Panorama_de_pesquisa_em_escrileituras_ob.pdf

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  • Words: 73,568
  • Pages: 250
Conselho Editorial Betina Schuler (UCS/EMEF Rincão/PM-POA) Dóris Helena de Souza (SMED/POA) Gláucia Maria Figueiredo (UNIOESTE) Karen Nodari (UFRGS/Colégio Aplicação) Luciano Bedin da Costa (UFRGS/SETREM) Ludmila de Lima Brandão (UFMT) Maria Amélia Santoro Franco (Universidade Católica de Santos) Nadja Maria Acioly-Regnier (Université Claude Bernard Lyon1) Vânia Dutra de Azeredo (PUC/Campinas)

Comitê Editorial Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel) Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE) Silas Borges Monteiro (UFMT)

realização:

apoio:

Editoração por SUPERNOVA EDITORA Capa por Leonardo Garbin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C122 Caderno de Notas 9: Panorama de Pesquisa em Escrileituras: Observatório da Educação./ Organizado por Sandra Mara Corazza, Máximo Daniel Adó e Polyana Olini. Porto Alegre-RS: UFRGS/ Doisa, 2016 ISBN 978-85-66308-07-5 1.Educação. 2.Escrileituras. 3.Pedagogia. 4.Didática – Tradução. 5.Formação de Professores. 6.Currículo – Transcriação. I.Corazza, Sandra Mara (org.). II.Adó, Máximo Daniel (org.). III.Olini, Polyana (org.). IV.Título. CDD 370 Ficha catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Douglas Rios (CRB 1/1610)

PANORAMA DE PESQUISA EM ESCRILEITURAS:

OBSERVATÓRIO DA EDUCAÇÃO SANDRA MARA CORAZZA · MÁXIMO DANIEL ADÓ · POLYANA OLINI | ORGS.

SUMÁRIO

Apresentação do Panorama    ........................................................ 10

PARTE I – DIFERENÇA & FORMAÇÃO Paideuma quadríptico de um corpo em obra: palimpsestos, arquitetônicas    .................................. 14 Cristiano Bedin da Costa Sandra Mara Corazza Da Pesquisa-Sensação: fragmentos    .......................................... 26 Simone Fogazzi Paola Zordan Memória e fabulação em Henri Bergson: considerações sobre a experiência do tempo no ensino de história    ....................... 38 Gabriel Torelly Fraga Nilton Müllet Pereira Bifurcações na formação de professores    ............................ 50 Hilda Regina P. M. Olea José Carlos Leite Deleuze & Guattari: uma ética dos devires    .......................... 62 Altair de Souza Carneiro Ester Maria Dreher Heuser

PARTE 2 – pedagogia & escrileituras A pedagogia das máscaras: vozes e sentidos    ....................... 78 Deniz Alcione Nicolay Sandra Mara Corazza

Sobre escritura e arte do estilo: aproximações otobiográficas    .................................................... 88 Polyana Olini Silas Borges Monteiro Alfabeto Espiritográfico: escrileituras em educação    ....................................................... 100 Maria Idalina Krause de Campos Sandra Mara Corazza A Produção de escrileituras na problematização do mal-estar docente: um estudo com os professores da rede pública estadual de ensino do RS    ................................ 112 Clara Lisandra de Lima Silva Carla Gonçalves Rodrigues Dispositivos, escolas e infantilidade: um estudo foucaultiano em Escrileituras    ......................... 122 Eduardo Alexandre Santos de Oliveira Ester Maria Dreher Heuser

PARTE 3 – DIdática & tradução A voz acena: a presença da voz na cena da aula    ............. 132 Alessandra Christina Arantes Abdala Azevedo Silas Borges Monteiro Corpo a dançar: entre educação e criação de corpos    ................................................. 144 Wagner Ferraz Samuel Edmundo Lopez Bello Modos de ler e escrever na EJA    ................................................ 156 Larisa da Veiga Vieira Bandeira Sandra Mara Corazza Biografemário de um aprender: escrileituras em meio à vida    ..................................................... 166 Josimara Wikboldt Schwantz Carla Gonçalves Rodrigues

Timpanização de escrileituras. Vias marginais para objetos duplos    ....................................... 178 Emília Carvalho Leitão Biato Silas Borges Monteiro Didática Cinemática: escrileituras em meio à filosofia-educação    .................................................. 190 Ana Carolina Acom Sandra Mara Corazza

PARTE 4 – currículo & transcriação Procedimento erótico, na Formação, Ensino, Currículo    .............................................. 204 Gabriel Sausen Feil Sandra Mara Corazza Conexões heterogêneas: uma Educação Potencial    ............................................................ 218 Máximo Daniel Lamela Adó Sandra Mara Corazza Sou Pedagogo, Didata, Curriculista, escrevo.    .................................................................. 230 Marcos da Rocha Oliveira Sandra Mara Corazza

Epílogo A filosofia da composição do Projeto Escrileituras    .............................................................. 239 Sandra Mara Corazza Ester Maria Dreher Heuser Carla Gonçalves Rodrigues Silas Borges Monteiro

Apresentação do Panorama

A publicação dos Cadernos de Notas, componentes da Coleção Escrileituras, integra o projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, desde o seu primeiro ano de desenvolvimento (2011). Nesse contexto de produção, o presente livro, Caderno de Notas 9, intitulado Panorama de pesquisa em escrileituras: Observatório da Educação, é composto pela apresentação de resenhas de teses e dissertações defendidas durante a duração do projeto. Financiado pelo Programa Observatório da Educação (OBEDUC), na parceria entre Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério da Educação do Brasil (MEC), o Escrileituras estabeleceu uma rede de estudo e trabalho entre instituições públicas de ensino superior, quais sejam: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – universidade sede –, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Cada uma dessas universidades constitui um Núcleo do Escrileituras, articulado a institutos e centros federais, escolas de educação básica e secretarias de educação, movimentos sociais e civis, municipais e estaduais, outras universidades e órgãos públicos. Durante o período de 2011/1 a 2015/1, o Escrileituras atuou nos campos do ensino, da pesquisa e da extensão, principalmente por meio da proposição e do desenvolvimento de Oficinas de Escrileituras, também 10 • 11

chamadas  Oficinas de Transcriação (OsT) e Ateliês de Pesquisa. Foram, ao todo, 5.413 diretamente envolvidos com as atividades e programas do Projeto Escrileituras, incluindo alunos e professores da Educação Básica e do Ensino Superior, além dos demais membros das comunidades envolvidas, através de atividades curriculares, extra-curriculares e de extensão, como familiares e outros trabalhadores da educação; sendo que esse universo de participantes alcançou o total de 166.406. As dezenove pesquisas que compõem este Panorama de pesquisa em escrileituras... são apresentadas pelos autores em sistema de co-autoria com os respectivos orientadores dos cursos de Mestrado e Doutorado. Como se verá, abordam vários aspectos do pensamento e da prática educacional na contemporaneidade, situando suas correspondentes experimentações, variações e usos de escrileituras, tanto no plano empírico transcendental como no plano relacional com conceitos, perceptos e afectos dos autores escolhidos. Em função da multiplicidade de problemáticas, solos conceituais, procedimentos, metodologias e resultados das dezenove pesquisas, para incutir uma coesão ao compósito que resultou neste Caderno de Notas 9, realizamos agrupamentos por vizinhança temática ou por contágio proximal. Então, emergiram quatro partes, abertas a cruzamentos e encontros possíveis, quais sejam: DIFERENÇA E FORMAÇÃO; PEDAGOGIA E ESCRILEITURAS; DIDÁTICA E TRADUÇÃO; CURRÍCULO E TRANSCRIAÇÃO. Em sua pluralidade de áreas empíricas e diversidade de zonas teóricas, os capítulos deste livro carregam em comum a potência de traduzir acontecimentos, forças e intensidades em novas maneiras de ler e escrever, pensar e fabular, viver e educar. Abrem, assim, um panorama incomum para a criação de novos arranjos, montagens e composições de escrita e de leitura em educação contemporânea.

Sandra Mara Corazza Máximo Daniel Lamela Adó Polyana Olini (Orgs.)

DIFERENÇA & FORMAÇÃO

Paideuma quadríptico de um corpo em obra: palimpsestos, arquitetônicas Cristiano Bedin da Costa Sandra Mara Corazza

Resumo Defendida em 29 de fevereiro de 2012, dentro do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Corpo em obra: palimpsestos, arquitetônicas constitui um exercício corpográfico com vias à construção de uma anatomia palimpséstica: a pesquisa em educação como experimentação de um arranjo polifônico, um corpo rapsódico de tramas e conspirações entrexpressivas, incansavelmente tecido, rasurado, reinvestido em meio à arte, à literatura, à filosofia. Nesse sentido, a Tese insiste no interferencialismo como tática para a delimitação de um plano no qual o problema de escrever não pode ser pensado a não ser em relação com forças sonoras e visuais que não apenas o assombram, mas também o constituem, em uma travessia sinestésica.

Palavras-chave Corpo. Palimpsestos. Escrileitura. Arte. Educação.

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“Aquilo que ouço são pancadas: ouço aquilo que bate dentro do corpo, aquilo que bate no corpo, ou melhor: aquele corpo que bate”. Roland Barthes, Rasch.

I. O corpo, o que se não esse grãos rítmicos que o espaçam, fazendo-nos umedecer os lábios, assoprar os dedos e levantar a cabeça? A pesquisa como corpografia, o corpo como palimpsesto: estratos de uma composição impura, derivada de uma construção anterior: por justaposição, contágio, transposição e transcriação. Tais pergaminhos polifônicos – há tempos revisitados, raspados, reescritos – não escondem o traçado das inscrições precedentes, de modo que o antigo permanece sendo encontrado sob o novo, um gesto d’obra, em apaixonada persistência. Toda matéria de escrita, bem-dita seja, faz parte de uma linguagem específica que a ela é imanente, um suporte singular em relação a qualquer outro. Em simultâneo, o mal-dito da obra erra pelo espaço dialogal das interferências, do Entre, o meio da hibridação e do axadrezamento das linguagens. Assim, um texto pode sempre ler um outro e assim a perder de vista, o ensaio de segunda, terceira ou qualquer outra mão que se queira, geometrizandose sobre a superfície em policromática transtextualidade: o corpo rebenta pelas suas costuras, e por entre tantas ressonâncias sucessivas, superpostas através leitura, da visão, da audição, o texto não apenas expõe, mas também está exposto à regra, tomando a perfusão escritural como método de pesquisa ou, se preferirmos, como uma determinada maneira de viver e pensar a Educação – aqui entendida como prática inventiva, destacada o tanto possível dos exercícios exaustivos do comentário, do monólogo e da repetição. Trata-se, portanto, do pensamento como ressonância, da inscrição efetiva de zonas de contaminação. É em meio a esse percurso que se pode tomar a Educação, com os discursos, as práticas e as imagens do pensamento que a constituem. Enquanto prática de pesquisa, a escrita funciona como uma espécie de câmara de ecos (BARTHES, 1977), de maneira a dar a ouvir e a ver o jogo das forças que nela concorrem. Por essa via, o trabalho

da tese é o trabalho do texto, ou seja, da garantia de uma estereofonia vocal, da economia possível de um corpo disperso e necessariamente em trânsito. Seja como fragmento de um discurso amoroso e desejante, seja como objeto de infinitas leituras, de um verdadeiro plural de encantos, ou então sem órgãos, catatônico, esquizo, espasmático ou figural, intensivo e atonal, a arte, a literatura, cada uma ao seu modo, não deixa de plasmar a Educação com seus clamores e sopros corpóreos, imagens e gritos de um real imperfeito, visto que sempre incompleto. Não tomemos, portanto, nada por definitivo, não nos limitando a uma forma apenas: em última instância, de pensamento. Ao ocuparmo-nos desse plural, constituímos topicamente a anatomia expressiva de um corpo-palimpsesto.

II. A anatomia palimpséstica À sua maneira, o palimpsesto é o plano de composição próprio da bricolagem, o domínio das dissonâncias e dos contrapontos rítmicos, da saborosa complexidade relacional entre elementos provenientes de estruturas diversas. Essa duplicidade do objeto, inserida na lógica das relações textuais, só é possível através de um procedimento sutil de raspagem, pelo qual vemos, sobre um mesmo plano, um texto sobrepondo-se a outro, de maneira que não o dissimule completamente, mas deixe-o falar por transparência, em um verdadeiro jogo cromático. Obviamente, tal regime lúdico cobra seu preço. Primeiro, uma prática palimpsestuosa é necessariamente um exercício indevido, no sentido de que trata e faz uso de um determinado elemento de maneira não programada – tal como refere Gérard Genette (2010), o verdadeiro jogo comporta sempre alguma medida de perversão. Da mesma maneira, utilizar um objeto para fins exteriores ao seu programa inicial é não só um modo de operá-lo enquanto elemento em relação, mas também de jogar dentro dele, o que talvez torne as coisas ainda mais arriscadas, uma vez que a Educação coloca os pés ou ao menos a ponta do nariz em celebrações para as quais não é exatamente convidada. Seja como for, pagar o preço já é aceitar o risco, afirmar a pesquisa como um agregado, cluster de imagens-sons-escrituras sobrepondo-se às fronteiras disciplinares. Verdadeira zona de contágio, o palimpsesto é um misto cuja demarcação de propriedade é por condição absolutamente limitada, de

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maneira que é justamente na complexidade do conjunto que residem seu sabor e sua graça. Experimentar um cromatismo textual implica encontrar outros gostos que não organizações maiores, tais como os autoritarismos do autor, da obra e do domínio disciplinar em questão. Por essa via e por seus próprios termos, a escrita avança, faz o giro, roda e retorna não para a neutralidade de um centro, mas para o contínuo movimento de invenção e instauração de um espaço. Trata-se de tomar o pensamento, a escritura como aventura do pensamento, enquanto exercício do concepto, ou seja, de concepções tópicas (COUTO, 2001), reais agregados polifônicos. Escrever, portanto, como criação de uma via tópica, concepção textual de visões e audições outras, um topos contraposto ao repertório de topoi convencionais, e que por isso exige soluções inventivas: por parte dos olhos, da língua, dos ouvidos, das avaliações, dos planejamentos e pareceres, de que mais? Ora, certa dimensão estrutural é obviamente necessária, uma vez que é por lugares de discurso e de composição que a escrita se movimenta. Não se trata, porém, de um percurso inofensivo. Que existam diferenças entre sistemas de criação, que a pintura funcione através de coordenadas diversas das da música, e que seja através da especificidade dessas coordenadas, em relação aos problemas que as orientam, aquilo que define o funcionamento de cada uma das disciplinas criadoras, eis aí uma afirmação sobre a qual já não pode recair nenhuma dúvida. No entanto, sob uma perspectiva dinâmica, somos convidados a um perigoso e turbulento passeio comparativista, através do qual não deixamos de tomar um campo em função de outro, de maneira que o sabor de um texto, o texto que nos toca, passa a ser necessariamente sinestésico. Nesse ponto, se existem diferenças, estas são meramente funcionais, não relacionais e anatômicas: o corpo, enquanto estatuto da organização palimpséstica, está aquém das divergências formais, e é mesmo esse corpo, em cada uma de suas posturas ou movimentos ínfimos, a testemunha do contágio transdisciplinar. Ao avançar nessa direção, a pesquisa torna-se então inseparável de uma aspiração talvez ainda mais alta, e é com o timbre de uma tessitura deleuziana que diz da imaginação e do desejo de se aproximar de um fundo comum ou comparável entre as palavras, os sons, as linhas e as cores (DELEUZE, 2003). Por certo, a escrita tem seu próprio calor, mas é ao pensar com a pintura que apreendemos melhor a linha e a

cor de uma frase, como se o quadro realmente comunicasse algo às frases, da mesma maneira que o material sonoro elaborado pelo compositor irá movimentar a mão que escreve. De fato, desde que Cézanne delegou a seu trabalho a tarefa de espantar a cidade com a criação de um novo plano de realidade (e fazendo isso com as coisas mais triviais, tal como uma simples maçã ou um vaso ou dois), tornou-se ao menos aceitável admitir a existência de tarefas bastante semelhantes no que se refere ao ato de criação. Tornar possível aquilo que não é possível por si mesmo; mostrar e não representar; tornar visível e não reproduzir; tudo pela atemporalidade pedagógica da tópica cézanniana, tal como nos foi enunciada, ao modo de confissão criadora, por Paul Klee (2001). Não se trata, portanto, de um saber absoluto, seja onde for, mas sim de um verdadeiro saber impossível. É por isso, e não por outra razão, que não existem assuntos privados no que se refere à criação, e é também por isso que nós, escrileitores não-músicos, não-pintores, podemos nos apropriar da música e da pintura, na medida em que elas não têm por elemento exclusivo e fundamental o som e a imagem, mas sim o conjunto de elementos de um real não-sonoro, não-pictural, que elas irão ou não tornar perceptíveis (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Se optarmos por levar a sério a serialidade e a covariância desses planos, delegando também a nossas práticas a tentativa de caucionar em cientificidade, mesmo que mínima, a força de uma vertigem, pisaremos com o mesmo par de sapatos os espaços das bancadas e dos ateliês, dos consultórios psicológicos, das salas de aula, conferências e concertos, levando a sujeira como marca nas pegadas de um para dentro de outro. Tráfego, mas também tráfico, transgrafia tópica. O texto, em sua dimensão utilitária, sustenta essa espécie de estrabismo metodológico, jamais isento de impostura: inventar para poder ocupar, e não o inverso; criar por descolagem; inventariar procedimentos de raspagem; avançar por sequenciais desorientações de sentido. Inevitavelmente, tudo passa por pergaminhos conhecidos, lugares de destaque em estantes abarrotadas de citações em páginas de volumes e saberes enciclopédicos esparramados sobre bancadas ou protegidos em sagradas gavetas e compartimentos mais ou menos secretos para o acesso ilimitado e sempre seguro onde se lê: Verdade. Severa disciplina, o estriamento dos componentes no espaço, a consequente redundância dos elementos de meio tornando-se paisagem 18 • 19

e esta incidindo sobre os traços dispersos do corpo, complementaridade e sobrecodificação: a Educação, por essa forma, introduz-se em seus rostos e recebe os seus nomes, duplo estrato através do qual poderá orientar seus movimentos. Arquitetonicamente, no entanto, apostamos em uma igualdade de distâncias entre os elementos do cenário, de maneira que a arrogância de uma linearidade cronológica, propriedade maior de todo exercício e determinismo histórico, encontre-se suspensa. Não acreditamos em uma neutralidade sagrada da obra, não buscamos uma verdade segura para a vida e, desse modo, recusamos qualquer indício já dito sobre como orientar ou levar esta ao encontro daquela. O labor palimpséstico é o testemunho de incidências e granulações de um corpo transitório, sendo a sua tessitura anatômica, em cada movimento, o discurso-veduta (COUTO, 2005) de uma Educação polifônica.

III. A escrileitura e o corpo aqui Feito uma figura baconiana, o escrileitor é aquele que está estruturalmente isolado: afastado dos demais por linhas de escrita, não deixa de ser trabalhado e dito pela matéria que o rodeia, tal como um pintor é pressionado pelas formas e pelas cores que usa (WILLEMART, 2009). Antes de qualquer outra coisa, o ato de criação diz aquilo que somos, de maneira que nosso passado, o jogo dos dias e então as razões de aspirações e esperanças futuras estão necessariamente submetidas à linguagem e aos materiais utilizados: a carne, que é termômetro, também é feltro, o emaranhado de linhas sonoras, picturais, os capítulos compondo a cinematografia nômade das horas, o homem no rasto dos anos, enfim: corpos tendas, corpos yurts. No entanto, esse é um isolamento extremamente povoado. Não tanto de sonhos ou de fantasias, mas sim de encontros: com pessoas (mesmo sem nunca têlas visto), com movimentos, com ideias, com a força de um pensamento (DELEUZE; PARNET, 1998). Nada disso depende do relógio ou do calendário, e tudo isso depende de um efeito, de um “algo se passa entre nós”, de um “tem alguma coisa aí”, de um ziguezague desconcertante. É nesse sentido que um encontro é sempre um duplo-roubo, uma duplacaptura: eu & outro. Justamente aí: nunca apenas eu, nunca apenas o outro. O arrancado de mim com o arrancado do outro. Pedaço com pedaço.

1 + 1 = dzum. Um naco estranho, carnudo, feltroso. Nada a ver só comigo. Nada a ver só com o outro. Arquitetônica de zonas mistas: para uma prática de pesquisa alquímica e transcriadora (CORAZZA, 2008), sempre foram imprescindíveis os cutelos. É nesse sentido que, frente à superficialidade do corpo em sua condição dita pós-moderna, a pesquisa, ao seguir o fio condutor do corpo (NIETZSCHE, 2003), talvez possa também funcionar enquanto um testemunho de sua existência efetiva, a inscrição de suas pancadas, de seus sopros, de suas indecisões. Corpográfica, a pesquisa é isso onde o corpo reflui sobre si, onde pode, fora de toda dispersão, fazerse efetivamente presente. Palimpséstico, o corpo, apesar de tudo, está aqui (FOUCAULT, 2014). Nesse sentido, pode-se dizer que existem (ao menos) dois textos: o texto que se recebe via leitura (e poderemos mesmo dizer: via visões e audições libertadas do empírico, capazes de ver o invisível e ouvir o inaudível) e o texto que se executa via escritura. Por certo, ambos os textos são corporais: ler é também “fazer o nosso corpo trabalhar” (BARTHES, 2004, p. 27), assumir certas posturas, ter preguiça, suspiros ou arrepios inconfessáveis. Ler é querer sair correndo. E sair. E cortar, parar, querer mais ou querer menos. Posturas essas, aliás, que permitem ao autor manterse vivo, encontrar novas paisagens, tornar-se parte do contemporâneo. Tal como nos lembra Barthes (2006), etimologicamente, texto que dizer tecido, véu epidérmico de entrelaçamento contínuo, no qual o sujeito se desfaz ao mesmo tempo em que constitui sua teia, o seu território, o seu próprio modo de dizer eu. Ou seja, para quem experimenta o prazer do texto, é por ele que se compõe a tessitura dos dias. Se ativo e passivo não são categorias válidas, é porque o que irá definir a especificidade do texto que se escreve, este tipo específico de texto segundo, é a sua condição manual, condição essa que faz com que ele seja, dessa forma, muito mais sensual. Trata-se de um texto prático, evidentemente, mas isso não é tudo: é ele aquele que efetivamente tocamos, queremos e podemos usar, operar por lambuzos. É a ele que ousamos propor a dança. É nesse sentido que ele será ativo: pela aceitação de nosso toque, pela aceitação do contágio, pela assepsia tornada vã. Se a leitura, a pintura ou a música podem apontar o dedo, me invadir e sair de mim ilesas, a escrileitura é ato de acasalamento em si. Núpcias inter-reinos. Roubo e não trapaça, onde nenhuma violência há. Sensualidade, sedução e 20 • 21

proliferação: &... &... &... Ligeira noção de hifologia, a ideia generativa do desaparecimento elocutório do autor face à linguagem, autotélica existência. Ordem arquitetônica de rastos? Ecce corpus, dialogicamente imperfeito. A linguagem não é dócil, bem se sabe. Aprendemos com J.L. Austin (1990) que dizer é fazer, e são os atos expressivos, desse modo, atos do corpo. Dizer o corpo é fazer o corpo, violência performativa que faz com que quanto mais sobre ele se fale, menos ele possa existir por si próprio (GIL, 1997). Seguremos o choro. Há cárceres e há criptas, mas também, sob o solo de algo organizadamente sagrado, escritas, excriptas por onde um corpo respira. Um corpo: o que abre, distende, que espaça pés e cabeça, dandolhes assim lugar para que um algo se dê: escrever, pensar, esperar (Waits, Tom): She sends me blue valentines. Acreditamos em poiéticas, em limites e superfícies: “o futuro, pois, pertence à filofonia” (SATIE, 1992, p. 43). Acreditamos na voz simultaneamente corpórea e incorporal, no corpo-som e no corpo-palavra, perdição e reencontro. Acreditamos em grãos sonoros, nos entremundos sensíveis kleenianos, em grãos de olhar antes dos olhos. No corpo em obra, na pesquisa enquanto instauração de um possível. Ora, ser seduzido por um corpo, percorrê-lo, é também participar de sua criação, operá-lo em arquitetônicas composições palimpsésticas: o jogo polimórfico entre a escrita original, o corpo figurativo da tradição e o novo. O espaço palimpsesto: espaço da entre-expressão e coexistência das escritas (COUTO, 1989): complicatio hians. Diríamos: certa arquitetura do próprio corpo, no recriar-se, portanto – talvez ao modo das orientações colhidas em Umberto Eco (1997): heurística e suinomancia tópica, o elogio da lupa, do resto, do riso protopoiético. Arquitetar um corpo: a escrita está na escrita e por certo a ultrapassa, não só a escrita sobre o corpo, mas efetivamente o traço, a inscrição efetiva, o autor rasurado, uma vida sobre a qual escrevo e sob a qual me inscrevo: escrileitura prática. A pesquisa, ela própria o campo de exercício de uma tópica corpórea, libera-se, pela praxis de um discurso impuro, do imaginário grosseiro daquele que diz e assina. É o corpo, portanto, aquilo que fala, que abaixa ou levanta a cabeça, que já explodiu os tímpanos, já perfurou os olhos, através dos seus estilhaços de linguagem. É o corpo um isso fibroso, pungido, a policromia e a imprevisibilidade do casacão de um palhaço (BARTHES, 2003): sonoridade de um vitalismo

próprio, transcriado nas antípodas do discurso obcecado pela finitude, pela morte, pelo pesadume do sentido.

IV. Panóplianatomias ou então o corpo e sua imagem adúltera A música, a literatura, a filosofia, a pintura: não vive-las a não ser em seus acentos, ou seja, pelo corpo em estado de música, literatura, filosofia, pintura (estratos para uma semiologia segunda, longe dos sistemas das notas, dos tons, dos acordes, do sistema das cores e dos conceitos, e assim comprometida em aperceber e seguir o formigamento das pancadas do corpo, no corpo, pelo corpo). Palimpsestos, arquitetônicas: não é o corpo, por necessidade, também o corpo do outro? Não sou eu, ao encontrá-lo, aquele que o executa, escreve, rasga a carne? Corpo: “todo pensamento, toda comoção, todo interesse suscitados no sujeito amoroso pelo corpo amado” (BARTHES, 2007, p. 93). Sublinhemos: é por amor (e não por um simples assim querer) que vasculho e percorro o corpo do outro, e então sou eu aquele que se inscreve nesses dobramentos – um corpo que primeiro se enovela e tece, espreguiça-se e então acorda, pica, rutila sombriamente, retesa-se, estende-se, fala, declara, lava, desloca, treme sobe e corre, canta e bate, diz, soletra, entusiasma e canta, ressoa, dança e a pancadas retumba (BARTHES, 2009). Seria preciso dizer: vão aqueles que amamos mais longe que os ouvidos, os olhos, a aprendizagem. São eles aqueles que correm pelo corpo, nos músculos e nas vísceras, pelo bater do ritmo. São eles aqueles de quem se pode dizer pertencerem a uma só pessoa, a um só corpo, este corpo que os encontra: o verdadeiro pianista schumanniano, o verdadeiro amoroso barthesiano, o verdadeiro pintor baconiano, vivem neste corpo, compõem essa presença contemporânea na qual habito. O corpo arquitetado em um meio, por incontáveis meios, entre-Vistas. O corpo: “um simples plural de encantos, lugar de pormenores sutis [...] canto descontínuo de amabilidades” (CORAZZA, 2010, p. 88); corpo pulsional, “que se empurra e volta a empurrar, passa para outra coisa – pensa noutra coisa” (BARTHES, 2009, p. 288); corpo embriagado e suficientemente distraído, estonteado e ardente; corpo de intermezzos, que muda de sítio, muda de postura, impede que o discurso se agarre, engrosse, espalhe-se e desenvolva-se; corpo que se agita e que incomoda a palavra; corpo raso, 22 • 23

corpo de acúmulos superficiais, epidermicamente profundos: corpo riscado de novo. O construcionismo de pesquisa constitui a articulação dessa existência rapsódica; afirma, reconhecendo por escrito, a polifonia que nela se inscreve. Não se trata de rascunhos, de tornar a raspar em busca de um aperfeiçoamento do corpo e de uma subjetividade deficitária demais para seguir existindo (LE BRETON, 2003; ANDRIEU, 2004): imperfeito porque necessariamente incompleto, o corpo está em trânsito, disperso em meio a pedaços irregulares de teorias, parágrafos, refrões. Palimpsestos, ou então corporemas e mugshots de poeira: topological slides (não vivemos no mundo, num mundo, mas em múltiplos polípticos). A pesquisa é, portanto, estilo, ordem arquitetônica de invenção, criação de topoi, linguagens e suportes, sendo justamente no seu dimensionamento ético-estético e construcionista que reside sua honestidade – nós, ladrões honestos, ao modo bacon-dostoievskiano: o realismo como valor (DOSTOIÉVSKI, 2006; SYLVESTER, 2007). Assim, o corpo: o que senão essa infinidade de entradas, pulsações, compostas por música, literatura, pintura (vias tópicas, os caminhos do corpo)? O que senão esse texto estético se desdobrando entre obras, o tecido de uma contemporaneidade? O corpo: por golpes de desejo e de necessidade, experimentemos e saibamos criálo, possamos escutá-lo. Ordem de coexistentes ou a coexistência de uma geometria do intensivo e do orgânico, do caos e da harmonia: é o corpo essa realidade fibrosa onde o antigo esfola ao ser esfolado, torna-se persistência e estereofoniza a voz que nele se envolve e diz. Arquitetônicas, Panóplianatomias: eis o corpo em sua armadura, na atualidade e virtualidade de seus elementos. Dos gritos, pancadas e granulações do corpo, saibamos: o inventário não se esgota.

Referências ANDRIEU, Bernard. A nova filosofia do corpo. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget, 2004. AUSTIN, J.L. Quando dizer é fazer. (Tradução Danilo Marcondes de Souza Filhos). Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BARTHES, Roland. Image, Music, Text. New York: Hill and Wang, 1977. _____. Roland Barthes por Roland Barthes. (Tradução Leyla Perrone-Moisés). São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. (Tradução Mario Laranjeira). São Paulo: Martins Fontes, 2004. BARTHES, Roland. O prazer do texto. (Tradução J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva, 2006. _____. Fragmentos de um discurso amoroso. (Tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar). São Paulo: Martins Fontes, 2007b. _____. O óbvio e o obtuso. (Tradução Isabel Pascoal). Lisboa: Edições 70, 2009. CORAZZA, Sandra Mara. Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto Alegre: Editora Sulina, Editora da UFRGS, 2008. _____. “Introdução ao Método Biografemático”. In: COSTA, Luciano Bedin; FONSECA, Tânia M. Galli (Orgs.). Vidas do fora: habitantes do silêncio. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. COUTO, Carlos Sequeira. Theatrum-Mortis. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989. _____. Tópica Estética: Filosofia Música Pintura. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001. _____. Vedutismo. Coimbra: Pé de Página Editores, 2005. _____. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. _____; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz). Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. _____; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Escuta, 1998. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O ladrão honesto e outras histórias. (Tradução Nina Guerra e Filipe Guerra). Lisboa: Editorial Presença, 2006. ECO, Umberto. Como se faz uma tese em ciências humanas. (Tradução Ana Falcão Bastos e Luís Leitão). Lisboa: Editorial Presença, 2007. FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, As heterotopias. (Tradução Salma Tannus Muchail). São Paulo: N-1 Edições, 2013. GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão (extratos traduzidos). (Tradução Luciane Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho). Belo Horizonte: Edições Viva Voz, 2010. GIL, José. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d’água, 1997. KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. (Tradução Pedro Süssekind). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. (Tradução Marina Appenzeller). Campinas: Papirus, 2003.

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NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. (Tradução Mário da Silva). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SATIE, Erik. Memórias de um amnésico. (Tradução Alberto Nunes Sampaio). Lisboa: Hiena Editora, 1992. SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. (Tradução Maria Teresa Resende Costa). São Paulo: Cosac Naify, 2007. WILLEMART, Philippe. Os processos de criação na escritura, na arte e na psicanálise. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.

Da Pesquisa-Sensação: fragmentos Simone Fogazzi Paola Zordan

Resumo Compreendendo a sensação como via da aprendizagem, este trabalho percorre seu olhar pelos caminhos da Filosofia da Diferença, seus diversos autores tais como Deleuze, Guattari, Barthes e Corazza, entre outros, focando na pintura moderna, na arte, nos processos de criação, na docência e na vida. O trabalho apresenta as ideias que aprender é pensar, que se aprende pela sensação, que ensinar é criar procedimentos tradutórios e que, para viver intensamente, é preciso criar uma Vida.

Palavras-chave Filosofia. Ensino. Sensação. Criação. Arte.

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1. Apresentação ou azul do céu de verão Há interferências dos e nos planos imanentes das filhas do Caos, as Caóides: filosofia, arte e ciência. Podem ser interferências extrínsecas, intrínsecas ou ilocalizáveis, mas sempre interferências que acontecem no pensamento e que o movem (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 278-279). No contexto do Projeto Escrileitura: um modo de ler-escrever em meio a vida (CORAZZA, 2010/14), que orbita em torno do conceito de escrileitura de Barthes, um processo “remetido a uma escrita-pela-leitura ou uma leiturapela-escrita” (DALAROSA, 2011, p. 15), pode-se pensar nestas zonas de interferência que movimentam o pensamento na produção de uma escrita outra, impessoal porque descolada da identidade, intensa por que opera no tempo intensivo, da arte. Para isso pensou-se em procedimentos que pudessem induzir o descolarmento necessário da identidade, operando com intensidades e produzindo singularidades. Com a linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, da Faculdade de Educação da UFRGS e com o DIF, esta pesquisa mantém uma relação com o sentido do termo diferença, que não é o sentido comumente ligado à palavra, mas o que está ligado à noção de multiplicidade contida em toda obra de Deleuze, especialmente, sendo: cada um, um novo, em constante movimento, de maneira que somos múltiplos em nós mesmos. Com o grupo de orientação M.A.L.H.A., esta pesquisa estabelece uma relação que engloba a noção de arte (e conceitos orbitais) e de simulação do fazer artístico ao fazer docente - ao fazer da vida uma obra de arte, tornando visível a potência do ato criador. 1

2. Problemática ou amarelo canário Quanto mais potente um corpo, mais sensível ele é, ou seja, mais apto a afetar e ser afetado e por um número maior de forças (MERÇON, 2009, p. 37). Significa que quanto mais sensível, maior é o poder de percepção do pensamento. O presente texto está calcado na dissertação de mestrado Da Sensação: fragmentos e cromocrônicas de uma professorartista, que apresentou a sensação na arte, na vida e no ensino. Em conformidade às normas desta publicação foram suprimidas as produções artísticas, tanto as visuais como as textuais, mantendo-se alguns fragmentos textuais.

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A questão que se coloca é se seria possível uma condução da sensibilidade, de forma que o ser pudesse experimentar os diversos níveis, as diferentes modulações da sensação na obra de arte. Se por si só, o ser poderia participar do acontecimento que é a obra de arte, sem uma mediação que o conduzisse à percepção. Questão ética, contrária à moralidade, a condução da sensibilidade é um processo criativo que encontra analogias no processo criativo artístico (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 136-137). Conduzir a sensibilidade é o que o professor de arte pode, portanto é poder, é potência própria deste. Para conduzir a sensibilidade é preciso uma pedagogia da Sensação, é preciso operar com o incorporal, com o tempo puro, Aion, intensidade. Uma pedagogia em que a sensação atue, rompendo hábitos cronificados (Cronos), em que o sentido organize os corpos. É o sentido que vai dar as formas pedagógicas. A apreensão do mundo é, desta forma, a construção de sentidos, que direcionam toda a vida e o comportamento.

3. Objetivos ou verde bandeira Trazer mais vida, movimentar o pensamento, através da análisedeglutição da vida mesma. Dar potência ao ato criador na docência para ir além, ultrapassando métodos e instrumentalizando o docente para uma criação responsável no território da educação. Ir de uma leitura crítica ao fazer responsável (ao tomar para si a responsabilidade de criar aulas atravessadas pela ética e pela estética) para que a escola possa ser transformada através das forças da arte. Fazer com que o docente torne-se autor da própria docência, com ética e estética, para apreender e conhecer as operações da sensação na aprendizagem.

4. Teorização ou vermelho carmim #diferença# Os filósofos da diferença olharam a concepção filosófica estoicista como ponto de partida para a criação de outros modos de ver o mundo, uma vez que o infindável é aceito nesta concepção – questão não mais de “aprofundamento” de uma verdade, mas de “alargamento” de uma superfície, de um campo de saber, de um território. Crisipo, estoicista, fez uma filosofia do ser e do extra-ser, ou seja, dos corpos e dos incorporais.

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Os (múltiplos) indivíduos e os (múltiplos) afetos, não existindo nesta concepção um Uno e Múltiplos, mas apenas Multiplicidades (ser e extraser). Duas realidades, uma extensa, dos corpos, das formas, e outra intensa, dos afetos, das intensidades e do vazio, das singularidades (aformais). Basicamente pode-se dizer, com Ulpiano (2010), que as noções construídas ligadas ao platonismo são regidas por um filosofia do poder e, por outro lado, as noções construídas ligadas ao estoicismo são regidas por uma filosofia da potência. Desta forma, o pensamento guiado pelo poder está ligado à noção do Uno (e do múltiplo como sua fragmentação) enquanto o pensamento guiado pela potência está ligado à noção de singularidade, de multiplicidade, da diferença em si. Há, na primeira, a noção de uma linguagem articulada com o poder, com o significado das palavras, uma preocupação em conceituar, medir, delimitar. Já na filosofia da diferença há uma linguagem fundamentada no sentido, nos signos, na potência das palavras, há uma preocupação, citando Deleuze, com o “quanto”, o “como” e o “em que caso” (2006, p. 260). #sensação# As forças exteriores fazem o corpo vibrar com a sensação. A vibração sentida ecoa por todo o corpo, percorre fluxos e funda lembranças. Reminiscências, memórias evocadas pelo corpo que experimenta sensações semelhantes, trazendo à tona experimentações vividas e tornando-as presentes, transformando-as na atualidade do instante (BERGSON, 2010, p. 279-280). Cada sensação experimentada é sempre nova, um novo encontro e gera mudanças imperceptíveis. Na pintura, as sensações presentes na obra de arte nos afetam através de traços e cores, formas e fundos, estilos, tendências, manchas, linhas, composições da matéria e da vida. As ordens de sensação não operam por oposição, mas por tendência, de forma que sentimos estas misturadas tendendo ora para uma sensação ligada à carne: sensação vibrante, desorganizada, intensa, acidentada e problemática; ora para uma sensação ligada à razão: sensação neutra, organizada, constrita, extensa, ordenada. Pensando com os termos de O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche, pode-se dizer que quando a sensação se apresenta num movimento violento, dionisíaco, há uma indiscernibilidade de formas, uma precisão não-orgânica, ao passo que quando se apresenta num movimento compassado, apolíneo, há formas precisas.

