Meditações Metafísicas - O caráter real e ilusório do livre-arbítrio León de Castela (Luis Felipe Gomes da Silva) Introdução “L'homme est né libre et partout il est dans les fers”1 (Du contrat social, J.J.Rousseau, 1792) Um belo domingo Mr. Morgan resolve levantar vela. É um dia magnífico. O oceano está calmo, o céu incrivelmente azul, e os ventos estão fortes. Ao lançar-se ao mar Mr. Morgan tinha em mente ir ao oriente, até o outro lado do mundo. Porém, quando já está lá longe no mar e não pode mais distinguir o oceano do firmamento, resolve deixar que o vento e as correntes marítimas o conduzam aonde quer que seja. Essa atitude de Mr. Morgan, ilógica para nós, não obstante, não para ele, indica que o livre-arbítrio poderia ser, em primeiro lugar, uma atitude ilógica? Em segundo, uma questão de referencial? A chaleira emite um silvo, Mr. Morgan prepara seu chá e, como não tem a preocupação de guiar a embarcação, planeja ocupar seu tempo a jogar xadrez com seu computador. Põe seu jogo no modo experiente, contando com seus anos gastos entre partidas no clube de xadrez local, e inicia sua partida. No início, tudo é apenas uma luta por terreno; tudo é muito incerto. Mas, à medida que avança no jogo, Mr. Morgan tem que usar toda a sua experiência para desafiar a lógica da máquina. Sem se preocupar muito como, Mr. Morgan tem um estratégia, e há um algoritmo, ou vários deles, funcionando no interior de sua mente, muitas variáveis a considerar. Um algoritmo é uma seqüência de passos utilizados na solução de um determinado problema. Um problema requer pelo menos um ponto de partida e um ponto de chegada. O algoritmo seria os passos a,b,c,d, etc. que seriam utilizados para alcançar o objetivo. Um problema, muita vez, pode ser resolvido de diferentes formas, e cada forma constitui uma variação do algoritmo original, como uma variação melódica. Cada algoritmo depende da lógica interna de cada ser ou máquina que o utiliza. Mr. Morgan chegou ao ponto na partida em que teria que sacrificar sua rainha. O computador usa seu algoritmo e decide que aquela jogada é irrelevante, ilógica, um ato estúpido. E que tomar a rainha de Morgan é a melhor opção. Ela assim o faz e, em cinco lances, Morgan decreta-lhe um xeque-mate. Feliz, Mr. Morgan acende seu cachimbo, enquanto vai à cabine, verificar onde os ventos lhe conduziram até aquele momento. O ato ilógico de Morgan em relação à maquina fez com que ele obtivesse superioridade em relação a ela. No caso da partida de xadrez, o computador não pode escapar à sua lógica interna, ao menos que cometa um erro. Um algoritmo de jogo é sempre programado para jogar, a qualquer custo, até o fim e, nesse caso, um erro é inexistente, pois a máquina não pode fugir a sua lógica. Isso suscita uma outra questão, “o erro é parte da lógica interna da máquina, ou ela é uma manifestação de que a máquina escapou a sua lógica interna?”. Algo semelhante acontece com o computador de Max Cohen no filme П (Pi) escrito e dirigido por Darren Aronofsky2, cujo crash significa o livre-arbítrio atingido pela máquina, sem no entanto ser experimentado por ela. Ora,experimentado atitudes ilógicas executadas por outrem, tidas como atos de rebeldia frente ao senso comum, são perfeitamente lógicas para o agente de tais atitudes. Até mesmo a nós, quando o ego nos ludibria ao fazer-nos pensar que a atitude lógica é livre. O que é ilógico para mim, é perfeitamente lógico para o outro. Pois bem, é impossível ao homem, ou a qualquer máquina no mundo, calcular todas as variáveis do sistema chamado mundo. Talvez, essa falta de capacidade cognitiva cause no homem a impressão de agir livremente, do contrário, como conhecedor absoluto do universo, tudo seria 1 O homem nasce livre e em toda parte está acorrentado 2 П(pi) – Artisan Entertainment, 1998
determinado. A tal ilogicidade do livre-arbítrio, seria possível conceber duas questões: a primeira, “O livre-arbítrio é ilógico?”; e segundo, “O livre-arbítrio existe?”. Isso requer duas respostas, cada uma levando a um caminho diferente. Antes é necessário saber outra questão, “o que é ilógico existe?” Na realidade, sim. O que pode ser visto como ilógico seria a falta de ordem, um estado caótico. Então, partindo dessa premissa e respondendo as perguntas, ter-se-ia no caso de sim à primeira pergunta que o livrearbítrio sendo ilógico existiria. E caso não, ele não existiria. De acordo com a primeira hipótese, o livre-arbítrio seria um estado caótico e, destarte, impossível de ser experimentado por um ser totalmente lógico. Ora, talvez por isso o computador de Max Cohen tenha quebrado, pois não foi capaz de fruir de sua liberdade, de seu estado caótico, por ser essencialmente lógico. Porém, o que acontece no caso de Mr. Morgan? Seria sua atitude de delegar a Éolo sua sorte um ato de liberdade, ou o contrário, render-se às vicissitudes? Em um estado caótico o homem seria livre, não obstante irracional. E isso é pouco prático à manutenção da espécie. Imaginem-se todas as pessoas no planeta em movimento browniano. O que seria dessa massa de homens livres, provavelmente, não iriam muito bem. Daí entendem-se dois tipos de livre-arbítrio: um, real e caótico; outro, ilusório. O livrearbítrio ilusório seria uma criação pessoal diante da imensidão de estados e escolhas existentes no mundo, que permite ao indivíduo achar que está completamente livre, quando está agindo conforme sua própria lógica. Quem no mundo quer tomar uma decisão estúpida? Esse tipo de livre-arbítrio ilusório corresponde à segunda hipótese. Logo, às máquinas, não cabe o livre-arbítrio real, mas, talvez, o ilusório, e, uma vez alcançando-se o limite, o erro; mas não a experiência. Ao ser humano, caberia ambas as formas, posto que o homem é capaz de experimentar o erro. É possível, por esta razão, a coexistência dos estados real-ilusório. Mr. Morgan errou pelo oceano durante uma semana, quando, finalmente, ao final de uma tarde avistou terra firme. Com os olhos marejados e um sorriso de satisfação, que faziam-lhe brotar as rugas no rosto bronzeado, posicionou o cachimbo entre os dentes, e barlavento, velejou em direção à terra. No fundo, Mr. Morgan sabia que errando, chegaria a algum lugar.