risco do despotismo. Diz ele, que no Estado de Natureza, os homens guardavam para si dois direitos fundamentais, a saber: (1) direito à conservação, que determina que se pode fazer tudo o que for necessário para a conservação de si e de seus pares; e o (2) direito de punir aqueles que cometem os crimes que atentam contra o equilíbrio (frágil, no Estado de Natureza) da ordem natural dos homens. No Estado de Civilização, esses dois direitos vão se aperfeiçoar e vão originar os dois poderes fundamentais do governo civil: (1) o poder legislativo, ou seja, a busca de conservação através da elaboração das leis que vão determinar o equilíbrio entre os homens; e (2) o poder executivo, oriundo do direito de punir, que tem como objetivo fazer valer as leis que foram elaboradas pelo outro poder constituído. É interessante notar que no poder executivo, em Locke, está implícito também o poder judiciário. Mas este poder só será separado do executivo na teoria política de outro pensador iluminista, Montesquieu, em seu livro o Espírito das Leis, onde é plenamente desenvolvida idéia de separação dos três poderes. Não é preciso muito esforço para notar a amplitude e a importância da teoria desenvolvida por John Locke. Basta afirmar que todo país que se organizou em termos democráticos é tributário das idéias desse pensador. O processo de constitucionalização parlamentarista que ocorreu na Europa nos séculos XVIII e XIX, a elaboração do Estado Federativo do Estados Unidos da América (a constituição americana é uma obra escancaradamente lockeana) e o processo de constituição das repúblicas em todo o mundo ocidental foi alimentado por seu corpo teórico. Porém, a fomentação do espírito de liberdade não pára por aí. Rousseau vem para radicalizar essa busca tipicamente moderna do homem. Jean Jacques Rousseau. Homem de letras e pensamentos amplos, que se estende não só ao universo político, mas à literatura, educação, e outras áreas, esse pensador, com suas idéias, orientou boa parte dos destinos políticos da Revolução Francesa. Além disso, é considerado por muitos, uns dos fundadores das ciências humanas e principalmente, da antropologia, já que Levi-Strauss o considera como precursor da idéia da universalidade do humano para além de suas particularidades. Suas noções políticas são derivadas justamente dessa perspectiva pré-antropológica, já que parte da premissa filosófica da Bondade Natural do homem. Para Rousseau, o homem no Estado de Natureza se realiza como o Bom Selvagem. Este viveria em situação de infinita felicidade (maior que a natureza lockeana) até que um dia... “(...) O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia o gênero humano aquele que, arrancado as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: defendeivos de ouvir esse impostor; estarei perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!” .20

Diferentemente dos autores que discutimos até agora, Rousseau, vislumbra um estado de natureza com espaço privilegiado a ação humana. Nesse ambiente, caracterizado pela relação direta do homem com os recursos natureza, e pela força coletiva orientando essa relação, seríamos plenamente realizados. O homem estaria livre da ganância e do egoísmo. Mas algo desiquilibrou esse mundo harmonioso; a sociedade civil (o Estado) teria nascido dessa atitude corrompida e perturbadora do equilíbrio natural do Homem: a criação da propriedade. Os governos e suas leis serviriam para defendê-la e manter a desigualdade entre os homens. Orientado pelos interesses individuais, a propriedade instituída corrompeu a os interesses coletivos, gerou as desigualdades e a pobreza levando a maioria dos homens (despossuidos) a uma situação de dependência em relação a outros homens (possuidores). Essa relação de dependência dos homens acabou por substituir a relação de dependência das coisas, situação vivida por aqueles que estavam no estado de natureza, e que nada

20 Jean Jacques Rousseau - O Discurso Sobre a Desigualdade.

mais significa do que a relação direta do homem com a natureza e como forma produção e reprodução de sua sobrevivência. Para sanar tal problema, Rousseau propõe-nos um novo Contrato Social que vise, pelo menos, amenizar as graves conseqüências da instituição da propriedade para a sociabilidade dos homens. A idéia é que o novo pacto seja estabelecido com o consentimento geral dos homens e que as perdas sejam diretamente proporcionais aos ganhos. Nele, os homens iriam se despir de todo e qualquer direito de ação individual, visando a construção de uma ação coletiva, em que fosse estabelecida uma Vontade Geral, que, longe de ser uma somatória de vontades indviduais, seria justamente a forma de impor o coletivo, o interesse geral, aquilo que beneficia a todos, mas não satisfaz nada que seja do âmbito do desejo individual. O autor deixase levar por um certo maniqueísmo, em que o mal se personifica no individual e o bem no coletivo. Abdicando de seus direitos individuais, o homem torna-se parte de um todo e é retribuído, por isso, com os seus direitos coletivos, que, para Rousseau, é qualitativamente superior, porque está afinado com valores morais não-egoistas. Assim, todos obedecem a vontade geral, que por sua vez, garante a liberdade de todos. A partir da idéia de obediência e liberdade, o homem cidadão torna-se respectivamente súdito e soberano. “Quando prevalece a opinião contrária à minha, isto prova apenas que eu me enganara, julgando ser vontade geral o que não era. Se tivesse prevalecido a minha opinião particular, eu teria feito algo diverso do que queria é então que não seria livre”

O contrato social rousseauniano pretende, portanto, anular as desigualdades individuais fundadas na violência e na usurpação e, no seu lugar, impor a igualdade coletiva, fundada convenção (o comum acordo) e no direito (a lei como expressão da vontade geral) como forma de resgatar a harmonia do bom selvagem e ataca os malefícios de uma sociedade civil fundada nos interesses individuais, personificados, como já vimos, na idéia de propriedade. O pensador, contudo, não pretende como pode parecer, estabelecer uma sociedade socialista. Nem tampouco, suprimir a existência da propriedade privada. Sua intenção está direcionada em remodelar essa noção. Para ele, a propriedade das coisas e dos bens deve ser atribuída ao Estado e direcionada para os interesses coletivos. As pessoas iriam deter tão-somente a posse desses bens. Desse modo, estaria anulada a possibilidade da propriedade como fonte de concentração de riqueza, e por conseguinte, de miséria, a partir de uma regulamentação, pelo poder estatal, dos excessos ocorridos pelos interesses individuais. Deixaríamos de ter a propriedade-fato para usufruirmos da propriedadedireito. Vale ressaltar, porém, que essa visão de propriedade e sua regulamentação por parte do poder estatal, não significa uma total equidade entre os indivíduos. Representa, apenas, evitar grandes distorções que levem a ruína da liberdade como peça fundamental da formação da sociedade civil. Já que, para Rousseau, não existe exercício de liberdade se um mínimo de igualdade não for garantida para a reprodução da condição e existência do contrato social, realizado indispensavelmente por homens livres e iguais. “Quereis, portanto, dar consistência ao Estado? Aproximai os graus extremos, tanto quanto possível; não suporteis nem opulentos nem indigentes. Essas duas condições, naturalmente inseparáveis, são igualmente funestas ao bem comum... Que nenhum cidadão seja assaz opulento para poder comprar outro e que nenhum será bastante pobre para se achar constrangido a vender-se.”

A soberania, que só pode ser exercida pelo e para o povo, encontra sua plenitude em algumas características fundamentais, que são: (1) Inalienável, ou seja, só ao povo é dada a capacidade de fundar a função política, sendo a representatividade um entrave para o exercício da vontade geral, na medida que delega a ação política a uma pequena parte do povo. Essa pequena parte, estaria muito vulnerável, segundo Rousseau, a tentação dos seus interesses particulares;

(2) Indivisível, não se pode delegar seu fazer político a outrem de maneira nenhuma, tanto pelo caso representativo – como acabamos de analisar, quanto pela possibilidade de uma classe ou categoria social específica (a burguesia, os intelectuais, os partidos ou sindicatos) deter uma pequena parte, que seja, dessa soberania; (3) Infalível, a soberania, quando exerce verdadeiramente a vontade do povo, não corre risco de errar, já que, pela ótica maniqueísta do pensador, o coletivo é sempre a encarnação do Bem e o particular, a própria materialização do Capeta; e, por fim, (4) Absoluta, o poder coletivo que expressa a vontade geral sobrepõe-se absolutamente sobre as iniciativas pessoais e tem a primazia sobre qualquer situação ou circunstância. Por fim, a lei, que é a expressão máxima da Vontade Geral, é a maneira mais sagrada de submeter as iniciativas individuais à força coletiva da sociedade. Rousseau dá um grande destaque à figura do Legislador, aquele sábio homem que tem por função catalisar os anseios e os desejos da vontade geral. E ao governo, que deve ser o executor dos desígnios da vontade geral e cristalizadas na forma de leis pelo legislador. Na concepção Rousseauniana, o rei, príncipe ou governante eletivo (o que viríamos denominar de presidente) não deve ser encarado como o senhor do povo, mas sim como seu servo. Interessante notar, que tanto apelo à liberdade e igualdade não implica, contudo na elaboração de um governo essencialmente democrático. O povo não pode exercêlo diretamente por não poder desviar seu olhar dos interesses coletivos, já que o governante deve trabalhar pela coletividade através de atos particulares, que é, então vedado ao povo. A melhor forma de governo, diz Rousseau, seria a aristocracia eletiva, por seu um governo de poucos, substituído num determinado período de tempo, o que diminui as tentativas do homem de governo de servo do povo, tornarse seu senhor.

BIBLIOGRAFIA: DREYFUS, Hubert L. & RABINOW, Paul. “Michel Foucault: Uma Trajetória Filosófica – Para além do estruturalismo e da hermenêutica”. Tradução de Vera Porto Carrero. Introdução: Traduzida por Antonio Carlos Maia. FU, 2000, p. 229-249. FOUCAULT, Michel. “Microfísica do poder”. Tradução de Roberto Machado. 4ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, 295 p, capítulos II, XI, XIV, XV. MACHADO, Roberto. “Introdução: Por uma Genealogia do Poder” in FOUCAULT, Michel. “Microfísica do Poder”. Tradução de Roberto Machado. 4ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, 295 p.

LITERATURA O nascimento da literatura ocidental e a antiguidade Homero e a Ilíada Virgílio e a Eneida A Idade Média e as literaturas nacionais Dante Alighieri e a Divina Comédia Cervantes e Dom Quixote Shakespeare e Hamlet Do Romantismo a Modernidade Goethe e o Fausto Baudelaire e As Flores do Mal O Indivídio e contemporânea

a

literatura

Kafka e O Processo Dostoievski e Os Irmão Karamazov Pessoa e sua Poesia

O nascimento da literatura ocidental e a antiguidade A síntese de realismo e idealismo, que consiste em harmonizar as formas da natureza com as formas ditadas pelo espírito, percorre toda a arte produzida na Grécia antiga e constitui um princípio básico da estética ocidental, especialmente em seus momentos de recuperação dos valores clássicos. A arte grega antiga remonta ao segundo milênio antes da era cristã e originou-se na ilha de Creta, próspero núcleo comercial, famoso pela decoração suntuosa de palácios como Cnossos e Festo. Foram desenvolvidos pólos gregos em filosofia, dramaturgia e poesia, ao lado da sistematização da história, artes plásticas, arquitetura e narrativas mitológicas como a Teogonia, principal fonte de origem sobre deuses. Ainda, com o surgimento das cidades-estados (polis) – cidades politicamente ativas no século VIII a.C. é organizada a primeira Olimpíada na cidade de Olímpia. Das cidades políticas gregas, destacaram-se: Atenas “democrática e comercial” e Esparta “oligárquica e agrícola”. Utilizavam-se de mão de obra escrava em todos os setores da economia, sustentada sobretudo pelo comércio marítimo. Os principais cultivos eram: oliveiras, videiras e trigo. No continente, a civilização micênica criou uma arte própria que deixou traços profundos na Cultura Helênica. No primeiro milênio a.C. produziu-se a arte grega propriamente dita, que nos séculos IV e III a.C., por intermédio de Alexandre o Grande e seus sucessores, propagou-se para além do Egeu e do Mediterrâneo e chegou até a Índia. Na segunda metade do século V, a arte clássica grega atingiu o apogeu, superando inteiramente os traços arcaicos e dirigindo-se rapidamente para o realismo idealizado e para o rigoroso equilíbrio que se revelou no estilo “severo” não só na escultura, como nas demais artes e na arquitetura. Nasceu então uma concepção tipicamente grega do universo, totalmente desligada de tradições culturais ou intelectuais herdadas do mundo antigo. O novo conceito helênico da ordem universal e a vocação heróica influenciaram toda a produção artística grega. A Grécia continental passou a segundo plano quando, após a morte de Alexandre o Grande (323 a.C.), foram criados reinos independentes na costa da Anatólia e no Egito. O centro da produção artística do mundo helênico se deslocou para cidades como Rodes, Alexandria, Antioquia e Pérgamo.

Deu-se a esse período o nome de helenístico, para diferenciálo do helênico. De modo geral, foram paulatinamente abandonados os princípios clássicos da harmonia rigorosamente orgânica e do movimento em potência, para representar o movimento desencadeado, de influência asiática. Gradualmente, a arte deixou de satisfazer as necessidades estéticas das comunidades para preencher as dos indivíduos. Teve início o gosto pelo colossal, a estética do dramático, a representação da velhice, da fealdade e da infância e a multiplicação dos retratos individuais. A era helenística marcou a transição da civilização grega para a romana, em que inoculou sua força cultural. Não se encontra nela o esplendor literário e filosófico do período áureo da Grécia, mas divisa-se um grande surto da ciência e da erudição. Chama-se civilização helenística a que se desenvolveu fora da Grécia, sob influxo do espírito grego. Esse período histórico medeia entre 323 a.C., data da morte de Alexandre III (Alexandre o Grande), cujas conquistas militares levaram a civilização grega até aAnatólia e o Egito, e 30 a.C., quando se deu a conquista do Egito pelos romanos. Grande parte do Oriente antigo foi então helenizado e assistiu-se a uma fusão da cultura grega, revitalizada nas áreas conquistadas, com as tradições políticas e artísticas do Egito, Mesopotâmia e Pérsia. Depois da morte de Alexandre, a transmissão da cultura grega persistiu nos grandes centros urbanos, embora sofresse influência dos costumes orientais. A tentativa de Antígonos, um dos mais antigos generais de Alexandre, de manter intacto o império conquistado pelo guerreiro macedônio, fracassou após a Batalha de Ipso, na Frígia (302 a.C.). A partilha do império foi feita entre três generais: Seleucos I Nicator, Ptolomeu I e Lisímacos. As lutas, entretanto, continuaram, e vinte anos depois o império foi dividido em três estados independentes: o reino do Egito ficou com os Lágidas, descendentes de Ptolomeu; o da Síria, com os Selêucidas, descendentes de Seleucos; e o da Macedônia coube aos antigônidas, descendentes de Antígonos Alexandria, no Egito, com 500.000 habitantes, tornou-se a metrópole da civilização helenística. Foi um importante centro das artes e das letras, e a própria literatura grega tem uma fase chamada “alexandrina”. Lá existiram as mais importantes instituições culturais da civilização helenística: o Museu, espécie de universidade de sábios, dotado de Jardim Botânico, Zoológico e Observatório Astronômico; e a Biblioteca, com 200.000 volumes, salas de copistas e oficinas para preparo do Papiro. O Reino Egípcio só terminou com a conquista de Otavius, no reinado de Cleópatra. O reino da Síria abrangia quase todo o antigo império persa até o Rio Indo. A capital era Antioquia, outro grande centro da cultura helenística, perto da foz do Orontes, no Mediterrâneo. Os selêucidas, entretanto, não puderam manter a unidade de seu vasto império, que acabou conquistado pelos romanos no século I a.C. Já o reino da Macedônia teve de enfrentar a luta das cidades gregas, ciosas da defesa de sua autonomia, e acabou incorporado ao Império Romano. Do ponto de vista cultural, o período compreendido entre 280 e 160 a.C. foi excepcional. Tiveram grande desenvolvimento a história, com Polibius; a matemática e a física, com Euclides, Eratostenes e Arquimedes; a astronomia, com Aristarcus, Hiparcus, Seleucus e Heráclides; a geografia, com Posidonius; a medicina, com Herofilus e Erasistratus; e a gramática, com Dionisius Tracius. Na literatura, surgiu um poeta extraordinário, Teocritus, cujas poesias idílicas e bucólicas exerceram grande influência. O pensamento filosófico evoluiu para o individualismo moralista de Epicuristas e Estóicos, e as artes legaram à posteridade algumas das obras-primas da antigüidade, como a Vênus de Milo, a Vitória de Samotrácia e o grupo do Laocoonte. À medida que o Cristianismo avançava, a civilização helenística passou a representar o espírito pagão que resistia à nova religião. O espírito grego não desapareceu com a vitória dos valores cristãos; seria, doze séculos depois, uma das linhas de força do Renascimento.

