As Festas Bíblicas E A Liturgia Judaica

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AS FESTAS BÍBLICAS E A LITURGIA JUDAICA Importância do tema para a compreensão da cultura e da fé bíblica; a ‘festa’ como elemento cultural e antropológico. A dimensão festiva da vida como manifestação de partilha e de encontro. A ‘festa’ como elemento de relação com o transcendente. 1. As fontes para o estudo das ‘festas bíblicas’ Os textos bíblicos e extra-bíblicos que se fazem eco da liturgia judaica do período inter-testamentário e que nos ajudam a compreender a fé bíblica e como ela era celebrada: textos do Novo Testamento (S. João; Carta aos Hebreus); textos da liturgia da Sinagoga (Midrashîm, Targums); textos normativos que nos transmitem as normas orientativas da prática litúrgica sobre a celebração das festas (Mishná, Talmud, etc.). 2. O Calendário litúrgico do judaísmo As marcas de uma cultura agrária que se fazem repercutir na memória litúrgica e nas celebrações religiosas; O calendário lunar (Lv 23,24; Am 8,5) e o calendário solar, conhecido pelos escritos de Qumrãn. A importância do Sinédrio para a marcação das festas; as datas da celebração da Páscoa. 3. Alguns elementos fundamentais do culto judaico Os Sacrifícios e o sistema cultual; significado e sentido teológico dos sacrifícios. A importância do Sábado no ritmo da vida do povo de Israel e os ritos da sua celebração; do sábado como ‘repouso’ ao ‘sábado messiânico’ da escatologia judaica. Vestes e utensílios do culto. 4. A festa da Páscoa A Páscoa como festividade de cariz agrário e a sua evolução para celebração da libertação do Egipto. A teologia da celebração pascal. A Páscoa como paradigma da relação do povo de Israel com Yahwé. A liturgia pascal na sua vivência familiar. A ‘noite’ pascal e seu significado messiânico. A Páscoa como ‘nova criação’ e o sacrifício de Isaac (Aquedah de Isaac). Cristo pascal como novo Isaac que com a sua entrega nos conquista a vida nova. 5. A festa do Pentecostes (ou das Semanas, 7x7) Sentido agrícola da festa (agradecer as primeiras colheitas) e sua evolução como festa do ‘dom da Lei’. A festa, a renovação da aliança sinaítica e a constituição do Povo. 6. A festa das Tendas (ou Tabernáculos) A festa das Tendas celebra a identidade de Israel como povo nómada; do nomadismo à sedentarização e ao dom da terra. A itinerância como paradigma da relação de Israel com Yahwé: Israel não é dono da sua terra, nem esta é pertença sua; Israel é um povo de peregrinos a caminho da escatologia (sentido messiânico). 7. Yom Kippur (Expiação) e Hanukah (festa da Luz) João Lourenço (30 de Maio de 2008)

AS FESTAS BÍBLICAS Introdução: A ‘Festa’ constitui um dos elementos centrais da religião cristã e da vida do Homem, tanto em termos individuais como sociais. Ela percorre todas as culturas e todas as épocas, e parece que nunca as manifestações festivas foram tão importantes como hoje num tempo chamado de pósmodernidade. Apesar de vivermos um tempo marcado pelo drama, pelo pessimismo radical, pelo suicídio, pelo desespero, pela desorientação, pelo negativo, a ‘festa’ constitui uma espécie de elemento agregador que percorre a vida do homem a todos os níveis1. O nosso tema de hoje, apesar de se debruçar sobre as festas bíblicas em geral, mormente no AT, não pode ignorar que elas estão presentes no NT, constituindo como que um quadro de fundo para a revelação de Jesus e de muitos núcleos temáticos da sua mensagem. O Evangelho de João, por exemplo, não se serve de uma geografia espácio-temporal, recorrendo antes a uma espécie de itinerário festivo, através do qual apresenta Jesus e mostra como Ele é a plenitude da verdadeira festividade que é a comunhão do Homem com Deus. Não são apenas as festas que encontram em Cristo a sua plenitude; elas eram apenas simbologia de algo que estava para vir; mas também Cristo é a plenitude da comunhão festiva do amor de Deus, as núpcias eternas a que o homem é chamado. Por isso, Ele é a ‘tenda’, o Tabernáculo da presença de Deus no mundo; Ele habitou, estabeleceu a Sua tenda entre nós e convida-nos para o banquete da sua comunhão, num itinerário de Páscoa permanente em busca da cidade eterna, a nova Jerusalém que descia do céu. A Festa faz parte da realidade humana, já que o Homem é um “ser festivo” pela sua própria natureza. Não só trabalha (“homo faber”) e pensa (ser racional), como também canta, dança, ora e celebra! Tudo isto constitui um elemento essencial da sua identidade, razão pela qual o Homem tem necessidade da festa. Daí podemos dizer que a festa é antes de mais um elemento antropológico, que marca o ritmo da vida e das etapas da natureza. Muitos exemplos podem colorir esta afirmação, como a festa de aniversário, a festas religiosa, a festa agrícola, a festa folclórica, a festa sazonal, entre muitos outros exemplos que podem ser dados. Desta forma, a ‘festa’ é um espaço privilegiado para desenvolver os aspectos mais significativos da vida, dentre os quais sobressai o da gratuidade e o da partilha. Ensina a viver e manifesta a alegria nas suas mais variadas formas e expressões como sejam o vestir, o comer, o beber, o cantar, dançar, o partilhar e repartir, o testemunhar a sociabilidade da nossa identidade. Por isso, a dimensão comunitária é um elemento fundamental da festa já que 1

RUBIO, M – Hermenêutica moral del fin de siglo, “Moralia”: 18, 1995, p 25 ss.

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esta se celebra, antes de mais, em contexto de grupo. O grupo, por sua vez, encontra na festa um lugar privilegiado, que não é fácil manifestar noutras dimensões, para fazer nascer de novo aspectos cruciais na vida humana comunitária: a união, a força, a coesão, a inter-ajuda, a partilha. Assim, a Festa fortalece o sentimento de pertença ao grupo e recupera a sua identidade. Por outro lado, a festa constitui também um momento e um instrumento para ultrapassar barreiras, já que estas não resistem à alegria e à amizade que um clima de festa acaba por criar. Em toda a festa há como que uma espécie de regeneração. Mas num outro aspecto a Festa ainda vai mais longe na medida em que não só nos liberta de algo de negativo, mas também se torna num verdadeiro trampolim para o patamar dos valores que estão na base da realização humana e, portanto, podem comunicar ao homem a verdadeira felicidade. A Festa cobre toda a dimensão da identidade humana através da memória, do entendimento e da vontade. 1. FESTA E FESTAS BÍBLICAS Em todas as religiões e culturas a ‘festa’ está ligada ao transcendente, ao divino, e constitui um elemento essencial do culto e a base de toda a ‘religio’, de toda a relação cultual que deve ser expressão de comunhão e de afecto, no sentido mais profundo e pleno do termo. A festa, sendo rito, não pode deixar de ser relação, pelo que a sua realização implica e envolve sempre o homem. Neste sentido, podemos dizer que a ‘festa’ envolve e monopoliza o homem por inteiro. Por isso, o culto nunca pode ser uma realidade sem relação, sem envolvimento, sem compromisso. A Sagrada Escritura, através dos Profetas, faz-se eco disso mesmo, condenando o culto vazio, hipócrita, sem expressão de comunhão. Pede-se a conversão de coração, para que a festa seja realmente festa no seu sentido original que envolva o Homem por inteiro: “Eu aborreço e rejeito as vossas festas; elas desgostam-me, e não sinto nenhum gosto nos vossos cultos” (Am 5, 21). “Porei fim aos seus divertimentos, às suas festas; às suas luas novas, aos seus sábados e todas as suas solenidades” (Os 2, 13).

O termo ‘festa’ diz-se em hebraico ‘hag’ que etimologicamente significa “dança”. Nesta medida, embora os dias de festa fossem dias de descanso, estes eram um descanso “activo”. Eram um descanso da vida quotidiana orientado para a dança, a alegria e o culto a Javé. Desta raiz deriva ‘Hagag’, um verbo que significa: “Festejar” e também provavelmente “houng” que significa “círculo”, de onde vem a ideia de fazer uma roda, dançar evocando o rito das danças Sagradas, ou de andar em volta de um altar sacrificial, um rito de peregrinação quase universal.

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Na Bíblia “todas as Festas” tem como origem um mandamento de Deus, mesmo quando suas raízes se encontram nos ciclos da natureza e das estações. As Festas no Povo de Deus ligam-se à História da Salvação. Temos como exemplo: “Este dia vos será por memorial, e celebrá-lo-eis por Festa ao Senhor; nas vossas gerações o celebrareis por estatuto perpétuo” (Ex 12:14). Aqui é de ressaltar um facto essencial da vida religiosa: o memorial. O ‘memorial’ é um elemento central da festa e do culto bíblico, e o Povo de Deus tem como missão manter a ‘Tradição’, ou seja, ‘fazer memorial’, transmitindo e recordando as obras do Senhor. Por isso, a palavra “Hag” está intimamente associada à palavra Mo‘ed que significa a festa calendarizada no tempo e anunciada publicamente. O plural Mo‘adîm indica todas as reuniões festivas determinadas ao povo hebreu pelo seu Deus e que eram anunciadas ao som da trombeta. Dai a importância e a preocupação em determinar as datas festivas como “uma lei de Javé, uma obrigação para Israel”, Povo Eleito de Deus, ao toque da trombeta ou do odre de carneiro, o célebre “Chofar” (Sl 81,5). As festas são, portanto, pontos culminantes da vida religiosa, um memorial de acontecimentos relevantes na História da Salvação. Mas a dimensão de memorial não esgota o sentido das festas bíblicas; Elas fazem desse memorial uma realidade presente, actualizamno para o crente que o vive. Ao reviver esses acontecimentos, desperta no crente sentimentos de gratidão, de reflexão sobre a vida, de reconhecimento do poder e misericórdia de Deus e da necessidade de ser fiel ao cumprimento da Lei, abrindo aos fiéis também uma perspectiva escatológica que se consumará na plenitude messiânica e na comunhão plena com Deus. Todas estas dimensões estão presentes nas diversas festas bíblicas, na sua liturgia diversificada, em que cada uma dessas celebrações contempla todos os elementos essenciais, embora confira a um deles um destaque especial 2. As festas e a liturgia judaica – As fontes

A liturgia do período intertestamentário constitui uma das expressões que melhor traduz a riqueza e a pluralidade desta dimensão festiva do judaísmo. Os textos bíblicos que chegaram até nós não nos transmitem muitas informações sobre esta liturgia, sobre o modo celebrativo das festas nem dos seus ritos2. Para o sabermos, dispomos hoje, no entanto, de textos extrabíblicos que são as verdadeiras fontes onde podemos recolher elementos para a compreensão desta liturgia. Conhecer 2

A razão desta ausência de dados sobre a liturgia tem a ver com o facto dos textos do AT serem anteriores a este período e os do NT, apesar de aludirem às festas, pouco ou nada nos dizerem sobre elas, uma vez que, tal como nos diz a carta aos Hebreus, Cristo aboliu o culto judaico. Ele era de facto o verdadeiro sacerdote, o novo cordeiro (Hb 8) e o Seu corpo ressuscitado o verdadeiro Templo e santuário da nova aliança e de comunhão com Deus. Com a destruição do Templo em 70, essa ausência mais se justifica, já que a partir dessa data o culto do Templo tinha sido abolido.

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as tradições das festas do calendário litúrgico judaico, o seu significado, os seus ritos e a sua teologia é, certamente, um contributo precioso para a compreensão da espiritualidade judaica, da sua diversidade cultural e também dos próprios textos neotestamentários e da teologia que está na génese da sua composição. Apesar desta ausência de dados, podemos encontrar nos textos do NT diversas alusões à liturgia do Templo de Jerusalém, em especial no evangelho de S. João que recorre constantemente às festas do calendário judaico para nos oferecer uma espécie de itinerário sobre os principais temas da mensagem de Jesus e também na carta aos Hebreus onde se faz uma releitura teológica de toda a liturgia judaica à luz do Seu mistério pascal, mostrando como essa liturgia não era mais do que uma ‘figura’ e uma antecipação do verdadeiro culto que em Cristo devemos prestar a Deus3. Para além destes indícios, os escritos mais significativos sobre a liturgia judaica deste período chegaram até nós através das fontes rabínicas, tais como a Mishná, os Tragumim, os Midrashs e textos de tipo apocalíptico. Temos também os escritos samaritanos e os manuscritos de Qumrãn, especialmente o Rótulo do Templo, onde se descreve, em pormenor, a liturgia do movimento essénio do Mar Morto. Ainda no que diz respeito à liturgia judaica, podemos dizer que o período intertestamentário foi uma época difícil, de contornos muito ambíguos devido à influência da cultura grega, bem como às guerras contra Roma (no ano 70, com a destruição do Templo e em 132-135, com a derrota de Bar Kokba e a transformação de Jerusalém numa cidade romana, Aelia Capitolina). A consequência primeira destas guerras foi a abolição da liturgia oficial do Templo e o incremento da oração e da instrução na Sinagoga. É neste cenário e em função destes condicionalismos que temos de abordar a questão da liturgia judaica e das festas, sabendo que muitas das tradições que até nós chegaram estão condicionadas pelas vicissitudes históricas deste período4. 3. O calendário litúrgico Um dos elementos fundamentais para compreender as festas bíblicas diz respeito à questão do calendário. Ao contrário do que sucede na 3

No evangelho de João, as festas judaicas marcam o ritmo da sua própria revelação: 2,13; 6,4; 11,55 (temos três alusões à Páscoa dos judeus enquanto instituição oficial à qual é contraposta a nova Páscoa que é a Sua passagem: 13,1; 18,28; 19,14); em 7,2 (a festa das Tendas que era a celebração messiânica por excelência dentro da tradição judaica); em 5,1 fala-se de festa sem se explicitar de qual se trata, embora o facto de se fazer referência à água possa ser um indício de que seria a festa do Pentecostes (ou das Semanas), uma vez que a água é símbolo do Espírito e da Torah; 10,22 é a festa da dedicação do Templo, mais conhecida como a festa de Hanukkah, festa da luz (1 Mac 4,36s). 4 A redacção das fontes rabínicas, tal como vimos antes, prolongou-se no tempo e conheceu diversas etapas, o que dificulta muito qualquer distinção entre a origem das tradições e a sua redacção.

