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CRÓNICA DA MORTE DE UM PAI
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Uma ideia é apenas uma verdade à espera da sua oportunidade.
P. Barbosa http://pdfcoke.com/transiente
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Sim, senhor Doutor. – foi com esta afirmação resignada que Drago recebeu a informação. As palavras são a prova material da imaterialidade da alma. Escrita, falada ou gestual, não importa, as palavras são os vasos comunicantes entre as almas deste mundo. Fisicamente podem ser representadas por oscilações na pressão do ar ou por pontinhos pretos elegantemente arranjados numa folha de papel branco, mas para um homem, se não tem cuidado com o que lê e com o que ouve, por mais são que seja o seu corpo, as palavras podem desfazer-lhe a alma em farrapos, destruir-lhe as convicções, levá-lo à loucura, mirrar-lhe o corpo ou provocar um ataque ao coração. Não interessa a representação material da palavra. É a sua substância imaterial que pode dar cabo de um homem, de um país, do mundo. O destino estava traçado. Restavam-lhe entre três a seis meses de vida. O cancro nos seus pulmões decidiria quando exactamente ficaria sem ar e morreria por asfixia. A ele apenas restava esperar e aceitar. p3
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Drago sempre preferiu a monotonia controlada da vida às surpresas imprevistas de uma vida deixada ao sabor da sorte. Puro engano. O mundo controlado e seguro de Drago é apenas uma doce ilusão que escolheu acreditar, e que lhe deu o falso conforto que a realidade da vida se apressou a destroçar à primeira oportunidade. Drago não tem mais tempo. Acabou-se de repente sem avisar. Aos treze anos de idade, Zodiak vê o seu pai deitado na cama sofrendo e gastando os últimos momentos de existência e compreensão. Zodiak não entendia, não podia aceitar. O pai era o chão que o amparava da força da gravidade, o pão que alimentava o seu corpo, a água que lhe matava a sede, o ar que lhe enchia os pulmões, o sangue que lhe corria nas veias. «Que vai ser de mim sem o meu pai?», pensava ele sem pensar. E assim, sem aviso nem programação, um dia, o pai chegou-se à sua beira e disse vagarosamente, cabisbaixo, como se lhe fosse pedir desculpa: Filho, estou doente. E vais tomar remédio? – perguntou Zodiak. Não há remédio para o que tenho. Então o médico vai operar-te? – insistiu. Não há médico que me cure. p4
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Não percebo, pai. Vais ficar doente para sempre? Drago hesitou. Como dizer algo que está destinado a não ser compreendido? Diz-se, simplesmente? Procura-se arranjar uma razão, uma justificação para o que vai acontecer? Mesmo sabendo que a razão nada tem a ver com a emoção? Drago levantou os olhos apontados ao chão, mergulhouos nos do seu filho e acariciou a face de Zodiak, que ainda não compreendendo já antecipa na sua expressão imóvel o terramoto que se aproxima. Vou morrer, filho. – disse ele, simplesmente. Zodiak procurou no mundo seguro que lhe foi ensinado uma reposta para o que acabou de ouvir. Mas nada encontrou. O medo chega lesto e instala-se. Pai!? Tenho um cancro nos pulmões. Está a devorá-los. Em breve já não vou estar aqui contigo, e por isso tens de te preparar. Ele disse aquilo num tom de voz tão normal como «Quando acabares de jantar lavas os dentes e vais para a cama», procurando trazer alguma normalidade para algo p5
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que não era normal, mas isso não chega para enganar o seu filho. Zodiak deixou-se cair ao chão em pranto, lágrimas instantâneas de desespero escorrendo pela face agora torpe, como se já estivessem preparadas para um acontecimento que esqueceram de lhe mencionar. Naquele instante, Zodiak mergulha num mundo interior de dor, só dor, física e mental, as entranhas revoltando-se lá dentro procurando assumir uma nova geometria impossível de alcançar, a cabeça latejando para trás e para a frente, os músculos contraídos numa expressão disforme e tão pouco humana como a situação em que se encontrava. Não abraçou o pai, abraçou-se a ele próprio, temendo aquilo que iria perder, a rede que o protegia lá em baixo e que o segurava. Tinha pena de si, da sua tragédia. E o pai, naquele instante, comoveu-se também, não sei bem se com pena do filho ou de si próprio, e chorou, agarrando-se ao filho que se agarra a ele próprio. É este o poder do amor; a capacidade de chorarem todos em conjunto, uns com os outros, por causa de uma mesma coisa, mas cada um sentido dores diferentes. Não tiveram muito tempo para chorar. Três meses depois lá estão eles novamente, mas agora só um chora; o pai está deitado, sem forças, à beira da morte. p6