#arte# Deleuze e Guattari (1997, p. 213) mostram que conservar a sensação na obra de arte, enquanto durar o material, é o objetivo da arte que busca capturar a força da Vida. Conservar a vida no sorriso capturado pela pintura, conservar a potência do sorriso, da carne, do corpo, da paisagem. Capturar as forças e conservar os conjuntos de sensações (seu corpo, suas atmosferas) são as ações necessárias para sustentar a obra sem a presença do artista, para que dure. Um corpo de sensações é uma composição de afectos e perceptos, que valem por si mesmos, que estouram a percepção e a afecção, de forma que ganham vida própria. Os blocos de sensação são seres de sensação, uma vez que conservam a vida, as forças, no material. As cores são os afectos da pintura, assim como os traços, a luz, a sombra e os materiais. E os “motivos” são os perfectos, que escapam da percepção comum, que a estouram, dando-nos uma singular visão de mundo, uma nova perspectiva (DELEUZE; GUATTARI,1997, p. 222). Compor um bloco estável, firme, de afectos e perceptos é criar um ser de sensação, é criar uma obra de arte (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 213-214). Na pintura toda a matéria se torna expressiva, na medida que a cor não é mais colorida, mas colorante, que a linha não delimita, mas projeta. A arte é uma linguagem que escapa da codificação do signo, criadora de signos próprios, imateriais, por que não remetem à memória, não tem explicação (DELEUZE, 2010, p. 37-38). É a linguagem das sensações, que não tem opinião, que não comunica, mas expressa (DELEUZE;GUATTARI, 1997, p. 228). #tradução, criação e procedimento# Desviar da memória e da opinião e ir ao encontro do esquecimento e da sensação (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 218-222) são trajetos necessários aos que querem traduzir criadoramente as forças que percebem, mesmo que intuitivamente. Tradução aqui é tida “como um processo criador” (CORAZZA, 2011, p. 59), que é “obra de gigantes” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 223), portanto é criação de monumentos de sensações. Deleuze e Guattari falam que toda obra de arte é um monumento, um composto de sensações, que não comemora o passado. O ato do monumento é a fabulação. Ato visionário, diferente da imaginação, a fabulação, segundo Bergson, é a criação de deuses e mitos, está presente na arte, sendo, também, 30 • 31

exercida na religião. A fabulação criadora vem a ser uma fábrica de gigantes: paisagens e personagens, construídos como monumentos, plenos de vida. Um movimento de saturação do vivido para que a vida, em si, seja sentida. Porém operar fora da memória leva à loucura, ao caos – então se faz necessária a têmpera, a exata medida. Salles (2004) apresenta a ideia de que o ato de criação é um complexo processo de apropriações, transformações e ajustes – uma trama que engloba o produto final. Numa arqueologia da criação interessa o movimento criativo – o ir e vir da mão do criador. Não há insight ou mágica, nem resultado que não seja fruto de trabalho árduo. Trata-se também de, com Nietzsche, pensar e operar com o fortalecimento da vontade, ou seja, da potência, como estratégia para os embates próprios da vida, da crueza da vida. Podemos dizer que a produção de uma obra vai do caos à carne ou corpo, ou seja, da imprecisão ao objeto preciso. Um jogo, uma trama, onde a tendência inclui a matéria, o desejo inclui o meio de expressão e o acaso não só é constatado – é esperado. O conteúdo da obra se cristaliza durante o processo, tornando visíveis as forças que a impulsionam, que a moldam. O conjunto das obras forma a paisagem existencial do criador, são projetos concretizados. Processos não lineares, labirínticos, que ora completam, ora confirmam, ora corrigem, ora contradizem – efetuação dos devires do pensamento, testemunhas da criação única de uma vida. Processos abertos, indeterminados, indefinidos que carregam uma “sensação de aventura” (SALLES, 2004, p. 40). O professor pensa e engendra maneiras de potencializar os encontros, as aulas. Para que neste encontro de corpos ocorra a aprendizagem. Encontro que cria subjetividades do espaço “entre” corpos, na sensação. Postura que seduz, não coage nem convence, mas conduz. Existe uma lógica na sensação que foi desprestigiada no advento da escolarização, ao se privilegiar o desenvolvimento da razão no projeto de conhecimento ocidental moderno (ZORDAN, 2013, p. 165-166), ao se separar mente e corpo no ser humano – sendo a mente ligada à razão e o corpo às sensações. Na escola, através das aulas de artes (e suas relações com outras disciplinas), operamos com uma lógica diferente e necessária à formação integral do educando. Em artes é o corpo todo que fala, que escreve, que se expressa e comunica. Como docentes

é com o corpo todo que criamos aulas, em um processo criador que se faz, fazendo. Aulas que não podem romper com o modelo de educação, mas podem criar rachaduras na estrutura, para entrar o novo na própria escola e trazer mudanças. Trata-se de criar novos procedimentos, novas maneiras, novos modos, para experimentar na carne o que se quer ensinar: a pensar. Uma operação por filamentos que implica observar, analisar e criar novos pontos de vista sobre a vida. Operar com o movimento do pensamento, com a criação do novo. Daí a ideia do professor-artista. Um corpo jamais deixa de ser afetado. Da ordem das paixões pode-se dizer, com Spinoza, que há duas paixões primárias: alegria e tristeza. Na alegria, o que nos afeta aumenta nossa potência de agir, expandindo-a. Na tristeza, ao contrário, nossa potência diminui. Com as artes não é diferente, porém a violência no pensamento acontece através da sensação. Algo me toca, me afeta, então algo muda em mim. Não posso voltar a ser o que era antes, apreendi algo. Não sou mais apenas uma professora, tampouco artista, sim professorartista. Na escola trata-se de trabalhar com as sensações e as experimentações, oportunizar a criação de novas afecções e novas percepções, novos pontos de vista, deslocamentos, em um tempo intensivo, mesmo que regido pelo cronológico horário escolar. A arte é poderosa na aprendizagem, não só pelos conhecimentos e procedimentos precisos de seus territórios, mas por operar transversalmente. Nos procedimentos de escrileitura (CORAZZA, 2010/14), operando com a primazia da invenção, com o desrazoável, com o intuitivo, ela permite que a sensação aja diretamente nos estudantes, nos professores e nas produções literárias, como se observou nas oficinas do projeto Observatório da Educação, que a incluíram em seus procedimentos. A Arte provoca brechas nas estruturas da vida institucionalizada, e por dentro delas é que as provoca, inserida no cotidiano escolar, entre os horários de aula, nos corredores, salas e demais espaços. Pode-se experimentar estes movimentos nas oficinas que utilizaram o descolarmento como procedimento inventivo e inventado. Para pensar a criação de outros modos de pensar o já vivido no campo das singularidades, as professoras pesquisadoras (NODARI e outros, 2012, p. 5), pensaram antes o procedimento referido. Este procedimento é uma conduta, uma atitude, 32 • 33

uma maneira de potencializar a produção de textos (imagens e palavras). Um modo de ação para que um escolar descole: das paredes da sala de aula, das classes e do quadro verde e, assim, deixe de ser escolar, descolarize-se, crie novos horizontes, ocupe um outro ponto de vista, um outro lugar na escolarização. #aprendizagem# Na maior parte do tempo a rotina estabelece uma confortável situação de repetir o já pensado, de forma que só pensamos algo novo quando provocados. Pensar não é tornar tudo claro, mas apenas o suficiente para a ocasião que se apresenta. Desta forma, pensar implica também em um certo mistério – uma questão de potência do que ainda pode vir a ser pensado – uma vontade de poder, um movimento infinito que move o pensamento e a construção de saberes e conhecimento. Uma vontade de arte, de compor com a matéria. Aprender é um problema político, uma postura perante a vida, é decifrar signos e é construir sentidos. Decifrar signos sensíveis e mundanos, que movimentam o pensamento. E signos da arte, que possibilitam a criação de pensamento (DELEUZE, 2010, p. 91). Segundo Deleuze, não se sabe antecipadamente como alguém vai aprender, não há método para aprender, para passar do não-saber ao saber (2006, p. 237-238). O que é possível, então, é criar situações que aumentem a potência de aprendizado. Como criar estas situações? Através de procedimentos abertos, maneiras, estilos de ensinar. Para um professor de arte é a sedução, através da sensação, que dissolve a forma rígida do ensino no fluxo da sensação da matéria, da obra de arte, da experiência de fazer arte. Experimentações de criação de signos artísticos, assim como a decodificação, sempre provisória, dos signos construídos por artistas. Neste sentido, a própria semiótica é uma construção, uma arquitetura de signos, de perceptos, afectos e conceitos (COUTO, 2007, p. 128). Decodificar signos é uma operação da razão, da inteligência que utiliza a lógica e o raciocínio, e que considera os signos como códigos. Um constructo2, um discernimento linear que leva da abstração ao conceito.

É construção, portanto estabelecimento de referências: eixos e coordenadas. Procura a precisão, busca eliminar o vago e o impreciso.

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É buscar o significado da linguagem que se apresenta, considerando as construções linguísticas. A linguagem é estrutura rígida e constitui-se por conjuntos referenciais, que homogenizam os dados e produzem narrativas e mensagens isomórficas. É abstração lógica e estruturada, um código digital. Um raciocínio que opera com convenção combinatória e que precisa ser apreendida, relacionado com o sistema filosófico de Aristóteles. Há, porém, uma lógica presente nos signos da arte que escapa do imperativo dos signos enquanto códigos. O analógico opera com as relações, com as similitudes aparentes. É imposição imediata, é presença, é evidência. Um desvio do simbólico através das conexões de elementos heterogêneos. Uma modelagem pré-estrutural, que opera nas bordas da lógica. É sensação colorífica, um aliquid 3, que ziguezagueia no pensamento em busca do sentido. É apreensão e expressão de singularidades, de enunciados, de intensidades. Uma transformação do incorporal que opera com a sensibilidade, com a abertura a domínios sensíveis que escapam da linguagem. A analogia é o sobrevoo da lógica, uma operação com o assignificante e o não-representativo, com o sentido das coisas e não com o significado.

5. Metodologia ou terra siena queimada A pesquisa teve por estratégias: a adoção de fragmentos como potência de texto; a simulação como forma de apresentação de imagens de pensamento e os fazeres da pesquisadora (artista-professora-mulher), como simulações do ato criativo; a antropofagia como economia ou política de devoração dos autores para extrair a potência do pensamento gerado pela afecção dos encontros; o perspectivismo a serviço da criação, com a prevalência da multiplicidade de sentidos, como movimento infinito, que se faz, fazendose; a indução e a intuição, onde o texto, das imagens e das palavras, é apresentação e não representação das noções presentes na obra; a analogia onde a lógica é da ordem da proporção; o diagrama, onde a estrutura sustém o movimento; um método geométrico, de condução; a mistura de corpos, onde a fenomenologia é transcendida em acontecimentos e, com os estóicos, alarga seus horizontes até a filosofia do extra-ser, num empirismo Conforme a metafísica, é “algo” no sentido etimológico do termo, quer dizer, é um outro-quê (ali-quid) em relação aos demais quê. Busca semelhanças com outras coisas para apresentar a noção, o sentido.

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transcendental; a expressão, onde o sentido é primeiro e os três elementos da representação - significação, identidade, organismo - sempre provisórios; a biografemática, como possibilidade de “descolar” da representação, em direção ao sentido; a criação de procedimentos, como possibilidade de reinvenção da docência, que circule entre a apreciação crítica e o fazer responsável, e fazer da vida mesma (da autora) uma obra de arte.

6. Efeitos ou tons de branco As forças que atuam nos corpos chegam até nós como sensação. A pintura tem a tarefa de capturar estas com os elementos de que dispõe. É uma “tradução pictórica” como afirma Pelbart (2000, p. 104), uma tradução pois torna visíveis as forças presentes de uma maneira outra, pictoricamente. Tradução criativa esta, que não representa, mas apresenta. Através de atitudes, de procedimentos que operam com o próprio Fora presente na vida. O Fora é um nome, segundo Pelbart, para fazer “entrar na ordem do discurso aquilo que não tem ordem, substância, nem unidade” (PELBART, 2000, p. 181). Para Nietzsche é o Caos, forças intensas, descontínuas, sem começo ou fim, coexistindo em um corpo que é criação do acaso, sem sentido nem intenção, apenas intensivo. Para que seja possível viver, este corpo cria para si um corte no Caos, no Fora, e estabelece aí um plano seguro para se abrigar. O pensamento do Fora para Pelbart (2000, p. 182-183), é um jogo entre a razão e a desrazão, que coloca o corpo num frágil equilíbrio entre a razão extrema e a loucura total, onde a dureza de uma e a liquidez da outra impedem que a vida prossiga, só sendo possível viver como matéria plástica, maleável, plasmática, no entre. É preciso mergulhar na sensibilidade da carne e da poesia para capturar o Caos. Um encontro que necessita de rituais e racionalidades febris para experenciar este encontro e dele sair, retornar à existência consciente e carregar parte deste Caos, trazer parte do Fora para a vida. Um “remo” intelectual se pensarmos como parte de um ponto de vista platônico, onde se casam “emoção e razão, instinto e rigor” (PELBART, 2000, p. 15), mas um avanço no pensamento na direção de variedades, do novo em si, pois é a única possibilidade na criação. Também na docência é possível pensarmos nestes mergulhos no Caos, no Fora para possibilitar a criação. Planejar aulas exige emoção, razão,

instinto e rigor. Há, ainda, similitudes nos rituais (PELBART, 2000, p. 181) da pintura, da docência e da vida – os rituais para iniciar uma aula, uma pintura, um projeto – entrar na sala de aula, na tela e na vida, e os rituais para de lá sair, sair do lugar-comum, dos clichês, e poder criar algo para si e para os outros. É um movimento que se faz, fazendo-se, por isso não se pode prever exatamente o que fará alguém mover-se, mas podemos seduzir para o encontro. Na pintura, tornar-se artista é movimento, é devir-animal que constrói sua obra, mundos possíveis, em matilha e/ou isolado. Criação de um estilo artístico. Na docência, movimento de tornar-se professora, devir-animal, que compõe, que planeja seu território, a aula, em matilha e/ou como docente isolada. Criação de um estilo professoral. Na vida é movimento de tornar-se o que se é, devir-animal que compõe, constrói sua vida , com o que o torna potente e livre (do hábito). Ora adotando estilos de vida coletivos, que o afetam, ora solitariamente, num estilo singular. Criação de um estilo de vida aberto a novas perspectivas, doador de potência.

7. Referências ou laranjas elétricos BARTHES, Roland. A Câmara Clara, notas sobre a fotografia. Lisboa/Portugal: Ed. 70, 2010. ______. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 2003. BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. (Tradução Paulo Neves). 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010. COUTO S. C., Carlos M. Tópica Estética: filosofia, música, pintura. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001. CORAZZA, Sandra. (Org.) Fantasias de Escritura: filosofia, educação, literatura. Porto Alegre: Sulina, 2010. CORAZZA, Sandra Mara. Projeto Escrileituras: um modo de “ler-escrever” em meio à vida. Projeto de Pesquisa/Plano de Trabalho. Porto Alegre: CAPES/OBEDUC, 2010b. (Texto Digitado) CORAZZA, Sandra. Notas para pensar as Oficinas de Transcriação (OsT). In: HEUSER, Ester Maria (Org.) Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá, EdUFMT, 2011. (Coleção Escrileituras) DALAROSA, Patrícia Cardinale. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida: Observatório da Educação/CAPES/INEP. In: HEUSER, Ester Maria (Org.) Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá, EdUFMT, 2011. (Coleção Escrileituras)

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Memória e fabulação em Henri Bergson: considerações sobre a experiência do tempo no ensino de história Gabriel Torelly Fraga Nilton Müllet Pereira

Resumo A dissertação apresenta rastros de um percurso filosófico e suas crises. Crises entendidas no sentido de um gesto criador, que leva o filósofo, no caso Henri Bergson, a passar de um conceito a outro. Da memória à fabulação é todo um plano de pensamento original que se insinua, suscitando uma nova modalidade de cálculo dos problemas filosóficos. Situada diante deste novo cálculo, a escrita da dissertação assume como objetivo tensionar os limites éticos e estéticos da discursividade atual do ensino de história. Do ponto de vista de um virtualismo bergsoniano, postula um ensino menos afeito às estruturas significantes atuais e mais próximo de uma política expressiva aberta à expansão dos limites da significação.

Palavras-chave Henri Bergson. Filosofia da Diferença. Memória. Fabulação. Ensino de História

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I. Da problemática e da estratégia Quando completavam cem anos da publicação de Evolução Criadora (2007), um grupo bastante amplo e heterogêneo de pesquisadores brasileiros lançava uma coletânea de artigos intitulada “Imagens da imanência: escritos em memória de Henri Bergson”. Além de apresentar ali a diversidade de elementos que demonstram a atualidade de alguns problemas enfrentados pela filosofia bergsoniana na virada do século XIX para o XX, os autores elegeram como um dos seus pontos de interesse as interfaces entre o pensamento de Bergson e a Educação (LECERF; BORBA; KOHAN, 2007). Na dissertação aqui apresentada procurou-se dar conta justamente de uma dupla interrogação que se inscreve nessa mesma intercessão: a) De que modo os principais temas discutidos por Bergson se apresentam na linguagem da filosofia contemporânea? b) Que tipo de problematizações a releitura contemporânea da filosofia bergsoniana pode provocar no campo da Educação, mais especificamente, no ensino de história? Antes de abordar os dois aspectos acima referidos, uma breve consideração sobre a estratégia metodológica envolvida na escrita do trabalho. Se for correto afirmar que toda tradução carrega consigo os germes de uma traição inevitável, também é relevante o fato de que antes de trair é preciso sustentar uma rigorosa relação de coincidência com a coisa traída (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 15; CORAZZA, 2013, p. 188-189). Ao trair um autor, procurando extrair de seus escritos uma dimensão contemporânea, deixa-se para trás os momentos de labor silencioso nos quais nos entregamos em segredo, aceitando provisoriamente os termos que eram ditados alhures simplesmente para que o jogo pudesse continuar. Tudo se abandona para coincidir com o que se apresenta. Essa é mesmo uma dimensão ética e pedagógica que se pode ler no encontro radical promovido pelo pensamento de Henri Bergson entre a teoria do conhecimento, a metafísica e a experiência do tempo. Ali, conhecer é expor-se ao ritmo da coincidência, e a “duração” é o vazamento do sujeito e do objeto do conhecimento a um só tempo para fora das grades da racionalidade instrumental e da ilusão do Nada metafísico (BERGSON, 2006, p. 24; 2010, p. 300-315).

Essa coincidência, que é da ordem das relações amorosas, acaba por desatar eventualmente o cordão das intenções, traindo o pacto intersubjetivo e a moral da similitude; rompendo os vínculos de reciprocidade imaginários que sustentam o efeito de verossimilhança entre o original e a cópia; introduzindo, portanto, o lapso de hesitação aonde se aloja um terceiro: frágil, precário, de natureza fragmentária e fugaz, contudo, um terceiro. Mesmo nas maiores alturas dos sonhos binários, o terceiro é o espectro de um precursor que assombra os interstícios relacionais. Daí a iminência de um resíduo diferencial que pressiona nas fronteiras da intencionalidade. Daí o risco de desatar o liame das relações de semelhança e apresentar rastros de uma figura monstruosa, efeitos de linguagem de uma pressão que é da ordem do exterior. O pensamento contemporâneo lança o seu desafio aos fundamentos analógicos da maquinaria binária: não há motivos para escrever sobre alguma coisa que não ameace uma posição de sujeito ou não seja capaz de apresentar o presente como uma sorte de animal invertebrado – instável, móvel, flexível. Nesse caso, pensar é instalar-se num limiar de turbulência pré-subjetivo, não-individuado, onde suportar o silêncio de nossas disposições é o que propicia condições para seguir adiante. O animal que interessa não é aquele que se esconde na fortaleza sintética do cogito, nem numa escalada ascética de sublimação, mas o trânsfuga literário, “desincorporador de sentido” (RANCIÈRE, 2009, p. 59-61), perseguidor de uma significação movente em contínuo estado de expansão e abertura. Escorregadio, saltitante, charadista de si mesmo, o tempo é a sua questão, o movimento a sua realidade. É sob tal ótica que dimensionamos o caráter contemporâneo da filosofia bergsoniana ao longo da pesquisa.

II. Leituras de Henri Bergson Quanto ao primeiro aspecto desenvolvido na dissertação, é importante notar algumas linhas “mestras” que conduziram a retomada do interesse pelos estudos bergsonianos no Brasil. Embora as interpretações e leituras imanentes da obra do filósofo, que procuram apresentar o seu pensamento o mais próximo possível da “letra fria” do original, não tenham deixado de preocupar os pesquisadores, é possível apontar dois marcos em especial que

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impulsionaram, mais ou menos explicitamente, a renovação dos estudos bergsonianos no final do século XX e início do XXI. Em primeiro lugar, a influência da leitura deleuziana, apresentada no Bergsonismo (1966), mas já esboçada em artigos anteriores, escritos ainda na década de 1950, onde Deleuze apresentava o pensamento de Bergson como uma “ontologia da diferença” (2006). Como relembra recentemente François Dosse, Deleuze formulava sua leitura extremamente original da intuição filosófica bergsoniana a partir dos conceitos de “duração”, “memória” e “impulso vital” num tom intencionalmente provocativo, cujo escopo era romper com as interpretações de caráter ideológico e psicologista sobre a filosofia de Bergson que dominavam o cenário intelectual do pós-guerra na Europa ocidental (2010, p. 120). O outro marco ao qual é importante fazer uma referência em especial é a publicação da tese de Bento Prado Jr. no Brasil. Publicada tardiamente em 1989,4 a tese originou um livro chamado “Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson”. Ali, o filósofo brasileiro demonstrava como de um lado a partir da crítica radical à “infra-estrutura imaginária da ideia de Nada”, e de outro a partir do conceito de “imagem” entendido como campo transcendental pré-subjetivo, Bergson fundava uma metafísica renovada, distante, ao mesmo tempo, da representância platônica, do cogito cartesiano e dos limites da estética transcendental kantiana. O método intuitivo poderia emergir então como o “fio metódico” (DELEUZE, 2012, p. 10), ou como ponto de inflexão “noemático” (SANTOS PINTO, 2010, p. 11), capaz de tornar pensável uma figura estranha e paradoxal na história da filosofia: uma metafísica baseada na própria experiência real. A noção de “campo transcendental das imagens” permitia descolar o pensamento bergsoniano das filosofias do sujeito, demarcando suas diferenças e aproximações especialmente em relação à fenomenologia, uma vez que na leitura de Prado Jr. a experiência não é mais o horizonte de uma subjetividade constituinte e transcendental, mas o próprio campo de indeterminação a A tese é redigida e defendida na França no início da década de 1960. Em virtude do exílio sofrido pelo autor no período da ditadura civil-militar brasileira, ela só é publicada e difundida por aqui em 1989 na forma de livro. O mais interessante é que em 2002 o livro seria traduzido e publicado na França, despertando em território francês um renovado interesse em torno da filosofia de Bergson.

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partir do qual uma subjetividade se desprende como introdução de novidade (PRADO JR., 1989, p. 145-146). Partindo especialmente das intuições desenvolvidas por esses intercessores, radicalizamos a potência silenciosa da memória ontológica bergsoniana de maneira a apresentar-lhe como uma hipermemória poética capaz de guardar a presença de um terceiro que se oferece por diferenciação. Considerando a problemática da passagem entre a segunda e a terceira síntese do tempo (DELEUZE, 1988, p. 102-128), ligamos a memória ao impulso vital, de maneira a encontrar uma solução de continuidade entre a memória absoluta e o eterno retorno da diferença na própria obra de Bergson, evidenciado especialmente nos conceitos de criação e impulso vital presentes n`A Evolução criadora. Desse modo, encontramos em Bergson não apenas o inventor do “virtual”, mas um verdadeiro “virtualista”, como queria Pelbart (2011, p. 74). Não satisfeitos com essa pequena engenharia, surfamos a onda de Deleuze, e fizemos da função fabuladora bergsoniana o meio expressivo através do qual o impulso vital obriga a memória ontológica a romper a mudez essencial e diferenciar-se por literalização. A função fabuladora encerrava a passagem entre os conceitos de duração, memória e impulso vital que caracterizaram a trajetória dos principais escritos bergsonianos. Da duração à memória; da memória ao impulso vital; do impulso vital à fabulação bergsoniana é todo um novo cálculo dos problemas filosóficos que se insinua. A introdução, ou intromissão do “terceiro” funciona ao modo de uma artimanha que sabota os paralelismos clássicos e os jogos duais travados pela tradição filosófica entre o empirismo e a metafísica. É comum destacar que a forma encontrada pelo filósofo para escapar ao paralelismo da tradição resultou numa espécie de monismo metafísico. Em todo caso, nos parece que o monismo bergsoniano se torna efetivamente uma aposta filosófica interessante ao revelar sua qualidade de ontologia diferencial; de recusa do modelo de pensamento movido unicamente pelas multiplicidades quantitativas – pelo problema do “mais” e do “menos” que abriga em suas entranhas uma noção inofensiva de alteridade domesticada segundo os termos de um pluralismo formal. O terceiro que Bergson nos oferece não é semelhante a nada. Múltiplo selvagem. A analogia definitivamente não é 42 • 43

o seu negócio. Seu estatuto aproximado seria o de um “numeral obscuro” (LAPOUJADE, 2011, p. 23-46). O outro sem o mesmo. Estranheza que vaga sem referência imaginária a uma instância unificadora. Uma espécie de cidadela onde todos são estrangeiros e ninguém pode afirmar algo do tipo: “Ei, você pertence ao...”.

III. Bergson, a educação e o problema da experiência do tempo no ensino de história Quanto ao segundo aspecto abordado na dissertação, algumas considerações preliminares de ordem metodológica se impõem. Embora Bergson não estivesse distante dos debates de sua época em torno da Educação, o fato é que o filósofo não dedicou nenhum livro em especial ao tema, e mesmo que haja, aqui e ali, de maneira esparsa, algumas indicações específicas, é preciso admitir que passados cerca de cem anos a problemática educacional alterou-se substancialmente. Desse modo, mais interessantes nos parecem os esforços que não se detêm somente numa busca filológica dos textos, mas que realizam uma leitura de conjunto, procurando discutir os principais matizes da intuição filosófica do autor, para dali extrair enfim uma “dimensão pedagógica” (SANTOS PINTO, 2010). Também não fez parte dos objetivos da dissertação propor algum tipo de “aplicação” da filosofia bergsoniana à práxis educacional. Trata-se, de outro modo, de partir da intuição filosófica presente nos conceitos formulados por Bergson para tensionar os limites entre a dizibilidade e a visibilidade que compõem hoje os fundamentos da teoria e da metodologia do ensino de história. Partindo especialmente de uma discussão acerca dos conceitos de memória e fabulação, nossa perspectiva converge em direção a um plano de pensamento onde o acontecimento educacional reúne em torno de si os problemas da indeterminação e da introdução de novidade, plano este em que os postulados sociológicos e os axiomas culturais da “reprodução”, da “transposição” e da “recepção” do conhecimento não são simplesmente negados, mas parcialmente suspensos para dar lugar a um outro tipo de cálculo dos problemas, cálculo intuitivo (DELEUZE & GUATTARI, 2012, p. 162; p. 175), articulado aos desdobramentos éticos e estéticos de uma “Educação potencial” (LAMELA ADÓ, 2013). Foi o interesse

pelos “procedimentos pré-racionais” e por uma certa arte de manipulação do acaso que introduziu a cada vez novos movimentos na pesquisa (CORAZZA, 2012, p. 26-27). Nessa perspectiva, o interesse na memória é justificado pela significação ontológica que ela assume em Bergson, a partir da qual é possível ler na diferença do passado não o fantasma de uma percepção enfraquecida, mas um potencial virtual de indeterminação. Da mesma maneira, a medida do interesse na “faculdade fabuladora” não é o sentido moralizante ou edificante que se pode atribuir às representações que são por ela criadas nos limites das “sociedades fechadas” (BERGSON, 2005), mas antes o processo de criação ao qual ela se encontra indissociavelmente articulada. Tomada nesse registro, a problemática envolvida na dissertação se insere na perspectiva, desenvolvida pelo Projeto Escrileituras e pela Linha 09, de pesquisar a dimensão educacional do Acontecimento situando-se nos marcos teóricos da filosofia da diferença. As pesquisas na área do ensino de história têm apontado exaustivamente para a insuficiência das problematizações que se contentam em registrar o cotidiano escolar como o espaço das “faltas” e das “carências” (JULIA, 2001; FONSECA, 2004; SEFFNER, 2012). O que significa que uma aula de história da escola básica não deve ser avaliada, nem descrita, somente a partir de critérios de validação e verificação de ordem exterior. Sua verdade última não está contida nas “novidades” da historiografia, nem na adequação formal ao desenvolvimento de uma “ética cidadã” voltada unicamente para o presente. A aula é aquilo que acontece, e neste acontecer está implicado um misto de ciência, arte e acaso que se desenrola enquanto materialidade expressiva singular. É preciso que entre a inteligência e o acaso desenrole-se um modo de fazer, como que uma ponte lançada entre a região dos conceitos e do saber e uma zona de não conhecimento marcada pela imprevisibilidade. É tendo em vista essa perspectiva, que afirma na força da partícula “E” ao mesmo tempo a irredutibilidade e a coexistência entre essas diferentes problemáticas, que uma pesquisa pode interrogar os novos meios de expressão do que acontece numa aula de história (PEREIRA; MARQUES, 2013). Do ponto de vista teórico-metodológico dos fundamentos do ensino de história, procurou-se ao longo da pesquisa apontar os limites de 44 • 45

uma concepção de experiência do tempo concebida pela racionalidade instrumental sob o signo da dívida do sentido. Categoria operatória fundamental nas discussões de ordem epistemológica sobre a finalidade do ensino de história nos dias correntes, a experiência temporal aparece na dissertação justamente como aquilo que precisa ser arrancado dos postulados negativos da dívida e do fatalismo metafísico que acompanha especialmente as soluções de ordem prática e teórica apontadas pela aparelhagem conceitual da hermenêutica fenomenológica. O tempo aparece ali sempre como o vulto a ser domesticado ou interpretado pelas grades metódicas da racionalidade. Nada escapa. Não há excesso. A criatura que senta nos bancos escolares é por princípio um ser endividado com o sentido. Nesse caso, o que se revela ao longo do trabalho é uma incompatibilidade flagrante entre a experiência do tempo concebida pela hermenêutica da consciência histórica5 e a “duração” bergsoniana. De um lado, a experiência temporal é o resíduo que deve ser reduzido pela analítica. De outro, ela aparece como um potencial virtual de significação. A tensão filosófica entre aquilo que poderíamos chamar de dois métodos distintos de “administração da alteridade”, como na feliz expressão de Eduardo Viveiros de Castro, foi o que permitiu visualizar a espessura das “muralhas” erguidas pelo “inimigo” para em seguida procurar se situar no “interior da exterioridade que lhe é imanente” (2013, p. 19). Procurando colocar-se, ao modo bergsoniano, num ponto de observação anterior à fratura ontológica operada pela linguagem representativa, postula-se uma aproximação entre a noção de experiência temporal, o “princípio de criação” e a expressividade radical de um “pensamento do exterior”.6 A significação ontológica da memória e o processo fabulatório de criação associam-se assim a um olhar para o ensino de história que se descola dos mecanismos de validação baseados no juízo exterior e nas estruturas Para uma discussão sobre os fundamentos da categoria geral da “consciência histórica” como instrumental de pesquisa na área do ensino de história, ver em especial a vasta recepção dos estudos de Jorn Rusen no Brasil. 6 O tempo da “duração” aparece em Bergson como uma concepção de experiência temporal capaz de ensejar uma articulação não-negativada entre a experiência e o “princípio de criação”. Para conceber o tempo da duração enquanto positividade de expressão, ou virtualidade de criação, é preciso ter em mente uma noção de experiência anterior ao divórcio operado pelo racionalismo moderno entre a palavra inspirada e a palavra reflexiva, entre a “experiência autêntica” e a “experiência estética”. 5

imaginárias da dívida do sentido e procura afirmar-se como singularidade expressiva onde o que importa não é a conformação entre o ensino e uma questão de ordem atual, mas a própria manutenção da inconformidade e do potencial desprendido de uma força questionante; onde questionar, como queria Blanchot, “é buscar, e buscar é buscar radicalmente, ir ao fundo, sondar, trabalhar o fundo e, finalmente, arrancar. Esse arrancar de raiz é o trabalho da questão. Trabalho do tempo. O tempo se busca e se experimenta na dignidade da questão” (2010, p. 42).

IV. Considerações finais: o terceiro e a experiência do tempo O terceiro é um trânsfuga sem origem ideal. Não pode retornar ao familiar. Ele não é filho de um corte aleatório compulsoriamente transformado em pátria. Ele é filho do que se move. Simulacro independente, sem vínculo parental a não ser com o peito aberto do mundo. Viajante sem passado. Ou melhor, com um passado tão remoto que muda a cada nova cidade que chega para conquistar. Fardo abandonado – forasteiro fabulado: este é o seu jogo. Fabular é sempre um delito monstruoso praticado contra o peso subjetivo de nossas lembranças pessoais. É a nuvem carregada de um esquecimento potencial que recobre a práxis e o circuito fechado entre as memórias empíricas e o impulso mecânico finalista para guardar algo de natureza diversa: a radicalidade do tempo, do tempo enquanto questão e morada do intempestivo. É por isso que a fabulação não pode ser um exercício feito em nome de uma identidade formada. Ela guarda uma dimensão larvar que desconhece os cânones da representação e antecede os seus efeitos antropológicos. Ao apagar lugares de sujeito, oferece silêncio e risco. Que tipo de risco? De provocar uma estranha coincidência entre história e devir, entre o empírico e o transcendental, produzir um expatriado, encurvando-se até o ponto de romper uma costura demasiadamente apertada e produzir por excesso outra linha de expressão. Pensar conceitualmente a relação entre a função fabulatória e a dimensão poética da memória bergsoniana não implica de modo algum abdicar da inteligência histórica, nem mesmo do trabalho interpretativo capaz de formar uma consciência histórica através da atribuição gradual de significado à experiência temporal, mas de formular outro tipo de pro46 • 47

blema, outro cálculo, aquele capaz de forçar a imaginação a emitir significações novas, imprevisíveis, de privilegiar, na relação entre o tempo e o significado, não o conjunto de significados atribuídos, mas a força do tempo se repetindo como questão. Ao final do trabalho, a imagem que emerge é a de uma fundamentação teórica que não se contenta em justificar a importância do ensino de história somente em função da utilidade da época, mas em função do inumerável conjunto de surpresas guardadas pelo passado e pela imprevisível pressão que elas exercem sobre a imaginação dos presentes que não deixam de passar. A questão não pode ser um pedido de trégua, nem uma carta de intenções que um general entrega ao adversário para assegurar os termos do interregno acertado. Mesmo que se trate de um general de biblioteca, a questão se apresenta como um trabalho de escavação. Questão incontornável, que, ao se colocar, faz tudo desaparecer. Suspende, congela, embaralha as linhas entre os ditos e as posições. Torna e retorna. Repete e difere. Carapaça valente de uma forma em fuga e decomposição. Carrega em sua força questionante um “tudo mudou”. Decompõe regimes de signos num deslocamento de pontos brilhantes, como se fogos-fátuos ardessem lentamente para em seguida se apagar em cadeias abertas de significação que fazem tudo mudar ao mesmo tempo em que nada muda. Pois as formas fraturam, desvanecem, dançam, alteram, mas o tempo se repete como questão. Ensinar o tempo. Como ensinar aquilo que só pode aparecer como signo da própria questão? É que ensinar história pode muito bem ser um exercício menos concentrado na obsessiva atribuição da significação adequada à experiência do tempo, e mais no processo experimental em torno do estado espiralado da espera que caracteriza o eterno retorno da questão.

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Bifurcações na formação de professores Hilda Regina P. M. Olea José Carlos Leite

Resumo O conteúdo destas linhas é um extrato da dissertação de mestrado “Bifurcações de Hermes: uma epistemologia do efêmero” defendida em março de 2014, no Programa de pós graduação em estudos de contemporânea, da Universidade Federal de Mato Grosso. Produzida no âmbito da Interdisciplinaridade, a pesquisa discute o próprio movimento interdisciplinar quantos aos seus aspectos epistêmico e metodológico, motivada, especialmente, pela alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que prevê a implantação desta modalidade de produção de conhecimento como parâmetro curricular a ser adotado pelas instituições de Ensino Básico até o ano de 2020. Foi escrita quando bolsista de mestrado do projeto Escrileituras: um modo de “lerescrever” em meio à vida, financiado pela CAPES pelo Edital Observatório da Educação, 2010.

Palavras-chave Educação. Interdisciplinaridade. Tradução. Êxodo. Bifurcação

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Retalhos Aliado à filosofia de Michel Serres e de seus personagens Arlequim e Hermes, a dissertação de mestrado “Bifurcações de Hermes: uma epistemologia do efêmero” encontrou seu campo experimental em oficinas de formação de professores, nas quais se pretendeu criar espaços para experimentações no uso das linguagens e na produção de saberes outros, que, enquanto processos de subjetivação, transversalizam os conteúdos escolares. As oficinas produziram a dissertação na medida mesma em que em face dela foram concebidas. Um processo que pensa a si mesmo na medida em que se produz. Errantes por excelência, a dissertação e as oficinas, através de relações entrópicas, como Arlequim, aportaram. As vestes de Arlequim denunciam que ele vem de muito longe, que viveu rigores, intempéries e delícias. Feita de tiras com formas irregulares, mal costuradas, com cores dispostas em desarmonia, repleta de nós e laços arranjados segundo as circunstâncias e a necessidade, a roupa puída, dilacerada transcende o viajante e, magnífica, revela o mapa do mundo que ele percorreu. Talvez o comediante não saiba oferecer uma definição precisa a cada um dos mundos pelos quais passou, mas certamente sabe dizer como são, pois lá seu corpo experimentou vertigens, acidentes e contingências, seus sentidos provaram sabores, perfumes e consistências que vão desde o firme ao viscoso, aprendeu línguas e hábitos, mas também deixou algo de si, dispersou-se pelas veredas que visitou, para retornar mestiço. Compósitas, tal qual o casaco de Arlequim, as oficinas Bifurcações na formação de professores7 foram realizadas com o objetivo de constituir um campo empírico que tenta tornar operatória a filosofia da fluidez e das passagens. Esfarrapada, ela relaciona projetos, instituições, individuações, Oficina de formação de professores que organizei e apliquei – com o apoio da linha de pesquisa experimentações em teorias e políticas educacionais, do grupo de Estudos de Filosofia e Formação, do Instituto de Educação desta universidade – nos dias 23 e 25 de setembro de 2013, durante o Circuito Cultural Setembro Freire. A oficina inscreveu-se no território interdisciplinar ao articular poesia, dança contemporânea e esta pesquisa acadêmicocientífica. Consistiu na realização de uma leitura corporal do poema gOOl, tema do evento no ano de 2013. Os professores participantes exercem suas atividades de docência nas Escolas Paciana Torres de Santana e Dom José do Despraiado, em Cuiabá. A partir das imagens registradas e da pesquisa realizada com esta oficina, foi produzido também um documentário chamado Bifurcações.

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interesses e afetos de proveniências diversas. São estes tantos retalhos que conferem potência a esta experimentação e encorajam-me a ensaiá-la como um manto portulano análogo ao do rei da Lua8. As oficinas-manto pretenderam-se bifurcações e, como tal, operaram através de relações, estabelecendo conexões entre elementos9 (sejam eles teóricos ou institucionais), alinhavando farrapos para compor um pano, que ao final, creio, deixa-nos ver, um esboço topológico e geográfico de tais encontros. Dentre os agenciadores institucionais encontram-se: R1: O projeto interinstitucional Escrileituras: um modo de “ler-escrever” em meio à vida (Edital CAPES/INEP 038/2010), cuja coordenação geral é realizada pela Prof. Dra. Sandra Mara Corazza, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em sentido pragmático o projeto atua na busca de alternativas para a compreensão e superação dos dados apontados pelo IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), especialmente aqueles que sinalizam as dificuldades no uso das linguagens. Aliando a Filosofia da Diferença à educação e em sistemas cooperativos entre Escolas Estaduais e Municipais e as Universidades: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), visa criar espaços para experimentações que evidenciem as singularidades, dando lugar ao livre exercício do pensamento, o que pode desencadear, através da experiência do inusitado, processos de reinterpretação, de resignificação e de criação de mundo. R2: O grupo de Estudos de Filosofia e Formação (EFF, do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), coordenado pelo Prof. Dr. Silas Borges Monteiro) – que neste trabalho comparece também na condição de “núcleo UFMT”, integrante do projeto acima. Este percurso investigativo integra a pesquisa realizada pelo Projeto Escrileituras no “núcleo UFMT” ao inscrever-se entre as atividades de uma das Modo como Michel Serres operacionaliza o personagem da commedia Dell’art na obra O terceiro instruído. Instituto Piaget, 1993. p. 12. 9 A cada elemento que integra esta composição apresentarei precedido da letra “R” – em alusão à metáfora do “retalho” –, seguido do número que ocupa na ordem de enumeração. 8

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subdivisões do grupo EFF: a linha de pesquisa “Experimentações em teorias e políticas educacionais”, cujo trabalho, no ano de 2013, esteve voltado para a formação de professores. R3: As Escolas Estaduais Professora Paciana Torres de Santana e Dom José do Despraiado, que são as duas escolas de ensino básico parceiras do Projeto Escrileituras na cidade de Cuiabá. Em um regime de parceria e cooperação entre as Escolas e a Universidade, desde 2010 vem sendo realizadas atividades que visam o desenvolvimento da educação infantil e o aprimoramento dos docentes, dos alunos das licenciaturas e dos pesquisadores. R4: A Casa de Cultura Silva Freire, organizadora do “Circuito cultural Setembro Freire”, evento que oportunizou a experimentação da oficina “Bifurcações”. Evento este realizado em memória do poeta, jurista, ativista político e professor fundador da Universidade Federal de Mato Grosso, Benedito Sant’Anna Silva Freire, cujas contribuições excedem o âmbito regional ao desdobrarem-se em um dos movimentos literários mais importantes do país, o Intensivismo10. R5: O Instituto Cultural Voo Livre fundado pelo professor e coreógrafo Paulo Medina (in memorian), precursor na inserção da dança de expressão contemporânea no Estado de Mato Grosso, compareceu nesta atividade acadêmico-pedagógico-cultural através da participação do professor e coreógrafo Claudiano Crhist, responsável pelo trabalho corporal realizado com os professores das Escolas citadas.

Via Mais do que uma moda pedagógica ou um procedimento didático a Interdisciplinaridade indica uma transformação epistemológica em curso O Intensivismo é um movimento literário inaugurado em Cuiabá pelo poeta Wladimir Dias-Pino na década de 50 do século XX, que tem como principal característica o simbolismo duplo, isto é, outras formas gráficas são exploradas além da palavra. A manipulação da linguagem, a valorização da visualidade poética, sugestão de um novo procedimento de leitura, o caráter de experimentação e a negação da tradição por meio da invenção representam essa nova manifestação literária. Esse movimento possibilita o Concretismo que privilegia o processo concreto na elaboração do poema, caracteriza-se pela negação de elementos considerados indispensáveis para a construção literária brasileira, por exemplo, a cultura rural, o intimismo subjetivista; procura uma comunicação rápida, em formas e estruturas, não em conteúdos. É um movimento de vanguarda, no qual se separa língua de linguagem, experimentam-se outras formas poéticas e o conteúdo abre espaço para as formas gráficas, possibilitando a desmontagem dos poemas.

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que vem acontecendo à nossa revelia. Independe de sabermos ou não o que ela é ou se sabemos ou não como produzi-la, seu surgimento ocorre em virtude das necessidades epistêmicas relacionadas à natureza mesma dos problemas a serem respondidos pelas áreas do conhecimento. Ontologicamente a Interdisciplinaridade liga-se aos processos investigativos que exigem um olhar transversal, capaz de responder àquilo que o olhar do observador disciplinar não é capaz de enxergar. Inserida na LDB11 como perspectiva pedagógica a ser adotada na estruturação dos projetos político pedagógicos das unidades escolares responsáveis pela etapa da Educação Básica e no cenário da formação superior nacional mediante a criação cursos de graduação e pós graduação, a Interdisciplinaridade passa a ocupar um papel relevante no Sistema Educacional Brasileiro. Ao que cumpre indagar sobre as condições nas quais as atividades interdisciplinares vêm se desenvolvendo nas instituições de ensino.

Bifurcação Nesse sentido, a dissertação buscou explorar dois aspectos da inserção da Interdisciplinaridade nas práticas pedagógicas: o primeiro refere-se a abordagens que reivindicam para a Interdisciplinaridade o estatuto de paradigma epistemológico contemporâneo12; o segundo diz respeito aos procedimentos interdisciplinares, já que parece um tanto inadequado pensar em uma ‘metodologia’ interdisciplinar, sendo que Interdisciplinaridade, mais propriamente, engendra modos de ampliação dos territórios de significação.

Excurso A interdisciplinaridade, nesta perspectiva, comparece como forma de ampliar o território das coisas cognoscíveis através da prática tradutória entre os domínios do conhecimento. Cada disciplina tem suas dinâmicas próprias, a atividade interdisciplinar, tal como os processos de tradução, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n° 9.394/96. Esta discussão encontra-se contemplada no texto original da dissertação. No presente texto priorizo o debate concernente aos procedimentos interdisciplinares.

