Crónica de D. João I de Fernão Lopes Pequena biografia do autor: Não se sabe muito sobre a vida de Fernão Lopes. O cronista terá nascido no seio de uma família humilde, em Lisboa, entre 1380 e 1390, e terá recebido educação de nível superior (aspeto visível na sua obra). Fernão Lopes ocupou vários cargos oficiais: foi guarda-mor da Torre do Castelo de Lisboa, cronista dos grandes reis de Portugal D. João I e D. Duarte, secretário particular do infante D. Fernando e tabelião-geral do reino. A Crónica de D. João I foi escrita por volta de 1450, e constitui, após as crónicas de D. Pedro e de D. Fernando, a terceira e mais perfeita das três grandes crónicas compostas pelo primeiro cronista régio. A crónica: o vocábulo “crónica” designava a narração histórica pela ordem do tempo em que os factos iam acontecendo; a crónica limitava-se a registar os eventos, de forma objetiva e sem lhes aprofundar as causas ou lhes dar qualquer interpretação. Após o século XII, as crónicas passaram a narrar os acontecimentos com abundância de pormenores e a apresentar alguns comentários pessoais dos autores sobre o que se passou, isto é, marcas de subjetividade.
Contexto histórico da Crónica de D. João I: - O bispo da Guarda facilita a entrada naquela cidade do monarca castelhano, João I de Castela que chega a Santarém, onde se encontra com D. Leonor Teles; - João I de Castela cerca Lisboa; - Epidemia de peste; - Morre D. Fernando, nono rei de Portugal; - Regência de D. Leonor Teles; - Revolução de Lisboa; - O Conde Andeiro é assassinado; - O Mestre de Avis pede auxílio a Ricardo II de Inglaterra; - O Mestre de Avis é elevado a regedor e defensor do reino; - Início do reinado de D. João I Com a morte de D. Fernando, em 1383, ficou como regente a sua viúva, D. Leonor Teles, até que a sua única filha legítima, a Infanta D. Beatriz, assumisse o trono. Porém, esta era casada com D. João I, rei de Castela, e assim sendo, na hipótese de D. Beatriz ser aclamada, estaria em causa a independência de Portugal. Perante esta crise, a população de Lisboa insurgiu-se contra D. Leonor Teles. A revolta foi liderada por D. João, Mestre de Avis, filho bastardo de D. Pedro. O Conde Andeiro, fidalgo galego e amante da rainha, é assassinado pelo Mestre de Avis. D. Leonor Teles pediu auxílio ao rei de Castela.
O rei de Castela, apesar de o contrato de casamento ter previsto que o reino de Portugal e o de Castela ficariam sempre separados, acabou por invadir Portugal, originando vários confrontos em que os Portugueses saíram sempre vencedores: Cerco de Lisboa (1384); Batalha de Atoleiros (1384); Batalha de Aljubarrota (1385); Batalha de Valverde (1385). O Mestre de Avis foi aclamado rei de Portugal nas Cortes de Coimbra em 1385 e a paz com Castela veio a ser assinada em 1411.
Crónica de D. João I
Esta crónica, impressa pela primeira vez em Lisboa, em 1644, foi deixada incompleta por Fernão Lopes, sendo de sua autoria a primeira (o interregno entre a morte de D. Fernando e a eleição de D. João I) e a segunda parte (o reinado de D. João I até 1411), não se sabendo se terá legado manuscritos para a terceira parte, redigida pelo seu sucessor, Gomes Eanes de Zurara, conhecida como Crónica da Tomada de Ceuta. É no prólogo da Crónica de D. João I que o cronista expõe o seu objetivo e método de historiar inovador. O seu desejo é "em esta obra escrever verdade sem outra mistura", para o que faz concorrer toda a gama de documentos possível, desde narrativas a documentos oficiais, confrontando-os entre si para assegurar a veracidade dos registos existentes. Ao mesmo tempo, esta crónica estabelece, de certa forma, o ponto de chegada das duas crónicas precedentes, na medida em que estas preparam os acontecimentos que culminam com a sublevação
popular
e
consequentemente,
com
a
entronização
de
D.
João
I.
