Por Uma Comunicação Autogestionária

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POR UMA COMUNICAÇÃO AUTOGESTIONÁRIA Pedro Aguiar, 12-13/4/2008 Neste momento em que o Brasil se vê diante de uma polarização midiática - de um lado, os conglomerados privados e, do outro, a nascente empresa pública de comunicação amalgamando as experiências anteriores -, é importante lembrar que existe uma outra forma de se pensar e fazer comunicação. Assim como nos anos da Guerra Fria existiu um Movimento de Países Não-Alinhados, também hoje é possível pensar uma organização nãoalinhada, não mais entre duas superpotências beligerantes, mas entre as formas privatista e estatal. A prática mais bem-sucedida até hoje para esta forma é a autogestão. Por autogestão, entendem-se inúmeras formas distintas de organização da produção, mas com um eixo em comum: o controle dos meios por quem os opera, sem mais-valia e sem submissão a um poder exógeno. O diferencial basilar da autogestão em relação ao socialismo é que aquela independe da socialização dos meios de produção e da autoridade do partido como agente regulador burocrático. Na verdade, a autogestão é possível tanto no capitalismo quanto no socialismo, porque não se trata de um modo de produção distinto, mas de uma forma de organização produtiva por livre-associação. A autogestão é uma bandeira de luta tanto de correntes anarquistas quanto de socialistas críticos ao modelo marxista-leninista, ou stalinista/soviético. Estas últimas se dividem num espectro tão amplo que abarca desde revisionistas até trotskistas e eurocomunistas, com concepções conflitantes e às vezes inconciliáveis sobre o que seja uma produção autogestionária. No entanto, a única destas correntes que de fato praticou algum tipo de autogestão - ainda que modo imperfeito, ao qual obviamente cabem críticas foi a do socialismo iugoslavo implantado por Tito e seus colaboradores Edvard Kardelj e Milovan Djilas entre 1945 e 1992. A rigor, pode-se considerar que a autogestão iugoslava começou ainda antes, em 1943, com a ascensão da resistência ao nazi-fascismo. O próprio processo de libertação iugoslava, se cabe a metáfora, foi “autogestionário”, na medida em que a organização guerrilheira dos partizans se deu com ampla autonomia de ação, ainda que obedecendo a uma orientação tático-estratégica geral. Diferentemente de outros países do Leste Europeu, a libertação da Iugoslávia foi feita não com a intervenção do Exército Vermelho (soviético),

mas de dentro para fora, com a ação de civis que pegaram em armas e expulsaram à força os invasores nazistas no norte e fascistas ao sul, aliados a colaboradores locais (especialmente da Albânia e da Croácia). A liderança de Tito, Kardelj e Djilas (um croata, um esloveno e um montenegrino) impulsionou estes combatentes em direção à adoção do socialismo. Por isso, na Iugoslávia não houve os golpes partidário-palacianos que levaram os comunistas ao poder na Tchecoslováquia, na Romênia e na Hungria, entre outros, mas uma autêntica revolução (seguida de uma breve guerra civil contra os reacionários monarquistas) que implantou o socialismo de baixo para cima, de base popular e enraizamento comunitário. Assim, quando a partilha da Europa é decidida nas conferências de Teerã e Ialta, no final da Segunda Guerra, a inclusão da Iugoslávia sob a órbita de influência soviética é incongruente com a situação revolucionária vivida no país. É por isso que, embora Tito (e particularmente Djilas) fosse um “aluno exemplar” do marxismo-leninismo (naquela época, sinônimo perfeito de stalinismo), Stalin se incomoda de imediato com a autonomia políticoeconômica e militar iugoslava e tenta destarte “cortar as asas” dos comunistas naquele país. É de Stalin que parte a agressão. O primeiro golpe se dá em 1948 no âmbito do Komintern reorganizado sob o nome de Kominform, por meio de uma carta exigindo que o Partido Comunista Iugoslavo deponha a liderança de Tito e instaure outra, “mais confiável” (que seria a de Djilas1). Debaixo de chantagem econômica-militar, outras lideranças do Leste Europeu corroboram a exigência. Diante da recusa iugoslava e da confirmação de Tito no poder, o PCI é expulso do Komintern e a Iugoslávia deixa a Cortina de Ferro para nunca mais voltar. Um pivô muitas vezes negligenciado para o ataque stalinista foi a negociação entre Tito e Dimitrov, da Bulgária, para formar uma grande federação eslava nos Bálcãs, que uniria um território do Mar Negro ao Adriático, criando um cinturão de isolamento no sul da Europa. Nesta época, a Grécia estava em guerra civil entre monarquistas e comunistas (ajudados por Tito) e a Turquia era ponto de ação estratégica na Guerra Fria. Internamente, os iugoslavos articulam um outro órgão - o Informbiro - que se pretende alternativo ao Kominform mas não sai do âmbito nacional. Mas o passo decisivo é 1