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“encontra-se fundada em incompreensões parciais”. Assim como ocorre com as traduções das línguas naturais, a incompreensão dá lugar à invenção. Ao que se pode afirmar que o pensamento interdisciplinar fundamenta-se pela “heurística do erro” e se promove a partir da “fecundidade do desvio” (POMBO, 2004, p. 156). Pressupõe criação de relações, a construção de passagens entre as áreas do saber, as quais são constituídas num plano temporal em que diferem por ordem topológica e não geométrica, ou seja, se numa concepção linear de tempo procede-se de acordo com a geometria métrica calculando distâncias bem definidas e estáveis, numa concepção de tempo amarrotado – oferecida pelo filósofo e matemático Michel Serres – opera-se pela topologia, descobrindo-se aproximações e distanciamentos, que a princípio parecem arbitrários. Por analogia podemos pensar no tempo como se fosse um lenço que, ao passarmos a ferro torna-se uma superfície lisa na qual podemos, geometricamente, determinar as distâncias e proximidades, ao passo que se o amarrotarmos e o colocarmos no bolso, subitamente, os pontos mais afastados podem ficar muito próximos ou até mesmo sobrepostos, e, no caso de rasgarmos esse lenço, dois pontos próximos podem ficar topologicamente muito afastados. No contexto interdisciplinar, amarrotar o lenço é, por assim dizer, a criação de uma bifurcação entre disciplinas distintas. Para Serres (1997) a produção de conhecimento baseia-se nessa criação de passagens entre as áreas do saber. Para explicar o modo como se dão tais passagens, o autor utiliza da metáfora de Hermes, o deus da mitologia grega responsável por realizar a interlocução entre os deuses e os homens; também conhecido como padroeiro dos viajantes e patrono da comunicação, o deus se desloca tendo asas nos pés. O operador de aproximações Hermes assume a figura do mediador que passeia no tempo dobrado estabelecendo conexões. Todavia, seus procedimentos não são objetos de conhecimento, mas de imaginação. Não sabemos como Hermes viaja, é necessário criar a viagem. Sobre isso o autor acrescenta:

É preciso conceber como é que Hermes voa e se desloca [...] como viajam os anjos [...] descrever os espaços que se situam entre coisas já balizadas [...] Entre, uma preposição de importância capital. [...] De resto, acreditamos sempre que o espaço da enciclopédia ou do conhecimento é plano e ordenado: quem nos disse isso? (SERRES, 1997, p. 93-4)

Por esta via de entendimento, temos em cada um dos polos, disciplinas que investigam o mesmo universo mediante linguagens distintas. A ação interdisciplinar propõe-se a realizar a tradução entre os domínios, assumindo não só o risco de realizar o transporte, mas também o risco da falibilidade, pois pode se enganar ao aventurar-se no ‘entre’, ao explorar as possibilidades da bifurcação, ao criar conexões. Mas, assim como a luz de Hermes, mais que claridade, a interdisciplinaridade traz velocidade, eis realmente o método de Hermes: ele exporta e importa, atravessa; inventa e pode enganar-se, por causa da analogia; perigosa e mesmo, mais exatamente, interdita, mas não se conhece outra via de invenção. O efeito de estranheza do mensageiro advém dessa contradição, que o transporte é a melhor e a pior das coisas, a mais clara e a mais negra, a mais louca e mais certa. (SERRES, 1997, p. 95)

Buscando ainda outro modo de explicitar a possibilidade de aproximações entre as áreas do conhecimento, pode-se enfatizar que para Serres o ‘entre’ é o volume interdisciplinar que permanece inexplorado. É pura potencialidade, na qual não se opera senão através da criação. Não sabemos como Hermes viaja, não conhecemos os espaços que percorre, é preciso imaginar o deslocamento e o espaço. De modo análogo ocorre nas realizações interdisciplinares. É preciso criar as conexões, as passagens entre as disciplinas. De um modo geral, a atitude interdisciplinar está vinculada a uma ideia de comunicação – no sentido de passagem, transporte, transferência e tradução. Curiosamente, as ciências utilizam a palavra interface com muita frequência, mas incorrem em simplificações a respeito dos espaços atravessados durante as aproximações. Numa concepção epistemológica 56 • 57

tradicional, esta seria uma relação estável produzida em espaços, homogêneos, geometricamente mensuráveis. Enquanto que, nesta perspectiva, as ligações se dão em meios fluidos e caóticos, que se assemelham com a realidade. Podemos imaginar o método como uma via reta, que rapidamente e em segurança, conduz o viajante ao seu destino; através de uma sequência de encadeamentos estruturada pela relação de ordem, liberta-o dos perigos e das estranhezas do caminho. Eis a via cartesiana em suas exigências elementares: não compreender nada além do que se apresenta de forma clara e distinta à mente; dividir as dificuldades a fim de compreendê-las; obedecer à ordem do mais simples ao mais complexo. A via reta e mais curta chega “ao melhor resultado pelos menores custos”, máxima que evidencia o triunfo da idade clássica através da estratégia direta tornada razão. Desde então, em todos os tempos e circunstâncias, a razão associada à eficácia torna-se norma, a “moral é transferida para o conhecimento” para as vias do racional, onde a perturbação e a flutuação são reduzidas a zero, pois provocam variações neste caminho que a cultura ocidental nos fez entender como necessário. Um método traça um percurso, um caminho, uma via. Aonde vamos, de onde partimos e por onde passamos, questões de teoria ou de prática a serem colocas para conhecer e viver.” (SERRES, 2001, p. 265)

Em sentido cartesiano, entre o ponto de partida e ponto de chegada há o meio por onde passa a “dicotomia que a filosofia platônica canonizou, onde a articulação procura a economia”. Mas a despeito da habilidade do marinheiro na Odisseia, a navegação escapa da via normal e é assim que o conquistador de Tróia “descobre terras desconhecidas, é assim que inventa quando a astúcia fracassa”. Destarte, alerta Serres, o caminho da Odisséia não pode ser considerado um método, mas êxodo. “Êxodo no sentido do caminho que se afasta do caminho, em que a via ganha o exterior da via”. Neste tipo de percurso a estabilidade das extremidades não faz parte do caminho, o que conta é o próprio êxodo, o ‘entre’ que se afasta do meio, do equilíbrio, do metódico (SERRES, 2001, p. 265-88).

Serres lembra-nos de que, das narrativas homéricas, as crianças gregas – entre elas o menino Platão – aprenderam a história, a geografia, a cultura e suas técnicas. Com os mitos aprendiam não uma ciência arcaica, mas o mais refinado saber, que lamentavelmente a pedagogia transformara em esquema enciclopédico que, assim como o método, corre pela via mais curta. A Odisséia “não desenha uma enciclopédia, mas uma escalenopédia”, em alusão o triângulo escaleno, que descreve um caminho “capenga”, “tortuoso”, “complicado”. As rotas de Ulisses são escalenas, inventadas e por isso escapam da redundância dos modelos preconcebidos. Nesse sentido, Serres faz do discurso do êxodo o seu logos a cerca da episteme: Já não conto para nosso divertimento, a história de um velhinho, pior, de um velhinho cego. Sustento um discurso científico, um discurso em ruptura de epistemologia, um discurso científico não epistemológico; ele rompe com dois milênios de método. Ou antes, esse velho diz-que-diz está saturado de um saber diferente e prodigioso. Novo. Não um diz-que-diz e não uma história, mas o discurso do êxodo que procuro e, muito exatamente o divertimento, a via da diversão do muito astucioso Ulisses que guardava em seu saco o conjunto das voltas e reviravolta da nova ciência, a teoria do conhecimento cego, ou da evidência não visível, dessas evidências escondidas por vários séculos de método inútil. Inútil em vista ao novo. (SERRES, 2001, p. 268-9).

Exodo Tendo a errância como método, a oficina Bifurcações na formação de professores buscou explorar este espaço intervalar das disciplinas, que é, em ultima instância um interstício entre as linguagens que as promovem. Assim, propõe aos professores das Escolas Paciana Torres de Santana e Dom José do Despraiado, a experimentação de uma leitura corporal do poema Gool, do poeta Silva Freire. Espaço escolar e acadêmico: salas com ventiladores ou ares condicionados, quadro negro, giz, datashow, papel, caneta, borracha, cadernos, livros, post-it, pen drive, e corpos, corpos vertical e rigidamente postos em carteiras enfileiradas; quiçá uma transgressão: um semicírculo, um palco italiano onde um mestre professor atua revelando, transmitindo as regras 58 • 59

gerais do saber. Nada disso! A primeira bifurcação é no espaço, a segunda é nos corpos. Numa encruzilhada da Praça da Mandioca13 o terreno nu que se abrigava do sol escaldante sob a sombra da tenda branca. Pés descalços, esparramados no chão procuram, desesperadamente, enraizarse para garantir um pouco de estabilidade a corpos que, displicentes e temerosos, experimentam a vertigem de movimentos pendulares. Ruídos da rua, música, o falatório à boca miúda do povo. O professor dançarino lança o convite para o jogo-brinquedo do reconhecimento dos movimentos banais e cotidianos como possibilidades de um corpo que experimenta, imita e aprende. Conscientização corporal dir-se-ia tecnicamente, mas é preferível dizer: condição mesma de produção do conhecimento objetivo e intersubjetivo. Não se trata de tomar o sensualismo como meio para a elaboração intelectual, mas da afirmação de que o próprio intelecto é corpo. Da clausura das salas aos fluxos da rua, dos sistemas fechados aos sistemas abertos, os corpos oscilam em um ensaio coletivo de ler e esrever um poema com o corpo. Um quase-objeto flutua entre eles extrapolando as fronteiras móveis do possível. O território das coisas cognoscíveis é ampliado quando o passe da bola imaginária cria relações entre “o de história” e “o de biologia”. Na corrida, no chute, no compasso da performance, os conteúdos fósseis e rijos dão lugar à flexibilidade dos músculos que se esticam para apreender o volátil. Os novos corpos, como avatares, experimentam a plasticidade da inteligência. Arriscam-se na invenção de reler um poema com a mão, com o pé, cabeceando-o. Em posição fetal, a defesa. Gritos de gOOl. Braços e peitos abertos. Abraços. Comemoração. Processo mimético, repetição, coreografia. Dança para dançar poesia. Na roda as mãos dadas, mão soltas, pé direito batendo no chão, marcação, quase transe. “... e sete e oito... de novo”14. É preciso associar coordenação e memória para encadear os movimentos. Dúvidas. Recomeços, muitos! Praça tradicional do centro histórico de Cuiabá, onde se encontra o terreno da casa em que cresceu o poeta Silva Freire, local no qual será construída a Casa de Cultura Silva Freire. 14 No jogo de linguagem das aulas de dança esta expressão indica o comando do professor para que o exercício seja iniciado ou retomado. 13

Dançarinos sempre erram e repetem. Da falha na repetição, a fala que tudo resume: “Do erro veio a ideia.”15

Entre Preposição essencial, cuja função é ligar. Mas ligar o quê? Na língua portuguesa liga substantivos entre si, mas também estes a verbos, adjetivos, advérbios e assim por diante. Neste trabalho denota os espaços interdisciplinares. É pura potencialidade, na qual não se opera senão através da criação. Mas, como inventar a viagem de Hermes? Como é que se opera uma bifurcação na formação de professores? Ainda, como se faz isso aproximando poesia, dança de expressão contemporânea, filosofia e uma dissertação de mestrado? Parece-me que pela via que chega ao exterior da via. Ao propor a produção de uma leitura corporal do poema, num território não acadêmico e não escolar, isto é, afastado da verticalidade, da rigidez e das disciplinas, a oficina Bifurcações na formação de professores buscou explorar a fluidez do pensamento e do corpo, a elaboração de um discurso científico e corte de epistemologia, fundado na criação de estabilidades singulares em meio aos fluxos gerais. Consistiu em uma tentativa de criar conexões, passagens ‘entre’ as disciplinas, mas acima de tudo, foi um esforço de romper com o modelo canônico dos sistemas fechados das escolas e Universidades, onde, conjuntamente, professores e alunos produzem violentamente o desaparecimento do pensamento corporal ao tomarem os corpos como condutores de cinco canais periféricos. Por que esse horror à carne? A Oficina Bifurcações na formação de professores foi um exercício interdisciplinar, uma tentativa de vertigem. Partiu do pressuposto de que o conhecimento é aumentado na medida em que ensinamos e aprendemos, de que é acima de tudo experimentação muscular e amorosa. Apenas um sujeito epistêmico com pensamento ósseo, cardiovascular, passional, é capaz de ler um poema com o corpo.

Frase dita pela professora ao errar a sequencia de passos criados durante a oficina. A partir do erro da professora o coreografo cria um novo passo e incorpora-o à coreografia.

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Referências LUCRÉCIO. Da natureza. In: Antologia de textos – Epicuro. Da natureza – Tito Lucécio Caro. Da república – Marco Túlio Tito. Consolação a minha mãe Hélvia; Da tranqüilidade da alma; Medéia; Apocoloquintose do divino Caludio – Lucio Aneu Sêneca. Meditações- Marco Aurélio. (Tradução Agostinho Silva), São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção os Pensadores) POMBO, O. A matemática e o trabalho de ‘dar a ver’. In: GUIMARÃES, Henrique (Org.), Dez anos de PROMAT. Intervenções, Lisboa: A.P.M., 1996. _____. Epistemologia e interdisciplinaridade. In: Seminário Internacional Interdisciplinaridade, Humanismo, Universidade. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003. Disponível em: . _____. Interdisciplinaridade e integração de saberes. In: Revista, v. 1, n. 1, março de 2005, p. 3-15. Disponível em: http://www.ibict.br/liinc. _____. Interdisciplinaridade: ambições e limites. Lisboa: Relógio D’água, 2004. _____.; GUIMARAES, H.; LEVY, T. Interdisciplinaridade: reflexão e experiência. Lisboa: Ed. Textos, 1993. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n° 9.394/96, Resolução CNE/CEB 2/2012. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de janeiro de 2012, Seção 1, p. 20. RAMOS, I. N. A. Silva Freire: Um garimpeiro de palavras. In: Revista Crioula, nº 02, nov. 2007. Disponível em: www.revistas.usp.br/crioula/article/view/53582. Acesso em: 06/08/2013. SERRES, M. Hermes: uma filosofia das ciências. (Tradução Andréa Daher. Org. Roberto Machado e Sophie Poirot-Delpech). Rio de Janeiro: Graal, 1990.  _____. As origens da geometria. (Tradução Ana Simões e Maria da Graça Pinhão). Lisboa: Terramar, 1997. _____. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo – conversas com Latour. (Tradução Serafim Ferreira e João Vaz). Lisboa: Instituto Piaget, 1997. _____. O nascimento da física no texto de Lucrécio - Correntes e turbulências. (Tradução Péricles Trevisan). São Paulo: Editora UNESP; São Carlos: EdUFSCAR, 2003. _____. O terceiro instruído. (Tradução Serafim Ferreira). Lisboa: Instituto Piaget, 1993. _____. Os cinco sentidos – filosofia dos corpos misturados. (Tradução Eloá Jacobina). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. _____. Variações sobre o corpo. (Tradução Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. Setembro Freire gOOl 2013: Catálogo./ Casa de Cultura Silva Freire. Cuiabá: Entrelinhas, 2013. SILVA, R. R.; LIMA, E. P. Ultraje Vanguardista: Wladimir Dias Pino e o Poema-Processo. In: Revista Virtual de Letras, v.04, nº 01, jan,/jul, 2012. Disponível em: www.revlet.com.br/ artigo/140, acesso em: 06/08/2013

Deleuze & Guattari: uma ética dos devires Altair de Souza Carneiro Ester Maria Dreher Heuser

Resumo A dissertação ocupou-se da ética dos devires presente nas obras de Gilles Deleuze e Félix Guattari, a qual foi tematizada e problematizada com professores e estudantes participantes do Projeto IF-Sophia, promovido pelo Projeto Escrileituras, pelo Instituto Federal do Paraná – Campus Umuarama e pelo Núcleo Regional de Educação de Umuarama, no qual o seu autor é coordenador das áreas de Filosofia e Sociologia. Organizada em três capítulos, primeiro a dissertação apresenta a Filosofia Prática produzida pelos filósofos e enfatiza os pares conceituais nomadismo e sedentarismo, desterritorialização e território, molecular e molar; em seguida recorre aos procedimentos artísticos de Carmelo Bene e de Franz Kafka, os quais funcionam como ferramentas para a criação do conceito de “menor”, imprescindível para a invenção do conceito de devir, uma vez que todo devir é menor; por fim, apresenta uma tipologia dos devires que afirma a imanência da existência e defende que os tipos escolhidos possibilitam a efetivação de uma ética dos devires, quais sejam: devir-mulher, devir-criança, devir-animal, devir-revolucionário e devir-imperceptível.

Palavras-chave Ética. Devir. Menor. Deleuze. Guattari.

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Uma entrada pelo meio, ou, o que pode uma escrileitura?

Todos estes verbos indicam ação e operação em movimentos de vir a ser que podem produzir outros modos de existência. Modos provocados pela experiência de um mestrado que nos forçou a tornarmo-nos escrileitores. Como afirma Corazza, para o escrileitor escrever é dar passagem à vibração dos sentidos e daquilo que é pensado, do modo de viver e de olhar, de experimentar o mundo, é “ter olhos na ponta dos dedos, para tocar a vida com a vida” (2011a, p. 25). Neste neologismo “escrileitura”, criado por Corazza (2008), que traz em si o inseparável duplo escrita-leitura, percebemos uma força que possibilita reinvenções de si e de outros modos de se relacionar com o que foi produzido pelo pensamento em meio à vida e por nós herdado. Neologismo que nos possibilitou pensar a multiplicidade de perspectivas diferentes entre si, pois a potência que ele carrega está no próprio processo de sua infindável constituição, um construir-se no meio, em movimentos contínuos de pensamento conceitual, afectivo e perceptivo. Movimentos que passaram a ser capitais para nossa relação com a leitura e a escrita filosóficas, que rompeu com a centralidade do verdadeiro e do falso, para dar lugar ao notável, ao importante e ao interessante. Para usar uma expressão de alta importância para Deleuze e para o Projeto Escrileituras, a partir dessa experiência, texto, leitor e escritor tornamse “simulacros”, uma vez que estão sempre diferindo de si e do modelo. Embora suscetível a regimes de ações estáveis – assim como acontece em um mestrado em Filosofia – o Escrileituras toma qualquer obra como produção

sempre aberta, distante do equilíbrio e do apaziguamento e, ainda quando estabiliza suas ações, rizomatiza-se, a fim de ingressar em novos regimes de instabilidade (CORAZZA, 2011a). Para nós, o Escrileituras teve e tem a potência de provocar a produção de devires a cada um que dele participa, de (re)inventar outras formas de estar no mundo, em meio à vida. Experimentações “escrileiturais”, podese dizer, atravessaram nossa tentativa de pôr em evidência uma ética dos devires presente na filosofia de Deleuze e Guattari. Evidenciá-la foi também um modo de “escrileiturar-se”, de ensaiar um estilo próprio de escrita, ainda que bastante próximo das formas dissertativas acadêmicas, de fazer da escrita um processo de movimento variante, de cortes, de fluxos, de rupturas e de devir. Compreendemos que nossa dissertação comunga com o Projeto Escrileituras justamente porque a ética proposta por Deleuze e Guattari é uma ética da vida, da imanência e da reinvenção de vidas. Pensar a variação no ato instituído do ler-escrever é possibilitar percorrer caminhos desconhecidos e traçar outros modos de existência nos interstícios da educação formal, das relações sociais e pedagógicas enrijecidas pelas políticas molares e legitimadas. Para nós, passar pelas experimentações de leitura-escrita da filosofia deleuze-guattariana, bem como pelos textos teatrais e literários que esta nos lançou, a fim de produzir a referida dissertação, implicou na vivência de experiências de estranhamento e problematização daquilo que até então consistia para nós a própria produção filosófica; bem como possibilitou-nos a produção de outras maneiras de ver, ler, escrever, ensinar, aprender filosofia e a agir no mundo, daí podermos afirmar que outra perspectiva frente à existência se fez. Isto, evidentemente, não poderia ter acontecido isoladamente, sem vizinhanças, sem matilhas, sem agenciamentos, e sem encontros, daí a relevância do Projeto Escrileituras e do trabalho que realizamos junto aos professores do Núcleo Regional de Educação de Umuarama/PR e aos professores e estudantes que participaram do IF-Sophia em parceria com o Instituto Federal Tecnológico do Paraná – Campus de Umuarama. Em meio ao Escrileituras passamos a perceber que os escritos de um filósofo são atravessados por seu modo de vida, impulsionados pelos problemas de seu tempo, por aquilo que ele seleciona como o mais impor64 • 65

tante para provocar o seu pensamento e chegar a pensar. Especialmente, percebemos que para escrever é preciso criar um ethos constituído de hábitos que não espantem os devires (DELEUZE, 2001a; DELEUZE; PARNET, 1998). Por essa razão, consideramos importante apresentarmos uma versão da história de duas vidas que se encontraram e que expressa o ethos comum criado por Deleuze e Guattari o qual, em boa medida, pareceu-nos ter influenciado a produção de uma ética dos devires vivenciada, também, por meio da escrileitura feita a quatro mãos.

Um & Outro. Sr. D. Sr. G. D&G.

Um. Sr. D.: professor na Universidade de Lyon, preparava e ensaiava suas aulas intensamente até o ponto em que estava impregnado do assunto do qual, com sua voz singular, falaria aos estudantes. Em início de 69, quando a antiga tuberculose refratária aos antibióticos voltava, Sr. D. defendeu a tese de doutorado Diferença e repetição. Isto depois de escrever muitos livros, alguns de história da filosofia – Hume, Nietzsche, Bergson, Kant, Spinoza – outros de literatura – Proust, Masoch –, quando já era mais conhecido no meio filosófico do que três quartos da banca, a qual reconheceu a “qualidade excepcional do trabalho realizado”. Sr. D. foi um dos raros professores daquela universidade a declarar publicamente seu apoio à contestação estudantil iniciada em 68, bem como a participar das assembleias gerais e das manifestações dos estudantes lyoneses – o único professor do departamento de filosofia a presenciar o movimento. Depois da defesa, Sr. D. ficou afastado por um ano dos trabalhos de docência, em convalescença, pois fora submetido a uma delicada cirurgia em que teve um dos pulmões retirados – o que o levou a sofrer de insuficiência respiratória crônica até a morte. Debilidade vital e afastamento obrigatório da efervescência intelectual e política pós maio de 68. Momento em que esteve à beira de um outro precipício, o alcoolismo: “Oferece-se o corpo

em sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não se poderia suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar, para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de uma ajuda: álcool” (DELEUZE, 2001a [P de Professor; B de Beber]; 1992; DOSSE, 2010; GIL, 2002).

& Outro. Sr. G.: militante revolucionário desde seus 15 anos, quando participou da criação da rede de Albergues da Juventude, militou no Partido Comunista Francês (PCF) e logo passou a criar redes de infiltração no interior do partido, a fim de minar as formas de aparelhamento burocrático. Ao lado de uma incrível vocação para formar bandos, muito cedo Sr. G. foi tomado pela necessidade de escrever, adotando a prática do diário no qual registrou os efeitos que Sartre causava. No diário, registrou que O Ser e o nada determinou um motivo existencial para sua vida: a busca desenfreada da felicidade imediata na intensidade do momento. Em suas palavras “é preciso dar ao mundo a imagem da felicidade, por mais simples que seja esse rosto, mais desprovido de qualquer esperança” (apud DOSSE, 2010, p. 34). Felicidade que Sr. G. encontrou no coletivo por meio da multiplicação de grupos não sectários de estudantes, operários, mulheres, loucos. No início dos anos 50, com seus 20 e poucos anos, Sr. G. era visto como um prestigiado especialista em teses lacanianas (não perdia um seminário de Lacan e, por anos, semanalmente, deitou em seu divã), já havia abandonado o curso de farmácia, entrado na filosofia da Sorbonne e tinha uma prática junto ao mundo da loucura com suas atividades na clínica de La Borde16. A Clínica de La Borde, instituição privada, localizada a 200 quilômetros ao sul de Paris e distante 5 quilômetros da cidade mais próxima, foi instalada em 1953 num castelo circundado por um bosque. Os cem pacientes (pensionnaires) que a clínica atendia residiam no próprio castelo. Como salienta Jean Oury, diretor clínico da instituição e iniciador dos trabalhos lá implantados, o esquizofrênico não está em parte alguma: “Todo o nosso trabalho consiste em fazer com que ele possa estar um pouco, em algum lugar”. O contato de Sr. G. com a psicanálise se deu em 1953, quando começava a trabalhar na clínica La Borde e passou a assistir aos seminários bimestrais de Lacan. Durante o período 1962 a 1969, Sr. G. foi analisado por Lacan e ingressou como membro analista da escola de Lacan, chamada Escola Freudiana de Paris. É importante destacar que, à época em que Sr. G. passou a estudar a psicanálise esta ainda não era bem recebida na França. Foi apenas

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Ali, a revolução e a reflexão deveriam ser permanentes; a loucura não era percebida como uma mera doença. Na clínica ela estava ligada à aventura intelectual. Considerava-se, por princípio, que há verdade no discurso do louco e que o próprio delírio é produtivo. Para Sr. G., tido como a “alma da clínica”, os caminhos da renovação da militância política passavam por La Borde, onde ele convocava seu bando a se investir nas atividades coletivas. Já, em 55, em um devir-filósofo, Sr. G. criou a noção de máquina que viria a ser um dos temas favoritos da dupla D&G. Junto às atividades na clínica, Sr. G. mantinha os movimentos de militância política de esquerda e, em 65, viveu sua primeira experiência de escrita a dois, com François Fourquet, um dissidente do PCF: escreveram as 9 teses da Oposição de Esquerda. Ali, Sr. G. já era conhecido por escrever de modo ilegível e falar cristalinamente. Segundo o companheiro, ele “escreve mal, em um jargão horroroso, ilegível [...] Já quando fala, é cristalino” (DOSSE, 2010, p. 78). Sr. G., com seu ativismo desenfreado, fazia grupos e os desfazia para constituir outros. Seus amigos buscavam um meio de acalmá-lo, a fim de que fosse capaz de realizar aquilo de que tinha vontade, mas não fazia: escrever.

& Um & Outro: duas galáxias distintas. Um amigo em comum: o Dr. Jean-Pierre Muyard, que trabalhava na La Borde e não suportava mais a hiperatividade do Sr. G. – a qual nem mesmo a Ritalina segurava. Apresentá a partir dos anos 60, por intermédio das interpretações lacanianas, em especial a aproximação da psicanálise freudiana da corrente estruturalista de Saussure e da antropologia estruturalista, que a psicanálise venceu a hostilidade entre os intelectuais franceses. La Borde era um hospital aberto, formado pelo castelo e dois prédios que serviam de enfermaria, além de inúmeros edifícios pequenos, destinados às atividades dos pacientes. Todas essas instalações estavam situadas numa paisagem com bosques e um lago. O funcionamento da clínica era de responsabilidade coletiva dos pacientes e dos que lá trabalhavam: médicos, psicanalistas, monitores, estagiários e funcionários. As tarefas que mantinham o hospital em operação, como limpeza, cozinha, telefone, recepção, transportes e outras, eram divididas entre todas as pessoas. Isto porque a clínica estava organizada em 3 princípios evidentemente marxistas: 1) centralismo democrático que assegura a preeminência do grupo gestor; 2) precariedade dos estatutos: toda pessoa deve ser capaz de passar do trabalho intelectual ao trabalho manual e vice versa (papéis e estereótipos são rompidos, os doentes são considerados passageiros e o corpo médico é o elemento estável, enraizado e crônico; médicos e enfermeiros trabalham sem jaleco e não se distinguem dos doentes); 3) organização comunitária com a coletivização das responsabilidades, das tarefas e dos salários (orientado pelo princípio de polivalência das tarefas, Sr. G. gostava de deslocar as pessoas, de pôr em ato o que, posteriormente, D&G proporiam: “embaralhar os códigos” – organizava a grade de tarefas para que médicos trabalhassem na área administrativa e os psicólogos ele punha a lavar louças (GOLBERG, 1991; DOSSE, 2010).

lo ao Sr. D. foi o estratagema encontrado, a fim de que ele canalizasse sua força para a escrita. Foi justamente ela, a escrita, o motor dessa amizade que durou até 1992, quando se deu o desaparecimento de Sr. G.. Durante todo esse tempo, trataram-se mutuamente de senhor, mantendo uma curiosa distância manifesta – o que justifica, para além de nossa escolha de tom kafkiano, apresentarmos os autores da maneira que o fizemos. Desde os primeiros encontros, pessoais ou por cartas, “uma operação alquímica funcionou” (DOSSE, 2010, p. 15) e um amor nasceu. Nas palavras do Sr. D. essa operação é assim manifesta: “a maneira como nós nos entendemos, completamos, despersonalizamos um no outro, singularizamo-nos um através do outro, em suma, nos amamos (DELEUZE, 1992, p. 16); na perspectiva do Sr. G., que em uma missiva da primavera de 69 também testemunhou a amizade nascente: “Caro amigo, nem tenho palavras para lhe dizer o quanto fiquei tocado com a atenção que o senhor teve a gentileza de dedicar aos diversos artigos que lhe enviei (...) Encontrá-lo, quando isso for possível para o senhor, constitui para mim um acontecimento já presente retroativamente a partir de várias origens” (DOSSE, 2010, p. 15). Por fim, na narrativa do amigo em comum, Dr. Muyard, a respeito de um dos encontros entre aqueles Srs., encontro que ele chama de “cena primitiva”: “Félix e Deleuze criam, intensamente. Deleuze toma notas, ajusta, critica, remete à história da filosofia as produções de Félix. Em suma, as coisas funcionam” (DOSSE, 2010, p. 15). O que se passava nesta “cena primitiva” testemunhada por Muyard era o debate do conteúdo daquilo que, três anos depois, em 1972, viria a ser a obra O Anti-Édipo, escrita a quatro mãos, principalmente por via epistolar (DELEUZE, 1992, p. 24). Obra que produziu um agenciamento entre os Srs. D. e G., doravante, nesta escritura, D&G. *** D&G criaram um com o outro um ethos, um modo de vida, que passava, necessariamente, pela escrita. A respeito disso, Guattari afirmou que o encontro com Deleuze foi a maneira de juntar os quatro modos de vida “um pouco dilacerados” que ele vivia na agitação e pluralidade de lugares e discursos; quais sejam, a Via Comunista e depois a oposição de esquerda, a clínica La Borde, a formação lacaniana e sua paixão pelos esquizos 68 • 69

(DOSSE, 2010, p. 25). Avesso às discussões em grupo, Deleuze submeteu Guattari à ascese solitária, a fim de que seus problemas de escrita fossem superados. Diariamente, Guattari enviava a Deleuze suas ideias, as quais eram polidas, arranjadas e aprimoradas, tendo em vista a versão final. Deleuze costumava dizer que “Félix era o descobridor de diamantes e que ele era o trabalhador” (apud DOSSE, 2010, p. 17). Por seu lado, na criação deste ethos comum, desta arte de viver a dois pela escrita, Deleuze afirma que “viveu um segundo período que não teria nunca começado e conseguido sem Félix” (apud ESCOBAR, 1991, p. 9); foi quando pôde realizar aquilo que anunciara no prólogo de Diferença e repetição (1988, p. 18-19): Aproxima-se o tempo em que já não será possível escrever um livro de Filosofia como há muito tempo se faz: “Ah! O velho estilo...” A pesquisa de novos meios de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje, relacionada à renovação de outras artes, como, por exemplo, o teatro ou o cinema. A este respeito, podemos, desde já, levantar a questão da utilização da História da Filosofia. Parece-nos que a História da Filosofia deve desempenhar um papel bastante análogo ao da colagem numa pintura. A História da Filosofia é a reprodução da própria Filosofia. Seria preciso que a resenha em História da Filosofia atuasse como um verdadeiro duplo e que comportasse a modificação máxima própria do duplo.

O Anti-Édipo é, pois, este duplo anunciado, produzido a partir de uma prática de escrita em dupla, entre D&G, na qual um impelia o outro a uma fronteira. Foi a primeira experimentação de uma nova estilística que seria ampliada posteriormente em outras obras. Em tal experimentação, percebe-se o funcionamento de uma máquina de escrita produtora de multiplicidade movida pela força do E: O E não é nem um nem o outro, é sempre entre os dois, é a fronteira; sempre há uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, mas que não se vê, porque ela é o menos perceptível. E, no entanto, é sobre essa linha de fuga que as coisas se passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam. ‘As pessoas fortes não são as que ocupam um campo ou outro, é a fronteira que é potente’ (DELEUZE, 1992, p. 61).

Defendemos que os procedimentos para a criação de um estilo de vida contrário a todas as formas de fascismo, como afirmou Foucault (1977), e o modo de pensamento expressos na escrita produzida entre-dois criaram uma “ética dos devires” na medida em que abriram “o humano a devires não-humanos que implicariam novos modos de individuação” (PELLEJERO, 2010, p. 139). Tal ética, contudo, não se restringe ao âmbito do privado, à moralidade subjetiva, mas, pelo contrário, mantém-se ao lado da esfera do político. Compreendemos que pensar a ética e, em necessária relação, a política, com D&G, não é possível senão vinculada à literatura, a uma determinada leitura que ambos fazem dela.

Filosofia prática Tratar de uma ética dos devires pressupõe abordar uma Filosofia prática que implica destacar o privilégio que é dado ao movimento ao invés do repouso, à variação contínua em detrimento da forma determinada e da estrutura, aos vazamentos que sempre estão em vias de dissolver a organização e a estabilidade das estruturas enrijecidas, ao indefinido sobre o já acabado; primazia do informal e ilimitado sobre o equilíbrio das formas e a medida dos limites, o nomadismo ao sedentarismo, a desterritorialização ao território, as molecularidades às molaridades. Tal privilégio se justifica porque, as organizações, as estruturas e as constantes de qualquer tipo, sejam elas políticas e sociais, cósmicas e físicas, são meras ilusões, névoas que nos impedem de perceber que a força da criação, em todas as esferas, é exclusivamente o movimento. Não que aquelas ilusões não tenham existência, a ilusão está em acreditarmos que elas são primeiras, ou seja, em crermos que primeiro há a ordem, a essência, a molaridade, o território, para só depois delas decorrer a desordem, o devir, a molecularidade, a desterritorialização. A partir desta compreensão, também a teoria da ação política e ética, assim pensada, não escapa da primazia das intensidades móveis, moleculares e não codificadas, ainda que de tais ações resultem na produção de molaridades e códigos. Na Filosofia prática de D&G importa que um pensamento ético, que é sempre avaliativo e criativo, seja promovido a fim de avaliar os modos de vida que são os nossos (também aqueles modos de ler-escrever), bem

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como para abrir possibilidades, caminhos, meios e modos de vida, de leitura e de escrita até então não experimentados.

Procedimentos artísticos para a produção de novas potencialidades: o devir-menor em ato No segundo capítulo mostramos que D&G recorreram ao teatro de Carmelo Bene e à literatura de Franz Kafka a fim de que funcionassem como ferramentas que possibilitassem a criação do conceito de menor, o qual é imprescindível para a invenção do conceito de devir, uma vez que qualquer devir é sempre menor (DELEUZE; GUATTARI, 1977; CORAZZA, 2011). No teatro de Carmelo Bene, Deleuze percebe a experimentação do devirmenor através da transformação/variação de elementos maiores do teatro tradicional, representantes do poder, em elementos menores que dão a ver potências que até então passavam despercebidas numa perspectiva maior. Nesta invenção, Bene dá visibilidade a personagens de menor expressão nas peças teatrais clássicas, como mulheres e crianças. Deleuze dá a ver que a obra de Bene é marcada pela variação contínua dos seus personagens tanto na língua quanto nos gestos: “ele detesta qualquer princípio de constância ou de eternidade, de permanência do texto” (DELEUZE, 2010, p. 31). O minoritário se efetiva como elemento de variação que substitui a representação dos conflitos, ele se desvia do modelo, do padrão para criar novos modos de sentir e de pensar. A função do teatro em Bene é a de construir figuras que efetivem uma consciência minoritária, a qual remete à potência do devir, ao processo de escapar de toda forma enrijecida de poder e de dominação. Já em Kafka: por uma literatura menor, D&G trazem à tona a mais forte expressão do tema “menor”, o qual é construído a partir do conceito de literatura menor, obra literária de uma minoria, de um povo que falta, de uma raça inferior, de um povo bastardo. Este é o caso da comunidade Checa judaica a que Kafka pertencia. Uma minoria que se constituiu entre o povo superior, aquele do poder, de uma língua e literatura maiores. Em Praga, no início do Século XX, esta comunidade era obrigada a escrever na língua alemã e dentro de uma tradição literária construída sobre os grandes mitos do cristianismo. D&G “situam-se resolutamente no campo

da experimentação e se erguem contra a literatura que permanece nos limites estreitos dos cânones consagrados pela tradição, opondo a ela a força criativa de uma literatura dita menor” (DOSSE, 2010, p. 203). Para eles, Kafka faz da literatura um caso coletivo e menor que funciona como uma comunidade para a sua própria língua estrangeira. Uma minoria e uma maioria, no entanto, não se medem pela quantidade, pelo número ou por qualquer outro método de separação, mensuração ou classificação. O que define uma maioria é a força normalizadora de um modelo, como por exemplo: homem, europeu, macho, adulto, inteligente, hetero, urbano, branco (DELEUZE, 1992). Por sua vez, uma minoria não tem padrão, não tem modelo, está em construção contínua, em processo, ela designa um estado no qual qualquer um pode estar; implica em processos que se constroem no “entre”, na singularidade de cada um, sejam negros, mulheres, homens, índios, animais. Podemos compreender minoria como “um devir no qual nos engajamos”, como “a potência de um devir, enquanto maioria designa o poder ou a impotência de um estado, de uma situação” (DELEUZE, 2010, p. 63-64). Deste modo, a noção de minoria refere-se a traços de singularidades que se articulam num processo criador, rompendo com as estratificações predominantes. O minoritário está em movimento constante de potencialização frente a uma segmentaridade dura, molar que é sempre segunda; menor aqui é a própria linha de fuga que é primeira em qualquer processo. D&G apontam ainda a dimensão clínica da escrita de Kafka, eles afirmarão que o escritor, na medida em que apresenta variados modos de existência, não só humanos, faz da literatura um problema de saúde, um “delírio saudável”. Para D&G, a escrita kafkiana é inseparável do devir e tem mais a ver com o acaso e o caos do que com a necessidade e a ordem. A partir da obra Kafka: por uma literatura menor, o devir em D&G ganha uma conotação com forte relevância ética e política e seu movimento é revolucionário, porque se torna abertura do ser para modalidades inéditas de existência, para além das formas jurídicas do pensamento.

Tipologia dos devires e escrileituras Por fim, no terceiro capítulo, apresentamos uma tipologia dos devires concebida como a exposição de tipos criativos de modos singulares de

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viver, de pensar e de mover-se que transitam nas obras de D&G. Esta tipologia dos devires, que não se quis exaustiva, tem o sentido ético daquilo que Deleuze define em Espinosa: filosofia prática, a saber: a Ética é “uma tipologia dos modos de existência imanentes, substitui a Moral, que relaciona qualquer existência a valores transcendentes. A moral é o julgamento de Deus, o sistema de Julgamento. Mas a Ética inverte o sistema do julgamento” (2002, p. 29 [grifos do autor]). A tipologia dos desvires foi produzida sem pretensão de universalidade porque não se trata de uma representação para todos, nem com pretensão essencialista, pois não afirma que estes tipos sejam uma essência para todos, menos ainda que sejam os únicos componentes de uma tipologia dos devires. Ao contrário, por não aspirar universalidade nem essencialidade, os tipos apresentados são regionais, perspectivistas e não totalizantes, logo, não são os mesmos para todos. Os tipos escolhidos tiveram como critério a maior insistência na obra dos filósofos, são eles que, em nossa perspectiva, possibilitam a efetivação de uma ética dos devires a qual nos propusemos evidenciar nesta pesquisa, quais sejam: devir-mulher, devir-criança, devir-animal, devir-revolucionário e devir-imperceptível. Tratar dessa tipologia implicou em pôr em operação a própria multiplicidade e não se referir a reduções formatadas de modos de viver. Ainda que o devir não se oponha a uma forma, também não se trata de um estado transitório entre uma condição e outra, uma vez que, por meio dele, não se tem como telos atingir uma forma definitiva. Podemos afirmar que os referidos tipos são tendências de um ser que desliza molecularmente, constituindo-se com diferentes alianças afetivas, rizomáticas, que inventam formas a partir de partículas que escapam das políticas identitária e dos moldes pré-postos, agenciando-se nas margens, constituindo multiplicidades, desenhando fronteiras entre zonas de vizinhança. Devir, no sentido que tentamos abordar na dissertação, nunca se conclui ou se concretiza em uma forma de ser, é, ao invés disso, um conceito que pode ser definido como movimento em si mesmo, como processo e passagem que atravessa de um estado a outro, que se opõe a contextos fixos e majoritários. Mesmo os tipos de devires não são subjetividades fixas, mas maneiras singulares de existência, que pensam e movem-se na tentativa de produzir outros modos de vida.

O Projeto Escrileituras está orientado pela lógica do devir (CORAZZA, 2011): não detém forma feita, nem pressupõe modos fixos e determinados de viver, de ler e de escrever; habita as fronteiras entre a filosofia, a arte e as ciências e se faz ao caminhar. O Escrileituras está aberto a experimentações diversas, cada um dos atores que com ele se envolve é potencializado e afetado por partículas advindas dos diferentes reinos, podendo, assim, devir por meio da escrita e da leitura. Isto porque, como afirma Corazza, por meio de uma “arte menor e de um planejamento da desnaturação” as Oficinas de Escrileituras “constituem um campo artistador de variações múltiplas, que produz ondas e espirais; compõe linhas de vida e devires reais; promove fugas ativas e desterritorializações afirmativas” (2011, p. 41). Escrever, nessas condições, implica abrir-se para a variação contínua da força de existir de alguém, e, portanto, ao devir, o que implica abandonar suas seguranças, seus preconceitos e desconstruir verdades até então tidas como absolutas, é dar lugar a agenciamentos transversais que ultrapassam todo e qualquer mundo já vivido.

Referências CORAZZA, Sandra Mara. Notas. In.: HEUSER, Ester Maria Dreher. Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: UFMT, 2011. (Coleção Escrileituras) _____. Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto Alegre: Sulina, 2008. _____. Projeto de Pesquisa: Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. Plano de Trabalho. Observatório da Educação. Edital 038/2010. Fomento a estudos e pesquisa em Educação – CAPES/INEP. Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, Setembro de 2010b. DELEUZE, Gilles. Conversações. (Tradução Peter Pál Pelbart). São Paulo: Editora 34, 1992. _____. Spinoza: philosophie pratique. Ed. br., Espinosa: Filosofia Prática. (Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins). São Paulo: Escuta, 2002. _____. O abecedário de Gilles de Deleuze. Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da Educação, “TV Escola”, 2001a. _____. Sobre o Teatro: um manifesto de menos; O Esgotado. (Tradução Fátima Saadi, Ovídio de Abreu, Roberto Machado). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Escuta, 1998.

