C.G. UNG Seminários sobre sonhos de • crianças Sobre o método da interpretação . dos sonhos Interpretação psicológica de sonhos de crianças
tli EDITORA Y VOZES
1 Sobre o Método da Interpretação dos Sonhos
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Prof. Jung: Neste seminário nos dedicaremos principalmente aos sonhos de cri:ças. Além disso, alguns livros, cujo tema é o significado dos sonhos, devem ser utidos. Muitos dos sonhos a serem trabalhados foram fornecidos pelos particites dos seminários. Foram recordados, em sua grande maioria, por adultos e não q>erimentados diretamente pela criança. Há aqui uma dificuldade, pois no caso sonhos recordados não podemos mais interrogar diretamente a criança, e sim recisamos lançar mão de outros meios para ampliar o material onírico e compreenr o sonho. Porém, nos encontramos igualmente em uma situação difícil quando sumimos os sonhos diretamente das crianças, pois precisamos contar com a possiilidade de a criança não nos fornecer informação alguma ou que, devido ao medo, - faça qualquer associação. Além disso, a falta de associações se deve à natureza s sonhos infantis: trata-se da manifestação de uma parte do inconsciente que se ncontra fora do tempo. Esses primeiros sonhos são particularmente significativos, is emanam das profundezas da personalidade e não raro apresentam uma anteci~ão do destino. Os sonhos infantis mais tardios se tornam gradativamente menos portantes, a não ser que se trate de um destino especial do sonhador. Durante a herdade, até os vinte anos, os sonhos voltam a ser mais significativos para, em seida, perder a importância, recobrando a mesma a partir do trigésimo quinto ano le vida. Isso não acontece com todas as pessoas, porém, na maior parte dos casos. Por isso peço aos senhores que investiguem suas próprias recordações, se são capazes de lembrar do primeiro sonho de sua vida. Muitos chegam a se lembrar dos sonhos de seu quarto ano de vida, outros chegam a se lembrar de sonhos que provêm do terceiro ano de vida. Quem sabe, os senhores podem igualmente perguntar aos seus conhecidos e amigos se eles se lembram de seus primeiros sonhos. Mas os senhores também precisam considerar aquilo que sabem da vida posterior dos sonha-
l. Sessão 25/10/1938.
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dores e a respeito da família destes - caso a.conheçam - e se por acaso notaram alguma peculiaridade em relação a esta. Antes de iniciarmos a discussão de cada um dos sonhos, gostaria de fazer mais algumas considerações a respeito do método da interpretação dos sonhos. O sonho é, conforme sabem, um fenômeno natural. Não é fruto de uma intenção. Não podemos explicá-lo a partir de uma psicologia que provém da consciência. Trata-se de um modo específico de funcionamento que não depende da vontade e do desejo, da inte nção ou do objetivo do Eu humano. É um acontecimento não inte ncional, assim como todos os acontecimentos da natureza. Não podemos deduzir que o céu se cobre com nuvens para nos irritar, e sim, a coisa simplesmente acontece dessa forma. A dificuldade, entretanto, é como assimilamos esse acontecimento natural. O melhor a fazer é permitir que as coisas nos atinjam, mantendo-nos o mais imparcial possível. Não obstante, tudo que dizemos sobre elas permanece nossa interpretação. Encontramo-nos na mesma situação que qualquer cientista natural que se dedica a fenôme nos que não nos revelam seu sentido, nem suas leis. Todo sentido atribuído ao acontecimento provém de nós. Encontramo-nos perante a difícil tarefa de traduzir os acontecimentos naturais para a linguagem psíquica. Para tal, lançamos mão de expressões que nos auxiliam e disfarçam nosso embaraço, fom1amos hipóteses ... Contudo, sempre permanece a dúvida se somos capazes de reproduzir o acontecido. Podemos naturalmente argumentar que nada disso faz sentido. Se tudo for subjetivo, podemos igualmente dizer que não existem leis na natureza, que tudo é um caos. Apesar de ser uma questão de temperamento se aceitamos o sentido, mesmo se ainda não o compreendemos ou se preferimos dizer: "Nada disso faz sentido". Porém, podemos defender a opinião de que toda forma de atribuir sentido, seja lá qual for, é sempre uma suposição humana acerca daquilo que acontece e tentar, mesmo assim, alcançar o real estado das coisas. Todavia, jamais temos certeza se realmente iremos alcançar tal objetivo. Essa insegurança, porém, pode ser parcialmente sanada na medida em que aplicamos esse sentido a outras equações, \·erificando em seguida se estas apresentam uma solução coerente. Desse modo podemos criar uma suposição a respeito do sentido de um sonho, averiguando em seguida se este significado explica igualmente outro sonho, isto é, tem-se um significado mais geral. Podemos igualmente lançar mão de testes-controle no caso de séries oníricas. Gostaria de trabalhar os sonhos das crianças a partir de séries oníricas, pois quando examinamos os sonhos a paiiir de séries, obtemos um controle um tanto valioso, na medida em que encontramos, nos sonhos subsequentes, confirmações e correções das suposições criadas anteriormente. Nas séries oníiicas os sonhos encontram-se interligados de modo coerente. É como se procurassem expressar a partir de perspectivas sempre diversas um conteúdo central. Quando tocamos nesse núcleo significativo, encontramos a chave para explicar os sonhos individualmente.
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nem sempre é fácil delimitar uma série onhica. Trata-se de um tipo de monóque se realiza por baixo do limiar da consciência. Esse monólogo é, por assim , ouvido durante o sonho; no estado desperto, é como se perdesse a força. Mas '-·erdade o monólogo jamais termina. Provavelmente sonhamos constantemente; a consciência, porém, produz tantos ruídos que não somos capazes de omi r o sonho no estado despeito. Caso conseguíssemos elaborar um registro completo [dos processos inconscientes] seríamos capazes de perceber que tudo segue uma detemü..ada linha. É um trabalho muito difícil quando realizado de modo minucioso. A fonna como explicamos os sonhos é primeiramente causal. Tendemos a aprentar a natureza de modo causal. Nesse caso, porém, a explicação se depara com nnensas dificuldades, pois aquela do tipo estritamente causal é possível somente 1 :iando a relação necessária enh·e causa e efeito pode ser provada. Essa relação uní"'Ca pode ser constatada principalmente na natureza, por assim dizer, inanimada. empre quando é possível isolar fenômenos, quando esses podem ser submetidos experimento, em outras palavras, quando condições similares podem ser estabe.-cidas, é possível realizar uma classificação mais eshita de causa e efeito. ~o caso fenômenos biológicos, por sua vez, somos quase incapazes de perceber uma · posição que conduz necessariamente a deteiminados efeitos, visto que aqui lidacom um material de tamanha complexidade, com tamanha multiplicidade e incalculável variedade desordenada de condições, o que torna impossh·el afimiarmos lações causais unívocas. Por conta disso, o teimo condicional é bem mais adequado. é, determinadas condições podem resultar em determinadas consequências. :-rata-se de uma tentativa de dissolver a causalidade rígida a partir do entrelaçante de condições, de ampliar a relação unívoca de causa e efeito por meio dos dirsos significados que essa relação possa ter . A causalidade por si só não é abolida, illn, apenas adaptada à natureza multifacetada de tudo que é vivo. É preciso conlclerar que a psique em si possui, assim como todos os fenômenos biológicos, uma e.dureza finalista, olientada para um fim. Isso não se opõe de foima alguma ao ponde vista me ncionado anteliormentc de que o sonho consiste em um acontecinto não intencional, pois lá enfatizamos o fato de os fenômenos naturais ocorrerem de modo inconsciente, independentemente da consciência, fato este que não eiclui a possibilidade de as foimas em desenvolvimento da psique seguirem uma fir:.olidade inconsciente. Não podemos evitar a suposição de que a essência fundamental existe desde sempre, de que tudo que existe é somente um desdobramento cle natureza finalista dessa disposição original. Mesmo aquilo que parece não pos~ nenhuma finalidade psíquica ou até biológica pode ainda ser investigado em relação à sua possível finalidade. A medicina antiga, por exemplo, acreditava que a - bre era um sintoma patológico em qualquer circunstância e que deveria ser comtido. A medicina moderna, porém, sabe que se trata de um fenômeno de defesa complexo que tem uma finalidade própria ao invés de considerá-lo a noxa que causa 17
a doença. -o caso do trabalho com os sonhQs, também não devemos perder de vista o aspecto da finalidade interna do acontecimento. Nesse sentido, podemos falar da finalidade inconsciente do acontecimento onírico, ressaltando, portanto, que não se trata de objetivos conscientes, de intenções que se assemelham àquelas da consciência, e sim, de automatismos finalistas que assim como as reações celulares não podem ser nada além de finalistas. O sonho não é um fenômeno unívoco. Existem diversas fom1as de significar os sonhos. Vou lhes dar quatro definições com as quais me deparei, que formam algo como o extrato das diversas possibilidades de significar um sonho. 1) O sonho representa a reação inconsciente frente uma situação consciente. Uma determinada situação consciente é seguida por uma reação do inconsciente na forma de um sonho, trazendo conteúdos que- de modo complementar ou compensatório - apontam claramente para a impressão que se obteve durante o dia. É evidente que o sonho jamais teria se formado na ausência de uma determinada impressão obtida no dia anterior. 2) O sonho representa uma situação que é fruto do conflito entre consciência e inconsciente. Nesse caso, não existe uma situação consciente que pode, em maior ou menor grau, ser responsabilizada pelo mesmo, e sim, lidamos aqui com certa espontaneidade do inconsciente. O inconsciente acrescenta a uma detem1Ínada situação consciente uma outra situação, a qual difere de tal modo da situação consciente que se forma um conflito entre ambas.
