A Viagem De Volta. Oliveira, João Pacheco De (org) (livro Completo).pdf

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05 Primeiros Brasileiros é uni projeto desenvolvido Nacional

e

pelo o

LACED/Museu

INPSO/Fundação

Joaquim Nabuco que focaliza os povos indígenas do Nordeste em

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uma perspectiva antropológica e

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histórica.

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Inclui

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atividades

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de

OS PRIMEIROS BRASILElHi

pesquisa e divulgação científica e cultural - seminários, exposin» > produção de documentação sonora e em vídeo, entre outras

nu

iniciativas articuladas, que reúnem equipes de pesquisa, organí/av" não governamentais, representações indígenas e diferentes esferas d<* poderes públicos. Este livro é o primeiro de uma série de publicaçdi*» sobre o tema.

Kl Qxfam

f ) territórios sociais

A dllrronçn do que julga boa parte da opinião publica, os povos Indígena* do Brasil não vivem ip t n a i na Amazônia e no Brasil Central, em lugares de acesso remoto nos quais a sociedade mu tonal ainda se expandia durante n sei ulo XX, Habitam também antigas áreas de colonização do país, como o Nordeste, o Sudeste e o Sul tio pais, o não só inspiram estudos e analises antropológicos, como têm si tio Importantes atores políticos no estubelot ímento de políticas públicas. Os oito lexlos aqui reunidos valorizam a dimensão etnográfica e resultam de pesquisas desenvolvidas por antropólogos nos últimos dez anos sobre o fenômeno do ressurgimento de Identidades t lnlcas Indígenas em uma das mais antigas reglôes de colonização do pais, o Nordeste. Fruto de um puilonqado trabalho de campo e da utlll/açao de métodos e conceitos anlropológlcos, guardam entre si urna relativa unidade de gênero, <.tr.it leri/ando-se pela apresentação tlensa cie relações sociais, pela ênfase nas situações e personagens espoc ifit os e pelo exercício vigilante da crítica I evando em conta as polílicas governamentais e os processos sociais mais amplos, prot edem a descrições de situações aluais, sem perder de vista o estudo

A VIAGEM DA VOLTA

© territórios sociais DíreçSo -- Antonio Carlos dc Souza Lima

1. Indígenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo João Pacheco de Oliveira (org.) 2. A viagem da volta: etniddade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena João Pacheco de Oliveira (org.) 3 . ANTES TARDE DO QUE NUNCA

Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais Eduardo Mana Vargas 4. Os índios do Descobrimento: tradição e turismo Rodrigo de Azeredo Grünewald 5 . Do desenvolvimento comunitário à mobilização política: O Projeto Kaiowa-fiandeva como experiência antropológica Rubem Ferreira Thomaz de Almeida 6. Etnodesenvolvimento e políticas públicas: bases para uma nova política indigenista Antonio Carlos de Souza Lima Maria Barroso-Ho/fmann (orgs.) 7. Estado e povos Indígenas: bases para uma nova política indigenista II Antonio Carlos de Souza Lima Maria Barroso-HoFfmann (orgs.) 8. Além da tutela: bases para uma nova política indigenista 1JI Antonio Carlos de Souza Lima Maria Barroso-Hoffmann (orgs,) 9. Reconhecimento étnico em exame: dois estudos sobre os Caxixó Ana Flávia Moreira Santos João Pacheco de Oliveira 1 D. Pedra do Encanto: dilemas culturais e disputas políticas entre os Kambiwá e os Pipipã Wallace de Deus Barbosa

A viagem da volta etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena

João Pacheco de Oliveira O R G A N I Z A D O R

LACED

Copyright © dos autores 1999,2 0 0 4

Capa, projeto gráfico e preparação Contra Capa Fotografia de capa Fernando Barbosa (G T Indígena/UFPB)

A viagem de volta: etnicidade, política e reeiaboração cultural no Nordeste indígena, [oão Pacheco de Oliveira (org.). 2 “ ed. Contra Capa Livraria / LACED, 2004. [Territórios sociais n' 2] 360 p.; 14 x 21 cm ISBN: 85-86011-80-0 Inclui bibliografia.

Apoio

0

Oxfam

2004 Todos os direitos desta edição reservados à C o n tra Capa Livraria Ltd a. Rua de Santana, 198 - Loja | Centro 22230-261 | Rio de |aneiro - R| Tel Fax (55 21) 2512.3402 | 25 11.4764

%umário

A |n in e n ta ç ã u è s e g u n d a e d içã o

1

|'i,ln [\icheco de Oliveira lim a etnolog ia dos "índios m istu ra d o s"? MiunçAo colonial, te rrito ria liza çã o e flu xos cu ltu ra is

13

|n,lii Pacheco de Oliveira Icrrn s ind íg enas e ação in d ig en lsta no N ordeste (1910-67)

43

Milnei Peres invenção ou ren ascim en to ? l.èn ese de um a sociedade ind íg ena co n tem p o rân ea no N ordeste I lenyn Trindade Barreto Filho I Inn g èn ese e 'reg im e de índio' na Serra do Um ã

139

lim liujo de Azeredo Grünewald Povo Indígena K iríri: em erg ên cia étnica, conquista te rrito ria l e faccio n a lism o Mu*lla Brasileiro (ts cam inh os das aldeias X u cu ru -K arlri Mlvi.i Aguiar Carneiro Martins

199

1 75

A árvore P an kararu : fluxos e metáforas da em ergência étnica no sertão do São Francisco

231

José M aurício Andion Arruti

Ex periên cia e sem ân tica e n tre os Trem em bé do C eará C arlo s G u ilh e rm e do Valle

Referências b ib lio g ráficas

343

281

A presentação à segunda edição

l K textos que com põem esta coletânea resultam de pesquisas desenvol­ vidas por antropólogos nos últim os dez anos sobre o fenôm eno do resuii gimento de identidades étnicas (indígenas) em um a das mais antigas n gioes de colonização do país, o Nordeste. Tais estudos enfrentam dois desafios, um político e outro teórico, contra os quais foram delineando mu rumo próprio: de um lado, integram-se a um m ovim ento social mais amplo de crítica às práticas tutelares e representações genéricas existen­ te. sobre os índios no Brasil; de outro, repensam o prism a analítico e a Iotma de construção de etnografias pelas quais são estudadas as popula­ ções indígenas nas chamadas “terras baixas da América do Sul”. t ) prim eiro desafio rem ete ao conjunto de m ecanism os políticos e jiufdicos pelos quais esses povos foram incorporados ao processo de i onst ruçao da nação brasileira, fazendo-se representar no período repu­ blicano pelo “indigenism o rondoniano”. N£o m e estenderei sobre esse lem a, objeto de publicações recentes (O liveira 1998, Souza L im a e I lolim an 2002, Oliveira e Santos 2003). Basta registrar que a represeni n, .to do índio com o prim itivo, expressa n o senso com um , deixa sob lotie (e especial) suspeição as dem andas identitárias dos povos indígeii,i% do Nordesre, ao passo que as práticas de tutela e assistência estabe1.1 idas no indigenism o oficial se revelam particularm ente inadequadas para os seus projetos étnicos. I■'tn term os de literatura antropológica, a m aioria dos trabalhos desta m iei finca se situa em um a convergência entre a antropologia política (tom o m étodo e técnica de abordagem ) e os estudos sobre etnicidade (ionio problem ática geral), adotando um a perspectiva processualista, n Irrida particularm ente a autores com o Fredrik B arth e V ictor Turner.

7

A publicação conjunta dos trabalhos que integram esta coletânea chama a atenção para a im portância de um a linha de investigação na an tropo­ logia brasileira sobre a inter-relação entre modalidades de existência de tradições culturais e formas de territorialização, perm itindo explorar analiticam ente os jogos identitários, os usos da m em ória e as estratégias políticas que expressam faces articuladas dessa relação. Os esforços para a dessubstancializaçao das unidades de análises (“so­ ciedades”, “culturas”, “etnias”) característica dos anos 1960 e 1970, hoje revigorados pelos estudos sobre a globalização, seus limites e con­ tradições (Appadurai, C anclini, H all, entre outros), conduziram a um a ênfase crescence no estudo das identidades, vistas com o cambiáveis e eletivas. O fenôm eno étnico foi relativizado, cm um m ovim ento que levou à proliferação de identidades m últiplas e heterogêneas, antes des­ critas como “novas” ou “em ergentes” (Bennett 1975), parte de u m pro­ cesso de “invenção de tradições” (H obsbaw n e Ranger 1984), e agora consideradas integrantes de um contexto pós-colonial, de mundialização econôm ica, política e cultural. Em bora o exercício de comparação çom outras formas de etnicidade tenha se revelado muito útil para desvendar a complexidade das escalas e o dinam ism o de diferentes contextos históricos, havia necessidade de um estudo circunstanciado que indicasse as razões pelas quais vinham a ser acionadas identidades indígenas específicas, um a vez que essas, tanto no plano das escolhas individuais quanto no plano estrutural das compulsões legais e morais, são assumidas e aplicadas a coletividades que se pensam como autóctones, isto é, como descendentes atuais de populações que sem­ pre aqui habitaram, contrastando com outras que se pensam por meio de processos m igratórios historicam ente identificáveis. Foi justam ente isso que os trabalhos dos pesquisadores aqui reunidos tentaram realizar, conduzindo estudos localizados que não perderam de vista as políticas governamentais e os processos sociais mais amplos; pro­ cedendo a descrições densas de situações atuais sem esquecer o estudo do passado e a gênese dessas unidades sociais; realizando um a investigação sobre os aspectos identitários e políticos da etnicidade sem om itir a di­ mensão ritual e religiosa. *

O s textos a seguir integraram originalm ente m onografias de orientação etnográfica e correspondem à consolidação de partes e capítulos de dís-

A VIAGEM DA VOLTA

di.vrir.tções de m estrado defendidas no Program a de Pós-G raduação
APRESENTAÇÃO

9

um convênio FIN EP/PPG A S-M N . Por razões operacionais e financeiras, a preparação do livro foi interrompida durante algum tem po, sendo reto­ mada em 1998, graças ao apoio financeiro da Fundação Ford. A ausência de alguns pesquisadores que trabalham na m esma temática merece um a explicação. Cabe destacar em especial o im portante trabalho de investigação realizado pelo Projeto Levantamento de Terras Indígenas no Estado da Babia [PINEB], coordenado pelos professores Pedro Agos­ tinho da Silva e M aria Rosário G . de C arvalho, e desenvolvido com estudantes de graduação e de pós-graduação e estagiários da UFBA, cujos rextos foram objeto de um a publicação anterior {Silva 1988); naquele m om ento, estavam preparando, sob a coordenação de M aria Rosário G. de Carvalho e Edwin Reesink, em associação com o projeto “A cor da Bahia”, um a instigante coletânea sobre a relação entre populações indíge­ nas e afro-descendentes. A dissertação de mestrado de V ânia Fialho de Paiva e Souza sobre os X ukuru (Paiva e Souza 1998), tendo sido premia­ da pela Fundação Joaquim N abuco, ceve garantida sua publicação inte­ gral como monografia. O utros pesquisadores, como Mércia Rejane Rangel Batista e José Augusto Laranjeira Sampaio, não compareceram com tra­ balhos nesta coletânea por razoes circunstanciais, um a vez que eram, durante esse período, responsáveis perante a Fundação N acional do ín ­ dio [FUNAI] por complexos estudos de identificação de terras. A fim de maximizar a d 'ersidade etnográfica trazida pelo livro, preferi não apre­ sentar trabalhos de diferentes autores sobre uma m esma situação. À diferença do que julga a opinião pública em sua maioria, os povos indígenas do Brasil não estão localizados apenas na Am azônia e no Bra­ sil Central, lugares de acesso rem oto em que a sociedade nacional ainda se expandia no século XX. H abitam tam bém as mais antigas áreas de colonização do país, com o o N ordeste, o Sudeste e o Sul do país, constituindo-se não só como im portantes atores políticos c interlocutores das políticas públicas, mas tam bém inspirando estudos fecundos e inte­ ressantes formulações analíticas por parte dos antropólogos. Ao tornar disponíveis etnografias e interpretações sobre essa parcela m enos co­ nhecida dos indígenas do país, tem os a esperança de que a reunião e divulgação em livro desses trabalhos propicie bons exemplos de pesqui­ sa antropológica com povos indígenas no N ordeste, e perm ita que tais textos venham a ser utilizados com o leituras com plem entares ern cursos que integram a formação básica de estudantes de antropologia (tanto de graduação quanto de pós-graduação) ou sirvam de apoio a discussões em disciplinas afins (história, lingüística e arqueologia).

10

A VIAGEM DA VOLTA

Esta segunda edição não traz alterações de conteúdo em relação à prim eira edição, dc maio de 1999. H á algumas pequenas atualizações1 c a correção de erros que escaparam na revisão da edição antetior, em particular nas referências bibliográficas, C om o a coletânea está referida a um conjunro de dissertações c reflete um m om ento da investigação sobre os povos indígenas do N ordeste, optam os por m anter a sua uni­ dade. Isso, contudo, não significa a inexistência de um a produção mais recente. U m exem plo da vitalidade dessa área de pesquisa são duas teses de doutorado defendidas no PPG A S-M N em 2000 e 2001, e que, m an ten d o seu caráter m onográfico, foram publicadas recentem ente (G rünew ald 2001, Barbosa 2003)- Nesse período de cinco anos, foram term inados ou estão em vias de conclusão alguns trabalhos acadêmicos que m ereceriam ser divulgados mais am plam ente e que im aginam os transform ar cm publicações futuras. Por fim, a reedição desta coletânea constitui uma iniciativa do projeto Os Primeiros Brasileiros, coordenado por mim e por Antônio Jorge Siqueira, e desenvolvido em associação do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento [LACED] / M useu Nacional com o Instituto de Pesquisas Sociais [IN PSO ] / Fundação Joaquim N abuco, contando com apoio da FINEP, do M inistério da C u ltu ra e da O X FAM . Seu relançamento é simultâneo a outra iniciativa editorial do mesmo projeto, a publicação pela Editora Massangana, da Fundação Joaquim N abuco, de uma coletânea sobre a dimensão crucial da existência dos povos indígenas do Nordeste, o Toré, a qual incorpora parcialmente algumas das pesquisas realizadas nesses últimos anos (Grünewald 2004). O uttas atividades, como a realização de seminários, exposições e pesquisas, já concluídos ou em vias de organização, vêm igualmente integrar o projeto acima citado, que mante'm, por intermédio da Articulação dos Povos e Organizações Indíge­ nas do Nordeste, M inas e Espíriro Santo [A PO IN M E], interlocução per­ m anente com o movimento indígena organizado, contando ainda com o apoio das prefeituras de Recife e de Olinda. Rio de Janeiro, maio de 2004 João Pacheco de Oliveira

* 1 Em especial, a listagem de povos indígenas do Nordeste e sua localização espacial em mapas, tendo em vista sua im portante repercussão política.

APSESENTAÇÃO

11

J o ã o P a c h e c o d e O l iv e ir a

Uma etnologia dos "índios m isturados"? Situação colonial, te rrito ria li/a çã o e fluxos cu ltu ra is 1

O s povos indígenas do N ordeste não foram objeto de especial interesse para os etnólogos brasileiros. N as bibliotecas e no m ercado editorial são m uito raros os trabalhos especializados disponíveis.2Apesar da grande expansão do sistema de pós-graduação nos últim os anos no Brasil, ain­ da no início desta dégacja contava-se com poucas teses m onográftcas3 e nenhum a interpretação mais abrangente form ulada sobre o assunto. Tudo levava a crer tratar-se, em definitivo, de um objeto de interesse residual, estiolado na contracorrente das problem áticas destacadas pelos americanistas europeus, e inteiram ente deslocado dos grandes debates atuais da antropologia. U m a etnologia menor. N a década de 1950, a relação de povos indígenas do N ordeste incluía dez etnias; quarenta anos depois, em 1994, essa lista m ontava a 23. Se lem brarm os da conceituaçao dos povos indígenas nas Américas como “pueblos únicos” (Bonfil 1995: 10), o u da descrição dos direitos indíge­ nas como “originários” (Carneiro da C unha 1987a), estaremos diante de um a contradição em termos absolutos: o surgim ento recente (duas déca­ das!) de povos que são pensados, e se pensam, originários. Existem m ui­ tas outras conceituações similares espalhadas pelo m undo (como a de

1Conferência realizada no concurso para professor-títular da disciplina Etnologia, M useu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1997. Publicado originalmente em Mana: estudos de Antropologia Social 4/1, abril de 1998. 2 Os de Estevão Pinto, editados em 1935 e 1938 na Coleção Brasiliana, e H ohenthal, publicado na Revisra do Museu Paulista em 1954 e 19(50. J Foram quatro dissertações na Pós-graduação em Ciências Sociais da UFBA, duas disser­ tações e um a tese de doutorado no PPGAS, e uma dissertação de m estrado na UnB.

populações aborígines, encontrada na legislação da Austrália e Oceania, do Canadá, da Argentina e em outros países da América Latina\ jwpulations autochtones, referência com um utilizada n a etnologia francesa, e pelos africanistas em especial; first nations, em pregada por organizações indí­ genas nos Estados Unidos), o que torna ainda mais am pla a questão. C om o podemos explicar esse paradoxo? Sem dúvida as lacunas etnográficas e os silêncios da historiografia - com ponentes de um discurso do poder (ver Trouillot 1995) - constituem fontes geradoras desse enigma, mas não resolvem o problem a, tornando-se necessário discutir tam bém as teorias sobre etnicidade e os modelos analíticos utilizados. M inha intenção aqui é fornecer subsídios para se refletir sobre esse paradoxo. Para tanto, m inha exposição segue três movimenros. N o pri­ m eiro, procuro m ostrar como ocorreu a formação do objeto de investi- 1 gaçao e reflexão intitulado “índios do N ordeste”, partindo dos cânones científicos nacionais e internacionais até as instituições locais, m ostran­ do como concretam ente sc inter-relacionaram modelos cognitivos e de­ m andas políticas. Em um segundo m ovim ento, discuto conceitos para a análise da etnicidade e, baseando-m e em algumas etnografias, procuro fornecer um a chave interpretativa pata os fatos da cham ada “em ergên­ cia” de novas identidades. Finalm ente, debato com o am ericanism o e reflito sobre as perspectivas para o estudo de populações tidas como de pouca distintividade cultural (ou seja, culturalm ente “misturadas”).

Um a etno lo gia das perdas e das ausências culturais

'

E m seu trabalho de classificação das áreas culturais indígenas existentes no país, Eduardo Galvao (1979: 225-6) manifesta dúvidas quanto à últim a delas - a XI, intitulada “Nordeste”4 - possuir, efetivamente, um a unidade e consistência igual à das demais. O autor destaca desde logo os efeitos da aculturação e o seu diagnóstico sobre as dez etnias dessa área cultural é o seguinte: “A maior parte vive integrada no meio regional, regisrrando-se considerável mesclagem e perda dos elementos tradicionais, inclusive a língua”5. Ao mencionar os Pataxó, o autor agrega (sem aspas) o adjetivo 4 Q ue iria do litoral da Paraíba ao sul da Bahia, abrangendo também o serrâo de Pernambuco, Alagoas, Bahia e M inas Gerais. ’ Se o term o mesclagem nos parece estranho, uma consulta ao dicionário pode ser esclare­ cedora: além de significados gerais, como “misturar, confundir” c outros mais especifí-

14

A VIAC EM DA VOLTA

uç.iilos". É im portante lem brar que o artigo de Galvão — por seu 0 iii i introdutório e classificatório —constitui-se em um dos textos mais n.uli.ulos não só p o r estudantes de antropologia, mas tam bém por iM nilogos, bibliotecários, educadores e comunicadores sociais em geral, fii.i o público mais especializado, o cenário não é diverso. No Handbook 1 Siiiith American Indians, obra de referência capital para os estudos "ilnpuos, os povos indígenas do N ordeste são focalizados em pequeiitigos (quase verbetes) escritos por R obert Lowie (1946) e Alfred I li i i .iiix 11946), um deles com a colaboração de C urt N im uendaju. Em «iii Ihis os textos são utilizadas fontes históricas e, p rim o rd ialm en te, 0 I tu u, rio cronistas quinhentistas e seíscentistas o u naturalistas viajam ii dos séculos XVIII e XIX. O u seja, tais povos e culturas passam a ser ■I. i. tilos apenas pelo que foram (ou pelo que se supõe terem sido) há i nios, mas nada (ou m uito pouco) se sabe sobre o que eles são hoje. 1 i iiuc, rum certeza, pouca contribuição traria à etnologia com o estudo ini]i,nativo das culturas. I ui um a famosa m etáfora, Lévi-Strauss nos ensina que “o antropólo, * i* 11 astrônomo das ciências sociais: ele está encarregado de descobrir um sentido para configurações m uito diferentes, por sua ordem de granili/i c seu afastam ento, das que estlo im ediatam ente próximas do obiv.nlor” (1967: 422, ênfases no original). N ão se trata de um a associiç.iu acidental ou pouco represencativa de sua obra, mas de um ensinanu ni*i conectado com pressupostos fundam entais do “m étodo etnológico” jiin r!c delineado,6

mis ,

como intercalar, entremear, incorporar (tam bém bastante cabíveis), é registrado i qilicitamente “misturar (o sangue) pelo casamento de pessoas de raças diversas” (Holanda 1975: 915).

'' l'ui um lado, Lévi-Strauss chama a atenção para a escala dc tempo em que o etnólogo deve In iii eder aos seus regisrros e interpretações: é a “longa duração”, na qual as disposições quanto ao tempo, como em Braudel, remetem aos parâmetros com que opera a geologia; por outro, etnologia e história, partilhando o mesmo objeto e m étodo, distinguem-se por perspectivas compiemenrares, organizando seus dados em relação “às condições inconscientes da vida social” ou, respectivamente, “às expressões conscientes” (LéviSli.iuss 1967: 34). A noção de cultura é equiparada à de “isolado” em demografia, sendo do mesmo tipo e possuindo o mesmo valor heurístico. A inda que a sua am plitude possa variar cm “função do tipo de pesquisa considerado", jamais deixaria, contudo, de "i orrespondera uma realidade objetiva” (: 335). Seguir cais regras de m étodo perm itiria definir o lugar da anrropologia entre as demais ciências sociais, com n sendo “hoje a única disciplina do distanciamento social” (: 423).

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS"?

15

A relevância do autor e de sua m etáfora para os estudos americanistas não pode ser m edida por citações ou referências explícitas em artigos e monografias, mas por situar-se como um a im agem simples e sugestiva, com p artilh ad a pela m aioria dos etnólogos que estuda as populações autóctones sul-am eticanas (inclusive os não vinculados diretam ente a esse quadro teórico). E squadrinhando os céus, o astrônom o lem bra o viajante/etnógrafo de que nos fala D égérando, cujas viagens no espaço correspondem tam bém a enorm es deslocamentos no tem po, exploran­ do o passado e cruzando diferentes eras (Stocking Jr. 1982, Fabian 1983). C abe lem brar os com entários de A nne-C hrístinc Taylor, sobre o “arcaísm o” característico do “am ericanism o tropical” (1984: 232). A m etáfora da astronom ia é, no entanto, inteiram ente inaplicável ao estudo das culturas autó cto n es do N o rd este e, no m áxim o, poderia ajudar a entender as razões de sua baixa atratividade para os etnólogos. Se é a distintividade cultural que possibilita o distanciam ento e a obje­ tividade, in stau ran d o a n ã o -c o n tem p o ran eid ad e entre o nativo e o etnólogo, como é possível proceder com as culturas indígenas do N o r­ deste, que náo se apresentam com o entidades descontínuas e discretas? Para colocar em prática o m étodo etnológico tal com o definido por Lévi-Strauss, deveríamos supor que o m om ento privilegiado de obser­ vação daquelas culturas seria logo após os prim eiros contatos dos indí­ genas com os portugueses, isto é, nos prim órdios da colonização, nos séculos XVI e XVII. Ultrapassados esses marcos, rais culturas ficariam expostas em dem asia ao campo m agnético do O cidente, vetificando-se um a iuterferência cada vez mais forre deste nos registros e, por conse­ qüência, nas hipóteses avançadas. A pesquisa de campo poderia conti­ nuar a scr praticada, de preferência associada a um conjunto de técni­ cas (etno-história) que reconstitui o passado e busca seus vesrígios no presente. Mas o rendim ento dessas culturas para a etnografia e a etnologia seria sem pre inferior ao do estudo de outras situadas em um a faixa m ais favorável de observação. Se as duas maiores vertentes dos estudos etnológicos das populações autóctones da A m érica do Sul —o evolucionismo cultural norte-am eri­ cano e o estruturalism o francês - parecem confluir para um a avaliação negariva quanto ás perspecrivas de um a etnologia dos povos e culturas indígenas do N ordeste, o mesmo ocorre com o indigenism o. Em um texto de grande difusão,^ D arcy Ribeiro é ainda mais incisivo. U tilizan­ do-se de imagens fortes, fala em _“resíduos. da população indígena do N ordeste”, o u ainda em “m agotes de índios desajustados”, vistos nas

A VIAGEM DA VOLTA

ilhas e barrancos do São Francisco (Ribeiro 1970: 56). Recorda com i ristcza que até m esm o “os sím bolos de sua origem indígena haviam sitio adotados no processo dc aculturação” (: 53), o que exemplifica por-, meio dos Potiguara, que em suas danças utilizavam instrum entos afrit unos —zambé e p u itã - “acreditando serem tipicam ente tribais” (: 53). I Jcscrevendo os_X ucuru de m odo similar, o au to r observa que estão altam ente mestiçados com a população sertaneja local, tendo perdido "o idiom a e todas as práticas tribais, excero o culro do Juazeiro Sagra­ do, sc é que este cerim onial fora originalm ente deles” (: 54). ‘ Ao am argor vêm juntar-se a suspeiçao e, logo, o descrédito, inclusi­ ve, com o possíveis sujeitos históricos: “Por todos os sertões do N o r­ deste, ao longo dos cam inhos das boiadas, coda a terra já é pacifica­ m ente possuída pela sociedade nacional; e os rem anescentes tribais, que ainda resistem ao avassalamento, só têm significado com o aconte­ cim entos locais, im ponderáveis” (: 57). O s índios do N ordeste não possuiriam mais im portância com o objeto de ação política (indigenista), nem perm itiriam visualizar perspectivas para os estudos etnológicos.

A construção do objeto "índios do N ordeste"

O "7 Km algum as capitais da região, consoíidaram -se núcleos de pesquisa que viriam , de algum m odo, a desem bocat em iniciativas destacadas e relevantes.7 N o en tan to , a etnologia indígena não possuía o m esm o poder de atração das investigações sobre as religiões afro-brasileiras, a., arqueologia ou o folclore, e mesmo as incursões dos catedráricos que estavam referidos à lingüística o u à antropologia social8 não deixaram dc abordar em suas teses e com unicações as tem áticas indígenas através do viés do passado. Isso se refleria ainda com mais clareza nos museus, onde as culturas iudígenas eram representadas, seja por meio de peças

7 C om o o M useu de Arqueologia e Etnologia e o Curso de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFBA, os Cursos de Pós-graduação em H istória e Arqueologia da U FPE, o M useu Câmara Cascudo e a curta experiência de um M estrado em Ciências Sociais em Natal, e o M useuT héo Brandão em Maceió. s C om o o fizeram, respectivamente, Frederico Edelweiss, que se dedicou ao estudo das línguas Tupis, ou ainda Thales cie Azevedo (1976), ao focalizar a catequese como proces­ so de aculturação.

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS"?

arqueológicas e relações históricas de populações que viveram no N o r­ deste, seja por coleções etnográficas trazidas de populações atuais do X ingu ou da Amazônia. É a partir de fatos de natureza política - dem andas quanto à terra e assistência Formuladas ao órgão indigenista - que os atuais povos indíge­ nas do N ordeste são colocados como objeto de atenção para os antropó­ logos sediados nas universidades da região. O que ocorre aí exemplifica um a trajetória possível de institucionalização para um a antropologia pe­ riférica, tal como observado por Peirano (1995: 24): em lugar de definir suas práticas p o r diálogos teóricos, operam mais com objetos políticos ou aiuda com a dimensão política dos conceitos da antropologia. Em 1975, como desdobram ento da Reunião Brasileira de A n tro p o ­ logia, realizada em Salvador, estabclece-se um term o de cooperação entre a FU N A I e a UFBA com o intuito de que esta pudesse vir a gerar estudos que subsidiassem program as de assistência e desenvolvim ento, aos povos indígenas do estado. Em bora essa articulação tenha tido cur­ ta duração, estim ulou o aparecim ento de um prim eiro "grupo de tra b a -.. Iho” (C arvalho 1977, B andeira s/d, entre outros) sobre alguns povos indígenas da Bahia —com o os Pataxó e os Kiriri, que, em bora reconhe­ cidos com o “índios” pelo ótgão indigenista e pela literatura etnológica, não dispunham de terras demarcadas e protegidas. O rganizados e m obilizados mais tarde pela criação da A N A I e do PIN E B (Silva 1995), os antropólogos produzem um a quantidade ex­ pressiva de artigos, relatórios e laudos que am pliam o conhecim ento em pírico sobre as condições de existência da população indígena do estado (Carvalho 1984, Silva 1988), gerando dados e argum entos que fortalecem suas dem andas. C om o resultante desse contexto, surge a prim eira tentativa de defi­ nição dos “índios do N ord este” com o um a unidade, isto é, um ‘(conjun­ to étnico e histórico” integrado pelos “diversos povos adaptativam ente relacionados à caatinga e h istoricam ente associados às frentes pasto ­ ris e ao padrão m issionário dos séculos XVII c XVIII" (D antas e outros 1992: 433). E m vez de optar por um eixo ordenador central (como a história e as formas de colonização, o u os nichos ecológicos e sua capacidade dife­ renciada de atender às dem andas das culturas e gerar processos adaprativos), que lhes possibilitaria desenvolver um discurso teórico e interpretativo, os autores associam variáveis de natureza teórica m uito distintas dentro de um a m oldura que tem um caráter regional e particularizante.

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A VIAGEM DA VOLTA

A unidade dos “índios do N ordeste” é dada não por suas instituições, nr in por sua história, ou p o r sua conexão com o meio am biente, mas |n ii pertencerem ao N ordeste, na condição de conglom erado histórico i geográfico. Ao longo do ensaio, contudo, esses autores m encionam um estigma, um a caracterização sociológica que poderia aplicar-se a todas aquelas populações: “a partir da segunda m etade do século, sobretudo, os índi­ os dos aldeam entos passam a ser referidos, com crescente freqüência, to m o índios ‘m istu rad o s’, agregando-se-lhes um a série de atributos nep.iiivos que os desqualificam e os opõem aos índios puros’ do passado, idealizados e apreseutados com o antepassados m íticos” (D antas e ouitns 1992: 451). Tal observação, no entanto, é integrada a um a cadeia puram ente cronológica de fatos históricos, sem vir a ser incorporada a 11111 esforço de conceituação. A expressão “índios m isturados" — freqüentem ente encontrada nos Relatórios de Presidentes de Província e em outros docum entos ofici­ ais - merece um a o u tra ordem de atenção, pois perm ite explicitar valotcs, estratégias de ação e expectativas dos m últiplos atores presentes nessa situação interétnica. Em lugat de estabelecer um diálogo com as tentativas de criat instrum entos teóricos para o estudo desse fenôm eno como a noção dc “fricção interétnica (Cardoso de Oliveira 1964), as i rívicas às noções de tribalism o e aculturação (C ardoso de O liveira 1960a e 1968), ou a noção de “situação histórica” (Oliveira 1988) —, a tendência dos estudos foi restringir-se aos trabalhos sobre a região (tal i om o a definem) e discutir a “m istura” com o um a fabricação ideológi­ ca e distorcida. O órgão indigenista, igualmente, sempre m anifestou seu incôm odo e hesitação em atuar jun to aos “índios do N ordeste”, justam ente por seu alto grau de incorporação na economia e na sociedade regionais. O pa­ drão habitual de ação indigenista ocorria em situações de fronteira cm expansão, com povos indígenas que m antinham sob seu controle amplos espaços territoriais (ou, inversamente, ameaçavam o conttole das frentes . sobre estes) e que possuíam um a cultura manifestamente díferenre daque-_^ Ia dos não-índios. Estabelecer a tutela sobre os “índios” era exercer uma ^ função de mediação intercultural e política, disciplinadora e necessária para a convivência enrre os dois lados, pacificando a região como um lodo, regularizando m inim am ente o mercado de terras e criando condi­ ções para o chamado desenvolvimento econômico (ver Oliveira 1983 c 1988, Souza Lima 1995 para aprofundam ento desse ponto).

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS” ?

N o N ordeste, co n tu d o , os “índios” eram sertanejos pobres e sem acesso à terra, bem com o desprovidos de forte contrastividade cultural. E m um a área de colonização antiga, com as form as econôm icas e~a m alha fundiária definidas há mais de dois séculos, o órgão indigenista atuava apenas de m aneira esporádica, respondendo tão-som ente às_de­ m andas mais incisivas que recebia. M esm o nessas poucas e pontuais intervenções, o órgão indigenista tinha de justificar para si m esm o e para os poderes estaduais que o objeto de sua atuação era efetivamente com posto por "índios”, e não p o r meros “remanescentes”. Em artigo que integra um a publicação voltada para um público am ­ plo (O liveira 1994), com paro os povos indígenas que estão n a região N o rd este com aqueles da A m azônia, em term os dos territó rio s que ocupam o u reivindicam .5 D adas as características e a cronologia da ex­ pansão das fronteiras na A m azônia, os povos indígenas detêm parte significativa de seus territórios e nichos ecológicos, enquanto no N o r­ deste tais áreas foram incorporadas p o r fluxos colonizadores anteriores, não diferindo m uito as suas posses atuais do padrão cam ponês e estan­ do entrem eadas à população regional.10 Essa desproporção dá aos problem as c mobilizações dos povos in d í­ genas na Am azônia um a im portante dim ensão am biental e geopolítica, enquanto no N ordeste as questões se m antêm prim ordialm ente nas es­ feras fundiária e de intervenção assistencial. Se, na A m azônia, a mais grave am eaça é a invasão dos territórios indígenas e a degradação de seus recursos ambientais, no caso do N ordeste, o desafio à ação indigenista é restabelecer os territórios indígenas, prom ovendo a retirada dos nãoíndios das áreas indígenas, desnaturalizando a "mistura ” como única via de sobrevivência e cidadania. É p o r isso que o fato social que nos últim os vinte anos vem se im ­ pondo com o característico do lado indígena do N ordeste é o processo ^denom inado etnogênese, abrangendo tanto a em ergência de novas iden-

9 E nquanto na Amazôllía a maioria das áreas ultrapassa os 50.000 ha e as terras indígenas representam de 10% a 40% da superfície dos estados, no casn do Nordeste, as extensões de terras pleiteadas são pequenas (em geral inferiores a 2.000 ha), correspondendo a fazendas de porte médio e jamais representando mais de 0,7% das terras do estado. Iü Sc na Amazônia a proporção entre terra/hom em é de mais de mil ha por índio, no N ordeste, onde a população indígena é num erosa (porque já atravessou em gerações passadas os desequilíbrios demográficos vividos nas primeiras fases do contato), essa relação corresponde a 7,2 ha para cada índio.

A VIAGEM DA VOLTA

I idades com o a reinvenção de etnias já reconhecidas. C om o apontei naquela ocasião (O liveira 1994), é isso que pode ser toma'do com o base para distinguir os povos e as culturas indígenas do N ordeste daqueles da Amazônia. A “etnologia das perdas” deixou de possuir um apelo descritivo ou interpretativo e a potencialidade da área do ponto de vista téorico pas­ sou a ser o debate sobre a problem ática das emergências étnicas e da reconstrução cultural. E foi orientado p o r essas preocupações teóricas que se constituiu, do início dos anos 1990 até hoje, um significativo conjunto de conhecim entos sobre os povos e culturas indígenas do N ordcste", ancorado na bibliografia inglesa e norte-am ericana sobre etnicidade e anrropologia política, e —é im portante acrescentar —nos estudos brasileiros sobre contato interétnico. A poiando-m e nessa significativa acum ulação de dados etnográficos e nas interpretações aí conduzidas, parecc-me possível e necessário tentar um a reflexão mais sistemática e elaborada sobre o lugar e a contri­ buição que podem aportar esses estudos para a etnologia indígena. É o que procurarei fazer a seguir.

Situação colonial e terrlto rializa çã o

(.labe recordar que a noção de território não é de m aneira algum a nova na antropologia, sendo urilizada por M organ (1877) como critério para distinguir as formas de governo (societas e civitas, baseadas, respectiva­ m ente, nos grupos de parentesco o u no território e na propriedade), e retom ada com a mesma função por Fortes e Evans-Pricchard (1940) na classificação dos sistemas políticos africanos. Em um artigo posterior, Bohanan (1967) fornece um a grande quantidade de exemplos em que os princípios ordenadores de um a sociedade estão localizados em um ponto específico da estrutura social —o sistema de linhagem, as classes de idade, a organização militar, o sistema ritual, as formações religiosas —, sem que as ações sociais possuam qualquer conexão mais significativa com algum a base territorial fixa. À diferença dessas, outras sociedades

11 Em sua maioria são dissertações de mestrado (defendidas principalm ente no PPGAS c na UFBA, mas ainda na UFPE c na UnB), mas também incluem im portantes laudos periciais, relatórios de identificação e projetos de pesquisa (notoriamente Sampaio 1986).

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apresentam um a tendência a constituir form ações estatais (ainda que rudim entares) c costum am tom ar o território com o um fator regulador das relações entre os seus m em btos. Se m uitos fatores (internos e externos) podem ser indicados para ex­ plicar a passagem de um a sociedade segm entar à condição de sociedade centralizada, o elem ento mais repetitivo e constante responsável por tal transform ação é a sua incorporação d entro de um a situação colonial, sujeita, portanto, a urn aparato político-adm inistrativo que integra e .. representa um Estado (politicam ente soberano ou som ente com status colonial). Im porta reter dessa discussão — que em outro trabalho (O li­ veira 1993) procurei explorar mais sistem aticam ente - que um fato histórico - a presença colonial — instaura um a nova relação da socieda­ de com o territótio, deflagrando transformações em m últiplos níveis de sua existência sociocultural. Foi para destacar a am plitude e a radicalidade de tal m udança - a qual H enry M aine (1861), em um a linguagem claram ente evolucionista e sem se referir ao quadro colonial, celebrava como “a revolução mais tadical ocorrida no dom ínio da política” — que foi form ulada a noção de territoríalização. C om o argum entei anteriorm ente (O liveira 1993), “a atribuição a um a sociedade de um a base territorial fixa se constitui em um ponto-chave para a apreensão das m udanças por que ela passa, isso afetando profundam ente o funcionam ento das suas instituições e a significação de suas m anifestações culturais”. Nesse sentido, a noção de territoríalização c definida como um processo de reorganização social que im plicai i) a criação de um a nova unidade sociocultural .m ediante o estabelecim ento de um a identidade étnica diferenciadora, ii) a consti­ tuição de .mecanismos políticos especializados; ílijia redefinição do con­ trole social sobre os recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura.e da relação com o passado. Tal form ulação p retende acrescentar um elem ento novo à clássica análise de B atth (1969) sobre os grupos étnicos e suas fronteiras. Afas­ tando-se das posturas culturalistas, Barth definia um grupo étnico como u m tipo organizacional em que uma sociedade se utilizava de diferenças culturais para fabricar e refabricar sua individualidade diante de outras com que estava em um ptocesso de interação social perm anente. D o pon to de vista heurístico, portanto, setia um equívoco pretender repor­ tar-se a um a condição de isolam ento (localizada no passado) para expli­ car os e le m e n to s d e fin id o re s de um g ru p o é tn ic o , cujos lim ite s (,boundaries) seriam construídos - e sem pre siruacionalm ente — pelos

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próprios m em bros daquela sociedade. Isso o leva a propor o desloca­ m ento do foco de atenção das culturas, (enquanto isolados) para os proi essos identitários que devem ser estudados em contextos precisos e percebidos tam bém com o atos políticos (recuperando assim a definii,.ío weberiana de “com unidades étnicas” - W eber 1921). A elaboração teórica de Barth vai justam ente ate esse ponto, quando, então, cede a vez à investigação empírica. Q uando a primeira é retornada mais tarde (Barth 1984, 1988), o prism a adorado já é diverso (como mencionarei adiante). Creio, no entanto, que é im portante refletir mais detidam ente sobre o contexto intersocierário no qual se constituem os grupos étnicos. N ão se trata de m aneira algum a de um contexto abstra­ io e genérico, que possa absorver todas as sociedades e suas diferentes lonnas dc governo, mas dc um a interação que é processada dentro de um quadro político preciso, cujos parâm etros são dados pelo Estadonação (W illiam s 1989). Para dar mais atualidade histórica a tal contexto, caberia fazer dois reparos à formulação anterior: que algumas vezes o exercício do m andato político pode ser transferido de um Estadonação para outro; c que existem regulam entações internacionais que ganham a cada dia mais força e que podem instituir novos dinam ism os na relação entre grupo étnico e Estado-nação, A dim ensão estratégica para se pensar a incorporação de populações cinicam ente diferenciadas dentro de um Estado-nação é, a meu ver, a territorial. D a perspectiva das organizações estatais — das quais os rei­ nos seriam a prim eira m odalidade conhecida —, adm inistrar é realizar a gestão do terrirório, é dividir a sua população em unidades geográficas menores c hierarquicam ente relacionadas (Revel 1989b), definir lim i­ tes e dem arcar fronteiras (Bourdieu 1980). A noção de territorialização tem a m esm a função heurística que a dc situação colonial - trabalhada por B alandier (1951), reelabotada por C ardoso de O liveira (1964), pelos africanistas franceses e, m ais recentem ente, p o r S to ck in g jr. (1991) —>d a q u a l descende e é caudatária em term os teóricos. E um a intervenção da esfera política que associa — de form a prescritiva e insofismável — um co n ju n to de indivíduos, e grupos a limites geográficos bem determ inados. É esse ato político constituidor de objetos étnicos acravés de m ecanismos arbitrários e de arbitragem (no sentido de exteriores à população considerada e resul­ tante das relações dc força entre os diferentes grupos que integram o Estado) — que estou p ro p o n d o to m a r com o fio c o n d u to r da investi­ gação antropológica.

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS"?

O que estou cham ando aqui de processo de territorialização é precisa­ m ente o m ovim ento pelo qual um objeto polftico-adm inistrativo — nas colônias francesas seria a “etnia”, na Am érica espanhola as “redueciones” e “resguardos”, no Brasil as “com unidades indígenas” —vem a se trans­ form ar em um a coletividade organizada, form ulando um a identidade própria, instituindo m ecanism os de tom ada de decisão e de representa­ ção, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relaci­ onam com o meio am bienre e com o universo religioso)12. E aí volto a encontrar Barth, mas sem restringir-m e à dim ensão identitária, vendo a distinção e a individualização como vetores dc organização social. As afinidades culturais ou lingüísticas, bem com o os vínculos afetivos e históricos porventura existentes entre os m em bros dessa unidade político-adm inistrativa (arbitrária e circunstancial), serão retrabalhados pe­ los próprios sujeitos em um contexto histórico determ inado e contras­ tados com características atribuídas aos m em bros de outras unidades, deflagrando um processo de reorganização sociocultural de amplas p ro ­ porções. O que sucedeu aos povos e culturas indígenas do Nordeste? As po­ pulações indígenas que hoje habitam o N ordeste provêm das culturas autóctones que foram envolvidas em dois processos de territorialização com características bem distintas: um verificado na segunda m etade do século X V II e nas prim eiras décadas do X V III, associado às m issoej religiosas; o o u tro ocorrido neste século e articulado com a agência indigenista oficial. E m bora possa surpreender que a construção de ob­ jetos ctnicos não ocorra quando da conquista nem na faixa do litoral, isso não é raro, como dem onstra W achtel (1992: 46-8) ao observar que, entre os C hipaya e seus vizinhos no altiplano boliviano, a cristalização dos elem entos que podem ser ditos coino constitutivos das identidades étnicas atuais só se efetuou no curso do século XVIII. Pelo prim eiro m ovim ento, famílias de nativos de diferentes línguas e culturas foram atraídas para os aldeam entos missionários, sendo sedentarizadas e catequizadas. Desse contingente é que procedem as atuais denom inações indígenas do N ordeste, coletividades que pennanece-

12 Caberia chamar a atenção para a diferença entre territorialização (um processo social deflagrado pela instância política) e “territorialidade" (um estado ou qualidade inerente a cada cultura). Esta últim a é uma noção urilizada por geógrafos franceses (Rafícscin, Barel) que destaca, naturaliza e coloca em termos atemporais a relação entre cultura e meio am biente (ver crítica conduzida em Oliveira 1994).

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i.un nos aldeam entos sob o controle dos missionários, e distantes dos demais colonos e dos principais em preendim entos (como as lavouras de cana-de-açúcar, as fazendas de gado e as cidades do litoral). Nesse sentido, a relação de aldeam entos missionários (D antas e outros 1992: h S-6) pode ser lida com o um a complexa árvore genealógica, contendo i .ideias sucessótias e dem andas territoriais. Mas as missões religiosas foram instrum entos im portantes da políti(.1 colonial, em preendim entos de expansão territorial e das finanças da 1 nroa, localizadas principalm ente no sertão do São Francisco. Para isso, incorporavam ao Estado colonial português um contingeute de “índios m ansos” e que já era p ro d u to de um a p rim eira “m istura”. D evem os observar que o processo de territoríalização vivenciado pela população autóctone é radicalm ente diverso daquele gerado pela política indigenista do século XX que, em term os de ptopositura, pretende interrom per o processo de assimilação com pulsória, deixando o progresso material da icgião com o um a tarefa para os não-indígenas. N o caso das missões, i]uc são unidades básicas dc ocupação territorial e de produção econô­ mica, há um a intenção inicial explícita dc prom over um a acomodação entre diferences culturas, hom ogeneizadas pelo processo de catequese e pelo disciplinam ento do trabalho. A “m istura” e a articulação com o mercado são fatores constitutivos dessa situação interétnica. Se as missões - com o p ro d u to de políticas estatais — conjugavam aspectos que podem os cham ar de assimilacionistas e preservacionistas,. o seu sucedâneo histórico - o “diretório de índios” - pendeu decisiva­ m ente para a prim eira direção, estim ulando os casamentos interétnicos e a fixação de colonos brancos dentro dos lim ites dos antigos aldeam entos. Essa foi a segunda “m istura”, cujos efeitos só não foram maiores pelo caráter extensivo e rarefeito da presença hum an a nas fazendas de gado, único em preendim ento que teve relativo sucesso n a região. Sem existir (luxos m igratórios significativos p ata o sertão, as antigas terras dos aldeam entos perm aneceram sob o controle de um a população de des­ cendentes dos índios das missões, que as m an tin h am com o de posse com um , ao mesmo tem po que se identificavam coletivam ente m edian­ te referências às missões originais, a santos padroeiros ou a acidentes geográficos. Porém, a política assimilacionista recrudescerá, apoiada em m udan­ ças demográficas e econômicas. C om a Lei de Terras de 1850 inicia-se por todo o Im pério um m ovim ento de regularização das propriedades rurais. As anrigas vilas, progressivamente, expandem o seu núcleo urba­

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no e famílias vindas das grandes propriedades do litoral ou das fazendas de gado buscam estabelecer-se nas cercanias com o produtoras agríco­ las. O s governos provinciais vão, sucessivamente, declarando extintos os antigos aldeam entos indígenas e in co rporando os seus terrenos a comarcas e m unicípios em formação. Paralelamente, pequenos agricul­ tores e fazendeiros nao-indígenas consolidam as suas glebas ou, por arrendam ento, estabelecem controle sobre parcelas im portantes das terras que, na ausência de outros postulantes, ainda subsistiam na posse dos antigos m oradores. Essa foi a terceira “mistura”, a m ais radical, que lim itou seriamente as suas posses, deixando impressas marcas em suas m em órias e narrativas. É o que sucedeu, por exemplo, com os Pankararu do Brejo dos Padres, que descrevem a extinção do antigo aldeam enro fazendo referência ao “tem po das linhas”, quando ocorreram os traba­ lhos de demarcação e distribuição de lotes (A rrutí 1996). Ao final do século X IX já não se falava m ais em povos e culturas indígenas no N ordeste. D estitu íd o s de seus antigos territó rio s, não são m ais reconhecidos com o coletividades, mas referidos individual­ m ente com o “rem anescentes” ou “descendentes”. São os “índios m is­ tu rad o s” de que falam as autoridades, a população regional e eles p ró ­ p rio s, os registros dc suas festas e crenças sendo realizados sob o tírulo de "tradições populares”. Foi nessa condição, por exem plo, que um a equipe do antigo In stitu to N acional do Folclore, na década de 1970, visitou o antigo aldeam enro de A lm ofala, film ando e gravando a realização do “rorém ”, ritu al m ais im p o rtan te dos índios Trem em bc (Valle 1993). O segundo m ovim ento de Territorialização tem início na década de 1920, quando o governo de Pernam buco reconheceu (em bora consoli­ dan d o ocupações posteriores) as terras doadas ao antigo aldeam ento missionário de Ipanem a (1705), passando-as ao controle do órgão indígenista “para que nela residafissem] os descendenres dos C arnijos” até que pudessem ser liberados dessa tutela (Peres 1992). O s Fuini-ô, como passam a ser cham ados desde a im plantação dc um Posto Indígena com esse nom e, m antêm a sua língua [yate) e um período de reclusão ritual (o “ouricouri”), constituindo-se assim como os mais claram ente “ín d i­ os” en tre a população indígena do N ordeste. O processo de te rtito rialização o perou com o um m ecanism o antiassim ilacionista (Cardoso de Oliveira 1972), criando condições supostamente “naturais” c adequa­ das de afirmação de um a cultura diferenciadora, e instaurando a popula­ ção tutelada como um objeto demarcado cultural e territorialmente. Ape-

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>,,u' da últim a ressalva do decreto, que fazia parte das finalidades declara­ das da política indigenista oficial, a intenção de cutores e tutelados nunca i am inhou na direção da total assimilação e da eliminação da tutela. Nas décadas seguintes foram im plantados Postos Indígenas em di­ versas áreas do N ordeste, visando atender as populações ali situadas. Pm 1937 isso ocorreu com os Pankararu (Brejo dos Padres, PE) e os Pataxó, da Fazenda Paraguassu/C aram uru (Ilhcus, BA); em 1944 com os Kariri-Xocó, da ilha de São Pedro (AL); em meados da década de 1940 com os Tfuká, da ilha de Assunção (BA); em 1949 com os A tikum , da serra do U m ã (PE), e os Kiriri, de M irandela (BA); em 1952 com os X ukuru-K ariri, da Fazenda C anto (AL); em 1954 com os Kam biw á (PE); e em 1957 com os X ukuru, de Pesqueira (PE). N a m aior parte desses casos terras foram dem arcadas e destinadas às populações atendidas. Em linhas gerais, esse processo de territorialização trouxe consigo a imposição dc instituições e crenças características dc um m odo de vida próprio aos índios que habitam as reservas indígenas e são objeto, com maior grau de com pulsão, do exercício paternalista da tutela (fato inde­ pendente de sua diversidade cultural). D entre os com ponenres princi­ pais dessa indiantdade (Oliveira 1988) cabe destacar a estrutura políti­ ca e os rituais diferenciadores. A organização política de quase todas as áreas passou a incluir três papéis diferenciados - de cacique, de pajé e de conselheiro (isto é, m em ­ bro do “conselho tribal”) tom ados com o “tradicionais” c “autentica­ m ente indígenas”. A indicação o u ratificação dos ocupantes desses pa­ péis era realizada pelo agente indigenista local (o chefe do PI), que de lato ocupava o topo dessa estrutura de poder e era quem distribuía os benefícios provenientes do Estado (de alim entos a empregos, passando por em préstim os ou permissões de uso de instrum entos agrícolas, mei-. os de transporte, cacimbas d ’água etc.). O patrim ônio cultural dos povos indígenas do N ordeste — afetados p o t um processo de territorialização há mais de dois séculos, e depois subm etidos a fortes pressões no sentido de um a assimilação quase com ­ pulsória - está necessariamente marcado p o r diferentes “fluxos” e “tra­ dições” culturais (H annerz 1997, Barth 1988). Para que sejam legítimos com ponentes de sua cultura atual não é preciso que tais costum es e crenças sejam, portanto, traços exclusivos daquela sociedade. Ao con­ trário, freqüentem ente tais elem entos dc cu ltu ra são com partilhados com outras populações indígenas o u regionais, como ocorre, por exem ­ plo, com os índios Tremem bé e seus vizinhos, que possuem em com um

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um conjunto de crenças e narrativas sobre o passado e o m undo sobre­ natural, que são, no en tan to , m uito distintas daquelas da população rural do interior do Ceará (Valle 1993). Mas a política indigenista oficial exige dem arcar descontinuidades culturais em face dos regionais, e assim o processo de territorialização ganha características bem distintas do que ocorreu nas missões religio­ sas. O ritual do toré, p o r exem plo, perm ite exibir a todos os atores presentes nessa situação interétnica (regionais, indigenistas e os pró p ri­ os índios) os sinais diacríticos de um a indianidade (Oliveira 1988) pe­ culiar aos índios do N ordeste. Transm itido de um grupo para outro por interm édio das visitas dos pajés c de outros coadjuvantes, o toré difundiu-se p o r todas as áreas e se to rn o u um a instituição unificadora c com um . Ttata-se de um ritual político, protagonizado sem pte que é necessário dem arcar as fronteiras entre “índios” e “brancos”. Foi o que sucedeu com os A tik u m , considerados com o “índios” pelo SPI após um inspetor ter ido assistir à perform ática realização de um toré — como relatou um inform ante A tikum quase quarenta anos depois. Ao ver que “dançavam um toré arroxado”, o representante oficial se con­ venceu, passando a encam inhar o processo de reconhecim ento do gru­ po (G rünew ald 1993). O processo de territorialização não deve jamais ser entendido simples­ m ente com o de m ão única, dirigido externam ente e hom ogeneizador, pois a sua atualização pelos indígenas conduz justam ente ao contrário, isto é, à construção de um a identidade étnica individualizada daquela com unidade em face de todo o conjunto genérico de "índios do N o r­ deste”. O s pajés Pankararu podem ensinar às com unidades de parentes desgarrados como se faz um “praiá” (cerim onial em que as máscaras dançam representando os “encantados”), mas cada nova aldeia (assim como cada grupo étnico dali surgido, com o os Pankararé, os K antaruré e os Jeripancó) levantará sua própria “casa dos praias”, instituindo a sua p ró p ria galeria de "encantados” e instaurando um a relação específica com os “encantados” mais antigos (Arruti 1996). C ada grupo étnico tepensa a “m istura” e afirma-se como um a cole­ tividade precisam ente quando dela se apropria segundo os interesses e crenças priorizados. A idéia da “m istura” está presente tam bém entre os próprios índios, sendo acionada m uitas vezes para reforçar clivagens faccionais, Assim é que os X uk u ru e X ukuru-K ariri, d en tre o utros, fazem distinção entre os “índios puros” (de famílias antigas e reconhe-

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i idas com o indígenas) e os “braiados” (produto de intercasam ento com brancos ou outros já mestiçados) (Fialho 1992, M artins 1994).13 Algumas vezes era o próprio Posto Indígena que identificava os memImis de um a denom inação indígena, m ediante o fornecimento de carteii.i individual, que atestava que “o portador desta era efetivamente índio”. Mas à im posição da n o rm a segue-se a sua apropriação local, sem pre específica e individualizadora. Assim, os Kiriri criaram um a nova figura p.ira lidar com o fenôm eno da identidade étnica, tão simples e clara como .i lista, só que sob seu controle e, portanto, podendo ser usada situacionalmente —para “ser índio” não basta ter ascendência indígena ou carteira, é preciso tam bém , com o dizem, “passar no coador”, isto é, ter um a conduta m oral e política julgada adequada, m antendo-se em um a lista que fica em mãos do cacique e que é atualizada de tempos em tempos em icunião do “conselho indígena” (Brasileiro 1996). Antes de finalizar esta sum ária apresentação de dados tesultanres dc pesquisas mais recentes, caberia reto rn ar à discussão do início deste subtítulo sobre a natureza últim a dos grupos étnicos. Seguindo a análise ile Wcber sobre as com unidades étnicas, Barth certam ente diria que é a política. Os dados apresenrados em um a situação etnográfica bastante adversa - em que populações que se reivindicam como indígenas estão altam ente dependentes do Estado e m uito afetadas por agências e insti­ tuições ocidentalizantes - parecem exigit um a m aior complexificaçao, Cada com unidade é im aginada com o um a unidade religiosa e é isto que a m antém unificada e perm ite criar as bases internas para o exercí­ cio do poder. Um a metáfora acionada por diferentes grupos, em varia­ dos contextos, conecta as gerações do passado e do presente (Batista 1992, Barreto F° 1993, G rünew ald 1993, A tru ti 1996). O s antepassa­ dos seriam “os troncos velhos” e as gerações atuais "as pontas de ram a”. Q uand o as cadeias genealógicas foram perdidas na m em ória e não há mais vínculos palpáveis com os antigos aldeam entos, as novas aldeias têm de apelar aos “encantados” para afastar-se da condição de “rnistura” cm que foram colocadas. Só assim podem reconstruir para si mesmas a relação com" os seus antepassados (o seu “tronco velho”), podendo vir a redescobrir-sc como "pontas de ram a”. 3? Não encontrei explicação para o termo “braíado”.Tratando-se de uma região de críatòrio, talvez possa haver alguma associação com o term o “bragado” (aplicado a bois e cavalos “cujas pernas têm cor diferente do resto do corpa”) (H olanda 1975: 224).

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS"?

D iásporas e viagens

U m outro m ovim ento dc territorialização ocorre nos anos 1970-80, quan­ do chegam ao conhecim ento público reivindicações e mobilizações de povos indígenas que não eram reconhecidos pelo ótgão indigenista nem estavam descritos na literatura etnológica. Era o caso dos T inguí-B otó, dos K arapotó, dos K antaruré, dos Jeripancó, dos Tapcba, dos Wassu, entre ourros, que passam a ser cham ados de “novas etnias” ou de “índi­ os em ergentes”. As metáforas utilizadas, seja para descrever esse processo, seja para definir a especificidade dessas sociedades, devem ser vistas com bastante reserva e desconforto, pois com prom etem a investigação com pressupostos arbitrários e equivocados. É com um o uso de im a­ gens naturalizantes ligando a dinâm ica das sociedades ao ciclo biológi­ co dos indivíduos. Fala-se em nascim ento c m orte sob as imagens mais simples e diretas, algumas vezes com a desculpa de um a intenção literá­ ria, mas tam bém na elaboração ou reelaboração de conceitos com pre­ tensão explicativa. Assim aparece, por exemplo, o termo “etnogênese”, empregado por Gerald Sider (1976) no contexto de nm a oposição ao fenômeno do etnocídio. N ão caberia tom á-la com o conceito ou mesmo noção, pois este e outros autores, que tam bém aplicam a mesma idéia na etnografia de populações indígenas (G oldstein 1975), sequer sentem a necessidade de m elhor defini-la, tom ando-a com o evidente. Em termos teóricos, a apli­ cação dessa noção — bem com o de outras igualm ente singularizantes — a um co n ju n to de povos e culturas pode acabar substantivando um processo que é histórico, dando a falsa impressão de que, nos outros casos em que não se fala de “etnogênese” ou de “em ergência étnica”, o processo de form ação de identidades estaria ausente. T am bém outras noções que ocupam lugares precisos deutro de cer­ tos quadros teóricos podem vir a set utilizadas com significados m uito deslocados e referidos à m etáfora n atu ralizante acima criticada: é o caso dos conceitos de acam ponesam ento/proletarização, cujo par é apli­ cado por A m orim (1970) com a intenção de descrever um ciclo evolutivo marcado pela fatalidade (expansão do capital e proletarização) arribuída à história. , ------- -— —---- ^ U m a outra classificação freqüente é a do atributo da invisibilidade.j R etom a um a tradição presente no O cidente de estabelecer um a identifi­ cação entre a visão e o conhecim ento, considerando aquela como um a

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A VIAGEM DA VOLTA

I.unidade privilegiada14. E m bora possa ser de utilidade com o artifício descritivo, no plano da análise com parativa continua a ser caudatária dc lima etnologia das perdas c das ausências culturais. A caracterização de “índios emergentes” não deixa de ser igualmenre incômoda, Por um lado sugere associações de natureza física e mecânica i|u.mto ao estudo da dinâmica dos corpos, o que pode trazer pressupostos <- expectativas distorcidos quando aplicada ao dom ínio dos fenôm enos humanos. Com o imagem literária, ao contrário, reporta-se a um a aparii,.io imprevista, enfatizando o fator surpresa. Por sua am bigüidade, pode •,rr suscetível de usos variados sem, no entanto, contribuir para o en­ tendim ento de aspectos relevantes do fenôm eno que designa. Um outro conjunto de imagens adota como estratégia singularizar i.ii.s sociedades, de form a a poder contrapô-las e distingui-las dos m ode­ los sociológicos usuais. O mais popularizado é o costum e de falar em iiovas etnicidades” (B ennett 1975), englobando um extenso arco de lenôm enos (m igrantes, m inorias reconhecidas, afro-americanos, índios
11 Não se trata de uma aplicação nova em face das populações indígenas da América, existindo m onografias - com o a de Elizabeth Colson (1953) sobre os M akah, e de A nthony Stocks (1981) sobre os Cocama —que assumem como eixo ordenador de sua exposição a idéia da invisibilidade.

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS"?

lealdacies contraditórias, a de sua terra de origem (bome) e do lugar onde está atualm ente, onde vive e constrói sua inserção social, o que Rhabha (1995) chama de locations. Apesar da m ultiplicidade de fotmas de que a diáspora se reveste, Clifford insiste em que a sua unidade só p ode ser afirm ada pot oposição aos processos que afetam as nações e os povos indígenas (estes, excluídos da noção de diáspora porque ja­ mais deixariam de estar referidos à sua própria origem). A razão da exclusão dos povos indígenas do conceito guarda-chuva de diáspora parece-me vazada em um uso esquemático das polaridades culturais em um a situação interétnica, o que a m eu ver, inclusive, com ­ prom ete o esforço de Clifford na construção relacionai do conceito de diáspora. Mas o que interessa aqui é outro aspecto; feitas as devidas ressalvas, poderíam os dizer que Clifford, im plicitam ente, estaria sinali­ zando a im portância da relação com a origem com o característica das identidades indígenas. Por que os povos indígenas nunca chegariam à condição de unhom ed (: 9), tão típica das populações que sofrem pro­ cessos m igratórios? E isso que m e estim ula a retom ar um a im agem — a de “viagem da volta” (Oliveira 1994) —por m im utilizada cm um a publicação destina­ da a um público heterogêneo interessado nos “índios do N o rd e ste ” (inclusive as suas próprias “lideranças”), e anterior ao artigo de Clifford. N o sentido usado naquele contexto, a viagem é a enunciaçao, autoreflcxiva, da experiência de um migrante, transposta pata os versos de Torquato N eto; “desde que saí de casa, trouxe a viagem da volta grava­ da na m in h a m io , enterrada no um bigo, dentro e fora assim comigo, m inha própria condução”. Os debates teóricos sobre etnicidade apontam sempre para um a bi­ furcação de posturas: de u m lado, os instrum entalistas (Barrh 1969, C o hen 1969 e 1974, e outros), que a explicam por processos políticos que devem scr analisados em circunstâncias específicas; de outro, os prim ordialisras, que a identificam com lealdades prim ordiais (G eertz 1963, Kcyes 1976, Bencley 1987). A imagem figurativa por m im utiliza­ da tem, justam ente, com o finalidade superar essa polaridade, tam bém objeto de reflexão de C arneiro da C u nha (1987a), m ostrando que ambas as co rren tes a p o n tam p ara dim ensões constitutivas, sem as quais a etnicidade não poderia ser pensada. A etnicidade supõe necessariam en­ te um a trajetória (histórica e decerminada por m últiplos fatores) e u ma origem (um a experiência prim ária, individual, mas que tam bém está traduzida em saberes e narrativas aos quais vem se acoplar). O que

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A VIAGEM DA VOLTA

■.nia próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização histótica não anula o sentim ento de referência à origem, mas até m esm o o refori,a. É da resolução sim bólica e coletiva dessa contradição que decotre a lorça política e em ocional da etnicidade, N a im agem de “viagem da volta” há dois aspectos que explicitam , icspectivamente, a relação entre etnicidade e território e enrre etnicidade e características físicas dos indivíduos, que é preciso esclarecer e elaborar melhor. A exptessão “enterrada no um bigo” traz para os nordestinos um a associação m uito particular. Nas áreas rurais há um costum e de as mães enterrarem o um bigo dos recém-nascidos para que eles se m antenham em ocionalm ente ligados a ela e à sua terra de origem. C om o é lreqüente nessas regiões, a migração em busca de m elhores opo rtu n id a­ des de trabalho, tal ato mágico (um a “sim patia”) aum entaria as chances de a criança retornar um dia à sua terra natal, O que a figura poética '.ugere 6 um a poderosa conexão entre o sentim ento de pertencim ento étnico e um lugar de origem específico, onde o indivíduo e seus com ­ ponentes mágicos se unem e identificam com a própria terra, passando .1 integrar um destino com um . A relação entre a pessoa e o grupo étnico seria mediada pelo território e a sua representação poderia rem eter não só a um a recuperação mais prim ária da m em ória, mas tam bém às im a­ gens mais expressivas da autoctonia. O outro p onto é a relação entre etnicidade e características físicas. Ao dÍ7.cr que sua natureza está “gravada” na própria m ão, o narrador ■lia um vínculo prim ário inextirpáveí, transm itido biologicam ente, cnire cie e a coletividade maior. Trata-se de algo m uito mais forte do que um a lealdade, a qual rem eteria a fenôm enos socioculturais e a contexlos e oportunidades de atualização histórica (ou não). Inscrita em seu próprio corpo e setnpre presente (“d en tro e fora, assim com igo”), a idação com a coletividade de origem rem ete ao dom ínio da fatalidade, «Io irrevogável, que esrabelece o norte e os parâm etros de um a trajetória social concreta. E nquanto o percurso dos antropólogos foi o de desmistificar a noção de “raça” e desconstruir a de “etnia”, os jn em b ro s de. um grupo étnico encam inham -se, freqüentem ente, n a direção oposta, ícafirm ando a sua unidade e situando as conexões com a origem em planos que não podem ser atravessados o u arbitrados pelos de fora. .Mahem que estão m uito distantes das origens em term os de organização política, bem com o na dim ensão cultural c cognitiva. A “viagem da volta” não é um exercício nostálgico de retorno ao passado c desconectado do presente (por isso não é um a viagem de volta).

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS"?

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N a m inha escolha da imagem de “yiagem da volta” tam bém esteve presente um a outra razão, quase, diria, de fidelidade etnográfica. Des­ de T urncr (1974), os antropólogos sabem que as peregrinações podem ser im portantes meios para a construção de um a unidade sociocultural entre pessoas com interesses e padrões com portam entais variados. Não são poucos nem inexpressivos os autores que consideram as viagens como fator im portanre na própria constituição das sociedades (Fabian 1983, A nderson 1989, P ratt 1992 e, mais recentem ente, Clifford 1997). E exatam ente isso que se verifica nos estudos mais recentes sobre os grupos étnicos do Nordeste. Foi absolutam ente decisivo o papel de líde­ res com o Acilon, entre os Turká {Batista 1992), de Perna-de-Pau, entre os Tapeba {Barreto F° 1993), de João-Cabeça-de-Pena, entre os Kambiwá (Barbosa 1991). Suas viagens às capitais do N ordeste e ao Rio de Janei­ ro para obter o reconhecim ento do SPI e a demarcação de suas terras ■' configuraram verdadeiras rom arias políticas, que instituíram m ecanis­ mos de representação, constituíram alianças externas, elaboraram e dÊ„ vulgaram projetos dc futuro, cristalizaram internam ente os interesses dispersos e fizeram nascer um a unidade política antes inexistente. E preciso perceber que essas viagens só assumiram tal significação porque os líderes tam bém atuaram em uma outra dimensão, realizando outras viagens, que foram peregrinações no sentido religioso, voltadas para a reafirmação de valores morais e de crenças fundam entais que fornecera as bases de possibilidade de um a existência coletiva., Acilon Ciriaco da Luz foi o prim eiro “chefe da aldeia” — conform e , relato feito quase cinqüenta anos depois por sua filha à pesquisadora M ércia Batista — porque foi ele quem viajou no tem po e no espaço e chegou até a antiga “aldeia” onde seus antepassados (“índios puros”) lhe ensinaram coisas m u ito im portantes e úteis, que seus pais já haviam desaprendido. C ontaram -lhe o verdadeiro mas esquecido nom e da al­ deia, m ostraram -lhe os limites que ela deveria ter e m andaram “levantá-la outra vez”, ensinando ao “seu pessoal” como deveriam viver, Essa viagem —feita por um hom em marcado desde a infância pela paralisia — criou o grupo étnico Turká (Barista 1992). D aí a afirmação de que o surgim ento de um a nova sociedade indíge­ na não é apenas o ato dc outorga de território, de “ctnificação” p u ra­ m ente adm inistrativa, de submissões, m andatos políticos e imposições culturais, é tam bém aquele da com unhão de sentidos e vaio resf d ó 'b a ­ tism o de cada nm de seus m em bros, da obediência a rm a autoridade sim ultaneam ente religiosa e política. Só a elaboração de utopias (religi-

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A V1ACEM DA VOLTA

•i'..is/morais/políticas) perm ite a superação da contradição entre os obiriivos históricos e o sentim ento de lealdade às origens, transform ando ,i identidade étnica em um a prática social efetiva, culm inada pelo proi esso de territorialização.

Uma etnologia dos "índios m istu rad o s"?

Voltando à sugestiva m etáfora do antropólogo como astrônom o, podei i.i dizer que pesou sobre a etnologia do N ordeste um a estranha maldii,,io: no m om ento mais adequado para a observação das diferenças - ou seja, no início da colonização — não existia ainda a disciplina (com seu instrum ental teórico e m etodológico); um a vez esta constituída, não havia mais culturas que possibilitassem registros de afastam entos signiInativos. Tal paradoxo, contudo, não seria específico do N ordeste bra­ sileiro, mas com partilh ad o em grau m aior ou m enor pelas áreas de cnlonização mais antigas nas Américas (como a costa leste da América do N orte, o planalto central do México, a faixa entre os Andes e o litoral do Pacífico, bem com o a região platina), que deram origem a popula­ ções fortem ente heterogêneas, com “culturas híbridas” (C ancüni 1992) c índios misturados, aos quais os etnólogos e etnógrafos não dedicaram itmiro interesse. Km um volum e especial da revista UHomme, com em orativo dos q u i­ nhentos anos do descobrim ento da América, B ernand e G ruzinski (1992: .! 1) indicam algumas lacunas significativas na investigação etnológica. Segundo eles, os mestiços constituiriam o lado verdadeiram ente esque- ) i ido da antropologia americanista, cujo m aior defeito seria o de operar ,ts suas pesquisas com o se existisse um a “clivagem epistem ológica entre índios dc um lado e não autóctones do o utro” (: 9). Tal citação deixa-me em posição mais confortável para fazer um co­ m entário. A antropologia brasileira registrou nas décadas de 1950 e 1960 preocupações inovadoras e reflexões bastante originais diante de problem áticas e padrões de rtabalbo científico colocados em prática naquele m om ento nos centros m etropolitanos de produção e consagrai,ao da disciplina. Entre outras, eu indicaria três que merecem ser reexa-^ minadas e revistas: a crítica aos estudos de aculturação e ao conceito de assimilação; a vênfase no estudo da situação colonial e suas repercussões sobre os dados e interpretações; c a dimensão ético-valorativa do exervício da ciência.

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS"?

As sugestões contidas na m etáfora da astronom ia propiciaram importantes avanços cm m uitos dom ínios da etnologia, mas tam bém ini­ biram (ou tenderam a colocar como invisíveis e secundários) a pesquisa e a reflexão sobre fenôm enos socioculturais que não se enquadravam exatam ente em sua ótica. E m um m ovim ento de distanciam ento dos pressupostos do am ericanism o, eu indicaria esquem aticam ente quatro pontos de ruptura. O prim eiro seria o questionam ento quanto à com pleta abstração dos contextos em que são gerados os dados etnográficos. Se estes não viajam no espaço interestelar através das lentes de um telescópio, nem .d' -/ resultam de condições ideais de laboratório, é necessário então descrerV ver, de m odo circunstanciado, as condições concretas de funcionam en" j' to das culturas ditas autóctones para poder desnaturalizar e com preenv / der contextualm ente os dados obtidos (Rosaldo 1980 e 1989, Eabian 1983, Clifford e M arcus 1986, Clifford 1988 e 1997, Oliveira 1988). Em um reexame crítico de algumas m onografias clássicas dos africanistas ingleses, O w usu (1978) faz im portantes retificações etnográficas e interpretativas, atribuindo os equívocos aí encontrados ao costum e - que__ cham a de “anacronism o essencial” —de apresentar os dados etnográficos como se resulrassem de um contexto tradicional, quando de fato foram coletados no quadro colonial. O s povos indígenas hoje estão tão distantes de culturas neolíticas pré-colom bianas quanto os brasileiros atuais da sociedade portuguesa do século XV, ainda que possam existir, nos dois casos, pontos de con­ tin u id ad e que precisariam ser m elhor exam inados e diferencialm ente avaliados. As sociedades indígenas são efetivam ente contem porâneas àquela do etnógrafo (Laraia 1995), da qual participam m ediante intera­ ções socioculturais que precisam ser descritas e analisadas, pois consti­ tuem um a dim ensão essencial à com preensão dos dados gerados. Segundo, não é possível descrever os fatos e acontecim entos dentro ^ , de um a cultura a partir dc um a tem poralidade úuica e hom ogeneizadora (de longa duração). Caso os registros etnográficos estejam circunscritos a um a só tem poralidade, a tendência será, necessariamente, distorcer, m inim izar ou mesmo o m itir os fenôm enos que não se ajustam a um tal ritm o, produzdndo análises parciais, esqucmáticas e pouco..explicativas. E n tra em cena, então, um a história da contingência e do acidental, e não um a história constitutiva, que integre as diferentes tcm poralidades c perm ita com preender os fatos e as unidades observadas (Thom as 1989 e 1994, Bensa 1996).

A VIAGEM OA VOLTA

Terceiro, os relatos etnográficos evidenciam que as sociedades indí­ genas são complexas e suas culturas heterogêneas e diversificadas. Até para com preender as expressões mais em ocionais e reiteradas de u n i­ dade e harm onia, é preciso resgatar a polifonia real (Ramos 1988). As .içõcs e os conteúdos simbólicos que trazem não correspondem unica­ m ente a um a projeção de m odelos atem porais e inconscientes, mas icpresentam um a solução a problem as (inclusive com um a dim ensão 11 ico-valorativa) surgidos no curso das interações sociais (Bellah 1983, Velho 1995). Seria extrem am ente em pobrecedor despojar as interveni.oes verbais dos naífvos de um a dim ensão crítica e explicativa, que esteja associada à constituição de “com unidades de argum enração” (C ar­ doso de Oliveira 1996b) que podem operar em diferentes planos e com objetivos diversos. Q u a rro , as culturas não são coextensivas às sociedades nacionais nem aos grupos étnicos. Õ que as to rn a assim são, por um lado, as dem andas dos próprios grupos sociais (que através de seus porta-vozes instituem as suas fronteiras), e, por outro, a complexa temática da auietnicidade (que acaba p o r conferir um a posição de poder ao an tropó­ logo, dem arcando espaços sociais com o legítim os ou ilegítimos). Em tem pos de m ulticulturalism o, vale lem brar a indagação form ulada por U.idhakrishnan: “por que eu não posso ser indiano sem ter de scr aulenticam entc indiano’? A autenticidade é um lar que construím os para nós mesmos ou é um gueto que habitam os para satisfazer ao m undo dom inante?” (1996: 210-1). Para escapar dessa arm adilha, alguns autoie.s (B arth 1982 e 1988, H annerz 1992 e 1997) sugerem abandonar imagens arquitetônicas de sistemas fechados e passar a trabalhar com processos de circulação de significados, enfatizando que o carárer n ío estrutural, dinâm ico c virtual é constitutivo da cultura. Tal alternativa de construção teórica parece-m e mais profícua e u n i­ versal, perm itindo um a base mais am pla de comparações, sem exigir a .iteitação de pressuposições quanto ao isolam ento, ao distanciam ento e .i objetividade. Nesse sentido, considero que as pesquisas e in te rp re ta -. çoes sobre os “índios m isturados” tiveram o m ériro de trazer para o debate entre os etnólogos alguns dos desafios presentes na disciplina antropologia. Ao concluir, gosraria de explicitar com a m áxim a clareza possível que a m inha intenção não é propor uma etnologia dos “índios do N o r­ deste”, o u mesmo um a etnologia dos “índios m isturados”, que funcio­ nasse com o um contraponto ao modelo dos am ericanistas. C om o lem-

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS"?

37

bra Fardon (1990), a regionalização da antropologia leva à hom ogeneidade de m étodos e problemáticas, à criação de um a rede de interdependências acadêmicas e institucionais, que torna difícil pensar a renovação teóri­ ca com o urn m ovim ento interno a essas virtuais subdisciplinas. E m b o ­ ra existam sinais de insatisfação em face dos pressupostos acima criti­ cados em expressivos autores americanistas (Taylor 1984: 231-2, Turner 1991, O vering 1994), a preocupação cm reafirm ar um a continuidade interior, bem com o a tendência a evitar abrir diálogos mais am plos, lim itam , a m eu ver, essas iniciativas. Em virtude dos mesmos argum en­ tos não poderia, de m odo algum, postular a autonom ização de enfoques ou problem áticas vis-à-vis os debates e dilemas que afetam a disciplina com o um todo. Se, por m era necessidade de com unicação tivesse de agregar aigum adjetivo ao exercício de investigação e reflexão que pes­ quisadores diversos realizaram no N ordeste, mas tam bém na Am azônia e em outras regiões do m undo, talvez fosse oportuno destacar a preocu­ pação de buscar cam inhos para um a possível “antropologia histórica”.

A VIAGEM DA VOLTA

I -file | Pm /M useu Nacional. Atlas das Terras Indígenas do Nordeste, 1993; FLINAI,

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS"?

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Terras Indígenas localizadas no Nordeste

PO VO

M U N IC ÍP IO

1 Truká

Truká

C a b ro b ó

2 A tikum

A tikum

C a rn a u b e ira da Penha

3 N ova Rodelas

Tu xá

R odelas

4

Riacho do Bento

Tu xá

R odelas

5

Brejo do Burgo

P a n ka ra ré

Glória, Paulo Afonso e Rodelall

6 P a n ka ra ré

P a n ka ra ré

Rodelas e Paulo Afonso

7 K a n ta ru ré

K a n ta ru ré

N ova G lória

8 Q u ix a b a

X u cu ru -K arrri

G ló ria

9 Pa n ka ra ru

P ankararu

Ta caru tu , Petrolând ia e JatoLw

K a im b é

Euclides da Cunha

K iriri

Ribeira do Pom bal e Banzae l l

T E R R A IN D ÍG E N A

10 M assacará 11

K iriri

12 K a m b iw á

K a m b iw á

Inajã, Ib im irim e Floresta

13 G e rip a n kó

G e rip a n có

Parico n h a Inajá

14 Fazenda Funil

Tu xá

15 K a p in a w á

K a p in a w á

Buique

16 Fulní-ô

Fulni-ô

Ág uas Belas

17 C aiçara/Ilha de São Pedro

Xokó

Porto da Folha

18 X ucuru

X ucuru

P e sq u eira

19 X u cu ru -K a riri

X u cu ru -K a riri

Palm eira dos índios

20 Fazend a C anto

X u cu ru -K a riri

Palm eira dos índios

21

X u cu ru -K a riri

Palm eira dos índios

22 K a riri-X o c ó

Kariri-X o có

Porto Real do C olégio

23 Tin g u i-B o tó

Ting ui-Botó

Feira G ran d e

24 K a ra p o tó

K a ra p o tó

São Sebastião

25 W assu -C o ca l

W assu

Joaquim Gom es

26 Ib o tira m a

Tuxá

Ib o tira m a

A tikum e Kiriri

M uquem de São Francisco

27

M ata da C afurna

B arra

28 V arg em A leg re

Pankararu

Bom Jesus da Lapa

29 P o tig u a ra

P o tig u ara

Baía da Traição , M am anq u ap l e Rio Tinto

40

A v ia g e m

da v o lta

10 |acaré de São D om ingos

P o tig u ara

Rio Tinto

!l

P o tig u ara

Rio Tinto

Potiguara de M o nte-M o r

12 T a p e b a

Tapeba

C a u c a ia

11 Trem em b é de Alm ofaía

T re m e m b é

Ita re m a

f4 São José do Capim -Açú

T re m e m b é

Ita re m a

IS P ita g u a ry

P ita g u a ry

M aracanau e Pacatuba

1(1 Lagoa Encantada

C a n in d é

A q u ira z

1/ M o nte N ebo*

P o tig u a ra

C ra te ú s

fff K a la b a ç a *

K a la b a ç a

Po ran g a

19 T a b a ja ra *

T a b a ja ra

Viçosa

10 Á guas Belas**

P a ta x ó

Prad o/B A

dl

A ld eia Peq ui**

P a taxó

Prado/BA

•IP C o ru m b a u zin h o **

P a taxó

P rad o/B A

■ 1 1 A ld eia V elh a **

P a ta x ó

Porto Seguro/BA

•M Barra V elha**

P a taxó

Porto Seguro/BA

Ti

P a ta x ó

Porto Seguro/BA

Im b irib a * *

'15 C a ra m u ru /P a ra g u a ç u * *

Pa taxó

Itabuna, itaju da Colônia e Pau Brasii/BA

•M Pazenda Bah iana**

P a taxó

•IH M ata M ed o n ha**

P a ta x ó

C a m a m u /B A Santa C ru z C a b rá lia /B A

■Pi C o ro a V erm e lh a**

P a taxó

Santa C ru z C ab rália/B A

■ Iurras que constam no site da FUMAI ou em program ação visando sua identificação. ** ferras indígenas que, em função da escala adotada, não puderam ser plotadas no m apa.

UMA ETNOLOGIA DOS "ÍNDIOS MISTURADOS"?

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PO VO 1 Tupinambã de Belmonte

Fonte f I Encontro Nacional dos Povos Indígenas em Luta pelo Reconheci­ mento Étnico e Territorial, maio de 2003 (Organizadores; Conselho Indigenista Missionário - CIM1, Centro Luís Freire, Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns - CITA, e Grupo de Consciência Indígena GCI); Projeto de Articulação, Visualização e Formação de Lideranças Jovens Multiplicadores dos Direitos Indígenas (CE); Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espirito Santo [APOINME]; LACED/Museu Nacional. Elaboração do mapa: Ricardo Dantas - LACED/Museu Nacional

M U N IC ÍP IO / E S T A D O Be!monte/BA

2 Catoquin e Karuazu

Pariconha/AL

3 Kalankó

Água Branca/AL

4 Kuiupanká

Inhapi/AL

5 Pankauiká

jatobá/PE

6 Pipipâ

Floresta d e Inajá e Ibimirim/PE

7 Pankará

Carnaubeira da Penha/PE

8 Potiguara

Parambu/CE

9 Potiguara e Tabajara

Quiterianópolis/CE

I 0 Potiguara

Novo Oriente/CE

II

Crateús/CE

Kalabaça, Karirl, Tabajara eTrem em bé

12 Tabajara

Poranga/CE

1 3 Jucá

Ipueira/CE

1 4 Tabajara e Potiguara

Monsenhor Tabosa/CE

15 Kanindé

Canindé/CE

1 6 Kanindé

Aratuba/CE

1 7 Anacé

São Conçalo Amarante/Cj

18 Tremembé

Itapipoca/CE

* Coletividade (povos ou parcelas de povos) que não tem terras identificadas ou em vias de identificação pela FUNAI

SlDNEI PERES

Terras indígenas e ação indigenista no Nordeste (1910-67)1

Existem processos sociais nos quais estão inseridos os grupos indígenas i uja com preensão ultrapassa em m uito os limires de sua manifestação cm um a aldeia ou grupo étnico definido. D aí a necessidade de superar ■is abordagens, predom inantes na antropologia, restritas a “estudos dc i aso” do contato interétnico (Oliveira Filho 1983). N o que diz respeito .1 prática tutelar do órgão indigenista oficial, seja o Serviço de Proreção aos índios (SPI), seja a Fundação N acional do índio (FU NAI), esta não ota o seu significado em qualquer de suas atualizações em grupos indígenas específicos. É necessário abo rd ar essa agência de co n tato im crctnico sob a ótica da im plem entação de controle social pelo Estado brasileiro. Isso significa inserir o estudo do indigenism o e da política indigenista no quadro m ais am plo das m odalidades de exercício de puder, historicam ente constituídas no processo de expansão e instaurai,,iu do Estado-nação brasileiro (Souza Lima 1987). Nesse sentido, proi um u-se transcender os limites im postos pelos estudos sobre a ação de 1 Kstc trabalho pretende apresentar sintética mente as principais formulações elaboradas na m inha dissertação de mestrado em Antropologia Social, apresentada ao PPG A S/M N l JPRJ em dezembro de 19.92 e intitulada ‘‘Arrendam ento e terras indígenas. Análise de alguns modelos de ação indigenista no Nordeste (1910-1960)", sob a orientação do professor João Pacheco de Oliveira Filho (Peres 1992). Integraram a banca examinadora os professores Robin W right e Alfredo W agner Berno de Almeida. Agradeço as valiosas i rfticas e sugestões por eles apresentadas naquela ocasião, que procurei incorporar, na medida de m inhas possibilidades, neste texto. N ão poderia deixar de m encionar tam ­ bém o nome de Jurandyr Ferrari Leite (pesquisador do P E T í/M N ), com quem tive a oportunidade de discutir algumas questões referentes ao processo mais recente de criação dc ferras indígenas eque me fizeram refletir e desenvolver alguns aspectos fundamentais da análise dos modelos de ação indigenista.

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diferentes agências de contato em um nível local, ou seja, referentes a grupos étnicos específicos. P retendem os aqui com preender o processo histórico de produção de terras indígenas nos estados de M inas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba e Pernam buco, durante o período de existên­ cia do SPI: 1910 a 1967. A análise em preendida tem como pano de fundo as redes de dom ínio tecidas pelo SPI em um a de suas configura­ ções espaciais específicas: o processo de constiruição de um circuico político regional de exercício da prática tutelar indigenista. U m a vez que a nossa preocupação não era com n en hum grupo étnico ou posto indígena singular, a docum entação existente no Setor de D ocum enta­ ção do M useu do ín d io (S E D O C /M I) à qual recorremos encontrava-se extrem am ente dispersa, isto nos obrigou a um a intensa e exaustiva ex­ cursão pelos filmes e fotogram as que remetessem à 4a Inspetoria Regio­ nal. Em conseqüência, foi necessária a garim pagem das inform ações consideradas relevantes para a investigação devido às próprias caracte­ rísticas das fontes, que aglutinavam séries heterogêneas de dados relati­ vos ao funcionam ento das unidades adm inistrativas do SPI.2 D eparam onos, p o rta n to , com u m a escrita de Estado destinada à produção de registros dc um m on tan te de informações inerentes ao aparato de m e­ diação/dom inação indigenista. D aí a verdade em ergente desses docu­ m entos estar inserida na lógica de legitimação (segundo os critérios do aparato governam ental indigenista) da conduta de funciouários diferen­ tem ente posicionados ua hierarquia burocrática do órgão estatal. Tais práticas discursivas não foram reificadas, mas apreendidas no con­ texto sociológico que perm itiu o seu aparecimento. Os docum entos fo­ ram considerados a partir de um a propriedade inerente à experiência social em geral, o u seja, o seu caráter narrativo. Entretanto, esses relatos fazem parte de um a prática governamental e de uma obrigação profissio­ nal; estão sob as compulsões e ingerências de condutas adequadas à exis2 “Folhas de freqüência às atividades escolares”, “termos de doação”, “termos de avaliação”, “termos de m orte de animais”, “relatórios de trabalho e de inspeções", "correspondências entre funcionários", “ofícios” e “m emorandos”, “termos de transferência e transmissão de contratos de arrendamento", “concessões de aumento de área de arrendamento", “recibos de pagam ento por serviços prestados e/ou venda de mercadorias", “recibos e contratos de arrendamento", "recibos dc pagam ento de indenizações por benfeitorias", “prestação de contas sobte movimentação da renda dos Pis”, “folha dc pagamento de pessoal”, “relação de despesas efetuadas”, “inventários de bens móveis e semoventes”, "fichas para controle dc m edicamentos", "avisos do Pis”, “boletins de criação” etc.

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A VIAGEM DA VOLTA

ii-iicia dc um a burocracia estatal. A competência na produção de descri­ ta* t c avaliações sobre as situações-objeto da ação governamental está disiiibuída de m aneira diferem il entre os vários membros do corpo admi­ nistrativo. O capital simbólico acumulado pelos atores nesse cenário políiiio é im portante, pois remete para um a dimensão temporal a capacidade de as ações de certos personagens gerarem efeitos concretos e condutas duradouras. Isso não impede, no entanto, o sucesso na disputa pela defini­ rão do real de sujeitos posicionados em níveis inferiores do aparelho esta­ lai —e até fora dele — ao buscarem alianças em instâncias decisórias mais pmeminentes. A eficácia histórica de enunciados proferidos por agentes indigenistas depende das forças sociais mobilizadas em torno deles. Nessa perspectiva, não procuram os descobrir a realidade empírica objetiva su­ postam ente veiculada p o r esses rcxros, mas abordá-los em si mesmos, tom o realidade histórica recortada por práticas discursivas vinculadas a processos de governamentalização de grupos sociais específicos.3 ( íbservamos tam bém que as monografias sobre os grupos indígenas dc interesse deste rrabalho não apresentavam um a abordagem sistemátii .1 que procurasse explicar os arrendam entos a partir de um horizonte ii‘órico adequado. Pesquisando o material encontrado no S E D O C /M I iclercnte à IR 4, constatamos a necessidade dc construir o entendim en­ to sobre o cema cm questão a partir de um contexto significativo maior, mi seja, com o parte de um a lógica mais am pla de atuação do órgão governam ental indigenista. Sendo assím, form ulam os a idéia dos m ode­ lo s de ação indigenista como construções analíticas elaboradas para com ­ preender um a dada realidade, recortada a p artir de um co n ju n to de problemas previamente colocados e/ou nascidos da observação empírica. Logo, é um a abstração do real, cuja finalidade é construir os contextos de significado (ou conexões de sentido, em term os weberíanos)4 entre atos e eventos verificados nas fontes de inform ação; por o u tro lado, esses modelos correspondem a determ inadas formas de criação de terras

*Para lima discussão aprofundada sobre o relaco histórico, a crítica documental positivista e as práticas discursivas, ver Chartier (1990). * “Denom inam os ‘motivo1a conexão de sentido que, para o ator ou o observador, aparece corno o ‘fundam ento’ com sentido de um a conduta. Dizemos que um a conduta que se desenvolve como um todo coerente c adequada pelo sentido’, na medida em que afirma­ mos que a relação entre seus elementos constitui um a conexão de sentido’ típica (ou, como geralmente dizemos, correta), de acordo com os hábitos m entais e afetivos médios [...]" W eber (1921: 10-1).

TERRAS INDÍGENAS E AÇÃO INDIGENISTA NO NORDESTE (1910-6?)

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indígenas e de organização de postos indígenas. Nesse sentido, o enfoque transcendeu o fenôm eno dos arrendam entos, recaindo sobre a estratégia política inerente às condições de produção das áreas indígenas. Procuram os então entender a conduta de agentes adm inistrativos do SPI em um certo âm bito territorial a partir de certos modelos de ação governam ental diante das populações indígenas. Tais m odelos de ação governam ental rem etem ao repcrrório de valores, significados e recur­ sos que inspetores e encarregados do SPI colocam em jogo nos cenári­ os interativos em que atuam . A opção por determ inada norm a de ação em cam pos políticos específicos é referida a um contexto de relações sociais que transcende os contatos diretos e atuais em que estão envol­ vidos os representantes do órgão indigenista. Portanto é fundam ental articular os distintos níveis ou escalas de exercício da prática indigenista. Nessa perspectiva, é m ister controlar conceitualm ente os significados conferidos aos termos indigenismo, política indigenista e ação indigenista,5 O indigenismo rem ete a um conjunto ideológico no qual os grupos étnicos homogeneizados sob a categoria índios emergem como um proble­ ma: a questão ; dígena. Em decorrência disso, são formuladas as soluções e os instrum entos necessários para concretizá-las. Logo, o termo indigenismo refere-se a práticas discursivas, sistemas de classificação fechados, carac­ terizados por um a coerência lógica entre os seus enunciados com ponen­ tes, que recortam uma certa realidade/objeto para a intervenção prática. Essa palavra aponta para o m om ento inicial na luta pelo monopólio dos princípios oficiais de reconhecimento de grupos e terras indígenas. Já o term o política indigenista refere-se à tradução n a ossatura m ate­ rial do Estado do conteúdo program ático form ulado no bojo das práti­ cas discursivas indigenistas hegem ônicas. Isso corresponde não só à organização burocrática da atuação diante dos índios (postos de atra­ ção, postos indígenas, inspetorias, diretorias etc.), mas tam bém a todo 5 As formulações que seguem pretendem aprofundar a breve definição elaborada por Armas (1981: 69), em que “[*..] as idéias em relação ao problema, suas causas, efeitos etc. constituem o ‘indigenism o’; a aticudc oficial frente ao mesmo caracteriza a política indigenista’, c a s soluções propostas são a concom itante ação indigenista”. Para um a abordagem do indigenismo como um a categoria histórica, ver Oliveira (1983). Souza Lima (1987) descreveu a luta entre diversas categorias de agentes (propagandistas, jornalistas, juristas, políticos, etnógrafos c engenheiros-militares), portadores de posicio­ nam entos distintos quanto à questão indígena (conforme seu lugar no cam po político), pcío m onopólio da competência para falar sobre e agir frente às populações indígenas, no início do século XX.

AVJAGEM DA VOLTA

ii .iparato norm ativo que a regulam enta {legislação referente à relação m m os diversos segm entos da sociedade nacional, critérios definidores da condição indígena, norm as de ação, estatutos das várias instâncias político-adm ínistrativas etc.), podendo inclusive transbordar o próprio unbito da agência indigenista oficial. .Sendo assim, a política indigenista está conceitualm ente atrelada a m ntextos históricos singulares, caracterizados pela existência de Estados-N ação e organism os burocráticos especializados no trabalho de mediação em um certo tipo de população, cuja natureza se quer modifii .11 c adequar a um m odelo de cidadão previamente estipulado. Para isso, ,i idéia de nacionalização é fundam ental, pois remete aquelas noções a processos dc emergência e consolidação de Estados nacionais, de invenção iIo povo e do território nacional/’ li, finalm ente, a ação indigenista aponta para as estratégias m obilizadas pelos funcionários do SPI em contextos singulares de exercício da Imítica indigenista. Portanto são abordadas as m odalidades dc conduta que incorporam um a reinterpretação conjuntural do material sem ântiin (o conjunto estruturado de valores, significados e recursos) inscrito na ossatura institucional do órgão oficial de governo dos índios. Isto pressupõe um a dinâm ica própria, diversa porém articulada aos proces­ sos de desenvolvim ento da política indigenista no Brasil. () nosso intuito aqui en tlo foi analisar a prática indigenista em sua i niidianidade, a fim de compreender certas linhas de ação que adquiriram o i.iráter de receitas para lidar com situações típicas. Isso implica a refeleucia pelos atores a um mapa cognitivo forjado para apreender contextos específicos, que transbordam as definições fornecidas pelo enquadramento normativo global inerente ao esqueleto organizacional do SPI. Sendo assim, a idéia de modelos dc ação remete a essas regularidades observáveis na ação indigenista, à existência de tais fórmulas transmitidas por uma tradição escrii.i (rclató rios, ofícios etc.), fo rjadas a partir da construção de uma exemplaridade vinculada à atuação de certos personagens inseridos em posição de desta­ que na estrutura burocrática do SPI: os inspetores. Estamos assim diante dc um aprendizado informal ligado a uma rede dc comunicação controlada prl.is inspetorias, ou seja, uma rede que aglutina e acumula um conjunto de inlormações oriundas dos Pis sob a sua esfera de. intervenção. fl IMra um a abordagem da dinâmica complexa inscrita no desenvolvimento da prática governamental sobre os grupos indígenas do ponto de vista de sua tradução na ossatura material do Estado, ver Souza Lima (1992a, 1992b).

TERRAS INDÍGENAS EAÇÂO INDIGENISTA NO NORDESTE (1910-67)

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Povoações indígenas ou centros ag rícolas? Os postos indígenas com o em presas de nacionalização e colonização dos sertões

Logo após a organização dos postos do Rio Pancas/ES e do Rio Em e/ M G , na segunda década deste século, instaurou-se o modelo colonizador através da introdução de colonos cm território indígena. Tal medida tinha como perspectiva submetê-los a um a série de norm as a fim de colocálos sob o regime tutelar do SPI. Nas áreas sob a jurisdição da Inspetoria do ES, M G e BA, os postos indígenas foram organizados de m odo a inverter a relação funcional entre os m odelos formais de atuação desig­ nados com o centros agrícolas e povoações indígenas. C onform e as Instruções Internas do SPILTN /1910, nas povoações in­ dígenas seriam reunidos os índios das mais distintas tribos, e nos centros agrícolas, assentados os trabalhadores nacionais—pequenos produtores rurais destituídos de terra. Seriam enviados tam bém aos centros agrícolas os índios integrados à sociedade nacional. Em ambos os casos, o SPILTN visava m odificar as formas tradicionais de organização e valorização do espaço praticadas por essas populações por outras mais racionais e moder­ nas, cujo intento era torná-los construtores da nacionalidade. Nas povoa­ ções indígenas, os índios galgariam os degraus da evolução, sob a gerên­ cia do Estado, quando então integrariam os centros agrícolas. Esse tipo de unidade administrativa corresponderia a um patam ar superior na tri­ lha da inserção program ada dos índios à sociedade nacional. A nação era pensada fundam entalm ente em contraposição às distintas formas (fossem indígenas ou camponesas) de relação com a terra; o território nacional, inventado através da implantação de procedimentos técnicos e instrum en­ tos mais aperfeiçoados de produção dos recursos fundiários, ou seja, atra­ vés da implementação de práticas de homogeneização do espaço rural. E o principal agente condutor de tal tarefa era o Estado, que tecia uma ampla rede de controles, constituinte do seu próprio objeto de aplicação: índios e trabalhadores nacionais. Sendo assim, o quadro norm ativo da prática indigenista foi reínterpretado em contextos singulares de exercício da ação governamental sobre grupos indígenas, no âm bito da jurisdição desenha­ do pela Inspetoria do ES, M G e BA, na segunda década do século XX. E m fins de 1910, foram instaladas três unidades administrativas para coordenar e supervisionar o exercício da prática indigenista nos vales dos rios Doce, Pardo, M ucuri c Jequitinhonha. Essa região foi delineada com o o lócus privilegiado para a criação de povoações indígenas. Para tal,

a v ia g e m u a v o l t a

i. Inspetorias de M inas Gerais, do Espírito Santo e da Bahia foram di.idas em Teófilo O toni, V itória e Itabuna, respectivamente.7 A chefia dessas instâncias de ação indigenista ficou sob os cuidados de três milii iivs: o capitão Trampowsky, o tenente Alberto Porrella e o tenente Aniiuiio V ianna M artins Estigarribia, respectivam ente. O s dois últim os ci, ni engenheiros-m ilitares; pertenciam a um a categoria profissional fundam ental para a edificação da nacionalidadê; o oficial m ilitar seria o i .nategista de tal missão cívica. A modalidade de atuação característica desse m om ento inicial de im plantação de um aparato de sujeição dos povos indígenas na região eram as expedições? Elas correspondiam a um investimento cognitivo do espaço, tecido pelo deslocam ento físico do inspetor. A cada passo ele nacionalizava aqueles sertões do país, realizava uma operação simbólica de desbravam ento ao registrar oficialm ente a i Mslência de tal lugar: o território nacional cra costurado sim bolicam en­ te através dos relatos m inuciosos dos representantes do Estado, que dav.un assim um a prim eira am ostra da sua presença. Tal descrição compuliava os lugares, acontecim entos, habitantes, relacionam entos, com ­ portam entos etc., configurando um a densidade em pírica supostam ente i■■i essária à elaboração de um retrato fie l das condições locais de convi­

1l\in 1912, as duas últimas inspetorias constituíram um a única instância adm inistrativa. Essas três inspetorias foram reunidas a partir dc 1913 (Souza Lima 1992b). A prim eira referência a tal concentração administrativa que nós encontramos na documentação exis™ irncc no SE D O C do Museu do índio indicava a seguinte data: 30 dc julho de 1919 (cf. '‘Relatório semestral do Chefe dos Trabalhos Especiais executados na Inspetoria do Espírito Santo, Bahia e M inas, no ano de 1919. Vitória, 30/07/1919"). A sede locali­ zava-se em Vitória, sob a chefia do engenheiro-miiitar Antonio Martins Vianna Estigarribia. " Segundo a ideologia positivista vigente no início do século XX, o agente privilegiado para realizar a dupla tarefa concernente à delimitação das fronteiras empíricas e simbólicas da Nação era o soldado-cidadão (Souza Lima 1992a). 1 Essa modalidade de unificação simbólica da nação, realizada através do percurso de pessoas investidas de autoridade política sobre os seus dom ínios espaciais (pretensos ou efetivos), pode ser verificada em contextos históricos distintos. Podemos mencionar, por exemplo, as viagens realizadas pelos reis franceses, durante o Antigo Regime, em situaçóes de crise para unificar e pacificar os seus súditos. À presença física do rei e o seu deslocamento traçavam e reafirmavam os contornos do reino (Revel 1989b). O EstadoNação, por sua vez, dilui a encenação da sua soberania, encarnada no contingente de seus lim cionános, que exprimem a ampliação do aparato governamental.

TERRAS INDÍGENAS E AÇÃO INDIGENISTA NO NORDESTE (1910-67)

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vência entre sertanejos e índios.'0 C ontudo, através das expedições, inten­ tava-se tam bém estabelecer a ordem, pacificar os sertões do país. O sertão era representado como lugar onde imperava o caos, a desordem, o con­ flito, a violência, a lei do mais fiorte. Nacionalizar e i lizar eram sinôni­ m os, significavam im por um conjunto de dispositivos governam entais sobre a população, vinculados à rede política nacional. Sendo assim, im portava aos inspetores estabelecer o m onopólio do SPILTN sobre a gestão do processo de ocupação fundiária a partir da ação governam ental sobre os grupos indígenas. O campo de ação indige­ nista era concebido pelos inspetores como um palco em que os fazen­ deiros, auxiliados pelas autoridades locais (juizes, delegados, vereado­ res, prefeitos etc.), im punham os seus interesses por intermédio da aplica­ ção da violência física contra índios indefesos. Cabia à inspetoria, p o r­ ta n to , im p o r a ordem no caos sertanejo, disciplinar as relações sociais nos conftns do país; daí o significado das descrições de conflitos entre índios e fazendeiros nos relatórios sobre os trabalhos realizados nas inspetorias. Elas certificavam a necessidade e a urgência do trabalho de m ediação proposto, com os respectivos rendim entos econômicos e polí­ ticos." A narração de tais eventos nos relatórios anuais dos inspetores erigia casos de confrontos violentos - de massacres — como expressão m áxim a e incontestável do clim a de hostilidade existente entre os povos nativos e os fazendeiros e colonos. D iante desse quadro, os postos indí­ genas seriam im plantados com o um m icrocosm o da sociedade nacio­ nal, no qual as relações sociais e o processo de valorização do espaço seriam conduzidos - através da vigilância dos integrantes do quadro adn nistrativo do SPI —de form a racional. Por outro lado, a cortelaçlo de forças vigente em co n ju n tu ras históricas específicas em um nível local condicionou as form as com o tal m odelo de ação se concretizou em campos de ação indigenista distintos.