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O corpo tornara-se esquelético. A carne tinha desaparecido. Consumido. Consumindo-se. A fraqueza física gastava agora o pouco que sobrava para respirar o ar que ainda conseguia entrar através de pulmões que já lá não estavam. Fim miserável, morrer com falta de ar num quarto cheio dele. Os seus olhos, que pareciam ser a única coisa que permanecia viva, desproporcionadamente abertos, olhavam para aqueles que em seu redor choravam e não choravam, que respiravam sem o menor esforço, que desperdiçavam até sopros de enfado enquanto ele tinha de negociar com o corpo cada molécula de oxigénio. «Meu Deus», pensou ele. «Não fazem nada?», pensou novamente, em desespero. Sentiu o fim aproximar-se. Se durante a vida é o corpo que sustenta a mente preguiçosa, que muitas vezes o despreza, agora era o oposto. Agora era a vingança. O corpo já tinha desistido, e apenas a existência da sua alma o segura, procurando equilibrá-lo em cima de um fio de malabarista, como um passageiro de um avião que se vê obrigado a aterrar de emergência o 747 abandonado pelo piloto. «Vou-me embora, estás por tua conta», disse Ele sem dizer. «É agora», pensou Drago. Já não consegue aguentar mais. Deixou de sentir, e uma última vibração percorre o p7
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seu corpo material, o último acorde do pianista que já não tem mais música para tocar, pois a partitura que o guiava chegou ao fim. As suas entranhas dão um último espasmo, o seu coração pára por um momento, depois dá meia dúzia de batidas mais e pára definitivamente. Ele sente isso; o coração parou, pois o sangue leva ainda, num movimento estúpido e cínico de inércia as últimas moléculas de oxigénio que lhe permitem sentir a sua própria morte. A visão desaparece progressivamente como num filme antigo a preto e branco, assim como a audição. Abriu os olhos o mais que pôde, como se daí viesse alguma salvação. Quem está de fora deste sofrimento pressente o fim, aumentam os choros e os chamamentos. Zodiak fica estranhamento inerte, olhando o pai no seu último movimento de vida. Em Drago só a face parece subsistir, a boca meio aberta num misto de medo e antecipação, os olhos esbugalhados como nunca antes vistos, e a testa franzida como a de quem corre desesperadamente à procura da porta de saída segundos antes de ser chacinado pelo assassino que o persegue. Sabia que o pai era, no fundo, um verdadeiro crente, que acreditava que depois viria algo mais, algo melhor, uma continuidade, e nesses meses finais tinham falado no p8
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assunto mais do que era costume, talvez para aplacar os medos de Zodiak, talvez para aplacar os medos de Drago. Procurou ler no seu pai moribundo o que ia lá dentro. Mas para além da expressão evidente de dor, talvez misturada com uma certa ansiedade sofrida, não sabia o que pensar. A única coisa que lhe passou pela cabeça foi que o seu pai estaria a pensar; «Onde está o céu que me prometeram?». Drago já não ouve nada. Da pele não vem sinal algum. Os olhos tinham mergulhado na escuridão. Apenas um cheiro nauseabundo o percorre, e a pergunta; «Será que apodreço já?». Uma torrente imensa de sentimentos inunda a sua mente, cada um lutando para ser o último. Sozinho, infinitamente sozinho no seu mundo interior, catapultado para um mundo só dele, livre de fronteiras, livre de dor e sofrimento, livre das coisas mesquinhas que fazem vidas inteiras de todas as pessoas do passado, presente e futuro, sozinho nesse infinito perfeito, vê uma imagem flutuante do seu filho com três anos, que na sua felicidade inocente olha para o seu pai com um sorriso e lhe pede com uma alegria de antecipação, apontando para o baloiço, «Pai, empurra». Drago agarra essa imagem com todas as forças que ainda lhe restam, a vontade do seu p9
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amor por Zodiak maior que qualquer outra que se atravessa no seu caminho, varrendo com uma tempestade infinita todas as outras vontades que vagueiam na sua frágil alma. «FILHO....AMO-TE», gritou na sua voz interior, gastando a força que ainda lhe sobrava, enquanto se afundava no buraco negro da existência. Ficou ali com ele, empurrando-lhe o baloiço, Zodiak rindo com o vento da vida que lhe acaricia a face e lhe mistura os cabelos, desfrutando um momento que parece eterno enquanto a imagem se desvanece e depois acaba. Zodiak olhou mais uma vez e perguntou, simplesmente, «Pai?»; o seu pai já não está ali. Naquele instante alguma coisa morreu em Zodiak. Sentiu que uma parte de si também partiu. Um calor que veio de dentro e lhe aqueceu o corpo, uma dor imensa que lhe percorreu os ossos e o quase atira ao chão, algo que ardeu e se esfumou no ar para não mais voltar. Ficou imóvel, chorando para dentro, sofrendo uma dor que o corpo recusou representar. Nunca mais foi o mesmo. Foi a sorte dele.
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FIM “Crónica da Morte de um Pai” é um conto extraído do manuscrito “Segredos Perfeitos” ************************************************************ Procure Também:
«NÃO LEVO SAUDADE» Com o meu pai aprendi que cada palavra é preciosa. Dizia-me frequentemente, com um sorriso desafiador, Cada palavra é preciosa! A verdade tem uma direcção mas não um destino (não te esqueças). Tudo o que eu digo é mentira, vê se descobres... Nunca descobri a verdade escondida naquelas palavras preciosas.
Romance (270 páginas). Disponível no iBooks, Nook, Kobo, Sony eReader, SmashWords, Kindle. ************************************************************ PS: Poderá encontrar mais «material» em: http://pdfcoke.com/transiente http://sopadasvontades.blogs.sapo.pt
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