Homero A Homero se atribuem os dois maiores poemas épicos da Grécia antiga, que tiveram profunda influência sobre a literatura ocidental. Além de símbolo da unidade e do espírito helênico, a Ilíada e a Odisséia são fonte de prazer estético e ensinamento moral. De acordo com o historiador grego Heródoto, Homero nasceu em torno de 850 a.C. em algum lugar da Jônia, antigo distrito grego da costa ocidental da Anatólia, que hoje constitui a parte asiática da Turquia, mas as cidades de Esmirna e Quio também reivindicavam a honra de terem sido seu berço. Até mesmo as fontes antigas sobre o poeta contêm numerosas contradições, e a única coisa que se sabe com certeza é que os gregos atribuíam a ele a autoria dos dois poemas. A tradição lhe atribuiu também a coleção dos 34 Hinos homéricos, dos quais procede a imagem lendária de Homero como poeta cego, mas que depois se constatou serem de fins do século VII a.C. Os maiores especialistas gregos não admitem que tenha sido Homero o autor de obras como o desaparecido poema Margites ou a paródia épica Batracomiomaquia. As muitas lendas e a escassa confiabilidade dos dados biográficos sobre Homero fizeram com que já no século XVIII muitos questionassem até mesmo a existência do poeta. As diferenças de tom e estilo entre a Ilíada e a Odisséia levaram alguns críticos a aventar a hipótese de que poderiam ter resultado da recomposição de poemas anteriores, ou de que teriam sido criadas por autores diferentes. Todas essas dúvidas constituem a chamada “questão homérica”, e permanecem abertas à discussão. Os pontos em que há maior concordância dos estudiosos são: a Ilíada é anterior à Odisséia; quase com certeza os dois poemas foram compostos no século VIII a.C., cerca de três séculos após os fatos narrados; foram originalmente escritos em dialeto jônio, com numerosos elementos eólios - o que confirma a origem jônica de Homero; pertenciam à tradição épica oral, pelo menos no que se refere às técnicas empregadas, já que existem opiniões divergentes quanto ao emprego ou não da escrita pelo autor. A versão na forma escrita, tal como se conhece hoje, teria sido feita em Atenas durante o século VI a.C., se bem que a divisão de cada poema em 24 cantos corresponderia aos eruditos alexandrinos do período helenístico. No decorrer desse período teriam sido introduzidas várias interpolações. Com base nesses dados, todos mais ou menos hipotéticos, deduziram-se alguns dados básicos sobre Homero e sua obra. Tanto a Ilíada como a Odisséia apresentam diversas inconsistências internas, como alusões a técnicas e equipamentos de combate que existiram em épocas diferentes. Tais inconsistências, porém, poderiam ser explicadas pelo fato de o poeta, se é que realmente existiu, ter utilizado materiais anteriores e por terem sido provavelmente incorporados alguns outros. Quanto à existência de um autor único para a Ilíada, a mais antiga das duas obras, argumenta-se que embora seja evidente a existência de poemas épicos orais anteriores sobre os mesmos temas, não parece haver existido nenhum de extensão sequer aproximada, nem dotado de tal complexidade estrutural. Tal constatação indicaria a existência de um criador individual, que deu uma nova estrutura aos temas tradicionais e integrou-os em sua visão pessoal da realidade. Encontramos na Ilíada a narração da guerra travada entre gregos e troianos, no episódio conhecido como “Guerra de Tróia”. Esta guerra teve origem, acreditam alguns, nos altos impostos cobrados pelos troianos para a passagem de especiarias no porto de Tróia, estrategicamente localizado no estreito de Dardanelos, entre os mares Egeu e de

Mármara. Os gregos, insatisfeitos, em ação pelo exército, destrói Tróia, tomando o controle sobre o comércio marítimo na região, o que poderia ter acontecido entre 1250 e 1240 a.C. Os que negam a autoria comum de ambas as obras argumentam que a primeira foi composta em tom mais heróico e tradicional e que a segunda tende mais para a ironia e a imaginação. Acrescentam ainda o emprego de um léxico posterior na Odisséia. Já a tese que defende a autoria única baseia-se na afirmação de Aristóteles, de que a Ilíada seria uma obra da juventude de Homero, enquanto a Odisséia teria sido composta na velhice, quando o poeta decidiu redigir a segunda obra como complemento da primeira e ampliação de sua perspectiva. Ambas as obras têm características comuns absolutamente inovadoras, como a visão antropomórfica dos deuses, a confrontação entre os ideais heróicos e as fraquezas humanas e o desejo de oferecer um reflexo integrador dos ideais e valores da emergente sociedade helênica. Esses argumentos, somados à mestria técnica evidente nos dois poemas, favorecem a conclusão de que o autor da Ilíada, esse grande poeta jônico a quem os gregos chamavam Homero, foi também o autor, ou principal inspirador da Odisséia. Ao mesmo tempo em que refletiram luminosamente a antiguidade mais remota da civilização grega, os poemas homéricos projetaram-na adiante com tamanha originalidade e riqueza que ela se faria presente nas mais diversas manifestações da arte, da literatura e da civilização do Ocidente. Inúmeros poetas partiram de sua influência, inúmeros artistas se impregnaram de sua fortuna criativa, seu colorido e suas situações, que se tornaram símbolo e síntese de toda a aventura humana na Terra, a ponto de o nome de um poeta cuja existência mesma não se pode provar passar a confundir-se com a própria poesia. Quanto à morte de Homero, a versão mais aceita é de que teria ocorrido em uma das ilhas Cíclades. Como disse Platão, Homero foi, no mais pleno sentido, o educador da Grécia. Além disso, quase toda a literatura ocidental foi diretamente influenciada pelos poemas homéricos. A Eneida de Virgílio (30/19 a.C.), os Lusíadas de Camões (1572) e o Ulisses de Joyce (1921) são apenas alguns dos exemplos...

Ilíada A Ilíada é a mais antiga e mais extensa das obras atribuídas a Homero; tem 15.693 versos hexâmetros e, desde o Período Helenístico, costuma ser dividida em 24 livros ou cantos de extensão variável. A divisão em cantos foi feita pelos filólogos de Alexandria.O nome do poema deriva de Ílion, nome alternativo da lendária cidade de Tróia, assim chamada em homenagem a Ilos, um dos ancestrais dos reis troianos. A cólera de Aquiles, como se anuncia desde o primeiro verso, é o motivo central da Ilíada, epopéia do poeta grego Homero, que inicia a literatura narrativa ocidental. Relato de um dos episódios da guerra de Tróia, travada entre gregos e troianos, a ação da Ilíada se situa no nono ano depois do começo da guerra, a qual duraria um ano mais, e abarca no conjunto cerca de 51 dias. O título deriva de Ílion, nome grego de Tróia. A Ilíada narra um drama humano, o do herói Aquiles, filho da deusa Tétis e do mortal Peleu, rei de Ftia, na Tessália, em torno do fim da guerra dos gregos contra Tróia. Segundo a lenda, a guerra foi motivada pelo rapto de Helena, esposa do rei de Esparta, Menelau, por Páris, filho do rei Príamo, de Tróia. Agamenon, chefe dos exércitos gregos, arrebatara a Aquiles, o mais valoroso dos guerreiros gregos, sua cativa Briseide. Em protesto, Aquiles retirou-se para o acampamento com seus guerreiros, e recusou-se a entrar em combate. É nesse momento que tem início a Ilíada, com o verso “Canto, ó deusa, a cólera de Aquiles”. Para apaziguar Aquiles, Agamenon envia-lhe mensageiros, com o pedido de que entre na luta. Aquiles recusa-se e Agamenon com seus homens entram no combate. Os troianos tomam de assalto as muralhas gregas e chegam até os navios. Aquiles concorda em emprestar a armadura a seu amigo Pátroclo, que repele os troianos mas é morto por Heitor. Cheio de dor pela morte do amigo, Aquiles esquece a divergência com os gregos e investe contra os troianos, vestido com uma armadura feita por Hefesto, deus das forjas. Consegue fazer recuar para dentro dos muros da cidade todos os troianos, menos Heitor, que o enfrenta, mas aterrorizado pela fúria de Aquiles, tenta fugir. Aquiles o persegue e finalmente atravessa-lhe com a lança a garganta, única parte descoberta de seu corpo. Agonizante, Heitor pede-lhe que não entregue seu cadáver aos cães e às aves de rapina, mas Aquiles nega piedade, e depois de atravessar sua garganta mais uma vez com a lança, ata-o pelos pés a seu carro e arrasta o cadáver em volta do túmulo de Pátroclo. Somente com a intervenção de Zeus, Aquiles aceita devolver o cadáver a Príamo, rei de Tróia e pai de Heitor. O poema termina com os funerais do herói troiano. Alguns dos personagens da Ilíada, em particular Aquiles, encarnam o ideal heróico grego: a busca da honra ao preço do sacrifício, se necessário; o valor altruísta; a força descomunal mas não monstruosa; o patriotismo de Heitor; a fiel amizade de Pátroclo; a compaixão de Aquiles por Príamo, que o levou a restituir o cadáver de seu filho Heitor. Nesse sentido, os heróis constituem um modelo, mas o poema mostra também suas fraquezas - paixões, egoísmo, orgulho, ódio desmedido. Toda a mitologia helênica, todo o Olimpo grego, com seus deuses, semideuses e deidades auxiliares, estão maravilhosamente descritos. Os deuses, que mostram vícios e virtudes humanas, intervêm constantemente no desenvolvimento da ação, alguns em favor dos aqueus, outros em apoio aos troianos. Zeus, o deus supremo do Olimpo, imparcial, intervém apenas quando o herói ultrapassa os limites, ao proporcionar o tenebroso espetáculo de passear à volta de Tróia arrastando o cadáver mutilado de Heitor. O poema encerra grande volume de dados e pormenores geográficos, históricos, folclóricos e filosóficos, e descreve com perfeição os modelos de conduta e os valores morais da sociedade do tempo em que foi escrita a obra. Uma questão muito discutida é o fundo histórico do ciclo da guerra de Tróia. Possivelmente, sua origem remonta a reminiscências da luta, travada antes da invasão dória, no século XII a.C., entre povos de cultura micênica, como os aqueus, e um estado da Anatólia, o

de Tróia. É historicamente comprovada a existência de estabelecimentos micênicos na Anatólia, sem que se conheçam as causas possíveis da guerra. O mundo helênico a que se refere a Ilíada não parece circunscrever-se ao de uma época cronológica determinada. É muito provável que as lendas foram incorporando elementos de diferentes etapas da civilização, no curso de sua transmissão oral e até textual. Aponta-se, por exemplo, a descrição de armamentos e técnicas militares, e até rituais, correspondentes a diferentes períodos históricos, desde o micênico a aproximadamente meados do século VIII a.C. Salvo alguns prováveis acréscimos atenienses, nenhum dado ultrapassa esse período, o que reforça a tese de que o poema foi redigido nesse último período. A língua e o estilo homéricos foram em grande medida herdados da tradição épica. Por esse motivo, a língua, basicamente o dialeto jônico, com numerosos elementos eólios, é um tanto artificial e arcaizante, e não corresponde a nenhuma modalidade falada normalmente. A métrica empregada é o hexâmetro, verso tradicional na épica grega. A Ilíada é antes de tudo poesia, isto é, uma linguagem diferente da linguagem do dia a dia. Em primeiro lugar ela era cantada. A sua música, que no entanto se perdeu, sem dúvida auxiliava na memorização desse longo texto. Em segundo lugar, ela é em versos. Não no sentido usual que esse termo tem hoje em dia, de empregar a rima, mas na poesia grega os versos consistiam em um mesmo ritmo geral, que era o ritmo da própria música. Para compor obedecendo este padrão, o poeta era obrigado a alterar a expressão natural, dando um efeito de artificialismo à expressão. E o estilo, por se tratar de tema sério, era elevado e solene. Devido as características da língua grega, é impossível uma tradução da obra que evidencie todas as suas qualidades formais. É como se víssemos uma tapeçaria pelo avesso, apenas as suas linhas gerais poderiam ser observadas. Diante de tantas dificuldades a maioria dos tradutores brasileiros optou por uma tradução em prosa, traduzindo apenas o conteúdo sem se preocupar muito com a forma. Poucos aceitaram o desafio de traduzir Homero em versos. Se no século passado ficou famosa a tradução em versos de Homero feita por Odorico Mendes, neste século é o trabalho de Carlos Alberto Nunes que se destaca. Este tradutor traduziu os dois poemas homéricos, a Ilíada e a Odisséia, em dois formatos, tanto em prosa como em verso. A tradução em prosa é, sem dúvida, de mais fácil leitura para o leitor comum, mas a tradução em verso permite, uma vez ultrapassados os obstáculos iniciais, que nos aproximemos em maior grau de algumas das características formais da poesia homérica. Eis uma pequena lista com algumas das passagens mais notáveis: O ‘Catálogo das Naus’ (II) A ‘Observação do Alto da Muralha’ (III) O duelo entre Menelaus e Páris (III) A revista das tropas gregas (IV) As proezas de Diomedes (IV-V) O encontro de Diomedes e Glaucos (VI) O adeus de Héctor e Andrômaca (VI) A ‘Dolonéia’ (X) O ‘Engano de Zeus’ (XIV) A nova armadura de Aquiles (XVIII) A luta entre Aquiles e o rio (XXI) Os jogos fúnebres em honra de Pátroclos (XXIII)