A primeira parte da crónica descreve a insurreição de Lisboa na narração célere dos episódios quase simultâneos do assassinato do conde Andeiro, do alvoroço da multidão que acorre a defender o Mestre e da morte do bispo de Lisboa. Ao longo dos capítulos, fundamenta-se a legitimidade da eleição do Mestre, consumada nas cortes de Coimbra, na sequência da argumentação do doutor João das Regras, enquanto desfecho inevitável imposto pela vontade da população. Nesta primeira parte, o talento do cronista na animação de retratos individuais, como os de D. Leonor Teles ou D. João I, excede-se na composição de uma personagem coletiva, o povo, verdadeiro protagonista que influi sobre o devir dos acontecimentos históricos. Na segunda parte, o ritmo narrativo diminui, tratando-se agora de reconhecer o rei saído das cortes, e é de novo pela ação do povo que a glorificação do monarca é transmitida, como, por exemplo, no modo como o acolhe a cidade do Porto. Um outro momento de maior relevo é consagrado, nesta parte, à narrativa da Batalha de Aljubarrota, embora aí não ecoe o mesmo tom de exaltação com que, na primeira parte, colocara em cena o movimento da massa popular.
- Narra os acontecimentos com bastante detalhe, conferindo-lhe maior visualismo e veracidade; - Inclui várias perspetivas, nomeadamente a do Povo; - Tem uma dimensão interpretativa e estética; - Apresenta comentários pessoais do autor. - Duas partes divididas em capítulos: 1.ª Parte - Narração dos acontecimentos desde a morte do rei D. Fernando até à subida ao trono de D. João I; 2.ª Parte - Narração dos acontecimentos ocorridos durante o reinado de D. João I. personagens individuais - Mestre de Avis, Álvaro Pais, D. Leonor Teles, D. João I de Castela; personagem coletiva – o povo (afirmação da consciência coletiva); crise de 1383-1385 (época em que o país estava sem rei); consciencialização de responsabilidades e liberdade, por parte do povo; O povo assume um papel decisivo na nomeação do Mestre de Avis, como futuro rei. - Momentos-chave da revolução: Preparação do cerco de Lisboa; miséria provocada pela falta de mantimentos durante o cerco.
O povo assume grande protagonismo nas crónicas de Fernão Lopes. O cronista dá vida às multidões, transformando-as numa força unificada, principalmente através do movimento que lhes imprime e que elas cumprem como se fossem um ser único, um ator coletivo. Exemplo disso, na Crónica de D. João I, é o tumulto que ocorre quando o povo de Lisboa pensa que o Mestre de Avis vai ser assassinado. O grande ator das crónicas de Fernão Lopes é, na verdade, o povo: tem papel decisivo na fase de nomeação do Mestre na vivência heroica dos grandes momentos da revolução, na preparação do cerco, de forma empenhada e valorosa, na vivência da miséria associada à falta de mantimentos durante o cerco. A existência do povo como sujeito da História, do povo que se sente senhor da terra onde nasce, vive, trabalha e morre e que ganha consciência coletiva contra os que querem senhoreá-lo, do povo que é a fonte última do direito, é a grande realidade que ressalta das crónicas de Fernão Lopes. […] [O] povo é o que ganha a sua vida quer com o trabalho manual (mesteirais e lavradores), quer com a «indústria», isto é, a atividade, habilidade e iniciativa em qualquer ramo produtivo e pacífico. António José Saraiva, Fernão Lopes, in Isabel Allegro de Magalhães (coord.), História e antologia da literatura portuguesa – século XV, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, pp. 43-61 (texto adaptado)
Esquemas síntese dos capítulos 11, 115 e 148 Capítulo 11 - “Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavom o Meestre…” . Sequências narrativas que estruturam o capítulo: 1.ª - Mobilização da população da cidade pelos partidários do Mestre de Avis; 2.ª - A multidão rodeia o Paço e ameaça invadi-lo; 3.ª - O Mestre de Avis surge à janela e dirige-se à multidão para a pacificar; 4.ª - O Mestre é informado do perigo em que se encontra o Bispo de Lisboa . Narrador omnisciente: mostra as intenções e as emoções das personagens; narra o plano da morte do conde Andeiro Plano arquitetado por Álvaro Pais e pelos partidários do Mestre.
Personagens: individuais (O Mestre de Avis e figuras do movimento de apoio à sua ação) e coletiva (o povo/ multidão). O Mestre de Avis, figura carismática, populista aparece à janela, pois pretende obter o apoio da população: é gentil — dirige-se à multidão com termos afáveis; humano — pretende salvar o Bispo de Lisboa; carismático — consegue liderar a revolta contra a fação castelhana; desejado — a população de Lisboa acorre para o salvar, pois associa-o ao seu pai, D. Pedro I, e à ideia de independência. Dinamismo da narração e marcas linguísticas - utilização de: verbos de movimento, de verbos declarativos, do imperfeito do indicativo e do gerúndio, recurso ao discurso direto, emprego de advérbios expressivos, lexico relacionado com movimento ou ruído, descrição de espaços de forma gradual (rua, janela do Paço, rua, Paços do Almirante).