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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976. _____. Kafka: por uma literatura menor. (Tradução Júlio Castañon Guimarães). Rio de Janeiro: Imago, 1977. DOSSE, François. Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada. Porto Alegre: Artmed, 2010. ESCOBAR, Carlos Enrique de. Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991. FOUCAULT, Michel. O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. In: ESCOBAR, Carlos Henrique. Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991. _____. (1977). Introdução à vida não fascista. In: DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking Press. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Disponível em: http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/ foucault/vidanaofascista.pdf. Acesso em: 15 abr. 2011. GIL, José. Ele foi capaz de introduzir no movimento dos conceitos o movimento da vida: entrevista com José Gil. In.: Educação & Realidade – v. 27, n. 2 (jul/dez). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002, p. 205-224. PELLEJERO, Eduardo. Mil cenários: Deleuze e a redefinição da filosofia. (Tradução Susana Guerra e Revisão de Marisa Mourinha). 2010. (Texto digitado).

pedagogia & escrileituras

A pedagogia das máscaras: vozes e sentidos Deniz Alcione Nicolay Sandra Mara Corazza

Resumo O presente texto descreve o percurso de pesquisa da tese de doutorado em educação intitulada: Pedagogia das máscaras: aprender com o trágico. Nesse sentido, apresenta a composição de elementos teórico-conceituais que matizaram a escritura e a problemática inicial dessa tese. Entre tais elementos, está o pensamento filosófico do primeiro Nietzsche, período da vida em que o filósofo se dedica ao estudo do sentimento trágico Grego. Por meio desse pensamento, experimenta dispositivos narrativos a fim de positivar a escola básica e seus problemas. Assim, procura aliviar a tensão cotidiana, afirmar o valor da relação docente e, acima de tudo, cativar a criação estética no seio das ciências da educação.

Palavras-chave Estética. Tragédia Grega. Pathos. Vontade. Dionísio.

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Trata-se de falar, pensar, ler e escrever em direção ao inusitado da palavra. Ora, partilhar do inusitado da palavra significa afastar-se do discurso comum, sobretudo daquele que, em específico, trata da formação de professores. Nesse sentido, é de conhecimento que, invariavelmente, os programas de formação reproduzem retóricas salvacionistas, palavras de ordem, dinâmicas improváveis sobre o ensino e sua arte. Então, trata-se de refutar as pedagogias da consciência, mesmo que elas sejam herdeiras das antigas concepções judaico-cristãs e se espalhem por séculos de história da educação. Simplesmente porque não se trata de confessar algo a alguém, mas potencializar a palavra vida no caminho da formação. É fato que, antes de tudo, procura-se evitar os percalços de uma crítica improdutiva que se reduza a apontar os acusados pela queda da Bastilha. Além disso, falar, ler e escrever sobre a pedagogia não devem significar que seu autor está absolutamente fechado para as transformações das ideias clássicas. Ao contrário, essas transformações exigem certo grau de atualização de acordo com a máscara usada num momento específico, mas apenas nesse momento, pois, em outras ocasiões, outras máscaras tendem a assumir o formato do rosto. Então, há de se entrar em colóquio com um Platão em seu tempo, desfilando pelos bares da Cidade Baixa; ou encontrar-se com um Rousseau e sua maravilhosa peruca de cachos, transitando pelas bancas do Mercado Público. Impossível esquecer-se de Nietzsche e seus grandes bigodes, olhando silenciosamente as árvores da Redenção. Eles estão aí. Por todos os lados, ouvimos vozes que reivindicam seu quinhão de expressão. Elas exigem espaço no texto-tese que recolhe cacos de solidões que, por ora, são densamente povoadas. Assim, o inusitado da palavra partilha da escuta que ouve e interpreta a voz oracular. Essa voz molda, dá tom e sentido às palavras que vagam desconexas pelo céu da primavera. Ora, no céu da primavera está a grande inspiração desse texto-tese, que versa sobre a estética trágica da pedagogia. E, se invoca a era das tragédias gregas, não é apenas para jogar trocadilhos com os versos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, mas para embriagar-se do fundo poético que brota de tais versos e, assim, diluir-se no texto. Por isso, procura exercitar o estilo, a forma e o conteúdo de maneira que seu ator-autor possa repre-

sentar-se nas personagens; porém, não como a figura de um indivíduo personificado, mas como o produto de forças, de vozes que insistem (e se desdobram) para compor a teia da escritura. Nessa teia, cada parte (ou capítulo) assume a máscara que lhe apraz, ou seja, as referências textuais ganham forma na composição de um mosaico original que, inicialmente, parece não seguir nenhum ordenamento sequencial. No entanto, as ideias ganham força e sentido quando confrontadas com a linha de pensamento que lhe serviu de matriz conceitual. Tal linha de pensamento considera, sobretudo, o desfecho da interpretação trágica realizada pelo primeiro Nietzsche e, por consequência, sua demarcação precisa em relação aos eventos filosóficos e literários na Alemanha do século XIX. Ou seja, o exercício compreensivo que se configura na originalidade do texto leva a marca da experimentação estética, de uma escuta aos tambores de Dionísio, de um sentimento trágico que carrega as lições do tempo, da vida e da alegria. Com isso, não se quer dizer que esse texto-tese abandona o compromisso com os problemas do campo pedagógico propriamente dito, mas os trata sob outra perspectiva, qual seja, a perspectiva vitalista que considera o acréscimo (ou decréscimo) de potência como matéria constitutiva do próprio texto-tese. Então, deixa-se tocar pela atmosfera dos autores e obras, sobretudo daqueles que pensam e escrevem sobre o conceito de ‘trágico’ em Nietzsche. Desse modo, seu autor alimenta as linhas produzidas a partir das matérias (de conteúdo e expressão) cuja inspiração brota da energia pulsante da physis. Nesse sentido, é evidente que procura explorar e interpretar o fundo dionisíaco da filosofia de Nietzsche. A temática das máscaras vem dessa possibilidade de lidar com problemas que não evidenciam apenas uma condição lógica do discurso, mas que se atêm ao cultivo da voz e do tom das palavras. Imaginamos, por exemplo, Nietzsche e seus textos como uma hidra de várias cabeças cujas falas se entrecruzam, dialogam, se contradizem umas com as outras, na busca da afirmação original. Por isso, ‘Eu’, Eles’ ou ‘Nós’, no texto do filósofo, compõem as personae de uma voz que clama pela autossuperação da razão humana (num esforço de estilo e sensibilidade). É como se ele mesmo tivesse que se autorretratar num estado 80 • 81

de dispersão dionisíaca e, a cada momento, reencontrar-se em meio ao caos. Entretanto, isso não significa uma maneira específica de dramatizar as condições da própria vida, mas o exercício de multiplicar as vozes, os pontos de vista sobre o objeto (alvo do conhecimento). As máscaras surgem desse artifício de duplicar as palavras, os sentidos, uma vez que a vontade de verdade se constitui num esforço pela modulação tonal da linguagem, ou seja, ela é peremptória e produtiva de acordo com o grau de potência investido (legado do antigo teatro grego). É nessa direção que podemos afirmar: “Sem uma máscara, não se tem nenhum rosto para apresentar; e é somente através das máscaras que se pode falar bem alto o que se aprendeu” (HAYMAN, 2000, p. 35). Isso quer dizer que a verdade está num esforço pelo investimento da superfície, não da profundidade, uma vez que dificilmente se pode retirar uma máscara sem que outra esteja em seu lugar, ou seja, ela é a única forma do rosto. As máscaras são análogas às células da pele humana, que, durante anos, se regeneram com o tempo, com os impactos da exterioridade, renovando nossa percepção do mundo e da vida. E é provável que, na maior parte das vezes, escrevemos não para revelar algo a alguém, mas para extravasar o sentimento de estranhamento que está em nós. Ora, se Dionísio é o deus estrangeiro que chega para tripudiar o logos da religião oficial, também as palavras nunca dizem a verdade sobre o ser da sensação, mas erigem metáforas da realidade. E é como metáfora do cabedal docente, das práticas pedagógicas, da formação de professores e, sobretudo, da vida nas escolas que provocamos a escrita desta tese. É claro que o título oscilou na sua metamorfose essencial, carregando palavras-chave e clichês professorais. Talvez o texto constituído, mas nunca em definitivo, tenha oferecido estilhaços semânticos cujos sinais divagavam por um apanhador de sonhos. Entre uma passagem e outra desse apanhador, a experiência residual comportou a descrição de um título possível: Pedagogia das Máscaras: aprender com o trágico. Poderíamos, inclusive, sem prejuízo aos seus elementos constitutivos, manifestar um ‘aprender com Dionísio’, com o dionisíaco de Nietzsche. No entanto, entendemos que o ‘trágico’ é o elemento formador desta filosofia e, como

tal, oferece pressupostos didático-pedagógicos para se repensar a noção de ação/produção (práxis/poiesis) no interior da dinâmica escolar (porém, isso já compete à problemática da tese). Antes disso, é preciso localizar o território de pesquisa de onde brotaram suas primeiras experimentações. Com efeito, a tese surgiu no PPGEDU da UFRGS, na linha de pesquisa 09 (Filosofia da Diferença e Educação), e foi defendida em janeiro de 2012, sob orientação da profa. Dra. Sandra Mara Corazza. O BOP (Bando de Orientação e Pesquisa) foi o coro de vozes que encenou sua leitura, contribuindo nos desafios da escritura. Assim, como metáfora da condição docente, apaixonada pela mitologia grega, pelos escritos de Nietzsche, pela perspicácia e genialidade de sua orientadora, é que esta tese nasceu.

A canção do bode expiatório da Pedagogia (ou o bode como problema) É corriqueiro procurarmos sempre um culpado pelos problemas da educação pública brasileira. Eles são de toda ordem: desde questões de infraestrutura das escolas até políticas de formação docente. Dá a impressão de que existe um complexo de forças reativas que desanimam a vida nas escolas. É como se paredes fictícias se erguessem aqui e acolá, imediatamente e sem direção, toda vez que algo foge do controle e segue a contrarregra do pensar educacional. A Pedagogia das máscaras não ensina regras, nem métodos, tampouco força o juízo a fim de resolver os problemas de ensino-aprendizagem. Ela segue as pegadas de Dionísio e, por isso, ensina a paixão pela natureza, pela vida cotidiana dos seres. De maneira específica, torna-se coerente pontuar que tudo aquilo que moraliza as relações docentes nas mais diversas esferas, também acaba por bloquear o sentido estético da docência. Mas o que entendemos por ‘sentido estético da docência’? Ou, de modo preciso, de que estética estamos falando? Ora, a estética como disciplina filosófica nasceu no século XVIII com Baumgarten, Hegel e Kant. No século posterior, mais precisamente na Alemanha do século XIX, a estética passou a demarcar o campo de estudos cuja temática retorna ao passado da civilização ocidental, ou seja, 82 • 83

aos eventos da Grécia antiga, sua constituição filosófica e literária. É nessa direção que podemos pontuar duas interpretações acerca da releitura dos clássicos gregos, sobretudo dos antigos tragediógrafos (Ésquilo, Sófocles e Eurípedes). Por um lado, uma vertente clássico-romântica que supervaloriza a historiografia como método na tentativa de reconstruir as raízes do autêntico espírito alemão (o próprio Hegel, mas também Goethe, Winckelmann, Schiller, Schelling, Schlegel, Fichte e, em certo sentido, Schopenhauer e Wagner). Por outro lado, uma interpretação vitalista, centrada no fenômeno trágico (embora a tragédia grega tenha sido estudada em ambas as vertentes), uma vez que a preocupação recai nos fundamentos estético, musical e religioso da arte na Grécia. Não seria exagero afirmar que tal interpretação permaneceu, durante anos, como a via marginal de compreensão da tragédia. Estão nessa via o poeta Hölderlin e o filósofo Friedrich Nietzsche. Ao divergir das interpretações célebres do período, Hölderlin e Nietzsche recriam o fenômeno trágico, evidenciando sua capacidade regenerativa e, por que não dizer, criativa. Não se trata apenas de repetição, tradução, mas transcriação dos versos e da poética essencial que norteou a arte grega. Se Nietzsche, por meio do Nascimento da tragédia, afirma a tese fundamental de que: “[...] só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente [...]” (1992, §5, p. 47); Hölderlin, por sua vez, tanto no Hipérion quanto na Morte de Empédocles (ou em notas isoladas), produz reflexões originais sobre o drama trágico: “A poesia mais elevada é também aquela em que o não poético se torna poético porque, no todo da obra de arte, se diz no tempo e no lugar oportunos.” (HÖLDERLIN, 1994, p. 25). Portanto, é como se afirmassem que existe uma poética vital (poiesis), produzida como resultado das ações cotidianas e, acima de tudo, motivada por um pathos afirmativo capaz de sobreviver aos percalços de qualquer niilismo pedagógico. Essa possibilidade animou o caminho da pesquisa e a textualidade da Pedagogia das máscaras. No entanto, a filiação teórica da estética trágica (como pensamos e entendemos o problema de pesquisa) é própria da filosofia do primeiro Nietzsche. Nesse sentido, da Introdução à tragédia de Sófocles até o Nascimento

da tragédia, percebemos que a noção de trágico muda de direção. Se, em Sófocles, inicialmente, a tragédia edipiana ainda carrega traços de ressentimento e piedade, sem contar com a progressiva extinção do coro, Nietzsche precisa retornar às origens do mito. Nesse retorno, descobre a potência indestrutível do dionisismo, um poder avassalador que constrange a moral e a religião do homem moderno. Então, o herói esquiliano torna-se a encarnação das forças titânicas da natureza e, assim, reproduz o conjunto paradoxal do sentimento trágico num misto de sofrimento e alegria. Além disso, o coro em Ésquilo tem papel fundamental: “O coro das Oceânides acredita ver efetivamente à sua frente o titã Prometeu e considera a si próprio tão real como o deus na cena.” (NIETZSCHE, 1992, §7, p. 53). O coro não é apenas uma personagem da cena, mas uma força afirmativa capaz de mudar o destino do herói. Diferentemente de um artifício da consciência humana que julga as ações do herói, o coro trágico estimula a possibilidade do ‘querer’, ou seja, uma forma de arrebatamento das pulsões vitais sem a qual não pode haver nenhuma escuta do que nos ultrapassa. Essa forma de afecção do herói foi o que os gregos chamaram de pathos. Portanto, ela é de matriz irracional, ilógica, atemporal e, assim como o movimento das paixões que motivam o coração humano, as vozes que ressoam do coro manifestam o poder para a transcriação da obra. É por isso que não se trata de uma ação como reprodução, mas de uma ação como produção desejante. Além do mais, ouvir, ver, falar e fazer constituem as operações de um fundamento ético marcado pela sensibilidade e pela compreensão da physis. O problema central e os problemas secundários do texto-tese da Pedagogia das máscaras estão mergulhados nessas proposições, objetivando positivar a ação docente a partir da autoformação, da experimentação e da expressão estética.

A didascália como método Existe, na obra O mundo como Vontade e Representação, de Schopenhauer, uma passagem em que o filósofo tenta explicar o conceito de ‘Vontade’ por meio da metáfora das marionetes. Ou seja, mesmo parecendo autônoma as suas motivações, a marionete é conduzida por fios externos 84 • 85

cuja precisão depende da motivação interna do ventríloquo que a põe em movimento. Com isso, o filósofo define seu conceito de ‘Vontade’ enquanto Wille zum Lebem (Vontade de viver), o que, para Nietzsche, é insuficiente na superação do pessimismo. Por isso, Nietzsche enxerta no conceito schopenhauriano o componente estético dionisíaco, denominando-o de Wille zur Macht (Vontade de poder). Ora, as linhas que enxertam esta tese são semelhantes ao corpo da marionete, que ganha vida própria a partir das motivações internas de seu autor. Mas não apenas isso, pois o tecido que recobre as máscaras é matizado pela cor ambiente que o envolve. É como se as afecções do texto, objeto de estudo, provocassem a escritura da tese numa direção e num sentido inusitados até o instante da produção. Por exemplo: cada parte, seção ou capítulo (no total são nove capítulos, divididos em seções menores) apresenta uma conotação própria, procurando se aproximar da forma de conteúdo original do texto. A cada três capítulos, compõe-se um bloco específico (são três blocos: 1. O Trágico e a pedagogia; 2. Mascaradas e 3. Patéticas). A motivação dos três primeiros capítulos do primeiro bloco é rousseauniana, pois procura aproximações com o tom intimista das Confissões (Aprender com o trágico, Dionísio-educador e Ressonâncias rousseaunianas, exatamente nessa ordem). No segundo bloco, cada capítulo é atravessado por um pathos específico. É assim que o texto intitulado ‘Sala de aula: cenas de uma tragédia anunciada’, inspirado nos textos das tragédias clássicas (tanto antigas quanto modernas) e na criatividade de Júlio Cortázar, procura encenar a escola e seus problemas. Em seguida, ‘Bestiário das tipologias do educador’ é inspirado nas tipologias do Zaratustra de Nietzsche e, sobretudo, no Nietzsche de Deleuze. Os diálogos platônicos motivam o capítulo que encerra o segundo bloco: ‘Diálogo entre Teofrasto e Didascálio’. O terceiro bloco é composto por pequenos ensaios e tentativas de aforismos. Não há uma inspiração única, nem estilo que prevaleça, apenas a preocupação estética em compor a definição da máscara primeira (quando outras já perdem força e sentido). Estão nessa condição: ‘Ensaios em migalhas’, ‘Fragmentos de escola’ e ‘No curso da estética trágica: o adeus das dionisíacas’,

que, por sua vez, encerra os contornos do teatro trágico da escritura. Ela é agora um corpo-tese, assim como o corpo da marionete, em que, vez por outra, puxamos um fio, esticamos e verificamos onde vai dar. Não existe um método-padrão de escrita e pesquisa que possa ser utilizado à revelia dos resultados. Portanto, os procedimentos de pesquisa são uma construção particular do pesquisador. Eles delineiam um caminho, mas não a direção que devemos seguir. Muitas vezes não temos certeza do resultado, ou melhor, nenhuma certeza, pois o que fica há de ser superado por outro erro, quiçá menos grosseiro do que o primeiro. E, de erro em erro, assumimos a condição de verdade, feita de metáforas da realidade e de dissabores da vida. O que se aprende é produto do fluxo trágico e, por isso, intenso, sofrível, prazeroso. Se há uma pragmática da vontade em relação aos eventos da pesquisa, ela não pode ser premeditada de antemão, tampouco descrita como um arcabouço lógico de opiniões e sentenças. Existe uma afecção inicial que contagia o corpo do autor, uma ideia-força que lhe provoca o desejo de transcriar o texto. Sem esse sentimento de alheamento de si não há como prosseguir no universo da pesquisa. Mesmo a sala de aula é uma invenção: “A poesia e a música são estímulos que, indiscutivelmente, seduzem para a magia do infinito, do ilimitado. Nesse sentido, a aula é pura fabulação.” (2012, p. 140). É como fabulação da aula que produzimos esta tese. Estávamos em cada palavra, em cada personagem, em cada texto. Sendo assim, a metodologia mais provável e adaptável nesse contexto teórico responde por uma indicação cênica em cada trecho, como as didascálias do roteiro teatral. Importa saber que as marcas não são visíveis no texto definitivo mas elas acenam ao leitor em cada página. No entanto, servem apenas para o autor vivificar as matérias de escrita, experimentá-las na leitura silenciosa ou na gestualidade do corpo. Ao leitor, importa criá-las como lhe convém. Agora, se nada importa e se nada interessa para quem a ler, também não sofreremos por isso. Ela sai de cena, retira-se do palco. Entretanto, algo ficou no ar: assim como o Deus ex machina do teatro grego, ela marcou um tempo e um lugar. Evoé, Baco! 86 • 87

Referências HAYMAN, Ronald. Nietzsche: Nietzsche e suas vozes. (Tradução Scarlett Marton). São Paulo: Editora Unesp, 2000. HÖLDERLIN, Friedrich. Reflexões. (Tradução Márcia de Sá Cavalcante e Antonio Abranches). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. NICOLAY, Deniz Alcione. Pedagogia das máscaras: aprender com o trágico. Tese de doutorado em educação. Faculdade de Educação da UFRGS, Porto alegre: 2012. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. (Tradução J. Guinsburg). São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Sobre escritura e arte do estilo: aproximações otobiográficas Polyana Olini Silas Borges Monteiro

Resumo A arte do estilo toma do corpo do autor sua escritura. Refere-se à diversidade de seus estados internos e, consequentemente, às possibilidades de expressálos textualmente. A escritura se caracteriza por exceder aquilo que se entendia até então como linguagem. A variação contínua presente na escritura e no estilo é o que permite pensar aqui os projetos filosóficos e as vivências como formação de si mesmo, e portanto como constituintes de maneiras subjetivas e plurais de cultivar e de afirmar a própria vida. Diante dessas questões, este capítulo trata da devoração escrileitural de autores, noções e conceitos que compõem a dissertação intitulada “Estilo, Vida e Constituição de Si: a arte do estilo”, defendida no segundo ano do projeto Escrileituras: um modo de lerescrever em meio à vida, no núcleo da Universidade Federal de Mato Grosso.

Palavras-chave Escritura. Estilo. Constituição de si. Otobiografia.

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1. Sobre vidas escritas: o duplo inquietante A escritura derridiana, desde o final dos anos 1960 até os dias de hoje, continua originando quase tanta controvérsia quanto o pensamento nietzschiano. O próprio interesse de Derrida em Nietzsche oferece um ponto particularmente impressionante de partida, para perguntar como um autor assume a responsabilidade das opções do pensamento de um outro autor, quando seu trabalho se torna objeto de interpretações conflitantes. O estilo resultante do interesse por Nietzsche e também, talvez em menor gama, por outros pensadores como Freud e Lacan, demonstra mais maturidade do pensamento derridiano do que se possa imaginar, sem maior aproximação à obra, é claro. Embora o filósofo francês frequentemente movimente as contradições em um texto particular, representativo ou sintomático, é notável que seu projeto está situado em implicações mais amplas do “mundo real” ou na análise de qualquer fenômeno. Assim, por exemplo, Gramatologia não é primeiramente sobre os textos de Rousseau, é um livro que aborda a repressão da escritura em benefício da fala. Derrida quer abordar a impressão deixada por certos pensadores na história do pensamento, com base na impressão com a qual estes o marcaram. Ressalvam-se muitas dessas marcas que Derrida mobiliza e que se caracterizam pela ambivalência à tradição filosófica. Tanto o pharmakóm de Platão, em A farmácia de Platão, como o suplemento de Rousseau, em Gramatologia, apontam para o jogo entre bem e mal, remédio e veneno, mais e menos, escrita e phoné, dentro e fora, acidente e essência.

2. Estilo e escritura É importante observar as semelhanças e diferenças entre Nietzsche e Derrida, com o intuito de começar a explorar as conexões entre o que vai ser abordado como escritura ao pensarmos filosofia e educação e, fundado nisso, desenvolver os elementos conceituais que circundam a escritura, como estilo, morte, vida, otobiografia, etc.. Desde já, busca-se movimentar a filosofia de Nietzsche, as leituras desta filosofia – principalmente as feitas por Derrida – e as implicações disso para pensar as relações entre filosofia, educação e constituição de si. A exemplo de Nietzsche, Derrida

favorece leituras ativas, nas quais a filosofia desempenha papel dinâmico na criação de valores, assim como na afirmação e transvaloração da vida. Toma-se, na dissertação, o conceito de escritura trabalhado por Derrida ao longo de seu projeto filosófico, com ênfase nos textos do início de sua obra, como Gramatologia. A escritura se caracteriza por exceder aquilo que se entendia até então por Linguagem, porque rompe com a relação metafísica que a última pressupõe. Dessa forma, Derrida defende uma visão inovadora sobre o tema, apontando para a criação de nova concepção de escritura, através da qual é possível operar a desconstrução das oposições de caráter binário, permitindo a articulação (o jogo da diferença) da fala e da escrita. Derrida anuncia a liberação da escritura, dizendo: “(…) tudo aquilo que – há pelo menos uns vinte séculos – manifestava tendência e conseguia finalmente reunir-se sob o nome de linguagem começa a deixar-se deportar ou pelo menos resumir sob o nome de escritura” (DERRIDA, 2008, p. 8). Certamente, há uma noção de que Derrida (1971; 2008) se porta de forma inquieta com relação ao discurso filosófico tradicional e, desde seus primeiros trabalhos, podemos ver uma gradual “radicalização do estilo”, por esta via. Conforme Jones Irwin (2010, p. 17-19), é metodologicamente isto o que desperta seu interesse em um pensador como Artaud, que nos fala do solo da vanguarda poética. Como Nietzsche, Derrida é um grande defensor da transição e da transformação. Über; différance. É neste sentido que se faz aqui a aproximação entre eles: Nietzsche transvalora, Derrida desconstrói. Nos labirintos da escritura, o texto nunca terá um significado único. A convicção de que a linguagem pode ser uma generalização estável e “total” é perigosa, assim como equivocada. Em seu texto Esporas: os estilos de Nietzsche, Derrida (1981) sustenta que não há uma verdade de Nietzsche ou do texto nietzschiano. E isso compõe os estilos de Nietzsche. A linguagem é um meio que congela conceitos úteis, uma ferramenta ilusória, como as de verdade e conhecimento. Não importa se elas são verdadeiras ou não, porque os seres sociais precisam delas. A dissenção com alguns temas clássicos da filosofia caracteriza uma consequência necessária para escrita filosófica, em ambos os pensadores. Mesmo com estranheza ao pensamento ocidental, conservam a paixão 90 • 91

da filosofia pela busca da verdade – como coloca Platão –, ao mesmo tempo em que a própria filosofia é posta em suspeita. Nem Derrida nem Nietzsche abandonam o desejo de buscar a verdade, apenas demonstram a impossibilidade de chegar a uma imagem, singular e transparente da “verdade”. Tanto em Nietzsche como em Derrida, a questão do estilo está indissoluvelmente ligada com o conteúdo do texto, selecionando e seduzindo o leitor. Nietzsche afirma não conhecer “outro modo de lidar com grandes tarefas senão o jogo: este é, como indício de grandeza, um pressuposto essencial. A menor constrição, o ar sombrio, um tom duro na garganta são objeções a um homem, mais ainda à sua obra!...” (NIETZSCHE, 1995, § 10). O jogo ao qual Nietzsche dá destaque nesta seção, é o jogo com estilo. Exige que o leitor se torne tão atento ao ritmo e tom da escritura, quanto a seu conteúdo. Não é inesperado, então, que Nietzsche constantemente faça alertas para que os leitores prestem atenção a quem lhes fala, quase que como uma intimação para que seus textos sejam escutados com os ouvidos corretos. Ainda que ajustar os próprios ouvidos para ler Nietzsche seja, provavelmente, uma das tarefas mais desafiadoras, pois “os livros de Nietzsche são mais fáceis de ler, porém mais difíceis de entender do que os de qualquer outro pensador” (KAUFMANN, 1974, p. 72). Seu tom muda, propositadamente, de um grito a um sussurro dentro de um único aforismo. Muitas vezes curtos, os aforismos de Nietzsche são formatos que rompem padrões convencionais da filosofia moderna, escritos entre suas caminhadas, como monumentos às suas crises de dores de cabeça, consolidando seus meios particulares de apresentação – disposições gráficas, itálicos, aspas e reticências ganham usos característicos. Evidentemente, estas questões não se ausentaram em Derrida, leitor de Nietzsche, que percebe haver um limite no discurso que chamamos de filosofia; esse limite precisa encontrar uma maneira de gesticular em direção a seus lados, como que a um exterior quase impossível de alcançar, tornando-se uma margem sem centros de controle e referência. E para que esse discurso não volte a marchar rumo a qualquer limite, para que haja a superação deste, ao ler e escrever é preciso se envolver com vários estilos

e registros de uma vez, isto é, devemos ser constantemente atravessados pelos sentidos. Enquanto Nietzsche ressalta, em suas obras, para a multiplicidade e duplicidade de sentido que expõe o perspectivismo, Derrida enfatiza a necessidade estrutural de o significado não ser capaz de chegar ao destino desejado, a uma margem vazia, como condição de possibilidade para desconstrução do logocentrismo e da metafísica da presença, entre um monte de outros temas e aspectos. Esse fracasso do significado, tal qual o pensamento ocidental sempre temeu, é que deixa ocorrer a contradição na perspectiva de que das contradições emergem a possibilidade da remarcação do texto/ escritura, como dobra que nega a prescrição de um pensar metafísico. As obras de Nietzsche, constantemente, expressam a necessidade de escapar a metafísica, assim como as de Heidegger depois dele. Derrida se junta a seus antecessores em perseguir as mesmas perguntas, mas ressalta a impossibilidade de escapar do que ele chama de metafísica da presença. Já que não há como escapar a linguagem da presença, Derrida nos chama a atenção para a precisão de aprender a colocar a linguagem para trabalhar de outra forma através do estilo e do registro. Derrida afirma que a autobiografia se distingue do que se entende frequentemente, nas definições literárias. O autobiográfico deve nos fazer reconsiderar o lugar do “autos”, pois toda escritura autobiográfica é singular e põe em movimento de cooperação o “auto” de sua “autoidentidade”; determinando a inevitabilidade deste movimento, que o autor, diz ser psicanalítico, na margem de todo texto e discurso, para além dos limites tradicionais da escrita.

3. Do que é praxe Os pontos e argumentos expostos até aqui, com toda a concessão da fantasia e das fabulações, não como oposição ao real ou a verdade mas sim como reconhecimento da potência da multiplicidade, permitem a apresentação das escolhas e os estabelecimentos em que a dissertação está inserida. Com Deleuze, o pensamento passa por encontros múltiplos. Pesquisar trata de criar um deserto que possa ser atravessado por acontecimentos, 92 • 93

velocidades, afetos, sensações, multiplicidades e devires. Inspirada pelas provocações de Deleuze, Sandra M. Corazza apresenta a pesquisa do acontecimento como possibilidade de “novos meios de expressão”, em que o direito à singularidade e o pensar diferente se movimentam nos campos da filosofia, da arte e da ciência. Estas suas afirmações, de certo modo, atravessam todo o pensamento deste estudo, “assim, para a Pesquisa do Acontecimento, escrever não é impor uma forma de expressão a uma matéria vivida, mas trata-se de um procedimento informe, de um processo inacabado, de uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido” (CORAZZA, 2008, p. 250). A questão que enfeixa a elaboração da dissertação: a proposta de constituição de si, poetizada por Píndaro na sentença: “Homem, tornate no que és”. Assumida por Nietzsche como uma de suas grandes tarefas, principalmente em Ecce homo, e discutida por Derrida, quando toma o estilo filosófico de Nietzsche como forma de ensino fundado, nas vivências, em Otobiografias. Também se trata de tomar tal proposta como principal objetivo, buscando justificar novas perspectivas sobre as experiências de vida que deixam marcas, que geram concepções, que desenvolvem crenças, que levam à tomada de atitudes. Ou, talvez, nada disso, a não ser “suas insignificantes vivências diárias” (NIETZSCHE, 2000, § 627), que, no entanto, produzem texto escritura. Ainda mais. Aspira à compreensão de temas geralmente desprezados pela filosofia e pela educação: refiro-me a sinalizar casuísticas do egoísmo como operadores conceituais da constituição de si. A tessitura do trabalho procura abordar o que entende por si a partir do perspectivismo nietzschiano, que está diretamente relacionado com sua noção de si mesmo como uma espécie de multiplicidade subjetiva, que entende nossa experiência do mundo diante de uma experiência multifacetada. Dessa forma, “o sujeito unitário (...), protótipo das demais ficções erigidas pela longa tradição metafísica, torna-se obsoleto perante as rigorosas exigências de um pensamento que procura acolher, sem restrições, a plenitude e a inocência do vir a ser” (ONATE, 2003, p. 19). Como as seções Dos que desprezam o corpo e Do domínio de si do Assim falou Zaratustra bem retratam, Nietzsche (2008) revela um compromisso com a impor-

tância e o valor do corpo e da vida para o conhecimento e o domínio de si, em sua forma nietzschiana mais elevada, isto é, criando para nós mesmos uma moderação de instintos. Como caminho para pensar como tornar-se o que se é, ligamos as noções de (auto)formação e estilo, que aparecem no decorrer da obra de Nietzsche e são tomadas de forma fértil e particular por filósofos como Foucault, Deleuze e Derrida. Foucault concebe os apontamentos para uma hermenêutica do sujeito em sua determinação histórica e ética. Pelo retorno aos helênicos e romanos, apresenta o “cuidado de si” como forma de “substituir o princípio da transcendência do ego pela busca das formas da imanência do sujeito” (FOUCAULT, 2004, p. 636). Para pensar um sujeito em movimento é preciso que o sujeito se constitua na imanência de sua ação. Assim, Foucault propõe formas não normalizadoras de constituir aquilo que somos. Na escrita de si “é sua própria alma que é preciso criar no que se escreve (...), também é bom que se possa perceber, no que ele escreve, a filiação dos pensamentos que se gravaram em sua alma” (FOUCAULT, 2004, p. 152-153). Trata-se da experiência de escrever como contribuição para as práticas artísticas de viver e constituir-se. Dessa maneira, recorremos ao pensamento da diferença para investigar a constituição de si. Pois bem, tomar este tema (também é um desafio) da filosofia e da educação – de decifrar e constituir o si mesmo – é reconhecer a nova forma de filosofia que se concebe através da aposta de entender vida e escritura como possibilidades de experimentação e de pensamento. Certamente, trata-se de questão metodológica: experimentar o tema da constituição de si, perseguindo as ideias de escritura, (auto)biografia, (auto) formação, adotando as perspectivas da suspeita e da desconstrução, visto que retrata o método como criação. A primeira seção visa trazer reflexões sobre as implicações do problema filosófico que envolve o jargão “Vida e Obra”, passando pelo estruturalismo e o pós-estruturalismo. Apresenta uma perspectiva de leitura para escritos (auto)biográficos ou não, ao se empenhar no que diz Nietzsche em Para além de bem e mal: “gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor, 94 • 95

uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas” (NIETZSCHE, 1992, § 6). Na segunda seção, tratamos a vida como o principal ponto de aproximação da escritura na filosofia nietzschiana. Nessa medida “são os estilos de vida – escreve DELEUZE (1992, p. 126) –, que estão sempre implicados nos gestos e nas palavras, que nos constituem como este ou aquele”. Neste sentido, encontramos um intenso diálogo entre filosofia, vida e escritura por meio de reflexões sobre o debate que Deleuze empreende acerca da literatura e da questão do estilo. Assim, o capítulo retrata também que a renovação da filosofia, no período moderno, está ligada à questão da escrita. Na terceira seção, abordamos questões relativas ao tema da morte e sua relação com a escritura. Em Derrida, a escritura da vida se revela como escritura da morte; ao narrar e assinar sua vida, o autor (signatário e vivente de seu próprio texto) adianta sua morte. Derrida, em certa harmonia com Barthes (2004), também segue as vias de dissolução da noção de autoria, quando também decreta a morte do autor (falante e escritor) e toda esta sua prevalência. Ambos libertam a escrita dessa herança metafísica que a aprisiona em favor de uma máquina autônoma de escritura. No entanto, procuramos atentar para o fato de que Derrida sempre associou a problemática da morte com a afirmação da vida, em sentido nietzschiano. Na quarta e última seção, pela elaboração de um sistema, pensamos Como tornar-se o que se é pela trilha da arte do estilo. E, portanto, uma possibilidade de pensar escritura como força constitutiva do escritor/vivente/signatário, apesar das proteções de suposta racionalidade científica presente em muitos escritos. Vem daí a insistência de Derrida, que sucede Nietzsche, ao defender a conquista do caráter autobiográfico também nos escritos filosóficos em geral. Na escritura autobiográfica, o nome do autor, seu corpo, sua posição no espaço e no tempo são, paradoxalmente, fatos e ficções que devem ser tomados pela filosofia como “uma descrição mais ou menos viva de sua própria escritura” (DERRIDA, 2007, p. 337). Em Otobiografias: o ensino de Nietzsche e a política do nome próprio, Derrida também investe nas discussões clássicas sobre autobiografia. Declara que, muitas vezes, pormenorizam a autobiografia de um filósofo, “como um corpus de acidentes empíricos

deixando um nome e uma assinatura fora de um sistema que seria, ele, oferecido a uma leitura filosófica imanente, a única que seja tida como filosoficamente legítima (...)” (DERRIDA, 2009, p. 31). Ainda na última seção, procuramos entreabrir alguns apontamentos para o gesto otobiográfico. Com Derrida “tudo se enrola, vocês o sabem, na orelha de Nietzsche, nos motivos do seu labirinto” (2009, p. 57). Silas B. Monteiro (2007) estabelece a otobiografia como um tipo de investigação de escritos, na qual sua busca por perspectivas sustentadas em vivênciasescuta-estilo-escritura justifica o interesse e o comprometimento desta dissertação com o que foi apresentado em sua tese de doutoramento como conceito derridiano, suas possibilidades metodológicas e a proposição de um método-labirinto.

4. Aos pretendentes a Penélope Entende-se que Nietzsche assumiu duas tarefas para se constituir. A primeira foi unir absolutamente tudo o que foi confrontado com os eventos peculiares, somente a ele. Suas vivências e os acidentes empíricos, tais como nascimento e saúde, crescimento e doenças, constituindo um todo único e unificado que ele podia afirmar. A segunda tarefa, pressuposta pelo esforço de tornar-se quem se é, foi dar estilo, como se dá a um texto, a essas vivências, de modo a ser significativamente diferente de todos os outros. Quanto a tornar-se quem se é, trata-se de projeto que envolve afirmar e reconhecer que atitudes e experiências, instintos e desejos têm contribuído para a própria constituição, independentemente do orgulho ou decepção que esse reconhecimento pode inspirar. Para tornar-se o que se é “uma coisa é necessária. – ‘Dar estilo’ a seu caráter – uma arte grande e rara!” (NIETZSCHE, 2001, § 290). Com Nietzsche e Derrida, palavra escrita e palavra falada se misturam, ultrapassam essas oposições binárias, constituem a escritura neste jogo de diferenças e se encontram no corpo do leitor/escritor/vivente. A figura do duplo gesto entre os gêneros do discurso filosófico e literário no período moderno, principalmente após Nietzsche, aponta a emergência da questão da escritura. Na perspectiva da filosofia da diferença, a escritura é especialmente marcada em torno desta urgência 96 • 97

contemporânea. Desse modo, os textos de Derrida caracterizam uma resistência à tradicionalização do registro filosófico ou do registro literário, “eles se comunicam, assim (...), com outros textos que tenham efetuado uma certa ruptura, não se chamam mais ‘filosóficos’ ou ‘literários’” (DERRIDA, 2001, p. 78). Esse movimento de desconstrução do registro é inspirado em textos que, embora denominados literários, avançam “às artes, à poética, à retórica e à filosofia”. Derrida cita como exemplo os textos de Artaud, Bataille, Mallarmé e Sollers. Deleuze, por sua vez, considera autores e artistas estrangeiros em sua própria língua, refere várias vezes Kafka, Beckett, Godard e Gherasim Luca como portadores de um procedimento de variação, uma experiência cromática que excede o limite da linguagem. Esta é uma política do estilo, encarar a literatura como escrileitura singular. E por ela, o estilo vem a ter força de lei da singularidade, do outro, de nós e nossas leituras. Aquilo que faz da experiência de escrevere-ler uma experiência de posse, isto é, que torna um texto evidentemente meu, pela assinatura ou pelo reconhecimento de um estilo próprio, afirmase a ação de assinar, em outras palavras, uma política do nome próprio. É aí que podemos perceber a potência da ação da escritura, vista em todos os aspectos da vida. Talvez a meditação paciente e a investigação rigorosa em volta do que ainda se denomina provisoriamente de escritura, em vez de permanecerem aquém de uma ciência da escritura ou de a repelirem por uma reação obscurantista, deixando-a – ao contrário – desenvolver sua positividade ao máximo de suas possibilidades, sejam a errância de um pensamento fiel e atento ao mundo irredutivelmente por vir que se anuncia no presente, para além da clausura do saber. O futuro só se pode antecipar na forma de perigo absoluto (DERRIDA, 2008, p. 4).

Mesmo com um tom que parece expressar certo agouro em torno da questão da escritura, quando a denomina como um “perigo absoluto”, Derrida parece traçar, já nas primeiras páginas de Gramatologia, que o limite ou possibilidade de conhecimento passarão no futuro a ter uma relação inevitável com “a experiência de escrever” e toda a

individuação que tal experiência implica. As afirmações citadas acima, no entanto, também acarretam que a escritura tem substituído a morte, como a fronteira que guarda o silêncio absoluto e a finitude. Depois desta obra, é certamente difícil descartar a questão da escritura, mais difícil ainda abordar a experiência de escrever ingenuamente. O gesto otobiográfico denuncia que as produções filosóficas, literárias e formativas sem vida consistem em metafísicas da presença. Concepções ou práticas presas nas abordagens dos significantes polarizados, separados ou exercendo imposição um sobre o outro. A vida em oposição à morte. (Auto) biografia em oposição à ficção. Fala em oposição à escrita. No tempo bio-thanatográfico, costuman-se criar ideais de conquista. Nietzsche insiste em nos alertar contra os ideais, pois costumam fazer com que soframos do mal – ou bem – que tomou os adversários de Odisseu. Todo esforço que fizeram garantiu-lhes a conquista das escravas, menos de sua esposa. Conforme Laêrtios (2008, Livro II, §79), Arístipo (aproximadamente 435-350 a.C.), discípulo de Sócrates, criou uma espécie de categoria de pessoas assim: àqueles que possuem currículo, mas abandonam a filosofia, serão sempre ditos como pretendentes a Penélope. O sofista, discípulo do anti-sofista, tem vivências para afirmar isto. De acordo com Michel Onfray (2009), ele sabia gozar o instante presente, vivia com uma jovem cortesã. Seu prazer estava em uma boa mesa, na gula e na diversão. Costumava dançar em festas vestido de mulher – aí está o antecedente estético de Ed Wood. Apreciava também os perfumes. Para o filósofo, mesmo os sentidos de origem “vergonhosa” são bons meios de conhecer.

Referências BARTHES. A morte do autor. In: O rumor da língua. (Tradução Mário Laranjeira). São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção Roland Barthes). CORAZZA, Sandra Mara. Os cantos de fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto Alegre: Sulina, 2008. (Coleção Cartografias) DELEUZE. Conversações. (Tradução Peter Pál Pelbart). Rio de Janeiro: Ed. 34. 1992. DERRIDA. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971. _____. Espolones: los estilos de Nietzsche. (Tradução M. Arranz Lázaro). Valencia: Pretextos, 1981.