Virgílio (70 - 19 a.c.) Considerado o maior poeta latino, era natural da região de Mântua - nasceu em Andes - e filho de uma família de camponeses proprietários. Alcançou pelo casamento uma situação estável, podendo então ouvir, em Cremona, Milão e Roma, as lições de filósofos epicuristas. Amigo de Horácio, como ele protegido por Mecenas, entrou em contato com o imperador, de quem recebeu o incentivo para escrever a Eneida. Virgílio, uma das maiores expressões da intelectualidade latina, viveu na época de Augusto, 44 a 14 a.C., e se tornou célebre por suas obras. Durante essa época houve paz., prosperidade e proteção às artes e letras, bem como um retorno aos valores tradicionais da vida romana e o fortalecimento de suas raízes: a vida campesina, familiar e religiosa. Admirador da cultura helênica, empreende uma viagem à Grécia, berço e viveiro da cultura, sonho que há muito acalentava: o destino concedeu-lhe a realização desse anseio, mas morreu no regresso, junto da Brindisi. O seu túmulo encontra-se em Nápoles. A obra de Virgílio compreende, além de poemas menores, compostos na juventude, as Bucólicas ou Éclogas , em número de dez, em que reflete a influência do gênero pastoril criado por Teócrito. As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor Mecenas, constam de quatro livros, tratando da agricultura. Trata-se de uma obra de implicações políticas indiretas, embora bem definidas: ao fazer a apologia da vida do campo, o poeta serve o ideal político-social da dignificação da classe rural. Reflete a influência de Hesíodo e Lucrécio. Literariamente, as Geórgicas são consideradas a sua obra mais perfeita. E finalmente, a Eneida, obra a qual à elaboração dedicou dez anos de sua vida, e que o poeta considerou inacabada, a ponto de pedir, no leito de morte, que fosse queimada, constitui a epopéia nacional de Roma. Esta, refere-se a lenda do troiano Enéias, que, fugido de Tróia, saqueada e incendiada, acaba por chegar a Itália onde se tornará o antepassado do povo romano. Epopéia erudita, a Eneida tem como objetivo dar aos romanos uma ascendência não grega, formulando a cultura latina como original e não tributária da cultura helênica. O poema consta de doze livros e a sua construção serviu de modelo definitivo às grandes epopéias do renascimento, nomeadamente para Os Lusíadas , de Luís de Camões. “... a Eneida é poema de Roma, da Roma de todos os tempos, da lendária e da histórica. Mas não só de Roma. Virgílio presta culto às virtudes antigas da estirpe, honra as conquistas da civilização de seu tempo, mas antecipa a pureza da fé nos séculos vindouros, une o passado e o porvir com um áureo elo de poesia. Seu poema não é um poema oficial da Roma imperial, mas sobretudo um poema de profunda humanidade. Humanidade que despreza a guerra e que deseja a paz....”

Eneida Dizia uma lenda grega conhecida dos romanos que Enéias teria vindo à Itália. O assunto da “Eneida” não é criação de Virgílio. A tradição, que prende a origem de Roma às lendas mitológicas, parece que foi introduzida na Itália já pelos fins do 9 século antes de Cristo. Poetas como Ênio e Névio conheciam-na, e o tema era do domínio popular. Virgílio a aproveita e nela incorpora a história de Roma, referindoa no discurso de Anquises e na descrição do escudo de Enéias. É a grande epopéia do povo romano composta por Virgílio, que tomou as obras de Homero para modelos da sua. Virgílio utiliza como modelo épico a Odisséia, para os seis primeiros livros da Eneida. Inspira-se também na Ilíada, sobretudo para a composição dos seis últimos cantos. Na Ilíada, Posídon salva o herói da morte e declara seu destino: "... Vamos, furtêmo-lo nós mesmos à morte, a fim de que não se irrite o filho de Cronos, se o matar Aquiles. O seu destino é escapar, para impedir que, por falta de semente, desapareça e pereça a raça de Dárdano, que o filho de Cronos amou mais do que todos os filhos nascidos dele e de mortais. ..." Ilíada, canto XX, v.300 e seg., S.Paulo: Difel, 1961, trad. Octávio Mendes Cajado.

Incorpora episódios colhidos em outras fontes, como o reencontro de Dido e Enéias, que Névio cantara. Mostrou originalidade e talento, além de pesquisa, reflexão e conhecimentos. Seu poema compõe-se de 12 livros. Era intenção do poeta escrever mais 3, só que não pôde fazer por ter sido colhido pela morte. Estilizada no verso heróico ou seja, no hexâmetro, propõe-se a “Eneida” a celebrar a história do Império Romano, e louvar a César, como descendente de Enéias, o herói do poema. Começa por narrar (após célebre proposição) o terrível temporal que se abatera sobre a frota de Enéias, quando em fuga do desastre de Tróia. Enéias é filho de uma deusa, Vênus, e um mortal, Anquises, descendente da casa real de Tróia. Seu destino é sobreviver à destruição de Tróia e fundar uma nova civilização na Itália. Enéias foge de Tróia levando consigo o velho pai, Anquises, os Penates (deuses pátrios), o filho Ascânio (que será Iulo) e a esposa Creusa. Esta não terá êxito em segui-lo.O maior traço de Enéias é a piedade. Como guerreiro, a coragem. Coroam essas qualidades a compaixão e humanidade. Tinha o príncipe reunido muitos guerreiros e com eles embarcado em direção às costas da Itália. Na borrasca, muitas das naus soçobram. A de Enéias e mais seis conseguem aportar num sítio da África, onde os navegantes encontram a próspera região de Cartago. Ali, Enéias conhece a rainha Dido, que lhe pede para contar sua história. o filho de Anquises começa, então, o relato de suas aventuras, que se abrem com os famosos versos: ‘’Infandum, regina, jubes renovare dolorem.” (I,. II, v. 3) (Mandas, Ô rainha, que eu renove uma indizivel dor. )

O amor que Enéias desperta em Dido, constitui a grande passagem lírica do imortal poema. Enéias conta para a rainha a tomada de Tróia, o ardil concebido por Ulisses relata as viagens que empreendera até chegar a Cartago. Dido, acometida de grande paixão, roga a Enéias para não deixá-la. O príncipe, surdo às súplicas, resolve continuar viagem. Dido, não resistindo ao abandono, busca no suicídio alivio para sua desventura. Segue o herói para a Sicília. Cultua a memória de seu pai, visitando os Campos Elísios, lugar no qual os romanos julgavam estar as almas dos mortos. Lá tem um colóquio com o pai, que lhe mostra a raça de varões ilustres, os quais descenderão de Enéias e farão a grandeza do povo latino.

"Outros modelarão, bem o creio, bronzes com vida e sem dureza; extrairão dos mármores seres animados; defenderão melhor as causas; medirão com o compasso o curso dos céus e anunciarão o nascer dos astros. Tu, romano, sê atento a governar os povos com o teu poder - estas serão as tuas artes -, a impor hábitos de paz, a poupar os vencidos e derrubar os orgulhosos." Eneida VI, 847-853. In: Romana, ed. cit., p. 164.

Enfim, Enéias atinge o Lácio É bem acolhido pelo rei latino, que lhe promete a sua filha única, Lavinia, herdeira do trono. Com isso não concorda Turno, rei dos rútulos, povo também de origem latina. Eclode a inevitável guerra. Ferem-se vários combates, e, quando tudo indica a derrota dos troianos. Enéias volta ao campo, munido de um escudo que lhe fizera Vulcano (o mesmo que fizera a armadura de Aquiles), e muda a sorte da luta. Na última batalha, um prélio singular entre os dois chefes se realiza. Enéias é ferido pelos guerreiros adversários, mas Vênus, envolvida numa nuvem escura, pensa-lhe a ferida. o herói se recupera, e volta ao duelo, a espada de Turno se parte, e ele foge, o príncipe teucro o persegue alcança-o e o mata. A “Eneida” é considerada um misto da “Ilíada” e da “Odisséia”. Os seis primeiros livros lembram a “Odisséia”, pois encerram as aventuras e viagens do herói; os seis últimos, nos quais se historiam os combates de Enéias na península itálica lembram os feitos épicos da “Ilíada”. Tal é a observação feita por Sainte-llenve. Vergílio, não tendo tempo de rever sua obra, recomendara sua destruição no que não foi atendido por L. Vario e Tuca, que avaliaram bem a sua importância. Fonte: TAVARES, H. Teoria literária. [s.d.e.]

Eneida - Edições, Traduções e Bibliografia Públio Virgílio Marão. A Eneida. Trad. de Nicolau Firmino. Porto: Livraria Simões Lopes, 1955. Virgílio. Eneida. trad. de Tassilo Orpheu Spalding. S.Paulo:Abril Cultural, 1983. Virgile. L'Éneide. trad. de Maurice Rat. Paris: Garnier, 1947. 2 volumes. L. Laurand et A. Lauras. Manuel des Études Grecques et Latines. Paris: Éditions A et J. Picard et Cie. Tome II. H. Bornecque e D. Mornet . Roma e os Romanos. S.Paulo: E.P.U.-EDUSP, 1976. Augustín Millares Carlo. Historia de la Literatura Latina. México-Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1950. Ettore Bignone. Historia de La Literatura Latina. Buenos Aires: Editorial Losada, 1952. Trad. de Gregorio Halperín. Original: Il Libro della Letteratura Latina. Ettore Paratore. História da Literatura Latina. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987. Trad. de Manuel Losa, S.J. Original: Storia della Letteratura Latina. Maria Helena da Rocha Pereira. Estudos de História da Cultura Clássica. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, II vol. Cultura Romana. Ludwig Bieler. Historia de la Literatura Romana. Madrid: Editorial Gredos, 1968.Trad. de M. Sanchez Gil. Original: Geschichte der Roemischen Literatur. Zélia de Almeida Cardoso. A Literatura Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989.

Eneida - síntese Canto I – Partindo da Sicília, os navios de Enéias são atingidos por violenta tempestade provocada por Éolo a pedido de Juno; (excertos 5 e 6); Netuno acalma os mares (excerto 6); os navios são desviados para as praias do norte da África (excerto 8). Vênus intercede pelos troianos (excerto 9); a chegada a Cartago (excerto 10); Dido acolhe os náufragos e lhes oferece um banquete durante o qual se apaixona por Enéias (fig. 4). Canto II – Por solicitação de Dido, Enéias relata a história da guerra de Tróia, enfatizando os episódios que lhe determinaram o fim: o aprisionamento do grego Sinão, instruído por Ulisses para enganar os troianos, a introdução do cavalo de madeira na cidade, a saída dos soldados escondidos na calada da noite, a batalha noturna, o incêndio, o ataque ao palácio do rei, a vitória dos gregos, a fuga de Tróia, com Anquises e Ascânio (fig. 5), o desaparecimento de Creúsa (excerto 11). Canto III – Continuando a narração, Enéias relata à rainha as peripécias e prodígios que marcaram a viagem dos troianos: as escalas na Trácia (excerto 12) e em Creta, a partida para a Itália, o encontro com as harpias, a chegada ao Epiro e à Sicília e a morte de Anquises. Canto IV –Dido se apaixona por Enéias (excertos 13 e 14), convida os troianos para participarem de uma caçada (excerto 15) e se vale de um encontro casual, durante uma tempestade, para entregar-se ao chefe troiano (excertos 16 e 17). Censurado por Júpiter, que lhe envia Mercúrio como emissário (excerto 18), Enéias se dispõe a abandonar Cartago, disposto a cumprir a missão para a qual fora preservado. Dido, desesperada, o amaldiçoa (excerto 19) e se suicida (fig. 6). Canto V – Chegando novamente à Sicília, Enéias realiza jogos fúnebres em homenagem ao primeiro aniversário da morte de Anquises. Canto VI – Fazendo uma escala em Cumas, Enéias consulta uma sacerdotisa de Apolo, toma ciência do que o espera, no futuro, e obtém permissão para fazer uma visita ao reino dos mortos (fig. 7); encontra-se com Anquises que lhe dá preciosas informações e fala do futuro de Roma (excerto 20). Canto VII – Enéias chega à região do Tibre e o rei Latino se dirige ao oráculo de Fauno (excerto 21); são enviados embaixadores troianos ao rei, que oferece a Enéias a mão de sua filha, Lavínia. Amata, a rainha, se enfurece com a aliança, o mesmo ocorrendo com Turno, chefe rútulo a quem a moça fora prometida em casamento. É declarada a guerra entre latinos e troianos. Turno obtém aliados, entre os quais os volscos, chefiados por Camila (excerto 22) Canto VIII – Enéias procura fazer aliança com o rei Evandro enquanto Vênus solicita a Vulcano armas para o troiano. Canto IX – Eclode a guerra. Turno ataca os acampamentos de Enéias e dois jovens troianos, Niso e Euríalo, têm oportunidade de mostrar seu valor, embora encontrando a morte. A mãe de Euríalo se lamenta (excerto 23). A guerra prossegue. Canto X – Júpiter procura conciliar Juno e Vênus, a fim de que a guerra chegue ao fim (fig. 8). A violência, entretanto, continua. Há perdas importantes de ambos os lados. Morre Palante, o jovem filho do rei Evandro, aliado dos troianos. Canto XI – Faz-se uma trégua para que se enterrem os mortos; realiza-se o funeral de Palante (excerto 24); cogita-se numa proposta de paz; os exércitos inimigos, todavia, se defrontam. A carnificina é terrível e morre Camila, rainha dos volscos, aliada de Turno. Canto XII – Vendo o exército desanimado, Turno se dispõe a enfrentar Enéias num duelo; firmam-se as condições, mas o tratado é violado; uma seta fere Enéias e Vênus o cura. O exército troiano chega até os muros da cidade e Amata se suicida. Trava-se o combate singular entre Enéias e Turno. O chefe troiano vence o inimigo e o sacrifica (excerto 25 e fig. 9). Prof.ª Dr.ª Zélia de Almeida Cardoso (FFLCHUSP - DLCV)