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nossa cultura contemporânea, o homem bíblico está muito condicionado pelos ciclos da natureza e do tempo. As marcas de uma cultura agrária que tem a sua expressão máxima na transumância e na dependência do ciclo das estações, mormente no que concerne à chuva que é o bem essencial para o cultivo das terras, exprimem-se e fazem-se repercutir nas convicções culturais e nas celebrações religiosas. À semelhança do que sucede com os demais povos do Médio Oriente, a vida quotidiana dos israelitas está dependente e sempre condicionada pelo ritmo sazonal que é vivido e celebrado em determinados momentos de uma forma mais intensiva. Podemos dizer que as festas são expressão dessa intensidade vivencial, rompendo o ciclo do tempo ordinário para prolongar no homem a memória do passado. Essa memória retoma formas e repete-se no tempo de modo regular, fixando-se através de um calendário. Trata-se do calendário litúrgico e celebrativo, fazendo memória do passado, mas dando também consistência ao presente e abrindo o crente à esperança messiânica. O calendário lunar é, sem dúvida, o mais usado em todos os povos e civilizações, designadamente na zona do Médio Oriente. Nos primórdios de Israel, o ano começava no Outono, já que o tempo das colheitas encerrava o ciclo e dava início a um novo ritmo da vida (Ex 23,16; 34,22). Por isso, os nomes dos meses estavam ligados aos produtos da terra5, donde resulta uma estreita relação entre as festas celebradas e as actividades agrícolas que tinham lugar nesse período. Mais tarde, já com a monarquia, tomou-se como início do ano o período da primavera (o mês de Nisãn), sendo os nomes designados de forma abstracta por primeiro mês, segundo mês… Porém, a partir do domínio da Babilónia são introduzidos em Israel os nomes do calendário dos Caldeus para designar os meses6. Já no período helenista, com o domínio da cultura grega, é usual encontrarmos também nomes gregos para designar os meses7. Na Palestina do período intertestamentário coexistiam dois calendários, dependendo o seu uso dos diversos grupos judaicos e também das autoridades oficiais que regulamentavam o culto festivo. Embora o calendário lunar, muitas vezes referido no AT (Lv 23,24; Am 8,5), seja o mais difundido e comum no ordenamento da vida do povo, estava também em uso o calendário solar, um calendário sadoquita usado por alguns grupos, tal como é possível comprovar através dos escritos de Qumrãn8. Quanto ao judaísmo ‘ortodoxo’ do início da nossa era, este seguia um calendário semi-lunar, dito oficial, em que os meses eram determinados pelas lunações mas que, devido às festas agrícolas, tinha em conta o ritmo 5

Temos o mês de Abib que significa ‘espiga’, Nisãn ‘flor’. São estes nomes que acabam por se impor como sendo o calendário oficial que vigora até aos nossos dias. Eis as suas designações: Tishri, Héshvan, Quisleu, Tevet, Shevat, Adar, Nisãn, Ijar, Sivan, Tammuz, Av, Elul. Quanto ao mês intercalar para acerto de calendário chamava-se Adar Sheni (segundo Adar). 7 2 Mac 11,21.30.33.38; Tb 2,12. 8 S. TALMON, “Divergences in Calender-Reckoning in Ephraim and Judah”, VT 8 (1958) 48-74. 6

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solar. Ora, como a soma dos doze meses lunares (de 29 ou 30 dias) dava um total de 354 dias, tínhamos então que de dois em dois ou em três anos tinha de ser inserido um mês suplementar. Para esta determinação tinha grande importância a decisão do Sinédrio que fixava também as datas das festas, bem como o seu termo, no caso de dúvida. Dada a importância que era conferida à Lua no mundo semita do Médio Oriente, as festas bíblicas eram celebradas na lua nova (neoménia) ou nos períodos de lua cheia, estando o ritmo da vida condicionado pelas próprias fases da lua. A data da festa da Páscoa era aquela que criava sempre mais problemas, pois o cumprimento estrito do preceito bíblico (a noite de 14 ou 15 de Nisãn) era um dos pressupostos fundamentais desta solenidade. Algumas das questões que o evangelho de S. João nos coloca acerca da data da Páscoa de Jesus tem, certamente, a ver com a interpretação do calendário que é seguido pelo autor do evangelho. Quanto ao calendário solar propriamente dito, o seu uso era já conhecido mesmo antes das descobertas de Qumrãn, uma vez que os livros de Henoc Etiópico e o livro dos Jubileus tinham já posto em questão o calendário oficial. Estes livros seguiam um calendário de 364 dias, ou seja, de 52 semanas, com quatro trimestres e treze semanas cada um. Desta forma, as festas eram celebradas, todos os anos, no mesmo dia da semana, já que havia um número exacto de semanas. Com a descoberta e a publicação do Manual de Disciplina de Qumrãn foi possível saber que o movimento essénio seguia outro calendário litúrgico diferente daquele que era o oficial do Templo e que começava à 4ª feira, já que tinha sido ao quarto dia que os astros foram criados. Por isso, se o tempo era contado tendo em referência os astros, então o ritmo do tempo deve ter como ponto de referência o 4º dia9. Ora, para além das referências retiradas do Rótulo do Templo, encontrado em Qumrãn, também nas descobertas feitas em Massada, em 1963-64, um dos achados mais significativos foi um rolo de cânticos litúrgicos que seguem o mesmo calendário e que teria sido também seguido por Jesus, na ceia pascal, e pelas comunidades cristãs primitivas, tal como se pode deduzir da Didaskalia dos Apóstolos. Tendo presentes estes elementos, apesar de escassos, tudo aponta para a existência de mais do que um calendário litúrgico em uso no judaísmo do período intertestamentário, embora o lunar fosse aquele que era seguido no Templo, apesar dos ajustes e da intervenção do Sinédrio para dirimir e harmonizar as diferentes perspectivas que se confrontavam no interior do judaísmo. 4. Os sacrifícios Os sacrifícios constituem um dos pilares da liturgia judaica que, a par da leitura da Torah, são a melhor expressão da comunhão e da aliança 9

Cf. F. MANNS, Le judaïsme, 99.

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entre Yahwé e o Seu povo. A Escritura e os textos rabínicos desenvolveram um sistema jurídico de grande precisão acerca dos sacrifícios a fim de evitar erros ou abusos que fizessem com que estes perdessem a sua eficácia e o valor expiatório que muitos deles revestiam. A sua primeira função era a de obter a misericórdia divina e restabelecer a relação de comunhão que muitas vezes era violada pelo povo. Por isso, podemos dizer que a natureza do sistema litúrgico de Israel é, essencialmente, de tipo expiatório, à qual se junta, desde muito cedo, a oração que consistia em invocações dirigidas a Deus (1 Sam 1,13s). Como refere Ben Chorin10, no Templo, a par de uma liturgia da palavra11 que consistia na leitura da Lei, desenvolve-se fundamentalmente um sistema sacrificial que era a alma do culto judaico. Os sacrifícios cultuais do AT eram, simultaneamente, oferta, expiação e comunhão. Não se tratava de um tributo como tal; eram antes um gesto de gratuidade e reconhecimento que expressa de forma visível a soberania de Deus sobre todas as coisas. Podemos constatar isso mesmo pela oferta dos primeiros frutos da terra, das primícias que assim eram ‘dessacralizadas’ dos ritos de fecundidade para serem retribuídas a Deus como fonte de todas as coisas. Os texto bíblicos e extrabíblicos referem-nos diversos tipos de sacrifícios, sendo de destacar os holocaustos, os sacrifícios de comunhão, os sacrifícios expiatórios e as ofertas. De entre todos, assume particular importância no contexto da liturgia do AT o sacrifício chamado ‘Tamid’ (quotidiano ou diário) que era oferecido no Templo, pela manhã e à tarde, diariamente sem interrupção12. Neste sacrifício era imolado um cordeiro de um ano, sem defeito. Esta imolação era acompanhada de um ritual profundamente simbólico e que encontrará grandes ecos na teologia do NT, logo a começar pela designação de Jesus como ‘cordeiro de Deus’ e como chave de leitura da Sua morte. Assim, antes de ser conduzido ao matadouro para ser imolado, era dada ao cordeiro água a beber numa taça de ouro e o seu sangue era recolhido e lançado na base do altar13. Quanto à pele, esta era vendida em benefício dos sacerdotes e a carne cortada em doze pedaços que, após salgados, seriam colocados sobre o altar. Os seus ossos não podiam ser quebrados, prescrição que era também válida para o cordeiro pascal14. 10

S. BEN CHORIN, Le judaïsme en prière. La liturgie de la Synagogue, Paris, 1984, 25. É a partir do exílio, com Esdras e Neemias que esta ‘liturgia da Palavra’ se vai desenvolver, com a sua proclamação e explicação ao povo (Ne 8,8-9), embora mais tarde esta ‘liturgia da Palavra’ venha a constituir o núcleo central da oração na Sinagoga. 12 As determinações de Ex 29,38 e de Nm 28,3 são corroboradas pelo tratado da Mishná (Tamid) que estabelece as normas precisas para a sua realização. 13 O tratado Tamid descreve todo o ritual do sacrifício e constitui a fonte mais completa de que dispomos sobre o ritual desse sacrifício. 14 S. João evoca esta mesma prescrição acerca de Jesus (Jo 19,36) a quem apresenta como ‘cordeiro que tira o pecado do mundo’ (Jo 1,29) e que na sua concepção teológica é agora o verdadeiro ‘cordeiro pascal’. 11

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Para além do sentido de expiação, os sacrifícios eram também expressão de comunhão entre Deus e o homem. Por isso, ao serem oferecidos sobre ao altar, eles recordavam que este era o símbolo da presença de Deus no meio do Seu povo, lugar da criação do mundo e da eleição de Isaac que aí fora oferecido e pela sua ‘aquedah’15 mereceu a eleição para dar início ao novo povo de Yahwé. Por isso, o culto sacrificial continha não apenas a dimensão expiatória, mas também uma forte componente de retribuição e comunhão com Deus, ou seja, de reconciliação. A esta comunhão alude Paulo na 1 Cor 10,18 quando refere: “Os que comem das vítimas acaso não estão em comunhão com o altar?”. Importa ter presente que, com a destruição do Templo, os sacrifícios foram abolidos e daí a razão da literatura sobre esta questão não ser muito abundante. As tradições conservadas na Mishná, no tratado Zebajim, constituem por isso a melhor documentação de que dispomos. O facto do tema ter caído no esquecimento, incluindo na época talmúdica, porque já não se praticavam sacrifícios pode explicar, em parte, a sensação que se tem ao ler este tratado de que muitas das determinações aí contidas são para nós pouco claras quando não carecidas de sentido. 5. O sábado O ‘sábado’ é um dos elementos fundamentais no conjunto do universo cultural do judaísmo e um dos pólos mais significativos da sua liturgia16. Logo em Gn 2,2-3, o ‘sábado’ é apresentado como a coroa da criação, coroa esta que é dada ao homem, mas da qual também Deus participa: “Deus abençoou o sábado e santificou-o’. O verbo usado para traduzir esta acção de Deus é lishbot (do verbo tbf) que significa ‘repousarse, parar de trabalhar’. O uso do termo deu origem a um conceito que vai muito para além do seu significado original, uma vez que o ‘sábado’ não é apenas a cessação do trabalho, mas antes um dinamismo de santificação que implica essa cessação. Por isso, diversos textos17 ao longo da Escritura recordam o repouso de Deus depois da criação (Ex 20,11) e é por esse repouso que o sábado se tornou sagrado: ‘Ele é um sinal da Aliança’ (Ex 31,17) e da ‘comunhão de Deus com o Seu povo’ (Ez 20,12). Mais tarde, o Deuteronómio ajunta um novo elemento que confere ao sábado uma nova dimensão, associando-o à libertação do Egipto como um memorial que 15

‘Aqedah’ é o acto de Isaac ser atado em oferecimento sobre o altar para ser imolado por Abraão. Para o judaísmo rabínico é pela sua disponibilidade que Isaac ganha méritos e fazem do seu gesto o acto constitutivo do novo povo de Deus. 16 O hebraico shabbat (descansar, repousar) traduz um conceito que está muito para além do sentido que a palavra assume no vocabulário corrente. Trata-se de uma instituição que marca a vida e o ritmo existencial de cada judeu. 17 São inúmeras as alusões ao ‘sábado’, o que faz com que este se tenha tornado não apenas uma instituição de referência para o judaísmo, mas também um elemento diferenciador face aos demais povos. A essência do judaísmo passa pelo ‘sábado’, pois é indissociável do conceito de santificação que lhe é inerente, como referem muitos dos textos bíblicos: Am 8,5; Is 56,1-7; Jr 17,19-27; Ez 20,16-21; Ne 9,13-14; 10,33,34; 13,15-23; 1 Mac 2,31-41; 2 Mac 15,1-5.