Djilas, um stalinista renitente, rompeu com Tito e foi preso duas vezes - mas, em vez de executado ou exilado, como era o procedimento praxe aos dissidentes na URSS, ele pôde não só escrever suas idéias, como teve seus livros publicados editorialmente.

no campo teórico-metodológico: como construir um tipo de socialismo que fosse, ao mesmo tempo, oposto ao modelo stalinista e genuinamente marxista? Para atender esta demanda, os iugoslavos foram direto à fonte: buscaram em Marx as bases do que seria uma organização da produção socialista. Encontraram nos escritos de Marx sobre a Comuna de Paris (1871) a essência do que corresponderia às suas aspirações: a de que o socialismo deve ser fundamentado na “livre associação dos produtores diretos”. Com isto, partiram da convicção de que nem toda propriedade privada é capitalista, mas somente aquela baseada em mais-valia, ou seja, resultante da exploração do homem pelo homem e da dominação de classes. A pequena propriedade rural, o comércio familiar e a micro-empresa seriam estruturas privadas de produção mas não capitalistas, sem explorar o trabalho proletário nem alienar o trabalhador dos meios de produção. Os stalinistas viram nisso uma traição ao socialismo e um retorno dissimulado ao capitalismo. Apelidaram os socialistas iugoslavos de “titoístas”, nova pecha que tomou lugar de “trotskistas” nas acusações usadas nos expurgos internos. Mas os titoístas sabiam que não estavam traindo o socialismo nem revisando o sistema. Tinham convicção de que a autogestão se propõe uma alternativa pragmática não ao socialismo, mas à ditadura do proletariado - que se degenerou em burocracia partidária como dominação de classe. Em 1952, o Partido Comunista da Iugoslávia foi rebatizado como Liga dos Comunistas da Iugoslávia (LCI ou, na sigla original, SKJ), uma confederação dos partidos das repúblicas iugoslavas - que, constitucionalmente, eram livremente federadas e tinham o direito de sair da federação sempre que quiserem. A própria mudança de nome do Partido não é apenas simbólica, mas reflete esta mudança de paradigmas: o papel do partido deve ser não o de monopólio do poder nem o aparelhamento do Estado, mas o de liderança hegemônica na sociedade. Os princípios do socialismo autogestionário ou titoísmo como ideologia foram sintetizados no Programa de Liubliana, de 1958 (ou “Program Saveza Komunista Jugoslavije”), que afirmava, entre tantos outros pontos: “o socialismo é um sistema social baseado na socialização dos meios de produção, em que a produção social é dirigida pelos produtores diretos associados”; e que “o desenvolvimento, mesmo sob o socialismo, deve proceder através da superação de conflitos socioeconômicos endógenos (contradições)”.