A Idade Média e as literaturas nacionais A descoberta de novos continentes, a visão antropocêntrica do mundo, a invenção da bússola e da imprensa, a afirmação dos estados nacionais e a difusão de variadas formas artísticas inspiradas no mundo Greco-Latino definiram a configuração do Renascimento, um brilhante período da cultura européia que se seguiu à Idade Média. Como Renascimento designa-se o poderoso movimento artístico e literário que surgiu na Itália dos séculos XV e XVI, irradiando-se depois para a Europa, promovendo em toda parte um pronunciado florescimento da arquitetura, escultura, pintura e das artes decorativas, da literatura e da música e um novo enfoque da política. Embora hoje também se fale, metaforicamente, em renascenças na história da civilização Egípcia antiga ou da Chinesa, trata-se na verdade de um fenômeno específico da civilização européia moderna que, malgrado o intervalo da Idade Média, nunca esqueceu suas bases na civilização Greco-Romana da antiguidade, da civilização “Clássica”. Considerado a princípio por eruditos e historiadores como um ressurgimento da cultura clássica depois de um amplo declínio medieval, mais tarde o termo adquiriu também uma série de conotações políticas, Econômicas e até Religiosas. Embora, de modo geral, o movimento tenha sido considerado como de total oposição ao período medieval, alguns historiadores tendem a ver o Renascimento mais como um processo evolutivo do que uma ruptura profunda, pois diversas manifestações renascentistas foram identificadas já no início do século XII. Entre esses prenúncios destacaram-se a redução da influência da Igreja Católica e do Sacro Império Romano-Germânico, o surgimento das cidades-estados, o desenvolvimento das línguas nacionais e o início do desmoronamento das estruturas feudais. Tendo descoberto o mundo, o Renascimento também quis dominá-lo pela inteligência. Não dispondo ainda das ciências naturais e matemáticas, de Galileu e Descartes, pretendeu realizar sua ambição pela magia, pelos estudos cabalísticos e pela Astrologia, em que acreditavam mais que na religião cristã. No entanto, pelas façanhas desse individualismo, o Renascimento pagou um alto preço: a decadência moral. O espírito renascentista expressou-se desde cedo no Humanismo, movimento intelectual que teve início e alcançou seu apogeu na Itália. Os humanistas buscaram respostas para as questões do momento e para isso recorreram tanto ao Cristianismo como à Filosofia Greco-Latina. Criaram assim um sistema intelectual caracterizado pela supremacia do homem sobre a natureza e pela rejeição das estruturas mentais impostas pela religião medieval. A intenção do humanismo era desenvolver no homem o espírito crítico e a plena confiança em suas possibilidades, condições que lhe haviam sido proibidas durante a época medieval. O anseio pelo conhecimento e o espírito científico do homem renascentista provocaram uma verdadeira revolução. Difundiram-se e aperfeiçoaram-se inventos orientais como a pólvora, que transformou a estratégia militar, e a bússola, que permitiu os grandes descobrimentos geográficos. Talvez o fato mais marcante tenha sido a invenção da Imprensa, atribuída ao alemão Johannes Gutenberg. O desenvolvimento da cartografia, os avanços na arte da navegação, o conhecimento da bússola, o desaparecimento das rotas comerciais das

caravanas para o Oriente, devido à presença dos turcos otomanos, e o espírito dinâmico e curioso do homem moderno foram fatores que se conjugaram para tornar possíveis os grandes descobrimentos marítimos dos séculos XV e XVI, nos quais espanhóis e portugueses tiveram papel preponderante. As explorações portuguesas, incentivadas pelo Infante D. Henrique o Navegador, foram protagonizadas por Bartolomeu Dias, que chegou até o Cabo das Tormentas (posteriormente cabo da Boa Esperança), no sul da África; Vasco da Gama, que alcançou a costa da Índia; e , que no ano de 1500 descobriu o Brasil. Os espanhóis, por sua vez, exploraram mais o Atlântico, pois pretendiam chegar às Índias pelo oeste, convencidos da esfericidade da Terra. O pioneiro dessas explorações foi Cristóvão Colombo, que realizou quatro viagens às terras que acreditava serem a Índia e que constituíam um novo continente. O dia 12 de outubro de 1492, quando a primeira expedição de Colombo desembarcou nas novas terras, é considerado a data do descobrimento da América. A partir de então e durante todo o século XVI os espanhóis, seguidos dos franceses, britânicos e portugueses, lançaram-se ao descobrimento de novas terras: Hernán Cortés conquistou o império asteca, Vasco Núñez de Balboa chegou até o mar do Sul (posteriormente oceano Pacífico), Francisco Pizarro dominou o império inca, Álvar Núñez Cabeza de Vaca percorreu o sul do que seriam os Estados Unidos e Juan Sebastián Elcano conseguiu completar a primeira circunavegação da Terra, iniciada por Fernão de Magalhães.

Dante Alighieri (1265-1321) Dante Alighieri nasceu em Florença em 1265 de uma família da baixa nobreza. Sua mãe morreu quando era ainda criança e seu pai, quando tinha dezoito anos. Pouco se sabe sobre a vida de Dante e a maior parte das informações sobre sua educação, sua família e suas opiniões são geralmente meras suposições. As especulações sobre a sua vida deram origem à vários mitos que foram propagados por seus primeiros biógrafos, dificultando o trabalho de separar o fato da ficção. Pode-se encontrar muita informação em suas obras, como na Vida Nova (La Vita Nuova) e na Divina Comédia (Commedia). Na Vida Nova Dante fala de seu amor platônico por Beatriz (provavelmente Beatrice Portinari), que encontrara pela primeira vez quando ambos tinham 9 anos e que só voltaria a ver 9 anos mais tarde, em 1283. Nos tempos de Dante, o casamento era motivado principalmente por alianças políticas entre famílias. Desde os 12 anos, Dante já sabia que deveria se casar com uma moça da família Donati. A própria Beatriz, casou-se em 1287 com o banqueiro Simone dei Bardi e isto, aparentemente, não mudou a forma como Dante encarava o seu amor por ela. Provavelmente em 1285, Dante casou-se com Gemma Donati com quem teve pelo menos três filhos. Uma filha de Dante tornou-se freira e assumiu o nome de Beatrice. Em 1290, Beatriz morreu repentinamente deixando Dante inconsolável. Esse acontecimento teria provocado uma mudança radical na sua vida o levando a iniciar estudos intensivos das obras filosóficas de Aristóteles e a dedicar-se à arte poética. Dante foi fortemente influenciado pelos trabalhos de retórica e filosofia de Brunetto Latini - um famoso poeta que escrevia em italiano (e não em latim, como era comum entre os nobres), tendo também se beneficiado da amizade com o poeta Guido Cavalcanti - ambos mencionados na sua obra. Pouco se sabe sobre sua educação. Segundo alguns biógrafos, é possível que tenha estudado na universidade de Bologna, onde provavelmente esteve em 1285. A Itália no tempo de Dante estava dividida entre o poder do papa e o poder do Sagrado Império Romano. O norte era predominantemente alinhado com o imperador (que podia ser alemão ou italiano) e o centro, com o papa (veja mapa). A Itália, porém, não era um império coeso. Não havia um único centro de poder. Havia vários, espalhados pelas cidades, que funcionavam como estados autônomos e seguiam leis e costumes próprios. Nas cidades era comum haver disputas de poder entre grupos opositores, o que freqüentemente levava a sangrentas guerras civis. Florença era, na época, uma das mais importantes cidades da Europa, igual em tamanho e importância a Paris, com uma população de mais de 100 mil habitantes e interesses financeiros e comerciais que incluíam todo o continente. Apolítica nas cidades representava os interesses de famílias. A afiliação era hereditária. A família de Dante pertencia a uma facção política conhecida como os guelfos (Guelfi) representados pela baixa nobreza e pelo clero - que fazia oposição a um partido conhecido como os guibelinos (Ghibellini) - representantes da alta nobreza e do poder imperial. Os nomes dos dois grupos eram originários de partidos alemães, porém os ideais políticos eram um mero pretexto para abrigar famílias rivais. Florença se dividiu em guelfos e guibelinos quando um jovem da família Buondelmonti não cumpriu uma promessa de casamento com uma moça da família Amadei e foi assassinado. As famílias da cidade tomaram partido por um lado ou por outro e Florença se dividiu em guelfos e guibelinos. Dante nasceu em uma Florença governada pelos guibelinos, que haviam tomado a cidade dos guelfos na sangrenta batalha conhecida como Montaperti (monte da morte), em 1260. Em 1289, Dante lutou com o

exército guelfo de Florença na batalha de Campaldino, onde os florentinos venceram os exércitos guibelinos de Pisa e Arezzo, e recuperaram o poder sobre a cidade. Na época de Dante, o governo da cidade era exercido por representantes eleitos de corporações de operários, artesãos, profissionais, etc. chamadas de guildas. Dante se inscreveu na guilda dos médicos e farmacêuticos e disputou as eleições em Florença, tendo sido eleito em 1300 como um dos seis priores (presidentes) do Conselho da Cidade. Amaior parte do poder em Florença estava então nas mãos dos guelfos - opositores do poder imperial. Mas o partido em pouco tempo se dividiu em duas facções. A causa foi novamente uma rixa entre famílias, desta vez, importada da cidade de Pistóia. Os Cancellieri era uma grande família de Pistóia, descendentes de um mesmo pai que tivera, durante sua vida, duas esposas. A família Cancellieri se dividiu quando um membro desajustado da famíliaassassinouotioecortouamãodoprimo.Osdescendentes da primeira esposa do Cancellieri, que se chamava Bianca, decidiramseapelidardeBianchi.Osrivais,quedefendiamojovem assassino,seapelidaramdeNeri(negros)emespíritodeoposição. A briga tomou conta de Pistóia e a cidade acabou sofrendo intervenção de Florença, que levou presos os líderes dos grupos rivais.MasasfamíliasdeFlorençanãodemoraramatomarpartido e, por causa de uma briga de rua, a divisão se espalhou pela cidade, dividindo os guelfos em negros e brancos. Depois de criados, os partidos assumiram posições políticas. Os guelfos brancos, moderados, respeitavam o papado mas se opunham à sua interferência na política da cidade. Já os guelfos negros, mais radicais, defendiam o apoio do papa contra as ambições do imperador, que era apoiado pelos guibelinos. Os priores de Florença (entre eles Dante) viviam em constante atrito com a igreja de Roma que, sob o governo do papa Bonifácio VIII, pretendia colocar toda a Itália sob a ditadura da igreja. Em um dos encontros com o papa, onde os priores foram reclamar da interferência da igreja sobre o governo de Florença, Bonifácio respondeu ameaçando excomungá-los. A briga entre os Neri e Bianchi tornou-se cada vez mais intensa durante o mandato de Dante até que ele teve que ordenar o exílio dos líderes de ambos os lados para preservar a paz na cidade. Dante foi extremamente imparcial, incluindo, entre os exilados, um dos seus melhores amigos (Guido Cavalcanti) e um parente de sua esposa (da família Donati). No meio da confusão entre os guelfos de Florença, o papa decidiu enviar Carlos de Valois (irmão do rei Felipe da França) como pacificador para acabar com a briga entre as facções. A suposta ajuda, porém, revelou ser um golpe dos Neri para tomar o poder. Eles ocuparam o governo de Florença e condenaram vários Bianchi ao exílio e à morte. Dante foi culpado de várias acusações, entre elas corrupção, improbidade administrativa e oposição ao papa. Foi banido da cidade por dois anos e condenado a pagar uma alta multa. Caso não pagasse, seria condenado à morte se algum dia retornasse a Florença. No exílio, Dante se aproximou mais da causa dos guibelinos (o império), à medida em que a tirania do papa aumentava. Ele passou o seu exílio em Forlì, Verona, Arezzo, Veneza, Lucca, Pádua (e também provavelmente em Paris e Bologna). Em 1315 voltou a Verona e dois anos depois fixou-se em Ravenna. Suas esperanças de voltar a Florença retornaram depois que o sucessor de Bonifácio VIII chamou à Itália o imperador Henrique VII. O objetivo de Henrique VII era reunir a Itália sob seu reinado. Porém a traição do papa, que ainda alimentava a idéia de ter um império próprio, seguida por uma nova vitória dos Neri e a morte de Henrique VII três anos depois enterraram de vez as suas esperanças. Na obra La Vita Nuova, seu primeiro trabalho literário de importância, iniciado pouco depois da morte de Beatriz, Dante narra a história do seu amor por Beatriz na forma de sonetos e canções complementadas por comentários em prosa. Durante o seu exílio Dante escreveu duas obras importantes em latim: De Vulgari Eloquentia, onde defende a língua italiana, e Convivio, incompleto, onde pretendia resumir todo o conhecimento da época em 15 livros. Apenas os quatro primeiros foram concluídos. Escreveu também um tratado: De Monarchia, onde defendia a total separação entre a Igreja e o Estado. A Commedia consumiu 14 anos e durou até a sua morte, em 1321, ocorrida pouco após a conclusão.

Divina Comédia o imortal cantor de Beatriz estilizou sua epopéia numa nova espécie de gênero literário, por ele criada: o terceto. A obra é uma trilogia o inferno, o Purgatório e o Paraíso. o poeta diz que, tendo se perdido numa floresta sombria, encontra Virgílio, a quem pede auxílio. “Nel mezzo del camin di nostra vita Mi ritrovai per una selva oscura, Che la diritta via era smarrita.” (I, 1-2-3)

Virgílio o conduz, então, ao Inferno, em cuja a porta se lia a terrível inscrição: “Laseiati ogni speranza, voi ch’entrate!”

No primeiro ciclo, denominado Limbo, estavam as almas dos bons e justos, mas que viveram antes do Evangelho e, que, não tendo recebido o batismo, não puderam ingressar no Paraíso. Lá estavam, entre outros, Sócrates, Platão, Homero, César e muitos outros filósofos reis, poetas e artistas, enfim, todos os ilustres pagãos. No segundo ciclo ou círculo, jaziam aqueles que foram condenados pelos pecados da carne, pela luxúria ou concupiscência. Pertence a esse ciclo a desditosa história da linda Francesca da Rimini, que narra ao poeta os seus pecados de amor. o episódio está no canto V, no qual a infortunada paixão, que ligou Francesca ao seu cunhado Paolo Malatesta, é descrita com notável e sentida urdidura trágica pela pena do grande vate italiano. o amor de Francesca tão grande era, que nem ali pudera se acabar: “Amor, che a nullo amate amar perdona, Mi prese del costui piacer si forte, Che, come vedi, ancor non m’abbandona.” (V, 103)