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perpetua essa ‘nova criação’ (Dt 5,15), já que a saída da terra do Egipto é o acto fundador do povo de Israel. Por isso, todo aquele que profana ou não santifica o ‘sábado’ renega a sua identidade de israelita e exclui-se a si mesmo do povo eleito (Ex 31,14.16-17), assemelhando-se assim aos pagãos. No que diz respeito à liturgia do ‘sábado’, esta inicia-se com a cerimónia qabbalat hashabbat que, traduzindo à letra, se pode chamar ‘a recepção ao sábado’ e que consiste numa liturgia familiar, composta por uma refeição festiva18 com toda a família ao entardecer de 6ª feira e que é precedida do qiddush (a oração da bênção). O pai de família, no seu regresso da oração sinagogal, “abençoa o pão e o vinho e louva a Deus por ter escolhido o Seu povo e lhe ter dado o sábado”19. A recitação desta oração era fundamentada pelos rabinos como um mandamento (um mitzvá) a partir do próprio texto bíblico quando diz “recorda o dia de sábado para santificá-lo”, sendo a bênção a expressão dessa santificação a que todo o israelita estava comprometido. A preparação da mesa era confiada à mãe que a devia ornar com velas acesas conforme a tradição recomendava20. Alguns autores referem que deviam ser duas as velas a acender para assim evocar os dois mandamentos: zakor (Ex 20,8 - recorda-te do dia de sábado para santificá-lo) e shamor (Dt 5,12 - guardarás o dia de sábado para o santificar), sintetizando em si a espiritualidade do ‘sábado’. Procedia-se também à recitação de Salmos (Sl 95-99 e 29) que anunciavam o advento do período messiânico e o repouso definitivo com Deus (ou seja, o eterno sábado messiânico). A segunda parte da liturgia do sábado consistia numa cerimónia com o nome de la habdalah (que significa ‘separação’) e tinha lugar ao final da tarde de sábado, pretendendo com isso estabelecer a ‘separação’ do dia santificado dos demais dias considerados profanos. Esta cerimónia consiste na recitação das três primeiras bênçãos do Shemoné eszé, após as quais se acrescentava uma outra bênção chamada ata hibdalta que tem por objectivo confirmar as diferenças estabelecidas por Deus. A inserção desta oração no conjunto da celebração de ‘separação’ do ‘sábado’ era objecto de disputa entre os rabinos21. Vejamos o seu sentido: 18

A tradição rabínica punha muito em evidência o gosto e o sabor especial que as comidas do dia de sábado tinham, contando-se algumas histórias a tal respeito. Por exemplo, segundo o Talmud, Adriano teria perguntado um dia a Rabbi Yehoshúa ben Janina qual a razão porque as comidas que os judeus preparavam para o shabbat tinham sempre uma fragância especial, ao que o Rabbi respondeu: ‘O judeu possui uma especiaria que se chama shabbat; isso é o que ele introduz nas comidas e lhes confere essse sabor especial. Dá-me um pouco disso, requereu o imperador romano ao rabino. Este replicou-lhe: Esta especiaria é só eficaz para aquele que observa o sábado e não serve para mais ninguém’, cf. Shab 119ª. O mesmo se teria passado entre Rabbi Yehudá e o imperador Antonino, Bereshit Rabbá 11. 19 F. MANNS, Le judaïsme, 102. 20 O número de velas podia variar de acordo com diversas tradições: 7 (para recordar os dias da semana), 10 (em memória dos 10 mandamentos), diversas (conforme os filhos da família), uma (recordando o dom da vida), etc. 21 Cf. Mishná, Berakôt 5,2.

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“Tu separaste o sagrado do profano, a luz das trevas, Israel das nações, o sétimo dia dos seis dias de trabalho. Tal como Tu nos separaste das nações do mundo e das famílias da terra, purifica-nos também e afasta de nós todo o pecado e toda a transgressão. Concede-nos o conhecimento, a inteligência e a sabedoria. Bendito és Tu, Yahwé, que concedes o conhecimento”22.

Podemos dizer, em jeito de síntese, que o sábado encerra em si uma tríplice dimensão. Por um lado, ele transmite e contém em si algo da essência de Deus, já que Deus ‘descansou e santificou o sábado’, devendo o homem, à imitação do Criador, também descansar e santificar o sábado. Por outro lado, o sábado contém igualmente, como já referimos, uma dimensão social, pois não apenas os israelitas, mas também os escravos e os animais beneficiam dessa dimensão, pois partilham também eles da dimensão do Criador (Dt, 5,12-15). Mas, para além destas, o sábado encerra em si uma terceira dimensão que é a de ser sinal da aliança que os ‘filhos de Israel devem guardar de geração em geração como aliança eterna’ (Ex 31,16-17). Eis toda a riqueza teológica que o sábado em si encerra. 6. Vestes e utensílios da oração Para além das vestes próprias do sumo-sacerdote para cada festa, donde se destacam as que eram empregues na celebração de Yom Kippur, os israelitas usam diversas vestes e utensílios nas suas festividades e também na oração sinagogal. Alguns são de uso obrigatório e assumem uma importância notável, razão pela qual nos parece oportuno deixar aqui uma breve palavra explicativa, já que o seu emprego confere ao momento celebrativo uma dimensão singular. Para além de outros, têm um especial significado as filactérias e tefilîm, a kipa, a mezuza e o talit. São utensílios que estão ligados à oração na Sinagoga, embora alguns deles remontem, de acordo com a própria tradição judaica, ao período do 2º Templo. As filactérias e tefilîm aparecem já mencionadas nos textos da 23 Torah e podemos constatar a sua existência ao tempo do NT (Mt 23,5). O seu uso pode também ser documentado pelas descobertas de Qumrãn que remontam ao período da revolta de Bar Kokba, em 135. O termo bíblico para designar as filactérias é totafot que o Targum traduziu por Tefilîm, derivado da raiz phalal ou taphal, significando ‘separar, dividir ou fixar’. Ao usar os Tefilîm o crente judeu “testemunha diante do mundo que ele está separado dos outros povos. A separação faz dele um ser à parte”24. Trata-se de duas tiras de couro que saem de um pequeno invólucro, uma pequena caixinha, onde está contido um pequeno escrito com alguns 22

Seguimos aqui a tradução de S. GOLDSCHMIDT, Seder Rab ‘Amram Gaon, Jerusalem, 1971, 81. Ex 13,9.16; Dt 6,8; 11,18. 24 F. MANNS, La prière d’Israël à l’heure de Jesus, Jerusalém, 1986, 107. 23

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versículos da Torah25. Nos momentos da oração, nas festas, nas escolas enquanto aprende a Lei e a recita ou na celebração da maturidade religiosa dos jovens (no chamado Bar Mitzvah, baptismo da Lei)26, deve-se usar os Tefilim para testemunhar que a Torah assume uma total centralidade na fé bíblica. Em geral, os Tefilîm são atribuídos aos jovens por ocasião do seu Bar Mitzvah para assim testemunhar que nesse momento se inicia a sua maioridade religiosa. Uma das tiras de couro que saem da pequena caixa que se coloca na testa deve ser enrolada à volta da cabeça e a outra no braço esquerdo, apertando-o junto ao coração. Nessa caixinha são escritos à mão textos bíblicos de Ex 13,9.16; Dt 6,8-9; 11,18, textos estes que recordam o preceito de trazer diante dos olhos e nas mãos os preceitos de Yahwé. Quanto à kipa, trata-se de um pequeno chapéu ou gorro que é colocado na cabeça para a oração, embora também seja muito usado pelos homens na vida quotidiana. Este pequeno solidéu cobre a cabeça como sinal de respeito diante de Deus. Todos os momentos de oração devem ser feitos com a cabeça coberta, pelo que o seu uso é sempre obrigatório. No que diz respeito ao talit, é uma espécie de manto ou xaile que deve ser colocado sobre os ombros e as costas nos momentos de oração. A ele se faz alusão em Mt 23,5, embora o seu uso seja já mencionado em Dt 22,12 e também em Nm 15,37-40. Trata-se de uma peça branca, com riscas azuis e escuras da qual pendem alguns fios nas suas pontas. O objectivo destes fios atados às extremidades do talit é o de recordar os mandamentos do Senhor, dados a Israel, e que os israelitas devem ter permanentemente presentes27. Embora se trate de uma peça que está profundamente ligada à oração, hoje em dia muitos judeus usam na vida corrente uma espécie de escapulário de lã, chamado kanfôt, por baixo da roupa exterior e que substitui o talit. O uso destas vestes era obrigatório para os homens, mesmo prosélitos, embora conforme a tradição talmúdica28 a obrigatoriedade desse uso nem sempre tenha sido uniforme. Uma palavra final sobre a mezuza, um pequeno estojo em metal ou madeira, contendo um pequeno pergaminho com os textos de Dt 6,4-9; 11; 13-21 que se fixa sobre o montante direito das portas na entrada das casas.

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Na tradição antiga, a pequena caixa dos Tefilîm continha também o decálogo, tal como sucedia nas mezuzôt (que se colocam na entrada das portas). Este uso de introduzir o decálogo foi abandonado devido ao facto dos cristãos terem assumido os mandamentos como parte fundamental da Escritura, cf S. BEN CHORIN, Le judaïsme en prière, 47. 26 Trata-se da festa que confirma que o jovem judeu é já adulto e responsável na vivência da sua fé, razão pela qual a partir desse momento ele deve mostrar a sua fidelidade à Torah, aos mandamentos, assumindo assim a maioridade como crente diante de Deus. 27 A túnica ‘sem costura’ a que alude S. João (19,23) é, segundo S. BEN CHORIN (Le judaïsme en prière, 51), algo semelhante a um talit. 28 Menahot 43a-44a.

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Ao entrar, é habitual beijar a mezuza, manifestando assim a veneração aos preceitos de Yahwé e implorando a sua bênção. 7. A festa da Páscoa judaica A festa da Páscoa (Pesah) é de todas a mais significativa do calendário judaico e a primeira das chamadas ‘festas de peregrinação’ (Hag haRegalîm)29. Estas festas celebravam os principais acontecimentos da história da salvação e, por isso, todo o israelita devia ‘subir’ a Jerusalém por ocasião de uma destas três festas, para aí festejar os dons de Deus e a Sua aliança. A celebração da Páscoa, na noite de 14 de Nisãn, estava inserida e dava início a uma outra festa, a dos Ázimos que durava sete dias e se concluía com uma convocação solene no 7º dia da festa (Dt 16,8) 30 que encerrava o ciclo da solenidade pascal. As fontes bíblicas são abundantes no que diz respeito às motivações e à evocação destas festas. A Páscoa era essencialmente um ‘memorial’ (Ex 12,14) da libertação do Egipto. Em Jos 5,10-11, após a passagem do Jordão, os israelitas celebraram a 1ª Páscoa já na terra prometida, ‘comendo dos frutos da terra: pães ázimos e espigas tostadas’. Trata-se, naturalmente, de uma espécie de ritual de ‘exorcização’ do local, para aí manifestar a supremacia sobre os costumes dos cananeus. Segundo Manns 31, os textos da tradição do Êxodo já combinavam as diferentes tradições das tribos. Assim, Ex 23,15-19, que tinha a sua origem no Norte conhecia a tradição dos ázimos mas desconhecia a Páscoa, enquanto que em Ex 34 encontramos já uma conjugação dos dois ritos, conjugação esta que depois está consagrada em Lv 23,5-8 e Dt 16,1-8. Por sua vez, o livro das Crónicas faz-se eco de duas celebrações da Páscoa: uma ao tempo de Ezequias (2 Cr 30,1) e a outra na época de Josias (2 Cr 35,1). O seu ritual evoca a saída do Egipto com a imolação do cordeiro no Templo e a aspersão do altar com o seu sangue. A literatura apócrifa dá igualmente grande relevo à celebração da festa de Páscoa. O livro dos Jubileus faz remontar a celebração da Páscoa a Abraão e estabelece uma relação intrínseca entre o sacrifício de Isaac e a festa (18,13-19). Esta mesma relação encontra-se também no Targum Lv 26,46, em que o sacrifício de Isaac é considerado como o verdadeiro fundamento da Aliança. Enquanto o judaísmo palestinense destacava esta relação entre o sacrificio de Isaac e a Páscoa, o judaísmo alexandrino sublinhava mais o sentido alegórico da festa, como símbolo da primeira criação e anúncio da nova criação. É particularmente Filão de Alexandria32 que desenvolve este 29