3) O sonho representa a tendência do inconsciente cujo objetivo é uma modificação da atitude consciente. Nesse caso, a posição oposta assumida pelo inconsciente é mais forte do que a posição consciente: o sonho representa um declive que se origina no inconsciente e vai em direção à consciência. Trata-se de sonhos especialmente significativos . Podem transformar alguém que assume uma determinada atitude por inteiro. 4) O sonho representa processos inconscientes que não evidenciam uma relação com a situação consciente. Sonhos dessa espécie são muito peculiares e, devido ao seu caráter estranho, não podem ser interpretados facilmente. O sonhador se admira um tanto por sonhar algo assim, pois nem mesmo uma relação condicional pode ser estabelecida. Trata-se de um produto espontâneo do inconsciente que porta toda atividade e é altamente significativo. São sonhos imponentes. Sonhos que os primitivos designam de "sonhos grandes". São de natureza oracular, "somnia a deo missa"2• São experimentados como iluminação.
2. Do latim: "sonhos enviados por Deus" (ed.).
Sonhos dessa espécie manifestam-se igualmente antes da eclosão de uma ' ça mental ou de neuroses graves nas quais irrompe subitamente um conteúdt. ,. impressiona o sonhador profundamente, mesmo quando não o compreende. cordo-me de um caso destes que ocorreu antes da guerra mundial: Fui visitado por um velho homem que era professor de Direito Canônico em uma universidade católica. Ele inspirava respeito, assim como o Yelho Mommsen 3. Precisava resoh-er algo de ordem formal comigo. Assim que resolveu a quest ão, disse-me: "Soube que o senhor também se interessa por sonhos". Respondi: "Faz parte do meu trabalho". Percebi que ele estava ansioso para me contar um sonho, o que fez logo em seguida. Era um sonho que teYe muitos anos atrás e com o qual se ocu pava sempre de novo. Ele está em uma passagem estreita entre as montanhas, à margem de um abismo. Embaixo tem um barranco. A passagem é delimitada por um muro. O muro é feit o de mármore d e Paros, que possui aquela tonalidade amarelada antiga conforme reconhece imediatamente. Neste momento vê uma figura estranha descendo o muro dançando, uma mulher nua que possui as pernas de uma cabra-montês, uma "Fauna". Ela pula no abismo e desaparece. - Em seguida ele acorda.
E ste sonho o preocupou muito. Já o havia contado a várias pessoas. Outro sonho é o de um homem de trinta anos que me consultou em função de uma neurastenia que havia começado de modo relativamente súbito, pois ele era tutor de príncipes e teve um colapso nervoso durante esse serviço árduo. Fiquei admirado com o fa to de esta neurastenia, que nestes casos normalmente já exist e há um t empo, piorando meramente com o passar do tempo, ter aparentemente começado de forma t ão súbita. Perguntei a ele o que aconteceu na época quando começou a ter os ataques de tontura e dores. Primeiro disse que nada de especial havia acontecido. Per guntei por sonhos ocorridos na época. Então veio à tona que teYe um sonho estranho e logo em seguida a doença eclodiu. Ele caminha por uma duna e de repente encontra cacos negros no chão. Ele os pega. São cacos pré-históricos. Vai para casa, busca uma cavadeira, começa a abrir o chão e encontra todo um assentamento pré-histórico, armas e instrumentos, machados de pedra etc. Fica muito fascinado e acorda suando de tanta excitação. O sonho se repetiu e em seguida o paciente t eve um colapso. Era um jovem suíço.
Durante o tratamento psicoterapêutico, determinados conteúdos já podem aparecer semanas, meses ou anos antes. São conteúdos que ainda não possuem qualquer ligação com a consciência; são produções diretas do inconsciente.
3. T. Mommsen, historiador e jurista, 1817-1903, autor da Romischen Geschichte [História romana] (ed.).
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Conforme os senhores podem ver, diferencio os processos oníricos de acordo com o tipo de relação existente entre as reações do inconsciente e a situação consciente. É possível verificar as mais variadas transições que se estendem desde uma reação do inconsciente vinculada diretamente aos conteúdos da consciência até uma manifestação espontânea do inconsciente. I este último caso, o inconsciente se manifesta através de sua atividade criativa, na medida em que faz com que conteúdos ainda não presentes na consciência penetrem nesta. Geralmente se supõe que o conteúdo onírico possui uma relação com a consciência, suge1indo, por exemplo, que os conteúdos psíquicos conscientes encontram-se vinculados aos conteúdos inconscientes de modo associativo. Foi a partir disso que se criou a teoria de que o sonho deveria ser compreendido exclusivamente a partir da consciência, quer dizer, o inconsciente por si só seria um derivado da consciência. Isso porém não procede, observamos justamente o contrário: O inconsciente é mais antigo do que a consciência. O homem primitivo vive prioritariamente na inconsciência, aliás, também nós passamos um terço de nossa vida no estado inconsciente, quando dormimos ou nos encontramos em um estado crepuscular. O inconsciente é aquilo que é dado originalmente, a partir do qual a consciência acaba sempre emergindo de novo. Estar consciente é um esforço que nos esgota. Por isso podemos nos manter concentrados por um período de tempo relativamente curto para, logo em seguida, sucumbir novamente a um estado inconsciente, submergindo em sonhos ou associações não intencionais. É tal como Fausto diz: "Formação, transformação, entretêm eternamente seu eterno pensar"4 • Sendo assim, existem sonhos cujos conteúdos não deixam transparecer relação alguma com a consciência, cuja atividade plena se encontra no inconsciente. Tudo- o tema do sonho e a atividade do sonho - origina-se no inconsciente e não pode ser derivado da consciência. Quando se "força" um sonho desta espécie para transformá-lo em um derivado da consciência, simplesmente violentamos o sentido do sonho e aquilo que se cria é uma total falta de sentido. Os processos oníricos estão relacionados a diversas razões e condições. Existem cerca de cinco possibilidades diferentes para sua origem Uung menciona explicitamente quatro dessas possibilidades e depois uma sexta (N .T.)].
1) Podem provir de fontes somáticas: percepções corporais, estados patológicos ou indisposições físicas. Pode tratar-se de manifestações corporais que, por sua vez, são ocasionadas por processo psíquicos totalmente inconscientes. Os antigos interpretadores de sonhos faziam um grande alarde em relação à fonte somática de estí-
4. J.\V. Goethe. Fausto II 1° ato. Tradução Flávio M. Quintiliano. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.] (ed .).
mulos, explicação esta que até hoje encontramos com frequência. A psicologia experimental ainda defende o ponto de vista de que os sonhos precisam ser remetidos sempre a algo somático. Trata-se daquela concepção antiga do sonho que afirma que talvez comemos em excesso "à noite", deitando-nos em seguida de bruços ou de barriga para cima e em consequência disso teríamos tido o sonho específico. 2) Outros eventos físicos - que não ocorrem no próprio corpo, e sim, no meio ambiente - podem influenciar o sonho: ruídos, estímulos luminosos, frio e calor. Gost aria de trazer um exemplo da literatura francesa: Alguém sonha que «está na Revolução Francesa. É perseguido e p or fim guilhotinado. Acorda na hora que o mach ado cai" - foi na hora que ;.::n pedaço da parte superior da cama - trata-se de uma cama com sobrecéu - cai bem em seu pesuço. Quer dizer, ele deve ter tido o sonho bem na hora que o pedaço da cama caiu.
Exemplos desse tipo muitas vezes levam à opinião de que um sonho assim, no qual lEmos uma sensação nítida do tempo, oc01Te em um espaço de tempo muito curto. Lembro-me, por exemplo, de um sonho desse tipo que ocorreu em minha juventude: Quando r:s..l!dante, tinha que acordar às cinco e meia da manhã, pois o seminário de botânica começava ás <.e..e, algo que me aborrecia muito. Precisava sempre pedir que me acordassem, a empregada dotica tinha que dar murros na porta para que enfim despertasse. Foi aí que tive um sonho reple- d.e detalhes. Estava lendo o jornal. Este dizia que havia ocorrido certa tensão entre a Suíça e o exterior. Então vieram muitas p essoas e discutiram a situação politica; em seguida veio um novo jornal com novos telegramas e artigos. Muitas pessoas estavam aborrecidas. Novas discussões e cenas ocorreram na rua, por fim toda uma mobilização: soldados, artilharia. Atiravam com canhões - agora a guerra estourou - mas... eram os murros na porta. Tive a nítida sensação do sonho ter demorado muito tempo, chegando ao ponto máximo na hora dos murros.