Capítulo 115 - «Per que guisa estava a cidade corregida para se defender, quando el-Rei de Castela pôs cerco sobre ela.» - Preparativos para a defesa da cidade: • Mantimentos; • Recolha de víveres; • Transporte do gado morto em embarcações; • Salga dos víveres. • Colocação de material bélico nas torres; • Colocação de catapultas nas torres; • Atribuição de áreas de defesa (nas muralhas, especialmente) a alguns fidalgos ou cidadãos apoiados por grupos de soldados; • Combinação sobre o alarme (repicar do sino); • Torres com vigias noturnas; • • Apenas oito portas da cidade abertas e guardadas por homens armados; • Chaves de algumas casas eram guardadas à noite e recolhidas no Paço. - Defesa
D. João, Mestre de Avis - retrato de um líder: Atribui as tarefas de defesa aos responsáveis. Confirma, de noite, se as muralhas e as portas estão seguras. Entrega as chaves só a homens da sua confiança. Manda construir estacas para defender a zona da Ribeira. Atribui funções de defesa e proteção. Envolvimento pessoal nas tarefas D. João, Mestre de Avis
Caracterização da população da cidade de Lisboa: patriotismo e unidade. Respeito pelas ordens do líder. Envolvimento pessoal nas tarefas. Coragem e audácia. Elementos de várias classes sociais, como os mesteirais, fidalgos, membros do clero, raparigas.
Capítulo 148 - «Das tribulações que Lixboa padecia per mingua de mantimentos.» Personagem principal: a cidade que sofre as consequências do cerco castelhano. Sequências narrativas que estruturam o capítulo: 1.ª - Motivo das dificuldades: demasiada população; a população das aldeias em redor recolheu-se à cidade. 2.ª - Consequências económicas do cerco de Lisboa. 3.ª - Consequências sociais do cerco de Lisboa. 4.ª Consequências psicológicas do cerco de Lisboa. 5.ª - Conclusão emotiva do cronista sobre o sofrimento da cidade; interpelação ao leitor; lamento pelos que sofreram.
Repercussões do cerco na vida da capital: • Falta de produtos alimentares (sobretudo trigo); • Inflação (produtos demasiado caros). • Aumento de doenças devido ao mau regime alimentar; • Subnutrição e consequências na saúde da população; • Pobreza e mendicância; • Aumento da taxa de mortalidade. • Ambiente geral de tristeza e desespero; • Discussões; • Desejo de morte; • O sofrimento quotidiano não impede que a população se lance ao combate, quando isso é necessário; Consequências económicas, sociais e psicológicas do cerco: • Atitude da população face às dificuldades; • Reação do Mestre de Avis às circunstâncias em que a cidade se encontra: • Atitude introvertida: as pessoas choram sozinhas e lamentam-se; preferem a morte à desgraça quotidiana. • Atitude dirigida para o exterior: os habitantes dialogam e queixam-se por saberem que sofrem pelo facto de não se renderem aos castelhanos. Primeira referência: comoção com o sofrimento da população (o Mestre como um ser sensível e humano). Segunda referência: preocupação com a população (não se confirma o rumor de expulsar de Lisboa quem já não tivesse pão).
Linguagem e estilo: • Coloquialismo - O próprio autor chama ao seu discurso “falamento”. Se quisermos analisar o estilo de Fernão Lopes, deveremos começar pelo que nos é imediatamente sensível: a sua extraordinária oralidade. Estamos perante um homem que fala a uma assembleia. Recursos expressivos (interrogação retórica, apóstrofe) e interpelação do interlocutor, recorrendo à 2ª pessoa do plural. • Visualismo – descrição e narração detalhadas e quase pictóricas. Recursos (comparação, personificação, enumeração, hipérbole) e vocábulos que marcam o sensorialismo da
linguagem (atos de ver e ouvir). Uso da técnica da reportagem: o leitor "vê" e "sente" os acontecimentos, está no centro da ação. • Objetividade vs subjetividade - Objetividade presente no rigor da pormenorização (cf. Descrições pormenorizadas com valor descritivo e informativo). Subjetividade presente na apreciação crítica e emotiva dos factos relatados (interrogação retórica, frase exclamativa). “pensa alto, comenta, interpela” • Conjugação de planos - planos gerais (focalização da cidade e dos atores coletivos que nela intervêm) e planos de pormenor (incidência em grupos de personagens e/ou situações particulares). •Dinamismo - recriação dos acontecimentos de forma dinâmica. • Uso do discurso direto e indireto, misturados, com períodos longos e curtos e alternados.