As outras duas festas eram a do Pentecostes e a das Tendas. As duas festas tinham uma legislação própria conforme os textos de Ex 23 e 34 e Lv 23, embora com o tempo acabassem por se confundirem ou serem assimiladas mutuamente. 31 F. MANNS, Le judaïsme, 107. 32 De specialibus legibus II,18. 30

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sentido alegórico da saída do Egipto, fazendo desta festa um ‘memorial’ e uma ‘acção de graças’ da libertação. Idêntica perspectiva encontra-se no livro da Sabedoria com um sentido de reactualização do tema do êxodo para a comunidade judaica de Alexandria. O centro da celebração litúrgica da festa da Páscoa decorria no Templo e nas famílias, com o Seder pascal: a refeição da família. É a partir da reunião familiar que se desenvolve a Aggadah pascal que é, ao mesmo tempo, um ‘ordo’ da refeição e um memorial do acontecimento celebrado que não se confina apenas à libertação do Egipto, mas também abarca os principais momentos da história da salvação. No que diz respeito à liturgia sinagogal, um dos textos mais belos e sugestivos sobre esta festa é aquele que nos provém do Targum Neófiti. Trata-se de um comentário de tipo midráshico que encontra o seu desenvolvimento a partir do facto do autor de Ex 12 referir 4 vezes o termo ‘noite’. Vejamos: “Quatro são as noites que estão inscritas no livro das memórias. A primeira noite Deus manifestou-se sobre o mundo para o criar. O mundo era confusão e trevas. As trevas cobriam o abismo. A Palavra de Yahwé era a luz e brilhava. Chamou-se a primeira noite. A segunda noite, quando Yahwé apareceu a Abraão com a idade de 100 anos e a Sarah, sua esposa, com a idade de 90 anos, para realizar a Escritura que diz: Será que Abraão, com 100 anos de idade, vai gerar e Sarah, sua esposa, com 90 anos, vai dar à luz? Isaac tinha 37 anos quando foi oferecido em sacrifício sobre o altar… Chamou-se a segunda noite. A terceira noite Yahwé apareceu aos egípcios no meio da noite: a sua mão matou os primogénitos dos egípcios e a sua direita protegeu os primogénitos de Israel para que se cumprisse a Escritura que diz: Meu filho primogénito, é Israel… Chamou-se a terceira noite. A quarta noite o mundo chegará ao seu fim para ser destruído; os jugos de ferro serão destruídos e as gerações perversas serão aniquiladas. Moisés subirá do meio do deserto e o Rei Messias virá do alto. Um caminhará à frente do rebanho e o outro caminhará à frente do rebanho e a sua Palavra caminhará entre os dois. Eu e eles caminharemos lado a lado. É a noite da Páscoa para a libertação de todo Israel”33.

Quanto aos textos rabínicos, a Páscoa aparece também bem documentada nessas fontes, particularmente no tratado Pesahim da Mishná. Os capítulos 5º e 10º oferecem-nos uma detalhada descrição dos ritos fundamentais da festa segundo a tradição rabínica, mas recolhendo tradições que, provavelmente, são já do período posterior à destruição do Templo, uma vez que não há alusões à celebração festiva no Templo e os rabinos citados são, em geral, também do período posterior a 70. Os rituais festivos que este tratado nos apresenta têm uma forte componente alusiva à celebração familiar e assemelham-se em muito às tradições que se 33

Targum Neófiti a Ex 12,42.

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perpetuam na Aggadah pascal que é um texto que condensa em si esse sentido da festa celebrada e vivida na família como memorial da história da salvação. Em termos teológicos, a festa de Páscoa é sem dúvida a mais rica de todas do calendário judaico. Nela se cruzam certamente tradições muito díspares, mas que pouco a pouco se foram cruzando e convergindo para o sentido da libertação do Egipto, apesar de nem todas as tribos terem tido a mesma experiência de saída do Egipto nem de passagem pelo Sinal. Poderemos sintetizar a teologia da Páscoa em 3 grandes perspectivas: a) Sentido messiânico-escatológico da celebração pascal A festa actualiza a saída do Egipto na vida da comunidade e, ao mesmo tempo, antecipa a libertação definitiva. A simbologia dos ritos festivos têm uma dimensão escatológica, prefigurada no vinho do banquete messiânico, tal como o deixa entender o Targum do Cântico dos Cânticos. De acordo com Gn 49,11, o vinho tem um sentido profundamente messiânico, pois o Messias lavará as suas vestes no sangue da videira34. Esta dimensão messiânica é também confirmada por Pesah 9,11 que refere que ‘os habitantes de Jerusalém convidavam os pobres para a refeição pascal, já que Elias se manifestaria sob a forma de um pobre, antes do advento do Messias que deve acontecer na noite pascal. A Páscoa é também a festa do anúncio da libertação que Yahwé concede ao seu povo, fazendo-o passar da ‘casa da escravidão’ que era o Egipto para a libertação que é a Terra Prometida. Não se trata de um anúncio celebrativo, memória do passado; ele é antes um grito de esperança que percorre toda a história do povo e aberto ao futuro. De facto, a perspectiva escatológica da liturgia pascal está bem presente num texto atribuído a Rabban Gamaliel35, em que cada um dos crentes judeus é convidado a celebrar a festa como se ele próprio tivesse estado presente na altura da sua instituição. Diz o texto: “Cada um de nós tem o dever de se considerar como se ele próprio tivesse saído do Egipto, já que está escrito: Explicarás ao teu filho naquele dia, dizendo: ‘É pelo que o Senhor fez em meu favor quando saí da terra do Egipto’. Por isso, estamos obrigados a dar-lhe graças, louvá-lo, cantar, magnificar, exaltar, glorificar, bendizer aquele que fez, em favor dos nossos antepassados e por nós, todos estes prodígios. Ele conduziu-nos da escravidão à liberdade, da tristeza à alegria, do luto à festa, das trevas à luz, da escravidão à redenção. Cantemos em Seu louvor, Aleluia”. 34

Na refeição pascal cada israelita devia beber 4 taças de vinho, de acordo com o rito da Ceia (Seder), devendo permanecer uma 5ª taça na mesa em honra de Elias, já que Elias era esperado na noite pascal e devia tomar parte no banquele celebrativo. Embora se trate de uma prescrição da Halakah, a imaginação popular, como diz BEN CHORIN (Le Judaïsme en prière, 136), estabeleceu uma “relação entre a taça do profeta Elias e a oração de Jesus no Getsémani” quando suplica ao Pai: ‘Meu Pai, se é possível afasta de mim este cálice’ (Mt 26,39). Era o cálice que evoca a chegada dos tempos messiânicos. 35 Mishná, Pesah, 10,5.

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Esta dimensão escatológica da festa é aquela que melhor se coaduna e que mais facilmente foi assumida pela liturgia cristã. De acordo com os Evangelhos Sinópticos, o próprio Jesus tinha consciência da dimensão escatológica da Sua ceia pascal, quando após a bênção da taça do vinho acrescenta: “Eu vos asseguro que já não beberei do fruto da videira até ao dia em que o beba de novo no reino de Deus (Mc 14,25)”36. Jesus não só conferiu à refeição pascal com os discípulos este sentido escatológico, mas também a própria comunidade cristã primitiva encontrou aqui a ‘chave de leitura’ da vida do Mestre. O seu sangue, tal como o do ‘cordeiro pascal’, selou uma nova aliança, a aliança escatológica que fora proclamada pelos profetas e que agora se concretiza no mistério da sua Páscoa. b) A Páscoa como nova criação O judaísmo alexandrino cultivou muito o método alegórico e simbólico na sequência da tradição platónica. Muitos dos acontecimentos da história do povo de Israel foram interpretados e comentados como alegorias de realidades futuras ou, então, como protótipos dos verdadeiros mistérios da salvação37. Também com a festa da Páscoa sucede o mesmo. Assim, sendo o mês de Nisãn o primeiro dos meses (Ex 12,2)38, Filão de Alexandria interpreta isso como sendo ‘um memorial da origem do mundo’39 e a Páscoa, enquanto festa da primavera, era o memorial da nova criação que Deus realiza, libertando o Seu povo da escravidão para a liberdade40. A leitura do Cântico dos Cânticos (Shir haShirim) que era feita na liturgia pascal confere a esta celebração um sentido de ‘núpcias festivas’ entre Deus e o Seu povo e dessas núpcias nasce um povo novo, o povo da aliança. A própria tradição rabínica também interpreta o “êxodo como uma espécie de criação precedendo o nascimento de Israel”41, já que para certos rabinos a origem do mundo teria tido lugar no mês de Nisãn. A própria simbologia dos pães ázimos’ (os matzot) confere o significado de algo novo, original à celebração, determinando assim o começo de uma realidade que se inicia sem qualquer mácula, ou seja, em santidade. O mesmo se passa com o ‘ovo’ que se coloca na ceia pascal, simbolizando a 36

A tradição judaica fala das 4 taças de vinho que se deviam beber durante a ceia pascal, às quais era costume juntar uma quinta, a taça de Elias, o profeta que vinha na noite de Páscoa, evocando assim os tempos messiânicos. Segundo Malaquias (3,23), Elias é o mensageiro do Messias que vem à frente a preparar-lhe o caminho (Mc 9,11-13). 37 Filão de Alexandria dizia: “As coisas claras que são ditas são símbolos de coisas escondidas e obscuras” (De specialibus legibus I, 200). 38 Trata-se do 1º mês do ano religioso ou ano cultual, já que o ano civil começa com a festa de Rosh haShanah, no mês de Tishri que corresponde ao nosso Setembro-Outubro. De facto, a Páscoa era a festa das festas e daí que fosse ela a marcar o ritmo de toda a liturgia judaica, já que a lua nova de Nisãn determinava todo o ritmo festivo do ano. Todavia, é bom ter presente que este calendário é tardio, retomando inclusive nomes de alguns meses do calendário de Babilónia. 39 De specialibus legibus II,151.168. 40 “A Páscoa tem um sentido universal pela sua relação com a harmonia da natureza. Porque a primavera nascente trás com ela uma renovação que recorda a criação” (De specialibus legibus II, 150-155), cf. La Pâque: fête juive et fête chrétienne, Le Monde de la Bible 43, Paris, 1986, 19. 41 Cf. F. MANNS, Le judaïsme, 113.

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origem da vida e, ao mesmo tempo, a vida nova da ressurreição, já que o ovo contém o gérmen da vida na sua plenitude. Podemos dizer que a liturgia pascal é, por ela mesma, um apelo à esperança, não só a Israel, mas também a toda a humanidade, que se renova num novo dinamismo de libertação. É esta a mensagem que o texto de Pesh 10,5 nos deixa quando diz que a Páscoa é a passagem ‘das trevas à luz’, passagem que o Targum confirma pondo a noite pascal em ligação com a noite da criação. c) A Páscoa e a ‘Aqedah’ de Isaac A liturgia judaica, tal como se pode constatar pelo texto do Tg Neófiti a Ex 12,42, estabelecia uma estreita relação entre a festa da Páscoa e o sacrifício de Isaac. Esta relação foi também assumida pela liturgia cristã que na noite de Páscoa retoma a leitura de Gn 22 como um dos momentos mais significativos da história da salvação e pré-figuração do sacrifício de Cristo, o novo Isaac. De facto, a teologia judaica sempre interpretou a entrega de Isaac no país de Moriá como o nascimento do povo de Israel na pessoa do filho de Abraão. É em atenção aos méritos de Isaac que Israel subsiste aos olhos de Deus. Para o Livro dos Jubileus (18,3), o sacrifício de Isaac teve lugar a 15 de Nisãn. A intenção do autor dos Jubileus é a de mostrar que as festas judaicas, especialmente a mais importante de todas – a Páscoa – tinham já uma origem patriarcal através da concretização do apelo que Yahwé lhe fizera. Os sete dias da festa de Páscoa eram a ‘memória’ dos sete dias da viagem de Abraão até ao país de Moriá. O mesmo se pode deduzir desta aggadah a Ex 12,2 que diz: “Este mês será para vós o primeiro dos meses (Ex 12,2). O Santo, bendito seja Ele, designou para os israelitas um mês de redenção no qual eles foram redimidos do Egipto e no qual eles serão redimidos… Nesse mês nasceu Isaac, e nesse mês ele foi ‘ligado’”42.

No entanto, a relação simbólica entre os dois acontecimentos não se restringe apenas à data; é muito mais profunda. Assim, o cordeiro pascal recorda o cordeiro sacrificado por Abraão em substituição do próprio filho, embora, como diz o Targum, Isaac é o verdadeiro cordeiro para o sacrifício. Ele mesmo, quando está a ser atado ao altar, suplica ao pai para que o ate bem, já que não quer remexer-se nem manifestar qualquer recusa da sua entrega, a fim de que o seu sacrifício não seja inválido e desta forma Israel possa ser redimido pelos seus méritos. Isaac é assim a perfeita imagem do ‘cordeiro pascal’ que se oferece para merecer a salvação para Israel. Por sua vez, o Targum de Lv 22,27 reconhece que os cordeiros oferecidos no Templo o eram para ‘fazer memória’ do sacrifício de Isaac. Desta forma, Isaac é o protótipo do crente israelita que se entrega a Deus 42

Ex Rabbah 15,11.