Para provar a concepção de que os sonhos na verdade não possuem qualquer dimensão temporal, e sim, que ocorrem somente no momento do estímulo auditivo, ~coerente mencionar as percepções altamente complexas que ocorrem na hora de mna queda. O conhecido geólogo suíço Heim 5 viu passar sua vi.da inteira diante de seus olhos durante os ~·es segundos de sua queda. A lüstória de um almirante francês relata algo semelhante. Ele caiu o água e quase se afogou. Nest e breve momento, as imagens de sua vida inteira passaram por ele.
5 . .\ . Heim, 1849-1937. Zurique (ed.).
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Nesses casos, porém, o fato de esses momentos estarem carregados de uma enorme intensidade deve ser considerado. Podemos ter uma visão geral que não é nada sucessiva. No sono não existe essa intensidade. É essa a questão. Por isso, esses casos não explicam a ausência da dimensão temporal dos sonhos. Para ser franco, penso sempre em outra possibilidade, um tanto extravagante: No caso do inconsciente há algo diferente no que tange à noção de tempo; no inconsciente o tempo sai um pouco do eixo, quer dizer, o inconsciente permanece sempre à parte do decurso do tempo percebendo fatos que nem existem ainda. No inconsciente tudo existe desde o início. Sonhamos, por exemplo, com frequência, com um motivo que terá importância somente no próximo dia ou quem sabe até mais adiante6• O inconsciente pouco se importa com nosso tempo ou com a relação causal que estabelecemos entre as coisas. Podemos observar o mesmo no tocante às séries oníricas. A série não cria uma sequência cronológica no sentido da sequência temporal que nos é familiar. Por isso é tão dificil estabelecer o que veio antes e o que depois. Quando desejamos caracterizar a natureza dos sonhos, podemos dizer que estes não formam uma série cronológica no sentido de: a--t b --t c--t d, onde b resultaria de a e c de b. Pelo contrário, devemos considerar a ideia de um centro incognoscível, o qual irradia os sonhos. Podemos ilustrar tal ideia da seguinte maneira:
Devido ao fato de os sonhos alcançarem um atrás do outro a consciência, os concebemos por meio da categoria temporal e estabelecemos relações casuais entre os mesmos. Porém, nesse caso não podemos excluir a possibilidade de que a real sequência do primeiro sonho alcance o inconsciente somente muito mais tarde. Quer dizer, a série aparentemente cronológica não é a série real. Quando concebemos as coisas dessa maneira, fazemos uma concessão no que tange à nossa ideia de tempo. Existem processos oníricos que, de repente, são permeados por um novo tema que, em seguida, é deixado novamente de lado para ceder espaço para o tema anterior. A verdadeira disposição do sonho é radial: os sonhos são irradiados de um centro e somente depois sofrem a influência do nosso tempo. Em última instância, encontram-se orde nados em tomo de um centro de significado.
6. Cf. J.W. Dunne: An Experiment with Time.
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.\"o inconsciente, precisamos contar com categorias diferentes daquelas da iência; ocorre aqui algo semelhante do que na física, onde os fatos são modifis a partir da atividade da observação como, por exemplo, no caso da observação núcleo atômico. Parece que no mundo microfísica do átomo as leis que regem - outras das do mundo macrofísico. Existe, nesse sentido, certo paralelismo entre :.'l.consciente e o mundo microfísica. O inconsciente poderia ser comparado ao · eo atômico . .\"a vida cotidiana os senhores podem igualmente observar como o inconsciente liecipa certas coisas. Trata-se muitas vezes de coisas bastante inofensivas que não
em significado algum mais amplo, como, por exemplo, os seguintes fenôme: Os senhores se encontram na rua e acreditam ver um conhecido. Não é ele, :.JS logo em seguida ele aparece. Esse tipo de "percepções inespecíficas" estranhas - muito frequentes. São tão pouco significativas e nos dizem tão pouco que normalmente as ignoramos e pensamos: "Quanta coincidência!" :Mas existem exemque são simplesmente fabulosos. Um exemplo deles ocorreu com um amigo meu da universidade. Era um cientista natural. Seu Pal lhe promet eu uma viagem para a Espanha caso realizasse seu exame final com êxito. Imediatate antes d o exame teve um sonho que me cont ou de imediato. 8e se encontra em uma cidade espanhola. Passando por uma rua, chega em uma praça, na qual desembocam diversas ruas e que se encontra fechada por uma catedral Passeia pela praça e, devido ao fato de desejar ver a catedral primeiramente de lado, ele vai para a direita. Na hora que emboca naquela rua, chega uma charrete com dois cavalos de cor isabel. Em seguida acorda. Ele me contou que o sonho lhe impressionou muito por a imagem ter sido de t amanho brilho e ~a.
Três semanas depois, após seu exame, viajou para a Espanha. De lá recebi a noticia de que o so::ho havia se realizado. Deparou-se com uma praça assim em uma cidade espanhola. Recordou-se miediatamente do sonho e disse a si mesmo: UE se essa questão dos cavalos na rua ao lado também ,·erdade?'' Foi até a rua ao lado [...] e os cavalos estavam lá! - Era um homem totalmente confiárei, hoje em dia t em um cargo público e jamais chamou atenção em função de coisas dessa espécie, pelo contrário, era conhecido pelo seu modo de ser seco e sua sobriedade proverbial. Nunca mais soube de nada parecido a respeito dele.
a
Este caso também não é nenhuma exceção. Existem inúmeras experiências, desse tipo. Quando tratamos de muitos pacientes neuróticos é possível ter diversas percepções dessa espécie. Com tempo reconhecemos o caráter típico dessas percepções e podemos de antemão chamar a atenção dessas pessoas em relação a algo futuro. Nesses casos costumo dizer: "Agora você precisa tomar cuidado, algo vai 2Contecer!" Apresento o seguinte sonho como exemplo:
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Trata-se de uma paciente de meia-idade. Durante um tempo seus sonhos falavam de um problema especifico. De repente surge um sonho que não parece ter nenhuma relação com nada: Ela estava sozinha em uma casa. Estava anoitecendo. Ela andou pela casa pata fechar todas as janelas. Lembrou-se então da porta dos fundos que também deveria fechar. Foi até a porta e percebeu que não tinha uma fechadura. Questionou-se o que d everia fazer e começou a procurar por móveis ou caixas para colocá-las em frente à porta. Enquant o isso, ia escurecendo cada vez mais, a atmosfera ficou cada vez mais estranha. De repente a tal porta se abriu, uma bala preta passou pela mesma e a atingiu no meio do ventre. Ela acordou gritando7• Era a casa de uma tia que mora\'a nos Estados Unidos. Ela haYia estado lá vinte anos atrás. A família encontrava se toda estilhaçada em função de uma briga e justamente com est a tia ela estaYa especialmente estremecida. Não a via há vinte anos e não manteve nenhum vínculo com ela. Não sabia se esta tia ainda morava nesta casa e se ainda estava viva. Informei-me com a irmã da paciente sobre a veracidade deste relato e ela confirmou que sim. Pedi a paciente que anotasse o sonho jun tamente com a data. Três semanas depois veio uma carta dos Estados Unidos, dizendo que a tia morreu. E ela morreu no dia que a paciente teve o sonho. Este é um sonho típico.
Efeitos semelhantes a estes, seja lá de que espécie, muitas vezes têm o caráter de um tiro. Recordo os senhores do famoso "Hexenschuss" [Original: Hexenschuss, tradução literal: Tiro de bruxa. Expressão coloquial para lumbago ( · .T.)]. Encontramos a mesma ideia entre os índios norte-americanos. O curandeiro pode "atirar" em alguém com algo, por exemplo, com a assim chamada estalactite de gelo, no intuito de adoecer o outro. Um livro inglês sobre a mística Anna Kingsford apresenta noções semelhantes8 . Ela acreditava possuir essas mesmas capacidades de provocar efeitos desse tipo. Parece que no Tibete os Iogues são capazes de exercer influências maléficas sohre os outros9 . Aquilo que irradiam possui um formato alongado. O que, exatamente, ocorre nesse caso escapa ao nosso conhecimento. O consensus gentiurn, porém, reforça o mesmo. Os tibetanos nada sabem sobre a literatura inglesa e minha paciente nada sabe sobre o Tibete . .Mas deve existir uma fonte em comum para essa suposição que deve se encontrar associada a uma realidade psíquica peculiar que não podemos explicar de primeira. Nesse caso, sou totalmente adverso a assumirmos soberbamente o trono do ceticismo afirmando tratar-se de falácia. O que me interessa é o fato desse tipo de coisa ser assegurado em todos os lugares. É uma ideia tão difundida quanto aquela que diz que aqueles que faleceram não sabem que estão mortos e que precisam ser instruídos nesse sentido para que possam descansar em paz. Entre os espiritistas, primitivos e nos textos tibetanos no Bardo Thõdol "os senhores encontram instruções sobre como fazer o morto sa-
7. Jung apresentou esse sonho iguamcnte na discussão da obra de .Macróbio, cf. Apêndice p. 604 (ed.).
8. E.
~1aitland.