Iu Este tipo de representação do espaço assemeíha-se àquele que circunscreve um a região através da enunciaçlo dc nomes de lugares. Tal modo de produção simbólica do territó­ rio predom inou num certo período da história européia (final da Idade Média) sobre aquele que o concebe graficamente: o mapa (Revei 1989b). 11 Cf. “Relatório da visita feita à colônia indígena do Irambacury e aldeam ento dos índios Pojíxá pelo inspetor, l u tenente Alberto Portella. Thcophillo O ttoni, J.3/12/1910" (SE D O C /M I. Filme 190. Fotogramas 71-81); e “Relatório da expedição Feita a São Sebastião do Salto Grande pelo inspetor I o tenente Alberto Portella. Theophillo O troni, 2 8 /0 3 /1 9 1 1 11 (SE D O C /M I. Filme 190. Fotogramas 112-114).

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A VIAGEM DA VOLTA

A região desenhada pela prática tutelar com o objeto de intervenção ganhava naquele m om ento im portância considerável para os respecti­ vos estados. O vale do rio D oce representava um a alternativa econôm ii a para pequenos produtores rutais — em geral im ígtantes estrangeiros; alemães e italianos em sua m aioria - que, oríginariam ente instalados cm núcleos coloniais situados na região serrana do ES em meados do século XIX, estavam em busca de novas terras. D evido à prática de um a agricultura extensiva e itinetanre, geralmente destinada ao cultivo do café, logo sobreveio o esgotam ento do solo, causando um m ovim enm m igtatório em direção ao norte do estado. O lado ocidental do rio I'ancas, afluente do rio Doce, recebeu um m aior contingente de m igrantes (Kgler 1951) e o Pancas tornou-se o principal eixo de acesso à margem esquerda do rio D oce, de tal m odo que o SPIL TN estabeleceu um pnsco indígena neste local. Esse órgão governam ental se estabelecia onde li.ivia a possibilidade de exercer o seu trabalho de m ediação/representat,ao encre os índios e a população sertaneja/pioneira. Já a zona cacaueira da Bahia, com o aum ento da demanda deste produlu no mercado mundial no início do século XX, tornou-se objeto do inteiesse de populações que vinham predom inantem ente do N ordeste e do Recôncavo Baiano.12 Porém em Itabuna, por exemplo, o mercado formal dc tetras cra ainda restrito, pois só 20,9911 de sua extensão territorial era abarcada por estabelecimentos turais. A área cultivada cobria apenas 29,5% d.i área toral dos estabelecimentos, sendo que a plantação do cacau coricspondía a quase toda a área cultivada (97,8).n Este município era, no início do século, um dos maiores produtores de cacau e, ao lado de Ilhéus, i.mibém um dos centros difusores de seu cultivo. Isto demonstra o enor­ me porencial agrícola a ser ainda explorado e disputado no sul da Bahia, naquele m om ento. Nas duas primeiras décadas do século XX, a C om pa­ nhia Inglesa monopolizou a implantação de um a malha viária (através dc Icnovias) para facilitar o escoamento do cacau para o porto de Ilhéus.14

I'atre 1900 e 1935 o consumo mundial dc cacau aum entou de 101.300 toneladas para 645.500. Entre 1900 e 1940 a população da zona cacaueira cresceu 424,9%. A produção ilc cacau cresceu vertiginosamente cutre 1875 e 1915 (5-016,5%). Em 1915, a produção dc cacau correspondia a 28,56% da renda estadual toral, enquanto cm 1875 e 1895 eqüivalia a 0,65% e7,5% da renda estadual total, respectivamente (Botelho 1954: 169). ' 1 ( Iciimi da população, agricoltttra e indústria de 1920. 11 Na década de 1930, os interesses setoriais ligados à agto-exportação do cacau foram reconhecidos na ossatura burocrítica do governo baiano com a criação do Instituto

TERRAS INDÍGENAS E AÇÃO INDIGENISTA NO NORDtSTE (1910 67)

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Portanto o espaço definido para a ação do SPI correspondia àquilo que ficou conhecido na literatura especializada com o um a frente de ex­ pansão ou fronteira agrícola. Porém isto não significava a ausência de um trabalho acum ulado de dom inação im posto aos grupos indígenas nos cenários interativos em um nível local. Os inspetores tiveram de articu­ lar-se de diversas formas com as agências já estabelecidas, para im por o seu m odo de agir e falar em nom e dos índios. O Inspetor Portclla, por exemplo, teve de aliar-se a atores vinculados a um a unidade adm inistra­ tiva religiosa (a C olônia Indígena do Itam bacuri}, qne já exercia um trabalho dc mediação com os grupos indígenas, atuando conjuntam en­ te com os órgãos governam entais estaduais. Ao mesmo tem po em que o Inspetor Estigarríbia reclamava da atitude hostil que lhe dispensavam os padres que atuavam no rio D oce/ES, fazendeiros, donos ou repre­ sentantes de grandes empresas, autoridades m unicipais e estaduais fazi­ am parte do leque de possíveis aliados ou inimigos, conform e as cir­ cunstâncias do cam po político específico. Em alguns casos, alguns gru­ pos indígenas estavam interessados em viabilizar o trahalho de m edia­ ção dos inspetores do SPILTN , a fim de obter garantias de acesso à terra. Em outros casos, evitavam o contato com as equipes expedicio­ nárias organizadas pelos inspetores. Tais posições distintas perpassa­ vam as próprias dissensões internas dos grupos ou a rivalidade existente entre grupos indígenas diferentes. D e qualquer form a, na segunda década desre século, os inspetores intentavam instalar povoações indígenas não só pata liberar terras para a expansão da fronteira agrícola, fixando os vários grupos indígenas em um a área delim itada, como tam bém buscavam interferir positivam ente nesse processo, articulando de diversas formas a ação com os índios e trabalhadores nacionais (pequenos produtores rurais que se estabeleci­ am em terras devolutas nos estados). O assentam ento de trabalhadores nacionais nas áreas porventura doadas para a localização de índios era pensado como um ato pedagógico - visando a sedentarimção dos índios - e tam bém com o um m o d o de controlar a ocupação fundiária nos arredores dos postos do SPILTN. N ão podem os esquecer que as expe­ dições tinham com o um a de suas tarefas fundam entais a integração do espaço recortado com o âm bito de sua ação. Isso era feito através do Baiano do Cacau (tBC). Desde então, o IBC passou a comandar as políticas de iotegração e organização do espaço regional no sul da Bahia, através da construção de rodovias, reforomlantlo assim as condições de circulação do principal produto agrícola do estado.

A VIAC EM DA VOLTA

reconhecimento da área dc atuação - produção dc um saber geográfico visando a futuras intervenções - e da implantação de uma infra-estrutura viária, destinada a facilitar as condições materiais de ocupação dos serlííes do país. Nacionalizar era tecer um a ampla rede de controles estatais sobre populações e espaços até então inacessíveis. Tal tipo de expectativa evidenciou-se quando, após a criação de alguns postos indígenas no rio Pancas/ES e no tio E m e/M G , criou-se a figura dos colonos dos postos indígenas, através da imposição de um a série de procedimentos normativos, constituindo-se assim um mercado fundiário tutelado no âmbito da jurisilição da Inspetoria da BA, M G e ES (com relação tanto à força de traba­ lho quanto aos produtos agrícolas dos colonos). Vejamos então as condi­ ções impostas pela inspetoria do SPI em 15 dc junho de 1921 para a introdução de trabalhadores nacionais no PI Guido Mariiére: i) permite o estabelecimento e construção de benfeitorias e que se tenha animais de sua propriedade, desde que os mantenha cercados. Com antorÍ7.ação do inspetor, e consentimento do encarregado, o nacional poderá ter animais em pastos ou cercados do estabelecimento; tal concessão sendo retirada quando de interesse do parrimônio indígena; ii) o n a cio n al n ã o te rá p osse da terra, p o ré m os seus fru to s, a n im a is traz id o s o u nascidos e criados nos pastos serão d e su a p ro p rie d a d e ; iii) p ro íb e b eb id as alcoólicas, exige m o ra lid a d e das relações c o m os ín d io s, tra ta m e n to co rtês e ate n cio so destes e c u m p rim e n to das o b rig açõ es c o n rra ídas com estes; iv) em caso de infração ao re g u la m e n to , o n a cio n al e su a fam ília terã o d e se retirar, sem d ire ito a ind en ização . P o d e rá levar o b jeto s do seu uso e d e su a f.im ília, a n im a is, fru to s d a roça. O in sp e to r p o d e rá a d q u irir esta ro ç a se for c o n v e n ie n te p a ra o serviço;

v) o inspetor poderá permitir o plantio de cafezais ou construção de casa de moradia, fixando previamente os valores respectivos. No caso de retirada, o nacional será indenizado, exceto se os cafezais ou construções não tiverem .uiLorização do inspetor ou excederem os limites autorizados; vi) nos casos de rerirada voluntária náo haverá direitos a indenização. Con­ tudo, o inspetor poderá indenizar conforme os meios disponíveis; vii) será facultado ao nacional, pelo inspetor: rransporre nos carros do patrimônio dos produtos da lavoura; beneficiamento destes produtos nas máquinas da mesma; utilização dos reprodutores de raça em serviço de monta; aproveitamento de quaisquer insrrumentos e serviços do patrimônio; viii) d e p o is d e u m ano o n a cio n al terá d e c o n trib u ir p a ra as despesas gerais d o p o sto c o m 6 % d o p ro d u ro de suas lavouras e criações;

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ix) n ã o p o d e rá v e n d er o p ro d u to de suas lavouras o u criações a pessoas estran h a s ao p a trim ô n io sem c o n su lta r o in sp e to r, se os d esejar a d q u irir ao m esm o preço líq u id o (d e sco n ta d o s o tra n s p o rte , sacos, em b a lag e n s etc.). P orém , se o in sp e to r d e m o ra r a re sp o n d e r o u se tiv e r de re ta rd a r o p a g a ­ m e n to n u m prazo q u e p re ju d iq u e o n a cio n al, este fica d e so b rig ad o ; x) a te n d e r c h am a d o s p a ra a c u d ir trab a lh o s u rg e n te s, a cargo d a a d m in is ­ tração d o p a trim ô n io , caso a in sp e to ria não consiga trab a lh a d o re s ín d io s o u e stra n h o s ao p a trim ô n io ; xi) re ce b erá pelos trab a lh o s d o ite m dez pela fo lh a de jo rn aleiro s; xii) os serviços d e e m p re ita d a c o n tra íd o s pelo in sp e to r d a rão p re fe rê n cia ao n a cio n al, caso não possa realizar c o m ín d io s, exceto se este n ã o q u ise r o u fizer exigências onerosas; xiii) n ã o se em p re g ará c o m o trab a lh a d o r, jo rn a le iro o u e m p re ite iro a te rc e i­ ro s sem c o n su lta r a in sp e to ria o u o e n ca rreg a d o . D e v erá d a r p re fe rê n c ia à in sp e to ria q u a n d o esta re q u isita r seu trab alh o ; xiv) a p e n a d e e x pulsão deve ser im e d ia ta c o b rig ató ria, c o n fo rm e a gravi­ d ade, as infrações p o d e rã o ser: a d v ertên c ia do c u lp a d o ; m u lta (p a rte da p ro d u ç ã o d a lav o u ra o u an im a is d e criação); priv ação d o tra n s p o rte g ra tu i­ to n o s carro s e carroças do p a trim ô n io ; p rivação d a utilização d e m á q u in a s de b e n e fie ia m e n ta d e cereais e cana. Se, aplicadas to d as as p e n as, o in fra to r perseverar, d everá rcrirar-se do p a trim ô n io ; xv) v ig o rarã o to d o s os d isp o sitiv o s ate q u e seja e x p ed id o re g u la m e n to p a ra v e n d a de lotes d o p a tr im ô n io .15

A extensa transcrição deste docum ento justifica-se por exprim ir com m u ita clareza a utopia política da sociedade tutelar inerente à teoria de governo atualizada pelos inspetores do SPI nos estados da BA, de M G e do ES no início do século XX. Em prim eiro lugar, os postos indígenas são pensados como empresas de moralização dos sertões, e conseqüente­ m ente tam bém da relação entre índios e não-índios. Pretcnde-se extir­ par os vícios da população sertaneja (como o consum o de bebidas alco­ ólicas, por exemplo), projerando um a sociedade harm oniosa, sem con­ flitos entre índios e não-índios. Em segundo lugar, im planta-se um com ­ pleto regime estatal de repressão da força de trabalho de pequenos pro d u to ­ res rurais. Formas “tradicionais” de dominação adquirem um a nova face,

15 "Relatório dos trabalhos efetuados nesta Inspetoria durante o ano de 192.1, s/d” (SEDO C/ M I. Filme 190. Fotogramas 371-418).

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quer dizer, são apropriadas pelo aparelho estatal indigenista. O inspetor assumiria o papel do patrão no cenário político no nível local ao estatizar a regime de barracão. Ele monopolizaria o acesso à força de trabalho dos i idonos do posto, pois eles teriam de participar da execução dc trabalhos ingentes quando requisitados, e consultar a inspetoria quando fossem oícrecê-la a terceiros. C ontrolaria tam hém o destino da produção dos ■olonos, pois eles, após um ano, teriam de contribuir com 6% do resuli.ido dc suas lavouras c criações, e não poderiam vendê-la a pessoas estra­ nhas ao patrimônio sem consultar a inspetoria.16 Para a execução de tal tutela, um a série de recompensas e penalidades foram elaboradas. O item 15 do regulam ento, que disciplina a colonização em terras indígenas, acena com a possibilidade fu tu ra de com pra do lote pelo colono. Sendo assim, os postos ou povoações indígenas funcionariam i nmo verdadeiros centros agrícolas, que tam bém expressavam esse pro|i'io de criação de um campesinato tutelado.17 Porranto, intrusos eram iquclcs que não estivessem enquadrados nos regulam entos condicionantes da perm anência de colonos nas terras do posro. O s invasores deveriam regularizar sua situação, isto é, colocar-se sob a rutela do órgão ao apresentarem um a “Petição de preferência de localização” nos loics que seriam dem arcados. As petições m encionadas deveriam vir a nm panhadas de um a “Declaração de família” e ourra de “Reconheci­ m e n to do regulam ento” do posto, ou seja, a inspetoria exigia dos colo­ nos um a aceitação explícita e formal da sua submissão à malha discipli­ nar por ela tecida.13 Nesse contexto, os postos indígenas recrutavam 1'iupos de trahalhadores nacionais, envolvendo-os na tram a tutelar urdi­ da cin torno da população indígena. C om o nós vim os acim a, foram i nados regulam entos especiais para os colonos introduzidos: os postos indígenas tornaram -se verdadeiras empresas estatais de colonização. Teni.iv.t sc controlar não só as relações travadas entre a população indígena

Itna um a análise dc processos dc reprodução dc padrões de relacionam ento próprios à li).1,ura d o pãtrão pelos encarregados de postos iodígenas em um contexto histórico e .lu iitl diferente, ver Oliveira (1988: 23d-5). 1 i diveira (s/d) caracterizou os grupos indígenas como um campesinato comunal, cuja dilcrcnça fundamentai com relação a um “campesinato livre” (aspas do autor) é a sua luliinissão à tutela do Estado, '* ( 'f. “Relatório dos trabalhos efetuados na Inspetoria de M G , ES e BA, durante o ano de 1922. Assinado: Inspetor Samuel Henrique da Silveira Lobo. Vitória, 1922” (SE D O C / Ml. Filme 190. Fotograma 478-535)-

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e a sertaneja, corno tam bém os processos de valorização do espaço e circulação dos recursos fundiários. Por sua vez, o território nacional era inventado através da im plantação da ordem e moralização do espaço social nos confins do Brasil. A nação correspondia a um estágio m oral­ m ente superior de civilização. Logo, a criação de terras indígenas visa­ va englobar a m aior faixa territorial possível, a fim de que o poder turelar fosse exercido sobre um cam po social mais abrangente. Isto não significava imobilizar recursos fundiários, mas sim controlar a sua pro­ dução e circulação, constituir um mercado fundiário tutelado. Em suma, os postos indígenas instalados em M inas Gerais e no Espírito Santo, na segunda década do século XX, ao introduzirem trabalhadores nacionais, assumiam essa tarefa de colonização/nacionalização dos sertões. Nesse con­ texto, os postos indígenas emergiam como um protóripo da utopia políti­ ca da sociedade tutelar, um microcosmo da sociedade nacional tutelada.

A In stitu cio n alização do m odelo colonizador: o arren d am en to com o um a fo rm a de resolução de conflitos agrários

C om a criação dos Pis Gal. D antas Barreto/PE, em 1924, e São Fran­ cisco da Baia da T taiçío/P B , em 1932, um a nova configuração de for­ ças passou a orientar a distribuição dos recursos fundiários em Águas Belas e M am anguape. Ao conseguir im por-se como porta-voz legal dos Fulni-ô e dos Potiguara —o que significava fazer reconhecer a sua com ­ petência exclusiva em determ inar a condição indígena daqueles que a pleiteavam as unidades adm inistrativas locais do SPI colocaram sob a sua jurisdição os intrusos dos antigos aldeam entos indígenas. Transfor­ m ados em arrendatários do órgão indigenista oficial, os antigos invaso­ res deixaram de pagar foro às respectivas coletorias estaduais. Desse m odo, o SPI, através de seus representantes, passou a intervir na dinâ­ m ica de valorização das terras cedidas pelos governos estaduais. O tra­ balho de m ediação/dom inação im plem entado pelo SPI trazia a pers­ pectiva de dividendos políticos e econôm icos consideráveis. Sendo assim, na década de 1920, o m odelo de ação e controle de recursos fundiários (atualizado a partir da criação de terras indígenas), vigente na década anterior no âm bito da inspetoria da BA, dc M G c do ES, co n stitu iu um dispositivo de resolução de conflitos agrários, de controle de populações não-indígenas estabelecidas em tertas reivindi-

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i tilas por índios. A colonização, entretanto, não deixou de constituir mu tios elem entos da intervenção indigenista, pois esta tam bém incluía uma série de instrum entos norm ativos que procuravam orientar a pro­ dução do espaço agrário. Essa dim ensão do trabalho de representação i sercido pelo SPI predom inou nas chamadas zonas pioneiras, nas quais is iareias de povoam ento e integração territorial foram privilegiadas prlos inspetores dessa agência estatal. A qui se trata de regiões que já iinliam sofrido fluxos de colonização passados, que não eram caracteri•idas por um a saturação da reserva de recursos fundiários disponíveis í/iww), mas sim por um a intrincada tram a de direitos terriroriais muitas vi /es justapostos e conflitantes. Em outros termos, o quadro acima desII no em linhas gerais é marcado pela existência de um a gama considerável de recursos fechados, cujo acesso é disputado através da utilização de insunm entos políticos ou jurídicos, e por intensos processos de concentração rir ierras. Por outro lado, a liberação de terras também continuou presente no Imii/onte projetado por este padrão conciliador de atuação, pois os acordos (ninados para a cessão das terras mencionavam a possibilidade futura de retoriiii ao patrimônio estadual, caso o SPI interrompesse suas atividades junto ao empo indígena beneficiado. N ão obstante, esses dois fatores estruturais da ai,,10 indigenista perm aneceram subordinados à perspectiva na qual os In>>,lov indígenas constituíam-se em instâncias de mediação de conflitos agráriii i c distribuição de recursos fundiários. O arrendam ento de lotes de terras >ni área indígena emergiu então como procedim ento paradigmático de negociação com autoridades governamentais estaduais. Em 1921, o Pe. Alfredo D âm aso intercedeu a favor dos Fulni-ô junIII ,io Gal. R ondon, no Rio de Janeiro, e ju n to à diretoria do SPI. N o m o seguinte, 1922, D agoberto de Castro e Silva, ajudante adido do Md, foi indicado para verificar a situação dos índios e escolher o local p.H.i instalação de um novo posto de proteção aos índios, ou no estado ■l.i Paraíba ou de Pernambuco. C oncluiu seu relatório desaconselhando ,i i riação de um posto para atender aos Potiguara, lem brando a necessi­ dade de indenização dos ocupantes civilizados. Em contrapartida, indii i iii a assistência aos Carijó, alegando que seria pouco dispendiosa, em i.i/íio da disposição daqueles que se apropriaram de suas terras em pagar foros ,1 um recebedor legal e idôneo. O emissário do SPI constatou no seu relatóiio que mais da metade dos arrendatários nada pagavam aos Fulni-ô. O < im selho M unicipal de Águas Belas considerava devolutas as terras do m ligo aldeam ento do Ipanem a a fim de arrendá-las. A leitura do Inspe-

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cor D agoberto sobre a situação das terras dos antigos aldeam cntos de São Francisco e do Ipanem a foi corroborada pela D iretoria do SPI, pois foi instalado apenas o posto indígena por ele sugerido, em 1924,’'’ Em 1° de julho de 1925, implantou-se o arrendam ento das terras do posto Gal. D antas Barreto (como passou a se chamar o posto indígena de assistência aos Fulni-ô). A linha dc intervenção nos conflitos agrários locais acionada pelo encarregado do posto Alberto Jacobina traduziu-se em estratégias de confronto com personagens dom inantes no cenário social rq mal. Jacobina pretendia retom ar e ocupar os terrenos despro­ vidos de benfeitorias, e fazer os ocupantes não-índios pagarem arrenda­ m ento à administração do posto.20 C ontudo a posição das peças do jogo político eram desfavoráveis ao inspetor do SPI não só no contexto local e regional com o tam bém em nível nacional. Os setores da elite política pernam bucana envolvidos na disputa em torno dos recursos fundiários do PI Gal. Dantas Barreto tinham penetração nos escalões superiores do governo federal21 e as pressões exercidas sobre a diretoria do SPI surti­ ram efeito: o inspetor Estigarribia ficou encarregado de averiguar as irre­ gularidades existentes na inspetoria de Pernambuco e foram suspensas as funções e os atos da administração Jacobina. O Engenheiro A ntonio M ar­ tins V ianna Estigarribia foi nom eado tam bém para prom over as bases do acordo sobre as terras do antigo aldeamento do Ipanema, junto ao gover­ no de Pernam buco, em 20 de abril de 1928. Neste m om ento, Estigarribia já havia acum ulado um considerável capital simbólico que lhe proporcio­ nava grande autoridade no circuito político de exercício da prática indi­ genista. Sua com petência quanto ao trabalho de mediação em grupos indígenas já era am plam ente reconhecida nas instâncias superiores do

15 Cf. “Relatório referente às terras ocupadas pelos índios Potiguara na Bahia da Traição, m unicípio de M amanguape/PB, e visita aos índios Carijó. S/D. Assinado: Dagoberto de Castro e Silva” (SE D O C /M I. Filme 170. Fotogramas 1557-1589). 20 Cf. “Relatório sobre os trabalhos realizados nus anos de 1925 e 1926, na Inspetoria do Estado de Pernambuco. í/05/1927. Assinado: Alberto Jacobina” (SE D O C /M I. Filme 190, Fotogramas 655-675). 21 O inspetor Jacobina tinha consciência disto, pois m encionou a nomeação do delegado Lauro Pinho pata o cargo de fiscal do M inistério da Agricultura junto à Academia de Comércio de Recife. Cf. “Relatório dos trabalhos executados durante os anos de 1927 e 1928, sob a direção do Auxiliar Alberto Jacobina, encarregado do SPI em Pernambuco. 04/03/1929, RJ” (SE D O C /M I. Filme 190. Fotogramas 736-759).

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In n tc | Pf.TI/Museu Nacional, 1993.

SPI, principalm ente em relação à regularização da ocupação fundiária de populações não-índígenas nas reservas. Já o encarregado do posto do SPI em Águas Belas desde a sua fundação foi transferido para a povoação indígena de Passo Fundo, 110 Rio G rande do Sul, em 28 de agosto de 1928. O acordo já referido loi firmado, em linhas gerais, segundo os termos da proposta elaborada pelo M inistro da Agricultura, e consubstanciada no Ato 637 de 20 de julho de 1928 do Governo de Pernam buco.32 Preten­ dia-se estender a malha tutelar do SPI à população sertaneja ao instituirsc a figura do arrendatário, e o endividam ento constituiria uma fonte de recursos econôm icos e políticos fundam entais nas mãos dos chefes de posto diante de índios e foreiros. Estabeleceu-se assim um novo padrão de ação indigenista, 110 qual o SPI atuou como principal agência mediadora dos co n flito s agrárias e com o in stân cia d istrib u id o ra dos recursos fundiários a partir do reconhecimento oficial de grupos e terras indíge­ nas. O arrendam ento em ergiu com o procedim ento pred o m in an te de operacionalização de tal estratégia, porém coexistiu com outros expedientes utilizados para im plem entar a regularização fundiária em unidades territo­ riais indigenistas: os contratos de extração de recursos florestais (madei­ ras, cocos etc.). A questão dos arrendam entos nas terras do posto Gal. D antas Barreto passou a ser tratada a partir de um ângulo diferente dentro do SPI na peimeira m etade da década de 1940. N a posição m anifestada anterior­ m ente cm relatórios sobre sindicâncias e inspeções, os arrendam entos com batidas eram aqueles classificados com o irregulares, isto é, aqueles que foram efetuados de um a form a não controlada pelo órgão indigenista (sem o conhecim ento da direção) ou que fugiam do seu dom ínio (descumprim ento das cláusulas do contrato). N o período aqui delineado, o ar­ rendam ento em si mesmo passa a ser considerado nocivo à existência e ao desenvolvimento econômico e moral dos índios. Em um relatório sobre os trabalhos executados no posto indígena de Águas Belas durante o ano de 1944, o encarregado Tubal Fialho Vianna afirmou que os arrendam entos representavam um entrave à emancipação econômica e social dos remanes­ centes Carnijós: “O s civilizados arrendatários ocupam as terras férteis e boas, vivendo o índio de minguadas rendas e de trabalhos com a palha

u C f “Instruções referentes às restrições; 10, 12 e 13 do Ato 637 de 20/07/1928, do Sr. governador do Estado de Pernambuco" (SE D O C /M I. Forogramas 690-704).

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te ouricuri ou p edindo esm olas, o que se co n trap õ e aos princípios mtpagados pelo SPI.23 Tubal sugeriu então à diretoria a distribuição de um suprim ento esuh iTico para indenizar as benfeitorias dos arrendatários, a fim de desoup.tr gradarivam ente os lotes arrendados. É bom lem brar que desde o iiferio dos anos 1940 já ocorria um processo de retirada de arrendatáriis no posto Paraguaçu, no m unicípio de Itabuna, sul da Bahia. Parece |ue tal proposta tornou-se hegem ônica quando a direção do SPI deci11u aprovar o Plano de Extinção de Foreiros m edianre indenização pe,is rendas internas dos postos em 1949.24 A atuação do SPI cm relação aos Poriguara se iniciou quando o Insperu Alípio Bandeira foi enviado para visitá-los em 1913, deixando implíu .i na crítica dirigida à atuação missionária a necessidade da intervenKi ria agência indigenista oficial, a fim de gerir racionalmente a ntegração Iclcs à sociedade nacional.25 Entretanto, até a instalação do posto indígeé,i, a intervenção do SPI junto aos Potiguara foi m uito esporádica. Só há i gisiros sobre os Potiguara da Baía da Traição no início dos anos 1920, |ii,indo foi enviado outro emissário do órgão indigenista, Inspetor Dagoberto li1( lastro e Silva, para verificar a situação das terras daquele grupo étnico, nino já vimos. O desfecho da questão das terras dos Fulni-ô crigiu-se cm ulução paradigmática quando o M inistro da Agricultura designou o ins­ truir Estigarribia (28 de novem bro de 1929) para prom over com o goveru d o r da Paraíba acordo similar sobre as terras dos antigos aldeamentos Ir M onte-M or e São Francisco, e tam bém para providenciar a organiza,io do núcleo indígena. O então governador da Paraíba João Pessoa havia uiKordado com as bases do projeto de decreto proposto pelo funcionám do SPI, apenas introduzindo um a ressalva sobre o retorno para o Inmínio estadual das terras doadas em caso de abandono. C om o assasiii,ito do governador em 20 de julho dc 1930, Estigarribia prosseguiu os

” ( 'í, “Relatório dos trabalhos executados no PI Gal, Dantas Barreto, sob a direção do encarregado Tubal Fialho Vianna, durante o ano de 1944. Aguas Belas, 13/01/45" (SIÍD O C /M I. Filme 164. Fotogramas 45-49). M 1 II. “M em orando n° 77, de 14/03/1949, da Diretoria com unicando a aprovação do jilann de extinção dc foreiros, m ediante indenização pelas rendas internas" (SE D O C / MI. Filme 164. Focograma 77). ’’ Cf. “Relatório referente aos índios remanescentes da Bahia da Traição, a nordeste da Paraíba. Rio de Janeiro, outubro de 1920. Assinada: Aiípio Bandeira” (SE D O C /M I. Filme 170. Fotogramas 1542-1555).

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entendim entos com o vice-governador Álvaro de Carvalho, sucessor de João Pessoa.26 C om a criação do PI São Francisco em 1932, passou a ocorrer urna disputa pelo controle da mão-de-obra indígena e dos proces­ sos de valorização do espaço. O encarregado do posto, Vícenre Vianna, fez várias denúncias durante a segunda m etade da década de 1930 ao inspetor regional do M inistério do Trabalho, Indústria e C om ércio27 conrra o chefe indígena M anuel Santana. Ele estaria incentivando o corte e a venda de madeiras.28 O final da década dc 1930 marca o início de um período em que o SPI buscou retomar o controle dos processos dc orga­ nização do espaço fundiário em terra indígena. M uito provavelmente isto ocorreu por causa da reaiocação do órgão indigenista dentro da ossatura burocrática estatal, transferindo-se do Ministério do Trabalho, Indústria e Com ércio (M TIC) para o Ministério da Guerra, apesar de as inspetorias regionais terem continuado subordinadas à pasta do crabalho. Tal fato acarretou um revigoramento da agencia governamental indigenista, que culm inou com a sua inserção no M inistério da Agricultura em 1939 (Souza Lima 1992a e 1992b). E im p o rtan te salientar que, nesse m om ento, a ênfase da ação indi­ genista na regularização fundiária verificou-se em vários postos indí­ genas do N ordeste. Intensificou-se a repressão à extração de m adeiras no PI São Francisco em 1938.25 C o n tu d o esse problem a não loí eíimi2
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■1 i*lu. Por o u tro lado, constatou-se a preocupação não só em avaliar e u p.isliar o m o n tan te de recursos retirados do controle da adm inistra^ i>> do posto, com o tam bém de buscar fórm ulas para sustar tal esco'iin tuo. Todavia as soluções apresentadas fluíam na m esm a direção: i obrar o pag am en to das taxas de a rre n d a m en to aos o cu p a n tes das i< iias da área indígena, que som avam mais de quatrocentos. Justificat i se tal m edida pela criação de um a renda própria para o posto, que 0 libertaria das verbas públicas. ü PI Paraguaçú foi m encionado como 1 n m plo p o r ter regularizado a situação dos o c u p an te s da reserva, liiinando com eles contratos de arrendam ento em 1 937.30 Já está implli ita aqui a definição da terra indígena com o um reservatório/estoqne de riquezas (com o patrim ô n io ), cuja adm inistração eficiente cons­ um ia a ação indigenista em fonte geradora de renda. A p a rtir da seipinda m etade da década de 1940, os relatórios dos encarregados pasini a apresentar um a enorm e produção de registros, cujo estilo nari uivo privilegia o relato contábil (o invenrário quantitativo) sobre os in ursos existentes nos postos.31 As noções de patrim ônio e renda ini/iy/nas co nstituíam o fio c o n d u to r desse aparato discursivo. O s própiios índios são pensados com o coisas a gerir, que entravam no côm j u i i o dos “Avisos dos Postos Indígenas” através das estatísticas sobre piipulação, n ascim entos e ó b ito s ao lado de dados sobre pro d u ção igiíeola, benfeitorias, criação, plantações etc. D este m odo as inspemrias preten d iam acom panhar m inuciosam ente todas as possibilida­ des de circulação (in p u tlreceita e tw/^wf/despesa) de recursos, centrauiacório referente ao ano de 1939, o chefe do posto avaliou era um milhão de m etros i úbicos o m ontante de lenha extraído pela Fábrica de Tecidos Rio T into. Cf. “Relacório encaminhado à Sétima Delegacia Regional pelo Sr. Feitor do PI São Francisco, na Baia da Ihtição/PB, referente ao ano de 1939“ (SE D O C /M I. Filme 180. Fotogramas 69-78). l !f, “Relacório encaminhado à Sétim a Delegacia Regional pelo Sr. Feitor do PI São li-incisco, na Baía da Traição (PB), referente ao ano de 1939” (SE D O C /M I. Filme 180. Fotogramas 69-78). 1 ( T “Termos de doação”, “Termos de avaliação”, “Termos de morte de animais”, “Termos dc transferência e transmissão de contratos de arrendam ento”, “Concessões de aumento tlc área de arrendam ento”, “Recibos de pagamento por serviços prestados”, “Recibos de pagamento por venda de mercadorias”, “Recibos de arrendamento", “Recibos de paga­ m ento de indenizações por benfeitorias”, “Prestação de contas sobre m ovim entação da renda dos Pis", “ Folha de pagam ento de pessoal”, “Relação de despesas efecuadas”, "Inventários de bens móveis e semovenres”, “Fichas para controle de m edicam entos", “Avisos dos Pis” e “Boletins de criação".

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Ii/ando um a grande tnassa de inform ações sobre os elementos form a­ dores da renda das unidades locais.32 N o bojo desse aparato burocrático-adm inistrativo surgiram propos­ tas de insulamento e redução de territórios indígenas, liberando e deli­ m itando o estoque de recursos fundiários disponíveis para o mercado. À m edida que os agentes do SPI afirmavam a inviabilidade de com pro­ var a fixação duradoura (a ocupação permanente) dc certos grupos indí­ genas nas terras reivindicadas, eles sugeriam um a expulsão às avessas dos invasores em troca da regularização definitiva do patrimônio con­ trolado pelo órgão indigenista. Porém , nesse m om ento, a ênfase que caracteriza o m odelo de ação indigenista p roposto concebe o posto indígena com o instância m ediadora de conflitos agrários e distribuido­ ra dos recursos existentes dentro dos seus limites. A luta para consoli­ dar á posição do órgão indigenista em M am anguape con tin u o u nos anos 1940-50. Algumas m edidas foram propostas nesse sentido; entre elas, a demarcação da área indígena adquiriu grande ênfase.33 Acredita­ m os que o processo de crescimento da dem anda por recursos fundiários e de concentração de terras ocorrido nos anos 1940 em M am anguape34

3ZTal concepção de terra indígena traduziu-se cada vez tnaís na ossatura material da agência indigenista oficial a partir da década de 1960, quando se tornou explícito o projeto de valorização do patrim ônio indígena (Souza Lima 1989). Nessa perspectiva, a demarcação de áreas indígenas constituiu-se em um dos instrum entos de regularização da ocupação tundiária. Desse m odo, destinava-se um m ontante de terras para “o uso das populações indígenas”, estabelecendo o estoque de recursos fundiários disponíveis para os em preen­ dim entos empresariais páblícos ou privados, previstos pelo Estado brasileiro nos gran­ des projetos de investim entos, durante as décadas de 1970 e 1980. 33 A transferência da sede do posto localizada na vila da Baía da Traição para um lugar denom inado “Forte” em 1942, quando passou a denominar-se PI “Nísia Brasileira” (Amurim 1970: 53), pode ser considerada como um modo de aíastar o centro adm inis­ trativo desta unidade indigenista da pressão direta dos ocupantes não-índios, pois m ui­ tos deles moravam naquele povoado. 34 Para confirm ar isto basta constatar que o índice de ocupação fundiária aum entou de 27,2% para 37,5% , quase alcançando o nívc! verificado pelo censo dc 192(1. Por outro lado, os estabelecimentos rurais do município de M am anguape passaram a ocupar a m aior área de terras da zona do litoral e m ata (34,8% ), apesar de corresponder a apenas 19,8% dos estabelecimentos desta unidade fisiográfica. Já percebemos então um indício da concentração fundiária vigente em Mamanguape. Podemos apontar outro: o m ontanre de escabelecimentos reduziu-se aproxim adam ente à m etade (51%), mas a área ocupada por eles cresceu 37,9% (IBGE: Censo Agrícola de 1950).

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lenha, condicionado as decisões tom adas p o r agentes do SPI no sentido de criar instrum entos que garantissem a integridade territorial e a pró­ pria existência da área indígena. Dessa feita, no final dos anos 1940 o inspetor Tubal Fialho V iana sugeriu alguns procedim entos para o SPI recuperar o controle sobre ns coqueirais existentes nas rerras do posto N ísia Brasileira. Em p ri­ meiro lugar, o levautam ento dos coqueirais e da dívida ativa dos foros m ure 1933 e 1949; em segundo, o p ag am en to de indenização dos ■íiios.35 Percebe-se um a orientação diferente daquela em itida pelo eni arregado do PI São Francisco em 1939. N aquele m om ento, não se lu ta v a mais de regularizar a situação dos ocupantes da área indígena, mas de retirá-las através da devolução m onetária do trabalho investi■Io nas terras ocupadas. Por o u tro lado, tal in ten to passava pela legali­ zação/regularização da utilização dos recursos fundiários do posto pela população não-indígena nele estabelecida, Isso seria feito firm ando-se i ontratos de arrendam ento com tais ocupantes, subm etendo-os a um a série de procedim entos norm ativos de convivência entre índios, SPI e sitiantes, O bviam ente o controle de tal relacionam ento triádico fican.i a cargo dos representantes do órgão indigenista no PI N ísia Brasi­ leira — especialistas do trabalho de m ediação /rep resentação/dom inai,.io envolvendo grupos indígenas. Tal esforço - p o r nós constatado .uravés de recibos e contratos de arrendam ento do PI N ísia Brasileira no S E D O C /M I - iniciou-se em 1949, estendendo-se até o m om ento dc extinção do SPI (1967-8). O s dois prim eiros anos (i 949-50) coni entraram quase a m etade (48,3% ) dos arrendam entos estabelecidos no período m encionado. Os lotes arrendados no PI N ísia Brasileira estavam na faixa de um a quatro hectares. Som ente três foreiros ocupavam extensões um pouco maiores; O távio M onteiro (20 ha, em 1949, e 10 ha, em 1956), Luiz I hiarte Cavalcante (20 ha, em 1956) e Sabino Franco de Farias (8 ha, 1968). Porranto os inspetores do SPI só conseguiram enquadrar em tal mecanismo de disciplinarização aqueles que ocupavam pequenas exten­ sões de tetra, deixando de fora os que d etin h am áreas m aiores; por

" Cf. “Processa S P l V ' 3773/48. Sugestões pata chamar ao Patrim ônio Indígena os coqueirais existentes nas terras dos índios Potiguara. De Tubal Fialho V ianna, Inspetor íispecial do SPI, para o chefc da S.O.A. do SPI” (SE D O C /M I. Filme 170. Fotogramas 1602-1603).

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exemplo, a C om panhia de Tecidos Rio T into. M esmo assim, tal contro­ le era precário, pois m uitos foreiros pagavam a prim eira anuidade após a regularização e depois deixavam de fazê-lo ou o faziam com pouca freqüência. E ntretanto, o arrendam ento exercia um a função simbólica m uito im portante, pois documentava/dramatizava (no sentido de Goffman) em certos m om entos a auto-suficiência econôm ica do posto indígena. E, com o veremos, os postos do sul da Bahia eram freqüentem ente cita­ dos com o exemplos. Desde a segunda m etade dos anos 1930, a demarcação dos territóri­ os indígenas passou a constiruir um a preocupação fundam ental.36 Em 1937-8, a demarcação da área do posto Paraguaçú estava no bojo do processo de regularização da situação dos ocupantes não-índios. Segun­ do a estratégia delineada para o PI N ísia Brasileira, em fins dos anos 1940, a demarcação tam bém estava vinculada ao processo de regulari­ zação m encionado não com o um fim , mas sim com o um meio para lim par a área. D evido aos conflitos existentes entre ocupantes, íudios e agentes do SPI, im portava então traçar precisam ente a área do posto com o o locus exclusivo e inquestionável de controle do órgão indigenista. Era necessário reordenar as relações entre índios e ocupantes a p artir do efetivo estabelecim ento de um território indígena, com seu status jurídico específico garantido pelo Estado. Iniciou-se, no segundo sem estre de 1948, a dem arcação das terras do PI N ísia Brasileira.37 U m grupo de índios liderado por Pedro Ciríaco ficou descontente com a medição realizada. A rgum entavam que o m ar­ co “balança” ficava um a légua acima do que fora estabelecido. Tal rei­ vindicação abarcava terras ocupadas pela Fábrica de Tecidos Rio T into,

M Um a demonstração disto foi a sugestão apresentada por Indiano Am arinho de Oliveira, responsável pelo expediente da Seção de Organização e Administração (S.O.A.), ao diretor do SPI, em 21 de dezembro de 1951. Nesta ocasião, ele propôs que fosse destinada anualm ente 50% da verba de “Auxílio aos índios” para atender às despesas com a legalização de terras (demarcação, registro etc.). A aplicação de tais recursos obede­ ceria a um program a prévio, considerando-se a m aior urgência deste ou daquele posto, a critério da administração geral. Cf. "Processo SPI n° 5455/51. Do responsável pelo expediente da S.O.A. Iridiano Am arinho de Oliveira para o D iretor do SPI”. Rio de Janeiro, 21/12/1951” (SB D O C /M I. Filme 171. Fotogramas 99-105). 37 cp. “Processo SPI n° 4478/48 c Processo IR 4 n D720/5 1. Assunto; medição das terras do PI Nísia Brasileira. D e Francisco Sampaio, Inspetor do SPI, ao Chefe da IR 4, Raim undo Dantas Carneiro, s/d ” (SE D O C /M I. Filme 171. Fotogramas 288-2S9).

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onde esta em presa tin h a um a grande plantação de eucaliptos feita se­ gundo o plano de reflorestamento recom endado pelo M inistério da Agri>ultura. O traçado pretendido por aqueles índios passava por um a área (quatro léguas) habitada por sitiantes da Vila de M ataraca, que diziam possuir títulos e pagar im postos territoriais dos terrenos respectivos. O inspetor, ao contrário dos moradores da vila m encionada, afirm ou não existir ato de governo sobre as terras dos Potiguara. Francisco Sampaio procurou algum registro, no serviço regional do I )om ínio da U n ilo na Paraíba, sobre os lim ites do antigo aldeam enro dos Potiguara. N ão encontrando n en h u m instrum ento fidedigno de prova sobre os verdadeiros contornos do território Potiguara38, concluiu que não havia argum entos para arender às reivindicações dos índios. Suge­ riu então que a diretoria ordenasse um a busca no A rquivo N acional, a lim de encontrar docum entos do governo im perial sobre os Potiguara da Baía da Traição. D eclarou ainda que, além disso, só restava medir as terras em poder dos índios, e solicitar a homologação ao Juiz de D ireito da Com arca de M am anguape.35 Visiumbra-se aqui um m odelo de ação que privilegia o cam po ju ríd i­ co, com sua lógica e limites próprios, de reconhecim ento dos direitos indígenas à terra. A estratégia privilegiada nesse contexto é o desbravam ento de arquivos, bibliotecas e cartórios visando encontrar registros que atestem com exatidão a antigüidade da fixação dos índios dentro ilos lim ites territoriais por eles pretendidos. O bviam ente os docum enlos são hierarquizados em term os da sua com petência no que diz res­ peito à emissão de enunciados verdadeiros e, conseqüentem ente, como instrum ento definitivo —inquestionável —dc solução de litígios fundiá­ rios. Desse m odo, os agentes do SPI concentram a sua atenção sobre a liscrita de EstadoAa, a fim de descobrir o ato fu n d a d o r da existência pública das terras pertencentes aos Potiguara. Aqui a investigação his-

,s A não ser um croqui que não perm itia, na opinião do agente indigenista, determ inar nem as distâncias entre os marcos nele mencionados nem a área aproximada do polígono, devido à falta de escala. ■ MCf. "Carta de Francisco Sampaio, Inspetor do SPI, para Raim undo D antas Carneiro, chefe d a I R 4 . Recife, 16/06/1952” (SE D O C /M I. Filme 171. Fotogramas 116-117). Sobre este conceito ver Charrier (1990: 218), em que ele a define como "a escrita dos representantes da autoridade pública ou a eles dirigida1’ c sugere um a análise dos supor­ tes materiais através dos quais "[...] o Estado dá a conhecer as suas vontades ou registra as dos seus súditos".

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tórica aparece com o reunião de testemunhos (vestígios, sinais, pistas) de um passado subjacente a um a massa docum ental inexplorada. Assim, o território indígena emerge espontaneamente de um procedi­ m en to de resgate de um a realidade p retérita e o reconhecim ento de direitos fundiários fica condicionado às lacunas existentes no m ontante de inform ações coligidas. D ian te da inviabilidade de co n stitu ir um a base docum ental sólida para legirimar as dem andas indígenas por ter­ ras, emergem mecanismos extralegais (políticos) dc resolução de confli­ tos agrários, que requerem , todavia, o reconhecim ento das instâncias judiciárias de decisão. As prop o stas de redução de áreas indígenas, baseadas na noção de efetiva ocupação, aum entam as tensões já existen­ tes ao legalizarem as reivindicações por recursos fundiários prejudiciais aos interesses dos índ io s/11 A Q u arta Inspetoria Regional encontrava-se num a situação desfavo­ rável diante da disputa pelos recursos políticos e econôm icos em jogo na questão da extração de m adeiras da área indígena.'12 A solução en­ contrada seguiu o m odelo adotado no PI Paraguaçn, no sul da Bahia, em 1937-8: a regularização da situação dos ocupantes. Sendo assim, o chefe da IR 4 determ inou que o encarregado José Brasileiro da Silva fizesse um a revisão geral da situação dos sitiantes a fim de elim inar as irregularidades existentes. O chefe do posto tentaria convencê-los a to r­ narem -se arren d atário s.43 R aim u n d o D an tas C arneiro ju stifico u tal tnedida alegando a precariedade da docum entação existente sobre as terras doadas aos Potiguara. O m apa respectivo era um a cópia, cujo original estava desaparecido. Tal m odalidade de ação Unha um caráter am bíguo. Ao mesmo tem po em que, por um lado, legalizava, através de

1,1 Sobre o Fenômeno de legalização do ilegal to m o um elemento estrutural da ordem jurídica brasileira, ver H olston (1993). 43 N um a correspondência destinada ao diretor do SPI, datada de 10 de m arço de 1954, R aim undo Dantas Carneiro afirm ou que a questão das terras do posto Nísia Brasileira “envolvia os interesses da fábrica de tecidos Rio T into, de vizinhos com sítios formados e da política regional nefasta, chefiada pelos irmãos Fernandes”. Um deles era naquela ocasião governador da Paraíba, c o outro era o seu secretário da agricultura. Cf. “Carta de R aim undo Dantas Carneiro, Chefe da IR 4, para o D iretor do SPI. Recife, 10/03/ 1954" (SE D O C /M I. Filme 171. Fotograma 217-218). 43 Cf. “Ofício n° 69, d e 28/04/53. Do Chefe IR 4 , Raim undo Dantas Carneiro, p arajosc Brasileiro da Silva, Encarregado do PI Nísia Brasileira” (SE D O C /M I. Filme 171. Fotograma 177).

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mna solução extrajurídica, as dem andas fundiárias dos ocupantes, por outro, visava induzi-los a reconhecer, através da form alização dc um acordo, as prerrogarivas do SPI ante a ordenação do espaço agrário e a preem incncia dos direitos indígenas sobre os terrenos em litígio, Poléin, apesar de preservar a integridade formal do território indígena, o acesso e o controle pleno aos recursos nele existentes encontravam -se inviabilizados para os índios. Tal situação era propícia ao florescimento de conflitos, pois criava e fortalecia a expectativa de futuras regulariza­ ções de apropriações irregulares de terras em área indígena.44 A amplificação de tensões decorrente da tática acima descrita foi se inrnando insustentável para alguns funcionários do SPI, que passaram a defender, alguns anos depois, um a alternativa para resolver os proble­ mas existentes no PI N ísia Brasileira: a redução da área indígena, libei.mdo dessa form a as terras ocupadas por sitiantes náo-lndios, C om o já assinalamos acima, a idéia que norteia esse m odelo dc ação —fortem enic investido de argum entos jurídicos - enfatiza a idéia de aproveitamen­ to ou valorização dos recursos existentes nas terras indígenas, em que a antigüidade da ocupação opera com o fator adicional de legitimação de dem andas por terra45. Segundo essa lógica, a ausência de meios docu­ mentais de comprovação de um vínculo pretérito entre os remanescentes indígenas e as terras por eles reivindicadas inviabilizava qualquer tentanva conseqüente do órgão de recuperá-las.4s F.sse m odelo de ação já estava vigorando com o padrão de criação de ierras indígenas no âm bito político-adm inistrativo da IR 4 desde m ea­

11Tal fato pode ser ilustrado através dos periódicos atos de “regularização da situação dus ocupantes” implementados em diversos postos e das várias concessões dc aum ento de áreas arrendadas emitidas pelos encarregados dos postos do sul da Bahia. Tais procedi­ mentos tornaram-se freqüentes para legalizar tanto a entrada de novos ocupantes quanto as mcurporaçúes de novas terras por arrendatários antigos. r ’ li interessante observar que a efetiva e permanente ocupação — que foi acionada para propor a redução dos limites do PI Nísia Brasileira, em M am anguape/PR — como rlcm cnto definidor das terras indígenas foi estabelecida pela C onstituição Federal de 1934 (Souza Lima 1992a: 236). 1 liil atitude reforça a estratégia peculiar das elites fundiárias brasileiras, que consiste cm produzir um a série de registros (pagamento dc impostos, arrendamentos, transferências rle.) sobre o terreno ocupado a fim de reunir instrum entos legais que garantam os direitos sobre tal apropriação, O resultado é um a tram a tão intrincada dc títulos que (urna difícil o seu questionam ento jurídico (Holston 1993).

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dos dos anos 1940. Por outro lado, esse tipo de intervenção - aqui cham ado de insulamento de áreas indígenas — foi sugerido tam bém para o caso dos postos do suí da Bahia, em fins dos anos 1950. A seguir, veremos com o esse modelo de ação orientou a criação de terras indíge­ nas no N ordeste durante os anos 1940-50. Antes disso, porém , a des­ crição do processo de im plantação do campo de ação indigenista no sul da Bahia servirá para aprofundar um pouco mais as possibilidades teó­ ricas de aplicação dos modelos de ação indigenisra, a fim de entender­ m os m elhor as distintas formas de acesso a recursos fundiários a partir do exercício da tutela sobre grupos indígenas.

"Colonização", "conciliação" e "co n fron to ": a h istó ria do cam po d e ação in d ig en ista no sul da Bahia

O processo de im plantação do cam po de ação indigenista no sul da Bahia apresentou algumas peculiaridades. E m prim eiro lugar, após as prim eiras tentativas de estabelecer contato com grupos indígenas da região cacaueira no início da década de 1910, houve um período de in terru p ção . Só foram retom ados os trabalhos em m eados dos anos 1920, quando o inspetor Vicente de Paula Vasconcellos organizou um a am pla rede dc atuação através de várias equipes de atração e pacificação. A partir de negociações travadas entre o inspetor Vasconcellos e o go­ v ern ad o r da Bahia G óes C alm o n , foi estabelecida, em 1926, a área indígena dentro do H o rto Florestal Estadual, a ser tam bém criado. Em outros term os, a população indígena seria localizada/concentrada em um território destinado à “preservação do m eio am biente” —flora, fauna e populações nativas. Em tal dispositivo de controle sobre o espaço e populações havia a superposição de com petências político-adm inistrativas estaduais e federais, pois a fiscalização e o financiam ento do H orto Florestal ficariam sob a responsabilidade do governo baiano. Dessa m aneira, a criação da área indígena ocorreu dentro de condições cm que foram conservados alguns níveis de intervenção no âm bito estadual de governo. O projeto de lei referente ao assunto, enviado pelo gover­ n ador Góes C alm on à Assembléia Legislativa Estadual, foi modificado nessa instância decisória, q u an d o foi incluído o respeito às posses já estabelecidas. D entro da área reservada ao H orto Florestal, o governo baiano financiaria a colonização a partir da sua divisão em lotes com a “superfície indispensável” para as roças dos índios. Um modelo de ação

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colonizador estava claram ente presente no m om ento de criação de ceri . is indígenas no sul da Bahia. Nos anos 1930, agências estaduais de governo im plem entavam ações ile integração espacial (territorialização) da zona cacaueira através da implantação de um a rede rodoviária para a organização da circulação Immana e de mercadorias. O principal agente desse processo foi o Instii i i c o do C acau da Bahia, locus institucional de representação dos inteicsses de segmentos sociais ligados à atividade agro-exportadora do cai . i i i . Foram instalados tam bém órgãos de financiam ento ao cultivo do i .tcau na região. Essa década presenciou um crescim ento da ocupação fundiária bastante acentuado, que certam ente repercutiu em term os de pressão sobre as terras do Florto Florestal. Tudo isso culm inou com a demarcação, em 1937, da área indígena dentro do H o rto c a regulariza­ ção dos ocupantes n ão-índios aí estabelecidos. O a rren d am en to foi empregado neste contexto histórico com o fórm ula de resolução de conllitos agrários, a exemplo dos Pis Gal. D antas Barreto e São Francisco, em Águas Belas/PE e M am anguape/PB , respectivamente. A retom ada da gestão dos processos de ocupação e valorização do espaço nos Pis C aram uru e Paraguaçu emergiu como preocupação nas instâncias decisórias do SPI nos anos 1940. Várias m edidas foram em ­ preendidas com tal finalidade, tais como: inspeções, revisões de arrenilamentos, m onitoram ento das transferências de lotes arrendados e das incorporações de áreas não cultivadas. A análise desse conjunto de proi alim e n to s adm inistrativos evidenciou que as áreas indígenas de form a alguma significavam a imobilização dos recursos fundiários nelas exis­ tentes, mas sim a imposição do m onopólio do SPI sobre sua distribui­ ção. Logo, tinham como horizonte a formação dc um mercado fundiário tutelado. N o entanto, na década seguinte, tal perspectiva inscrita na tarefa de governo dos índios m udou quando os arrendam entos foram objetivados i nino prejudiciais ao pleno exercício da prática tutelar indigenista. Foi.mi proibidas então a introdução de nóvos arrendatários, as transferêni Ias de arrendam entos e as concessões de áreas adicionais aos lotes já ii rendados. Todavia alguns encarregados conrinuavam agindo segundo 11 modelo de ação conciliador, perm itindo o acesso às terras “livres” exisicntcs na área indígena, sem firm ar contrato de arrendam ento. O rien­ tada pela linha de atuação de co n fro n to às form as de urilização das letras sob jurisdição do SPI por elem entos estranhos aos grupos indíge­ nas ern 1958, a diretoria do SPI propôs a concessão ao governo baiano

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da área. ocupada pelos arrendatários dos postos do sul do estado, A área indígena ficaria reduzida aos 2 mil hectares cedidos para a localização de índios. Isto correspondia a um a expulsão às avessas dos ocupantes não-índios da área indígena, através da rettação de seus limites. Se não com preenderm os que a própria m anutenção do cam po de ação indige­ nista estava em jogo, torna-se ininteligível a suposta am bigüidade exis­ tente entre um a perspectiva governam ental contrária aos arrendam en­ tos em terras indígenas e ao m esmo tem po favorável a sua redução/ nsulamento. D esde as prim eiras expedições realizadas pelo inspetor Trampowsky, durante os prim eiros anos da segunda década do século XX até meados dos anos 1920, não encontram os registros sobre a intervenção dessa agencia governam ental no sul da Bahia. N ós já vimos que o sul baiano adquiriu relevância econôm ica a partir do final do século XIX, em ra­ zão do increm ento do cultivo do cacau, que se to rnou o principal pro­ duto de exportação da região. H ouve um acentuado aum ento populacional nas quatro prim eiras décadas do século XX. Todavia só em fins de 1925 a inspetoria do SPI no ES, em M G e na BA organizou novas expedições nos lugares habitados pelos derradeiros índios selvagens da Bahia. Tram itava na C âm ara de D eputados da Bahia um projero de lei re­ servando tetras entre os rios Pardo e Cachoeira de Itabuna e na bacia do rio G ongogy para a localização de índios.47 A Assembléia Legislativa baiana em itiu um decreto delim itando a área para a criação do H o rto Florestal e localização de índios, que foi sancionado pelo governador e transform ado em lei, publicada no D iário Oficial de 11 de agosto de 1926. As terras reservadas para os índios seriam divididas em lotes, com a superfície indispensável para suas roças. O governo baiano abriria, na época, um crédito de 100:000$000 para a construção de casas, cô­ m odos com plem entares do aldeam ento, com pra de roupas e instrum en­ tos agrícolas para a constituição de núcleos coloniais. Seria tam bém destinada anualm ente a quantia de 50:000$000 do orçam ento estadual para a catequese e conservação das essências florestais primitivas. O docum ento consultado não deixa claro se havia a intenção de fixar colonos na área definida com o H o rto Florestal. E ntretanto, acredita­ mos que a am bigüidade constatada no discurso de autoridades estadu47 Cf, “Relatório dos trabalhos realizados no ano de 192f> sob a direção do Auxiliar Capitão Vicente dc Paulo Teixeira da Fonseca Vasconcellos, 04/03 /1 9 2 7 ” (Cf. S E D O C /M I. Filme 190. Fotogramas 624-635).

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.us c própria do m odo com o concebiam a intervenção em grupos indí­ genas. O objetivo era orientar a colonização a partir da força de traballm deles. Para tanto, cabia torná-los sedentários, destinando-lhes lotes i uja extensão tornava inviável a reprodução de formas de relacionam ento Mim o espaço que exigissem m aior m obilidade. É im portante ressaltar que, do p o n to de vista das autoridades estaduais, reservar terras para gitipos indígenas eqüivalia a projetos sem elhantes de colonização atra­ vés de outras populações. Portanto não havia a necessidade de um m odo dr organização específico, inform ado por um a ideologia protecionista r assistencialista, baseado em um esquem a m ental evolucionista; logo, dc m on ito ram en to da passagem gradativa dos Índios a estágios mais i voluídos de existência social e econôm ica. D aí a constante utilização pelos integrantes de agências governam entais estaduais do term o colôm,t indígena —intercam biável pelo term o núcleo colonial — para designar r. icrras reservadas à localização de índios. Tal perspectiva não excluía a possibilidade de assentam ento posterior de colonos. U m outro ponto 0 levante a se r salientado refere-se ao fato dc o governo estadual ser o principal agente financiador de tal em preendim ento, o que lhe conferia um considerável controle sobre as condições de exercício da prática mielar indigenista. No início dos anos 1930, iniciou-se a expansão da infra-estrutura viária que procurava integrar territorialm ente a zona cacaueira. O m oiinpóüo exercido pela C om panhia inglesa sobre os meios de transporte loi quebrado pela atuação do Instituto do Cacau da Bahia (ICB), que im plantou um a rede rodoviária no sul do estado. O ICB era um órgão i-ii.idual que condensava institucionalm ente os interesses de setores so1i.ii.s vinculados à exportação do cacau. Essa agência foi criada em 1931, r através dela o governo estadual passa a intervir na zona cacaueira, dei nlidu a orientá-la para um novo caminho (Botelho 1954: 193-9). As uiilovias construídas provocaram a decadência das ferrovias an terio r­ m ente estabelecidas e conferiram no com plexo viário im plem entado uma im portância central à cidade dc Itabuna. O sistema rodoviário se i unificava a partir do eixo Ilhéus-Ttabuna, seguindo em direção ao sul, m uie e in terio r da zona cacaueira, o que significava que o acesso ao pntio de Ilhéus passava a ser necessariamente interm ediado p o r Itabuna. Nesse contexto, a dem anda por recursos fundiários no sul da Bahia deve ter crescido consideravelmente. A observação da situação fundiária vijmnte em itab u n a nesse período confitm a tal hipótese, m esm o consitlrraudo que a procura por terras - através de diversas m odalidades de

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aquisição48 - possa ter sido mais acentuada neste m unicípio, N os anos 1920-30 houve um acentuado crescimento da ocupação fundiária em Itabuna, que triplicou a área dos estabelecimentos rurais: de 92.748 ha, segundo o censo de 1920, para 273.297 ha, segundo o censo agrícola de 1940. Em contrapartida, tais unidades produtivas rurais exploravam quase a totalidade de suas terras (94,8% ). Poderíamos até sugerir que tal crescim ento tenha ocorrido predom inantem enre na década de 1930, em função da intervenção do IC B na organização/criação do espaço regional. A distribuição de terras, entretanto, não se caracterizou por um a acentuada concentração, pois havia um a significativa parcela (42,1%) da extensão total dos estabelecimentos abarcada pelos pequenos estabele­ cimentos (88,9%). Por outro lado, a outra faixa territorial relevante (41,49b) correspondia a estabelecimentos de médio porte (11%). N a década de 1930 intensificou-se a atuação de órgãos estaduais de governo no sul da Bahia, quando os interesses de segmentos sociais liga­ dos à atividade agro-exportadora do cacau sc viram reconhecidos atra­ vés deles. É nesse contexto de acentuada concorrência pela organização do espaço social e geográfico, acom panhada de um aum ento da dem an­ da por recursos fundiários, que o SPI intensificou suas atividades nos grupos indígenas existentes na região. O inspetor Jacobina coordenou e supervisionou os trabalhos na Bahia em 1931 através de equipes de atra­ ção. C ontudo, a situação legal das terras destinadas à população indíge­ na no sul da Bahia perm aneceu inalterada até 1937. O deconador dc tal m udança foi a ocupação m ilitar do PI Paraguaçú por um destacamento da polícia estadual. O motivo de tal providência teria sido a divulgação de propaganda com unista na área indígena49, sendo o encarregado do posto acusado como o responsável p o r tal ato subversivo. Firm ou-se um acordo entre o SPI50 e o governo da Bahia para subs­ titu ir o destacam ento policial p o r um contingente do Exérciro e dem ar­ car as terras dos índios. O d ire to r de Terras, M inas, C olonização e

4! Predominavam os proprietários, responsáveis por aproximadamente três quartos (76,9%) dos estabelecimentos rurais e um pouco mais de dois terços (63,4%) da área total ocupada. 49 Cf. “Relatório dos trabalhos de demarcação do PI Paraguaçú. Levantamento do Capitão Engenheiro Moysés Castelo Branco, indicado pelo Estado-Maior do Exército como repre­ sentante do Ministério da Guerra (1937/8)" (SED O C /M I. Filme 299. Fotograma 1-43). 50 N a época o dircror do SPI era o tenente-coronel Dorival Brito c Silva.

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Imigração representou o governo baiano, enquanto a U nião nom eou mu m em bro do M inistério da G uerra para firm ar o acordo sobre os limites do PI Paraguaçú. Tal em preendim ento foi igualm ente custeado Iu las partes. Foram designados um engenheiro civil do estado da Bahia, Alfredo A m orim C oelho, e um engenheiro m ilitar do M inistério da < Inerra, o capitão Moysés Castelo Branco Filho. A linha proposta pelo M1[ (450 km 2 ou dez léguas2) era m uito m enor do que aquela determ i­ nada pela lei estadual n° 1916 (2100 k m 2), O governador da Bahia accitmi tal proposta. Nesse mesm o período, a adm inistração do posto regu­ lai izou a situação dos ocupantes da área indígena, firm ando com eles iiintratos de arrendam ento. No início dos anos 1940, a agência indigenista tentou retom ar o prot esso de regularização da ocupação das terras do posto Paraguaçu. Foi .mi publicados editais em Jacareci, Santa Rosa e Itajú, convocando os u rendatários em atraso a pagat a taxa devida até 15 de março de 1943. Aqueles que não comparecessem à sede da administração do posto teri­ am seus coutratos rescindidos. Em quinze meses (entre março de 1943 e junho de 1944) foram expulsos da área indígena 145 ocupantes.51 Em 1946, o Insp eto r Sílvio dos Santos elaborou um a relação dos arren d atário s existentes no PI P araguaçu. N essa ocasião, observou muitos contratos rescindidos por falta de pagam ento e outras irregulari­ dades durante a adm inistração de Saturnino Santana Filho; além disso, b.ivia vários arrendam entos em atraso, m uitos por um período superior .« quatro anos. Por outro lado, justificou a regularização de posses denrro >l.i reserva dizendo tratar-se de pessoas que lá habitavam desde o início il.i demarcação; eram chefes de fa m ília, indivíduos de bom costume, tendo jeito algumas pequenas benfeitorias, e p o r isso seria desum ano deixá-los desam parados. Além disso, o inspetor Sílvio dos Santos autorizou a m ncessão de áreas adicionais para alguns arrendatários, alegando teirm eles cultivado todo o seu lote.51

11 l T. “Boletim Interno do SPI n“ 17, de 30/04/1943:16-7” c “Boletim Interno do SPI, n" 16 ao n° 3 1 ”. VJ liste foi o caso de Zelito e Benamer Brandão Fontes, que obtiveram cada um o arrenda­ m ento de mais cem tarefas, no lugar conhecido como “Ribeirão da Fartura”. Cf. “Relação luial dos nomes existentes nos livros de arrendam entos dos Pis C aram uru e Paraguaçu cm 10/12/1946. Assinado: Silvio dos Santos, Inspetor Especial do S'P1. PIC, Caram uru, 10/12/1946” (SE D O C /M I. Filme 154. Fotogramas 1504-1511).

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Essa disposição geral em legalizar ilegalidades - inerente ao modelo de ação conciliador e que articula critérios dc ordem m oral, política e econôm ica para legitimar-se — servia como instrum ento de negociação dos recursos existentes em área indígena, m onopolizado pelos chefes de posto e inspetores do SPI. Por outro lado, criava as condições para a sua própria perpetuação (deste m odelo de ação), pois gerava a perspec­ tiva de novas regularizações, estim ulando assim as constantes apropria­ ções de áreas não arrendadas. Sendo assim, a linha de ação conciliadora constituía um círculo vicioso no qual as invasões de terras c as medidas de regularização fundiária im plem entadas nos postos indígenas alim entavam -se reciprocam ente. O pesado aparato normativo que se pretendia im por aos arrendatários e o precário e esporádico m onitoram ento exercido pelo órgão indigenista sobre os procedim entos de arrendam ento eram as duas faces de um a mesma moeda: a da lógica paradoxal da mediação de conflitos. Os encar­ regados distribuíam terras denrro da reserva segundo critérios m uito pes­ soais, exercendo um controle adm inistrativo m ínim o sobre tais ocupa­ ções. Os arrendatários se apropriavam de áreas não demarcadas e nunca visitadas pelos servidores do SPI que lavraram os primeiros contratos.53 D iante de tal quadro, em 1947 a diretoria decidiu regularizar nova­ m ente o m ovim ento dc ocupação das terras dos postos do sul da Bahia. O inspetor especial do SPI Francisco Sampaio foi designado para ori­ entar os trabalhos, auxiliado pelo inspetor Sílvio dos Santos e pelo auxi­ liar de sertão José Brasileiro da Silva. Eles deveriam retificar e substi­ tuir os contratos antigos de arrendam ento por novos, autorizados pelo d iretor e impressos em Itabuna. Segundo o inspetor Sam paio, foram lavrados oitenta contratos, cobrindo um a área equivalente a 8.497 tare­ fas — aproxim adam ente 3.694 ha. N a opinião desse agenre indigenista, tal m o n ran te de arren d am en to s p erm itiria à adm inistração do posto constituir um a receita correspondente a Cr$ 2 7 .524,00.34 Porém a quan­ tidade dc arrendam entos autorizados pelo inspetor Sampaio em 1947 e

53 Cf. ‘'Relacório da inspeção feica por Francisco Sampaio, Inspetor Especial do SPI, para regularizar a situação dos arrendatários e ocupantes sem contrato domiciliados no PI Caram uru. Recife, 29/0 4 /1 3 4 7 ” (SE D O C /M I. Filme 154. Fotogramas 1524-1527). 34 Cf. “Relatório dos trabalhos de revisão c regularização dc arrendamentos da reserva indígena do sul da Bahia pelo Inspetor Francisco Sampaio. Recife, 07/10/1947” (SEDO C/ M I. Filme 154. Fotogramas 1552-1554).

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I')'Í8 foi m uito superior (443). O processo de introdução dc rendeiros mi posto foi mais intenso na década 1947-1956. O s dois prim eiros iims deste período concenrraram 65,5% dos contratos firm ados, quase (mios sob a responsabilidade de Francisco Sampaio (Peres 1992: 192). As relações entre rendeiros e a administração do SPI estavam formal­ mente reguladas pelo “C ontrato Particular de A rrendam ento de Prédio Rústico”. A estratégia posta em jogo consistia em colocar sob a tutela do mgâo os processos de organização do espaço e utilização dos recursos Inndiários na área indígena. Submerer os arrendatários a uma fina teia de r iiinroles e, ao mesmo tem po, torná-los urna considerável fonte de renda. < I posro indígena estava destinado à colonização e valorização do espaço nli sua jurisdição. Se levado às suas últimas conseqüências, tai projeto • ■induziria a uina estabilização da situação fundiária nos postos indígen,is, sob pleno controle do SPI, porém a sua aplicação interm itente era ■letivamente um a condição fundam ental para a sua reprodução amplia­ da, ou seja, a transform ação constante de novos invasores em futuros arrendatários. Em outras palavras, nesse caso a fraqueza da agência indigenista era a sua força. Ao instirucionalizar o modelo de ação colonizador • m contextos em que os recursos fundiários já haviam sido imobilizados cm alguns casos por diferentes atores — através de um a série de meca­ nismos políticos que envolviam o reconhecimento do Estado, a agência miligenista assumiu concretam ente a tarefa de mediar conflitos agrários e • tnitrolar a distribuição dc recursos em terras indígenas. ( lontudo nesse mesmo período, estava sendo traçada em instâncias ■Irrisórias superiores um a nova atitude diante dos arrendatários. Eles passaram a ser considerados prejudiciais à existência e ao desenvolvi­ m ento do posto. Desse m odo, o diretor do SPI aprovou, em 1951, um parecer em itido pelo chefe da IR 4 R aim undo D antas C arneiro, no qual solicitava-se a aplicação de 20% da renda dos postos C aram uru e Paraguaçu em indenizações das benfeitorias de rendeiros, em cuja transleiência o SPI tin h a preferência.55

" Ct. "Ofício n° 104 IR 40, Recife, 17/08/1951. Do Chefe da IR 4 para o escrevente Manoel M oreira de Araújo” (Cf. S E D O C /M I. Filme 154. Fotograma 2194). Uma outra m aneira de atualização dessa perspectiva contrária aos ocupantes nSo-índios pode ser constatada na suspensão das transferências de arrendamenco que vinham ocorrendo i iim freqüência nos Pis Caram uru e Paraguaçu, dcccrminada pelo direcor do SPI. Cf. “ Telegrama 477 dc 07/12/1953. Do Chefe Substituto da IR 4 para o Inspetor Tubal ballui Vianna” (SE D O C /M I. Filme 154. Fotograma 2301).

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Tal m odelo de ação divergia daquele que visava gerir a circulação de recursos fundiários nos postos do sul da Bahia através de term os de rransferência de arrendam ento e contratos de transmissão de arrenda­ m ento, e que perdurou durante m uitos anos após a decisão do órgão de suspender as transferências de arrendam ento. Desse m odo, além de m onitorar o acesso às terras indígenas, pretendia-se obter um a renda sobre as transferências de benfeitorias envolvidas no ato de transmissão de arren d am en to através de um a taxa. A análise da transferência de arren d am en to s evidencia com grande clareza que a criação de áreas indígenas de form a algum a significou um a im obilização dos recursos fundiários nelas existentes. Trata-se aqui de um projeto de constituição de um mercado fundiário tutelado gerenciado pelo SPI e que teve seu período áureo entre os anos 1953-1956, quando o acom panham ento da circulação de recursos fundiários foi mais intenso (19.098 hectares). Ern 1953, a extensão em hectares dos arrendam entos transferidos al­ cançou seu m aior patam ar (6.670 hectares) (Peres 1992: 196-8). Crescia nos anos 1950 a preocupação em torno do processo de ocu­ pação das terras dos postos do sul da Bahia. Sendo assim, o encarrega­ do H élio Jorge Bucker autorizou, em 19 de julho de 1954, a revisão das medições das posses dos arrendatários detentores de tarefas superiores àquelas que pagavam. Tais incorporações de cerras ocorriam de duas maneiras: pela simples apropriação de áreas livres ou pela transferência dc arrendam entos, através de com pra das benfeitorias do antigo rendei­ ro, com o já vimos. Os encarregados tenraram disciplinar os procedi­ m entos de am pliação de lotes arrendados através de autorizações de aum entos de arrendam ento. E m outras palavras, a incorporação de áre­ as não cultivadas próximas a lotes arrendados deveria passar pelo crivo da adm inistração do posto. As concessões de aum ento de área dos ar­ rendam entos oficializavam apropriações de novas áreas pelos rendeiros e transferências de arrendam entos real adas fora do âm bito legal dc ação do encarregado. Só encontram os no S E D O C /M I autorizações referentes aos seguin­ tes anos: 1953, 1956, 1957 e 1958. O total da extensão de aum ento de terras concedido a arrendatários alcançou 3.736 ha, e quase a mecade deste m o n tan te (47,9% ) refere-se ao ano de 1953. As autorizações abran­ giam áreas de cinco a quatrocentos hectares. Em 1959, José Carlos e Liberato José de Siqueira Carvalho foram agraciados cada um com um au m en to de q u atro cen to s hectares para os seus respectivos arrenda­ m entos. E ntretanto, em 1956, Jener Pereira Rocha recebeu seis conces-

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,sões de aum ento, totalizando 439 ha, o equivalente a 60,4% de toda a área concedida neste ano. Tais “doações” eram justificadas em term os do com pleto cultivo do lote do requisitance, constituindo ao m esm o icmpo um a m edida necessária para o desenvolvimento do posto e um prêm io para o foreiro empreendedor, do ponto de vista da adm inistra­ ção. Podemos deduzir então que tal m ecanism o de distribuição de re­ cursos dentro da área indígena constituía im portante instrum ento polí­ tico, controlado pelo encarregado, no cenário social locai.5Ú Percebemos que em n en h u m m om ento a criação da área indígena no sul da Bahia significou a imobilização de recursos fundiários na região. C) que a agência indigenista ten to u foi controlar a sua utilização, tutelar os processos dc organização e valorização do espaço: subm eter à adm i­ nistração do posto a transferência de arrendam entos, através de com ­ pra e venda de benfeitorias, e conceder áreas não cultivadas aos arren­ datários já estabelecidos. Tais açõrs correspondiam a m ecanism os de criação de um m ercado fundiário local turelado. D urante os anos 1950, constatou-se, nos escalões superiores da agên­ cia governam ental indigenista, a ineficiência de tal estratégia em razão de seus baixos rendim entos políticos e econôm icos.57 A d iretoria do ,SPI propôs então, em 9 de agosto de 1958, um entendim ento com o Secretário de A gricultura da Bahia Herm ógenes Príncipe, no qual seri­ am restituídas ao dom ínio estadual as terras arrendadas da área indíge­ na (22 m il hecrares). Em troca, o governo baiano cederia 2 m il hecrares para a localização de índios.58 Para livrar-se do problem a dos arrendaCf. nota anterior. s7 A taxa de arrendam ento cobrada em 1968 era de Cr$ 0,10/ha, enquanto cobrava-sc Cr$ 0,5O/ha na região. Cf. “Relatório do Cel. Herm egêneo Encarnação sobre a inspeção à Ajudância Maxacalis (26/12/1968)” (SE D O C /M I. Filme 301. Fotograma 1798). Em 1964, o encarregado José Brasileiro também pediu a majoração da taxa de arrendamento. Propôs o vaior de Cr$ 20,GO/ha, o dobro do que estava sendo cobrado então. A firm ou ainda que se fosse triplicada, atingindo o valor de Cr$ 30,00/ha, ainda estaria abaixo do preço vigente no sul da Bahia. Cf. “Relação nom inal dos arrendatários de terras do Posto Caram uru, inclusive ocupantes de áreas não arrendadas” (SE D O C /M I, Filme 155. Fotogramas 1387-1398). Estes são apenas alguns exemplos, pois os encarregados e inspetores constantemente solicitavam a majoração da taxa de arrendamento das terras da área indígena. Reclamavam que a receita proveniente de tal fonte era insuficiente para suprir as despesas do posto. 38 Cf. “C M . n° 796 de 09/08/1958. Do SPI para o Governador da Bahia, Dr. A ntanio Balbíno" (SE D O C /M I. Filme 154, Fotograma 411).

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m entos, que ameaçava a sua existência na região, o SPI lim itaria o seu cam po de ação. Tal estratégia visava delinear áreas seguras e exclusivas de controle do órgão, mesmo que sob pena de restringir-se a pequenas ilhas de im plantação da prática tutelar indigenista.

A Q u arta Inspetoria Regional e o processo de in su iam en to de te rra s indígenas no Nordeste

Na chapada da serra da Umã [...] existe um posto indígena para distribuir benefícios aos descendentes dos Umãs, tribo que habitou naquelas paragens, em tempos imemoriais. Os caboclos não falam a língua de seus antepassados, mas conservam certos costumes, como danças e cantos dolentes, em cujos versos revivem certas lendas. [...] As autoridades deveriam respeitar o direito de propriedade daquela pobre gente, incutindo-lhes o sentimento de justiça, a fim dc que não ficassem cada vez mais isolados e refratãrios à civilização. Os índios nunca haviam pago impostos e os remanescentes são os verdadeiros danos da tara. Seria justo que eles continuassem livres, trabalhando sossegadamente e não fossem forçados ao desespero, pelo crime do desamparo c da indiferença daqueles que deveriam reconhecer-lhes afraqueza e garantir-lhes a posse de sua gleba. [...] E assim, a bandeira do SPI domina no alto da serra Umã, abrigando em suas dobras os últimos descendentes dos indígenas, outros sem direitos a viver livremente na terra em que nasceram.59 Nas décadas de 1940 e 1950 houve um m ovimento de centralização político-administrativa, acompanhado pelo crescimento da tede governa­ mental instaurada pelo SPI no N ordeste.60 Enquanto no período com pre­ endido entre 1925 e 1940 havia sido criado som ente mais um posto, o PI

55 Cf. “O s Umãs. Raim undo D . Carneiro” (SE D O C /M I. Filme 151. Fotogramas 714720), grifos nossos. 60 N o início dos anos 11)40, foi criada a Inspetoria do Centro, sediada em Recife/PE, que congregava a supervisão dos postos existentes nos estados de Minas Gerais, Bahia, Paraíba e Pernambuco. Em fins de 1942, a Inspetoria do Centro m udou dc nome, passando a chamar-se Q uarta Inspetoria Regional (IR 4). Cf. “Boletins Internos do SPI, n° 11, dc 3 1 /10/1942 e n “ 13, de 31/10/1942". Foram criados três Pis no quadriênio 1940-4. Os postos indígenas sob a jurisdição da IR 4 eram os seguintes em 1944: PI Paraguaçu, m unicípio de Irabuna/BA; PI Nísia Brasileira, m unicípio de M am anguape/ PB; PI Gal. Dantas Barreto, m unicípio de Águas Belas/PE; PI Pancarus/PE, m unicípio

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Nísia Brasileira —em 1934 —, no período de 1940 a 1959 foram funda­ dos oito postos indígenas. Os anos 1950-60 foram caracterizados pelo esforço despendido pela chefia da IR 4 —ocupada por R aim undo D antas Carneiro durante um longo período, de 1944 a 1962 - para m anter o controle sobre os postos do sul da Bahia; mais precisamente, os Pis Caram uru e Paraguaçu.61 A quase totalidade da extensão territorial destes postos estava arrendada, o que representava um volume de recursos fun­ diários já dispostos no m ercado, supostam ente conversíveis em verbas para a inspetoria ou para a diretoria. Foi neste contexto de ampliação da malha governam ental indigenista que, desde o início dos anos 1940, vários grupos étnicos no n o rd este passaram a recorrer ao SPI e ao C N P I (Conselho N acional de Proteção aos fndios), reivindicando ter­ ras a partir da sua condição indígena. A atuação do SPI ante o grnpo étnico A ticum na serra Umã, m unicí­ pio de Floresta/PE, com eçou quando estes índios encam inharam , com o cabo Euclides Cavalcanti Novais, um telegrama endereçado ao Gal. Rondon, durante a prim eira m etade dos anos 1940.62 U m a comissão de índios Tuchá da cidade de Rodelas visitou o PI Pancarus e solicitou providências ao encarregado para garantir-lhes o direito às terras com ­ preendidas entre a Ilha de Sorobobé e a Barra do T arrachiP 3. A lém disso, o cabo Euclides Cavalcanre Novais intercedeu a favor dos Tuchá através de um a carta ao chefe da inspetoria, em que descreveu a situade Itaparica; PI Eng. Mariatio de Oliveira, m unicípio deTeófilo O toni/M G ; PT Guido Marüére, m unicípio de Aimorés/M G; PI Caram uru, m unicípio dc Itabuna/BA; e PI Pe. Alfredo Damasn, município de Porto Real do Colégio/AL. Essa tendência continuou até o ano de 1950, quando se constata a existência de mais três postos: o PI Aticum , m unicípio de Floresta/PE; o PI Kiriri, município de Ribeira do Pombal/BA; e o PI Rodelas, na vila de mesmo nome. Cf. “Relatório dos trabalhos realizados na IR 4, durante o ano de 1950. Recife, 16/10/1950” (SE D O C /M I. Filme 181. Fotogramas 2122-2125). Já em 1959, encontramos mais dois postos sob a jurisdição da IR 4: o PI Xucuru e o P í írineu dos Santos. í! Cf. “Ofício 4 4 -IR 4 . Recife, 16/05/1955” (SE D O C /M I. Filme 182. Fotogram a 267). “ Cf. "Relatório sobre a verificação in-loco se a Serra Um ã está ocupada e sob o dom ínio de remanescentes índios Aticuns, do Inspetor Especial do SPI, Tuba] Fialho Vianna. De 21/ 06/1946” (SE D O C /M I, Filme 152. Focograma 1068). 1,3 Cf. “N “ IC-28, PI Pancarus, 10/10/1942. Do Chefe da Inspetoria para o Prefeito M unicipal de Belém /PE” (SE D O C /M I. Filme 175- Fotograma 339) e “N ° IC-31, PI Pancarus, 17/10/1942. Do Chefe da Inspetoria para o Cabo Euclides Cavalcante Novais, Itacuruba/PE " (SE D O C /M I. Filme 175. Fotograma 340).

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ção em que se encontravam . Só localizamos algum a referência sobre a atuação de agentes da 4a IR jun to aos Truká da Ilha da Assunção nos docum entos consultados no S E D O C /M I, quando um a comissão —for­ m ada pelos índios A ntonio Cirilo dos Santos e A ncilon Ciríaco da Cruz —pediu auxílio ao encarregado do PI Rodelas, no início de 1947, atra­ vés de um telegrama.64 D o m esm o m odo que em Águas Belas e na Baía da Traição, a ação indigenista não estava diante de um a situação fundiária caracterizada como um a frente de expansão ou fronteira agrícola, cuja expansão de­ veria ser increm entada e gerida. Defrontava-se com um a estrutura agrária já consolidada, o que não implicava a ausência de conflitos e de recur­ sos fundiários ainda não explorados. Por outro lado, com o apontado acima, o m odo como foram criados os Pis D antas Barreto (PE) e São Francisco (PB) constituíram m odelo, inclusive quanro à intervenção de agentes, com o o Pe. Renato Galvão e o Cabo Euclides C. Novais, situ­ ados fora dos quadros oficiais de mediação indigenista. U nidades adm inistrativas pretéritas de controle de povos nativos com o os antigos aldeam entos m issionários, por exemplo — passaram a config u rar os critérios recorrentes de criação de áreas indígenas no âm bito da 4 a Inspetoria Regional. O território indígena é supostam ente constituído por limites naturais, prévios aos processos históricos d in â­ micos de apropriação sim bólica e em pírica do espaço, nos quais os grupos indígenas constroem a sua territorialidade. A pesquisa d o c u ­ m ental em preendida (nas bibliotecas e arquivos públicos, nos cartórios etc.) p o r pessoas detentoras do capital cultural necessário (padres, jor­ nalistas, advogados, antropólogos etc.) torna-se a base dos procedim en­ tos de construção da verdade sobre a existência da terra indígena. N es­ se contexto, a disputa em torno do reconhecim ento oficial ou não de uma área indígena é travada através da busca e interpretação de textos do passado, principalm ente aqueles oriundos de um a escrita de Estado. E ntretanto, a perm anência na m em ória coletiva do grupo de tais even­ tos fundadores da sua indianidade e a existência de sinais (vestígios) contem porâneos dc tais atos pretéritos de reconhecim ento estaral com ­ punham as evidências empíricas atestadas nos registros da m em ória ofiM Cf. “4. IR 4. Recife, 12/02/1947. D o Chefe IR 4 para o Interventor Federal do estado de Pernambuco, Cal. Demerval Peixoto'1(SE D O C /M I. Filme 178. Fotogramas 12861287}- Para um estudo sobre o processo de formação e manipulação da identidade étnica Truká, ver Batisca (1992).

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ciai. Portanto tal estrutura sêmica dos procedim entos de delim itação de áreas indígenas começa a desenvolver-se já a partir dos anos 1940. O SPI passou a ser apresentado então como o redentor dos remanes­ centes das antigas tribos aborígines, devolvendo as terras que lhes haviam sido roubadas e libertando-os das condições opressoras de existência oriun­ das do contato com a população sertaneja. Tal concepção sobre os grupos indígenas não era nova, pois vários de seus elementos foram encontrados no relatório da inspeção realizada em 1922 pelo inspetor D agoberto de Castro e Silva, por exemplo, junto aos Fulni-ô e aos Potiguara. A identi­ dade étnica é percebida de m odo estático, isto é, através da m anutenção de elementos de tradição considerados como com ponentes de um m ode­ lo de cultura indígena original, puro. Os índios são encarados tam bém como seres passivos e indefesos, sendo necessário assisti-los, ampará-los, proregê-los; pois, do contrário, se afastam da civilização.65 Afirma-se aqui um direito natural/originário dos descendentes das antigas tribos silvícolas ao território em que os seus antepassados foram aldeados. C om o já vimos, tal perspectiva não excluía a possibilidade de im ple­ mentação de mecanismos de distribuição de recursos fundiários como um a estratégia para criar terras indígenas. Basta m encionar o processo dc im plantação de reservas indígenas destinadas aos Pankararú, Kariri c A ticum durante a década de 1940. Após a m edição da área indígena destinada aos Pankararú, foram firm ados contratos de arrendam ento com os ocupantes não-índios existentes.66 O inspetor Sílvio dos Santos

"O SPI chega para salvar o índio, a um fio da extinção, resistindo heroicam ente a situações dc penúria e opressão”. Cf. “Relatório do Inspetor Especial Alísio de Carvalho: visita ao PI G uido Marliere e instalação do PI G overnador Góes Calmon. Teófilo O toni, agosto de 1949” (SE D O C /M I. Filme 301. Fotogramas 365-371). f'c Cf. “N n 280/66. D o Chefe da 4a Inspetoria Regional, M ário da Silva Furtado, para o D iretor do SPI. Recife, 12/07/1966” (C E D O C /FU N A I). Em 1937, a diretoria do SPI designou o inspetor Cildo Meireles para realizar uma inspeção sobre a situação das terras reivindicadas pelos Pankararú, no m unicípio de Itaparica. Em 1940, após entendim en­ tos estabelecidos com o interventor federal no esrado de Pernambuco Agameoon Sérgio de G odoí Magalhães, indicou-se o topógrafo da Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio Argemiro Galváo Vieira para efetivar a demarcação da área indígena. Cildo Meireles acom panhou a medição na qualidade de representante do SPI. Reservaram-sc nesta ocasião 87 km quadrados (2 léguas quadradas e 114) para os índios. Cf. “Relatório de Cildo Meireles, cscrirurário do SPI, ao Sr. Cel. Vicente de Paulo Vasconcellos, diretor do SPI, sobre demarcação das terras do Posto Pancarus, no antigo aideamentti de Brejo dos Padres, M unicípio de Itaparica (PE)” (SED O C/M I. Filme 175. Fotograma 335-337).

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vinculou a proposta de criação de um posto em M irandela e a dem arca­ ção da reserva à regularização da situação dos ocupantes não-índios, firm ando com eles contratos de arrendam ento.67 N o início do ano de 1950, o inspetor José Brasileiro da Silva tam bém sugeriu a instalação dos pobres ex-ocupantes nas terras sob a jurisdição do posto na Serra Umã, transform ando-os em arrendatários do posto.68 Todavia o que pretendem os salientar neste m om ento é o contexto cm que ocorreu a em ergência do m odelo de ação insularisador. Por isso, destacaremos agora alguns elementos da lógica inerente ao proces­ so de criação dc reservas indígenas no N ordeste nas décadas de 1940 e 1950. E m prim eiro lugar, cabe destacar o envio de um representante do in te rv e n to r federal na B ahia p ara estu d ar a situação dos K ariri dc M irandela. Subjaz portanto a idéia de um levantam ento prévio de in­ form ações que legitim e posteriores decisões sobre o caso em questão. Os dados apreendidos na esfera local dos acontecimentos são privilegia­ dos. Logo, a simples presença física e a coleta direta de informações por pessoas autorizadas a form ular enunciados verdadeiros sobre a situação sustentam a narrativa dos relatórios baseados nas verificações in-loco.m A referência a um direito originário, devidam ente confirm ado em docum entos do passado que atestam a ocupação perm anente dos índios em um a determ inada extensão territorial, está explicitam ente m anifesta no título do relatório feito pelo engenheiro da Secretaria de A gricultura do governo baiano Luiz de Sá A dam i sobre as terras reivindicadas pelos Kariri de M irandela/BA : “H istórico do velho aldeam ento jesuítico e cópia autenticada do processado em defesa de mil índios injustam ente espoliados de seus direitos e banidos de suas terras” (S E D O C /M I. Fil­ me 301. Fotogram as 340-364). Fica evidente tam bém a suposta in ten ­ ção de restituir as terras roubadas dos seus verdadeiros proprietdrios.

67 Cf. “Relatório sobre os índios de Vila M irandela (Saco dos Morcegos). Suas necessidades c indicações sobre suas terras, 0 7 /10/1947. Assinado: Sílvio dos Santos, Inspetor Especial XXIII” (SE D O C /M I, Filme 301. Fotogramas 332-337). sa Tal solicitação foi negada pelo chefe da IR 4, que justificou sua decisão baseado na determinação da diretoria de suspender o estabelecimento de novos contratos dc arrenda­ m ento em terras indígenas. Cf. “Ofício N D 9 de 14/02/1950. De Josó Brasileiro da Silva, Auxiliar Encarregado do PI “Aticum”, para Raim undo D. Carneiro, Chefe da IR 4 ” e “M /m . 75-IR 4 de 14/03/1950” (SE D O C /M I. Filme 152. Fotograma 1046-7). ® Cf. N ota 62.

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Por outro lado, assume im portância a discussão sobre a indianidade, ou seja, sobre os sujeitos do direito de acesso às terras definidas como indígenas. Sendo assim, o inspetor Tubal Fialho V ianna, em 11 de ou­ tu b ro de 1947, p artiu do PI Rodelas tendo com o destino a Ilha da A ssunção para verificar “a existência da rribo Tuchá [sic] do tronco jurem al, e apurar a veracidade das queixas dos índios dirigidas ao Gal. R ondon”. A sua principal missão: investigar a existência de índios e sua origem etnológica.713 A indianidade dos Truká foi concebida nos seguintes termos: não obstante a m istura racial, os índios Tuchá do tronco do Jurem al da Ilha da Assunção “conservam a dança prim itiva do Toré e vivem mais ou m enos em regime tribal“ (grifos nossos). Esse mesmo inspetor já havia sido designado para realizar um a ins­ peção sobre o caso dos A ticum da serra U m ã em 1946. Segundo o seu relatório, a serra Umã era habitada por mais de 1.800 índios.71 Ele asse­ gurou a m anutenção da indianidade do grupo através da conservação de itens culturais atribuídos a um a coletividade pré-colom biana, apesar de variações em term os de caracteres raciais: "[...] em bora mesclados com civilizados, conservam costum es e festas religiosas com todos os rituais de seus prim itivos. São ordeiros, afáveis, trabalhadores e não corrom pidos pelo álcool”. P o rtan to , eles ain d a não estavam degradados pelo conrato com a população sertaneja, Isso, ao m esm o tem po em que legitimava a inter­ venção do SPI, por causa da peculiaridade do seu objeto, dem onstrava a sua urgência, pois cabia a este órgão governam ental inregrá-los ade­ quadam ente à sociedade nacional. Tais traços pressupunham a persis­ tência de um m odo de vida tribal, podendo assumir dim ensões religio­ sas, espaciais, políticas etc. O inspetor Sílvio dos Santos, por exemplo, destacou que os sitiantes não-índios (trezentos aproxim adam ente) resi­ diam na vila de M irandela, enquanto n en h u m Kariri m orava no perí­ m etro urbano, mas em núcleos isolados da população regional. Acres­

70 Segundo o representante do SPI, utilizando dados do Dicionário Histórico de Sebastião Gaivão (vol. 1), a tribo Tuchá habitava quase todas as ilhas do rio São Francisco, principalm ente o arquipélago do m unicípio de Jatinã e a Ilha de Assunção. Tubal F. Vianna constatou a existência de “27 caboclos com acentuados característicos etnológicos”. Cf. “Relatório sobre situação das terras dos índios Tuchá <sic> da Ilha da Assunção, município de Cabrobó. Recife, 24/10/1947” (Cf. SE D O C /M I, Filme 178. Fotogramas 1 3 31-1335). 71 Cf. N ota 62.

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centou ainda que os índios estavam organizados em grupos de seis indi­ víduos, sendo indicado em cada um deles um representante que zelaria pelos interesses de cada um a destas unidades. E o mais im portante: havia um representante de toda a coletividade indígena. N o m om ento da visita do funcionário da IR 4, quem estava incum bido de tal função era o índio Josias Rodrigues M oreira.71 A disputa em torno da extensão e dos limites do território indígena é travada através da m anipulação de sinais que com provem a incontes­ tável antigüidade do vínculo dos índios às terras por eles pretendidas. Desse m odo, as bibliotecas e os arquivos emergirão como pontos estra­ tégicos nessa luta. O engenheiro Luiz de Sá A dam i procurou a docu­ mentação existenre sobre a área reservada aos índios de M irandela no A rquivo Público da Bahia. A p artir dessa busca, ele concluiu que a extensão das terras dos índios era de 1/2 légua em quadra. O Pe. Rena­ to Galvão discordou das conclusões da inspeção citada acim a em um a carta que enviou ao diretor do SPI. O referido sacerdote opôs-se prin ­ cipalm ente à extensão presum ida das terras indígenas. C ontrapôs à área apontada pelo engenheiro (1/2 légua quadrada) aquela apresentada por antigos documentos (1 légua quadrada). Em 1949, o chefe da IR 4 em ­ preendeu pessoalmente um a sindicância no arquivo público estadual de Pernam buco, a fim de encontrar algum docum ento de doação das ter­ ras da Ilha da Assunção aos índios que lá habitavam .73 Todavia as m ar­ cas inscritas no solo de um a ocupação pretérita (os vestígios) tam hém constituíam recursos políticos fundam entais. Isso era percebido algu­ mas vezes pelos próprios índios. O s Kariri de M irandela, por exemplo, conservavam os marcos do antigo aldeam ento, abriam cam inhos e fazi­ am a roçagem até eles todos os anos. D os oito marcos que delimitavam a extensão das terras doadas pelo governo imperial, n “marco da coroa” era guardado cuidadosam ente para não ser roubado. Ele era feito de pedra e trazia gravado cm baixo relevo um a coroa do im pério e a se­ guinte inscrição: 4 LEG .74 À m edida que os agentes do SPI afirm avam a inviabilidade de com ­ provar a fixação d u tad o u ra dos índios nas terras por eles reivindicadas,

72 Cf. N ota 67. 73 Cf. "Carta do Padre Renato Galvão ao Chefe (sic) do SPI - s/d" (SE D O C /M I. Filme 301. Fotogramas 338-339). 74 Cf. N ota 67.

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.surgiam propostas de insula.men.to de territórios indígenas. Taí lógica poderia traduzir-se em dois procedim entos distintos: aquisição de pe­ quenas extensões de terras ou redução das áreas p rete n d id as pelos grupos indígenas. N as duas alrernativas as reservas ficariam cercadas por um a enorm e população de ocupantes não-indígenas. A prim eira opção pode ser ilustrada com o caso do PI Padre Alfredo D âm aso, de Porto Real do C olégio.75 O chefe deste posto arrendou, no final de novem bro de 1947, em com um acordo com o agrônom o do Fom ento Agrícola Estadual e encarregado do cam po de sem entes de Porto Real do C olégio, 24 ha desta unidade adm inistrativa do governo alagoano. Neste m esm o ano, obteve a doação de 50 ha para os Kariri-Xocó resi­ dentes neste m unicíp io .76 A segunda opção constituiu a estratégia p ri­ vilegiada para a obtenção de terras para os Tuchá de Rodelas e Truká da Ilha da A ssunção. Em 12 de fevereiro de 1947, o chefe da IR 4 R aim undo D . C arneiro solicitou a doação, para o assentam ento dos índios Truká, de dez ilhas: Jatobá, C olherzinha, C u p im , C am po Iba, C abaços, C o b ra, Ingaseira, Form iga, C araibeiras e C hico, o u seja, abriu m ão das o utras v in te ilhas do rio São Francisco, p retendidas anterio rm en te para com por a área indígena. R aim undo D antas C ar­ neiro justificou cal posição dizendo que “aquelas dez ilhas eram sufici­ entes para que os índios pudessem trabalhar, viver e m orrer na terra que nunca ab andonaram ”.77 P ortanto, além da idéia dc antigüidade da ocupação, a terra indígena era pensada exclusivam ente com o meio de repro d u ção física dos ín d io s, sem n e n h u m a alusão às suas form as p ró p tias de apropriação do espaço, que extravasam um significado p u ram en te econôm ico. Nas décadas de 1940 e 1950 os agenres indigenistas que atuavam no N ordeste cultivavam uma atitude extrem am ente conrrária a possíveis envolvim entos em interm ináveis conflitos agrários - inclusive e princi­ palm ente na arena jurídica —com ocupances não-indígenas das reservas

75 F,stc posto foi instalado em 14/02/1944, na margem esquerda do rio São Francisco, m unicípio de Porto Real do Colégio/Al. Cf. "Relatório de 1944 do PIT. ‘Pe. Alfredo Dam aso’, de 3 1 /12/1944” (SE D O C /M I. Filme 172. Fotogramas 1997-2004). 76 Cf. "Relatório do PI Pe. Alfredo Damaso, 1948, de 0 6/01 /1 9 4 9 ” (SE D O C /M I. Filme 172. Fotogramas 2028-2037). 77 Cf. “4. IR 4. Recife, 12/02/1947. Do Chefe IR 4 para o Interventor Federal dn estado de Pernambuco, Gal. Demcrval Peixoto” (SEDOC/M I. Filme 178. Fotogramas 1286-1287).

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ou áreas pretendidas pelos índios. É claro que esse estado de espírito predom inava nos escalões mais altos do órgão (diretoria e inspetoria regional), sendo até proibido que fossem feitos novos contratos de arrendam enro — determ inação não cum prida por alguns encarregados de posto, com o já vimos. C onseqüentem enre, as várias propostas que sur­ giram de redução das áreas indígenas, deixando de lado os supostos lim ites dos antigos aldeam entos, sustentavam-se na falta de docum enta­ ção fidedigna sobre a verdadeira extensão do território tribal. Vejamos, por exemplo, com o foram explicadas as causas do insucesso da IR 4 em garantir a área pretendida pelos Trukár i) os índios não tinham documentos para sustentar sua reclamação das ilhas ocupadas há mais de cinqüenta anos por terceiros; ii) a Prefeitura recusava-se a entregá-las; iii) havia a necessidade de indenizar as benfeitorias dos ocupantes das ilhas, em caso dc as terem adquirido a justo título e dc boa fé; iv) havia a necessidade dc uma ação reivindicatória onerosa a ser movida pelo SPI; v) a IR 4 não possuía os elementos para instruir ral ação.78 Os representantes do SPI incorporaram os argum entos jurídicos con­ trários aos interesses indígenas, que passaram a prevalecer sobre qual­ quer julgam ento de valor prévio baseado no direito inalienável e inques­ tionável dos remanescentes — e herdeiros, p o rtan to - das extintas tribos aborígenes do Nordeste. Logo, o m odelo de ação insularisador estava im buído dc dois elem entos parodoxais; um dc ordem ético-polírica e outro de ordem tecno-jurídica. Tal lógica de atuação pode ser plena­ m ente ilustrada pela solicitação dos advogados da IR 4 R aim undo D antas C arneiro e H ik o n Guedes A lcoforado ao governador de Pernam buco Paulo Pessoa G uerra em 6 de o utubro de 1965, de duzentos ou cem hectares na Ilha da Assunção para os índios Trnká.7S

7s ç f “Processo Diretoria 2287/53 e Processo IR 4 581” (SE D O C /M I. Filme 178. Fotograma,', 1420-1421). 75 Cf. “C arta dos Advogados da IR 4, Raim undo Dantas Carneiro e H ik o n Guedes Alcoforado, ao governador de Pernambuco, Dr. Paulo Pessoa Guerra. Recife, 0 6/10/ 1965” (SE D O C /M I. Filme 178. Fotogramas 1483-1486).