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para expiar o pecado do mundo, tal como outrora ele se oferecera no altar. Foi em atenção ao sacrifício de Isaac que Yahwé preservou, na noite pascal da libertação através do sangue do cordeiro, os primogénitos dos israelitas. Esta teologia fundada na Aqedah de Isaac foi também desenvolvida pelos autores cristãos que a aplicaram ao sacrifício de Cristo, tal como nos mostra Melitão de Sardes no seu Peri Pascha. O facto do judaísmo pósrabínico e moderno ter transferido o memorial da Aqedah de Isaac para a festa de Rosh haShanah (festa do ano novo, no mês de Tishri) pode ser uma consequência da apropriação feita pelo cristianismo do tema do sacrifício de Isaac e da sua releitura como chave interpretativa do sacrifício de Cristo, novo Isaac. 8. A festa do Pentecostes ou das ‘semanas’ Trata-se de uma solenidade importante do calendário judaico que encerra em si um significado muito diversificado, já que esta festa foi conhecendo uma evolução muito acentuada ao longo dos tempos e assumindo significações diversas de acordo com a evolução do próprio judaísmo como tal. O nome mais antigo por que é conhecida era de ‘festa das colheitas (Hag haqqâsír: Ex 23,16). O seu carácter agrário está ainda bem presente numa outra designação por que era conhecida: a festa das primícias (Hag haBikkûrim: Ex 34,22). Nela se ofereciam as primícias do trigo que eram trazidas ao Templo numa atitude de agradecimento pelo dom das colheitas. O nome de ‘festa das semanas’ ou Hag haShavuôt põe em evidência a relação que existia entre a festa e a Páscoa. De acordo com Lv 23,15-21, a festa era celebrada sete semanas após os ázimos, com a entrega da oferta do ‘omer (o molho de espigas), completando assim aquilo que poderíamos chamar de quadra pascal43. Quanto à designação de ‘festa do Pentecostes’, ela tem apenas um sentido temporal e pretende realçar o facto desta celebração ocorrer no quinquagésimo dia após a Páscoa, apesar da data não 43

Para a tradição judaica, a forma de contar as ‘sete semanas’ que medeiam entre as duas festas nunca foi passiva nem uniforme, mormente entre saduceus e fariseus. Com a predominância de algum destes grupos no Sinédrio, a confusão por vezes era manifesta, tal como o deixa entender a diversidade de calendários que eram seguidos. Para os Saduceus, a interpretação de Lv 23,15 era literal e por isso afirmavam que a Escritura se referia ao dia seguinte ao primeiro sábado da quadra da Páscoa, a partir do qual se deviam contar os 49 dias (sete semanas). Desta forma, a festa devia ser celebrada sempre no primeiro dia da semana (ao domingo), no quinquagésimo dia depois da apresentação do ‘omer (molho de espigas). Esta é a tradição que foi retomada pelo cristianismo que sempre conta quarenta e nove dias entre a Páscoa e o Pentecostes. No entanto, o vocábulo Shabbat do texto de Lv 23,15 que serve de referência para contar as sete semanas pode não indicar o dia semanal (o dia de sábado), mas antes o ‘dia de preceito’ (dia de repouso – shabbat). Se assim fosse, então o quadragésimo nono dia (as setes semanas) teria como referência o dia de Páscoa (esta interpretação pode apoiar-se em Jos 5,11). Por sua vez, os Essénios e outros grupos que seguiam o calendário de Qumrãn, ou seja, o calendário solar, fixavam a data da festa só a partir do 1º sábado depois da semana da Páscoa. Como a festa dos ázimos era a 15 de Nisãn e o calendário era fixo, esta era celebrada sempre a uma 4ª feira, pelo que o 1º sábado depois da semana da Páscoa seria o dia 25 do mês de Nisãn. Contadas assim as sete semanas, a festa tinha lugar a 15 do 3º mês do calendário, ou seja, a 15 do mês de Sivan, tal como se pode deduzir da col. XVIII do Rótulo do Templo encontrado em Qumrãn (cf. Y. YADIN, The Temple Scroll, 88).

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ser uniformemente aceite por todos os grupos judaicos, conforme referimos na nota anterior. As referências bíblicas a esta celebração são inúmeras44, já que se trata, juntamente com a Páscoa e as Tendas, de uma das três mais importantes festas do calendário litúrgico, chamadas ‘festas de peregrinação (Hag haRegalîm), durante as quais todo o varão israelita devia subir, ao menos uma vez ao ano, a Jerusalém, para aí se apresentar diante do Senhor, levando consigo as primícias da época em que decorria a respectiva festa45. a) A evolução da festa Originariamente, todo o contexto e significado desta festa apontava para um ambiente agrícola, profundamente ligado às primeiras colheitas, o que constituía para o povo um momento de grande expectativa e também de reconhecimento pelos frutos que começavam a ser colhidos. No entanto, progressivamente ela foi assumindo um significado de carácter histórico ligado ao Sinai como a ‘festa da renovação’ ou a ‘festa da entrega da Lei’. Esta primeira perspectiva como festa da ‘renovação da aliança’ encontra-se já desenvolvida na tradição essénia (em Qumrãn) e sacerdotal de que se faz eco o livro dos Jubileus, enquanto que a segunda, ‘festa da entrega da Torah’, é mais desenvolvida pela tradição rabínica posterior, mormente a partir da altura em que a Torah, devido à destruição do Templo, assumiu a centralidade da liturgia judaica. Em Jubileus 15,1, diz-se que Abraão já celebrou a festa das semanas, embora aí se aluda ao seu carácter agrícola, pondo em realce a oferta das primícias do trigo. Foi então que Yahwé firmou com ele uma aliança (15,4) que deve ser guardada por ele e por toda a sua descendência (15,11). A alusão às primícias é aqui apenas contextual, uma vez que a tónica é posta na aliança e na sua teologia. De facto, a festa é apresentada como o início da aliança entre Yahwé e Abraão e do compromisso mútuo de fidelidade de que a circuncisão será um sinal perpétuo: “Eu sou o Deus omnipotente, sê-me agradável e perfeito; estabelecerei a minha aliança contigo e te multiplicarei” (Jub 15,3-4).

A alusão à festa das semanas é explícita em 6,17s, onde se diz que nesta festividade se renovava a aliança todos os anos. Aliás, a festa tem um acentuado cunho apocalíptico, destacando-se já a sua existência nos céus desde a criação até à altura em que a sua celebração foi ordenada a Noé (Jub 6,18). Ora, sendo o livro dos Jubileus um escrito ligado aos grupos essénios e sacerdotais pré-essénios, é natural que ele deixe transparecer as perspectivas teológicas da seita de Qumrãn no que diz respeito a esta celebração. Era nesta altura que se fazia a admissão dos novos membros na 44

Ex 34,22; Lv 23,15s; Nm 28,26; Dt 16,10; 2 Cr 8,13. O tratado da Mishná, Bikkurim 3, descreve-nos o processo como decorria a subida a Jerusalém para aí apresentar no Templo as primícias e entregar aos sacerdotes os primeiros frutos da terra ou dos animais. 45

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comunidade e se procedia à renovação da aliança46. Neste sentido, os grandes acontecimentos da história da salvação tinham tido lugar nesta festa: a aliança com Abraão e a promessa do nascimento de Isaac (Jub 15,19), o nascimento de Isaac (16,13), as bênçãos a Isaac e Ismael em plena celebração da festa das semanas (Jub 22). Em 2 Cro 15,10-15 alude-se a uma festa de renovação da aliança aquando do reinado de ‘Asa (911-870), o que poderia constituir para o autor do livro das Crónicas o fundamento de uma tradição sacerdotal sobre a renovação da aliança do Sinai. Esta festa foi celebrada no 3º mês, ou seja, no mês de Sivan (2 Cro 15,10) que era o mês de Hag haShavuôt (festa das semanas). Ora, a tradição sacerdotal do Pentateuco coloca neste mesmo mês a aliança do Sinai entre Deus e Moisés (Ex 19,1). Neste contexto, a celebração a que se refere 2 Cro 15,10-15 poderia ser o primeiro testemunho da evolução da festa que, paulatinamente, foi perdendo a sua significação agrícola ligada às primícias, tornando-se, em virtude da teologia sacerdotal, uma festa ligada à aliança do Sinai e ao dom da Torah47. A par desta tradição da renovação da aliança sinaítica que provavelmente já existia ao tempo do NT, encontramos, no séc. II (d.C.), as primeiras referências explícitas que nos atestam uma outra perspectiva teológica sobre a festa do Pentecostes: o dom da Torah48, perspectiva esta que passará a constituir o tema central desta festa na liturgia sinagogal. Para fundamentar esta perspectiva, os rabinos raciocinavam com cálculos baseados nas passagens da Escritura que aludiam à caminhada de Israel através do deserto e à sua chegada ao Sinai, provando que a entrega da Torah a Moisés no monte Sinai ocorreu a 6 do mês de Sivan49 que era o 46

O rito da admissão dos novos membros na comunidade de Qumrãn significava, segundo o espírito dos qumranitas, o início da salvação daqueles que eram admitidos, pois só os membros do grupo, os ‘filhos da luz’ ou ‘filhos da aliança’ alcançavam a salvação. 47 Importa ter presente que tanto o livro das Crónicas como o dos Jubileus têm a sua origem nos círculos sacerdotais, podendo os dois (Crónicas e Jubileus) testemunhar uma tradição comum que se foi impondo nos grupos sectários que viviam à margem do judaísmo oficial e do culto do Templo, entre os quais a festa acabou por se impor. Os dados fornecidos por FILÃO de ALEXANDRIA (De Vita Contemplativa, 65) sobre a celebração da festa entre os Terapeutas (seita judaica que vivia em Alexandria) vão no mesmo sentido. Estes celebravam a festa com uma refeição integrada por um conjunto de ritos que recordam a aliança do Sinai (uma refeição que compreendia um conjunto de ritos e era composta por pão, sal, água e hissope; pão e sal são o sinal da aliança eterna; a água purifica, tal como o hissope que recorda o rito da purificação com o qual se concluía a aliança. Além disso, a água é também símbolo do Espírito que está associado ao dom da Torah). 48 A complexidade das diversas tradições e a falta de elementos claros acerca desta festa não tem proporcionado aos diferentes autores encontrar uma significação que seja por todos aceite (cf. SAFRAI – STERN, The Jewish People in the First Century, Assen-Amsterdam, 1976, 893, pensa que era uma festa agrícola; M. WEINFELD, “Pentecost as Festival of the Giving oh the Law”, Immanuel 8 (1978) 7-18, diz que se trata da comemoração do dom da Torah no Sinai). 49 Cf. Shab 86b; Yoma 4b; Mikilta Shemot 9,1-10. Aliás, é interessante o comentário da Pesikta De-Rab Kahana, Piska 12, ed. De W. Braude e I. Kapstein, Philadelphia, 1978 (ed.), 227s que, comentando o texto de Ex 19,1-20,26, a leitura da festa do Pentecostes, alude aos preceitos da tradição rabínica que

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1º dia da festa das semanas (Hag haShavuôt). O Talmud de Babilónia (Pesah 68b) transmite-nos uma afirmação de Rabbi Eleazar (por volta de 250 d.C.) que relaciona a festa do Pentecostes com o dom da Lei no Sinai: “O Pentecostes é o dia em que foi dada a Torah”. Desta forma, facilmente se pode verificar como o carácter originariamente agrário desta festa se foi perdendo, dando lugar a uma perspectiva teológica mais centrada na Torah e na sua entrega a Israel. A razão desta evolução de perspectiva teológica tem certamente muito a ver com a situação histórica do judaísmo após a destruição do Templo. De facto, não fazia sentido conferir a esta festa uma dimensão que o povo já não podia celebrar, pois não havia Templo, nem culto oficial, nem sacerdócio, nem apresentação e entrega das primícias, sendo a renovação da aliança apenas um ‘fazer memória’ agora no presente de algo que não se podia reconfirmar na liturgia sinagogal. Ao contrário do que sucedera com o culto, a Torah tinha-se tornado, face às circunstâncias de diáspora da comunidade judaica, o centro do judaísmo; a vida do povo judeu estava agora totalmente centralizada na Lei e nos comportamentos por ela impostos como expressão vivencial da fé. Assim, da renovação da aliança para o dom da Lei foi apenas uma pequena evolução confirmada pelas tradições rabínicas acerca da festa do Pentecostes, inserindo-a desta forma no centro da liturgia sinagogal. Por isso, como diz Yaacov Vainstein, “Shavuôt traduz plenamente a eterna verdade que Israel, a Torah e a terra de Israel são uma unidade indivisível”50. Como vemos, parece claro que a festa foi perdendo importância depois da destruição do Templo, não se perpetuando muitos ecos do período anterior, salvo as alusões à apresentação das primícias que se mantêm na liturgia sinagogal, já que aí se lia nesta ocasião o Targum de Ruth51. Ruth está associada à festa das colheitas e essa associação tem representam a explicitação da Torah. Segundo esta tradição, foram dados a Israel 613 mandamentos, dos quais 248 são positivos (tantos quantos os membros que compõem o corpo humano) e 365 negativos (tantos como os dias do ano). Tudo isto testemunha já como a tradição rabínica desenvolveu a sua perspectiva legalista à sombra desta festa, ligando-a ao carácter normativo da Lei e reforçando a sua centralidade na vida e na piedade judaica. Desta forma, facilmente se pode deduzir que por trás da celebração da festa há uma tradição muito forte que a liga à recordação da entrega da Torah no monte Sinai. A Pesikta De-Rab Kahana é um midrash formado por um conjunto de homilias para os diversos serviços litúrgicos da sinagoga e a homilia a que aqui aludimos (a Piska 12) era proferida no dia da festa do Pentecostes. As suas tradições são antigas e, como tal, podem testemunhar um uso do judaísmo já antigo. 50 Y. VAINSTEIN, El ciclo del año judio: Un estudio sobre las fiestas y sobre selecciones de los rezos, Jerusalem 5740/1980. 51 O Targum de Ruth (tradução-interpretação em aramaico) era lido na festa do Pentecostes, narrando a história de Ruth (a moabita) que veio a ser a avó de David. Este texto tinha um acentuado cunho messiânico. Um outro texto que também era lido nesta quadra festiva era o Targum Sheni de Ester (ou seja, o Targum de Ester, 2ª versão). Era um texto com muitas tradições midráshicas antigas, o que confere a este texto um valor muito representativo.