E diz ao poeta a desventurada: “Ed ella a me: “Nessun maggior dolore Che ricordarsi del tempo felice Nella miseria; é ciò sa il tuo dottore. “ (V, 121). Ainda nesse ciclo estão as almas de Semiramis (rainha lendária da Assíria, esposa de Nino), Cleópatra, Helena, Aquiles, Páris, Tristão e Dido. No 3 ciclo vê-se Cérbero, o cão de três cabeças, dilacerando com os dentes as vítimas da gula. No quarto ciclo estão os condenados pelo mau uso da riqueza, sejam os perdulários, sejam os usurários. No 5 ciclo, revolvem-se em lama imunda, enquanto se atacam furiosamente os que foram punidos pela ira. Os hereges, encarcerados em sepulturas de fogo, são os moradores da sexta região. Na sétima, encontram-se os tiranos e assassinos, submersos num rio de sangue; os suicidas transformados em árvores, entre as quais andam horripilantes harpias: os que violaram Deus e a Arte; enfim, nele estão os violentos. No oitavo ciclo, está a Fraude, de rosto humano e corpo de monstro punindo os aduladores, os hipócritas, os farsantes. No nono vêse a morada dos traidores, tendo ao fundo Lúcifer, que ostenta três rostos: o da impotência o do ódio e o da ignorância. As suas bocas despedaçam três monstros humanos: Judas Iscariotes, Bruto e Cássio (estes dois últimos assassinos de César) Demandam a seguir o Purgatório. São recebidos por Catão e Virgílio, obedecendo às suas ordens, lava o rosto do poeta com orvalho, para limpar-lhe a fumaça do inferno. No primeiro socalco do Purgatório, os espíritos proclamam a vaidade das glórias terrenas e vozes dulcíssimas entoam: “Bem-aventurados os pobres de espírito” Eram as almas pecadoras por culpa da soberba No Purgatório todas as almas estão exaustas devido ao peso de enormes pedras. No segundo socalco achamse os cegos, pois tinham as pálpebras cosidas, - eram os invejosos; no terceiro, os que pecaram pela cólera; no quarto, os que haviam caído por indiferença e preguiça; no quinto, os avarentos; no sexto, os gulosos, que sofriam fome e sede, aspirando a fragrância de frutos

apetitosos; no sétimo e último, os incontinentes, que enalteciam a castidade. Virgílio conduz Dante até uma muralha de fogo, que nem sequer o chamuscou. No alto fica o Paraíso. Ali o Mantuano se despede, e Beatriz toma-lhe lugar como guia. No Céu, diz ter sido o poeta testemunha de maravilhas que não pode a língua humana descrever. Após invocar Apolo, o poeta descreve como se ergueu do Paraíso terrestre a esfera de fogo, Segundo as teorias de Ptolomeu, a terra é fixa, e em volta dela, giram os céus da Lua (primeiro céu), Mercúrio ( (2), Vênus (3), Sol (4), Marte (5), Júpiter (6) e Saturno (7). Ainda há o oitavo céu, que encerra dentro de si, todos os demais, pois em seu bojo havia a esfera das estrelas fixas. No primeiro céu, Dante sustenta interessante discussão com Beatriz a respeito das manchas da lua. No segundo, encontra o imperador Justiniano, que lhe explica ser Mercúrio a morada das almas boas, cujo amor a Deus estava, contudo, misturado com os afetos terrenos. No terceiro, depara-se com a famoso Carlos Martel, rei da Hungria. e também com Folco que tivera a coragem de censurar papas e cardeais. No quarto está Santo Tomás de Aquino, que faz o panegírico de Sao Francisco de Assis. Conversam ali também com São Boaventura e Salomão. No quinto céu ou Marte, entretém Dante colóquio com um antepassado seu, que lhe prediz o futuro desterro; no sexto, em Júpiter, depara-se a morada dos que souberam administrar justiça com retidão no sétimo, em Saturno, estão as almas que passaram a existência em piedosa contemplação S. Bento dirigiu-se ao poeta, lamentando a vida dissipada daqueles monges, que usavam seu nome. Ao erguer os olhos, contemplou o poeta esplendores inefáveis, ouvindo a harmoniosa melodia do ‘Regina Coeii”. S. Pedro, S. Tiago e S. João interrogaram-no sobre questões de fé, no que se saiu bem. Finalmente, foi alçado até o oitavo céu, no qual só habita a Divina Essência. Graças à intervenção de S. Bernardo, o poeta pode contemplar a Deus em todo seu esplendor, visão de tal doçura que as palavras humanas não na podem traduzir: ‘’Oh, quanto è corto il dire e come floco Al mio concetto! E questo, a quel ch’io vidi, tanto, che non basta a dicer “poco”. “ Paraíso, C. 33, 121)

A “Divina Comédia”, na sua grande extensão de l00 cantos (34 para o Inferno; 33 para o Purgatório e 33 para o Paraíso), é a grande epopéia medieval. É um repositório de conhecimentos enciclopédicos, em relação à época. A física, a filosofia, a teologia, a geografia, a história, a política, a religião, — todas repontam na narrativa de Dante. Em verdade, constitui uma grandiosa súmula da arte e saber medievais, na qual Virgílio simboliza a razão e a filosofia, e Beatriz, a teologia e a fé.

Divina Comédia - síntese Inferno Quando Dante se encontra no meio da vida, ele se vê perdido em uma floresta escura, e sua vida havia deixado de seguir o caminho certo. Ao tentar escapar da selva, ele encontra uma montanha que pode ser a sua salvação, mas é logo impedido de subir por três feras: um leopardo, um leão e uma loba. Prestes a desistir e voltar para a selva, Dante é surpreendido pelo espírito de Virgílio poeta da antigüidade que ele admira - disposto a guiá-lo por um caminho alternativo. Virgílio foi chamado por Beatriz, paixão da infância de Dante, que o viu em apuros e decidiu ajudá-lo. Ela desceu do céu e foi buscar Virgílio no Limbo. O caminho proposto por Virgílio consiste em fazer uma viagem pelo centro da terra. Iniciando nos portais do inferno, atravessariam o mundo subterrâneo até chegar aos pés do monte do purgatório. Dali, Virgílio guiaria Dante até as portas do céu. Dante então decide seguir Virgílio que o guia e protege por toda a longa jornada através dos nove círculos do inferno, mostrandolhe onde são expurgados os diferentes pecados, o sofrimento dos condenados, os rios infernais, suas cidades, monstros e demônios, até chegar ao centro da terra, onde vive Lúcifer. Passando por Lúcifer, conseguem escapar do inferno por um caminho subterrâneo que leva ao outro lado da terra, e assim voltar a ver o céu e as estrelas. Purgatório Saindo do inferno, Dante e Virgílio se vêem diante de uma altíssima montanha: o Purgatório. A montanha é tão alta que ultrapassa a esfera do ar e penetra na esfera do fogo chegando a alcançar o céu. Na base da montanha encontram o ante-purgatório, onde aqueles que se arrependeram tardiamente dos seus pecados aguardam a oportunidade para entrar no purgatório propriamente dito. Depois de passar pelos dois níveis do ante-purgatório, os poetas atravessam um portal e iniciam sua nova odisséia, desta vez subindo cada vez mais. Passam por sete terraços, cada um mais alto que o outro, onde são expurgados cada um dos sete pecados capitais. No último círculo do purgatório, Dante se despede de Virgílio e segue acompanhado por um anjo que o leva através de um fogo que separa o purgatório do paraíso terrestre. Finalmente, às margens do rio Letes, Dante encontra Beatriz e se purifica, banhando-se nas águas do rio para que possa prosseguir viagem e subir às estrelas.

Paraíso O Paraíso de Dante é dividido em duas partes: uma material e uma espiritual. A parte material segue o modelo cosmológico de Ptolomeu e consiste de nove círculos formados pelos sete planetas (Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno), o céu das estrelas fixas e o Primum Mobile - o céu cristalino e último círculo da matéria. Ainda no paraíso terrestre, Beatriz olha fixamente para o sol e Dante a acompanha até que ambos começam a elevar-se, “transumanando”. Guiado por Beatriz, Dante passa pelos vários céus do paraíso e encontra personagens como São Tomás de Aquino e o imperador Justiniano. Chegando ao céu de estrelas fixas, ele é interrogado pelos santos sobre suas posições filosóficas e religiosas. Depois do interrogatório, recebe permissão para prosseguir. No céu cristalino Dante adquire uma nova capacidade visual, e passa a ter visão para compreender o mundo espiritual, onde ele encontra nove círculos angélicos, concêntricos, que giram em volta de Deus. Lá, ao receber a visão da Rosa Mística, se separa de Beatriz e tem a oportunidade de sentir o amor divino que emana diretamente de Deus, “o amor que move o Sol e as outras e s t r e l a s ” . o do Paraíso. Cinco anos antes de sua morte, foi convidado pelo governo de Florença a retornar à cidade. Mas os termos impostos eram humilhantes, semelhantes àqueles reservados à criminosos perdoados e Dante rejeitou o convite, respondendo que só retornaria se recebesse a honra e dignidade que merecia. Continuou em Ravenna, onde morreu e foi sepultado com honras. Helder da Rocha Fontes: [Encarta 97], [Larousse 98], [Mauro 98], [Musa 95], [Cambridge].

Miguel de Cervantes (1547 - 1616) Miguel de Cervantes nasceu em 1547, em Alcalá de Henares, cidade perto de Madri. É filho de um modesto cirurgião. De formação autodidáctica, aos vinte e três anos é soldado em Itália; toma parte na Batalha de Lepanto, na qual perde uma mão (1571). Aprisionado por piratas, só se libertou cinco anos depois. Mais tarde passou a residir em Lisboa. Em 1580, voltou à Espanha e chegou a trabalhar como cobrador de impostos. Devido a essa profissão, viajou por toda a Espanha, conhecendo de perto as dificuldades de seus conterrâneos. Em 1585 publica a sua primeira obra, La Galatea, romance pastoril. Em 1605 publica a primeira parte de O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, sendo imediato o seu êxito literário. Os últimos anos da sua vida são caracterizados por uma intensa produção criativa: Novelas Exemplares, Viaje del Parnaso, Ocho comedias y ocho entremeses, e um romance de aventuras em que trabalha até à morte — La historia de los trabajos de Persiles y Sigismunda. Em 1615 publicou a segunda parte de Dom Quixote. Morreu no ano seguinte, muito conhecido mas ainda sem recursos. Em Miguel de Cervantes, representante máximo das Letras de língua castelhana, confluem todos os géneros novelescos até então cultivados: o picaresco, o pastoril, o mourisco e o cavalheiresco. Como poeta, cultiva quer a poesia italianizante quer a tradicional. A sua obra principal neste domínio encontra-se nos sonetos e, particularmente, em Al túmulo del rey Felipe en Sevilla. Como autor dramático, destaca-se pelo tom humorístico de pequenas peças como El retablo de las maravillas ou La cueva de Salamanca. Deve referir-se também a sua tragédia Comedia del cerco de Numancia, que só é publicada em 1784, sendo hoje considerada uma das melhores tragédias escritas em castelhano.

Dom Quixote Por sua inovação - a história traz grande ousadia ao mostrar os personagens comentando o próprio livro —, a obra de Miguel de Cervantes é considerada o primeiro romance moderno, um marco da literatura.A história não podia ser mais delirante: Dom Quixote é um nobre espanhol que de tanto ler histórias de cavalaria passa a acreditar nos feitos dos cavaleiros medievais e decide se tornar um cavaleiro andante. Dom Quixote era um fidalgo, filho de pais ricos. No entanto, durante sua vida ele vai perdendo sua riqueza, pagando dívidas e comprando livros, mergulhando na literatura em busca da solução para essas dificuldades. A história mostra esse ingênuo senhor rural cujo passatempo favorito era a leitura de livros de cavalaria. Na sua obsessão, acreditava literalmente nas aventuras descritas e decide tornar-se um cavaleiro andante. Dom Quixote começa a agir como um cavaleiro em busca de uma mudança, uma nova vida. Ele já tinha uma idade relativamente avançada e vivia muito só, por isso deixase levar pela imaginação e passa a viver num mundo ilusório, fantasioso. Muito mais que uma sátira às novelas de cavalaria, a obra é também uma exaltação ao idealismo e à amizade, retratada no relacionamento entre Dom Quixote e Sancho Pança. Quixote é um louco, mas tem as grandes virtudes humanas da esperança e da dignidade. A dupla ficou tão conhecida que se tornou uma das maiores fontes de inspiração para artistas, escritores, cineastas, dramaturgos. Uma das imagens mais conhecidas é o desenho feito pelo artista plástico espanhol Pablo Picasso do cavaleiro e de seu escudeiro, com os famosos moinhos de vento ao fundo. Com uma armadura de sucata e papelão e o cavalo, um decrépito pangaré. O fiel escudeiro Sancho Pança, um ingênuo lavrador, e se auto-intitulando Dom Quixote de La Mancha, o nosso herói confunde a realidade com as histórias dos livros e sai pelo mundo em busca de aventuras. As viagens se sucedem sob a alucinação de quem deseja combater as injustiças do mundo. O nobre e patético Quixote enfrenta situações supostamente perigosas e ridículas: imagina gigantes em rodas d´água; vê um cavaleiro de elmo num barbeiro; ajuda criminosos a fugirem, pensando estar libertando escravos... Será que o nosso herói recupera a razão? Em suas andanças, Dom Quixote encontra moinhos de vento que na sua alucinação são tomados por cavaleiros em armas, por gigantes que ameaçam sua adorada Dulcinea. Sancho alerta Dom Quixote para o engano. Dom Quixote aproximou-se dos moinhos e arremeteu de lança em riste contra o primeiro moinho. O vento ficou mais forte e lançou o cavaleiro para longe. Sancho socorreu-o e reafirmou que eram apenas moinhos. Dom Quixote, respondeu que era Frestão quem tinha transformado os gigantes em moinhos. Na batalha conta o “exército de ovelhas” é relatado o encontro de Dom Quixote com dois rebanhos de ovelha. O cavaleiro, com todo o seu sonho, criou paisagens, personagens que não existiam, atribuindo-lhes armas, coroas e escudos. Foi então que o “herói” avançou em direção ao rebanho e foi surrado pelos pastores e pelas próprias ovelhas. Ao final da segunda parte do livro, Dom Quixote volta à razão , renuncia aos romances de cavalaria e morre como piedoso cristão.

William Shakespeare William Shakespeare, um dos maiores poetas de todos os tempos, nasceu em Abril de 1564 na cidade de Stratford-upon-Avon. Existe uma pequena controvérsia sobre a data de nascimento de William. Sabe-se que ele foi batizado no dia 26 de Abril, como era comum batizar as crianças após alguns dias do nascimento e como o dia 23 de Abril é dia de São Jorge (o santo da Inglaterra) , muitas pessoas dizem que o poeta mias famoso da Inglaterra nasceu neste mesmo dia (23 de Abril). Os pais de William eram John e Mary Shakespeare. William foi o terceiro filho a nascer e também o primeiro homem. John (o pai) era um trabalhador de couro, ele fabricava cintas, bolsas e luvas. Aparentemente ele era um cidadão respeitado, ele chegou a até ter o cargo que é comparável a prefeito da cidade. Porem suas dividas o alcançaram e ele perdeu quase tudo. Se você quiser saber mais sobre a família de Shakespeare Clique Aqui para ver a genealogia completa de Shakespeare. A educação de Shakespeare veio principalmente da A Escola do Novo Rei(“The New King’s School”). Nesta escola os alunos aprendiam o Latim e liam diversos livros (em latim e em outras línguas). O horário escolar durava nove horas, começava as seis ou as sete dependendo da estação do ano. Outra fonte de educação veio da igreja, lá Shakespeare foi exposto à Bíblia e a diversos livros de reza. Uma possível fonte de inspiração foi a paisagem do interior de Warwickshire (onde ficava Stratford-upon-avon ). Essas paisagens são mencionadas em varias obras de Shakespeare. No dia 28 de Novembro de 1582 William Shakespeare se casa com Anne Hathaway. William tinha 18 anos de idade e Anne 26. Muitos acreditam que Anne estava grávida de três meses quando se casou isto é reforçado pelo fato da cerimônia ocorrer tão rapidamente. Isto também explica o por que Shakespeare se casou com uma mulher que era oito anos mais velha do que ele. Susanna foi a primeira filha de Shakespeare, ela foi batizada no dia três de Maio de 1583. Dois anos depois os gêmeos Judith e Hamnet. Após o nascimento dos gêmeos pouco se sabe sobre a vida de Shakespeare. Esses anos (de 1586 a 1592) são conhecidos como os anos perdidos. Existem muitas teorias sobre o que aconteceu na vida de Shakespeare durante estes anos. Ninguém sabe com certeza por que Shakespeare se mudou de Stratford e foi para Londres. A teoria mais aceita diz que, Shakespeare teve que se mudar porque caçou nas terras de um Senhor Thomas Lucy que pelo jeito era um cara muito importante. Shakespeare se mudou para Londres porque não queria sofrer com a pena que seria dada a ele. Também dizem que Shakespeare se vingou de Lucy na obra As Alegres Comadres de Windsor. Londres foi o lugar onde Shakespeare se destacou como um dos maiores poetas de todos os tempos. Foi em Londres onde tudo começou e foi em Londres onde ele fez o maior sucesso. Foi também em Londres onde ele escreveu suas maiores obras. Tudo o que podemos afirmar é que por volta de 1592 Shakespeare já estava sendo reconhecido por seu trabalho no teatro. E também por volta deste período ele já tinha escrito A Comédia de Erros, A Megera Domada e pode ter escrito Tito Andrônico , Henrique VI (as três partes) e talvez ainda Ricardo III. Desde o inicio de sua carreira Shakespeare se associa com varias companhias teatrais, ele tinha um ambiente de trabalho muito fluente. Mas tudo mudou quando a peste chegou a Inglaterra, e todos os teatros foram fechados. E só re-abriram de verdade na primavera de 1594. 1594 - 1599 foram anos excelentes para Shakespeare, ele produziu varias obras de altíssima qualidade. Ele continuou como ator principal e administrador da