Anna Kin{!,sjord. Her Life, Letters, Diary anel Work.
9. Paralelo tibetano para as estalactites. ln: A. Avalon. Shri-Chakra-Sambhâra Tantra.
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ber que ele está realmente morto-, essas ideias 10 aparecem independenternerrfr uma das outras. Aqui a seguinte questão toma-se interessante: Como explicar td fato? Que fatores primordiais se fazem presentes no caso dessas ideias ? 3) Os sonhos não são causados somente por fatores fisicos, e sim, também, por fatores psíquicos. Por vezes ocone de determinados acontecimentos psíquicos no meio ambiente serem percebidos pelo inconscie nte. Entre os sonhos que colecionei, há um caso onde uma criança de três a quatro anos sonha com a vinda de dois anjos que levantam algo do chão e o transportam para o céu. - Na mesma noite um irmãozinho dessa criança morre. Outra criança sonha que a mãe deseja suicidar-se. Entra gritando no quarto da mãe que já está acordada, prestes a cometer suicídio.
Desse modo acontecimentos psíquicos importantes no meio ambiente podem ser percebidos. Certas atmosferas, certos segredos também podem ser plenamente farejados de maneira inconsciente. Nesses casos não sabemos como o inconsciente consegue absorver algo assim. O que há de peculiar é que nem sempre se trata de algo tão impressionante como no caso do sonho com o suicídio da mãe, e sim, por vezes, de coisas um tanto insignificantes. Como, porém, podemos farejar coisas totalmente insignificantes, é ainda mais incompreensível. Quero igualmente dar um exemplo para tal: Trata-se de um homem de negócios, mas que se interessava por fenômenos telepáticos. Desejava muito vivenciar algo nesse sentido. Um dia estava em seu escritório - eram três horas da tarde - e adormeceu. Viu o carteiro tocar a campainha de sua casa - ele morava no subúrbio e seu escritório era na cidade -, viu sua empregada abrir a porta recebendo do carteiro um pacote com jornais e cartas. Em cima do pacote havia uma carta amarela. Ele viu nitidamente qual era seu tamanho e seu aspecto. Voltou a si com a sensação de ter dormido um pouco. Então, de repente, pensou: "Foi urna visão!" As quatro horas da tarde ele voltou para casa e p erguntou pelas cartas. Lá fora no corredor estava o pacote da forma corno o tinha visto, porém sem nenhuma carta amarela. Pensou ter fracassado. Quinze dias após, a empregada trouxe a carta amarela que tinha caído atrás da cômoda. Ele abriu a carta achando que se tratava de algo muito importante. Mas era um simples folheto comercial, algo totalmente irrelevante!
Minha experiência inclui diversos casos desse tipo; as coisas mais banais podem fazer parte dos sonhos e serem previstas e a identidade não pode ser negada de forma
10. O livro tibetano dos mortos. Introdução e comentário psicológico ao Bardo Thõdol de Jung. ef. Tb. e.e. Jung. Psicologia e religião ocidental e oriental, oe 11 , par. 83lss. (ed.).
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e.e.
alguma. Essas coisas ocorrem com tanta frequência que é impossível ignorá-las. Existem sem dúvida fontes "ilegítimas" dos sonhos. Existem coisas que não poderíamos ou deveríamos saber, mas que sabemos mesmo assim, como se tivéssemos um faro tão apurado que atravessa as paredes. É algo que nos penetra através da atmosfera. TiYe um colega que era um pouco estranho, mas tinha ideias interessantes. Vivia em uma casa de campo com sua mulher, dois filhos e uma criada. Anotava todos os sonhos que eram sonhados em sua casa, também dos pacientes que havia recebido em sua casa. Era simplesmente de se espan tar o quanto os problemas dos pacientes acabavam aparecendo nos sonhos da criada, dos filhos e da mulher.
Fenômenos desta espécie são experimentados não somente nos sonhos, e sim, também, na sociedade: por exemplo, alguém entra em um determinado espaço e de repente todos sentem frio. Esta pessoa irradiou algo, o que - não se sabe. 4) Até agora mencionamos as fontes somáticas, os acontecimentos físicos e psíquicos do meio circundante como causas dos processos oní1icos. Acontecimentos passados, porém, podem igualmente entrar nos sonhos. Caso os senhores se deparem com algo assim, deverão levá-lo a sério. Quando um nome histórico que pode ter algum significado maior surge nos sonhos, costumo pesquisar o real significado do nome. Pesquiso que tipo de pessoa foi designado por este nome, em que contexto vivia, pois desse modo podemos explicar o sonho. Por alguma coincidência estranha tive, logo hoje, um caso assim. Uma senhora que se acomo dou demasiadamente nos andares superiores da casa, quer dizer, que vive excessivamente na cabeça e que tem uma relação ruim com o mundo de baixo, contou me o seguinte sonho: Havia um círculo formado por leões que parecia perigoso. No centro havia um fosso que continha algo quente. Ela sabia que teria que descer até o fosso e mergulhar no mesmo. Sendo assim, entrou no fosso e foi de algum modo queimada por este fogo. Somente um ombro dela ainda estava do lado de fora. Eu a pressionei para baixo e disse: "Não saia, atravessei" O sonho lança claramente uma luz sobre o problema do qual ela sempre se esquivou. Juntamente com o sonho ela mencionou um fragmento que dizia que Santo Eustáquio era seu santo padroeiro. A lenda de Santo Eustáquio encaixa-se muito bem: Eustáquio e sua familia tomaram-se cristãos. Ele e sua familia morreram como mártires em torno de 118 d.C. Lançaram-nos aos leões. Os leões, porém, não queriam devorar a familia sagrada. Sendo assim, aqueceram um Touro de Bronze até que estava em brasas e os queimaram dentro do mesmo. Era algo que a paciente não sabia.
A ocorrência de eventos passados desta espécie nos sonhos é especialmente difícil de ser explicada. É como se a paciente tivesse farejado o calendário dos santos em minha biblioteca. Porém, é igualmente possível tratar-se de um caso de crip-
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tomnésial1, que a paciente tenha realmente lido a lenda e se esqueceu da me rr:._ Existem casos famosos de criptomnésia. Ainda falaremos a respeito deles. Aqui interessam-nos apenas os casos nos quais é possível provar que nada foi lido, pois jamais estivemos próximos destas coisas. Casos assim existem e vale sempre a pena pesquisar nos livros no intuito de se orientar naquilo que o caso oferece em termos objetivos. Um caso especialmente impressionante, comprovado por mim, é o de um doente mental que reproduziu o contexto simbólico, antes de um texto, em que um papiro grego fora decodificado 12. Isso soa um tanto miraculoso, mas teremos que nos acostumar com a ideia de que esse tipo de coisas existe, de que conteúdos inconscientes, que se encontram estranhamente em conformidade com fatos históricos, podem ser reproduzidos. A e>..'J)licação encontra-se vinculada ao fato de se tratar de conteúdos arquetípicos. O arquétipo se caracteriza pelo fato de ele ser capaz de reproduzir de modo idêntico exatamente as mesmas imagens. É algo muitas vezes negado, frequentemente, porém, por pessoas que desconhecem fatos dessa espécie e são incapazes de fornecer qualquer tipo de explicação. Conforme os senhores podem ver segundo os dois exemplos que seguem, a ignorância facilita negar esse tipo de fatos. Dizem que quando um agente de Edison apresentou pela primeira vez seu fonógrafo na Academia de Paris, um professor de Fisica pulou em seu pescoço e o chamou de uventriloquisteM [ventríloquo]. Também Galileu desafiou seus opositores a olharem através de seu telescópio para se convencerem de que as luas de Júpiter existem. Eles, entretanto, não queriam fazê-lo de modo algum!
Durante urna sessão posterior [08/11/1938):
Prof. Jung: Da última vez paramos na discussão sobre as diversas causas dos processos oníricos. Outro grupo de causas, os senhores podem encontrar entre os sonhos que originalmente tinham uma relação com a consciência, porém, a perderam há muito tempo, de modo que aparentemente tal relação jamais existiu.