Parece óbvio e simplório agora, mas tal asserção nos anos 1950, com a visão coletivista-estatista do bloco soviético ortodoxo, era um contraponto até libertário. É preciso lembrar que Tito permaneceu até o fim de seus dias com um vizinho stalinista ferrenho (mesmo após 1956) que constituía um anti-modelo: a Albânia de Enver Hoxha. Contra isto, os iugoslavos começaram a construir um país mais produtivo, dinâmico e apto a se adaptar às demandas produtivas e sociais. Em lugar de monopólios estatais onde fábricas colossais eram dirigidas por burocratas nomeados pelo partido, os trabalhadores se organizavam em empresas menores, comunitárias, com decisões tomadas em assembléias e sem interferência externa. Havia concorrência. Havia repartição de lucros. Havia criatividade e diferenciação. Tudo isso concorreu para uma alta produtividade, comparativamente maior do que em vários países da Cortina de Ferro. Disto nasceu um regime com relativas liberdades sociais (em comparação com o resto do mundo socialista): de iniciativa, de viajar, de escolher profissão, de expressão (parcialmente) e inclusive sexual. A conclusão geral que estava no cerne desta política é a de que a relação dialética entre a autonomia dos trabalhadores e as demandas sociais é um conflito cuja resolução pressupõe “a aplicação do princípio de autogestão em todos os níveis do sistema social e político” - o que inclui a comunicação. Tal campo não foi negligenciado pela Iugoslávia. Os titoístas refundaram a agência de notícias nacional, a Avala, sob o nome de Tanjug - Telegrafska Agencija Nove Jugoslavije -, e espalharam uma rede de correspondentes por todas as partes do mundo, inclusive no Brasil. Foram contemplados não só os centros do poder capitalista ocidental, mas também cidades e países do Terceiro Mundo (na época, em processo de descolonização), a partir da convicção de que também eles geram notícias relevantes. A própria atuação internacional do socialismo autogestionário foi proeminente, até mais internacionalista do que a teoria da “revolução permanente”. Tito e Kardelj passaram a defender as “vias nacionais para o socialismo”, que deveria ser alcançado de acordo com as condições históricas e materiais de cada países - seus próprios recursos naturais, seu território, sua cultura, sua organização social nativa. Era uma tese, aliás, que o próprio Stalin defendera até 1948. Tal pensamento caiu como uma luva para os países que então se emancipavam das potências imperialistas (a primeira leva, nos anos 40-50 no sul da Ásia e

a segunda, nos anos 60-70 na África e no Caribe) e tinham pressa de atender às graves demandas sociais, com manifestações como a de Amílcar Cabral e sua negação da ditadura do proletariado. Junto com três destes líderes emergentes - Nehru na Índia, Nasser no Egito, depois substituído por Sukarno na Indonésia -, Tito fundou o Movimento Não-Alinhado, ou seja, dos países que recusavam o alinhamento geopolítico tanto com a União Soviética quanto com os Estados Unidos. Vários países árabes e magrebinos, principalmente os regidos por ideologias secularistas (baathismo no Iraque e na Síria; teoria de Kadafi na Líbia), também aderiram. E o NAM (da sigla em inglês) passou a ser o maior defensor de uma ampla reestruturação da economia global, em que as ex-colônias continuavam sendo exportadoras de matéria-prima (produtos baratos) e importadora de bens industrializados (produtos caros), gerando um desequilíbrio favorável aos antigos imperialistas. Estes, nesta época, já eram chamados de Primeiro Mundo; os socialistas, de Segundo Mundo; e aos recémdescolonizados (mais a América Latina, independente desde o início do século XIX) coube o rótulo de Terceiro Mundo. A campanha foi batizada de Nova Ordem Econômica Internacional e não tardou para que se constatasse que a comunicação seguia os mesmos desequilíbrios de valores do comércio de bens materiais. Não somente a informação era tratada como outra mercadoria qualquer, mas à informação proveniente do Terceiro Mundo era atribuído um valor mais baixo, “barato”, enquanto àquela vinda do Primeiro Mundo se atribuía um alto valor, de “produto caro”. Em meados dos anos 1970, os não-alinhados começaram a chamar a atenção para a necessidade de reformar também a comunicação internacional e desdobraram da NOEI a Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação, ou NOMIC. A primeira resolução específica sobre a questão foi adotada na conferência de Argel em 1973. Os países participantes exigiam os seguintes pontos: “1. reorganizar os canais de comunicação existentes, legado do passado colonial; 2. iniciar uma ação conjunta para a revisão dos acordos multilaterais existentes para a revisão de quotas de canais de imprensa; 3. adotar medidas urgentes para acelerar o processo de propriedade coletiva dos satélites de comunicação com um código de conduta para orientar o seu uso; 4. promover maior contato entre os meios de comunicação de massa, universidades, bibliotecas e organismos de planejamento e pesquisa e outras instituições, para permitir aos paises em desenvolvimento o intercâmbio de experiência e técnicas.”