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como fundamento o modo como ela abraçou a religião israelita. Desta forma, servindo-se do Targum de Ruth, a liturgia sinagogal queria pôr em evidência uma outra realidade: a conversão dos pagãos à religião de Israel. O texto targúmico é bem explícito ao realçar a atitude de Ruth que ‘deseja ser prosélita’52. Por sua vez, Noemi, sua sogra, recorda-lhe a obrigação de guardar os sábados e os dias de festa, bem como os ‘seiscentos e treze preceitos’. A fórmula de fé que Ruth profere é: “O teu Deus será o meu Deus”53. Numa outra passagem, o Targum de Ruth alude à protecção que a Shekinah (glória - presença) de Yahwé concede aos que se tornam prosélitos e que, por isso, não serão condenados ao juízo da Geena (2,12). As tradições targúmicas sobre a festa do Pentecostes são muito abundantes e diversificadas. Por exemplo, o Targum Ex 24 fala-nos dos primogénitos que pertencem a Yahwé (24,5). Em 24,8 alude-se à aspersão do sangue sobre o povo e sobre o altar numa referência clara à purificação que antecede a conclusão da aliança, mostrando-nos assim que a solenidade de Shavuôt mantinha o seu carácter agrícola e recordava, igualmente, a celebração da aliança no Sinai. Um outro elemento significativo sobre a festa do Pentecostes é-nos dado pelo Targum de Habacuc 3. Trata-se de um texto que é uma espécie de complemento a Dt 16,9-1254. Ora, para além dos textos da Torah55 que conferiam a esta festa um profundo significado agrícola, o Targum de Habacuc, 3, não alude em nada a esse contexto. Logo, é de supor que o texto targúmico era utilizado nesta altura porque a celebração de Shavuôt tinha então recebido uma nova orientação teológica56. O Targum de Habacuc por sua vez realça a misericórdia e a paciência de Deus para com os ímpios, esperando e dando tempo para a sua conversão. Fala-se também da nova criação, dum novo êxodo que Yahwé vai realizar. Os temas da teofania do Sinai estão muito presentes no Targum, embora não façam parte do texto canónico de Habacuc. O contexto global da versão targúmica é de aliança (3,10). Admite-se que este Targum estivesse já em uso no séc. I (a.C.), pelo que, se assim fosse, tratava-se de um texto contemporâneo aos textos de Qumrãn. Aí pressente-se que a perspectiva agrária da festa se foi perdendo, 52

Tg Ruth 1,16. Ruth e Tg Ruth 1,16. 54 O Targum de Habacuc 3 servia de ‘haphtarah’ à passagem do Dt, ou seja, trata-se do texto da secção dos profetas que era lido na sinagoga como leitura complementar ao texto do Pentateuco e que constituía uma espécie de comentário a esse texto. No caso aqui referido, o texto do Targum era uma espécie de comentário à perícope de Dt 16,9-12. 55 Particularmente Lv 23,15-21 e Nm 28,26-31. 56 Um dado muito significativo a este respeito é o facto de ter sido encontrado em Qumrãn um Pesher de Habacuc, ou seja, um comentário ao livro deste profeta, o que só por si já testemunha a importância que o movimento dos essénios dava a este profeta. Todavia, o texto que foi encontrado termina no cap. II e, por isso, nada nos diz sobre a interpretação que a seita fazia da visão que Habacuc descreve no cap. III. Aliás, a leitura de Dt 16,9-12 nesta festa parece ser uma introdução tardia (Meg 3,5), tal como Ex 19,1s que remontariam apenas ao séc. II da nossa era. Segundo o Talmud, Ex 19 seria a leitura da Torah para o 1º dia da festa, enquanto que Dt 16,9-12 seria a leitura própria para o 2º dia. 53

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tomando antes uma significação que aponta para a aliança, tal como aliás, já era referido em Dt 16,9-12 com a alusão explícita à libertação do Egipto e à prática dos preceitos da Lei. Este texto do Targum de Habacuc 3 apresenta uma série de temas teológicos que estão muito próximos do NT, dos quais saliento: a necessidade e urgência da conversão, o perdão que é concedido aos homens pela misericórdia divina, o anúncio da renovação do mundo no fim dos tempos57. Um outro texto da liturgia sinagogal sobre a festa de Shavuôt é o Targum de Ez 1. No entanto, é difícil precisar quando é que esta perícope começou a ser usada como haphtarah nesta festa. Na Mishná (Meg 4,10), alude-se à leitura deste texto, embora se coloquem reservas ao seu uso (Hag 2,1), uma vez que Ez 1 era uma passagem suspeita para o judaísmo rabínico58. Por volta de 150 (d.C.), Rabbi Judá permitia a sua leitura, enquanto que na Tosefta Meg 4,34 diz-se que esse capítulo de Ez podia ser lido, mas não traduzido em língua vulgar, o que quer dizer que não podia ser usado como targum na liturgia da sinagoga. No entanto, o Targum de Ez 1 parece ser antigo, uma vez que existem certas ressonâncias das suas tradições no livro de Henoc59 e as especulações sobre o ‘carro de Yahwé’ eram já conhecidas também em Qumrãn. Todavia, os rabinos tinham colocado muitas reticências ao uso deste texto, uma vez que as interpretações de carácter esotérico podiam pôr em questão a orientação que o judaísmo rabínico pretendia conferir a esta festa. No seu conjunto, os textos litúrgicos (targúmicos) que aqui referimos mostram-nos que a festa de Shavuôt foi evoluindo na sua significação, passando do sentido tipicamente agrícola para a comemoração do dom da Lei, tema este que se tornou muito caro ao judaísmo rabínico, já que a Torah estava no centro de todo o seu sistema religioso. 9. A festa das Tendas O ciclo anual das ‘festas de peregrinação’ encerra-se com a celebração de Sukkôt, também conhecida pelo nome de ‘festa das Tendas ou Tabernáculos’. No que diz respeito ao nome Sukkôt, o midrash retoma muitas vezes o seu significado, baseando-se nas palavras de R. Aqiba para quem o termo significava “as nuvens da glória que foram dadas ao povo no deserto para o proteger do sol”60. Por sua vez o Targum descreve essas sete 57

É interessante verificar como todos estes temas estão presentes, de forma mais directa ou indirecta, no discurso de S. Pedro no dia do Pentecostes (Act 2). 58 As suspeitas que envolvem o texto de Ez 1 referem-se ao tema do ‘carro de Yahwé (Merkkabah Yahwé) à volta do qual se desenvolveram interpretações místicas e esotéricas que punham em questão o judaísmo legalista e normativo imposto pela reforma levada a cabo no sínodo de Yabné na sequência da destruição do Templo. Este tema será, mais tarde, amplamente desenvolvido pelas correntes cabalísticas do pensamento judaico medieval. 59 Henoc 14,9; 17,5. 60 Sifra Lv 23,42-43.

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nuvens de glória que “protegeram Israel e o transportaram afastando todos os obstáculos” do seu caminho e assim o povo pôde chegar à terra prometida. Tal como sucede com as festas anteriores, também a origem agrária desta não é contestada pela tradição bíblica, já que na sua génese está o tema das colheitas de Outono (Ex 23,16) que se celebrava durante oito dias, de 15 a 22 do mês de Tishri (Lv 23,34), correspondendo ao SetembroOutubro do nosso calendário. O carácter agrícola da festa assume a sua plena expressão simbólica nas ‘quatro espécies de ramos de árvores’ que os fiéis deviam levar para dar ambiente festivo a esta solenidade (Lv 23,40)61. É interessante notar como o Midrash faz uma interpretação desses elementos vegetais que deviam ser usados na festa das Tendas, ligando o seu simbolismo à Torah e à sua prática, o que empresta à festa de Sukkôt um carácter profundamente messiânico à volta da Lei e do seu significado para a vivência do povo62. Mas, para além desta perspectiva, uma outra das ideias fundamentais que está associada a esta festa é a da travessia do deserto que o povo percorreu no seu regresso do Egipto e que, realçando a sua condição de nómada, deu consistência na alma do povo israelita à ideia de ‘ser peregrino na terra’ que recebera de Yahwé (Lv 23,42-42). Por isso, subjacente a esta festa está a concepção do povo que é itinerante e que na celebração das tendas, melhor que em qualquer outra época do calendário litúrgico, vive e sente que a terra é dom de Deus e que a sua condição é a de peregrino e ‘hommo viator’. No seu início, a celebração desta festa parece ter tido uma certa mobilidade em termos de calendário, tendo sido fixada a data do seu início para o dia 15 do mês de Tishri (equivalente à lua cheia do equinócio de Outono) apenas no período pós-exílio. Mais tarde, foi acrescentado um 8º dia à celebração (Ne 8,17-18; Lv 23,36), conferindo-lhe um carácter festivo e solene em louvor da Lei e concluindo desta forma as festas do calendário litúrgico de Israel com um dia de ‘grande alegria’ (Simeghá Torah). O ambiente de alegria que era conferido a esta solenidade esta bem presente 61

O texto bíblico refere estas quatro espécies de ramos de árvores com os seguintes nomes: êtrog (fruto semelhante ao limão ou ramo de limoeiro), lulav, hadasim e aravot. Trata-se de árvores típicas da região, entre as quais a palma, a murta, o limão. O sentido do uso desses ramos era o de traduzir a alegria e o contentamento dos fiéis como agradecimento do dom das colheitas já recolhidas. Por isso, era uma festa de grande alegria. A própria saudação que se usa nesta quadra festiva diz bem dessa alegria: Simeghá Torah (alegria da Lei; festas alegres). 62 Suk 46b: “Tal como o etrog (ou ramo de limoeiro) tem um bom sabor e uma agradável fragância, assim também entre os israelitas existem homens estudiosos da Torah e que praticam boas acções; um ramo de palmeira, à semelhança do seu fruto, a tâmara tem bom sabor embora careça de aroma, assim existem homens que tendo estudado não praticam o que aprenderam com perfeição; tal como o ramo de murta tem um agradável aroma, porém é insosso, assim existem homens de boas acções que não possuem instrução; da mesma forma que o molho de espigas não é comestível nem tem qualquer odor agradável, assim também aqueles homens que não estudaram nem tão pouco praticam boas acções”. Temos quatro tipos de pessoas que simbolizam a totalidade dos diversos grupos que formam uma nação, neste caso o povo de Israel.