companhia “The Lord Chamberlain’s Men” que também foi formada durante está época(1594). Durante estes anos a companhia virou a mais popular de Londres, e também foi a que mais se apresentou na corte. Aparentemente a família de Shakespeare continuava morando em Stratford enquanto ele trabalhava em Londres. Em Agosto de 1596, seu único filho Hamnet morreu (Hamnet tinha somente 11 anos de idade). Em 1603 a rainha Elizabeth morreu e James VI da Escócia virou James I da Inglaterra. A idade Jacobina começou, e com isto o grupo “The Lord Chamberlain’s Men” tornaram-se o grupo “The Kings Men” pois eram o grupo patrocinado pelo reino. Em algum tempo entre 1599 e 1601 Shakespeare escreveu Hamlet, e depois disto escreveu as chamadas peças problemáticas até que em 1608 escreveu os grandes romances. Muitos perguntam porque a mente de Shakespeare virou as tragédias, o que levou ele a escrever as peças problemáticas. Existem varias sugestões sobre o que aconteceu mas isto é para outra hora. De qualquer maneira o importante é que o estilo de Shakespeare mudou drasticamente, de comedia (anos 90) para tragédia, e dai para romance. Shakespeare terminou sua carreira trabalhando com o novo escritor do grupo “The King’s Men” John Fletcher. Junto a John ele escreveu três peças finais, Henrique VIII (1613), Os Dois Nobres Parentes(1613 ou 1614) e a peça que hoje está perdida Cardenio. As duas primeiras ai não são as peças prediletas de ninguém, e pouco se sabe sobre a ultima. Shakespeare com certeza foi tratado por, Dr. Hall, seu genro. Não se sabe (para variar) qual foi a doença que acabou com a vida do poeta. Mas com certeza foi alguma coisa da idade. Qualquer foi a causa da sua morte Shakespeare chamou seu advogado para fazer uma revisão final em seu testamento. Shakespeare morreu no dia 23 de Abril e foi enterrado no dia 25 de Abril.

Hamlet O Rei Hamlet da Dinamarca, morrera subitamente. Dois meses depois, a Rainha Gertrudes casou-se com seu cunhado, Cláudio. O jovem príncipe Hamlet, filho do falecido monarca e legítimo herdeiro do trono, não se conformou com a leviandade da rainha. Amando o pai, possuindo senso de honra, ficou profundamente magoado com o procedimento da mãe. Perdeu toda a alegria; já não encontrava prazer na leitura ou nos exercícios próprios da juventude. O mundo parecia-lhe hostil e triste. O que mais perturbava Hamlet era não saber ao certo como morrera o pai. Cláudio afirmava que o rei tinha sido picado por uma serpente, mas Hamlet suspeitava de que a serpente fora o próprio Cláudio. Chegou aos ouvidos de Hamlet o rumor de que um fantasma, parecidíssimo com seu pai, fora visto pelas sentinelas do palácio duas ou três noites seguidas. A aparição usava a mesma armadura do rei. O espectro aparecia quando o relógio batia meianoite e entre os que o haviam visto estava Horácio, amigo íntimo de Hamlet. Assombrado com a narrativa, Hamlet não teve dúvida de que se tratava do espectro do pai, e decidiu montar guarda com os soldados. Como nas noites anteriores, o fantasma apareceu e confessou a Hamlet que era a sombra do Rei, e que fora cruelmente assassinado pelo próprio irmão, Cláudio, que pretendia casar-se com Gertrudes e ocupar o trono – exatamente como suspeitara o p r í n c i p e . Perturbado com a estranha ocorrência, Hamlet esteve a ponto de ficar louco. Seu comportamento diante dos outros já não era o mesmo. Temendo que seu procedimento acabasse despertando a desconfiança do tio, resolveu fingir que realmente enlouquecera; só assim o rei deixaria de suspeitar dele, julgando-o um louco inofensivo. Antes da morte do pai, Hamlet amava uma moça chamada Ophelia, filha de Polônio, o principal conselheiro do rei. Fizera-lhe muitas declarações de amor e cercava-a de atenções carinhosas. Ofélia acreditava na sinceridade de Hamlet. Durante a sua crise de melancolia, o príncipe a esquecera. Agora, fazendo-se de louco, passara a tratá-la com desprezo, gestos e palavras rudes. Entretanto, meigas lembranças de Ophelia muitas vezes o enterneciam. Arrependido de algumas palavras mais rudes, escreveu a Ophelia uma carta apaixonada e extravagante, mas entremeada de frases afetuosas. Ophelia, de acordo com os costumes antigos, mostrou a carta ao pai, e o velho a levou ao rei e à rainha. Estes, diante daquela prova evidente, não tiveram mais dúvidas de que era o amor o verdadeiro motivo da loucura de Hamlet. Mas Hamlet ainda queria vingança pela morte do pai, e nessa época surgiu no palácio um grupo de atores. Teve a idéia de fazer o grupo representar para a corte alguma peça, na qual aparecesse uma cena semelhante à do assassínio de seu pai. Teria então, oportunidade de observar no rosto do tio o efeito produzido pelo espetáculo. Poderia ter desse modo uma idéia mais segura sobre a culpa de Cláudio. Com esse intuito, ordenou que se preparasse uma representação para a qual convidou o rei e a rainha. A peça escolhida narrava o assassínio de Gonzaga, um duque de Viena. Quando, na peça, Luciano apareceu para envenenar Gonzaga, adormecido no jardim, a cena perturbou de tal forma o tio que este, fingindo um súbito mal-estar, deixou bruscamente a sala. Logo em seguida, a pedido do rei, Hamlet foi chamado aos aposentos da rainha. Esta devia dizer-lhe o quanto desgostara a ambos o procedimento do príncipe. Receando que Gertrudes escondesse algum detalhe da conversa, o rei ordenou à Polônio que se colocasse atrás das cortinas do quarto da rainha. Num momento da discussão, Polônio fala de trás da cortina, e Hamlet acreditando que o rei ali se escondera, puxou da espada e golpeou várias vezes o pano. Quando arrastou o corpo, viu que se tratava de Polônio. Com a morte do pai, Ophelia começara a sofrer graves perturbações. Quando andava pelas margens de um

riacho, caiu nele e acabou por afogar-se. Hamlet chegou durante a cerimônia do enterro, quando Laertes, alucinado pela dor, ao perceber Hamlet, causador da morte do pai e indiretamente da irmã, partiu para ele e agarrou-o como um inimigo. Depois do enterro, Hamlet pediu desculpas e os dois jovens pareceram r e c o n c i l i a d o s . Mas o rei Cláudio, sempre procurando eliminar o sobrinho, convenceu Laertes de que, celebrando as pazes, devia bater-se em esgrima com Hamlet. Influenciado pelo rei, Laertes preparou uma arma envenenada. Depois de alguns lances, Laertes feriu mortalmente Hamlet com esta arma. Na confusão da luta, as espadas foram involuntariamente trocadas depois de caírem no chão. E chegou a vez de Laertes ser também atingido por um golpe mortal. O rei preparara para Hamlet uma taça de vinho envenenada, caso falhasse a espada de Laertes. Esquecera-se porém, de prevenir a rainha, e esta, tendo bebido dessa taça, morreu em terríveis convulsões, declarando ter sido envenenada. Quando Hamlet sentiu que seu fim se aproximava, voltou-se contra o traiçoeiro tio, atravessando-lhe com a espada, e força-o a beber da taça envenenada. Cumpria enfim a promessa que fizera ao espectro do pai.

Do Romantismo a Modernidade

Goethe A poucas pessoas é possível denominar de modo tão tranqüilo o epíteto de gênio quanto a Johann Wolfgang von Goethe. Goethe se destacou de tal forma na literatura, ajudou a criar um movimento literário, o Romantismo, que influenciou e guiou praticamente toda a cultura alemã e, no seu rastro, a universal. Nascido em 1749, em Frankfurt-sobre-o-Meno, ainda adolescente já estudava italiano, latim, grego, inglês, hebraico e desenho artístico. Escreveu critica literária, romances, peças, poesia, contos, poesia lírica, cartas e descrições de viagens. Sua inteligência, no entanto, não se limitava à literatura. Além de dedicar-se à literatura, Goethe também dedicou-se à ciência. É autor da “A Doutrina das Cores”, obra em que expõe o resultado de suas pesquisas e estudos acerca de fisiologia, física e química para tratar do fenômeno das cores. Em “A Doutrina das Cores” Goethe rivaliza nada mais nada menos com um intelectual da envergadura de sir Issac Newton. Na verdade, causa espanto a quantidade e variedade de seus interesses: era um cientista, fez pesquisas em óptica, geologia, mineralogia, botânica, anatomia humana e zoologia. E, todas as vezes que você ouvir falar do osso intermaxilar no ser humano, saiba que isso foi contribuição de Goethe. Foi conselheiro político e militar em Weimar, onde ajudou a construir estradas, prédios públicos, teatros. Quando morreu em 1832, com 83 anos, foi reverenciado como um mito da humanidade. Em virtude disto tudo não pode-se deixar de considerar a semelhança existente entre a personagem (Fausto) e seu autor. Afinal, Goethe também perseguia o conhecimento e as canções que irrompiam durante a noite registradas por ele bem que poderiam ser sopradas em seu ouvido pelo próprio Mephistófeles. De qualquer maneira o importante é que neste como em outros casos a vida imita a arte. Outro livro do escritor alemão, ”Werther”, um dos símbolos máximos do Romantismo, do qual foi fundador, foi escrito quando Goethe tinha 25 anos de idade. Escrito na forma de cartas, narra as desventuras amorosas do jovem Werther que, na impossibilidade de consumar seu amor por Carlota, acaba se suicidando. O livro causou comoção mundial. A identificação com o personagem se tornou tão grande que começaram a se alastrar os casos em que jovens resolvem seguir o mesmo exemplo. Tornou-se moda matar-se por amor. A coisa foi tão séria que ficou conhecida como o “mal do século”. Se já era conhecido nos círculos cultos alemães e um pouco no exterior, com “Werther” a fama de Goethe explode. Até morrer, nunca perderia a popularidade. Muito diferente do seu personagem suicida, porém, Goethe não morreu jovem, teve muitas paixões, algumas correspondidas e outras não, e pôde gozar muito bem a vida. Resumo de uma época e prova da genialidade de Goethe, “Fausto” faz parte do patrimônio cultural da humanidade, é obra da vida inteira do escritor. Começou a ser escrita em 1774, sendo que a primeira parte foi publicada em 1808; a segunda somente foi concluída em 1832, pouco antes da morte do autor.

Fausto Hélio Schwartsman dá um panorama sobre o mito de Fausto.Alerta-nos sobre a existência do homem que o inspirou (Jörg Faustus) e dá a entender que os primeiros a ficcionalizá-lo, a transformá-lo em uma personagem foram os cléricos protestantes que acusaram-no de “vagabundo”, “falastrão”, “patife” e “louco”. Haveria, ainda, segundo Ian Watt, um Fausto mais jovem, que teria vivido no século V acusado de heresia que se indispôs com Santo Agostinho. Segundo Schwartsmam o primeiro a associar Faustus ou Fausto a satã foi Lutero (Conversas à Mesa). Todavia, o mais importante texto que refere-se às peripécias do mago é o Faustbuch, de autor anônimo. Este data do século XVI e é o primeiro a desvincular a personagem do homem Jörg Faustus e a mencionar o contrato através do qual Fausto vendeu sua alma ao diabo. Após o surgimento da imprensa, o Faustbuch foi reeditado várias vezes sendo utilizado como fonte de inspiração por Chistopher Marlowe em 1592. Diferentemente da personagem do Faustbuch, o Fausto criado pelo dramaturgo que rivalizava com Shakespeare é capaz de cativar o público. Apesar disto, somente com Goethe Fausto adquiriria uma maior profundidade literária e o direito de ser salvo de seu pecado de desejar o conhecimento. Depois de Goethe, Thomas Mann (Docktor Faustus) e Klaus Mann (Mephisto) também dariam sua contribuição à construção desta personagem comparável à D. Quixote, D. Juam e Robinson Crusoé. Faustopoderiaserentendidocomoummito,umavezquetambémtraduzumtraçofundamental da personalidade humana, que é o desejo do conhecimento e do poder que dele advém. Porém, até mesmo nesse sentido definir Fausto como um mito é um problema. Como frisou Schwartsmam,háevidênciasdequeoFaustoimortalizadonaliteraturaporChristopherMarlowe, Johann Wolfgang von Goethe, Tomas Mann e seu filho Klaus Mann, existiu realmente. Teria vivido entre os séculos XV e XVI e chamado-se Jörg ou Johanes Faustus. O Fausto de carne e osso teria sido um astrólogo e nigromante que gostava de impressionar as pessoas e de desfrutar os prazeres da mesa e da cama. O primeiro a associá-lo a satã (entidade demoniaca da tradição cristã) foi Lutero em sua obra “Conversas à Mesa”. Com o tempo o homem acabou sendo ofuscado pela sua imagem. Assim, o mito do sábio que celebra um pacto com o demônio encontra suas raízes na realidade ao contrário de Édipo, que não foi rei de Tebas e talvez nunca tenha existido a não ser no imaginário de seu criador. Fausto situa-se nos limites entre a mitologia e a história, talvez seja esta a razão do poema de Goethe ter se transformado num clássico. Além disso, deve-se ressaltar que Fausto encontrou um solo fértil a partir do Iluminismo. Desde então, o conhecimento é muito valorizado, o que não ocorria na época em que o Jörg Faustus vagou pela Europa. Assim, foi o fim da Idade Média que abriu caminho para que Fausto fosse transformado num verdadeiro mito. De certa maneira, o homem moderno também realiza a mesma trajetória que Fausto, também faz o seu pacto com secreto com Mephistófeles. Persegue avidamente o conhecimento para a partir dele desfrutar os prazeres da vida. Não é isto que estamos fazendo neste exato momento? Hoje mais do que nunca o homem é literalmente empurrado nesta direção. Nada é capaz de o deter, nem mesmo os freios religiosos. Originalmente judaísmo, cristianismo e até mesmo o islamismo partilham da mesma posição em relação ao conhecimento, encarado como a fonte de todo mal. A expulsão de Adão e Eva do paraíso ilustra bem esta questão. Contudo, na atualidade estes três grandes sistemas religiosos são obrigados a tolerar a ciência e o desejo de conhecê-la. Em razão da tradição judaica e cristã podemos dizer que o mito de Fausto é como que uma atualização, uma modernização de crenças muito anteriores ao século XV e mesmo ao século V de nossa era. Crenças que encontram-se retratadas de maneira muito original na Tora ou Velho Testamento. A exemplo de Adão, Fausto obtém o conhecimento e o prazer, mas acaba sendo obrigado a vagar pelo mundo. Adão é condenado a trabalhar para seu próprio sustento e Fausto a acompanhar Mephistófeles. Portanto, de certa maneira ambos foram expulsos do paraíso, se entendermos este como um estado inicial, primitivo, em que não havia nem prazer, nem dor. Não parece ser acidental a coincidência de que o primeiro conhecimento adquirido pelos dois curiosos é relacionado ao prazer. Adão copula com Eva e, na versão de Goethe, a primeira coisa que Fausto descobre depois do pacto celebrado com Mephistófeles é o prazer sexual com Margarida.