Os intelectuais, diplomatas, estadistas e técnicos presentes nas conferências do NAM passaram a reivindicar um novo ordenamento global que corrigisse tais desequilíbrios quantitativos e qualitativos e impusesse uma nova visão (não-comercial, nãoetnocêntrica, social) ao processo comunicativo. E neste contexto surgiu a iniciativa de uma cooperação institucionalizada entre os provedores de informação nacionais (na maioria, estatais) de todos os países-membros. Como medida prática, dois anos depois, numa reunião intergovernamental em Belgrado, então capital da Iugoslávia, os não-alinhados fundaram o primeiro pool de agências do movimento: o NANAP (Non-Aligned News Agencies Pool, ou Pool das Agências de Notícias [dos Países] Não-Alinhados). O NANAP funcionou de 1975 até meados dos anos 1990. A gestão organizacional, o financiamento, a equipagem, a instalação de infraestrutura (na época, majoritariamente o serviço telegráfico) e o trabalho de capacitação profissional deveriam ser compartilhados entre todos os participantes, livremente associados, autônomos e supostamente sem sofrer ônus a nenhuma das partes. A realidade, porém, foi que algumas agências se mostraram mais ativas e em estágio mais avançado que outras para cumprir estas tarefas. Foi o caso da Tanjug (Telegrafska Agencija Nove Jugoslavije, “Agência Telegráfica da Nova Iugoslávia”), que não só foi a entidade que lançou a sugestão do pool como na ocasião já tinha 40 correspondentes distribuídos pelo planeta (SALINAS, 1984: 198), mais que qualquer outra entre as congêneres terceiro-mundistas. A Tanjug sediou o NANAP em Belgrado e coordenou o envio dos primeiros despachos (idem; 193-197). Também promoveu treinamento com jornalistas asiáticos e africanos na Iugoslávia. O Fundo Iugoslavo de Solidariedade entregou equipamentos a agências de países mais pobres e lançou sugestões a entidades multilaterais como a UIT (União Internacional de Telecomunicações) para fornecer desconto em tarifas de telégrafo. O papel iugoslavo era também político mesmo fora do âmbito não-alinhado: o então diretor da Tanjug, Bogdan Osolnik, foi um dos integrantes da Comissão MacBride, da UNESCO, que analisou os problemas da comunicação internacional. E o próprio texto foi aprovado por aclamação justamente na conferência em Belgrado. Ao mesmo tempo, porém, os

iugoslavos promoviam o policentrismo como princípio basilar da cooperação (LALIĆ, 2003: 146). De 1976 em diante, outras agências assumiram o papel de “centros redistribuidores” do NANAP, como a iraquiana INA, a tunisiana TAP, a marroquina MAP e a indonésia Antara. Mas tanto o maior volume de notícias enviadas quanto o maior número de profissionais envolvidos continuava sendo da agência iugoslava. Com a morte de Tito, em 1980 (poucos meses antes da conferência da UNESCO em Belgrado), as direções políticas na Iugoslávia mudaram e o incentivo da Tanjug à colaboração terceiro-mundista arrefeceu. De meados dos anos 1980 em diante, o papel de liderança no pool não-alinhado coube à recém-fundada agência iraniana IRNA (Islamic Republic News Agency), já que então o Irã era foco de atenções ocidentais por causa da revolução fundamentalista, dos choques com os EUA e da guerra contra o vizinho Iraque (curiosamente, também membro do NAM e do NANAP). Mas, com a morte do aiatolá Khomeini, em 1989, mais uma mudança de dirigentes voltou a deixar o pool abandonado – numa evidência de que o policentrismo, se de fato praticado, não foi capaz de sustentar a continuidade do projeto. Como visto, o Partido (SKJ) exercia um papel de hegemonia no regime titoísta, não de monopólio do poder. Tudo leva a crer que o Estado iugoslavo de 1945 a 1980 não era aparelhado pelo Partido, o que marca uma diferença crucial nos regimes de orientação stalinista no Leste Europeu de 1945-1956 (e, na Albânia, até 1991). Certamente esse aspecto é importante para entender o desenvolvimento da Tanjug com relativa autonomia e diferença de projeto de agência nacional em relação às demais de países socialistas - ou seja, não um órgão do Partido para o exterior (como a TASS soviética e a Xinhua chinesa), mas antes uma agência de “input informativo”, do mundo para a Iugoslávia. A Tanjug imprimiu ao NANAP uma práxis de cooperação autogestionária dentro do “espírito” titoísta, ao coordenar os trabalhos de instalação, capacitação e operação do pool. Em lugar de centralizar a distribuição do conteúdo, os despachos eram transmitido ponto-aponto, por meio de núcleos redistribuidores (a MAP do Marrocos e a INA do Iraque eram dois destes). Em vez de haver uma mesa única tomando as decisões editoriais, havia total liberdade de ação e cada agência-membro só aproveitava o material que escolhia republicar. Em resumo, com o NANAP a autogestão era aplicada na prática à comunicação.