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no provérbio que nos é transmitido pela Mishná, no tratado Sukkah: “Quem não viveu o entusiasmo da ‘recolha da água’63 jamais conheceu a alegria na sua vida”64. Neste dia completava-se igualmente o ‘ordo’ cíclico das leituras da Torah na Sinagoga, já que no sábado seguinte à festa, o chamado Shabbat Bereshit (1º sábado) se inaugurava um novo ciclo litúrgico com a leitura dos Génesis. Quanto à vivência propriamente dita desta festa, a sua singularidade passa pelo facto de, durante sete dias, todo o israelita ser obrigado a viver numa cabana ou tenda, devendo aí dormir e fazer a comida. Esta obrigação estendia-se a todo o israelita varão, inclusive crianças, deste que já não precisassem dos cuidados maternos, bem como aos prosélitos e aos escravos que entretanto tinham alcançado a liberdade, estando dela apenas isentas as mulheres, os doentes e escravos. Na história bíblica são referidos alguns momentos importantes que coincidiram com a celebração de Sukkôt, pondo em relevo, desta forma, o carácter universalista que a festa veio a assumir pouco a pouco no judaísmo. Assim, em 1 Re 8,60-61 diz-se que a dedicação do Templo de Salomão foi realizada por ocasião da festa. Também no regresso do exílio esta celebração revestia grande solenidade (Esd 3,4; Ne 8,13-18), fazendose expressa menção dos sacrifícios e holocaustos que eram oferecidos65. Além disso, a festa assumiu também uma forte componente messiânica conforme podemos constatar na palavra do profeta Zacarias que convida “todos os povos a subir a Jerusalém para a celebrar” (14,16). É talvez por isso mesmo que Flávio Josefo descreve a festa de Sukkôt como sendo a maior e a mais santa de todas66. Filão de Alexandria, por sua vez, alude a diversas interpretações, incluindo até uma espécie de representação simbólica de sentido cósmico: “Sukkôt é a festa das colheitas e do repouso da terra67. Ela corresponde ao plano da semana cósmica, ao tempo que segue a criação. É a festa do equinócio de Outono que nos ensina a honrar a igualdade”68. No que diz respeito à forma de celebrar e viver esta quadra, a Mishná legou-nos um tratado69 que constitui a melhor fonte de informação acerca desta festa, dos seus rituais e dos símbolos que eram usados, bem 63

Trata-se do momento em que o sumo-sacerdote e todo o povo desciam a Siloé para recolher a água que era solenemente trazida para ser lançada no altar a fim de implorar de Yahwé as chuvas de Outono que deviam preparar os campos para as novas sementeiras. 64 Suk 5,1. A Tosephta (Suk 3) aprofunda o simbolismo que esta cerimónia da procissão da água de Siloé até ao Templo e a sua libação sobre o altar revestia: “Do cântaro da água lançada sobre o altar saíam as águas da criação, as águas que tinham dessedentado o povo no deserto e as águas escatológicas”, cf. F. MANNS, Le judaïsme, 120. 65 No tratado Suk 55b (do Talmud de Babilónia) diz-se que eram oferecidos, na altura da festa, 70 bois em sacrifício pelo bem-estar de todos os povos. 66 Ant 8,100. 67 De specialibus legibus 2,204.213. 68 Cf. F. MANNS, Le judaïsme, 119. 69 Trata-se do tratado Sukkah, totalmente dedicado à celebração da festa.

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como dos cantos e dos sacrifícios que eram realizados ao longo dos diversos dias da celebração. Os dados que aí são apresentados têm como referência o período em que ainda existia o Templo, já que esses rituais aludem expressamente às cerimónias que aí eram realizadas. Após a sua destruição, a festa passa a ter lugar na sinagoga, o que obriga à adaptação de alguns dos seus rituais. Por isso, a festa conheceu uma grande evolução não apenas ritual, em virtude da destruição do Templo, mas também teológica, uma vez que se foi perdendo a sua referência agrícola e deixaram de ter lugar alguns dos momentos mais entusiasmantes da sua celebração, como era a solene recolha da água em Siloé e a sua libação no altar do Templo. Embora a primeira característica da festa seja a experiência de viver por sete dias em cabanas, a verdade é que a teologia da celebração estava desde muito cedo associada à Aliança e ao dom da terra. Tal como as demais, também a festa de Sukkôt tinha um enquadramento agrícola ligado aos ritos e aos culto de Baal, pois ele era o deus que concedia a chuva e a fertilidade aos campos. A festa das tendas tornava-se assim a expressão desse agradecimento pelas colheitas dos campos, o que permitia agora aos israelitas usufruírem na alegria da abundância dos bens recolhidos. Ao integrar esta festa no quadro da sua história, Israel sentiu a necessidade de a ligar à teologia da Aliança, já que a abundância dos campos e dos seus gados era, no fundo, a manifestação da generosidade de Yahwé para com o Seu povo, sinal da sua fidelidade e da sua bênção. Por outro lado, sentindo a terra como dom, Israel guardou desde sempre a ‘memória’ do seu peregrinar pelo deserto durante a caminhada do êxodo em direcção à terra prometida como o tempo idílico do seu enamoramento por Deus e de Yahwé pelo Seu povo. Foi essa peregrinação por quarenta anos, vivendo em tendas e acolhendo Yahwé na ‘Tenda do Encontro’ que Israel descobriu a sua identidade de povo peregrino que a teologia deuteronomista põe em realce e que os profetas enalteceram como o ‘tempo ideal da salvação’70. Por isso, Israel deve continuar na sua terra como peregrino (Sl 119,19), vivendo essa comunhão de aliança com Deus, celebrando assim a sua peregrinação de quarenta anos em que experimentou em tendas a protecção de Yahwé71. No entanto, com a sedentarização e a estruturação do culto, a festa de Sukkôt assumiu uma nova significação ligada à teologia da Aliança, embora mantivesse viva a memória do deserto e das colheitas agrícolas, tal como 70

Desta experiência de peregrinação nasce não apenas o acolhimento que deve ser dispensado aos forasteiros, já que Israel sentiu também essa condição no Egipto (Dt 24,18; Lv, 25,23; 1 Cr 29,13-15), mas também a experiência da comunhão íntima com Yahwé vivida no deserto (Os 2,16-18; 12,10; Am 5,25; Jr 2,2-3; Is 40,3). 71 ; Lv 23, 41-43; Dt 16,13-16. O viver em tendas estendeu-se muito para além da tomada da terra e do processo de sedentarização, pois ainda ao tempo de Jeremias (36,9-10) vamos encontrar o grupo dos Recabitas, tribo nómada convertida ao nonoteísmo bíblico, vivendo em tendas.

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sucedia com outras festas do calendário. A esta nova dimensão festiva juntou-se uma outra perspectiva, conferindo-lhe uma dimensão universal, já que a Torah dada a Israel é a Lei para todos os povos. Trata-se assim de uma celebração que contém, no espírito da própria festa, um significado para todos os povos e encarna um ideal messiânico aberto à humanidade. O judaísmo tinha consciência desta universalidade, tal como nos diz o tratado Sukkah, ao “sacrificar 70 bois, durante os sete dias de festa, oferecendo-os pelo bem-estar e pela felicidade das setenta nações do mundo”72. Ao fazêlo, Israel como que recordava às nações que a aliança com Deus não se esgotava nas fronteiras da sua terra; ao contrário, era uma aliança aberta aos outros povos e para a qual estes caminhavam também, tal como sucedera com o povo no seu longo itinerário histórico. Esta compreensão encontra-se já presente em Isaías (2,3) e, particularmente, em Zacarias que convida todos os povos a ‘subir a Jerusalém para ali celebrarem a festa das Tendas’ (14,16). Trata-se de reconhecer a realeza universal de Yahwé que abarca toda a terra e que de Jerusalém, povo eleito, se estende às outras nações. Os profetas, mormente no período do pós-exílio, procuraram reforçar as dimensões teológicas das diversas festas, ultrapassando o carácter agrícola que as fundamentava, de modo a orientar essas celebrações para as origens históricas de Israel de modo que o povo tomasse consciência da sua identidade de nação escolhida e eleita de Yahwé. Como bem notamos na palavra de Oseias, Israel sempre teve a ‘nostalgia’ da experiência do deserto e por isso, no seu horizonte celebrativo, toda a dinâmica das festas de Israel situava-se num esquema histórico-salvífico em quatro momentos: Libertação, experiência do deserto, aliança, terra prometida. Neste esquema, a aliança era um momento decisivo, pois não só confere uma identidade específica a Israel, mas também fundamenta o mistério da sua relação com Deus. Por isso, na festa de Sukkôt o povo experimenta este mistério da sua íntima relação com Yahwé, que é vivida no quadro festivo do Templo, recordando o tempo em que Israel era ainda muito pequeno e o Senhor o carregou nos Seus braços pelo deserto. É nesta perspectiva de mudança de sentido teológico de festa das colheitas (hag ha’asip) para festa das tendas (hag haSukkôt) que a celebração assume um novo significado, centrado agora no santuário davídico, em Jerusalém, onde decorrem as celebrações. Aí acorrem os israelitas de todas as partes para celebrar e renovar a aliança com Yahwé através de um solene ritual de proclamação da Lei (Dt 31,9-13; 2 Re 23,1s). 10. As festas de Outono A época de Outono é a quadra mais festiva de Israel, já que, para além da festa das Tendas, também se celebram no início desta estação mais 72

Y. VAINSTEIN, El ciclo del año judio, 140; Suk 55b.

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duas importantes festas do calendário judaico: Trata-se da festa de Yom Kippur (dia da expiação) e da festa de Rosh haShanná (festa do ano novo). Ao contrário das celebrações a que aludimos anteriormente, estas duas festas são celebradas apenas num dia e representam um espírito totalmente diferente, voltadas mais para a dimensão da grandeza e do fascínio de Yahwé do que para a alegria e o júbilo do povo. No dizer de S. Ben Chorin, estamos em presença das festas que celebram o mistério ‘tremendum’ que Yahwé exerce sobre Israel e sobre todos os povos da terra73. Embora nenhuma destas seja uma ‘festa de peregrinação’, as duas ocupam um lugar de destaque no calendário litúrgico. No entanto, enquanto a festa de Rosh haShanná tem um carácter popular e festivo, o Yom Kippur é essencialmente uma celebração vivida na intimidade e numa relação penitencial com Deus, já que se trata do grande momento de expiação em que Israel toma consciência da sua condição de povo pecador e implora de Yahwé a sua misericórdia e o seu perdão. a) A festa de Yom Kippur

Uma outra solenidade importante do período de Outono é a festa de Yom Kippur. Embora possamos apelidar esta celebração de festa, o espírito que a ela preside não coincide, em tudo, com o nosso tradicional sentido de festa. Ao contrário, trata-se de um momento de grande intimidade com Deus, tanto pessoal como comunitária e nacional, levando o povo a tomar consciência da sua condição pecadora e implorando de Yahwé o seu perdão e misericórdia. Entre as duas festas de Outono (Rosh haShanná e Yom Kippur) medeiam dez dias, que são um tempo de arrependimento74, em que se implora o perdão de Yahwé, já que o sacrifício de Kippur apenas redime os pecados cometidos contra Deus e contra os outros quando deles se tenha implorado o perdão75. O sentido destes dias é o de íntima preparação para a celebração do perdão no dia de Yom Kippur, devendo todos fazê-lo segundo o espírito de Ecl 7,20 e 1 Re 8,46: “Não há nenhum justo sobre a terra que faça o bem sem nunca ter pecado”. No que diz respeito à singularidade da celebração do Yom Kippur, basta atender ao facto de se tratar de uma jornada de total e absoluto jejum que devia ser guardado desde a tarde de véspera até ao entardecer do próprio dia, sendo proibidos todos os trabalhos, incluindo aqueles que eram admitidos em dia de sábado. Trata-se, por isso, de uma jornada penitencial no mais genuíno sentido dos seus elementos, já que todo o povo a deve viver e celebrar como sendo parte integrante da sua identidade. Embora possamos encontrar esta dimensão penitencial em outras religiões, ela faz 73

S. BEN CHORIN, Le judaïsme en prière, 143. Teshuvah é a palavra que designa arrependimento, conversão, regresso a Yahwé. Trata-se de um substantivo derivado do verbo shub que significa voltar às origens, regressar. Neste caso, o arrependimento é o regresso a Yahwé, o voltar para Deus. 75 Cf. F. MANNS, Le judaïsme, 124. 74

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parte da essência do judaísmo e atinge aqui uma das suas expressões mais profundas e dramáticas76. Esta festa decorre no décimo dia do mês de Tishri e é conhecida na Bíblia como o ‘dia da expiação’ (Yom Kippur ou também yom haKippurim). Ao contrário do que sucedia com a festa de Rosh haShanná, as referências bíblicas a esta celebração são abundantes e percorrem um pouco toda a Sagrada Escritura. Os textos normativos da festa encontramse no Pentateuco77, embora depois os seus ecos se repercutam em muitos outros livros, mormente na teologia profética que interpela o povo à conversão e à expiação dos seus pecados (Os 14,2; Am 5,22-24). O nome da festa resulta da raiz do verbo kappar, na sua conjugação Piel que significa ‘expiar’. Embora a origem do termo seja desconhecido e objecto de múltiplas interpretações, a verdade é que o seu uso no AT é muito frequente e na sua forma Piel significa o “resultado da acção realizada”, devendo traduzir-se por “realizar a expiação”78. Trata-se, portanto, de um acto que se faz, oferencendo um sacrifício ou um resgate para assim restabelecer uma relação que previamnete tinha sido quebrada. Quem oferecia este sacrifício era o sacerdote; era ele que fazia a expiação. Na Sagrada Escritura temos diversos textos que nos falam de expiações colectivas (Dt 21,1-9; 2 Sam 21,1-9) e o Kippur é um sacrifício do tipo de expiação colectiva que retira o pecado de todo o povo. Trata-se apenas de um rito sacrificial que por si mesmo realiza a acção de purificar o povo das suas faltas, embora a teologia profética reforce a dimensão pessoal através da conversão do coração. No que diz respeito à liturgia do Yom Kippur, temos Lv 16, Nm 29,7-11 e Ex 30,10 que nos descrevem o ritual da celebração de acordo com aquilo que seria a prática corrente no período do 2º Templo. No entanto, muitos dos elementos desta celebração remontam, certamente, ao período anterior ao Exílio, embora as tradições que chegaram até nós sejam de época posterior. O facto de Esdras e Neemias não se referirem a esta solenidade pode constituir um sinal de que ao seu tempo a festa ainda não tinha assumido o papel que depois veio a ter no calendário festivo. Confrontando os elementos referidos em Lv 16 com aqueles que nos fornece a Mishná no tratado sobre o ‘Dia da Expiação’79 facilmente se pode verificar que os rituais do Yom Kippur se mantiveram muito constantes e 76

Cf. N. WINTER (ed.), The High Holy Days, Popular Judaica Library, Jerusalem, 1973: “The concept of atonement is found in other religions as well. Unique to Judaism, of all the world’s great faiths, is the setting aside of a specific day for this purpose. The Bible calls the day Shabbat Shabbaton, a Shabbat of Shabbats. It is not just a memory of the world’s creation but a memory of Creation itself” (p. 54). 77 De entre outros, saliento: Ex 30,10; Lv 23,27-28; 25,9; Nm 29,7-11. 78 E. JENNI – C. WESTERMANN, Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento, I vol., Madrid, 1978, 1155-1158. 79 A Mishná dedica um tratado, no conjunto da 2ª Ordem, a esta festa. Este tratado tem o nome de Yoma (ou Yom haKippurim), o que manifesta logo a importância que o rabinismo atribuía a esta celebração, pois Yoma significa ‘o dia por excelência’. Além deste tratado, também a Tosephta e o midrash Sifra (acerca do Levítico) comentam as cerimónias do Kippur.