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DERRIDA. O cartão postal: de Sócrates a Freud e além. (Tradução Ana Valéria Lessa e Simone Perelson). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. _____. Gramatologia. (Tradução Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro). São Paulo: Perspectiva, 2008. (Coleção Estudos). _____. Otobiografías: La enseñanza de Nietzsche y la política del nombre proprio. (Tradução Horacio Pons). Buenos Aires: Amorrortu, 2009. (Colección Nómadas). FOUCAULT. A Hermenêutica do sujeito. (Tradução Márcio Alves da Fonseca e Salma T. Muchail). São Paulo: Martins Fontes, 2004. IRWIN, Jones. Derrida and the writing of the body. Ireland: Dublin City University, 2010. KAUFMANN, Walter. Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist. New Jersey: Princeton University Press, 1974. LAÊRTIOS, Diôgines. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. (Tradução Mário da Gama Cury). Brasília: EdUNB, 2008. MONTEIRO, Silas B. Otobiografia como escuta das vivências presentes nos escritos. In: Educação e Pesquisa, vol. 33, n. 3, São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2007. NIETZSCHE. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. (Tradução Paulo Cezar de Souza). São Paulo: São Paulo: Companhia das Letras, 1992. _____. Ecce homo: como alguém se torna o que é. (Tradução Paulo Cezar de Souza). São Paulo: São Paulo: Companhia das Letras, 1995. _____. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. (Tradução Paulo Cezar de Souza). São Paulo: São Paulo: Companhia das Letras, 2000. _____. A gaia ciência. (Tradução Paulo Cezar de Souza). São Paulo: São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _____. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Tradução Mario Ferreira dos Santos). Rio de Janeiro: Vozes, 2º Edição, 2008. (Coleção Textos Filosóficos) ONATE, Alberto Marcos. Entre eu e si, ou a questão do humano na filosofia de Nietzsche. Rio de janeiro: 7 Letras, 2003. ONFRAY, Michel. Contra-história da filosofia: as sabedorias antigas. (Tradução Monica Stahel). São Paulo: Martins Fontes, Vol. 1, 2009.

Alfabeto Espiritográfico: escrileituras em educação Maria Idalina Krause de Campos Sandra Mara Corazza

Resumo Este texto é atravessado pela pergunta: o que pode um espírito escrileitor? Trata sobre compor espiritografias em meio à vida mutante, tendo como campos exploratórios potenciais a educação, a filosofia e a literatura; propondo uma entrada para inventar saídas de novos fluxos de pensamento esboçados via escrita. Para desde modo compor um Alfabeto Espiritográfico: Escrileituras em Educação atividade de pesquisa, leitura da realidade, que opera com a noção de espiritografia, pensando a partir de duas vertentes da Filosofia da Diferença: Gilles Deleuze e Paul Valéry. Coloca em ação o método de dramatização na comédia do intelecto, que permite ao espírito atuar e planejar sua própria trajetória autoconsciente através de leituras, de composições de textos, que são criados como pretexto de dizer-se, e assim, autoeducar-se. Operações experimentais, propostas em oficinas promovidas pelo projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida do Observatório da Educação/CAPES/INEP-2010.

Palavras-chave Escrileitura. Alfabeto. Espiritografia. Valéry. Deleuze.

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Movimento disparador O movimento disparador desta pesquisa se deu durante as aulas do Seminário Avançado O método de dramatização na comédia do intelecto: Valéry & Deleuze17. Necessitava de um campo empírico, além da pesquisa, para colocar a espiritografia em ação, o que foi possível através das oficinas promovidas pelo projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida Observatório da Educação CAPES/INEP. Grupo de pesquisa coordenado pela Profa. Dra. Sandra Corazza. Dentre as ações do projeto, foram oferecidas Oficinas de Transcriações no cotidiano, entre 07 de junho a 25 de agosto de 2011, na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As Oficinas de Transcriações operam como atividade de pesquisa, leitura da realidade, que permite ao espírito andarilho atuar e planejar sua própria trajetória autoconsciente. Constrói no exercício escrileitor seu próprio canteiro de experimentações, seu alfabeto, arquiteturas apaixonadas, informes possibilidades, que são criados como pretexto de dizer-se, e assim, autoeducar-se. Prima pela elaboração de circuitos espirituais variantes que atravessam o vivível, mesclando elementos dos detalhes, do inusitado, para a produção de composições de escrita, oriundas do desejo e da necessidade espiritual que transborda e escorre, entre outros espíritos investigados nos campos potenciais da educação, da filosofia e da literatura. Capturando as forças do pensamento para uma nova escrita do por vir.

Como fazer? O fazer pressupõe percorrer caminhos, e os eleitos para me fazer companhia nesta trajetória pedagógica de pesquisa são Valéry e Deleuze, os quais, com seus conteúdos teóricos, possibilitam criar uma série de procedimentos para investigação. Uma pesquisa pós-crítica, pois o método espiritográfico é informe, ou seja, interroga-se e varia durante todo o processo, não possuindo regras fixas e rígidas, o que mataria o prazer do inusitado. O método é o de capturas

Seminário relacionado ao Projeto de Pesquisa: Dramatização do infantil na comédia intelectual do currículo: método Valéry-Deleuze, coordenado pela pesquisadora Dra. Sandra Mara Corazza. Pós-Graduação em Educação / Faculdade de Educação/UFRGS.

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de forças dos textos, das imagens, das musicalidades, de tudo que devém em vida potente, e construir um alfabeto espiritográfico em educação. Onde – em uma oficina de filosofia, provocadora de sentidos e produtora de conceitos – se experimentam sensações, afectos, desejos e se busca escrever o indizível em um texto que é tecido da escrita. Alfabeto espiritográfico: Escrileituras em educação é o título de minha dissertação de mestrado18 e traz neste ensaio as operações espirituais que possibilitaram sua composição. O Alfabeto de Paul Valéry me chegou naquela fase de pesquisa tempestuosa, estava em concentração, em meio a transformações e a um amadurecimento espiritual urgente para tentar dissipar um pouco as incertezas e planejar um novo caminho no próprio caminhar da pesquisa, para encontrar meios, e com eles, escrever e viver. A leitura do Alfabeto foi à inspiração necessária para sair do crítico período, e um novo desafio também.

Alfabeto O Alfabeto valéryano é um livro de horas e estações – feito por encomenda em 1924, pelo editor René Hilsum – que deveria conter vinte e quatro poemas em prosa, que acompanhariam pinturas de Louis Jou, sem as letras K e W (VALÉRY, 2009). Para colocar em ação esses processos, Valéry inaugura um caderno rosa onde desenha em preto o título ABC, seguido de suas iniciais: P.V. Na parte direita desse caderno, ele registra “um determinado estado dos poemas”; na página esquerda, “alguma notas esparsas e aquarelas” (VALÉRY, 2009). Esse conjunto de apontamentos passa por várias revisões, lentas e sucessivas na busca pelo sentido do texto. Valéry busca uma composição formal, com rigorosas leis de funcionamento, uma unidade fechada e singular que trata de C.E.M: corpo, espírito, mundo. Um macrocosmo próprio uma totalidade fechada, que encontra no Alfabeto o campo propício e fértil para dizer-se, expor as tramas espirituais, sem determinações únicas que imitam a realidade, mas que valorizam o instante, o possível, em meio à diversidade do mundo e da vida, que se apresentam ao espírito a cada momento. Alfabeto espiritográfico: Escrileituras em educação, título da dissertação de mestrado defendida em janeiro 2013 no PPGEDU/FACED/UFRGS. Versão completa disponível em http://www.lume.ufrgs.br/.

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A primeira palavra de cada um dos verbetes começa com uma das iniciais do Alfabeto, e são páginas de textos breves de uma prosa elegante. Sua escrita destaca as manifestações e a compreensão de Valéry sobre assuntos como: o sono, o acordar, o banho, o almoço, as tramas do jogo amoroso. Esses assuntos de existência singular tornam-se objeto para definições poéticas, em que o visível devora o que é visto, a cada hora, sendo estados de ocupação que a alma dispõe. O Alfabeto, na medida em que se faz, é uma história de autoconsciência na qual “[...] o que vejo, o que penso “disputam entre si o que sou” (VALÉRY, 2009, p. 41). Bem como cada objeto, por sua vez, pede um novo sentido de si, num esforço novo de consciência de si. O renascimento de cada dia é também renascimento do espírito, da vida que escorre, neste mundo incompreensível, lírico, um completo drama. A inteligência que “Eu sou” perpassa este drama e tem na escrita o poder de dizer: “estou aqui”.

Movimentos investigativos Para que esses movimentos investigativos ocorram, é preciso ter ciência de como Valéry e Deleuze tratam do tema. Paul Valéry trata o espírito como o Eu funcional inseparável da matéria, dotado de uma consciência e inteligência mutável que utiliza seu trânsito pela existência e pensa-se. Diferentemente de René Descartes, que afirma: Penso, logo existo, Valéry tem como foco: O que é que em nós está pensando, quando pensa (VALÉRY, 1996)? Um Eu como função do próprio pensamento, Eu não como essência “Ego”, mas como atividade funcional para pensar. Um espírito operador que compõe uma comédia do intelecto à medida que se mostra a si mesmo à luz do dia. Um Eu operador consciente, Eu puro como Leonardo Da Vinci, que “guarda, esse espírito simbólico, a mais vasta coleção de formas, um tesouro sempre claro às atitudes da natureza, um poder sempre iminente e que cresce de acordo com a extensão de seu domínio” (VALÉRY, 1998, p. 55). Valéry tem apreço pela presença da voz ou vozes na escrita literária. Dos personagens dos textos literários, volta-se para os mecanismos do pensamento-palavra, os quais possibilitam jogos e trocas que quebram os silêncios, abrindo espaço para a criação espiritual e seus ecos poéticos

e epistemológicos. Interessa a Valéry, também, a arquitetura da forma do texto, seus métodos de composição, nos quais o meio de ocorrência textual é mais importante do que um fim ou meta. Daí sua reinvenção do estilo diálogo platônico, em que coloca nas vozes dos personagens não a busca por uma verdade, mas um meio fecundo aberto a contradições e polêmicas de um espírito que experimenta para melhor ser. Eu consciente que dialoga se multiplicando em outros “eus”, que produzem novas imagens mentais de instantes espiritográficos ecoantes. Utilizando-se da forma diálogos em A Alma e a Dança, Valéry passa a discutir sobre a arte, tendo na dança seu objeto empírico e o foco voltado para as relações entre espírito e corpo na dança da vida. Espírito que se diz na fala de um Eu puro, sem medo, despersonalizado, que se torna consciência pelo olhar. Sabe, como Monsieur Teste, que entre o Eu claro e o Eu turvo, entre o Eu justo e o Eu culpado, existem velhos ódios e velhos acertos, velhas renúncias e velhas súplicas. E que esse olhar necessita de um método, uma disciplina, ética de trabalho, pensar com rigor aquilo sobre o que vamos escrever. Um interesse pelo espetáculo do mundo, onde somos todos espíritos e marionetes de um teatro cômico, tenebroso e, por vezes, ridículo. “– Sabes, querido Outro, que eu sou um espírito da mais tenebrosa espécie” (VALÉRY, 1997). Em Deleuze, o cérebro é o espírito, faculdade de criação, onde “os conceitos se alocam, se deslocam, mudam de ordem e de relações, se renovam e não param de criar-se” (DELEUZE; GUATTARI, 1992). As excitações que movimentam esse espírito recortam o caos formando um “plano de imanência”. A junção de três “caóides” – arte, ciência e filosofia – desenha mapas mentais ricos em conexões que reagem umas sobre as outras “e que conduzem ao pleno mar”, repleto de ondas de sensações, funções e conceitos. Não há porto seguro, mas navegações possíveis na fenda aberta ardente, onde criar é compartilhar visões extraindo os instantes fugidios do caos febril, das gélidas sombras, e preparar o espírito como gatilho para o próximo salto no firmamento. Sujeitos que, como enfatiza Deleuze (1972-1990, p. 134), “[...] são grãos dançantes na poeira do visível, e lugares móveis num murmúrio anônimo”. Espíritos que passam a acompanhar essas danças dramáticas em meio à 104 • 105

vida com Deleuze (1997, p. 11), que afirma que “a literatura está do lado do informe, ou do inacabamento [...]”. No qual: “Escrever é um estado de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se [...]. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”. Um exercício vampiresco, imagético do pensamento, colocando-se com gozo filosófico no lugar de um ser espiritual com o qual me ocupo. É a imaginação que atravessa os domínios [psicológico, orgânico, químico], as ordens e os níveis, abatendo as divisórias, co-extensiva ao mundo, guiando nosso corpo e inspirando nossa alma, apreendendo a unidade da natureza e do espírito, consciência larvar, indo sem parar da ciência ao sonho e inversamente (DELEUZE, 1988, p. 352-353).

Dissipando neblinas Trata-se de um exercício noológico, investigando imagens do pensamento, dissipando neblinas transcendentais ilusórias, pois não há um começo constitutivo, um modelo para copiar. Sabendo que “a subjetividade empírica se constitui no espírito sob efeito dos princípios que o afetam; o espírito não tem as qualidades próprias de um sujeito prévio” (DELEUZE, 2001, p. 20). Em sua obra Conversações, Deleuze fala em noologia como “estudos das imagens do pensamento”. Uma imagem do pensamento como um sistema de coordenadas, dinamismos, orientações – o que significa pensar e “orientar-se no pensamento” –, a qual tem variado muito ao longo da história (DELEUZE, 1990). Pensando com Deleuze, a noologia faz aparecer à imagem do pensamento, que permite pensar nesta ou naquela direção; imagem como horizonte, reservatório, relação de forças sensíveis para a construção de mapas do pensamento. Em que o tempo filosófico é de coexistência que não exclui o antes e o depois, mas se superpõe numa ordem estratigráfica. O texto então desliza entre operações de espíritos criadores e compõe um método espiritográfico, que efetua mergulhos na água da vida, através de exercícios de linguagem. Água viva que transborda, “[...] massa indiferenciada, a infinidade dos possíveis, contêm todo o virtual, todo o informal” (CHEVALIER, 1998), reservatório de energia de um espírito

que age diretamente por si mesmo, enquanto lê e escreve. Tem na escrileitura uma infinidade dos possíveis de uma composição do pensar andarilho, rico em virtualidades errantes. Desafios entre correntes de escrita e leitura como um tiquetaquear que pulsa veias, do sangue que bombeia coração e intelecto, imenso reservatório de energia vital.

Fome antropofágica O Alfabeto espiritográfico: Escrileituras em educação é também composto de vinte e seis letras que tratam do conceito espírito, servindo como mola propulsora ao espírito escrileitor e para suas produções espiritográficas possíveis. Há neste processo uma fome antropofágica de um pensar circulovicioso, como o da serpente que morde seu próprio rabo. Um “serpensamento”, uma forma de pensar (CAMPOS, 1984) que por vezes torna-se protagonista voraz e satânica e que serpenteia nos labirintos do espírito mordendo o que pode. Fato que gera alterações de vozes: mais suave, indignada, persuasiva, delicada, irônica sem descuidar da leveza, como nos lembra Italo Calvino, ao falar em Valéry: “É preciso ser leve com o pássaro, e não como a pluma”. Escrita espiritográfica variante em “busca da leveza como uma reação ao peso de viver” (CALVINO, 1990, p. 28). Escritas tecidas em alinhavos, nas oficinas promovidas pelo Projeto Escrileituras. Seus desdobramentos, sua construção e arquitetura em meio à vida, movimentos e formas operatórias na educação e também na filosofia e na literatura. Aludindo novamente a Valéry, quando fala em Descartes e seu pensamento vivo, não se trata de uma doutrina que pretende ensinar qualquer coisa da qual não sabemos absolutamente nada, mas um método que opera “[...] transformações sobre aquilo que já sabemos algumas partes, para daí extrair ou compor tudo quanto do assunto podemos saber” (VALÉRY, 1952, p. 27). Uma aventura do espírito humano, dedicada a pensar o ser espiritual que elabora conceitos e a analisar a inventividade das matérias textuais e da vida como processo de geração das paixões da inteligência. A própria criação do processo espiritográfico enquanto ele se faz fluxo de escrita afirmativa, mais do que espíritos e conceitos relacionados facilmente identificáveis, trata-se de fases – palavra valéryana – que se 106 • 107

descobrem, momentos que se revelam pela proximidade à disposição de forças do sujeito que lê e escreve. Estados de existência compositiva, tendo na grafia da palavra regada, no conceito dramatizado, um valor potencial de uma escritura que emerge do punho, da mão que rabisca, expressando os pensamentos de um espírito amante que atravessando desertos, encara mistérios, transmutações, sonhos e percepções insones. São tramas – como alude Valéry – que se apresentam ao espírito, uma diversidade em meio à qual não há uma determinação única e ilusória que imita o real, mas o possível-a-cada-instante de um texto que se compõe. Os movimentos do espírito procuram decifrar o que está além de o que é espírito. Para tanto, evoco Gilles Deleuze e o seu método de dramatização (DELEUZE, 2006) que se junta a Paul Valéry na construção do alfabeto espiritográfico. Assim, ampliam-se os campos exploratórios mais vastos para um conjunto de “[...] coordenadas múltiplas que correspondem às questões quanto? quem? como? e quando?” (DELEUZE, 2006, p. 112). Isso, para investigar como opera um espírito nos campos pedagógicos, filosóficos e literário, nos quais o já criado nesses três domínios transcende e afirma uma nova composição, e com ela faz dos exemplos empíricos de escrita uma aventura do informe, em que “É do ‘aprender’, e não do saber, que as condições transcendentais do pensamento devem ser extraídas” (DELEUZE, 2006, p. 238). Acompanha este andar aventureiro – que possui e é possuído – as sedes de conhecer, o pensar imediato, as alegrias de perceber, de “[...] sentir iluminar-se pouco a pouco um reino de inteligência – reaviva indefinidamente cinzas secretas da alma. Cada aurora é primeira. A ideia que chega cria um homem novo” (VALÉRY, 2009, p. 47). As Oficinas de Transcriação, promovidas pelo Projeto Escrileituras tornaram-se um meio de efetivação dessas efervescências espirituais. Momentos de capturas férteis, de encontros de vida num campo processual mesclado de pesquisa, criação e inovação. Um laboratório-oficina, um ateliê de experimentações espirituais e operatórias que primam pela elaboração do pensar, junção de três caóides – filosofia, ciência, arte – em ação dialógica e co-criativa. E nesse movimento potencial compositivo, costura e tece pensamentos enquanto investiga: o que pode um espírito escrileitor?

Conatus-Encontros O que pode um espírito escrileitor? Os espíritos com quem travamos relações intensas e que atravessaram os corpos de olhar atento, permitindonos investigar suas obras e os atos vitais de uma criatura do pensamento, já carregam agora outro espírito. As afecções são inevitáveis e há uma ética e um direito natural nisto tudo. Aludindo a Spinoza, espírito (mente) e corpo são uma só coisa, e “[...] a ordem das ações e das paixões de nosso corpo é simultânea, por natureza, à ordem das ações e das paixões da mente” (SPINOZA, 2007, p. 167). De nossa passividade ou atividade advirão nossas alegrias e dores. Dependendo, então, teremos de nos autoinvestigar na busca por uma resposta. E aqui não se procura um ideal moral platônico, mas uma avaliação do que suporta potencialmente um espírito escrileitor. O espírito escrileitor pensa o que lhe afeta o ânimo, que “[...] não pode existir se não existir, no mesmo indivíduo, ideia da coisa amada, desejada” (SPINOZA, 2007, p. 81). Assim, um corpo escrileitor encontra outro corpo que se compõe ao seu com alegria, pois ama e deseja. Caso esta relação não se componha com a sua – um corpo que o afeta de tristeza –, ele faz tudo aquilo que está em seu poder para afastar a tristeza ou destruir esse corpo. É disso que trata este método espiritográfico aqui exposto, ou seja, dar oportunidades aos espíritos escrileitores para que seus corpos tenham a oportunidade de manter novas relações que convenham à sua própria natureza. E o termo conatus nos serve, pois o conatus é a procura do que nos é útil, nos alegra, nos faz bem, a cada instante desta procura por uma prática espiritográfica. Com ele, temos o direito e o poder de preservar nossas existências, e com isso, marcar encontros com os espíritos que nos são caros. E isto requer esforço, luta, pôr em ação nossas potências de conhecer, de pensar e de exprimir pensamentos, e com esses pensamentos, quem sabe remodelar a visão ética do mundo e ir um pouco mais longe do o que nos impõe o senso-comum. Através de uma filosofia gaia que aumente nossa potência de agir, longe da tristeza, geradora de desesperança e do medo. 108 • 109

Labirintos espirituais Uma espiritografia então passa pela busca metódica dos labirintos espirituais dos quais nos ocupamos, escolhemos por paixão e necessidade. Um jogo labiríntico como o de Miller (1974, p. 183): “O labirinto é meu campo de caça preferido, e quanto mais fundo eu cavo na confusão, melhor me oriento”. E no jogo co-criamos, experimentamos novos estados poéticos, composições de vida que proliferam através de exercícios inventivos de pensamento. Espírito inseparável da matéria corpo, inteligência criadora – sempre em processo aventureiro, seguindo fronteiras, margeando superfícies – que investiga e experimenta o pensado em nós, em que “o mais profundo é a pele”, expressão considerada sábia por Deleuze (DELEUZE, 2003, p. 11), pensando com Valéry. Pensar com renovação é crucial como processo de uma espiritografia, fazer uso de uma obra de arte, de uma obra literária ou científica e operar sobre elas. Produzindo um drama ou uma comédia do intelecto, no qual a criação tem valor espiritual, pois pulsa e move pensamentos e os torna arte por oscilar, fazer variar os fluxos espirituais e saltar de um assunto a outro em self-variance, sabendo que nada há neste processo de permanente. Promovendo um encontro de espíritos que pensam e experimentam, em meio à vida, com seus estados poéticos, suas loucuras e seus delírios procurando responder “à questão mais simples do mundo: Que pode um homem?” (VALÉRY, 1996, p. 115). E assim, são retiradas as algemas da imaginação; a louca da casa condenada passa a ser bem-vinda, adotada como companheira de novos nomadismos espirituais. Espírito observador curioso, aventureiro que se propõe viajar por lugares inexplorados. Ciente de que “[...] a única e verdadeira viagem, como observou Proust, não seria viajar por centenas de diferentes países com o mesmo par de olhos, e sim ver a mesma terra através de uma centena de diferentes olhos” (LAING, 1989, p. 28). O projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida Observatório da Educação CAPES/INEP “serve como disparador de cenários que pensam a Educação com e na vida”, um processo escrileitor, de uma “escrita-pela leitura ou da leitura-pela-escrita” (DALAROSA, 2011), processo aberto a

interferências variadas na medida em que é produzido como processo de pensamento. Movimentos extratores de forças que favorecem, como diz Corazza, “as culturas do dissenso” para reinventar novas formas, novas “significações de indivíduos e de grupos” (CORAZZA, 2011). As experimentações apresentadas aqui são frutos das pesquisas e trazem a espiritografia como movimento escrileitor o Alfabeto Espiritografico: Escrileituras em educação, produz contágios, emitindo convites aos novos pensares que têm na invenção imaginativa uma abertura onde ressoam forças embrionárias de escritura. E assim treinar honestamente o espírito para planejar a navegação em águas plurais. Navegação que não pode ser estabelecida previamente, senão no próprio navegar. É disso que se trata!

Referências CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. (Tradução Ivo Barroso). São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CAMPOS, Augusto. Paul Valéry: A serpente e o pensar. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números) /Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, com colaboração de: André Barbault... [et al.]; coordenação Carlos Sussekind; tradução Vera da Costa e Silva... [et al.]. – 12. Ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. CORAZZA, Sandra Mara. Notas para pensar as Oficinas de Transcriação (OsT). In: HEUSER, Ester Maria (Org.) Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá, EdUFMT, 2011b. (Coleção Escrileituras) DELEUZE, Gilles. Conversações. (Tradução Peter Pál Pelbart). São Paulo: Ed. 34, 19721990. ______. Diferença e repetição. (Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 2006. ______. Crítica e clínica. (Tradução Peter Pál Pelbart). São Paulo: Ed. 34, 1997. ______. Empirismo e subjetividade. Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. (Tradução Luiz B. L. Orlandi). São Paulo: Ed. 34, 2001. ______. Lógica do Sentido. (Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes). São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003. ______. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006 (Org. Luiz B. L. Orlandi).

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DELEUZE, Gilles. Désir et plaisir. Magazine Littéraire. Paris, n. 325, oct., 1994, p. 57-65. ______; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. ______; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Ed. Escuta, 1998. DALAROSA, Patrícia Cardinale. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida: Observatório da Educação/CAPES/INEP. In: HEUSER, Ester Maria (Org.) Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá, EdUFMT, 2011. (Coleção Escrileituras) LAING, Roland David. O eu e os outros: O relacionamento interpessoal. (Tradução Aurea Brito Weissenberg). Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 1986. MILLER, Henry. Trópico de capricórnio. (Tradução Aydano Arruda). São Paulo: IBRASA, 1974. SPINOZA, Benedictus de. Ética. (Tradução Tomaz Tadeu). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. VALÉRY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. (Tradução Marcelo Coelho). Rio de Janeiro: Imago, 1996. ______. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. (Tradução Geraldo Gérson de Souza). São Paulo: Ed. 34, 1998. ______. Monsieur Teste. (Tradução Cristina Murachco). São Paulo: Ática, 1997. ______. O pensamento vivo de Descartes. (Tradução Maria de Lourdes Teixeira). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1952. ______. Alfabeto. (Tradução Tomaz Tadeu). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

A Produção de escrileituras na problematização do mal-estar docente: um estudo com os professores da rede pública estadual de ensino do RS Clara Lisandra de Lima Silva Carla Gonçalves Rodrigues

Resumo O presente trabalho trata de uma investigação realizada com os professores da rede pública estadual de ensino do RS, sobre a temática mal-estar docente (ESTEVE, 1999). Por meio de abordagem metodológica mista, procurouse averiguar a incidência do fenômeno, bem como problematizá-lo a partir de Ateliês de escrileituras (CORAZZA, 2010). Neste texto, enfocam-se os resultados qualitativos produzidos por intermédio da produção de escrileituras, os quais indicaram outras possibilidades para conceber o mal-estar docente, tais como a relação com um discurso depreciativo sobre a docência e a existência de satisfação no exercício da profissão.

Palavra-chave Educação. Mal-estar docente. Filosofias da Diferença. Escrileituras.

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Uma pesquisa sobre o mal-estar docente A experiência docente fez perceber que a rotina educacional provoca, em alguns casos, sensações de um esgotamento recorrente, atrelado ao contexto em que se exerce a docência e de como se lida com a dinâmica de forças despotencializadoras, ou não, da vida, advindas desse cenário. Observações empíricas detectaram que o profissional tenta driblar o dia a dia professoral com um viver saudável, imerso em burocracias que dizem dos modos de ser professor e em meio a sinais que estabelecem o tempo de um ensinar e aprender. Por um lado, educadores que não se deixam abater, fazendo de suas práticas um processo prazeroso de renovação constante; por outro, professores cansados que se afastam do ambiente de trabalho, alegando mal-estares de ordem física e/ou mental. Tais considerações levaram à realização desta pesquisa, propulsoras para estudar um fenômeno denominado, atualmente, de mal-estar docente. O termo refere-se aos “[...] efeitos permanentes de caráter negativo que afetam a personalidade do educador, como resultado das condições psicológicas e sociais em que se exerce a docência” (ESTEVE, 1999). Está relacionado a isso o absentismo trabalhista e, por vezes, em situações mais graves, o adoecimento. A temática refere-se, ainda, às maneiras de ser professor, suas satisfações e/ou incômodos atrelados à rotina laboral. Acreditou-se, ainda, na relevância do assunto pensando no quanto a sua compreensão e problematização poderiam compor outras formas de pensar o referido fenômeno, abrindo brechas no que está posto sobre o tema. Nessa perspectiva, a investigação foi orientada a partir de um enfoque misto, adotando-se os seguintes instrumentos metodológicos: revisão bibliográfica, documental, questionário, intervenção baseada em Ateliês de escrileituras e a realização de entrevistas, estando o procedimento de análise em coerência com o método utilizado. Os sujeitos de pesquisa correspondem aos professores da rede pública estadual de ensino, atuantes em uma cidade da região sul do Rio Grande do Sul.

Cabe salientar que participaram da pesquisa 23 educadores de uma determinada instituição escolar da localidade. A escolha dos sujeitos deu-se em função de observações empíricas relacionadas à ausência dos profissionais na escola a cada três dias, justificada extraoficialmente aos gestores ou legalmente, por meio de atestados médicos. A esse conjunto, agregaram-se os diálogos mantidos pelos professores referentes a uma constante insatisfação com o cenário educacional e suas correlações. Sobressaíram-se, nesse âmbito, o excesso de trabalho, reponsabilidades e o baixo nível de aprendizagem dos alunos. Considerando tais dados, fortaleceu-se a ideia de utilizar como intervenção Ateliês de escrileituras (CORAZZA, 2010), tendo como intenção inicial propor aos educadores um espaço aberto à comunicação (ESTEVE, 1999), na tentativa de ponderar sobre o fenômeno e as vivências professorais. No entanto, para além disso, a produção de escritas e leituras ou leituras e escritas ganharam força desde a vivência em um conjunto teórico-prático que fez provocações nos jeitos lineares de pensar, tendo como base teórica as Filosofias da Diferença (DELEUZE, 1988). Assim, vinculou-se o ato de escriler ao mal-estar docente, buscando linhas de fuga para as concepções pré-prontas que o determinam, que partissem do vivível, da variação do pensamento dos professores que dessa experimentação fizeram parte. Compreendeu-se, também, que o escrever pode estar relacionado à saúde dos sujeitos, sendo empreendido como promotor da potência de vida. Nesse sentido, “a neurose, a psicose não são passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. A doença não é processo, mas parada no processo [...]” (DELEUZE, 1997, p. 13). Logo, ao desenvolver Ateliês de escrileituras para os sujeitos de uma investigação sobre o tema, apostou-se na produção de escrituras como uma maneira de colocar em movimento o pensar, alertando para um estado saudável e concebendo alternativas valorativas da docência. A proposta respaldou-se no projeto de pesquisa, ensino e extensão Escrileituras: um modo de “ler - escrever” em meio à vida (CORAZZA, 2010). Este

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se insere em um conjunto maior, o Programa Observatório da Educação (EDITAL 38, 2010), sendo fomentado pelos órgãos Federais Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). No decorrer dos seus quatros anos de desenvolvimento, fortaleceu-se como uma maneira de se fazer educação, cultivando as escritas autorais e inventivas, rompendo com os modelos que pautam os processos educacionais. Integram o projeto universidades19 que compõem os chamados Núcleos de Escrileituras. O Núcleo UFPel, especialmente, do qual esta pesquisa fez parte, planeja e desenvolve Ateliês formados pela combinação de dispositivos filoliterários, oferecidos ao público educacional, em âmbito geral. Dessa forma, o plano para o decorrer desses encontros baseou-se na ideia de agenciamento (SILVA; CORAZZA, 2004, p. 158), pela qual há “[...] o arranjo, a combinação de elementos heterogêneos, díspares, fazendo surgir algo novo, que não pode resumir a nenhum dos elementos isolados que o compõem [...]”. Contou-se, assim, com a eficácia de um conjunto de subsídios múltiplos, tendo como ponto de partida o tema em estudo, para produzir intensidades e outras existências.

Encontro máquina de guerra para uma existência contemporânea Foram projetados e realizados dois momentos dentro do Encontro Máquina de Guerra para uma existência contemporânea. O primeiro deles foi o Ateliê denominado Conatus, o qual utilizou elementos da filosofia e da literatura para fazer ler e escrever, originando programas de rádio gravados em podcast20. Percebeu-se que o conjunto proposto nesse Ateliê gerou estranhamento nos participantes, expresso, por exemplo, na fala da professora de Educação Física, sujeito dessa investigação: Na primeira oficina, o nosso grupo não estava preparado para aquela atividade, porque trabalhar com

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). 20 É o nome dado ao arquivo de áudio digital utilizado como recurso tecnológico. 19

Filosofia é difícil, a gente trabalhar com Filosofia... Assim... É engraçado. Primeiro porque de alguma forma mexeu comigo, daí eu comecei a anotar e anotar. [...] Então, de alguma forma aquilo mexeu comigo, me produziu um sentimento, me provocou, mas é claro que eu não pude ficar até o fim. Tal estranhamento provavelmente se faça presente por experienciarem uma prática de linearidade e homegeneidade curricular, normalmente observada nos planos existentes em ambientes escolares, Logo de início, após a apresentação da proposta escrileituras e da pesquisa acerca do mal-estar docente, o primeiro subsídio21 utilizado causou desconfortos, vigores e conversações. Evidenciou-se que a saga metamorfoseada demonstrada na ficção teceu provocações na vida docente, pela ênfase dada em situações de descaso, abandono e conformação demonstrados no personagem principal, Gregor. Um dos educadores, entretanto, manifestou-se destacando que se está em uma situação, sempre inconformado com ela, alertando para o fato de que nem todos os profissionais estão conformados com a realidade em que vivem ou que lhes é imposta. Na continuação, ao apresentar fragmentos do vídeo Café Filosófico (TIBURI, 2012; MACHADO, 2012) complementados por trechos do filme “Quando Nietzsche chorou” (2012), abordaram-se os conceitos filosóficos de Corpo, Alma e Potência de Vida (SPINOZA, 2007) e de Eterno Retorno (NIETZSCHE, 2009). Esses enfoques levaram à problematização das maneiras com que recebem a exterioridade educacional, lidando de forma potencial ou não com o contexto. Nesse sentido, um participante escreve que a energia que se troca com o aluno também influencia o conjunto, enquanto outro questiona: Que ser humano é este, que tem uma profissão digna, vem para escola e fica doente? Precisamos ser felizes no dia a dia, não só na aposentadoria. Pensa-se que as forças que emanam do ambiente educacional atravessam a corporeidade constantemente, formando subjetividades (GUATTARI,

Adaptação em quadrinhos (CORREIA, 2012) do texto “A Metamorfose” de Kafka.

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1992), por vezes, desanimadoras e adoentadas. O subjetivo é, então, construído e reconstruído, tendo em vista o nível de afetação que a energia dos elementos circulantes à volta provoca. Sejam valores, palavras, coisas e sentidos dados ao que afeta. Portanto, dependendo da maneira como o profissional lida com o efeito cumulativo desses aspectos, o desconforto professoral pode torna-se permanente, incidindo na sua forma de viver. No percurso do Ateliê, os professores destacaram, em meio à produção de escrileituras, que há uma cultura formada, de que se é culpado (pelos fracassos educacionais). Esse é o discurso que chega até nós, estando nos ditos da mídia, da Universidade e sociedade. Tais dizeres depreciativos da profissão ganham força na repetição, sendo instituídos como verdades absolutas, o que foi considerado pelos partícipes como um fortalecedor do mal-estar docente. Na medida em que o profissional passa a crer nesse conteúdo, tem sua autoestima afetada e menos ânimo para o exercício da profissão. Salientase que a linguagem pode ser constitutiva de um pensamento, nesse caso, desanimador da docência. Quanto aos poldcasts produzidos por meio do arranjo de variadas escrileituras realizadas ao longo do Ateliê, destaca-se “A vaca”, apresentado no final do encontro. Esse conferiu aos educadores uma representação pejorativa da categoria, a qual se insere no discurso antes mencionado. Em uma escrita provocativa, o relato compara o profissional ao animal, retratando as falas dos alunos quando desagradados pelas atitudes docentes: Aquela vaca me rodou, me botou na rua, não me deu dois décimos [...]. Percebese que o ato de escrileiturar, aqui, efetivou-se a partir das intensidades produzidas no Ateliê atrelado a arranjos com a própria profissão, fazendo pensar sobre qual imagem o educador faz de si, como presume que o veem e, mais ainda, como que isso pode fortalecer sintomas de desconforto no exercício da atividade docente. O segundo Ateliê, Rabiscos de sensações na produção de um corpo crianceiro, conjugou atividades e brincadeiras do mundo infantil, também, com aportes literários e filosóficos distribuídos em circuitos. No decorrer,

foram realizadas escrileituras professorais, finalizadas na elaboração de um livro coletivo. A vivência nesse encontro pareceu aos professores menos densa do que a experiência proposta no Conatus, demonstrada, por exemplo, na fala da professora sobre aquilo que lhe passou durante o Ateliê, possuindo caráter lúdico de ativação de um estado crianceiro na vida cotidiana: eu posso me expor, eu posso brincar, eu posso cantar, eu sou desengonçada. Certo! Eu posso ser mais autêntica. No circuito inicial, os sujeitos de pesquisa experimentaram um conjunto de brincadeiras22 do mundo infantil que, ao mesmo tempo em que trouxeram leveza à rotina escolar, desestabilizaram momentaneamente a corporeidade dos participantes. Dando continuidade, o ciclo seguinte possibilitou aos professores o contato com alguns tipos23 de brinquedos, além da apresentação de subsídios literários (BARROS, 2012; BARROS, 2012; CORTÁZAR, 2009). Acreditou-se que, ao vivenciar essas etapas do Ateliê, os educadores tenham sido capturados pelos signos (DELEUZE, 1992) que tais dispositivos provocaram, escrevendo: busca-se aguçar o imaginário, brincar com as coisas do mundo, vendo a vida de um jeito crianceiro; ou ainda: só os poetas brincam com as palavras? Claro que não, quanta pretensão, os professores brincam com as palavras. A apresentação de trechos do Abecedário (DELEUZE; PARNET, 1997), além da projeção do vídeo ‘Pensamento infantil’ (2012) e do livro ‘Mania de explicação’ (FALCÃO, 2001) compôs o último circuito de atividades. Ao final, os professores foram convidados a elaborar um livro coletivo que, dentre as escritas, trouxe a seguinte: antes caminhava sozinho, sem rumo, sem destino, mas com o tempo fui encontrando mais colegas e, assim, a caminhada ficou mais alegre, descobrindo muito mais. Tal percepção reporta que o encontro com o próximo institui um momento de troca de singularidades (ESTEVE, 1999), seja ela sobre a problemática escolar, acerca de assuntos pessoais ou constituída desde a participação em cursos ou eventos, no caso desta investigação, em Ateliês de escrita e leitura. Batatinha 1, 2, 3, estátua, massinha de modelar e escravos de Jó. Túnel de tecido, bola, elástico, bolinha de sabão, futebol de mesa, bonecas e outros.

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Escrileituras em meio à vida: desterritorializando o mal-estar docente A participação nos Ateliês fez com que os professores vivenciassem um espaço produtivo de leituras e escritas, no qual se pode pensar sobre as experiências pessoais e profissionais de bem ou mal-viver, vislumbrando outras possibilidades de existências educacionais. Nesse âmbito, o deslocamento de concepções preestabelecidas acerca do mal-estar docente formou-se em fissuras de pensamento na medida em que o educador tenha se sentido provocado por um plano de trabalho baseado na diferença (DELEUZE, 1988). Assim demonstra um professor, ao ser perguntado sobre a participação na ação intervencionista, dizendo que os ateliês foram interessantes porque me ajudaram a voltar pra mim mesmo. [...] Eu estou em um processo de reconstrução pessoal e profissional. Eu sinto a necessidade de encontrar novas narrativas atento a mim mesmo. Eu hoje estou procurando outra narrativa, além da historiográfica, para tentar me referenciar, para tentar auto-referenciar, novamente. Dessa forma, a partir das escrileituras produzidas em meio à vida passouse a considerar que, além das obviedades do senso comum que dizem de uma categoria adoentada, existem profissionais que não se sentem incluídos nessa representatividade. Por um lado, eles desconfiam das totalidades relacionadas ao mal-estar docente, garantindo que há satisfação e vivências saudáveis no exercer da profissão. Além disso, apontam que os pedidos de afastamento do ambiente de trabalho nem sempre dizem respeito a acometimentos por enfermidades, mas que podem ter relação com as demandas pessoais do educador. Por outro lado, no entanto, levantam à hipótese de que a repetição de um discurso depreciativo referente à docência possa relacionar-se ao fenômeno, formando subjetividades que afetam negativamente a rotina profissional, considerando, assim, o mal-estar docente, também, como algo imposto a uma classe que se deixa influenciar.

Referências BARROS, M. de. Histórias da unha do dedão do pé do fim do mundo. Disponível em: . Acesso em: 30 set. 2012. _____. Só dez por cento é mentira. Disponível em: . Acesso em: 30 set. 2012. CORAZZA, S. M. Projeto pesquisa Observatório de Educação 2010. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2012. CORREIA, P. A Metamorfose Parte 1 (Franz Kafka). Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2012. _____. A Metamorfose Parte 2 (Franz Kafka). Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2012. _____. A Metamorfose Parte 3 (Franz Kafka). Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2012 CORTÁZAR, J. Discurso do Urso. Tradução Leo Cunha Rio de Janeiro: Alerinha Record, 2009.   DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. A literatura e a vida. In: Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. Disponível em: . Acesso em: 28 nov. 2013. _____. Sobre a filosofia. In: Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. _____. PARNET, C. L’ Abécédaire de Gilles Deleuze. Entrevista com Gilles Deleuze. Editoração: Brasil, Ministério de Educação, “TV Escola”, 2001. Paris: Editions Montparnasse, 1997. 1 videocassete, VHS, son., color. EDITAL 38/2010 do Observatório da Educação CAPES/INEP. Disponível em: . ESTEVE, J. M. O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. 3. ed. Bauru: Edusc, 1999. FALCÃO, A. Mania de explicação. Editora Salamandra, 2001. GUATTARI, Félix. Da produção de subjetividade. In: Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, p. 11-44, 1992. MACHADO, R. Café Filosófico - A alegria e trágico em Nietzsche. Disponível em: . Acesso em 24: set. 2012. NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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QUANDO NIETZSCHE CHOROU. Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2012. REVISTA NOVA ESCOLA - Pensamento infantil - A narrativa da criança. Disponível em: . Acesso em: 15 Out. 2012. SILVA, T. T. da; CORAZZA, S. Um plano de imanência para o currículo. In: Linhas de escrita. Belo horizonte: Autêntica, 2004. p. 128 - 205. SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. TIBURI, M. Café Filosófico. A Existência como Doença. Disponível em: . Acesso em: 24 Set. 2012.

Dispositivos, escolas e infantilidade: um estudo foucaultiano em Escrileituras Eduardo Alexandre Santos de Oliveira Ester Maria Dreher Heuser

Resumo A partir dos estudos de Michel Foucault, nessa dissertação analisouse de que modo as escolas atuam enquanto dispositivos de poder-saber que, configurados como estratégias e táticas, constituem os indivíduos sequestrados por elas, as crianças, por meio de uma ideia de infância. Decorrente disso investigou-se a que objetivo histórico tal investimento atende. Para tanto estudou-se o conceito foucaultiano de dispositivo, nas perspectivas disciplinar e de segurança, e como ele atua na constituição dos indivíduos. Após, analisou-se as considerações do filósofo acerca das instituições escolares e algumas práticas escolares de duas instituições de ensino do Estado do Paraná, uma delas vinculada ao Projeto Escrileituras. Para tal análise o dispositivo de infantilidade cunhado por Corazza teve centralidade, o qual investe os pequenos para constituí-los como um povo por vir, o que pode ser observado nas práticas das escolas paranaenses. Por fim, a pesquisa apontou possibilidades de a escola atuar enquanto um dispositivo no qual se exerce ações sobre as ações das crianças, no sentido de afetarem seus pensamentos para que produzam novas formas de existência, novos valores para si, o que parece ser algo possível se forem observadas as práticas na escola de Toledo na qual funciona o Projeto Escrileituras.

Palavras-chave Dispositivo. Poder-saber. Escola. Infantilização. Foucault. Corazza.