Uma política titoísta ou autogestionária de funcionamento do pool (arrisco a chamar de marxista-libertária) certamente terá sido algo à frente de seu tempo e coadunante com a tendência atual de “colaborativismo”, marcas visíveis da Wiki, Web 2.0, software livre e deste próprio CMI. O espírito do colaborativismo é análogo ao socialismo autogestionário e tem muito menos a ver com o neoliberalismo radical individualista do que com a solidariedade produtiva titoísta. Os iugoslavos já falavam em “trabalho associado” nos anos 1950, meio século antes de Larry Sanger e Jimmy Wales desenvolverem o princípio da Wikipedia. Atualmente, o foco dos holofotes é a suposta capacidade miraculosa das novas tecnologias, tais quais varinhas de condão, de dotar de plenos poderes comunicativos o cidadão comum – não bacharel, não concessionário de uma freqüência magnética e, eventualmente, nem mesmo alfabetizado. Um canal de TV, uma emissora de rádio, uma revista, um jornal e um blog para cada habitante da terra. Basta adquirir a parafernália respectiva. Não são poucos, ainda, aqueles que, desarmados da crítica necessária às análises sociais, preferem por “esquecer” que a esmagadora maioria da população mundial (3,8 bilhões em 2001, segundo o Banco Mundial ) está inexoravelmente alijada destes espetáculos tecnológicos, preocupada demais com a subsistência diária para sequer sonhar em adquirir um iPhone pelo eBay pagando com cartão de crédito internacional. Fala-se em mundo sem esquecer que tal desigualdade está reproduzida em escala menor porém não menos gritante no próprio Brasil (19,3% abaixo da linha da pobreza, diz a FGV em 2007) e na cidade do Rio (14,57% pela mesma fonte ). Não há capitalismo tardio/avançado nesses casos. De fato, a realidade econômica em algumas das comunidades mais isoladas está mais próxima do modo de produção feudal do que do sistema capitalista propriamente dito. Como considerar, então, dada essa realidade de extrema desigualdade, a possibilidade de integrar ricos e pobres em sistemas internacionais de informação abertos e inclusivos? Sabemos que a orientação marxista ortodoxa recomenda a aliança estratégica entre o proletariado e a camada “progressista” da burguesia nacional em cada país, Só que, na América Latina, onde a burguesia é tradicional aliada dos latifundiários (homóloga, dado os devidos contextos, à aristocracia européia) e do imperialismo estadunidense. Assim como