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sem grandes alterações, decorrendo estas apenas das circunstâncias históricas e das consequências que lhe são inerentes, como sejam a destruição do Templo e a diáspora e a consequente celebração ritual da festa nas sinagogas e nas casas. Assim, no período da existência do Templo, o dia de Yom Kippur era o único do ano em que o sumo-sacerdote podia entrar no ‘Santo dos Santos’ para pronunciar aí o nome Yahwé e oferecer o incenso, devendo também ser ele a oferecer todos os sacrifícios nesse dia80. As cerimónias do dia tinham início com a oferta do sacrifício Tamid (sacrifício quotidiano) no Tempo, após o que lançava as sortes sobre os dois bodes que deviam ser depois sacrificados: um para Yahwé e o outro para Azazel. O oferecimento do incenso era o momento alto e emblemático da celebração. Tomando numa das mãos (a direita) um incensário com brasas retiradas do altar e na outra mão uma paleta com incenso, o sumo-sacerdote entrava e colocava o incenso nas brasas para que o recinto do ‘Santo dos Santos’ ficasse repleto de fumo, saindo fora para dizer uma oração81. O tratado Yom haKippurim (Mishná) descreve-nos detalhadamente este momento e mostra-nos como a forma de proceder era discutida pelas duas grandes facções do judaísmo: Fariseus e Saduceus. Para estes, devia ser colocado muito incenso já antes do sumo-sacerdote entrar a fim de que ele não chegasse a ver a face de Yahwé e morresse. Ao contrário, os fariseus diziam que o incenso apenas devia ser colocado quando já estivesse dentro, pois no santuário não estava Yahwé, mas apenas a sua Shekinah. A estadia do sumo-sacerdote no interior do ‘Santo dos santos’ devia ser curta, já que a demora aí poderia significar que algo de anormal se tinha passado. Terminada a cerimónia do incenso, o sumo-sacerote procede então à imolação de um dos ‘bodes de expiação’, aquele que tinha sido escolhido para Yahwé, devendo proceder ao seu sacrifício para em seguida ungir o povo com o seu sangue. Também aqui o ritual assume um sentido singular, pois retoma a cerimónia pascal de ungir as portas com o sangue do cordeiro. Este rito tinha naturalmente um significado muito profundo, sendo o sangue do ‘bode de expiação’ o resgate do povo. Quanto ao outro bode, que tinha sido destinado a Azazel e sobre o qual eram lançados os pecados do povo, era enviado para o deserto para aí ser precipitado num despenhadeiro e as suas carnes comidas pelas aves do céu. Assim, ficaria Israel livre das suas faltas e o povo purificado dos seus pecados. O capítulo VI do tratado Yom haKippurim descreve-nos alguns momentos dessa 80

Como tinha de presidir a todos os actos celebrativos da festa, o sumo-sacerdote devia permanecer em privado durante uma semana, de forma a não contrair impureza ritual e a preparar as celebrações. Neste dia, devia ainda mudar cinco vezes as suas vestes, de forma a realizar os diversos ritos com vestes diferentes, conforme o que estava determinado. No ‘Santo dos Santos’ apenas podia entrar com vestes brancas de linho e nunca com ornamentos dourados, para não recordar o pecado de Israel ao adorar o bezerro de ouro. Para além dos sacrifícios próprios do dia de expiação, devia também ser ele a oferecer o ‘sacrifício quotidiano’ (Tamid) que diariamente se fazia no Templo. 81 Yom haKippurim 5,1.

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correria em direcção ao deserto e deixa entender que cada etapa era acompanhada por pessoas diferentes para que isso fosse feito no mais breve espaço de tempo possível. Chegados ao deserto e lançado o bode no despenhadeiro, logo faziam sinais para que em Jerusalém se soubesse que o povo já estava livre dos seus pecados, devendo o sumo-sacerdote dar sinal disso mesmo. Procedia-se então à leitura da Lei e concluía-se a celebração com diversos ritos de santificação e a recolha dos diversos instrumentos usados na liturgia da festa. Após a destruição do Templo, a cerimónia passou a ser celebrada na Sinagoga, assumindo então uma perspectiva mais orientada para a celebração da palavra em vez dos ritos festivos que tinha quando existia o Templo. Como já referimos, a festa de Yom Kippur está no âmago da representatividade do judaísmo, razão pela qual encontramos inúmeros ecos desta celebração em todos os quadrantes da literatura judaica, tanto litúrgica como normativa, incluindo textos de alguns dos mais notáveis pensadores do judaísmo. É paradigmática a descrição que nos dá Filão de Alexandria acerca do espírito desta celebração: “O dia santificado é inteiramente dedicado à oração e às súplicas e as pessoas, desde manhã até à noite, empregam o seu tempo exclusivamente oferecendo petições de humildes súplicas… para remissão dos seus pecados, voluntários ou involuntários, e tomando em consideração as mais nobres esperanças que se fundamentam não nos méritos pessoais, mas na misericordiosa bondade de Deus, que concede perdão de preferência ao castigo”82.

b) A festa de Hanukkah A festa de Hanukkah é celebrada no dia 25 do mês de Kisleu que corresponde, em geral, ao nosso mês de Dezembro, razão pela qual há uma proximidade bastante grande entre esta festa e o Natal. A grande motivação que preside à Hanukkah é a memória da dedicação do Templo após a profanação levada a cabo por Antíoco Epífanes (1 Mac 4,59), por alturas de 175 (a.C.), com a imposição do helenismo na Palestina. Trata-se, portanto, de uma festividade que tem como motivação um acontecimento histórico, bem datado e, como tal, com um objectivo específico: celebrar a dedicação do Templo e de Jerusalém após a reconquista ao tempo dos reis selêucidas, levada a cabo pela família de Matatias Macabeu e o grupo dos Hasidim, comandados por Judas. É também conhecida como a ‘festa da luz’, coincidindo com o solstício de Inverno, o que pode representar uma adaptação de costumes pagãos ancestrais comuns, aliás, em outros povos e tradições culturais83. 82

FILÃO de ALEXANDRIA, De specialibus legibus, II, 194-203. Na cultura chinesa temos nesta quadra a ‘festa das lanternas’ que consiste em passar a noite vigilantes, em clima festivo e ambiente familiar, aguardando nas praças e jardins que se possa ver a lua na altura do solstício de Inverno. 83

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As fontes históricas que nos reportam aos acontecimentos ligados à tomada de Jerusalém e consequente purificação do Tempo e da cidade encontram-se nos livros dos Macabeus que, embora não façam parte do cânon judaico, são considerados como obras de grande importância para o conhecimento do judaísmo do período intertestamentário. Embora o livro dos Macabeus não mencione ritos nem celebrações especiais para a dedicação, trata-se de uma festa que perdura por oito dias, toda ela centrada no simbolismo da luz e retomando o padrão das festas levadas a cabo por Salomão quando foi feita a dedicação do 1º Templo. O ritual da festa concentra-se no acender das luzes da Hanukkiah, o candelabro de 8 lâmpadas, uma para cada dia da festa. Cada dia acendia-se uma lâmpada nova da Menorah de nove braços, simbolizando assim a nova luz que vêm do Templo e que alumia o povo na sua caminhada 84. De acordo com 2 Mac 10,6, a festa de Hanukkah era celebrada à maneira da festa de Sukkot, podendo haver aqui uma alusão implícita às tendas de Sukkot e à Tenda-Templo que é a morada de Yahwé no meio do Seu povo. De acordo com a tradição popular, quando os Asmoneus se apossaram do Templo encontraram apenas uma pequena ampola de óleo que permanecia intacta e com o selo do sumo-sacerdote, já que os gregos tinham consumido todas as demais. Ora, esse óleo apenas daria para alimentar o candelabro por um dia, tendo então sucedido um autêntico milagre, já que nessa altura deu para oito, razão pela qual a festa passou a ocupar 8 dias, recordando assim o milagre realizado. Daqui nasceu então o costume de acender a Hanukkiah, o candelabro de oito braços, durante oito dias, celebrando a purificação do Templo e a vitória do grupo dos Macabeus que, apesar de serem poucos, levaram de vencida o poderoso exército selêucida que ocupava Jerusalém. Flávio Josefo chama à Hanukkah a ‘festa das luzes”85. A luz tem aqui no cenário desta festa uma dupla simbologia, já que significa a vida do crente e, ao mesmo tempo, a Lei. Para alcançar a plenitude da vida, o crente deve abraçar a Torah que é luz para os seus caminhos. Este simbolismo está já bem presente nos salmos e também nos textos sapienciais. É particularmente significativa a descrição que o salmista faz no Sl 16,8-15, bem como no livro dos Provérbios 6,23 e 20,27, estabelecendo uma profunda relação entre a luz e a vida. É à luz da Torah que o justo encontra os caminhos de Yahwé e é do Templo que essa luz irradia, tal como já Isaías havia proclamado: “Vinde, subamos ao monte do

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De acordo com o Talmud de Babilónia (Shab 21b), a forma de acender as lâmpadas era também objecto de disputa entre as duas principais escolas rabínicas do período intertestamentário. Assim, para a escola de Shammay, no primeiro dia eram acesas todas as lâmpadas, devendo depois apagar-se uma mais em cada dia da festa. Para a escola de Hillel, ao contrário, no primeiro dia apenas se acendia uma e, depois, progressivamente ia-se acendendo cada dia uma mais até completar as oito no 8º dia da festa. 85 F. JOSEFO, AJ 12,325.

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Senhor, à casa do Deus de Jacob… pois de Sião virá a Lei… caminhemos à luz do Senhor” (2,3.5). Não é explícita a razão porque se chama a esta quadra a ‘festa da luz’. Uma das possíveis motivações estaria na relação próxima que existe entre esta celebração e a festa de Sukkôt e que a cerimónia da dedicação levada a cabo pelos Asmoneus tivesse acontecido num contexto da festa de Sukkôt, quando se procedia à recolha da água para ser lançada sobre o altar. Esta cerimónia, além das danças e cantos, era acompanhada por muitas luzes que lhe emprestavam um brilho especial. A lei recorda que em cada casa devia ser acesa uma Hanukkah, embora os mais zelosos defendessem que devia ser uma por pessoa. O acender da luz ao entardecer era acompanhado por orações para abençoar a luz, para recordar o milagre da ampola de azeite encontrada no Templo. S. João, no seu evangelho, menciona a festa de Hanukkah como um dos cenários em que decorre uma das manifestações de Jesus em Jerusalém (10,22-23). O contexto aponta-nos para Jesus que se manifesta como a verdadeira luz. De facto, Ele mesmo havia declarado também que os discípulos deviam ser luz, colocando assim no centro da sua mensagem o tema da luz que percorre todo o AT, desde o Génesis, faça-se a luz, passando pela Torah que é luz, pela profecia que exorta os povos a caminharem à luz do Senhor, até à luz que ilumina no Templo e é sinal da presença de Yahwé no meio do seu povo. Trata-se, por isso, de uma festa carregada de simbolismo, já que a luz significa não só a Lei que ilumina o justo na sua caminhada, mas também a própria alma, o espírito, que é sinal da luz divina manifesta no mundo. Bibliografia: F. MANNS, Le Judaïsme: Milieu et Mémoire du Nouveau Testament, Jerusalém, 1992. J. LOURENÇO, O mundo judaico em que Jesus viveu, UCE, Lisboa, 2005. BÍBLICA, Série científica – A Festa e as Festas na Bíblia e na Vida. Lisboa: Difusora Bíblica, 1995 (Novembro, n.º4).

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