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Dispositivos Estiveram em jogo nessa dissertação os dispositivos escolares e sua participação nas estratégias de infantilização. As questões que orientaram a pesquisa foram: como as escolas atuam enquanto dispositivos? Como essas instituições investem nos corpos das crianças, a partir de uma ideia de infância? A qual objetivo tal empreendimento atende? Para responder a tais questões investigou-se, primeiro, a concepção de dispositivos apresentada por Foucault. Esses atendem determinada necessidade histórica organizando uma coletividade local de modo que se tenha uma população planejada para o futuro: as prisões do século XVIII, por exemplo, atuavam de tal maneira. Elas capturavam indivíduos considerados improdutivos e, por meio de processos disciplinares, os educavam a corresponderem ao mercado de trabalho, pois, assim, os malfeitores se sustentariam de forma que não colocassem as vidas de outros membros da população em risco. Essas instituições se pautavam em saberes considerados verdadeiros, os quais justificavam o poder que esculpe os indivíduos à determinada urgência. O saber justifica o poder. O poder é, segundo Foucault, o exercício de ações sobre ações: na prisão, há a ação dos agentes carcerários sobre as dos detentos, na família, há a ação dos pais sobre as dos filhos. São ações que se pautam num determinado saber considerado verdadeiro que constituem sujeitos: no caso dos exércitos do século XVIII, por exemplo, os comandantes aplicam exercícios que deixam os soldados com as cochas grossas, canelas finas, ombros largos. Essas são ações que se pautam no saber de que tais características pertenciam ao corpo que melhor desempenha funções para o ofício militar. Isso é observado, também, na instituição escolar: quando um aluno espirra sem cobrir a boca com um lenço, o professor o adverte verbalmente, dizendo que agira de modo errado. Essa repressão do mestre é uma ação sobre a ação irregular do aluno que está orientada por um saber considerado verdadeiro, como nesse caso, que a gripe é transmitida, também, pelo ar. O poder e o saber são reproduzidos nos dispositivos. Foucault apresenta duas formas de dispositivos: o disciplinar e o de segurança. O primeiro, sobretudo em Vigiar e punir (2007), funciona a partir de quatro

técnicas e três formas de exercer ações sobre as dos indivíduos: colocase um indivíduo numa posição, controla-se seu tempo e suas atividades, labora-se sobre ele gradativamente e dá-lhe uma função de modo que entre em consonância com os demais corpos que executam outras atividades nesse dispositivo. A partir disso, é permitido vigiá-lo e avaliá-lo em torno de uma média: caso não se enquadre nela, aplicam-lhe determinada sanção que atua como medida corretiva. Já o dispositivo de segurança, em Segurança, território e população (2008), está ligado ao biopoder, o qual regula traços biológicos de indivíduos de uma população a ponto de forjá-la para o futuro através da medicalização, da prevenção de contração de doenças, do controle da sexualidade, do consumo de alimentos: os dispositivos de segurança calculam e racionalizam uma população a partir de seus modos de vida já constituídos. Significa que ele é diferente do dispositivo disciplinar: o disciplinar impõe, delimita, determina como os indivíduos deverão se comportar, se conduzir, ou seja, ele estabelece um padrão de normalidade; enquanto o de segurança calcula a população e institui o normal a partir de seus traços naturais. Os saberes de segurança invadem os dispositivos disciplinares e os transformam fazendoos trabalhar na função da segurança da população, ou seja, a disciplina atua de modo tático para a estratégia de edificação de um povo.

Como funcionam as escolas enquanto um dispositivo? Na segurança, ou na disciplina, um dispositivo atua de modo tático e estratégico para constituir sujeitos. A partir disso, pergunta-se: como as escolas funcionam enquanto dispositivos de poder-saber? Percebe-se que essas instituições caracterizam-se como dispositivos, pois, reproduzem poder, formam saberes sobre os indivíduos sequestrados por ela, atendem urgências históricas que se cristalizaram numa forma de moralização burguesa e contribuem para a formação de indivíduos que atendam a perspectiva capitalista. Para evidenciar isso, investigou-se, nos próprios escritos de Foucault, como as escolas atuam enquanto tais, no aspecto da segurança e disciplinar. Nossa pesquisa, no entanto, não se limitou a permanência dos registros bibliográficos foucaultianos, analisou-se, também, as práticas de duas escolas do estado do Paraná, quais sejam, as

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escolas Hypólita Nunes, em Guarapuava e Andre Zênere em Toledo, na qual funciona o Projeto Escrileituras. Constatou-se que ambas as instituições educacionais possuem aspectos dos dispositivos disciplinares e de segurança. Na perspectiva disciplinar vê-se que as crianças da população são sequestradas para o interior delas e passam a ser alunas: assim, elas ocupam determinado lugar planejado (salas de aulas, anos/séries escolares); possuem seu tempo controlado (lhes dão determinadas atividades em certos tempos para que as executem); aprendem os conteúdos de forma gradativa (aprendem a segurar o lápis, depois a desenhar, em seguida a escrever); as funções que seus corpos executam estão em relação com as dos demais alunos para que o aprendizado lecionado nessas instituições tenha efeito. Em virtude disso, pode-se vigiar as crianças no cumprimento de seus deveres e no seu modo de agir; pode-se avaliá-las de modo a edificar saberes sobre cada uma delas (com a ajuda de outros dispositivos que também produzem novas formas de comparação do ser humano, tais como o médico, a família); a partir das avaliações que dizem sobre quem ela é, quando constatado que não alcançam o índice instituído como normal, recebem castigos que visam corrigi-las tais como aulas de reforço, a repetição das lições, entre outros. As escolas também possuem características de dispositivos de segurança: nos estudos de Foucault, assim como nas práticas das escolas paranaenses observadas, percebe-se que elas atuam diretamente no aspecto biológico da população que atendem: educam as crianças visando sua saúde, como por exemplo, na perspectiva da sexualidade – que não devem fazer uso de seu sexo –; e no controle de doenças – cuidar para que possíveis doenças não se espalhem na população de modo que o índice de normalidade desfavorável sobressaia ao aceitável. As crianças são educadas nas escolas por dispositivos que partem de saberes considerados verdadeiros. Significa que se constituiu para esses pequenos, um modo de ser e de agir, o qual fora configurado como uma ideia, a infância. Nessa ideia elas foram consideradas fracas, débeis, dependentes de adultização correta e, a partir disso, são educadas, laboradas e constituídas como sujeitos: isso implica a edificação de determinada população planejada para o futuro a fim de atender a urgência local que se impõem.

As escolas e o dispositivo de infantilidade Modos de fabricar as crianças a partir dessa ideia de infância foi parte do estudo de Corazza em História da infantilidade: a-vida-a-morte e mais-valia de uma infância sem fim (1998) que também se recorreu nesta pesquisa. Nele, a pesquisadora remonta à história da infância e concebe um dispositivo que infantiliza: trata-se do dispositivo de infantilidade, que é disseminado na sociedade e investe as crianças no poder-saber da infantilidade. A infância, assim, torna-se algo estratégico, elemento pelo qual se pode empreender os pequenos sob diversas técnicas. Embora se perceba que a função estratégica da infância seja abordada com vistas à população, Corazza evidencia que as técnicas utilizadas sobre os corpos das crianças são antigas na história da infantilidade: desde a antiguidade, submetiam-se os corpos das crianças a práticas que, ao mesmo tempo em que começam a fabricar a infância e as crianças, as destrói: é aquilo que a pesquisadora denomina em sua tese (1998), como “indecidível da-vida-da-morte” desse dispositivo, o que pode ser observado em três instantes. Num primeiro momento, nas antigas Grécia e Roma, as crianças eram consideradas amáveis quando estavam dormindo ou mortas, já, quando acordadas poderiam ser tidas como crianças-estorvo e, quando se tratava do direito dos pais, eles poderiam, inclusive, matá-las. Tais práticas conviveram com medidas dos pais que visavam protegê-las de males que poderiam consumir as vidas dos pequenos. Num segundo momento, percebem-se técnicas de imobilização das crianças, o enfaixamento, na qual enfaixavam-se os membros das crianças a ponto de lhes dar uma forma humana e de protegê-las de si mesmas. Essa técnica pode ser considerada tanto a favor da vida, na medida em que a protegia, mas também, de morte, pois muitas crianças morriam nesse enfaixamento. Já no terceiro momento, havia a técnica do afastamento, na qual se distanciava as crianças do convívio familiar para serem amamentadas e criadas por amas. Quando retornavam eram mantidas afastadas da família, para aprenderem determinadas formas de se tornarem adultas: trata-se de vida-morte da criança no sentido biológico pelo fato de enviarem-nas ao aleitamento terceirizado, pois muitas morriam contraindo doenças, embora se visasse

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fazê-las viver. Corazza também defende a tese de que se trata de vidamorte da infância o procedimento de adultização das crianças na medida em que busca-se tirá-las da condição de dependentes, pois as inserem na vida adulta. Quando Corazza analisa as Casas da Roda, instituições nas quais se abandonavam as crianças, percebe-se que as práticas sobre os corpos dos pequenos entram num aspecto disciplinar e biopolítico o que permite instrumentalizá-los: os expostos abandonados na Roda eram batizados, enviados a outras famílias que eram pagas para cuidá-los e quando retornavam à Roda, ainda eram enviados a arsenais de guerra (no caso dos meninos) e para, trabalharem como domésticas (no caso das meninas): essas medidas visavam aproveitar as forças desses corpos de modo a bem utilizálos, como por exemplo, para que aumentassem as forças internas do Estado que habitavam com seu trabalho; para que formassem famílias nucleares, no âmbito burguês o que implicaria numa população moralizada que não usasse seu sexo de forma desregrada e disseminasse crianças que poderiam ser novas expostas. Isso significa dizer duas coisas: a primeira é que foi constituída para a infância, um modo de ser e que, a partir dele, se instrumentaliza esses indivíduos. Também, significa dizer que nessa forma de infância, educam as crianças de três formas: quanto ao sexo, pois, seus corpos foram concebidos nessas relações que muitas vezes eram ilegítimas – induziamnos a formação de família nuclear, ao casamento –; adultizando-as biologicamente – controlando o crescimento de acordo com saberes verdadeiros – e disciplinando-as para que se governem nos modos de vida considerados corretos. As escolas participam desse contexto de infância, com vistas a constituir sujeitos que formem uma população planejada. Elas educam as crianças nessa ideia, mas também, as retiram da condição de infantil, tornandoas, adultas, ou seja, essas instituições atuam no indecidível da vida-damorte da infância. Educar as crianças nesse conceito de infância permite instrumentalizá-las para uma necessidade histórica que impõe: induzemnas a participar do modo de vida burguês pré-estabelecido, assumido como verdadeiro pelo Estado. Sendo assim, as escolas, ao servirem ao Estado,

visam educar o sexo, bem adultizar e tornar cada pequeno capaz de se governar na moral pré-estabelecida. As escolas paranaenses observadas operam o dispositivo de infantilidade nesses três campos: visa-se bem adultizar as crianças, controlando seu desenvolvimento biológico quando regulam merendas, quando impõem atividades nas quais desenvolvem coordenação motora; almeja-se o controle de seu sexo, o que mostra que não poderão praticá-lo nessa idade; e também, a partir de processos disciplinares, instituem formas de conduta consideradas corretas, pelas quais as crianças deverão guiar-se, ou seja, elas aceitam essas formas como verdadeiras e se monitoram nelas, sem que haja a necessidade do dispositivo que as vigiam. Guiando-se nessa moral, sobretudo sexual, sendo bem adultizada, forte capaz de esperados desempenhos, as crianças se enquadram na perspectiva de adultez que propicia a manutenção do tipo de vida burguês, o qual implica a manutenção das forças estatais. Após este estudo, questiona-se: se as escolas, são dispositivos que, ao operarem o dispositivo de infantilidade, participam da instrumentalização das crianças de modo que partilhem de uma mesma moral de um tipo de vida pré-estabelecido, significa que essa instituição não permite outras possibilidades de vida? Não, exatamente. Há instituições escolares como a escola Andre Zênere em que funcionam projetos como o Escrileituras, o qual, por meio de Oficinas de Transcriação visa afetar os alunos de forma que seus pensamentos não se limitem a atos de recognição, que apenas reconhecem os valores morais e forma de vida pré-estabelecida, mas que produzam novas formas de se viver, que deem novos significados às coisas. Se, como diz Foucault, todos se encontram nas malhas do poder e onde se passa, exerce-se e sofre seu exercício pelas ações, as ações dos oficineiros do Escrileituras atuam sobre as das crianças, atuando como violência positiva na medida em que afetam seus pensamentos movendo-os a produzirem novos significados e novas formas de vida. Em suma, conclui-se que, se um dispositivo escolar investe as crianças no conceito de infância para que se constitua numa população moralizada e com corpos saudáveis para certos desempenhos que mantenham o Estado, se por essa instituição, visa-se educar as crianças em saberes e morais instituídos como verdadeiros, há, também, nos aparatos escolares, 128 • 129

brechas que possibilitam produzir estratégias como essas das oficinas do Projeto Escrileituras que saem dos moldes da disciplina dura da instituição: significa que as escolas, apesar de muita resistência, permitem a produção de perspectivas nas quais os alunos constituam-se como sujeitos criadores, que inventem aberturas para outros modos de vida. Deste estudo, que se deu entre livros e escolas, em meio à vida, produziu-se questões que impelem a pesquisa a seguir adiante, quais sejam: como as escolas poderiam atuar enquanto dispositivo que permite aos sujeitos constituírem-se enquanto tais, fora dos moldes do poder-saber enrijecido? Faz sentido pensar as escolas enquanto dispositivos que propiciam forças que violentem positivamente o pensamento das crianças, provocando-as a produzirem novas formas de existência? Como o exercício de poder poderia atuar nessa perspectiva? Estas são questões a serem abordadas num estudo posterior.

Referências CORAZZA, S. M. História da infantilidade: a-vida-a-morte e mais-valia de uma infância sem fim. 1998. 619f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998. FOUCAULT, M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. _____. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 34. ed. Petrópolis, Vozes, 2007.

DIdática & tradução

A voz acena: a presença da voz na cena da aula Alessandra Christina Arantes Abdala Azevedo Silas Borges Monteiro

Resumo A voz do professor, na cena da aula, tem um protagonismo e é utilizada como parte fundamental para desenvolver os procedimentos envolvidos no ensino. Sob a expectativa de que algo seja comunicado, marca a presença. Na cena da aula o comando é da voz. Nela, tem-se a impressão de que o professor fala para seus ouvidos, para ouvir a sua voz, para si, para emitir a voz. Ele precisa de audiência e não necessariamente de ouvintes. A regência dessa cena pela voz foi aqui estranhada e desterritorializada pela discussão que se faz na filosofia da diferença de fonte derridiana. Do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida OBEDUC/CAPES/INEP/UFMT, a partir da Oficina de Biografemas, uma forma de intervenção, resultou a construção de um Phonodidaticário.

Palavras-chave Voz. Aula. Cena. Escrileituras. Phonodidaticário.

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Do começo “Mas para começar do “começo” não se começou exatamente no começo, tudo já tinha sido começado.” O início estava destraçado (BENNINGTON, 1996, p. 22-33). Ao dizer sim ao problema – “a voz acena“, “a presença da voz na cena da aula”, fui tomada pelo desejo de questionar este caráter central de regência que a voz do professor apresenta nesta cena, onde todos convergem a ela, todos se posicionam em seu entorno. A voz me interessa porque ela sempre diz algo, e sob o nome de uma expectativa, que algo seja comunicado. A voz marca a presença e é essa presença que está em questão no fenômeno da voz que pretendi pesquisar. Na cena da aula a voz do professor parece funcionar como um cordão umbilical, que “conecta” e “nutre” os ouvidos dos alunos. O maquinário que opera na aula, voltado para a transmissão do conhecimento, parece saltar de uma boca que fala para ouvidos que a escutam. Derrida se atenta para a centralidade da voz nesta cena e discute que a filosofia, e o estilo de docência magistral da fala como representante da verdade, nasceu com Sócrates que fala e não escreve. A fala se sobrepõe à escrita, porque a fala, na perspectiva socrática, é a representante da essência do fazer da docência. Neste ponto, provoca uma torção: há uma lógica centrada na fala, uma razão-fala que dá centro à filosofia, ou um discurso racional centrado no fonocentrismo e logocentrismo. Tece críticas à centralidade da palavra apoiada no logos, das ideias, dos sistemas de pensamentos a serem entendidos como matéria inalterável, fixadas no tempo; presentes sobre uma forma de verborreia do modo como a cultura ocidental se estruturou. Esta pesquisa cujo elo imagético repousou na voz, foi criando e sendo criada no tempo cronológico do mestrado, realizado no Instituto de Educação da UFMT, gestada no Grupo Estudos de Filosofia e Formação (EFF), sob a regência do Prof. Silas Borges Moteiro. Exatos 24 atos que desembocaram em uma dissertação, cujo protagonismo girou sobre o relato de uma experiência empírica, fruto do projeto Escrileituras: um modo de “ler-escrever” em meio à vida. Foram realizadas Oficinas de Transcriação do

tipo biografemas, com professores da Escola Estadual Paciana Torres de Santana, parceira do projeto em Mato Grosso. A partir desta experiência, construiu-se um Phonodidaticário, destinado a colocar a voz a bailar em cena.

A voz guarda uma relação intrínseca com a educação O trabalho docente é uma atividade que se constitui com profundos vínculos ligados à cultura e a tradição. Ao falar da tradição, Sócrates assume status de protagonista, pois com ele parece ser inaugurada uma experiência do pensamento e da palavra, com valor educativo e político que recebe o nome de filosofia. Sócrates funcionou como um elemento de reflexão para Nietzsche e Derrida, por se tratar de um dos personagens centrais da tradição do pensamento metafísico. A voz na aula é tida como portadora do logos, do ser enquanto presença, produtora da verdade, pois não necessita de intermediários, ela está presente à consciência mesma. A voz assume a extensão imediata de quem a articula, na proximidade absoluta de sua presença. Seu sopro é escutado pelo aluno. Ciência é a presença da razão no comando de uma lógica científica, que se faz por argumentos exteriorizados pela voz que proclama e clama. Seu uso foi tão propalado, considerado veículo da racionalidade, logo, arauto da ciência.

Argumentos para uma oficina Da voz: “Viria em primeiro lugar.” (DERRIDA, 1999, p. 86). Da orelha: “É preciso acreditar para ouvir, é preciso esticar a orelha com uma fé sempre sem garantia.” (DERRIDA, 2012, p. 261). O uso da voz pelo professor nas instituições de ensino se apresenta como o primeiro lugar. Sua fala serve a lei, a ordem, à ciência e é vista como representante da verdade. O aluno ”deve”, para ouvir a aula, esticar sua orelha e acreditar na verdade proferida. “O ensino parece operar através do discurso, precisamente porque no discurso é onde se aloja o saber.” (JERUSALINSKY, 2011, p. 125). A cena: território da “sala de aula” é quadrado. O quadrado da aula é atravessado, encetado, esporeado, pelos discursos do professor e dos

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alunos. Esta comunicação desencadeia uma gama rumorosa de vozes: thorubos. “Rumor da multiplicidade de vozes” (COSTA, 2011, p. 13). A boca professoral que fala e a “orelha ouvinte” do aluno: ambiente para colocar em funcionamento o método glótico24. A voz e a cena: a cena da aula está incrustada do tempo cotidiano, o qual a viu nascer. E neste tempo, a voz do professor é atenuada pela escuta criativa do aluno. Esta relação glote-timpânica precisa ser pensada naquilo que sugere, esconde, dissimula, neste espaço performativo. O ritornelo desta oficina foi pensar a voz e o seu uso pelo professor como uma forma de atravessar e problematizar os caminhos deste trajeto (ou seria manejo?) pedagógico, através de um deslocamento deste lugar, dito por Nietzsche, como marcado por ser do professor, o lugar daquele que fala, cabendo ao aluno ser aquele que escuta. O professor necessariamente precisa ser o detentor do direito da fala?

Do roteiro: Rubricas: do Projeto Escrileituras. Foi concebido, como sendo disparador de cenários que pensam a Educação com e na vida e, “[...] como um território vivo de procedimentos, que atualizam e que ressoam o problema na leitura e na escrita.” (DALAROSA, 2011, p. 12). Atos: modalidades de oficinas: filosofia, teatro, lógica, música, biografema e artes visuais. Cada tipo de oficina compreende uma abordagem procedimental diferente em relação à leitura e a escrita. Meio: biografema como uma possibilidade de experimentar a voz através de escritas vividas. Corazza (2010, p. 86) atenta para o fato de que este método “[...] não pode ter por objeto, senão a própria linguagem [...]”, na “[...] medida que serve para baldar todo o discurso que pega”. Fim: construir, através de Oficinas de Transcriação do tipo Biografemáticas, um Phonodidaticário para colocar a voz do professor para bailar na aula.

Para dar conta desta intenção, usei como apoio, um recurso criado para a discussão que realizo na dissertação: A voz acena: a presença da voz na cena da aula, “batizado” de método glótico.

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Do cenário: Escola Estadual Paciana Torres De Santana, parceira do Projeto Escrileituras no núcleo UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), na cidade de Cuiabá. Dos protagonistas: Professores. No total, oito. Todos do Ensino Fundamental I. Do registro: Da boca do fonema para a ponta do grafema: construção de verbetes para o Phonodidaticário. Dos ritmistas: Derrida, Nietzsche, Barthes. Potentes percussionistas que com suas penas colocam a voz em suspeição. Seus textos, servidos para a experimentação escrileitora. Diapasão: Monteiro (2011, p. 103) salienta que a voz cria múltiplos inaudíveis, para si e para outros. Em suas palavras: “[...] a voz, assunto da linguagem, assunto da fisiologia, assunto da física, começa a ser vista por nós como condição de possibilidade da criação de sentido, de autopoiese.”.

Um “aparte” sobre o método Da glote será a imagem e dela virá a articulação para movimentar este texto. Batizado de “método glótico”, criado para engendrar uma articulação que precisa abarcar um duplo: uma filosofia da voz não funcionaria sem a política da escuta. Glote e tímpano. Zonas de acesso. Pontos de passagem. Constrição. O estranhamento causado pelos conceitos mobilizados de Nietzsche e articulados por Jacques Derrida a partir de dois textos: O primeiro deles intitula-se Esporas – os estilos de Nietzsche, publicado em 1979; e o segundo, Otobiografias, La enseñanza de Nietzsche y la política del nombre próprio. Para consolidá-lo, recorro também aos textos de Nietzsche sobre a Educação, sobretudo sua crítica ao método acroamático, ao texto de Derrida A Pharmácia de Platão, e aos conceitos cunhados por ele do fonocentrismo e logocentrismo. Em face da Fisiologia a serviço da Filosofia, elenquei a glote e suas forças aerodinâmicas e mioelásticas em ressonância com o ouvido, como modelo dialógico em que articularão os escritos feitos a marteladas por Nietzsche, retinidos e pressurizados na caneta timpânica de Derrida, escrevendo e

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inscrevendo o percurso da vibração das pregas vocais à vibração do tímpano. Trata-se, portanto, de uma filosofia da voz, associada a uma política da escuta.

Atos e cenas de uma oficina Primeiro movimento – 2 encontros - tempo de “fono-fisio-filosofia”. Segundo movimento – 4 encontros – voz em sala de aula, a Didática e o seu protagonismo. Sócrates (através do hálito nietzschiano), e Platão pelo gesto desconstrucionista de Derrida, indicaram o caminho para o método glótico: iluminação para a presença do Logos e sua característica pluriforme. Terceiro movimento – 4 encontros – tempo de desconstrução: da cena, da voz, da orelha. Gesto otobiográfico – elaborado por Monteiro a partir de Derrida, como recurso da política da escuta. Associo-o à crítica de Nietzsche sobre o método acroamático.

Resultados dos ensaios coreográficos A voz ensina. Professores tem essa premissa como certa. Na formação, registram as vozes de seus professores – e as selecionam com seus ouvidos – e nela se embasam, primeiramente, quando assumem o seu próprio protagonismo. Mas ao se depararem com a questão “como dar uma aula” esperam, ambicionam encontrar uma voz que aponte caminhos e diga como atingir o ouvido do aluno. Na preparação da aula a orelha do professor também é tomada por uma falação: “mesmo estando do lado da fala.” (BARTHES, 1988, p. 313). O professor pensa a aula e escuta o thorubos. Ao comprimir a glote, mascar palavras, ouvir a didática, ver o aluno, de A a Z, também sofre com toda a sorte de rumores: anseia arfa bebe boceja compassa contrai deseja despeja encena encerra fala fastia gagueja golpeia higieniza hesita indigere joga junta lamenta lê mede muda nasce nega ouve planta pede queixa raciocina remói sacrifica santifica teima utiliza vê veda xinga zune. Ao pensar a aula, pensa a voz. A voz do aluno também divide a cena. Essa voz magistral, professoral, contendedora da verdade, detentora do logos e “chave de acesso” para o mundo das essências, não funciona com a mesma efetividade que funcionava.

Magna: “Antes a voz do professor valia mais. Hoje, não tem o mesmo respeito”. Dulce: “A voz do professor ‘morde’ a aula”. Maria: “Sem voz, o professor não vale nada”. Jairo: “Se reconhece quem é bom professor pela voz”. Ana: “O professor mais fala do que escreve, porque foi ‘moldado’ para dar aula”. Mirian: O professor “dá” aula escutando a voz do professor que está ao seu lado, em outra sala. “Às vezes, a gente compete pra ver quem fala mais alto”. Ema: “São muitas as vozes que vivem em uma escola.”. Bete: “A hora de escutar a voz do aluno é após a explicação, para tirar suas dúvidas”. Josiane: “A didática do professor é a voz”. Lucineide: “A voz não resolve mais como resolvia antes. Não sei o que se passa com este ‘novo tipo de aluno’”. Na cena da voz que acena na aula, uma tensão de forças cresce sem cessar, produzindo um desalojamento, um desconforto, oposto ao estado de plenitude, de superabundância de vida, que explode em ações criadoras. Marcia: “Se não há quem diga o que e como fazer, só nos resta inventar”. Magna: “Aula não é uma lição sobre determinado conteúdo, onde se usa a experiência para ensinar?”. Jairo: “Para facilitar o conteúdo a ser aprendido, ajuda trazer a aula para o mais próximo da realidade dos alunos”. Lucineide: “Eu aconselho muito, falo muito das minhas experiências para ensinar para os meus alunos.”.

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“A aula se dá igualmente como uma série de conselhos, de preceitos. Em outras palavras, como um conjunto de regras de conduta.” (DERRIDA, 1999, p. 25). Ana: “Quantas vezes eu já falei e vocês não aprendem?”. Silas: “É o ouvido do outro que monta a cena”. Lucineide: “Então, até para Nietzsche tudo que acontece na aula é de voz e de ouvido?”. Jairo: “Parece que os alunos estão surdos”. Maria: “Não escutou nada do que falei, por isso foi tão mal nas provas”. Magna “Eu canso de falar e não me escutam”. Bete: “Parece que não quer aprender, porque não fica quieto”. Jairo: “Nietzsche dá azia”. Fim. A convicção de que o percurso da oficina atingiu o estômago, fica ressoando. Sem receita, sem solução para a voz. Em cada aula, uma partitura para golpe a golpe, cindi-la, com a convicção de que a voz “outra” que acena na sala de aula se arrisque a viver sob a linha feiticeira da criação e com isso “[...] fabricar o que ainda não existiu nem existe.” (CORAZZA, 2009, p. 143).

Dos vestígios deixados A partir destes encontros foram construídos verbetes coletivos que passamos a chamar de Phonodidaticário. A gênese desta ideia é creditada a professora Sandra Mara Corazza, cuja forma peculiar e lúdica de tratar as palavras nos envolveu na oficina, a partir do seu Dicionário das ideias feitas em educação: Lugares-comuns, chavões, clichês, jargões, máximas, bordões, estereótipos, palavras de ordem, fórmulas, besteiras, ideias herdadas, convencionais, medíocres, estúpidas e afins, escrito em parceria com Julio Groppa Aquino Os assuntos agenciados não seguiram uma ordenação. Mesclavam-se em áreas: saúde, comportamento, ensino. Optou-se, por sonoridade e humor, manter a ordenação temporal baseada no alfabeto. De A a Z, com toda sorte de apontamentos.

Phonodidaticário para os ouvidos dos professores, feito em passos para evitar deixar a voz mancar a cena e tropeçar a aula

Aquecimento – manobras para soltar, despregar, transpirar os modelos que balizam a voz na aula. A aula é minha, logo a voz... Afonia – Ausência de voz. Oportunidade para repensar o uso da presença. Acroamático – Isso que a gente continua fazendo: o professor fala e o aluno escuta. Bochichos – acontecem na aula paralela. Não os ignore nem silencie. A alegria como fagulha para a aula funcionar pode estar lá. Berreiro – modus primitivo no controle de uma espécie racional. Cabeça – dor causada pela falta de empréstimo do ouvido do aluno. Clichê – de que o professor e sua voz são “uns coitados”. Dar – doar, entregar, oferecer, produzir, ceder, conceder a aula? Didática – sem receitas de técnicas e direção. A saúde da aula recomenda: faça uso da criação. Disfonia – sinal de que a voz não está lá àquelas coisas... Empatar – quando o professor permite que a voz do aluno seja ouvida. Ganhar, jamais! Vire o jogo. Escutar – dever do aluno. Até quando? Fadiga – sinal de que o automático, o platônico, assumiu a rédea da aula. Fala – soldado raso da voz, cedro da presença e ainda direito régio do professor na sala de aula. Gagueira – repetição involuntária que acontece na fala, quando o professor é pego “com a boca na botija” e se sente despreparado para oferecer a resposta. 140 • 141

Golpe – na glote. O professor ao senti-lo emudece, e se tiver juízo o usa como material didático. Histeria – sinal que o recreio vem por ai. É a fome que grita. Joia – o aluno mudo, que não atrapalha. Lamento – recurso vocal didático. O professor adora a ele recorrer. Limite – sempre o da voz e até onde ela aguenta. Louco – o aluno que o professor fala, fala, fala e não aprende. Medida – do currículo, do plano, da didática. Resolve “tudo” na teoria, mas quando comanda a aula, fala pouco. Mastigação – a voz do professor morde a aula. Nudez – do professor quando sustenta “uma” verdade. Ouvidos – dos alunos. “Parecem ter ficado desobedientes” Orelha – encostada na carteira, mostra que a aula não funcionou. Peculiar – as barreiras verbais que cada um tem. São os “então”, “daí”, Ra -rã”. Quente – a garganta no final da aula. Razão – pirotecnia que explode a aula. Sacrifício – homilia da voz que faz a aula parecer uma igreja. Aconselho: extirpe da sua sala para a voz funcionar. Talento – presente no aluno que faz tudo o que o professor quer. Umbigo – ligação dos alunos à voz do professor. Verdade – mentira que Platão inventou para manter a sua voz a seu serviço. Fique esperto! Vertigem – torpor que sugere a proximidade com a criação. Xingamento – para o velho hábito que amortece nossas quedas e impede a voz de mudar. Zunido – do thorubos, na aula.

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Corpo a dançar: entre educação e criação de corpos Wagner Ferraz Samuel Edmundo Lopez Bello

Resumo Essa pesquisa se desenvolve no campo da Educação atravessada pela dança na perspectiva das Filosofias da Diferença de Gilles Deleuze e Michel Foucault. Com isso, pensa-se um movimento infinito que pode se dar entre a educação e criação de corpos como possibilidade de educar a si mesmo nos instantes de uma vida dançante. Para com isso compor o conceito “corpo a dançar” se utilizando do Método Coreográfico para produzir movimento na pesquisa coreografo os intercessores que no encontro com o pensamento colocam este a pensar, constituindo um texto coreografia. Movimentos “entre”, como condição para o vir a ser de muitos corpos, para a criação, para produzir diferença, para colocar o pensamento a dançar, seja no campo da educação ou no campo da dança. Sendo um corpo de e, e, e, e...

Palavras-chave Corpo, Filosofias da Diferença, Dança, Criação, Educação.

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Essa pesquisa... em movimento... Para pensar uma vida de encontros e de movimentos que aqui são tomados como dançantes, para pensar uma vida que vai se constituindo de constante pesquisa, de aprendizados, de acumulação dos conhecimentos adquiridos em experimentações que dão condições para pensar o que fazer, como fazer, onde fazer, para que fazer, quando fazer... e ao mesmo tempo se dá em acontecimentos. Para assim, pensar um corpo que acumula memórias, experiências, vivências, marcas que o constituem como um corpo de determinadas práticas25. Até que algo nos acontece, algo pode se dar em acontecimento. Ele (o acontecimento) não é o que aconteceu nem o que está na iminência de acontecer, ele está entre ambos, é as duas coisas ao mesmo tempo, o inatural entre-dois, em simultâneo o que vai ocorrer e o que ocorreu já num tempo próprio, sem presente, num tempo infinito não cronológico. (DIAS, 1995, p. 15).

E quando os conhecimentos aprendidos nas experiências de vida não dão conta do que nos acontece? E o que fazer quando algo nos escapa? Quando as experiências de vida acumuladas no corpo são rachadas e o hábito/costume não dá conta de assegurar o que pode acontecer? E quando esse corpo, imensurável, que não se aprende a ser, e que também não se educa, movimenta a vida como possibilidade de produzir diferenças? Dá condições para... Pensar um corpo que educa a si mesmo no ato de sua constituição, naqueles momentos em que vive determinadas situações, quando o acontecimento se dá no corpo, vem a ser pensar um corpo que se educa para os instantes. Seja em uma dança, escrita, desenho, na experimentação do novo, há uma educação que não fixa condutas no corpo, uma educação criadora que se da com o imprevisível e com impensado. “... Foucault entende por práticas a racionalidade ou a regularidade que organiza o que os homens fazem (‘sistemas de ação na medida em que são habituados pelo pensamento’), que têm um caráter sistemático (saber, poder, ética) e geral (recorrente) e, por isso, constituem uma ‘experiência’ ou um ‘pensamento’” CASTRO, 2009, p. 338.

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E assim vive-se educando um corpo para ser “útil” (FOUCAULT, 1987, p. 118) e potente para determinadas práticas e ao mesmo tempo criando corpos nesse mesmo corpo educado, como possibilidade de vir a ser outro, de viver movimentos, de sentir a vida deslizar, saltar, girar, curvar, flutuar... Se tornando o que nomeio aqui de “corpo a dançar”, vindo a ser um corpo de “e, e, e, e, e...”, uma potência, composições: um corpo dócil (FOUCAULT, 1987, p. 119) e um corpo que se faz outro e um corpo que se afeta e um corpo que se movimenta com os modos aprendidos e um corpo que faz o que nunca fez e um corpo que guarda marcas e um corpo que se põe a vazar e um corpo que escapa e um corpo da “multiplicidade” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 16) e corpo de “intensidades” (DELUZE, 2006, p. 314) e... Essa pesquisa se desenvolve no campo da Educação atravessada pela dança na perspectiva das filosofias da diferença com Gilles Deleuze e Michel Foucault. A aproximação com essa perspectiva se deu pelo envolvimento com o projeto Escrileituras: um modo de ler/escrever em meio à vida, coordenado pela Profª Sandra Mara Corazza, através de oficinas realizadas no ano de 2011 na Faculdade de Educação da UFRGS. Assim, ao ingressar no mestrado do PPGEDU/UFRGS, na linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, mantive aproximação com o Projeto Escrileituras durante o ano de 2012 participando de encontros semanais, eventos, seminários, demais atividades realizadas. Desse modo, experimentando, estudando, discutindo, observando diferentes ações nessa perspectiva, foi possível pensar na possibilidade de coreografar o corpo de minha pesquisa, realizando movimentos para produzir diferença, produzir uma escrita de modo dançante.

Um corpo – um problema para uma pesquisa em educação Como viver a constituição de diferentes corpos26 (intensidade corpórea) em um mesmo corpo27 (materialidade corporal)? Quando muito do que Com esse corpo quero destacar a possibilidade de criação de corpo que será tratada posteriormente com Deleuze com o ato de pensar/criação. 27 Quando digo “em um mesmo” corpo me refiro ao corpo materialidade, como superfície de inscrição com Foucault, onde há possibilidade de criar diferentes corpos de intensidade. 26

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se aprende é para se tornar um corpo fixo, estável, uma representação, uma imagem de corpo pré-estabelecida, reduzida a imagens anatômicas e a condições de “adestramento” que dizem quem pode ou não viver determinadas práticas – uma representação. Como viver a potência dos diferentes corpos que se pode criar, que se constituem, que se tornam, sem ficar focado em discursos e conhecimentos que reduzem um corpo a condições biológicas, estruturais, organismos e seus sistemas inventados para serem tomados como verdades que dizem o que é um corpo? Talvez vivendo movimentos infinitos, vivendo um corpo que dança, vivendo um “corpo a dançar” quando este acontece, para assim se tornar um corpo que possa dançar, correr, pular, escrever, cantar, falar... Com isso podemos pensar uma educação que se dá no corpo, que indica possibilidades de conduzir a si mesmo, constituindo um corpo entre os processos educativos e processos de criação, pensando uma educação criadora que se dá “no corpo, com o corpo e pelo corpo” (FERRAZ; BELLO, 2013, p. 255). Para isso, foi traçado como objetivo compor o conceito “corpo a dançar”, para tentar dar conta dessas questões que emergem entre a educação e criação de corpos, entre corpos/sujeitos e corpos/subjetivação, entre corpos mensuráveis e imensuráveis, entre representações e acontecimentos... Corpos (i)numeráveis. Possibilidades de constituir um si/corpo em movimento/dançante. Pensar a criação de um conceito que possa se tornar potente para a produção de movimentos infinitos na educação de corpos. A numeração ou não, classificação ou não, a (i)mensurabilidade que atravessa essa pesquisa, penso com a noção de numeramentalidade/ numeramentalização como uma “expressão que designe a combinação entre artes de governar e as práticas de numerar, medir, contabilizar, seriar e que, num viés normativo, orientariam a produção enunciativa de práticas sociais contemporâneas” (BELLO, 2012, p. 93). Então, para tratar da educação de corpos, utilizarei o termo “mensurável” para indicar as possibilidades de classificar e, para tratar da criação de corpos, utilizarei “imensurável”, para referir o que se não tem como classificar.

Entre educação e criação de corpos Para Foucault (2010) não se pode escapar dessa superfície de inscrição, pois todos os dias acordamos no corpo. Então o que nos resta em educação é docilizá-lo? Docilizar (FOUCAULT, 1987, p. 119) para assim evitar tudo que não vai ao encontro das regras de conduta, para produzir uma materialidade que atenda às regras morais, institucionais, culturais, sociais, educacionais... Um corpo, com Foucault, pode ser pensado como disciplinado, submisso, dócil, otimizado e útil para a economia do próprio corpo. Mas ao mesmo tempo, também destacamos, a experiência de si, pois, quando se pratica, quando se vive, quando se experimenta algo, se experimenta a si mesmo. Para pensar possibilidades para criar, conceitualmente, um “corpo a dançar”, escolhi pensar um corpo na perspectiva foucaultiana, com torções de inspiração deleuzeana, para produzir um corpo no pensamento da diferença, que se constitui no movimento de vida. Pois para Deleuze “cada corpo existente caracteriza-se por certa relação de movimento e repouso” (DELEUZE, 2002, p. 98). E é esse movimento que varia em si mesmo que produz diferença, que coloca o corpo como condição para criar o novo, para fazer dançante uma vida e assim movimentar o pensamento. O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o impensado, isto é, a vida. (DELEUZE, 2007, p. 227)

É no pensamento, para Deleuze, se dá o ato de pensar como criação de novas imagens. Em “Nietzsche e a Filosofia”, Deleuze escreve sobre a nova imagem do pensamento; em “Proust e os Signos” e em “Diferença e Repetição”, apresenta o pensar destacando que não se trata do pensamento enquanto representação, mas do pensamento violentado por signos que colocam o próprio pensamento a pensar, potência criadora. “O pensamento que pensa as imagens e os signos é perturbação, ruptura, experimentação, processo de criação, singularidade, diferença, fluxo nômade, viagem.” (CORAZZA, 2012a, 04). O pensar se da por encontros... 148 • 149

No primeiro livro de Gilles Deleuze, “Empirismo e Subjetividade: Ensaio sobre a Natureza Humana segundo Hume” (2012), o autor já aponta para o “entre” e o “encontro”, e pensa o empirismo de Hume como o encontro com dados empíricos onde “uma faculdade é forçada a forjar uma resposta, a interpretar e a compreender aquilo que lhe afeta (GALLINA, 2007, p. 123-124)”. Aqui encontro algumas pistas para pensar o “Corpo a Dançar”, um corpo que se dá a partir dos encontros, criando a si mesmo nas relações, nas inferências em meios aos acontecimentos. Tornase variação de si mesmo nos encontros com o infinito de possibilidades, um corpo serial que possibilitará a criação daquilo que o próprio corpo se tornará. O “corpo serial” (SANCHOTENE, 2013, p. 57) é utilizado para pensar o infinito de possibilidades, o “entre”, que se dá no ato de pensar. Nessas possibilidades imensuráveis se dão acontecimentos e o corpo se torna infinito, sendo sempre possível criar novas possibilidades de corpos nos instantes em que se dão as experiências no pensamento. Isso faz parte do que vem a compor o “corpo a dançar”. O corpo serial possibilita pensar o infinito de possibilidades que pode existir entre o 0 e o 1. Antes mesmo buscar as referências citadas até aqui, ao ingressar no mestrado em educação, realizei uma ação dançante intitulada “Não venha me assistir: Talvez seja uma dança”, com o intuito de me colocar a pensar corpo, educação e criação com essa experiência. Com essa ação se produzia desencontros e incertezas planejadas, com “roteiro”, local e horário (in)determinados. O espectador deveria procurar o artista em locais e horários “entre”, pois tudo acontecia sempre entre um horário e outro e entre um ponto e outro da cidade onde se realizou. O que estava em jogo era a produção de uma presença, de corpos que se dava no trajeto como uma experiência de si. Posteriormente percebi que deveria usá-la como “disparadora” (ZORDAN, 2011, p. 4247) para a criação conceitual proposta. Com isso tudo que foi traçado até aqui, busquei reunir pistar para compor o conceitualmente “o corpo a dançar”, para isso se fez necessário olhar para o conceito de conceito. Deleuze e Guattari dirão que “todo conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus compo-

nentes” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 23). De Platão a Bergson encontra-se a ideia de que o conceito é questão de articulação, corte e superposição, um todo, pois totaliza seus componentes, mas um todo fragmentário. Os conceitos remetem a problemas, e são esses que lhes dão sentido e indicam condição para pensar possíveis soluções. Conceituar, o “corpo a dançar”, certamente, não se trata de produzir uma definição fechada, fixa, estática, identitária e ordenada, mas se trata de pensar um corpo que se dá em movimento, entre tudo o que se torna e as possibilidades do vir a ser. “Para a criação de conceitos, a noção de encontro é muito importante para Deleuze” (LA SALVIA, 2010, p. 10), pois o novo, o diferente, o acontecimento que se experimenta num encontro que dá o que pensar. Para isso é necessário fazer os planos (de imanência) e os problemas, assim como é necessário criar os conceitos. “Certamente, os novos conceitos devem estar em relação com problemas que são os nossos, com nossa história e, sobretudo com nossos devires” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 36). O plano de imanência “envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam, mas os conceitos são velocidades infinitas de movimentos finitos, que percorrem cada vez somente seus próprios componentes” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 45). Então não se pode confundir os dois, só existe conceito no plano e só há plano povoado por conceito. “Os conceitos são acontecimentos, mas o plano é o horizonte dos acontecimentos, o reservatório ou a reserva de acontecimentos puramente conceituais.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 46). 