Goethe fez sua primeira tentativa de escrever sobre o mito alemão Fausto em 1775, no Urfaust, em prosa, que é às vezes denominado de Fausto Primitivo. Em 1797 a idéia foi retomada segundo um plano completamente diferente: em 9 episódios e como poema dramático para Teatro. Esta nova versão será publicada como texto definitivo em 1808 (Fausto Parte I). Cumprindo uma promessa feita a seu grande amigo Friedrich Schiller (1759-1805), Goethe vai trabalhar na Parte II de Fausto até 1831, que na realidade, tem pouca relação com a Parte I, mais conhecida e divulgada, com a publicação póstuma do texto definitivo em 1832. Em Goethe o mito encontra sua versão mais acabada e genial. A chave para entendêlo está logo no início do poema, onde Deus dialoga com Mephistófeles. A entidade diabólica pede a Deus a permissão para tentar o cientista obtendo-a com a restrição de que não poderá ficar com sua alma. Mephistófeles aceita a condição e retruca que a ele como ao gato só interessa o rato enquanto estiver vivo. Assim, temos na verdade dois contratos, um entre Deus e Mephistófeles e outro entre este e Fausto. Mas, Fausto não tem conhecimento do primeiro e sua ignorância é que o faz acreditar que sua alma pertence ao companheiro de jornada. A sua maneira, Goethe mantém a tradição religiosa mas escapa à solução maniqueista, conferindo maior colorido e valor ao mito. Enfim Fausto reencarna Adão, mas não é nem poderia ser condenado à perdição em virtude de perseguir o conhecimento. Ao a registrar sua versão sobre o mito de Fausto, Goethe deu a ele algo de sua própria educação clássica. Com efeito, pode-se estabelecer um paralelo entre a trajetória de sua personagem e a do filosofo Sócrates, que viveu no século IV aC. Todos os discípulos que escreveram sobre o ateniense, referem-se ao fato de que ele admitia que falava com sua entidade protetora, com seu daímom (vocábulo grego traduzido como sendo equivalente a “demônio”). Como vê-se, o grego e o personagem de Goethe entram em contato com seres supranaturais e perseguem o conhecimento. A identidade entre ambos não parece ser meramente casual. Historicamente, a primeira parte de Fausto é mais importante pelo papel que representou no movimento pré-romântico alemão Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto): a peça foi vista como símbolo da alma e cultura moderna, a personificação da angústia que marcava o espírito da época. Em nossa perspectiva de início de século XXI, percebemos que Goethe conseguiu orquestrar uma verdadeira tragédia do desenvolvimento humano, a aventura de Fausto inicia-se na solidão de um obscuro laboratório medieval de um sábio alquimista e seu idealismo na primeira parte e termina na segunda parte simbolicamente em meio às convulsões provocadas pela Revolução Industrial burguesa, o avanço das forças do capitalismo e a destruição completa sem deixar vestígios, da sociedade e modo de produção feudal, mundo este que foi transformado através de uma imensa força de trabalho organizada juntamente com a maquinaria e grande indústria. A questão trágica do pacto e o desenvolvimento do capitalismo no poema é analisado em 3 “metamorfoses” de Marshall Berman: o Sonhador, o Amador e o Fomentador. Fausto em sua primeira metamorfose, antes do seu pacto, vive somente no mundo platônico das idéias e sonha em voltar ao convívio humano e social, mas a sociedade e as relações feudais em que vive, não oferece possibilidades de ação e transformação, de desenvolvimento de todas as suas potencialidades intelectuais e espirituais. Na sua segunda metamorfose, depois do pacto com Mefistófeles, Fausto rejuvenesce, tem dinheiro, velocidade e mobilidade social; tenta se adaptar para a integração entre seu novo mundo de possibilidades infinitas e a estreiteza do mundo feudal. Seu relacionamento com Gretchen (Margarida) é o símbolo dessa incompatibilidade de mundos. Fausto tira a jovem camponesa de sua inocência, adulando-a com presentes, tira-lhe sua virgindade, torna-se seu amante, despertando nela o desejo de mudança, de desenvolvimento, algo muito difícil para ela, devido a seu forte laço de ligação com sua comunidade e as exigências do casamento, que não interessa a Fausto, pois este tem muitas experiências para vivenciar em seu desenvolvimento contínuo. Na sua terceira e última metamorfose e nos 2 últimos atos do poema, Fausto passa por diversas experiências: na corte do Imperador, ele evoca Helena de Tróia, símbolo da beleza clássica; ao cabo de uma longa busca por ela entre as alegorias, deuses e seres mitológicos da Antigüidade, ele traz Helena para a Alemanha e casa-se com ela. Mas ela não tarda a desaparecer depois da morte de Euforion, filho do casal, símbolo do gênio poético (Goethe queria prestar sua homenagem póstuma ao poeta Lord Byron).

Fausto - síntese É como um herói insaciável e em conflito que Fausto é apresentado por Goethe. Sua sede de onipotência leva-o a dominar várias ciências, mas nenhuma delas o conduz ao mistério da existência. Fausto chega, assim, a perder a fé nas vias ordinárias da ciência. Anseia por conhecer mais e mais: vida, alegria, amor, magia. Anseia por transformar-se numa espécie de deus, com acesso ilimitado a todas as manifestações da natureza. No momento em que Fausto tem consciência dos seus limites, Mefistófeles entra em cena. O demônio se oferece para conduzi-lo a um novo universo, onde as emoções são íntegras, a sabedoria é infinita e tudo está em perfeita harmonia com a vontade. E principalmente Mefistófeles lhe propõe o prazer total e pleno da alegria e do amor, mais o Dom de controlar os sentimentos e as pessoas como um mago, retendo nas mãos o tempo, e fazendo a natureza oscilar segundo seu próprio desejo. Gozando plenamente o ato de ser feliz, Fausto deverá no entanto, pagar um preço a Mefistófeles: entregar-se a ele. Nesse instante, o diabo terá vencido Deus. O episódio de Fausto e Margarida constitui o motivo central da peça. A jovem é a personificação da pureza e da candura, atraindo a paixão de Fausto desde o primeiro momento em que a vê saindo de uma igreja. Mas Mefistófeles não tem poder sobre ela para lançá-la aos braços de Fausto: Margarida está mais próxima de Deus pelas suas virtudes. Fausto é insistente e Mefistófeles acaba por se comprometer, criando uma situação favorável e aproxima Fausto de Margarida. O herói aborda a jovem e consegue penetrar em seu quarto. Mas invadido por uma onda de ternura, Fausto não consegue ter senão pensamentos nobres, e afasta-se antes de Margarida chegar. Fausto acaba por seduzir Margarida. Para poder possuí-la tranqüilamente, Fausto dá a Margarida um sonífero, destinado à sua mãe. Na verdade, o sonífero era um veneno que Mefistófeles prepara e, em conseqüência, a mãe da jovem morrerá. Mas naquela noite, ébria de amor, Margarida nada vê, além de Fausto. Valentim, o irmão da jovem, é morto por Fausto num duelo. Ciente de sua desgraça, Margarida sente dentro de si todas as forças do mal. Quando dá à luz ao filho de Fausto, não vê outra saída senão matá-lo. É então presa por infanticídio. Fausto ignora totalmente a desgraça. Mefistófeles, porém, deseja ganhar tempo e afastar o herói da cena trágica. Transporta-o para a noite da Valburga, onde reina entre os demônios e as feiticeiras. É noite de 1º de maio, quando todas as forças telúricas se reúnem numa alucinante luxúria. Porém, a imagem da meiga Margarida é muito forte para que Fausto se abandone aos sentidos. Sentindo-se um estranho na festa das bruxas, Fausto depara com uma adolescente de olhos mortos que o deixa obcecado por rever Margarida. Mefistófeles não vê outra saída senão transportá-lo ao cárcere onde a jovem está louca e indiferente à prisão e à realidade. Não reconhece Fausto e é imune às súplicas para que fuja com ele. Margarida está consciente da necessidade do castigo e só pensa em expiar sua culpa. À visão de Mefistófeles, a jovem recua com horror e suplica aos céus perdão e proteção. E diante de Fausto – a quem chama de Henrique, pois com esse nome o conhecera - seu horror não é menor, ao descobrir nele o agente da sua destruição. “Ela foi justiçada!” diz Mefistófeles; “Está salva!” proclamam as vozes vindas do alto. Sua ânsia de expiação acaba por redimi-la. No final, Fausto desaparece com Mefistófeles, seguido pelo grito longínquo de Margarida. O herói alcança sua redenção, quando, depois de morto, sua alma é disputada com Mefistófeles e a legião infernal contra a legião celeste de anjos, que apossam de sua alma, conduzindo-a através da trajetória ascensional celeste, no indizível do chorus mysticus, e no encontro com o “eterno feminino”, confirmando “(...) que um homem puro, embora com ambições, conhecendo o trilhar de tais aspirações, seguro está do rumo a percorrer na vida”.

Charle Baudelaire 1821-1867 O homem que mudou a literatura moderna: definir o francês Charles Baudelaire somente desta maneira o manteria muito aquém de sua verdadeira importância. Tradutor, poeta, crítico de arte e literato, Baudelaire foi o ápice da poesia oitocentista. Charles foi o único filho de Joseph-François Baudelaire e de sua jovem segunda esposa, Caroline Archimbaut Defayis. Seu pai havia sido ordenado como padre quando neófito, mas largou o ministério durante a revolução francesa. Trabalhou como tutor dos filhos do duque de Choiseul-Praslin, o que lhe proporcionou um certo status. Ganhou dinheiro e respeito e aos 68 anos se casou com Caroline, então com 26. Vivendo num orfanato e já passada da idade de se casar, ela acabou por não ter opção. Em 1819, casaram-se. Charles-Pierre Baudelaire veio ao mundo um ano e meio depois, em 9 de Abril de 1821. A vida acadêmica de Baudelaire começou no Collège Royal em Lyon, quando Aupick levou a família inteira ao assumir um cargo na cidade. Mais tarde, foi matriculado no Liceu Louis Le Grand, quando retornaram a Paris em 1836. Foi justamente aí que Baudelaire começou a se mostrar um pequeno gênio. Escrevia poemas execrados por seus professores, que achavam que seus textos eram um exemplo de devassidão precoce, afeições que não eram normais em sua idade. A melancolia também despontava no jovem. Aos poucos, ele se convenceu de ser um solitário por natureza. Em abril de 1839, acabou expulso da escola por seus atos de indisciplina constantes. Mais tarde, tornou-se aluno da Escola de Direito. Na verdade, Charles estava vivendo de maneira livre. Fez os seus primeiros contatos com o universo da literatura e contraiu uma doença venérea que o consumiu durante a vida inteira. Tentando salvar seu enteado do caminho libertino, Aupick o enviou para uma viagem à Índia, em 1841, uma forte inspiração para sua imaginação, e que trouxe imagens exóticas ao seu trabalho. Baudelaire retornou a França em 1842. Neste mesmo ano, ele recebeu sua herança. Mas como dândi que era, consumiu rapidamente a pequena fortuna. Gastou em roupas, livros, quadros, comidas, vinhos, haxixe e ópio. Os dois últimos, um vício adquirido após consumir pela primeira vez entre 1843 e 1845, em seu apartamento no Hotel Pimodan. Pouco depois deste seu retorno, ele conheceu Jeanne Duval, a mulher que marcou definitivamente a sua vida. A mestiça primeiro se tornou sua amante e mais tarde, controlou sua vida financeira. Ela ira ser a inspiração para as poesias mais angustiadas e sensuais que o poeta escreveu. Seu perfume e o seus longos cabelos negros foram o mote da poesia erótica “La Chevelure”. Charles Baudelaire continuou levando sua vida extravagante e em dois anos dilapidou todo o seu dinheiro. Também se tornou presa de agiotas e bandidos. Neste período, acumulou dívidas que o assombraram para o resto da vida. Em setembro de 1844, sua família entrou na justiça para impedi-lo de mexer no pouco dinheiro da herança que ainda sobrava. Baudelaire perdeu e acabou recebendo somas anuais, que mal dava para manter o seu estilo de vida e muito menos para pagar o que devia. Isto o levou a uma dependência brutal de sua mãe e ao ódio de seu padrasto. Seu temperamento isolacionista e desesperador, fruto de sua adolescência conturbada e que ele apelidou de spleen retornou e se tornou cada vez mais freqüente. Após a sua volta a França, ele decidiu se tornar um poeta a qualquer custo. De 1842 a 1846, compôs o que mais tarde foi compilado na edição “Flores do Mal” (1857). Baudelaire evitou publicar todos estes poemas separadamente, o que sugere que ele realmente tenha arquitetado em sua mente uma coleção coerente,