no resto do Terceiro Mundo, essa mesma burguesia é dona da grande mídia privada, o que impede pragmaticamente qualquer aliança estratégica possível com a burguesia nacional do Terceiro Mundo no campo da comunicação. Em termos práticos, isso significa que programas de TV, colunas de jornal, sites e blogs contestatórios encerrados dentro de emissoras, jornais e portais da mídia corporativa serão contradições em si, tendentes a se esvaziarem de conteúdo político-ideológico. O fato é que, a despeito de já estarem dotados de sistemas integrados em redes eletrônicas ou dependerem da estrutura de freqüência de radioamadores, os nós de comunicação no Terceiro Mundo estão inseridos num panorama maior da comunicação globalizada – isto é, querendo ou não, são tocados em algum ponto pela malha da rede. As NTICs podem não criar sozinhas a transformação superestrutural que delas se espera (como nenhuma outra tecnologia, por sinal), mas ainda assim abrem as portas necessárias para que tal transformação ocorra. O que é preciso, neste caso, é o movimento essencialmente político de concretizá-la. Se a revolução segundo os princípios marxianos não ocorreu onde as condições produtivas lhe eram aparentemente favoráveis, por que também a revolução informativa não pode ocorrer onde as condições infraestruturais de comunicação não são ideais? Se a Rússia agrária semi-feudal pôde ver sua “socialistização” acelerada a partir do papel revolucionário centralizado dos bolcheviques, por que também a comunicação “coronelizada” do Brasil e do Terceiro Mundo não pode ser transformada a partir da ação orgânica de atores sociais comprometidos com a emancipação das classes populares? Desaparelhar o Estado também deve ser o princípio da cooperação Sul-Sul no campo da comunicação, tal como feito pelo SKJ. Não se pode mais acreditar em soluções estatistas, sob risco de perder apoio de grande parcela da sociedade descrente na eficiência gerencial do Estado. Até porque a esfera estatal deixou há muito de ser o campo exclusivo sequer predominante - da luta social. Não há dúvidas de que hoje, este campo de lutas é o espaço simbólico da comunicação e que o maior poder em disputa é o de representação, de gerar discursos e construir imagens. As classes populares estão em franca desvantagem neste terreno, perdendo o direito à auto-representação para o discurso conservador e unilateral da mídia corporativa (exemplo concreto são as matérias do “Jornal Nacional” sobre o MST). Os

blogs, wikis e ferramentas de comunicação colaborativa ainda não têm poder de alcance emancipatório que seria desejável. E tampouco parece ser esta a meta da recém-constituída rede de comunicação pública (TV Brasil e Empresa Brasileira de Comunicação, que englobou Radiobrás, Agência Brasil e TVE). Aliás, “englobar” parece um termo adequado, já que a intenção parece ser constituir uma emulação da rede-monopólio de TV em versão estatal. Por outro lado, no ambiente econômico de países subdesenvolvidos, como o do Brasil e do universo que abordaremos, tais mudanças do “capitalismo avançado” ou nunca chegaram ou chegaram sem alcançar predominância, convivendo concomitantemente com outros modos de produção anteriores (industrial, pré-industrial e, em certos casos em áreas afastadas de grandes centros, similar a um feudal). O mundo é muito mais vasto que as concentrações cosmopolitas, e assim é necessário considerar os diferentes contextos infraestruturais congruentes com a realidade terceiro-mundista ao propor abordagens de economia política para o desenvolvimento da comunicação internacional. Para isto, o modelo autogestionário - em toda a pluralidade que abarca - se constitui como solução adequada. Com tudo isto, conclui-se que é possível pensar uma economia política da informação desses sistemas internacionais de comunicação a partir do pensamento econômico iugoslavo e assim estabelecer as bases do que seria necessário empreender por uma comunicação autogestionária.

BIBLIOGRAFIA AGUIAR, Pedro. Jornalismo Internacional em Redes: de como usar NTICs para concretizar a NOMIC. monografia de graduação em Jornalismo apresentada à Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Mohammed ElHajji. Rio de Janeiro: ECO/UFRJ, 2007. AMIN, Samir. “A Vocação Terceiro-Mundista do Marxismo”, in: HOBSBAWM, Eric. História do Marxismo, vol. XI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. tradução: Carlos Nelson Coutinho. ___________________. “Geopolítica do Imperialismo Contemporâneo”, in: BORON, Atilio (org). CHOMSKY, Noam et alii. “Nova Hegemonia Mundial: alternativas de mudanças e movimentos sociais”. Buenos Aires: CLACSO, 2004.

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