11. A recordação inconsciente de um fato que, por exemplo, lemos um dia, porém já esquecemos
há muito tempo. Cf. tb. o ensaio de Jung. "Criptomnésia". ln: Estudos Psiquiátricos, OC I, par. 166ss. (ed.) 12. Cf. C.G. Jung. Símbolos da transfomwção, OC 5, par. 151; e A dinâmica do inconsciente, OC 8, par. 317 e 318 (ed.)
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Voltemo-nos então para esses conteúdos que perderam a relação com a consciência. Por isso os conteúdos desses sonhos não podem ser reproduzidos. Podem surgir pessoas, rostos, situações, construções, partes de construções, a decoração de uma casa, que já estiveram conscientes durante a infância, mas que caíram no total esquecimento ao longo das décadas. Recordo me de um sonho dest a espécie que tive anos atrás. Vi o rost o de um homem. Após uma longa reflexão, recobrei aquela memória que pertencia aos primeiros anos de minha juventude - eu tinha em torno de dez anos. Era o nosso vizinho, um pequeno camponês que já morreu h á muito t empo. Eu havia esquecido totalmente do seu rosto. Durante o sonho, este reemergiu com seu frescor original. Eu não teria sido capaz de reproduzi -lo no est ado consciente. E quando dois dias após relatei o sonho, eu já não era mais capaz de reproduzir o rosto. Ele tornou a desaparecer. A imagem recordada er a demasiadamente fraca.
Isto significa que durante os sonhos podem igualmente surgir criptomnésias, isto é, impressões, conteúdos, pensamento, um determinado saber que um dia já foi nosso e que, em seguida, desapareceu por completo, que não é mais passível de reprodução, até que, em um momento específico, tomou a voltar a partir de sua forma original. Encontrei em Nietzsche uma criptomnésia desse tipon A p assagem do Zaratustra, na descida para o mundo subterrâneo onde o capitão vai para a terra firme para caçar coelhos, chamou minha 14 atenção . Perguntei à senhora Fõrst er-Nietzsche, a única pessoa que podia dar informações sobre a infância de seu irmão, se Nietzsche assumiu este motivo dos Blattcrn von Prevorst de Justinus Kerner 15, livro no qual podemos encontrar o mesmo. Ela me informou que ele certamente leu o livro com ela antes dos seu s onze anos na b iblioteca de seu avô. Théodore Flournoy, o conhecido p sicólogo e filósofo de Genebra, provou casos semelhantes em sua obra Dês Indes à la planete Mars [Da Índia ao planeta Marte]. O título soa extravagante; trata-se, no entanto, de um livro científico. Flournoy fala de Hélêne Smith que, em função de seu sonambulismo, chamou atenção em Genebra. Trata-se de uma perfeita história de amor do Animus. A glossolalia presente nest e caso - Hélêne Smith falava diversas línguas desconhecidas - baseia-se igualmente na criptomnésia. Ela frequentava uma associação que possuía um pequeno dicionário de sânscrito. Não se sabe se ela realmente fez uso do mesmo, mas não há muita dúvida a respeito disso.
13. E ste exemplo é descrito de modo completo in C.G. Jung. Estudos psiquiátricos, OC 1, par. 108ss. •A vida simbólica, OC 18, par. 454ss. (ed.) 14. F . ·ie tzsche. Assimfawu Zaratustra. Paite II: "Dos grandes acontecimentos". Tradução Ciro Mioranza. São Paulo: Escala Educacional, 2006. 15. Blüttern w n Prevorst Uustinus Kerner] (ed.).
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6) Um último grupo de causas, os senhores encontram entre os sonhos que tecipam conteúdos psíquicos futuros da personalidade que não são reconhecido::. enquanto tais no momento presente. Trata-se desse modo de acontecimentos futuros ainda não passíveis de serem reconhecidos no momento presente. Estes conteúdos apontam para ações ou situações futuras do sonhador que não se baseiam em absoluto na psicologia atual do paciente. Principalmente nos sonhos de crianças, acontecimentos futuros são antecipados de modo surpreendente. São duvidosos os casos em que, por exemplo, alguém sonha que irá morrer numa catástrofe ferroviária e acaba realmente morrendo dessa forma. Poderia tratar-se de uma antecipação telepática miraculosa. Por vezes, futuras formações da personalidade são antecipadas durante os processos de desenvolvimento, formações estas que parecem ser totalmente estranhas quando analisadas na situação presente e que não podem ser explicadas a partir desta. Esses sonhos, quando causam alguma impressão, não são apagados da memória - por vezes por uma vida inteira. Uma mulher madura entre 4 S e 50 anos me contou um sonho de sua infância que teve aos quatro anos: Ela é perseguida por uma velha bêbada que usa um corpete de um vermelho intenso. Isso não havia acontecido de verdade no contexto da senhora em questão. A mulher provinha de uma familia distinta onde algo assim est ava fora de questão. Ela também não vivia em Londres, onde algo desse tipo poderia ser visto no teatro, e sim, no campo, em um ambiente muito protegido. - C om sete anos ela teve o segundo sonho impressionante: Ela precisa lavar roupa branca em uma b acia cheia de sangue. Novamente a cor vermelha. - A part ir dos sete anos passou a ter um sonho de angústia que se rep etia de modo estereotipado: Ela se encontra num tipo d e hall de uma casa p articular. Existe uma p equena porta na lateral, deve-se passar rapidamente por ela. A p orta deve ser evitada. Ela, porém, sabe que deveria crztrar por esta porta e descer por uma escada até um porão escuro. Isso acaba realmente acontecendo em um sonho, "ela se encontra na escada e quer descer. Então étomada pelo medo. Percebe vagamente um fantasma e acorda com um grito angustiado". Ela era uma pessoa que levava uma existência espiritual; também jamais se casou. Somente aos 45 anos tomou con sciência do fato de possuir algo que se chama sexualidade. Antes isso não existia, ela não tinha a menor consciência do mesmo. Tornou consciência somente quando p recisou ser tratada, pois foi acometida por uma neurose em alto grau.
Um sonho de perseguição sempre significa: algo quer vir até mim. Quando você sonha que um touro enfurecido ou um leão ou um lobo lhe persegue, o sigp.ifi-
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cado é: isso quer estar com você. Você deseja dissociá-lo, concebe-o como algo estranho - mas, desse modo, a coisa toma-se cada vez mais perigosa. A ânsia daquilo que foi dissociado de se unir com você se toma maior ainda. A melhor atih1de seria: "Por favor, venha e devora-me!" A elaboração de um sonho desse tipo no âmbito da análise significa familiarizar a pessoa com a ideia de não resistir, em hipótese alguma, no momento em que esse elemento dela se aproxima. O outro em nós toma-se um urso ou um leão, pois nós o transformamos nisso. Por isso Fausto diz: "Eras tu que, no cão, inspiravas-me holTor?" [J.W. Goethe. Fausto I. Tradução Sílvio Meira. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. (N .T.)]. É o seu diabo, é Ylefisto. Até então Fausto encontrava-se dissociado, inconsciente do mesmo. Quando a situação se toma insustentável, ele é levado ao suicídio. Ele precisa descer para encontrar sua sombra. Precisa virar-se para ver seu outro lado.
Desse modo, a tarefa da paciente mencionada anteriormente também era a de tomar consciência de que ela se encontrava dissociada do mundo subterrâneo. Precisava reconhecer a existência do sangue, pois o sangue é um líquido muitíssimo peculiar. É a substância do instinto, aquilo que há de mais vivo no homem. Expressa o fogo e a paixão. O sonho de angústia apontava claramente para tal; era como uma advertência: "Desça logo por esta escada e veja o que tem lá embaixo!" Caso ela tivesse dado ouvidos ao mesmo, teria encontrado o outro lado. Té1ia que ter dito para o fantasma: "Aqui está você! Venha e mostre quem é você!" E assim ela teria tido a oportunidade de se aproximar de sua totalidade. Porém, consideramos pouco provável uma criança de quatro anos já estar familiarizada com um problema dessa espécie. Não pode ser. Não podemos julgar uma criança capaz de ter a psicologia de um adulto. Mas, por alguma razão estranha, inconscientemente a criança já possui a psicologia de um adulto. O indivíduo é desde o nascimento, poderíamos até dizer antes mesmo do nascimento, aquilo que será. O esquema básico é delineado desde muito cedo. Esses primeiros sonhos provêm da totalidade da personalidade e revelam diversos aspectos seus que não encontramos mais adiante, quando a vida nos força a fazer diferenciações unilaterais. Desse modo, porém, nos perdemos de nós mesmos e necessitamos primeiro aprender a nos reencontrar. Quando estamos inteiros, nos redescobrimos, conhecendo assim aquele que sempre fomos. Gostaria de lhes contar ainda outro sonho de crianças: Trata-se de um sonho de uma menina entre três e quatro anos, que nessa época se repetiu três vezes. Em seguida p ermaneceu em sua memória tal como se tivesse sido impresso na mesma. Um longo rabo de cometa passa pela Terra; a terra se incendeia e as pessoas se afogam neste fogo; em seguida a criança ouve os gritos terríveis das pessoas e por isso acorda.