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Conclusão

A dinâmica de produção dos docum entos legais que garantem os direitos indígenas de acesso a terra é m uito complexa. Visto de um a perspectiva diacrônica, verifica-se que tal processo não é cumulativo, pois atos gover­ namentais pretéritos de reconhecim ento não são considerados — ou são reavaliados - em decisões posteriores tom adas pelos poderes públicos pertinentes. Isto porque o status jurídico de um a terra indígena é fruto de processos políticos que se desenvolvem em instâncias distintas do apare­ lho estatal e envolvem atores situados em cenários sociais de âm bito lo­ cal, regional e nacional. Apesar de tais registros poderem emetgir como testemunhos de acontecimentos fundadores da existência publica de um a terra indígena e, conseqüentem ente, constituírem recursos políticos sig­ nificativos em situações posteriores, a sua eficácia corno suporte de uma proposta oficial de território destinado aos índios depende da posição dos atores nos circuitos decisórios fundamentais sobre tal assunto (Leite 1993). Sendo assim, o Estado é o campo privilegiado em que se desenrolam as lutas pela hegem onia dc projetos territoriais distintos —e até conflitantes —em torno de terras reivindicadas p o r grupos sociais através da afirm a­ ção pública da condição indígena. D esde a criação do SPI em 1910 se estabeleceu um estreito vínculo entre Estado e terras indígenas. O Esta­ do m onopolizou a com petência para intervir jun to à totalidade do con­ tingente populacional indígena existente no país, em ergindo como seu tutor legal e encarregando-se de gerir a sua integração à sociedade naci­ onal.80 E ntre 1910 e 1930 a União solicitava terras devolutas aos esta­ dos para assentar populações indígenas, A C onstituição de 1934 esta­ beleceu que as terras p o r eles o cupadas fossem consideradas com o patrim ônio público da União (Souza Lima 1989). Esse ato foi decisivo para a definição das terras indígenas com o reserva de recursos contro­ lados pelo Estado. Desde então, as instâncias governam entais de âm bi­ to nacional constituítam -se em cenários privilegiados de disputa em torno dos recursos fundiários existentes em terras indígenas.

80 D urante o Im pério, a equiparação jurídica aos órfãos restringia-sc ao índio aldeado; no período colonial a ação missionária encarregava-se do governo dos índios (Carneiro da C unha ] 992b). Agências governamentais provinciais e missionárias católicas ardculavam-se na gestão dos processos de valorização do espaço e produção de recursos fundiários através da organização de colônias indígenas.

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Em 1967, foi extinto o antigo Serviço de Proteção aos índios (SPI) e criada a atual Fundação N acional do ín d io (FU NA I), Esta agência esta­ tal seria desde o início de sua existência integrada à perspectiva desenvolvim entista de ação governam ental instaurada após o golpe m ilitar de 1964. D aí a sua vinculação institucional a um m inistério (do Interior) com pletam ente sintonizado com tal lógica de atuação. C onseqüente­ m en te, era m ister regularizar a ocupação fundiária, reservando um m ontante de terras para o uso das populações indígenas e estabelecendo o estoque de recursos disponíveis para os em preendim entos em presari­ ais públicos ou privados. C onsolidou-se assim, a p artir da década de 1970, um a sistem ática de procedim entos p o lítico-adm inistrativos de crsação de áreas indígenas. A FU N A I adquiriu então as feições de um a agência de regularização fundiária, o que não significa, porém , que os mecanismos de controle das riquezas naturais existentes em terras indí­ genas tenham sido excluídos do seu horizonte de atuação. Até então não havia um a preocupação em estabelecer definitivam en­ te o estoque dc terras disponíveis para o m ercado, pois a relação índio/ terra era pensada não com o perm anente, mas sim como provisória, em razão do caráter civilizador da política indigenista. E ntretanto, no iní­ cio dos anos 1940, surge um m odelo de ação indigenista que procura excluir toda população não-indígena de seu âm bito de atuação e no qual im pera a idéia de ocupação perm anente e de direitos originários. D es­ se m odo, a noção de um vínculo indissolúvel entre índio e terra, a iden­ tificação da condição indígena com limites territoriais precisos, em er­ giu em regiões caracterizadas por processos antigos de ocupação fundiária, nas quais os grupos que reivindicam a condição indígena são classifica­ dos com o remanescentes das extintas tribos aborígenes prê-colombianas, Verificamos então que é nos contextos em que há um a forte dem anda por terras que surge a necessidade de form ular explicitamente as bases que definem os sujeitos e o objeto dos direitos garantidos peia agência ind igenista estatal; em o u tro s term os, quem é índio e o que é terra indígena. P or o u tro la d o , ta m b é m c nessas c irc u n stâ n c ias que a indianidade daqueles que reivindicam essa condição é questionada por outros atores envolvidos nesse tipo de disputa, pois não há traços cultu­ rais visíveis que diferenciem os índios da população local, em razão da pro fu n d id ad e histórica do co n tato estabelecido entre eles. Logo, tal m odelo que pressupõe um vínculo indissolúvel entre terra e índio, base­ ado na figura do aborígine, do selvagem, daquele que vive isolado na floresta, em ergiu em situações nas quais aqueles que atribuíam para si

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a condição indígena tinham de provar o seu direito originário à terra, a sua ligação essencial e imemorial com um a área precisam ente delim ita­ da, assim com o a preservação de características tribais de existcncia coletiva. Nesse sentido, é m ister elaborar a história do processo de territoria­ lização da agência indigenista oficial a partir das estratégias im plem en­ tadas pelos seus agentes diante de contextos de disputa por recursos em terras indígenas. À m edida que o SPI constituía a instância predom i­ nante de produção da definição legítim a de terra indígena, a disputa dos grupos indígenas p o r tais territórios era m ediada pelo sistema sêmico estatal que orientava a criação de áreas de “proteção dos remanescentes dos antigos povos aborígenes do N ordeste”. A indianidade era definida em ín tim a conexão com as form as de objetivação do terceiro term o da relação triádica estabelecida a partir do trabalho de mediação indigenista: as diferentes categorias de p o p u ­ lação não-indígena — colonos, arrendatários e intrusos. Por outro lado, é fundam ental m apear os distintos projetos territoriais coincidentes, delineando os circuitos políticos em que os atores elabo­ ram as suas linhas de ação e m obilizam recursos nesse tipo específico de conflito agrário m ediado pelo Estado, ou seja, é im portante com pre­ ender as distintas m odalidades de articulação das diferentes escalas de exercício da prática indigenista: o idi^enismo, a política ini \genista e a ação indigenista. Pretendem os aqui oferecer apenas um a pequena con­ tribuição a essa linha de estudos.

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H e n y o T r in d a d e Ba r r e t t o F il h o

Invenção ou renascim ento? Gênese de um a sociedade indígena contem porânea no Nordeste

[...] Alguns povos têm toda a sorte. (.,,] Quan­ do os europeus inventam suas tradições [...], trata-se de um renascimento cultural genuí­ no, o início de um futuro progressivo. Quan­ do outros povos o fazem, trata-se de um sinal dc decadência cultural, uma recuperação ar­ tificial, que apenas produz o simulacro de um passado morto (Sahlins 1993: 8).

O presente artigo procura sintetizar a análise desenvolvida na m in h a dissertação de m estrado (Barretto F° 1993), condensando a etnografra da situação-problem a enfrentada na pesquisa de campo e explicitando a interpretação proposta (ver tam bém Barretto F° 1993b}.1

1A pesquisa de campo q ue deu origem ao trabalho se inicio u em 198 6 c foi desenvolvida em três períodos: entre novembro de 1986 e janeiro de 1987, depois entre dezembro de 1987 e fevereiro de 1988 e, finalmente, entreoutubro de 1989 e julho de 1990, nos municípios de Caucaia e Fortaleza, Ceará, mas também em Recife (PE) e Brasília (DF), A primeira etapa, não propriamente direcionada para a dissertação de mestrado, foi financiada pela Equipe de Assessoria às Comunidades Rurais da Arquidiocese de Fortaleza e pelo Projeto Estudo sobre Terras Indígenas no Brasil (PETI) O segundo período em Caucaia foi financiado pelo (PETI) e pelo PPGAS-M N/UFRJ, através de uma “Bolsa de Auxílio à Pesquisa” . O último período de pesquisa de campo, já visando à dissertação de mestrado, foi financiado pelo Programa de Dotações para Pesquisa F O R D /A N P O C S 1989 e complementado por uma bolsa do PPGAS-M N/UFRJ. Agradeço a essas instituições o apoio recebido, assim como ao C N Pq c à CAPES pela boisa de m estrado m antida entre 1988 e 1990. Agradeço à ptoP Alcida Rica Ramos a leitura atenta e as considerações críticas a um a versão anterior deste trabalho.

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O m eu objetivo é analisar os fatores que conform am o estabeleci­ m ento da fronteira e da organização social da diferença cultural entre tapebas2 e brancos. C onstituindo um estudo de caso, o trabalho focaliza o processo pelo qual um conjunto de pessoas que teside em diversas localidades do distrito da sede do m unicípio de Caucaia, zona m etro­ politana de Fortaleza, Ceará, em um quadro de diversidade m arcado por grupos locais discrepantes e configurações socioeconômicas distin­ tas, vem a ser percebido com o um grupo distinto, cujo reconhecim ento se traduz pela atualização de um a dada adscrição: tapeba. D enom ino esse processo, na falta de m elhor term o, etnogênese: processo de form a­ ção, m anutenção e dinâm ica de um a fronteira socialm ente efetiva e um a identidade categórica.3 Longe de ser entendida com o o resultado de fatores originais, subs­ tantivos e preexistentes, a individualização desse conjunto de pessoas c percebida com o contextual, situacional e relativa não só a um elenco definido de grupos e situações de interação, como tam bém à com peti­ ção p o r recursos — isto é, a um “cam po político intersocietário” em u m a “situação histórica” determ in ad a (O liveira 1988). C onsidera-se tam bém a luta simbólica pela imposição dos critérios legítimos de reco­ nhecim ento coletivo da identidade. Ao usar o term o etnogênese, porran1A grafia de nomes indígenas segue aqui as orienrações de Julio Cezar M ek tti e as críticas desre à C G N T (Convenção para a Grafia de Nomes Tribais, estabelecida pela ABA, no Rio de Janeiro, em 1953)» em especial à pretensão desta cm eonstituir-se num a nom en­ clatura científica para as sociedades indígenas, como se fossem espécies animais e vegetais (M elatti 1979 e 1989). Levo em consideração» também, as sugestões de H andler (1985) quanto à cautela retórica que se deve ter ao narrar fenômenos da ordem do nacionalismo e da etnicidade. O nde quer que o term o apareça grafado em caixa alta (T), refere-se aos topônirnos ou constitui citação de texto no qual ele aparece grafado desse modo. O ptei por m anter o nome da coletividade em questão grafado segundo a ortografia oficial brasileira, com a letra inicial em minúscula e usando o s para o plural. 3Turner (1975: 25-6) chama atenção para o uso de termos metafóricos que, aplicados aos fenômenos socioculturais, não são correspondentes literais desces. Essas “metáforas” po­ dem dar um a idéia equivocada do que se está querendo descrever, pois embora dirijam a nossa atenção para algumas propriedades im portantes da existência social, podem blo­ quear a nossa percepção de outras. Turner refere-se, entre outras» às palavras derivadas do radical gen, como gerar, gerattvo, gênese c outras: termos que, segundo ele, guardam uma referência imediata para com o m undo orgânico, o ciclo de vida de organismos, no qual eles são literais e empíricos em seu sentido original. Com o se verá, não objetivo fazer nenhum a história do “ciclo de vida” do “grupo étnico” tapeba» embora a expressão “gênese” perm ita supor que isso seja possível.

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A VIAGEM DA VOLTA

to, estou me referindo de um m odo abrangente^ ao processo de em er­ gência histórica de um a front< ra socialm ente efetiva entre coletivida­ des, distinguindo-as e organizando a interação entre os sujeitos sociais que se reconhecem - e são reconhecidos - como a elas pertencentes. A análise filia-se às tentativas contem porâneas de definir etnicidade, de explorar os processos envolvidos na formação, m anutenção e m odifi­ cação de identidades categóricas e de desvelar o significado destas para as dimensões política, econômica e da organização social. O s pressupos­ tos centrais da análise, assim com o os conceitos com os quais opera, provêm do conju n to de tem as e problem as articulados, de um lado, pelos assim denom inados "estudos de etnicidade” (rubrica que ahriga um conjunto de investigações m uito diversificado, tanto do p o nto de vista das situações etnográficas teinatizadas, quanto do ponto de vista das abordagens teóricas e metodológicas); de outro, pela perspectiva que vê a luta pela definição da identidade — “esse ser percebido que existe fundam entalm ente pelo reconhecim ento dos outros”, nas palavras de Bourdien (1989: 66) ~ como um a forma particular de luta pelas classifi­ cações e pela imposição dos critérios legítimos de ordenação destas. Este artigo beneficia-se de leituras que movimentam as noções de “etnograíia multilocal” (Marcus e Fischer 1986) e de “processamento paralelo, disperso e multilocalizado da identidade” (Marcus 1991). Pot outro lado, salienta-se aqui um a dim ensão reflexiva sobre a pesquisa de cam po e a influência do antropólogo (e a teoria da diferença cultural que traz consigo) no processamento da dentidade e da fronteira socialmente efetiva. Enfatizo que, ao lado dos outros agentes presentes e definidores da situação enfocada, o pesquisador de campo também deflagra processos identitários, contribu­ indo decisivamente para a “invenção da cultura” (nos termos de Wagner 1981) e para a produção de um a consciência da diferença em termos pro­ priamente culturais (como sugerem Turner 1991 e Sahlins 1993).

Existem "índios" no C eará?

Ate' pouco tem po atrás, o estado do Ceará, assim como os do Piauí e do Rio G rande do N orte, eram dados pelos registros da FU N A I e pelos le­

1 C orrendo o riscu de, ao privilegiar esse termo, reduzir situações e processos sociais que sc dão em m últiplos níveis e escalas a um a perspectiva unidim ensionai.

INVENÇÃO OU RENASCIMENTO?

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vantam entos produzidos por antropólogos e missionários como os únicos estados no Brasil onde não havia índios. N o Ceará, entretanto, a presença indígena deixou de ser ignorada —ou melhor, passou a ser considerada —a partir da primeira merade da década de 1980, quando a então Equipe de Assessoria às C om unidades Rurais — hoje, Equipe de Apoio à Questão Indígena — da Arquidiocese de Fortaleza passou a atuar no município de Caucaia, zona metropolitana de Fortaleza na coletividade dos assim deno­ m inados “tapebas” ou “tapebanos” (que é um a locução adjetiva para “do Tapeba”, “da lagoa do Tapeba”), ou mesmo “pernas-de-pau” (num a refe­ rência à alcunha de um ancestral de um segmento dessa coletividade, ao qual com um ente rem ontam ao traçarem sua genealogia).5 A etimologia da palavra tapeba é tupi, conforme vários autores (Pinto 1899: 559, Pompeu Sobrinho 1919: 208, Almeida 1987), constituindo um a variação fonética de itapeva (de itã!tâ, isto é, “pedra”; e peva, ou seja, “plano”, “chato”): “pedra plana”, “pedra chata”, “pedra polida” etc. O nome do m unicípio tam bém é tupi, representando um a variação de ka'a-okai (de k a a , isto é, “erva”, “m ato”, “bosque”, “floresta”; e okai, “queim ar”): “m ato queim ada”, “bem queim ado está o m ato”, “queimada”, "mato que se queim a”. Poderíam os repetir indefinidam ente este exercício, pois a toponím ia local é quase toda ela de origem tupi: Capuan, Iparana, Icaraí, Jandaiguaba, Paumirim, Pabussu, Tabapuá etc., mas tal esforço seria im ­ produtivo porque esses significados são desconhecidos dos sujeitos soci­ ais que hoje vivem nessas áreas. Esses sentidos resultam de um a pesquisa etimológica das palavras e nos falam de um tempo e de situações históri­ cas que, no estado atual de nossa ignorância histórica e etnográfica, não temos condições de reconstruir e descrever completamente. N ão existe na literatura etnológica e histórica, nem nas fontes prim ári­ as compulsadas, qualquer referência a um a sociedade indígena assim des Podemos considerar tapebas, tapebarws ou pernas-de-pau corno “rótulos étnicos” (ethnic labels) pelos quais as pessoas que consdtuem o foco dessa investigação são denominadas, tanto ao nível da paisagem social local do município de Caucaia, quanto ao nível regional mais amplo, no estado do Ceará, dada a repercussão, nos meios de comunicação, do m ovim ento reivindicatórío que encamparam com o suporte da Arquidiocese de Fortale­ za, visando a proteção dc algumas áteas que ocupam hoje (dc m odo mais visível, o manguezal das margens do rio Ceará) e a recuperação do território da antiga Aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia (da qual sc originou o m unicípio hom ônim o), exigindo da FU NAI a demarcação dc uma área indígena. O s tapebas, veremos adiante, também expressam o reconhecimento de constituírem um a categoria distinta de pessoas utilizando essa adscrição com o autodenom inação e para referir-se a outros.

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nom inada —tapeba.fi As poucas referências encontradas anteriores a 1984 são marérias na im prensa escrita de circulação nacional sobre as precárias condições de vida dos tapebas. O Jornal do Brasil de 7 dc abril de 1968 publica matéria intitulada “Indígena no Ceará não é nem cidadão”, em que se descreve “a form a prim itiva de vida que cultivam” e - o que é interessante - o fato de eles não existirem legalmente dado o desconheci­ m ento oficial de sua existência pelo governo estadual e pelo SPI. O Estado de São Paulo, em 2 de m aio de 1982, publica a m atéria “O s últim os Tapebas, na misétia”, descrevendo as suas condições de vida e inform an­ do que vivem em palhoças às m argens do rio Ceará. D uas m erecem atenção pelas referências etnológicas desencontradas que veiculam: uma publicada em 6 de julho de 1969 no jornal O Estado de São Paulo, assina­ da pelo correspondente local Rodolfo Espíndola e intitulada “O triste fim dos índios cearenses”, na qual se afirma que os tapebas são um “subgrupo dos Caucaias” que, por sua vez, seriam um “subgrupo dos Tiremembé”; a outra, publicada no Porantim em ahril de 1982 cira nove tapebas vivendo em terras não demarcadas no município de Paracatu, Ceará, apontandoos com o um grupo macro-jê.7 Eis um exemplo de como o desconheci­ m ento etnológ o sobre as populações aborígines do que hoje é o Ceará redunda em informações contraditórias e desprovidas de fundam ento. As fontes históricas acessíveis e a historiografia disponível m encio­ nam que o m unicípio de C aucaia ter-se-ia originado da Aldeia8 de Nos-

0 Considero essas fontes não tanto como vias de acesso à existência objetiva das sociedades indígenas no passado mas sim como fontes que concedem legitim idade à dem anda de reconhecim ento de continuidade no tem po dessas unidades sociais e, portanto, dc sua objetividade (Oliveira 1980ae b, Bourdieu 1989). Eis o nó górdío do problem a para os tapebas. 1 N o que concerne a esta última referência, é importante notar que Paracatu fica em Minas Gerais e não no Ceará, onde o município cujo nome mais se assemelha àquele é Paracui u. Nessa mesma listagem do Porantim, os potiguaras, reconhecidamente tupi, encontram se ali listados tam bém como macro-jê. 8Aldeia significa aqui náo os assentamentos indígenas tradicionais mas sim um a categoria histórica que denota um certo modo/modelo de apropriação fundiária, tal como explicita Faulhaber: “A figura da aldeia indígena constitui um a categoria historicamente enraizada e que aparece no discurso dos primeiros viajantes, associada à formação estratégica de agrupam entos populacionais, sendo vinculada à prática missionária de descim entos c banzados, nos quais participavam os próprios tuxauas e principais indígenas" (Faulhaber 1989: 2). Referimo-nos, portanto, aos conjuntos edificados pelos colonizadores para assentamento de índios.

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sa S en h o ra dos Prazeres de C aucaia, m issionada regularm ente pelos jesuítas entre 1741 e 1759, mas cuja origem rem onta a um a data incer­ ta no século XVIII, entre 1607 e 1666. É difícil atestar com precisão se ela teria sido efetivamente “fundada” pelos padres jesuítas Luís Figueira e Francisco Pinto entre 1607 e 1608, na fase precursora de exploração e catequese transitória que a ordem desenvolveu no Ceará (Leite 1943: 85); se foi o resultado de um esforço não muiro intencional de reunião da população indígena que se encontrava naquela área; ou se represen­ tou o desdobram ento de um grande aldeam ento original, em torno de 1660 (Studart 1926: 51-2, Studart F° 1963: 169). As fontes tam bém são contraditórias quanto à localização da Aldeia, ora figurando à margem esquerda (ocidental), ora à m argem direita (orientai) do rio Ceará. A natureza das fontes tam bém não possibilita determ inar com rigor a procedência e a composição do conringente indígena reunido na Al­ deia: se os potiguaras que por ali já sc encontravam com erciando com os franceses quando da chegada da expec ’ão de Pero Coelho (potiguaras esses que, ao refluírem de suas derrotas para os portugueses, foram responsáveis pelo deslocam ento dos cariris e trem em bés - os “senhores originais da orla cearense” — para o interior; cf. Studart 1926: 39-40); sc os duzentos o u oitocentos potiguaras que com puseram o próprio exército de Pcro Coelho; se os potiguaras e tabajaras que o Pe. Luís Figueira logrou fazer acom panhá-lo no retorno da prim eira missão à Serra da Ibiapaba; ou se todas essas alternativas. A pós a expulsão dos jesuítas e a elevação da Aldeia à carcgoria de Vila de Soure em 1759, aos potiguaras ali aldeados provavelmente rerse-iam reunido segmentos cariris, trem em bés e jucás, oriundos de des­ locam entos forçados dos aldeam entos do interior ou de solicitações dos próprios principais indígenas — conform e deixa entrever correspondên­ cia entre os diretores de índios dessas Aldeias e o capitão-m ór da C api­ tania (cf. Barretto F° 1993a: 144-ss.). As referências, p o rran to , destacam que a história da área em que hoje se sirua o m unicípio de Caucaia se confunde com a história da conq u ista e do povoam ento pelos europeus (franceses, holandeses e portugueses) do que boje é a beira-mar cearense, estando tam bém intim am enre relacionada ao trânsito das populações aborígines que ali ha­ bitaram antes e depois da chegada dos prim eiros colonizadores. Isso faz com que alguns agentes envolvidos na disputa em torno dos critérios legítim os de definição da “identidade tapeba” (notadam ente, a Equipe A rquidiocesana) sustentem a tese de que os tapebas são o resultado de

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A v ia g e m

d a v o lta

Fonte j PETI/Museu Nacional, 1993; FUNAI.

um lento processo de individuação étnica dos elem entos daquelas qua­ tro sociedades indígenas originárias, potiguaras, trem em bcs, cariris e jucás, reunidos sob a autoridade da adm inistração colonial. Para essa interpretação (da qual participam tam bém alguns agentes do Estado), não há dúvidas em relação à origem e à condição indígenas dos tapebas, considerando a diversa composição étnica da Aldeia de Caucaia. A sua co n tin u id ad e no tem p o até cultu ras pré-colom bianas e, p o rta n to , a im em orialidade de sua ocupação estariam atestadas.9 E ntretan to , um a análise m enos apressada da historiografia disponí­ vel pode levar à conclusão de que a tese acim a referida ainda guarda um caráter conjectural p ro n u n ciad o , se com parada à situação de outras sociedades indígenas no N ordeste do Brasil.10 A inda assim, há, nessa área, registros de concessões de terra à Missão de Caucaia e aos índios e seus principais, registros estes que guardam coerência com referênci­ as ao passado contidas em relatos de tapebas e regionais, notadam ente a noção de “terra da santa” (cf. adiante); as fontes autorizam a postulação de um a variada composição étnica da Aldeia; e Vila N ova de Soure, em

9 Dessa preocupação não estive ausente, um avezque, em texto anterior, considerei que os tapebas seriam fruto do inter-relacionam ento dos m em bros dos grupos indígenas supracitados, vivendo sob distintos regimes de administração de populações indígenas e sob diferentes legislações de ordenam ento fundiário, 'através de um lento processo de articulação e individuação étnica” (Barrctto F° 1989: 191). 10 Não estou querendo dizer com isso que, para outros grupos étnicos no Nordeste, a continuidade com populações pré-colombianas seja um dado objetivo por oposição à situação dos tapebas. C ontudo, na maioria das outras situações no Nordeste, o veredicto de legitim idade da continuidade no tem po e da objetividade desses grupos c mais facilmente concedido, dado o registro na literatura etnológica e histórica. Com parando a situação dos tapebas com a dos capinauás — que também nao são registrados nem reconhecidos pela literatura, mas têm “data de fundação” (Sampaio 1993), isto é, quando se apresentaram pela primeira vez à 3* Superintendência Regional da FUNAI, em RecifeFE, exigindo a demarcação de uma área indígena —observamos que a estes foi possível legitimar “objetivam ente” sua dem anda de reconhecim ento, por meio de um levanta­ m ento da cadeia dominíal na área. Esse levantamento perm itiu, através dos sobrenomes, reconhecê-los como descendentes dos 'caboclos da M ina G rande”, concessionários de uma doação de terras a principais (isto é, líderes) indígenas e seus descendentes (Sampaio 1993). Veremos a seguir que, no caso dos tapebas, quaisquer que tenham sido os seus dom ínios, eles não lograram assegurar a sua m anutenção até os dias de hoje e nem foi possível reconstituir a cadeia dom ínial, dada a informalidade segundo a qual transacio­ naram suas posses.

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que se transform ou a A ldeia de Caucaia, c m encionada como “vila de índios” até m eados do século XIX. D e fato, são poucos os relatos que, de posse de fontes primárias e da historiografia disponível, logram dem onstrar a continuidade histórica das sociedades am eríndias através dos tem pos. Nessa perspectiva, que procura definir com o critério de e para a identificação dos tapebas a con tin u id ad e histórica com populações pré-colom bianas, reforçando assim a definição e sta tu tá ria de ín d io cristalizada no “E sta tu to do fndio”(Lei 6.001/73), a natureza da continuidade no tem po dessa unida­ de é desconsiderada com o um problema: trata-se de afirmá-la no campo de disputa pela definição dos critérios legítimos de reconhecim ento da idenridade. A questão proposta, portanto, é: qual a unidade cuja continuidade no tem po é afirmada? A dm itindo que as formas socioculturais são dis­ tintas das espécies animais (cf. notas 2 e 3) e que, portanto, os “registros históricos e etnológicos” dessas unidades sociais não podem ser tom a­ dos com o referências a realidades supostam ente naturalizadas, e sim com o "registros” das suas m últiplas formas de existência (ou melhor, como expressões das condições de possibilidade de percebê-las), optei por tom ar a luta pelas classificações com o objeto. Logo, este não é um laudo em que se pretende assegurar que um determ inado grupo é “indí­ gena”, porém um a análise que pro cu ra desvelar etnograficam ente os processos pelos quais essa definição é construída e posta em jogo.

A Caucaia dos "tapebas" e os "tapebas" de Caucaia

“Acorda cidade e sertão! Este é o programa Metro, verso e viola transmitido diretamente dos esnídios da Rádio Metropolitana AM, da Caucaia dos tapebas”. Era invariavelm ente assim que, nos idos de 1989 e 1990, os ouvintes da em issora eram acordados pelo cantador Pereira, às cinco horas da m anhã, na abertu ra dos program as consecutivos M etro verso e viola, Mensagem para um novo dia e Forró danado. A Rádio M etropolitana A M -230 khz, que tem estúdios em Fortaleza e Caucaia, era então de propriedade do ex-M Ínistro da D csburocratização, e candidato derro­ tado à eleição de 1990 para G overnador do Ceará, Paulo Luscosa da Gosta. Tendo com o program ador e radialista o padre da Paróquia de

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Caucaia Francisco A ntônio Ferreira Cavalcante, vulgo Pe. “Tula”, esses program as, que reuniam todas as m adrugadas cantadores e poetas de C aucaia e cidades vizinhas, gozavam de um a audiência significativa entre os munfcipes. E n tre os ouvintes dos program as, encontravam -se aqueles tapebanos que possuíam rádio, alguns dos quais em cujas casas eu residi durante o período de pesquisa de cam po. Industriosos, m uitos deles já estavam de pé antes da program ação com eçar e invariavelm ente sin to n i­ zavam no Pe. “Tula”. O brado radiofônico m atinal do cantador que abria o program a repetia-sc diariam ente e era u m claro indicador do reconhecim ento coletivo, ao nível local, da presença e da visibilidade dos tapebas. O s tapebas, tapebanos ou pernas-de-pau habitam em áreas geográfi­ ca e ecologicam ente distinras (sítios rurais, povoados, vilas, bairros do perím etro urbano, manguezais) do distriro da sede do m unicípio de Caucaia. Este faz parte, ao lado de mais seis m unicípios, da microrregião m etro p o litan a de Fortaleza, área de influência da capital e centro de escoam ento da produção11, sendo o mais próxim o da capital - 16 km em linha reta a oeste de Fortaleza. N o estado do Ceará, C aucaia é o terceiro m unicípio em população, com 163-793 habitantes, ficando atrás apenas da capital (1.758.334 hab.) e de Juazeiro do N o rte (173.304 hab.). M aracanaá, Pacatuba e Caucaia, nessa ordem , foram os m unicípios da microrregião m etropo­ litana de Fortaleza que mais cresceram em termos populacionais entre 1980 e 1992, tendo o terceiro registrado um a taxa média de increm en­ to anual da população da ordem de 5,17% (FIBG E 1992: 35-7). Reverteu-se, assim, um a tendência apontada por Almeida, em 1986, de de­ créscimo da população de Caucaia em relação à região m etropolitana de Fortaleza, o que indicaria a contin u id ad e do processo m igratório oriundo do interior. Se o valor relativo da população residente em Caucaia diante da população da zona m etropolitana de Fortaleza caiu de 10,42% em 1940 para 5,89% em 1980 (Alm eida 1986: 5), observam os esse

" As regiões m etropolitanas são definidas por um agregado de municípios limítrofes caracterizados por forre fluxo m igratório, uma estrutura ocupacional com acentuada predominância dos setores secundário e terciário e um sistema de integração que se traduz pelo movimento co nstante das pessoas entre as unidades que as compõem, complementando e suplementando o mercado de trabalho. Conforme essa definição, a de Fortaleza encontra-sc entre as nove regiões m etropolitanas do país (FIBGE 1991: 33).

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índice subir para 7,11% em 1991. Poder-se-ia ver aí um indicador da redução da capacidade de absorção pela capital do fluxo oriu n d o do interior. Esse processo foi acom panhado pela concentração da população no perím etro urbano do m unicípio: em 1960, dos 42.572 habitantes recenseados, 36.028 (84,6% ) encontravam -se em áreas rurais e 6.555 (15,4% ) em áreas urbanas; duas décadas mais tarde, dos 94.157 habi­ tantes recenseados para 1980, 73.345 (77,9% ) escavam nas cidades e vilas (sedes de distritos) e apenas 2 0 .8 1 2 em áreas rurais. N ão só o crescim ento populacional se deu em direção às áreas urbanas, como tam bém a Lei M unicipal n° 430 de 5 de junho de 1986 am pliou a zona industrial e urbana do m unicípio de Caucaia, visando prom over a infraestrutura para im plantação de m inidistritos indusrriais na m argem di­ reita do rio Ceará até a ponte da rodovia BR-222 sobre o m esm o rio .12 Esses são indicadores de um m unicípio em franco processo de urbani­ zação e expansão industrial. Em 1986, C aucaia ostentava dois títulos bastante significativos da form a desordenada com o vem se dando o seu crescim ento. Era o se­ gundo m aior índice de criminalidade, só perdendo para M aranguape15, e o m aior foco de incidência de dengue no estado (quase todas as pes­ soas com as quais então convivi em Caucaia já tinham tido pelo m enos um a crise dessa doença). Além disso, os benefícios da expansão indus­ trial, comercial e urbana parecem não contribuir para o estreitam ento das disparidades sociais. C aucaia caracteriza-se pela presença de atividade industrial têxtil, alim entícia e de beneficiam ento de pro d u to s do extrativism o vegetal (cera de carnaúba, óleo de m am ona, castanha e óleo de caju). Some-se a isso estabelecim entos de exploração e beneficiam ento de pro d u to s minerais (pedreiras, cerâmicas, fábricas de pré-m oldados, brita, areia, seixo, pedras, cal, argila e barro para tijolos de alvenaria) e a pecuária leiteira e para o abate. A lavoura e a pesca se dirigem m ais para o m ercado interno e constituem as principais atividades econôm icas e de subsistência dos habitantes da zona rural. Aí o trabalho com o “diarista” em lavouras de terceiros tam bém aparece como um a possibilidade para

12Área que à ípoca estava sendo reivindicada pelos tapebas, com o apoio da Arquidiocese de Fortaleza (cf. adiante). 13 Caucaia é conhecida regionalmente como a “terra da faca".

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os posseiros sem terra e “m oradores”. Ao lado do m ovim entado com ér­ cio, com centenas de pequenos estabelecimentos varejistas, o turism o c o m ercado imobiliário configuram outros setores que têm se expandido progressivam ente, principalm ente na orla m arítim a. Caucaia ficou ao lado de Sobral no terceiro grupo dos 178 m unicípios cearenses que receberam os maiores volumes de recursos referentes ao Fundo de Par­ ticipação dos M unicípios em 1990 (atrás da capital e de Juazeiro do N orte) e foi o terceiro m unicípio nas cotas de ICM S distribuídas em janeiro de 1990, correspondentes ao período de arrecadação tributária de dezem bro de 1989. A geografia do m unicípio é m ultifacetada. C om sua sede a um a alti­ tude de 29,91 m acim a do uível do mar, o m unicípio é mais acidenta­ do do que plano. Com eçam em Caucaia as elevações que constituem o cordão central do estado do Ceará. Apesar da im ensidão dos tabulei­ ros planos repletos de carnaúbas, há no centro do m unicípio um bloco m ontanhoso com vários nom es relativos a braços ou seções desse pe­ queno m aciço. É um dos m unicípios cearenses mais ricos em lagoas perm anentes. Os rios de Caucaia, entretanto, caracterizam-se por se­ rem tem porários, com o é o caso do riacho Tapeba. Sua principal via fluvial é o rio Ceará, que corta o m unicípio em sua m aior extensão, d irigindo-se de sudoeste a nordeste, com u m curso de aproxim ada­ m ente 50 km . Às m argens do rio Ceará, nas proxim idades da faixa litorânea, cresce um a exuberante vegetação de m angue. N o s tabuleiros costeiros p red o m in am solos silicosos e pobres, encontrando-se solos ácidos nos baixios; são em geral férteis, p rin c ip alm en te nos pés de serras, mas a com posição física varia m uito no interior. A cobertura vegetal hegem ônica no território do m unicípio é caracterizada por ca­ atingas, capoeiras e carrascos. O clim a do m unicípio é am eno, com a tem peratura m édia oscilando entre 24° C no inverno e 32° C no verão. A m édia pluviom étrica anual é de 1,178 m m . N o período de janeiro a ju n h o , ocorrem precipitações da ordem de 854 m m , dem arcando p o rtan to duas estações: a chuvosa, localm ente denom inada de “inver­ n o ”, que se esrende de janeiro a ju n h o , e a seca, o “verão”, de julho a d ezem b to . É nesse q uadro socionatural que se inserem os tapebas. A sua po­ pulação — de acordo com estim ativas a p artir do censo genealógico que realizei em algum as localidades, com parado e cruzado com os dados do “C adastram ento dos ín d io s Tapeba”, realizado pela A rq u id io ­

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cese de Fortaleza em 1986 - gravita em torno de 1.150 pessoas. Esre, p o r si só, é um dado difícil de ser fo rn ecid o de m odo d efin id o e definitivo, em razão da p ró p ria dinâm ica da fronteira, com o verem os adiante. Eles vivem em intensa e p erm anente relação com não-tapebas (“brancos”) no desenvolvim enro de atividades produtivas, em razão de casam entos, pela m an u ten ção de relações de proxim idade social (através da constituição de relações de parentesco fictícias) ou pela cor­ dialidade (em alguns casos) de relações de vizinhança com brancos. Por ocuparem nichos distintos, os tapebanos engendram formas di­ ferenciadas de aproveitam ento dos recursos naturais disponíveis, basi­ cam ente extrativistas e sazonais: o corte da palha de carnaúba (o “traba­ lho na palha”), etapa prelim inar no processo de produção da cera de carnaúba, a que se dedicam os tapebanos das localidades da C utia e do Tapeba, durante o “verão”, nos carnaubais pouco adensados dos solos de massapê duro; a pesca arresanal não cultivada de crustáceos, realiza­ da entre m eados do “verão” e do “inverno” por tapebanos e brancos das localidades situadas nas fímbrias do m angue que cresce às margens do rio Ceará, na proxim idade da faixa litorânea (constituindo im portante m anancial pesqueiro ameaçado pela poluição e pelos projetos expausionistas dos com plexos industriais situados nos arredores); o “negócio com frutas”, isto é, a com pra de safras de árvores e/ou pom ares para revenda nos m ercados de Caucaia e da capital; a retirada de areia do leito do rio Ceará para vender a lojas de material de construção e em ­ presas de construção civil, entre m eados do “inverno” e do “verão”, isto para citar apenas algumas. T am bém se dedicam ao corte e à venda de feixes de lenha e, segun­ do u m a série de testem unhos produzidos em cam po, eram m estres no fabrico de carvão vegetal, na jardinagem c na captura de anim ais sil­ vestres, que vendiam nas praças de C aucaia e Fortaleza — atividades que hoje se en co n tram em escala residual. Isso sem c o n tar aqueles que são absorvidos pelo m ercado de trabalho form al local com o assa­ lariados, para trabalhar nas cerâm icas, olarias, fábricas de pré-m oldados, indústrias de beneficiam ento de p ro d u to s alim entícios e do extrati­ vismo e no com ércio. Em Caucaia, a rotatividade da m ão-de-obta é um a característica m arcante das atividades industrial, com ercial e de serviços. H á tam bém os que desenvolvem u m a variada gam a de peq u e­ nos serviços e biscates (carreteiros, assistentes de pedreiros, lavadei­ ras, dom ésticas, m anicures, cabeleireiros etc.) e os que se dedicam ao

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com ércio am bulante (sorveteiros, pipoqueiros, vendedores de broa, de frutas e legum es, de massa de m andioca, de m udas de plantas e de anim ais silvestres). As atividades variam conform e a área ocupada, o tipo de ocupação da mesma, a disponibilidade de recursos nesses nichos, a época do ano e o quadro geral de relações sociais (proxim idade e m obilidade física e social) dos tapebas. Em bora algumas dessas atividades sejam caracterís­ ticas de determ inadas localidades em que eles vivem (cf. adiante), é com um encontrá-las consorciadas n u m a m esm a localidade por vários tapebanos ou por um mesmo grupo doméstico. São atividades tam bém desenvolvidas por segmentos da população regional que se encontram em conc ;ões dc vida sem elhantes às dos tapebas, com o alternativas reais de sustento. Assim sendo, os tapebas atualizam diferentes ativida­ des produtivas e relações econôm icas que — é im portante frisar — en­ contram espaço n o m uuicípio e se inserem no âm biro da econom ia regional. Portanto, ainda que não integralm ente vinculados ao mercado de trabalho formal, eles são parte da população econom icam ente ativa do m unicípio. As áreas onde encontram os os tapebas hoje coustituem grupos lo­ cais de densidade, tam an h o , pad rão de assentam ento e localização espacial distintos. Elas apresentam caracteres contrastantes: há desde áreas habitadas quase que exclusivam ente por tapebanos, com o a área dc paisagem rural do Tapeba - a lagoa do Tapeba, a C utia, a lagoa dos Porcos, a Pedreira S‘“ Terezinha - até áreas em que a sua ptesença é totalm en te pulverizada e residual, com o é o caso dos bairros do perí­ m etro u rb an o da sede do m un icíp io — a C apoeira (bairro Pe. Júlio M aria), o A çude, a C igana, o Itam bé, o G rilo, a Vila São José, a Vila N ova (bairro Sta. Rita), sendo que os três prim eiros já crescem para d en tro dos im óveis rurais que os lim itam ; passando por áreas com uin padrão de assentam ento singular com o 6 o caso do “T rilho” (com suas casas distribuídas long itu d in alm en te, num trecho de 2,5 Km, às m arg en s da F errovia F o rtaleza-S o b ral, c o n stru íd a s em rerren o da RFFSA ., en tre as barreiras do “c o rte ” e as cercas das p ro priedades rurais vizinhas, nas localidades de Paum irim e C apuan) e das “Pontes” (na localidade de Soledade, o nde as casas se situam às margens do rio Ceará, nas únicas áreas de aterro sólido do m angue, geradas quando da pavim entação da rodovia BR -222, cuja p o nte sobre o m esm o rio em presta o n o m e à localidade). T endo sido expropriados das terras cm que viviam, os tapebas foram levados, em certas circunstâncias, a

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AV1ACEM DA VOLTA

ocupar dom ínios da U nião, com o c o caso das áreas m arginais à fer­ rovia e da área de m anguezal às m argens do rio C eará,14

"Terra da santa", " te rra dos índios"

O s grupos locais em que hoje encontram os os tapebas têm , cada um , uma história relacionada às m udanças nas m odalidades de apropriação fundiária obtidas em um passado recente no Tapeba “cham ado”15 e no Paum irim — tidos e reconhecidos localm ente como áreas cm que tradi­ cionalm ente viviam. A análise e a crítica m etodológica dos testem u14Tive oportunidade de cemadzar criticamente algumas das categorias naturalizadas que se empregam para definir os grupos locais em que encontramos tapebas, tais como: “com u­ nidades indígenas”, “núcleos indígenas”, “federação dos índios Tapebas”, apontando sua inexaridão e suas implicações (Barretto F° 1993: 291-ss.). O uso corrente desses termos dá a idéia de que a reprodução do grupo comn tal passa pela m anutençãu da atual configuração dessas unidades, de sua localização e distribuição espacial, de seu padrão de assentam ento, como se fossem unidades de sociabilidade rígidas, o que contrasta com a evidencia empírica dc acentuada mobilidade física. A descrição genérica nos parágrafos acima é suficiente para questionar essas categorias: o que possibilita cham ar um “bairro” (unidade político-administtativa) de 4.542 habitantes, no qual os tapebas residentes somam 160 pessoas, como é o caso da Capoeira, de “núcleo indígena” ? Em bora a reconstituição da história da ocupação hum ana da área do bairro revele que eles foram os primeiros a se colocar ali (cf. Barretto F” 1993: 294-ss.), optam os por “localidade” (term o dc referência administrativa) por razões operacionais, pois perm ite com parar o dado da população total das mesmas (cumpulsado junto ao IBGE e à FNS) com o da população tapeba. " A referência aparentemente mais “objetiva” do termo tapeba é fisiográfica (cf. adiante). Já em 1721, registrava-se o topònim o Tapeba para uma lagoa, em data e sesmaria concedi­ das pelo capitão-mór Salvador Alves da Silva a Bento Coelho de Moraes, D a perspectiva dessa análise, im porta um reference um tanto quanto genérico e impreciso do termo tapeba mas ainda vinculado k referência fisiográfica estrita. O uso do term o tapeba é freqüente para designar uma área mais ínclusiva, genérica e de fronteiras vagamente definidas, englobando a lagoa e o riacho Tapeba, lim itando-se ao sul com a lagoa dos Porcos, ao norte com a Pedreira e o Capuan, a oeste com a Cutia e a leste com o rio Ceará. Às vezes, entretanto, estas mesmas localidades acabam sendo abarcadas como referente sob a rubrica “Tapeba”, dando ao observador a impressão de que “é tudo um lugar só, tudo é só um a terra só” —como no seguinte diálogo: I: Isso tudo é só uma terra só; P: É o quê?; 1: É Lagoa dos Porcos. Tapeba. ÉTapeba, né? É... Tudo aqui c Tapeba. Lá para frente [apontando para o lescel. O povo diz que Tapeba í só dali para acolá, do outro lado, Para aqui era lagoa dos Porcos, né? Tudo é um a coisa só.

INVENÇÃO OU RENASCIMENTO?

nhos produzidos em campo revelou que os tapebanos não conheceram só um a m odalidade de apropriação fundiária e uso dos recursos n atu ­ rais disponíveis. A p a rtir dos dados da historiografia disponível, que indicam um a situação de instahilidade no século passado (de diferentes propostas q u an to à destinaçao das terras dos extintos aldeam entos indígenas), sentim o-nos tentados a caracterizar a situação obtida entre os tapebas como um híbrido de dois resultados históricos distintos, geralm ente encontrados em áreas de colonização antiga: a desagregação de domínios territoriais pertencentes à igreja, nos quais tenham passado a prevale­ cer formas de uso com um (donde a “santa” apareceria como proprietá­ ria), e/ou a perda da posse de eventuais dom ínios titulados, que teriam sido entregues form alm ente a grupos indígenas (ou seus “principais” e descendentes) sob a form a de doação ou em retribuição a serviços pres­ tados ao Estado. Parece ter sido esse o caso em Caucaia. S tudart Filho inform a que os potiguaras obtiveram do governo português várias datas de sesmaria, possivelm enre em retribuição ao seu apoio na supressão dos levantes “tapuios”. As missões, por sua vez, foram beneficiadas na co n ju n tu ra de consolidação da adm inistração religiosa do espiritual e do secular das A ldeias. Em 23 de n ovem bro de 1700, alvará em form a de lei concede a cada missão u m a légua de terra em quadra para sustentação dos índios c m issionários (S tudart 1896: 126). H á registros de con­ cessões de datas e sesmarias a colonos e a índios em Caucaia para a p rim eira m etade do século X V III. Em 31 de m arço de 1723, registrase um a concessão feita pelo cap itão -m ó r da C apitania “ao principal da aldeia de Caucaia João Paiva e mais officiaes e índios, para elles e seus herdeiros, de três legoas de rerra com um a de largura, m eia legoa para cada lado, fazendo peão n o olho d ’água cham ado Taboca” (Brigido 1900: 47). A noção genérica de um território dado à santa, "a terra da Santa” (Nossa S enhora dos Prazeres), expressa nas referências que tapebas e regionais fazem ao passado, guarda coercncia com esses registros históri­ cos de concessões territoriais feitas à missão e ao principal dos índios, e tam bém com o que ocorreu com esse patrim ônio territorial, dadas as sucessivas m udanças no ordenam ento da adm inistração dos indígenas c na legislação fundiária.

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A VIAGEM DA VOITA

Im plem entado o D iretó rio Pom balino, expulsos os jesuítas, a Al­ deia de C aucaia é elevada a V ila N ova de Soure em 1759. São desse p e río d o as re fe rê n cia s às p ro v áv eis re alo caçõ es de c o n tin g e n te s populacionais de outros grupos indígenas para as aldeias do litoral e para Caucaia. Vila N ova de Soure é m encionada com o “vila de índi­ os” desde a sua criação até o segundo terço do século passado. E xtinto o D iretório Pom balino em 1798, há relatórios de presidentes da p ro ­ víncia do C eará que revelam um a situação singular, na qual, em m ea­ dos do século XIX, ain d a existiriam índios reivindicando a restitu i­ ção do D iretório e dos bens seqüestrados, sem falar na pro p o sta de restabelecim ento das Aldeias de Soure e V ila Viçosa da parte da As­ sem bléia Provincial. Em 1863, por ocasião da instalação da Assembléia Legislativa P ro­ vincial, o presidente da província do Ceará dá p o r extinta a população indígena da província e, paradoxalm ente, explica que os patrim ônios territoriais das aldeias “foram m andados incorporar à fazenda p o r or­ dem im perial, respeitando-se d posse de alguns índios” (ênfase m inha). Alfredo M oreira Pinto reproduz o conteúdo dc um a escritura de doa­ ção de terras feita em 1872 por Francisco Barros de Souza C ordeiro e sua m ulher à “Nossa Senhora dos Prazeres desta Real Villa de Soure”, na qual se faz menção aos “possuidores índios desta m esm a villa” (cita­ do p o r G om es 1985: 13 e anexo 12). O fato é que, quaisquer que tenham sido os dom ínios dos “possuidores índios” de Soure, os tapebas não lograram assegurar de m aneira plena a m anutenção destes, geração após geração, até os dias de hoje. O que se pode afirm ar com segurança, a p artir da crírica m etodológica dos testem unhos sobre o passado e de eventuais cadeias de transmissão de tradição oral, é que os tapebas, no seu devir histórico, conheceram e atualizaram diferentes m odalidades de apropriação fu n diária e uso dos recursos naturais disponíveis e valorizados. Ao lado (a) da condição de “m oradores” em /de propriedades de terceiros, aos quais eles tinham que retribuir com “agrados” da colheita anual, mas com o uso relativa­ m ente consentido dos recursos naturais, e (b) da condição de controle livre e individual da terra e dos recursos básicos p o r um ou ou tro grupo dom éstico (situação que se o b tin h a n u m passado recente na área do Tapeba e do C apuan), eles (c) tam bém conheceram e atualizaram “siste­ mas dc uso com um ” em algumas situações. Alguns grupos de descen-

fNVEN ÇÃO OU RENASCIMENTO?

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ciência irrestrita {cf. n o ta 21) identificados no Paum irim exerceram, durante um longo período de tem po, o controle de recursos naturais básicos em determ inadas áreas, segundo regras específicas acatadas de maneira consensual entre os grupos dom ésticos que com punham aque­ las u nidades,16 E m b o ra seja no Paum irim que, n u m passado recente, renham se atualizado formas de uso com um da terra por parte de determ inados grupos de descendência irresrrita, é no Tapeba “cham ado” que a noção da “terra da santa” aparece com mais força e freqüência — ainda que ela tenha sentido para tapebanos de outras áreas e seja partilhada tam bcm por demais regionais, não constituindo um a categoria cultural restrita. Justam ente no Tapeba, onde os tapebanos se reconhecem e reconhecem alguns de seus ancestrais de terceira geração ascendente como “m ora­ dores de terreno alheio”, eles m arcam que no passado - em um tem po que objetivam ente não alcançaram — “a terra não tinha dono”, “o dono era nós”, “nós fazia o que queria”. Tudo se passa como se, no caso do Tapeba “cham ado”, ao se referi­ rem à “terra da santa”, eles não estejam se referindo a modalidades de uso com um da terra que tenham conhecido e/ou atualizado historica­ m ente e m antido até hoje. Estão sim atualizando um operador conceituai para distinguir as modalidades de apropriação fundiária e dos recursos naturais que eles conheceram e ourras sobre as quais eles ouviram falar, em virtude de eventuais relatos sobre o passado de que sáo depositári­ os, m as que em cam po m e foram apresentados de m odo residual e impreciso. Ao se referirem à “terra da santa”, aos rum os anrigos, aos

IC Ao falarmos cm sistemas de uso com um da terra, temos em m ente a tentativa de definição posculada por Almeida, a partir de suas anotações sobre a relevância dessas modalidades na estrutura agrária brasileira e os sistemas de relações sociais que lhes são inerentes: “[...] das designam situações nas quais o controle dos recursos básicos [,,,] se da através de normas especificas instituídas para além do códigD legal vigente e acatadas, de m aneira consensual, nos m eandros das relações sociais esrabelecidas entre vários grupos familiares que compõem uma unidade social” (Almeida 1989: 51). Entre os sistemas de uso cnmum em regiões de colonização antiga, Almeida distingue as categorias sociais localizadas de "cerras de preto”, “de santo” e “de índio”, como referindo-se a algumas das m últiplas soluções historicam ente engendradas por diferentes segmentos camponeses para assegurar o acesso à terra.

A VIAGEM DA VOLTA

marcos dessa légua de terra17 sobre a qual ninguém teria direito e sobre a qual seus ancestrais teriam exercido o uso consentido e talvez mesmo a posse m ansa e pacífica (identificados hoje pela paisagem antropogênica fru to dessa fo rm a de ap ro p riação : “os cajueiros do finado ‘M a n é ’ R aim undo, cabeça véio” e "as quintas do finado Casem iro”), eles dis­ tinguem : um tem po em que “a terra não tinha d o n o ”, “o dono era nós”, o que pode significar que o seu uso era consentido ou que os seus ancestrais tenham exercido a posse m ansa e pacífica; tem po este que teria precedido aquele em que “um sujeito aceirava um roçado, [e] ia pagar só no fim da safra, em ju n h o ”, em que eles viveram e no qual atualizaram relações sociais de produção valorizadas; períodos que se opõem , em conjunto, às relações expropriarórias e excludenres obtidas hoje, quando "ninguém pode m eter a foice [...] antes de pagar”, cm que a “notinha” é apresentada no m om enro de m eter a foice no aceiro. O bservam os assim a m ultiplicidade de soluções históricas produzi­ das e conhecidas pelos tapebas na relação com a terra e os recursos naturais valorizados (m adeira para lenha, caça, pesca, mananciais, açu­ des naturais, lagoas, rios), bem com o com suas benfeitorias (fruteiras, taperas, etc.). D iante de alguns desses recursos eles conservam ainda hoje concepções de uso com um - “é do povo”. A valorização progressiva da propriedade imobiliária rural na zona me­ tropolitana da capital está na raiz da desagregação das relações sociais anteriormenre vigentes c da formação dos atuais grupos locais em que vivem os tapebas. Explicam tam bém a m udança do caráter da relação de moradia que se obtém hoje na área rural (Cutia, Pedreira Sta. Terezinha, Tapeba, Lagoa dos Porcos), em que alguns tapebas permanecem como “m orado­ res”. Estes têm se visto diante dc progressivas restrições e intimidações de toda ordem pelos supostos proprietários de terras (proibição de reformar casas, de plantar roças, de construir novas casas para seus filhos erc.), num a clara tentativa de “persuasão” para que se retirem. C om o já indiquei, a maioria dos tapebas hoje m ora em terrenos da União, em bairros do perímerro urbano da cidade ou em áreas cuja siruação de posse da terra não foi regularizada (resultado de ocupações de propriedades ou foros de tercei­ ros), sendo objetos das mais variadas pressões.

1N o que parece ser uma referência ao patrim ônio territorial da missão (cf. supra.).

INVENÇÃO OU RENASCIMENTO?

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Que d iferen ça fa z?

Posta desse m odo a situação histórica18, os tapebas, se pensados como grupo, não constituem um a unid ad e singular, persistente, indivísa e claram ente distinta, colocando um problem a para a análise da m anu­ tenção dessa identidade categórica e da dinâm ica da fronteira social­ m ente efetiva. U m a vez que são d istin to s os m odos de apropriação fundiária e o uso dos recursos naturais que lograram estabelecer no seu devir histórico, com o soluções distintas ante a dinâm ica fundiária lo­ cal; um a vez que observamos hoje um a configuração de grupos e assen­ tam entos locais discrepantes, ao lado de um a grande diversidade de atividades produtivas, formas de sustento e m odalidades de relaciona­ m ento com os detentores dos recursos, básicos (proprietários de im ó­ veis rurais, industriais, em pregadores de toda a ordem ), ou seja, já que não se identificam tão claram ente os sinais “diacríricos” e ap arente­ m ente “objetivos”, nem “traços culturais” co m um ente valorizados e buscados com o dem arcadores da diferença cu ltural entre os grupos, por onde passa então a fronteira entre tapebas e brancos? T endo com o referência central o d esdobram ento das relações dos tapebas com os demais regionais, a Igreja e as agências do Estado que atuaram localm ente, procuro identificar c refletir sobre os fatores que conform am o estabelecim ento da fronteira e o concom itante processo de produção da identidade categórica, assim como a arena de luta polí­ tica e sim bólica em que se desenvolvem os esforços de estabelecer os critérios legítimos de definição e reconhecim ento do grupo. O ponto de partida, p o ttan to , não pode ser as eventuais característi­ cas objetivas a serem apontadas pelos m étodos do observador, mas sim um esforço de leitu ra do processo de diferenciação, de organização social da diferença cultural, de atualização da identidade categórica e do reconhecim ento recíproco, a partir da gram ática e da sintaxe dos próprios sujeiros, dos próprios atores.

18Por “situação histórica” entendemos a modalidade de interdependência e relacionamento que associa um conjunto de atores e o esquema de distribuição de poder entre eles num período de cerra duração. Equilíbrio e período estes que são um a construção do pesqui­ sador para o estudo da m udança social e da correlação de forças no tem po (Oliveira 1989: 57-8). Nesse sentido, c necessário prosseguir com a etnografia para completar o quadro da situação histórica em foco.

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AVIAGtM DAVOLTA

C om o sugere Barth, a ênfase prim ordial deve ser concedida ao fato de que grupos ctnicos são categorias de atribuição, adscriçáo e identifi­ cação atualizadas pelos próprios atores e, portanto, caracterizam-se por organizar a interação entre as pessoas (Barth 1969: 10). U m a adscriçao categórica, para Barth, é um a adscriçao étnica quando ela classifica um a pessoa em term os de sua identidade mais geral e básica, presum i­ velmente determ inada por sua origem e background: posto que os sujei­ tos sociais usam identidadés categóricas de tipo étnico pata categorizarem a si m esm os e aos outros com propósitos de interação, eles form ariam um grupo étnico em um sentido que Barth denom ina “organizacional”, por oposição ao senrido substantivo, de um a unidade portadora de um conteúdo, “portadora de cultura” (: 13-4). Assim sendo, se o elemento crítico passa a ser a característica de auroatribuição e arribuição p o r terceiros (: 13) e se grupos étnicos são catego­ rias e envolvem processos de classificação, então é fundam ental consi­ derar as funções práticas dirigidas à produção de efeitos sociais às quais essas “classificações p ráticas” estão sem pre su b o rdinadas (B ourdieu 1989: 112). C om partilho da interpretação de que o que está em jogo na luta pelas identidades, pelo reconhecim ento, é a imposição de percep­ ções e categorias de percepção (: 117).19 Deve-se incluir no real a representação do real, ou melhor, a luta de representações em torno do real, do m u n d o social, que se processa sim ulraneam ente em m uitos lugares diferentes, por agentes m uito dife­ rentes, que têm em m ente objetivos m uito diferentes - no lugar em que se vive, entre vizinhos, amigos, parentes ou estranhos, na Academia, no Estado, na Igreja, em organizações inform ais c voluntárias, nas organi­ zações não-governam entais etc. Assim, a identidade se afigura com o dispersa em m uitos lugares distintos, mas que se interinfluenciam um a identidade m ultilocal que se processa paralelam ente em vários ní­ veis dc organização social (M arcus 1991).

15 “As luras a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de proprie­ dades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do tugar de origem e dos sinais duradouros que lhes são correlativos [...] são um caso particular das lutas das classifica­ ções, lutas pelo monopólio dc fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de lazer reconhecer, de im por a definição legírima das divisões do m undo social c, por este meio, de fazer e de desfazer os grupos” (Bourdieu 1989: 113, ênfases no original).

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A lguns referentes da categ o ria de atribuição

A palavra tapeba é devido à Lagoa do Tapeba, sabe? Nós morava lá, então todos nós temos que pegar o nome de tapeba, né? E por isso é que chamam a gente de tapeba. Mas não é que nós seja tapeba e pegue esse nome assim, mas o nome que nós pega é devido à Lagoa do Tapeba, porque todos nós morava lá na Lagoa do Tapeba, né? (Chagas, tapeba, 78 anos, Trilho/Paumirim). Tapeba é a lagoa acolá que chama Tapeba, né? A lagoa lá onde nós morava. Era Tapeba. [...] O Casimiro nasceu e se criou foi lá mesmo, lá pertinho da lagoa. Ele nasceu lá no Tapeba e se criou foi lá. Que eles dizem que a gente morava no Tapeba, criatura, e chamava nós de tapeba, só porque a gente morava lá no Tapeba. Ora! {“Dona” Adélia, tapeba, 82 anos, Cutia). A referência aparentem ente mais objetiva do term o tapeba, como já observei (cf. n o ta 15), é fisiográfica: Tapeba é um topónim o que dá nom e a um a lagoa na área rural do m unicípio e a um riacho tem porário que deságua na lagoa da Barra Nova (ou do Poço), na proxim idade dos quais m oram famílias de tapebas, em um a área onde, já indiquei, a presença deles é hegemônica. É freqüente tam bém o uso do term o tapeba para referir-se a um a área mais inclusiva, genérica e de limices vaga­ m ente definidos, englobando a lagoa e o riacho hom ônim os, e até mes­ m o as localidades de Lagoa dos Porcos, Pedreira, C utia e C apuan; o Tapeba “cham ado” (cf. nota 15). A possibilidade (e mesmo o esforço deliberado e consciente) de uma pessoa ou grupo dom éstico reconhecer e ter reconhecida sua origem com referência às áreas consideradas como de habitação e vida tradici­ onais dos tapebas - a lagoa do Tapeba (ou, de m odo mais inclusivo, o Tapeba “cham ado”) e o Paum irim - constitui urn dos referenres da atu­ alização da adscrição categórica. H á um a correlação estreita entre o topónim o e o etnônim o, instituindo a atribuição categórica a partir do reconhecim ento coletivo da procedência com um como um fato básico, à qual se vincula um a série dc atributos. N um a paisagem social limirada, na qual as pessoas têm um relativo conhecim ento pessoal umas das ou­ tras, não se encontram dificuldades em atualizar a adscrição categórica, identificando-se ou distinguindo-se da coletividade em questão segundo a avaliação de filigranas de conduta, às quais referir-me-ei mais à frente. O referente espacial, toponím ico, ligado a um a configuração fisiográfica semiotizada, cam inha pari passu com a referência “familiar”, isco é, com

AVIACEM DAVOLTA

o modo segundo o qual as pessoas traçam ou vêem traçada sua ascendên­ cia por relações de parentesco (consangüinidade e/ou aliança indistinta­ mente) com ancestrais que teriam vivido naquelas áreas. N o Tapeba, destaca-se a figura de M anoel Raim undo, “cabeça” dos “tronco véio” da lagoa do Tapeba. No Paum irim , a figura em blem ática de José Alves dos Reis, o “Zé Zabel Perna-de-Pau”, tido com o a últim a forte liderança dos tapebas do Paumirim, o “ultimo tuxaua”, após a m orte do qual conta-se que os tapebas do Paumirim , que viviam sob a sua autoridade, se disper­ saram num a espécie de diáspora. O caso absolutamente singular de poliginia sororal que ele teria m antido e os m uitos filhos que ele teve com as suas duas mulheres20 geraram um grupo de descendência claramente delimita­ do. Alguns elementos desce, notadam entc da segunda geração descenden­ te, casaram-se entre si. Estes referem-se a si próprios como “a verdadeira nação”, opondo-se aos tapebas de outras localidades, considerados por cies não puros. Referem-se a “Perna-de-Pau” como o “fundador” da “na­ ção”. Desse m odo, eles dem andam o status de tapeba exclusivamente para si, negando-o a outros. Essa disputa pela autoridade e pela legitimi­ dade do discurso vetdadeiro sobre os tapebas é um a constante, principal­ mente entre os “Zabel”, os pernas-de-pau, que se julgam os legítimos interlocutores para falar sobre os tapebas e de seu passado. Deve-se assinalat que, no caso dos tapebas, não existem regras de descendência que vinculem um a pessoa a qualquer grupo de parentes, prescrevendo séries de direitos e deveres, nem regras de casam ento preferencial ou in terd ição de união com brancos. T am bém não há regras de residência. A dim ensão d a organização social assum e im ­ portância com o um elem ento definidor em função do teconhecim ento de alguns grupos de descendência irre strita 21 com o tapebas e da

20 H á inclusive quem fale em três esposas (uma seria “amante”, e não viveria junto com ele) c outros ainda em oito, todas morando na mesma casa. Até onde se pôde avançar, só conseguimos identificar Filhos e netos das duas esposas referidas, por isso nos limitamos a estas. Q uanto ao número total de filhos, nao foi possível identificar codos, mesmo porque muitos não residem mais em Caucaia e as relações se estenderam para outras direções. 21 Conto grupos de descendência irrestrita compreendemos aqueles “grupos” - no sentido amplo e descritivo, de qualquer coletividade cujos m em bros possuam um a semelhança qualquer - que consistem de rodos os descendentes, através de hom ens c mulheres, de um ancestral comum. Uma configuração social característica dos sistemas de parentesco bilaterais, caracterizados pela ausência de grupos de parentesco exclusivos recrutados na base da descendência (cf. Bott 1976: 127-8).

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consideração de um a peculiar “gram ática” de casam ento, sobre a qual falarem os adiante. O m odo como são pensadas e apropriadas as relações de parentesco, com o é figurada a unidade do grupo e como se expressa o sentim ento subjetivo de constituírem um todo é atestado e instituído pelo uso do term o “família”, recorrentem ente associado ao term o tapeba: “família de tapeba”. D o mesmo m odo, diz-se que os “Z abel” (supracitados), os “C oco”, os Jacinto, os Alves dos Reis, os Alves de M atos, os Teixeira de M atos, os Alves Teixeira e outros grupos de descendência irrestrita de determ inados ancestrais slo (ou não são) tapebas, da "família de tapeba” (dependendo do contexto de interação definido). A esses grupos tam ­ bém se referem usando o term o família: “família de jac in to ”, “família de C oco”, "família de Zabel”, etc. Aqui o senhor não via gente de outras pessoas, ninguém via aqui nesse Trilho. Era só nós mesmo, viu? Era só gente da nossa família. O senhor acredite que aqui não morava ninguém de fora. Pessoa, assim, mais de outro sangue não morava. Era só índio tapeba aqui nesse Trilho. [...] Era uma cumandira só desse pessoal tapeba. [...] Agora depois que eles morreram [os mais velhos] foi que começou a ir se chegando esse pessoal branco, encostan­ do perto dos tapeba. Aí, estão aí (Zuíla, tapeba, 57 anos.Trilho/Paumirim). H: É diferente tapeba de perna-de-pau? T: É diferente, mas assim mesmo não é diferente. É porque esses perna-depau que chamavam, é porque tinha um tapeba que quebrou uma perna e tinha uma perna de pau. Aí apelidaram ele por Petna-de-Pau. Tá compre­ endendo? Porque perna-de-pau não era família. Chamavam ele de Pernadc-Pau porque ele tinha unia perna de pau. Mas era misturado com esses rapeba (Zé “Tatú”, 66 anos, Trilho/Paumirím). M: [...] A minha família não é tapeba não, Henyo. H: Não?! Como é que é essa família de vocês? M: A minha mãe era irmã da finada Teresa, que era casada com o finado Zé Zabel Perna-de-Pau, que chamavam tapeba. A minha ria era casada com o finado Zé Zabel Perna-de-Pau, que ele tinha uma perna de pau. Certo? Então, assim, a mamãe era cunhada dele, hera? Que era casado com a irmã dela, hera? Era cunhada. Mas que esse pessoal dos tapeba, isso é outra família. Só se meteu no meio porque ele casou com a irmã da minha mãe. Mas não tem nada a ver com essa raça não. Não rem nada a ver (Mazé, tapeba?, 55 anos, Trilho/Paumirim).

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A VIAGEM DA VOLTA

O m odo com o as pessoas traçam a sua ascendência com relação a um ancestral com um reconhecidam ente tapeba ou a um local de procedência com um reconhecido como área de m oradia pretérita dos tapebas determ ina em parte a sua individuação em um m esmo co njunto, na m esm a coletividade. Essa delim itação, contudo, deve gozar de reconhe­ cim ento e valor da p arte de terceiros (tapebas e brancos), pod en d o inclusive ser contestada. Apesar da aparência fixa e imperativa dos qua­ dros de parentesco e procedência, estes estão sujeitos a valorações e im putações de significados as mais distintas, de acordo com os valores, interesses e estratégias dos atores em questão, tal como pude descrever para algumas “situações sociais” (G luckm an 1987), testem unhadas em campo, de conflitos de interpretação e desentendim entos pessoais fun­ dados na adscrição étnica (Barretto F° 1993: 421-53). A polissemia do term o “m isturada”, que parece qualificar a gram áti­ ca do parentesco tal com o eles a entendem , é significativa dessa dinâ­ mica de singularizaçao e diferenciação dos tapebas em face dos demais regionais: “É um a m isturada m edonha essa da família de tapeba!”. De um lado, refere-se à prática existenre, em bora não preferencial nem imperativa, de “casar na família”, “casar dentro da família”, na qual se “m isturam ” prim o com prim a, tio com sobrinha, tia com sobrinho etc.; de outro , refere-se à liberdade de união (form alizada ou consensual) com “gente de fora”, de “ourra família”, de “outro sangue”. A noção de “m isturada”, nesses dois sentidos, indica a dificuldade e, inclusive, em alguns casos, a im possibilidade de “destrinchar a família” em razão das múltiplas direções que as uniões tom am e da m obilidade física e social ligadas às estratégias de reprodução social. CB: Você veja bem. A máe da minha mulher, apenas, ela era irmã de duas irmãs que eram juntas do Perna-de-Pau, né? [...] Então, por esse raciocínio, toda a família dela passa a participar dos rapeba. Que realmente quem é da família dos tapeba é as duas irmãs dela que, stamenre, transou o sangue com o Perna-de-Pau. Que tem filho, tem isso e' aquilo. Você está enrendendo? Mas que a minha mulher, nem a mãe dela, realmente, ela não tem nada com perna-de-pau, não rem nada com índio, não tem nada com tapeba, né [...]? H: Quer dizer, então, que esse pessoal da família de Jacinto não c tapeba? CB: Não. Se é hoje, é pela seguinte maneira. Porque Jacinto casou na família [...] Agora como a família foi multiplicando, hoje já tem rapeba casado na família dc Jacinto, tem Jacinto casado na família de tapeba, tem Coco casado na família de tapeba, tem Jacinto casado na família de Coco.

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E ntão é isso. Tem um a m isturada. É um bolo m ais horrível do m u n d o (C hico B ento, 60 anos, Vila N ova, casado com a irm ã de Mazé).

D e outro lado, o term o “m isturada”, quando atualizado pelos regio­ nais, articula potencialm ente um a representação sobre a conduta social e sexual dos tapebas, de prom iscuidade e incesto, com parando-os a animais: “É um a m isturada m edonha, feito cobra umas com as outras. São com o uns cachorro!”. São m isturado os perna-de-pau. Q u e quando era os tapeba, esses tapeba não vivia com os perna-de-pau. É tudo m isturado. [...] Aqueia arrumação! Era no tem po que faziam m odo um a cascavel. Sabe com o é? A cascavel não tem os filho c vem comendo? Assim é os perna-de-pau. Era esses tapeba. C om iam as filhas, o que tinham , prim a, isso e aquilo outro. N u m estava vendo que estava aquele m olho ali? Pouco mais estava barriguda, porque não tinha noção de gente. Pareciam assim uns bichos (Zé “T atu”, 66 anos, T rilho/Paum irim ).

O term o “inistutada” reflete assim um a am bigüidade característica do processo de conceitualizaçao da fronteira e da diferenciação cultu­ ral, com sua dim ensão auto-reflexiva, com o salienta Cohen: se a fron­ teira com o objeco do discurso interno é sim bolicam ente complexa, com o “face pública” da com unidade ela é sim bolicam ente sim ples (C ohen 1985: 12). O s jovens tapebanos mais identificados com um estilo de vida urba­ no e que experim entaram viver fora da paisagem social local têm procu­ rado rom per com essa gramática do "casar na família”, inrerpretando-a em term os similares aos dos regionais. C onflitam assim com uma das interpretações correntes entre os adultos, de que essa seria um a prática mais correta e mais de acordo com os padrões morais — além de tradi­ cional. E p o r isso que os tapebas da lagoa são vistos entre eles próprios e pelos regionais com o mais “puros”, mais corretos, mais tradicionais — entre o utras coisas, p o rq u e se casam na fam ília. A esse elem ento se som am as características de tim idez e reserva: “São uns m atutos!” O que significa dizer que eles próprios reconhecem diferenciações inter­ nas entre si, com base em algnmas características que lhes atribuem e em qne eles assentem. C abe salientar, en tretan to , que sc os tapebas da lagoa atualizam e valorizam positivam ente o costum e de “casar na família”, não o é por n en h u m a razão ontológica o u substantiva que lhes seja inerente e os

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caracterize com o um núcleo de identidade em torno do qual esta se enfraquece: trata-se de um a área onde, com o já indiquei, a presença deles é hegem ônica, os vínculos econôm icos entre as pessoas são relati­ vam ente mais estreitos que nas outtas áreas, a m obilidade física é rela­ tivam ente menor, as relações de vizinhança tendem a ser mais estreitas e cordiais e, portanto, a possibilidade de encontros fora desses círculos c m enor (o patente c vizinho, que p o r sua vez é colega de trabalho na palha ou nas roças, que é com panheiro nas horas de lazer etc.). As famílias do Tapeba já se encontram ali há várias gerações, com o no Trilho, propiciando algum a estabilidade e continuidade aos relaciona­ m entos, o que contribui para que a conexidade das redes de parentes, amigos e vizinhos seja relativam ente mais intensa e estreita.22 Já podem os perceber aqui sinais de que a fronteira constitui-se pela ptesença fundadora de diferentes perspectivas de perceber e organizar a diferença cultural entre tapebas e brancos, o que não exclui, p o t sua vez, u m a le itu ra m ú ltip la dos m esm o s c rité rio s e c a ra c terístic a s dem arcadores da fronteira.

Os "com edores de carn iça ": o estigm a e os atrib u to s d esab on ado res im putados T apeba não tinha nome! T apeba era um cachorro! N aquele tem po em que eles não eram reconhecidos, f...] D o tem po, H enyo, em que eles nunca sonhavam que a A rquidiocese... que eles iam ser hoje o que eles são. Porque eles eram jogados. N o tem po em que eles com iam carne velha, m urrinha. [...] N o tem po em que não era todo m u n d o que

17 Refiro-me a “redes” porque, não havendo um a regra de descendência que vincule uma pessoa a um grupo de parentes, prescrevendo um a série de obrigações e direitos, os relacionamentos sociais externos das pessoas e suas famílias de orientação tendem a assumir a forma de uma rede, m uito mais do que a forma de um grupo organizado (cf. supra e n ota21). N a Formação da rede, como indica Bott, somente alguns e não todos os indivíduos com ponentes têm relações sociais entre si, podendn haver variações na conexidade das redes, ou seja, na extensão em que as pessoas conhecidas por um a dada família se conhecem e se encontram umas com as outras independentem ente da dada família. A autora emprega o termo “malha estreita” para descrever a rede na qual existem muitas relações entre as unidades c “malha frouxa” para indicar o oposto (Bott 1976: 767}. As localidades onde residem os tapebas e as relações que estes entretêm nelas e entre elas podem ser diferenciadas por esse critério também.

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queria dar nem águaprá eles (“Seu” Fernando, 60 anos, Capoeira). Eles falavam “Olha aí, a cumandita de tapeba que vão passando! Lá vão os tapeba. Eu não quero nem saber dessa imundície aqui no meu terreno! Pode tirar!” O senhor pensa que davam uma mqrada a nós num canto assim que soubesse que nós era tapeba? Nao senhor! (Zulla, tapeba, 57 anos no vídeo Tapeba: Resgate e Memória de uma Tribo, agosto de 1985)Se existe um conjunto de referentes em relação ao qual o experience distant concept (Geertz 1983a: 57) de “identidade categórica” — catego­ rias de adscrição atualizadas pelos próprios sujeitos, que têm a caracte­ rística de organizar a interação entre eles — surge mais próxim o de seu sentido etimológico, este é o que diz respeito às inform ações estereoti­ padas e desabonadoras transm itidas nesse entrejogo de reconhecim en­ to que configura as identidades. A qui, nossas categotias se encontram com a palavra grega dc onde se originam: katégorein, que significa apon­ tar, indicar, mas, fundam entalm ente, acusar na ágora, acusar publica­ mente — com o recorda Bourdieu.23 Caluniar, acusar, maldizer, insultar e xingar publicam enre. Tam bém se trata disso quando alguém usa tapeba com o term o de referência, de tratam ento ou de cham am ento, em determ inadas circunstâncias e com um a certa entonação, com o deixam transparecer vários c recorrentes testem uuhos oculares e relatos de cam po. Tapeba fu ncionou — e em certos círculos e contextos ain d a funciona — com o um insulto e um xingam ento, dada a inform ação social desabonadora que o term o vei­ cula. Ele está associado a condutas como com er carne podre (carniça), consum o de álcool, prom iscuidade (um dos sentidos em prestados à no­ ção de “m isturada”), desonestidade, roubo e desrespeito pela proprie­ dade alheia, indolência e indisposição p ata o trabalho, bem com o à im undície em que vivem e à im agem de miséria a que em geral estão associados.

23 “De fito, este trabalho dc categorização, quer dizer, de explicitação c classificação, faz-se sem interrupção, a cada m om ento da existência, a propósito das lutas que opõem os agentes acerca do sentido do m undo social e de sua posição nesse m undo, de sua idenridade social, por meio de todas as formas do bem dizer e do ma! dizer, da bendição e da maldição ou da maledicência, elogios, congratulações, louvores, cum prim entos ou insultos, censuras, críticas, acusações, calúnias etc." (Bourdieu 1989: 142).

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M uitos regionais e até m esm o tapebas fazem referência a essas con­ dutas como diferenciadoras e características. Pelo contato que m antive com regionais de vários estratos sociais, essa “im agem pública” dos tapebas é algo que ainda tem m uita força no contexto local, sendo os regionais ainda socializados nessa concepção sobre a conduta dos tapebas e na expectativa de que se com portem costum eiram ente assim. É com um alguns tapebanos assentirem em alguns elem entos desse reconhecim ento negativo de que são objeto, como definidores das ca­ racterísticas singulares que os distinguem —noradam ente o consum o de álcool e o hábito de com er carniça. Este últim o, eles reconhecem , é um hábito não tão costum eiro como era no passado: define m uito mais a “convivência” dos cham ados “troncos velhos”, dos “cabeça véio” dos quais eles descendem, ao mesmo tem po em que marca um a m udança de conduta em relação àqueles, pois hoje eles se reconhecem como “mais civilizados”, ou ainda como sendo “as pontas de rama”, “os renovos”. Era tudo bêbado quando passava por aqui. [...] Aquelas infieira de tapeba bêbado. E era os maiores nomes do mundo! Ealavam palavrão alto. E toda vida eu gostei de respeico e aí eu grevava com eles (Zé “Tatú”, 66 anos, Trilho/Paumirim). E come rudo no mundo. Porque tudo quanto não presta eles come. Porque eu me lembro quando eu morava ali, eu morava confronte com efes. [...] Por uma hora dessas eles chegavam com um bocado de galinha velha podre, Essas galinha velha doenre das granjas, eles chegavam com um bocado. Um saco cheio. As bichas chega estavam roxa! Tinha umas assim dependurada no cordão já, tudo cheio de bicho. Boravam no fogo e comi­ am (Clcide, tapeba, 40 anos, Trilbo/Capuan). Isso era a história que até a Maria Lúcia foi para Brasília, chegou lá e disse que aqui mesmo não existia índio. [...] Porque aqui só existia bebedor dc cachaça e ladrão. [...] Mas graças a Deus, meus Deus, ladrão eu nunca vi não. Beber cachaça... Taí eu gosto dum trago. Hão vou mentir. [...] Ora quem é que não gostai A bichinha é boa! (Prazercs, tapeba, 56 anos, Capuan de dentro). C: [...] E o pessoal, que a gente passa por aí, aí eles dizem, “Olha os tapebanos, comedor de carniça!” H: Mas por que comedor de carniça? C: Ah, mas tinha de primeiro! Esse pessoal mais antigo mesmo comiam. Os

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antigos, os troncos velhos. Eles comiam coisa que achavam morto, dois, três dias às vezes, por aí a fora. Porco, chega era inchado! Aí eles arrastavam gado que morria assim, o trem matava e eles traziam. E comiam mesmo! Agora é que nao está mais, né? Os tronco velho morreu tudo. [...] Agora que o pessoal já estão mais civilizado, né? (Carminha, tapeba, 58 anos, Trilho/ Paumirim). O term o “tronco velho”, assim com o os seus equivalentes (“cabeça véio”, “raiz do pau”, “tapeba da gema”) e os seus desdobros (“ponta de rama” c “renovo”) representam um a m odalidade regional de expressão que abrange m uitas outras áreas e situações no N o rdeste do Brasil, fruto do processo natural de form ação de conceitos que opera na lin­ guagem. A dm itindo a natuteza metafórica fundam ental da consciência lingüística, interpretam os esses termos produzidos a partir de com para­ ções com elementos do m undo natural, principalm ente a flora (tronco, ram a, raiz, pau, renovo), com o expressões de um a certa concepção do tem po e das relações (de co n tin u id ad e e descontinuidade) entre as gerações, atualizando certos princípios classifícatórios. Trata-se de as­ sociações ativas de lugares com uns que reorganizam as concepções de natureza e cultura daqueles que as usam. Nessas m etáforas de m atriz biológica, vem os a expressão de um a certa concepção do tem po e da organização social que articula a tensão perm anente entre p h ilia (con­ tinu id ad e, junção, aproxim ação) e neikos (ruptura, discórdia, separa­ ção, distância). M uito diferente da nostalgia habitual, a opinião e a inform ação ne­ gativas sobre o passado dos tapebas, expressas nos depoim entos acima, em baralham o sentido habitual que se em presta à m udança social cm sociedades indígenas, na qual a alvorada esplendorosa se opõe ao cre­ púsculo decadente. Esse reconhecim ento da relação de estigma de que foram e são objeto —que, conform e alguns relatos, parece ter se vincu­ lado a um a ideologia e a um a prática de evitação —só se dá em virtude da concepção de que eles hoje gozam de um novo status-, são “reconhe­ cidos”, são “vistos”. Expressam assim o respeiro e o relativo reconheci­ m ento da cidadania que passaram a ter das autoridades públicas e p o ­ tentados locais, bem com o dos regionais com quem convivem, a partir da atuação da E quipe Arquidiocesana e dos esforços em preendidos no sentido de regularizar a situação fundiária local.

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O "reconhecim ento" dos tapebas: a Igreja, o Estado e os potentados locais

Uma etnografia com pleta das agências de contato está além dos objeti­ vos deste artigo. C o n tu d o um a breve descrição do encadeam ento dos fatos, um a rápida consideração dos efeitos que produziram e da inter­ pretação de tapebanos e demais regionais sobre estes perm itirão que eu conclua o trabalho am arrando as implicações teóricas da idéia dc orga­ nização social da diferença cultural e da identidade categórica com o fenôm eno processual e contextual, ligado a um determ inado estado de relações de forças na luta simbólica. A Equipe de Assessoria às C om unidades Rurais da Arquidiocese de Fortaleza com eçou a trabalhar em Caucaia em 1984, assistindo indis­ tintam ente a tapebas e brancos e tentando equacionar os problem as de ambos, índios e pequenos posseiros. Isso levou à criação, em 1985, da Associação das C om unidades do Rio Ceará, organização civil sem fins lucrativos, laica, com representação paritátia de tapebas e brancos des­ de a presidência até o conselho, passando pela tesouraria e secretaria. Em parre devido à sua própria form a de atuação m arcadam ente assistencialista n u m prim eiro m om ento e em parte devido a um a m udança de conjuntura — o naufrágio do Plano N acional de Reform a Agrária —, a E quipe logo se descuidou do projeto original de dar suporte tanto a índios com o a brancos n u m a luta com um pela terra. D e um a solução na qual o diálogo principal com o governo se dava com o extinto M IR A D /M inistério da Reform a Agrária, a E quipe A rqui­ diocesana concentrou seus esforços em equacionar a dem anda por ter­ ra propondo a criação de um a Área Indígena no m unicípio de Caucaia. Assim sendo, nesse processo alguns d en tre os tapebas com eçaram a estabelecer novas relações (com a ação da Igreja e com várias agencias governam entais) e novas alternativas de fu tu ro se abriram para eles. Eles se relacionaram e ainda estão lidando com a FU N A I e com o seu lento, burocrático e afunilado processo de reconhecim ento, dem ateação e regularização fundiária das terras indígenas. M as o que é mais im portante para a(s) sua(s) auto-im agem (ns) c a(s) imagem(ns) que os outros têm deles foi a transição de “tapebas im undos” para índios sujei­ tos de direitos e a reativação de vínculos com parentes efetivos e paren­ tes distantes.

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Nós não sabia que era índio. Sabia que era tapeba, mas esse negócio de índio ninguém sabia, né? Aí, quando surgiu uma conversa dessas, aí o pessoal ficou tudo abismado, com medo. Que nós nunca vimos na nossa vida. Nasci e nunca soube, nunca vi falar nesse negócio. [...] Aí foi que eu fui sabendo, tudinho dircitinho, que nós ainda era da raça. Aí fomos ajuntando, ajuntando, ajuntando a família todinlia. Aí pronto (Lúcia, tapeba, 47 anos, Trilho/Capuan}. Eu sabia que eu ainda tinha, assim, uma pitadinha de índio. Na minha família ainda tinha, assim, uma pitadinha de índio mas eu não sabia que era tanto, né? Aí, então quando o Bastião chegou me contando tudo, que o pessoal da Arquidiocese tinha descobrido que tinha tapeba e rinham se interessado por nós (Iracema, tapeba, 25 anos, Cutia). Ele chegou dizendo que andava procurando família tapeba. Aí eu pergun­ tei a ele, “Com quê que é seu caso com a família tapeba?” Aí ele disse prá nós - prá mim e prá Mãe Véia - que nós que estava escutando a ele, ouvindo a ele. Ele disse, “Rapaz, nós anda procurando vocês, porque voccs têm muito valor”. Agora, até hoje eu não sei que valor é esse (Zequinha “Sabiá", tapeba, falecido, Ponte 1/Soledade). Quando eu soube dessa história, que o Chico Passarinho me falou [...] “Zuíla, porque você não entra nesse negócio de comunidade?” Eu digo, “Olhe Chico, eu não tinha vontade de entrar não. O pessoal disse que isso é arrumação de índio. Sei lá se até o pessoal não tem vontade é de pegar a gente para mandar e desterrar, para matar por aí?!” O Chico disse, “É nada! É isso não. Isso é besteira tua. [...] Zuíla vai que é bom. O pessoal do rio Ceará estão bem devida c tu vive nesse trabalho de fábrica, trabalhando aperreada com esse horror de gente para tu dar de comer” (Zuíla, rapeba, 57 anos, Trilho/Paumirim). Em virtude da noção que os tapebas têm de serem índios, a Equipe Arquidiocesana, num prim eiro m om ento da sua atuação, desenvolveu esforços didáticos e pedagógicos especiais de “resgatar” a m em ória de­ les, através de inúm eros artifícios e práticas, tais como dramatizações, apresentações de teatro de bonecos, exposições de “conjuntos de carta­ zes educativos”, e da produção de um vídeo (Tapeba: resgate e memória de uma tribo). Essas iniciativas, por sua vez, escavam baseadas nos in ú ­ meros textos produzidos pela E quipe Arquidiocesana a partir de um a pesquisa d ocum ental e bibliográfica que desenvolveu sobre a história

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do Ceará, das populações aborígines e da ocupação colonial da área onde hoje se situa o m unicípio de Caucaia. Alguns desses textos tornaram-sc públicos pela im prensa, num esforço de atestar a continuidade histórica dos tapebas com as populações pré-colom bianas e a imem orialidade da ocupação, dando suporte à dem anda de reconhecim ento de seus direitos territoriais. Em outro esforço no sentido de constituir um princípio de unificação e um ponto de apoio objetivo para a ação de mobilÍ7.ação, foi instituído o dia 3 de outubro (véspera do dia de São Francisco) como “D ia dos índios Tapebas”, em virtnde do falecimento nesse dia, em 1984, vítim a de um ataque cardíaco, daquele que era tido como o últim o chefe indígena, o “cabo” Vítor, genro do “Perna-de-Pau”. C om essa “data de festa, missa e cam inhada das com unidades ao cemitério”, a Equipe queria fortalecer os laços de “com unidade” tapeba, dando forma e instituindo um a data para mobilizar o sentim ento que eles têm de constituir um todo.24 Essa me parece ser a dim ensão fundam ental do trabalho da A rqui­ diocese no sentido de engendrar um a luta coletiva pela reversão da correlação de forças simbólicas, oferecendo um passado para os tapebas se reconhecerem com o sujeitos de direitos. Nesse esforço, buscava-se inverter a equação tapeba “índio”, na concepção pejorativa corriqueira do term o (com todos os atributos desabonadotes aí im plicados), para a equação “índio tapeba” vinculado a um a tradição pré-colom biana e, conseqüentem ente, sujeito de um conjunto de direitos específicos, aí incluídos a proteção do Estado e o direito à terra. C ontribuíram para a projeção dessa definição da situação não só o agenciam ento da A rqui­ diocese, m as tam b ém as experiências concretas de conflitos que os tapebas tiveram com inúm eros proprietários, bem com o os contatos com órgãos governam entais e suas formas de atuação. V ítim as constantes das arbitrariedades da polícia e dos constrangi­ m entos impostos pelos supostos proprietários de terra, principalm ente na área do mangue do rio Ceará, os tapebas se viram na situação inédita

24 H á homologias entre esse elemento de "invenção de tradições" (H obsbaw n fií Ranger 1984) no processo de reforço dos vínculos tapebas e os elementos do processo dinâmico de constituição das “nacionalidades”; é a nação que faz a tradição (em bota se pretenda remodelar a nação com base nesta mesma tradição), chegando-se a ponto de se criarem línguas, feriados e hinos nacionais, bem como rimalizações periódicas em que essas representações objetais sáo encenadas (Mauss 1970; 280, Goldstein 1975: 175-6, e toda a tradição da análise gerativa que ressalta esse aspecto).

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de poderem reverter a correlação de forças, até então com pletam ente desfavorável a eles. Refiro-me aqui a vários embates: a luta pelo direito à pesca de crustáceos na área de mangue, à margem esquerda do rio Ceará, contra as pressões de José Gerardo Fiúza Lima, um dos condôm inos da Fazenda Soledade; a luta pela posse de terreno da m arinha à m argem direita do rio Ceará, ainda em área de mangue, contra a transferência do foro do Sr. Francisco de Assis Vidal para as indústrias T.B.A. (Técnica Brasileira de Alimentos) e CERAPELES; as denúncias contra a localiza­ ção da ram pa de lixo da com panhia de limpeza urbana do m unicípio nessa m esm a localidade; a luta pelo direito de os tapebas da Capoeira conrinuarem retirando areia do leito do rio Ceará, contra as violentas tentativas de intimidação dos vereadores Luís Cordeiro (PDS) e Vicente M achado (PM D B), que haviam arrendado a Fazenda Malícias, no interi­ or da qual corre o rio Ceará, ao proprietário Roberson Feitosa etn 1988. Destacam-se ainda; (a) o abaixo-assinado de 20 de maio de 1985 que os tapebas enviaram ao Presidente da República, à FU N A I e ao M inis­ tro da Reforma Agrária, expondo a confiitiva situação fundiária local e reivindicando medidas de proteção (rerra, saúde e educação), que cons­ titui o “D ocum ento O rigina!” do Processo FU N A I/B SB /1986/85, que trata da identificação das terras ocupadas pelo grupo indígena; (b) os efeitos de verdade e reconhecim ento oficial produzidos na instância lo­ cal, com o a declaração dc 20 de agosto de 1985, da Secrctatía de A dm i­ nistração e Finanças da Prefeitura M unicipal de Caucaia junto ao Servi­ ço de Patrim ônio da LTnião, dc que os tapebas residem no rio Ceará há mais de 50 anos, e a Lei n" 416, dc 22 de agosto de 1985, dispondo sobre a preservação do m angue do rio Ceará, em que os tapebas e as “com unidades” do rio Ceará são citados n o m inalm ente com o co-res­ ponsáveis no poder de fiscalização; (c) o fato de a imprensa ter apanhado em flagrante o industrial José Prudêncio, dono da CERAPELES, inici­ ando um a demarcação de terreno, abrindo picadas e fincando estacas na área de mangue, sem que o proprietário anterior tivesse entrado com o pedido dc transferência de foro para aquele e à revelia do conhecimento do IB D F; e (d) a “Surpreendam enral Parada Voadora a C am inho do Infinito”, passeata que, no dia 19 de julho de 1987, partiu do Circo Voador às 16 horas, percorrendo a Avenida Beira-M ar, em Fortaleza, contando com a presença dc várias entidades da sociedade civil que, àquela altura, co nstituíam o C o m itc Pró-Tapcba, ocasião na qual foi panfletada a carta-docum ento “Povo de Caucaia, Existe Indios no Cea­ rá. O s Tapebas ainda resistem". A passeata foi marcada para aquela data

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por ser o Rm do prazo de trinta dias da notificação de despejo expedida judicialm ente pela T B A /T ccnica Brasileira de Alim entos contra cinco das 64 famílias que m oravam na Vila N ova àquela época. E nesse m om ento que os tapebas se tornam um caso publico. Entramos aqui no dom ínio da esttatégia da mobilização, do manifesto, da nomeação pública e da “dialética da manifestação”, que detêm um lugar determ inante na imposição das percepções que estáo em jogo nas lutas pela identidade, porque realizam à vista de todos a objetivação e a oficialização de fato do grupo: a manifestação é ato tipicamente mágico pelo qual o grupo virtual, ignorado, negado, torna-se visível, manifesto, para outros grupos e para ele próprio, atestando assim a sua existência com o grupo conhecido e reconhecido, aspirante à institucionalização (Bourdieu 1989: 117-8). A discussão cm torno da identidade foi o elem ento que norteou o processo de reconhecim ento jurídico-adm inistrativo da AI Tapeba.25 Essa luta simbólica se explicitou e se acirrou ainda mais após a identificação da área indígena, no contexto do levantam ento fundiário e por ocasião do arquivam ento do processo, em 1988, determ inado pelo “grupão” —o G rupo de Trabalho Interm inisterial instituído pelo D ecreto 88.118/83 e depois modificado pelo D ecreto 94.945/87, instância com a atribuição formal de avaliar as propostas de criação de áreas indígenas. O levantam ento fundiário dos imóveis rurais de incidentes na AI Tapeba, realizado em agosto de 1987, foi um a etapa extrem am ente conflitiva, plena de situações de resistência ativa e passiva dos brancos à vistoria. M uitos destes, logo após o levantam ento fundiário realizado pela FU N A I c pelo IN CR A , venderam seus imóveis, outros lorearam e outros ainda levantaram benfeitorias. O cercam ento dc alguns açudes, lagoas c mananciais de uso com um para tapebas e regionais, a renova­ ção e a ampliação das cercas, o progressivo crescim ento dos loteam entos e arrendam entos (preferencialmente feitos a não-tapebas), enfim , a m u ­ dança na paisagem rural local contribuiu de form a decisiva para que os tapebas tivessem um a percepção mais clara dos significados e repercus­ sões do novo statiis ao qual foram alçados: índios sujeitos de direitos e

35 Para uma breve descrição do processo jurídico-administrativo de reconhecim ento da AI Tapeba, consultar o verbete “Tapeba" no Atlas tias Terras Indígenas do Nordeste (PETIPPGAS/M uscu Nacional/UFRJ: Rio de Janeiro, 1993). A AI Tapeba foi identificada cm outubro de 1986 com uma área de 4.675 ha. e 75 km de perím erro, por um G T constituído por um sociólogo, um engenheiro agrônomo da FU NAI e um representante da Equipe Arquidiocesana.

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garantias. Se Z equinha “Sabiá" tivesse vivido para testem unhar, teria se dado conta de “que valor é esse” que os tapebas têm . As terras é como eu já disse: não tinham assim esse tanto valor. Mas quando os proprietários souberam que a FUNAI vinha defender as terras dos tapebas, demarcar as terras dos índios tapebas, aí é que todo mundo se cuidou, quer dizer... O que eu quero dizer é o seguinte: até a FUNAI, ela pode ter vindo para cá para Caucaia com a boa intenção de ajudar os tapebas mas, pelo contrário, até o momento ela fez foi um grande mal. Porque todo mundo que tinha as terras soltas, o que fizeram? Cercaram! [...] Tinha cerca, mas era uma estaca velha podre aqui outra acolá. Aí quan­ do a FUNAI veio a primeira vez, que surgiu jornal e tudo, o que o seu Jairo fez? Cercou tudo com nove Pios de arame. Ali não tinha um pé de planta, era só mato. E o que ele fez? Assituou tudo de bananeira e de coqueiro. Ora, por que né? Cadê a FUNAI? (“Seu" Fernando, 60 anos, Capoeira). São dessa época as declarações da depurada estadual M aria Lúcia C orrêa (PM D B ), ex-prim eira dam a do m unicípio de Caucaia (19761980). E ntão p resid en te da C om issão de E ducação da A ssem bléia Legislativa do Estado do Ceará, ela contestou, do alto de seu título de bacharel em história, a existência histórica dos índios tapebas, m anifestando-se contra o “sigilo” em que vinha se processando a ação do Escado no m unicípio e defendendo, em declaração à im prensa, a se­ guinte tese: Nuuca existiu índios Tapebas. O que existe é um grupo de descendentes de um caboclo conhecido pela alcunha de “Perna-de-Pau” que habitou na área de Caucaia no início do século e que teria vivido maritalmente com duas irmãs, o que gerou um grupo racial fechado que foi habitar nas pro­ ximidades da Lagoa do Babaçu, na estrada da localidade de Garrote, a oesre da sede da antiga Soure, hoje Caucaia (O Povo, 17.08.87, “Política”, p. 04. “Maria Lúcia vê fantasia na origem dos índios Tapebas. Contesta demarcação das terras e teme provocação de conflitos”). Foi ram bém em virrude do levanram ento fundiário que o suplente de Senador pelo Ceará, Esm erino Oliveira A rruda Coelho, um dos condô­ m inos da Fazenda Soledade, protocolou um requerim ento ao Presiden­ te da FU N A I em outubro de 1987. N este, punha em dúvida a existên­ cia histórica dos índios tapebas, citando o argum ento da depurada M aria Lúcia, e considerava ilegítim a c ilegal a Portaria n° 2.384/87, que insti­ tu iu o G T para proceder ao levantam ento fundiário.

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[...] quando se passa ao exame dos fatos verifica-se que a pretendida área indígena, dc que trata a Portaria 2384/87, nlo passa de uma fantasia, alimentada pelo cardeal arcebispo de Fortaleza, Dom Aloísio Lorscheider, que pretende recriar, com sua fértil imaginação, nos mangues dc Caucaia, um Brasil pré-Cabralino, habitado por silvícolas. “Fantasia” é o term o usado tanto pela deputada quanto pelo suplente de senador. É forte a tentativa de deslegitim at o discurso pcrform ativo da Arquidiocese. Em face dos efeitos econôm icos e sociais produzidos pela ação do Estado e das implicações locais do processo de reconheci­ m ento da AI Tapeba (a virtual desapropriação de alguns imóveis rurais), acirraram-se as lutas pelo m onopólio da definição legítima das divisões do m undo social e de fazer e desfazer os grupos (Bourdieu 1989: 113). Essas lutas são repercussões do reconhecim ento, pelo “p ro d u to r das raxonom ias oficiais”, de que os tapebas são “índios”. O s em bares prosseguem até que, em abril de 1988, os dados refe­ rentes à A I Tapeba en tram em pauta para julgam ento do “g rupao” (cf, su p ra.). N a avaliação da E q u ip e A rquidiocesana, dos tapebas e do IT E R C E /In stitu to de Terras do Ceará, a questão estava resolvida: tra­ tava-se dc deliberar pela criação da AI Tapeba, acatando-se a proposta da FU N A I, visto que as autoridades estaduais confiavam n a decisão a favor do grupo, que havia o com prom isso do M IR A D de reassentar os pequenos posseiros incidentes na área indígena em duas fazendas desapropriadas em fevereiro e m arço de 1988 (Boqueirão dos C u n h a e C apim Grosso) e que era farta a docum entação que dava suporte ao consenso histórico sobre a presença indígena em Caucaia. O corre que, por deslize ou m anobra intencional na convocação da reunião do “grupão” para o d ia 20 de abril, o p resid en te da F U N A I a p re se n to u o valor das indenizações como sendo quatro vezes superior ao efetivam en­ te orçado. Após m u ita discussão, decidiu-se p o r m aioria sim ples reti­ rar o processo de p au ta e deliberou-se p o r u m a viagem à área para inspeção irt loco da situação.26

16 Essa estratégia do “grupão” dc começar a intervir na própria fase de identificação, questionando os relatórios dc identificação produzidos pelas equipes da FU NAI e proce­ dendo a vistorias in loco já vinha sendo adotada há algum tem po e obedecia à lógica de “cortar o mal pela raiz”, controlando o processo de demarcação desde o início, pois é a fase de identificação que definirá o desdobramento do processo, visto que esrabelece a confi­ guração básica sobre a qual sc dará toda a discussão ulterior.

INVENÇÃO OU RENASCIMENTO?

D epois da visita, bastante tum ultuada e plena de situações quixotes­ cas (Barretto FD 1993a: 620-23), o “grupão” voltou a se reunir em 20 de julho, retornando à pauta a AI Tapeba e outras Ais, todas em reaprcsenração e previamente visitadas pelos m em bros do G T I a fim de observar in loco a situação das mesmas. C o ordenada pelo então Presidente da FU N A I Romero Jucá, este, alegando dúvidas nos corpos dos relatórios anexados ao processo (o que teria justificado a vistoria in loco), base processual insuficiente (o processo seria farto em docum entação históri­ ca, mas insuficiente em dados sobre a presença dos tapebas em Caucaia neste século) e falta de recursos para a indenização, bem como indisponibilidade de terras para o assentam ento, “sugeriu a retirada da terra indígena Tapeba de pauta, sendo determ inado-se em resolução do G T I que a m esm a não fosse reconhecida com o imemorial e que se aguardas­ sem, para enriquecer o processo, novos dados acerca da etnia, quando então a FU N A I voltaria a analisar o caso” (Ata da 6a Reunião O rdinária do G T n° 94.945/87, de 20 de julho dc 1988, ênfase m inha), A Resolu­ ção n° 01 do “grupão” estabeleceu, que, “tendo em vista as dúvidas quaitto à etnia dos remanescentes, levantadas a parrir da docum entação apre­ sentada; [...] a situação atual da região em apreço; [,,,] a observação in loco [...] pelos m em bros do G T ” (ênfase m inha), a área proposta pela FU N A I não deveria ser considerada com o terra indígena. Percebe-se claram ente a am bivalência que o produtor das taxonom ias oficiais deixa transparecer na gestão que faz dos nom es e categorias de divisão do m undo social: há dúvidas quanto à “etnia” dos “rem anescen­ tes”, ao m esm o tem po em que aguardam-se novos dados sobre a mes­ ma. Ao classificar e tentar hom ogeneizar, o detentor do m onopólio da violência sim bólica legítim a abre brechas para que se reforcem, por sua apropriação, categorias socioculturais singulares. Essa não é um a bata­ lha m eram ente judicial. E um a batalha entre idiomas culturais entrem e­ ados às relações de poder em nossa sociedade (como observa Clifford, 1987, a respeito dos M ashpee). Não é difícil perceber que, a partir desse m om ento, o processamento da “identidade” dos tapebas como grupo social específico alcança outros "níveis de integração sociocultural” (Steward 1972: 43-63) que transcen­ dem a esfera local das relações pessoais.27 É na simultaneidade da relação Aproprio-me, aqui, de um m odo bastante iivre da noção de Steward. Este se refere a desenvolvimentos evolutivos de longo prazo, pelos quais formas socioctdturais locais vão progressivamente se integrando em /a formas cada vex mais inclnsivas, tratando-se por-

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entre esses níveis de integração e organização socioculturais que os tapebas serão processados, dada a “coexistência” (coevalness, nos termos de Fabian 1983) da atuação da Igreja, da intervenção do Estado, da econom ia c da competição por recursos, da mídia (que passa a assumir um im portante papel, como vimos, conferindo existência pública aos tapebas), dos con­ textos local, regional, nacional e transcultural, do m undo do etnógrafo e dos seus objetos, tudo ao mesmo tempo e de um a vez só. É im portante observar que não ocorreu um processo simples e linear de transição da relação de estigm a ao “reconhecim ento” — conceitochave que passou a ser usado p o r tapebas e demais regionais para ex­ pressar as novas relações e possibilidades históricas, bem com o o rela­ tivo exercício da cidadania de que os tapebas passaram a ser sujeitos. A “im agem pública" negativa dos tapebas ainda vigora c orienta a conduta das pessoas, tendo inclusive determ inado as formas de atuação assistencial da Equipe Arquidiocesana n u m prim eiro m om ento (Barretto F°, 1993: 583-ss.). E ntretanto um outro referencial dc identificação e reconheci­ m ento surgiu para os tapebas: os índios sujeitos de direitos e garantias, que hoje “são mais vistos”, “podem entrar em qualquer repartição que são bem recebidos”, “têm quem olhe por eles”, “têm o apoio da Igreja”. Situação absolutam ente impensável para os que eram considerados como animais, comedores de carniça, ladrões etc. Z equinha “Sabiá” foi des­ m entido pela velocidade m eteórica da conjuntura: Eles vieram a ter dirciro agora [...] dirciro dc entrar dentro de um órgão desse aí, dentro de uma Justiça Federal, foi agora. Mas quem que via anti­ gamente pisar nem num batente?! Que nada. Era para fora na hora. “Bota esse mendigo para fora!” Hoje eles entram lá dentro, sentam naqueles sofás, nas poltronas, ficam lá cheio de mordomias. [...] Era muito rebaixado, muiro. Era uma classe baixa que náo tinha nome. [...] Aí depois que surgiu a Arquidiocese, aí tinha de modificar tudo agora. Agora não existe mais esse nome para mangar de tapeba. [...] E com muito respeito agora (Zé “Tarú”, 66 anos, Trilho/Capuan).

tanto de um formulação caracteristicamente funcionalista. Emprego-a aqui com o intuito dc produzir estranhamenro. É como se, no caso dos tapebas, um a dinâm ica sociocultural m eteórica c fulm inante tivesse o mesmo efeito de um dem orado processo milenar, ou melhor, como se aquela dinâmica condensasse os elementos característicos deste processo. Com o sugeriu a ProP Alcida Rita Ramos, que mc fez ver esse aspecto, os tapebas resultam desse precipitado (no sentido químico mesmo do termo) de elementos que, de repente, se encontram.