Método coreográfico Usar um método coreográfico em uma dissertação, levando em consideração que parte dela é estruturada, dura, fixa, e outras partes tentam dançar, se movimentar... Como colocar a dançar algo que não é de ordem dançante? Decidi coreografar o corpo dessa pesquisa, da mesma maneira que se coreografa um corpo que dança. Lançando questões para que esse corpo tenha condições de afetar quem assiste/lê essa dissertação, pensando nos leitores dessa pesquisa como público que busca arte, que quer se movimentar.

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Uma coreografia (GIL, 2004, p. 67) pode ser composta de diferentes modos, flui em algumas de suas partes, é repleta de sentidos. Algumas possuem tema e título, exploram níveis, direções, referências. Têm, muitas vezes, tempo cronológico determinado, trabalham com repetições de cenas, de ações e de movimentos, como Pina Bausch28. Uma coreografia é feita de momentos que prendem, que dão condições de pensar a partir dela, de outros que cansam, travam, enroscam, às vezes não tem fim definido. E como fazer isso com a escrita do texto? Aí está o desafio: criar, compor, variar, produzir movimentos infinitos, dançar por uma escrita em um campo científico, buscando na filosofia condições para pensar questões nesse campo e compor com as artes dançantes de outras formas que não sejam uma coreografia cênica. (...) a dança da escrita faz-se em movimento quase invisível à sensibilidade justificada que tudo quer explicar através do uso de palavras encadeadas sustentadas por uma lógica racional de correspondência representacional entre o visto e o dito. A escrita que dança se instala entre o visível e o dizível, movendo-se com eles. O pensamento trepida diante dos gestos divergentes produzidos pelas séries dançadas, potencializando algum desequilíbrio tanto na sintaxe e na gramática que orienta a língua, como na escrita que surge desses abalos, desde as percepções produzidas e as sensações experimentadas. (RODRIGUES, 2006, p. 65-66)

Começamos pela distribuição do texto, na dissertação, que se dá em quatro colunas: 1) um texto principal onde são apresentados conceitos, revisões, detalhes, definições e dúvidas da pesquisa e demais considerações. 2) uma coluna composta de citações de diferentes autores e pode ser lida independentemente, como um texto “aforístico”. 3) Notas de rodapé – além de apresentar informações sobre as citações, também apresenta explicações sobre determinados conceitos. 4) Exemplos de Corpos Criados – textos Pina Bausch, coreógrafa alemã, ficou conhecida pelo trabalho desenvolvido com o Wuppertal Dança-Teatro. Umas das características de seu processo de criação é repetição e transformação: “A repetição característica da pulsão de vida é a repetição diferencial, que ao contrário da reprodução, da qual resultaria um estereótipo, torna-se uma fonte de constantes transformações. É um movimento de criação que implica no novo, tendo como imagem a horizontalidade, o desenvolvimento”. (CAMPOS, 2008, p. 06).

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disparados por situações vividas no decorrer da pesquisa.. 5) Texto do “entre” (essa coluna não está dada, mas pode ser criada) – entre todos esses textos, nos espaços da folha, os leitores podem criar seus próprios textos durante a leitura. E como pensar a efetuação de uma pesquisa sem pensar sujeito e objeto? Com o que foi apresentado até agora na perspectiva do pensamento da diferença, pensando uma pesquisa do acontecimento, que não pesquisa “estados de coisas, proposições, objetos, sujeitos, matérias, corpos e representações” (TADEU; CORAZZA; ZORDAN, 2004, p. 138-139). Pesquisar o acontecimento é produzir uma pesquisa no próprio movimento do pesquisar, é colocar a dançar conceitos, palavras, artigos, livros/leituras, autores, imagens, pensamentos... Então como manter essa pesquisa em movimento? Com Método Coreográfico ou de Composição Coreográfica. Não há um modelo único a ser seguido. Consiste em compor movimentos, selecionar códigos dançantes, traçar linhas no espaço, estabelecer direções, níveis, fluxos, fazer escolhas, escorregar no acaso, aproveitar o erro, codificar movimentos e improvisar outros... “A coreografia materializa um traço” (MUNHOZ, 2009, p. 18), um texto, uma pesquisa... Para isso resolvi coreografar intercessores, e com estes o pensamento é colocado no movimento infinito de um giro no ar. E os intercessores disparam, no encontro com o pensamento, outros movimentos. Com Deleuze (1992), podemos pensar os intercessores no científico, artístico ou filosófico, pode ser também um conceito, uma obra de arte, um dispositivo técnico, mas é preciso fabricar os intercessores. “Os intercessores são quaisquer encontros que fazem com que o pensamento saia de sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem os intercessores não há criação, sem eles não há pensamento” (VASCONCELLOS, 2005, p. 1223). Produzir intercessores é criar possibilidades de movimentos em devir. Apresento os intercessores criados para essa pesquisa: 1) Artes: Ação dançante29 “Não venha me assistir – Talvez seja uma dança”. 2) Artes: Texto “Rastros genealógicos de dança: para pensar um

Utilizo o termo ação dançante, pois não se trata de uma coreografia ou espetáculo de dança, mas, sim, de um trabalho artístico em dança produzindo movimentos tomados como dançantes.

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corpo a dançar”; 3) Filosofia – O conceito de experiência de si de Foucault. 4) Filosofia – conceitos Criação e Acontecimento de Deleuze. 5) Filosofia: A obra “Empirismo e Subjetividade: Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume”, de Deleuze. 6) Filosofia: Conceito de Conceito e Plano de Imanência de Gilles Deleuze e Félix Guatarri. 7) Ciência: Corpo Serial de Sanchotene. 8) Ciência: A educação, classificada como área da ciência, busco pensar tanto a possível formatação, docilização e regramento da e na materialidade corporal como as possibilidades de criação de intensidades corpóreas. Com isso se foi pensando, vivendo, experimentando a pesquisa e o texto foi tomando corpo num processo dançante. O conceito “corpo a dançar” foi composto como algo que pode ser melhor vislumbrado nos movimentos de diferentes ordens, na variação da vida e na variação do corpo, num infinito tornar-se.

Se tivesse que concluir: apresentando alguns efeitos Com a criação do conceito “corpo a dançar” conseguimos dizer que este não é visível, palpável, quantificável. Não se encontra em um determinado lugar. Não se produz com um planejamento em que se siga uma ordem e que se chegue a um resultado. Não se dá por um treinamento, um esforço de qualquer ordem, por uma leitura, por um cálculo, por uma dança. Não tem características para que se possa identificá-lo, classificá-lo, apreendê-lo, representá-lo... Não há uma receita para chegar a ele, nem se pode aprender como fazê-lo. O “corpo a dançar” não acaba com a educação de corpos, nem é pra isso que ele “serve”. Pois é, nos próprios corpos educados que os encontros, o ato de pensar, e o movimento produzem vazamentos... O que se pode afirmar é que ele se dá no “entre”, que dá condições para o vir a ser de muitos corpos, para a criação, para produzir diferença, para manter o movimento infinito, para colocar o pensamento a dançar. Pensando o “corpo a dançar” como um motor, como um furacão, como intensidade que potencializa determinados movimentos de vida, e tendo isso como possibilidades de pesquisa... Um corpo que educa a si mesmo como modo de criar a si num movimento infinito, criar sua própria vida dançante, seja no campo da educação ou no campo da dança. Sendo um corpo de e, e, e, e...

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Modos de ler e escrever na EJA Larisa da Veiga Vieira Bandeira Sandra Mara Corazza

Resumo A pesquisa de mestrado Um modo de ler e escrever na EJA – oficinas biografemáticas realizada entre os anos de 2012 e 2014 no Núcleo UFRGS aconteceu na proposição de oficinas biografemáticas, na infiltração e contaminação, nos movimentos dentro, entre, e, nos desdobramentos do Projeto Escrileituras. Por tratar-se de um projeto composto por quatro núcleos proponentes, os movimentos acontecem, como teria de ser, em muitos e diversos territórios, em diferentes rincões, que se abrem e se articulam em possibilidades inverossímeis com a arte, a literatura, a música, o teatro, o cinema, fantasias e fruições. Os integrantes do Projeto Escrileituras encontram potência no ato de criação textual. Inventam afinidades entre texto e leitores, fazem da leitura lugar de encontros. Seus integrantes estabelecem ações compartilhadas e trabalham com o conceito de Escrileitura. O conceito de Escrileitura insere este Projeto na dimensão imaginativa de toda a escritura ou texto de fruição. E, como exercício imaginativo, lida com os modos de produção através de experimentações, tentativas e invenções. O ano de 2012, ano em que iniciei a minha pesquisa de mestrado, marca o meio do Projeto, que se encaminhava para um final programado, que procedia em movimentos que mesmo que descontínuos davam prosseguimento ao desassossego que deu início ao Escrileituras em 2010.

Palavras-Chave Educação de Jovens e Adultos. Biografemática. Escrileituras.

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“Viver importa mais do que o escrever, a não ser que escrever, seja – como tão poucas vezes – um viver.”

Cortázar, 2013. p. 58

Modos de ler e escrever na EJA De parte de escritas três mulheres: Lou Andreas-Salomé, Anaïs Nin e Marina Tsvetáieva, dos fragmentos que chegaram até aqui, com o que delas escapou da destruição, com as possibilidades que essas mulheres propagaram ao retomar o que já foi escrito, fez-se na pesquisa um trabalho polifônico, de recorte, de dispersão, em proveito de um trabalho do descontínuo, do pulverizado, de operação de ultrapassagem (BARTHES, 1995). A escrita dessas três mulheres, da inquietude de suas escritas, esse ponto – entre – que oscila, antecede, percorre e desdobra é o ponto de partida da pesquisa. As três mulheres foram reunidas pelos laços de leitura com a leitora comum, com a professora-pesquisadora. Laços que não foram suficientemente estreitos, ou apertados, que não permitissem que outras tantas e outros tantos, pudessem aqui estar em efervescência e turbilhão. Os laços de leitura com as três mulheres eram também um ímã de seduções sutis; seus textos, de atrações arrebatadoras e inquietudes silenciosas, engendravam encontros escusos com estrangeiros e íntimos fragmentos de outros textos, que em dispersão se emprestavam para a invenção. Para compor o trabalho de pesquisa foram escolhidos textos escritos entre 1870 e 1937, diários, cartas, fragmentos, além de notas autobiográficas. A escolha dessas três autoras e as seis décadas em que esses livros foram escritos são os primeiros de uma série de recortes, justaposições, variações, que deram espessura, língua e conexão aos afetos que pediram passagem. No caso de Marina Tsvetáieva, textos que foram organizados, selecionados e prefaciados por Todorov, alguns deles inéditos e resgatados de seus manuscritos. No título dessa seleção, a centelha primeira da pesquisa: Vivendo sob o fogo. Tsvetáieva referia-se ao anonimato da criação feminina, quando uma mulher escreve, não escreve só por ela, ela o faz por todas as que se calaram e as que se calarão, e, ainda assim, não são as mulheres, é uma

mulher, sempre a mesma, é o grande anonimato, “o imenso desconhecido, o imenso mal conhecido”30 (TSVETÁIEVA, 2008, p. 481). De Anaïs foi tomado o livro Fogo – de Um diário Amoroso – o Diário completo de Anaïs Nin (1934 – 1937). Esses textos são fiéis à cronologia dos fatos, e à gramática da autora, desejo expresso por ela a Rupert Pole, que se tornou seu executor testamentário e publicou o que era impublicável durante a vida de Anaïs. Com a sua morte nomeava-se, então, o inominável, como indica Blanchot: Para que eu possa dizer: essa mulher, é preciso que de uma maneira ou de outra eu lhe retire sua realidade de carne e osso, que a torne ausente e a aniquile. A palavra me dá o ser, mas, ele me chegará privado de ser. Ela é a ausência desse ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser, isto é, o único fato que ele não é. (BLANCHOT, 2011, p. 331).

O livro escolhido de Lou Andreas-Salomé foi Minha Vida, uma coletânea de obras póstumas editadas por Ernst Pfeiffer. O primeiro título pensado por Lou Andreas-Salomé para o livro era: Esboço de algumas lembranças de vida – exceto daquelas que não se deixaram privar do direito de solidão. Enquanto essa pesquisa se fez, extraindo consistência na dissipação dos textos dessas mulheres, suas práticas de trabalho foram interrogadas, exigindo atenção aos indícios que deixaram, alguns gostos de escritura e criação e assim contribuir para derrubar esse velho mito que continua a apresentar a linguagem como o instrumento de um pensamento, de uma interioridade, de uma paixão, ou o que mais, e a escritura, por conseguinte, como uma simples prática instrumental (BARTHES, 1995, p. 199).

Três mulheres, indiscerníveis, impensáveis, que em proximidade infernal, disparam “um pensamento que se metamorfoseia em diferentes níveis de argumentação e que funciona como máquina de guerra para combater os aparelhos que capturam o pensar educacional.” (CORAZZA, 2002, p. 32). Para que outras vidas fossem possíveis, para as vidas que se iniciavam, na “ambivalência fundamental diante daquela que dá a vida e anuncia a Trocadilho entre inconnu (“desconhecido”) e méconnu (desconhecido, mal conhecido, mal apreciado). (N. de T.)

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morte”, em uma ambiguidade feminina que não dá ouvidos ao “clamor pela unidade, sabe que desde o princípio dos tempos foi múltipla.” (CORAZZA, 2002, p. 85). Com as três mulheres – Lou, Anaïs e Marina – e um grupo de alunos da Educação de Jovens e Adultos do Colégio de Aplicação da UFRGS31, lançou-se a professora-pesquisadora, tendo, como plano de contágio e movimento (CORAZZA, 2010), como modo, gesto, insinuação e infiltração (COSTA, 2011) de pesquisa, as Oficinas Biografemáticas. Entendeu que esse empreendimento de pesquisa exigiria a articulação do “oficinar” e do “biografematizar” sem as indicações pessoais, sem conjugações. Oficinar no infinitivo do traduzir, no infinitivo do inventar. De muitas e distintivas formas propostas pelos que antes se ocuparam com os biografemas no grupo de pesquisa, as oficinas foram pensadas de modo a “lidar com a biografia sem se limitar à história referenciada.” (FEIL, 2010, p. 82). As experimentações com os textos escolhidos eram propostas no intuito de inventariar com os alunos “os traços biografemáticos e com eles e sem garantias, lançar-se à imprevisível produção de biografemas.” E, enquanto prática de pesquisa, (tentou) “imitar e simular a individuação rítmica da vida, na sua implicação com a potencialidade de criação e fabulação de vidas novas” (OLIVEIRA, 2010, p. 20; p. 52). Na “tentativa de sustentar alguma forma provisória ao condenado a desaparecer, ao prestes a ser fuzilado pelos acontecimentos ditos importantes.” (COSTA, 2011, p. 15). A pesquisa procurou afastar-se dos campos de conhecimento que situam a leitura e a escrita próximas ao pesadume de habilidades adquiridas e as circundam nas searas tristes das dificuldades de aprendizagem e as classificavam como instrumentos familiares e de possibilidades restritas. A Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Colégio de Aplicação (CAp) da UFRGS atualmente conta com cerca de 100 alunos no Ensino Médio e séries iniciais. Alguns destes alunos fazem parte do quadro de servidores da Universidade e atuam em diversas áreas; outros trabalham para empresas, onde desempenham funções variadas, e alguns são autônomos. A modalidade EJA trabalha por componentes curriculares e não por disciplina, na busca pelo ensino multidisciplinar e não compartimentalizado. A metodologia utilizada contempla aulas práticas e expositivas, privilegiando o conhecimento prévio que o aluno adulto já possui. Os professores instigam o diálogo, o qual promove a inserção do aluno na sua própria construção do conhecimento. As quatro turmas EM1, EM2, EM3 e EF3, que correspondem aos 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio e 4º e 5º anos das séries iniciais, são frequentadas por alunos que moram no entorno do CAp, com destaque para a Vila Santa Isabel, algumas regiões de Viamão, outros na Ilha da Pintada e Alvorada, mas o maior número ainda pertence ao município de Porto Alegre. A faixa etária destes alunos varia entre 18 e 70 anos, e eles buscam o aprimoramento de seus conhecimentos, além da conclusão do Ensino Médio.

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Ao efetuar-se, o texto retomou a leitura e a escrita problematizando-as, reforçando-as, enfatizando suas estranhezas, sabendo que delas nada é dado, e suspeitou de tudo que delas escrevia ou lia. Aproximou-se do que podia servir para encurralar a leitura e a escrita em suas próprias armadilhas, tentou o que pôde para desmontá-las, para em seguida inventar, com elas, outras relações e possibilidades. Com os alunos das turmas de EJA que participavam das oficinas, a pesquisa Oficinas biografemáticas – um modo de ler e escrever na EJA enveredou nos traços, no detalhe “insignificante que constitui os espaços silenciosos de uma vida” (COSTA, 2012, p. 54). Tentando desviar-se do estabelecido, “do que deixava de produzir novos sentidos, tentou encontrar-se em ressonância com uma perspectiva de contínua liberação e produção do novo.” (COSTA, 2012, p. 54) alinhouse ao Projeto Escrileituras naquilo que dá a pensar em Educação, com o que aí já está de sobra, mas que, sempre, ainda é insuficiente. Fantasiou com Corazza (2002), um currículo que conjugasse lugares, que incorporasse várias línguas, que fosse um trabalho em processo, uma estrada em andamento, um mar a fluir, que combatesse o pensamento que não experimenta, não prolonga, não abala a confiança da arbitrariedade da língua. O pensamento da Educação foi tomado como o impensável, que variava sob as fendas que se criam no próprio pensamento, que fabulava deslocando e invertendo as possibilidades que hoje são oferecidas na Educação, sob os mais diversos nomes com que se operam e se instrumentalizam os conceitos, em todos os níveis e modalidades. O pensamento tomado como modos de perversão e experimentação, a fim de inventar outros limites das formas da Educação, outros pensamentos que só dizem o que são ao dizerem o que fazem. Com Deleuze (2006), considerou o pensamento, em sua faculdade particular definida, como o que nasce nele próprio e extrai suas condições transcendentais “não no saber, e sim, do aprender que une sem mediar a diferença à diferença, a dessemelhança à dessemelhança” nesse aprender que aqui se conta e se aprende. A pesquisa tentou encontrar as condições sob as quais algo de novo é produzido, no encontro com os problemas que surgiam na leitura, inicialmente com os textos das três autoras e nas ressonâncias destes nos textos dos alunos e, depois, na multiplicidade de autores que se aproximaram e de textos que foram produzidos. 160 • 161

Uma pesquisa biografemática A Pesquisa Oficinas Biografemáticas: um modo de escrever e ler na EJA fez-se em “operações efetivas”, “com um certo direto” seguindo um rumo de “traçados excêntricos de possibilidades”, “que precisava e devia ser colocado para que assim houvesse um indireto, um desvio” (PERRONEMOYSÉS, 2012). Deslocou-se nos rumos e desvios com Barthes (1995, 2003, 2004, 2005, 2010), Corazza (2010, 2013), Perrone-Moysés (2012), Costa (2010, 2011), Costa (2012), Feil (2010), Oliveira (2012), Dalarosa (2012). Apostou nas oficinas e em tudo que nelas foi propulsado, com textos submetidos a critérios que foram inventados para a sua escolha e seleção, e, nos encontros destes com um grupo de alunos da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAP/UFRGS), no último período das noites de sexta-feira, nos dois semestres de 2013 e primeiro semestre de 2014. Os textos foram tomados como a “lista aberta dos fogos” da linguagem, “esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como sementes que substituem as noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia.” (BARTHES, 2010, p. 24). Ao convocar seus integrantes à postura da produção, o projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida produz outros textos na reinvenção do eu que escreve com o autor do texto lido. Atentos a essa convocação do projeto, os alunos e pesquisadora lançaram-se aos Biografemas, às vias possíveis do insignificante, ao chão comum que foi repisado de tantas e diversas formas, às folhas dos diários e às vidas das autoras, e com o que delas, em dispersão infinita, pode tocar alguma outra vida. As cartas e diários de autoras que nunca se viram, mas que se encontraram, nas sextasfeiras, na sala de aula, foram a matéria, as minúcias e sobre as quais os alunos se debruçaram e se inventaram como criadores e fabuladores. Por se tratar de um procedimento de pesquisa que servia aos interessados em “Vida e Obra” (CORAZZA, 2010), e na criação de uma “metonímia desejante”, se deveria estar atento aos riscos da memória, e aos da inércia nos vínculos estabelecidos entre estas, se deveriam cuidar

especialmente das armadilhas fáceis que surgiram através de junções, e nos arranjos que procuravam suas causas e efeitos. A pesquisa aventurou-se enquanto método na leitura e escrita de textos já lidos, sabendo apenas que “escrever é gozo, escrever é deflorar, ler é gozo, ler é deflorar” (SALOMÃO, 2003, p. 97) e tomou a leitura como gesto do corpo que induzia a escrita. Com Corazza (2010), apreciou os diálogos descontínuos, desvinculando-se dos pensamentos rígidos, ousando indagar pelas forças e pela vontade de potência que atribuíam sentidos a uma vida. Como procedimento de pesquisa, a Biografemática deu-se na escritura, na produção de vidas, “ocupava-se dos procedimentos de reinvenção de um autor, ocupava-se da biografia como material de criação” (FEIL, 2010, p. 82) e, ao tomar do texto o objeto desejável, tentou a “produção de movimentos que colocavam o autor, o texto e o leitor em constante variação inscreveu-se na proliferação de existências e de mundos implicando na potencialidade de criação e de fabulação de novas vidas.” (OLIVEIRA, 2010, p. 52). O fluxo consistiu em desafiar à construção criativa de unidades mínimas de biografias, que convidasse os participantes das oficinas à composição de um outro texto, que é, “ao mesmo tempo, do autor amado e dele mesmo-leitor” (PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 15) e experimentar com eles o prazer do Texto que se realizava de maneira mais profunda (e é então que se podia dizer que havia texto): quando o texto “literário” (o livro) transmigrava para dentro de nossa vida. “Quando outra escritura (a escritura do Outro) chegava a escrever fragmentos da nossa própria cotidianidade, enfim, quando se produzia uma coexistência.” (BARTHES, 2005). Consistia em viver com um autor, esse “corpo impessoal que lança um eu” (CORAZZA, 2013), o que não significava, necessariamente, que se cumprisse em nossa vida o programa traçado nos livros desse autor; “tratava-se de fazer passar para a nossa cotidianidade fragmentos do texto admirado (admirado justamente porque se difundia bem) tratavase de falar esse texto” (BARTHES, 2005), não de o agir, deixando-lhe a distância de uma citação, a força de irrupção de uma palavra bem cunhada, de uma verdade de linguagem. Para a pesquisa biografemática, nada de uma vida é indiferente ou desnecessário: as minúcias, as trivialidades, são intensificadas, habitam os interstícios de onde, a cada instante, podem 162 • 163

lançar-se em outro texto que vivifica o texto lido sem confundir-se com ele. Dessa forma, a pesquisa experimentou-se em uma “Biografemática Frontal” (COSTA, 2011) ao impor o autor como podemos vê-lo em seu diário íntimo, “o escritor menos a sua obra” (BARTHES, 2003). “Nutrida pelo imaginário de pegarmos ou sermos pegos pela frente” (COSTA, 2011), trouxe para a visada “os gestos ínfimos, as imagens incongruentes, as sonoridades inaudíveis”, permitindo-lhe uma “respiração própria” (PELBART, 2011), um “respiro que atinge corpos” e “desenha máscaras trocadas e identifica ardis romanescos que subjazem ocultos nas franjas do vivido” (CORAZZA, 2013). Na Biografemática Frontal, nas escolhas efetuadas no texto amado, do que se ama de seu autor, era preciso anotar as minúcias, as que despertaram e embaralharam os sentidos, como aquelas que de um sonho lembramos: “senti o cheiro da sala, vi a luz penetrar. ” (NIN, 2011, p. 372). As escritas fizeram-se a partir do desgaste, dos detalhes e das minúcias, do desmembramento dos textos biográficos que ofereciam matéria para a escrita, “abertos à criação de novas possibilidades de se dizer e, principalmente, de se viver uma vida” e “nesse escrever sobre a vida, havia um inscrever-se sob ela mesma.” (COSTA, 2011). A cada novo encontro, o biografema ganhava, nas explicações de seus participantes, outras versões de si mesmo, e algumas imagens eram recorrentes, “como quando dois carros se arranham, e um fica com a tinta do outro, mas o espelho retrovisor não cai” (J.C.R., aluno da E.M2, Oficina realizada em maio de 2013) ou, “ é aquilo que toca a gente, que mesmo diferente poderia ser da gente” (C.S.F., aluna da E.M1, Oficina realizada em maio de 2013) e, ainda, “é como escutar a música e ouvir uma coisa no meio que ninguém escutou antes” (V., aluna da E.M3, Oficina realizada em maio de 2013). A aposta era em uma escrita feita em fragmentos, com pedaços de diários, com os textos de alunos, sem ranços ou apegos, escrita em composições desestruturadas. Os fragmentos como escrita de ruptura, “na qual o enigma da escrita se liberta da intimidade de seu segredo, para assim expor-se como próprio enigma que mantém a escrita” (BLANCHOT, 2007, p. 135). “O fragmento como um estraga prazer” (BARTHES, 1995, p. 234), na medida em que disparava descontínuos pulverizados em

frases e imagens, proliferando pensamentos sem viscosidade, “obtidos em um tempo, ou em um mundo, sob uma pressão, ou graças a uma temperatura da alma.” (VALÉRY, 2012, p. 81). Na escrita que não se apegou à linha cronológica de seus fragmentos, abrindo com eles escavação para tempos outros, previu-se alguns riscos. Entre os tantos riscos que uma leitura oferece, a possibilidade dos fragmentos serem lidos como peças soltas, que não compõem uma totalidade enquanto escrita acadêmica. Efetivamente não se procurou a totalidade: a escrita reconheceu seus limites, sabia que alguns de seus fragmentos seriam as únicas versões de si mesmos. Procurou-se, entre os textos dos alunos e autoras, uma coexistência, alguns acasos felizes, mesmo que breves e fugazes, para que com eles, provisoriamente dominados, se pudesse terminar.

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Biografemário de um aprender: escrileituras em meio à vida Josimara Wikboldt Schwantz Carla Gonçalves Rodrigues

Resumo Este texto se ocupa da passagem do vivido pelas escrituras. Uma professora planifica seus trajetos aos afectos, dando consistência nas maneiras de avaliar um aprender pelas escrileituras. Desenvolve a pesquisa em torno de seu biografemário. Opera estudos sobre o aprender na perspectiva filosófica deleuziana (DELEUZE, 1988; 2003). Teve por objetivo cartografar as transformações subjetivas dispostas na relação de um aprender, relacionando a Oficina Filodança [realizada pelo Núcleo UFPel em uma escola pública da cidade de Pelotas/RS] a outras Oficinas do Projeto Escrileituras. Diante da questão – Como são realizados os processos do aprender de uma professora e dos estudantes junto às Oficinas de Escrileituras? – é possível afirmar um aprender em Escrileituras na possibilidade de compor, em textos e mapas, a trajetória da própria vida.

Palavras-chave Educação. Aprender. Biografemário.

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Filosofias

da

diferença.

Projeto

Escrileituras.

– Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui? – Depende bastante de para onde quer ir, respondeu o Gato. – Não me importa muito para onde, disse Alice. – Então não importa que caminho tome, disse o Gato. – Contanto que eu chegue a algum lugar, Alice acrescentou à guisa de explicação. – Oh, isso você certamente vai conseguir, afirmou o Gato, desde que ande bastante.

Carroll, 2009, p. 76-77.

Eis aqui a instalação de um mapa32 que demonstra o percurso andarilhado por uma professora-que-aprende ao escrever em seu biografemário33. Plano que deu consistência, coexistindo e combinando os trajetos aos afectos, de maneira a avaliar um aprender. Dessa forma, ela escreve observando-se enquanto aluna, pesquisadora, oficineira. Conta sobre os Os planos cartográficos foram traduzidos a partir da obra de Jazzberry Toronto Blue e Science photo library em Abstract Woman’s body. 33 Caderno que tem por propósito a escritura a partir do olhar do ínfimo de uma vida e do processo por onde se efetiva o aprender. Material que suporta as composições escriturais em torno do que se constituiu a pesquisa. Inspirado no conceito de biografema de Roland Barthes a partir de Costa (2010). 32

processos de um aprender constituídos a partir de uma Oficina realizada no ano de 2013 em uma escola pública na cidade de Pelotas/RS agenciada às experiências estéticas nos modos de ler e escrever que aconteceram no período de execução do Projeto Escrileituras (CORAZZA, 2011a). A professora propõe um trabalho em Escrileituras, pois é a partir dessa configuração conceitual que inicia a investigação apresentada. Empreendimento que a encontrou e produziu coisas nela. Um Projeto inventivo, audacioso, adaptável. Nunca sai sem deixar um pouquinho de si e levar outro tanto de todos. Um Projeto atemporal, não localizável, que se situa em todos os espaços e em nenhum ao mesmo tempo. Circula pelas superfícies. Cria passagens de vida, nas leituras e escrituras que produziu, nos diversos lugares por que passou. Ele escolhe seus próprios teóricos. Tem vida própria. Um bando se junta a ele e ele aceita. Implica ensinar e aprender a partir do ato de criação textual, no agenciamento de três áreas do conhecimento: Arte, Filosofia e Educação. É espalhado. Se amplia e se alastra como fogo. Já não é possível mais alcançá-lo em um número estatístico. Ele surge da invenção de Sandra. De outros e tantos. Da Filosofia. Dos alunos. Da Literatura. Dos problemas. De Nietzsche. De Deleuze. Do poético. Da negação aos clichês. De Guattari. Da Arte. De Barthes. Da Universidade. Das ideias. Do pensamento. Da Ciência. De Foucault. Da vida. Para compor a dissertação de mestrado desenvolvida no ano de 2013 e de 2014 a professora apostou na temática do aprender ao acionar uma perspectiva filosófica da diferença, mais especificamente, nas obras de Deleuze (1988; 2003). De acordo com o autor (DELEUZE, 2003), tudo aquilo que ensina algo emite signos que não são incididos de abstrações, pelo contrário, são objetos de um tempo real e presente. Só há aprendizagem na medida em que se constroem os próprios problemas, produzindo um pensamento. Aprender requer essencialmente a ação de interpretar signos, pois é ele o objeto do encontro e que exerce uma força sobre aqueles que o interpretam, “o acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo que é pensado” (DELEUZE, 2003, p. 15). O que força a pensar são os signos. É deles que emanam as forças que violentam o pensamento no embate com alguma matéria. Não há como significá-los. Eles só podem 168 • 169

ser sentidos, pois “nem existem significações explícitas nem ideias claras, só existem sentidos implicados nos signos” (DELEUZE, 2003, p. 91). A professora acredita na possibilidade de articular conceitos que contribuirão para pensar nas estratégias de enfrentamento dos problemas vivenciados na educação no que tange aos modos com que são realizados os processos do aprender docente e estudantil. Tem como objetivo cartografar a transformação disposta na relação de um aprender. Traz como problema de pesquisa uma questão: Como são realizados os processos do aprender de uma professora e dos estudantes junto às Oficinas de Escrileituras? Os caminhos tracejados no mapa servem de matéria prima na composição das linhas de uma vida docente que aprende, pois há ali um ato de decifração. As trajetórias percorridas pela professora, em cada curva alcançada, a cada aventura desbravada nesta empreitada, são emissores de signos.

Signos que passaram na Oficina de Escrileituras A Oficina Filodança foi realizada pelo núcleo UFPel com uma turma de terceiro ano do ensino fundamental de uma escola da cidade de Pelotas/ RS em 2013. Este trabalho é apresentado em sua forma extensiva, na composição que o fizeram acontecer. Uma tentativa de demonstrar como se constitui um aprender dos estudantes junto ao Projeto Escrileituras. Se aprender é criar os próprios problemas a partir de um encontro que emite signos, de que forma a Oficina promoveu encontros e aprendizagens? Como outras Oficinas34, também, produziram aprenderes? A Oficina Filodança deu-se em razão das necessidades de se investigar as potências do corpo e sua influência no ato de ler e de escrever por uma criança estudante. Considerando o corpo como sendo tudo (NIETZSCHE, 2006) e entendendo-o como um produtor de intensidades, foi pertinente pensá-lo como um lugar de problematização que se relaciona com os escritos e questiona o mundo. Houve encontro com as ideias sobre corpo em Spinoza (2007) e em Nietzsche (2006). A biografia da autora Clarice

Foi escolhida uma Oficina de cada um dos Núcleos do Projeto Escrileituras realizada com crianças no ano de 2011para a composição da pesquisa: Oficina Cores, sabores e texturas [Núcleo UFMT]; Oficina Filoescritura com Kafka [Núcelo UFRGS]; Oficina Vida! Hoje tem espetáculo [Núcleo Unioeste]. Oficinas estão disponibilizadas no Caderno de notas 5 (RODRIGUES, 2013). A Oficina Filodança [Núcleo UFPel] não está disponível no Caderno de notas 5, pois foi um trabalho efetivado em 2013.

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Lispector foi apresentada a eles. Houve a experimentação de leitura para discutir sobre A vida íntima de Laura (LISPECTOR, 2013). A história de Lispector é movimentada por muitos questionamentos realizados ao leitor. Esse movimento fez com que os alunos participassem com mais curiosidade ao trabalho. Em conversa coletiva, após a leitura, as crianças foram sendo questionadas: Quem era Laura? Porque a autora quer contar a vida íntima de uma galinha chamada Laura? Quais eram os pensamentos de Laura? Neste momento, elas participaram respondendo às questões que a autora e os oficineiros realizavam. Dois movimentos foram planejados para a produção de escrituras como tentativa de operacionalizar as escrileituras no instante da Oficina. O primeiro se deu a partir da ideia de escrever uma carta à galinha. Algumas crianças ficaram animadas com a proposta feita. Dos 25 alunos, 16 se propuseram a participar. Uma folha foi disponibilizada. Seis deles utilizaram desenhos para representar a galinha, além de expressarse em pequenas frases. Considerando que, para Deleuze (2003), o ato de pensar vai além do representar, não há dúvidas em relação ao ato recognitivo e representacional realizado por alguns dos estudantes diante da proposta de escritura epistolar direcionada à personagem principal do livro. Esse movimento demonstrou a frágil capacidade, ainda, de invenção pelas crianças ao modificar a realidade em questão a partir da escritura. Neste primeiro movimento da Oficina, foi percebida uma resistência à fabulação, fato ocasionado pela pouca exploração da escrita para determinado fim. “A Laura tinha muita mania de comer” (Alice). “Laura tinha filhinhos, ela gostava de comer porque ela tinha mania” (Dorothy). “Laura gostava de comer porque tinha mania. Laura é feliz do seu jeito. Beijo Laura” (Ruth).

É possível considerar estas escrituras a partir de algo que inflama este movimento analítico: o efeito das questões realizadas pelos oficineiros após a leitura do texto de Lispector. Os problemas criados se tornaram frágeis em razão daquilo que se queria propor: um pensamento. A significação foi o efeito ocasionado em razão das perguntas direcionadas como, por exemplo, Quem era Laura? De acordo com Deleuze (1988, 170 • 171

p. 243), sabe-se “que o problema não é dirigir, nem aplicar metodicamente um pensamento preexistente por natureza e de direito, mas fazer com que nasça aquilo que ainda não existe [...]”. Dessa maneira, fez pensar em como foram criados os problemas durante o planejamento da Oficina, pois não causaram a implicação desejada: a produção do pensamento a partir de algo que o force a pensar. Mostra-se importante olhar com atenção para este aspecto de como produzir perguntas de maneira a alcançar um aprender. Os problemas não são dados, mas devem ser constituídos e investidos em campos simbólicos que lhes são próprios, de modo que violente o pensamento. Um problema não existe fora de suas soluções, mas está intimamente implicado com o sentido que é dado a elas, de acordo com as circunstâncias estabelecidas (DELEUZE, 1988). A professora percebeu, nos escritos de alguns dos estudantes, aquilo que para eles ficou mais evidente após a história ter sido contada: a relação com a comida. Um fato que chamou a atenção dos oficineiros foi a constante “mania de comer” que as crianças tinham, tal qual Laura. A todo o momento das atividades, eles estavam mastigando algo, além de dois intervalos para refeições, um cedido pela escola e outro para aqueles que levavam seu próprio lanche. Tratou-se de uma ocasião pouco explorada pelos oficineiros que desenvolveram a Oficina, não aproveitando esse espaço para experimentar o corpo ao alimento, de maneira a observar o acontecimento derivado desta ação, indo ao encontro da ideia trabalhada na Oficina de Escrileituras Cores, sabores e texturas. Fantasias do corpo em cena (BIATO, 2013, p. 99). Em razão de um questionamento35 movido pelos pensamentos da professora-que-aprende, de acordo com as palavras da oficineira que conduziu o trabalho acima, detecta que o aprender está relacionado à percepção. Uma maneira possível de transcriar a saúde ao corpo, afirmando a relevância de operar uma escrita de si como “produção de si, de estilos de individuação” [resposta de Biato ao questionamento da professora]. Retornando à análise sobre os escritos dos estudantes participantes da Oficina Filodança, pode-se considerar a matéria comida como um signo Questionamento realizado via e-mail: De que maneira(s) se constituiu (constituíram) a(s) aprendizagem(ns) do ler e do escrever na Oficina de Escrileituras denominada Cores, sabores e texturas. Fantasias do corpo em cena?

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sensível potente, pois é da ordem dos sentidos [sabor] que causa um efeito de alegria, também possibilitando a relação entre memória involuntária e a própria imaginação. O aprender é movido nesta circunstância em razão de que há um encontro com a comida e Laura de maneira que estes objetos “faz realmente nascer a sensibilidade no sentido [...]. Não é uma qualidade, mas um signo. Não é um ser sensível, mas o ser do sensível (DELEUZE, 1988, p. 231) oferecendo a possibilidade de escrever. A Oficina Filodança tentou favorecer essa percepção, de um corpo que, ao se movimentar, é suscitado a escrever pelas forças advindas do meio, um processo de escrileituras. Não há paradas obrigatórias [para ler; para escrever; para pensar] nem fluxos contínuos, mas escrituras intermitentes que se movimentam em um tempo que é redescoberto (DELEUZE, 2003), pela invenção de problemas que deem a pensar, alcançando um aprender a partir de um corpo à espreita. Esse processo de escuta ao corpo remeteu à Oficina de Escrileituras Vida! Hoje tem espetáculo!36 (BRACHT, 2013). As máscaras produzidas durante a Oficina Vida! emitiram signos aos estudantes no momento em que serviu como “disparador do autoconhecimento e do conhecimento do outro, fazendo nascer momentos de registros escritos informais e formais [...]” (BRACHT, 2013, p. 225). Assim é possível verificar a alternativa de criar, não somente em meio ao teatro, à dança e às artes, mas pelas escrileituras, um sentido a si mesmo, desmascarando as identidades incrustadas no corpo-aprendiz que lê e escreve a partir daquilo que lhe toca. Na continuidade da Oficina Filodança dentro da sala de aula, ao terminarem suas escrituras direcionadas à galinha Laura, as crianças se prepararam para a assistir um fragmento do filme Billy Elliot37. Uma tentativa de demonstrar como a dança pode modificar o modo de pensar sobre o mundo e se relacionar com ele, colocando o corpo em movimento a partir de uma potência que vibra dentro de cada um. As classes retiradas de seus lugares e o chão constituíam o local disponível naquele instante. Antes de saírem para o recreio, cada participante retirou, de uma caixa, pequenas frases recortadas do material literário (LISPECTOR, 2013) e dos Oficina de Escrileituras realizada em 2011 pelo Núcleo Unioeste. Disponível no Caderno de notas 5 da Coleção Escrileituras (RODRIGUES, 2013). 37 Disponível em: . 36

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conceitos filosóficos discutidos (NIETZSCHE, 2006; SPINOZA, 2007). Cedeu-se um espaço para o aluno que quisesse ler sua pequena frase. Apenas dois estudantes realizaram a leitura com certa dificuldade no próprio ato de ler, mas compreendendo a proposta de retomar o que tinham trabalhado no primeiro momento da Oficina. Alguns alunos manifestavam a rejeição ao trabalho afirmando com palavras firmes: “eu não leio direito” ou, até mesmo, “eu não sei ler”. Esta inibição ao realizar a tarefa de leitura leva a considerar o postulado evidenciado por Deleuze (1988) sobre o “negativo do erro”. O erro é visto como um desvio do correto a se pensar, uma falha do bom senso. O que se desvia desses moldes é tido como loucura, besteira. Com o retorno do recreio algumas dificuldades foram encontradas em retomar o trabalho, pois as crianças estavam muito dispersas. O que se percebia, naquele momento, era uma necessidade do corpo expressarse, como o grito por um espaço em que ele pudesse respirar, articular-se, misturar-se àquele ambiente. O corpo discente escolar pedia passagem a essa liberdade no instante em que se apropriava do novo espaço da sala de aula e, também, ao desejar não estar mais naquele ambiente, pelo menos, no tempo em que foi definido para se estar lá [quatro horas por turno] e o que se aproveita em matéria de aprendizagem, nesta ocasião. Há transformação de um corpo que reage. Uma metamorfose. A Oficina de Escrileituras denominada Filoescrituras com Kafka: experimentações no ensino fundamental (SCHULER, 2013, p. 17) é incitada neste instante, por transcender aprendizagens à professora. Em razão de outro questionamento38 movido pelos pensamentos da professora-que-aprende, agora direcionado à oficineira Betina Schuler, é possível detectar, de acordo com as palavras dela, que conduziu o trabalho acima, que o ato de ler e escrever é tomado por uma experiência intensiva a partir de uma apropriação das forças que se expressam nos textos construídos. Dessa forma, ela afirma um aprender em escrileituras passando por três funções: política [que busca atravessar toda uma maquinaria na linguagem que é tomada por representação]; ética [que problematiza os modos de subjetivação na contemporaneidade]; estética [que produz outras possibilidades de vida e pensamento]. Questionamento realizado via e-mail: De que maneira(s) se constituiu (constituíram) a(s) aprendizagem(ns) do ler e do escrever na Oficina de Escrileituras denominada Filoescritura com Kafka: experimentações no ensino fundamental?