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Este é um daqueles sonhos que são chamados de sonhos cósmicos de c1ianças. São manifestações pouco familiares para nós que, em um primeiro momento, nos deixam perplexos. De onde a criança tirou a ideia do fim da humanidade por meio do fogo? É uma imagem totalmente arcaica: o fogo final do mundo que destrói o mundo. O que significa o fato de esta pequena criança produzir uma imagem assim? É impossível interpretá-lo. Um interpretador de sonhos antigo diria: "Essa criança tem um destino especial, um dia seu vínculo com o cosmo se realizará". Quando pessoas adultas tinham sonhos dessa espécie na Antiguidade, em Atenas informavam o Areopagita e em Roma o Senado. Entre os primitivos, os homens também se uniam para ouvir tais sonhos, pois sentiam que estes possuíam um s1gnificado geral. Nós também devemos tentar compreender um sonho dessa espécie primeiramente em relação ao seu significado geral. É como se o sonhador precisasse ser preparado para um papel coletivo. Essas pessoas encontram seu destino na coletividade. Um papel tão coletivo assim naturalmente se opõe a uma vida feliz em família. Somos dilacerados por nosso destino coletivo. Esses seis pontos mencionados seriam as causas e condições mais essenciais dos processos oníricos. O sonho jamais se resume a uma repetição de vivências anteriores. Existe somente uma exceção específica: os sonhos de "choque ou de granada'', que às vezes consistem em uma repetição idêntica da realidade. É praticamente uma prova do efeito traumático. O choque já não pode mais ser psiquificado. Podemos observar semelhante fato especialmente no caso dos processos de cura, nos quais a psique tenta traduzir o choque para uma situação psíquica de angústia. Por exemplo: Alguém sonha que é noite. Está em seu quarto e percebe que alguma coisa est á acont ecendo lá fora. Não sabe o quê. Mas parece que têm animais selvagens por pert o. Ele olha pela janela e vê que realmente t êm leões do lado fora. Fecha t odas as portas e janelas. Os leões, entretant o, acabam entrando na casa e arrombam a porta com um estrondo. - Mas é justamente quando as granadas explodem novament e!
A tentativa do inconsciente de integrar esse choque de modo psíquico falhou, o choque original acaba irrompendo novamente. Pessoas que sofrem por causa de um choque de granada acabam reagindo desse modo, um simples rnído ou algo que lembra um tiro ou uma explosão basta para provocar ataques nervosos. A tentativa de transfo1mar o choque em uma situação psíquica, passível de ser superada gradualmente, porém, pode ter êxito até o fim de um tratamento, conforme observei no caso da série onírica de um oficial inglês. Nos sonhos desse homem, a explosão da granada transformou-se em leões e outros perigos com os quais agora podia confrontar-se. De algum modo o choque pôde ser amortecido. Sendo assim, o sonha!lor
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Este é um daqueles sonhos que são chamados de sonhos cósmicos de c1ianças. São manifestações pouco familiares para nós que, em um primeiro momento, nos deixam perplexos. De onde a criança tirou a ideia do fim da humanidade por meio do fogo? É uma imagem totalmente arcaica: o fogo final do mundo que destrói o mundo. O que significa o fato de esta pequena criança produzir uma imagem assim? É impossível interpretá-lo. Um interpretador de sonhos antigo diria: "Essa criança tem um destino especial, um dia seu vínculo com o cosmo se realizará". Quando pessoas adultas tinham sonhos dessa espécie na Antiguidade, em Atenas informavam o Areopagita e em Roma o Senado. Entre os primitivos, os homens também se uniam para ouvir tais sonhos, pois sentiam que estes possuíam um s1gnificado geral. Nós também devemos tentar compreender um sonho dessa espécie primeiramente em relação ao seu significado geral. É como se o sonhador precisasse ser preparado para um papel coletivo. Essas pessoas encontram seu destino na coletividade. Um papel tão coletivo assim naturalmente se opõe a uma vida feliz em família. Somos dilacerados por nosso destino coletivo. Esses seis pontos mencionados seriam as causas e condições mais essenciais dos processos oníricos. O sonho jamais se resume a uma repetição de vivências anteriores. Existe somente uma exceção específica: os sonhos de "choque ou de granada'', que às vezes consistem em uma repetição idêntica da realidade. É praticamente uma prova do efeito traumático. O choque já não pode mais ser psiquificado. Podemos observar semelhante fato especialmente no caso dos processos de cura, nos quais a psique tenta traduzir o choque para uma situação psíquica de angústia. Por exemplo: Alguém sonha que é noite. Está em seu quarto e percebe que alguma coisa est á acont ecendo lá fora. Não sabe o quê. Mas parece que têm animais selvagens por pert o. Ele olha pela janela e vê que realmente t êm leões do lado fora. Fecha t odas as portas e janelas. Os leões, entretant o, acabam entrando na casa e arrombam a porta com um estrondo. - Mas é justamente quando as granadas explodem novament e!
A tentativa do inconsciente de integrar esse choque de modo psíquico falhou, o choque original acaba irrompendo novamente. Pessoas que sofrem por causa de um choque de granada acabam reagindo desse modo, um simples rnído ou algo que lembra um tiro ou uma explosão basta para provocar ataques nervosos. A tentativa de transfo1mar o choque em uma situação psíquica, passível de ser superada gradualmente, porém, pode ter êxito até o fim de um tratamento, conforme observei no caso da série onírica de um oficial inglês. Nos sonhos desse homem, a explosão da granada transformou-se em leões e outros perigos com os quais agora podia confrontar-se. De algum modo o choque pôde ser amortecido. Sendo assim, o sonha!lor
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pôde superar o efeito do choque na forma de um acontecimento psíquico. Sempre quando somos atingidos por um choque que ainda se encontra em seu "estado bruto'', quer dizer, ainda não recebeu uma forma psíquica, nossos meios psíquicos não bastam para que seja superado. Quer dizer, não podemos dar [diretamente) conta de algum ferimento físico ou alguma infecção a partir de meios psíquicos. Podemos influenciar psiquicamente somente aquilo que é de natureza psíquica. O choque de granada parece ser especialmente difícil de ser curado, pois muitas vezes se encontra atrelado a graves abalos físicos, por meio dos quais provavelmente são provocados distúrbios bem pequenos no sistema nervoso que não são de origem psíquica. Todos os outros sonhos jamais consistem em uma repetição exata de um acontecimento do dia anterior. Existem, sim, sonhos que repetem algum evento do dia anterior de modo idêntico; mas quando examinamos o sonho de forma mais cuidadosa, comparando-o à realidade, percebemos que há diferenças. Tive uma cliente que sempre negava o significado psíquico dos sonhos. Afirmava tratar-se apenas de cópias dos eventos do dia anterior. Um dia me contou triunfante que sonhou com uma experiência do dia anterior exat amente da forma como esta havia acontecido: nesse dia ela tinha ido ao dentist a. Este lhe introduziu um espelho na boca fazendo um comentário que não quero repetir. Essa situação teria se repetido de modo exato no sonho. Quando questionada de forma mais direta, revelou que subiu - assim como na realidade - a escada que conduz ao consultório do dentista, mas que a placa deste se encontrava em um outro lugar. Continuei perguntando: "Mas como era a porta?" Ela respondeu: "Como a sua". Devo mencionar que naquela época eu morava no Burghõlzli! 16 Continuei da mesma forma até que veio à tona o detalhe de que o dentista no sonho est ava usando um pijama! Bem - os senhores podem imaginar como o sonho continuou! Ela teve esse sonho, pois o comentário do dentista foi muito ambíguo, apesar de nem ela nem o dentista o terem percebido. Seu inconsciente, entret anto, percebeu o fato e no sonho o associou a mim através da transferência erótica. O sonho quis lhe jogar essa transferência na cara.
A meu ver, esse exemplo é o que mais se aproxima da experiência, repetida verbalmente, do dia anterior. Jamais vi um sonho que realmente tenha repetido a experiência do dia anterior. Existem apenas repetições aproximadas. Para tal, outro exemplo: Um paciente estava presente no momento do atropelamento de uma criança. À noite sonhou com esse acontecimento. Também aqui o sonho não era totalmente idêntico: a criança est ava dei-
16. C.G. Jung trabalhou de 1900 a 1909 como assistente, médico e médico-chefe com E. Bleuler no "Burghõlzli'', clínica psiquiátrica da Universidade de Zurique (ed.).
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~da do outro lado, usava roupas diferentes, pessoas diferentes estavam presentes. O papel doso--
nhador também era outro. >reste caso, o sonho também utilizou o acontecimento do dia anterior para expressar uma situa çio importante da vi.da do paciente: este está passando por cima de sua própria criança. Não quer en xergar onde está sendo infantil. Agora o sonho lhe diz: "Veja só, é assim que a criança é atropelada~.