INVENÇÃO OU RENASCIMENTO?

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Porque ficou visto, ficou muito prático. Este nome [...] já andou em todos os órgãos. Ficaram mais respeitado ainda. Ficaram com liberdade dc andar em certo tipo de órgão. Eles realmente já foram na FUNAI, na Capitania dos Portos. E aliás já foram cm muitos órgãos e eles agora são grande. Agora eles estão mais respeitados. Aí agora todo mundo quer ser tapeba (Graça, esposa de um tapeba, 34 anos, Capoeira). D e ralé a ator político, tudo rem ete aos sentidos contraditórios em­ butidos no termo “índio”: o significado até então inédito para eles e que levou alguns deles à ampliação dos seus horizontes existenciais, relacionando-os com os horizontes de outros sujeitos sociais e instituições; e o sentido pejorativo genérico com um entc implicado na palavra, que faz sobrevir um a relação a um conjunto fragm entado de condutas desabonadoras. A noção que alguns brancos usam para referir-se à diferença espe­ cífica dos tapeba, “sistema de ín d io ”, exprim e bem essa an tin o m ia e sim ultaneidade. Tendo acum ulado um universo novo de significados e inform ações sobre a categoria “ín d io ” (m uitos deles veiculados pela m ídia), para além da concepção regional pejorativa do termo, a parcela da população local que convive mais diretam ente com os tapebas usa a noção de “sistema de índio” para expressar o reconhecim ento de condu­ tas, práticas, modos e hum ores que julgam ser diferentes dos seus. Baseiam-se em filigranas de conduta não tão facilmente perceptíveis, tais como: o jeito de andar, o hu m o r volúvel e idiossincrático, o m odo de iC • A • » cum prim entar as pessoas, a convivência etc. Eu esrou cansado de estar aqui mais o seu Fernando, às vezes eu digo, "Essa família, dias passa pela gente, Fala com a gente, ou dá com a mão ou fala mesmo. No outro dia passa abalroando a gente, como se passasse por um pau aí”. O sistema do índio é esse mesmo. Não é raiva da genre nem nada. No dia que eles tão com aquela venera boa eles falam com a gente, no outro dia é com a cara desse tamanho, nem ligam quando passam. A natureza deles é que é aquela mesma, o ritmo deles, o clima deles é que é aquele mesmo (“Seu” Pedro, 45 anos, Capoeira). 28 A respeito de um grupo tam bém estigmatizado, os lapões, Eidheím já observava que a linguagem de símbolos que sc relaciona àclivagcm étnica é sutil e sombreada e, portanto, deve ser com preendida num contexto local, no qual nos defrontamos com a difícil tarefa de compreender o m odo local de avaliação da conduta, expresso em termos como os dos depoim entos transcritos a seguir (Eidheím 1969: 40). Apenas Eidhcim esqueceu de observar que o local é o ponto de encontro, rangenciamento e entrecruzamento de distin­ tos fluxos e vetores de origem extralocal.

A VIAGEM DA VOLTA

A gente vê muita televisão e aqui os tapebas têm toda a qualificação de índio mesmo, na própria pele, na cor, na qualidade deles. Eles não podem negar. Por isso foi quando a FUNAI chegou aqui [...] na hora que chegou, reconheceu logo como índio. [...] Se você chegasse aqui e fosse uma pessoa que quisesse prestar atenção [...] no jeito dos outros, pelo próprio você via. Pela própria convivência você ia logo cirando, analisando. Que aquela par­ te, aquele pessoal, eles tinham uma diferença de cor. [,..] Quem é que não vê o jeito dos tapebas para os que não são, Tem o jeito deles. São diferentes até na marcha, na cor. Em tudo eles são diferentes. [...] Muito fdcil da gente conhecer eles (“Seu” Fernando, 60 anos, Capoeira; ênfases minhas).

O an tro p ólog o e a "invenção d a cultu ra"

Baseando-me de novo no recurso aos depoim entos pessoais produzidos em cam po, gostaria de considerar as repercussões de um tipo parricular de intervenção, a do antropólogo, do seu m undo e dos seus objeros, nesse processam ento da identidade. Isso se justifica porque estamos lidando aq u i com fenôm enos sociais constituídos não apenas por diferenças culturais, mas tam bém p o r teorias da diferença cultural que distintos atores e agências trazem consigo. Transcrevo então um trecho de um a entrevista de grupo realizada em campo com três tapebanas: H: Mas, então, quando foi que voltaram a chamar vocês de rapebas? E: Eu comecei a ouvir falar de novo depois que eu vi o seu Henyo chegar por aqui. H; Eu?! E: Sim. Que o pessoal aí já tinham parado de falat nos tapeba. Aí, depois que chegou, aí que o pessoal começaram a falar de novo nos tapeba mesmo. H: Como assim? Depois que eu cheguei? E: Sim, fazendo essas pesquisas, né? Aí o pessoal tudinho começaram a falar. Aí passou todo mundo a querer ser tapeba. [Risos] H: Me explica. Me dá um exemplo. E: Assim, porque ninguém ouvia mais falar, de jeito nenhum. Aí, depois que o senhor Henyo chegou por aqui, foi que o pessoal começaram a falar de novo. Já rinham esquecido. [...] Porque ninguém não chamava mais a gente quando a gente chegava nos canto, nem nada. Aí, não chamavam mais a gente de tapebano nem nada. [...] Aí, gente que não ê nem dos tapeba quer participar dos tapeba. [...] Mas não era mesmo titia? Já não tinham deixado? [...]

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H: Quer dizer que com a Arquidiocese e a Associação das Comunidades também não foi assim? P: Sabe, o Pcdrinho [ex-membro da Equipe Arquidiocesana] fez muito dessas coisas também, sabe. E: Pois titia, eu ainda não rinha visto falar de jeito nenhum. Eu vi depois que ele chegou, que a comadre Lúcia levou ele lá na Vila Luciano, que ele estava fazendo essas pesquisa, foi que eu vi. P: Sim. O Pcdrinho fez muito esses trabalho. Agora não sei se é o mesmo, né? Mas das famílias era o mesmo jeito. [Prazeres faz referência ao censo genealógico] Agora, por aqui ele andou ate ali 110 João da Ana. Mas prá cá eu acho que ele não chegou a vir não. Ele não sahia andar. Mas o Pedrinho fez muito esse negócio. E: Mas eu nunca participei não. Que eu também sempre fui mais isolada da família. N: Também ela morava lá. Trabalha e só chega dc noite. Só está em casa dia de domingo. P: Toda vida ela só trabalha assim. Às vezes passava e ela não estava em casa, né? Mas o Pedrinho fez muito esse trabalho rambém (Elza, 39 anos, sua mãe Nazaré, 66 anos, e sua tia Prazeres, 56 anos, tapebas, Capuan de dentro). N esta rica entrevista, ou antes, conversa m antida com essas três m u­ lheres, fica explícito que a presença do pesquisador e o desenvolvimento de seu trabalho, bem como a dinâmica e as formas de abordagem privile­ giadas devem ser atentam ente considerados como elementos catalisadores e significativos na atualização histórica da fronteira socialmente efetiva. O depoim ento de Elza é im portante, pois perm ite perceber as diferen­ ças entre a atuação da Equipe Arquidiocesana e a m inha (o desenvolvi­ m ento do trabalho de campo num a situação complexa como esta), indi­ cando que as implicações de ambas não são uniformes nem totalizadoras. G eralm ente, ao se falar do efeito e das repercussões da presença e/ou atuação de um a agência, tom a-se com o pressuposto que essas im plica­ ções se fazem sentir para toda a coletividade sujeita ao agenciamento e que produzem um resultado uniforme. Ao lado de muitas outras, a situa­ ção de Elza m ostra, ao contrário, que esse agenciam ento opera sobre condições concretas m uito específicas, existindo pessoas na situação em apreço que, dado o seu ritm o próprio de vida (Elza trabalhava como em pacotadora de biscoitos na Padaria de Caucaia, num a relação de tra­

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balho formal) e a intensidade de relações com seus parentes ("eu sempre fui mais isolada da família”), mal sabiam da atuação da Arquidiocese, da FU N A I c demais agências governam entais, bem como da presença de um pesquisador na área. Os percursos, trajetórias, formas de abordagem e objetivos privilegiados por um são distintos dos atualizados pelos ou­ tros. D aí porque as implicações dessas atuações se farão sentir mais em algumas localidades, e em determinadas pessoas, do que em outras, comprom etendo-as com as pautas e os padrões de conduta gerados (Prazeres foi representante da “com unidade” lagoa do Tapeba na Comissão Geral da Associação das C om unidades do Rio Ceará). Assim, creio que seria im portante recuperarmos o sentido de “inven­ ção”, não tan to nos term os de H obsbaw n — em bora este perm aneça im portante, como fica claro a partir do agenciamento da Arquidiocese — mas sim nos termos propostos por Wagner, ou seja, de que invenção é cultura (Wagner 1981). O antropólogo torna as suas experiências com­ preensíveis, para si m esm o e para os outros em sua sociedade, perce­ bendo-as e com preendendo-as em termos de sua própria vida familiar e das categorias de sua cultura —um a das quais (e fundam ental) é a própria categoria cultura. Ele inventa as suas experiências como "cultura” (: 356). O antropólogo aparece assim, ao lado das políticas governamentais de classificação, como mais um agente da disciplinarização e da objetificação. A sua prática e os conceitos que traz consigo, contudo, sofrem um intenso escrutínio “interno” da parte dos “nativos” no contexto do encontro etnográfico e para além deste. O controle sociotécnico sobre o sentido e o exercício da indianidade, sobre a definição de índio e dos tapebas com o tais e sobre a sua diferença genérica e/ou específica em term os socioculturais é em baralhado localmente. Estaríam os, então, diante de um a “invenção”, um simulacro de um passado m orto, um a recuperação artificial, um sinal de decadência cul­ tural, ou um genuíno renascimento cultural? Se optarm os pela prim eira alternativa, só nos restaria adm itir, com o Sahlins, que de fato alguns povos têm toda a sorte ao seu lado, visto que têm o privilégio de reser­ var o term o “Renascim ento” a um período da sua história, no qual “um bando de intelectuais nativos [...] se reuniu e com eçou a inventar suas tradições e a si próprios, ao tentar ressuscitar o conhecim ento de um a cultura antiga, que eles alegavam ser um a realização de seus ancestrais”. (Sahlins 1993: 7-8).

in v e n ç Ao o u r e n a s c im e n t o ?

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C o n clu são

Em que pese a m inha tentativa de caracterizar as forças mais localizadas como distintas daquelas que só depois vieram a desem penhar um papel ativo na redefinição da situação local (a Igreja, as agências do Estado, o antropólogo), creio que, dada a situação histórica presente, é fu n d a­ m ental considerar que esses grupos e instâncias em interação (tapebas, população local, E quipe A rquidiocesana, FU N A I, outras agências do Estado, antropólogo) revelam um sistem a mais inclusivo de relações sociais, que coloca em xeque a distinção local/extra-Iocal. Isso significa dizer que as estruturas e organizações, bem como as práticas e os dis­ cursos desses grupos, não podem ser com preendidos à parte do campo político intersocietário em que se tangenciam . Longe de ser algo sincrético o u substancial, um terceiro sistem a que sup o n h a a partilha e a com unhão de representações e condutas por parte dos atores e agências envolvidos, um cam po político intersocietário constitui-se pela presen­ ça fundadora de perspectivas diferentes para cada um dos atores e agên­ cias, não excluindo a existência de um a leitura m últipla das caracterís­ ticas demarcadoras da fronteira —entre e pelos diferentes atores e agên­ cias (Oliveira 1988: 266-7). Trata-se de um a noção de sentido operacional que nos ajuda a pensar no processam ento paralelo e multilocalizado da id en tid ad e, bem com o no peso e na legitim idade diferenciados que esses diferentes agentes possuem nesse campo. A identidade categórica é determ inada, presum ivelm ente, por um a orig em e um background de experiências e trajetó rias, de hábitos, costum es e estilos de vida, reconhecidos coletivam ente com o com uns e distintivos. O faro de a presença e a atuação da A rquidiocese terem deflagrado um a retom ada de contatos com parentes efetivos e distantes, co ntribuindo para adensar a conexidade das redes sociais e reaglutinado as pessoas a partir da categoria de adscrição foi de fundam ental im por­ tância para que os tapebas reatualizassem a concepção de si mesmos com o um a coletividade distin ta. Só que isso se deu em várias bases: não apenas com base na configuração histórica particular que estava im plicada no agenciam ento da Arquidiocese face aos tapebas, mas tam ­ bém com base nas m últiplas representações que eles têm de si próprios e, especularm ente, com base nas representações que corriam a seu respeiro (sua im agem pública), das quais eles tinham conhecim ento. O im previsto histórico, a conjunção abrupta de elementos carregados de força política e sim bólica n u m a dada conjuntura, põe em m ovim ento

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processos que tom am os próprios tapebas de surpresa. A isso deve se acrescentar o potencial transform ador do nosso m odesto conceito de cultura com o ferm ento do conteúdo desse caldeirão. Assim sendo, os tapebas estão postos hoje em um contexto de um a pluralidade de alternativas, o que faz com que viver como tapeba e falar e pensar em tapebas seja referir-se a um a variedade de sentidos, recortálos e pensá-los corno grupo de m odos distintos. Em virtude da situação atual, e dependendo do contexto de interação e dos agentes implicados neste, os tapebas podem agir e vir a ser considerados e tratad o s de diversos modos, entrando ora um ora outro elemento na percepção da diferença cultural. É como se as práticas, as condutas, as representações, os discursos performativos, enfim, todos os recursos da paisagem social intercambiáveis nas situações de interação quotidiana, e que dão sentido à atualização histórica e concreta da fronteira, só possam ser com preen­ didos a partir da interdependência e do equilíbrio de forças atual. É nesse sentido que falamos de um a identidade categórica cujo sen­ tido só se pode apreender contextual e situacionalm ente, a partir de um nexo de relações historicam ente dado e situações concretas de interação. T ra n sc e n d e n d o u m a análise q u e se d e te ria em elencar os fato res constirurivos de um a identidade substantiva, vista em si m esm a como um foco gerador de critérios distintivos e de pautas de relacionam ento (um m odelo que o indivíduo deveria repor constantem ente no decorrer de sua existência), penso a noção de identidade categórica com o p ro ­ cesso e produção de um “agenciam ento coletivo de enunciação” (G uatari e R olnik 1993: 30-1): potência e atualização de vircualidades diferente­ m ente a cada vez. A dm irir que a diferença cultural é socialm ente orga­ nizada significa reconhecer que, mais do que a identidade, é a possibi­ lidade de troca que constitui o valor fundam ental a ser sustentado nessa situação. Afinal, com o diz Nietzsche, a identidade é o princípio do ser m orto, não da vida.

INVENÇÃO OU RENASCEM ENTO?

Ro d r ig o

de

A zeredo G rünewald

Etnogênese e 'regim e de índio' na Serra do Um ã‘

Dc um a m aneira geral, quando se faia de índios no Brasil, logo se pensa nos xinguanos ou em tribos que habitam recônditos am azônicos, A imagem mais freqüente é a de “selvagens”, “aborígenes”, “autóctones”, que se apresentam a nós, “ocidentais” e “civilizados”, como exóticos em sua língua, seus trajes, seus costumes. C o n tu d o existem índios que só falam o português, que se vestem de form a idêntica aos m em bros das populações regionais im ediatam ente envolventes e que, ainda por cima, têm costum es m uito próximos aos dos regionais. Adeptos da teoria da aculturação pensavam os índios do sertão n o r­ destino como com unidades que no contato com a frente de expansão pastoril foram paulatinam ente perdendo seus costum es tradicionais e incorporando os costumes dos brancos, guardando todavia um a identi­ dade m ínim a que lhes garantia o status de grupo étnico. N a verdade,

As idéias contidas no presente texto são extraídas de parte de m inha dissertação de mestrado '“Regime de fndio’ c feccionalismo: os Atikum da Serra do U m a ', defendida no Museu Nacional/UFRJ em 20 de dezemhro dc 1993, G ostaria dc salientar, entretanto, que meu trabalho de campo na Serra do Umã realizou-se antes mesmo do início do curso dc mestrado, com m inha inserção no Projeto Estudos Sobre Terras Indígenas no Brasil (PETÍ) e, mais especificamente, através do projeto “Fronteiras étnicas: território e tradi­ ção cultural” (Oliveira Filho s/d), coordenado pelo Prof. João Pacheco de Oliveira, que vinha tom ando por objetivo crucial —e a partir de um ponto de vista comparativo entre grupos indígenas das regiões Norte e Nordeste - “delinear m elhor a operatividade de conceitos como os de campesinato comunal e de indianidade para desvendar m elhor a organização econômica destes grupos e focalizar a especificidade do m odo de vida que a FU NAI im põe aos grupos atingidos pelo regime tutelar” (Oliveira s/d: 244).

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tais grupos eram vistos com o resíduos de populações indígenas e seus m em bros com o remanescentes indígenas. Em c o n tra p a rtid a , ao se tro c a r a noção de ac u ltu ra ção pela de etnogênese, pode-se não visualizar grupos que sofreram perdas, mas sim perceber a formação de novos agrupam entos étnicos que foram se consticuindo p o r entre descontinuidades históricas e assum indo a de­ nom inação de índios, um a vez que seus antepassados eram assim desig­ nados e que assim p o d iam ter acesso à terra e o b te r assistência da União. O caso dos índios de A tikum -U m ã m ostra bem esse processo: eles não são um caso de perdas que um grupo específico sofreu ate se tornar resíduo de um a cultura aborígene prévia; ao contrário, trata-se de um agrupam ento de pessoas de diversas origens étnicas (índios des­ cendentes de diversos grupos distintos, negros e brancos) que, ameaçadas de perderem seu recurso básico (a terra), resolvem constituir-se como com unidade indígena e atribuir a si próprios tradições, tais como o ór­ gão tu to r exigia para o reconhecim ento de reservas indígenas no N or­ deste. C om esse exem plo, destaca-se o engodo de se pensar os índios apenas com o aqueles que guardam um a cultura aborígine - e a isso eu cham o de ilusão autóctone — pois grupos indígenas surgem situacionalm ente da mesma forma que suas tradições podem ser situacionalm ente construídas. O que eu pretendo aqui é justam ente alcançar uma compreensão de um a comunidade indígena sertaneja em term os de sua etnicidade, ou seja, tentar perceber como os A tikum -U m ã se inserem no conjunto mais am plo da sociedade regional com o um agrupam ento discreto, singu­ lar. Sabendo que a “com unidade indígena de A tikum -U m ã” 1 se for­ m ou apenas na década de 1940, este texto estabelecerá a etnicidade na Serra do U m ã (sertão pernam bucano) tom ando por base a gênese do grupo étnico, processo este fundam ental para o enten d im en to do fenôm eno em questão. M as antes cabe ap o n tar alguns dados gerais q u an to à situação atual da área indígena A tikum e ao povoam ento da Serra do U m ã.

1 Uso aspas para comunidade indígena de A tikum -U m ã porque é assim que se referia ao grupo o líder A bdon Leonardo da Silva.

A VIAGEM DA VOLTA

A áre a indígena

Com um a população de quase quatro mil habitantes2 e oficialmente divi­ dida em vinte aldeias3, a área indígena Atikum encontra-se estabelecida na Serra do Umã4, a qual, objeto de minha pesquisa de campo, situava-se no disttito de Carnaubeira5, m unicípio de Floresta, sertão pernam bucano. Em agosto de 1993, Portaria do Ministério da Justiça resolve delimitar a área indígena com 15.276 ha, sem, contudo, determ inar - como seria de costume - a proibição de ingresso e permanência de estranhos (não-índios) na m esm a sem autorização prévia. N o presente texto, considero a situação administrativa da área indígena no início de 1991, ou seja, sem considerar a emancipação de C arnaubeira e percebendo apenas a área identificada pela FUNAI. Cabe tam bém ressaltar que a região como um todo é marcada por situações de extrema violência não apenas cm razão das invasões na área indígena e à rivalidade, ou melhor, ao conflito belige­ rante entre as famílias Ferraz e Novaes de Floresta, que brigam pelo poder municipal desde o início do século, como tam bém pela presença da maco­ nha na região. É a presença cada vez m aior desra que vem tornando a região ain d a mais violenta. N a verdade, vários m unicípios do sertão pernam bucano - inclusive Floresta —estão cada vez mais se dedicando ao cultivo dessa planta e tornando a região a maior produtora mundial. Espe­ cificamente em relação à Serra do Umã, esta — e apesar de os índios não utilizarem a m aconha cm seus rituais e tampouco fazerem uso dessa planta cotidianam ente - não fica para trás no quadro acima m encionado, isto é,

2 Segundo o Atlas das Terras Indígenas do Nordeste (PETI 1993), que se baseia em docum entação da FU NAI de 1989, a área indígena teria 3.582 habitantes. 3 Não há contudo qualquer concordância quanto ao núm ero de aldeias csuas denom ina­ ções tanto por parte do autor, como da FU NAI e dos próprios índios. O term o aldeia foi estabelecido pelo SPI/FUNAJ, que vem, para melhor m apear a área, num erando aldeias que são cham adas de sítios pelos habitantes da Serra. 4 O Atlas Terras Indígenas do Nordeste aponta que os A tikum estão situados na Serra das Crioulas. Isso porque segundo a cartografia oficial da região o complexo de serras (Serra Umã, Serra G rande, Serra das Crioulas etc.) onde está inserida a área indígena leva essa últim a denominação. Contudo, para os índios, ral complexo de serras é chamado de Sena elo Umã no sentido de pertencim ento ao grupo Umã. 3 Em outubro de 1991, ocorre a emancipação política de Carnaubeira, que torna-se m unicípio com o nome de Carnaubeira da Penha, contendo dois distritos: Barra do Silva e O lho d ’Água do Padre, este últim o um a aldeia da área indígena Atikum .

ETNOGÊNESEE "REGIMEDE ÍNDIO" NA SERRA DO UMÀ

os plantios de m aconha vêm cada vez mais sendo efetuados e têm trazido uma violência extra para um a área já conturbada. Bem, antes de tratar particularm ente do (duplo) objeto deste texto (a etnogênese dos A tikum e a m anutenção da etnicidade aí gerada), gosta­ ria de focalizar rapidam ente a Serra do U m ã no que diz respeito a seu enquadram ento no povoam ento dos sertões nordestinos.

A Serra do Umã

P rim eiram ente, cabe m encionar que já a p a rtir do século XVI dois fatores - o sistema de doação de sesmarias e a introdução e desenvolvi­ m en to da criação de gado no N o rd este - caracterizam a experiência colonizadora6 dos sertões nordestinos, a qual teve como objetivo prin ­ cipal a ocupação efetiva da terra a ser transform ada em pastagens. E assim — e d iante da contrariedade indígena — que se estabelecem as guerras justas con tra os índios de corso7. Sobressaíam-se aí os Cariris,

6 Para tratar com a idéia de colonização, sigo a evolução do pensam ento dc Bosi (1992), para quem as “palavras cultura, culto c colonização derivam do mesmo verbo latino colo" (: 11), o qual “significou, na língua de Roma, eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo. U m herdeiro antigo de colo é íncola, o habitante”(: 11). Além disso, a “ação expressa neste colo, no cham ado sistema verbal do presente, denota sempre alguma coisa de incom pleta c transitivo. É o m ovim ento que passa, ou passava, dc um agente pata um objeto. Colo é a matriz, de colonitt enquanto espaço que se está ocupando, terraoupovo que se pode trabalhar esujeitat” (: 1 l).E ain d a, “como se fossem verdadeiros universais das sociedades hum anas, a produção dos meios de vida e as relações de poder, a esfera econômica e a esfera política, reproduzem-se e porenciam-se toda vez que se põe cm m archa um ciclo dc colonização" (: 12). C ontudo “o novo processo não se esgota na reiteração dos esquemas originais: há um plus estrutural de dom ínio, há um acréscimo de forças que se investem no desígnio do conquistador emprestando-lhe às vezes um tônus épico de risco e aventura. A colonização dá um ar de recomeço e arranque a culturas seculares” (: 12). 7 Denom inavam -sc índios de corso aqueles que assaltavam fazendas dc gado, engenhos e outras unidades de produção. N a opinião de Albuquerque, "é im portante, no entanto, notar que esses ataques etam realizados por grupos indígenas ameaçados pelas frentes p ioneiras coloniais, por deslocamentos produzidos por crises que ameaçavam a sobrevi­ vência tribal, além do fato de que nas formações sociais indígenas inexistia a noção de propriedade privada sobre os meios de produção. C ontra os índios de corso decretavamse as guerrasjustas que foram legalizadas a partir de 1611. Tal classificação foi comum ente invocada para organizar expedições punitivas” (Albuquerque 1984: 30-1).

A VIAGEM DA VOLTA

que ocupavam um a faixa de terra que ia do São Francisco ate a Serra do Ibiapaba, no Ceará. A prim eira m etade do século XVTII se caracterizou pela escravidão indígena e pela ad m inistração de missões p o r padres jesuítas. Já na segunda m etade ambas foram abolidas e foi criado o cham ado D iretório dos índios (para prom over a integração dos índios à sociedade coloni­ al), extinto no século XX. N o entanto, as cham adas guerras indígenas prolongaram -se d urante toda a etapa colonial e som ente no início do século X IX os serrões do Pajeú (onde está inserida a Serra do Umã) tornaram -se mais pacíficos. D e fato, este foi o século dos aldeam entos na região, quando os índios bravios, já cansados, começaram a entregar suas arm as e se estabelecer em missões com o a do O lh o d ’Á gua da G am eleira (atual aldeia O lho d ’Água do Padre, na Serra do Umã), a do Jacaré e a de Baixa Verde. Já na passagem do século XIX para o XX, as idéias de “progresso” e “civilização” com eçam a ser levadas adiante. Em 1910 é fundado o Serviço de Proteção ao ín d io (SPI), m arcado ideolo­ gicamente pela “idéia dos postos de atração e dos postos de pacificação para se colocar os índios em contato com o civilizado” (R ondon 1947). A ação protecionista assim se desenvolveu duranre pelo m enos as p ri­ meiras décadas do presente século; ainda na prim eira m etade do mes­ mo, vários postos indígenas - inclusive no N ordeste, dentre os quais o Posto Indígena de Alfabetização e Treinam ento A ticum —foram funda­ dos apenas com o intu r de prestar assistência às com unidades. G rupos indígenas de várias denom inações habitaram a Serra do Umã, porém a sua localização geográfica não se restringiu à Serra, pois vários foram os que procuraram as serras sertanejas, fugindo dos cam inhos do gado. Sendo ou não nôm ades, esse grupos se deslocavam m uito pelos sertões. Foram os Umas — provavelm ente um grupo C arirí8 — os que mais se destacaram na ocupação da Serra do Umã. A partir da compilação de fontes históricas, pode-se estabelecer, por exemplo, que por volta de 1696 os Umas perambulavam pelo vale do rio São Francisco; em 1713, estavam na ribeira do Pajeú; em 1746, em Alagoas, entre os rios Ipanema e São Francisco; em 1759, em Sergipe; em 1801, foram aldeados em Olho d ’Agua da Gameleira, de onde se dispersaram

Digo “provavelmente”, por haver aurores que classificam os Umas com o um grupo de língua isolada (Loukotika 1968). Além disso, devo informar que os U m as foram deno­ m inados por diversos emônim os: H uanoi, H uam oi, Huam ães, H uam ué, H um ons, Umã, Umâes, U m an, Umãos, Urum â, Woyana, enrre outros.

ETNOGÈNESE E "REGIME DE ÍNDIO" NA SERRA DO UMÃ

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em 1819; em 1838, são encontrados nas proxim idades de Jardim , no Ceará; em 1844, encontram-se novamente próximos ao antigo aldeamenco, mais especificamente em Baixa Verde. Daí cm diante cessam as informa­ ções sobre esses índios, que reaparecem somente na década de 1940 rei­ vindicando o reconhecimento de suas terras. Vale lembrar que, quando aldeado, o grupo Um ã em 1802 foi obrigado a dividir o aldeamento com os grupos Xocó e Vouvê; estes sempre se manriveram próximos aos Pipipãs (seus inimigos, aldeados em 1804 na aldeia Jacaré, Serra Negra). Em 1852, ainda existiam “índios bravios” na Serra do Um ã ou em suas imediações. Cabe ressaltar tam bém que os índios aí estabelecidos eram conheci­ dos por acolher negros fugidos que, ao escaparem da dom inação dos colonizadores, procuravam refúgio nas serras. D e fato, segundo Ferraz, a Serra da Caçaria, próxim a à do A rapuá (m unicípio de Floresta), “é quase to d a povoada p o r negros, de longa data, que lá se constituíram num a espécie de quilom bo, desde a época da escravidão” (1957; 22). E o “m esm o fenôm eno se pode observar na Serra do Um ã e na dos C riou­ los. N a do U m ã eles se mesclam com facilidade com o grupo indígena ali existente, o que sc poderá verificar à simples análise dos tipos hum a­ nos do aldeam ento A tikum -U m an do alto da serra” (; 22). Tal mestiçagem fez com que essa “tribo” ficasse conhecida “pela designação de ‘os ne­ gros da Serra do U m a n ” (; 33). Se em m eados do século passado cessam informações docum entadas sobre os índios que habitavam a Serra, na década dc 1940 deste século assistiu-se, em contrapartida, ao (res)surgimento de um a “com unidade indígena” que se autodenom inava A tikum -U m ã e reivindicava seus di­ reitos sobre a Serra do Umã. O ra, se sabemos que Um ã era um agrupa­ m ento étnico, o que dizer de Atikum? Infelizmente não é possível estabelecer um a genealogia —a não ser no sentido estabelecido por Foucault (1990), como será visto adiante — do grupo étnico A tikum -U m ã. Q uanto ao nom e “Atikum ”, a primeira refe­ rência data da época da "formação da aldeia” (1940), quando, em um a comunicação interna do Serviço de Proteção ao índio (SPI), o chefe da 4 1 Inspetoria Regional deste órgão, referindo-se ao posro indígena da Serra do Umã, com enta que o prim eiro nom e do posto foi AticunV,

s N a verdade, o citado chefe Sr. Raim undo Dantas Carneiro afirmou, durante entrevista realizada em sua residência em 26 de novembro dc 1991, que o primeiro nome do posto indígena foi “Governador Estácio C oim bra”. Por outro lado, em docum ento do SPI de 1961, Raim undo sc refere ao mesmo pelo nom e de Posto Padre Nelson.

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provavelm ente em razão de um grupo com o qual os “U m ans” teriam se m esclado e o qual devia se cham ar “A ticum ” o u “A raticum .1(1Para os índios, por outro lado, A tik u m " não era um a “tribo”, mas um persona­ gem (epônim o da aldeia) que, para alguns (pois vários não souberam inform ar nada a respeito, ou diziam apenas se tratar de um índio), era filho de U m ã, “o índio mais velho” desse grupo, cujos m em bros em hipótese algum a se consideram índios A tiknm -U m ã, mas sem pre índi­ os cie A tikum -U m ã. N ão há contudo quaisquer lem branças (míticas ou não) acerca desses ancestrais.12 V oltando ao A tikum , segundo alguns depoim entos, este foi casado com um a índia de Tuxá13, tendo o casa­ m ento se realizado na Pedra do G en tio 14 — o que justifica, segundo os inform antes, o fato de os Tuxá terem ajudado os A tikum a increm entar sua prática no toré15 por ocasião do reconhecim ento oficial desse últi­ mo grupo por parte do SPI. Por fim, outro dado aponta para o fato de ter sido A tikum um indivíduo (que se tornou um m ito para a tribo): todos os índios se consideram descendentes de A tikum , o qual é sem ­ pre louvado nos rituais com o um patrono espiritual da aldeia. Todavia, levanto ainda a hipótese de ter sido A tikum um encanto de lu z16 que tenha “descido” d urante um ritu a l17, m obilizando alguns índios m ais

10 Segundo Galvão (1897), “Araticum" era um lugarejo do m unicípio de Floresta, Já para Loukotka (1968), “Aticum” ou “Araticum” é a língua extinta de um a tribo que agora fala apenas português, em Pernambuco, perto de Carnaubeira. 11 Uso a grafia Atikum, tal como se encontra nos documentos da FUNAI e também n a sede do posto indígena Atikum. 12 Existe um im portante depoim ento quanto à “história do tem po da revolução” (provávelm ente a Revolução da Serra Negra de 1823)» no qual se aponta não apenas para a dispersão dc índios para os lugares citados, com o tam bém para a família que ficou com a descendência de Atikum. Ver Grünewald (1993). 13 U m grupo de Rodelas/BA. 14 Lugar sagrado na aldeia Jatobá, Serra do Um ã, onde se realizam trabalhos de O urícim , Festa “tradicional” de caráter sagrado, na qual se dança em círculos ao som de maracás e cantigas (toantes) e há intervalos para se louvar Jesus Cristo, santos católicos, mestres do catimbó e ancestrais míticos. 16 Entidade espiritual positiva (a princípio, o espírito de um índio já m orto) que baixa nos rituais durante o fenômeno da possessão. 17 Baseio-me aqui no seguinte toante; "Mestre A tikum ! seu cavalo está selado/para.. J venha para sua aldeia!... Apesar de os Atikum não chamarem seus m édiuns de cavalos,

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ativos politicam ente, e sugerindo o nom e para a aldeia18 - inclusive, segundo o então pajé Alcindo Rosendo da Silva, “a história de Atikum U m ã é que o chefe velho dos índios se cham ava Umã, aí ficou Serra U m ã”, e, se cham am “A tikum é porque a ciência descobriu A rikum U m ã”. Foi a “ciência dos índios” que descobriu através dos “trabalhos". Q uanto ao nom e “U m ã”19, por outro lado, este só é m encionado pelos índios soh duas circunstâncias: o u para definir seu lugar de origem (ter nascido na Serra do U m ã20), ou para m elhor definir sua condição étnica (ser índio de A tikum -U m ã21). Bem, se me estendi de form a aparentem ente estanque tentando situ­ ar condições históricas que afetavam os índios da região (e buscar um a origem do etnônim o A tikum ), isso foi apenas com o objetivo de m os­ trar que os A tikum -U m ã não podem ser pensados como um grupo que c hoje com o fora outrora. Além disso, um a vez que a co njuntura pre­ sente não pode ser contrastada com situações passadas difusas, não se pode inserir o grupo em um processo, em um continuam de tem po, determ inando organizações e padrões de cultura anteriores e posterio­ res aos períodos concretos (como fez G eertz em seu Negara). E ntretanto um a apresentação histórica não perde sua validez no sentido dc m ostrar como é impossível pensar nos A tikum como um grupo autóctone, que sobreviveu aos diversos conflitos estabelecidos ao longo de todo proces­ so de colonização. N a verdade tal apresentação histórica inclusive m os­ tro u que o atual grupo A tikum -U m ã tam pouco pode ser considerado como remanescente unicam ente dos antigos Umãs, pois, com o foi visto, tal grupo se m isturou p o r vezes a outros (inclusive de negros) na tenta-

pcrccbo um a ambigüidade nesse term o. Além disso, a expressão Mestre é típica do catimbó c Atikum é chamado (para descer nos rituais) da mesma forma - e, por vezes, conjuntam ente - que as entidades do citado culto. Para semelhanças com o catimbó, ver Cascudo (1979). 18 Com o exemplo disso ver Barista (1990); mais especificamente o capítulo “A descoberta da aldeia". 15 Em detrim ento da grafia “Uman”, tal como encontrada em diversos documentos antigos, prefiro utilizar “U m ã”, como se extrai de docum entação mais recente. Isso porque nos docum entos mais antigos tal referência sc encontra escrita de várias formas. 20 Perceba-se bem que se fala Serra do Umã, como se a Serta “pertencesse” a Umã, e não Serra de Umã. 21 Isso porque é habitual referir-se a eíes sim plesmente como índios A tikum, inclusive na documentação da FUNAI.

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tiva de sofrer menos as agruras da colonização. Ao equívoco daqueles que legitim am a presença indígena linearm ente, evoco a idéia de ilusão autóctone, apontando justam ente para a possibilidade de existência de com unidades indígenas que possivelmente surgiram - por entre descontinuidades históricas - a partir de alianças e coalizões sob situações de conflito.

Prem issas básicas: h istó ria, cultura e trad ição

Se até o m om ento apresentei a área indígena e o povoam ento da Serra do U m ã n o in tu ito de fo rn e c e r alg n n s d a d o s p a ra a c o n stru ç ã o etnográfica e teórica que está por vir, gostatia agora de expor algumas idéias quanto ao uso de conceitos com o os de história, cultura e tradi­ ção, a fim dc justificar o suporte epistemológico deste texto. Já m encionei anteriorm ente que não é m eu objetivo estabelecer um a genealogia do grupo étnico A tikum -U m ã. N a verdade, ao pensar no passado —e no presente - dos habitantes da Serra do Umã, o que tenho em m en te é a h istó ria dc um “cam po social”. C om o ap o n ta Pierre Bourdieu (1989b): Todas as formas dc identidade colecdva reconhecida [...] são produto de uma longa e lenta elaboração coletiva: não sendo completamente artificial, sem o que a operação de constituição não teria sucesso, cada um destes corpos de representação que jusrificam a existência de corpos representa­ dos dotados de uma identidade social conhecida e reconhecida existe por todo um conjunto de instituições que são outras tantas invenções históri­ cas. [...] Esta representação, produto das lutas que se desenrolam, no seio do campo político e também no exrerior dele, a propósiro sobretudo do poder sobre o Estado, deve as suas características específicas à história par­ ticular de um campo político e de um Estado específicos. [.,.] Para evitar que se seja iludido pelos efeitos do trabalho de naturalização, que todo o grupo tende a produzir em vista dc sc legitimar, de justificar plenamente a sua existência, é preciso pois reconstruir em cada caso o trabalho histórico de que são produto as divisões sociais e a visão social dessas divisões. A posição social adequadamente definida é a que dá a melhor previsão das práticas e das representações; mas para evitar que se confira [...] à identidade social [...] a função de uma essência de que derivariam todos os aspectos da existência histórica [...] 6 preciso ter cm atenção dc modo muito claro que esce status, como o babitusque nele se gera são produros da história, suscep-

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lívcis de serem transformados, de modo mais ou menos difícil, pela história (Bourdieu 1989b: 156-7, grifos do autor), A inda assim, o trabalho histórico não teria por finalidade atestar a autenticidade do grupo étnico com o tal. C om o já salientou Clifford (1988), “tribos” nem sempre são “aborígines”, mas podem ser criadas em circunstâncias históricas que m udam . “As instituições de cultura e tribo consideradas são invenções históricas, tendenciosas e m utáveis”, não designando “realidades estáveis que existiam aboriginalm ente antes do encontro colonial”. A história dos A tikum , portanto, “não é um a de instituições ou tradições culturais invioladas” (: 339). Nessa direção, perde sentido inclusive qualquer enfoque sobre um a oposição passado/presente. Ao contrário, a atenção pode, em determ i­ nados m om entos, estar voltada para aquilo que Sahlins (1990) cham ou de “estrutura da conjuntura”, ou seja, “a realização prática das categori­ as culturais em um contexto histórico específico, assim com o se ex­ pressa nas ações m otivadas dos agentes h istó rico s, o que in clu i a microssociologia de sua interação” (Sahlins 1990: 15). Por outro lado, se a “história dos nativos” e a “nossa história” em er­ gem com o partes dc u m a m esm a história — se são com ponentes de u m a “h istó ria c o m u m ” - , cabe salientar, em co n so n ân c ia com W olf, a preocupação em te n ta r perceber com o as form as culturais podem m ediar os relacionam entos sociais en tre populações particulares (W olf 1982). D eterm inadas atividades, em interseção, podem criar nodos e nexos de in teração , com d esen v o lv im en to p o ten cial de p o n to s de institucionalização, no meio de cam pos relacionais im bricantes (W olf 1988). C abe aqui destacar, além disso, um “fluxo de cultura” nesses pontos de coexistência interacional-críativa entre o transnacional e o indígena — com o se pode fisgar daquela m acroantropologia da cultura baseada sobre a idéia do “ecúm eno global” (H annerz 1989). Além desta, tam ­ bém a noção de “creolização” (H annerz 1987) sugere um fluxo de cultu­ ra transnacional cm um contínuo com partilhar de combinações e sínte­ ses diversas com a cultura local. D essa form a, um a cultura não precisa ser hom ogênea ou m esm o parricularm ente coerente. A organização social da cultura - aqui ressal­ tada em seu aspecto processual — depende tanto do fluxo comunicativo, quanto da diferenciação de experiências e interesses na sociedade. In ­ clusive, com o salienta H annerz (1987), a m acroantropologia da cultura

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identifica a diversidade em si com o um a fonte de vitalidade cultural22, o que, pressuponho, pode ser gerativo das várias feições possíveis que um grupo étnico pode assumir. Porém , se tom o em consideração p rim eiram en te esse background m acroscópico, não posso p erd er de vista que o presente texto versa especificamente sobre a comunidade indígena de A tikum -U m ã, sobre a etnicidade acionada p o r esses índios sob um contexto de conflito. Se considerei esses aspectos am plos de cultura, é p orque a etnicidade é som ente um elem ento desse jogo cultural distributivo. A etnicidade entra nesse jogo como um a organização social em que as fronteiras e as relações dos grupos sociais são vistas em term os de um repertório alta­ m ente seletivo de contrastes culturais em pregados em blem aticam ente para organizar iden dades e interações (Barth 1969 e 1984). Em formulações mais recentes, o próprio Barth (1984, 1988) afirm a a duplicidade de códigos culturais atuando sobre a mesma população e exorciza qualquer possibilidade de se pensar a cultura dos indivíduos com o desvinculada desses códigos culturais mais amplos. Para ele, as pessoas que m oram em sociedades plurais devem scr capazes dc in ter­ pretar os atos e símbolos não apenas da sua própria com unidade. Surge aí a necessidade de perceber como co-tradições se organizam em um a situação plural form ando um a determ inada tradição, a qual deve ser com preendida não apenas pelos costumes — ou itens de idéias c cultura — como tam bém pela ação dos sujeitos que afirm a os valores da tradição (Barth 1984: 82). Além disso, deve-se ter em m ente que a história de um a tradição náo visa alcançar um ponto de difusão; tratase apenas da história de um a corrente cultural em si. M as se especulo sobre as tradições na constituição da cu ltu ra de um a com unidade, falta dizer o que tenho em m ente ao falar de tradi­ ção. C oncordo com Linnekin que “tradição é um m odelo consciente de m odos de vida passados que as pessoas usam na construção de sua id en tid a d e ” (1983: 241), sendo além disso um m odelo a p rio ri que m olda a experiência individual e de grupo c c tam bém m oldada p o r ela - e nesses term os, um a herança cultural dividida é um ingrediente bási­ co. C o n tu d o “a seleção do que constitui a tradição é sem pre feita no presente; o conteúdo do passado é m odificado e redefinido conform e um a significação m oderna” (: 241). 22 E como já deixou claro Fortes (1938), os contatos culturais provêm novos canais de expressão.

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Dessa forma, tradição inclui elem entos do passado, mas esse passa­ do é equívoco: ele não corresponde à experiência de qualquer geração particu lar - a não ser talvez em m om entos críticos, com o a fase de negociações entre os índios e o SPI pelo d ireito de posse da terra. Assim, a tradição é fluida, seu conteúdo é redefinido a cada geração e sua intem poralidade pode ser situacionalm ente construída. Nesse sen­ tido, qualquer busca por um a “história real” é irrelevante. Pois bem , todas essas são premissas básicas (sem valor analítico e não operativas, p o rtan to ) fundam enrais a m eu ver para dar início à tarefa de tentar conhecer o grupo de que trato - o que faço pondo em evidência sua etnogênese e sua etnicidade. É nesse m om ento apenas que se pode pensar em um a genealogia. Trata-se, nas palavras de Foucault, do “acoplam ento do conhecim ento com as m em órias locais, que per­ m ite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais, [...] Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que preten d eria depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nom e de um conhecim ento verdadeiro, em nom e dos direitos de um a ciência detida por alguns” (1990: 171)- A intenção é penetrar na discursividade local, a tiv a r “os sab eres lib e r to s d a s u je iç ã o q u e em e rg e m d e sta discursividade”(: 172). Está em foco aqui, portanto, a m em ória social do grupo, e, penso, a tradição oral é o m elhor m étodo de lidar com tal tipo de m em ória, pois a tradição oral é o próprio suporte da m em ória social (Vansina 1965)-

A etnogênese A tikum

Inicio esta seção com um a apresentação etnográfica da etnogênese dos A tikum para, som ente depois, colocar em análise tal fenôm eno. Cabe salie n ta r q ue, da fo rm a co m o ap re e n d o , essa n o ção se opõe à de aculturação e não especificam ente às análises que pu n h am cm foco a questão racial, apesar de os A tikum se rem eterem constantem ente ao term o raça (“aqui é tudo da raça de A tikum , é tudo do sangue dele” — afirm am os índios n a Serra do Umã) na m aioria das vezes que querem legitim ar sua condição de índios. Foram recolhidos alguns depoim entos de índios (e, posteriorm ente, do Dr. R aim undo D antas C arneiro, chefe da Inspetoria Regional do SPI p o r ocasião do reconhecim ento da área indígena) sobre a fundação

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do posto indígena, o reconhecim ento da área e sobre a iniciativa dos índios para esses fins. Aqui estou no próprio âm bito da etnogenese do grupo em sua fase mais recente. Pois se o m esm o veio se constituindo, se transm utando, através de um longo processo histórico que lhes im ­ punha situações específicas, a fase à qual m e rem eto agora é a de um a situação cujo desenrolar os levou a sua form ação tal como se conhece ainda nos dias atuais. Tento, portanto, um a síntese global daqueles de­ poim entos23, correndo aí o risco de alguma inexatidão, um a vez que se os mesmos são com plem entares, aparecem p o r vezes de form a incoe­ rente. O u seja, informações quanto a lugares, datas, pessoas, etc. podi­ am apresentar pequenas variações conform e o inform ante.

A fo rm ação da "com unidade indígena de A tikum -U m ã"

Era bem o início dos anos 1940 e habitantes da Serra do U m ã estavam insatisfeitos com fatos que vinham ocorrendo. Prim eiram ente, os culti­ vos dos agricultores, p rincipalm ente na baixada ao pé da serra, eram constantem ente invadidos pelo gado de fazendeiros, Além disso, todo ano aparecia na serra o “cobrador” (Júlio Pirata) da prefeitura de Flo­ resta a fim de recolher im postos ("cobrar renda”, nas palavras dos índi­ os) sobte o uso do solo na mesma. Os habitantes da Serra m antinham contato com parentes e/ou com ­ padres em locais como Rodelas (área Tuxá/BA), Serra Negra (atualm en­ te área Kam biwá), Brejo dos Padres cm Tacaratu (área Pankararu) etc., e ao relatarem para eles sua indignação com os fatos acima m enciona­ dos, eram inform ados de que bavia um órgão do governo que estava criando reservas indígenas para “remanescentes de índios”. É assim que alguns habitantes da Serra se organizam e partem para Recife à procura do chefe da 4 a Inspetoria Regional do SPI, R aim undo D antas C arnei­ ro, inform ando-lhe de suas insatisfações e afirm ando ser a Serra “terre­ no de índio”, que haviam sido expulsos “os caboco mais velho, mas tem

23 Sigo de form a mais sistemática o depoim ento de João Leonardo da. Silva por cie ter participado ativamente de todo o processo de reivindicação da criação da reserva indígena desde a tomada de consciência de que isso era possível até a construção do posto indígena e demais benfeitorias na reserva já criada. Todo o seu depoim ento foi corroborado posteriorm ente por Raim undo Dantas Carneiro, o qual, com mais de oitenta anos, guarda na lembrança a figura de João Leonardo.

ETNOGÊNESE E "REGIME DE ÍNDIO" NA SERRA DO UMÃ

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a descendência que c os caboco mais novo”. O citado chefe afirm ou que enviaria um fiscai para averiguar se havià um toré organizado na Serra, o que garantiria o reconhecim ento oficial de sua condição de índios e conseqüentem ente a criação de um a reserva indígena. D e fato, R aim undo - em entrevista a m im concedida na m anhã de 26 de novem bro de 1991 — afirm ou que já sabia da existência de índios na Serra (“todos m isturados”), mas considerava o toté com o “a conscientização de que eles eram índios [...] eles tinham que saber aqueles passos da dança do índio”. Para tanto, tom ava como referência o toté de Águas Belas (índi­ os Fulni-ô), que “é o prim itivo, é o verdadeiro roré”, Em seu retorno à Serra do U m ã, os caboclos com eçam a organizar um toré a fim de esperar um a equipe “de reconhecim ento prá área”. C ontudo eles estavam “fracos de toré”. C ham am , então, alguns Tuxá de Rodelas para “ensiná” tal tradição para eles: “V ieram de :ar tudo certo no serviço dos índios. Ficaram m orando aqui uns tem pos”.14 Em meados da década de 1940, chegam à Serra os enviados do SPI a fim de atestar a presença indígena ali. Já bem rreinados na execução do toré, os Arikum recebem a citada comissão com uma grande festa, que foi a pedra de toque para a consolidação do reconhecimento oficial da área indígena, pois, muito sarisfeitos com o toré que presenciaram, os homens do SPI inform am aos caboclos que tomariam providências para a demarca­ ção da reserva, sugerindo, desde aí, as figuras de um cacique (para intermediar questões com o órgão e, de um m odo mais geral, com a soci­ edade nacional) e de um pajé (para cuidar do toré e da saúde dos índios). Pouco tem po depois, M anuel Bezerra (prim eiro cacique da área) vai a Recife e retorna com um a aurorização para fazer um a rancharia - a qual devia se cham ar aldeia25 - em que havia um terreiro. C o n tu d o

24 C onsta que foram os Tuxá ajudar os A tikum —onde ficaram m orando por seis meses — porque, segundo o mito, teria o personagem A tikum casado com um a índía de Tuxá; casamento esse que se realizou na Pedra do Gentio, aldeia Jatobá, Serra do Umã. Além disso, da mesma forma que os Tuxá foram ajudar os Atikum , estes últim os posterior­ m ente teriam ido ajudar os Truká da Ilha de Assunção, em C abrobó, Pernambuco. 25 Estou certo de que foi o SPI que incutiu essa idéia de aldeia na cabeça dos Atikum. Tdcia essa levada depois à frente pela FU N A I que, arbitrariamente, parece estabelecer, através dos estudos de seus te'cnicos, a quantidade de aldeias e seus limites, Quando estive na área indígena havia um processo de m udança do números de aldeias: de 16 para vinte. Apesar de todos esses anos, os membros da com unidade Atikum continuam a chamar os lugares identificados pela FUNAI como aldeias da forma como sempre chamaram, dc sítios.

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A VIAGEM DA VOLTA

Fonte | PETI/Museu Nacional, 1 993.

outros caboclos tam bém começam a querer m o n tar seus terreiros - o que Bezerra proíbe. Alguns caboclos insatisfeitos se organizam e vão para Recife reclamar a presença de “um chefe de fora”, tendo em vista que um do lugar não dava certo e que estavam ignorando as ordens dele, c que se assim fosse, eles iam “desistir de ser caboco”. Dr. Rai­ m undo explica que Bezerra é apenas um representante e escuta, em contrapartida, a exigência da criação de um posto indígena. A partir desse m om ento, o agente mais ativo nas negociações para a criação da reserva indígena passa a ser João Leonardo da Silva, prim eiro funcioná­ rio contratado pelo SPI (juntamenre com Deocleciauo A ntonio dos Santos e A ntonio Né) para a construção das benfeitorias no Alto do Umã, onde em 1949 é fundado o posto indígena e criada a reserva indígena Atikum . Pois bem, apresentados esses dados acerca da formação da área Atikum, posso, com base nos mesmos e também nos dados históricos antes levanta­ dos, partir para um a tentativa de apreensão da constituição do grupo. Viu-se com o foi tum ultuada a vida dos índios nordestinos e que a partir de meados do século XIX os Umãs começam a desaparecer das referências arquivísticas e bibliográficas. E sabido no entanto — princi­ palm ente ao lidarm os com história oral - que no início do presente século a Serra do U m ã já era habitada por pessoas que ainda estão lá. Não se sabe, entretanro, a respeito de um a possível identidade por base étnica do grupo àquela época. Parece - e pelo m enos aparentem ente isso é verdade — que seus m em bros se m isturavam , co n fu ndindo-se facilm ente com a população abrangente em term os práticos de sua in ­ serção no quadro social nacional. Seguindo os passos de D arcy Ribeiro (19 82), pode-se interpretar que aí eles eram apenas camponeses que, não fosse a noção de terem um a origem indígena, em nada diferiam do restante da população rural da região. Além disso, essa noção de um a origem indígena era m uito m ais objeto de introspecção do que algo a ser exibido no contexto mais am plo da sociedade, onde, com certeza, seria objeto de escárnio e de discriminação. E o exemplo de um conjunto de pessoas a que os adep­ tos da teoria da aculturação ainda hoje gostam de referir-se como rema­ nescentes indígenas. N as palavras de Ribeiro: [...] eis o que restou, no século XX, dos índios do interior do Nordeste, simples resíduos, ilhados num mundo estranho e hostil e tirando dessa mesma hostilidade a força de permanecerem índios. Pelo menos tão índios quanto seja compatível com sua vida diária de vaqueiros e lavradores sem terra, engajados na economia regional (: 57).

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Apesar da força desse tipo de argum entação, não posso, contudo, aceitála. Para m im , não interessam “resíduos” do que foram os Umãs; interessa-me sim o surgim ento dos A tikum -U m ã com o grupo étnico —um a vez que sua gênese não se rem ete a um tem po m ítico, mas a circunstân­ cias, situações, que se inserem na história atual - e o que eles de fato são atualm en te. O que m e fornece u m a tal apreensão do grupo em exame é justam ente a substituição da idéia dc aculturação pela noção de etnogenese, aqui vista — em consonância com Sider (1976) — como u m processo histórico de criação de um grupo étnico em que seus m em bros buscam gerar sua própria cultura, em contradistinção à cultu­ ra que flui de sua posição optim ida. O que ocorre, ainda segundo Sider, é um a teutativa de fazer sua própria história buscando mover-se além das condições im postas sobre eles. O ra, com o se deu a constituição form al do atual grupo Atikum -U m ã? Trata-se de um grupo cam ponês que, am eaçado de perder seu recurso básico —a terra —pelo poder local (fazendeiros ligados ao m unicípio de Floresta), investe contra isso no intuito de reverter a situação em seu proveito, utilizando-se, para tanto, de um a construção cultural: o to ré. C ontudo nem sem pre é o próprio grupo que determ ina o traço cultural a ser utilizado como sinal diacrítico na elaboração de sua etnicidade, pois, como vimos, o toré foi im posto pelo SPI aos caboclos da Serra do Umã, que o reatualizaram como tradi­ ção em u m a a titu d e essencialm ente p o lític a ,26 Existe aí, de m o d o correlacionado a um exemplo fornecido por G oldstein (1975), um pro­ cesso de formação de alternativa política. Dessa forma, o problem a da etnogenese se confunde com o da for­ mação da “com unidade indígena de A tikum -U m ã”, o que leva obrigato­ riam ente ao problem a da constituição histórica desse grupo étnico, na qual n ío se pode deixar de considerat os m ovim entos dem ográficos ligados à Serra do Um ã - e aqui penso especialm ente nas migrações por vários motivos: escassez de água nas áreas de caatinga, refúgio de ne­ gros quilom bolas, remoção de pessoas pelas agências coloniais etc. Tra­ ta-se, contudo, de um grupo com um passado bastante desconhecido — a própria natureza do tetm o A tiku m -U m ã é bem imprecisa, conform e visto anteriorm ente (com isso não quero dizer que a escolha do mesmo, a nomeação da tribo no processo de etnogenese, tenha sido totalm ente

ME cDino parece ter percebido Ahmed (1982), m uitas vezes a identidade exibida pelo grupo náo tem o mesmo delineamento de sua identidade incerna.

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arbitrária) —e sua nova identidade étnica é mais do que um a reivindica­ ção da ligação direta com o prim eiro grupo na área. Nesse sentido, torna-se relevante um a apropriação das considerações de Gallagher (1974) no intuito de m ostrar como, por entre descontinuidades históricas, pode surgir - de repente, até - um grupo tal com o o que tenho em m ente.27 Portanto, ao substituir um a orientação provida pela noção de aculturação por outra, ligada à idéia de etnogênese, percebe-se, em vez de perdas n u m a cultura autóctone, a reinvenção histórica do grupo em questão. Ao situar no eixo tem poral a gênese da atual “com unidade indígena de A tikum -U m ã”, percebe-se tam bém com o essa sc processa num a situa­ ção conflituosa, gerada princip alm en te pela disputa p o r um recurso básico, a terra. Nesse sentido, a ênfase recai sobre o aspecto em inente­ m ente político da ação social que um agrupam ento leva a cabo como sujeito, na tentativa de conquistar um espaço próprio na sociedade. C o n tu d o um a m udança de rótulo —com o de caboclo para índio, por exemplo - não caracteriza apenas um m ovim ento político, um a ten tati­ va de o b ter os benefícios assistenciais de u m órgão tu to r através da ação coletiva, C om o aponta Bentley, tal m udança de rótulo tam bém estabelece um contrato para um a etnicidade indígena, para um sentido novo e potencialm ente estável de identidade, experiência e propósito divididos (1987: 45) - e tais considerações tornam ainda mais com ple­ xas a análise de como um setor cam ponês do sertão nordestino voltou a (ou veio a) se definir com o um grupo étnico (ou um a “com unidade indígena”) distinto dos demais habitantes da região. C om o já ressaltou C ohen (1974), inclusive, o estudo da etnicidade é heuristicam ente im ­ p ortante tam bém ao ajudar a clarificar a natureza da m udança socioeconôm ica, pois a form ação de um grupo étnico envolve um rearranjo dinâm ico das relações e costum es, não resultando de conservantism o ou conrinnidade. C abe aqui, conrudo, lem brar as críticas que Bourdieu (1989a) dirige aos “etnólogos e sociólogos objetivistas” que arrolam as características

27 Com base nisso, considero um engodo a seguinte afirmação de Carneiro da Cunha: “Com unidades indígenas sáo pois aquelas que, tendo um a continuidade histórica com sociedades prê-colombianas, se consideram distintas da sociedade nacional”. (1987a: 111, grifos meus). Além disso, e de um a m aneira geral, Carneiro da C unha cai em erro ao pensar a possibilidade de um a construção de identidade pelo viés de um a continuida­ de de alguma realização prática, pois, como extrai-se do caso Atikum, é uma tradição oral que, praticamente reatualizada, fornece o traço distintivo para a construção da identidade.

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(critérios objetivos de identidade) que funcionam como sinais, em ble­ mas ou estigmas, logo que sáo percebidos e apreciados como o são na prática, Para esse autor, é um erro da sociologia tom ar o fato (empiria) como dado (construído pelo investigador), ou seja, ele é contra a “sociolo­ gia espontânea” que traduz para a linguagem sociológica a empiria, U m a vez tendo destacado esse alerta de Bourdieu, pode-se ver como esse autor percebe os grupos étnicos e sua formação. Para ele, os agen­ tes e grupos de agentes são definidos p o t suas posições relativas no “espaço social”. Assim, cada etnia pode ser caracterizada pelas posições sociais dc seus m em bros, “pela taxa de dispersão dessas posições e, enfim, pelo seu grau de integração social, apesar da dispersão (podendo a solidariedade étnica p ro d u zir o efeito de assegurar um a form a de m obilidade coletiva)” (Bourdieu 1989b: 135-6, nota). A partir de tal quadro, o objeto do pesquisador deve ser a disputa pelo privilégio de im por um a visão das coisas, pois a lura pela imposição de um a visão legítim a do m undo (em que se encaixam as lutas a respeiro da identida­ de étnica) é o próprio âmbito da etnicidade (ou é a própria etnicidade) - e é assim que se dá a institucionalização de um grupo étnico, ou seja, pelas “lutas pelo m onopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de im por a definição legítim a das divisões do m undo social e, p o r este meio, de fazer e de desfazer os grupos” (Bourdieu 1989a: 113). Além disso, e quanto ao perigo de se naturalizar as fron­ teiras do gtupo, Bourdieu alerta que a “realidade” é “social de parte a parte e as classificações mais ‘naturais’ apóiam-se em características que nada têm de natural e que são, em grande parte, p ro d u to de um a im po­ sição arbitrária, quer dizer, de um estado anterior da relação de forças no cam po das lutas pela delim itação legítima. A fronteira, esse produto de um acto ju ríd ico de delim itação, p ro d u z a diferença cultural do mesmo m odo que é produto desta” (: 115). Nesse sentido, o discurso é performcitivo e tem p o r finalidade im por como legítima um a nova defi­ nição das fronteiras. Eis, para o autor, o acto tipicam ente mágico (o que não quer dizer desprovido de eficácia) pelo qual o grupo prático, virtnal, ignorado, negado se torna visível, m anifesto, para os outros e para ele próprio, atestando assim a sua existência com o grupo conhecido e reconhecido, que aspira à institucionalização” (: 118, grifos do autor). Por fim, B ourdieu aponta que os indivíduos e os grupos investem nas lutas de classificação todo o seu ser social, tudo o que define a idéia que eles têm deles próprios, todo o im pensado pelo qual eles se constituem como nós p o r oposição a eles, aos outros e ao qual estão ligados por um a

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adesão quase corporal. É isto que explica a força m obilizadora excepci­ onal de tudo o que toca à identidade (: 124). Está cm jogo aqui, portanto, “a revolução simbólica contra a dom i­ nação simbólica” —e um a estratégia possível aí é a de um a reapropriação da visão d o m inante sobre o grupo, por parte do próprio grupo, ou seja, um grupo pode se apropriar de características im postas a eles pelos dom inantes a fim de marcar, através disso, sua disrintividade. C om o já m ostrou G rignon (1975), trata-se de refletir aos dom inantes a imagem que estes fazem do grupo: o que eles querem ver no grupo. É assim que os A rikum refletem o toré ao SPI tal como este órgão queria vê-lo como traço de identidade do grupo. M as passaria p o r aí, de fato, sua etnicidade? H á um a organização por base étnica entre eles?

Etn icid ad e

Se já foram m encionadas algumas idéias sobre etnicidade, foi tão so­ m ente porque as mesmas forneceram um certo background para a expo­ sição dos postulados teóricos que m e o rien tam ao abordar o citado fenôm eno28, o qual, com o já ap ontou B anton (1979), reflete as tendên­ cias positivas de dentificaçio e inclusão num grupo étnico —e é dessa m aneira, segundo Seyferth, que “é possível pensar a etnicidade como um a qualidade da qual se participa, e que expressa a ênfase na atribui­ ção de m em bro de um grupo étnico”29 (Seyferth 1983: 1). Não seria de grande utilidade aqui colocar em exame as abordagens operacionais do fenôm eno da etnicidade; o u seja, passar cm revista 2BD e fato, as considerações dc Bourdicu servíram anccs como um pano de fundo para a presente seção do texto, pois elas fornecem uma im portante base epistemológica para a compreensão dos grupos étnicos e de sua formação. Por outro lado, o instrumencal por ele desenvolvido não parece plenam ente operacional para lidar com essas realidades. Inclusive, Bentley (1987) tentou operar com a “teoria da prática” na análise de um a etnicidade, utilizando, como operador, o conceito de “habitus”, sem contudo conseguir avançar m uito para uma abordagem do fenômeno em questão —e apesar da relevância daquele conceito na condição de princípio e eficácia das estratégias classificatórias. Segundo Seyferth, “uma definição dc grupo étnico deve incluir dois aspectos importantes: é um grupo cujos m em bros possuem um a identidade distintiva atribuída, e sua distintiviclade como grupo tem quase sem pre por base uma cultura, origem e história comuns. U m terceiro elemento só raramente aparece nas definições, mas muitas vezes esta implícito na idéia de origem com um : é a noção de raça’ (1987: 530).

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autores que pressupõem um quadro de exploração entre populações etnicam ente desiguais em term os de status (D epres 1975a e b [e mesmo Bourdieu], que enfatizam a utilidade da etnicidade diante das desigual­ dades; Glazer e M oynihan, 1976, que enfatizam o interesse no citado fenôm eno; C ohen 1969, 1974). C erto é que todos esses percebem na política o posicionam ento da etnicidade —e isso apesar da contribuição de Epstein (1978), ao m ostrar que o comportamento étnico não deve ser visto apenas pelo lado racional; a identidade étnica pode preceder os interesses, sendo a precondiçao para a ação racionalm ente interessada. M esmo aqueles que privilegiam instrum entalm ente a idéia de estratificação (Despres 1975b, Skinner 1975, H o etin k 1975, Crespi 1975 etc.) posicionam politicam ente o fenôm eno da etnicidade, acrescentando, entretanto, o postulado da escassez dc recursos na organização da uni­ dade de ação política nos sistemas poliétnicos. C ontudo, não se deve esquecer das paradigm áticas conrribuições de M oerm an (1965) e B arth (1969), as quais m arcaram , na segunda m eta­ de da década de 1960, novas perspectivas para o estudo das relações interétnicas. Para M oerm an, as classificações - que passam por dife­ rentes níveis lógicos —fornecidas pelos atores é que form ariam a chave para se com preender quem são os m em bros de um grupo. Assim ele aponta para a necessidade de se ver toda entidade social (um a tribo, por exemplo) com o parte de um sistema mais am plo, que inclui seus vizi­ nhos; ou seja, um grupo nunca poderia ser identificado isoladamente. Em segundo lugar, M oerm an salienta a natureza em blem ática dos tra­ ços culturais, os quais sáo tom ados pelos m em bros de um grupo com o divisas com as quais identificam ao seu grupo e a eles m esm os — e traços dc cultura, com o alerta esse autor, são signos de identificação étnica, e, com o m uitos signos, eles nao têm o m esm o significado em qualquer lugar. N o mais, não se deve pensar aqui em term os de um a descontinuidade, mas do estabelecim ento de um a distinção que visa marcar um a postura identificatória (e para M oerm an, haveria aí um a ausência de ambigüidade). Trata-se de um a classificação nós/eles m o n ta­ da com a finalidade de identificação, sendo a m esm a situacional e não podendo ser trabalhada em abstrato. Já para Barth, o foco da investigação torna-se de fato “a fronteira que define o grupo” e não a “substância cultural que ela encerra”. D entro dessa perspectiva, Barth pressupõe que as fronteiras persistem apesar de um fluxo de pessoa! através delas e que relações sociais estáveis m antidas através de tais fronteiras baseiam-se em status étnicos dicotom izados.

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A ssim , as d iferen ças c u ltu ra is p o d e m p e rsistir apesar do co n ta to interétnico e da interdependência — para Barth, dividir um a cultura co­ m um deve ser visco como um a implicação ou resultado e não como uma característica prim ária e definidora da organização do grupo étnico. D e fato, é este o ponro-cliavc da preocupação desse autor: a organização das diferenças culturais. N a verdade, pode-se perceber o conceito de etnia ligado ao de cultura, que, precedente à identidade, é usada para marcála (som ente conteúdos culturais podem ser atribuídos e a identidade é usada para a interação social), funcionando assim como signo. C ontudo se a etnia está no âm bito da cultura, a fronteira parece estar no do social (a fronreira parece mesmo funcionar n u m arrolar de traços sociais). A pesar dessa preocupação com as diferenças culturais, e u m a vez que a ênfase deve recair sobre as fronteiras que definem o grupo, o foco analítico incide sobre o que é “socialm ente efetivo”; deve-se olhar para os grupos étnicos com o um a form a de organização social, ou seja, inte­ ressa m enos o traço cultural atribuído do que a própria característica de auto-atribuição e atribuição p o r outros; a atenção recai sobre um conjunto de m em bros que sc identifica e é identificado por outros como constituindo um a categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem . Tam bém , q u an to ao estabelecim ento de sua identidade, devo ressaltar que os traços q u e são tom ados em consideração não são a soma de diferenças objetivas, mas sim aqueles que os próprios atores consideram com o significativos, pois pertencet “a um a categoria étnica im plica ser um certo tipo de pessoa, ter aquela identidade básica”, o que tam bém implica um a reivindicação a ser julgada - e isso só pode ser feito pelos padrões relevantes para aquela identidade. Assim, não se pode predizer quais conteúdos culturais serão enfatizados ou tornados organizacionalm ente relevantes pelos atores.30 C om o diz Barth, “catego­ rias étnicas proporcionam um vaso organizacional que pode ser abaste­ cido de quantidades e formas de conteúdo variáveis em diferentes siste­ mas socioculturais”(Barth 1969: 14). N a verdade, apesar de B arth tem atizar —excessivamente, por vezes a organização das diferenças culturais, nem p o r isso seu instrum ental perde a operacionalidade para qualquer estudo de relações inrerétnicas. Inclusive - com o já deve ter ficado claro quando tematizei a etnogênese

50Talvez isso não seja válido para os índios do Nordeste, que invariavelmente marcam suas diferenças através do ritual do toré, dada a imposição do SPI.

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da com unidade indígena - ao se traçar a história de um grupo atravcs do tem po, não se esrá traçando sim ultaneam ente a história de um a cultura, pois elementos da cultura atual de um grupo podem não ser a continuidade de traços culturais previam ente estabelecidos. Além dis­ so, um a redução drástica de diferenças culturais entre grupos étnicos não se correlaciona de um a m aneira simples com a redução na relevân­ cia organizacional de identidades étnicas ou com um a avaria em pro­ cessos de m anutenção de fronteiras (: 32-3). D e tudo o que foi dito até aqui, pode-se destacar, em consonância com N agata (1974), o caráter relacionai e contextual em que podem emergir os grupos étnicos e que podem gerar possibilidades identificatórias para os seus membros, o que leva a pensar o fenôm eno étnico — em seu aspecto dinâm ico — com o bastante fluido: a p rópria constitnição das fronteiras étnicas é fluida e pode variar situacionalmente.

A situ ação histórica da etn icid ad e A tikum

Se a etnogênese A tikum foi p o r m im focada como um processo din â­ mico (diacrônico) que se desenvolveu n u m cam po social (G luckm an 1987) específico (a Serra do U m a e sua circunvizinhança), ponho em evidência agora esse mesmo cam po em term os da situação histórica da ernicidade acionada pela “com unidade indígena de A tikum -U m ã” (O li­ veira 1988). Apresento, portanto, um a ernografia que nada mais é do que um a construção m inha, “um a abstração com finalidades analíticas, composta dos padrões de interdependência entre os atores sociais” (: 57), mas cuja descrição é parte constituinte da análise (Vau Velsen 1987). Logo ao entrar em contato direto com os A tikum , percebi que eles se separavam da população envolvente por serem detentores da tradição do toré c estarem sob a tutela da FU N A I. Se o toré é entendido por alguns inform antes como sua religião, é por outros tido com o sua brincadeira (alguns mestres o consideram a sua profissão). U m a coisa é certa: seja da maneira que for considerado, o toré é tido como a sua tradição —apesar de não ser exclusivo dos A tikum , mas fazer parte da vida ritual de grande parte dos ín< as do Nordeste. Nesse sentido, com o já apontou Azevedo (1976), constituiria um a marca de indianidade desses índios. C om o es­ tabeleceu Oliveira (1988), o conceito de indianidade, em distinção ao m odo de vida resultante do arbitrário cultural de cada grupo, refere-se ao “modo de ser característico de grupos indígenas assistidos pelo órgão

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tu to r” (: 14), e que decorre do conjunto de regularidades oriundas das relações com o mesmo. N o caso do toré A tikum , o mesmo surgiu de um a imposição do SPI para que fosse reconhecida a reserva indígena — fato que parece ter ocorrido tam bém em outras áreas, como podem os extrair do já citado depoim ento do Sr. R aim undo D antas Carneiro, o qual, baseado no modelo Fulni-ô, queria ver os índios sob sua adm inistração exercendo um a tal atividade, independentem ente de suas caracte­ rísticas peculiares. Q uanto aos dados etnográficos referentes ao toré na Serra do Umã, procedo a um a separação — de cunho estritam ente analítico — em dois tipos: um público, realizado periodicam ente (geralmente semanal) em um lugar determ inado (existem alguns torés públicos) e aberto ao público em geral; e um privado, realizado de forma não periódica e fechado ao público. Este segundo tipo de toré se divide em três formas: "trabalho de gentio”, “trabalho de terreiro” e “trabalho de ouricuri”. Conform e infor­ mações obtidas, essas três formas parecem obedecer a um a mesma estru­ tura interna: despacho, abertura da corrente, cham am ento das divinda­ des (geralmente Mestres do panteão do catimbó, mas tam bém ancestrais de diferentes tribos que vêem trazer-lhes alguns ensinamentos), parte da cura, fecham ento da corrente etc. Tais formas, contudo, se distinguem fundam entalm ente quanto ao lugar onde se praticam os ritos. Trabalho de genrio se realiza em um lugar fechado (dentro de um a casa, num a casa de gentio etc.); trabalho de terreiro se efetua em frente a uma casa (no terrei­ ro, no “oitão”); e trabalho de ouricuri se faz na m ata. Devo ainda infor­ mar que existem diversos grupos de “trabalhos ocultos” (como eles cha­ mam o toré privado) atuando na área, e que o conteúdo de tais cerimôni­ as m u ito sc assemelha ao do catim bó de um a m aneira geral — com o descrito por Cascudo (1979) e por Sangirardi Jr. (1983) - e em especial à festa do Ajucá descrita por Carlos Esrevão de Oliveira (1942). Apesar disso, os A rikum negam com veem ência a presença do catim bó31 no interior da área indígena, associando-o a coisas negativas e, em suma, ao

J1 Com relação ao fenômeno do sincretismo, Sangirardi Jr. assinala que “os pajés indígenas ensinaram aos brancos e mestiços os mistérios dapajelança.Esta influiuno catimbó. Uma e outra receberam a mescla do espiritismo, da feitiçaria européia e, nas orações e imagens dc santos, do catolicismo. Depois, completando o ciclo, o pajé indígena recebe de volta, sincretizado, tudo aquilo que ensinara. E passa, inclusive, a trabalhar com os encantados' (Sangirardi Jr. 1983:194).

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feitiço32. Existe, porém , um terreiro na aldeia Casa dc Telha - o qual eles tam bém cham am de toré —onde periodicam ente ocorrem festas não liga­ das à tradição indígena, não havendo uso de jurem a, nem mesa de chão, nem abertura de corrente, nem controle sobre a possessão - m uitas vezes consideradas inverídicas. Trata-se, na verdade, de um a senhora (D. M a­ ria) que, vivendo sete anos na Bahia, aprendeu essa prática ritual por lá. C ontudo até alguns índios politicam ente ativos participam por vezes das festas nesse terreiro, independente do fato de o mesmo ser ou não da ttadiçao dos índios, que é “o toré com jurem a". D en tro da tradição do índio, p o rtan to , petcebo no uso da jurem a (Mimosa hostilis Benth) a marca de oposição - dc distinção —com rela­ ção à “parte civilizada”. A jurem a, ram bém cham ada durante os traba­ lhos de A n ju cá , representa, segundo o in fo rm an te (M estre de Toré) D eocleciano A ntonio dos Santos: o san g u e de C risto , p o rq u e q u a n d o m a ta ra m Jesus, u m dos ap ó sto lo s dele a p a n h o u o san g u e dele e m a n d o u b o ta r n o pc d a ju re m e ira , q u e era p rá ficar a ciên cia p a ra os ín d io s. A í o civilizado n ã o tem n a d a co m a ju re m a , p o rq u e n ã o tem o sangue.

Dessa form a, justifica-se o p orquê de a jurem a, que representa o sangue de Jesus, ser tam bém cham ada dc anjucá (“anjo cá”)33, em vez

31 N um a contradição aparente, o certo é que o imaginário dos habitantes da Serra está repleto da idéia de feitiço. Existem diversos exemplos concretos da presença de feitiço na área, inclusive de um que gerou a expulsão de uma família da mesma. N o mais, falo em termns de um a contradição aparente porque o feitiço não é visto como prática indígena e existem diversas pessoas aldeadas na área que não são tidas como índios. 33 Diz-se que jucá é uma palavra Gê, que seria, a princípio, indivisível. C ontudo, esse exemplo sugere algumas dicas quanto à possibilidade, náo só de reapropriação dc pala­ vras - principalm ente quando já não se fala mais a língua de origem - mas tam bém de se pensar em reatualizaçâes dos mitos —dadas as interpene trações de cultura. O u seja, os mitos Atikum , pelas características da furmação desse grupo, não podem ser vistos dentro do quadro de referência fornecido pelo estrururalismo. Antes é o gerarivismo que pode fornecer uma melhor apreensão da realidade mítica Atikum . O que está em jogo é um a criatividade cultural. M inha postura aqui parece estar em consonância com a de Barth (5975), quando este pensa qualquer cultura como um “sistema de comunicação cm andam ento1' (angoingsystem ofcommunication). Por fim, apesar de toda essa ênfase na questão, cabe dizer que apenas o citado informante e seu irmão José A ntonio dos Santos se referiram a Anjucá como anjo cá, o que não deixa de ser significativo principalm ente porque esse problem a náo foi colocado para outros informantes.

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de ajucá34. E é tam bém através da jurem a que se justifica a diversidade fenotípica entre os índios, pois, um a vez que existem ju rem a preta (“jurem a de caboco”), vermelha e branca, D eocleciano afirma: “é por isso que tem índio de toda qualidade, é porque tem jurem a de toda qualidade”. C o n tu d o , apesar de toda essa auto-afirm ação como índios, os habi­ tantes da área tam bém se identificam como caboclos, pois, com o afir­ mava o líder A bdon Leonatdo da Silva: “quem conhece a área indígena e os cabocos é quem m ora na aldeia”. E através m esmo das cantigas (ou toantes) entoadas durante os rituais, pode-se perceber tal identificação; como p o r exemplo nessa em que o “caboco” abre espaço para a chegada do “M estre”: Caboco puxa o boi não deixa m o rre r na dança quem vem cbegando agora é o m estre Rei Congaleao m as ele é, mas cte é Rei Congaleão. O u nesta outra em qne os term os caboco e índio fundem -se num só: Oi meu caboco-índio oi do centro do mar eu vim do juremê cu vou pru juremá. O u então nessa em que se nom eia o caboclo, e se o liga à área: Sou o Caboco Jupi o que que anda fazendo aqui cie anda é na liberdade é nas aldeias do Atikum.

34 Ajucá, como já mencionei baseado em Oliveira (1942), é um a festa em Brejo dos Padres, Tacaratu. Na verdade, área indígena Pankararu; índios estes com quem os Atikum parecem guardar afinidades. Além de anjucá e ajucá, Cascudo ainda com enta que “um. dos reinos no catim bó é Vajucá, talvez corrução de Ajucá” (Cascuda 1979: 24). Daí, se por um lado a jurema representa o sangue de Jesus, por outro, anjucá pode representar todo o panteão. Dessa forma, nos trabalhos, há um a com unhão com todos os encantos, santos católicos, antepassados, etc.

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O u ainda, de quando o cabocío está ligado a um episódio m ítico, pois, como inform a A bdon, a seguinte toante representa a “passagem da tra­ dição” de “O rubá Velho” para “O ru b azin h o ”35: Órubá, Orubá Como é bonito ver Os caboco forgar. Orubá subiu a serra Todo vestido de pena Ele é mas eie é E o rei da jurema. Dessa form a — e já no tocante às identidades sociais - vê-se que os A tikum se identificam como índios ou caboclos em oposição aos brancos ou civilizados através do toré. Mas são índios apenas os que participam de tal tradição? Pode haver algum “parente de A tikum ” que não seja ín­ dio? Para responder a essas indagações — e outras que poderiam ser si­ m ultaneam ente elaboradas - ponho em evidência prim eiram ente uma categoria ambígua e mediadora situada entre as oposições índio/civiliza­ do ou caboclo/branco. Refiro-me aqui à expressão atdeado, que diz res­ peito a pessoas estranhas à comunidade e que foram “aldeadas” na área indígena p o r diversos m otivos: casam ento, com pra de roça de algum índio, parente que já morava na área etc. Segundo depoim entos colhidos na Serra, os aldeados podem ou não ser considerados índios, mesmo não sendo do “sangue de A tikum ”. D a mesma forma, indivíduos nascidos na com unidade e criados como índios podem deixar de ser considerados como tais. Podem ainda existir índios vivendo longe do grupo, trabalhan­ do, por exemplo, em fábricas do A B C paulista. Mas como pode ser assim se, por um a lado, o perrencim ento à com nnidade está ligado ao lugar de origem (Serra do Umã) e ao parentesco ancestral (ser da raça de Atikum) e, por outro, o sinal diacrítico é o toré tal como desem penhado na Serra?

35 Segunda esse informante, tal fato se deu no “encontro da revolução dos índios [...] foi prá se despedir”. Nessa época, “O rubá tava sendo o dono da ciência”. Após tal encontro, “O rubá subiu a serra... d c andava com uma pena". Já segundo Deocleciano Antonio dos Santos, da mesma forma que Um ã seria o índio mais velho dos A tikum , O rubá seria a índio mais velho dos Xucuru. Os Atikum têm conhecim ento desse roante porque eles recebem ancestrais também de outras tribos durante seus trabalhos ocultos. O rubá se refere inclusive à já citada Serra do Ararobá. Por fim, para Cascudo (1937), Orubá seria um dos reinos do catimbó.

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Prim eiram ente, segundo o depoim ento de Francisco de Assis da Sel­ va (Zé de Miguc!) - que é atestado por outros inform antes existem na área vários indivíduos que eram “totaím enrc civilizados” e que agora são considerados índios; da mesma forma como índios (ou caboclos) que ao saírem da área deixaram de ser considerados como tais. Vejamos: Realmente todos que estão morando dentro da área e participam do toré, das tradições [...] quer dizer que esses [...] era o civilizado, mas que partici­ pam da nossa tradição, foi aldeado como índio, a gente consentiu. Aonde é aqueie filho de índio que ficou na parte civilizada, que nem quis partici­ par... das nossas tradições e nem aceitar os nossos costumes, ficou como civilizado. Como tenho um tio legítimo que mora lá na Lagoa Grande, não participa dos trabalhos, não participa do toré, participa de nada FUNAI. Foi comprar fazenda fora e ficou fora da nossa... do nosso regime de índio... c foi por causa desse negócio, de gente, de pessoas civilizada ter entrado na parte do índio,,, e tem aqueles que considera ter entrado na parte do índio, respeito. Mas tem outras que por causa de ter entrado na parte do índio, ser aldeado aqui dentro, se nasceu esse causo do civilizado olhado como índio é que passa essa dificuldade aqui denrro... estão desmoralizando o nosso moral [...]. O u seja, o indivíduo que vem dc fora m orar na área só passa a scr considerado índio a partir do m om ento que participa ativam ente do rorc, adquirindo o regime do mesmo. Q uan to aos que assim não proce­ dem , estes continuam a ser considerados civilizados. C om relação àque­ les civilizados que estáo na área sendo olhados com o índios (pela FUNAT, que inclusive concedeu a alguns “carteiras de índio”), isso ê um a ques­ tão que rem onta especificamente aos alinham entos políticos que foram se configurando durante as últimas três décadas em um processo políti­ co que não colocarei em evidência no presente texto.36 Por outro lado, existem aqueles que deixaram o ethos indígena para trás e foram m orar fora da área, náo sendo mais considerados índios. H á, por fim, o indi­ víduo nascido na Serra e que vive longe, em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Esse, na lem brança dos parentes ainda pode ser índio - trata-se apenas de alguém que está vivendo longe por um a questão de contin­ gências financeiras. Portanto, considera-se ín d aquele que participa da tradição do toré, sendo prcferencialm enrc regimado na mesma, detendo a ciência do inV er G ríin c w a ld (1 9 9 3 ).

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dio, aqui entendida com o um corpo de saberes dinâm icos sobre o qual fundam cnta-se a segredo da tribo. São saberes proibidos aos estrangei­ ros — principalm ente os civilizados, mas tam bém , cm um certo grau, a índios de outros grupos. É por isso que sáo saberes revestidos por um a aura de mistério, sendo portanto proibidos de serem assistidos ou, no m ínim o, de serem registrados p o r gravadores o u m áquinas fotográfi­ cas. D izem respeito à colheita, reza e despacho com a jurem a — que, dentre outras coisas, não podem ser assistidos - e tam bém à abertura da corrente (e o primeiro ponto seguinte) que, durante os ritos, não pode ser gravada. E im portante, contudo, ter em m ente que o segredo nem sem pre esconde algo, ele pode sim plesm ente existir por existir, sendo sua eficácia justam ente esta: fornecer um mistério em torno da tribo, sobre o qual, independente do seu conteúdo, provém um a base para um a separação do tipo nós/eles - e é dessa form a que os A tikum se separam dos demais índios portadores da m esm a tradição do toré. Além disso, o segredo, com o bem ressaltou M ota (1992), pode ser visto tam ­ bém com o um a form a de oposição à dom inação, sendo assim um m o ­ vim ento contra-hegem ônico37 — e se foi o SPI que im pôs um a tradição aos A tikum , eles desenvolveram segredos e mistérios em torno da mes­ ma, de form a a se proregerem (e talvez inconscientem ente) da dom ina­ ção daqueles que lhes im puseram o toré. O segredo é, por fim , um meio de autenticar, de algum a form a, a existência do grupo em sua especificidade — mesmo que esta seja ilusória. Por fim, pode-se dizer que os aspectos rituais m encionados forne­ cem apenas um a marca (traços culturais) que garante um a legitim idade do grupo com o um a com unidade indígena com relação à F U N A I e perante visitantes ilustres (categoria na qual obviam ente se insere o antropólogo). De um m odo geral, o toré pretende m ostrar ao órgão tu to r e aos citados visitantes que os A tikum são índios, portadores de traços culturais específicos que os autentica com o tais. N o mais, esses traços extraídos de suas práticas rituais são operados politicam ente pelos m embros da com unidade na interação com os ó r­ gãos oficiais (que podem prover assistência), pois as fronteiras imedia­ tas com seus vizinhos não são p o r aí estabelecidas, um a vez que eles inclusive escondem dos mesmos a existência de tais práticas no interior

■ v'Trata-se dc um a prática social desenvolvida no intuito de escapar do controle das classes (religiosas, políticas etc.) dominantes.

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da área indígena. Mas com o se daria a construção das fronteiras da com unidade na interação com os vizinhos? Prim eiram ente, cabe lem brar que o m otivo que levou habitantes da Serra a procurarem o SPI na década de 1940 foi o conflito com os fazem deiros vizinhos p o r um recurso básico: a terra. P ortanto, as negocia­ ções com o SPI se resum iam num a estratégia que visava a obtenção de tal recurso. O ra, mas se apenas as roças no pé da serra eram atacadas pelo gado dos fazendeiros e dificilmente o cobrador Júlio Pirata conse­ guia andar um terço da atual área indígena, de que form a se solidariza­ ram os m oradores sob tal situação? É claro que apenas alguns elem entos se m obilizaram para levar adiante as reivindicações no SPI, contudo parece-nos que esses indivíduos só devem ter procedido assim contan­ do com o apoio e a solidariedade de outros cantos indivíduos. M as seria um a solidariedade étnica que foi mol iizada por ocasião da formação da aldeia? C om o prefiro pensar, a essa época a construção de um a identidade se dava mais por pertencim ento à Serra do U m ã, local de refúgio de várias porções populacionais que para lá aflufram fugindo do ciclo do gado. Esses contingentes populacionais foram se m esclando, form ando unidades familiares e tom ando a Serra com o sua m orada. Estabelece­ ram ali um a comunidade. Eram os m oradores da Serra, agricultores e com padres uns dos outros, form ando, além disso, um a sociedade pre­ ferencialm ente endogâm ica, um a vez que isso era garantia dc m anter as terras da Serra longe da presença de estranhos. Sua noção dc pertencím ento ao grupo, à com unidade, ocorria por parentesco e com padrio38, elos estes que os fortaleciam contra as investidas dos fazendeiros, que cada vez mais se aproximavam. É aí que estava sua unidade —c tal união38 parece ser estratégica no sentido de resguardar a terra que lhes pertence e ao m esm o tem po passa a p erten cer a toda com unidade. D e fato, com o se pode extrair de Parsons (1975), o caráter atribuído de identi­

38 Se por um lado o sistema de compadrio pode fornecer simplesmente uma solidariedade pessoa a pessoa, por outro, percebo —em consonância com o modelo de com padrio pensado por M intz e W olf (1967) para a Idade Média —a existência de um tipo de solidariedade de vizinhança refletida em tentativas de se incluir todos os vizinhos na rede de relações do compadre. 39 Para os Atikum, consideração e união são os pré-requisitos necessários para o estabeleci­ m ento do compadrio. As pessoas não se tornam compadres apenas em batizados, foguei­ ras de São João etc. - onde são formalizadas tais relações - mas começam simplesmente

A VIAG EM DA VOLTA

dade, apesar de opcional, geralm ente se reveste do fator solidariedade, que entre os A tikum nos parece ser o suporte para a ação política inte­ ressada. E é som ente aí, depois de ativadas solidariedades tais com o as m encionadas, que se torna operacional um a solidariedade étnica orien­ tada para a obtenção do reconhecim ento da reserva indígena. É claro que cies sabiam ser descendentes de índios, mas tam bém de negros e brancos. Eram caboclos, caboclos da Serra da Umã. E c de fato som ente com base nessa identidade prévia que lhes foi possível, diante de um a situação adversa (fazendeiros e prefeitura com interesses em suas terras), se organizarem politicam ente e reivindicarem um reconhe­ cim ento de sua com unidade, que era a única garantia de acesso seguro à terra que lhes pertencia. Se era com o índios que deviam se m ostrar à sociedade nacional, assim o fizeram, podendo dar continuidade a sua form ação com o um a população discreta, auto-identificada, auto-referente. Se agora se cham am de A tikum -U m a, isso não nega sua identida­ de anterior de caboclos, apenas sobrepõe-se a esta, fortalecendo e singularizando ainda mais os elos da com unidade. Pois bem, mas se assim o é, volto à questão: o que dizer dos limites da com unidade? Tento afirm ar aqui que a área indígena é um a ilusão com o tantas outras ilusões que tocam à com preensão dos índios do Nordeste. O s habitantes da Serra do U m a podem deixar de ser conside­ rados índios ou com padres conform e sua inserção em facções'50 que atuam na área indígena. D a m esm a forma, pessoas dc fora podem pas­ sar a pertencer ao grupo. Pessoas contam com a solidariedade de com ­ padres no exterior da área indígena e não com a de índios no interior da mesma. Portanto, em term os da organização de sua interação social com a sociedade envolveute, as fronteiras da com unidade são extrem a­ m ente fluidas e não coincidentes com os lim ites territoriais da área indígena. C o n tu d o , para efeitos de envolvim ento com a FU N A I e com pessoas ligadas a órgãos interessadas na área, os h ab itantes da Serra

a se cham ar assim. AJém disso, as pessoas podem deixar de ser consideradas compadres caso sua conduta seja reprovada pelas demais pessoas daquele fcompadresco”. 40 N a verdade, a etnicidade na Serra do U m ã - como fenômeno essencialmente político deve ser vista não apenas sob o prisma das relações intcrctnicas; há que se destacar tam bém o quadro de suas relações intra-étnteas. O conflito exam inado cm suas formas organizacionais nos dois tipos de relação pode levar a um a m elhor compreensão da constituição de fronteiras comunitárias tão fluidas. Ver G rünewald (1993)-

ETNOGÊNESÊ E "REGIME DE ÍNDIO'' NA SERRA DO UMÃ

forjam um a etnicidade baseada em traços culturais extraídos de um corpo ritual im posto pelo próprio SPI, na tentativa de obter, cada vez mais, recursos m ateriais para assistência de um a população extremamenre carente de coisas essenciais à vida. Portanto os A tikum -U m ã form am um a comunidade étnica, se en ten­ dida com o form a de organização política (W eber 1974). Além disso, são de fato índios à m edida que assim se identificam e são assim iden­ tificados pela com unidade (M oerm an 1965). E ntretanto, não são aborí­ genes nem nunca foram — e nem devem ser pensados como remanes­ centes de quaisquer nativos.41 Trata-se, isso sim , de um a comunidade indígena que se form ou num a situação histórica (Oiiveira 1988) especí­ fica, m om enro a partir do qual foram arivamenre se auto-atribuindo um statu s interativ o ao m esm o tem p o que o u tro s — p rin c ip alm e n te os “carnaubeiras”42, m as tam b ém os m oradores de Floresta e gente da FU N A I - tam bém lhe atribuíam status. A partir daí criam-se fronteiras fluidas para a interação social, marcadas por inclusões ou exclusões em padrões de relacionam entos para os quais existem expecrativas deter­ m inadas. Isso, com binado ao uso em blem ático de traços culrurais ex­ traídos da vida ritual, fornece a etnicidade A tik u m , a qual, na condição de um fenôm eno essencialmente político, torna-se instrum ental, princi­ palm ente na disputa por certos recursos.

Os índios da Serra do Umã

Q uando me debrucei historicam ente sobre o serrão pernam bucano, per­ cebi que as diversos grupos indígenas que ali habitavam foram paulati­ nam ente sendo reduzidos a partir do contato com os brancos interessa­ dos naquelas terras para a criação de gado. C om a atividade missionária na região, tais grupos começam a ser aldeados em missões que, im buí-

41 Devo ressaltar que isso é uma interpretação de cunho pessoal, pois, além de já ter destacado um a identidade de oriundos da Serra do Umã, há um toaiue m uito significa­ tivo no sentido de salíencar um sentimento de rem anescência- principalmente espiritual —com aborígenes locais. Destaco a seguinte parte de um roante: “Contra-mesrre, Conrraguia / Vamos trabalhar G entio/ Q uando eu me lemhro daquelas matas/ Eu também já fid bravío. 42 “Carnaubeiras” é como são cham ados os habitantes de Carnaubeira, seus vizinhos imediatos.

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das de um ecnocentrismo religioso, colocavam juncos grupos distintos na tentativa de convertê-los, em bloco, ao catolicismo e aos ditames da sociedade colonial. Além disso, os grupos que não se subm eteram ao em penho colonial tiveram que se refugiar em lugares que não fizessem parte da rota do gado. As serras foram os locais privilegiados de refúgio não só por grupos indígenas, com o tam bém por negros quilombolas. Aí, tais populações não tinham outra alternativa senão unir-se (por vezes guerrear, se enfraquecendo ainda mais) na tentativa de resistir ao inim i­ go com um . E foi o que acorreu com parte do grupo Umã, que foi habi­ tar a serra do mesmo nom e, para onde tam bém afluíram diversas outras porções de grupos indígenas, negros e mesmo brancos. Especiftcamenre quanto ao atual grupo A tikum -U m ã, este só surge no cenário nacional na década dc 1940, quando percebendo-se os habi­ tantes da Serra do U m ã ameaçados em sen recurso básico — a terra — por fazendeiros vizinhos que avançavam pela mesma com o gado e pela prefeitura do m unicípio de Floresta que lhes cobrava im postos pelo uso do solo, procuram o SPI a fim de reverter esse quadro com a formação dc um a reserva indígena. Os A tikum da Serra do U m a eram de fato um a população camponesa que em quase nada diferia dos regionais, pois sua orgauização social e econômica, assim como seus valores culturais eram praticam ente os mes­ mos. C o n tu d o guardavam os caboclos da Serra a lem brança dc scrcm descendentes de índios "bravios”. E é justam ente isso, somado ao fato de a população da Serra ser fenotipicam ente próxim a da raça negta — sendo inclusive conhecida regionalmente com o “os negros da Serra do U m ã” —que faz a diferença com relação aos outros segmentos regionais. D e que maneira, portanto, essa população consegue o reconhecim ento dc grupo indígena se eram negros na aparência, auto-identificando-se como caboclos, e sendo identificados por outros como caboclos ou negros? D e faro, são raros os A tikum que cotidianam ente se dizem índios, preferindo m encionar que esses eram seus anrepassados. C ham am -se dc caboclos e reservam aquela prim eira categoria como form a dc garan­ tir acesso a determ inados recursos. Foi a partir da possibilidade de rer suas terras protegidas pelo Estado que se estabeleceu na Serra do Umã, onde vivem, a utilização do term o índioAi. M elhor estabelecendo, foi diante da notícia de que o SPI estava criando reservas indígenas que os

45 M esmo assim, assenúndo com a (auto)referência de remanescentes indígenas.

ETMOGÊNESE E "REGIME DE ÍNDIO" NA SERRA DO UMÃ

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camponeses da Serra resolveram trazer à tona tal reivindicação. Mas e se não fossem os índios, p o rém os negros que tivessem tendo suas terras reconhecidas por um órgão tu to r (um SPN , Serviço de Proteção ao N egro, p o r exemplo), não poderiam tam bém os A tikum reivindicar um status de com unidade negro?'1'’ De fato, os A tikum são um grupo étnico. H á um a etnicidade acionada pelos mesmos. O problem a é a conccptualização que se tem da categoria índio. N a verdade, entendo tal categoria sob dois aspectos: urna referente à representação sobre o índio e outra com relação ao espaço jurídico-político do índio. Visto pelo primeiro ângulo, os Atikum não podem ser encara­ dos com o índios um a vez que eles mesmos parecem conceber tais ele­ m entos com o “selvagens” o u “bravios”, como gostam de dizer. Os mem bros da com unidade Atikum parecem de fato aceitar a denom ina­ ção “remanescentes indígenas”, dada a eles pelo órgão tutor. C ontudo, procuram entrar como índios, dotados de um patrim ônio específico, no conjunto da sociedade, um a vez que lhes é garantido um espaço para isso. Assim, eles não se consideram índios, mas assum em tal postura apoiados no citado espaço jurídico-político. D a mesma forma, a maior parte do próprio pessoal da FU N A I, em suas representações em torno do que seja índio, não considetam os índios do N ordeste como tais, contu­ do, inseridos num a política adm inistrativa que lhes reserva esse espaço, trabalham como se fossem — se não de fato, pelo menos de direito. Dessa form a, com base na afirmação de que os habitantes da Serra do U m ã são índios segundo a F U N A I e com base tam bém na autoafirm ação, m esm o que política, com o índios por parte dos próprios m em bros da com unidade, o presente texto os considera sob esse ângu­ lo, apontando inclusive para a ideia de ilusão autóctone com a objetivo de enfatizar a falácia de um a referência a índios apenas com relação aos aborígenes americanos, tal com o estabelecido no período colonial. Cabe, p or fim, som ente destacar como os A tikum m ostram -se como índios para a sociedade nacional.

“4 N ão se deve esquecer, entretanto, que, a princípio, os negros que afluíram para as serras do sertão eram refugiados que foram acolhidos pelas populações indígenas e começaram a viver dentro dos padrões destas (apesar de não terem interagido culturalm ente apenas de form a passiva, isto é, levaram elementos que foram incorporados pelos índios), tornando-se assim m em bros de tais agrupam entos.

A VI AC EM DA VOLTA

Etnogênese, in dian id ade e "reg im e de índio"

Q uand o os caboclos da Serra do U m ã procuraram a SPI a fim de lograr a formação de um a reserva indígena, lhes foi pedido nesse órgão que dançassem um toré para provar que eram realm ente “descendentes de índios”, pois tal tradição para o então chefe da Inspetoria Regional do S PI no N o rd e s te , R a im u n d o D a n ta s C a rn e iro , sig n ific av a u m a “conscientização” de ser índio. O s caboclos esLavam, conrudo, “fracos” no desem penho dessa tradi­ ção e, assim, recorreram aos Tuxá, que enviaram seis m em hros à Serra do Um ã para “ensinar” os A tikum a fazer um toré. Meses depois, um fiscal do SPI chega na Serra e os A tikum dançam o toré para ele, que im ediatam ente atesta a presença indígena ali. A partir daí inicia-se um a relação dos caboclos (agora índios) com o órgão de assistência, que começa por lhes im por a necessidade de um representante (cacique) para o contato com o órgão e de um pajé, para a reatualização prática e cotidiana de suas tradições rituais (em todos os sentidos, inclusive médica). Por seu turno, o SPI contrata alguns funcioná­ rios entre os próprios mem bros da com unidade e começa a edificação de benfeitorias na Serra. Em 1949, a reserva é estabelecida com a fun­ dação do posto indígena. Bem, o que o SPI fez, de fato, foi im por um m odo de ser para a população da Serra, que é, na verdade, característica das demais popu­ lações assistidas pelo citado órgão (e atualm ente pela FU N A I), m odo de ser este que Oliveira já cham ou de indianidade. C om o esrabeleceu esse autor: Em função do reconhecimento de sua condição de índios por parte do organismo competente, um grupo indígena específico recebe do Estado proteção oficial. Aforma típica dessa atadção/prcsença acarreta o surgimento de determinadas relações econômicas e políricas, que se repetem junco a muitos grupos assistidos igualmente pela FUNAI, apesar de diferenças de conteúdo derivadas das diferenres tradições culturais envolvidas. Desse conjunto de regularidadcs decorre um modo de ser característico de grupos indígenas assistidos pelo órgão tutor, modo de ser que cu poderia chamar de indianidade para distinguir do modo de vida resultante do arbitrário cultural de cada um (Oliveira 1988: 14). São diversos os fatores que apontam para a indianidade na área indí­ gena A tikum . Pode-se percebê-la, em term os de sua atividade econôm i­

ETNOGÊNESE E "REGIME DE ÍNDIO" NA SERRA DO UMÃ

ca, na utilização da principal casa de farinha adm inistrada pelo posto indígena ou em outras benfeitorias efetivadas pelo SPI e/ou FU N A I. P orém são d uas as in stân cias c u ltu ra is q u e m ais se d estacam ao espelharem a indianidade do grupo. U m a delas está no âm bito político, onde os papéis (cacique, pajé, representantes, chefe de posto, etc.) foram determ inados pelo SPI/FU N A I; outra está no âm bito ritual, onde tam ­ bém foi o SPI que impôs a tradição que deveria ser exibida pelos índios. Q u a n to aos aspectos rituais, de fato os A tikum , ao aprenderem o toré, foram se especializando cada vez mais em tal prática ritual. C ons­ tituíram um corpo de saber denom inado por eles de “ciência do índio”, revestida p o r um a aura de m istério, e que m arcaria sua especificidade com o grupo étnico (sua etnicidade). N a verdade, esse corpo de saber é dinâm ico e seus ingredientes m utáveis, pois novos elem entos surgem du ran te os rituais e são incorporados pelos seus praticantes. M as se esse corpo de saber é fluido, deve existir algo para garantir o desem pe­ nho ritual que marca a sua indianidade, ou seja, que confirm e periodi­ cam ente a sua condição de índios diante das expectativas do Estado —e isso só pode ser visualizado na prática ritual. E preciso, portanto, ter um “regim e de ín d io ”. É preciso que os m em bros do grupo sejam “regimados no toré”, independentem ente de serem detentores de saberes mais profundos, para que o grupo se m ostre, de form a essencial­ m ente política, como a “com unidade indígena de A tikum -U m ã”. C o n ­ tudo essa prática é decorrente de um a imposição do órgão tutor, sendo, portanto, parte da indianidade na Serra do Uma.