governada por uma temática própria. Em outubro de 1845, compilou “As Lésbicas” e em 1848, “Limbo”, obras que representam a agitação e a melancolia da juventude moderna. Nenhuma das duas coleções foram lançadas em livros e Baudelaire só foi aceito no circuito cultural de Paris porque também era crítico de arte, trabalho que exerceu por um bom tempo. Inspirado pelo exemplo do pintor Eugène Delacroix, elaborou uma teoria da pintura moderna, convocando os pintores a celebrarem e expressarem o “heroísmo da vida moderna”. O mês de janeiro de 1847 foi importante para Baudelaire. Ele escreveu a novela “La Fanfarlo”, cujo o herói, ou melhor, anti-herói, Samuel Cramer, um alterego do autor, oscila desesperado entre o desejo pela maternal e respeitável Madame de Cosmelly e o erótico pela atriz e dançarina Fanfarlo. Com este texto, Baudelaire começava a chamar a atenção, mesmo que timidamente. Este anonimato acabou-se em fevereiro de 1848, quando participou de manifestações para a derrubada do Rei Luís Felipe e para a instalação da Segunda República. Consta que comandou um violento ataque contra o general Aupick, seu padrasto, então diretor da Escola Politécnica. Este acontecimento leva vários especialistas a minimizarem a participação do do poeta burguês nesta revolução, já que seus motivos não seriam sociais e políticos mas sim pessoais, que ainda não havia publicado nada. Porém, estudos recentes assumem uma veia política brutal em Baudelaire, em especial sua associação com o anarquista-socialista Pierre-Joseph Proudhon. Sua participação na revolta de proletários em junho de 1848 é comprovada e também na resistência contra os militares de Bonaparte, em dezembro de 1851. Logo após este episódio, o poeta declarou encerrado seu interesse em política e voltou toda a sua atenção para seus escritos. Em 1847, ele descobriu um obscuro escritor norte-americano: Edgar Allan Poe. Impressionado pelas similaridades entre os escritos de Poe com seu próprio pensamento e temperamento, Baudelaire decidiu levar a cabo a tradução completa das obras do norte-americano, trabalho este que lhe tomou boa parte do resto de sua vida. A tradução do conto “Mesmeric Revelation” foi publicado em julho de 1848 e depois, outras traduções apareceram em jornais e revistas antes de serem compiladas no livro “Histórias Extraordinárias” (1856) e “Novas Histórias Extraordinárias” (1857), todas precedidas por introduções críticas feitas por Charles Baudelaire. Depois se seguiu “As Aventuras de Arthur Gordon Pym” (1857), “Eureka” (1864) e Histórias Grotescas” (1865). Como tradução, estes trabalhos foram clássicos da prosa francesa, e o exemplo de Poe deu a Baudelaire uma confiança em sua própria teoria estética e ideais para a poesia. O poeta também começou a estudar o trabalho do teórico conservador Joseph de Maistre, que, junto com Poe, incentivaram seu pensamento a ir numa direção antinaturalista e anti-humanista. Do meio de 1850, ele iria se pronunciar arrependido de ser um católico romano, apesar de manter sua obsessão pelo pecado original e pelo demônio. Tudo isto sem a fé no amor e perdão de Deus, e sua crença em Cristo se rebaixou tanto a ponto de praticamente não existir mais. Entre 1852 e 1854, dedicou vários poemas à Apollonie Sabatier, sua musa e amante apesar da reputação de cortesã da alta-classe. Em 1854, Baudelaire manteve um caso com a atriz Marie Daubrun. Ao mesmo tempo, sua fama como o tradutor de Poe aumentava. O fato de ser crítico de arte permitiu que publicasse algum de seus poemas. Em junho de 1855, a Revue des Deux Mondes publicou uma sequência de 18 de seus poemas, com o título de “As Flores do Mal”. Os poemas, que ele escolheu pela originalidade e pelo tema, trouxeram-lhe notoriedade. No ano seguinte, Baudelaire fechou um contrato com o editor PouletMalassis para uma coleção completa de poemas sob o título prévio. Quando a primeira edição do livro foi publicado em junho de 1857, 13 dos 100 poemas foram imediatamente acusados de ofensas à religião e à moral pública. Um julgamento ocorreu no dia 20 de agosto de 1857 e 6 poemas foram condenados a serem retirados da publicação sob a acusação de serem obscenos demais. Baudelaire foi multado em 300 francos (mais tarde, reduzido a 50 francos). Em 1866, na Bélgica, os seis poemas foram republicados sobre o título de “Les Èpaves”. A proibição dos poemas só foram retirados da França em 1949. Como toda polêmica sempre é benéfica, “As Flores do Mal” se tornou um marco por sua obscenidade, morbidez e devassidão. Nascia a lenda de Baudelaire como um poeta maldito, dissidente e pornográfico.

Porém, as vendagens não foram nada boas. Baudelaire nutria uma expectativa gigantesca pelo sucesso - o que não aconteceu - e imediatamente se tornou amargo. Os anos que vieram transformaram Baudelaire numa personalidade soturna, assombrado pelo sentimento de fracasso, desilusão e desespero. Após a condenação de seu livro, ele se juntou com Apollonie Sabatier e a deixou em 1859 para retomar seu relacionamento com Marie Daubrun, novamente infeliz e fracassado. Apesar de ter escrito alguns de seus melhores trabalhos nestes anos, poucos foram publicados em livro. Após a publicação de experimentos de prosa em verso, ele se concentrou numa segunda edição de “As Flores do Mal”. Em 1859, enquanto vivia novamente com sua mãe, perto do rio Sena, onde ela se mantinha reclusa após a morte de Aupick em 1857, Baudelaire produziu uma série de obras-primas da poesia, começando com “Le Voyage” em janeiro e culminando no que é considerado seu melhor poema, “Le Cygne”, em dezembro. Ao mesmo tempo, compôs dois de seus mais provocativos ensaios de crítica de arte: “Salão de 1859” e “Os Pintores da Vida Moderna”. Este último, inspirado por Constantin Guys, é visto como uma declaração profética dos elementos do Impressionismo, uma década antes do surgimento da escola. Em 1860, publicou “Os Paraísos Artificiais”, uma tradução de partes do ensaio de “Confissões de um Inglês Comedor de Ópio”, de Thomas De Quincey, acompanhado por sua pesquisa e análise das drogas. Em fevereiro de 1861, uma segunda edição, maior e ampliada, de “As Flores do Mal” foi publicada por Poulet-Malassis. Ao mesmo tempo, publicou ensaios críticos sobre Theophile Gautier (1859), Richard Wagner (1861), Victor Hugo e outros poetas contemporâneos (1862), e Delacroix (1863). Estes textos seriam compilados em “A Arte Romântica”, em 1869. Os fragmentos de sua autobiografia entitulada “Fusèes”e “Mon Coeur Mis à Nu” também foram lançados entre 1850 e 1860. É também desta época seu ensaio onde afirma que a fotografia era um engodo, que aquela nova forma nunca seria arte. Mais tarde, o poeta se arrependeu e voltou atrás em suas declarações e chegou a ser retratado por Félix Nadar. Em 1861, Baudelaire tentou se eleger à Academia Francesa mas foi fragorosamente derrotado Em 1862, Poulet-Malassis faliu e ele foi implicado na falência, o que piorou sua condição financeira. Seus limites mentais e físicos atingiram o topo.Abandonando a poesia, ele foi fundo na prosa em versos. Uma sequência de 20 de seus trabalhos foi publicada em 1862. Em abril de 1864, ele deixou Paris para se instalar em Bruxelas, onde tentaria persuadir um editor belga a publicar suas obras completas. Lá ficou, amargurado e empobrecido até 1866, quando após um ataque epilético na Igreja de Saint-Loup at Namur, sua vida mudou. Baudelaire teve uma lesão cerebral que lhe ocasionou afasia (perda da capacidade de compreensão e de expressão pela palavra escrita ou pela sinalização, assim como pela fala) e paralisia. O dândi nunca mais se recuperou. Retornou a Paris no dia 2 de julho, onde ficou em uma enfermaria até sua morte. Em 31 de agosto de 1867, aos 46 anos, Charles Baudelaire morreu nos braços de sua mãe. Quando a morte o visitou, Baudelaire ainda mantinha vários de seus trabalhos não publicados e os que já haviam saído estavam fora de circulação. Mas isto rapidamente mudou. Os líderes do movimento Simbolista compareceram ao seu funeral e já se designavam como seus fiéis seguidores. Menos de 50 anos após a sua morte, Baudelaire ganhou a fama que nunca teve em vida: havia se tornado o maior nome da poesia francesa do século XIX. Conhecido por sua controvérsia e seus textos obscuros, Baudelaire foi o poeta da civilização moderna, onde suas obras parecem clamar pelo século XX ao invés de seus contemporâneos. Em sua poesia introspectiva ele se revelou como um lutador à procura de Deus, sem crenças religiosas, procurando em cada manifestação da vida os elementos da verdade, de uma folha de uma árvore ou até mesmo no franzir das sobrancelhas de uma prostituta. Sua recusa em admitir restrições de escolha de temas em sua poesia o coloca num patamar de desbravador de novos caminhos para os rumos da literatura mundial.

As Flores do Mal A principal obra do francês Charles Baudelaire foi e ainda é certamente o seu livro de poemas Les Fleurs du mal, publicado originalmente em 1857 pelos editores PouletMalassis e De Broise. O volume reunia todos os poemas outrora publicados na imprensa e outros ainda inéditos. Apresentava-se dividido em cinco partes - Spleen et ideal, Fleurs du mal, Révolte, Le vin e La mort - e continha 100 poemas, além do introdutório Au lecteur. A maior parte destes poemas havia sido escrita desde 1840 e publicada na imprensa e em revistas literárias européias, como as Revue de Paris, em 1852, Revue de Deux Mondes, em 1855, Revue française, em 1857, e Revue contemporaine, em 1859, sendo que em junho de 1855 aparece pela primeira vez o título Les Fleurs du mal sobre um conjunto de dezoito poemas publicados na Revue de Deux Mondes. O livro sofreu grave processo poucos meses depois do seu lançamento, acusado de imoralidades, assim como o livro de Gustave Flaubert, Madame Bovary, e tanto o autor quanto seus editores são condenados por ultraje à moral pública e o livro a ter suprimido alguns poemas. Em 1861 sai sua segunda edição, rearranjada e modificada: por um lado, reduzida pela saída dos poemas censurados - Les bijoux, Le Léthé, À celle qui est trop gaie, Lesbos, Femmes damnées e Le métamorphoses du vampire - e pela nova formação do poema Un fantôme, somando quatro sonetos; por outro lado, aumentada com outros 35 poemas novos, totalizando 126. Os poemas aparecem distribuídos em outra ordem e é ainda nessa edição que Baudelaire faz mais uma subdivisão em seu livro, acrescentando o subtítulo Tableaux parisiens. Na época, publica ainda duas coletâneas de poemas: Les Épaves - também dividida em cinco partes: Pièces condamnées, Galanteries, Épigraphes, Pièces diverses e Buffonneries, divulgada principalmente na Bélgica - e Nouvelles Fleurs du mal. Por fim, ainda sairia uma edição póstuma, em 1868, visto que o poeta falecera um ano antes, em agosto de 1867, organizada por Charles Asselineau e Théodore de Banville e produzida por Michel Levy. Essa edição troca o título do poema Au lecteur por Préface e traz, além dos poemas da edição de 1861 e alguns das coletâneas, outros poemas publicados na imprensa e mesmo inéditos, totalizando 166.

PERFUME EXÓTICO De olhos fechados, quando, alta noite, no outono, Respiro o cheiro bom dos teus seios fogosos, Vejo entreabrir-se além cenários deleitosos Cintilando ao ardor de um sol morno de sono: Uma ilha preguiçosa e molenga e sem dono Em que há árvores ideais e frutos saborosos; Homens de corpos nus, finos e vigorosos, Mulheres cujo olhar tem franqueza e abandono. Guiado por teu perfume às paragens mais belas, Vejo um porto a arquejar de mastros e de velas Ainda tontos talvez da vaga alta que ondu1a, Enquanto um verde aroma — o dos tamarineiros —, Que passeia pelo ar e que aspiro com gula, Se mistura em minha alma à voz dos marinheiros.

Correspondências A Natureza é um templo onde vivos pilares Deixam sair às vezes palavras confusas: Por florestas de símbolos, lá o homem cruza Observado por olhos ali familiares. Tal longos ecos longe onde lá se confundem Dentro de tenebrosa e profunda unidade Imensa como a noite e como a claridade, Os perfumes, as cores e os sons se transfundem. Perfumes de frescor tal a carne de infantes, Doces como o oboé, verdes igual ao prado, - Mias outros, corrompidos, ricos, triumfantes, Possuindo a expansão de um algo inacabado, Tal como o âmbar, almiscar, benjoim e incenso, Que cantam o enlevar dos sentidos e o senso.

O AZAR Para tomar tal peso a peito, Mister, Sísifo, é o teu valor! A obra, é certo, excita ardor, Mas a Arte é vasta e o Tempo estreito. Rumo de esconso cemitério, Das tumbas célebres desviado, Meu coração, tambor velado, Batendo vai, num tom funéreo. - Ha muita jóia que se oculta No esquecimento, ou jaz sepulta, Das sondas longe, e do alvião; Muita flor ha, que exala a medo Olor subtil como um segredo, Na mais profunda solidão.

Os cegos Veja-os, minha alma, são mesmo horrorosos! São críveis manequins, vagamente ridículos; Terríveis, singulares como os soníloquos; Dardejando por aí seus globos tenebrosos. Seus olhos, de onde a divina faísca é fugida, Como se olhassem ao longe, restam alçados Para o céu; não se vê nunca para os calçados Pender em sonhos sua face entorpecida. Eles atravessam assim o negro ilimitado, Este irmão do silêncio eterno. Oh cidade! Enquanto que entorno há cantos, risos e ecos, Namorada do prazer até a atrocidade, Vês! Arrasto-me aliás! mas, mais abestalhado, Digo: Que buscam no Céu, todos esses cegos?

A uma passante A rua ensurdessente entorno a mim uivava. Longa, magra, em grande luto, dor majestosa, Uma mulher passou, com uma mão pomposa Provocando, balançando o festão e a anágua; Ágil e nobre, com suas pernas de estátua, Eu, bebia, crispado como um basbacão, Em seu olho, céu níveo onde nasce o furacão, A doçura que fascina e o prazer que mata. Um clarão... depois a noite! - Fugaz beldade Cujo olhar subitamente renascer me fez, Não te veria mais senão na eternidade? Longe daqui! tarde demais! jamais talvez! Pois ignoro onde foste, não sabes aonde ia, Oh tu que o sabias, oh tu que eu amaria!

A Morte dos Amantes Max Brandão e Ricardo Meirelles Teremos leitos cheios de cheiros ligeiros, E profundos divãs a túmulos parelhos, E estranhas flores que, sobre os tabuleiros, Eclodem para nós sob esses céus mais belos. Usando ciosos seus calores derradeiros, Nossos dois corações serão dois vastos brilhos, Que refletirão duplos seus gêmeos luzeiros Nos nossos dois espíritos, esses espelhos. Uma tarde feita de rosa e azul místico, Entre nós dois trocaremos um clarão único, Como um longo soluço, de adeus, carregado; E mais tarde um Anjo, entreabrindo os portos, Terá, fiel e alegre, em nós reanimado Os espelhos opacos e os fogos mortos.

O vinho do solitário O olhar singular de uma mulher galante Que desliza sobre nós como o branco raio Que a lua ondulante envia ao lago verde-gaio Quando quer banhar sua beleza indolente; O último ouro nos dedos de um jogador; Um beijo libertino da magra Adelina; Os sons de uma música que enerva e anima, Lembrando longe o grito da humana dor, Tudo isso não vale, oh garrafa profunda, O bálsamo intenso que tua pansa fecunda Guarda aos corações loucos dos poetas mais pios; Verte-lhe tu a esperança, a juventude e a vida, - e o orgulho, de toda mendicância a medida, Que nos torna triunfantes e aos Deuses eqüios.

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