Os senhores se lembram que no início eu disse que iríamos considerar os sonhos segundo o ponto de vista causal. Não sabemos, entretanto, se a causalidade existe. Porém, se desejarmos trabalhar de modo científico, é indicado partirmos da hipótese de que os processos da natureza não consistem em um decurso acidental de eventos isolados, e sim, que existem ligações casuais entre eles. Além disso, partimos do pressuposto de que a psique é de natureza finalista, orientada para um fim de modo inconsciente. Essa hipótese se revelou igualmente importante. No que tange ao trabalho com o processo onírico, ela resulta no pressuposto segundo o qual concebemos os sonhos com conexões causais portadoras de sentido e orientados para um fim. Trata-se de algo essencial para a compreensão dos sonhos. Freud foi o primeiro a abordar os sonhos com a convicção de que os conteúdos destes representavam conexões causais que faziam sentido. Rompeu com a superstição científica de que o sonho consiste em uma série acidental de absurdos e, nesse sentido, impossível de ser explicado. Porém, como sempre acontece, a cada vez que urna hipótese é aplicada com sucesso, surge imediatamente a necessidade de criar urna teoria. Freud se deixou seduzir por esse viés, pois transformou um ponto de "ista, que de fato pode ser aplicado aos sonhos, imediatamente em teoria. Freud considerava os sonhos prioritariamente uma realização de desejo. Os casos mais transparentes são os seguintes: Jejuamos, estamos com fome e sonhamos com uma grande e fabulosa refeição; ou então, estamos com sede e sonhamos com uma água maravilhosa ou um copo de cerveja. Trata-se de sonhos cujas fontes são somáticas e que podem ser perfeitamente explicados como realização de desejo. Freud, no entanto, logo deparou-se com sonhos que não podiam simplesmente ser explicados como realização de desejo. Então supôs tratar-se de realizações veladas de desejos, isto é, por alguma razão a realização de desejo não pode acontecer. Desse modo, porém, precisa existir um censor. Quem é esse censor? É impossível que seja a própria consciência! Freud diz: É o resto da consciência que exerce a censura. Quer dizer, elaboramos um jogo onde apresentamos um desejo a nós mesmos, encobrindo-o, porém, de modo que não o reconhecemos mais. Contamos uma história mentirosa para nós mesmos para encobrir aquilo que realmente desejamos. Dessa maneira, julgamos o inconsciente capaz de grandes feitos, pois aquilo que o sonho cria teria que ser fruto de muita destreza. Primeiro ele conhece o desejo que
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não admito para mim mesmo; além disso, é capaz de representá-lo diretamente caso assim quisesse; mas deseja ocultá-lo de mim e por isso o distorce. Sendo assim, precisaria tratar-se de um pequeno duende, um espírito malvado, que diz: "Sei exatamente o que você tem em me nte, mas não digo o que é, vou distorcê-lo um pouco para que você não seja capaz de reconhecê-lo". Mas por que o sonho encobre o desejo? Freud diz que é para não atrapalhar o sono. Pois os desejos são tão incompatíveis com nossa consciência que nos fariam despertar e por isso o censor os encobre de forma benévola. E sta suposição, entretanto, opõe-se à experiência de que nada ah·apalha mais o sono do que os sonhos - por exemplo, os sonhos de angústia que interrompem o sono, impossibilitando-o por vezes durante horas. Os senhores podem ver quantas dificuldades enfrentamos quando explicamos tudo exclusivamente a partir da consciência. Freud supõe tratar-se de um desejo do qual não temos consciência. Sendo assim, não podemos evitar a pergunta: Quem possui esse desejo? D evemos supor que seja o inconsciente. Mas se fore m desejos do inconsciente, onde é que eles estão? Foram essas as dificuldades que me fizeram desconsiderar por um momento toda e qualquer teoria e me aproximar dos sonhos sem nenhum pré-conceito, para ver como eles realmente funcionam. Para tal apliquei primeiramente a técnica de Freud, a livre associação. Tive a seguinte experiência: Quando encan-egamos uma pessoa de associar livremente, descobrimos seus complexos, mas não sabemos se esses complexos estavam igualmente presentes no ponto de partida, no sonho. Por exemplo, sonhamos com um leão e tecemos associações em relação a ele. Vem à tona que o leão é um animal ávido. Nos lembramos que também somos ávidos e desejosos e imediatamente estamos no meio do complexo. Desse modo Freud conclui que o complexo já deveiia estar presente no sonho. Para ele, os sonhos são uma expressão inadequada do complexo, de alguma fantasia desejosa, do poder ou da sexualidade. Na lógica, essa explicação redutiva é designada de "reductio in primamfiguram "17• Mas, imaginem que estão viajando em um trem russo ou indiano, os senhores se de param com le treiros que não conseguem le r. Quando então começam a associar livremente, acabam chegando aos seus complexos. Pois eles são altamente atraentes. O que ocon-e é o seguinte: durante a associação livre, a sequência da associação conduz a algum complexo. Isso acontece de forma totalmente natural e sem qualque r inibição, simplesmente caímos no complexo. Quando então descobrimos algum complexo a partir da associação livre, isto não significa necessariame nte que este também se encontra presente em sua imagem onírica. D essa forma cheguei à conclusão de que este método não era passível de aplicação, pois nos conduz invaiia-
17. Do latim: redução à imagem, ao esquema original (ed.).
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elmente aos complexos das pessoas, o que, no entanto, não significa que este-. complexos estejam realmente presentes no sonho. Também poderia ser o caso de o :nconsciente precisar se livrar justamente desses complexos para poder lidar com les! Talvez o êxito do inconsciente seja exatamente este! Pois os complexos são os reais baderneiros e é perfeitamente possível que o inconsciente enfatize justamente o funcionamento natural tentando nos conduzir para fora desta ratoeira dos complexos, visto que o complexo é uma ratoeira. Por exemplo, conversamos de modo •otalmente sensato com uma pessoa. Assim que tocamos em seu complexo - já era! A pessoa se toma prisioneira de ideias "estúpidas" e começa a andar em círculos. Os romplexos inibem, esterilizam e tornam a pessoa monomauíaca. F az sentido supor=nos que a própria natureza tenta libertar a pessoa desse ciclo vicioso. Para obter o real sentido do sonho, procuro dissolver o sonho; concentro-me na :magem inicial, colhendo associações em relação à mesma - de todos os lados. SenJo assim, procedo de modo concêntrico em contraposição à associação livre que se .Jàsta da imagem onírica através de linhas, por assim dizer, ziguezague e, no final, ~ermina não sei onde. Por isso a pergunta que deve ser feita ao sonhador é a seguin•e: "O que lhe vem à mente em relação a X, o que pensa sobre isso? E o que mais lhe em à mente em relação a X?" A pergunta da associação livre, porém, é: "O que lhe em à mente em relação a X? E depois? E depois?" Nesse sentido, as associações se e ncontram relacionadas a outras associações e não a X. Opondo-me a esta técnica, pe1maneço com a imagem inicial de X. Em contraposição à "reductio in primam fi;wram", designo este método de amplificatio, isto é, amplificação. Baseio-me nesse caso no simples princípio de que não entendo o sonho, não sei o que significa, e que não faço ideia de que modo a imagem onírica encontra-se acomodada na mente de cada pessoa. Amplifico uma imagem existente até que ela se tome visível. D evido ao fato de o sonho consistir em uma série de elementos, a amplificação precisa ser realizada com todos os elementos. Supomos que o primeiro elemento .'.>nírico seja um "leão". Começo anotando as ideias que surgem em relação a este e em seguida coloco a expressão encontrada no lugar do elemento onírico. Quando, por exemplo, o "leão" leva à "sede de poder" do sonhador ou de outra pessoa, coloco - poder", no lugar de "leão", entre parentes. Procedo da mesma forma em relação aos outros elementos. No final vemos o significado da frase toda: Sonho
~~
L (mar) (poder)
M (mar) (inconsciente)
N
O
Dessa maneira compreendemos o real sentido do fenômeno. Quer dizer, podemos reconhecer o sonho a partir das perguntas que fazemos, por meio da amplificação pessoal. Necessitamos do contexto de uma imagem para compreender o que a imagem onírica representa. Só assim entenderemos o âmbito significativo da imagem onírica por inteiro. Somente após passar por várias experiências podemos, quem sabe, estabelecer igualmente uma teoria sobre a formação e o significado hmdamental dos sonhos. Quando aplicamos esta técnica da amplificação pessoal, podemos primeiramente verificar o significado subjetivo de um sonho. Tivemos, entretanto, a experiência de que muitas das imagens oníricas não são de natureza individual, e sim, coletiva 18 . Não precisamos ir muito longe para encontrar estas imagens universais. Encontramo-las na linguagem, sem falar daquelas que possivelmente repousam no fundo de nossa alma. Quando, por exemplo, uma mulher chama a outra de cobra, todos nós sabemos do que se trata; ou quando dizemos que um homem é uma raposa esperta, a ideia está igualmente clara. Por isso podemos, quem sabe, interpretar o "leão" também segundo o uso comum da linguagem: o "leão" é o rei dos animais, ele é o "poder" e não nos enganamos quando supomos tratar-se deste sentido quando alguém sonha com um leão, mesmo quando o sonho envolve questões pessoais. Por essa razão podemos, eventualmente, traduzir o sonho igualmente na ausência de associações, pois nossas figuras de linguagem já envolvem um arsenal de símbolos. Também podemos sonhar diretamente com figuras de linguagem, por exemplo, alguém está escalando as suas costas [Literalmente: "Suba nas minhas costas!" No original: Sie konnen mir auf den Buckel steigen! Expressão idiomática que equivale a "vá se danar!" (N.T. )]. Devido ao fato de nossa linguagem já conter imagens tão gerais, existe a possibilidade de compreendermos os sonhos, pelo menos no que tange ao seu sentido mais geral, igualmente na ausência de associações. Isso é fundamental no caso de sonhos que não são pessoais, sonhos nos quais as imagens coletivas encontram-se em primeiro plano, imagens para as quais temos poucas ou quaisquer associações. Conforme mencionei de início, os sonhos de crianças pertencem a este grupo, pois dificilmente obtemos associações em relação a eles. Também os adultos frequentemente têm sonhos para os quais não há associações, de modo que não podemos saber qual o contexto da imagem onírica. Parecem tão exóticos que nos custam muito esforço para desvendarmos seu sentido. Sonhos 18. C.G. Jung desenvolveu a noção do inconsciente coletivo em sua obra Transformações e Símbolos
da libi.do; vide igualmente OC 5, prefácio da 2ª e 4ª edições.