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A VIACEM DA VOLTA

S h e i l a B r a s il e ir o

Povo indígena Kiriri: em erg ência étnica, conquista te rrito ria l e faccio n alism o

Este trabalho é fruto de um a pesquisa realizada entre os anos de 1989 e 1996.1 Apresenta, a partir de um a perspectiva situacional, um conjunto de eventos que se afiguram exem plares do processo de constituição étnica do povo indígena Kiriri. Nesse processo, práticas orientadas para a produção de um a ética singular, fundada no conhecim ento e no reco­ nhecim ento de m odos de agir caracteristicam ente indígenas, enfatizaram a organização de um sistema de autoridade interna, o trabalho com uni­ tário c a adoção de um ritual. Esses elem entos operariam como eixos organizativos da etnicidade kiriri, considerados os diversos m om entos históricos e pressões de toda ordem que p o n tu a ra m um a relação de mais de três séculos com a sociedade regional. M uitos grupos indígenas localizados no N ordeste do Brasil tiveram diluída, nesse contexto, a sua condição etnicam ente diferenciada. D e alguns deles guardam os hoje parcos testem unhos; ainda assim, teste­ m unhos de um a existência sempre referida a um passado efêmero, não atualizado. O utros, a partir da segunda m etade do século XX, lograram rcemergir com o segmento étnico, através de processos de reestruturação sócio-organizativos, engendrados em situações de renovadas pressões fundiárias e articulados a um cenário de legitimação form al mais favo­ rável e à m ediação de antropólogos e organizações da sociedade civif interessados na história e no destino dos povos indígenas. N o caso dos Kiriri, instalados no norte do estado da Bahia, em parte do território dos atuais m unicípios de Banzaê e Q uijingue, um a “linha”

1 Q ue se desdobraria em uma dissertação de mestrado defendida em 1996, no Mestrado em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Hum anas da UFBA.

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étnica divisória perm aneceu sem pre viva, ainda que não inalterada, no cam po intersocietário instituído p o r jesuítas em seu aldeam ento, cm fins do século XVII.

A aldeia de Saco dos M orcegos

Farra docum entação histórica confirm a a presença dos Kiriri no N o r­ deste desde fins do século XVII (M am iani 1877, Leite 1943, N antes 1952). O trabalho missionário com esses índios originou-se na segunda m etade desse século, em data imprecisa. A aldeia de Saco dos M orce­ gos, atual M irandela, foi um a das quatro fundadas na região pelo jesu­ íta português João de Batros para reunir os Kiriri2 e, como as demais, sofreu as pressões e disputas ocasionadas pela célere expansão da pecu­ ária, com andada pelos senhores da Casa da Torre, sesmeiros das terras. O bjetivando p ô r fim aos constantes conflitos entre os senhores de ter­ ras e os religiosos na adm inistração das aldeias, em 1700 o rei de Por­ tugal, por solicitação destes últim os, destinou, através de um alvará, um a 'légua em quadra” de tetras a todas as aldeias m issionárias dos sertões com mais de cem casais. Isto é, um a légua de sesmaria, que corresponde a um a área definida p o r um raio de 6.600 m, do centro a todas as partes. C om o em outras aldeias na região, tam bém a de Saco de M orcegos, que reuniu os Kiriri que habitavam o sertão nordeste do que é hoje o estado da Bahia, seria atingida pelas compulsões e disputas decorrentes da expansão da pecuária, com andada pelos senhores da Casa da Torre, sesm eiros de um a m u ito am pla extensão de terras. Assim, Saco dos M orcegos, com um a população então estim ada em setecentos casais, foi delim itada conform e o costum e na época: da igreja m issionária aos oito p o n to s cardeais e colaterais, form ando um octógono regular de 12.320 ha (Bandeira 1972). Em 1758, menos de um século após a sua criação, a aldeia de Saco dos M orcegos seria elevada à condição de vila e ocupada progressiva­ m ente por segmentos cam poneses depauperados, repelidos pela pecuá­ ria das áreas mais férteis do agreste. O quadro de perseguições e des’ As demais aídeias constituídas pelos jesuítas eram assim denominadas: Canabrava, atual cidade de Ribeira do Pombal/BA; Natuba, atual Nova Soure/BAe Jeru, atual Tomar do

Geru/SE.

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A VIAGEM DA VOLTA

m andos adm inistrativos que dom inou a cena no século XIX e caracteri­ zou a ação dos D iretores de índios, funcionários geralm ente ligados a interesses locais, agravar-se-ia ainda mais com a extinção desse siste­ ma; como conseqüência, durante os cinqüenta anos seguintes, os Iviriri não encontrariam qualquer eco oficial à sna condição de etnia diferen­ ciada. D uranre todo esse petíodo, pode-se supor que boa parte das terras da antiga aldeia de Saco dos M orcegos — os 12.320 ha que com preen­ dem a légua em quad ra - tenha sido negociada sob diversas form as pelos próprios índios, constrangidos p o r um a situação de m iséria e abandono, ou mesmo p u ra e sim plesm ente grilada por posseiros e p e­ quenos fazendeiros. Desse m odo, a população kiriri gradualm ente se dispersaria a p a rtir do núcleo central, M irandela, passando a ocupar, em seu en to rn o , pequenos nichos de declive acentuado, pois pouco atrativos à instalação de outrem .

A "légua em quadra"

H istoricam ente, é possível reportar um a prim eira aproximação dos Kiriri a um a idéia de território — assim com o o conhecem os hoje, com seus limites bem definidos - à época da doação da légua em quadra, N os trezentos anos de contato ininterrupto com a sociedade regional, a necessidade de assegurar a posse e usufruto de um território exclusivo fortalecet-se-ia entre os Kiriri, condição sine qua non de viabilização da sua continuidade como segmento portador de sinais diacríticos definidos como conform adores de um a etnicidade (Carneiro da C unha 1986a). C om o parte essencial desse processo, a necessidade de possuir um espaço com um se impõe com um a força extraordinária não apenas em nom e de um presente conflituoso, caracterizado por um contexto de extrem a escassez de recursos, ou mesmo de um fururo, referido à perpetuação do grupo como tal, mas tam bém de um passado rem oto, no qual radicaria, em ú ltim a in srâ n c ia , a le g itim id a d e da sua c o n d iç ã o é tn ic a , os fundam entos da sua identidade coletiva (M atié 1986). D e m odo geral, contudo, as representações “nativas” sobre o seu território são forjadas no presente, de forma siruacional. A terra indígena constitui um fato sóciopolítico (Raffestin 1986), construído m ediante estratégias de aproxim ação e de distanciam ento em relação à so c ied a d e c irc u n d a n te , a trav és de c la ssificaçõ es e

POVO INDÍGENA KIRIRI

recíassificações do espaço político-sim bólico, processo para o qual con­ co rre de m o d o decisivo a atu ação de diversos agentes no cam po interétnico em que se inscrevem os Kiriri. A im plantação de um a adm inistração civil nas aldeias do sertão im ­ plicou em um a significativa abertura para a invasão das terras indígenas e um a diluição étnica à qual não resistiriam as demais aldeias kiriri, depois de elevadas à condição de vilas e subm etidas à adm inistração dos D iretores de índios, ao longo do século XIX (Bandeira 1972). A sobrevivência de M irandela com o red u to que abrigaria a população dessas vilas pode ser atribuída a um a localização mais afasrada das rotas da p ecu ária e à relativa inferio rid ad e de suas terras. A presença de segm entos cam poneses nio-indígenas em M irandela, tam bém repeli­ dos das áreas mais valorizadas do agreste, não determ inou um a compulsão irreversível para os K iriri, ain d a que lbes ten h a restringido drastica­ m ente o espaço disponível: uma pequena faixa íngrem e de terras onde até recentem ente se concentravam , em cinco núcleos m arginalm ente localizados, circundados por pequenos povoados de “regionais”. Em um contexto em que lhes era retirada qualquer possibilidade de legitimação oficial da sua condição, explica-se a adesão, em fins do sé­ culo XIX, de grande núm ero de famílias kiriri a A ntônio Conselheiro conhecido em suas peram bulações pela região - e a conseqüente migra­ ção para o Arraial de Canudos, percebido no imaginário dos índios co­ m o o ideal de um a sociedade mais justa e eqüitativa (M ascarenhas 1996). C om a repressão a Canudos, os índios sobreviventes, assim como m ui­ tos pequenus camponeses regionais, foram fortem ente perseguidos; os que conseguiram retornar a M irandela encontraram boa parte de suas terras ocupadas.3 Além das perdas territoriais, a G uerra dc C anudos acarretou perdas culturais significativas para os Kiriri. Em C anudos, dizem, pereceram im portantes líderes religiosos e os derradeiros falantes da língua nativa, enfraquecendo a prática dos rituais e, acima de tudo, com prom etendo a com unicação com os “encantados”, seres sobrenaturais que desem pe­ nham papel crucial em seu sistem a de crenças. Ao lado da língua, o ritual “cururu”, hoje referido pelos inform antes mais idosos como base “religiosa” do grupo, foi encerrado ju n to aos velhos kiriris m ortos em com bate (Bandeira 1972,1.

3 À história oral dos Kiriri identifica nessa época o maior avanço sobre seu território.

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A VIAGEM 0 A VOLTA

Em 1941, após mais de cinqüenta anos sem qualquer reconhecim en­ to oficial, a existência dos Kiriri com o segmento etnicam ente diferenci­ ado, a despeito de toda a miséria e submissão socioeconôtnica em que se encontravam nos arredores de M irandela, não pôde mais deixar de ser percebida pelo Estado Nacional, Pressionados pelas constanres intrusões de pequenos posseiros regi­ onais cm seu já exíguo território, eles reivindicaram ao então interventor estadual Landulfo Alves o reconhecim ento do direito à “légua em qua­ dra”. Era época do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), criado em 1910 p o r iniciativa do M arechal R on d o n com o um a resposta oficial aos problem as causados aos povos indígenas pela “m archa para o oes­ te ”, que então investia sobre os flancos m eridionais da Amazônia. In tri­ gado com a insistência dos “caboclos” em afirmar a existência de um a “colônia indígena” em M irandela, Landulfo Alves solicitou ao SPI a instauração de um inquérito para apurar os fatos. Iniciado o processo, a prim eira providência tom ada pelo órgão foi a de enviar um engenhei­ ro do M inistério da A gricultura à área para contatar os índios e esclare­ cer a questão (Rosalba 1976). E m pesquisa no A rquivo Púhlico, o engenheiro encarregado Luiz A dam i encontrou referências, ainda que contraditórias, aos limites re­ feridos pelos índios, à doação de 1700. Posteriorm ente, no relatório de sua visita à M irandela em 1941, A dam i apontou a existência de um a liderança entre os Kiriri, um certo capitão4 Ângelo, “a quem eles obede­ cem sem discutir”, que teria, juntam en te com mais cinqüenta índios, colaborado em seu trabalho de precisar os lim ites da área concedida pelo alvará e referida pelos inform antes com o um “chapéu de sol”. N a visão de A dam i, contudo, os dados obtidos através do depoim ento des­ ses índios não foram suficientes para definir com segurança o perím e­ tro da área: ele term ina por concluir pela necessidade de um a “inspeção mais autorizada”, N o entanto, a visita foi produtiva ao menos no senti­ do de constatar que boa parte da área reivindicada pelos Kiriri sc en­ contrava realm ente invadida por regionais, ainda que, de acordo com o engenheiro, em decorrência da venda p o r parte dos próprios índios de roças e outras benfeitorias (Rosalba 1976). O relatório de Luiz Adam i ressalta ain d a a d ependência dos K iriri para com os regionais, sua * Patente introduzida pelos missionários, que designava, nas aldeias, um índio nom eado pelo governador da província para exercer o papel de interm ediador ju n to à sociedade colonial.

POVO INDÍGENA KIRIRI

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“descaractcrizaçâò. culíural” c a presença m arcante do alcoolismo: têm inclinação pelos espíritos fortes, ' ite a cachaça da qual são grandes, consum idores’’ 21}i: X u o i u O confió am en to dos; K iriri e m 'terras inóspitas co n trib u iu para a dependência crescente do grupo em relação à sociedade regional e tam ­ bém para a restrição de suas atividades de subsistência, bem como dc toda u suã. cultura m aterial. A necessidade progressiva de trabalho exte­ rior faD4rnjidled%éndígei-.. •: - i r a suprir a renda familiar estim ulando a coiitpe t-içgo: ■ \es inexi os diversos conflitos suscitados pela pos­ se; dk‘i. j t ;: i,ti m antim ento de inferioridade gerado pelo processo de disérfnriW çãò estão sem dúv id a en tre os farores responsáveis pela pauperizaçio e relativa desorganização social e política desses índios, mas tam bém pela m anutenção de um a certa consciência étnica, ainda que cm m uitos aspectos negativam ente valorada. O processo insraurado em 1941 rram itou cerca de quatro anos no M inistério da A griculrura, sendo finalm ente arquivado, sem solução, pelo SPI. Apenas em 1947, por iniciativa do padre Galváo, pároco do m u n icíp io de Cícero D antas, vizinho ao dos K iriri, ele seria desarquivado. Sensibilizado com as precárias condições de vida desses índi­ os, G alváo — possuidor de grande carism a em to d a a região, o que inclusive o notabilizaria politicam ente em oposição às oligarquias tradi­ cionais - escreveu um a série de três cartas ao M arechal R ondon, solici­ tando a dem arcação da área e a instalação de um posto indígena em M irandela. A insistência de Galvão somou-se à existência de um con­ texto favorável ao reconhecim enro dc povos indígenas no N ordeste por parte do órgão indigenista oficial. Assim, o processo retom ou seu cur­ so: o sertanista Sílvio dos Santos seguiu para M irandela a fim de verifi­ car a real situação dos “caboclos”. A ntes de tudo, cham ou a atenção do sertanista a precisão com que os Kiriri referiam e desenhavam o form ato octogonal do “chapéu de soi” delim itador dc seu território, sendo ainda capazes de identificar a localização dos oito marcos que o demarcavam, em bora estes há m uito tivessem sido destruídos ou deslocados. N a falta dos marcos originais, os índios elegeram marcos naturais, que grosso modo m antinham a con­ figuração original: do cum e do Pico, ao norte, à Pedra da Bica ou do Suspiro, a nordeste; daí ao Pau-Ferro, na estrada para Salgado, a oeste, local do atual povoado de mesm o num e; du Pau-Ferro à Pedra Escrevida, na Baixa do ju á, a sudoeste; daí à Pedra do Batico, a exrremo-sul dessa área, na estrada para Pom bal; do Batico à Casa Vermelha, na estrada

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A VIAGEM DA VOLTA

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para Curra! Falso, a sudeste; deste local à Pedra do G entio, a leste; daí à M arcação, antiga fazenda e atual povoado, na estrada para Banzaê, a nordeste, e daí, finalm ente, ao ponto de origem. D o relarório de Sílvio dos Santos depreende-se que os K iriri, não obstante a sua situação francam ente desfavorável no contexto regional, já aprcsenravam em algum nível um a estruturação política cujo delineam ento básico — lideranças com papéis similares aos dos atuais caci­ ques e conselheiros - m antém -se ainda hoje: Como sendo numerosos, habitando uns relativamente distantes dos outros, tiveram a idéia de organizar grupos em número de seis, sendo indicado entre eles, cm cada grupo, um elemento de maior confiança que zela pelos interesses comuns do grupo e urn que é mentor da coletividade indígena e que á ouvido também pelos chefes dos grupos. Este é o índio Josias, homem de boa formação moral, íntegro e merecedor de grande admiração por parte dos seus concidadãos. Se interessam pela consolidação da família indígena em vários detalhes e, até, fazem o recenseamento da população, como o fizeram e me declararam que, há quatro anos passados, verificaram a existên­ cia de oitocentos e nove pessoas (Rosalba 1976: 52-3). Em 1949, a instalação do Posto Indígena de Tratam ento Góes Calm on em M irandela redim ensiona o cam po de forças ali presente, proporci­ onando aos Kiriri am paro legal à condição de grupo etnicam ente dife­ ren ciad o . O Posto In d íg e n a in au g u ra um a nova etapa na situação interétnica: dotado de escola e de enfermaria, conta com dois funcioná­ rios, um encarregado e um a professora, indicados pelo Pe. Galvão. A presença do SPI não foi, contudo, suficiente para solucionar os graves problem as que afligiam o povo Kiriri, já que se lim itou a distri­ buir ferram entas agrícolas, rem édios e móveis escolares. A questão do território, móvel do processo reivindicatório que culm inaria na instala­ ção do PI, só seria concretam ente tratada a partir dos anos 1980. Em que pese o enfoque paternalista assumido pelos seus encarregados e o âm bito restrito de sua atuação, o Posto exerceria um papel fundam ental de m ediação de conflitos entre os índios e os regionais.

A " co n stru ç ã o " do g ru p o

Ao longo dos anos 1950 e 1960, a progressiva falência institucional do SPI (Souza Lima 1993) reflete-se em seu posto de Mirandela: desaparelhado

A VIAGEM DAVOLtA

e, mais do que isso, envolvido no jogo clientelista da política regional. N o final da década de 1960, a situação dos Kiriri é ainda bastante precá­ ria: altos índices de m ortalidade e alcoolismo, disputas entre núcleos, discriminação e coerçao dos regionais, aos quais se acrescenta m anipula­ ção política e econômica por parte do órgão tutelar (Bandeira 1972). E m 1968, os Kiriri estabelecem um a parceria com missionários Bahai, religião de origem persa, que am pliaria os seus horizontes de atuação e ensejaria um a reestruturação na sua organização sociopolítica, propor­ cionando-lhes não apenas m ecanism os de contraposição política e ide­ ológica aos regionais, mas sobretudo um modelo organizativo mais efi­ caz — gestado nas assembléias coordenadas inicialm ente pelos B ahai entre os Kiriri — além de um cenário fértil para a formação de novas lideranças.5 A presença bahai institui um vínculo de dependência sócio-religiosa que extrapola o plano local, ao m esm o tem po em que revitaliza m odelos “próprios” de organização com unitária. Vale notar que no caso dessa religião, com o no de m uitas outras de introdução recente no Brasil a p artir de m issionários norte-am ericanos, h á um a inequívoca predileção por segm entos socialm ente m arginalizados em contextos urbanos e rurais, para os quais a nova identidade religiosa constitu i, além dos claros apelos salvacionista e m essiânico, um ele­ m ento de oposição, ainda que m uitas vezes não explicitado, às camadas dom inantes. A relação dos índios com esses missionários se fortaleceria a parrir da iniciativa destes últimos de interm ediar ju n to ao Governo Esta­ dual a construção de uma escola no mais populoso dos núcleos residenciais kiriri. Esse fato firma os Baha’i como um a alternativa mais eficiente às anreriores, ou seja, a FU N A Í, a Igreja Católica e os regionais circundantes. A cam panha de com bate ao alcoolismo, estim ulada no contexto dos dogm as dessa religião, afigurar-se-ia aos índios com o um a possibilida­ de de integração ao quadro regional, atenuando-lhes o referencial este­ reotipado de “caboclos bêbados e preguiçosos” (Bandeira 1972). Isto posto, em bora pareça ingênuo superesrim ar o papel da fé baha’i no processo de organização com unitária kiriri, e a despeito do m odo frag­

1A ‘fé’ bahai preconiza a eliminação de todo preconceito, fundada no pressuposto de que a unidade do gêneto hum ano deve basear-se na manutenção da diversidade', para fazer face ao processo de globalização atualmente em curso. Assim, os princípios bahai devem se adequar aos contextos históricos dc cada época. Nesse sentido, ela enfatiza ainda a necessidade da existência de uma m aior interação entre a religião e a ciência, conforme o argumento de que “religião sem ciência vira fanatismo".

POVO INDÍGENA KIR[RI

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m entário com que os princípios religiosos seriam apropriados por es­ ses índios — cuja adesão, aliás, entraria cm franca decadência no início dos anos 1980, por ocasião do acirram ento dos conflitos ensejados no processo dem arcatório — ê iniludível o valor da contribuição, para a construção do povo kiriri, de aspectos ideológicos advindos dessa “fé”, que se consubstanciariam em 1972 com a indicação de Lázaro, um líder form ado nos “quadros” bahái, para o cargo de cacique. Pode-se afirm ar que a “eleição” de Lázaro representou um evento divisor de águas na história do povo kiriri. Em um a escala progressiva­ m ente am pliada, que extrapola o campo político kiriri, abarcando ou­ tros povos indígenas no N ordeste, a função de cacique se revestiria de novas atribuições, atualizadas essencialmente em um campo indigenista em formação, com posto de antropólogos e diversas organizações nãogovernam entais, destacadam ente o Conselho Indigenista M issionário (C IM I), que p ro m o v eria assem bléias p articip ativ as, e stim u lan d o a mobilização e a circulação de informações entre os índios no N ordeste. Nesses encontros, que transcorreram segundo os moldes da linha de atuação popular da Igreja Católica, conform aram -se alguns dos critéri­ os que m elhor definiriam a representatividade política dos líderes emergenres nos anos seguintes. O período que antecedeu a eleição de Lázaro não foi m arcado por um a ausência de lideranças políticas entre os Kiriri. Por exemplo, entre ds anos dc 1968 a 1972, D aniel, um broker indígena local (M ayer 1987), então conselheiro de um dos núcleos, afirma ter “lutado " como caci­ que. O seu desem penho, contudo, atendia aos imperativos de urn m o­ delo tradicional e am plam ente dissem inado de liderança cam ponesa, fundado em um código de relações clientelísticas e am parado etn víncu­ los duradouros de afinidade e de parentesco e na interm ediação de bens e serviços. Em depoim ento, Daniel relatou a sua experiência como cacique, afir­ m ando não dispor de algumas das condições e atributos que valora como requerim entos essenciais para um exercício com petente do cargo: Essa época, para mim, foi uma época difícil porque eu trabalhei sem apoio, sem ter conhecimento; a FUNAI também não tinha muito conhecimento porque o chefe de posto também era um leigo, não tinha cerra instrução e eu também não tinha (Baixa da Cangalha, junho 1993). Discorrendo sobre os fatores que reriam possibilitado a ascensão e con­ solidação de Lázaro como líder, Daniel relaciona o “capital social" (Bourdieu

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A VIAGEM DA VOLTA

1992) reunido pelo atual cacique, creditando aos Bahai boa parte da sua “form ação”: “Ele até desenvolveu que ele já tinha um bom conhecimento. Ele, nesse tempo, já tinha ido à Bolívia, estudado com os Baha’i. C om isso, ele cresceu e desenvolveu” {Baixa da Cangalha, junho 1993). C iente da im possibilidade de sua adequação às injunções políticas contem porâneas, que clam avam por um “tip o ” de perform ance mais combativa, voltada para a exacerbação dos conflitos étnicos —sob pena de ver enfraquecidos seu poder e prestígio e levando em conta que suas bases de sustentação e persistência com o líder se encontravam referidas a um contato direto e personalizado com um a clientela que incluía ampla m argem de regionais6 — D aniel o ptou por renunciar ao cargo, convo­ cando um a “assembléia” para a escolha de um novo cacique. A essa altura, já se encontrava am adurecida entre os Kiriri a consci­ ência da necessidade de um a estrutura organizativa independente poli­ ticam ente, que confrontasse os regionais, efetivando o processo de luta coletiva pela demarcação do território.

Poder político e ritual

Eleito, Lázaro vislum brou de im ediato a necessidade dc tentar resgatar ou produzir em seu povo alguns dos traços e valores da “identidade” indígena considerados tradicionais pela sociedade nacional, tais como a prática de rituais c dc outras atividades comunitárias. Os B ahai haviam introduzido elementos de um a moral religiosa orientada para a erradicação ou contenção de com portam entos tidos como “desviantes”, quais sejam, o alcoolismo e o roubo. Além disso, buscaram reforçar nos índios um sentim ento de solidariedade que ultrapassasse aqueles objetivos circuns­ critos pelo plano imediatam ente individual, criando as condições pata o surgim ento de condutas orientadas para a constituição de um “grupo”. Todo o trabalho dc representação política (Bourdieu 1989) orientarse-ia para o objetivo de procurar suplantar as cspecificidades socioeconôm icas de cada núcleo, que até então definiam m ais claram ente o grupo social de referência dos indivíduos, visando à construção dc uma

6 “Ah. o pessoal do Biombo [povoado regional contíguo ao núcleo] gosta m uito de m im , eu sei conviver com eles. Do jeito que eu ajeito pros índios e tam bém quando chega em meu lado, aquilo que eu posso servir eu ajeito, né? N unca deixo sem atender eles de jeito nenhum " [Baixa da Cangalha, novembro 1993)-

POVO INDÍGENA KiRIFl!

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consciência coletiva e m ediante a eleição do critério de pertencim ento étnico com o realm ente definidor da integridade social de um povo, Portanto, não mais “eu sou caboclo do Canragalo [ou da Lagoa G rande etc.]”, porém , “eu sou índio kiriri”. Nesse cenário, coube a Lázaro orquestrar a “passagem do individual ao coletivo” (Bourdieu 1984). A fim de consolidar a sua representatividade com o líder, ele procu ro u articular inicialm ente os elem entos políticos internos, visitando os núcleos e ali fortalecendo alianças com líderes tradicionais, cooptando-os para respaldar as suas ações na con­ dição de "conselheiros” que atuariam com o porta-vozes e m ediadores seus com a com unidade indígena. Paralelamente, o novo cacique em ­ preen d eu um a série de viagens, fam iliarizando-se com os m eandros adm inistrativos da política indigenista oficial e estreitando relações com outros povos indígenas e com agentes de organizações de apoio. Dois anos após a sua indicação, ele organizaria um a caravana com cerca de cem kiriris à “aldeia” dos índios Tuxá, em Rodclas/BA, a pretexro de realizar um jogo de futebol en tre os dois povos, mas já com a clara intenção de assistir ao ritual Toré realizado por aqueles índios. O Toré é parte de um conjunto mais am plo de crenças — no centro do qual se encontra a “jurem a”7 — que podem ser agrupadas em um complexo ritual com um aos povos do sertão (N ascim ento 1994). Vale ressaltar q u e a relevância desse ritual e n tre os ín d io s no N o rd este extrapola o campo estritam ente religioso, ramificando-se em outras es­ feras, notadam ente a política, a qual em certas situações sociais assume preponderância sobre o elemento religioso (Turner 1969b). In tu in d o representar o Toré, um sím bolo de união e dc etnicidade entre os índios no N ordeste —foco privilegiado de poder, fornecedor de elementos ideológicos de unidade e de diferenciação e, portanto, fonte de legitimação de objetivos políticos — o cacique predispôs o seu “gru­ po” a adorá-lo. Para tanto, contou com o auxílio de dois pajés ruxá que perm aneceram entre os Kiriri durante o tem po necessário ao aprendi­ zado do ritual. “O Toré é coisa só de índio e nós estamos provando para os brancos que temos costumes diferentes, que, portanto, somos ín d i­ os” (Lázaro, Sacão, m arço 1991). O processo de adoção do Toré é m elhor viabilizado no plano sim bó­ lico: por um lado, pela sua relação com certas práticas xamanísticas e

7Jurem a (Mimosa nigra) é uma planta de cuja entrecascase extrai bebida alucinógena, de uso ritual m uito difundido no N ordeste.

a v ía c e m d a v o l t a

mágicas então vigentes entre os K iriri, selecionadas com atenção ao critério de representatividadc étnica; por outro, fruto da sua incorpora­ ção ao cotidiano desses índios, como o delineam ento de um prim eiro fator de legitimidade étnica. Aqueles que não se adaptaram aos proce­ dim entos utilizados no ritual, que não “aliaram os seus guias aos guias do Toré” foram marginalizados e, em alguns casos, compelidos a migrar. D e fato, na época, alguns kiriris realizavam “trabalhos” nos m oldes da tradição rural/sertaneja - isto é, práticas de caráter dom éstico, de incorporação xamanlstica, evenrualm ente associadas a elementos da tra­ dição africana, especialmente ao “X angô” — atuando basicam ente atra­ vés de consultas individuais. C om a entrada em cena do Toré, tais “tra­ balhos” ganham paulatinam ente um a conotação negativa, respaldada pelos “ensin am en to s” dos pajés tuxá presentes na área kiriri. C om o afirm a o índio C arlito, que acom panhou todo o processo: As pessoas que trabalhavam naquele tem po eram Justino Preco, Pedro Caçuá,

D. Romana, Cesário da Cacimba Seca, [...] esse trabalha não é trabalho de índia [ ] aí eie [o pajé tuxá] disse que trabalho de índio tinha que sc fazer era com jurema, era com outro não sei o quê, tinha que pegar maracá, tinha que fazer uma canga de caroá [...] esse trabalho de Xangô não se dá bem com o Toré (Salvador, junho, 1992). Sobre a estrutura física do ritual, os Kiriri introduziram progressiva­ m ente novos elementos: seus “encantados”8, acrescentados àqueles to ­ m ados de em préstim o aos Tuxá, aos poucos assum iram lugar de desta­ que; ao re p e rtó rio m elódico “o rig in a l”, ad icio n aram seus p ró p rio s “roantes” e mesmo as bases coreográfca e de vesruário passaram por inovações (M artins 1982). O Toré é geralm ente realizado aos sábados à n oite - com um a in ­ terrupção apenas nos períodos d a q uaresm a - em am plos terreiros ju n to aos quais há sem pre algum recinto fechado, no qual se deposita o p o te com a “ju re m a ” e se d esd o b ram as seqüências p rivadas do ritu al. A cerim ô n ia tem início com a co n cen tração de pessoas nas im ed iaçõ es do terreiro e n o re c in to fech ad o em que p rin c ip ia a defum ação. Em seguida, esta se estenderá ao terreiro através de gran­ des cachim bos de m adeira de form ato cônico, com desenhos em rele­ vo. Inicia-se tam bém aí a ingestão da “jurem a”, que se intensificará d u ra n te a dança, d istrib u íd a sem pre pelo conselheiro local ou p o t s -Seres ‘sobrenaturais’ de papel crucial no sistema de crenças kiriri.

POVO INDÍGENA KIRIRI

outra figura de destaque na hierarquia ritual e política. Passando-se ao terreiro, prosseguem os trabalhos de “lim peza”, com andados pelo pajé, q u a n d o en tão , através do uso de apitos, os “e n c an ta d o s” são convidados a participar. C om eçam os cantos e as danças, inicialm en­ te em fila indiana, com o pajc à frente, seguido pelos hom ens, m u lh e­ res e crianças, nesta ordem . A fila serpenteia pelo terreiro em m ovi­ m entos elaborados à m edida que os toantes se sucedem , intensifican­ do o envolvim ento dos participantes até o clímax, que sobrevêm com a “chegada” dos “encantos”, perceptível nos evidentes sinais de incor­ poração apresentados pelas “m estras”. A essa altura, as disposições se alteram e a I srarquia horizontal da fila indiana cede lugar a m ovim entos em torno dos encantos, que ocupam posição central no terreiro e pouco se deslocam, enquanto principiam a falar um a língua pretensam ente indígena, ritual que consiste em um a seqüência de sons bastante recorrentes e incompreensíveis para os Kiriri de boje. São em seguida conduzidos ao recinto — a “camarinha” — onde serio consultados com relação aos mais diversos temas, fornecendo con­ selhos de caráter genérico, que reproduzem os ideais de unidade do gru­ po. O s interlocutores e intérpretes principais das suas mensagens são as lideranças políticas dos Kiriri e, em especial, os pajés (Rocha Jr. 1983). O cargo de pajé Foi criado em decorrência da adoção desse ritual e suas funções incluem tam bém a responsabilidade pela coordenação e direção do Toré — isto é, o pajé deve acom panhar atentam ente os des­ dobram entos das seqüências rituais - e a m anutenção dos padrões de com portam ento requeridos pela cerim ônia. Sendo o Toré, em princí­ pio, vedado à participação e m esmo ao conhecim ento de não-índios, cabe ao pajé conceder a necessária autorização para que os considera­ dos am igos possam estat presentes. E im portante notar que, representando o ritual o principal espaço de articulação entre os Kiriri, p o r ele passam todas as alianças e disputas que lhe são próprias. Através das consultas aos “encantados” são realiza­ das discussões coletivas e tom adas as decisões que o rien tam a vida socíopolítica do grupo (M artins 1982).

Rumo à dem arcação

A partir da estruturação dos Kiriri com o grupo étnico, serão instituídas novas “linhas de oposição” (B arth 1984), referidas aos diferenciados

a v m c em d a v o lta

modos de inserção e dc aceitação dos indivíduos ao projeto com unitá­ rio em curso, além de critérios mais e mais inclusivos de participação que favorecerão a em ergência de líderes representativos cm cada n ú ­ cleo, de m odo geral desprovidos do capitai social tradicionalm ente re­ querido ao exercício desta posição. E n tretan to , os aspectos conflitivos oriundos desse processo ganha­ rão, nessa fase, m aior relevância no contexto interétnico e as novas orientações políticas dos Kiriri se afigurarão aos regionais como um a n ítid a am eaça à reprodução da estrutura de subordinação vigente. O acirram ento da tensão interétnica conduz o m ovim ento indígena a orientar-se abertam ente para a conquista da terra, centrando-se na condu­ ção de um pleito pela demarcação e exrrusão dos não-índios do territó­ rio indígena, com base na definição da área originalm ente cedida pelo Rei de Portugal, ou seja, os 12.320 ha que com preendem a “légua em quadra”, e, internam ente, em apropriações parciais, simbólicas e efeti­ vas desse território, que destaco esquem aticam ente a seguir9: Cronologia das “retomadas” 1979 - Organização de uma roça comunitária, situada no sul do território indígena, na estrada que liga o povoado de Mirandela ao município de Ribeira do Pombal; 1981 - Demarcação da Terra Indígena Kiriri com 12.320 ha, englobando quatro povoados de regionais até enrão reconhecidos pelos índios como limítrofes ao seu território: Marcação, Baixa do Camamu, Segredo e Pau-Ferro; 1982 —Reordenaçáo espacial do núcleo Sacão, onde habita um dos caci­ ques, com construção de moradias dispostas circularmente em torno da centro comunitário; 1982 - Ocupação da fazenda Picos, localizada no núcleo da Lagoa Gran­ de, maior fazenda no interior do território indígena (com uma extensão de pouco mais de mil hectares); 1985 — Ocnpação de uma fazenda de cerca de 700 ha, localizada no núcleo da Baixa da Cangalba; 1986 —Os Kiriri fecham importante estrada de acesso de Mirandela ao povoado de Marcação, retirando todas as posses e roças de regionais ali localizadas; 1989 —Cerca de quarenta famílias kiriri de uma das facções “acampam” em 5 Para o que contribuiu a consolidação de uma base institucional antes inexistente: a FUNAI e o apoio de organizações civis: ANAfíBA, C IM I, CTI (Centro de Trabalho Indigenista).

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Mirandela, após terem suas moradias parcialmente destruídas por uma enchente. Mantêm-se permanentemente no local; que se constitui ainda hoje cm um núcleo dc resistência e pressão frente aos regionais; 1991 - A FUNAI indeniza cerca de dez casas habitadas por regionais em Mirandela e famílias kiriri imediatamente as ocupam; 1992 —Após a saída tempestuosa de um chefe de posto da Terra Indígena, uma família kiriri ocupa a sua casa. O novo "chefe” é constrangido a habitar com a família indígena, na própria sede do Posto, que também funciona como farmácia. 1993 - Os Kiriri impedem a realização de melhorias, por parte da Prefei­ tura de Banzaê, em um trecho de estrada que reduziria a distância entre Ribeira do Pombal e a sede do município de Banzaê; 1995 - Após acirrados conflitos, A FUNAI indeniza as 176 ocupações de regionais que constituem o povoado de Mirandela; 1996 —Exrrusão do povoado Gado Velhaco; 1997 —Extrusão do povoado Pau Ferro; 1998 —Extrusão dos povoados de Marcação, Araçá, Segredo, Baixa Nova e Baixa da Cangai ha. M ediante tais estratégias, portanro, os Kiriri vão ocupando signifi­ cativas porções da terra indígena, desalojando alguns de seus mais p o ­ derosos inim igos: fazendeiros bem relacionados no circuito regional. Finalm ente, esses índios visualizam a possibilidade de auferir certos ganbos políticos e de reestruturar a sua tão depauperada econom ia. As sucessivas “retom adas”, am plam ente divulgadas na im prensa e no cam ­ po indigenista em gerai - Estado, Igreja, entidades de apoio, lideranças indígenas — trouxeram prestígio e visibilidade política aos Kiriri, sendo apontadas como um exemplo a ser seguido por outros povos indígenas no N ordeste. A consolidação de um a posição estrategicam ente mais favorável a esses índios na cena política mais am pla ensejou cerca reestruturação nas suas relações com o Estado N acional e, notadam enre, com o seu principal m ediador, o órgão tutelar. Assim, torna-se compreensível que as ações sistem aticam ente em preendidas pelos Kiriri com vistas à apropri­ ação do território tenham progressivam ente se estendido em direção a um m aior controle do espaço físico ocupado pelas instalações da FU N A I na Terra Indígena, o que evidencia um a significativa m udança de ex­ pectativa com relação às atribuições desta últim a. Se antes prevalecia um a tendência de considerar os bens indenizados como sendo de res­

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ponsabilidade im ediata do órgão tutelar, presentem ente os índios pare­ cem ter passado a se perceber com o gestores de seu próprio território, assim como do patrim ônio indígena em geral. A representatividade do cacique Lázaro cresce entre os K iriri nesse período. Projetos agrícolas são, sob a sua supervisão, e com o concurso d e e n tid a d e s d e a p o io , e la b o ra d o s e a p ro v a d o s pelas a g ê n c ia s financiadoras. Program as educativos são im plantados na área e, pela prim eira vez, a FU N A I, acravés da atuação com bativa e da m arcada independência política de um chefe do Posto Indígena em M irandela, o pernam bucano Gifvan Cavalcanti —que perm aneceria entre os Kiriri de 1976 a 1983 — respalda as iniciativas desses índios em prol da apropri­ ação do território, estim ulando e apoiando efetivam ente as “retom a­ das” e, mais do que isso, encetando esforços no sentido de viabilizar a dem arcação da Terra Indígena. A atuação de G ilvan entre os K iriri contribuiria, pois, para lhes assegurar o necessário apoio oficial à con­ dução do pleito de demarcação. Pode-se afirm ar que a nova estratégia de incensa mobilização adota­ da pelos K iriri — tanto in tern am en te, q u an to no âm bito da opinião pública em geral — apoiados por organizações da sociedade civil e pela pró p ria F U N A I, foi bem sucedida nessa fase, considerando que no início de 1981 o órgão tutelar dem arcaria a terra indígena, reconstituindo com exatidão a extensão “original” da “légua em quadra” e assim englo­ bando quatro povoados até então ridos com o lim ítrofes ao território indígena por força dos constrangim entos secularm ente im postos a esses limites: M arcação, Baixa do C am am u, Segredo e Pau Ferro. C oncluída a dem arcação, sobreveio um inevitável aguçam ento das tensões entre os índios e os regionais, que co n cen traram as suas forças a fim de rentar reverter a situação. N o que concerne às providências oficiais que deveriam ocorrer após a dem arcação, cabia agora a delicada tarefa da cadastrar a população não-indígena e suas benfeitorias, cujo destino passava a ser incerto em função da provável regularização da Terra Indígena. Seguindo um a práti­ ca com um de transferir tarefas e dividir os ônus políticos, a FU N A I firma, em 1982, convênio com o Instituto de Terras da Bahia (INTERBA) para a realização dos levantamentos necessários. Em um ano eleitoral, e diante da apreensão e pressões dos “posseiros” contra o cadasrramento e a provável transferência, o INTERBA, fugindo à sua esfera dc com petên­ cia, dedica-se a quesrionar a extensão do território indígena, tentando fu n d a m e n ta r u m a vaga p reten são dos reg io n ais de q u e o raio de

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abrangência da terra kiriri se estendia por apenas meia légua em torno de M irandela, o que reduziria a área a menos de um terço (Reesink 1984). Levantada a polêmica, e com a conivência do governo estadual com a contestação dos posseiros, instaura-se um período de intensa discus­ são entre diversos segmentos políticos envolvidos no caso e, mais que isso, de agudos conflitos entre as partes que m arcariam os cinco anos subseqüentes. Ao acirram ento dos ânim os dos posseiros, os Kiriri res­ pondem com a exigência da retirada im ediata de A rtur M iranda - in­ fluente fazendeiro na região - e de alguns outros mais beligerantes. Percebendo a protelação intencional ao atendim ento dessa reivindica­ ção, os Kiriri, na noite que antecedeu o dia das eleições de 1982, reali­ zam a prim eira ocupação da fazenda Picos, m aior fazenda no interior da Terra Indígena. Graças ao prestígio político e ao poder econômico de M iranda, com o já salientado, a Picos era tida por posseiros e fazen­ deiros com o baluarte na ocupação das terras indígenas, D o po n to de vista dos Kiriri, a sua posse representava não apenas um a questão de sobrevivência, mas tam bém a possibilidade de neutralizar o seu inim i­ go mais influente. Três dias após esse episódio, os Kiriri são persuadidos pela FU N A I e pelo IN TER B A a se retirarem da Picos, m ediante novas promessas de p ro n ta solução para o caso. A fazenda é tem porariam ente m antida como “território n eu tro ”, guardado por agentes da Polícia Militar. Passam-se q u atro meses. C ansados dc esperat pelo cu m prim ento de promessas, os Kiriri retom am a Picos. D u ran te essa segunda ocupação, em abril de 1983, comemorava-se em Salvador a Semana do índio, o que assegu­ rou o necessário espaço na im prensa para a divulgação do fato. A isto seguiu-se a pressão do Banco M undial, responsável pelo financiam ento do Projeto N ordeste, um am plo program a de regularização fundiária e m odernização agrícola nesra região do Estado - articulado ao Plano de Apoio ao Pequeno P rodutor — que condicionou a execução do mesmo ao encam inham ento satisfatório da questão kiriri, sendo rapidam ente liberados recursos para a indenização das benfeitorias existentes na área ocupada, O episódio da Picos e as delicadas circunstâncias políticas em que ocorreu precipitaram a im posição de um controle mais rigoroso e re­ pressivo p o r parte da FU N A I sobre as ações dos Kiriri, desestimulando a intervenção das en tidades de apoio, com pelidas a retirarem -se da área. P o r o u tr o la d o , o a u m e n to das p ressõ es c o n c o rre ria p ara desestabilizar o precário equilíbrio da chefia do Posto Indígena (substi-

A VIAGEM DA VOLTA

ruída algum tem po depois) e, em especial, do cacique, situado de m a­ neira incôm oda entre as pressões da FU N A I e as dem andas da própria com unidade indígena. O processo de mobilização política kiriri pare­ ce, nesse período, sofrer um refluxo, fruto de u m a radicalização do controle do grupo p o r parte de seus líderes, o que redundaria no acirra­ m ento das disputas internas e, posteriorm ente, na ocorrência de um faccionalism o.

O processo faccio n al

Em um prim eiro m om ento, de articulação e afirmação dos Kiriri como grupo, a política em preendida por seus líderes seria respaldada e legiti­ m ada por um a parcela significativa da com unidade, pois o processo de construção de um grupo necessariam ente supõe um a certa harm onia prévia de valores, um a base de consenso quanto aos objetivos e metas a serem alcançadas, não se constituindo jamais com o um a “criação indi­ vidual de um líder”, mas sim como: “[...] um produto social e coletivo, a partir de certo ponto, algo objetivo e exterior à vontade de seus inte­ grantes, inclusive do seu idealizador ou organizador inicial (Black 1977 citado por G eertz 1991). Práticas não condizentes com as expectativas do grupo seriam vee­ m entem ente desestimuladas através de um apararo repressor constituí­ do a partir da designação em cada núcleo de indivíduos de prestígio para o cargo de conselheiro, indivíduos que já ocupavam em seus res­ pectivos núcleos um a posição estratégica de mediação com a sociedade envolvente e de interm ediação de bens e serviços. Para o cacique Lázaro e seus conselheiros, tal situação seguram ente co nstituía um desafio. Práticas com o o alcoolismo, o aluguel de terras a não-índios, o trahalho alugado, o sistem a de “meia”, relações clientelísticas com regionais e casam entos intetétnicos eram correntes entre os K iriri de então. Trarava-se da imposição de um a ética até certo p o n to estranha ao cotidiano desses índios. N ão seria, portanto, sem conflitos que os líderes levari­ am avante os seus propósitos políticos de redefinição com portam ental, em grande parte fundados em um a concepção de ordem social ancora­ da nos dogmas da fé bahi ' e efetivada m ediante a adoção de um ritual indígena e a instituição das roças com unitárias. U m a prim eira fonte de conflitos se consubstanciaria a partir da orga­ nização dessas roças (supervisionadas pelos conselheiros), para as quais

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as fam ílias indígenas deveriam se co m p ro m eter a doar dois dias de trabalho semanais. Foi nesse contexto que, pela prim eira vez, a própria figura da liderança, nesses novos termos, seria questionada pelos índios com o um a ameaça a um a tradicional autonom ia familiar, com preendi­ da com o fator essencial a um a “ética cam ponesa”10. C om o nota Klaas W oortm ann ao relacionar, entre as categorias culturais centrais do uni­ verso camponês brasileiro, o “trabalho, a família e a liberdade” (1988: 3) e acentuar que: “[...] o controle do tem po da família e a existência de um tem po de família autônom o, assim com o o controle do trabalho, são dim ensões básicas da liberdade em si” (: 44). Por o u tro lado, as atividades de partilha conduzidas pelos líderes, subseqüentes às “retom adas”, geraram um certo descontentam ento en­ tre os Kiriri: seus critérios foram diversificados, variando m uito em função do núcleo dc ocorrência c da natureza do poder exercido pelos líderes que as coordenaram . N o caso da fazenda Picos, p o r exem plo, seus pouco m ais de mil hectares de terrenos férteis foram distribuídos preferencialm ente eutre as famílias mais próximas ao cacique e ao conselheiro da Lagoa G ran­ de. Já as terras da fazenda de Raul N obre na Baixa da Cangalha, ocupa­ da pelos índios em 1985, tiveram seu uso coletivizado na form a de uma roça co m u n itá ria , por in iciativa do conselheiro local, um “b ro k c r” (M ayer 1987), cujos lim ites de atuação ultrapassam a fronteira étnica, conform e referido acima. Tam bém a proibição do aluguel de pastos a regionais foi uma prática que, ao sobrepor os direitos tradicionais da família kiriri sobre a terra - o seu mais relevante patrim ônio, sustentáculo do trabalho que, “constrói a família enquanto valor” (W oortm ann 1988: 3) - com prom eteria, mais um a vez, entre esses índios os pressupostos básicos de uma “campesinidade”. Tais exemplos, entre outros, evidenciam as implicações sociopolíticas decorrentes da tentativa de se conceber coletivamente um rerritório por tradição apropriado individualm ente, segundo um a linha estratificada que com porta hierarquias de prestígio e posições socioeconom icam ente estabelecidas (Brasileiro 1996). Inicialm ente, a alternativa encontrada para fugir a esse pesado ônus em prol de um a representatividade e de um a independência políticas consisriu, p ara m uitos, n a m igração para o utras áreas. Para aqueles 10 Isto é, a um a “m oralidade que contem pla um a continuidade entre as pessoas e as coisas"

(1980: 38).

A VIAGEM OA VOLTA

indivíduos que se recusaram a seguir à risca as novas orientações, per­ m an ecer nas terras in d íg e n a s sig n ific o u te r os seus “d ire ito s ” de pertencim ento ao grupo étnico postos em suspeição — ou suspensão — peias lideranças, no bojo de um processo de graude repercussão que ficaria conhecido localm ente com o “coador”" . Tal m edida concretizouse com o um alijam ento daqueles “benefícios” advindos da condição étnica, conquistados no processo de “luta”. Eles têm raiva porque nós enrabamos [expulsamos] com os amigos deles. Q uando M iranda saiu, eles não gostaram, são amigos dc M iranda (Bonifácio, atuai conselheiro do Sacão, Sacão, novembro 1991). Quando sai e chega lá fora diz que foi o índio que enrabou [expulsou] clc. Não é verdade, ele que não quis trabalhar e saiu (Zé Batista, conselheiro da Lagoa Grande. Sacão, novembro 1991). Estes depoim entos revelam o destaque conferido por esses líderes a pelo m enos dois traços definidores de um a “indianidade” kiriri (Olivei­ ra 1988). Por um lado, há a im putação de alianças com não-índios com o fator responsável pela recusa de um a etnicidade, constituída esta por um a m arcada oposição a elem entos regionais. Tal oposição necessi­ ta, porém , ser relativizada c contextualizada, desde que, entre os Kiriri, a constituição e atualização de alianças com não-índios, a depender das circunstâncias, pode o u não ser desestim ulada. Por outro, é tam bém significativa a preocupação de se tentar reverter um referencial estereo­ tipado da população envolvente com relação aos índios, tradicional­ m ente classificados como “preguiçosos” (Bandeira 1972). Assim aplica­ da, a noção de “trabalho” pressupõe a sua adscrita relação com o “gru­ p o”. Preguiçoso seria, então, aquele índio que cuida apenas da própria roça, que não “participa da luta” pela conquista do território. Consolidados os objetivos iniciais dos Kiriri, as práticas políticas dos líderes, um a vez que instalam um clima de tensão e de insegurança na terra indígena - reflexo da instituição do “coador”, do espancam ento de índios alcoolizados, das com pulsões para o com parecim ento às roças com unitárias —produzem insatisfações que, por sua vez, geram focos de questionamenco à legitimidade do poder político aí exercido. " U m a prática pela qual muitas famílias, consideradas indesejáveis, foram coagidas a sair definitivamente da terra indígena. Já se entende que o term o “coador" designou um processo de seleção étnica.

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A tentativa de hom ogeneização dos sujeitos sociais, de relegar ao ostracism o aqueles que, cm algum nível, persistiam em m anter caracte­ rísticas distintivas ao grupo, acarretou um a série de quebras e redefinições nas alianças e cadeias de lealdade constituídas, potencializando dissensões e, principalm ente, hierarquizando ainda mais o acesso a bens e serviços. A construção de um a etnicidade parece, pois, im plicar - ao m enos no contexto de sociedades plurais - com o bem aponta Barth (1969), um a estratificação dentro e entre os grupos. Já as resistências à homogeneização podem talvez ser pensadas como “linhas de fuga”, cuja natureza de expressão residiria em um dom ínio "m olecular” da política, terreno no qual as articulações em nível micro se processam : A política opera por macro-decisões e escolhas binárias; mas o domínio do decidível permanece escasso. E a decisão política mergulha necessariamente em um mundo dc micro-determinações, de inclinações e de desejos que ela deve pressentir ou avaliar de um outro modo (Deieuze e Guartari 1980: 270). A tensão entre as dim ensões m acro e micro inform am um a das pre­ ocupações centrais da presente análise, a de abtanger um amplo leque de situações bem marcadas em que as posições dos atores gravitam, de m aneira aberta o u dissimulada, cm torno de diversos centros de poder, constituídos e reconstituídos, e localizados interna — nas redes de paren­ tesco, vizinhança, nas relações de trabalho etc. - on externam ente ao campo político kiriri —nas relações com a FUNAI, associações de apoio, entidades religiosas, segmentos regionais politicamente influentes etc. Posreriorm ente, esses focos de atrito, cm princípio de caráter isola­ do, ao m odo de pequenas irrupções sem conseqüências políticas mais abrangentes — rais com o a reprovação velada ao trabalho im posto nas roças com unitárias, a persistência do alcoolism o, especialm ente entre os idosos, a resistência ao Toré por parte dos oficiantes ou adeptos dos tradicionais “trabalhos” dom ésticos, e a própria presença de um Toré dissidente no núcleo C antagalo — ganharam consistência, m inando as bases da representatividade do cacique e provocando dissensões que, ainda que localizadas, ensejaram redefinições e realinham entos de ali­ anças in ter c (em um nú m ero significativo de casos) in tra grupos fa­ m iliares. P ressentindo as alterações na sua posição de centralidade política frente aos índios, o cacique Lázaro procuraria ainda, por meio de um a delicada estratégia, reconquistar a hegem onia anterior. Localizando entre

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os mais poderosos focos de resistência, ou “linhas de fuga”, a sua au to ­ ridade na esfera do ritual, Lázaro concentraria aí o seu “poder de fogo”. A título de restaurar um a pretensa unidade original do grupo, propôs a eleição de um pajé geral, indicação concebível apenas no plano decisório do sagrado, o que elidiria possíveis imputaçÕes de m anobra política centralizadora ao tem po em que reafirm aria os valores de unidade do grupo, através da sua instância m áxim a de legitim idade, o m undo dos “encantados”, o que conferiria determ inação à ênfase na necessidade de expulsar das terras indígenas os indivíduos que porventura se m ostras­ sem contrários a essa unificação. C ontudo, inversamente às suas expec­ tativas, seu oponente concordou em se subm eter à “prova”, sendo esco­ lhido pajé geral dos Kiriri. Baldados os esforços de banir legitim am ente da área seu mais explí­ cito centro de oposição, o cacique passaria a adotar um a postura de am bigüidade frente ao pajé recém-eleito, de início respaldando-o for­ m alm ente, mas agindo de m odo a m inar a sua autoridade, tom ando um a série de m edidas que term inariam p o r expor o seu desconforto em relação àquele, legitim ando os dissidentes e instrum entalizando-os com os recursos “m orais” necessários à divisão dos K iriri em dois segm en­ tos faccionais. H oje, as facções são as unidades mais efetivas da ação política for­ malizada no povo kiriri. O s m últiplos códigos que inform am as práti­ cas de cada facção conform am dois conjuntos sociais, dois “m odos dc ser” kiriri que, em bora não guardem um a com pleta autonom ia, pare­ cem se constituir de m aneira m uito distinta. Poder-se-ia postular a exis­ tência de um a integridade social nessa duplicidade? As facções aí en­ gendradas seriam estruturais na constituição desse povo indígena? O u, dito de o u tro m odo, desde que h á efetivam ente entre os K iriri um a duplicação progressivam ente institucionalizada de suas estruturas de poder, com seus espaços de atuação demarcados, seria lícito supor nes­ se caso as facções nos term os clássicos de um a relação concorrencial p or um a estrutura hegem ônica de poder? Em consonância com os parâm etros teórico-m etodológicos adotados (Barrh 1966, Spiro 1969, O liveira 1977) e conform e a investigação realizada, o fenôm eno fàccional pôde ser vislum brado apenas como um com ponente dc grande relevância no processo de emergência étnica do g ru p o , não rep resen tan d o um m o v im e n to de desagregação ou de desestruturação, mas anres um a estratégia de flexibilização, de barga­ nha, para os atores presentes no campo sociopolídco kiriri.

POVO INDÍGENA KIRÍR!

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Já o aspecto concorrencial da relação entre os segm entos faccionais parece vir configurando-se mais em um plano situacional do que em um âm bito mais propriam ente estrutural. Isso, contudo, não significa postu­ lar um caráter de efemeridade para as facções kiriri, que de fato parecem se m ovim entar no âm bito de um processo irreversível de cisão.

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A VIAGEM DAVOLtA

S il v ia A g u ia r

c a r n e ir o

M a r t in s

Os cam inhos das aldeias X ucu ru-K ariri 1

D e acordo com a noção de situação histórica definida p o r Oliveira (1988: 59), pretendo descrever diferentes segmentos X ucuru-K ariri, focalizam do a atuação de agentes históricos (ligados ao Estado, Igreja etc.) que se inter-relacionam com esses índios, presentes em Palm eira dos ín d io s/ AL. C onsiderando a FU N A I com o a principal agência de contato, ca­ paz de p roduzir e legitim ar um esquem a de distribuição de poder e autoridade através de atores indígenas (cacique, pajé, funcionários ín ­ dios etc.) e não-indígenas (chefe de posto, outros funcionários, m ora­ dores da cidade etc.), intenciono descrever dados etnográficos que de­ m onstrem o com portam ento e as inter(-rei)ações desses atores presen­ tes em contextos situacionais. Dessa m aneira, será possível perceber conflitos, interdependências e o poder situados em um campo político intersocietário.

' Este texto consiste em parte da m inha dissertação de mestrado em A ntropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (M artins 1994). Essa pesquisa contou com o apoio fmanceito da AN POCS-Interamerican Foundation e teve como orientador o Pro­ fessor João Pacheco de Oliveira (PPGAS/M N/UFRJ). Apesquisa de campo foi realizada durante duas fases em 1992, totalizando noventa dias de trabalho de campo, Gostaria de registrar m eu agradecimento aos índios Xucuru-Kariri. Em razão de sua aceitação, pude realizar pesquisa nas diferentes áreas indígenas. Fiquei receosa de que assuntos aqui tratados pudessem ser motivo de descontencamenro para alguns deles, principalm ente porque abordo questões relacionadas a conflitos internos. Gostaria que apreendessem das descrições apresentadas elementos para uma reflexão atual sobre os Xucuru-Kariri como unidade átnica c a sua projeção para um futuro. É nesse sentido que penso oferecer alguma comribu içío .

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N o reconhecim ento do grupo pelo SPI na década de 1940, depoi­ m entos de índios e registros bibliográficos revelam a presença do etnólogo Carlos Estêvão de Oliveira (1942b) e a atuação do Pe. Alfredo Dâm aso (cf. A ntunes 1973). Em term os gerais, as informações com provam con­ textos de interação/articulação entre índios e não-índios no sentido de um reconhecim ento oficial dc nativos que se localizavam em Palmeira dos índios. S to essas personalidades, na condição de agentes de contato, que contribuíram para a aquisição da Fazenda Canto pelo SPI. A instala­ ção de um posto por esse órgão consistiu em um a nova form a organi­ zacional em que várias famílias indígenas, provenientes de diferentes localidades, foram reassentadas nessa área. Assim, recebendo proteção oficial, nativos foram inseridos num a situação de reserva, condição que im plicou novas ordens econômicas e políticas estabelecidas a partir da interferência daquele órgão. A atual AI M ata da C afurna é com posta p or três glebas, ocupadas em diferentes m om entos. A gleba M ata da C afurna propriam ente dita foi doada pela prefeitura a partir da ocupação territorial pelos índios em 1980. Em um a ocasião em que a prefeitura tinha a intenção de vendê-la, os X ucuru-K ariri, sob a liderança do cacique M anoel Celestino e do pajé M iguel Celestino, contando com apoio/cum plicidade do com erci­ ante Luiz Torres e do chefe de posto da FU N A I na época, resolveram “retom ar” a área. E im portante frisar que essa mobilização política con­ tou com a participação de praticam ente todo o grupo, baseando-se p rin ­ cipalm ente em um consenso de que os índios tinham direito sobre a rerra, consenso este com partilhado tanto por índios como não-índios. A p rópria doação da Prefeitura M unicipal é um fato que revela a legiti­ m idade do direito dos índios sobre a área. Trata-se de um a reserva am biental onde se localiza um “açude”, que d urante m uitos anos serviu com o reservatório de abastecim ento de água à cidade de Palm eira dos índios. Tam bém teria sido local do prim eiro aldeam ento indígena, rela­ cionado à doação de 1773.2 D esde a época em que foi conquistada pelo grupo (1980) até 1985, a M ata da C afurna foi utilizada por um a parte dos índios da Fazenda

2 Existem registros que comprovam a doação de área para aldeamento indígena nesse ano do século XVIII. Durante o século XIX, ocorreu um processo judicial dc disputa territorial entre os herdeiros de uma família de Pernambuco e os índios, tendo estes últimos ganho a questão (Antunes 1973).

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a v ia g e m d a v o l t a

C anto para práticas rituais ligadas ao “O u ricu ri”; tam bém faziam roças nas poucas áreas ali disponíveis para esse fim, não constituindo porém local de m oradia. A prática do ritual do O u ricu ri foi tran sm itid a a alguns índios X ucuru-K ariri a partir de contatos estabelecidos com os Kariri-Xocó (Porto Real do Colégio, AL). Essa inform ação relaciona-se à divisão faccional do grupo, assunto que abordarei mais adiante. Em 1985, um co n flito en tre Josc Sátiro do N a scim en to e João Celestino, resultando na m orte deste últim o, ceve como conseqüência a transferência im ediata da família Sátiro para Ibotiram a (BA) pela FUNA I. Alguns meses depois da ocorrência desse hom icídio, a família Santana jun tam en te com Sr. A ntô n io C elestino decidiram habitar a M ata da Cafurna, A seguir, pretendo descrever parcelas de terras que os X ucuruKariri atualm ente ocupam , fornecendo um a visão global de fatos que se relacionam à questão territorial. A M ata da C afurna foi aos poucos povoada p or famílias que o Sr. A ntônio Celestino “convidava”. Tom ando-se insuficiente para a explo­ ração econôm ica, o segm ento que para ali tinha m igrado ocupou em 1986 um a fazenda de 170 ha contígua àquela área. Segundo a inform a­ ção de vários índios, essa m obilização política do grupo foi decidida em um ritual do O uricuri e não contou com o apoio de não-índios, mas sim com a presença e a solidariedade de índios Kariri-Xocó. Posteriorm ente expulsos daquela fazenda pela Polícia M ilitar, esse mesmo segmento decidiu ocupar outra área, de 22 ha, tam bém contígua à M ata da Cafurna, que estava sob o dom ínio de um não-índio chamado Pedro Benone. Este reconhecia tratar-se de área indígena e tinha interes­ se em negociá-la com a FUNAI. A ocupação dessa gleba de terra pelos índios contou com a cumplicidade do próprio “dono” e a sua aquisição pelo órgão indigenista oficial ocorreu em 1988, em decorrência de pres­ sões exercidas por esse segmento faccional Xucuru-Kariri. Após a assessoria jurídica do C IM I ter im p etrado um recurso na Justiça Federal de Alagoas contra a lim inar concedida sobre aquela fa­ zenda de 170 ha, os X ucuru-K ariri adquiriram o direito de reocupar essa área, Foi então movida pelo fazendeiro um a Ação de Reintegração de Posse (n° 15.626/87), decidida favoravelmente aos índios em 1992 (D iário Oficial do Esrado de A lagoas/1992). Essa gleba disputada judicialm ente pelos X ucuru-K ariri da M ata da C afurna é identificada p o r eles como local do prim eiro aldeam ento que se deu em 1773. Encontra-se aí um a im portante localidade para eles, cham ada "Igreja Velha”, o nde se situava um a capela co n stru íd a por

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seus antepassados. Esse dado confirm a a existência de um consenso entre os X ucuru-K ariri de que possuem direitos territoriais sobre áreas que ocuparam tradicionalm ente, havendo uma mobilização política para a reaquisição das mesmas. A Fazenda Pedrosa, local onde vive a família Sátiro desde 1987, que foi transferida da Fazenda C an to em 1985 pela F U N A I, é com posta por duas glebas adquiridas através da mobilização dc Zézinho Sátiro, cacique desse segm ento X ucuru-K ariri. Inicialm ente reassentados em 62 ha ad q u irid o s pela FU N A I em Ib o tiram a (BA), esses índios são novam ente ttansferidos em razão da disputa de terras com dois fazen­ deiros. Zezinho conseguiu pessoalmente com o presidente da FU N A I em viagem à Brasília recursos para a aquisição de um a nova área, a Fazenda Pedrosa (18 ha), no m unicípio de N ova G lória (BA), local que escolhera para o novo reassentam ento. Através do relacionam ento es­ tabelecido com a Diocese de Paulo Afonso, ele conseguiu um a doação de recursos para a construção de casas e a com pra de o u tra área de pouco mais de vinte ha, contígua à Fazenda Pedrosa. Segundo inform a­ ções que obtive, trata-se de um a área de propriedade da Diocese, regis­ trada em Paulo Afonso (BA) e adquirida para o usufruto do grupo. Percebendo a utilização da identidade étnica pata fins políticos e eco­ nômicos, índios no Nordeste vivem um mom ento de mobilização étnica caracterizada por um a constante luta em defesa de territórios (históricos) e pela demarcação e posse de terras.3 Alguns desses, como os Tingüi-Botó, Wassu-Cocal e Xocó, já estavam totalm ente prolerarizados e não possuíam qualquer parcela significativa de terra em termos econômicos (Sampaio 1986: 5). N o caso dos Xucuru-Kariri, pode ser constatada um a intensa mobilização étnica e reivindicatória nesse sentido, característica menciona­ da por Sampaio (: 23) ao classificar esse grupo (juntam ente com os Kiriri, Potiguara e Pankararu) como tradicionalmente reconhecido. Os exemplos citados de aquisições de glebas pelo grupo revelam essa mobilização polí­ tica reivindicatória: adquirida pelo SPI, 1952; doada pela Prefeitura M uni­

3 Bentley (1987: 25) aponta que vários autores enfacizam esse caráter de instrumento da etnicidade, em razão de interessessubjetivos, principalm ente políticos eeconôm icos, de um a coletividade; m enciona inclusive tratar-se de uma corrente dentro do estudo da etnicidade, denom inada de instrumentalistas. O utros autores, dc forma diferente dos instrumentalistas, denominados deprimordialistm destacam que importantes elementos a serem percebidos no que diz respeito à etnicidade derivam do potencial afetivo, da existência social assumida como dada.

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cipal de Palmeira dos índios, 1980; adquirida pela FUNAI, 1988; judicial­ mente reconhecida (através dc ação na Justiça Federal), 1992; e, no caso daqueles que estavam na Fazenda Pedrosa: adquirida pela FU NAI, 1987 (em Ibotirama); adquirida pela FUNAI para novo reassentamento, em 1987 (Nova Glória, BA); ‘concedida’ (pela Diocese de Paulo Afonso), 1991. A etnografia sobre os X ucuru-K ariri apresentada aqui foi elaborada através da descrição de situações empíricas e da utilização da perspecti­ va sugerida p o r Oliveira (1988), na qual o estudo do contato interétnico deve ser realizado com o situação de interação, envolvendo conflitos e interdependências. Por isso, descrevi eventos, situações sociais em que participam os mais variados atores indígenas e não-indígenas em Pal­ meira dos ín d io s (e ram bém na Bahia, no caso da Fazenda Pedrosa). Acontecim entos como, por exemplo, as expressões de religiosidade en­ tre os Xucuru-Kariri, foram percebidos como eixos de interação étnica, no sentido de que sáo estabelecidas alianças e clivagens em um processo dinâm ico entre os próprios índios e entre índios e não-índios. O objetivo p o rtan to é relatar observações sobre situações em que atores sc encontram presentes e nas quais ficam im plícitas dem arca­ ções de fronteiras étnicas, alianças e interdependências dentro do cam­ po intersocietário de relações interétnicas, perspectiva tam bém sugerida por Oliveira (1988: 14) ao propor a utilização da noção de campo polí­ tico intersocietdrio. Essa noção possibilica um a abordagem dinâm ica das relações interétnicas em que o contato não se reduz a uma percepção dualista da realidade (índios versus não-índios); outrossim , constitui-se num processo fundam entado em interações estabelecidas entre os mais variados agentes presentes em situações contextuais. Antes de descrever as informações sobre cada área específica, consi­ dero interessante citar que vários índios estão presentes na cidade de Palm eira dos índios, inclusive índios funcionários da FU N A I, que pos­ suem casas nas aldeias e na própria cidade. Personalidades não-indígenas, com o o com erciante e ‘h isto ria d o f Luiz Torres (1973, 1975), o p ro m o to r público Ivan Barros (1969) e o jo rnalista Edson Silva são indivíduos que residem na cidade, escrevem e m antêm relacionam ento entre si, com os índios e com os funcionários da FU N A I. D ados de campo relacionam-se mais especificamente à dem arcação de fronteiras étnicas em situações observadas e traduzem de algum a form a a produção de um a indianidade. Esse rermo está im pregnado de um sentido que diz respeito principalm ente a um a caracterização da etnicidade indígena, com partilhada pelos diversos grupos indígenas no

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Brasil que se encontram sob a assistência e atuação do órgão protetor (cf. O liveira 1988: 14).

Os índios na Fazenda Canto

Segundo dados censitários da FU N A I (1988a), oitocentos índios habi­ tavam a Fazenda C anto. Nessa área, algumas localidades são identificadas pelos índios com o “posto”, “avenida”, “cam po”, “sem enteira”. Eles de­ nom inam “posto” as áreas situadas em torno do Posto Indígena. Loca­ lizado em um espaço de aproxim adam ente trezentos m 2, cercado com arame farpado, o Posto Indígena possui ainda um a área plantada com fruteiras (pinha, coqueiros etc.). Sua sede situa-se no centro dessa área, conjugada a um a casa construída para m oradia do chefe do posto. For­ m ando construções separadas da sede, há quatro salas de aula e um a cozinha, onde é preparada a m erenda escolar; um a enferm aria, com dois com partim entos destinados ao arm azenam ento de m edicam entos de prim eiros socorros etc.; e sala onde duas atendentes indígenas de enferm agem , funcionárias da FU N A I, prestam assistência aos índios. A m aioria das “famílias”4 que com põem a Fazenda C anto são des­ cendentes de treze outras m encionadas pelo pajé Sr. Miguel Celestino (falecido em 1998), que apontou diversos locais de procedência anteri­ ores à ocupação da Fazenda C anto e ao reconhecim ento oficial através do SPI. Os sobrenom es das famílias que atualm ente ocupam a Fazenda C a n to são: C elestino, R icardo, A leixo, Ferreira de L im a, F irm in o , M artins, C osm o, Conceição e Salustiano. A inda na época do SPI, acon­ teceram casam entos entre índios Pankararú com índias X ucuru-Kariri, com o é o caso de Sr. A ntônio U rbano Ramos, casado com Lina M aria Ramos, filha do Sr, M anoel Ricardo e Sra. Filom ena M aria da Silva, e de seu irm ão Sr. H ercu lan o Pedro U rbano, casado com um a ín d ia X ucuru-K ariri, mas atualm ente m orando na T I Pankararu/PE.

1 A palavra '‘família", de acordo com o que observei durante o trabalho de campo, referc-se àqueles indivíduos que possuem um a mesma ascendência genealógica, segundo a term i­ nologia dos sobrenomes, reunindo assim várias famílias elementares em diferentes gera­ ções. Mesmo quando se dá a m udança da terminologia de sobrenome através do casamen­ to, o indivíduo continua fazendo parte da “família” e o cônjuge passa a ser integrante. Q uando há cisões ficcionais entre membros de um a mesma “família”, como é o caso da “Celestino”, não há questionam ento sobre o vínculo de parentesco entre eles.

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A família Celestino tem tradicionalmente se destacado entre os XucuruKariri em termos dos papéis/cargos políticos que seus membros vêm exer­ cendo desde a fase do SPI, ou mesmo antes do reconhecim ento oficial. De acordo com dados genealógicos dessa família, destacam-se pelo menos seis líderes políticos. N a geração mais antiga (segunda ascendente, consi­ derando a geração de ego a dos irmãos M anoel e Antônio Celestino), o St. Francilino (“Zé Caboquinho”) foi um articulador político que, sendo in­ form ante do etnólogo Carlos Estêvão de Oliveira na década de 1930, manteve contato com Pe, Alfredo Dâmaso visando o reconhecimento ofi­ cial do então SPI a partir da década de 1940. N a primeira getação ascen­ dente, os irmãos Alfredo Celestino (falecido) e M iguel Celestino (pajé), filhos de Sr. Francilino, tiveram representatividade/desempenho político cm ambos os períodos de atuação do SPI-FUNAI, tendo sido o Sr. Miguel um dos atuais líderes faccionais da Fazenda Canto. N a geração de seus descendentes, destacam-se Antônio Celestino e M anoel Celestino, filhos do Sr. Alfredo Celestino c tam bém líderes faccionais. N a primeira gera­ ção descendente, o filho do Sr. A ntônio Celestino, José Augusto Neto, chegou a atuar como cacique da M ata da Cafurna durante o período de 1986 a 1988. Várias líderes femininas (M aninha, Graciliana e Q uitéria Celestino), pertencenres a essa mesma geração também têm ocupado im ­ portantes papéis de liderança política em diferentes facções do grupo. Esses exemplos revelam o desem penho político de m em bros dessa família que tradicionalm ente vêm sc destacando com o líderes políticos legitimados oficialm ente o u não pela FU N A I. Sobre essa legitim idade no período do SPI, nem sempre o Sr. Alfredo Celestino contou com o apoio oficial do chefe de posto M ário Furtado para sua atuação com o “cacique” (cf. Furtado 1954, 1961, 1962). No período da FU N A I, vá­ rios confliros entre Sr. M anoel Celesrino e funcionários desse órgão interferiram na sua legitimidade para o exercício desse "cargo” político. O u tro exem plo ocorrido na M ata da C afu rn a pode ser apontado com o interferência direta na estrutura política-organizacional, quando o Sr. A ntônio Celestino, pajé dessa área, após a saída de seu filho Zé N eto em 1988, passou a atuar tam bém com o cacique. Segundo depoi­ m entos de índios, funcionários da FU N A I convenceram a população indígena da necessidade da escolha de um novo cacique para aquela área. A ssum iu o "cargo” o índio H eleno M anoel (escolhido em ritual do O uricuri), que no entanto residia na cidade de Palmeira, onde geral­ m ente era contactado por funcionários da FU N A I quando estes se des­ locavam de Maceió para aquela área.

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M em bros da fam ília C elestino tam bém se destacam com o líderes religiosos, com o o Sr. M iguel Celestino, pajé desde o período do SPI, e o Sr. A ntônio Celestino, pajé da M ata da C afurna desde a migração em 1986. O Sr. M anoel Celestino tam bém tem atuado como líder reli­ gioso. Esses exemplos dem onstram que índios da família Celestino têm se desracado com o líderes políticos, ocupando oficialmente ou náo (de acordo com o reconhecim ento do órgão tutor) o cargo de “cacique” e/ ou exercendo papel de líder faccional. Vale salienrar que a questão religiosa entre os X ucuru-K ariri relacio­ na-se diretam ente ao faccionalismo político, envolvendo tam bém práti­ cas de outras religiões além das consideradas “indígenas”. Práticas de religiosidades ligadas ao “Toré” e “O uricuri”, associam-se aos conflitos políticos e cisões faccionais do grupo. Nesse aspecto é evidente a ínti­ m a relação entre questões políticas e religiosas, pois líderes políticos tam bém se destacam enquanto líderes religiosos (exemplos de Sr. Miguel Celesrino, Sr. M anoel e Sr. A ntonio Celestino), Esse fato tem ainda relação com práticas de “religiões não-indígenas” (assim m encionadas pelos próprios índios), que por sua vez têm implicações diretas nas clivagens faccionais. Assim, podem ser aponta­ das práticas religiosas ligadas ao catolicism o, religião am plam ente di­ fundida entre os X ucuru-K ariri, destacando-se os Srs. M anoel Celestino e Arístides Balbino como articuladores de im portantes eventos ligados a essa religião, com o a festa de N . Sra. do A m paro, realizada anualm en­ te durante três dias do mês de dezem bro.5 D ando continuidade a um “costum e” que seu pai praticava anual­ m ente, o Sr. M anoel Celestino encarrega-se de angariar fundos para a celebração de um a missa na igreja da Fazenda C anto e a aquisição de “foguetões” (fogos de artifícios), lançados nas m anhãs, tardes e noites destes dias. A últim a “rajada” de fogos se dá em frente à igreja de N. Sra. do A m paro na cidade de Palmeira dos índios. Q uando presenciei esse evento (em 23 de dezem bro de 1991), percebi que assistiram à missa na Fazenda C anto os índios X ucuru-K ariri mais diretam ente liga­

5 Práticas relacionadas à religião católica podem ser encontradas também nos mais diversos grupos indígenas no Nordeste. Esse dado revela a marcante presença dessa agência histórica desde o início do processo de colonização através de mecanismos legitimados oficialmente (aldeamencos missionários, catequese etc.). Por exemplo, as comemorações do “mês de M aria” (maio), quando são rezadas novenas, im portantes para a garantia de um a boa colheita de m ilho e feijão.

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dos à facção política do Sr. M anoel Celestino. Vários não-índios que vivem no povoado de A num , área lim ite da reserva, tam bém vieram, em um a “procissão” acom panhada de um a “banda de pífaros”, carre­ gando a im agem da santa até a igreja. N a realização dessa festa religiosa, o Sr. Aristides Balbino se encar­ rega de contratar a “banda de pífaros” e prom over o “leilão” de alim en­ tos em frente à igreja. A firm ou que, após a m orte de Sr. Alfredo Celestino, apenas ele deveria praticar esse “costum e”. M arcado por um a disputa en tte o Sr. A ristides B albino, índio m o rad o r da cidade, e o cacique M anoel Celestino, o evento religioso era um a situação social que reve­ lava o prestígio deles com o articuladores políticos. Esse prestígio era dem onstrado p o r meio da participação de indivíduos pertencentes às cisões faccionais e tam bém pela capacidade de angariar recursos para os gastos que o evento exigia. N a Fazenda C anto, som ente aquelas pes­ soas ligadas ao cacique participavam , porém essas não se deslocaram à noite para a cidade por falta de transporte, já que o Sr. M anoel Celestino não o conseguira com a prefeitura m unicipal. Por sua vez, os índios da M ata da C afurna não estiveram presentes em q ualquer m o m en to da festa. Q u a n d o lhes perguntei sobre a com em oração, eles afirm aram que se tratava de um a festa “de branco” e não “de índio”. Além das práticas religiosas católicas “não-indígenas”, há na Fazenda C anto índios ligados à fé Bahd’í, religião do O tien te M édio cujos segui­ dores têm atuado em áreas indígenas nordestinas.6 Alguns desses índios inclusive já participaram de encontros internacionais.7

6 Segundo o livro A promessa da p a z m undial (Rio de Janeiro: E ditora Bahá’í, 1988), nos últim os cem anos, essa fé estabeleccu-sc cm mais de 118.000 localidades em 214 países independentes e principais territórios ao redor do m undo. Sua literatura está traduzida em mais de 780 línguas e seus membros representam mais de 2.100 diferentes grupos étnicos (: 27). Alguns registros de visita de missionários dessa religião na Fazenda Canto revelam que pelo menos desde 1969 há contatos entte índios e m em bros Bahá’í. N um telegrama datado de 28 de agosto de 1969 o chcfc do posto agradece a visita que indivíduos da comunidade Bahá'i de Recife e de Maceió fizeram àquela área indígena. Foi localizado no PI uma relação dos índios que participaram da reunião que aconteceu nessa ocasião. Em 1970, membros dessa comunidade são convidados para a comemoração do dia do índio (telegrama emitido pelo PI em 8 de abril de 1970. 7 Q uitéria Celestino (filha do pajé Miguel Celestino) e Francisco Ricardo da Silva (filho do Sr. José Ricardo da Silva) já viajaram para encontros nacionais e internacionais. Q uitéria participou inclusive de um encontro em 1982 cm um país da América Latina.

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Assim com o na festa ligada ao Catolicism o, os adeptos e/ou sim pa­ tizantes da religião Bahá’í vinculam-se a um segm ento faccional da Fa­ zenda C anto, O s mais diretam ente envolvidos são o pajé M iguel C e­ lestino e sua família (esposa e filhos), com destaque para sua filha Q uitéria Celestino, participante ativa. Tam bém podem ser apontados como sim­ patizantes aqueles que se filiam politicam ente, por laços de solidariedade, ao pajé M iguel, por exemplo, os m em bros da família Ricardo. A tentativa de construção de um “templo” dessa religião no “terreiro” da casa do pajé Miguel foi impedida não só pelo cacique Manoel Celestino e por outros índios que se posicionaram contrariamente, como tam bém pela própria FUNAI. Em várias ocasiões, registrei depoimentos de indiví­ duos pertencentes a outras facções políticas, ranto da Fazenda C anto como da M ata da Cafurna, que criticavam o envolvimento do pajé e de outros com um a religião “de branco”. Todavia, segundo seus seguidores XukuruKariri, participar ou não dessa religião nao interfere nem os impede de seguirem práticas ligadas à religião indígena, por exemplo, o “Toré”. Isso não é tudo, N a Fazenda C anto, encontram -se ainda três igrejas “protestantes”: Assembléia de Deus, Igreja Pentecostal e Igreja Universal do Reino de Deus. Existe um reduzido núm ero de “protestantes”, a m ai­ oria adolescentes entre doze e vinte anos, índios das famílias Ferreira de Lima, Ricardo e Batista de Lima. A tentativa de instalação de um templo “protestante” tam bém foi “proibida” pelo cacique M anoel Celestino.8 E m bora os X ucuru-K ariri “protestantes” discordem entre si a respei­ to das diferenres vertentes seguidas, estes são índios que sim patizam mais com a facção política do pajé M iguel Celestino, um a vez que este nu nca coibiu o u discordou de suas afiliações religiosas. Já o cacique M anoel, além de se posicionar contrariam ente à essa opção religiosa, considerava ral fato um a am eaça à identidade indígena. O u seja, mais um a vez os dados relativos à religiosidade vinculam -se diteram ente às questões faccionais.

Em 1992, juntam ente com o cacique Kiriri Sr. Lázaro, representou os índios do Brasil em um encontro que ocorreu em Israel. a Geralm ente às terças, quartas, quintas-feiras e sábados às 19:30 h, e aos dom ingos quando nao vão para a sede dessas igrejas na cidade, reúnem -se vários protestantes Xucuru-Kariri na casa de Sr. M anoel Ferreira de Lima (Xelé), D entre os que freqüentam esse encontro, destacam-se seus parentes (filhas e seu filho A ntonio Ferreira com os filhos), o Sr, Casimiro Aleíxo e adolescentes cujos pais não são protestantes, por exem­ plo, alguns integrantes da família Ricardo.

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M em bros da fam ília Celestino, o u afins, tam bém se destacam por ocuparem cargos como funcionários da FU N A I9: tanto a esposa do sr. A ntonio, Marlene Santana, como a de sr. M anoel Celestino, M a de Lourdes Gomes da Silva, são atendentes de serviços gerais (merendeiras), encar­ regadas da conservação das escolas e da preparação da alimentação esco­ lar. O s itmãos Francisca e Afonso Celestino vivem em Recife e traba­ lham no órgão da FU N A I desta cidade; José Celesrino trabalha como auxiliar de serviços gerais no posto indígena da Fazenda C anto e Q uitéria Celestino, filha do pajé M iguel, é um a das atendentes de enferm agem desse mesmo posto. Ainda são funcionários o filho do Sr. A ntonio Celes­ tino, José Augusto N eto, técnico agrícola n a AI Kariri-Xocó/AL e um a filha de Ermilina Celestino, Edleuza, que m ora e trabalha em Recife. A família Ricardo provém dos irmãos M anoel Ricardo10, José Ricardo — que migraram para a Fazenda C anto na década de 1950 — e A ntonio Ricardo, que m igrou em janeiro de 1980, tendo vários de seus descen­ dentes casados com integrantes da família Salustiano (M acário), Sátiro, C osm o, etc. Seus m em bros em geral se filiam à facção política do pajé Miguel Celestino. Em um Levantamento das Famílias Xucuru-Kariri, realizado pela FU N A I (1988b), 106 fam ílias elementares foram registradas como residentes na área da Fazenda C anto. Nesse levantam ento, são tam bém citadas famíli­ as indígenas que utilizam os seguintes sobrenomes: Tomaz da Silva, San­ tos, Santos Neves, Messias Felix, G om es da Silva, Queiroz, Paulino da Silva, Plácido, Belo Feítosa, Cordeiro Lins, Oliveira, Rosendo da Silva, Alves de Souza, Ribeiro Paz, Pinto da M ota, N ascim ento (Pankararu), Lourenço e Enoque. Tal diversidade de sohrenom es pode ser explicada pelos casamentos que têm acontecido enrre índios e não-índios. Geral­ m ente esses casamentos se dão entre índias X ucuru-Kariri e “brancos”, sendo o sobrenom e do m arido m an tid o com o últim o sobrenom e da mulher. É através dessa aliança m atrim onial que indivíduos não-índios passam a se identificar e são identificados com o índios.11

5 Foram registrados 14 casos de Funcionários Índios pertencentes à família Celestino e Santana. 10 O Sr. M anoel Ricardo, cacique da área, eieito em 1980, através do Conselho Tribal, é casado com a irmã de Manoel Sátiro, pai de Zezinho Sátiro, cacique da Fazenda Pedrosa. 11 Apesar de não ser um processa tao simples, pois em várias situações há um a am bigüi­ dade em se reconhecer que um indivíduo de ascendência não-índígena é índio, na

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Essa prática de intercasam entos de índios e não-índios é um a form a de casam ento freqüente entre os X ucuru-K ariri. O parentesco consiste então em um elemento-chave para a identificação étnica indígena. N o caso dos X ucuru-K ariri, esse tem sido o canal legítim o em que nãoíndios passam a se identificar como índios. Registros genealógicos de­ m onstram que essa prática vem acontecendo há pelo m enos duas gera­ ções ascendentes (desde o século XIX). Nas três áreas são encontrados exemplos desse tipo de casamento. Alianças en tte indivíduos pertencentes a diferentes etnias indígenas tam bém vêm se repetindo há diversas gerações. Vários intercasam entos recentes desse ripo foram registrados na M ata da C afurna, sobretudo os que aconteceram entre índias X ucuru-K ariri e índios Kariri-Xocó, descendentes de Fulni-ô c K ariri-X ocó, e P ankararú. Já na Fazenda C an to , com exceção de intercasam entos com índios Pankararú, ocor­ ridos na época do SPI, não foi registrado n en h um caso. O único dado recente é o de um a ligação m arital entre a índia Pankararú Benedita Nascimento com o Sr. A ntonio Firm ino'2. Benedita ocasionalm ente viaja para outros lugares com o, por exemplo, a Fazenda Pedrosa, onde m o­ rou em 1990, tendo retornado para a Fazenda C anto no final de 1991. D u ra n te a pesquisa de cam po, presenciei a vinda do Sr, M anoel, índio Pankararú, que inform ou ter sido convidado pelo cacique M anoel Celestino para m orar na Fazenda C anto e ajudá-lo nas questões religio­ sas relacionadas ao Toré. Sr, M anoel, sua esposa e três filhos ficaram hospedados em um a casa em frente à área do posto, construída pelo Sr. M anoel C elestino, próxim a ao aparelho telefônico com unitário. Esse casal visitava regularm ente tanto Q u itéria Celestino, que m ora cm um a das casas localizadas na área do “posto”, como o Sr. M iguel Celestino e

m aioria das vezes que perguntava sobre a indianidade de alguém, apesar do reconheci­ m ento de que se tratava de alguém "de fora”, logo se j ustíficava que através do casamento aquele indivíduo podia ser considerado “índio” também. 12 H á uma relação próxima de parentesco através de uma mesma ascendência entre indiví­ duos da Família Firm ino e M artins (terminologia de sobrenom e urilizada também pela geração descendente da família Firm ino), filhos dos irmãos Antonio Firm ino e H onório Firm ino, este último já falecido. M em bros dessa família podem ser considerados filiados à facção política do cacique Manoel Celestino, tendo inclusive participado de rituais no terreiro indígena liderado pelo cacique. Todavia, m antinham relações amistosas com o pajé Miguel Celestino.

AVIACEM DA VOLTA

sua esposa Generosa, m antendo dessa form a um bom relacionam ento com ambas as facções da família Celestino na Fazenda C anto. Tam bém percebi que outros Pankararu se m antinham neutros, ou seja, procuravam m anter bom relacionam ento com as diversas facções n a Fazenda C anto e tam bém com m em bros da M ata da C afurna. O Sr. H erculano Pedro U rbano, por exemplo, que retornou à T I Pankararu, visita regularm ente seus fdhos que m oram na "Avenida”13, localidade caracterizada por um a espécie de urbanidade’, ‘arruado'. Ele tam bém m antém contato com seu irmão A ntonio U rbano, ambos dem onstrando não se envolverem com disputas políticas dentro e fora da área c prefe­ rindo m anter contatos amistosos com m em bros de diferentes facções. A área denom inada “cam po” abrange todas as habirações próximas ao cam po de futebol. Este é utilizado para os jogos do tim e “X ucuruKariri Futebol C lube” com times “de fora”. O presidente do clube Luiz Ferreira Celestino (Lula)14, além de se encarregar de organizar partidas aos dom ingos, faz com que o tim e participe de torneios (como o de Futebol A m ador do estado de Alagoas) e tenta angariar recursos com políticos locais para a aquisição de mareria! (redes, bolas, camisas, etc.) e para a m anutenção e a melhoria do campo. Semanalmente, Luiz Celestino “acerta” (agenda) um jogo e com unica as equipes (adulto e juvenil) do time. Também contrata o transporte para os jogadores e para aqueles que os acom panham , geralmente familiares, nos jogos fora de casa. Sendo um a form a de lazer em que todos se divertem bastante, o “X ucuru-K ariri Futebol C lube” tem o “lem a” dc não se envolver em questões políticas da aldeia. C om posto por um total de 34 jogadores, na faixa etária de dezesseis a q uarenta anos, o tim e fazia questão de afirm ar que não discutia “política”. Todavia, a partir da própria neces­ sidade de auto-sustentação e dos im plem entos necessários para as equi­ pes do rime, eram feitas articulações políticas com representantes de partidos locais, com o vereadores, deputados estaduais ou futuros can­ didatos. Em troca de tal ajuda, os com ponentes do tim e, através de seu voto, viriam a dar apoio político nas eleições.

u Seus filhos são: lida Lorcnço Ramos, casada com Anczio Ramos; Petrúcio Pedro dos Santos, casado com Severina Oliveira dos Santos; e Renilda M 1 Santos Neves, casada com Edvaldo Ferreira Neves. 14 “Lula" é filho de um dos irmãos Celestino, Benedito Celestino, que é casado com Anália Ferreira da Silva.

CAMINHOS DAS ALDEIAS XUCl/RU-KARIRI

Os jogos na Fazenda C anto são m om entos em que vários parentes e amigos se encontram , principalm ente aqueles mais ligados aos jogado­ res. D ivertcm -se torcendo pelo tim e X ucuru-K ariri e zom bando do tim e adversário. N os jogos fora de casa, a torcida geralm ente se reúne longe dos torcedores adversários. Apesar de proibido, em am bas situações é grande o consum o de bebidas alcoólicas, principalm ente pelos hom ens. Sem pre circulavam boatos sobre os locais dc sua comercialização denrro da área indígena. Por ser organizado, com regulam ento15, d isputando sem analm ente partidas dentro c fora da área indígena, o clube é um im portante canal de inter-relação étnica. Percebi que nesses eventos há um a afirmação étnica em um nível local/regional quer quando recebem visitantes, quer quando deslocam-se para outras localidades. Portanto, os jogos são m om entos tanto de articulação inter-étnica quan­ to um canal legitimado para articulações político-partidárias. Foram vári­ os os exemplos de nomes de políticos locais citados como rendo forneci­ do material para o C lube.16 Segundo o presidente do clube, havia inclusi­ ve a intenção de “levantar a sede”, construindo próxim o ao campo de futebol um local para que os jogadores pudessem se concentrar. D u ra n te a prim eira fase da pesquisa de cam po, ocorreram vários conflitos entre o chefe de posto, o capitão da Polícia M ilitar G racindo Santos, e o cacique da Fazenda C anto M anoel Celestino. Ao se aliar a alguns índios era visível a participação ativa do chefe do posto no sen­ tido de fortalecer os conflitos contra o cacique. O posicionam ento do chefe de posto não se restringia à área: estabelecia alianças com perso­ nalidades da cidade, com o o com erciante Luiz Torres e o p ro m o to r Ivan Barros. Por outro lado, funcionários da FU N A I em Maceió, incluindo-se aí o adm inistrador regional e seus assessores, posicionavam-se c o n tra a legitim ação da re p resen tativ id ad e p o lítica do Sr. M anoel Celesrino com o cacique. C onstatei então que na p rópria Fazenda C anto havia pelo m enos três divisões faccionais extensivas às famílias que ocupavam essa área. E n­

15 Medidas consideradas “de ordem ” foram estabelecidos pela nova diretoria do XucuruKariri Futebol Clube, objetivando principalm ente m anter conservado o material e orga­ nizar a assiduidade dos treinos, a pontualidade etc. Iú Contavam com o apoio financeiro dos candidatos a prefeito Hetenildo Ribeiro e vereador Josuel Barros, inclusive para a construção da sede do time dentro da Fazenda Canto.

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A VIAGEM

da

VOLTA

tre m em bros da própria família Celestino, há registros de que, desde o início da década de 1980 aconteciam divergências políticas entre o cacique M anoel e seu tio, o pajé M iguel Celestino, Esses conflitos pare­ ciam estar relacionados a disputas políticas que se deram nessa família após a m orte do antigo cacique A lfredo Celestino, irm ão de M iguel C elestino. T am bém é im portante salientar que a cisão faccional entre os irmãos A ntonio e M anoel Celestino, filhos do falecido Alfredo Celestino, im ­ plicando a migração do prim eiro para a M ata da C afurna, estava asso­ ciada à escolha do filho M anoel, feita pelo próprio Alfredo Celestino, para substituto como cacique, após sua m orte, o que se relaciona com a legitim idade de M anoel Celestino para atuar/desem penhar o papel de cacique. C ríticas sobre essa escolha foram registradas em vários m o ­ m entos da pesquisa de cam po. Em algumas situações, alianças políticas foram estabelecidas entre o Sr. M iguel e seu sobrinho M anoel Celestino. Por exemplo, mostravam unidos no início de 1980 na mobilização política para a aquisição da área da M ata da C afurna, da qual todos os m em bros do grupo partici­ param , Tam bém aparecem agindo em con ju n to no ano de 1986 em oposição ao Sr. A ntonio Celestino, após a emigração deste com a fam í­ lia Santana para a Mata da Cafurna. Estavam aliados e inconform ados com a ocupação daquela área pelos m em bros da familia Santana, ten­ tando expulsá-los p o r meio de um a mobilização política. U m a outra divisão na Fazenda C anto, em oposição ao cacique M anoel C elestino, era encam pada pela fam ília Salustiano (M acário)J/. Esses estavam associados/aliados a m em bros da família Ricardo na Fazenda C anto e m antinham contato com Zezinho Sátiro na Fazenda Pedrosa. Apesar de m anterem boa relação com M iguel Celestino, não existia um relacionam enro de confiança m útua. A m bas as partes dem onstravam um a certa desconfiança, mas em alguns m om entos estavam articuladas contra Sr. M anoel e solidários ao chefe de posto. N em o pajé Miguel tinh a um a ligação tão próxim a com esse funcionário da FU N A I. Além de um bom relacionam ento com o chefe de posto, os m em bros da família Salustiano eram amigos de pessoas im portantes na cidade, como o com erciante Luiz Torres, Por outro lado, m an tinham correspondên­

17 Os filhos e filhas de Sr. João Salustiano casaram-se com índios das “famílias” Cosmo, Ricardo, Sátiro e Urbano, além dos casamentos com descendentes de não-índios.

CAMINHOS DAS ALDEIAS XUCURU-KARIRI

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cia e ligações telefônicas com a indigenista M aria Luíza Jacobina, que atuou na área durante vários anos desde a época do SPI. É interessante observar que descendentes dos três líderes políticos (cacique M anoe! C elestino, pajé M iguel C elestino e pajé A n to n io Celestino) desem penham papéis políticos em organizações das quais participam . Graciliana Celestino, filha de M anoel Celestino, faz parte do Conselho Estadual dos D ireitos da M ulher (C E D IM ), organização ligada ao governo estadual em que atua desde 1990 como representante da m ulher indígena do estado de Alagoas. Q uitéria Celestino, filha do pajé M iguel, organizou um a associação na Fazenda C anto, seguindo o exemplo de outras áreas indígenas no N ordeste e contando com o apoio de funcionários da FU N A I-M aceió13. Vários índios da Fazenda C anto fazem p arte da Associação, principalm ente aqueles mais diretam ente ligados à facção política do pajé. O objetivo principal deles é conseguir financiam ento de projetos, encam inhados tanto para órgãos do gover­ no do estado com o tam bém para organizações não-governam entais. Várias m udanças relacionadas à legitim idade e fortalecim ento do Sr. M anoel como cacique ocorreram local e regionalm ente. C ontatos entre M anoel Celestino e José G om es (funcionário da FU N A I, que atuava em Bauru-SP) vinham sendo m antidos com regularidade, (principal­ m ente através de contatos telefônicos, refletindo um a articulação entre eles para a transferência daquele funcionário para M aceió. Em 1992, José G om es Araújo passou então a ocupar o cargo de adm inistrador regional. Por sua vez, o Sr. M anoel, respaldado por esse novo adm inis­ trador, alimentava expectativas de se fortalecer politicam ente na Fazen­ da Canto. Percebe-se assim que a form a pela qual esse segm ento X ucuru-K ariri tem se organizado está vinculada a cisões d en tro do próprio grupo, cisões estas tam bém m arcadas pela atuação do órgão indigenista. O u seja, funcionários desse órgão têm atuado apoiando determ inada fac­ ção, privilegiando alguns e acirrando conflitos faccionais. Por exemplo, a atuação do então chefe de posto capitão G racindo, ao privilegiar um d eterm in ad o segm ento X ucuru-K ariri (fam ilia Salustiano), pode ser apontado com o um dos fatores responsáveis pela ocorrência de um

IS Consta registro dessa associação no Diário Oficial do Estado de Alagoas. Um extrato do estatuto da Associação Indígena Xncuru-Kariri foi publicado no Diário Oficial do Esta­ do de Alagoas do dia 16 de outubro de 1991. Esse estatuto é semelhante ao que tinha sido adotado em outras áreas indígenas em Alagoas.

A VIAGEM DA VOLTA

hom icídio em 1991, o assassinato de Messias, ligado à facção dc M anoel Celestino, por m em bros da familia Salustiano. O caráter difuso do faccionalismo nessa área permice detectar arti­ culações políticas entre m em bros de diferentes facções. D e acordo com a observação de cam po, vários conflitos estavam ocorrendo entre m em ­ bros da própria familia Celestino a partir das associações de seus dife­ rentes m em bros com outras famílias com o a Salustiano (na Fazenda C anto) e a Santana (na M ata da C afurna). Tais famílias são os princi­ pais eixos das facções dos X ucuru-K ariri na Fazendo C anto e na M ata da C afurna à época da pesquisa de campo. Em 1996, por causa de outro hom icídio ocorrido na Fazenda C anto, cuja vítim a foi o então cacique Luzanel Ricardo (casado com um a índia da família Salustiano), cinco m em bros da família Celestino (todos ir­ mãos, fdhos do antigo cacique Alfredo Celestino) foram im pedidos pelos próprios índios de continuarem vivendo em suas posses dentro da fa­ zenda. Esse h o m icíd io teve a p articip ação de um ín d io da fam ília Celestino cuja mãe morava na M ata da C afurna e refletiu o acirram en­ to dos conflitos entre o então cacique Luzanel Ricardo (“parente” da fam ilia Salustiano) e a facção liderada por Sr, M anoel Celestino. Luzanel R icardo vinha se legitim ando no exercício do cargo de cacique em razão do suporte das facções do pajé M iguel C elestino e da fam ília Salustiano e do apoio da FU N A I. Ao mesmo tem po que os m em bros da família Celestino foram im pe­ didos de reto rn ar à Fazenda C anto, dois irm ãos pertencentes a essa familia (Sr, A ntonio e Ermilina) e a mãe deles tiveram de sair da área em que viviam juntando-se aos que haviam ficado na cidade de Palmei­ ra dos ín d io s. Esses e o u tro s n ativos, sob a lid era n ç a de M anoel Celestino, form am um novo segm ento X ucuru-K ariri desde 1996, que habita provisoriam ente a cidade de Palmeira dos índios em casas alugadas pela Funai. Eles utilizam a área denom inada Aldeia Capela (quatro ha) para a prática de riruais religiosos ligados ao Toré, mas não dispõem atualm ente de áreas destinadas às atividades de subsistência.

Os ín dio s na M ata da Cafurna

C om o m encionado anteriorm ente, a M ata da C afurna é com posta por crês glebas ocupadas em diferentes períodos em que são desenvolvidas atividades agrícolas (banana, m andioca ctc.) e criacórias dom ésticas.

CAMINHOS DAS ALDEIAS XUCURU-KARIRI

Casas dc alvenaria foram construídas em 1988 com financiam ento pela Legião Brasileira de Assistência (LBA) de projetos, em convênio com a FU N A I. D e acordo com informações da FU NAI (1988a), a população dessa área correspondia a 215 índios. A major parte da área dessa região é ocupada por um a m ata em que se situa o O uricuri, local para onde os índios se retiram regularmente para a realização de rituais religiosos. Algumas informações indicam que principalm ente as terras localiza­ das na gleba M ata da C afurna/G arrote (170 ha) foram distribnídas para plantio pelo Sr. A ntonio Celestino àqueles que hoje as ocupam . C om relação à gleba M ata da C afurna/B enone (22 ha), houve interferência direta de funcionários da FU N A I (o chefe de posto capitão G racindo e o assessor do adm inistrador da FU N A I-M aceió o índio Kariri-Xocó Zé H eleno) na divisão e distribuição das respectivas terras para plantio. Em um docum ento produzido em papel tim brado da FU N A I, de 16 de agosto de 1989, intiluíado Termo de Acordo que presta a comunidade M ata Cafurna liderada pelo pajé Antonio Selestino e o índio C, Francilino, constam as assinaturas daqueles funcionários da FU N A I, do chefe de O perações/A SI/31 SUER), do pajé A ntonio Celestino e do índio Cícero Francilino da Silva, estes últim os citados com o “duas lideranças da co­ m u n id a d e ”, O d ocum ento m enciona que “a finalidade da presente reunião foi ouvir dos índios sua opinião de livre e espontânea vontade, se concor­ davam ou não com a divisão das terras que o utrora pertenceram ao sr. Pedro Pereira de Lim a [Pedro Benone], hoje pertencentes à F U N A I”. C onsta que “a partilha de terra consiste de duas divisões” entre “os que aderem ” a A ntonio Celestino (sendo citados 21 nom es de indivíduos), que concordavam em ter “seu lote de terra ju n to com os demais, sem divisão entre si”, e os que "aderem” a Cícero Francelino (19 indivídu­ os), que optaram p o r ter “seus lotes de terra dividido separadam ente um do o u tro ”. Tam bém consta nesse docum ento que havia sido “expli­ cado aos participantes da reunião, o m otivo de não ser possível constar [...] a m etragem exata da terra, bem com o suas divisões em lotes [...] devido à ausência de um topógrafo”, e que tin b a sido feita m edição, mas que havia “discordância no côm puto geral das tarefas”, por isso tornava-se necessária a presença desse técnico para fazer medição. Essa foi um a interferência direta em questões vinculadas à distribuição de terra na M ata da C afurna, com a utilização de práticas burocráticas e a elaboração de docum entos n a presença de um funcionário da então Superintendência Regional da FU N A I.

A VIAC EM DA VOLTA

F o n te I PETI/M useu N acion al, 1 99 3.

A m aioria dos nom es relacionados com o tendo co n cordado com Cícero Francilino (França) eram de indivíduos que m oravam na cidade ou que viviam na M ata da Cafurna. E interessante observar que Cícero “França” era (cf tem anterior) um daqueles que habitavam a cidade e se opunham ao Sr, M anoel Celestino, exemplo evidenciado na com e­ moração da festa de N , Sra. do A m paro. Ele m antinha um bom relaci­ onam ento com o chcfe de posto, que o considerava um dos “índios de verdade”19. Por se tratar de um assunto complexo e que revelava um a insatisfa­ ção geral sobre essa divisão territorial, c tam bém pelo fato de ser um a área não m uito extensa (22 ha), alguns dados indicavam que houve uma certa pressão, o u m esm o coação, para que o Sr. A n to n io C elesrino assinasse aquele acordo, legitim ando assim um a divisão de lotes para vários indivíduos que inclusive não viviam d entro da área indígena. N aquele m om ento, o Sr. A ntonio tin h a sido conivente com o arrendam enro para um fazendeiro vizinho de um a área para pastagem dentro da M ata C afurna/G arrote. Por ser um a situação irregular, foi “repreen­ did o ” pelo representante do órgão indigenista e o fazendeiro, avisado para retirar o gado da área. Nessa situação de fragilidade política se en c o n tro u um canal para a im posição do órgão tu to r e a aceitação passiva de Sr. A ntonio Celestino. Vale lem brar que esse m om ento está relacionado tam bém ao incentivo e à interferência de Luiz Torres ju n to aos funcionários da FU N A I, no sentido de reconhecer direitos territoriais daqueles “índios” da cidade.

19Apesar de nao ter focalizado as articulações políticas dos índios que moravam na cidade de Palmeira dos índios, eles podem ser considerados uma outra facção Xucuru~Karirh com posta de m em bros da família de Axistides Balbino, de Cícero França, da família M aranduba e cie outros nativos que m oram na cidade e se inter-relacionam com agentes históricos e índios das áreas da M ata da Cafurna e da Fazenda C anto. Observei que não há um questionam ento sobre a identidade étnica desses índios urbanos. Também regis­ trei informações, a partir de depoim entos dos próprios índios durante a pesquisa de campo, dc que do atual m unicípio de Igaci (antigam ente denominado O lho d'Água do Accioly), vizinho a Palmeira dos índios, teriam migrado para a Fazenda C anto alguns indivíduos na década de 1950. Tam bém me informaram que recentemente a FUNAI havia cadastrado 53 pessoas que se identificavam como “índios” nessa localidade e que tinham recebido assistência do Posto cm Palmeira dos índios, Nao consegui localizar um registro na FU NAI sobre esse assunto. Na Fazenda C anto encontram -se ainda hoje índios que m antem contato e slo ligados através de laços de parentesco a indivíduos que habitam atualmente em Igaci.

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AVíAGEM DA VOLTA

Perguntando ao Sr. A ntonio sobre a disponibilidade de terras num a outra gleba (M ata da C afurn a/G arro te), ele inform ou não haver mais qualq u er área que pudesse ser ocupada (distribuída); já estava tu d o “tom ado” (ocupado), apesar de vários locais estarem ainda sem planta­ ções. Observei que a distribuição de áreas para práticas agrícolas parecia relacionar-se a vários fatores, inclusive à própria participação que se teve durante a ocupação daquela fazenda em 1986. Este é o caso, por exem­ plo, dos “Leitões”, que m oram num a região limítrofe a essa área (sentido sudeste) c que riveram participação na “retom ada” desta fazenda, chegan­ do a se m udar provisoriamente para a gleba M ata da Cafurna/Benone. N a M ata da C afurna o relacionam ento eutre as famílias indígenas está associado ao parentesco estabelecido entre um m em bro da família Celestino (Antonio) e um a m ulher da família Santana (M arlene). Por isso existe um a certa tensão nas relações durante o cotidiano. Mas tam hém há um relacionam ento de respeito m útuo entre Salete Santana (itm ã de M arlene), por exemplo, e o Sr. A ntonio Celestino. Este, por sua vez, estava sendo bastante criticado por causa da sua reaproximação com o irm ão M anoel Celestino. Observei que m em bros de outras etnias indígenas, casados com pes­ soas da família Santana, tam hém criticava Sr. A ntonio Celestino. Isto é revelado, por exemplo, pelo relato de um dos Kariri-Xocó, casado com um a índia X ucuru-K ariti, em que afirmava estar insatisfeito com a ex­ tensão dc terra que possuía. Ele contou que algumas pessoas estavam trabalhando de form a irregular na gleba M ata da C afurna/G arrote com o apoio do Sr. A ntonio. O u tro índio não Xucuru-Kariri contou que não freqüenta reuniões porque o Sr. A ntonio não consegue escutar a opi­ nião contrária. Lamentava Zé N eto ter saído da área, pois era o único que conseguia “acalm ar” e convencer o pai a concordar com a opinião da m aioria. D u ran te a prim eira fase da pesquisa de campo estavam acontecendo alguns roubos de galinha na área. Depois de algum tem po, com a con­ tinu id ad e de relatos sobre o assunto, fui percebendo que havia um a associação entre esses roubos e um a relação conflituosa com indivíduos que de algum a form a eram ‘discrim inados’ dentro da própria área indí­ gena. Por exemplo, D . Toinha (mãe do Sr. A ntonio Celestino) me disse que tinha “bicho de dois p é” levando suas galinhas. Já tinham roubado tam bém um anim al de o utro índio; quan d o p erguntei a ela se sabia quem era, ela m e respondeu que era um “ladrão de galinha do arro do C ru zeiro ”.

CAMINHOS DAS ALDEIAS XUCURU-KARIRI

Sobre o Alto do C ruzeiro, localidade próxim a à M ata da C afurna, os índios se reportam com o sendo um lugar geralm ente escolhido por la­ drões e marginais. U m a família que hoje ocupa a M ata da Cafurna tem relação de parentesco com indivíduos dali; alguns inclusive freqüentam a aldeia. Por isso, D. T oinha com entou: “quem acoita [esconde, abri­ ga], é pior que ladrão”. Nesse m om ento, E tm ilina que escutava a con­ versa, aconselhou a m ãe a não com entar porque “era p io r”; mas D, Toinha co n tin u o u falando: “som ente um a casa puxou essas m al condu­ tas... digo com ela e com o pai dela que são coiteiro de ladrão”. Insisti, tentando entender sobre qual família D . Toinha estava se referindo. Ela com entou: “É gente de um a casa de gente de rua que na retom ada eles vieram. N ão foi A ntonio que cham ou, foi eles que vieram”. Então en­ ten d i que ela falava de um a “família”, cujos m em bros são apontados por alguns com o não sendo índios. A atribuição de que alguém não é índio se relaciona com origem , parentesco e ascendência genealógica. Esse é o caso dos que pertencem à fam ília M ateus; ainda assim são casos am bíguos, pois eles tam bém são reconhecidos com o índios por outros. A participação política deles na ocupação da gleba M ata d a C afu rn a/G arro te tam bém co n tribuiu para que o Sr. A ntonio Celestino os convidasse para m orarem n a área indígena. O fato de habitarem d en tro da M ata da C afurna tam bém dem onstra o reconhecim ento de serem índios. É como se existisse uma disposição hierárquica de famílias na área, expressa em um a gradação que vai dos que indubitavelm ente são índios (aqueles vinculados através de ascendências genealógicas às famílias tradicionais) aos que são apon­ tados com o sendo e não sendo índios (aqueles que se vinculam através do parentesco/casam ento com m em bros de famílias indígenas tradicio­ nais). Tudo depende de situações contextuais. Foram registrados m uitos intercasam entos recentes entre indivíduos de o u tras áreas in dígenas no N o rd este e m em bros desse segm ento X ucuru-K ariri, principalm ente com os Kariri-Xocó. Isso pode ser ex­ plicado precisam ente por ser esta facção X ucuru-K ariri a que mais tem se m obilizado no sentido de um fortalecim ento da etnicidade indígena voltada para fins políticos. Isto pode ser com provado pelas m obiliza­ ções políticas de ocupações territoriais, assim como pela manifestação de religiosidade indígena através dc rituais ligados ao O uricuri, p ráti­ cas recentem ente transm itidas na década de 1980. Existem tam bém aqueles que não participam do ritual do O uricuri. São m em bros das famílias M ateus, Ferreira, M aria Piaba e M aranduba.

A VIAGEM DA VOLTA

Eles pareciam viver num certo isolamento ou eram de certa form a dis­ crim inados através da não “permissão” de que fizessem parte do O uricuri. Esse é um exem plo q u e d e m o n stra um a prática d iferenciada de se vivenciar um a indianidade, pois existem formas distintas de ser índio X ucuru-K ariti dentro de um a mesma área. C om o acontece com outros líderes políticos e/ou religiosos da fam í­ lia Celestino, as filhas de sr. A ntonio Celestino tam bém têm se destaca­ do através da atuação política. É o exemplo de sua filha “M aninha”, que tem particip ad o ativam ente com o m em bro da organização indígena A P O IN M E . C ontando com assessoria jurídica do C IM I-N E e financi­ am ento da organização náo-governam enral O xfam , essa O N G tem reu­ nido índios dos mais variados grupos do Nordeste, Leste e M inas Gerais em reuniões dentro das próprias áreas; dessa form a, têm possibilitado um m aior núm ero de articulações entre os próprios grupos indígenas. O utros dados podem confirm ar o fato de o segmento X ucuru-K ariri ser aquele que mais tem se destacado em term os de um a etnicidade voltada para fins políticos, p o r exemplo a intenção, principalm ente dos mais jovens, de aprender a língua Kariri (já extinta) e os intercasam entos preferen cialm en te en tre ín d io s. N esse sen tid o , a situação h istó rica vivenciada pelos X ucuru-K ariri dessa área indígena aponta para um a m aior autonom ia deles com relação à interferência de atuação da FU N A I. O fato de não contarem com presença direra de um posto indígena tem viabilizado nessa área um a certa aurogestão, apesar de intervenções es­ porádicas de funcionários não-índios.

Os índios na Fazenda Pedrosa

N o prim eiro contato estabelecido com Zezinho Sátiro, cacique da Fa­ zenda Pedrosa, expliquei que estava desenvolvendo um a pesquisa sobre os X ucuru-K ariri, e que já tinha estado nas duas áreas em Palmeira dos índios e que só faltava conhecer a Fazenda Pedrosa. Ele perguntou quem tinha me inform ado sobre aquela área na Bahia e respondi que o seu registro constava em um levantam ento da FU N A I (1988a). Ele explicou que há seis anos saíra de Palm eira dos índios, seguindo inicialm ente para Ibotiram a. C om o não deu certo, fez um acordo com Rom ero Jucá, presidente da FU N A I na época). Explicou que não ficaram em Ibotiram a em ra­ zão de diversos fatores, salientando o conflito entre dois fazendeiros

CAMINHOS DAS ALDEIAS XUCURU-KARIRI

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que disputavam terras que incluíam a área adquirida pela FU N A I. Essa inform açáo consta de um estudo desse órgão (: 46) em que c m enciona­ da a aquisição da propriedade Fazenda Passagem (62 ha) em 1986, des­ tinada a práticas agrícolas do grupo, e ainda de quatro casas em um povoado próxim o para constituir suas residências.20 Em conseqüência daquele conflito entre os fazendeiros, de insatisfações do grupo com relação à distância dos centros urbanos e pelo fato de a área situar-se em terrenos de várzea do rio São Francisco, sujeitos a enchentes perió­ dicas (Atlas 1993: 46), Zezinho Sátiro deslocou-se para Brasília, onde perm aneceu 120 dias tentando obter recursos para a aquisição de um a nova área para reassentam ento do grupo. Disse que som ente após m ui­ ta insistência conseguiu falar com o presidente da FU N A I e que foi atendido “à força”. C o n to u que Romcro Jucá teria “prom etido” resolver o problem a do grupo, mas Zezinho explicou-lhe que somente com a “promessa por es­ crito” voltaria para Ibotirama. N o dia posterior a esse encontro, conver­ sou com o superintendente de assuntos fundiários da FU N A I, que lhe inform ou dispor de recursos para a aquisição dessa nova área. Ao retornar a Paulo Afonso (onde localiza-sc A D R /FU N A I a qual a área indígena em Ibotiram a é jurisdicionada), constatou que n enhum recurso havia sido repassado. Rerornou a Brasília com passagens fornecidas pelo adm inis­ trador daquela A D R e, ao chegar na sede da FUN AI, enrrou direto na “sala de Rom ero”, dizendo-lhe que não estava “brincando” e que ele era um ‘m entiroso”. Romero então teria consultado o superintendente da SUAF, que se desculpou pelo fato dizendo que houvera “esquecimento” e garantindo que faria o “depósito im ediatam ente”. C om essa garantia, Z ezinho com eçou a p ro curar “lugar p’ra co m ­ p ra r”. Disse que foi verificar um a área em Alagoas, Porto da Folha, m as não gostou do lugar. D epois de “an d ar” (viajar) m uito, quando estava no “en tro n cam en to ”, na estrada de acesso à N ova G lória/BÁ , conversou com um hom em que lhe inform ou sobre a Fazenda Pedrosa. T ratava-se do p ro p rie tá rio d aq u ela fazenda. D eslocaram -se p ara a

20 Antes do reassentamento definitivo na Fazenda Pedrosa, a FUNAI cogitou a possibilida­ de de transferir esse segmento Xukuru-Kariri para a T I Ibotiram a (Fazenda M orrinhos), onde foram reassentados índios Tuxá de Rodclas/BA em virtude da barragem de Itaparica. Apos a discordância dos Tuxá c dos Xukuru-Kariri, foi proposta como alternativa a Serra do Ramaího, T I Vargem Alegre, também não aceita pelos Xukuru-Kariri (Sugestão para R em oção-Funai/86 citado por PETI 1993: 47).

A VIAGEM DA VOLTA

FU N A I-Paulo Afonso e, juntam ente com funcionários do órgão, foram vistoriar a área de 18 ha, posteriorm ente adquirida. Descrevendo a Fazenda Pedrosa, Zezinho contou que ao chegarem, quando foram reassentados, só havia um a casa construída, local onde do rm iam as crianças. O s adultos Ficaram abrigados em barracas de íona fornecidas pelo Exército. Nessa fase som ente cinco fam ílias ti­ nham vindo para a Fazenda Pedrosa; com o tem po chegaram mais pes­ soas provenientes da Fazenda C anto. A proxim adam ente oitenra pesso­ as tinham intenção de vir para a área, mas ele não concordou alegando que “não dava” e que tu d o teria de ser “com binado com todos” que m oravam na Fazenda Pedrosa. Segundo dados da FU N A I (1988a), a população registrada era de 5 2 índios. E m relação à atuação da FU N A I, ele disse que só houve m elhorias na aldeia quando veio “genre de fora”, por exemplo, a construção das casas. Inform ou tam bém sobre algumas articulações com a Igreja que teriam viabilizado m elhorias n a in fra-estru tu ra da aldeia. C onheceu padres italianos que estiveram em Paulo Afonso e então convidou-os p ata visitar a área, fazendo um “pedido” de ajuda para o grupo. Poste­ riorm ente, m encio n o u que essa “visita” havia sido interm ediada por um missionário do C IM I-N E cham ado Z é Carajá, que trouxera aque­ les padres até a aldeia. Então tiveram oportunidade de “dançar”, “fazer brincadeira” (term o utilizado para se referir a dança do Toré) e pedir um a co n trib u ição para a m elhoria das condições de suas m oradias. Segundo Zezinho, foi através de um recurso de oiro mil dólares, conce­ dido por esses padres e adm inistrado pela diocese de Paulo Afonso, que eles puderam adquirir material para a construção de novas casas. Disse ainda que se não tivesse sido o D . M ário, bispo de Paulo Afonso, e os padres estrangeiros, ainda estariam “m orando debaixo de lona”. N o que diz respeito à instalação de energia elétrica e o sistem a de irrigação, Z ezinho inform ou que vários órgãos do estado da Bahia, e ainda a FU N A I, participaram de sua realização. Isso se deu porque já tinh am tido m uitos prejuízos com a falta de chuvas, perdendo vários plantios. Todavia a irrigação era m uito cara, as contas de energia elétri­ ca chegavam a “35, quarenta m il por mês”. Por não terem condições de pagar, todo mês “brigavam” para a FU N A I assumir esse custo. Essas informações dem onstram a articulação e a atuação de Zezinho Sátiro no sentido de solucionar problem as surgidos após sua saída da Fazenda C anto e revelam a presença de outros agentes nessas situações, relacionados principalm ente à Igreja (Diocese de Paulo Afonso, C IM I),

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que investiram no beneficiam ento da área, através de projetos econô­ m icos e da aquisição de terras contíguas à Fazenda Pedrosa. D u ran te todo o trabalho de campo, um a série de comparações eram feitas entre as áreas em que já haviam m orado. Certo dia, conversando com Josefa Ferreira da Silva (Finha, esposa dc Zezinho), ela me contou que em Ib o tiram a havia m u ita terra, mas não havia condições de lá perm anecer c trabalhar porque “os pau m enor que tinha era os que tem na M a ta da C afurna, não havia condições de desm atar” . C o ntou-m e ainda que em bora o rio São Francisco ficasse distanre, viviam "com m edo”, sob a ameaça de enchente; por outro lado, era um lugar m uito distante: “a FU N A I mais perto era a de Brasília”, “era mais fácil ir p’ra lá do que p’ra Paulo Afonso”. As “famílias” (elementares) que viviam na Fazenda Pedrosa estavam todas relacionadas aos Sátiros o u à “família” da esposa de Zezinho Sátiro31. O mais recente m orador era Z ito, irmão dc Finha, que tinha chegado na área há 42 dias. Sua esposa E dna dizia que não era índia, mas como tin h a se casado com um índio, achava que poderia ser índia tam bém . N a Fazenda Pedrosa, presenciei um a visita de índios K antaruré (“C a­ boclos da Batida”) a Zezinho Sátiro. Esses índios levaram m ercadorias (frutas, m el etc.) para serem com ercializadas na feira do povoado Q uixaba. Eles m an tin h am um relacionam ento com o padre daquele distrito, que prestava alguma assistência a eles através de projetos eco­ nôm icos. Q uando deslocavam-se para Q uixaba, visitavam regularm en­ te os Xucuru-Kariri. Em razão da proxim idade geográfica (1 km), há um a interação entre os habitantes do povoado e os índios X ucuru-K ariri, As crianças indí­ genas estudam na escola desse d istrito e recebem assistência m édica através da FU N A I-Paulo Afonso. Zezinho e Finha m antêm relações de com padrio com um casal desse povoado que freqüenra a aldeia. O filho m ais velho de Z ezinho estava noivo de um a não-índia, tam bém de Q uixaba. N a segunda fase da pesquisa de campo eles já haviam se casa­ do e estavam m orando na casa de Zezinho. Estava concluindo curso de técnico agrícola e todos tinham esperanças de que se “tornasse funcio­ nário da FU N A I e viesse trabalhar na área”.

21 Sendo fiiha de José Paulino da Silva (já falecido) e Flora Ferreira da Silva (Alzira), duas irmãs de Finha, o irmão Z ito e sua mãe moram nessa AI. U m outro irmão (Osvaldo Ferreira da Silva) teside com a esposa na AI Fazenda Canto; sua irmã casada com um nãoíndio mora na cidade de Palmeira dos índios.

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Observei que Zezinho m antinha bons relacionam entos com outras etnias indígenas na região. O s contatos mais próxim os eram com os Pankararé e os Tuxá. Ele m e contou que, quando procurava um local para reassentam ento, havia recebido um convite dos Kiriri de M irandela para m orar na área deles. Recusou porque não queria m orar na área de nen h u m outro grupo. Alegou que com o tem po poderia haver proble­ mas e que “o m elhor é cada um no seu lugar”. N o que concerne às relações sociais/conflitos entre as fam ílias na Fazenda Pedrosa, foi possível perceber alguns conflitos entre Zezinho e Lourdes (esposa de Cícero, irmão dc Zezinho}; ela contou que seu filho havia tom ado banho no tanque d ’água e que Zezinho am eaçara agredilo. Falou tam bém que Zezinho “entregou” seu irmão Luís, que “cortou o Zé M ucurí, irmão de B enedita e até hoje não soltou”. Cícero, que escutava a conversa, com entou que já tinha falado com o “delegado da F U N A I” em Paulo Afonso, que teria se com prom e do em “soltar na sem ana passada e até agora nada”. Zezinho falou que Luís já tinha feito m uitas “besteiras” e que iria dar um a “passagem para ele viajar para o nde quisesse e não voltasse mais”. Essa seria a condição para soltá-lo da cadeia. Lourdes não sabia das intenções do cacique com relação ao “fu tu ro ” do seu irm ão e a m anutenção dele na cadeia se devia à decisão de Zezinho em conjunto com o adm inistrador da FU N A I, um capitão da Polícia Militar. Lourdes com entou que quando há reunião na área ela n lo gosta de ir “p r’a n lo vê a cara de Z ezinho”. Ela ouviu com entarem que o dinheiro da indenização das casas de Ibotiram a seria para construir posto, escola etc. na área e que não concordava com isso. Achava que cada um deve­ ria receber individualm ente em d in h eiro “o que lhe era de d ire ito ”, para fazer o que achasse melhor. Sobre a escolha da localização da sua casa na aldeia, distante das demais, disse que foi intencional, pois ten ­ do m uitos filhos, preferia m anter distância para não haver “confusão” com outras famílias. N esse m esm o dia em que estive com Lourdes, fui na casa de sua sogra D . M ocinha, que perg u n to u se eu tin h a ido à casa de Cícero. R espondi afirm ativam ente e então ela m e c o n to u que C ícero era o “filho m ais q u éto ” que tin h a, mas que a sua m u lh er L ourdes... era “arengueira, só gostava de falar de Z ezinho”. Falou tam b ém de um d esen ten d im en to ocorrido entre Z ezinho e Lourdes e que em razão dos conselhos que teria dado a seu filho, não tin h a aco n tecido "o p io r ”.

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Percebi existir um a certa tensão no relacionam ento que os XucuruKariri dessa área têm com Benedita do N ascim ento. C om o já m encio­ nei no item sobre a Fazenda C anto, Benedita é um a índia Pankararu que tran sita nas duas áreas. Tem problem as psicológicos e consom e bebidas alcoólicas; por isso sofre alucinações, já tendo chegado a ser internada em hospitais psiquiátricos. Teria dado um a filha sua de dois anos a um a m ulher em Paulo Afonso, e por essa atitude Zezinho tinha a inrenção de dar um a “pisa” (surra) em Benedita. Soube que, em con­ versa com ela, ele teria dito que se não parasse de beber, tom aria a casa que tin h a lhe cedido na aldeia e a expulsaria da área. C om o ela acatou o conselho, tudo seguia bem. Parecia existir um certo distanciam ento do casal Cícera Ribeiro (Ciça) e Edval R ibiero Pães (Dé) com os dem ais m em bros da aldeia. Eles eram próxim os de B enedita N ascim ento e ouvi com entários de que seriam “feito ciganos”, term o que na região tem um a conotação pejora­ tiva. Bastante tím ido, "D é” contou que tinha sido “criado com M anoel Satile” — “somo feito irm ão” - e que essa era a razão de ter “acom pa­ nhado” essa família, de ter vindo m orar na Fazenda Pedrosa. C o n statei então que os conflitos na Fazenda Pedrosa se davam de m aneira local; poucas vezes envolviam personalidades, personagens de “fora”, com o na prisão de Luis às custas da cu m plicidade entre Z ezinho e o ad m in istrad o r da F unai-Paulo A fonso. E m geral os co n ­ flitos eram ocasionados por co m p o rtam en to s “reprovados”, com o nos casos de B enedita e Luís, ou causados p o r relacionam entos, com o no exem plo de L ourdes, e que ev entualm ente aconteciam certos ‘in c i­ dentes’ que davam co n tin u id ad e ou acentuavam conflitos diretos com o "cacique” da área. Por exem plo, percebi que Cícero vivia insatis­ feito por estar m orando na Fazenda Pedrosa. Ele en ten d ia e apoiava a posição de sua esposa, o re la c io n a m en to com seu irm ão Z ezinho sendo m arcado por desen ten d im en to s que aconteciam com um a cer­ ta regularidade.22 D e m aneira d istin ta da que acontece na M ata da C afurna, esses X ucuru-K ariri estão ocupando um a área que possui graves limitações com relação à produtividade do solo. N ão contando com a presença direta de um posto indígena, a situação desses índios tem dependido da

11Por exemplo, soube que certa vez Cícero ficou bêbado e “fez besteiras” e que Zezinko, seu irmão, teria lhe dado uma “surra” e o “deixado” dc castigo amarrado numa írvore a noite toda.

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atuação do cacique no sentido de u m a mobilização política que supra as suas necessidades, recorrendo não só à assistência da FU N A I, como tam bém a outros agentes históricos que estiverem ao seu alcance: a Igreja Católica, o governo do Estado da Bahia etc., um a intensa articu­ lação com outros grupos indígenas regionais sendo tam bém um a carac­ terística da situação histórica em que se insere esse segm ento X ucuruK ariri.

O bservações fin ais

Após todas essas descrições é interessante tecer algum as observações referentes ao fenôm eno da etnicidade entre os X ucuru-K ariri. C om o foi enfatizado anteriorm ente, trata-se da presença de um a etnicidade indígena em Palmeira dos índios que vem apresenrando um a continui­ dade histórica. H á informações histórico-docum entais da presença in­ dígena nessa região desde pelo menos o século XVIII. C onsidero que a questão indígena no N ordeste está fundam enralm ente vinculada a nm contexto político contem porâneo, ligado a situa­ ções de territorialidade (situação de reserva) e de identificação étnica (indianidade). A indianidade tem se dado arravés da utilização dc um etn ô n im o específico estabelecendo fronteiras étnicas através dc sinais diacríticos, n o sen tid o ap o n ta d o p o t B arth (1969); p o r sua vez, a territorialidade vetn sendo realizada através de conquistas de parcelas de terras. T enho enfatizado que m esm o os elem entos ligados a um a abordagem prim ordiaíista (citada por Benrley 1987), com o por exem­ plo o parentesco e a religiosidade, associam-se ao âm bito político no caso dos índios no N ordeste. Provavelm ente situações em que esses grupos étnicos vivenciam a etnicidade indígena, respaldada pela pre­ sença e pela atuação de um órgão tu to r do Estado, constituem a marca que condiciona a especificidade das inter(-rel)ações e interdependências existentes no cam po político intersocietário. Percebendo durante a fase do SPI as interdependências entre o siste­ m a nativo e o sistem a colonial, os nativos índios (“caboclos”, term o utilizado naquela época) foram inseridos em um a nova situação m arcada pela presença desse órgão, acarretando adaptações a um a form a organiza­ cional estabelecida na área reservada sob o controle político desse ó r­ gão governam ental. O siscema nativo nesse caso, por tratar de popula­ ção n lo diferenciada em term os de traços culturais do am biente regio­

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nal, passou a ser m arcado pela diferenciação entre os assistidos e as populações não reconhecidas oficialm ente ou tureladas pelo Estado. E esse fato que marca e legitima a continuidade e o rearranjo dc toda um a nova form a de ser, relacionada à produção de um a indianidade em um nível local/regional/nacional. A ação indigenista, po rtan to , parece ter sido o que possibilitou o (res)surgim ento de um sistema nativo indíge­ na. Por isso, a grande dificuldade de se perceber u m a diferenciação entre questões étnicas (polttico-organizacionais) e a produção de um a indianidade (relacionada ao reconhecim ento oficial), N o que diz respeito à questão cultural, náo há um distanciamento em termos de práticas ou traços culturais do am biente regional em que esses índios esrão inseridos. C om o já mencionei em outros m om entos (Martins 1993 e 1994), a utilização do conceito de cultura elaborado por W oif (1988: 757), enquanto nós e nexos de um processo de interação social, pode ser útil para considerar os pontos em que devem ser detectados dados importantes para a compreensão da questão cultural referente ao fenômeno étnico. D ito de outro modo, a ênfase deve ser posta no m apeamento de interações sociais, e não na procura de diferenças culturais a partir da utilização de um a noção de cultura como sistema normativo. C o m relação à questão de práticas sociais pari ulares relacionadas principalm ente à religiosidade e ao parentesco, foi constatado que essas práticas têm sido clementos-chave dcm arcatórios de um pertcncim cnto à etnia indígena. Assim, esses grupos parecem seguir um mesmo estilo de manifestação do fenôm eno. Através de diferentes práticas religiosas ligadas ao Toré ou O uricuri, os índios no N ordeste vêm afirm ando um a etnicidade diferenciada dos dem ais nativos não-índios que convivem no am biente regional. São poucos os dados que disponho sobre essas práticas religiosas, mas é im portante destacar que elas constituem for­ mas de expressão de religiosidades indígenas diferenciadas no N ordes­ te. O fato de determ inado grupo m anifestar práticas religiosas relacio­ nadas a um a dessas form as, p o r exemplo o Toré, é revelador de um a alteridade em relação a etnias indígenas da região que praticam a outra form a (o O u ricu ri), D estaco dois grandes grupos, provavelm ente os mais representativos dessas diferentes linhas de religiosidade indígena: os Pankararú, que têm no Toré/Praiá sua expressão, e os Fulni-ô, que praticam o O uricuri. Poderia ser elaborado um m apeam enro sobre es­ sas práticas, a partir das interações estabelecidas entre os mais variados grupos indígenas praticantes desses dois estilos de religiosidade indíge­ na no N ordeste.

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ín d io s X u c u ru -K a riri q u e a tu a lm e n te o cupam d ife re n te s áreas territoriais distinguem -se tam bém em relação à religiosidade que prati­ cam, Essas expressões diferenciadas resultam de contatos interétnicos com outras etnias indígenas regionais, específicos a cada situação histó­ rica contem porânea desses segmentos. Essas diferentes práticas, princi­ palm ente referentes à M ata da C afurna, têm servido como o principal elem ento determ inante de um a alteridadc com relação aos demais seg­ m entos X ucuru-K ariri. Provavelmente o ressurgimento de fidelidade étnica, ou melhor, a ex­ tensão da ernicídade indígena no N ordeste relaciona-se tam bém a m u­ danças socioeconôm icas. Por tratar-se de um fenôm eno fundam ental­ m ente político, todavia, ele está vinculado a alguns fatos relacionados principalm ente a processos de alianças estabelecidas entre os indivídu­ os. O m ovim ento indígena no N ordeste, refletido através de alianças entre etnias indígenas, vem sendo um a mobilização política dos própri­ os índios, que têm encontrado apoio e incentivo em organizações não governam entais, como C IM I, U N I, OXFAM e outras. Desde a década de 1980 a questão territorial, particularm ente a regu­ larização oficial do território, estava pendente entre os X ucuru-K ariri. Apesar do território ter sido identificado em 1988, ele continha propos­ tas consideradas inviáveis para a sua regularização, pois form ando um círculo ao redor da cidade de Palm eira dos índios, tratava-se de u m território com um a dimensão dc 13.020 ha. Somente em 1995 foi deter­ m inado um reestudo e em 1997 um novo G T de identificação elaborou estudos contendo uma nova proposta de território cuja extensão é de aproxim adam ente 15-280 ha, considerando tam bém áreas para a expan­ são e o desenvolvimento da cidade de Palmeira dos índios (Ferreira 1998). Ao p ressionarem p o litic a m e n te a a d m in istra çã o da F U N A I em Brasília, M aninha X ucuru-K ariri (líder político da M ata da C afurna e m em bro da organização indígena A P O IN M E ), Q u ité ria C elestino e seu pai, o pajé Miguel Celestino da Fazenda C anto, tiveram participa­ ção fundam ental na realização dessa nova identificação23, refletindo um a nova articulação cm termos de um rearranjo político entre os índios da Fazenda C anto e da M ata da Cafurna. Esse novo processo “b u ro crático " de id en tificação do te rritó rio X ucuru-K ariri e a etapa de levantam ento fundiário tornaram evidente a 27 Q ultcria Celestino, líder fundamental para a organização política e manutenção de uma ordem na Fazenda C anto, e u seu pai o pajé Miguel Celestino faleceram recentemente.

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articulação e a mobilização de políticos alagoanos e de ocupantes nãoindígenas locais contra o processo de regularização fundiária dessa ter­ ra indígena. Isso ocorreu devido à ingerência desses políticos ju nto à Presidência da FU N A I e ao M inistro da Justiça, por exemplo, visando anular e desconsiderar essa proposta da identificação. O utros exemplos que podem ser apontados e que dem onstram essa mobilização foram as reuniões havidas na própria cidade de Palm eira dos ín d io s e com o governador do estado de Alagoas (em Maceió) entre dirigentes da FU N A I, políticos e fazendeiros locais (cf. Ferreira 1998). O processo de mobilização em torno de regularização oficial do ter­ ritório tem consistido em um a situação contextual que tem proporcio­ nado um a articulação entre diferentes cisões dos Xucuru-Kariri em Pal­ m eira dos índios. A participação em conjunto de m em bros das mais diferentes facções durante o trabalho de identificação e levantam ento fundiário realizado em 1997-98 reflete isso. Por outro lado, os índios localizados na Fazenda Pedrosa não vem participando desse processo, mas têm expectativas sobre os direitos a terras que "tradicionalm ente” já ocuparam em Palmeira dos índios. Assim, os dados etnográficos apresentados sobre os índios X ucuruKariri exemplificam com o esse grupo étnico indígena constitui-se em um a diversidade de segm entos políticos, refletidos em algumas situa­ ções através de práticas de religiosidades indígenas e/ou não-indígenas diferenciadas; noutras, a partir dc associações e articulações com m em ­ bros de outras ernias indígenas e não-indígenas. Alianças estabelecidas entre nativos (não-índios) e índios (através principalm ente do parentes­ co) e associações entre índios e agentes históricos presentes em um nível local/regional/nacional têm sido canais para fortalecim ento da iden­ tidade étnica indígena X ucuru-K ariri. C onflitos e interdependências dentro de contextos situacionais, relacionados à presença e atuação do órgão tutor, mas principalm ente às inter-relações com etnias indígenas no N ordeste, vêm proporcionando não só a m anutenção, com o tam ­ bém a extensão da indianidade X ucuru-K ariri. C om o caso exemplar, isto reflete como vem se constituindo o fenôm eno da etnicidade indíge­ na nesta região.

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Jo s é M a u r íc io A n d i o n A r r u t i

A árvore Pankararú: fluxos e metáforas da emergência étnica no sertão do São Francisco

Este texto é resultado de um trabalho que originalmente pretendia descre­ ver a sociogênese do grupo de “remanescentes indígenas” Pankararú, loca­ lizado entre os atuais municípios de Petrolândia, Itaparica e Tacaratu, no sertão pernam bucano, próxim o ao rio São Francisco. As terras reivin­ dicadas por esse grupo, desde os primeiros registros do Serviço de Prote­ ção ao índio (SPI) na década de 1930, correspondem a “uma légua em quadro”, delimitada em 14.290 ha. O eixo central dessas terras é o Brejo dos Padres, local para onde um a antiga missão de Oratorianos reria trans­ ferido seus ancestrais, depois de expulsos do local em que hoje se situa a cidade de Tacaratu. N a terra Pankararú, dividida entre um a área de 8.100 ha efetivamente demarcada e homologada na década de 1980 e a restante que com pleta a légua em quadro, estando subm etida a um novo processo de identificação, há cerca de 3.500 índios, segundo o últim o censo ofici­ al da Fundação Nacional do índio (FUNAI), Essa distinção entre duas áreas e duas populações sugere que os Pankararú ainda estão em “proces­ so dc territorialização” e a sua sociogênese, sob um determ inado ponto de vista, ainda pode ser considerada um a quesrão em aberto. Além disso, o trabalho de descrição da sociogênese Pankararú m os­ trou-se indomesticável por outros motivos, tendo transbordado os limites do grupo e de seu território, ou melhor, tornando esses limites confusos c problemáticos. As tentativas de organizar cronologicamente as referên­ cias docum entais dos etnônim os Pankararú e descrever a situação social de “contato cultural” no Brejo dos Padres acabou por me obrigar a perse­ guir atores, agências, coletividades e formas culturais no tem po e no espaço. N o lugar de um eenônimo, encontrei um a “árvore” e diversos

“enxames”; no lugar de um a situação e de uma narrativa, um a rede e suas conexões, que estendiam os fios da sociogênese Pankararu a diversos outros grupos de “remanescentes indígenas” ao longo do São Francisco. Por isso, este texto, m antendo seu objetivo inicial, tam bém cede à ten­ tação de persegui-lo por horizontes mais largos e oferece um a interpretação sobre as próprias condições dessa sociogênese, assim como sobre a “emer­ gência” de um conjunto bem mais amplo de “remanescentes”. De fato, por meio da conjunção desses termos semanticamente contraditórios, mas histo­ ricamente complementares, procuro configurar meu objeto de análise: os remanescentes emergentes. Remanescentes porque foi difícil designá-los sim­ plesmente como índios: eram caboclos supostamente descendentes de indí­ genas aldeados, mas que “não possuíam mais”, como veremos, os “sinais externos” reconhecidos pela “ciência etnológica”. São emergentes porque se apresentam com novas identidades indígenas, que todavia reivindicam uma ancestralidade autóctone não manifesta: resultado de recuperações e recri­ ações étnicas que lhes perm item destacarem-se na superfície da rica mas indistinta cultura nordestina sertaneja. O s lim ites da análise que será apresentada são basicam ente dois. Prim eiro, esta será um a crônica escrita do ponto de vista dos grupos que a viveram , teudo por base fontes orais, o que significa recorrer à história docum ental apenas quando esta se fizer necessária à inteligi­ bilidade daquela, n u m a inversão do m ovim ento mais com um . Nesse sentido, não estarei tão preocupado em delim itar os contextos que en­ volvem as atuações e as razões do órgão indigenista ou dos personagens que surgem nessa crônica com o mediadores: o órgão e os remanescentes em erg en tesSegundo, esta será um a crônica relativa apenas a um prim eiro período dessas emergências étnicas no N ordeste, que vai da década dc 1920 à de 1940. N ão me estenderei sobre o segundo período, iniciado na década de 1970 e ain d a inconcluso, que parece responder a um a lógica distinta e a um a form a diferente desses grupos im aginarem-se a si m esm os2, a não ser nas situações d ire ta m en te ligadas à “árvore”

' Para um exercício em que trabalho com o mesmo período, mas no qual busco uma reconstrução mais “equilibrada” entre as perspectivas êmica e ética, situando a questão das emergências indígenas em um contexto histórico e regional mais amplo, cf. Arruti (1995). 2 Depois desse período há um relativo silêncio em que as emergências pareciam ter se esgotado, mas a partir da metade dos anos 1970 levanta-se uma nova onda que, em pouco mais de vinte anos, acrescentaria àqueles primeiros outros 24 grupos, sem contar com as informações sobre a dem anda de um núm ero ainda indeterm inado de grupos no

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Pankararu. Além desses dois limites, esse texto pautar-se-á tam bém por dois focos analíticos, que buscam colocar a situação dos remanescentes emergentes em diálogo com o campo mais am plo dos estudos étnicos. Estrategicamente, definirei esses dois focos a partir de duas considera­ ções críticas acerca das form ulações de R oberto C ardoso de O liveira sobre a identificação étnica, ainda representativas desse campo de estudos. Em um texto de 1971, Cardoso de Oliveira cita alguns “casos limite”, nos quais um conjunto de indivíduos, na falta de um grupo étnico de referên­ cia efetivamente existente, pode apelar à sua história para se representar como categoria étnica. A noção de grupo étnico com que o autor traba­ lhava era retirada de Barth (1969), podendo ser definida, nesse contexto argumentativo, como “um grupo organizado (organizadonai typé)" que se utiliza das diferenças culturais de form a contrastiva para dem arcar suas fronteiras com relação a outros grupos. N o entanto, nos citados “casos limite” a que o autor se refere como “remanescentes trihais”, a possibili­ dade de emergência de um a identidade étnica seria proporcional à cons­ ciência que tais “remanescentes” teriam de sua “historicidade” (Cardoso de Oliveira (1971: 13)3. Dessa forma, o autor supunha a existência de mecanismos e critérios de identificação étnica haseados exclusiva ou pre­ dom inantem ente na memória de grupos cuja organização social já teria sido desfeita pelo avanço colonial, sem que isso o tenha levado a fazer com que o problema da “identificação” e de sua “historicidade” retornasse criticam ente sobre a definição de Barth para “grupos étnicos”. M esmo supondo a possibilidade de gerar um “modelo de identificação étnica” derivado da observação do que ele mesmo cham ou de “remanescentes”, sua preocupação com a formalização c estruturalização dc seus enuncia­ dos não perm itiu que cie atribuísse um valor problemático aos usos soci­ ais daquela “historicidade”, isro é, à memória. D a mesma forma, ainda que nesse texto Cardoso de Oliveira aponte para a questão da ligação entre a identificação ctnica e o acesso a determi-

estado do Ceará, Para um exercício em que busco uma prim eira aproximação desse outro período das emergências indígenas no Nordeste, atualizando o contexto mais amplo apresentado no texto citado anteriorm ente, cf. A rruti (1999). 3 Cardoso de Oliveira reconhecia ainda que a presença desses “remanescentes tribais” não se restringia a regiões de colonização antiga (seu exemplo sao os Terêna), mas poderia scr observada em regiões mais preservadas, como a xinguana, onde tam bém existiriam grupos cuja organização social tribal já havia sido desfeita, mas que m anteriam mecanis­ mos de identificação semelhantes.

A ÁRVORE PANKARARU

nados direitos que estariam em jogo na assunção do rótulo de “índios”, o autor praticamente abandona as conseqüências dessa constatação ao m an­ ter os problemas teóricos no plano da relação índios versus brancos. Reto­ m ando um texto anterior e sem as mesmas pretensões (1960b) sobre o papel dos Postos Indígenas no “processo de assimilação”, veremos que na­ quela análise era a armação de um a estrutura institucional garantidora da “proteção” e da “assistência” que, por mais precária que fosse, sustentava a manutenção da identidade étnica, o u seja, frca claro que a onipresença da “contrastividade” com o branco deveria subordinar-se ou integrar-se à aná­ lise da relação entre identificação étnica e acesso às garantias (os “direitos”) oferecidas por um a agência estatal com funções não só executivas e de polícia, mas também cíassificatórias, já que responsável pela própria iden­ tificação oficial dos grupos e indivíduos. Nesse caso, Cardoso de Oliveira perde de vista que o fundamental na analogia com a “situação colonial" a que faz referência náo é a diferença de “escala” entre sociedades tribais e sociedade nacional (Cardoso de Oliveira (1971: 15), mas o fato de a situa­ ção interctnica estar englobada pelo quadro jurídico de um Estado-nação (Oliveira 1998: 54). Isso faz com que a identificação étnica em situações coloniais deva levar em conta, além das representações ou das ideologias geradas nas situações de contraste (Cardoso de Oliveira 1971: 20), o qua­ dro institucional que as envolve4, isto é, o ordenam ento jurídico, policial, de recursos etc., que passa a regular o contexto das interações. Entre outras coisas, trata-se daquilo que as populações indígenas com que trabalhare­ mos a seguir chamam ampla e difusamente de “direitos”. Este texto pautar-se-á justam ente por esses dois pontos críticos, bus­ cando elevar ao lugar de problem áticas analíticas, a memória, dc um lado, e o que poderíam os resum ir com a idéia da busca dos direitos, de outro. C om o veremos, esses pontos são praticam ente indissociáveis no caso dos remanescentes emergentes, já que a m em ória é fundam ental no processo de ident fteação q u e dá acesso aos “direitos”. Por outro lado, eles se distribuem por entre problem as mais empíricos, que surgirão a seguir quase com o unidades de nossa análise: as viagens indígenas e os fluxos socíoculrurais e políticos desenhados por meio delas; o sistema de metáforas que organiza e dá coerência aos efeitos e às reconversões da “m istura”; o ato perform ático e místico dc levantar aldeia; e a polissemia do Toré, que penetra todas essas unidades de análise. 4 Lembremos que Barth (1969), utilizado por Cardoso de Oliveira, desraca apenas as condições ecológicas e demográficas.

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A teced u ra das em erg ências: anos 1920-40

No início era o porta-voz: Pe. Dâmaso e os carnijó Um libreto de autoria do “capelão militar das tropas revolucionárias do N orte” Pe. Alfredo Pinto Dâmaso, publicado em 1931 no Rio de Janeiro, fornece o primeiro fio de narrativa com o qual buscaremos tecer a rede de emergências dos “remanescentes indígenas” no Nordeste. Nesse texto, o autor faz um a defesa do Serviço de Proteção ao índio (SPI) contra as duras críticas feitas pelo jornal carioca A Noite, que o acusava de ser um serviço de catequese leiga que punha Com te no lugar de Cristo, que desperdiçava grande quantidade de dinheiro público inutilmente e que só fazia explorar os sdvícolas. Contra essas opiniões, Pe. Dâmaso dá um depoimento pesso­ al sobre a “utilidade”, “lisura” e “humanitarismo” do órgão indigenista; ele conta que, no ano de 1921, partiu da cidade de Águas Belas, no sertão pernam bucano, em direção à capital Federal para procurar auxílio como “porta-vóz das queixas e dos gemidos de quinhentos infelizes patrícios —os índios Carijós - victimas indefesas de todas as vilanias da prepotência sertaneja f.,.]” (Dâmaso 1931)5. Chegando ao Rio de Janeiro, procurou imediatamente o escritório do SPI e lá foi recebido pela diretoria e pelos funcionários “como velho amigo, ou antes como um irmão entre irmãos, separados m uito embora, pela diversidade de credos, mas vinculados pelo mesmo pensamento, pelo mesmo ideal - a salvação do índio” (idem). Com o resultado desse contato e com o prova da falsidade da oposição entre “catequese religiosa” e “catequese militar”, reria sido fundado em 19246, sobre as cerras do extinto aldeamento do Ipanema, o Posto Indígena Dantas Barreto que “hoje em dia [...] vae sendo um verdadeiro patronato agrico/a, dentro de seus minguados recursos” (idem, grifos meus).

1 O s Carijó de que fala o autor são hoje conhecidos como Fulní-ô, grupo de 2.790 pessoas, que ocupa uma área dc aproximadamence 11.500 ha, incluindo a cidade de Águas Belas. Em documentos mais antigos o grupo dessa região, da Serra do C om unati, próxima ao rio Panema (depois Ipanema), é designado como Carnijó e aparece ocupando o aldeamento de Ipanema, fundado sobre terras doadas pelo governo imperial em 1705, extinto legalmente em 18ÊI e efetivamente repartido em lotes no ano de 1877 (PETI 1993). 6 Aqui existe uma discordância entre as datas apresentadas pela docum entação do SPI utilizada no Arias das Terras Indígenas do Nordeste (PETI 1993) e as informações do texto do Pe. Alfredo Dâmaso. No Atias informa-se que o primeiro contato com o SPI teria sido feito em 1925 c o posto indígena instalado em 1928.

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Pe, D âm aso insiste na im portância do Serviço e de sua atuação na região com um a argum entação que oscila entre o hum anitarism o e o pragm atism o político e econôm ico. Em resposta à acusação de que o órgão teria feito o país gastar inutilm ente cinqüenta mil contos de réis nos últimos 21 anos, ele pondera que aquele orçamento representava apenas 132 téis de diária para cada índio assistido pelo órgão, enquanto na cadeia de Campos Sales, compara, cada preso custava 1$000 réis diários. Além disso, ele pergunta: “Quantas centenas de milhar de contos teria gasto o governo para dar caça, inutilmente, aos heróicos e invencidos legionários de Luiz Carlos Prestes?... E com a imigração estrangeira?” (Damaso 1931). Pe. Dâmaso lembra que apenas no período entre 1910 e 1914 teriam sido gastos .30.354 conros com o serviço de imigração estrangeira, sem que sc tivesse a certeza que o imigrante europeu se adaptaria e se fixaria no solo nacional, já que m uitos realizavam um a segunda migração para países vizinhos. Por outro lado, poder-se-ia gastar infinitam ente menos com o "silvícola que do país não sae, que não emigra e que é perfeitam ente utilizável como elemento de trabalho e de riqueza econômica [...]” (idem). N a argum entação do pároco, que esclarece as razões do próprio ór­ gão de investir naquela região, a proteção do indígena nordestino, além de representar um a prestação de contas em razão da violência colonial, responderia a um a racionalidade política ao tutelar um a população ru­ ral pobre, assediada pela ebulição revolucionária da época, e a um a racionalidade econôm ica que, diferente da que guiava as elites, perce­ bia nessa população m arginalizada os “braços” que as “classes pro d u to ­ ras” e o governo reclamavam. D âm aso repetia então o diagnóstico de um relatório oficial de mais de meio século que, no m om ento da extinção dos aldeam entos em 18787, insistia na mesma racionalidade econôm i­ ca, ainda que com objetivos distintos. Esse relato não m enciona que naquele m omenro os seus “carnijó” esta­ vam concorrendo com os Potiguara de Baía da Traição (PB) pelo privilégio de serem o único (na realidade, o primeiro) gtupo indígena nordestino a obter proteção do órgão indigenista oficial. Esse fato, porém, é igualmente esclarecedor. Em 1922 o SPI havia enviado um funcionário àquelas duas 7 Relatório de José Luiz da Silva (engenheiro responsável pela Comissão de medição das terras da província de Pernambuco) apresentado ao Exmo. Sr. Conselheiro Sinim hú (Min. e Secr. dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas) sobre o aldeamento do Brejo dos Padres. Junho de 1878. Arquivo Público de Pernambuco, coleção RTP (Repartição de Terras Públicas) vol. 17: 391.

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comunidades a fim de escolher o local mais adequado para a instalação de um posto indígena (Peres 1992), Em Águas Belas (PE) o representante do SPI seria recebido pelo Pe. Dâm aso, mas em João Pessoa (PB) seria o superintendente da fábrica de tecidos Rio T into, instalada desde o início do século dentro dos limites do extinto aldeamento de M onte-M or, de onde a fábrica retirava madeira, que o receberia, de maneira tão hospita­ leira quanto o padre. C om o rcsulrado caricatural dessas mediações discrepantes, o relatório do funcionário (1922) afirm ou que os “pretensos índi­ os” Potiguara não apresentavam qualquer “dos sinais externos geralmente admitidos pela ciência etnográfica”, fossem eles fisionomia, índole, costu­ mes ou idioma, Eram “mestiços” (em “promiscuidade com os civilizados”) e “indolentes” (vendiam seus coqueiros para os vizinhos “empreendedo­ res”) que mereceriam por parte do Estado não a proreçao “que deve am pa­ rar o autóctone legítimo ou seus descendentes diretos”, mas a assistência dispensada aos “trabalhadores nacionais” (citado por Peres 1992). N o outro cxrremo, os Fulni-ô, afirmava o relatório, “apesar de algu­ m a miscigenação racial” e despossuídos dc suas antigas terras “por po­ líticos locais”, “conservavam a língua e os costumes de seus antepassa­ dos”, assim com o sua “coesão social”. Além disso, ainda que as terras reivindicadas por am bos os grupos apresentassem posseiros, no caso dos Potiguara, as indenizações teriam que ser m uito altas, enquanto no caso dos Fulni-ô os ocupantes já h a v ^ m m anifestado a disposição de “pagar foros a um recehedor legal e idôneo” (Peres 1992). Os Fulni-ô reuniam portanto as condições básicas para o empreendi­ mento indigenista, que traduziam um outro par de razões que justifica­ vam a entrada do órgão no Nordeste: um a racionalidade “etnológica” ou folclórica (os tais “sinais externos”)3 e econôm ica, mas agora em um sentido mais estrito, no qual o cálculo não dizia respeito à econom ia 8 Em 1949, Max Boudin relacionava as diferenças qne os separavam dos sertanejos locais, com quem partilhavam a maior parte das características culturais e econômicas: a) falarem sempre, salvo raras exceções, o ia-têem suas relações privadas; b) partilharem de caracte­ rísticas antropofísicas como o cabelo grosso, preto e liso, parca pilosidade corporal, olhos oblíquos, maçãs bastante acentuadas, estatura pequena, “cútis bronzeada ou côr grão de trigo”; c c) praticarem um a religião secreta, “diferença que acusa a singularidade da tribo, como pertencendo a um m undo cultural completamente estranho ao nosso" (Boudin 1949). Notemos que ainda hoje os Fulni-ô são considerados os que guardam os sinais diacríricos mais evidentes com relação aos regionais, como registra o privilégio que recebem no atlas on-line fndios da América do Sul: áreas etnográficas ", do professor Júlio César Mdatti.

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nacional ou regional, mas à promessa de viabilidade econôm ica do pró­ prio órgão indigenista. O que o funcionário do órgão não sabia, mas talvez Pe. A lfredo D âmaso tivesse conhecim ento, era que os Fulni-ô reuniam tam bém outras qualidades, que os fariam ponto dc partida das emergências seguintes e que condicionariam , e m esm o orientariam , as ações posteriores do próprio órgão. O "Dr. Carlos" e o círculo Fulni-ô e Pankararu

D epois que o SPI reconheceu os Fulni-ô como últim o grupo a resistir ao assédio civilizatório na região, a atenção dos etnólogos voltou-se para eles, Carlos Estevão de Oliveira, diretor do M useu G oeldi, publica tam bém em 1931 um artigo sobre o grupo, centrando a atenção nas suas possíveis afiliações lingüísticas e na sua organização social, apre­ sentada com o verdadeira raridade etnológica. Filhos do sol e da lua, os Fulni-ô são divididos em duas bandas exogâmicas, estas abrangendo cinco clãs totêmicos. Que eu saiba, de todos os povos indí­ genas do Brasil, estudados conscícnciosamenre, não existe um, talvez, no qual o totemisino seja melhor caracterizado. As crenças dos Fulni-ô pertencem ao mesmo círculo que as das populações de Brejo dos Padres, de Palmeiro, e muito provavelmente também de Palmeira dos índios. Isto, de tôda evidên­ cia, não significa que todas sejam inteiramente idênticas. (Oliveira 1931, gtifos meus) C om o se vê, os Fulni-ô servem a Estevão de Oliveira com o base a partir da qual mais tarde, por um largo m im etism o, ele teceria a legiti­ m idade etnológica de outros grupos de “remanescentes” que, apesar de não partilharem mais daqueles “sinais externos”, participariam de um a espécie de área cultural. A omissão das datas precisas das suas visitas a cada um a dessas com unidades não perm ite reconstituir como Estevão de Oliveira produziu sua interpretação accrca desse círculo, mas é justa­ m ente essa omissão que perm ite o efeito circular de sua argum entação. Se em 1931 ele citava o Brejo dos Padres para respaldar sua interpreta­ ção dos F ulni-ô, em 1937, em sua palestra no In stitu to H istórico e Geográfico de Pernam buco (Oliveira 1942b), ele citava os Fulni-ô para respaldar sua interpretação dos Pankararu, do Brejo dos Padres, que só teria visitado em 1935.9 9 N o texto (1931) diz que, apesar de sempre ter se interessado pelo grupo, só os teria visitado recentemente e em com panhia do Deputado M ário Mello e do inspetor do SPI,

A VIAGEM DA VOLTA

N,h]iicla palestra, Carlos Estevão contava que, levado um dia a visiiii ,1 diclioeira de Itaparica e as obras da Cia. Industrial e Agrícola do Haixtt S;u> Francisco, tinha feito um a descoberta “toda filha do acaso”. N t 'p ro c u ra de um a elevação que m e proporcionasse a possibilidade dc u.m sportar para o Tilm’ de m inha ‘Roleflexe’ [a] imagem do lindo
a

Ar v o r e

pa n ka raru

de tom arem conhecim ento da existência de um órgão oficial que ofere­ cia proteção aos “remanescentes indígenas” contra os proprietários lo­ cais, passam a intensificar suas viagens para Águas Belas. É portanto p o r m eio dessa triangulação que passa pelo Pe. D âm aso, em Águas Belas (BA), que Carlos Estevão faz sua prim eira viagem ao Brejo dos Padres em 1935. N o mesmo ano daquela palestra (1937), o M inistério da G uerra, a que o SPI estava subordinado, envia ao local um funcioná­ rio para um a prim eira avaliação. O s trabalhos não teriam continuidade até três anos mais tarde, após a transferência do SPI para o M A IC 1’, quando o órgão instalou um Posto Indígena no Brejo dos Padres. Assim que soube da decisão, lem bram os Pankararú, “o prof. Carlos” voltou à aldeia para dar pessoalmente a notícia, fazendo festa, abraçando a todos em grande alegria e com unicando que seus problemas estavam resolvidos. Através da m esm a mediação e na m esma época, Carlos Estevão en­ tra em contato com os X ukuru-K ariri dc Palmeira dos índios (AL) e, ju n to com o deputado M edeiros N eto , dá início ao seu processo de reconhecim ento pelo SPI. O grupo, no entanto, teria de esperar até o ano de 1952 para que o Serviço adquirisse um a fazenda, itisralasse um posto indígena e depois passasse a reunir e a receber ali famílias indíge­ nas oriundas de diferentes localidades próxim as12. O s Kambiwá, locali­ zados na Serra N egra (PE), local de quilom bos e de refúgio de um grande núm ero de grupos fugidos das “guerras justas” e dos aldeam entos, tam bém iniciam seu processo de reconhecim ento oficial ao final da década de 193(3. Provavelm ente p o r interm édio dos P ankararú, com quem m an tin h am contatos regulares, os Kambiwá conseguem auxílio do Pe. D âm aso e, p o r seu interm édio, um a autorização do governo federal para voltarem a ocupar a Serra N egra (Barbosa 1991). Efetiva­

11 Essa m udança atinge diretam ente a estrutura e o padrão de ação do SPI, que passa a enfatizar sua função de agência colonizadora e fáz com que a própria imagem do que devia ser o “índio” sofra unia mutaçãc), que o leva de “guarda de fronteira” para “agricultor”, na tentativa de torná-lo sem anticamente adequado ao contexto retórico da “m archa para o oeste”, rescituindo, de ccrta forma, sua parte “LTN ”, Para uma leitura mais atenta das condicionantes históricas e contextuais da ação do SPÍ no Nordeste, sugiro um texro anterior de mais fácil acesso (Arruti 1995). 12 Conscituídoscom o unidade territorial e sujeito político entre os anos 1930 e 1950, é só no impulso da conjuntura do final dos anos 1970, que os Xukuru-Kariri inrcnsificatn sua mobilização e conseguem ampliar suas terras (PETI 1993).

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mente, diversas famílias se organizam para voltar a ocupar a Serra, mas 0 seu principal líder é capturado, to rtu rad o e m orto por fazendeiros locais. Acuadas, as famílias se retiram para um a região próxim a, onde perm anecem até 1954, quando conseguem estabelecer novos contatos 1otn o m inistro da A gricultura, que finalm ente dem arca suas terras. Um pouco depois desses prim eiros contatos, em 1944, mas tam bém por in term édio do Pe. A lfredo D âm aso, o SPI estabelece um posto irulígena em P orto Real do Colégio (Al), ju n to aos “rem anescenres ( lariri”, que reivindicavam as terras de um aldeam ento jesuftico às margens do rio São Francisco, extinto em 1759. Ao tom arem conheci­ m ento, os Xocó, tam bém localizados às margens daquele rio, algumas léguas acima, no m unicípio de Porto da Folha (SE), intensificam sua migração para ju n to dos "C ariri”. Segundo a m em ória tribal de ambos os grupos, o direito às suas terras teria sido dado d iretam en te pelo Im perador que, em um a viagem à cachoeira de Paulo Afonso, se sensibilizata ao to m ar conhecim ento do sofrim ento a que estavam sendo subm etidos (D antas e Dallari 1980, D antas e outros 1992, PE T I 1993). C om o os Xocó já estavam m igrando para ju n to dos “C ariri” em função do acirram en to do processo de ex p ro p riaçao das terras do an tigo aldeam ento da Ilha de São Pedro, a sua reunião em um m esm o territó­ rio no m om ento da criação do Posto Indígena os faz assum ir a identida­ de com pósita de Kariri-Xocó. Dessa forma, respondendo a um a situação pensada como excepcio­ nal, a presença do órgão indigenista perm ite que antigas queixas e confli­ tos fundiários de com unidades descendentes de aldeam entos indígenas extintos desde os anos 1870 convertam-se sucessivamente, por meio de um circuito tradicional de relacionam entos intergrupais, em um a série de emergências étnicas entre 1935 e 1944. A princípio os Fulni-ô e seu “porta-voz” Pe. Dâmaso, auxiliados por Carlos Estevão, servern de m edi­ adores entre os outros “remanescentes” e o SPI, porém a seguir os pró­ prios grupos recém-reconhecidos passam a atuar como mediadores entre o órgão e outros grupos em um segundo “círculo” de emergências. O segundo "círculo": autonomização da mediação indígena

O s Xocó da Ilha de São Pedro são o prim eiro exem plo de com o a p re se n ç a do ó rg lo na região p e rm ite q u e essa re d e de relações intergrupais se autonom izasse com relação aos m ediadores políticos e acadêmicos na produção de novas emergências. M esm o com parte de sua população m igrando para juntar-se aos Cariri, os Xocó que resta­

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ram em Porto da Folha (SE) n lo deixaram de reivindicar, por meio de diversas viagens à capital do Estado e à p ró p ria capital Federal, seu direito às terras da antiga Missão Indígena da Ilha de São Pedro. D e sua parte, seus parentes Kariri-Xocó nunca deixaram de apoiá-los nes­ sas reivindicações, fazendo com que, depois de 1944, os estreiros laços entre as duas populações passasse a servir de via de acesso direto ao órgão indigenista. A m pliando essa rede de mediações, existem indícios de que foram os Pankararú os mediadores na emergência Tuxá. O grupo, que já rea­ lizava viagens em busca de seus direitos territoriais, teria entregue, por meio deles, um abaixo-assinado ao funcionário do seu Posto Indígena pedindo para que o SPI interviesse na luta que há anos vinham travan­ do pela restituição de suas terras. N a resposta, o chefe dc posto com u­ nica que C ândido R ondon já havia sido inform ado de sua situação e que, em função disso, tetia entrado em contato pessoal com o interventor A gam enon Magalhães no sentido de pedir a liberação das ilhas do São Francisco e conseguira um a resposta positiva.13 C om o resultado dessas m ediações, que ligam sucessivam ente os “rodelas”, p o r m eio de suas lideranças, os Pankararú, p o r meio de seu chefe de posto, o SPI, por meio de R ondon e o poder público estadual, por meio do interventor, os prim eiros obtiveram não só o seu reconhecim ento como indígenas Tuxá, com o tam bém a criação de um PI e a reconquista de um a de suas antigas ilhas no São Francisco. Mais tarde, os próprios Tuxá seriam a ponte entre outros grupos e o órgão indigenista. Esse é o caso dos Trucá, localizados na Ilha da Assun­ ção, m unicípio de Pesqueira (BA), sessenta quilôm etros acima dos Tuxá na m argem oposta do São Francisco. As terras do antigo aldeam ento da Ilha de Assunção reivindicadas peio grupo teriam sido expropriadas ao longo do séc. XIX, apesar de o grupo co n tinuar ocupando parte das terras da ilha. N a década de 1920, no entanto, o bispo de Pesqueira to m o u posse do que restava dessas tetras sob a alegação de que’ elas teriam sido doadas pelo próprio grupo para N ossa Senhora, devendo por isso estar sob a adm inistração da Igreja. Ele reeditava assim um a das mecânicas da expropriação dos aldeam entos indígenas descritas no

13 Segundo o que sc lé em carra do funcionário do SPI, chefe do Posto Indígena (PI) Pankararú, datada de 17 de outubro de 1942 e endereçada ao cap. João Gom es Apaco, líder indígena dos “índios rodelas", dando conhecim ento sobre as providências solicita­ das por esse iíder (M useu do índio. Seção de microfdmes, rolo 173, fotograma 14).

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iil.ilório da D ireto ria de ín d io s de 185 7 14, com a diferença que, na •Mi.idíi dc 1940, essa com unidade é alertada pelos Tuxá da possibilida­ de dc, sendo reconhecidos como “remanescentes indígenas”, terem de vnliu as terras do antigo aldeam ento (Batista 1992). A emergência A tikum , grupo localizado na Serra do U m ã, m unicí­ pio dc Floresta (PE), tam bém tem lugar na década de 1940 em conse­ qüência de seu contato com os Tuxá. Segundo relatos do grupo, foi em uma tias f ras da an tig a R odelas (hoje in u n d ad a pela barragem dc li.iparica) que um m orador da Serra do Uma, reclamando dos proble­ mas da sua região, aliás com uns a m uitas daquelas localidades, como a invasão de roças pelo gado de fazendeiros vÍ2 Ínhos e a cobrança de ' .iItos im postos” pela prefeitura, ficou sabendo através de um Tuxá que poderiam alcançar, como “remanescentes de índios”, o apoio do SPI e ,i dem arcação de um a reserva, “Prim o, aqui não é conhecido que é índio? Então procure os direitos que o governo rá d ando...” (citado por
H Foi no contexto da Comissão de Demarcação das Terras Públicas da Capitania de Pernambuco que se realizou o único levantamento sistemático sobre a situação das aldeias indígenas existentes cm Pernambuco no século XIX, por meio do qual podemos reduzir a um certo número de tipos os mecanismos de expropriação daqueles aldeamentos: i) as terras arrendadas no interior dos aldeamentos cujos Foros deixam de ser pagos ao mesmo tem po em que suas extensões se expandem; ii) a reivindicação, por párocos, das terras doadas à Santa como pertencentes à Igreja e por isso devendo estar sob sua administração; iii) as transferências para oucros locais com suas áreas reduzidas; iv) o simples massacre e expulsão. Cf. "Demonstração dos núm eros das Aldeias existentes nesta província dc Pernambuco, seu pessoal, sua população e extensão que cada um a tem'' (13 de dezembro de 1857. Arquivo Público dc Pernambuco, coleção D iretoria de índios, livro D -l 1).

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Esse é o primeiro desenho da rede de relações que, do ponto de vista dos grupos envolvidos, possibilitou sua passagem do estado genérico e pejorativo de caboclos para o estado tam bém genérico mas juridicam ente diferenciado de índios, na luta pela reconquista da terra de m orada e de trabalho. Porém um elemento fundam ental desse quadro ainda deve ser devidam ente explorado: o fluxo de indivíduos e informações entre as com unidades citadas, a partir do qual m onta-se a rede de emergências. Sugiro que ele tem raízes e repercussões que vão m uito além do ato técnico de transmissão de um a mensagem, desenhando um “faro social” central na vida desses grupos e em sua organização política: as viagens.

A in stitu ição das viagens Fluxos tradicionais

A tram a dessas emergências sugere, e os depoim entos confirm am , que parte do percurso coberto pelo órgão indigenista no seu reconhecim en­ to de grupos indígenas pelo N ordeste respeitou os cam inhos predefinidos por um a rede de trocas intergrupais. [P: Na época do seu avô já viajavam de uma tribo pra autra?\ Já. Ajudando um ao outro. Pegavam aqueles barcos, tinham aqueles brancos que tinham os barcos c tinham vezes que tinham contato com aqueles índios e eles vinham pra essa Petrolândia velha. Atravessavam pra Rodeias, pros Tuxá e iam fazê aquelas festas. Quando não, pegavam o barco aqui em Petrolândia e subiam e levavam pra fazê aquelas festas. Aí foi quando o negócio da CHESF acabou... [referindo-se às barragens do rio São Francisco] (Antônio Moreno, “capitão” Pankararu). Existia um circuito de trocas entre com unidades hoje reconhecidas com o indígenas que poderíam os descrever segundo dois m odelos, as viagens rituais e de fuga, que parecem ser desdobram entos de um pa­ drão de m obilidade ainda anterior. As viagens rituais consistiam no trân­ sito tem porário de pessoas e famílias entre as com unidades, m arcado por eventos religiosos que podiam corresponder ou não a um calendá­ rio anual. As viagens de fuga eram migrações de grupos familiares em função das perseguições, dos faccionalism os, das secas ou da escassez de terras de trabalho; migrações por tem po indeterm inado, mas m uitas vezes reversíveis, pequenas diásporas, se atribuirm os ao term o tam bém um sentido econôm ico, além do político e religioso. Para os Pankararu,

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i * id.ule de Rodelas, e “os rodelas”, atuais Tuxá, eram um a referência I" im .m cntc de suas viagens antes da construção das usinas hidroelétricas que bloquearam o canal desse fluxo de pessoas. Os Pankararú m anti­ nham contatos tam bém com outros grupos, de outros pontos do São I i.mcisco, com o os Fulni-ô e, m enos freqüentem ente, os K am biwá, i ii.idos sobre convites recíprocos para a realização de Toré. Sua relação Mim os Pankararé e com os Jeripancó era ainda mais estreita, no caso dos primeiros, em função da m em ória de um a origem com um , no caso dos segundos, porque estes seriam um a parte desgarrada do Brejo dos Padres, fruto dessas v gens de fiiga, precisam ente no m om ento de maii it expropriaçao das terras do antigo aldeam ento de Brejo dos Padres. Isso aconteceu durante uma revolta muito violenta, que ocorreu em Pankararú na época de um Cavalcanti. Os índios corriam à procura de um lugar onde pudessem viver mais tranqüilos. O índio José Carapina, que veio de Pankararú, ao chegar no Sugar, onde é hoje a aldeia Jeripancó, pediu o apoio a um proprietáriof...]. Depois que o Zc Carapina já estava aqui, ainda na época da rev ta em Pernambuco, muitas pessoas vieram procurar os parentes aqui no Ouricuri, e Zé Carapina deu apoio pra eles. Vieram primeiro o Manuel Carapina, primo do meu avô, chefe de família, trazia até filho. Depois chegou João Porsena, de Palmeira dos índios e a esposa dclc era de Pankararú, era da família Jacinto [..,] (Gcncsio Miranda da Silva, cacique Jeripancó, depoimento transcrito em Brito 1993). Dessa form a, as viagens ligam grupos, de origens diferentes ou não, por laçus de afinidade e parentesco na produção de um a comunidade ritual mais abrangente e em expansão, levando à constituição de circui­ tos abertos de rrocas de hom ens, inform ação e cultura. E m m uitos casos, a presença das viagens e m esm o dessa com unidade rim ai são fundam entais na formação dos próprios indivíduos, cuja m em ória pes­ soal é indissociável desses vínculos coletivos. A seguir, apresento um depoim ento mais extenso, que considero exemplar da impressão desses vínculos sobre a trajetória de um indivíduo, no caso envolvendo os Pankararú, os Jeripancó e os Xucuru: [...] Meu pai e minha mãe saíram daqui [Brejo dos Padres] fugindo da seca c da revotra[...], sei lá, não tinha o que comerem [...]. Mas é a mestna coisa, corre pra cima [...]. Eu nasci no Pariconha, entre o Pariconha e o Brejo dos Padres, quer dizer, eu sou mais petnamhucano que alagoano. Foi aí perto de Moxotó que eles atravessaram. Depois de oito dias fomos pra lá, chegan­ do lá fui batizado, e já tinha lá índio daqui, que os índios ia trabalha e ficava

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por ali, constituía família. Dessa família Cangula, do João Tomás, tinha muitos deles lá. É onde deu origem à tribo dos Jeripancó, que todos aqueles índios foi pra lá. A FUNAI comprou mais terra e nós descemos de Palmeira abaixo e fomos ajudá a erguer a aldeia dos Xucurus. Isso foi na época de 1932 pra 33. Aí eu fiquei lá menino, a minha meninice quase toda foi lá. Nós voltamos pra cá na época do Dr. Carlos. Viemos só passear. Nós acom­ panhamos a demarcação dc lá. [.,.] Eu fiquei na aldeia Xucuru, mas ainda não era aldeia. Tinha aquela aldeia porque nós morava num ranchínho de palha c tinha mais dois índios daqui [...]. Eu fiquei lá e me criei, no ritual deles. Nós dançava, nós fumava, tudo isso, todo mundo tinha que levá uma lembrança lá toda semana. Um comprava fumo, outro comprava rapadura, tudo assim, A meninada toda saía pra feira pra ganhá frete da­ quelas mulheres que fazia feira. Ia com o halaio na caheça e ganhava 200 reis, 300 réis para levá pra lá e caná a noite toda, pra pedir pros Encantados que vierem a terra. De modos que eu fiquei rapaz, cu tinha que vim pra cá [Brejo dos Padres] porque o menino tem que ir pro Poro f.,.]. Tinha que ir lá pra ver o esconderijo onde os índios fumava fazê uma festa, que nem aqui diz ‘um menino do rancho’, tinha que ir pro rancho. Eu já tava com 14 anos, aí vim pra cá e a terra já tava demarcada, mas sem lugar pra ficá. Aí vierno embora, eu tnais meus pais. Diziam, Venham embora que aqui vocês têm cerra, num fiquem nas terras dos outros’. Aessaakura cies [seus paisl já trabalhavam na Cafita, nos Xucurus e nós cantávamos lá as noites, dia de sábado pra domingo e na semana todo mundo ia trabalhá [...]. Nesse tempo Palmeira dos fndios era uma ddadezinha pequena, nós atravessava, ia praquele lado de lá de Porurica, no meio do mundo (João dc Páscoa, expajé Pankararu). Esses circuitos parecem desem penhar o mesmo papel que Anderson atribuiu às peregrinações, que estão na base das antigas i“com unidades religiosas imaginadas”, sob a experiência das quais “emerge um a cons­ ciência de conexão” (Anderson 1989). Tais circuitos entre os índios do N o rd este form aram um a comunidade de problem as (o gado sobre as roças surge em todos os relatos e a expropriação das terras de antigos aldeamentos em quase todos) e m em órias com uns. H á, no entanto, um lim ite m uito claro para o alcance dessas m em órias com uns, que dificul­ ta a com preensão de toda a profu n d id ad e e extensão histórica dessa “com unidade”. E preciso recuar um pouco mais nesses relatos, assumilos de um ponto de vista m enos Individual, a fim de investigar o carárer coletivo, étnico, dos laços que perm itiam a articulação e funcionam ento

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dessa “com unidade” que as viagens constituem , para além de sua dis­ persão c fragm entação. A estratégia da "m istura" e os territórios poliétnicos

O índio parece aqueles [...] o senhor não vê esses bichinhos que nascem no pé de pedra? Porque ninguém sabe das primeira origem, agora é que já tá se sabendo de onde veio o índio. Veio índio de Pankararé, veio índio deTuxáRodelas, veio índio de Atikum, veio de cada lado e foram casando. Quer dizer que, de cada aldeia tem um índio. Só não rem aqui dos Fulni-ô. Aí chegou os padres e formaram a santa missão. Foi o padre Santa Clara, o padre Baltazar, os Jesuítas, ficaram lá. Quando era domingo, celebravam missa ali pros índios. Por isso é ficaram uma parte católica, mas a nossa parte não pode esquecer (Antônio Moreno, “capitão” Pankararu). Tais circuitos rituais e de fugas encontram correspondência em via­ gens historicam ente anteriores, que m arcaram a situação histórica dos aldeam entos indígenas ao longo do São Francisco. Os grupos da região sem pre m antiveram forte resistência ao assentam ento em um único local, tendo o em preendim ento colonizador levado m uito tem po para reduzir sua m obilidade por entre aldeias e grupos vizinhos. O fato de terem sido reunidos em aldeam entos com uns, adaptados à cultura agrí­ cola e introduzidos num a estrutura de poder fixa não significou o imediaro rom pim ento com essa form a de viagens, o que fica evidente nas notícias que temos dos aldeam entos m issionários. À diferença dos aldeamentos construídos pelos próprios sesmeíros da região, como forma de ocupar largos trechos de terras e livrar seu gado do assédio de grupos indígenas “brabos”, as Missões tendiam a ser orga­ nizadas de um a forma mais regulada. Nesse em preendim ento econôm i­ co, mas tam bém espiritual e sobretudo político, os responsáveis pelas Missões tinham como um a de suas tarefas a produção regular de infor­ mações, que alim entariam os registros oficiais, um tipo de controle esta­ tal que, por mais falho que fosse, exigia a im obilidade dos grupos indíge­ nas. Assim, em 1698, quando aum entam os registros das constantes “fugas de índios” das missões sob a jurisdição da diocese de O linda, “sem razão algum a p ara fazê-lo”, em direção às que perten ciam ao arcebispado da Bahia, na margem oposta do São Francisco, o próprio bispo é mobilizado, O bispado dc O linda com preendia todo o sertão de Rodelas e territórios da m argem esquerda do São Francisco e o bispo percorre parte desse território para avaliar os problem as causados pela

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“quebra dc produtividade, desordens nos trabalhos religiosos etc.”. O problem a, que já havia saído do controle dos missionários, c com unica­ do ao Rei, que por sua vez escreve para os governadores de Pernam buco e Bahia proibindo que tais índios sejam recebidos em aldeias que não as suas ou em casas de moradores (Barbalho 1985: vol. 6). O G o v e rn a d o r de ín d io s recém -em p o ssad o em 1722 A n tô n io D om ingues Cam arão, em sua prim eira correspondência endereçada ao Rei, faz as mesm as queixas sobre os “índios soldados” daquele terço que, por serem “inobedientes, crim inosos e m al procedidos”, estariam “derram ados” por todo o Pernam buco e Paraíba, sendo “m ui dificultoso o sossega-los”. Por isso pedia: [...] que publiquem Bandos por todas as freguesias de sua jurisdição para que os capitães-mores delas tenham vigilância em não consentirem índios do meu terço, ou das aldeias a que a mim estão subordinadas em suas freguesias par mais de oito dias, sem ordem de seus cabos por escrito e passados estes os mandem prender e os remetam para a cadeia da praça para me serem entregues, e pode-los castigar para exemplos dos aldeados que são os prontos para o serviço de V. Mj. E a mesina diligência se possa fazer com os terços dos paulistas, que sempre se estão inrromecendo e chamando-os a si para lhas assentarem praça, e assim há pouca obediência porque queren­ do-os castigar por algum malefício se acolhem ao dito terço paulista; e c só nessa forma se poderão conservar com sossego para estarem hábeis para tudo que se oferecer ao real serviço de V. Mj.” (Barbalho 1985, vol. 8: 1067). C om o se vê, as fugas desses índios traduziam não só sua luta por antonom ia, com a m anutenção das antigas relações de afinidade e trocas entre aldeias, com o se inseriam, em um outro nível, ora na disputa entre Estado e proprietários privados de grandes porções de terra pelo contro­ le da m ão-de-obra, ora entre as próprias administrações estatais das di­ ferentes capitanias de P ernam buco, BahA e Paraíba, por porções de territórios já ocupados, mas cuja população cra incontrolavelm ente flu­ tuante. Sua im portância era revelada pelas queixas quanto à quebra da produtividade dos aldeam entos, base da própria sustentabilidade do em­ preendim ento missionário (Lima Sobrinho 1929). Assim, em 1729, de­ pois de m uitas queixas e de vários requerim entos ao Vicc-rei, foi preci­ so que o Rei interviesse nas disputas entre os governadores de Pernambuco e Bahia para o estabelecim ento de nm modus vivendi. Reforçavam-se as ordens para que nas duas capitanias se proibisse aos moradores a adm is­ são em suas casas de índios fugidos das missões, e se providenciasse a

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ii |.ii iii i i nviu .‘is aldeias de origem. Q uase cinqüenta anos depois a mi. tu i uiitiiuiava conflituosa nas m argens do São Francisco, onde nu i ni 1772 as duas capitanias se enfrentariam em função da nli|i ,i Missão dc Rodelas. (BarbalKo 1985, vol. 8: 1416), u m o. |mi esse caráter dc resistência à dom inação, tais fugas apreseni.M m us gi.uule am bigüidade, como aponta John M onteiro (1994). iIIh1 1 i|iii‘ tcl.iiiva a uni o u tro contexto, a análise desse au tor cham a <11111,111 i,unhem para o fato de as fugas m uitas vezes servirem como n . iii o ii i ncgoi iaçíio com os adm inistradores das missões e aldeamentos, ji qifi ni.iviS delas os índios podiam se engajar em outras adm inistrat,iu i i|iu se mnsiiasscm mais brandas ou “legítimas”, segundo um paili ti 11 a ilu li ■ido na própria relação entre dom inador e dom inado. Arra■i d. ilgim* di poim enios docum entados em inventários ou processos jiidn cto, M onieiio u lciuilua entre as motivações dessas fugas a recusa tin . i i i i i .ms |u iileuiis do antigo senhor, a littsca dc parceiras para i i um nins em oniias itlilet.ci, a tei usa em ai eitai um novo dono imposni pnt u nd t i io iii11 som nin m di exemplos em que o fugido, cm lugar d> n< o o itilm u o um no a vida nos atdeainenios, procurava m elhorar o i i.I i i o o i l i « Ni s s i su itid o . i.us fugas serviram para reduzir as *o nu u n i, i o i ii,iii si uhoi/cK i.ivo e para realizar urna redistriI .tit tu «I. io iô di nina, j,l ipn i Ias at aliaram sendo capitalizadas por ,l| uh i iiluiim in oi Inih s, que ionsc|',niram reverter cm seu benefício u o it ímiiia |ii 111 in ial di icsiuiunia ao sistema dc trabalho forçado. I Io i i o ilo s ili li mu mos ,i>, margens do São Francisco, a ambigüidade ,/i/t in p s m n icssa lio que cia revela não apenas do sistem a de ildi mu mos c dc sua possível crise, mas tam bém de um determ inado p.idi.in de mobilidade daquelas populações étnicas. Se esse padrão pode si i Imsi ado em turmas culturais nômades anteriores aos aldeamentos, ele i eiiainenie lambem corresponde a um dos efeiros específicos da dinâmii a di leitiiorialização dos próprios aldeamentos, quando estes, a fim de m asim i/ar sua administração, juntavam e repartiam grupos de diferentes origens, criando, com isso, laços entre aquilo que os missionários e ouiins adm inistradores concebiam como unidades adm inistrativas estan­ que.. ( laracterística que seria ampliada pela estratégia da “m istura”15 ope-

primeiro lugar, a estratégia da guerra concentrou energias em abrir terras e criar iiiiin-rlc-obra compulsória, na forma do escravo indígena, mas com altos custos militares

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i' lima grande dispersão da população que conseguia resistir. Depois a estratégia da i unversão tam bém veio a exercer a função de liberar terras por m eio da reunião da

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rada pela “política das reuniões”. Essa política surgiu depois da elimina­ ção do poder temporal dos missionários sobre os aldeamentos, da trans­ formação dos aldeamentos em vilas, dos missionários em párocos (1758), do incentivo oficial aos casam entos mistos entre portugueses e índios (1775) (H o o rn a ert 1992) e sob o argum ento de que em vários dos aldeam entos restava apenas um pequeno núm ero de sobreviventes. A “política das reuniões” consistia cm extínguir os aldeamentos considera­ dos subpovoados, para que sua população fosse reagrupada em outros mais numerosos, acelerando tanto o processo de “m istura” e, portanto, de descatacterização étnica daquela população, quanto à liberação de novas terras. O resultado foi a ampliação do caráter pluriétnico dessas organiza­ ções territoriais. Esse caráter pluriétnico dos aldeam entos e missões cham a atenção, portanto, para razões dessas “fugas” que não eram aparentes aos missi­ onários e adm inistradores. R eunindo um a grande variedade de grupos e, em m uitos casos, separando-os de suas m etades, alocadas ju n to a outros grupos, a política das “reuniões” em lugar de levar à “m istura” definitiva daquela população, hom ogeneizada e isolada em territórios adm inistrados, é reconvertida, pela m obilidade indígena, em um a rede de referências étnicas sobtepostas. Essa hipótese é reforçada pela ob­ servação de que, ao contrário dos casos relatados por M onteiro para São Paulo, nos aldeam entos do São Francisco tais fugas não eram indi­ viduais, tam pouco sc constituíam como ações em massa. Segundo os relatos, sua escala parece ter sido familiar. Assim, a relevância de tais “fugas” para nossa interpretação está na sugestão de como elas desenha­ ram circuitos de troca de hom ens e inform ação (fatual e cultural) entre territórios poliétnicos. Lideranças peregrinas Se nas páginas anteriores buscou-se apresentar utn esboço do circuito de trocas ancestrais que orienta o fluxo de populações e, mais recente­ m ente, o próprio circuito das emergências, nesse últim o tópico fare-

populaçâo indígena em geral, já fragmentada pelas investidas militares, em aldeamentos missionários organizados e produtivos, além de ncupat latgos ttechos até incultos, mas com a desvantagem de m anter tal população fora do alcance imediato dos grandes proprietárins e do governo. Finalm ente, a estratégia da m istura foi a Forma que veio com binar uma grande economia de recursos com o apaziguamento de diferentes interes­ ses, aparentem ente encerrando o processo de conquista.

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mos referência a um outro gênero de viagem. As viagens de lideranças dessas com unidades às capitais do estado e até mesmo ao Rio dc Janei­ ro cm busca dos direitos, resposta ao últim o m om ento das políticas de expropriação territorial, que levou tam bém à extensão oficial dos aldeam entos. Essas viagens passam a ser um a m arca da lu ta indígena do período com preendido entre o últim o quarto do século XIX e o prim ei­ ro do século XX, servindo tam bém com o m odelo a partir do qual conformar-se-ão as alterações nos arranjos de autoridade internos àqueles grupos depois do advento do SPI na região. O século XIX parece assistir a passagem dos pedidos de missionári­ os em favor dos índios para pedidos dos índios em seu próprio nom e, por meio de petições ao im perador o u das viagens que realizavam a fim de vê-lo pessoalmente. A viagem do Im perador à região em m eados do sécuLo teria produzido o efeito de dar realidade à figura m ítica que lhes era apresentada com o um grande pai (D antas e outros 1992). C om o lem bra Revel (1989), a itinerância do rei não é novidade, fazendo parte, desde a Alta Idade M édia, do repertório de recursos que o soberano tem para conhecer o reino e se fazer conhecido p a r ele. As viagens soberanas serviam para que o rei reafirmasse seus dom ínios periodica­ m ente, por meio dn consum o local de seus produtos. No caso de Pedro II, depois da recente Lei de Terras, tornava-se im portante sua presença p o t toda parte, arbitrando conflitos, regularizando situações de fato, pacificando o espaço nacional e se fazendo necessário aos seus súditos: “Q u a n d o se desloca, o rei delim ita o seu território. Faz o seu reino existir e tom a posse dele” (Revel 1989). N o entanto, fazendo-se presente, o podet soberano tam bém m ostrouse acessível, abrindo a possibilidade de ser buscado. C o m o m esm o objetivo de tom ar posse de seus territórios, índios passam a em preender viagens ao Rio de Janeiro, com um a freqüência grande o bastante para fazer necessário ao governo central enviar circulares às províncias deter­ m inando que fossem proibidas tais viagens (D antas e outros 1992). Ape­ sar desta tentativa, parecia ter sido instaurado um padrão, ou mesmo, poderíam os dizer, um a “tradição”. As com unidades indígenas passam a ver nas viagens aos centros de autoridade, capazes de conectá-las aos poderes extralocais, o único recurso para a conquista ou garantia de seus dom ínios territoriais. M as só excepcionalmente essas viagens ganhavam algum tipo dc regisrro docum ental, com o as dos X ukuru-K ariri no início do século XIX, dos Xocó c X ucuru nas últim as décadas desse mesmo século, e as novas viagens conjuntas de Xocó e K ariri-Xocó enrre as

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décadas dc 1910 e 1920 (D antas e D allarl 1980, Souza 1992, PETI 1993). N ão é no vazio, portanto, que surgem, desde o início do século, as viagens de representanres da com unidade de Brejo dos Padres às cida­ des vizinhas em busca de proteção contra o gado dos fazendeiros que invadiam suas roças. A década de 1930, aparenrem ente sob o impacto dos programas do D N O C S (D epartam ento N acional de O bras contra as Secas), am plia a presença de poderes extralocais na região, produzin­ do novos centros de autoridade. Mas é na cidade dc Bom Conselho que, apesar de não apresentar qualquer papel regional destacado, a presença do Pe. Alfredo D âm aso e o seu apoio às dem andas de grupos de remanes­ centes criaram um centro de autoridade que passa a substituir outros possíveis centros, ate então ineficientes. Meu pai viajava pro Rio de Janeiro pra resolve esses problemas e nunca resolveu, tinha partes que andava até de pd, pra parte de Minas. De Gover­ nador quase a Três Rios andava de pé, pegava carona num canro c ni outro [...], Mas nós não, porque graças a Deus agora a coisa melhorou mais, porque o governo sempre dá uma passagem, uma coisa e outra... [P: Quem viajava com elei\ O Bernadino Pereira, o Mariano Tiú, Lino Barros, que tinha o apelido de Lino Cabeludo [risos], o José de Barros que morava lá dentro do posto, cinco, seis pessoas [...]. A primeira comarca pra que eles viajaram foi pra Flores, a primeira cidade de Pernambuco é Flores, começa­ ram pra lá, pra falar corn o Interventor, um doutor que eles chamavam na época Interventor, mas se Fosse da parre da língua indígena era...[silêncio] Maribixaba. Seja doutor, Juiz de direito, governador, chamava Maribixaba Apaua (Antônio Moreno, “capitão” Pankararu). Ncssc circuito, a im portânci,' que passa a ter a cidade de Bom C o n ­ selho deriva do seu papel de ponto de convergência de dois circuitos rituais. O efeito de nodosidade (Raffestin 1986) assum ido por aquela cidade é criado pelo fato de o seu pároco “Pe. A lfredo” ter no seu roteiro de serviços espirituais a cidade vizinha de Águas Belas, onde localizam-se os Fulni-ô, mais um dos pontos do circuito de trocas rituais dos Pankararu, X ukutu, X ukuru-K ariri, Tuxá, Kam biwá e outros. A circula­ ção e a com unicação, in tim am ente associadas em contextos de pouca especialização das redes de com unicação (idem), encontravam naquele ponto geográfico um eixo para a articulação do circuirn dos possíveis centros de autoridade. N ão sc tratava de um lugar privilegiado a priori, mas que foi construído de m aneira contingente com o nodosidade, no

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i [11.i I era possível p ô r em co n tato e, p o r isso, dar um a dim ensão de rv/jrriência coletiva às narrativas particulares e às trocas de informação sobre formas de buscar seus direitos. É p o r m eio desse nó que aquele i m uito de trocas rituais tornar-se-á o circuito das emergências. As dem andas dos caboclos do Brejo dirigidas ao Pe. D âm aso inicial­ mente não falavam na criação de qualquer área de exclusividade que disiinguisse índios e não-índios. A m em ória de um a ancestralidade in­ dígena servia com o fiadora dos direiros que sabiam ter sobre as terras, mas não implicava desde o início a pretensão de um a delimitação for­ mal, subordinada a um a unidade identítácia e política. A referência não era um território, mas posses de uso familiar. N ão existia um perím e­ tro circundando um terrirório abstrato de uso coletivo (ainda que se conhecessem os marcos do antigo aldeam ento), porém a terra sobre a qual se investia um trabalho social, de base fam iliar e sobre a qual havia um dom ínio nao legal, todavia hereditário. Era desse dom ínio que sabi­ am estar sendo expropriados: [...] e aquilo ali, pra sobrevive uma família de dez filhos ali com aquele pé dc abóboraf...]. Aí o meu pai foi vendo que aquilo náo dava certo e foi pedin­ do de um lado e outro, pro governo, uns achava que era ccrco, correto aquilo, outros que não era, e foram aré que deram o apoio de confiança quando cercaram. Os índios já não podiam fazer nada mais, vigiando o bicho à noite, quem plantava um pé de abóbora, outro de macaxeira, aquilo ali era numa correria danada[.,.]. Aí ele foi, falou com o Pe. Alfredo e “fale com o inrerventor”, que era o governo lá de Recife, e ele foi embora lá pra Recife de pé, porque naquele tempo não tinha carro [,..] (Antônio Moreno, ‘capitão” Pankararu). É apenas depois da entrada do SPI em Águas Belas, e do reconheci­ m ento dos Fulni-ô como remanescentes indígenas com direitos a um territó rio , que essa visão do d o m ín io da terra m u d ará de natureza, potencializando a m em ória dc u m a posse coletiva ancestral. Aqueles que viajavam cm busca de apoio na defesa de suas posses passam então a viajar em busca do direito a seus territórios com o “remanescentes”. Isso repercute sobre todos os aspectos da vida da com unidade, desde sua relação com a m em ória, até o seu arranjo interno de autoridade, no qual passam a ocupar um lugar diferencial justam ente aqueles responsá­ veis pela busca dos direitos. João M oreno foi a personagem que mais se destacou nas viagens aos centros de autoridade em busca de ajuda, encabeçando um grupo de

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cinco ou seis com panheiros, cuja composição variava de viagem para viagem. Esse grupo de pessoas não tinha qualquer papel de autoridade previam ente estabelecido na organização política do Brejo. São as via­ gens que passam a lhes atribuir um lugar de destaque no quadro das autoridades tribais, já que a sua especialização nelas os perm itia conhe­ cer e se fazerem conhecer por autoridades exrralocais. Desenha-se, des­ sa forma, um tipo de autoridade que retira seu status da capacidade de acessar os centros de autoridade, e que passa a exercer um papel de represenração, fundam ental para produzir não só a imagem do grupo, mas tam bém o próprio grupo, com o um co n ju u to de pessoas cujos interesses têm nessas pessoas um porta-voz (Bourdieu 1989). Forja-se assim o que busquei distinguir pelo rerm o lideranças peregrinas. Meu pai representou também os Kambiwá, que eu vi lá em Brasília. Entrei lá na gráfica e vi lá o livro sobre a parte dos passados de como ele represenrou, junto com Bastilo Tenório, Kambiwá também. Ele gosrava, era professo [...]. Sabe essas pessoas que mais qué ajudar? É a mais sofrida. Ele sempre fazia essa parte de Serra Negra, que ele fazia parte também, eles convida­ vam que era pra ir lá pra dá umas explicação, um conhecimento, como era que eles podiam chegá. Porque em antes aquelas rerras não eram demarcadas, era só: ‘Essa terra é dos índios, até em cima da serra...’. Quer dizer, aquele conhecimento de boca, que não tinha conhecimento pelo governo, aquela localidade certa... [P: A quem mais o seupai ajudou? Kambiwá, Pankararé..] É, ele reve também cm Tuxá, mas lá foi só a convire, das festas deles. Eles vinham festas aqui e iam daqui nas festas lá. Aguas Relas também, na época iam pra Rom Conselho de Parpacaça, mas pra pedir ajuda sobre a parte da dificuldade do posseiro que tava com a parte do índio. Lá tinha o padre Alfredo e a dona Maria Luíza que eram as pessoas que davam apoio de confiança ao índio. [...] Ele parou foi quando os governo chegaram mais pra perro, veio um chefe praqui e ai ficou aquele negócio de ter mais um paradeiro. E aí sempre caminhavam um pouco, mas não era como antes que caminhavam direto. Viajavam uma semana daqui pra Águas Belas, pra Bom Conselho [...], era uma semana toda. A lgum as características no en tan to condicionam a assunção desse papel. João M oreno, p o r exemplo, era um hom em com experiência de outras viagens, em preendidas para trabalhar em outros estados. Sabia rudim entos do vocabulário “da língua” e tinha “cara de índio m esm o”, segundo as descrições dos próprios Pankararu. Essas características não serão necessariam ente repetidas a cada nova liderança peregrina que

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emerge, mas dão um a m edida do quanto de teatral a representação polílica indígena (como qualquer outra) tem de respeitar. D a mesma for­ ma, a participação nas viagens implica todo um imaginário acerca dos poderes, dos perigos (emboscadas, fome, acidentes) e dos encantos de um deslocam ento que leva da periferia ao centro, do anonim ato ao poder, da carestia à abundância. Nas narrarivas de João Binga, atual cacique Pankararu, de Q u itéria Binga, m aior liderança peregrina em atuação do Brejo dos Padres16, o u de outras lideranças emergeutes, as narrativas sobre aprendizado p olítico, sobre as disputas faccionais c conquistas de “proteção”, assistência, verbas e cargos na FU N A I, estão invariavelm ente mescladas com narrativas sobre viagens. Viaja-se para aprender, para acum ular, para mediar, para denunciar ou para esclare­ cer calúnias. Viaja-se muiras vezes para dançar Toré em escolas públi­ cas, no saguão do palácio do governo em Recife ou na F U N A I em Brasília, com o form a de fazer sua facção visível e para conquistar pe­ quenas benesses. Esse im aginário transform a a viagem tanto em fonre de prestígio, q u an to em fonte de desconfianças; de q u alquer form a, parecem apenas reforçar sua inevitabilidade. Na [minha] época o pedido era sempre a terra, expulsar os posseiros pagan­ do seus direitos [...] Mas foi passando o tempo e, no fim, eles quebraram os marcos divisórios, deram tiros pra cima, fizeram o diabo lá e nós viajando... Uma hora cra pra ir a Brasília, “Não tem”, aí nós voltava só com o dinheiro da passagem... Eles mandava nós comê num hotelzinho e o índio ate se aliciava, só ia pra )á pra encher a barriga. Quando não ia pra o Recife ele ficava doidinho pra ir de novo, aí chegava lá, “comida boa”, porque aqui ele só comia esse feijãozinho com farinha... Ah, comia pão, sopa, cuscnz com leite, uma macaxeira com carne... E com isso, o índio que é besra vai se embelezando e esquece da rerra. Chegava lá e diziam “Tenham paciência que a terra é sua”, mas nunca enrregou na nossa mão. [...] Ela vai encolhen-

“'Trabalho com informações dos anos de 1954 e 1595 e, em função dos faccionalisnmos por que passam os Pankararu, essas caracterizações podem e provavelm ente estão desatualizadas. Já no início de 1998, tomei conhecimento que a repartição entre as seções norte e centro da Arca Pankararu, com qoe trabalho no capítulo três de m inha dissertação (Arruei 1996: 126-78} haviam levado à repartição formal da área indígena, dando origem à área Entre-Serras Canabrava Pankararu. A Enrre-Serras Canabrava declarou-se independente sob a liderança dc João Tomás (que m orreu alguns meses depois de ter sido declarado cacique) e hoje reivindica a demarcação independente de suas terras, além do seu próprio posto indígena.

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do, 14.200 ha já tá passando pra S. 100 e eu quero sabê onde é que nós vai flcá, não vai cabê nós não (João de Páscoa, ex-pajé Pankararu).

M odos de "leva n tar aldeias"

O fluxo desenhado pelas viagens, além de ajudar a com preender como o “Dr. Carlos”, em 1931, antes dc sua prim eira visita ao Brejo dos Pa­ dres, podia anunciar a existência daquele “círculo” m ítico-ritual, expli­ ca tam bém os destinos da padronização ritual daquelas com unidades. O padrão sugerido pela idéia de “círculo” o u área cultural, depois de reduzido a um único “traço”, passa a constituir não só o instrum ento que orienta a identificação oficial dos grupos, com o o que os produz. Ensinar o Toré: expressão obrigatória da "ind ian id ad e"

C om o vimos, o quadro ideológico e estratégico do SPI foi form ulado com vistas à sua atuação ju n to a grupos indígenas ainda não integrados, m uitas vezes arredios, beligerantes, que era preciso localizar e seduzir através de tradutores e de presentes, em operações "heróicas” represen­ tadas pela m áxim a form ulada por Rondon: “M orret se preciso for, m a­ tar nunca” . Esses não etam procedim entos que se adequassem ao con­ tato com índios do N ordeste. A ntes de procurar, o SPI estava sendo procurado, antes de convencer, tin h a de ser convencido, antes de utili­ zar m ediadores, era alcançado p o r eles, que serviam de “porta-vozes” dos “rem anescentes”, D iante dessa inversão de expectativas e procedi­ m entos e, na falta dos sinais diacríticos mais evidentes, a solução do órgão para o tratam ento das dem andas que lhe alcançavam repetiu a sua uatureza burocrática, estabelecendo um critério fixo, de observação direta, im ediata e de fácil apreensão. O inspetor regional do SPI R aim undo D antas Carneiro, ante o avan­ ço indígena e acom panhando a sugestão presente nos textos de Carlos Estevão de Oliveira, institui a performance do Toré como critério básico do reconhecim ento da remanescência indígena, tornado então expressão obrigatória da indianidade no N ordeste. Encarado como um a espécie de rito sum ário na legitimação da presença do SPI, o Toré c incorpora­ do por R aim undo D antas Carneiro ao rito mais largo que vem marcar a criação de espaços tutelares abertos pela atuação do órgão: dançar o Toré, hastear a bandeira e cantar o hino nacional. Para aquele inspetor, o Toré era “a conscientização de que eles eram índios [...], eles tinham

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i|iur saber aqueles passos da dança do índio”, tom ando para isso, como parâm etro de avaliação das performances, o Toré dos Fulni-ô, considei.ido “o prim itivo [.„], o verdadeiro Toré” (depoim ento de R. D. C ar­ neiro citado por G rünew ald 1993). ( ) Toré, “brincadeira de índio” o u de “caboclo”, com o os próprios indígenas o descrevem, consisre basicamente em um a dança coletiva de um núm ero relativam ente indefinido de participantes, que apresentam ',e cm parte pintados de branco, segundo m otivos gráficos m uito sim­ ples, e em parte (nesse caso, só homens) vestidos de Praiá. O Praiá é um conjunto de duas peças, máscara e saia, tecido com fibras de croá (planta da fam ília das brom élias) que encobre absoluta e necessaria­ m ente a idenridade do dançarino, que então incorpora um Encantado. Por sua vez, os Encantados são os espíritos de índios que não m orre­ ram, mas abandonaram voluntariam ente o m undo por “encantam ento”, passando a com por o panteão virtualm ente indeterm inado de espíritos protetores de cada grupo. Nesse caso, a idéia de incorporação deve ser distinguida da “incorporação” na um banda o u em gêneros dc culto aos m ortos, que os Pankararu em geral recusam, atribuindo-a aos “negros” . A dança é regida por um a m úsica fortem ente com passada, o Toante, cantada por apenas um “cantador” ou “cantadora” e que encontra res­ postas periódicas nos gritos uníssonos e ritm ados do grupo de bailari­ nos. E possível que o que passou a ser conhecido p o r Toré originalm en­ te não constituísse um ritual autônom o, sendo apenas um a parte recor­ rente em outros rituais e, com certeza, não idêntico em todos os grupos que o possuíam . Mas foi essa realidade mais im ediatam ente identificável, passível de ser isolada e ro tu la d a , q u e assu m iu o lu g ar de m arca identificadora, prim eiro para o indigenism o, depois para os próprios grupos indígenas, tornando-se assim símbolo de indianidade. Se, por um lado, a existência dos grupos e de um a antiga tradição comum a todos na form a do Toré é pensada com o realidade indiscutível, por ou tro , R aim undo D antas C arneiro tem m u ita clareza do fato de estar instituindo um a espécie de rito de passagem, que nada tem a ver com a verificação da legitim idade dos grupos em ergentes, já que os reconhecia com o “rem anescentes” e não com o os próprios “p rim iti­ vos”. Para aquele inspetor, o Toré passa a funcionat não como expres­ são au têntica, mas com o expressão obrigatória, que se investe de um caráter educativo, cie próprio instituindo um a autenticidade, de m odo hom ólogo às práticas políticas que pretendem , p o r meio de um proces­ so de conscientização, transform ar a “classe em si” em uma “classe para

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si”. O que ganha destaque é sua força petform ática, já que além de um a declaração de querer ser, há sim ultaneam ente a ação de se fa ze r índio, categotia jurídica sobre a qual o SPI estendia seu m anto tutelar. Mais tarde, essa form a de encarar o Toré se perderia pelos corredores do órgão, cujos funcionários, sem se darem conta da invenção de que eram herdeiros, sob a amnésia da gênese dos conceitos, eternizam e reificam o Toré com o prova substantiva da veracidade étnica.17 A instituição do Toré com o expressão obrigatória da indianidade cria um nexo de outra natureza entre os dois circuitos de viagens de que já tratam os. D e agora em diante, um circuito levará ao outro, não eventu­ al ou acidentalm ente, mas necessariamente já que a troca ritual é trans­ form ada em pressuposto da conquista de direitos. É tam bém a conexão entre esses circuitos que perm itirá às lideranças peregrinas assum irem um papel político ainda mais largo do que aquele que já desem penha­ vam com o representantes de sua com unidade. Além dc realizarem o trânsito de informações sobre os direitos entre os centros de autoridade e seu grupo, passam a atuar como os agentes que disseminarão as re­ gras da expressão obrigatória da indianidade. Agregam à com unidade ritual prévia, um a com unidade da busca por direitos, que estará ligada ao isolam ento, descontextualização e padronização de um dos seus ritu ­ ais. É n ovam ente João M oreno que, depois do reconhecim ento dos Pankararu e com toda a legitim idade que isso lhe dava, passa a desem ­ penhar esse papel para os grupos mais diretam ente ligados pelos circui­ tos rituais ao Pankararu. Meu pai é que foi ri [ao Brejo do Burgo] fazê como o antropólogo, prá levá algum conhecimento pra eles. [P: Mas, perai, como fo i isso? O seu p a i fo i até lá pra ensinar?] Pra ensinar sobre o ritual das festas, sobre as festas deles, que eles tão mudando como assim, [...] como uma muda, cantavam num outro ritmo, tinha outro som, parecido, mas já é outro som, aí dentro daquelas mudanças, a pessoa vai cantando aquele roante e no suspende daquele 17 Em um relatório de 1989, para usarmos um exemplo suficientemente próximo, um funcionário da FU NAI se dispõe a visitar um grupo emergente para com provar sua autenticidade através de um a verificação sobre a existência ou não de artesanato e a qualidade do desempenho do Toré, como se estivesse verificando aexistência de furos nas meias: “[...] No m om ento que foram interrogados sobre a dança do Toré, se havia dentro do grupo, alguma forma especial no m om ento da dança, surgiu um pouco de dúvida c o cacique acaba dizendo que hom ens e mulheres dançam juntos, Q uando o grupo de doze pessoas foi dançar o Toré, percebi que não havia harm onia no som, nem no ritmo da dança e que todas as vestimentas estavam novas” (Santana 1989).