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desse tipo contêm sempre uma parte mitológica que não pode ser interpretada partir de perguntas e amplificações pessoais. Também não basta nos limitarmos às imagens gerais da língua. A compreensão exige um saber positivo, precisamos conhecer os símbolos e os motivos mitológicos. Precisamos saber o que existe na "despensa" da mente humana, precisamos conhecer os documentos dos povos. Neste seminário somos forçados a aplicar o método etnopsicológico, pois lidamos com sonhos infantis em relação aos quais em muitos casos nos falta o material das associações pessoais. Precisamos ver até onde podemos ir dessa forma. Nem sempre obteremos uma solução satisfatória. A finalidade deste seminário é nos exercitarmos a partir do material. Não se trata de especular por meio de associações brilhantes. Precisamos nos contentar em reconhecer os símbolos dentro de seus contextos psicológicos mais amplos, para assim penetrar na psicologia dos sonhos. Quero lhes dar um breve exemplo: O sonhador encontra-se em uma casa simples com uma camponesa. Conta para a mulher sobre uma longa viagem para Leipzig. No horizonte aparece um caranguejo enorme que é ao mesmo tempo um sáurio e que pega o sonhador com suas pinças. Por alguma razão incrível, o sonhador segura uma pequena vara com a qual toca a cabeça do monstro. Este cai morto.
O que existe de típico nesta situação? Há uma camponesa, quer dizer - algo primitivo 19. De qualquer forma, o fato de o homem em questão precisar sonhar com uma camponesa tem algum sentido. Era uma camponesa mais velha - talvez sua mãe? Vamos pôr um ponto de interrogação aqui! É para esta mulher que o sonhador conta seu plano de viajar para Leipzig. Precisa existir uma relação causal entre estes dois elementos dos sonhos. O encontro entre o sonhador e a camponesa traz à tona o plano. Onde existe uma relação entre uma suposta mãe, uma mãe muito simples, e um grande plano? Na literatura existem exemplos para tal. Ouvinte: "Peer Gynt". Prof. Jung: Sim, e quem mais? O poeta morreu há pouco. Ouvinte: Barlach. Prof. Jung: Sim, Barlach em seu livro Der tote Tag [O dia morto]. Neste livro, o pai cego relata ao filho as lindas visões que teve durante a noite. E o filho diz: ''Todas elas precisam se realizar!" Mas sua mãe retruca: "Alguém assim precisa primeiro enterrar a sua mãe". E mata o cavalo com o qual seu filho queria partir para o mundo.
19. Jung certamente faz uso da palavra primitivo no sentido de "original, arcaico". Cf. tb. C.G. Jung. Tipos psicol,ógicos, OC VI, par. 764 (par. 754 na edição em língua alemã) (ed.).
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Temos aqui a relação entre a mãe e os planos do filho: A mãe não quer libertar o filho. O menino tem grandes planos que pode realizar somente se a mãe o liberar para tal. Quanto mais se encontra vinculado à mãe, maior os seus planos. As visões devem de fato ser muito fascinantes para seduzir o menino a se separar da mãe, pois permanecer com a mãe significa ficar em um estado irresponsável e inconsciente; por isso - jamais se afaste da mãe! Abandonar os pais significa um "movimento dessacralizante para trás" (Nietzsche); é um sacrilégio separar-se da mãe. Podemos concluir então que os grandes planos do filho encontram-se associados ao vínculo com a mãe. Os dois símbolos, a "mulher" e o "plano", são seguidos por um terceiro, o "monstro". Tão logo o sonhador contou seu plano, aparece um enorme animal com pinças, um caranguejo-lagarto, uma artrópode, um monstro que o toma com suas pinças. Isto também é a mãe, p orém a outra, a mãe que traz a morte. A mãe tem dois aspectos: por um lado dá a vida ao filho, cuida dele e o cria; mas logo que este deseja partir, ela o impede, pois caso contrário seu coração irá se partir. Por isso, a mãe em Barlach diz: "Alguém assim precisa primeiro enterrar a sua mãe". O filho, porém, não é capaz d e tanto, não consegue assassinar sua mãe e assim ela o devora. A mãe também é um sarcófago ("devoradora de carnes"). É como a mãe terra, da qual surgimos e para a qual retornamos; é a vida, mas também a morte; ela é a mulhe r ancestral no Ocidente, conforme é chamada em um mito polinésio20 • Por isso, os etruscos ente rravam as cinzas no interior da estátua da deusa Matuta, o que significa: no ventre da de usa21 . Dessa forma os mortos retornavam ao ventre da mãe. -No sonho em questão, a mãe devoradora aparece como monsh·o. Isso nos faz concluir que o sonhador não contou com o seguinte: não será capaz de superar a mãe. De primeira, consegue prosseguir em função de uma vara, isto é, de um procedimento mágico, algo que não o salva realmente. - Podemos explicar este sonho de modo satisfatório, mesmo sem qualquer material pessoal. Trata-se de um drama eterno que aqui se repete a partir de um caso particular: este homem tinha planos demasiadamente grandes, queria ir longe demais; na realidade, ainda não era capaz de desvencilhar-se de seu anseio nostálgico de voltar ao passado e por isso sucumbiu. Realmente foi um drama. No auge de sua vida, o inconsciente o empurrou para uma neurose. Começou a sentir medo de altura, sofrer de vertigem. Quis livrar-se de seu sofrimento por meio da magia, forçar a realização do plano e deste modo sucumbiu. Este exemplo demonstra que podemos explicar os sonhos razoavelmente a partir de um método exclusivamente objetivo, sem associações pessoais.
20. A mulher ancestral no Ocidente chama-se Hine-nui-te-po. ln: Südseemiirchen; ed. por P. Manbruch. 21. Deusa ~atuta. Cf. C.G. Jung. Símbolos da transformação. OC 5, par. 536 e
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ng. 100 (ed.).
Gostaria ainda de ilustrar outra questão a paitir deste exemplo. No caso de ~ nhos complicados, aconselho desmembrar o sonho em várias partes. Desejo oferece-lhes um esquema geral. 1) Local: Lugar, espaço de tempo, "Dramatis Personae"
2) Exposição: Apresentação do problema 3) Peripécia: Apresentação da transfom1ação que, entretanto, pode igualmente abrir espaço para uma catástrofe 4) Lysis: Resultado do sonho. Desfecho que faz sentido. Apresentação da natureza compensatória do enredo do sonho. Vamos analisar cada elemento do sonho anterior: 1) Local: Lugar: casa simples. - "Dramatis Personae": Camponesa, sonhador.
2) Exposição: Os planos ambiciosos para o futuro do sonhador, sua ascensão. 3) Peripécia: O caranguejo que captura o sonhador com suas pinças. 4) Lysis: o monstro que cai morto. Esta é a estrutura típica do sonho. Procurem considerar os sonhos sob este aspecto! A maioria dos sonhos evidencia essa estrutura dramática. A tendência dramática do inconsciente revela-se igualmente no caso do homem primitivo: aqui, provavelmente, tudo é apresentado de modo dramático. Encontra-se aqui a base para o desenvolvimento da estrutura dramática dos mistérios. Toda a complexidade dos rituais das religiões posteriores remonta a essas origens.
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