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toante, a pessoa vai suspendê diferente, não suspende como esse daqui, pra ter modificação. [P: Quer dizer que os Pankararé não sabiamfazer isso?} Não sabiam, foi na época que eu era moleque, tinha uns sete pra oito anos 11947-1948], c que fui eu rnais meu pai f...] meu irmão. Mas ele já tinha ido mais vezes lá. Foi lá pra representa de como era pra fazer as festas, pros toantes serem diferentes. Lá tem parente da gente também, porque a família da minha mãe tem família lá também. [P; A familia da sua mãe veio de lá oufoi pra láT\ Foi pra lá. A família dos Antônio Vieira tem lá tambe'm. fP: Eaqui não teve nenhuma relação com os Tuxá?} Teve também, mas como convite, porque as festas deles eles já faziam. Faziam convite ptos daqui mandá uma parte de apresentação pra lá e de lá praqui. [...] nessa época eu não era nascido ainda não. Eles já tinham aqueles contatos (Antônio More­ no, “capitão” Pankararu). N o Nordeste, os “especialistas da significação” (Todorov 1993) que trabalham na "conquista” são os próprios “remanescentes” que, a cada novo pon to nessa rede de emergências, podem acionar outras linhas do circuito de trocas rituais, transform ando-as nos cam inhos da busca de direitos de outras com unidades. As lideranças, que num prim eiro m o­ m ento buscavam direiros, logo depois podiam estar transm itindo-os. Assim, por exem plo, depois de reconhecidos com o “rem anescentes”, os Tuxá, que tinham originalm ente, com o os Pankararu, o seu próprio Toré, são procurados pela população da Serra do Umã, que, como em ­ pecilho no seu reconhecim ento como Atikum se, se diziam “fracos no Toré”. Um grupo Tuxá viaja então para a Serra do U m ã entte 1943 e 1945 para passar seis meses, ao longo dos quais reforça, ou ensina o segredo do Toré aos A tikum . Por sua vez, depois de devidam ente reco­ nhecidos, os próprios A tikum estavam prontos para em prestar sua legi­ tim idade aos Truká, que os procuram para aprender o Toré depois de ficarem sabendo dos direitos através dos Tuxá (G riinew ald 1993). Realizar o Toré: de "brincadeira de índ io " a m á q u in a de guerra ( ) Toré, no entanto, apesar de necessário, não é suficiente para o re­ conhecim ento de um a com unidade como grupo indígena. Tal reconhe­ cim ento pode co n tin u ar sendo obstruído por interesses locais ou do próprio órgão indigenista oficial, de acordo com a flutuação das verbas ou dos cálculos de ganho político, sempre conrextuais. Por isso, o apoio
a

Arv o r e

pa n ka r a r u

gativas instituídas pelo estatuto jurídico diferenciado de tutelados do G overno Federal. Assim é que, décadas após João M oreno ter ensinado o T oré aos Pankararé, um a segunda geração de lideranças peregrinas volta a auxiliálos, agora na sua realização, tornada instrum ento de luta. O acirram en­ to do seu conflito com autoridades locais na década de 1960 levou os Pankararé a um a retom ada da possibilidade de terem o reconhecim en­ to com o remanescentes indígenas. Para isso, suas novas lideranças in­ tensificaram o intercâm bio com os Pankararu, com o form a de “fortale­ cer o ritu a l”, e passaram a “levantar” novos terreiros, retom aram os Praiá, com puseram novos toantes, edificaram um Poró e passaram a realizar o Toré mais freqüentem ente. O term o usado desde então para se referirem ao que estava acontecendo era o de “levantar aldeia” (Soa­ res 1977), em um a d u p la referência ao que concebiam com o um a revivescência religiosa e como um nascim ento político. Em resposta a esse m ovim ento, a repressão local foi canalizada para seus signos de indianidade, levando-os, sob um a situação de especial violência, a viajar em busca de apoio mais efetivo no posto indígena Pankararu. D epois de ouvi-los, o encarregado daquele posto cham ou o então pajé do grupo João Tomás, sugerindo que ele resolvesse o caso. Após um rápido impasse em que o pajé queria que o chefe do Posto lhe desse um a autorização por escrito para ir até Paulo Afonso (BA), recu­ sada pelo encarregado, ele acabou se decidindo por viajar por conta própria, para o que reuniu então 15 jovens Pankararu indo em direção à cidade de G lória (BA), onde procurou o delegado. A presentando-se com o pajé dos Pankararu, pediu autorização para visitar os parentes Pankararé no Brejo do Burgo. Eu quero falar com o senhor porque como a gente passa muito rempo sem ver os parentes, quando a gente chega tem que usar qualquer uma alegria, uma brincadeira pra gente brincar e tal. E a presença que a gente tem. que fazer quando encontra um parente com o outro. Tem que rer uma diversão igualmente como vocês branco (JoãoTomás, ex-cacique Pankararu). O delegado não m o stro u m aior interesse pelo caso e consentiu que seguissem viagem . N o en tan to , isso parecia pouco e João Tom ás in ­ sistiu: Não, mas peraí, eu tô indo mas eu vou querer autorização do senhor. Porque eu vou a fim de brincar c não sei sc é uma noite, se é duas ou se é 35 dias. Eu preciso de sua autorização escrira (idem).

A VIAGEM DA VOLTA

N ovam ente o delegado não fez qualquer resistência e escreveu a aulori/.ação, que João Tomás colocou no bolso, partindo em seguida para o Brejo do Burgo, C hegando lá no meio da tarde, cham ou a com unida­ de para “brincar”: “Tava todo m undo m uito tem po sem dançá, aí eles laçaram o pé no T oré”. Q u a n d o já era alta noite, um rapaz chegou assustado com unicando que o delegado c o prefeito estavam chegando com cinco soldados para acabar com a brincadeira. João Tomás pediu então que parassem o Toré e os colocou em form ação, lado a lado, enquanto ele mesm o seguia para a entrada do terreiro a fim de esperar a chegada das autoridades e dos soldados. A o chegarem , o prefeito perguntou quem era o João Tomás e quem tinha autorizado a realização do Toré. João Tomás se apresentou e respondeu que a autorização não era de ninguém , ele é que havia autorizado e que podia fazê-lo porque era índio, estava no meio dos índios e “os índios quando se encontram uns com os outros têm que dançar o Toré, porque não têm outra diver­ são, p o rq u e não são brancos, não são civilizados, e a sua dança era aquela m esmo”. O prefeito pensou um pouco e pediu para que o João Tomás suspendesse o Toré até que ele se entendesse com o delegado regional do órgão indigenista, em Recife. O Toré estava sendo realizado no terreiro levantado em frente à casa de um a das lideranças e, de m adrugada, as roças próxim as ao terreiro, que estavam sendo d isp u tad as pelo irm ão do prefeito, am anhecem destruídas, Ao tom ar conhecim ento do fato, João Tomás se dirigiu a Paulo Afonso para pedir a ajuda do m ajor R eni18, que conseguiu res­ ponsabilizar a família do prefeito pela destruição das roças e obrigá-la a pagar os prejuízos causados. V itorioso e reconhecido pelos Pankararé, joão Tomás volta aos Pankararú. Dias depois, alguns Pankararé procu­ rarão novam ente João Tomás, agora para avisá-lo das ameaças do pre­ feito e do delegado à sua pessoa e para aconselhá-lo a não mais voltar ao Raso da C atarina, pois essas autoridades haviam fincado um m oerão uo meio da com unidade do Brejo do Burgo anunciando que ele serviria

'* Para este final de década acumulam-se referências sobre a atuação de um delegado ou m ilitar do exército situado em Paulo Afonso, que teria prestado apoio sistemático aos Pankararú. A grafia de seu nome, no entanto, variou bastante de acordo com os infor­ mantes, sendo mesmo difícil avaliar sc todos os relatos diziam respeito ao mesmo personagem. Assim, o major do exército Reni talvez seja o mesmo delegado de polícia de Paulo Afonso Ivi, ou Ivo Texeira Xavier. Não foi possível, infelizmente, apurar a identi­ dade c filiação institucional precisa dcssa(s) personagcm(ns).

A ÁRVORt PANKARARÚ

para acorrentar o João Tomás, caso ele aparecesse novam ente. N o dia seguinte, ele volta a procurar o m ajor Reni em Paulo Afonso, pedindo que ele lhe acompanhasse 110 seu retorno ao Brejo do Burgo. O m ajor destaca dois soldados e um sargento para acom panhá-lo, este últim o arm ado tam bém de m áquina fotográfica para registrar o Toré. Ao che­ garem na com unidade, bem cedo, eles arrancam o moerao e passam a organizar o Toré, que dura todo o dia. D e m adrugada, depois de João Tomas já ter ido em bora, o prefeito chega com a polícia e leva preso o dono do terreiro onde havia se realiza­ do o Toré. Ao chegar de volta a Paulo Afonso, João Tomás fica sabendo da prisão e pede nova autorização ao major Reni para que ele fosse soltar o rapaz. EIc volta acom panhado de um cabo e um sargento e consegue interceptar o carro do prefeito, com o delegado, soldados e o preso ainda na estrada. Tomam-lhes o preso e exigem que o prefeito e o delegado os acom panhem até o quartel do exército em Paulo Afonso. Lá o m ajor Reni lhes passa um a descom postura, lhes cham a dc “cachorros”, lhes ameaça fisicamente e os faz correr a pé do quartel, na presença do João Tomás. Em resposta, o delegado e o prefeito abrem processo contra o m ajor Reni na secretaria de polícia de Salvador, rapidam ente arquivado. Mas, no plano local, o incidente resultou em um a ampla visibilidade do grupo Pankararé, im pondo sua identidade indígena à população locai e ao próprio órgão indigenista, que apenas mais tarde interviria na situação, dando inicio ao processo de reconhecim ento do grupo. Depois de ter alcançado notoriedade, João Tomás continuou atuando com o dissem inador do cam po de ação indigenista, sem necessitar dos m esm os expedientes m ilitares. E ntre os K am biwá e os K apinawá foi necessário apenas apresentar-se às autoridades locais respaldando a pre­ tensão daqueles grupos ao reconhecim ento como “remanescentes”. No prim eiro caso, em que já existia um a história de auxílios desde a época do Pe. Alfredo D âm aso, a ajuda agora, na década de 1970, já não depen­ dia de um m ediador não-indígena e o próprio João Tomás apresenta-se ao delegado local, que na época reprim ia o Torc Kambiwá, e o faz com ­ preender a possibilidade de repetir a situação vivida em G lória. N o segundo caso, essa posição de autoridade na representação dos “direi­ tos” indígenas fica mais evidente. Dessa vez é o próprio João Tomás que se vê procurado por m ediadores, um grupo de freiras que atuava junto aos Kambiwá para em prestar legitim idade ao grupo num comício que seria realizado em praça pública, no m unicípio de Bníque, Em meio aos pronunciam entos de autoridades locais, João Tomás é chamado a subir

A VIAGEM DA VOLTA

.iii palanque para se p ro n u n ciar sobre a questão da possível dem arca(,.io dc um a área indígena no m unicípio. Vendo-se em um a situação ■vi ternam ente delicada e que ele próprio avaliava como perigosa, assu­ me um to m apaziguador e defende um diálogo entre fazendeiros e índios que levasse a um acordo amigável sobre os limites da provável .oca indígena, ganhando a sim patia do prefeito locai ao m esm o tem po que confirm ava a existência dos direitos do grupo. Poucos anos de­ pois, a FU N A I com eçaria a intervir tim id am en te no conflito através de ingerências jun to à prefeitura local e, em 1980, enviaria unia an tro­ póloga ao local p a ra a “d etecção da id e n tid a d e é tn ic a ” do g ru p o (Sampaio 1993). Nos dois casos sua atuação perm itiu transferir legitim idade do Tron111 Velho Pankararu para as Pontas de Ram a indígena, alem dc increm entar seu próprio capital simbólico com o “levantador de aldeia”. João Tomás, i iimo pajé Pankararu, mas princip alm en te com o liderança peregrina im buída da missão não só da busca de direitos, mas tam bém do seu anúncio e da sua transmissão, legitim ado por um a ordem de exceção, para a q u a l a tu te la ab ria e n tã o , assum e ele p ró p rio o p ap e l de dissem inador do campo de ação indigenisca: o Fulni-ô é um tribo muito velha igual aqui a nossa. Ramo daqui é Pankararé e Kambiwá, quer dizer, já existia mas Foi fundada por gente daqui. Kambiwá já tinha a tradição deles, mas pra erguer foi gente daqui pra lá. Pankararé é a mesma coisa, jl tinha a tradição deles mas teve que ir gente daqui. Esse João Tomás mesmo daqui teve em todas, Se é pra levantar uma aldeia ele (evantá direitinho. Os posseiros querem prendê ele, eles quizer.im amarra ele lá num tronco, mas nada, ele gosta de levantá uma aldeia (João de Páscoa, ex-pajé Pankararu).

A árvore Pankararu

Por apresentar um “estilo” bastante acabado de engendrar emergências, a situação Pankararu é especialmente “boa para pensar”, não só pelos vínculos concretos com outras emergências, mas tam bém porque ela lornece um a espécie de modelo simbólico que lhes dá inteligibilidade. Não que tal modelo Pankararu possa ser apresentado como resumo ou síntese da diversidade de situações históricas, políticas c cosmológicas que envolvem os grupos da região, mas porque, através dele, é possível m udar a qualidade do nosso olhar sobre esse fenôm eno, passando de

A ÁRVORE PANKARARU

Rede de relações dos grupos indígenas do Médio e Baixo São Francisco (em ordem cronológica de aparecimento)

1. Fulni-ô

1 3. Xocó

2. Pankararú

14 . Wassu-Cocal

3. Xukuru-Kariri

15.Tingui-B otó

4. Kambiwá

16 . Kapinawá

5. Trucá

1 7 . Karapotó

6. Massacará

1 8. Geripankó

7. Tuxá

19 . Tuxá de Inajá

8. Atikum

20. Xukuru-Kariri de

9. Kariri-Xocó

Quixaba

10 . Xucuru

22. Kantaruré

1 1 . Kiriri

24. Kalancó

1 2 . Pankararé

um a descrição dos fluxos e da m ecânica para chegarmos à poética das emergências, isto é, às categorias que perm item com preender sim ulta­ neam ente a unidade e a variedade desses grupos, tom ando como objeto não o conjunto de todas as emergências catalogáveis, mas o discurso que as viabiliza, poderíam os dizer, o discurso da etnicidade com o p rin ­ cípio de eng en d ram en to dos significados que se erguem a p artir do sistema de m etáforas, o não aleatório da invenção cultural. O tronco Pankararu

O sistema de metáforas que descreve essas concentrações, dispersões e cristalizações étnicas organiza-se segundo o par Troncos Velhos/Pontas de Rama, par que traduz para esses grupos a distância entre eles e seus antepassados, ou entre grupos mais antigos e mais novos, tanto no que diz respeito à aparência física quanto às “tradições”. Solução classificatória para os fenômenos de natureza identitária da “m istura”, esse par de cate­ gorias perm ite considerar como parentes grupos política c territorialm ente distintos, tendo por referência ancestrais com uns (reais ou imaginários) de um a form a que pode ampliar-se até incluir todos os “índios”, por oposição a todos os “civilizados”, “brancos” o u “brasileiros”. A oposi­ ção, continuidade e com plem entaridade entre “troncos” e “pontas”, que marca tanto a relação entre gerações e famílias dentro da aldeia Pankararu, quanto entre os Pankararu e outros grupos, serve como um a form a de pensar o tem po e seus efeitos segundo um jogo entre a imagem de laços naturais e experiências em inentem ente históricas. O par Troncos/Pontas nao implica um sistema fixo de relações hierárquicas, mas opera como um a espécie de shifter Qakobson s/d), cujo significado depende do con­ texto de enunciação. Esse par nao nom eia pessoas ou grupos tom ados isoladamente, mas os introduz em um sistema de relações que estabelece a distância com relação a um ideal de “índio p u ro ”. Assim, os Pankararu podem ser “tronco velho” com relação aos K antaruré ou aos Jeripancó, que se constituíram como seus “enxames”, mas já são “ponta de rama” com relação aos Kayapó ou Xavante, por exemplo, com quem travam relações durante suas viagens à Brasília. N o contexto do Brejo dos Pa­ dres, os grupos que vieram a se com binar no com posto hoje designado como Pankararu seriam troncos velhos com relação a este últim o, consi­ derado como ponta de rama daqueles. Segundo o levantam ento realizado p o r H o h en th al (1960), as notíci­ as mais antigas do etnônim o Pankararu (Pancararús ou Pancarús) são de 1702, surgindo nos relatórios de um a das M issões das ilhas do São

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Francisco, ao lado de três outros grupos, os Kararúzes (ou Cararús), os Tacaruba c os Porús, Mais tarde, há notícias dos Pankararu e dos Porús cm outros dois aldeam entos missionários e, finalm ente, é com a cria­ ção do ald eam en to de “Brejo dos Padres”, possivelm ente em 1802 (H o h en th al 1960), a partir do ajuntam ento destes com os U m an, Vouve e Jeritacó (Barbalho 1985) que se define sua atual localização. A m pli­ ando o leque de etn ô n im o s associadas aos Pankararu, segundo sua tradição oral, eles seriam “p aren tes” dos P ankararé (localizados na m argem oposta do São Francisco), dos quais teriam se separado bem antes de sua reunião em aldeam entos, assim com o teriam ligações com as famílias da Serra N egra (atuais Kambiwá e Kapinawá) que, depois de reiteradas ten tativ as estatais e m issionárias, foram parcialm en te agrupados no m esm o aldeam ento do Brejo do Padres. C om isso, o aldeam ento do Brejo dos Padres transform ou-se em um território de reunião e com binação étnica com partilhado por vários grupos de ori­ gens diferentes, além dos negros ex-escravos que foram alocados aí em fins da década de 1870. Processos semelhantes foram vividos em outros aldeam entos, mas a particularidade Pankararu está no fato de que eles geraram um recurso próprio e original de recusar a “redução” im posta por essa “m istura”. M antiveram , independentem ente de sua designação oficial, um outro nom e com posto, dc conhecim ento geral, mas de uso apenas memorial como seu verdadeiro nom e: Pancarú Geritacó Cacalancó Umã Canabrava T a tu x i de F ulô. S e g u n d o eles, c a d a um desses “s o b r e n o m e s ” corresponderia a um a das o u tras principais etnias que com puseram historicam ente o grupo, cada um deles guardando a m em ória da diver­ sidade étnica que os constitui e que é coberta apenas parcialm ente pela hom ogeneização, prim eiro cabocla e agora Pankararu. G uard ar esses sobrenom es significou poder constituir um a unidade política e social sem condenar irrem ediavelm ente as “sementes” da di­ ferença. Cada um de seus sobrenomes perm ite que do grupo se solte um enxame para constituir um a nova ponta de rama. Ê por isso que Jeripancó se emancipou, um enxame de abelha que foi embora. O índio é assim. Daí um dia tá saindo outro enxame e eu não sei pra onde, porque não tá cabendo o povo. Se não houver conflito que morra genre vai sair um enxame de novo. [..,] O nome deles é Jeripancó que é um sobrenome nosso. Nosso sobrenome é Jeripancó Cacalancó Tatuxi dc Fulô. Eles tiraram só o Jeripancó nosso aqui, mas nós ainda têm sobre­ nome pra formá outro enxame (João de Páscoa, ex-pajé Pankararu).

A VIAGEM DA VOLTA

Se, no passado, diferentes grupos puderam ser reunidos num mes­ mo território com o estratégia de sobrevivência, por que não pensar que linje, tam bém com o estratégia de sobrevivência, um grupo possa dar oligem a outros, m ultiplicando os territórios indígenas? O riginada do m tm do anim al, mas intim am ente ligada aos processos de reprodução vegetal, essa nova m etáfora agrega m obilidade à imagem do “tronco/ pontas", carregada dc um a idéia de expansão e fracionam entos para a constituição de novas unidades. O “enxam e” é em geral um m ovim ento
ii por m eio desse sistem a de metáforas que envolvem, dc um lado, os Troncos Velhos e as Pontas de Ram a e, de outro, os “sobrenom es” e os “enxames”, que podem os com preender a emergência dc ao m enos ouiros seis grupos, que hoje conform am a grande árvore Pankararú: os Pankararé, dos quais já descrevem os a em ergência, os Jeripancó, os Kantaruré, os Kalancó, os Pancaru e os Pankararú de Real Parque, O “núcleo do Pariconha”, com o os Jeripancó eram conhecidos na docum entação do órgão indigenista até m eados dos anos 1980, reve origem com os deslocamentos de famílias Pankararú após a extinção do aldcam ento e da instalação das “linhas”. Nessa época, um certo núm ero de famílias deslocou-se para o Pariconha, mas nunca deixou de m anter relações com o Brejo dos Padres. C om a instalação do Posto Indígena 110 Brejo dos Padres no início dos anos 1940, essa com unidade passou a usufruir tam bém de alguns de seus serviços, principalm ente os relaci­ onados à saúde, até que em 1985 o chefe de posto da área Pankararú considerasse que o “núcleo do Pariconha” tinha um tam anho suficiente para ser reconhecido como área autônom a. N o m om ento da escolha do nom e para oficialização da área, em acordo com seus parentes do Brejo dos Padres, acertou-se a adoção de um dos sobrenom es do grupo m ai­ or, que originou os Jeripancó.

A ÁRVORE PANKARARÚ

O s Kantaruré, por sua vez, afirmam ter origem no deslocamento de um a jovem Pankararu nas peregrinações religiosas da imagem de N . Sra. da Saúde, durante as últimas graves secas do final do séc. XIX, casando-se e estabelecendo família np sopé da Serra da Batida, onde deu origem aos “caboclos da Batida”, como eram conhecidos. Em 1987, um a das m ulhe­ res dessa com unidade é abordada na feira da cidade de Glória por índios Tuxá que, através de seus traços físicos e de perguntas sobre sua origem, chegam à conclusão de que ela é índia e lhe recomendam procurar seus “direitos” junto à FUNAI. A partir de então, a com unidade dos “caboclos da Batida” entra em contato com os Pankararé, com os Xukuru-Kariri, com os Pankararu e conseguem que em 1989 a FU NAI envie um a antro­ póloga para fazer o primeiro reconhecimento, formalizado apenas em 1998. O m esm o m ecanism o se reproduz na história de fundação dos recém-surgidos Kalancó, que afirm am ter origem na migração, tam bém ao fim do século XIX, de um dos filhos de um antigo pajé Pankararu. Nesse caso, os prim eiros contatos foram realizados em 1998, quando, p or meio dos Jeripancó, de quem são vizinhos, conseguem atenção da F U N A I. O órgão indigenista, en tretan to , ainda nao providenciou a “identificação” do grupo, mas seus pajé e cacique já iniciaram visitas ao Brejo dos Padres d urante suas principais festividades. As últim as pontas de rama do tronco Pankararu a serem relacionadas diferem das anteriores em função de seu caráter controverso, seja este com relação à autenticidade da afirm ada descendência, seja com rela­ ção á legitim idade de tornarem -se um novo enxame. O s Pancaru, iden­ tificados e reconhecidos pela FU N A I no final dos anos 1970, afirm am ter origem n a migração do seu patriarca, ainda vivo, do Brejo dos Pa­ dres nos anos 1920. Ele então form ou família e peram bulou pelo serrão até estabelecer-se, na década de 1950, nas terras atualm ente reivin­ dicadas, no m unicípio de Serra do Ram alho (BA). Tendo recorrido à FU N A I p o r encontrarem -se sob a ameaça de grileiros, foram reconhe­ cidos com o “rem anescentes” pelo órgão oficial, mas não com o seus “descendentes” pelos Pankararu, que por sua vez solicitaram ao órgão indigenista a correção do erro. A o u tra situação controvertida merece um a atenção mais dem orada. Os Pankararu de Real Parque form am um grupo estimado em aproxi­ m adam ente 1500 pessoas, que ocupam parte da favela de mesmo norne no bairro do M orum bi, grande São Paulo. Esse grupo rem origem na intensificação do fluxo de deslocam entos de trabalhadores do N ordeste para as grande cidades do Sudeste a p artir d a década de 1940, N a

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muioria dos casos, o trabalho se deu nas equipes de desm atam ento da ( Tia. de Luz do Estado e, inicialm ente, era agenciado por “gatos” que 1,1111 buscá-los na própria aldeia, para entregá-los, em lotes, ao “em prei­ teiros” das obras. A sucessiva elevação de um desses trabalhadores ao papel dc “gato” e mais tarde de em preiteiro das obras de desm atam ento da Cia. de Luz acabou acarretando um fluxo direto e constante entre o IWejo dos Padres e São Paulo nas décadas de 1950 e 1960. Em pouco icm po S lo Paulo tornou-se um a referência para todo o grupo, que m an­ tém af filhos e irmãos. Inicialm ente era um fluxo apenas de hom ens, que safam da área indígena para trabalhar curtos períodos em São Paulo, como form a de reequilibrarem o orçam ento dom éstico em ano de seca ou em situações de em ergência. Sem se integrarem à cidade, voltavam sem pre que as necessidades im ediatas já tivessem sido cobertas o u quando se anunci­ asse um bom inverno, N o en ta n to , a p artir da segunda geração de Pankararu trabalhadores em São Paulo, que coincidiu aproxim adam en­ te com a idade adulta das primeiras gerações de crianças alfaberizadas pelo posto indígena, as m ulheres intensificam suas viagens e aparente­ m ente passam a servir de base para perm anências mais estáveis. A cada núcleo familiar lá instalado, tornou-se mais fácil e provável que novos jovens percorressem o m esm o cam inho, fazendo com que essas viagens assumissem um caráter sistemático e fam iliar.15 O fato de construírem uma base espacial relativam ente hom ogênea, logrando reproduzir um a organização política e rirual, d im in u iu os custos m ateriais e afetivos dessas migrações, p erm itindo um a efetiva reterritorialização.20

''' C om o era um a saída para as famílias numerosas com dificuldade de repartir suas terras entre os herdeiros, essas viagens quase se tornaram uma fase no ciclo de vida dos jovens indígenas que lí iam buscar recursos para casar, para com prar novos pedaços dc posse dentro da área indígena ou recursos para instituírem negócio dentro ou fora da área. É possível que um hom em engajado nessas viagens, aos cinqüenta anos, quando já começa a abandoná-las, tenha acumulado um total de até dez anos fora da aldeia, distribuídos em períodos que vão de seis meses a dois anos. Jil O primeiro pedido de providências à FUNAI proveniente de Real Parque foi apresen­ tado por uma personagem cujo percurso vai de simples trabalhador temporário a pedrei­ ro profissional e a dono de um a microempresa de reparos e pinturas. Sua posição atual lhe perm itiu, além de pleitear "carteirinhas de índio” para os m oradores da lãvela, doar 24 alqueires de sua propriedade para que o grupo tivesse sua própria aldeia c criasse a associação ‘‘SOS Com unidade Pankararu de São Paulo", cuja função seria a de captar recursos para o grupo.

A Ar v o r e

pa n ka r ar u

D epois cias notícias sobre assassinatos de jovens Pankararú21, o n ú ­ cleo dc Real Parque ganha grande visibilidade, o que lhe perm ite em an­ cipar-se do discurso das lideranças do Brejo e reivindicar a criação de sua própria aldeia. A idéia, entretanto, não foi bem recebida nem pelas lideranças do grupo em Pernam buco, nem pela F U N A I22. Estava em jogo, entre outras coisas, o estatuto das viagens a São Paulo. As reivindi­ cações fundiárias e os projetos de desenvolvimento do Brejo dos Padres freqüentem ente contabilizaram a população de São Paulo com o parte dos beneficiados, caracterizando sua saída com o um a diáspora. Aquela nova postura, no entanto, convertia a diáspora em mais um enxame, o exílio econôm ico em reterritorialização étnica, dando continuidade ao m ovim ento de fragmentação e expansão da identidade Pankararú que, nesse caso, contrariava a estratégia política existente no Brejo dos Padres. As sem entes: o Toré com o expressão m ística

Ao narrarem os eventos em que se “ensinam o T oré” ou “levantam aldeia” é com um que os Pankararú acrescentem que nesses casos tratase de “transm itir a sem ente”. Esta, que é a últim a com ponente desse sistema de metáforas com que trabalharem os, agrega às metáforas ante­ riores novos significados. A "sem ente” é a form a m aterial por que os

21 Em 26 de julho de 1994, o jornal Notícias Populares de São Paulo abria a primeira página do caderno "Piantão N P ” com a manchete índio eliminado na favela. Fugiu da tribo para morrer em São Paulo. Ao íado da manchete, era estampada a Foto do corpo ensangüentado de um índio de vinte anos. O texto explicava que, apesar dc estarem ali porque os grandes fazendeiros haviam invadido suas terras em Pernambuco, os índios continuavam reali­ zando seus rituais e conversando “em sua língua nativa, o latê”. Duas semanas depois, o jornal Folha de São Paulo dedicava uma página inteira para com entara inusitada existên­ cia de um a tribo indígena em pleno M orum bi, tribo que tinha criado uma “rede de solidariedade” nas suas favelas e que se reunia rodas as semanas sob o com ando do pajé da favela para rituais deTorc, que era comparado ao candomblé. Uma semana depois, o assunto teria uma página inteira do jornal Diário de Pernambuco, sob o título Pankararus que trabalham em São Paulo estão sendo dizimados pela violência urbana, na qual tam bém se registrava que o assassinato teria sido m atéria do tdejo m a l A qui Agora, do SBT. 22 Depois de um a reunião em 1995, decidiu-se náo aceitar a proposta de um a nova área e restringir o “reconhecim ento” apenas ã declaração oficial dc que, quando fosse o caso, determ inadas indivíduos estariam “registrados no posto indígena” da área de origem. Mais tarde acertou-se que um a liderança do Brejo iria até Brasília para identificar quem é e quem não é índio, e providenciar os registros de nascimentos,

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1 nvantados se m anifesram pela primeira vez aos Pankararu e nos servii.i aqui para estabelecer a hom ologia que as metáforas da em ergência m.mtêm com a teogonia dos Encantados, da qual apresentarei apenas um rápido esquema. ( )s Encantados são “índios vivos que se encantaram ”, voluntária ou involuntariam ente, e p o r isso o culto a eles, com o insistem os Pankararu, não pode ser confundido com o culto aos m orros, identificado como a icligião de negros”, A form a desse “encantam ento” só pode ser parcial­ m ente n arrada seja p o rq u e co n stitu i um m istério para os p ró p rio s Pankararu, seja por ser um segredo que não pode ser revelado a estra­ nhos. Segundo os Pankararu, o segredo do encantam ento é o núcleo da própria identidade da aldeia. C ada povo indígena tem seu panteão de Pncantados, m as com o cada rronco é m arcado p or um a determ inada iurm a de “encantam ento”, esses Encantados podem ser partilhados dui.mte um determ inado tem po por grupos ligados entre si como “pontas de ram a” de um m esm o tro n c o velho. A tu a lm e n te os E n can tad o s Pankararu habitam apenas as serras e os serrotes que dem arcam o enm rno do Brejo dos Padres. Praticam ente para cada um a dessas form a­ ções o u m aciços ro ch o so s, e ste tic a m e n te m u ito im p re ssio n a n te s, corresponde um Encantado. O contato entre os Pankararu e eles atual­ m ente restringe-se aos “sonhos”, d u ran te os quais alguns Pankararu podem viajar ate os castelos existentes dentro daquelas serras e serrotes. Os “encantam entos” de “índios vivos” que geraram os atuais Encannulos, no entanto, envolviam as extintas cachoeiras de Paulo Afonso e de Itaparica. Algumas narrativas contam que o surgim ento dos E ncan­ tados e dos próprios Pankararu deve-se ao encantam ento de toda um a população de índios —um a “tropa” —que teriam se jogado na cachoeira de Paulo Afonso. Foram esses Encantados, que passaram a hab itar a cachoeira e que tin h am origem em todas as “nações” antigas, que se com unicavam por meio do estrondo das águas, prevendo desgraças, m ortes ou mesmo novos encanram entos. D epois desse encantam ento coletivo, que dá origem à própria aldeia, pensada como unidade espiri­ tual, outros índios, após serem anunciados e passarem pela devida pre­ paração, podiam continuar se encantando. Quando era assim um jovem, como o senhor, e chegava o cacique 011 o pajé e falava: ‘O senhor vai morrê, pode não ser hoje ou amanhã, mas o senhor vai morre’, aí nós preparava ele e ia pra nossa cachoeira [...] que acé que os gringo não vieram e não quebraram, tinha o rastro dos índios na pedra. O senhor viajava hoje e, quando era amanhã, que passava oito dia, nós tinha

A ÁRVORE PANKARARU

que acendê o fogo num reservado e esperá a sua chegada [...] esperá naque­ le ponto, acendê o cachimbo. [...] nós não estamo brincando com espírito morto como os outros alí, nós tamos trabalhando com os índio, Quando i com oito dia, a gente esperava aquele camaradinha que se encanto, que é vivo, é vivo graças a Deus. Quando era com oito dia ele trazia a vida dele numa semente c nós tamos nessa ilusão, A semente que é pra nós ficá adorando. Nós adora a semente mais ou menos como adora um santo, ou mais do que isso. [Então todo encantado foi um índio?] Todo Encantado ê um índio. [Um índio que se jogou da cachoeira?] Todo Encanrado dessa aldeia aqui foi-se jogado da cachoeira (Mané Bizoro). As “sem entes” são o transporte dos Encantados. Depois de escolhe­ rem um a determ inada pessoa que deverá zelar por eles, os Encantados surgem em sonho para essa pessoa e anunciam que ela receberá sua sem ente. E m pouco tem po essa pessoa se depara com a “sem ente” an u n ­ ciada, que de fato tem a form a de um a semente vegetal, mas onde se pode ver a im agem do Encantado. Essa sem ente deve ser guardada em um pote, que deve ser enterrado sob o solo da casa do zelador escolhi­ do, em um lugar que apenas ele pode conhecer. Trata-se de um outro seg red o , nesse caso, d o m é stic o . Essas sem en tes, no e n ta n to , não correspondem a apenas um Encantado. Por meio delas podem se m ani­ festar até vinte e cinco Encantados para um mesmo zelador, ainda que eu não tenha conseguido saber de qualquer zelador que alcançasse se­ quer a m etade desse núm ero. Depois de m anifestados, os Encantados passam a ser objeto de culto “particular”, isto é, cerimônias domésticas em que se fum a, tom a-se garapa e canta-se o “toante” do Encantado, mas nas quais não se dança. O toante é a m úsica própria de cada E n­ cantado e só é revelada progressivamente, por meio do exercício ritual do “particular”. É apenas depois que o próprio Encantado pede para ser “levantado”, que ele pode ser cultuado tam bém no Toré, versão pública e coletiva dos “particulares”, no qual os vários E ncantados da aldeia podem se encontrar em festa. D epois desse pedido, então, o zelador deve tecer o Praiá, que é a “farda” do E n cantado, isto é, a saia e a máscara de fibras de croá que corresponderá apenas a ele. Por tudo isso, o zelador dos Praiás tem um a grande responsabilidade religiosa frente à aldeia, acum ulando com isso tam bém autoridade po­ lítica. N ão é qualquer pessoa que é reconhecida como apta a receber um a “sem ente”, estando esse lugar m arcado p or um a certa avaliação coletiva acerca de sua reputação. D c outro lado, assim que um a pessoa

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in c b c um a “sem ente”, ela passa a concentrar a sua volta e à volta de mi.i casa um a órbita ritual mais o u menos extensa e intensa. Prim eiro, ela passa a concentrar os “particulares” de seu próprio núcleo familiar i i i i de sua família extensa, dependendo da existência de outros zeladores n.i mesma família ou em núcleos colaterais. Em seguida, depois de ter levantado” um o u m ais Praiás para os seus Encantados, ela passa a ter i.unbcm um “terreiro ” para que esses Praiás dancem , que, por isso, passa a concentrar tam bém parte dos eventos festivos que se realizam n.i aldeia. C ada terreiro de pai de Praiá é um ponro de realização de Ibrós, seja p o r iniciativa p rópria, seja em função das visitas que os Praiás fazem a to d o o circuito de terreiros em cada festa realizada. Além disso, cada Praiá deve ser vestido por um hom em , em geral afili­ ado ao Encantado correspondente à farda, que deve exercer esse papel em segredo. Nesse caso tam bém não é qualquer pessoa que pode vestir o Praiá e o zelador deve escolher essa pessoa, d entro ou fora de sua l.unília, de acordo com sua reputação m oral. Isso estende a autoridade do zelador, com o alguém que tam bém é um avaliador do co m p o rta­ m ento m oral de outros hom ens. [O que precisa pra ter um Praiáf] Precisa ele se agradá e se chegá no senhor c, então, antes dele chcgá, ele trás um coraçãozinho, aquele que tem o coração, que tem a semente, já cem aquele misteriozinho e, então, ele pede f...]. Então chega o dia que ele avisa ‘Quero sê levantado’. Ainda tem deles que vêm de juazeiro, de Serra Negra, que foi acabada em Serra Negra, ainda tão chegando por aqui. Aí tem que fazê um Praiá pra levanrá ele. Tem que prepará ele porque se fosse pra todos [...]. O senhor vê que é um ponto fino, que náo é pra nós todos não, uão é pra todos da aldeia não. É pra uns c outros não. Porque pra uns que têm aquele mistério, e têm aquele ponto daquela honestidade, eles não vão procurá não senhor, nem o do lugar. Aqui foi cinqüenta... cinqüenta... náo sei quanros é que foi cncanrado (Mané Bizoro). O dilem a mais dram ático do p o n to de vista da identidade étnica para os Pankararú é o fato de todo esse sistema estar ameaçado em sua reprodução, já que eles teriam sido expropriados tam bém de seu segre­ do, de seu mistério. Além da “m istura” territorial e biológica que agride inais m anifestam ente a identidade Pankararú, mas que é enfrentada por meio de mecanismos sociológicos que envolvem o estabelecim ento de critérios de exclusão e inclusão contrastivos e concextuais (A rruti 1996: cap. 4), há essa “expropriação” de natureza cosmológica. Isso porque,

AÁRVORE PANKARARÚ

depois de terem assistido a destruição de sua m orada nas cachoeiras de Paulo Afonso pela construção das barragens, os Encantados m igraram para a cachoeira dc Itaparica, mas recentem ente teriam novam ente as­ sistido a um a destruição de sua m orada com a construção de novas barragens. E x tin tas as cachoeiras, os P a n k araru estão lim ita d o s ao panteão de E ncantados já existente e àquele universo dos que ainda podem vir a se manifestar. Isso, no entanto, é considerado insuficiente para co n tin u a r contem p lan d o a sua expansão dem ográfica. H o je os Pankararu trabalham no descobrim ento de um novo “segredo”. A cachoeira era um lugar sagrado onde nós ouvia gritos de índio, cantoria de índio, berros, gritos, O encanto acabô porque o governo qué assim nó Eu acho qne se o governo quizesse acabá com os índios dentro de 24 horas ele acabava. Ele não acaba por causa dos direitos humano, por causa dos direito mundial do índio e do ser Humano, porque senão já tinha acabado [...]. Olha, essa cachoeira, quando ela zuava, tava perto dela chovê ou de um índio viajá. E a cachoeira não zuou mais, chove quando qué, sem ra [...]. Acabou-se o encanto dela. Então esse era todo o lugar sagrado que agente pediu pra preserva, mas... E a força maior combatendo a menor... Era uma grande cachoeira, de um grande rio, que agenre ouvia os cantos, das rribos indígena, vários cantos de tribos indígenas cantando junto que nem numa festa. Mas hoje em dia não sc vê mais nada... Aquele encanto acabô (João de Páscoa). T ransm itir a sem ente para um grupo novo, ensinar o Toré, levantar um a aldeia, não são metáforas vazias. O “regime dos Encantados” for­ nece os referentes culturais dos quais brotam as metáforas da em ergên­ cia étnica. A capacidade de guardar em seus “sobrenom es”, m antidos com zelo e discrição sob a sua designação oficial, um a m ultiplicidade étnica original é hom óloga à natureza m úlripla das “sementes”. D e cada um a delas podem ser levantados mais de duas dezenas de Encantados. “Levantar aldeias” surge com o o correlato direto da prática religiosa e m ística de “levantar o Praiá”, quando, em am bos os casos, os índios precisam estabelecer contato com o sobrenatural para descobrir o “se­ gredo” do nom e, dos coantes e do “regime particular” que individualiza seja o Praiá, seja a nova aldeia. O “segredo” é tam bém mais um conector entre esses dois cam pos da prática político-religiosa, já que é a desco­ berta de um determ inado m istério do “encantam ento” o que m arca a origem de um panreão de E ncantados, assim como a identidade do povo ao qual esse panteão corresponde. Por outro lado, a perm anenre

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emergência de Encantados ainda é considerada fundam ental na m anulenção da. força vital de um a aldeia, um a vez que seu núm ero de certa livrma deve acom panhar o crescimento dem ográfico desses grupos. Já que são eles que presidem tanto os “particulares”, de natureza dom éstit ,i, quanto os Torés, de natureza pública, a expansão desse panteão de Encantados é a co n trap artid a e a condição da expansão dos grupos familiares e da fissão dos grupos mais amplos de alianças locais. Por isso, transmitir a semente e ensinar o Toré não im plicam o simples ensino de um a coreografia, nem o “resgate” de um a tradição por m o ti­ vos de preservação cultural. Trata-se da transm issão de um conheci­ m ento de natureza mágica. A semente é o prim eiro “cam inho até os Encantados”, que o tronco velho dá ao grupo emergente; cam inho que ,i “ponta de ram a” perdeu ao longo das sucessivas m isturas a que foi subm etida. D epois de recebida a semente, cabe ao grupo em ergente descobrir o seu próprio caminho e seu próprio segredo, isto é, a form a de acesso e de produção de seus Encantados, fulcro da identidade do grupo. Ensinar o Toré, portanto, não im plica a simples disseminação de um a semelhança, mas tam bém a possibilidade de produzir diferenças. O ritual daqui, ele não pode ser ignal aos dos Fulni-ô, onde pode ser iguai é com Jeripancó, o Ouricuri, porque os índios de lá são daqui, é toda família daqui, Agora, os Pankararé, os Tuxá, os Adkum, na serra do Umã, os Kambiwá, Trucá, ilha da Assunção, nessas as festas têm que ser diferentes. Tá certo, tem pessoas de Kambiwá que mora aqui na aldeia, casado lá mesmo e mora aqui. Um primo meu, os pais dele era Tuxá e a mãe dele era irmã do meu pai. Mas ele como neto da parte de lá, ele não pode usar a fesra de lá aqui. Temos que acompanhar o nosso rituai daqui. E já andou um antropólogo fazendo esse apanhado das festas, em 1983, 1984. Sobre a parte das festas pra vê se eram todas iguais, porque não pode ser tudo igual, tem que ccr uma diferença (Antônio Moreno, “capitão” Pankararu). Dessa forma, se os grupos de rronco velho se distinguem das pontas de rama, em um prim eiro m om ento, precisam ente p o r sua relação com o sobrenatural, fonte de sua “força” com o “aldeia”, eles tam bém são os agentes que dissem inam essa força, ainda que não de um a form a direta. Tal transmissão é m ediada pela “sem ente”, que deve ser cuidadosam en­ te culm ada e cultivada, isto é, pelo exercício ritual continuado do novo grupo, para que dela possa brotar a “ponta” que havia sido cortada de sua base. A “autenticidade”, assim com o a m em ória desses grupos, não são vistas por eles com o algo que sim plesm ente existe, independente­

A ÁRVORE PANKARARU

m ente de suas ações, mas sim com o resultado de um trabalho, que se expressa na teced u ra dos seus p ró p rio s “P ra iá ”, nos seus p ró p rio s "toantes” e suas próprias formas de devoção, isto é, n a seu “segredo”. A sua singularidade com relação aos “brancos” o u a outros grupos é resul­ tado desse trabalho místico e social que os leva do terreno do caboclo ou do índio indistinto (de natureza jurídica) para o território especifi­ cam ente A tikum , Massacará, X ukuru etc. Deve estar claro que, ao descrever essa correspondência entre o “re­ gime dos E ncantados” e as m etáforas da em ergência, nao se supõe a revelação de um código recôndito ou subjacente à realidade manifesta, que expressaria um a “m entalidade nativa” ou algo do gênero. Essa correspondência é produzida historicam ente, pela confluência e adaptação recípro ca en tre o registro mísi ;o-m ítico e a experiência p o lítica e cognitiva da violência colonial: nm cam po de significados servindo com o form a de traduzir e reconverter as experiências vividas ao mesmo tem ­ po em que é adaptado por elas na busca de um a auto-inteligibilidade. Assim, “ensinar o Toré” e “levantar aldeia” são sim ultaneam ente atos políticos, coletivos, de invenção cultural e projeção do futuro, tanto quanto atos místicos, particularizantes, de retom ada do passado. C om o M auss apontou com relação à prece, o Toré não é u m a unidade indivi­ sível, distinta dos fatos que o m anifestam ; ele é apenas o sistema deles. Ponto de convergência de inúm eros fenôm enos religiosos e políticos, o Toré assume a form a de um a representação, no sentido teatral e político do term o, mas tam bém de rito, com o atitude tom ada e ato realizado diante de coisas sagradas, e de credo, com o expressão de idéias e senti­ m entos religiosos. C om o a prece, o Toré “se dirige à divindade” e pretende influenciála, “consiste em m ovim entos materiais dos quais se esperam resultados [...] é sem pre n o fundo um instrum ento de ação. M as age exprim indo idéias, sentim entos que as palavras [ou em nosso caso, as performances] traduzem para o exterior e substantificam ” (M auss 1979). É com um qu e o T oré seja apresentado às “au to rid ad es” com a in tenção de as sensibilizar. Isso porque, na retórica Pankararu, o “governo” é sempre representado com o um a instância distante, incorpórea, que se m anifes­ ta através de enviados, eterna p ro teto ra a quem se dirigem todos os pedidos c única fonte alternativa de poder capaz de se opor à expropriação e à violência locais. O "governo” assume um aspecto de sagrado traduzido na frase, freqüentem ente repetida, “abaixo de Deus o gover-

AVJAGEM DA VOLTA

Umã

Gsripancò Kalaricó E x -bs clavos

Setas pretas: migração au descendência Setas cinzas: apoio político ou ritual

no”i3. A mensagem política dos “direitos” encontra lugar em meio à m ensagem religiosa da redenção das injustiças, da dcsproteção e da despossessão.

Considerações finais

Tendo percorrido os cam inhos abertos por esses grupos, podem os volrar à pauta proposta no início deste texto, As questões da memória e da busca dos direitos parecem ser com ponentes fundam entais da caracteri­ zação sociológica desses grupos de remanescentes emergentes. A busca dos direitos surge traduzida nos “fluxos” de hom ens, inform ações e cultura que parecem marcar os grupos indígenas da região desde registros his­ tóricos bastante antigos até o m om ento presente. Esses fluxos, a am bi­ güidade das fugas, os territórios poliétnicos, as lideranças peregrinas e as viagens em geral são expressão da “cultura cm m ovim ento” que ca­ racteriza as emergências indígenas. M ovim ento que sempre escapou à lógica de enquadram ento estatal, mesmo nos m om entos em que pare­ cia adequar-se a ele. C om o vimos, a territorialização dos grupos tem sido subvertida, seja pela circulação entre os tertitórios adm inistrados, seja pela m ultiplicação étnica de um mesmo gtupo, que assim escapa às fronteiras estabelecidas e força o Estado a realizar novas territorializações, contradizendo a sua lógica inicial. Para isso, com o vimos, “as pessoas, enquanto atores e redes de ato­ res, têm de inventar cultura, refletir sobre ela, fazer experiências com ela, recordá-la (ou arm azená-la de algum a o u tra m aneira), discuti-la, transm iti-la” (H annerz 1997: 12). Aí então voltam os ao outro p o nto da paura, a m em ória com o fulcro da identidade. A análise das meráforas associadas à árvore Pankararu cham a atenção para um m odo específico de produção e reprodução da m em ória social. Os sobrenomes, a rela­ ção contextual entre troncos velhos e pontas de rama, os enxames e a transmissão da sem ente constituem um sistema m nem ônico dinâm ico, que lança mão do passado não como lem brança de coisas que não exis­ tem mais, mas com o relação ativa com o presente. Eles form am os “quadros sociais” de um a m em ória que resisre em ser “enquadrada”. Nesse sentido, o Toré é a síntese dessa forma de funcionam ento de uma 3'’ Sobre represenrações próximas a estas, em um contexto inteiram ente distinto, ver

Oliveira (1988).

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memória étnica. Depois de ter sido apresentado sucessivamente como marca de um a suposta área cultural, expressão obrigatória da indianidade r máquina de guerra, pudem os, finalm ente, reconhecer o Toré em sua dimensão religiosa e m em orial, quando então seu significado não deri­ va apenas dos efeitos práticos ou das estratégias às quais sua realização responde, m as tam b ém de um a relação p ro fu n d a com sua pró p ria liistoricidade. Essa centraíidade da m em ória social nos leva à necessidade de um a lormulação mais clara da lacuna que separa um a leitura pragmática dc outra utilitarista das identidades étnicas. Ainda que m antendo o suposm de que as categorias são criadas para regular a ação e são significati­ vamente afetadas pela interação e não pela contem plação (Barth 1975: 17), é necessário explicar não só como e em que circunstâncias as orienta(ties de valor são confirmadas ou negadas pela experiência, mas tam bém i nino essa experiência, mesm o quando nega as orientações de valor, sem­ pre encontra um a redefinição e um a reelaboraçao que a torna cultural­ mente aceitável. Sc o Toré é encarado pelos próprios indígenas, a partir de seu aprendizado recíproco com a burocracia indigenista, com o a m elhor form a de se “levantar um a aldeia”, constituindo-se assim como parte de um a estratégia política, a ligação entre “ensinar o Toré” e “le­ vantar aldeia” é tam bém , com o vimos, mais complexa. A identidade Pankararú, que a princípio se csccnde a codas as suas pontas de rama, pode ser vista como um a “produção”, sem que para isso seja necessário negar seu registro religioso e m emorial. A idéia de uma .m roconstrução, nesses casos, não separa o Tradicional do m oderno, o laico do religioso, o prim ordial do pragmático ou mesmo, de certa for­ ma, a identidade de sna manipulação. A emergência c a renovação perm a­ nente são m ovim entos enraizados na própria religiosidade Pankararú e, .linda que pragmáticos, não podem ser vistos como simplesmente utilitários. Em bora enraizados, não podem ser considerados simplesmente prim or­ diais. A confluência entre o “regime dos Encantados” e as metáforas da emergência étn a c fruto de uma convcncionalização das estratégias e dos agentes que fortalece e expande um código de comunicação.

A ÁRVORE PANKARARÚ

<.ARLOS GUILHERME DO VALLE

Experiência e sem ântica entre os Trem em bé do C eará 1

Pretendo discutir neste artigo questões que envolvem a construção da etnicidade nas situações étnicas Tremembé. E m vez de privilegiar o estu­ do das fronteiras e das identidades étnicas, tem a corrente das pesqui­ sas interétnicas, investigo o aproveitam ento e a difusão do m esm o le­ que de categorias e de articulações sim bólicas sim ilares pelos atuais Tremembé e tam bém p o r seus oponentes ou p o r aqueles que não acre­ ditam haver diferenças étnicas locais. P uderam ser encontradas, p o ­ rém, várias singularidades ou vias de pensam ento que têm proem inência étnica. Ao discutir o cam po sem ântico da etnicidade Trem em bé, procuro encontrar sim ilaridades estruturais entre as três situações ét­ nicas, que m ostravam notáveis diferenças sociais e culturais entre si. Assim, abordo as várias form as de discurso e seu peso político desi­

1 Esre artigo é um a versão condensada de alguns capítulos de m inha dissertação de mestrado, intitulada Terra, tradição e etnicidade: os Tremembe' do Ceard, que foi defendida em julho de 1993 no PPG A S/M N /U FRJ. O tema do artigo baseia-se, sobretudo, no capítulo cinco da dissertação. A banca examinadora foi composta pelos profs. Drs. Aracy Lopes da Silva (USP), Otávio Velho (UFRJ) e João Pacheco (UFRJ). Suas sugestões e críticas foram bastante úteis para a elaboração deste texto. Ao todo, foram feitas quatro viagens ao Ceará entre 1988 e 1991. As três primeiras tiveram curta duração, alcançando no máximo dois meses. Realizei, então, um survey; pesquisa docum ental c histórica (em cartório dc Acaraú, institutos cearenses e no Arquivo Público do Estado do Ceará), além de cootatos com agentes e com os Tremembé. Em 1991. a pesquisa de campo foi de looga duração, de maio a outubro. Neste artigo uso itálico para term os nativos e recorrentes entre os Tremembé e todos os atores c grupos sociais envolvidos. Emprego “aspas” quando tento relativizar certos termos ("índio”, por exemplo) a fim de evitar qualquer reificaçáo e não confundir o leitor com m inhas categorias e as dos Tremembé.

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gual 110 cam po sem ântico da etnicidade, Além disso, quero enfocar o que p ode ser cham ado de um a experiência da etnicidade pelos T re­ m em bé, essa sim a m aneira singular, ainda que processual, não subs­ tantiva, de diferenciação étnica. As situações étnicas Trem em bé são encontradas hoje no m unicípio de Itarem a, litoral do Ceará, na região conhecida com o Vale do Acaraú, distando a 270 quilôm etros oeste de Fortaleza. O s Trem em bé habitam vários lugares desse m unicípio, mas se concenrram em crês situações distintas: a região litorânea da Almofala, que engloba um conjunto de localidades ao redor da vila hom ônim a até a m argem esquerda do rio Aracati-m irim ; a região da Varjota c Tapera na margem direita do mes­ mo rio; e as localidades vizinhas de São José e Capim-açu, tam bém co­ nhecidas atualm ente com o C órrego do João Pereira, que ficam m ais para o interior do m unicípio e distantes das outras duas situações. O s Trem em bé são razoavelmente citados em crônicas, relatos de vi­ agem e na hisroriografia "clássica” a respeito da formação histórica do Ceará. H á docum entação prim ária e de segunda mão sobre eles desde o período colonial. N o século XVÍÍI, os Trem em bé foram aldeados por jesuítas {em Tutóia no M aranhão) e por padres seculares, como no caso em quesrão, do antigo Aldeamento de Almofala, controlado pela Irm an­ dade de Nossa Senhora da Conceição. A Missão de T utóia teve um a cu rta existência, mas a de A lm ofala p erd u ro u até m eados do século XIX, girando cm torno da religiosidade que envolvia a igreja oitocentista, atualm ente tom bada pelo Patrim ônio Histórico. O A ldeam ento foi fe­ chado pelo governo provincial da mesma form a que outros no Ceará. Em 1857, suas terras foram doadas para a "residência e subsistência” dos índios (Livro dc terras da Freguesia da Barta do Acaracú, 1855-57), o q u e não im pediu que fossem sendo ocupadas por “estranhos” nas décadas seguintes2. Q u an to à língua originária dos Trem em bé, os poucos estudos exis­ tentes sustentam que esta provinha de um a família lingüística distinta (Pom peu Sobrinho 1951 e 1955, Seraine 1955, N im uendaju 1981). N ão é possível afirm ar, p orém , que os versos cantados do torém, a

2 Ver Gomes (1988) e Valle (1992) para um estudo prelim inar de fontes históricas primárias sobre osTremembé. D entre os estudos históricos sobre os Tremembé, destaco M etraux (1946), Pom peu Sobrinho (1951), Studart F° (1962 e 1963), N oro (1976) e Araújo (1981).

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Tinça “nativa” ainda m antida, sejam originários dessa língua. A tual­ mente, os Trem em bé falam o português3. Km 1992, a pesquisa populacional, prom ovida pelo G rupo Técnico K IT) da FU N A I, para identificação e delim itação da área indígena, i m onerou 2247 pessoas cm 332 famílias indígenas, som ente em parte da Almofala e na Varjota. Essa população reuniria boa parte, mas não iudos, dos Trem em bé da A lmofala e todos da Varjota e vila D ucoco, suo incluindo os do Capim -açuE

As situações étnicas Trem em bé

I I.í três situações distintas de construção da etnicidade e de mobilização étnica entre os Tremembé. Em 1991, investiguei a emergência das froniriras étnicas nas três situações e tam bém os contrastes entre elas, os diversos conflitos interétnicos e as formas de apropriação da rerra. A diferenciação étnica era produzida seja por processos faccionais, seja por acusações m útuas entre os Tremembé e pelo contraste com grupos sociais icgionais, todos envolvendo a competição por recursos naturais. Os Tremembé da Almofala se defrontam com grave processo de con­ centração fundiária. Vivem onde fica a cham ada Terra do Aldeamento, (jue dizem ter direito, apesar das levas de proprietários e posseiros que a têm ocupado nos últim os quarenta anos. M anrêm um ritual, o torém, dança nativa que consegue mobilizá-los e serve como epicentro da dife­ renciação étnica. D urante décadas, o torém vem sendo controlado e orga­ nizado por um grupo restrito de pessoas e famílias na situação de Almofala5.

’ Sobre o torém, ver Seraine (1955), SES1/INF/FUN ARTE (1976), Novo (1976) e Vallc (1993a: 334-87). É lima dança particular e não pode scr confundida cnm o toré, ritual encontrado em vários grupos indígenas do Nordeste brasileiro. 1 Em 1986, alguns Tremembé fizeram seu próprio censo, estim ulados pelos missionários e pela primeira visita do órgão tutelar. Chegaram à cifra dc 2662 pessoas. O relatório da FUNAI (1992: 26) afirma que foram contados somente os "índios” vivendo no interior da área proposta para demarcação. ' Terra do Aldeamento, Terra da Santa ou Terra dos índios são categorias territoriais que possuem significados étnico-políticos. Definem o território que teria sido doado aos índios no passado. Têm im portância na reprodução das ideologias étnicas Tremembé, inclusive no contraste entre índios e “não-índios'', sobretudo na distinção entre os de dentro e os dc fora do Aldeamento. Ver Valle (1993a: 266-329).

EXPERIÊNCIA í SEMÂNTICA ENTRE OS TREMEMBÉ DO CEARÁ

Os Tremembé da Varjota fizeram parte de um a Com unidade Eclesial de Base (CEB) e vêm se considerando também índios, pois, segundo eles, per­ tencem igualmente à Terra do Aldeamento. A princípio, o caso me pareceu peculiar. C om o uma organização pastoral-camponesa pôde se mobilizar de acordo com um perfil étnico-indígena, sobretudo depois de ter conseguido o usucapião de sua terra? Assim, não passam pelos mesmos problemas de terra que vivenciam os Tremembé da Aimofala. Em 1988, não havia ne­ nhum grupo de toremzeiros (dançarinos do torém) na Varjota. Eram poucos os sinais diacríticos ou sím bolos étnico-indígenas apresentados pelos Tremembé nessa região. Contudo, em 1991, inventaram seu próprio torém6. E m m in h a prim eira viagem, soube que havia índios Trem em bé no Capim-ctçu/São José, cuja terra estava para ser desapropriada pelo IN C R A / M1RAD e ficava distante do que se enrende por Terra do Aldeamento. Foi p o r m eio de m em bros do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itarcm a e de algumas matérias de jornais cearenses que tive as prim ei­ ras impressões da terceira situação Trem embé. Reportagens com títulos fortes cham avam atenção: "ín d io s Trem em bés não querem perder as terras” (Diário do Nordeste, 18 de julho de 1988: 13); “Posse das terras leva os Tremem bés à luta política” (Didrio do Nordeste, 24 de outubro de 1989: 18); “Tribo denuncia IN C R A em Itarem a” (O Povo, 21 de outu b ro de 1990: 14). N u n ca tin h a ocorrido tam anha repercussão na im prensa cearense com as duas outras situações Tremembé. Parti da noção de situação histórica, proposta por Oliveira (1977, 1988), que se aplica m uito bem aos estudos interétnicos, pois se define como “modelos ou esquemas de distribuição de poder entre diversos atores soci­ ais”, lidando seja com “padrões de interdependência”, seja cora processos conflituosos. Assim, não com preendo os Trem embé de m odo dualista, preferindo percebê-los em suas relações internas e tam bém com os mais variados grupos c atores sociais. A idéia de um a situação étnica deriva

6 Uso o termo Comui íade da Varjota seguindo 05 significados que delineiam um a unidade social que possui certos limites espaciais e congrega um conjunto populacional, com intrincada densidade genealógica, e que constituiu e se organizou, desde o inicio dos anos 1980, num a CEB. Trata-se de um a unidade “construída” conjuntam ente por seus membros, agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Diocese de Itapipoca, sob a forma de difusão e aproveitam ento de práticas e de uma ideologia definida, mas também pelos habitantes de outras localidades e regiões como a da Aimofala, inclusive os Tremembé de lá. Foi com um ouvir comentários de habitantes da Aimofala sobre o povo da Varjota, da Comunidade da Varjota.

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I « n t c i PETI/M useu N acional, 1 9 9 1 ,

m uito da noção elaborada por Oliveira. Ela precisa ser considerada então em um a perspectiva nada empiricista, que não a vê como unidade social isolada por meio de critérios dem ográficos e geográficos. As situações étnicas Tremembé devem ser tratadas a partir do duplo m ovim ento de definição feito pelo pesquisador e pelos próprios arores sociais. Precisei entender os recortes e as generalizações elaboradas pelos Tremembé, ten­ tando perceber as distinções internas que eles inesmos faziam. Vários agentes e grupos sociais tentavam igualmente definir ou mascarar diferen­ ças e unidades. Essas múltiplas visadas são construções culturais elabora­ das por diferentes pontos de vista, partindo do universo de relações sociais efetivas e de estruturas simbólicas e de significação específicas. Em 1988, encontrei os Tremembé interagindo com agentes missionári­ os e pesquisadores, ainda que sua presença fosse variada em cada caso. Nos últimos cinqüenta anos, pesquisadores voltados para estudos folclóri­ cos c culturais e à procura dos “remanescentes” Tremembé vêm atuando em Almofala, o que não ocorreu na Varjota ou no Capim-açu. Agentes mis­ sionários ou não, de origem institucional distinta, atuam nas duas situações há poucos anos. Esses agentes e pesquisadores se defrontaram com vários anseios, demandas e “reivindicações” dos Tremembé, que não consistiam, porém, em um projeto político mais global a dar unidade às três situações. Havia formas distintas de organização social e as ideologias étnicas, mesmo exibindo temas similares, sobretudo quanto à ocupação e controle da terra, eram construídas por meio de referenciais distintos. Assim, os Tremembé não puderam ser vistos como um grupo corporado em termos políticos e daí ter preferido tratá-los como vivendo situações étnicas distintas. A noção de grupo étnico, conform e Barth (1969: 13), seria inadequada para os Tremembé, ao menos até o período de m inha pesquisa. Desde 1991, po­ rém, fatotes políticos de sentido mais global, associados à construção de sua “indianidade” (Oliveira 1988) e à sua identificação pela FUNAI, vem sendo fundamentais para a definição mais restrita de um grupo7.

7 Seis pesquisas ou escudos foram feitos sobre ou entre osTremembé e os regionais desde os anos 1950, sem contar os inúmeros visitantes, curiosos e “turistas” culturais. Alguns dos trabalhos tinham interesse étnico e outros não. Ver Seraine (1955), Chaves (1973), Novo (1976), a equipe do .SESI/INF/FUNARTE (1976), Souza (19S3) e os trabalhos etnofotogríficos de Marcos Guilherme. Esses autores tiveram contato estreito com os habitantes da região, inclusive os Tremembé, passando longos períodos dc estadia ou fazendo visitas freqüentes, sendo o entrosamento visível em seus texcos. Depois dc mim, houve também a pesquisa do sociólogo Marcos M essederdaUFBA(1996) e a d e Gerson Oiiveirajr. (1998).

AV1AGEMDAVOITA

I )esenvolvi um a pesquisa com parativa que enfrentou a complexidaiIr das diferenças entre os Tremembé. U m a abordagem com parativa eta ,i mais apropriada para entender as trajetórias singulares das três situai.nes étnicas, tan to de organização social interna com o sobretudo no i ontrole e ocupação da terra. Parecia que a questão fundiária tin h a iclcvância destacada quando as investigava. Se, por um lado, esse fator ■onscguia articular as três situações com o um horizonte problem ático, por outro, os processos de construção e mobilização étnica me pareciun, cada um , para cada caso, idiossincráticos.

A im ofala

Aimofala dá nom e à vila e ao distrito do m unicípio de Itarem a. Designa igualm ente u m a dim ensão territorial em torno de 63 km 2 (Chaves 1973: .’3). Todos os traços, sinais c fatos presentes na situação mostravam que nao houvera ali um processo recente, nem espontâneo, nem planejado, de colonização. E m 1990, sua população, com as várias localidades agregadas, era de 5011 pessoas (SU CA M -CE) e pouco hom ogênea, exislinclo grupos sociais bem diferenciados além dos Trem em bé. Se a vila ( oncentrava boa parte da população, havia, por outro lado, um a distri­ buição de habitações por todas as localidades, A m aioria dos habitantes vivia em quintais de até dois hectares, sobretudo os que dependiam da pcsca. Os Tremembé não viviam tam bém n u m único lugar, mas espa­ lhados pelas várias localidades da situação8. Aimofala estava voltada sobretudo para a pesca e para o plantio do coqueiro. Havia articulação entre a esfera produtiva da pesca, sobretu­ do a da lagosta, com a agricultura, especialm ente a dos coqueirais. Os donos de em barcações e currais de pesca eram tam hém os principais plantadores de coqueiro em grandes propriedades. H avia extrem a dife­ renciação social entre, de um lado, um a m inoria de proprietários de em barcações e cutrais ou plantadores de coqueiro e, de o u tro , um a maioria de pescadores e agricultores. Esse quadro era recente, constitumdo-se durante um período de quarenta anos no máxim o, caracteriza-

BEm 1990, a vila possuía 1525 habitantes, que viviam em 376 residências distribuídas em poucas ruas. Os dados populacionais foram coJigidos na divisáo da SU CAM (For­ taleza, CE),

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do p o r um processo acelerado de con tro le dos fatores de produção, sobretudo a terra, p o r m eio da concentração fundiária nas m ãos de poucas famílias. Elas constituíam um grupo d om inante relativam ente hom ogêneo, com posto de pessoas que m antêm vínculos próxim os, pa­ drões de com portam ento com uns e trajetória de vida bastante similar. A m aioria não nasceu na região, tendo chegado depois da década de 19509. D uas C om unidades Eclesíais de Base (CEB) foram organizadas na situação, ainda que divergissem nos seus projetos e em sua atuação. C o n tu d o , mobilizavam pouca gente. N o passado, um a colônia de pes­ cadores tivera algum a força, mas não existia mais em 1991. H avia p o u ­ ca influência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itarem a, cujo presidente era m orado t de um a das localidades de Almofala. O mesmo acontecia com o diretório regional do Partido dos Trabalhadores. N e­ nhu m a dessas corporações tinha qualquer orientação p o r base étnica. E m 1991, a identificação étnica era m uito dissim ulada. N ão havia n en h u m isolam ento que facilitasse a pesquisa ou a circunscrição de um a unidade social definida. O s Trem em bé eram vizinhos de pessoas que não se au to -atrib u íam etnicam ente com o indígenas e que eram classificadas com o de fora. Os processos de categorização foram uns dos níveis m ais interessantes n a apreensão das relações interétnicas na situação. H avia um a fluidez relativa nesses processos e era difícil en co n trar alguém que se identificasse com o um Tremembé. Para co­ nhecer os Trem em bé foi preciso p rocurar os toremzeiros, os organiza­ dores da dança do torém . A presentado p o r eles, conheci m u ito m ais genre, pessoas com quem m an tin h am relações sociais, atadas por um feixe de significações que definem a etnicidade na situação, os que eram da parte ou da indescendênciã dos índios. Cheguei a um quadro relativam ente coeso. E ram pessoas que diziam ter nascido e se criado dentro da A lm ofala, um fator priorirário de identificação étnica. H a ­ via, porém , toremzeiros que diziam ser da parte, mas que não nasce­ ram na região e outros, poucos, que não nasceram na Alm ofala e nem

9 Ver Chaves (1973) e Souza (1983), que enfocaram as atividades econômicas desenvol­ vidas na região nos anos 1960 e 1970. H á vários tipos de pesca na região litorânea do Vale do Acaraú, inclusive em Almofala. H á a pesca de curral, de linha, de m anzuá e a lagosteira.

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i iitham parte, mas se in co tp o raram à rede organizacional centrada no torém10. O s toremzeiros e, de m odo geral, os Trem em bé da situação, não se .miculavam em atividades econômicas com uns. Fossem pescadores ou agricultores, as relações econôm icas se faziam ju n to de regionais, a yen te de fora. As diversas m odalidades de pesca eram organizadas por i ritcrios o cu p acio n ais, as d istin çõ es sociais e h ierárquicas in tern as incidindo para além da origem étnica. A situação histórica na Almofala descrevia um quadro concentrado de ocupação de terra que inviabilizava .iiividades agrícolas coletivas dos Trem embé e tam bém dos “regionais”. Além disso, havia diferenciação econôm ica intetn a entre os que se dizi.1111 ou eram considerados da parte dos índios. E n c o n tr e i g ra n d e n ú m e ro de p esso as q u e , c o n s id e ra d a s da mdescendência dos índios, tinham pouco contato com os toremzeiros. Etam pessoas q u e ta m b é m esta v a m d is ta n c ia d a s de o u tra s fo rm a s de mobilização social. Ainda assim, contavam elementos semânticos simila­ res aos toremzeiros e alguns até se auto-denom inavam índios. Todavia boa parte da população da Almofala se considerava mesmo descendente dc índio. Seus discursos, porém , m imizavam os investim entos étnicos dos toremzeiros, ainda que estabelecessem diferenciação étnica dos habitantes da situação. Acreditavam que os toremzeiros apenas im itavam os “verdadeiros” índios, os de antigamente, que já se acabaram . D iziam tam bém que seus pais e avós não eram índios, seja porque fossem de outra fam ília, seja porque não tivessem nascido e se cr. io na região. A m aioria dos habitanres da vila e da situação de Alm ofala não queria reconhecer a presença de índios. Todo discurso envolvendo diferencia­ ção étnica se adequava a contextos específicos que podiam ser positivos ou negativos. Era m u ito com um ouvir com entários positivos sobre a igreja de Almofala, construída pelos índios, ou de que eles viveram ali ant.oamente. Esses com entários descortinavam a existência de form as variadas de discurso, conotando graus distintos de referência étnica. O s descendentes de índi r formavam certa hom ogeneidade social. Em 1991, boa parte deles tinha nascido e se criado na Almofala e tencionava ascender socialmente. N ão se distinguiam dos Tremembé p o t comporta-

E0 Em 1991, entrevistei 17 pessoa» que eram ou tinham sido toremzeiros, sendo portanto um grupo pequeno de participantes. C ontudo sua rede soctaf e étnica era m uito mais ampla.

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m ento, origem ou elementos culturais, no entanto eram extrem am ente “ruidosos” quanto à rejeição da diferença étnica. Por seu turno, os toremzeiros e m uitos que se investiam em um perfil étnico chamavam os descen­ dentes de índios que não querem ser índios, por se julgarem mais ricos c ambiciosos. A diferenciação étnica ocorria por meio de averiguações inter­ nas sutis. Em term os classificatórios havia: os índios; os índios que não querem ser índios-, os que não são índios (a gente de fora) e “os que não são índios mas acham que são". Os últimos seriam, conforme os toremzeiros, os Tremembé da situação da Varjota. De certa forma, a diferenciação interna dos Tremembé entre índios e índios que não querem ser índios exibia descontinuidades sociais presentes na situação e servia tam bém para a apre­ ensão de que os índios constituíam um a minoria social à medida que gente de fora chegava, tomando suas terras. O s índios que não querem ser índios representavam, segundo os toremzeiros, aqueles que tinham incorporado valores próprios da ideologia dom inante, como ambição ou ganância. As fronteiras étnicas eram m antidas de m odo bem original na A im o­ fala. H avia processos de identificação, ainda que não fossem m uito ex­ plícitos ou conflitivos, A tensão interérnica ocorria de maneira mais indi­ reta, por meio dos fuxicos, de zom badas (a mangaçãó) ou ameaças veladas, nunca diretam ente num confronto cara-a-cara. Q uando isso acontecia, era algo extremo. Em 1991, já se verificava um aum ento dos aspectos con flitiv o s m ais d ireto s entre os T rem em bé, os tegíonais e os que minimizavam a distinção étnica. D e m odo geral, os Tremembé, sobretu­ do os toremzeiros, não revidavam nenhum a mangaçãó ou acusação mais direta, ainda que todos difundissem fuxicos desabonando seus oponentes. A auto-denom inaçao índio era pouco com um em um a esfera pública. Era norm al, porém , ouvir pessoas se ideutificando como descendentes de índ, , sem investir num perfil étnico. Poucos etam tam bém os investimen­ tos étnicos públicos por parte dos Tremem bé. Eram mais contextuais, sobretudo restritos a esferas privadas e m uito articulados às interações com pesquisadores e m issionários. A perform ance do torém deve ser entendida como um a form a ritual c pública de diferenciação étnica, que se destacou nos anos 1970. C ontudo, podia provocar formas abertas de estigmatização ou táticas de “domes :ação” do ritual11. Havia tam bém

11 D esde os anos 1970, os toremzeiros remiam apresentar-se publicamen.ce na Aimofala e mesmo ensaiar nos quintais de seus grupos domésticos. Certa vez, quando a FU N A RTE fazia um estudo folclórico do torém, o grupo regular dos toremzeiros foi insultado e eles foram impedidos de ensaiar, tam anha era a confusão que m uitos dc seus vizinhos

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originalidade na politização da memória, dos discursos e de todo o cam­ po semântico no qual sc construía ou minimizava a etnicidade. Desse modo, as fronteiras étnicas podiam emergir bem conflitivas na Almofala. Seus habitantes passaram a se portar de form a mais acintosa, quando os Trem em bé passaram a reivindicar o direito à Terra do Aldeamento de modo mais político e público. Esses posicionamentos se evidenciavam de modo antagônico, a minimização étnica conseguindo despontar publica­ m ente e a afirm ação étnica aparecendo em níveis m ais privados. O s modos de diferenciação descrevem o movimento e o caráter situacional das fronteiras étnicas (Barth 1969). A organização étnico-política dos Tremembé de Almofala tam bém era difícil. O s toremzeiros tinham sérios problemas para dar continuidade a seus investimentos étnicos. Com o era no torêm que os Tremembé subli­ nhavam publicam ente sua diferenciação, os toremzeiros tentavam atrair seus parentes mais diretos para sua organização ritual, especialmente os íilhos e netos. Havia, porém, razoável relutância da parre deles. N o entan­ to, a mobilização do torém era a que vinha se m antendo há mais tem po e num a dinâm ica mais política, ainda que tal aspecto seja mais recente e decorrente das relações dos toremzeiros com os missionários e, mais tarde, com a FU N A I. A figura política do cacique, aliás, foi tam bém um a desco­ berta dos anos 1980. Além da dança, conduziram poucas ourras táticas de mobilização social e política. O correram protestos individuais contra a ocupação da terra, mas foram atitudes isoladas. Pata completar, a maioria das pessoas que se identificava positivamente como sendo da parte ou da indescendênáa dos índios se colocava norm alm ente à distância da mobilização étnica do torém. N ão queriam participar da dança, o que impedia que unia massa populacional mais consistente pudesse ser vista como unidade coesa e com finalidades políticas mais definidas. Por seu lado, as mobiliza­ ções num perfil corporativo ou de classe tinham igualmente bastante difi­ culdade de se consolidar e mal havia um m ovimento social ou político de pescadores ou trabalhadores rurais na situação de Almofala12.

fizeram. Em 1991,0s organizadores da Festa da Santa padroeira de Almofala decidiram que o torém seria apresentado por um grupo que nunca o tinha dançado, dispostos que estavam em minimizar o valor cultural e étnico da dança. O torém era apresentado pelos Tremembé sobretudo em festas c manifestações cívicas de outros m unicípios da região, sendo visto como um evento folclórico. IJ Um a discussão sobre o torém valeria outro artigo (Vallc 1993). A dança estava esquecida depois da m orte dos antigos mestres nos anos 1960. Em 1975, a pesquisa da FU NARTE

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Foi p o r volta de 1986 que missionários passaram a atuar em Almofala. Seus prim eiros contatos foram com os toremzeiros, estim ulando-os em suas condições de organização e mobilização. C om a dança, os Trem em bé toremzeiros vinham reproduzindo sinais diacríticos, in stru m en to s de diferenciação étnica, mas não tinham apreensão dos efeitos políticos da sua organização, nem dim ensionavam a força da construção de um a iden tid ad e “indígena” que pudesse ter a positividade necessária para alcançar certas reivindicações políticas. Sem qualquer mobilização con­ sistente, não tinham n enhum projeto político definido. A prática e a ideologia m issionária deram esteio à consolidação dos “interesses” co­ letivos dos Trem em bé. A arena indigenista tam bém se forjava no Ceará desde os prim eiros anos da década de 1980 com o caso Tapeba (Barretto F° 1992). O s Tremem bé conseguiram então, m ediados pelos missioná­ rios, que um a equipe da F U N A I visitasse as situações de Alm ofala e V arjota13. Se os m issionários encontraram receptividade entre os toremzeiros, havia bastante dificuldade de suas práticas alcançarem um nível razoá­ vel de norm atização. O trabalho missionário esbarrava na própria orga­ nização do torém, que já se conso lid ara em seu perfil pú b lico . O s toremzeiros tinham expectativas im ediatas em suas reivindicações, náo se adequando aos referenciais e padrões de organização “com unitários” dos agentes, que valorizavam reuniões, atividades coletivas (mutirões) e reflexividade política. Por seu tu rn o , os m issionários que viam suas práticas e referenciais serem apreendidos e incorporados pelos Trem em bé

produziu sua reorganização e alçou-a como vestígio folclórico regional. Um dos Tremembé foi escolhido para servir dc intermediário com autoridades e pesquisadores. Era o chama­ do capitão dos índios, reatuaiizando uma figura que tinha desaparecido na década de 1950 e que já não tinha papel político m uito definido ou mesmo autoridade. Esse novo capitão ficava responsável pelos contatos e pelos preparativos e os materiais da dança. Esse termo foi m antido até m eados dos anos 1980, quando os m issionários passaram a atuar entre os toremzeiros. O capitão participou de um Encontro de índios do Nordeste e conheceu o term o cacique, passando a usá-lo depois disso. Esse é apenas um dos fatos que caracte­ rizam a politização do torém a partir da segunda metade dos anos 1980. 13 Foi em 1986, quando a FU NAI identificava a área indígena Tapeba, que sc teve a prim eira documentação oficial da agência sobre os Tremembé. Percebe-se que a prática dos missionários trouxe consigo a dimensão política, anteriorm ente m ínim a na diferen­ ciação étnica dos Tremembé de Almofala. Primeiro, eles faziam parte do C IM I, mas se desligaram e criaram sua própria entidade, a Missão Tremembé. Ver Valle (1993b).

A VIAGEM DA VOLTA

d.i Comunidade da Varjota, situação sem nenhum a tradição étnica, não i onseguiam am pliar seu projeto de ação na Aimofala. D e certo m odo, •in serem incorporados na Varjota, despertavam críticas e oposição dos licm em bé toremzeiros que desconfiavam da origem étnica dos m em ­ bros da Comunidade. Todavia, desde 1990, os missionários vêm conse­ guindo superar as dificuldades causadas pela m obilização étnica dos Tremembé em torno do torém. Foi criado um grupo de artesanato “in­ dígena”, com posto só por mulheres, na praia de Aimofala. O rganizou■ic um novo grupo de torém no S aquinho/Lam eirão, articulando pessoas que não m antêm relações com os Trem em bé toremzeiros. Lideranças lêm sido trabalhadas pelo incentivo de viagens a encontros indígenas. Fssas alternativas vêm sendo priorizadas pelos m issionários e têm ali .ínçado resultados razoáveis de m obilização e organização política, porém sem força suficiente para com pensar o antagonism o dos grupos dom inantes e dos descendentes de índios.

A com unidade da Varjota

A situação da V arjota se aproxim a daquela de Aimofala, com a qual m antém laços históricos e políticos. C o n tu d o , singulariza-se p o r sua organização social in tern a e pelas condições de acesso e controle da (erra, O que cham o de Varjota, apoiado nas concepções de seus habil antes, com preende as localidades do A m aro, do C órrego Preto e da Varjota propriam ente dita, perfazendo um a área de quatrocentos hecta­ res, que eles dizem pertencer à Terra do Aldeamento. O s habitantes da Varjota são sobretudo agricultores de cultivos tem porários (m andioca, feijão e m ilho). Em 1991, poucas pessoas voltavam -se para as ativi­ dades pesqueiras marítimas, tal como na A imofala1'1. Até a década de 1970, seus habitantes e os da região da Tapera m anlinham relações, que podem ser consideradas com o de clientela, com os proprietários de fazendas vizinhas, que seriam um a das divisas da Terra do Aldeamento. C onrrolavam , porém , a terra onde habitavam e

MAs três localidades fazem parte de uma região mais ampla cham ada Tapera ou Taperinha, que engl abava as antigas Fazendas Patos e São Gabriel, a leste e a norte, respcct ivamen te, como seus limites, no passado. Em setembro de 1991. a Varjora tinha 377 habitantes em 59 grupos domésticos, conform e censo populacional realizado por mim.

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tinham cultivos, N o fim dos anos 1970, várias glebas das fazendas fo­ ram vendidas a em presas agroindustriais, que p lantam coqueiros em vastas extensões de terra, com o a D ucoco A grícola S.A. H ouve um processo conflitivo quanto ao controle das terras da Tapera ocupadas p o r dezenas de grupos domésticos. A m aioria das famílias teve que se retirar depois do estabelecim ento das empresas, algumas perm auecendo num a vila construída pela D ucoco. A chegada das firmas coincidiu com o processo mais acelerado de concentração de terra na região da A lm ofala15. Em 1982, a Ducoco voltou a pressionar, mas agora contra os habitantes da Varjota. Buscando m ediadores e aliados, seus líderes procuraram agentes da Pastoral da Terra da diocese mais próxim a, que passaram a lhes d ar apoio, inclusive judicial. A C P T a tu o u por um processo de norm atização específico, seja pelas relações m antidas, os padrões de organização social que foram incorporados pelos habitantes da Varjota e tam bém p o t um a ideologia “pastoral-cam ponesa” que ti­ nha ressonância mesmo em 1991. A formação da Comunidade da Va ?ta foi se realizando ao mesmo tem po em que ocorria o próprio conflito com a D ucoco. À m edida que um “inim igo” com um pressionava e agia por atos de intim idação, os habitantes da Varjota mais se fortaleciam e se organizavam em torno da Comunidade. Desde então, o sentido in­ corporado à im agem da C om unidade passou a ter eficácia n a autorcferência ou atribuição de seus m em bros, para fora e para dentro. Em vez de buscarem a desapropriação da Varjota, um a ação de usucapião foi levada adiante conrra a em presa Ducoco em 1984. C o n tu d o os agen­ tes da C P T e da esfera judicial ficaram surpreendidos pela referencia consrante ao Aldeamento dos fnct s por parte dos habitantes da Varjota e suas testem unhas ao longo do processo. Ficando a ação sub júdice, a Varjota passou a form ar um enclave, cercado, por um lado, pelo rio e, por outro, pelos coqueirais da firm a16.

15 Desde o fim dos anos 1970, algumas empresas passaram a atuar no m unicípio de Itarema, sobretudo no distrito onde ficam as situações de Almofala e Varjota (Valíe 1993b). 16 O conflito e a questão fundiária da Comunidade da. Varjota foi o primeiro a se im por em todo o recém-criado m unicípio de Itarema, desmembrado do m unicípio de Acaraú em 1984. Teve repercussão regional, aumentando o prestígio da equipe da C PT esuas idéias e práticas 'com unitárias”, A Varjota acabou por sc prestar corno a comunidade-m odelo para as que vieram a sc constituir. Mobilizações camponesas sc iniciaram. À C P T de Itapipoca logo conseguiu que as C om unidades fossem organizadas o bastante para que

A VIAGEM DAVOtTA

O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itarem a foi criado cm 1986, congregando agricultores, sobretudo das comunidades. Participaram tam ­ bém da form ação do d ire tó rio regional do PT. A in d a que as duas corporações fossem compostas pela m aioria dos Tremembé da Com uni­ dade da Varjota, hom ens e mulheres, havia pouca articulação entre as reivindicações étnicas e as cam ponesas. Se ela existia na situação da Varjota, isto se deveu a certos fatores: a inserção do seu território no mrerior de outro bem maior, o da Terra da Santa/Terra do Aldeamento Ilevando-se em co n ta os aspectos ideológicos, sim bólicos e culturais que operam na definição do território étnico) e não m enos aos efeitos da prática e norm atização m issionária iniciadas em m eados da década dc 1980. São fatores organizacionais que explicam a omissão do Sindi­ cato e do P T quanto às reivindicações étnicas dos seus filiados da Co­ munidade da Varjota)7. Era 1989, os grupos dom ésticos eram en contrados dispersos pela Varjota. Cada um tinha um quinral individualizado, lugar para cultivos básicos. C o n tu d o vários dividiam o m esm o cercado, providos interna­ mente por balízas e formas de delimitação particulares. Alguns chega­ vam a reu n ir de oito a dez fam ílias, a m aio ria aparentada. Por seu turno, se o cercado delimitava os terrenos de um conjunto dc grupos dom ésticos, o que ficava de fora era considerado de uso com um . Tudo isso contrastav a com o padrão de ocupação d a terra que existia na Almofala.

diversos pedidos de desapropriação fossem feitos ao IN CRA -M IRA D para algumas das fazendas sem aproveitamento econômico da região. As mobilizações sociais fomentadas em torno das CEBs não causaram, porém, o mesmo impacto na Almofala. Dc certo modo, o sucesso das mobilizações camponesas ocorridas no m unicípio de Itarema acon­ teceu num a época que as CEBs, as Pastorais da Tetra e as organizações de trabalhadores rurais alcançaram uma enorme força política no Ceará. N ão se tratava de um fenômeno local, mas sim de nível regional, estadual e nacional, havendo um a constante reivindica­ ção da Reforma Agrária, 17 O primeiro prcsidencc do Sindicato cra originário de uma família da Varjota e se atribuía como índio ou Tremembé. M orava no Lameirão, uma das localidades da Almofala. C he­ gou a participar de vários encontros indígenas, representando os Tremembé. C ontudo, não misturava os investimentos políticos étnicos com os dos trabalhadores rurais. Usava, porem , contcxrualmcntc um discurso que articulava os dois referenciais (ver Oliveira, 1988, sobre a idéia dc pluralidade de referenciais). Todos os fatores organizacionais do diretório do PT frisavam também a condição trabalhadora dc seus filiados, longe de qualquer especificidade, sobretudo a de suporte étnico. Ver Valle (1993a).

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Os laços de parentesco, afinidade e com padrio eram difusos e im p u ­ n h am um a feição coesa à população. A m áxim a tudo aqui é de uma mesma fa m ília costum ava ser m uito ouvida. U m pequeno núm ero de famílias conseguiu se entrelaçar no alcance de oito gerações. As rela­ ções de com padrio fortaleciam ainda mais os laços entre os m em bros da C om unidade, perm itin d o que vínculos de am izade ou vizinhança fossem aproxim ados. A coesão interna é outro aspecto que constrasta com os Trem em bé na A im ofala18. C o n fo rm e os m em bros da C om unidade, seus antepassados chega­ ram na Varjota e na Tapera e ocuparam originariam ente o lugar, que estaria incluído no território da Terra do Aldeamento. Eles teriam m igra­ do de outra região, mas algumas das famílias atuais seriam diretam ente da indescendência dos índios de Aimofala. Esses dois fatores (o parentes­ co e o espaço) são im p o rtan tes na definição atual da etnicidade na situação. Por outro lado, n lo foi com um encontrar os Trem em bé da Varjora se au to-atribuindo com o índios o u Tremembés. Só algumas lide­ ranças procediam assim, sobretudo quando estavam em contextos de diferenciação étnica. Portanto, nesse aspecto distinguiam -se pouco dos T rem em bé de Aimofala. C o n tu d o a m aioria das pessoas dem onstrava incom preensão ou falta de definição quanto à um a identidade étnica mais precisa. Até 1990, não havia tam bém a m anutenção da dança do torém na situação. N o entanto, boa parte dos m em bros da Comunidade conhecia a sem ântica da etnicidade Trem em bé e dela se serviam para in tetp retarém sua p ró p ria história, versões dc sua origem e indescen­ dência, ou m esm o explicarem características culturais e com portam entais de seus com panheiros. O processo social de se identificarem como índios se constituiu de­ pois da presença m issionária iniciada em 1986. O s m issionários vêrn estim ulando a diferenciação étnica, conseguindo estabelecer um a fran­ ca no rm atização de suas práticas, fato que não ac o n teceu e n tte os Trem em bé toremzeiros de Aimofala. O s missionários conseguiram que as m ulheres da Varjota organizassem atividades culturais de perfil étni­ co, criassem sinais diacríticos com o artesanato "indígena”, c até inven-

18 Havia conflitos internos e cheguei mesmo a presenciar o que foi considerada um a das maiores crises da Comunidade, envolvendo o controle dos recursos naturais, sobretudo um a área do rio Aracati-m irim cham ada de alagamar. C ontudo foram feitas várias reuniões em prol da união.

A VIAGEM DA VOLTA

i.isscm o torém da comunidade, cuja organização era basicam ente femi­ nina e jovem , um a das várias características que co n trastam com a dança m antida tradicionalm ente na Almofala. Até mesmo os líderes da iinnunidade explicaram -m e que vieram a se reconhecer com o índios depois do início da prática m issionária19. As relações dos Trem em bé de Alm ofala, sobretudo os toremzeiros, i nin os Trem em bé da Varjota não eram boas. A situação dos Tremembé ■l.i Comunidade contrastava m uito com a dos habitantes das localidades de Almofala, especialm ente depois da ação de usucapião. O processo de concentração da terra foi barrado na Varjota, m esm o considerando .is ameaças perm anentes da empresa D ucoco. H avia tam bém um a vida social relativam ente au tô n o m a, sem a m esm a gravidade de conflito m tcrétnico com o na Almofala. Eram , porém , os Trem em bé dessa situ­ ação que cham avam os da Varjota de “os que não são índios mas acham que sao”, além de os acusarem de estar co n tro lan d o ilegitim am ente um a faixa da Terra do Aldeamento. A rgum entavam , inclusive, que seus pais e avós não tinham nascido e se criado no lugar e que todos tinham vindo de fora, a mesma acusação que faziam contra seus oponentes na Almofala. A origem “indígena” era contestada porque dependia do nas­ cim ento no território étnico, usando tam bém um fator espacial na dife­ renciação e na construção da etnicidade, tal com o os h ab itantes da Varjota. As fronteiras étnicas eram assinaladas m uito m ais por meio das acusações dos Trem em bé de AJmofala do que mesmo por conflitos entre grupos sociais de origem distinta. T anto os Trem em bé de Almofala quanto os da Comunidade da Varjota adm itiam serem da parte dos índios de Almofala ou da Terra do Aldeamento. C on tu d o , viam-se como dife­ rentes entre si. A prática m issionária teve papel im portante na m anu-

Paradoxalmente, os missionários do C IM I no Ceará foram convidados por m em bros da C P T para conhecerem o caso da Varjota. Os dois ripos de agente passaram a atuar paralelamente, o que não impediu a competição entre as formas distintas de normatização na Comunidedc, mesmo se o discurso de ambos frisasse a im portância da união, da organização com unitária e de reuniões, por exemplo. O s m issionários tinham a vanta­ gem de poderem atuar na Almofala com os outros Tremembé, o que náo era possível com a CPT, seja por fatores administrativos, pois a região náo ficava na esfeta da diocese de Itapipoca, seja porque passaram a ser pressionados violentamente, inclusive com ameaças de m orte, por parte de proprietários de terra de Itarema, que viam suas terras sendo desapropriadas pelo 1NCRA-MIRAD. As práticas dos agentes da C P T se reduziram m uito desde o final dos anos 3980.

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tenção de tais fronteiras. Q uando passaram a estim ular a mobilização étnica da Comunidade da Varjota, os Trem em bé de A lmofala sentiram se preteridos, sobretudo alegando que os outro s tin h am controle da terra onde viviam sem terem o m esmo direito. Em um período bem recente, os Trem em bé da Comunidade da Varjota passaram a aceitar a interm ediação do caa ue de Almofala em decor­ rência sobretudo dos arranjos políricos pretendidos pelos missionários. N ão há autoridade nessa função, vista aliás com m uita desconfiança. A interm ediação ficava restrita e contextualizada em níveis e eventos extra-locais. Assim, a “unidade” étnico-política Trem em bé, buscada pela ação m issionária, era bastante frágil e artificiosa na esfera local. N a trajetória histórica dos habitantes da Varjota, dois referenciais serviram com o alternativas para sna m obilização social: a organização em C om unidade com o trabalhadores rurais e os investim entos étnicos com o índios Tremembé. Tais investim entos derivaram da convergência entre a norm atização missionária e referenciais étnicos que tinham ao seu alcance e puderam scr atualizados: a sem ântica da etnicidade. Eles não se restringiram aos vínculos e referenciais da CPT, as relações com as outras comunidades da região, a participação em entidades com o o Sindicato e o PT, voltados a m obilizações cam ponesas. Por m eio de seus investim entos, os Trem em bé da Varjota procuravam averiguar as possibilidades de mobilização étnica e da invenção de formas culturais de roupagem “indígena”. Nesse sentido, a situação da Varjota m ostrou que a construção da etnicidade indígena podia se dar paralelam ente à mobilização camponesa. Além disso, essa construção m ostrava singula­ ridades de sentido organizacional e ideológico, que os diferenciava dos outros Trem em bé, com o os da Almofala e do Capim-açu.

O Capim -açu/São José/Córrego do João Pereira

As localidades do São José e C apim -açu ficam a 18 km da cidade de Itarem a, longe da A lm ofala e da Varjota. Em 1991, com punham 1452 ha desapropriados pelo IN C R A /M IR A D (1988), destinados a 45 cadas­ trados o u assentados. Perm ite aproveitam ento agrícola e pastoril, desta­ cando-se de outros ecossistemas da região. M atas, capoeiras, terrenos de vazante, córregos, serrotes e cajueitais serviam para atividades eco­ nôm icas variadas. A situação ficava m uito distante dos limites da Terra do Aldeamento e seus habitantes cinham pouquíssim a, se alguma, interação

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A VIAGEM DA VO LTA

s i k ial com os Trem em bé de Aimofala e da Varjota, ao m enos por volta d.i década de 198020. De acordo com os relatos dos atuais habitantes, a história do Capm i-açu pode ser resum ida em três períodos d istintos. O prim eiro, iniciado nos três oito (1888), seria a chegada da família Suzano em um icnário inóspito e desabitado. G rande parte dos atuais assentados coni ordava que os antigos Suzano eram da parte dos índios de Aimofala, lugitivos da seca que acharam o lugar. A segunda fase se inicia por volta da década de 1920, quando chegou um im igrante que pediu aos Suzano para abrir um a cacim ba d ’água para seu gado. Foi quando se iniciou o tempo dos patrões, que perdurou até o ano da desapropriação. As antigas l.imílias passaram a ser moradoras das terras da fazenda São José, o que gerou um a série de obrigações c im pedim entos, além de novas regras, ijiie definiam o que sc entende p o r um sistema de patronagem 21. Vários conflitos se desenrolaram nos sessenta anos de controle das icrras p o r p arte dos fazendeiros. M uitos m oradores foram expulsos, mesmo alguns dos Suzano. O conflito de m aior gravidade ocorreu com ,i família Teixeira, que se estabeleceu no C apim -açu em 1954. Por não pagarem renda e nem trabalharem para o patrão, iniciaram -se ações i ontra eles. O caso chegou a justiça nos anos 1960 e os Teixeira foram despejados duas vezes seguidas22.

w A imissão de posse foi em 1989. Antes, a terra fàzia parte do imóvel rural São José, que pertencia à família Moura, sendo incluído na categoria de latifúndio por exploração na época da desapropriação. A paisagem era bem distinta de um a região costeira, com morros, solo avermelhado e uma vegetação de mato aitoegtvsso. Em julho de 1991, a população era dc 283 pessoas em cinqüenta grupos domésticos, conforme censo feito por mim. 11 A relação patrão-morador se sustenta por uma série de práticas e valores cuja positividade emana da ordenação hierárquica de atores sociais num sistema dc relações informais comumente chamado de patronagem (Pitt Rivers 1971, Silverman 1977). O patrão é o dono da terra na qual se dá o direito a moradores de dela poderem usufiuir economicamente, contanto que um leque de obrigações seja realizado. Na fazenda São José era permitido que se plantassem as roças (mandioca, feijão e milho) de onde se subtraía o pagamento anual da renda da terra. A produção de íãrinha dependia do aviamento, da casa de farinha do patrão, o que correspondia ao pagamento de quarenta a cinqüenta litros dc farinha por cada arranca de mandioca. Os moradores trabalhavam para o patrão dois dias de serviço nas suas roças. O serviço era pago e, às vezes, ultrapassava o regime costumeiro dos dois dias de acordo com as necessidades do patrão. Para esse tipo de sistema, ver Palmeira (1977) e Barreira (1992). n O caso Teixeira é notável como conflito rural, pois ocorreu oos anos 1960 c envolveu mortes, violências, capangas, ações judiciais até 1967, data do últim o despejo. Seu

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N a década de 1980, a positividade do dom ínio dos patrões com eçou a ser contestada. Algumas famílias deixaram de pagar a renda, o que gerou um am biente conflitivo, com queim a de roçados, destruição de casas de farinha e ameaças de capangas, tal com o no passado. U m dos líderes, Patriarca, procurou agências capazes de ajudá-lo, com o o IN CRA , em Fortaleza, em um a época em que os direitos dos trabalhadores ru ­ rais estavam sendo conquistados. Pediram apoio tam bém ao recémcriado Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itarema, cujo presidente era o riundo da Varjota e pertencia às Comunidades. R apidam ente, em janeiro de 1987, as terras do C ap im -açu foram desapropriadas pelo IN C R A e, logo depois, boa parte da fazenda São José. C om a desapro­ priação, houve a reintegração de seis grupos dom ésticos da fam ília Teixeira, que volraram a ocupar a faixa dc terra repleta de cajueirais etn que tinham vivido no passado, vizinha ao quintal de Patriarca23. D en tre os cadastrados, havia um a densa tede de parentesco ligando as fam ílias Suzano e Santos, que viviam nas localidades há gerações. A lém deles, encontravam -se as famílias Teixeira e algumas outras, for­ madas p o r antigos moradores da fazenda São José, inclusive vários va­ queiros e tam bém m uitos capangas, a caboclada do antigo patrão. Nesse sentido, o cadastram ento não levou em consideração as diferenças po­ líticas existentes. A ntigos moradores e vaqueiros foram assentados sem que suas trajetórias fossem avaliadas, o que provocou divergências en­ tre os cadastrados. Assim, encontravam -se os antigos perseguidores dos Suzano e dos Teixeira, todos juntos num a unidade sociopolítica artifici­ al, forjada p o r m ecanism os políticos externos24. Duas versões eram com um ente usadas para explicar a desapropria­ ção do C apim -açu. U m a delas, difundida por Patriarca, eta que a terra tinha sido liberta pelos direitos dos índios. A outra sublinhava a gravida­ de do conflito social entre moradores e patrões. Era a versão dos Teixeira, mas tam bém a do IN C R A e dos dem ais agentes - técnicos rurais ou

advogado era um a das poucas figuras que defendiam os direitos dos camponeses naquela década, sendo conhecido por sua participação em oucros conflitos agrários. Vet Barreira (1992) e Valle (í 993a e 1993b). 23 O apelido Patriarca não designa um respeito por parentesco ou tradição, Ele recebeu o apelido sim plesm ente porque nasceu no dia de São José, o Patriarca. 24 Os Suzano e os Santos formavam 19 e 15 grupos domésticos, respectivamente. Os Teixeira com punham q uatro grupos e havia mais outras 12 famílias sem m aior representatividade política. Desde o período do assentamento, mais gtupos se formaram.

A VIAGEM DA V O ITA

membros da C P T e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais —, sem qual­ quer referencia étnica. D c m odo geral, os cadastrados ficavam incertos quanto aos m otivos reais que levaram à desapropriação: podia ser por ,,ntsa dos índios o u devido ao conflito. Todavia os fatos que envolvem a . iinstrução de etnicidade e a em ergência de fronteiras étnicas giravam em torno de Patriarca, que era a pessoa que m ais relevava a origem éi nica, dizendo-se da indescendência dos índios de Almofala, e sobres­ saía, frente aos dem ais habitantes do lugar, por identificar-sc com o índio. D o mesmo m odo, considerava a m aioria dos assentados das fam í­ lias Suzano e Santos seus parentes afins, com o índios, divulgando para agências, órgãos adm inistrativos, empresas e veículos de com unicação dc massa. D ispersava, p o rta n to , elem entos que caracterizavam a se­ m ântica da etnicidade, ao contrário da m aioria dos habitantes do lugar, mesmo os Suzano. N ão eram m uitas pessoas, porém , que acom panha­ vam Patriarca na atribuição e uos investim entos étnicos, aqueles com vínculos mais próxim os de parentesco, princip alm ente alguns sobri­ nhos, que chegavam a se dizer índios, ainda que dependendo dos con­ textos, sobretudo na frente dc agentes25. Impasses interétnicos se destacaram com o início das divergências entre Patriarca e os Teixeira. O prim eiro negava a origem étnica da lamflia p o r não ter nascido e se criado n o São Jo sé/C ap im -açu , não tendo parte ou indescendência de índio. Estava em jogo a com petição por recursos naturais, a mata, a terra, os cajueiros, o terreno de vazante, iodos acessíveis e ocupáveis depois da desapropriação, se não fosse o reassentam ento dos Teixeira nas vizinhanças do grupo dom éstico de Patriarca. O IN C R A teve um papel decisivo à m edida que os reassentou e, tam bém , cadastrou praticam ente todos antigos moradores do fazen­ deiro. A interferência adm inistrativa do órgão teve efeitos políticos, u/ctando a liderança de Patriarca. A questão da origem étnica, de ser índio e “não-índio”, se elevou a um patam ar inexistente m esm o no tem ­ po dos patrões, já que se tratava de um a disputa entre pessoas sem ne­

25 O cadastram ento feito pelo INCRA -M IRAD não satisfez m uitos dos assentados. Em L991 ,a agência não tinha realizado um processo de assentamento consistente. A atuação da EMATERCE (Empresa dc AssistênciaTécnica e Extensão Rural do Ceará) foi iniciada cm 1987. C ontudo seus técnicos suspenderam a assistência três anos depois, afetados pelos con flitos na situação. O s contatos com o Sindicato perm itiram tam bém o acesso à CPT, que esperava atuar como nas Comunidades, formando uma outra nova. Suas tenta­ tivas foram mal sucedidas.

EXPERIÊNCIA E SEMÂNTICA ENTRE OS TREMEMBÉ DO CEARÁ

nhum contraste hierárquico, os assentados. Antes, o antagonism o entre moradores não se pautava pelo fator étnico. Foi Patriarca quem colocou os direitos dos índios em evidência, criando tal alternativa ideológica no horixonte da desapropriação. Vale destacar que o fator étnico não foi “invenção” de um a pessoa sozinha, já que os vínculos étnicos eram calculados por meio da reconstrução do passado feita por algumas fa­ mílias, o que os atualizava em um a ordem ideológica. C om o reação à prática a à ideologia fundiária do IN C R A , que rele­ vava o conflito no campo e a figura política dos trabalhadores rurais, com a qual os Teixeira eram identificados, Patriarca acabou por conse­ guir o apoio de outra agência, a Comissão dos D ireitos H um anos do Piram bu, que aceitava todas suas justificativas e acusações ctnicas, não só fortalecendo internam ente sua liderança, com o tam bém constituin­ do um cam po de atuação local. O apoio da “C om issão” foi decisivo, conferindo a Patriarca força política diante dos Teixeira. Am bos agên­ cia e líder Trem embé passaram a apelar para a interferência da FU N A I a fim de m udar o caráter fundiário da terra desapropriada para outro, o de terra indígena. O estado das coisas era renso o bastante para que dois grupos dom ésticos dos Teixeira partissem , ficando então só os quatro outros. Nesse meio tem po, os agentes da Missão Tremembé, já atuan­ do na V arjota e na A lm ofala, tentaram iniciar seu trabalho na nova situação, esperando criar um acordo entre Patriarca, seus com panhei­ ros e os Teixeira, mas se defrontaram com as práticas da “Comissão do Piram bu”, que os viam com o concorrentes26. N a época da desapropriação, não havia a formação de facções como encontrei em 1991. O fenôm eno social do faccionalismo tem a capaci-

16A Comissão dos Direitos H um anos do Pirambu era um a entidade sediada em Fortaleza, voltada para projetos assistenciais na favela do Pirambu. Sua atuação como agencia “missionária”, se podemos assim definir sua prática na situação do Capim-açu, era m uito frágil e extremamente polêmica. Uma pessoa ficou responsável pelo auxílio aos Tremembé do lugar e ao Patriarca. Sem qualquer experiência missionária previa, ela tinha uma trajetória ligada som ente à favela, T inha sérios problemas de subsistência e o “trabalho” no Capim -açu era uma fonte regular de recursos. Por oucro lado, a Comissão rinha em seu sta ffrepresentantes da '‘inteligcntzia” cearense que conseguiam mobilizar recursos econôm icos e políticos que puderam ser favoráveis ao Patriarca, sobretudo quando ele passou a questionar os projetos e a ideologia “agrária” do INCRA. Agentes da Missão Tremembé e da C PT de Itapipoca questionaram juntos a prática da Comissão, mas não conseguiram se afirmar de forma consolidada na situação.

AVIACEM DA VO LTA


1 Patriarca acabou por sc envolver em fatos políricos, alianças e confrontos, o que lhe deixou num a posição de isolamento interno, com pouca chance de reversão no quadro político local e, do mesmo m odo, circunscrevendo a mobilização étnica. Em 1991, os investimentos étnicos eram minoritários.

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sapropriação e a atuação do IN CRA ; o de trabalhador rural, seguindo a orientação da C P T e do Sindicato; ou o de índio Tremembé que foi investido, sobretudo, na liderança do Patriarca, pela prática da “C o ­ missão" ou da ação virtual da FU N A I. O investim ento étnico se reali­ zou no percurso de várias formações faccionais, o que afetava sua am ­ plitude, m obilizando pessoas em flutuações de alros e baixos, mas sem­ pre sendo singularizado pela ostensiva atuação do Patriarca, Era por meio dele e de suas articulações que se explicitavam fronteiras étnicas e se dispersava a sem ântica da etnicidade de m aneira sem pre afirmativa. N os conflitos faccionais havia a confrontação de ideologias distin­ tas, um a delas sublinhando a diferenciação interna dos cadastrados por sua origem étnica, fam iliar e de nascim ento. A o u tra privilegiava os vínculos possíveis de serem construídos pela convivência num a comuni­ dade de trabalhadores rurais cadastrados, na qual o faror étnico seria m inim izado diante da capacidade de organização com um , estim ulada pelo IN C R A . C o n tu d o elem entos e categorias semânticas podiam ser usadas p o r m em bros de grupos rivais, os aliados de Patriarca ou os Teixeira. Podiam falar da comunidade e da necessidade de seus m em ­ bros estarem unidos. Se usavam os mesmos term os, os sentidos e p ro ­ pósitos eram diferentes. Além disso, os Teixeira tam bém sabiam e con­ tavam dos índios, tal qual seus rivais que se identificavam como índios e pouco distinto, por exemplo, do m odo em pregado pelos Tremembé de Almofala. N o entanto, acreditavam que os índios tinham vivido no pas­ sado e que hoje só restava a indescendência, um a parte mais nova. N es­ sas colocações e posicionam entos, notava-se um a outra perspectiva ide­ ológica em que a etnicidade era vista com o p ertencente ao passado. Para os Teixeira e depois para a maioria dos assentados, a área desapro­ priada do São José/C apim -açu estava sob o controle do IN C R A e por­ tanto não podia ser ocupada som ente por índios, conform e os investi­ m entos étnicos de Patriarca e seus com panheiros. Em m eados da década de 1990, Patriarca faleceu, o que não repre­ sentou o fim dos problem as faccionais, agora tingidos de outras cores, inclusive afetando internam ente as famílias Teixeira. C uriosam ente, os investim entos étnicos tam bém não dim inuíram com o falecimento de Patriarca. Em 1999, um G rupo T écnico da FU N A I, coordenado pelo antropólogo C risthian Teófilo da Silva, conduziu estudos de identifica­ ção e delim itação da terra indígena do C órrego do João Pereira, O faccionalismo se m an tin h a então com o um problem a crucial. O s traba­ lhos da FU N A I incluíram a situação das famílias que viviam na locali-

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Jade de Telhas, que igualm ente alegavam origem indígena. Seus ante­ passados teriam vindo igualm ente da região de Almofala e ocuparam áreas livres de criação e cultivo mais para o interior no início do século XXI. N o local, teria sido m antida inclusive a dança do torém no passado. Finalm ente, a Terra Indígena Trem em bé do Córrego do João Pereira Ibi hom ologada em 2003, tornando-se a prim eira área a ser com pleta­ mente regularizada no Ceará. H á, portanto, um evidente contraste di­ ante das situações de Almofala e da Tapera/Varjota, cuja terra indígena, delim itada e percebida com o mais “tradicional”, está sendo contestada por processos judiciais. Além dos casos discutidos, os habitantes de outras localidades próxim as ao C órrego do João Pereira, tais com o Lagoa dos N egros e Q ueim adas, têm buscado o reconhecim ento étnico pela F U N A I28.

Por um a abordagem sem ân tica da etn icid ad e

A etnicidade depende de um co n ju n to de sinais e traços diacríticos, elem entos culturais, representações sociais, insígnias, sím bolos étnicos e categorias de discurso para que se condense e consiga se reproduzit. N enhum deles tem a capacidade de determ inar a priori a organização das unidades sociais, m uito m enos as étnicas (Barth 1969: 10), o que não im pede que a diferenciação érnica e a construção da etnicidade se co n cretizem p o r m eio de um a gam a en o rm e de p o ssib ilid ad es de estruturação e disposição de elem entos culturais e sim bólicos. À pri­ meira vista, os Trem em bé das três situações tratadas não se distinguiam dos regionais. Falavam o português e som ente os de A lmofala possuí­ am, de início, a dança do torém. D istinguiam -se sobretudo por suas trajetórias de mobilização étnica e pelas formas de organização social. C on tu d o , abordei as estruturas de significação e as formações sim bóli­ cas que com binavam os m uitos elem entos culturais de perfil érnico. H avia um h o rizo n te problem ático, pensam entos que subscreviam a ernicidade construída pelos Tremembé. Seria por meio de tais estrutu­ ras e dos investim entos políticos, em vista de seus significados e con-

zs Do mesmo m odo que ocorre com outros povos indígenas do C earí, políticas públicas de educação e saúde diferenciada têm afetado diretam ente os Tremembé nos últim os anos. Este attigo não pretende dar conta dc tais questões.

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teúdos, que se notariam similaridades entre as três situações étnicas e igualm ente a possibilidade do com partilham ento dos m esmos valores, representações, símbolos e imagens com os vários grupos sociais que se relacionavam com os Tremembé, inclusive seus antagonistas. As simila­ ridades dependiam sobretudo do aproveitam ento original de um campo semântico da etnicidade, cuja reprodução se fazia por meio de ideologi­ as, de um senso com um , de “histórias” e de tradições. O s fatores sociológicos e históricos que definiram a particularidade de cada situação Trem em bé, já m ostrados anteriorm enre, devem ser com preendidos p o r meio do estudo das fronteiras e das mobilizações étnicas, que tam bém afetaram a construção da etnicidade. Todavia, no caso dos Trem em bé, seria um erro destacar som ente o aspecto socioló­ gico da expropriaçáo da terra e as diversas estratégias sociais para seu acesso, ocupação e controle. À prim eira vista, as situações da Varjota e do C apim -açu/São José p odiam ser encaradas na m esm a perspectiva analítica das mobilizações camponesas, até mesm o em razão da prática de agências com o a C P T de Itapipoca e o IN C R A com sua política fundiária. O faccionalismo no C apim -açu m ostrava inclusive a com pe­ tição en tre princípios diferentes de m obilização social, um deles de ordem camponesa. Todavia m ovim entos sociais camponeses foram bem sucedidos no m unicípio de Itarem a bem com o em outras partes do Ceará e se organizaram n u m a dinâm ica estranha à da etnicidade. Nas três situações pesquisadas, destacava-se um cam po sem ântico com ple­ xo de perfil étnico. O s Trem em bé faziam um acenruado investim ento em formas de discurso que registram diferenciação étnica m uito mais presentes do que m anifestações culturais diacríticas. C onsiderei a variedade no grau em que se dava a pletora de discur­ sos de perfil étnico. Se na A lm ofala era evidente um a verve obstinada, incontida e reflexiva, por outro lado, na Varjota e, sobretudo, no Ca­ pim -açu/São José havia um controle mais definido e restrito no falar e pensar sobre os índios o u sobre qualquer assunto que tivesse caráter étnico. N a região da A lm ofala era m uito fácil abordar qualquer pes­ soa, m esm o não se inv estin d o com o T rem em bé, sobre os “ín d io s”, Q u e m eram? E xistiam ainda? Q u al era a h istó ria da vila e de sua igreja? A presença assídua de pesquisadores p o r q uarenta anos c o n tri­ b u iu para esse carárer difuso. N a Varjota, havia um reconhecim ento m ais particular, consolidado em torno de certas pessoas prestigiadas na com unidade com o aquelas que conheciam m ais o “passado”. N o en ta n to o conhecim ento de assuntos, histórias e juízos de perfil étn i-

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t o não se d istin g u ia m u ito do que o c o rtia n a região da A im ofala. I )eve-se considerar, porém , a ideologia “pastoral-com unitária” da CEB, cm direto cruzam ento com as estruturas de significação da etnicidade. No C apim -açu/S ão José havia u m a n ítid a “econom ia” discursiva, poui ,is pessoas sendo reconhecidas com o hábeis em falar do “passado”. Eram contadas nos dedos: alguns velhos da família Suzano, o Patriar­ ca e mais alguns outros. O s discursos eram em itidos em vários contextos. H avia os m om enlos de entrevista e da prática interrogativa do pesquisador que, certaincnre, vinha estim ular e investir díalogicam ente em um processo dis( ursivo de perfil étnico. Em segundo lugar, havia contextos em que os discursos sobre os índios eram em itidos e abordados anedoticam ente. Por últim o, havia tam bém ocasiões públicas em que o contraste étnico era mais presente. M inha trajetória e prática com o pesquisador se particularizou devi­ do a m eu interesse pelos tem as étnicos. Explorei-os com as pessoas que conversava ou entrevistava. As reações foram variadas, dependendo da situação e das pessoas, N o entanto, reparei que, mesmo havendo pes­ soas mais respeitadas com o conhecedoras de certos temas, havia tam ­ bém um conhecim ento difuso em torno de certas questões de interesse étnico. Assim, notei que “experts” na Varjota e no Capim -açu/São José c os toremzeiros da A im ofala co m partilhavam as m esm as idéias que m uitos outros tinham em torno de quescões étnicas, mesmo aqueles que não se diziam Tremembé ou agiam o m ínim o nesse sentido. Se havia pesso­ as consideradas “experts” na V arjota e no C apim -açu, sem que isso signifique qualquer formalização ou papel social, era ou no sentido de saberem sistem atizar as in fo rm açõ es q u e tin h a m d a sem ân tic a da e tn ic id a d e o u p o r serem m ais prolixas, v irtu o sas e /o u hábeis em memorização c oratória. Os conteúdos étnicos mais gerais eram reco­ nhecidos pela maioria das pessoas que contactei nas três situações, ho­ mens e m ulheres de diversas faixas etárias, investindo-se ou não como índios. D e certo m odo, não precisei ter “inform antes privilegiados” para m m ar conhecim ento das discussões e questionam entos a respeito dos índios em cada caso. O u tro tipo de contexto foi aquele em que não havia um a prática explícita ou im perativa de pesquisa. Fazendo alguns deslocam entos re­ gionais, além dos lugares que faziam p a tte do cam po geográfico da pesquisa, sobretudo no m unicípio vizinho de Acaraú, percebi que ha­ via um a espécie de reconhecim ento corriqueiro, se nao a respeito das

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ocorrências étnico-polfticas das três situações Trem em bé, ao m enos de noções e assuntos indígenas, bastante similares aos que tam bém encon­ trei entre meus inform antes e as pessoas que vivem nas três situações. Várias vezes, presenciei pessoas desconhecidas, que tam bém náo me conheciam , falando casualm ente de assuntos que eram do m eu interes­ se sobre os Tremembé. Podia ser, p o r exemplo, alguém que subia num ônibus a cam inho de Acaraú, em um a vila como Juritianha, e conversa­ va com seu acom panhante, logo atrás de m eu banco, sobre a “Almofala e os índios” que lá vivem. Essas ocasiões me colocaram de alerta para um a form a de discurso que não era provocado pela presença interrogativa do pesquisador ou p o r qualquer sinal de conflito interétnico, porém reportando questões e enunciados que tinham perfil étnico, mesmo se de m odo “folclórico”. C ontextos públicos festivos o u políticos motivavam a avaliação das diferenças étnicas e da etnicidade, bem como de valores e representa­ ções sociais abordando questões similares. As apresentações do torém na Festa da Santa, nas visitas de autoridades e padres a Almofala e nas viagens dos toremzeiros aos m unicípios vizinhos retratavam alguns des­ ses contextos. As reuniões políticas internas no C apim -açu, apresentan­ do os dilemas étnico-faccionais, e a apresentação pública do torém na Varjota para os pesquisadores e agentes vindos de “fora” exemplificavam contextos públicos em que discursos étnicos eram tam bém em itidos, difundindo inúm eros elem entos sem ânticos que descortinavam a etn i­ cidade. Ademais, os contextos festivos públicos eram aqueles que m os­ traram mais evidências da m anutenção de fronteiras étnicas.29 Todos esses contextos em que fatores ou elem entos de perfil étnico eram evidenciados discursivam ente podem ser m elhor com preendidos se usarm os certas noções que recortam as várias form as de discurso. O s Trem em bé das três situações atuais estudadas em itiam e form ula­ vam enunciados, juízos, relatos, narrativas orais e lendas. Podiam ser tam bém com entários, anedotas e provérbios. Essas diversas form as de discurso devem ser tom adas com o com pondo o campo semântico da

25 Almofala tem como padroeira N. Sra da Conceição. A Festa da Santa c organizada no mês de agosto desde 1989. A Santa é tam bém figura im portante em boa patte da semântica da etnicidade Tremembé, sobretudo na narrativa que explica a doação da Terra do Aldeamento, tam bém cham ada de Terra da Santa. Um estudo detalhado da narrativa étnica e de seu sentido e valor político merece outro artigo.

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etnicidade Tremembé ou “indígena”, noção que uso inspirado em C ar­ doso de O liveira (1976), tentando circunscrever um horizonte discursivo e sim bólico no qual os diversos atores sociais conseguem entender, descrever e interpretar, por processos estruturados ao nível consciente c inconsciente, a vida social, os fatos e fenôm enos sociais, como tam ­ bém as suas p róprias ações e as práticas de outros atores e agentes, rodos d o ta d o s de co n te ú d o s o rig in a d o s n a d in â m ica das relações interétnicas. Esse cam po sem âutico n lo se estru tu ra p o r si só, pois requer operações sintéticas de apreensão dos fatos e questões de perfil étnico p o r p arte dos mais diversos atores sociais. Nesse sentido, o cam ­ po sem ântico está “aberto” para produzir interpretações étnicas díspares c até m esm o antagônicas, tom ando em consideração os atores e grupos sociais que as fazem, afinal cies o aproveitam de m aneira diferencial, conform e as posições sociais que ocupam e as ideologias que investem. A noção de cam po semântico da etnicidade em Cardoso de Oliveira {: 102-6) foi construída a partir da análise levi-straussiana do totem ism o. Nesse sentido, o autor se prende a conceber um a classificação de situ­ ações interétnicas fu n d ad a em duas séries: a das identidades e a dos padrões culturais, que se estruturam por antinom ias do tipo “m inoritário/ majoritário” (identidades) e “sim ples/com plexo” (cultura). As com bina­ ções estruturais encontradas, todas de sentido lógico, especificam quatro m odelos étnicos. C ardoso de O liveira chega a dizer que “certos grupos tribais rem anescentes no N ordeste brasileiro” (: 105) seriam adequados à terceira com binação, constituindo grupos m inoritários e "portadores de pautas culturais complexas porque suas culturas, originariam ente ‘sim ples’, lograram complexar-se’ pelo processo aculrurativo .i ponto dessas m inorias elim inarem quaisquer barreiras ou distâncias
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rais e os da etnicidade são construídos e operados de m odo interpretativo por parte dos atores sociais que interagem e os d otam ativam ente de significados (G eertz 1978: 13-41). Ademais, as coordenadas culturais e simbólicas possibilitam tam bém diversos níveis de experiência que cri­ am efeitos na reprodução da etnicidade. N ão seria proveitosa a aborda­ gem dualista presente na análise de Cardoso de Oliveira. A crítica ao dualism o nos estudos de contato interéti :o, inclusive dos problem as da teoria da fricção interétnica de Cardoso de Oliveira, já foram apon­ tados por Oliveira (1988: 264-5, 1991), que sugere a investigação de códigos, referenciais e coordenadas culturais apreendidos e experim en­ tados ranto p o r “índios” com o por “brancos”. Os conhecim entos ad­ quiridos pelos diversos atores sociais no processo esrrururante do con­ tato interétnico são interpretados por seus próprios parâm etros e m edi­ das, mas não deixam de ser com partilhados30.

O senso com um da etnicidade

O fato de ter encontrado pessoas usando enunciados, com entários e juízos sobre os “índios”, sobretudo entre aquelas que não viviam nas três situações investigadas, foi, além de curioso e soando quase estra­ nho, um a m aneira de relativizar a existência de um a “C ultura” ou “Tra­ dição” Trem em bé passíveis de serem isoladas. T anto essas pessoas não tinham n en h u m a telação direta com aqueles que se adm itiam como “T rem em bé”, quanto m uitas, sc as tinham , feito boa parte dos habitan­ tes da Aimofala, m inim izavam a efetividade de fronteiras érnicas e da possibilidade de contraste e de assunção étnica p o r parte dos Tremembé, Usavam , porém , categorias similares, explicitavam valores e represen­ tações sociais, contavam às vezes histórias, narrativas orais e lendas que encontrei entre os Trem em bé, sobretudo entre os toremzeiros da Aimofala. Sem a m esma verve, não passavam intensidade discursiva. Seus com en-

3ÜEssa ideia dc cam partilham ento de crenças, representações e conhecim entos não tem nada a ver com a concepção durkheím iana que frisa seus aspectos conciliatórios e integra­ dores. Achamos que o compartilham ento semântico nao implica ausência de conflito e de o posições, inclusive de ordem simbólica e interpretativa por parte de atores sociais em divergência. Sigo mais um a abordagem polissêmica dos significados e do com par­ tilham ento de padrões e códigos culturais (Dolgin, Kemnitzer e Sehneidcr 1977: 3-40).

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tários eram m ais secos, sintéticos, m enos descritivos ou sem te n ta r estabelecer um a reflexão de positividade étnica. T anto havia aqueles que falavam sobre os índios, não sabendo se eles existiam ou quem eles eram, quanto os que com entavam ou argum entavam sobre eles a fim de negar a diferença étnica, o que tem valor na averiguação das fronteiras. Por um lado, a região de A lm ofala e de A caraú tem um a história em balada pela criação setecentista de um A ldeam ento m issionário e, em seguida, certam ente, na m anutenção de fronteiras érnicas que vêm se efetivando até hoje de form a processual, coerente com a variação sem ântica da etnicidade não era recente, mas estava articulada à histó­ ria regional e dependia de transform ações sociais. Assim, houve um a “difusão” sem ântica, coerente com a h istó ria das relações sociais e interétnicas m antidas nesses três séculos de convivência com m uitos grupos sociais. A capacidade de fortalecer a efetivação das fronteiras étnicas e da etnicidade T rem em bé não derivava daí, evidentem ente, porém, a historicidade das relações interétnicas na região perm itia que o cam po sem ântico da etnicidade tivesse um a abrangência bem m aior do que as esferas de concentração arual dos Trem em bé e da geografia das suas fronteiras. Além disso, a sem ântica estava articulada generica­ m ente com certas ideologias nacionais, p o r exemplo, o “m ito das rrês raças”, no qual são tran sm itid o s e reproduzidos valores, sím bolos e representações genéricas sobre o “índio brasileiro”. Posso estender, tal­ vez, os mesmos argum entos para um a ordem sociocultural até maior, no caso do Ceará, se consideramos, sem pre criticam ente e relativizando, a forte presença das populações nativas indígenas na sua história, mes­ mo se desde o século XIX ela vem sendo m inim izada. Esses fatores históricos vêm con stitu in d o o que en tendo p o r senso comum da etnicidade, termo que não sugere um a estrutura de significa­ dos e sím bolos, mas sim um a form a de discurso contextualizado, no qual se difundem e/ou se reproduzem com entários, argum entos, provér­ bios, anedotas, imagens e símbolos a respeito do “índio”, mas de m aneira bem genérica. Assim, pude entender com o ocorria a difusão e a efetivi­ dade de discursos e enunciados sobre os “ín d io s” e /o u sua natureza entre pessoas que mal sabiam ou suspeitavam da existência atual dos Trem em bé, em lugares até distan tes de onde eles vivem hoje. Esses discursos repetiam m uitos elem entos sem ânticos, difundidos com vi­ gor entre os Trem em bé, como a vuigata da avó pegada a dente de cachor­ ro. Além disso, o senso com um da etnicidade possibilita tam bém a capacidade de conhecim ento do “o u tro ”, m esm o que os significados

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daí decorrentes tenham fundo anedótico e representem um nível m enos politizado da cransinissão das representações sociais. E nfim , há a re­ produção dos elem entos sem ânticos próprios da etnicidade. Se existe tal reprodução e se ela é habitual ou, pelo menos, m ostra um consenso do que se diz ou com enta, supõe-se que haja o conheci­ m ento, ao menos relativo, da efetividade de fronteiras étnicas pela re­ gião. O s enunciados eram , porém , na m aioria das vezes anedóticos e se conjeturavam a existência atual dos Trem em bé, m ostravam distancia­ m ento do que eles realm ente passavam. Seus efeitos tinham “vida cur­ ta”, brevidade, exceto na força que tinham para sua própria reprodução e difusão. N ão podiam ser confundidos com os argum entos e o senrido mais político dos enunciados que negavam ou reduziam a etnicidade Trem em bé. Para esclarecer, descrevo dois eventos que retratam o que entendo por senso com um da etnicidade. Em um deles, eu passava por Acaraú, mas não conhecia ninguém . M in h a prática com o pesquisador ali foi sempre desconhecida ou, ao m enos, não implicava curiosidade maior. Enfim , não explicitava m eu interesse de pesquisa pelos Trem em bé. Logo no prim eiro dia de estadia, passei pela agência da Teleceará onde se encontravam dois hom ens conversando com a telefonista. A moça per­ guntou o nom e de um deles e, quando ele respondeu, riu e disse que achava “estranho”. O hom em falou com tom anim ado que era “nom e de índio” e que "sua avó tinha sido pegada a dente de cachorro e que tinha conseguido fugir correndo dali até a Bahia”. C hegou a falar de Almofala tam bém . Todo o diálogo tinha caráter anedórico, mas rem eti­ am a temas e categorias que encontrei entre os Trem em bé. Talvez os ho m en s fossem de algum lugar o nde a diferenciação étnica tivesse efetividade, mas tam bém podia ser que não. N o outro caso, em m inha quarta viagem ao “cam po”, fiquei em um a pousada em Itarem a por alguns dias. C om o em Acaraú, m inha presen­ ça era notada, mas sem estar associada a priori à im agem de pesquisa­ dor, bem cristalizada em Almofala. U m a conversa com a dona da pousa­ da foi bastante peculiar. C om entei que fazia um a “pesquisa” em Almofala, isso no período anterior à festa da padroeira, o que fez a senhora per­ guntar se eu era “jornalista”. C om entei que a igreja era m uito b o nita e ela arrem ato u que os “ín d io s” a tin h am descoberto. Fazendo-m e de interessado, p erguntei se tal história era verdadeira e se ainda havia índios por lá, tendo ela replicado que eles a tinham “descoberto” e até chegado a m orar dentro dela. Q u an to à existência atual dos Trem em bé,

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im ito u que só havia os filhos e os netos, mas que eram “índios civiliza­ dos” e não os “brabão que m etem m edo na gente”. Disse tam bém que toda região de Itarem a havia sido “terra dos índios”. Essa senhora che­ gara na cidade há cerca de quatro anos e m o n tara a pousada com o marido, os dois sendo originários de outra região. C on tou-m e que apren­ deram tudo o que sabiam depois de terem chegado. Geertz (1983: 73-93) já abordou as características peculiares do sen­ so com um e de sua reprodução. Elas definem m uito bem sua própria eficácia: naturalidade, um sentido prático, simplicidade, falta de m éto­ do e acessibilidade. O senso com um pode se expressar de formas varia­ das, de acordo com as culturas e as situações históricas. A inda assim, sua força provém da confirm ação de suas qualidades. Q uando alguém com enta ou discorre por meio do senso com um , não se espera falta de compreensão ou dúvida, o que é dito tem realmente capacidade de autoexplicação. As coisas são porque são. A autoridade do senso com um se baseia na falta de questionam ento quanto ao que é falado ou apresentado. O caráter óbvio do senso com um se expressa, segundo Geertz, por tonalidades variadas, seja com irritação ou desdém, seja com aceitação ou hum or. D e certo m odo, os acontecim entos que registrei prim avam pelo anedótico ou folclórico. Essas pessoas que falavam dos “índios” não esperavam qualquer contestação, Era o que diziam e nada mais, mesmo porque o senso com um não se reproduz “volum osam ente”. Sua eficácia está na própria concisão dos com entários e do que se consta­ ta: trata-se do óbvio. O senso com um da etnicidade estava acessível a todo aquele que quisesse discorrer sobre algum a “verdade” da ocupa­ ção regional. Os eventos eram descritos com o com entários anedóticos ou “curio­ sos”, não produzidos com um a conotação mais p o lítica das relações interétnicas. Foram m om entos sem que houvesse a explicitação de fron­ teiras étnicas ou que contribuíssem na construção da etnicidade por parte dos Trem em bé, articulando pessoas sem qualquer ligação mais profunda, se alguma, com os índios. Se o senso com um da etnicidade não tinha intenção política prioritária, acredito que acabava por ter um sentido político, ainda que reduzido. Sua consideração da diferencia­ ção étnica atual dos Trem em bé era opaca, não adm itida, a não ser como no caso da senhoria da pousada, vendo-a com o m ínim a, o que corres­ p o n d ia com as posições dos grupos e atores sociais antagônicos aos Tremembé das três situações. A inda assim, o senso com um da etnicidade se destacava pelo anedótico e pelo trivial.

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O senso com um evidenciava, sobretudo, a presença de elem entos e tem áticas correntes entre os Trem em bé, inclusive categorias e juízos destacados no reconhecim ento étnico. Apresentava tam bém um conhe­ cim ento dos “índios” que, m esmo tangenciado, sem m ostrar a concretude das fronteiras étnicas, servia, funcionando sem anticam ente, na apreen­ são da diferença étnica, ainda que se rem etendo mais à figura do “índio genérico”. Todavia o conhecim ento transm itido era de fato particular, pois se baseava cm inform ações históricas correntes da região e da andga existência de “índios”. N a verdade, porém , tal conhecim ento se baseava em um campo sem ântico da etnicidade cuja razoabilidade, efi­ cácia, investim entos e disposições tin h a m u ito m aior significação do que a própria esfera do senso com um .

O fio de A riadn e: seguindo pelos cam in ho s sem ânticos da etnicidade

O cam po sem ântico tin h a abrangência, o que explica por que vários grupos sociais mesm o antagônicos a partir dele se orientavam , redefiniam e interpretavam os fenôm enos de diferenciação étnica. Nesse sentido, havia um oceano de categorias, valores, representações, expressões ver­ bais e semânricas que podiam ser operados no sentido da construção, positiva o u nao, da etnicidade dos Tremembé. D e acordo com o contexro, os grupos sociais privilegiavam certas categorias e representações cm derrim ento de outras. Era esse processo coletivo de escolha, difusão e interp retação de valores, categorias e sím bolos, em co ntraste com outras interpretações, que im plicava um a política das representações, verificável na dim ensão social das relações interétnicas, H avia o apro­ veitam ento e a exploração intensa do campo sem ântico quando as fron­ teiras étnicas emergiam e, destacadas, passavam a m ostrar juízos, acu­ sações e confrontos entre grupos e atores sociais antagônicos31. A presença de pesquisadores o u agentes, como os missionários, vinha estim ulando igualm ente a reprodução e a positividade do cam po se-

11 A idéia dc um a política das representações se aproxima m uito do que Bourdieu chama de “luta das classificações” ou das “representações”, tratando da definição da identidade “regional ou étnica”, que seriam “lutas pelo m onopólio de fazer ver i. crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de im por a definição legítima das divisões do m undo social c, por este meio, de fazer e desfazer os grupos" (1989: 112).

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mâncico da etnicidade. Em um a perspectiva genética, o cam po antece­ dia estruturalm ente ao próprio padrão de interação dos Trem em bé com os pesquisadores. Prova disso seria ter encontrado a presença sim ilar dos mesmos elem entos sem ânticos, categorias e representações sociais nos Trem em bé da A lm ofala e nos do C apim -açu/São José que nunca tiveram contato com qualquer pesquisador antes de m im . Enfim , um sistem a cultural e sim bólico sc estru tu ra, organiza, se reproduz e se aplica segundo bases e regras sociais, ainda que não seja correto reduzir ou desdenhar a atuação de pesquisadores e missionários. À m edida que assu n to s e tem áticas de en fo q u e o u perfil étnico eram estu d ad o s, enfatizados ou valorizados por todos os agentes, acredito que havia, com o tam bém aconteceu na m in h a experiência etnográfica, um m ote para a capacidade reflexiva dos próprios Tremembé quanto à diferenci­ ação étnica. M esm o considerando as diferentes experiências, aborda­ gens, perspectivas e práticas q u e tais agentes tiveram para com os Trem em hé, em todas trajetórias buscaram conhecê-los, aliás sublinhan­ do certos valores, imagens e representações que puderam ser encontra­ dos entre os “índios”, vindo a trazer, porém , novas significações à se­ m ântica étnica. D o m esmo m odo, em um processo dialógico, os Trem em bé tam bém buscaram conhecer-se a partir do que os agentes buscavam saber. Esse processo, vale frisar, não se resum ia ao evento “técnico” de um a entre­ vista, na qual o “pesquisador” indaga e ouve e o inform ante narra e responde, mas vinha se dando de m odo am plo, ao longo de um a histó­ ria de pesquisas e práticas voltadas para os “índios T rem em bé” ou, indiretam ente, para a dança do torém. À m edida que tal “figura”, “obje­ to” ou “sujeito” se construía pelos investim entos c pela ansiedade dos a g e n te s , h a v ia ta m b é m um p ro c e sso a c e le ra d o de refle x ã o e questionam ento ctnicos por parte dos Trem embé. Eles conheciam a si mesmos ou se construíam na seqüência em que eram e são (o processo dialógico está em devir) conhecidos. Pretendo discutir vários clemenros semânticos, por m im considera­ dos mais evidentes, que serviram para a form ulação de juízos, argu­ m entos, acusações e tam bém para reflexões de ordem étnica. M apeareí aqueles q u e m e p areceram m ais in v estid o s se in a n tic a m e n re pelos Trem em bé e, náo só p o r eles, com o tam bém por aqueles que não os viam com o tais. Acho que a investigação de tais elem entos pode servir para o entendim ento da abrangência do cam po sem ântico da etnicidade e de com o ele servia na orientação de vários grupos sociais, não só dos

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Trem em bé. Q uando for preciso, contextualizarei o aproveitam ento sin­ gular que os Trem em bé de cada situação faziam da sem ântica étnica. N ão apresento, porém , um simples inventário semântico de categorias e expressões mais usadas pelos Tremembé. G ostaria que vissem tal exer­ cício com o um a cartografia da m aneira com o os Trem em bé construíam sua etnicidade e como, por meio dela, podem os encontrar sim ilarida­ des estruturais entre as três situações étnicas. Q uan d o falo de similaridades estruturais, estou me referindo às con­ verg ên cias possíveis que co n seg u i d e te c ta r e n tre as três situações T rem em b é. N ão eram p rin c íp io s q u e d e fin ia m exclusivam ente os T rem em bé. O s elem entos que descrevem sim ilaridades p u d eram ser encontrados entre outros grupos sociais. N o entanto, acredito que so­ m ente certo aproveitam ento de elem entos sociais e culturais perm itia que se estabelecessem nexos, vínculos e relações estruturais entre as três situações Trem em bé, ao m enos até o período que fiz etnografia, pois acredito que havia um a tendência à dilataçio de tais elem entos de convergência, com o a possível difusão do torém e a prática indigenista da FU N A I.

Os índios brabos e m ansos e a vuigata da avó pegada a d en te de cacho rro

O s Trem em bé diziam que os índios brabos viviam na mata. N as três situações, foi m uito com um ouvir desenvolvimentos semânticos sobre a antiga "brabeza” dos índios, depois tornados mansos: “[...] ele contava que ali, a Almofala, era um a ilba porque rinha um a lagoa p o r um lado e pelo outro. Essa do lado do sertão era um a mata! Lá se pegava índio brabo e amansava! O povo, os outros povo, amansavam. Am ansavam os índios” (Almofala)32. A referência à mata descreve um tem po em que só havia índios bra­ bos, sendo o passado mais distante concebido pelos Tremembé. E inte­ ressante encontrar a associação de índio brabo com bicho, animal, bicho

32 C arneiro da C unha (1992: 136) m ostra que as categorias índios brabos e mansos jí existiam desde o século XIX. Esse fato corrobora a suposição de que o cam po semântico em que se atualiza a etnicidade Tremembé tem uma historicidade razoável, reproduzindo categorias operadas em outras situações históricas e não impedindo que seja apreendido como conhecim ento pelos diversos grupos soei ais.

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il» mato com o se eles pertencessem , nesse prim eiro m om ento, a um universo “natural”, selvagem e, de certa forma, mais “puro” e integrado. ( K índios brabos caçavam e coletavam frutas no mato. E ta costum e dizer ijiir os versos do torém foram originados nessas primeiras perambulações dos Tremembé, quando encontravam no cam inho animais ou frutas das quais criavam cantigas especiais. Digo “prim eiro m om ento” porque os i om entários não se referiam a qualquer coisa anterior à mata e aos índi­ os brabos. Foi na m ata que se descobriu tam bém a Santa de Ouro: “M a­ mãe contava que isso antigam ente era m ata de se caçar assim toda caça. O uando foi um dia acharam a santa” (Aimofala), Muitas vezes, não se falava de índios brabos, mas som ente da mata, sugerindo um am biente, um a paisagem, que deve ser associada a um a '.miação originária e que pode, com o acontece nos relatos da ocupação da Varjota e do C apim -açu, explicar a chegada ou descoberta do lugar pelos índios. A mata e os índios seriam convergentes e associados nesse passado de descobertas (da santa, de lugares). Assim, a Aimofala teria '.ido antes um a mata da m esm a form a que foi a Tapera/V arjota e o ( iapim -açu/São José. A mata teria, inclusive, u m a fauna rica (pebas,
-1Í Ver Carvalho (1984: 173-7) no que diz respeito á m anutenção de categorias étnicas similares em ontros grupos e populações indígenas no Nordeste. A operação das catego­ rias índio brabo e manso, porém, não se justifica som ente por haver a “supervalorização da identidade (de índio hoje) como pessoa reconhecida pelo Estado", o que justificaria o contraste com os brabos. O s Tremembé operam com as mesmas categorias e só há pouquíssimo tempo passaram a ter expectativas de reconhecimento pelo órgão indigenista. O sentido c outro, como mostrarei. Batista (1992: 142) m ostra que os Turká usam a categoria “brabio”.

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mente, de índios brabos na m ata, com seus parentes que viviam nos dias de hoje. O vínculo era personalizado pelo parentesco, não adm itindo qualquer refutação. Se a avó ou a bisavó eram índias brabas, a origem étnica estaria garantida para seu descendente: “E u tô dizendo. A avó da m inha mãe era (índia). Foi pegada a dente de cachorro no m ato, tâo índia era. Ela era índia pura, p u ra , que pegaram ela no mato a dente de cachotro (Tapera, grifos m eus)”. A eficácia da vulgata era evidente entre aqueles que desejavam se incorporar etnicam ente e que a dispersavam. Foi o caso de um hom em nascido nas Ostras, lugar distante de Almofala, que me contou que sua hisavó fora “pegada no m ato”. Ele aproveitava-se politicam enre do en u n ­ ciado, afinal era um dos que organizavam o novo grupo do torém na A lm ofala e que desejava ser visto com o da parte de índio, apesar da contestação dos toremzeiros mais tradicionais. A posirividade da vulgata era tanta que norm alm ente se encontrava ao nível do senso com um da etnicidade, conform e um dos casos descri­ tos. A abrangência do cam po sem ântico da etnicidade perm itia que a vulg ata fosse reproduzida tam b ém p o r aqueles que m inim izavam a etnicidade, com o os Teixeira do Capim -açu, que a difundiam neutrali­ zando seu efeito “hereditário”: “o papai contava, mas não tou certo qual foi, se já era bisavó dele, se era escanchavó, se era tataravó. Foi enter­ rada na igreja de Almofala. Essa foi pegada a dente de cachorro. Mas daí quantas geração não já veio?” (Capim -açu). O relato da avó pegada a dente de cachorro não é encontrado apenas na sem ântica da etnicidade dos Tremembé. H á outros casos de diferen­ ciação étnica que m ostram o aproveitam ento da mesma vulgata, vincu­ lando o tem po passado (dos índios, dos antigos) com seus descendentes nos dias de hoje, A “braheza” representava um a natureza originária dos índios que veio a ser amansada, domada por “eles”, outros povos. Os relatos não expli­ cavam m uito bem quem amansava os índios, ainda que estabelecessem n ítid a diferença étnica. O “am ansam ento” transform ava tal “natureza” prim ária, “bruta”, furiosa, n o u tra que se “dom estica”, o que teria mais proxim idade com a vida atual dos Trem em bé e assinalava uma situação assimétrica. C om o amansamento, os índios brabos tiveram de se hum i­ lhar. “Ela era braba no m ato. Aí eles pegaram ela a dente de cachorro e am arraram ela pra rnódi poder ficar m uito tem po amarrada pra se h u ­ milhar. Ficar mansa. T udo que am ansa tem de se atnansar pra se unir com os outros” (Almofala).

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De certo m odo, a vulgata era a metáfora da situação histórica atual ilos Tremembé, já que pelo "amansamento” se deu a “união”. Se, por um l ido, ela é positiva, não deixa de scr assimétrica pelo fato da “humilha1, 110”, os índios ficando mansos. Havia um a qualificação am bígua dos índi­ os brabos, de form a tam bém pejorativa. E ram furiosos, mas tam bém ,/Instados, deixavam-se enganar. O próprio “am ansam ento” seria um a das demonstrações de sua tolice. Algumas vezes, comentava-se que os índios brabos foram tolos por terem vendido suas terras ou dado m orada a pessoas dv fora. Nesse sentido, eles oscilavam entre a “brabeza” e a ingenuidade, que ainda seriam sinais de sua natureza. Esses comentários foram enconi i.tdos mais na A lmofala onde a situação fundiária era a pior para os Ifemembé: “Os índios eram um pessoal desinteressado. [...] N ão tinha ganância por terra. Almofala era desabitada porque os índios não tinham interesse por nada. Era o pessoal mais tolo do m undo” (Almofala). Por um lado, os índios brabos davam medo: “Você sabe índio brabo pega o u tra pessoa e rasga na hora”. Por outro, mesmo com o “amansamenro”, os índios não perderam dc todo a sua “natureza”. M uitas vezes, ouvi dizer que um índio é sem pre cismado, seja porque tem m edo dos outros, já que foi amansado, seja porque desconfia dos outros: “Aquele povo cismado, já sabe. A gente chega na casa da criatura. Ele tem um modo de botar a cabeça assim. A í volta pra trás. Aquele povo já puxa aquele sangue de índio” (Almofala). N enhum dos Trem em bé que conheci, nas três situações, se atribuía como índio brabo. Achavam-se mansos, o que não lhes retirava a parte de índio ou a “pureza”, outro tipo de qualificação étnica operante na construção da etnicidade. D iziam que algum as pessoas eram brabas, mas reconheciam que eram raras, frisando mais aspectos de com porta­ m ento, quais sejam, se a pessoa era cismada, desconfiada ou se tinha fala ruim. Por seu tu rn o , as pessoas que questionavam a diferença étnica dos Trem em bé confirm avam qtte, nos dias de hoje, som ente haveria índios mansos, descendentes, o que servia na m inim ização do valor do perfil étnico.

O san gu e e os índios puros e m isturados

O sangue tin h a significação especial na construção da etnicidade en­ tre os Trem em bé. C ategorias étnicas com o as dc índios puros e índios misturados, índios legítimos, índios mesmo eram em pregadas en v o l­

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vendo o sangue e a fa m ília !a raça, ou seja, lid ando com o parentesco. Os T rem em bé enfatizavam que o sangue seria o elem ento prim ordial para a co n tin u id ad e biológica e, de certa m aneira, étnica dos índios, mas ig ualm ente de qualq u er g ru p o o u população socialm ente dife­ renciada. A raça seria a unidade social mais am pla que concebem em term os étnicos, ain d a que ela se identifique à idéia de família-. “O s mais velhos, dizem , que eram índios, E os mais novos tem de ser. Se sua avó fo r ín d ia , a m ãe dela ram b ém é p o r causa do sangue. A fam ília da m am ãe, da vovó, eles dizem , que eram índio m esm o” (São Jo sé /C a p im -a ç u ). O s índios, por serem de uma fa m ília particular, tinham sangue distin­ to das ou tras, com o a dos regionais, posseiros e a gente de fora. O sangue era substancializado na sua potência, aliás bastante forte, conse­ guindo se m anter ao longo das gerações, nas indescendências. Era o que se cham ava de puxar o sangue, “puxado” de um a natureza originária, a m esm a que caracterizava os índios brabos que já com entei. O sangue do índio possuía força por sua própria substância, sim bolicam ente associ­ ada à um a natureza selvagem, a do mato: O sangue do índio. É um bicho do mato. Do mesmo jeito ê o cristão. O cristão tem um sangue limpo. Tem outros mais sujo, outros mais limpo. Tem o sangue do négo. Tem o sangue do caboclo. Aquilo ali já vem puxan­ do as família, já vem puxando os troncos velhos, Porque se meu bisavô, meu tataravô era índio, aí meu bisavô era índio também. [...] Aí vem puxando de lá pra cá. O neto puxa, aí já vai saindo. Aí a genre tem que puxar aquele sangue (Tremembé, Almofala). É porque rem o índio, tem o sangue indigenista. Ele tem o quê? Se ele é índio, da classe índio, quer dizer que o sangue dele é índio decidido, o sangue refinado da indescendência. [...] É, quer dizer assim. O sangue é a mesma. Significa o sangue pra nós, significa a patentesca. Você conhece a palavra de parentesco? Justamente é o sangue pra nós que nós chama. Tanro faz ser parente como diz assim: “fulano tem sangue de índio”; “fula­ no é parente de índio”. É o mesmo nome (Tremembé, Capim-açu). O s Trem em bé acreditavam que o sangue “refinado” do índio tivesse um a espécie de “pureza” biogenética, isto é, não apresentasse qualquer outro elem ento que o “sujasse” ou o manifestasse de forma não inte­ gral. O sangue era substantivado p o r sua integralidade, totalizando a natureza do índio puro!mesmo!legítimo (o brabo). Schneider (1968: 20-

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’>) explica que as relações de sangue podem ser vistas com o um “fato objetivo da natureza” que se perdura. Sua “objetividade” não deixa de ser culturalm ente construída, sobretudo em uma dim ensão simbólica. () sangue totalizava a pessoa do índio, sendo visto inclusive com o prei edendo as relações sociais que eram m antidas, hierarquizando-as num nível m enos interveniente. O sangue, definindo as relações parentais e dc consangüinidade, podia scr visro com o um dos fatores que constru­ íam sim bolicam ente a identidade “indígena”. O s fenôm enos interétnicos niio eram entendidos por m eio das relações sociais que os produziam , mas pela determ inação substantiva do sangue e das diferenças de sua natureza. Explica-se então a perplexidade dos Trem em bé de Aimofala quanto aos índios que não querem ser índios e tam bém do líder do Capim -açu q u an to s aos seus parentes, que não se identificavam com o índios34. Categorias com o sangue limpo, sangue indigenista (apenas usado no ( iapim -açu p o r Patriarca) e índio puro representavam um a totalidade que existia no passado originário dos T rem em bé e não só deles, com o lam bém de todas as raças ou fam ílias. Toda unid ad e de perfil étnico Icria originariam ente um a integralidade biogenética centrada no san­ gue, a substância que m ais se com p artilh a c sem pre se herda. A “fo r­ ça” do sangue p o d ia ser enco n trad a em diversas fam ílias ou biótipos, do m esm o m o d o que sua “fraqueza” o u “su jeira” . O s nêgos teriam sangue fo rte com o os índios. O cabra (o albino) teria um “sangue fra­ co, ruim , que nem água”, conform e m uitos disseram . A lém disso, o sangue veicula o u tran sm ite características m orais pelas gerações. O lipo desconfiado, cismado do índio d eco rria da capacidade de resislência e co n tin u id ad e do sangue com o substância q u e se adquire pelo p arentesco . O sangue de índio podia ser afetado tam bém pelas relações sociais interétnicas. N a sem ântica da etnicidade Trem em bé, havia a concepção da m istura d o sangue, o que im p licav a a ap reen são sim b ó lica de

’1 Schneider discute o parentesco americano como um sistema cultural. Faço um a interpre­ tação do significado do sangue para os Tremembé que tem suas especificidades, não rraduzíveis para os planos culturais norre-americanos. N o encanto, a concepção do san­ gue como fator determinante da parentesco e' similar. O simbolismo naturalista e identitário do sangue e do parentesco foi discutido em outros grupos com o os Karirí-Xocó (M ata 1990: 140-8), m uito mais próximos dos Tremembé, que acreditam que sua unidade étnica é transmitida pelo sangue; Batista (1992: 142) repara o mesmo entre osT urká.

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desconrinuidades sociais, percebidas no em prego da categoria índio misturado. Ela tratava exatam ente do efeito das relações sexnais entre índios e “não-índios”, bem como dos casamentos entre eles. O sangue se m isturaria e perderia parte de sua força, ainda que permanecesse como parte "biogenética” dos índios misturados. A “m istura” não era entendi­ da apenas com o a de sangue, mas tam bém de fam ília, vista como um a unidade étnico-racial mais ampla: a fa m ília dos índios. Aparecia, nova­ m ente, a diferenciação interna dos índios, em term os duais pela pre­ sença de “unidades externas”: Porque hoje em dia, esse pessoal daqui não é índio mesmo. Sim, índio puro, como era antigamente. Porque o índio é um sangue só. [...] O índio puro era como meu avô porque ele não tinha mistura dc outra família, de outro canto, de outra qualidade de gente, só dos índios mesmo. [...] Eu acho que não tenham mais não. Os antigo já morreram tudinho. Foram se acabando. A segunda, a terceira, a quarta, a quinta geração tá tudo misturado. Acho que não tenha. Às vezes, casa uma índia com outro doutro sangue. Aqueles filhos já são misturado, não são índio puro. Agora as minhas filhas são pura (Tremembé, Almofala).

A in descen dên cia e a parte dos índios

Venho destacando que as categorias e representações sociais de perfil étnico eram aproveitadas pelos Trem em bé o u seus antagonistas em ter­ m os políticos, ainda que nem todos o fizessem de m aneira consciente. H avia um sim bolism o étnico que articulava todos os elementos sem ân­ ticos que estou apresentando. U m a das formas mais com uns de identi­ ficação étnica encontradas sem exceção nas três situações era a de se dizer da parte de índio o u da sua (in)descendência. E ram categorias hom ólogas e, por sinoním ia, associavam-se à de índio misturado. C o m o mostrei, era o sangue que perm itia a continuidade dos índios puros para com suas gerações posteriores, a indescendência, boa parte de índios misturados. Tendo avós e bisavós índios, com certeza a pessoa herdava u m a parte, puxava-a, falando nos term os nativos. Essa parte podia ser visível ou não. O s traços físicos podiam mostrá-la, porém o sangue seria o fator principal para a detecção da origem étnica indíge­ na. C on tu d o , levando em conta a m istura do sangue, os Trem em bé e tam bém seus oponentes, avaliavam ou discutiam o valor da parte, so­ bretudo se ela era “pouca” ou não. Assim, o (in)descendente Trem em bé

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linha parte do sangue do índio puro que existia no passado, figura chave no concraste com os misturados: “A gente não é, como se diz assim, as pessoas mesmo como antes. A gente é. Pega um pouquinho lâ atrás. A gente sente que tem um p o u q u in h o de parte, M as nós não som os mesmo. Mas m eu avó, com o m inha mãe falou, era índio” (Almofala), A parte era m antida num a dim ensão quantitativa - um “pouco” dem onstrando o caráter substantivo, m aterial, do sangue. A integralidade biogenética do índio misturado é com pósita, parte indígena e parte nãoindígena, ao contrário do índio puro que é de sangue limpo, decidido, completo. D o m esm o m odo, a p arte especifica ainda u m a dim ensão qualitativa, pois o índio misturado já não tem rodo o sangue “forte” de seus antepassados; ele possui um sangue mais fraca. A substancialidade da “pureza” do índio misturado era bem distinta da que tinha sua avó ou bisavó “pegada a dente de cachorro”, por exemplo. Ele possuía a parte, os vestígios de um a substância ainda persistente por sua capacidade hereditária e originariam ente forte. A “pureza” do sangue náo era buscada prioritariam ente pelos T rem em ' bc, ainda que valorizada q u an d o se queria saber se um a pessoa era india ou não. Acredito que a questão do sangue puro ou misturado se impusesse especialmente na confirm ação ou não da existência de ín d i­ os, se descendentes ou não, isto é, em term os interétnicos e em um a dim ensão política, Na Almofala e no C apim -açu, os Trem em bé acha­ vam que poucos de fato eram índios puros. N a Varjota, havia a rendência dc se dizer que todos ali pertenciam a um a só fa m ília , o que não implica que se considerassem índios puros. N a verdade, ali, essa refle­ xão sem ântica voltava-se para certas pessoas, m ais idosas, nascidas na Almofala, tendo com portam ento percebido com o cismado. Eram os mais puros da Comunidade. Pouquíssimos Tremem bé cham avam alguém de índio puro, categoria que reflete “antigüidade”. C ontudo alguns argum entavam que seus pais c esposos eram puros, por não terem se misturado (casado) com pessoas dc outras fam ílias, “não-índias”. Era um a m aneira de estabelecer con­ traste em um universo social cada vez mais misturado, diferenciando índios e não-índios, ainda que no sentido de confirm ar a “pureza” étn i­ ca diante dos outros, índios misturados. H averia distinção de valor entre relações consangüíncas e de afinidade, as segundas “m isturando” o que era hom ogêneo nas primeiras. C ertam ente havia politização nesses con­ trastes, com o havia tam bém quando algum Trem em bé invocava fazer atestado de sangue porque, segundo eles, na A lm ofala havia m uita gente

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que vinha se dizendo índio, sem o ser. O sangue era mais um fator que provaria a origem indígena35. N a Aimofala e no Capim-açu, a questão do sangue e da parte de índio era mais realçada porque as fronteiras étnicas eram tam bém mais marcadas. N a verdade, com o poucos achavam, tanto os Tremembé como os nãoíndios (posseiros, gente de fora e outros), que ainda existissem índios puros, verificava-se um inrenso questionam ento das categorias (in)descendente e de parte de índio. Ocorria um a interpretação politizada da ndescendência, do fato de se ter parte de índio. Alguns aebavam que a (in)descendência podia ser forte, outros não. Nas duas situações, havia o uso das categorias {in)descendentes e da parte de ind pelos Tremembé e igualmente por aque­ les que questionavam sua diferenciação érnica. M uitos se diziam descen­ dentes, mas não se achavam índios c contestavam os investimentos e as reivindicações étnicas Tremembé. O utros nem eram descendentes, porém reconhecidamente de outra origem étnica, em bora operassem na mesma semântica. Por si mesma, a (in)descendência podia ter valor e justificava os investim entos étnicos, ainda que nos dias de hoje só existissem índios misturados e que a potência do sangue venba se perdendo nas gerações. Repare, agora, nas duas citações seguintes, contrastantes no significado étnico-político que expressam, porém usando as mesmas categorias: Acho que índio mesmo não existe não. O índio mesmo, puro. A gora existe descendente de índio. É aquelas pessoas que nasceram das outras pessoas. Por exemplo, o avô era índio, E u não sou índio, sou descendente de índio. Não sou índio puro, Sou descendente de índio. E aquelas pessoas que não era d aquela época. J á tão m ais civilizado, j á conhece m ais as coisas, j á tem enten­

É isso. Naquela época eram brabos demais. Descendente é aquelas pessoas que vão nascendo. Vai passando de pai para filho. [...] Vai fic a n d o o sangue menor. Embora o sangue vá sempre uma coisinha, mas vai ficando menor, não v a i fic a n d o p u ro . Acho que descendente deve ser isso. (uma bisneta do antigo capitão dos índios, Aimofala, grifos meus). d im e n to m elhor.

55 O s Turká atuais se dizem “indescendcntes dos brabios” ou tam bém as categorias “rimanescentes”, "caboclos bramiados ou braíados”. Segundo Batista (1992: 124), os Turká empregam os term os “braiado/bram íado” significando ter sangue m isturado em decorrência de relações m atrim oniais e sexuais com pessoas não-índias. Entre cies, o “exame de sangue” c tido como um meio de provar a origem étnica, taí como se comenta tam bém entre vários Trem em bé. Os Kariri-Xocó estudados por M ata (1990: 143) dizem também que são da "parte dos Xocó", designando possuírem seu sangue e terem pai ou mãe Xocó. Ver ainda Barretto F° (1992: 411-500).

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puro, mas Cem nós d e sc e n d e n te fo rte ainda dos índios. Puro não tem mais, P u ro m esm o não tem mais. Só te m neto, b isn e to , ta ta ra n e to ! [...] Qualquer pessoa daqui de parte de dentro de aldeia pertence aos índios. O que nasceu e se criou éfilho daqui de Almofala. Ao mais longe o u mais p e r to tem d e ser parente. É tudo uma descendência só. Agora esses defora que chegam por agora é outra parte de gente (Tremembé, Almofala, grifos meus). N ã o Cem

Havia “dois pesos e duas m edidas” no aproveitam ento das categorias e da sem ântica étnica. Era im portante, sobretudo, saber com o empregálas. Significados étnico-políticos contrastantes puderam ser percebidos nos discursos dos Trem em bé e de seus oponentes ou m esm o entre aque­ les que não tinham posição definida quanto à etnicidade. Em 1991, a ■/.eladora da igreja de Almofala, “arqui-inim iga” do cacique Trem em bé e dc todas as reivindicações étnicas na região da Almofala, explorava um a “teoria” similar aos argum entos dados pelos índios que tanto contestava, mas sua argum entação tin h a sentido inverso ao dos Trem em bé, o de negação da sua etnicidade. N o caso, a noção de índio legítimo era sinô­ nim a a de índio puro-, Eu sou Monteiro legítima. Mas eu vou lhe dizer que ainda sou Monteiro dos legítimo dos Monteiro? Não sou. A minha família traz o nome de Monteiro, todos que nasceram naquela raça vai levando o nome de Monteiro. Mas que nós não somos os Monteiro legítimo mais porque eles tão com cem anos que morreram. Quanto anos tá que o meu bisavô morreu, que eu não sei nem quem era, meu avô morreu e eu nunca vi. Porque eu vou dizer que sou Monteiro legítimo? Eu não sou. A minha família já está misturada com os Braga, com muita família, com Ribeiro com tudo! Então é a mesma coisa de eu dizer que não existe mais o índio legítimo na Almofala. Não existe. Isso ê uma coisa que não tem lógica! (A. Monteiro, Almofala, grifos meus), O sangue, com o apontei, é m atéria substantiva e ativa na continuida­ de e circunscrição de outras fam ílias além da “indígena”. O utras fa m íli­ as, raças e identidades eram assumidas e operadas pelos que m inim izavam a etnicidade dos Trem em bé, na A lm ofala e no C apim -açu, acabando por construírem tam bém unidades étnicas ainda mais abrangentes, p o ­ dendo incorporar populações. O apelo a identidades regionais e nacio­ nais era com um , porém ainda com ênfase no significado do sangue, se bem que bastante pautado na ideologia da miscigenação de raças: “Eu tenho m uito orgulho de ser índia. E por quê? Todo brasileiro é índio,

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tem sangue de índio”. Nesse caso, há a positividade da atribuição como brasileiro para to m ar o fator sangüíneo m uito mais abrangente e menos incisivo na sua conotação étnica indígena. Acredito que diversas ideo­ logias nacionais fossem em pregadas em concom itância ao cam po se­ m ântico da etnicidade, vindo a servir diferencialm ente aos grupos e aos atores sociais em interação: “Sou índio pela descendência do Brasil, mas pelo sangue de índio eu náo sou. Viu! [...] Eu sou filho natural do Brasil e as prim eiras pessoas do Brasil foi índio. Por essa razão eu me respondo índio tam bém . Se hoje o Brasil tá misturado, ê porque veio dos outros países (Teixeira, Capim -açu).

O sign ificado e a estética dos traços físicos

Os T rem em bc usavam a descrição dos traços físicos de um a pessoa como um dos meios mais com uns de identificação de sua origem indí­ gena. O s cabelos, o nariz e traços faciais, a estatura eram as partes corporais mais referidas. Essa apreensão do corpo com o suporre de sím bolos de herança biogenétíca indígena servia com o com plem ento da argum entação em rorno do sangue. A descrição anatôm ica e os co­ m entários estéticos corresp o n d en tes eram elaborados no sentido de m ostrar evidências “objetivas”, sobretudo no caso dos índios que não querem ser índios. Para os Trem em bé, os traços físicos e a composição sanguínea tinham im po rtân cia para a definição da indescendência de alguém: Diz que os índios antigamente tinham a venra fu rad a , um negócio na boca e parece que a orelha lascada, E nada disso nós temos hoje. Mas deixa que nós somos ainda dos resquícios dos índios, ainda cem o sanguezinho dos índios. A minha bisavó foi pegada a dente de cachorro, a minha mãe contava. (...] A minha tia parecia com índio. Ela tinha esse beição assim, batido. E o cabelo era assim cabelo duto (Almofala). C ertam en te a im p o rtân cia da descrição física de alguém era mais encontrada na Almofala do que na Varjora e no C apim -açu, ainda que houvesse referência aos traços corporais nas três situações. H avia nm em prego mais com um das referências corporais na Almofala porque ali era preciso acom odar pessoas que m inim izavam sua origem indígena e não se diferenciavam etnicam ente. Os traços físicos eram relativizados tam bém no contraste entre índios puros e misturados, já que a “m istura

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ilc raças” contribuiu para dispersar algumas imposições corporais ori­ ginárias, com o a venta fu ra d a e os traços mais feiosos: “esse nariz só pode ser da descendência de índio, que é um bicho mais feioso. N ão linha barba, todo o bicho era liso m esm o”. N a orientação dos T rem em bé, os traços físicos serviam para conirastar vários biótipos: o índio não seria confundido com outros como o cabra, o caboclo, o nego e o branco. H avia um sentido anedótico na peroração sobre tais biótipos, por exem plo, se alguém era branco ou cabra. O cabra seria gazo, de sangue ruim e cabelo enroladinho (era o tipo do albino). M uitos toremzeiros, porém , se diziam caboclos porque ti­ nham cor de pele mais clara: “Tem a cunhã, a tapuia. Tem o índio, tem o negro. A tapuia é aquela de cabelos de flecha, estirado, n en h u m a volra. A cunhã é que tem as pernas coisadas, ressecada. O negro é esse do cabelo que não m olha, bem enroladinho, nêgo legítimo. D izem que nós somos cu nhã” (Almofala, grifos meus). A preocupação com os traços físicos não se encontrava, o u tra vez, som ente entre os Tremembé. Seus oponentes, sobretudo a gente de fora que vivia na Almofala, serviam-se da descrição anatôm ica para se dife­ renciarem dos índios e descendentes. Seu p o n to de vista estético era m uito pejorativo, inclusive com associações simbólicas negativas, com o a metáfora em pregada por um a proprietária de terras da região: “Mas a m aioria do pessoal daqui, isso tudo é descendente de índio. Você vê esse pessoal assim do rosto achatado, meio mal-feito dc feição. As pes­ tanas dos índio é assim, dura, feito pestana de porco!”.

O s índios velhos e novos e a questão da tem p o ralid ad e

H avia u m a n ítid a p reo cupação te m p o ra l no cam po sem â n tico da etnicidade, explicitada em todos os binarism os tratados até agora. As categorias étnicas índios velhos e índios novos eram bastante empregadas pelos Trem em bé e não só por eles, sendo estas as que explicitavam de inaneira mais óbvia a dim ensão do tem po. O utras categorias e expres­ sões, referindo-se ao passado, eram correlatas: antigos, os mais antigos, os mais velhos, antigos velhos, nêgo/caboclo velho, Tremembé velho, povo de antigamente. Todas eram operadas a fim de definir um a descontinuidade cm relação aos índios novos. A discinção era bem significativa na Almofala, lugar tido com o o mais “tradicional” dos índios. N a Varjoca, as catego­ rias mais empregadas eram os antigos, povo de antigamente, os mais ve­

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lhos, e assim por diante. Tam bém eram encontradas no C apim -açu, mas nao serviam com o operadores de diferenciação étnica, salvo para algu­ mas poucas lideranças políticas. O dualism o velho/novo era bastante em pregado no cotidiano, com o em toda parte, por exemplo: moça ve­ lha, rapaz novo, troço velho. Esse aproveitam ento corriqueiro nao im pe­ dia que o dualism o fosse de pouco valor em nível sem ântico. A catego­ ria velho tin h a sentido pejorativo no seu uso cotidiano, conotando sig­ nificados negativos às coisas que adjetivavam. Por seu tu rn o , no caso dos índios velhos havia um a associação com valores positivos, de pureza étnica. O dualism o velhoínovo tin h a relevo étnico quan d o forneciam conteúdo ao corpo ideológico e à construção da etnicidade no C apim açu. Assim, seu em prego era m anifestado pelo Patriarca e situacionalm enre pelos Suzano e Teixeira, tanto a favor como contrariam ente aos investim entos étnicos. E ntretan to a operação do binarism o velho/novo em um plano cotidiano/dom éstico da vida social serviu sobretudo para esclarecer que as categorias étnicas não são “nativas” strteto sensu: Eles sabiam mais do passado porque o índio velho, ele conhecia mais história velha e o novo não chegava a conhecer, via falar o que os índios velhos contam. Porque nos três 8, a mamãe contava e os outros índios mais velhos, que foi três anos de seca. Durante esses três anos de seca, segundo o que ela conrava, foi tão, era tão fomento que eles assavam couro velho que achavam. Aqueles couro velho assavam e comiam. [...] Era os três anos que justamen­ te que esses dois índios mais velhos que chegaram (Tremembé, Capim-açu, grifos meus). O s índios velhos eram as pessoas que tiveram mais vínculos com o passado, daí a possibilidade de contarem histórias e serem as fontes mais fiéis daquele tem po. Era p o r m eio deles que se delineava para os atuais Trem em bé um a continuidade tem poral de antigamente. Usava-se a cate­ goria índio velho na atribuição de pessoas já falecidas ou bem idosas, que viveram num tem po que se pretende mais potencial para a “natu re­ za” indígena. Nesse sentido, a categoria tinha bastante significação para a m an u ten ção de conh ecim en to s sobre o passado. A “velhice” seria então u m atributo positivo à m edida que a pessoa, conhecendo mais “histórias”, podia contar mais de antigamente e dos índios brabos!puros! velhos. N o C apim -açu, os três 8 (1888) era o alcance tem poral máximo alcançado pelos índios velhos do lugar. O mesm o acontecia quando al­ guém queria descrever o torém e outras m anifestações culturais e/ou religiosas, consideradas indígenas. Era o caso do rêzo (reisado) na Varjota/

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Tapera ou de várias orações e hinos antigos, m antidos na Procissão da Coroação de Maria, que ocorre na região de Almofala: “Aí ‘cê grava o gravador pra m óde levar pros seus: negrada, daqui o rêzo dos índios velhos antigos. A inda tinha esse rêzo aqui que eu trouxe. T ’aqui um a índia velha que tinha !á. A inda can to u esse rêzo velho pra eu trazer gravado aqui p ra vocês verem. O rêzo dos índios de p rim eiro ” (vila D ucoco/T apera). A continuidade veiholnovo era similar à da indescendência e da parte do sangue. D e um tem po passado, entendido com o plenam ente “indíge­ na”, seguia outro tem po bem mais atual que se m ostrava m uito co n tu r­ bado e sem a presença dos sinais de “brabeza”, “pureza” e “velhice” dos índios. Sim bolicam ente os velhos eram associados a um a o u tra to talização. Este era mais um paradoxo enfrentado pelos acuais Trem em bc, mas tam bém presente nas interpretações que seus antagonistas faziam: “Essa dança (o torém) é a dança dos índios. E eles (os toremzeiros) apren­ deram algum a coisa com os mais velhos. N ão foi nem com os próprios índios porque eles não alcançaram mais índio. [...] Então eles aprende­ ram essa dança com a descendência deles, do povo mais velho. Agora, os novos tom aram essa atitude de fazer o torém ” (proprietária, Almofala). O s Trem em bé podiam afirm ar que não havia mais índios velhos e argum entar que aprenderam m uito do passado com eles. C om o índios novos, náo podiam desvalorizar o conhecim ento recebido ao m esm o tem po em que estavam distanciados dos índios velhos. D a m esm a form a que o sangue, os índios novos recebiam apenas um a parte do tem po pas­ sado, cada vez mais dim inuta, evanescente36: O pessoal daqui era tudo os índios velhos, os antigos velhos. Eu alcancei ainda. Tudo véinho. Muitos já morreram. Quer dizer, já morreu foi tudo. Aí, eu peguei, mc entendi, peguei aqui os cachinhos mais novos, desde os mais velhos foi-se acabando, Ficou os mais novos: meu pai, meus avós (]. Almofala, grifos meus).

M Carvalho (1984: 181) cita um depoim ento Kapinawá em que desponta o bínarism o velho/novo associado aos “índios mesmo, puro, brabo”. O s Kariri-Xocó empregam tam bém várias expressões como os “mais velhos”, “cabocla velha dos troncos” (M ata 1990: 141-4). O s Turká operam com a categoria "antigos" designando os “índios brabios" (Batista 1992: 142). Ver também o emprego de categorias similares feito pelos Tapeba (Barretto F° 1992: 491-509).

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O paradoxo tem poral era aparente em um desnível, na m anutenção de um plano dúplice de continuidade/descontinuidade entre os índiüs, velhos e os novos, o que ficava evidente no sim bolism o associado à di­ m ensão tem poral. H avia metáforas botânicas que serviam para m anu­ tenção de tal paradoxo e do próprio binarism o. O s Trem em bé costum a­ vam em pregar os termos troncos velhos, ramos!bróioslbrotos (novos), ca­ chos, raiz, dentro da raiz!tronco1, todos estabelecendo visualização e im a­ gens botânicas que, m etaforicam ente, contrastavam velho e novo, mas em um a form a relacionai que assegurava continuidade. Era o puxar, tal qual o sangue, alguma coisa (a parte) dos troncos velhos e da raiz para os índios novos. Os brotos conotavam significados atrelados ao troncolíndio desaparecidos!foram cortados, mas que tinham ainda a capacidade de persistência, de {in)descendência em um plano cronológico, pois tem p o ­ ral e consecutivo, que se revigorava noutra “vegetação mais nova”, de índios novos\ Se conhecia aqui (Altnofala) por aldeia dos índio velho. A gente achava cabeça de cachimbo ali por riba dos morro, aquelas coisas dos antigo mes­ mo. Era umas Caboré. Era as Angelca. [...] Era aqueles Trem em bé velho que morava aqui. Era só eles. [...] Esses mais velhos mesmo já terminaram-se, A gora tem os bróio (broros). Tem os bróios, os filhos, os netos, por exemplo. U m a árvore se corta m as nasceu é da descendência d aquela árvore, daquele q ue f o i cortado

(Tremembé, Aimofala, grifos meus).

Os troncos e a raiz ajudavam a visualizar um a distinção de ordem cronológica e tam bém espacial qnanto aos brotos. H avia com plexidade no esquem a tem poral que estruturava o cam po semântico da etnicidade aproveitado pelos T rem em bé, O binarism o velho!novo, as m etáforas botânicas e a m aneira que os Trem em bé encaravam a m em ória étnica, o fato de contar, representavam os melhores elementos pata a com pre­ ensão do esquem a tem poral que sublinhava toda a sem ântica étnica. O s Trem em bé contavam m uito do passado. H avia rem em oração de fatos ocorridos, de pessoas já falecidas, dos finados, de coisas contadas pelos pais e avós. O passado era positivo para a disposição da etnicidade, já que correspondia, p o r suposto, à época dos índios velhos. N o entanto os relatos não eram uniform es: havia os que se baseavam em testem u­ nhos e na lem brança de eventos e fatos presenciados ou que eram con­ tem porâneos ao narrador e aqueles que reportavam “histórias” pro p ri­ am ente ditas e não vivenciadas pelo narrador; estes eram relatos mais imaginários, “tradicionais”, que se aproveitavam de elementos sem ânti-

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A VIAGEM DAVOITA

i os e representações já discutidos, como a vulgata da avó pegada a dente de cachorro. Foram os parentes ascendentes dos T rem em bé, pais ou avós, que mais regularm ente contaram “histórias” do passado. C ontudo qualquer pessoa considerada mais velha era um a fonte segura de infor­ mações. Se o contar era um a p rática que p erm itia a transm issão de
3'N e in rodo testem unho oral, segundo Vansina ( í 965: 19-23), pode ser entendido como um a tradição oral, que consistiria de relatos a respeito do passado, sem terem sido presenciados pelos informantes. As narrativas do passado presenciado são testem unhas que sc constroem como a memória social de uma coletividade. Ver, nesse caso, T hom pson (1992: 20-44). Conform e Vansina, os relatos de tradição oral encontrados entre os Tremembé caracterizam-se por serem textos livres, perm itindo variabilidades narrativas e não sendo uma forma fixa tradicional como poemas decorados. N o entanto, fica difícil distinguir a tradição oral dos relatos memoriais já que estes são contados em um mesmo exercício narrativo, muitas vezes se articulando, os dois sendo propulsores semânticos da etnicidade. A memória social dos Tremembé deve ser vista como étnica e construída culturalmente junto com os relatos do passado não-vivenciado. Nesse sentido, a noção de tradição oral de Vansina deve ser aceita com cautela.

EXPERIÊNCIA E SEMÂNTICA ENTRE OS TREMEMBÉ DO CEARá

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N arrativas orais tradicionais podiam ser em itidas com binando tes­ tem unhos vivenciados pelos inform antes o u p o r seus parentes e conhe­ cidos. Esse em baralham ento de eventos históricos e im aginários entre os Trem em bé provinha da m aneira com o eles concebiam e apreendiam o tem po. V ários antropólogos já fizeram pesquisas que enfocaram a ordem tem poral de diversas sociedades e culturas. O s Trem em bé náo tinham um esquem a tem poral distinto: suas concepções de tem poralidade eram as mesm as que as ocidentais. A lém disso, as concepções tem porais de boa parte das populações rurais brasileiras, inclusive as nativas, se cronológicas, estruturam um a m aneira singular e pouco abs­ trata de m edição e apreensão do tem po, correspondente àquela que percebi entre os Trem em bé. H avia um elem ento peculiar que era perce­ bido quando dava atenção às formas de discurso. O cam po semântico da etnicidade im punha um a estrutura de significação tem poral para o entendim ento das formulações étnicas dos Tremembé e, vale frisar, tam ­ bém de seus oponentes. O uvindo atentam ente os discursos dos Trem em bé, tive dificuldade de encontrar referências a m arcadores cronológicos, tais como anos ou datas precisas. Era m uito difícil saber a data de nascim ento ou a idade de um a pessoa, fosse ela idosa ou jovem. Algumas vezes, ouvia a cita­ ção de um ano, com o o de 1700, referido à data de edificação da igreja, porém a pessoa podia logo em seguida falar de um evento em um a época mais recente. Anos citados com o o de 1935, 1958 ou 1972 podi­ am ser confundidos. N a verdade, 1972 era 1982. Sabia-se que um evento tinha ocorrido no passado recente, mas sem precisão histórica, linear. As narrativas e enunciados eram alinhavados de assuntos de pertinência, não im portando as datas, nem os anos passados. Havia relativa proxi­ m idade entre 1700, os três oito e 1958, digamos. O s anos não im porta­ vam tanto, mas sim plesm ente a noção de que o tem po passava. A m ai­ oria dos depoim en to s falavam de um tem po passado, sem qualquer “profundidade” tem poral o u quase nenhum a extensão cronológica: Agora, eu num sei quando. Foi aí num tempo. Mas eu acho que foi logo quando eles descobriram. Ou foi antes que quando fizeram logo a igreja. Al foi uma briga. Dizem que pegou no meio da terra. Foi findar noutro dia. Mas aí foi cacete. A t foi cacete dos índios velhos (J. Varjora, grifos meus). Agora é que eu não sei em que erafoi. É que eu não sei em que era foi que ele começa a abarcar. Eu sei que ele tomou conta de tudo. A mamãe tinha uma quinta dc cajueiro, só puro cajueiro doce. [...] Isso lá era uma coisa decente,

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bonita, mesmo. Foi-se acabando tudo. Foi-se tempo que acabaram tudo. Efoi tempo que elefoi tomando conta de tudo. Cercou tudo, tudo, tudo (Almofala, grifos meus). Nas citações, há expressões de referência tem poral que m ostram o • mi traste entre passado e presente, ainda que ordenando o tem po. Elas ',,io, porém , bastante imprecisas: “houve aí um tem po”, “desse tem po”, "Ibi aí num tem po”, “foi-se tem po”. Tais expressões delim itam eventos i oino se fossem “lugares”, concentrando-os a fim de estabelecer a se­ qüência dos fatos que distinguem o passado do presente. N ão im porta n ano exato em que ocorreram : foi “nalgum ” tem po. Algum as outras expressões sugeriam m aior pontuação tem poral, mesmo que não se re­ ferissem a datas: “quando foi no tem po do bolsão, ele m andou derrubar 0 santo cruzeiro”. Em vez de prevalecer um esquem a cronológico, há a valorização de eventos e de ações que conrrastam com o presente e servem com o m arcadores tem porais das narrativas e dos relatos. Q uan d o os Trem em bé falavam dos antigos, de antigamente, dos anti­ gos velhos, eles estabeleciam um a continuidade no plano tem poral com eles próprios, os índios novos. Essa continuidade expressava linearidade 1om sentido mais genealógico do que seguindo um a m étrica de datações desde o passado. A genealogia im plica um a m udança tem poral, tornada significativa à m edida que ela é negativa, dissolutiva de um a substancia1idade da “natureza” indígena. Todos os relatos relacionados aos índios reinetiam a um processo contínuo de transform ação de sua “brabeza”, “pureza", “velhice” para um a indescendência que era mansa, misturada e nova, atributos da fragm entação de uma totalidade originária. Foi antigamente ou naquele tempo que a bisavólavó de um Trem em bé fo i pegada a dente de cachorro. Foram os pais e avós q u e co n taram a vulgata e indm eros relatos tradicionais. O rem po era concebido n a fo rm a de eventos que se agrupam e se avizinham tendo p o r sentido um a linea­ ridade geracional, tal qual seguiria dos troncos velhos aos ramoslbróios. D a bisavó índia braba seguia aos avóslíndios velhos!“contadores de his­ tórias” e depois para os atuais Trem cm bc//W hw novos. O esquem a tem ­ poral em pregado pelos Trem embé era m utuam ente seqüencial e crono­ lógico, estruturando as significações do cam po sem ântico da etnicidade. N o contar do passado valia sobretudo o relato dos eventos e a passagem dc um assunto a outro em um deslocam ento tem poral mais seqüencial do que cronológico. Por outro lado, a apreensão tem poral tam bém era cronológica, ainda que sem um a m étrica datável. H avia continuidade

experiEnciaesem Anticaentreostremembédocearâ

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do tem po de antigamente para o presente e que vem se projetando do passado ao futuro. C ontudo a representação do contato implicava uma rup tu ra d o! desse tempo originário: a evidência da descontinuidade entre passado e presente. D e certa m aneira, os Trem em bé espacializavam o tem po, sugerindo um fluxo tem poral que se distinguia por tal ruptura, quando tam bcm a avó fo i pegada a dente de cachorro. O tem po cronoló­ gico se apresentava na construção de um a m udança contínua e dissolutiva do passado, do antigamente. Era o processo cronológico que distinguia índios brabos!puros!velhos de seus indescen dentes?8. Essa estrutura tem poral dúplice, seqüencial e cronológica condicionava os aproveitam entos sem ânticos da etnicidade, já que os relatos e for­ m ulações sobre os índios no passado e no presente eram construídos pela estruturação dos seus elementos. Todos os fatos, eventos e relatos narrados dependiam dessa estrutura. Alem disso, podiam scr os índios e seus oponentes a em pregarem as mesmas concepções temporais. Havia cerram ente m aior referência a datas e ao tem po cronológico entre aqueles que não se diziam Trem em bé, D e qualquer m odo, a estrutura tem poral dúplice caracterizava o cam po sem ântico da etnicidade aproveitado pelos Trem em bé, rnas p erm itia construções singulares de significados por parte dos grupos sociais em interação.

A experiên cia da etn icid ad e

O cam po sem ântico da etnicidade e seus principais elementos tinham abrangência social, verificada no aproveitamento feito pelos Tremembé e pelos grupos/atores sociais que lhes contestavam . O m esm o esquem a tem poral, o com partilham ento de categorias e representações e inclusive um simbolismo étnico eram aproveitados, a m aioria das vezes inconsci-

ís T h o rn to n (1980: 157-83), em um estudo das concepções espaço-temporais dos Iraqw, m ostrou que eles apreendem o tem po de um m odo topológico, espacial, sem nenhum a cronologia. Os Iraqw falam do passado orientando-se por metáforas espaciais, ou seja, os eventos são comparados em rermos de distância e agrupam ento, constituindn “lugares” temporais. Esse procedim ento seria típico de um tempo seqüencial no qual seria possível entendê-lo em uma ordem prática, os eventos desenrolando-se por meio de relações de vizinhança c nunca como um a métrica linear abstrata, remetendo a um passado e proje­ tando a um futuro, vistos como um a precisa sucessão dc anos e séculos, tal o caso do tempo cronológico.

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A V IA C tW DA VOLTA

entemente, mesmo se com efeitos políticos, por parte dos atores sociais que antagonizavam com os Tremembé nas três situações étnicas. Os di­ versos grupos sociais estabeleciam versões, interpretações sociais, basea­ das nos elementos do mesmo campo semântico da etnicidade e relaciona­ das esrruturalm ente entre si. N a sua abrangência, o campo perm itia com ­ binações semânticas e de sentido que eram e serviam como interpreta­ ções de recorte étnico. Se a versão era positiva na argumentação étnica, era ourro problema. N a verdade, os grupos e atores sociais que discorri­ am de e por elem entos ou questões étnicas partiam da m esma m atriz conceituai, sem ântica e sintática: os Trem em bé; os seus oponentes, a gente de fo ra; aqueles regionais que mai os conheciam ou sabiam que aiuda existiam, agricultores que não exploravam a diferença étnica, como os trabalhadores rurais das comunidades ou os índios que não queriam ser índios de Almofala. A etnicidade não era somence construída duplam ente a partir da efetividade das fronteiras étnicas, dos padrões de interação existentes e do campo sem ântico no qual se extraía conteúdos: ocorria também um a difusão para além das próprias fronteiras e grupos étnicos cm interação. A semântica da etnicidade possuía um a abrangência que se tlispersava para além das situações, dos contextos interétnicos, constitu­ indo um a “tradição” genérica a respeito do “índio”. O campo semântico da etnicidade podia m ostrar tam hém quais eram as similaridades estruturais que articulavam as três situações Tremembé. Os m esm os elem entos sem ânticos e sim bólicos eram em pregados e dispersos pelos Trem em bé das três situações a fim de construírem a etnicidade. Suas trajetórias de mobilização étnica, a m anutenção de fron­ teiras étnicas e os m odos de controle da terra e dos recursos naturais retratavam um a heterogeneídade, ainda que m uitos padrões econôm i­ cos fossem tam bém abrangentes, sendo igualm ente reproduzidos por populações camponesas. Do mesmo m odo, vários fatores culturais não eram comuns, tanto a tradição do torém quanto as diferenças sub-regionais, existentes, por exemplo, entre pescadores e agricultores na Almofala. As sim ilaridades estruturais foram encontradas som ente em nível se­ m ântico e sim bólico da construção da etnicidade, servindo para dar conteúdo e consistência às suas imagens, discursos e formulações como índios. Os Trem em bé de Almofala, da Varjota e do São José/Capim -açu usavam os mesmos parâm etros, binarismos, categorias étnicas, esque­ mas temporais, guardadas as variações internas. M esm o estas especificidades mostravam , sobretudo, o aproveitam ento plural do campo sem ânti­ co, como a combinação diferencial que os Trem em bé de cada situação

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fazem dc outros referenciais, com o a ideologia missionária e a pastoral, ainda que as similaridades estruturais fossem m antidas. Q uando falo de aproveitam ento plural do campo semântico, entendo que se verificamos a existência de similaridades estruturais entre as situações Tremembé, as poucas realmente de cunko étnico, elas não podem ser reificadas e trata­ das cotno idiossincráticas o u prim ordiais. Paradoxalm ente, os elem entos que caracterizavam as sim ilaridades estruturais, considerados os mais pertinentes nos critérios de hom oge­ neização étnica das três situações, foram encontrados nas interp reta­ ções do cam po sem ântico da etnicidade p o r p arte de rodos aqueles grupos e atores sociais em divergência e conflito com os índios, ainda que de form a m enos retórica, prolixa ou criativa. O cam po sem ântico da etnicidade era m atriz de interpretações que com binavam elementos e categorias com significados bem opostos aos dispersos pelos Tremembé. Assim, o campo semântico tinha um a estruturação de caráter pluralizado, p erm itin d o aproveitam entos “discursivos” de significação antagônica. N ão havia, porém , redundância entre as interpretações étnicas. Por um lado, as interpretações étnicas feitas pelos Trem em bé eram positivas, com binando elementos semânticos de form a mais produtiva e com mais inventividade do que seus oponenres, mesmo se boa parte de sua imagery e das formulações criadas fossem estruturadas em um esque­ ma temporal de sentido dissolutivo. Por outro, as produções scmânricas articulavam-se com referenciais variados — missionários, religiosos, intelecruais —que contribuíam na positividade de suas inflexões. Além disso, as interpretações coutrastantes, parrindo dos mesmos elementos semânti­ cos, expressavam estratégias políticas e efeitos sociais distintos. O campo semântico da etnicidade era aproveitado politicam ente pelos Tremembé c outros grupos sociais. H avia um a política dos elementos semânticos que servia na diferenciação social e étnica, o que, aliás, era o que m antinha as fronteiras étnicas. As form as de discurso e as interpretações étnicas contextualizavam e reproduziam singularm ente os conflitos que ocorriam nas relações interétnicas. U m discurso que m inimizava a diferenciação étnica feito p o r um descendente de índio contrastava com o de um Tremembé, ainda que os elementos semânticos fossem os mesmos35.

J5 Oliveira (1988; 265-67) cham a de pluralidade de referenciais a existência, cm uma situação histórica, dc diversas tradições, padrões dc ação social e sobrerudo de conheci­ m entos virtuais que acabam por perm itir alternativas de conduta e ação social.

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Em u m a experiência singular da etnicidade, o que estava presente nos discursos dos Trem em bé podia ser confrontado por um processo de violência simbólica nas acusações, n o descrédito e na m inim izaçlo da diferenciação étnica. Assim, eles acabavam deflagrando um m ovim ento dc resistência ao processo contínuo de dom inação sim bólica que sub­ sistia na m inim ização dos fatores étnicos locais, bastante evidente no 1 iapim -açu/São José e ua Almofala. G rupos e atores sociais, com o regi­ onais, proprietários, a gente de fora, os descendentes de índios, os assenta­ dos d o C a p im -a ç u e a g e n te s do I N C R A , te c ia m d isc u rso s q u e deliberadam ente acionavam tal violência simbólica quaudo se afirmava com tan ta iniciativa e rancor que não existiam índios nas duas situa­ ções. Essa d om inação tentava se im p o r p autando-se em m uitos dos elem entos sem ânticos aproveitados pelos Trem em bé, com binados em um a estruturação singular do campo sem ântico da etnicidade. É a perspectiva da experiência da etnicidade que pode mostrar, de modo radicalm ente positivo, que não existia redundância cultural entre os Tremembé c seus oponentes. Seria um a posição epistemológica que apre­ enderia como os Tremembé se singularizavam em um processo ativo e reflexivo interno de construção étnica. A noção de experiência vem sendo muito debatida e usada nos últimos anos (Bruner eT urner 1986a; H astrup c Hervik 1994). A experiência deve ser vista como uma estrutura proces­ sual, disruptiva, sem ser rotineira, casual ou ordinária (Bruner e Turner 1986a; 33-43). N ão se trata de um padrão de com portam ento a ser obser­ vado e classificado de acordo com aportes exteriores de um pesquisador. Esta não deve ser vista tam bém como um a “mera” experiência, pois ca­ racteriza-se por autocentrar-se em um fluxo interiorizado, ativando a pró­ pria reflexividade e tendo, portanto, importância em relação às singulari­ dades pessoais. Trato, porém , de experiências construídas culturalm ente. Assim, toda expressão cultural depende da experiência que seus produtores/partici­ pantes têm nelas e para cotn elas. Bruner (1986b: 7) encara as m anifes­ tações culturais com o “unidades estruturadas de experiência”, referin­ do-se a rituais, paradas, festas, textos e narrativas, encenação etc. N ão haveria produção cultural sem a sua própria experiência e vice-vecsa. T oda expressão/m anifestação cu ltu ral p ro jeta em seus participantes, produtores o u náo, incluindo suas “audiências”, u m m odelo específico de com o experimentá-las. A participação nos eventos culturais requer um envolvim ento que depende de m odos estruturados da experiência. Pode-se dizer que a relação entre experiência e expressão cultural se faz

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em um processo “circular” de estruturações, cada um a projetando-se na outra. Tal relação é tanto dialógica quanto dialética, não podendo haver equivalência entre experiência e expressão cultural. Se a experiência modela a ação social e suas produções, é tam bém o p onto de partida de sua interpretação. Eventos sociais e manifestações culturais são captados pela consciência que, p or meio da experiência estruturada, possibilita interpretações. Q uan d o alguém passa p o r um a experiência original, logo se estrutura, em um a prim eira vez, um modo de se referir à ela e à expressão sociocultural que lhe consubstanciou. Assim, toda experiência, sendo estruturante em um a form a virtual, aca­ ba por garantir a convergência de situações passadas e presentes, proje­ tando-se tam bém para as futuras. Nesse sentido, o fenôm eno da reflexividade, faz convergirem situações tem porais em um processo assimilativo. Passado, presente e futuro se em baralham , desde que a reflexividade conduza o que foi/é/será experim entado em um nível de consciência. As ações ficam envolvidas no esforço de consolidação de significados da experiência, cam inho direto para as interpretações seguintes. A ex­ periência não é reiterativa, pois a cada vez que se repete ocorre um m ovim ento de inovação, um a singularidade nutrida e absorvida ao cor­ rer das interpretações. Portanto, a experiência pode ser vista como um a e s tr u tu r a p ro c e ssu a l, sem p re asso ciad a às expressões c u ltu ra is, à reflexividade e à construção de interpretações. Sc a reflexividade depende de um self ativo, a experiência não pode ser apreendida de m odo direto por ourras pessoas. Assim, um a experi­ ência pessoal é com preendida pelos ourros p o r meio das interpretações que estes constroem . Toda expressão cultural, experiência e interpreta­ ção social alheias podem ser captadas, em um processo tam bém reflexi­ vo, dialético e dialógico, ainda que não direto, de experiência e in ter­ pretação. Assim, as interpretações de atores sociais distintos, oriundos de m atrizes culturais singulares, podem se cruzar à m edida que proces­ sos estruturados dc experiência se concretizem . O correm processos si­ milares de com preensão da experiência e de seus significados. O pesquisador que conviveu com os Trem em bé, quando se atenta à heterogeneidade das suas situações, percebe que as formas de discurso tinham enorm e im portância na construção da etnicidade, às vezes até mais do que o torém, um ritual de apresentação irregular. As form as de discurso oriundas do cam po sem ântico da etnicidade explicitavam p en ­ sam entos, formulações, metáforas, narrativas orais, imagens e ideologi­ as dos quais os T rem em bé se serviam para in terp retar as diferenças

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étnicas. Elas possibilitavam o escopo de reflexões étnicas, pensam entos e razoabilidade que se faziam em torno da etnicidade e da diferenciação étnica. Fosse pela atuação de pesquisadores e missionários, que interagiam dialogicam ente a favor da sua diferença, fosse na própria situação das fronteiras étnicas, existiam exercícios reflexivos feitos pelos Trem em bé que serviam ativam ente na construção da sua etnicidade. Todos os ele­ mentos semânticos investigados eram revolvidos contextualm ente nesse exercício de reflexão ctnica. Por m eio das íorm as de discurso os ele­ m entos sem ânticos se reproduziam , eram interpretados e possibilita­ vam um a atitude reflexiva. As “histórias”, narrativas orais e todas as formas de discurso étnico emitidas e/ou contadas pelos Trem em bé servem na com preensão da ex­ periência da etnicidade. C om o boa parte da etnicidade era construída por formas semânticas, os Trem em bé a experim entavam tam bém como um processo de “atividade” discursiva. Tratava-se de um envolvim ento ativo e criador com o passado e de como ele podia ser incorporado ao presenre. Assim, mesmo o esquema tem poral dissoiutivo - do tempo de primeiro ou dos antigos até os dias de hoje - podia ser interpretado pelos Trem em bé com positividade, além da visada pejorativa que fazem seus oponentes. O s Trem embé se aproveitavam de m odo singular e ativo da sem ântica da etnicidade, con stru in d o interpretações positivas, perorando vorazm ente por com binações semânticas, m odelando sua experi­ ência da etnicidade40. N ão estou privilegiando, rodavia, som ente os significados que cons­ truíam a etnicidade. Estou sugerindo que um a das m aneiras dos Trem em ­ bé experim entarem a etnicidade seria a capacidade prolixa, intensa, a verve de discorrer ou contar sobre os índios. A atividade sem ântica e reflexiva da etnicidade term inava por ser disruptiva, não sendo um a experiência rotineira, ainda que já conhecida, sobretudo na Aimofala. Por meio das formas de discurso, os Trem em bé tinham sua experiência singular, reflexiva, m uitas vezes em um processo dialógico com seus interlocutores e com panheiros. w Rosaldo (1986: 97-134), estudando as narrativas dos caçadores Ilongot, m ostra que os “contadores dc histórias” elaboram relatos de caçadas passadas, porém tratam menos dos eventos que “realmente" aconteceram do que os que se espera contar. As narrativas Ilongot destacam o suspense, os exageros, os efeitos retóricos, selecionam fatos mais picarescos ou arriscados a fim de definir o “tipo de experiência” vivida nas caçadas. Rosaldo diz que as narrativas orais dão acesso às experiências mais significativas das caçadas, todas elas construídas culturalm ente e, portanto, esperadas e valorizadas nos discursos.

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Por originar-se do campo sem ântico da etnicidade, essa experiência não po d ia ser hom ogênea (deveria dizer, então, experiências da etnicidadel) . O s Trem em bé da Varjota e do C apim -açu tinham um a experiên­ cia da etnicidade "menos discursiva” do que na Almofala, porém arti­ culada com valores “com unitários” difundidos por agentes pastorais ou por ourros referenciais. Era na Almofala que a propensão reflexiva pa­ recia mais intensa, afinal sempre foi considerada a região “tradicional” dos Trem em bé, ou talvez p orque a relação com os pesquisadores se tornara padronizada ao nível dialógico e esrimulava as formas de dis­ curso. C ontudo, não acredito que as diferenças n a econom ia discursiva produzissem parâm etros de qualificação das experiências, um a m elhor ou pior do que a outra. A im portância da sem ântica da ernicidade foi encontrada nas três situações e pude verificar a ocorrência de sim ilari­ dades estruturais. Além disso, a experiência da etnicidade não envolvia apenas as formas de discurso e as produções semânticas que tratam ou contam do passado. O torém era um ritual que produzia e se estruturava por meio de experiências que podiam ser étnicas. No m eu encontro etnográfico com essas pessoas que denom inei Tre­ m em bé, que são cham adas de Trem em bé, ou, ainda, que se cham am a si mesmas de Trem em bé, com preendi que vivenciava algo extrem am en­ te novo, recente, e que pode ser entendido com o um processo social de definição de um a unidade social. D c outra m aneira, sc os considerasse um grupo m antido e resistente na sua própria história, herança de um passado que pôde ser preservado, estaria desm erecendo um a história mais plausível, rica e consistente, N ão falo da história que norm alm ente se quer im por aos grupos indígenas, aquela que apreende som ente continuidades, perm anências culturais, que encontra vínculos tardios com um passado rem oto. Trato da história repleta de transformações, criatividades, estilhaçam entos, processos sofridos de cam uflagem e unidade, que ora se desm ancham , dissolvem e, porventura, se produzem , com ­ pletam ente diferentes das anteriores. As três situações Trem em bé diferiam entre si pelas formas c padrões de organização social, seja de ocupação e acesso ao espaço e aos recur­ sos naturais, seja no controle das tradições culturais, como o torém, e ainda nos perfis de mobilização étnica. Tais padrões se constituíram ao longo dc processos sociais distintos. D o m esm o m odo, agentes varia­ dos intervieram nas situações e um conjunto de referenciais passou a ser em pregado pelos Trem em bé, sobretudo os da CPT, dos pesquisado­ res e dos m issionários, conform e a entidade. Se os Trem em bé estavam

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sob a égide da singularidade, era p o r sua p ró p ria condição jurídica, ainda náo constituindo um a unidade étnico-política. N en h u m indício sc configurou, de 1988 a 1991, que sugerisse a m obilização efetiva mais global, reunindo as três situações, ao menos as que recebiam prá­ tica missionária. C o n tu d o , quando abordei as formas de aproveitam en­ to da sem ântica da etnicidade, sim ilaridades estruturais entre as três situações puderam ser com preendidas, tornando possível encontrar algo cm com um . Assim mesmo, a possibilidade de seu com partilham ento por parte de diversos atores sociais, m esm o conflitantes, tornava o fenôm e­ no étnico mais complexo. Foi por meio da experiência da etnicidade que os Trem em bé de cada situação estiveram envolvidos em processos posi­ tivos de investim entos étnicos, mesmo quando partiam de sistemas sim ­ bólicos e de representação não específicos, A experiência da diferença étnica era singular e positiva, as três situações convergindo para um a esfera social com um . A prática m issionária e a prática indigenista da FU N A I estavam, porém , já se processando de m odo mais norm atizado cm 1991, o que teria efeitos significativos na definição de um a unidade étnico-política e na construção da identidade Tremembé, mais exclusi­ va, mais estática e centrada em torno da figura genérica do “índio”.

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Sobre os autores

Carlos Guilherme do Valle D o u to r pela University College o f L ondon. Professor do D epartam ento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba.

Henyo Trindade Barretto Filho D o u to r em A ntropologia pela U niversidade de São Paulo. Professor A djunto de A ntropologia da Universidade de Brasília.

José Maurício Andion Arruti D o u to r em A n tropologia Social pelo M useu N acional, U niversidade Federal do Rio de Janeiro.

João Pacheco de Oliveira Professor T itu lar de E tnologia do M useu N acional, U niversidade Fe­ deral do Rio de Janeiro, onde orienta pesquisas e m inistra cursos no Program a de Pós-Graduação em A ntropologia Social.

Rodrigo de Azeredo Griinewald D o u to r em A ntropologia Social pelo M useu N acional, U niversidade Federal do Rio de Janeiro. Professor A ssistente de A n tro p o lo g ia na Universidade Federal da Paraíba.

Sheila Brasileiro D o u to ra em C iências Sociais pela U niversid ad e Federal da Bahia. A ntropóloga do M iuistério Público Federal no Estado da Bahia.

Sidnei Peres D outor em Ciências Sociais pela Universidade de C am pinas.

Silvia Aguiar Carneiro Martins D o utora em A ntropologia pela University o f M anitoba, Canadá, Pro­ fessora da Universidade Federal de Alagoas.

Esta obra foi impressa na cidade do Rio dc Janeiro pela Grâficá Im printã para a Contra Capa Livraria em junho dc 2004.

do passado e a gênese das unidades sociais em que estão inseridas, assim como a investigação da dimensão rituaí e religiosa e dos aspectos políticos e identitários da etnicidade. Sua principal contribuição é chamar a atenção para a importância de uma linha de investigação da antropologia brasileira que analisa a inter-relação entre modalidades de existência de tradições culturais e formas de territorialização, à luz dos jogos identitários, dos usos da memória e das estratégias políticas que expressam faces articuladas dessa relação. Ao tornar disponíveis etnografias e interpretações sobre essa parcela menos conhecida dos indígenas do país, mantém-se a esperança de que a divulgação desses trabalhos propicie bons exemplos de pesquisa antropológica com povos indígenas no Nordeste e permita sua utilização como leitura complementar em cursos de antropologia e disciplinas afins.

Capa Cacique Ramos, liderança Potiguara da aldeia Cumaru, Paraíba, durante as manifestações indígenas na comemoração oficial dos 500 anos, em Porto Seguro, em abril de 2000.

Fotografia Fernando Barbosa (Grupo de Trabalho Indígena/UFPB)

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