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Na metamorfose de um corpo que reage, volta-se à Oficina Filodança. Os estudantes entraram para a sala. O prosseguimento daquilo que tinham trabalhado no período anterior ao intervalo tornou-se importante para ativar o processo de produção do conhecimento. Dessa forma, questionou-se: O que isso que eu li, a partir daquilo que estudei, me faz pensar e me faz escrever? Nenhum aluno respondeu. A passividade, movida pela dispersão, unida à falta de vontade de participar preocupou os oficineiros. No entanto, fez pensar que esse silêncio possa ter sido o gerador de um pensamento em torno da questão realizada, como possibilidade não de respondê-la, mas de sair dela. Para Deleuze (DELEUZE; PARNET, 1998), há devires que atuam em silêncio; portanto, tornam-se imperceptíveis. Um devir “é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade [...]” (Ibid., p. 10). Seguindo, como atividade final, convidaram-se os discentes a criar um dicionário de novos sentidos, a partir de palavras selecionadas em torno de alguns conceitos que tinham trabalhado e discutido na Oficina, consolidandose o segundo movimento de escrileitura. Abertura, também, à condição de Transcriação (CORAZZA, 2011b), que opera um texto que é traduzido e composto a uma nova língua na própria língua. Um movimento de expressão escritural que abarca a possibilidade de criação sobre um texto existente que, ao ser traduzido, sofre transformações, desvinculando-se do original. Palavras eleitas foram usadas para a composição escritural [dicionário] das crianças, a partir daquilo que estudaram durante a Oficina: corpo; alma; escrever; palavra; criança; íntimo, pensamento, si. Para auxiliar na compreensão de como operacionalizar a atividade final, a leitura do livro Girafa não serve pra nada (ARAGÃO, 2000) foi praticada. Este material literário cintilou afecções nos estudantes e favoreceu a produção de escrituras. Foi possível perceber, a partir da escritura de uma criança para o dicionário, a estreita relação feita diante do sentido de escrever. Para eles, esse trabalho é movido pela intensidade com que copiam “coisas” do quadro e dos livros didáticos: “Escrever é como copiar” (Willy). Uma resistência ao escrever, permeada de angústia, foi percebida de imediato. Tomando-se por base a análise apresentada por Deleuze 174 • 175

(2003) diante da obra de Proust, a angústia é um efeito causado pelos signos amorosos. A faculdade que interpreta esse signo é a inteligência, que é suscitada a acalmar esse sofrimento, sendo preciso transmutar em alegria. “Alma: vento que controla o corpo” (Manoel). No momento em que a proposta foi destituída de uma “avaliação final”, as escrituras foram acontecendo, sem qualquer exigência de uma gramática “correta” da Língua Portuguesa. Mais uma vez a destituição de uma imagem dogmática que só reconhece o erro como uma “desventura do pensamento” (DELEUZE, 1988, p, 244). O signo amoroso foi interpretado pelos oficineiros na medida em que manifestou uma escritura possível, de maneira que “seu sentido se encontra na contradição daquilo que revelam e do que pretendem esconder” (DELEUZE, 2003, p. 80). Desse modo, a escritura apresenta uma incongruência entre aquilo que foi afirmado pelos estudantes, “Não sei escrever”, e o que de fato revelaram, ao inventar palavras no dicionário, enfrentando as dificuldades apresentadas no primeiro momento da Oficina quando escreviam uma carta à galinha Laura, personagem do material literário de Lispector. “Alma é uma coisa que está dentro da gente. Quando uma pessoa morre não é a alma que morre é o corpo que para de se mexer” (Sophia). Dos signos emitidos aos efeitos que levaram alguns estudantes a escrever, havia potência na leitura realizada em torno das matérias agenciadas ao ato de escrileiturar. As ressonâncias produzidas em torno de um aprender configuraram as transformações de uma escritura. Aprenderam na medida em que o processo se movimentou na busca por uma verdade que cada um interpretou a sua maneira. A concepção filosófica de Deleuze (1988; 2003) se mostra potente, também, por sensibilizar o olhar do professor diante dos signos emergidos em uma sala de aula, por exemplo. E, propiciar, pelo agenciamento de matérias, a redescoberta de um tempo que reúne o sentido e o signo, alcançando um aprender que menos se faz por métodos, mas pela necessidade de construção de verdadeiros problemas, na perspectiva teórica adotada.

Aprender em Escrileituras Um aprender em Escrileituras é possível porque o Projeto apostou na potência das passagens de vida como matéria de escritura. Um aprender, igualmente, pela experiência que serve de condição para escriler. Um aprender que é processado no próprio texto, no momento em que escreve pelos pensamentos que são acionados na realização dos agenciamentos possíveis que cada um faz. Um aprender pelas Escrileituras é possível, pois o texto criado é composto por uma heterogeneidade de elementos, de gente e de vidas que são lidos e escritos, necessitando ser traduzido de variadas formas. Não se aprende em Escrileituras por um método linear e pragmático, aprende-se de modo artistador, um método tipo rizoma, que corre por fluxos, por linhas que se cruzam e enxergam as forças emanadas do trabalho efetivado. É por meio dos experimentos realizados, durante os quatro anos de pesquisa no Projeto Escrileituras, que a professora aposta no estudante-que-experimenta-e-aprende sendo capaz de criar suas próprias composições textuais, com seus estilos singulares, a partir dos agenciamentos alcançados. A constituição de dois planos [extensivo e intensivo] apresentados no mapa marca o território de alguém que aprendeu. Processam-se menos por uma linearidade de conceitos, saberes ou fases de desenvolvimento que transformam uma professora em muitas outras. Em que elas se diferenciam? Pelo tanto que cada uma caminha, em trajetórias escolhidas por ela mesma, ou pelas circunstâncias da vida. Diferenciam-se por aquilo que se deixam afetar, o roçar-se do mundo em si, um roçar-se da educação em si, também, pois são professoras. O processo do aprender se constituiu de forma intensiva na conjugação daquilo que deslocou o percurso de um ponto a outro, envolvendo-se com e no mundo, não deixando nada de fora de seu delírio constante. Por fim, a professora se vê em caminhos que são desenhados diante de uma vida. Descobre a aprendizagem nos lugares todos, na intensidade de um plano que se faz pelos afectos agenciados a partir das trajetórias e das matérias oferecidas e dispostas para um aprender na Arte, na Filosofia e na Ciência. A trajetória afeta diretamente uma professoralidade, pois esta 176 • 177

escolha está relacionada ao lugar que se deseja chegar e isso acarretará uma série de encontros, potencialidades e causalidades, bem como Alice [no País das Maravilhas] se depara em cada caminho que elege como seu.

Referências ARAGÃO, José Carlos. Girafa não serve pra nada. São Paulo: Paulinas, 2000. BIATO, Emília Carvalho Leitão. Cores, sabores e texturas. Fantasias do corpo em cena. In: RODRIGUES, Carla Gonçalves (Org.). Caderno de notas 5. Oficina de Escrileituras: arte, educação, filosofia. Oficinas produzidas em 2011. Pelotas: Editora Universitária UFPel, 2013. (Coleção Escrileituras) CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. (Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges). Rio de Janeiro: Zahar, 2009. CORAZZA, Sandra Mara. Projeto de pesquisa: Escrileituras: um modo de “ler-escrever” em meio à vida. Plano de trabalho. OBS da Educação. Edital 038/2010. CAPES/ INEP. Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, setembro de 2011. _____. Notas para pensar as Oficinas de Transcriação (OsT). In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. (Coleção Escrileituras) COSTA, Luciano Bedin da. Biografema como estratégia biográfica: escrever uma vida com Nietzsche, Deleuze, Barthes e Henry Miller. Tese (Doutorado em Educação). Programa de PósGraduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2010. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. Proust e os signos. (Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. _____.; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Escuta, 1998. LISPECTOR, Clarice. A vida íntima de Laura. Online. Disponível em: . Acesso em: nov. 2013. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. (Tradução de Ciro Mioranza). Série Filosofar. São Paulo: Escala Educacional, 2006. RODRIGUES, Carla Gonçalves (Org.). Caderno de notas 5. Oficina de Escrileituras: arte, educação, filosofia. Oficinas produzidas em 2011. Pelotas: Editora Universitária UFPel, 2013. (Coleção Escrileituras) SCHULER, Betina. Filoescritura com Kafka: experimentações no ensino fundamental. In: RODRIGUES, Carla Gonçalves (Org.). Caderno de notas 5. Oficina de Escrileituras: arte, educação, filosofia. Pelotas: Editora Universitária UFPel, 2013. (Coleção Escrileituras) SPINOZA, Benedictus de. Ética. (Tradução e notas de Tomaz Tadeu). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007.

Timpanização de escrileituras. Vias marginais para objetos duplos Emília Carvalho Leitão Biato Silas Borges Monteiro

Resumo Este estudo se insere no desenvolvimento do Projeto Escrileituras no núcleo UFMT. Surge da proposição de duas Oficinas de Transcriação tematizadas por corpo e saúde (Fantasias em cores, sabores e texturas e Cartas). Tem, como objetivo, ensaiar um método de tomada do texto que se configura como duplo, de modo a fugir das generalizações e das representações, um método de timpanização. Timpanizar parece ser ação de movimentar o pensamento e descrevê-lo em bases novas: filosofar com um martelo. Num ensaio de timpanização, para o qual propusemos três gestos indissociáveis: tatear escombros, disseminar sentidos e criar cadeias suplementares. Apresenta-se como uma perspectiva de preparação do professor/profissional da saúde para o ensinar e aprender que privilegiam as forças plásticas, potências de criação da vida. Alternativa às condutas massificadoras de observar e analisar e de desenvolver atividades educativas.

Palavras-chaves Timpanização. Escrileituras. Saúde. Margens. Duplos.

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1. Apresentação Este estudo se insere no movimento de abertura a experimentações, provocações, opções inusitadas e exorbitâncias, em processos educativos que envolvem a leitura e a escritura como práticas indissociáveis. Com foco nas artes visuais, nos biografemas, em filosofia, lógica, música e corpo ou teatro, desenvolvemos, no projeto, Oficinas de Transcriação (OsT), que se põem a ligar o tempo ordinário à produção do novo (DALAROSA, 2011). Propusemos, entre outras, duas OsT tematizadas pelo corpo e saúde (Fantasias em cores, sabores e texturas e Cartas), e as realizamos, em momentos diferentes, com alunos da Escola Estadual Paciana Torres de Santana, participante do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, núcleo UFMT, que se vincula ao Grupo Estudos de Filosofia e Formação (EFF). Uma das linhas de pesquisa criadas pelo Prof. Silas Borges Monteiro no contexto do EFF é chamada de Diferença e normalização em educação e saúde, e tem a perspectiva de promover estudos de característica desconstrutora, agenciados pelas filosofias da diferença e suas discussões. Abordamos, nesta linha, conceitos relevantes para a compreensão dos campos da saúde e da educação em suas interfaces, com abertura à singularidade, às potências criadoras, à experimentação do corpo e aos estilos de individuação. Neste sentido, num desvencilhamento em relação a posições prescritivas e até imperativas, que podem envolver a ação educativa em saúde, o que se propõe nas OsT discutidas aqui, é que a criação e a poética sejam priorizadas na produção de saúde e vida de cada um, que aqui ganha a forma de escrileituras. Tanto os textos dos autores consagrados (da filosofia, do teatro e da saúde), quanto os textos vindos das oficinas de transcrição nos serviram de empiria para a elaboração da problemática e desenvolvimento dessa pesquisa, que se configura como um estudo sobre o método de tomada das escrileituras da saúde.

2. Problemática – Eu vou fazer uma amarração para o braço, aqui, as tiras, e com os pés... E vêm os anjos e me levam em cima, a certa altura, e dizem: pai, arrasaram

o mundo em fogo Arthur Bispo do Rosário (apud Hidalgo, 2012, p. 231-232).

Em minúcias da visão divina, Bispo do Rosário trata de sua condição humana e proclama acontecimentos por vir. Leitura e escritura de intensidades e vanidades das vivências tramam a vida em expansão, como vir-a-ser, expressão da vontade de potência. É indiscernível a divisão entre um e outro movimento. Amarração de braços e pernas: corpo, minúsculas células que levam o tornar-se. Corazza pondera com Deleuze que o escrever é um processo, é um inacabamento, “sempre em vias de fazer-se” (DELEUZE apud CORAZZA, 2006, p. 26). O fazer-se é exercício do texto e exercício de si: o escrever como percurso incessante do tornar-se o que se é. O termo escrileituras, portanto, vincula-se a um modo de dizer do ler e do escrever como gestos que vazam um no outro: um duplo gesto. As escrileituras se configuram pelo livre circular entre obra lida e obra escrita, em movimentos indissociáveis. A vida, como vir-a-ser interminável carrega seu cadáver, ao que a escrita produzida em meio à vida ganha caráter biográfico e é, simultaneamente, escrita thanatográfica. De modo análogo ao da leitura-escritura biothanatográfica, a saúde parece carregar as contradições de ser, simultaneamente, doença. Saúde que Nietzsche chama de “uma tal” (ZA, § 2), que não permite afirmar “eu tenho”, pois sempre se perde e sempre se adquire. Vida que abrange a sanidade e a patologia, como vontade de potência que se efetiva em multiplicidade de forças sempre em combate umas com as outras. Esta noção de coexistência se materializa no pensamento sobre o duplo, mas não como uma contradição solucionável em uma síntese. A base em “dois” está no método estruturalista de abordagem das narrativas, e é característico do pensamento metafísico ocidental. Em busca pelo rompimento com esta noção, optamos por tentar entender o duplo a partir da filosofia desconstrutora do francês Jacques Derrida, filósofo do século XX (1930 a 2004) e leitor de Friedrich Nietzsche. O trecho “Meu rosto é lindo, maravilhoso. É um limão. Os olhos são duas uvas; o cabelo é um cacho de uvas. É um menino muito triste….” (SANTOS NETO, 2011), é um recorte do que foi escrito pelo estudante que estava 180 • 181

no quarto ano durante a primeira etapa da OsT Fantasias. Como tomar a escrileitura de Benevides dos Santos Neto, sem despregar suas amarrações, diante da indagação nietzschiana “Como separar vida e obra, saúde e doença” (NIETZSCHE, EH, Posfácio)? Quais as vias de aproximação à produção dos oficinantes? Como tomá-las sem nos embrenharmos em percursos hermenêuticos de causa e efeito? O rosto-limão parece vivência do corpo em movimento de tornar-se. Como captar e inventar o tornar-se? Que gestos seriam necessários à chegada à nervura de escrita autobiográfica de saúde e doença? Este trabalho tem, como objetivo, ensaiar um método de tomada do texto que se configura como duplo, de modo a fugir das generalizações e das representações. Propor, como via de pesquisa e de ação educativa, o encontro com forças em combate que constituem modos de efetivação de vida e saúde.

3. Apontamentos teóricos 3.1. Escrileituras O corpo curtido de suas intimidades, da fruição da vontade e de seus duplos, é traçado no texto, e, de acordo com o cumprimento do que se dispõe a fazer, conserva a sua assinatura e pontua sua “escrita performativa” (DERRIDA, 2009, p. 12). Dizer da escritura é dizer, então, do duplo: traçado do combate de forças em luta e confissão da vontade povoada de pensamento e sentimento, e que quer mais vida. É tomar o corpo que abriga o múltiplo e se movimenta como “escrita transbordante” (COSTA, 2010), o que Derrida chamaria de “escrita bífida” (DERRIDA, 2001, p. 49), disseminativa de infinitos sentidos. Se por um lado, o corpo-escritura performatiza as vivências, como se pudéssemos enxergar os traços e os sentidos dos vetores em plena luta, por outro, ele expõe o biográfico carregado do thanatográfico. Consideramos, ainda, que a escrileitura se associa ao prazer de escrever de si para si mesmo, como exercício de autoafecção, relação dionisíaca com a existência, de quem se deleita e experimenta os excessos de sua própria letra, na culpabilidade e no prazer; ao mesmo tempo, este mesmo material é enviado para alguém, porém, já começa seu percurso em desvio e, assim, toma seu trajeto errante: escrileitura em envio e este como

destinerrance. É nestes termos que o remetente/autor assina seu texto. E que o destinatário errante o recebe.

3.2. Corpo e Saúde Os corpos dos soldados russos se deixavam quedar na neve, entregues à morte, como valentes guerreiros que se apegam à vida estritamente do modo como esta se faz. A hibernação parece a opção mais atraente diante da dor que se experimenta: redução de movimentos, limitação do funcionamento orgânico ao mínimo requerido para a garantia das funções vitais. Se tomarmos o corpo como multiplicidade de forças sempre em luta, a denominação de fraqueza e doença direcionada ao que sofre a dor seria, para dizer pouco, simplista. São elementos de combinações de forças que querem mais vida. A grande saúde de Nietzsche inclui a morte como instante de vida, que, vista desse modo, pode ser tomada como um duplo. Destarte, a saúde inclui a doença e é tomada sob a lei da adição (e doença, e dor, e alegria, e…); não é simplesmente consensuada histórica e sistematicamente: ela desdobra-se em si mesma, formando um feixe de possibilidades conceituais.

3.3. Timpanização O discurso da filosofia é tema da obra Margens da Filosofia (DERRIDA, 1991), e se caracteriza por afirmar-se a partir do estabelecimento de limites, inclusive seus próprios. Num movimento para assegurar a permeabilidade da prática discursiva da filosofia, não mais estabelecendo-a em seus espaços dentro e fora, Jacques Derrida deseja superar os limites, refletir sobre desbordamentos. Timpanizar parece ser ação de colocar-se às margens, movimentar o pensamento e descrevê-lo em bases novas: filosofar com um martelo. O martelo, por um lado, dá as pancadas no tímpano, como o batuque num tambor (e não é à toa que o verbete membrana timpânica no Dictionary of Health Education (2010) traz o termo “ear drum”, como drums: tambores). Por outro lado, o martelo é órgão que amortece as vibrações e evita que o tímpano sofra as dores da violência das vibrações sonoras. De caráter

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duplo, as marteladas rasgam e amortecem a membrana. A timpanização é recital de batuques. Para ler os textos produzidos nas Oficinas de Transcriação, em expressões de vivências que alimentam instintos sempre em luta, é preciso uma intensa percussão capaz de fazer vibrar o tecido do pensamento em timpanização, num jogo de encadeamentos, no qual “tramar é (...) furar, atravessar, trabalhar de um lado e do outro da cadeia” (DERRIDA, 1991, p. 30). É preciso enfrentar as margens – “comer a margem, luxando o tímpano” (DERRIDA, p. 27). Se o tímpano virgem e estirado recebe a impressão da verdade, aqui, o tecido enrodilhado e perfurado vibra a vida mesma, no que ela se caracteriza como trama inventada, manifesta como o indecidível característico das lutas de forças. É assim que procuramos entrar nos textos, no movimento de escriler. Não perscrutamos o pensamento, nem mesmo o querer-dizer ou representar. Somos, como pesquisadores, de algum modo, afetados pelo texto do outro e impregnados de vivências singulares, e aguçamos os ouvidos aos rastros do autor.

4. Vias do estudo As Oficinas de Transcriação Cartas (com estudantes do 9º ano da Educação Básica) e Fantasias em cores, sabores e texturas (com estudantes do 5º ano) foram constituídas de abordagem e aproximação de obras de autores, pintores, artista – como Ziraldo, Giuseppe Archimboldo, Rochelle Costi na OsT Fantasias e Artaud, Van Gogh e Nietzsche na OsT Cartas –, com função inspiradora e mobilizadora de vida. Foram escolhidos, para as oficinas, temas relacionados à experimentação do corpo e à saúde: a alimentação e os usos dos alimentos; a dor, a privação, as sensações do adoecimento e da loucura. O movimento proposto para as OsT, de leitura pregada à escritura, acaba por ser misturado ao método do estudo: se, por um lado, o participante da oficina traduz transcriando o oficinado, o pesquisador se envolve num movimento de transcriação, numa tentativa de “chegada à fruição pela coabitação das linguagens” (BARTHES, 1987, Seção 7). Claro está, portanto, que a neutralidade do pesquisador, neste processo, é impossível e nem é requerida.

Tomamos, neste trabalho, trechos de escrileituras das crianças participantes e realizamos a escrileitura desses trechos, num ensaio de timpanização, para o qual propusemos três gestos indissociáveis: tatear escombros, disseminar sentidos e criar cadeias suplementares.

4.1. Tatear escombros Para que seja possível luxar os tímpanos, é preciso haver uma nutrição com as forças encontradas no discurso a ser desconstruído, uma vez que o objeto da desconstrução serve de substrato para o procedimento: propõe-se, portanto, a manipulação dos elementos que parecem prontos na linguagem, com a apropriação do envio do emissor. Bem, mas não caberia nesta matriz de pensamento, que fosse requerido do pesquisador uma retomada das origens do texto enviado. O que se espera desse “tatear” é que se notem os jogos de forças, sem tentar encerrá-los e solucioná-los: que se deixe o enigma sublinhado (BARTHES, 2005).

4.1. Disseminar sentidos Gesto que o oficinante como escrileitor dissemina e o que o professor e o pesquisador disseminam, ou seja, declaram como linguagem de fuga às familiaridades; verdades do instante. É uma operação de indecidíveis. A polissemia já se configura como um progresso em relação à linearidade da escrita e à tutela dos sentidos. Bem, mas a polissemia cabe no pensamento dialético, a partir da consideração de contextos históricos e culturais. O indecidível se apresenta como movimento de maior intensidade na radicalização do pensamento que rompe com a metafísica: a força da disseminação na escrita bífida (afastamento) tem uma ação explosiva do horizonte semântico. Há, neste gesto, a produção de um número não finito de efeitos semânticos, sem possibilidade de retomada da origem e nem mesmo de definição de seu fim.

4.3. Criar cadeias suplementares A noção de duplo se insere na lógica do suplemento. Este se configura como “uma adição, um significante disponível que se acrescenta para suprir uma falta do lado do significado e fornecer o excesso de que é preciso”

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(SANTIAGO, 1976, p. 88). O suplemento não complementa, pois não falta simplesmente; seria complemento. Num aforismo sobre a grande saúde (NIETZSCHE, GC § 382), Nietzsche a apresenta como um excesso de forças plásticas, que se rearranjam em seus triunfos e não lamentam e nem evitam a dor: “transbordante abundância e potência”. Na cadeia de suplementos há uma plenitude que enriquece outra plenitude, o que estabelece o embate. O escrevente não é mais sujeito, no sentido da origem, da paternidade do texto; a escritura não é representação e nem mesmo intermediária da significação do texto; não existe um limite entre a vida real e a escritura, entre as cenas de dentro e de fora do texto. Na criação da cadeia suplementar, fica mais evidente o papel do pesquisador, também como escrileitor, num exercício de mescla de tecidos escriturários.

5. Resultados Escrileitura 1: “Estava pensando aqui. Será que vou conseguir tirar isso de dentro de mim? Então, parei de pensar e comecei a sentir o porquê de tudo estar assim” (Lima, 2013). Tatear escombros: Tomamos, do trecho, a noção de que a doença entra e sai do corpo, que parece ser pincelada na escrileitura, como que inserida no contexto das ideias circulantes acerca do tema, valorativa de que há um mal que precisa ser afastado. Disseminar sentidos: Num exercício de pulverizar os sentidos, em rompimento com a lógica das representações, é possível pensar sobre a definição de condutas direcionadas à retirada do mal que acomete os corpos, tal qual a pintura de Bosch, A extração da pedra da loucura: diante de mazelas, a vida precisa ser redefinida e saúde e doença se colocam como dois estados fixos e opostos, decorrentes da forma de ajuizar o funcionamento orgânico. Encontramos a valoração de bens e males, num processo de generalização e de afirmação da força de rebanho. Criar uma cadeia suplementar: De indesejadas sensações a explicações sobre “tudo”, instâncias do corpo múltiplo, que sofre e pensa. Seria preciso parar de pensar para começar a sentir? O “sentir o porquê”, como potência

do pensar, se acresce como pleno a outro pleno. O que não desejo, me acomete. O sentimento de vida contrariada entra em combate, o que me leva à busca pelo cuidado de alguém fora de mim, que me atende. De fora, pode vir o fim dessa que me “sobe reptante” (CORTÁZAR, 2014, p. 60), disso que está dentro. Jogo de dentros e foras, bem e mal-estar, pensamentos e sentimentos e explicações, como elementos que se mancham e misturam. Morte dos limites.

Escrileitura 2: Trecho do dicionário inventado: “Alimentos - são coisas que a gente come no dia-a-dia, como verduras, legumes, frutas, carne… Fome - Quando as pessoas não têm nada na barriga e precisam comer, é porque estão com fome. Comer - É degustar o alimento, sentir o sabor do que você está comendo” (Santos Neto, 2011). Trecho da história sobre o sabor das letras: “Será que todas as palavras que começam com P têm um gosto bom? … Eu não gosto da letra P… mas deve ter gosto de chocolate ou baunilha. Será?” (SANTOS NETO, 2012). Trecho do texto sobre a OsT: “Quando eu tenho fome, eu como alimentos…. na minha casa tem muitas toalhas de mesa com desenhos de frutas” (SANTOS NETO, 2012). Tatear escombros: Junto aos estudantes nas OsT, fomos questionados em relação ao número de linhas, às quantidades e às formas do texto proposto. A folha em branco parece desalojar. Diante da possibilidade de inventar um dicionário, a primeira tentativa parece ser a de seguir pela trilha mais conhecida, o que se experimenta no “dia-a-dia”. Um pouco mais desinstalado, vemos o “degustar” e o “não ter nada na barriga”, estabelecendo uma dupla circunstância. Disseminar sentidos: O branco da folha oferece espaçamentos como possibilidade de se ocuparem os vazios com o inusitado. Quando diz do pensamento que faltava a Artaud em seus primeiros livros, Blanchot (2005) parece encaminhar a escritura a que não se preocupe com seus ocos e que se despoje de tentativas de tratar do todo. Aos participantes das OsT (pesquisadores e estudantes) era esperado que abraçassem as possibili186 • 187

dades múltiplas e ilimitadas da transcriação: não ter nada na barriga, não ter o que escrever, não saber. “Deve ter o gosto de…” Criar uma cadeia suplementar: Imagens de frutas podres nas fotos de Costi, na escola. Toalhas de mesa, em casa. Escola suplemento da casa. Acrescem-se e cobrem a mesa, apoio de alimentos, que me vêm quase simultaneamente à chegada da fome. A intensidade da fome, em sua plenitude, acresce-se da comida. O que eu gosto se articula ao que eu não gosto. Categorizo na boca, no estômago, na multiplicidade que me constitui. Também as letras, as palavras, o que eu escrevo, o que eu leio. Eu degusto quando como, eu experimento e rumino. O sabor das frutas, cores e texturas em tecido. Vivências alimentam. O vazio é lugar de plenitude, quando do dilaceramento se produz arte. “Será?… Quando eu… eu”.

6. Considerações finais Frente ao borbulhar de questões surgidas do planejamento e do movimento das oficinas de transcriação, ensaiamos, com elementos teóricos e com exercícios, um modo de proceder à escrileitura a partir das escrileituras dos oficinantes. Postamo-nos na orla, nem dentro, nem fora d’água, em espaço mole. A timpanização efetiva a desconstrução, rompimento com a saturação das oposições binárias. Dos textos, movimentamos noções circulantes dos campos da Educação, da Saúde, das práticas educativas e do senso comum, de modo a vislumbrar seus valores; multiplicamos os sentidos do que é dito e escrito de singular, com o não dito, absolutamente despojados do desejo de alcançar o “querer dizer”. Ainda, tecemos entrelaçamentos em urdiduras frouxas, ao assumirmos que a origem do texto não se inscreve, quando se estabelece o “escrever com”. Assim, escrevemos com as crianças, que haviam escrito conosco, com as leituras oficinadas. Os gestos de timpanizar nos ofereceram nuanças das forças em luta que, simultaneamente, constituem a escrita (traços do vivido na produção de si) e compõem o processo de individuação. Destacamos, nas escrileituras, o entrelaçamento suplementar de vida e obra. Escutar às margens exige a mobilização de múltiplos sentidos, que têm em vista a entrada num percurso errante em direção ao singular. Ainda que este fim de linha não chegue, ele se anuncia como potência de

criação e de proposição de modos para a pesquisa e para o processo educativo: apresenta-se como uma perspectiva de preparação do professor/ profissional da saúde para o ensinar e aprender que privilegiam as forças plásticas, potências de criação da vida. Alternativa às condutas massificadoras de observar e analisar e de desenvolver atividades educativas. Neste percurso, não podemos fazer afirmações definitivas a respeito dos escritos; mas encontramos interlocução de traços e espaçamentos, dobras de suplementos e jogos, já que tomamos textos enviados em destinerrance. Não nos detivemos nas críticas e na detecção dos problemas da escola e dos trabalhos educativos - em saúde ou não. Embora não as tenhamos ignorado, posto que nos envolvemos em seus espaços. Ensaiamos, destarte, um método que serve ao estudo dos duplos que permeiam as práticas escolares de leitura e escritura, como as escrileituras tematizadas pela saúde, e nos achegamos, agora com maior contundência, à abertura para tomar a produção dos estudantes em suas potências transcriadoras.

Referências BARTHES, Roland. O prazer do texto. (Tradução J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva, 1987. _____. A preparação do romance. (Tradução Leyla Perrone-Moisés). São Paulo: Martins Fontes, 2005. BEDWORTH, David; BEDWORTH, Albert. Dictionary of Health Education. New York: Oxford University Press, 2010. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. (Tradução Leyla Perrone-Moysés). São Paulo: Martins Fontes, 2005. CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens – filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. CORTÁZAR, Júlio. Bestiário. 2ª ed. (Tradução Paulina Wacht e Ari Roitman), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. COSTA, Luciano Bedin. O destino não pode esperar ou o que dizer de uma vida. In: FONSECA, Tânia Mara Galli; COSTA, Luciano Bedin (Orgs.). Vidas do fora: Habitantes do silêncio. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2010, p. 47-68. DALAROSA, Patrícia Cardinale. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. Observatório da educação CAPES/INEP. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.) Cadernos

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de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. p. 15-29. (Coleção Escrileituras). DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. (Tradução de Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães). Campinas/SP: Papirus, 1991. _____. Posições. (Tradução Tomaz Tadeu da Silva). Belo Horizonte: Autêntica, 2001. _____. Otobiografías. La enseñanza de Nietzsche y la política del nombre propio. Buenos Aires: Amorrortu, 2009. HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosario – O senhor do labirinto. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2012. (Formato ePub). LIMA, Caroline. Escrileituras produzidas durante a Oficina de transcrição Cartas, na Escola Estadual Paciana Torres de Santana. Cuiabá, 2013 (Texto digitado). NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. _____. A gaia ciência. (Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza). – São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _____. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. (Tradução Paulo César de Souza), São Paulo: Companhia das letras, 2005. _____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1976. SANTOS NETO, Benevides Bispo dos. Escrileituras produzidas durante a Oficina de transcrição Fantasias em cores, sabores e texturas, na Escola Estadual Paciana Torres de Santana. Cuiabá, 2011/2012 (Texto digitado).

Didática Cinemática: escrileituras em meio à filosofia-educação Ana Carolina Acom Sandra Mara Corazza

Resumo Esta dissertação se constitui como pesquisa conceitual operatória dentro do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. A partir da bibliografia produzida ao longo do próprio projeto, a pesquisa experimenta a noção de que toda a didática pensada em meio à filosofia da diferença é possível como experimentação do pensamento, escritura e leitura (escrileitura), e operada enquanto didática da tradução. A pesquisa contempla a tese corazziana de que o professor é, por sua função, um tradutor, ele cria e transcria conteúdos em aula. O trabalho experimenta a escrileitura de conceitos oriundos do processo cinematográfico para serem transcriados e transmutados em conceitos didáticos, procurando um exercício de tradução intersemiótico.

Palavras-chave Cinema. Didática. Escrileitura. Tradução. Transcriação.

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A didática, enquanto passível de criação, é Didática-Artista (CORAZZA, 2012), e ao transpor formas, conteúdos e forças, faz tradução. Pensar a didática em meio à Filosofia da Diferença, enquanto campo de estudo das possibilidades tradutórias do ato educacional, é teorizar sobre as potencialidades da tradução criativa e da transcriação de composições didáticas contemporâneas. [...] se alguma didática, em meio à diferença, é possível – como experimentação de pensamento, escritura e leitura (escrileitura) – podemos dela falar como uma didática da tradução. (CORAZZA, 2015, p. 2).

O conceito de “tradução criativa” ou “transcriação”, apresentado nesta pesquisa, lida com a impossibilidade tradutória plena entre línguas, e, portanto, expõe o processo que re-cria textos e formas. A partir da teoria da tradução transcriadora de Haroldo de Campos (2011), podemos pensar a tradução para além da tradução de textos de uma língua para outra. A tradução transcriadora permite pensarmos o que cada área ou disciplina traduz em suas funções e como podemos pensar a tradução re-criadora de conceitos de uma área a outra. Este trabalho realiza uma experimentação tradutória de conceitos do cinema para o campo da educação, isto é, um exercício de transposição dos processos de composição de imagens do cinema para as imagens na cena de aula, o que pode ser pensado como “tradução intersemiótica” (PLAZA, 2003). A pesquisa tem como pano de fundo conceitual a filosofia cinematográfica deleuziana, no princípio de que o cinema pensa. Se no prefácio de Diferença e Repetição, Deleuze (2006) já afirma estarem esgotados os antigos modos de expressão em filosofia, e sugere uma renovação das pesquisas filosóficas relacionadas a outras artes e expressões, este trabalho apresenta o cinema como intercessor na busca por outras formas de se pesquisar educação. Partindo da noção de que o cinema pensa em seus procedimentos de cortes, planos e montagens (DELEUZE, 1983; 1990), propõe-se esta tradução experimental de alguns conceitos que inventam e combinam os domínios da educação e do cinema.

Um filme já faz, por si só, tradução através da montagem, traduz um drama, uma história, no todo montado. A dramatização de conceitos na aula cinemática é composta pela montagem, conforme o “efeito Kuleshov”, no qual o cinema se move, e que o cineasta Alfred Hitchcock chamou de “pura cinemática”; que é justamente a montagem das cenas e de como suas alterações funcionam para suscitar diferentes ideias, conforme suas sequências. As cenas de aula e mesmo os planos, unidades menores em movimento desta mesma cena, só adquirem sentido na cabeça do aluno, se fizerem parte de um todo. Ou seja, de um objetivo maior que ganha vida na relação desses conteúdos para formar o “todo educacional”, o conceito apreendido. É deste modo que a “pura cinemática” se faz aprendizado na diferença, capaz de suscitar uma ideia, fazer pensar com o conjunto das cenas de aula. A Didática Cinemática deve se atualizar na transdisciplinaridade e no conjunto, substituindo qualquer noção fragmentária ou segmentada de aprendizagem. A força que o conceito de montagem ganha nesta pesquisa devém de sua importância como característica do próprio cinema, que necessita da pós-produção em edição de imagens para completar uma obra. No exercício de montagem e na visualização das muitas camadas de imagens e sons de um filme na ilha de edição, observamos o pensamento material audiovisual sendo composto na formação do todo. Este processo de montagem e edição de conteúdo é o processo de execução do professor em aula, que seleciona textos, cenas e atuações dele mesmo e do aluno, a fim de traduzir um conteúdo que resulte deste conjunto, no todo montado. Através das próprias atuações da autora deste estudo: como docente, pesquisadora em educação-cinemafilosofia e dos diferentes trabalhos de edição de imagens desenvolvidos, nos três anos de estudos na linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, e nos vídeos do Projeto Escrileituras, esta pesquisa é uma pesquisa-docência desdobrada em uma metalinguagem escrileitora. Os estudos e atuações docentes se reescrevem como textos da cena de aula e em conteúdos escritos em forma de dissertação. A escrileitura em tradução transcriadora surge como modo de escrever o trabalho, mas também no devir docente em aula. Assim, o professor-tradutor enquanto escrileitor-cineasta compõe a cena de aula e busca uma transposição escrita desta didática que originou a dissertação. 192 • 193

Cinematizações A transcriação didática (CORAZZA, 2013) pode ser pensada como a tradução da aula por linguagens artísticas, e neste processo transcriador com o cinema podemos adotar o termo vinculado por Renato Cunha (2007): “cinematização”. Cinematizar seria um: “vocábulo autônomo que, no âmbito das relações entre palavra e imagem, reflita a noção de transcriação assim como ‘teatralizar’ faz nas artes cênicas” (CUNHA, 2007, p. 12). Cinematizar é o ato de adaptar um texto à cena, fazer um filme a partir de um romance ou peça teatral, previamente roteirizados. O processo de cinematização permeia a cena de aula em imagens, desde um currículo-roteiro até a composição destas imagens. Na aula cinematizada ou cinemática, as imagens trazidas pelo professor-cineasta, de alguma forma ou de outra, passaram pelo texto escrito, enquanto currículo-roteiro. Em um primeiro momento de decupagem, o texto fora lido mentalmente em imagens por este professor que dirigirá a cena de aula. No cinema, o próximo passo seria reconstruir sua corporeidade num set, para ser finalmente fixada em fotogramas de um filme (CUNHA, 2007). A aula ou um conjunto de aulas, que devem formar o todo educacional, perpassam por uma sucessão de momentos, materiais e imateriais, nos quais as imagens ganham formas; nesse processo, o ‘cinema mental’ da imaginação tem papel tão estimado quanto o das etapas de realização efetiva das sequências da aula ou de conteúdos projetados. “Esse ‘cinema mental’ funciona continuamente em nós – e sempre funcionou, mesmo antes da invenção do cinema – e não cessa nunca de projetar imagens em nossa tela interior.” (CALVINO, 2010, p. 99).

Didática da Montagem Este trabalho destaca algumas teorias sobre montagem do cineasta soviético Sergei Eisenstein, um dos maiores nomes nas técnicas inaugurais de montagem (edição do todo) e de processos de decupagem (planejamento da filmagem em planos e cenas e como estes se encadearão através de cortes), elementos até hoje presentes na composição cinematográfica.

A montagem de Eisenstein sugere cortes bruscos por oposição e saltos qualitativos que provoquem o choque. O cinema deveria produzir um choque no pensamento que levasse os homens a pensar. Mas, estas técnicas de cortes e por choque, somente possibilitam o pensar, não sendo, ainda, pensamento de fato (DELEUZE, 1990). O cinema depende das técnicas de encadeamento das imagens para forçar o pensamento. Deleuze (1983) diz, que para Eisenstein, a própria montagem é o todo do filme. A forma como ocorrem as mudanças do tempo no filme (duração) só podem ser apreendidas indiretamente, já que relacionam e sobrepõem as imagens-movimento que as exprimem. A montagem é essa operação que extrai das imagens-movimento um todo, uma ideia (DELEUZE, 1983). Na didática da montagem, construída por cortes e estímulos em choque do raciocínio, a expectativa do professor é extrair conteúdo como o todo de uma história, ele deseja compor no tempo intercortado o todo. Desta montagem decorrem grandes criações e não apenas operações práticas como de conceitos teóricos (DELEUZE, 1983): uma nova concepção do primeiro plano, concepção de montagem acelerada, montagem vertical, montagem de atrações e montagem intelectual. Esta última, quando pensada no plano da educação, arranca o ritmo de operação unicamente empírico ou recognitivo, pois há exercício e provocação do pensar. As imagens-movimento em sala de aula fazem o todo adquirir um novo sentido. “Costuma-se dizer que Eisenstein extrai dos movimentos ou das evoluções certos momentos de crise dos quais ele faz o objeto por excelência do cinema.” (DELEUZE, 1983, p. 13). A didática da montagem por oposição seleciona ápices, acontecimentos e gritos, e os faz colidir trazendo a aula ao limite. “A montagem, enquanto instância articulatória de significantes, antecede o próprio cinema, advém de outros universos como a literatura, a pintura, o teatro e a fotografia.” (AUGUSTO, 2004, p. 53). Neste sentido, ela é processo, e todo o pensamento, na sua origem, é montagem. A operacionalização dessa didática da montagem articulada ao currículo-roteiro se dá na encenação da aula. “‘Cena de docência’ – na sala de aula – na qual o professor dá parâmetros, o procedimento é deslocado para outras ordens, desadequadas.” diz Soares (2012) ao se referir 194 • 195

à oficina 7 minutos, integrante do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida e realizada em 2011. A didática da montagem em sala de aula, como atividade técnica responsável pela capacidade inventiva do professor, produz movimento vibratório dos signos potencializando força poética no ato de educar. Adó e Testa (2012, p. 70) reafirmam, de certo modo, a didática da montagem por cortes no texto Como ‘dar’ uma aula ‘contemporânea’: Opere por cortes. Cortes que recaem, ao mesmo tempo, sobre o fio da duração e o contínuo da extensão. Para operar por cortes, aja de modo intempestivo e interrompa, destaque, separe, na duração, um instante; fracione, recorte, capte, na extensão, uma porção. Neste corte único e singular de espaços-tempos, temos uma aula contemporânea [...] Uma aula contemporânea opera por cortes e por uma compulsão por repetição, arriscando tudo a cada novo corte-jogo-cena-aula.

A montagem, como organização finita e sequencial, é um meio para a construção de cada partícula de fragmento cinematográfico. Nesta justaposição de fragmentos, operam feixes de ideias perturbadoras ou ‘atrações intelectuais’ descontínuas, materializadas pelo princípio de contradição (AUGUSTO, 2004). A noção eisensteiniana de uma montagem, que expõe o raciocínio ou o método de pensar, está relacionada às convicções deste cineasta quanto à montagem, a qual torna-se uma operação do processo do pensamento (XAVIER, 2005). A didática da montagem por oposição parte de uma exposição por oposição, onde da transformação dos opostos deve nascer um conceito – se no cinema nos referimos ao “penso cinematográfico” – em educação esse choque de imagens deve despertar as condições de possibilidade para a gênese do pensamento. “Pensamento sensorial, próximo a uma lógica do pensamento primitivo, guiado por uma série de figuras: metonímias, metáforas, fusões, inversões.” (AUGUSTO, 2004, p. 72). O fenômeno suturador de cortes é a característica particular do processo de montagem, e constitui o principal elemento criador na Didática Cinemática.

Ao se valorizarem as ideias, manifestas pela criação, o caráter seletivo da atividade levaria a determinadas escolhas que possibilitariam o momento no qual a montagem procede às suturas necessárias para que possam emergir associações novas e originais. (LEONE, 2005, p. 24).

Na montagem há criação através de cortes e junções, assim, ela age como transformadora de materialidades. A possibilidade de unir planos para compor uma cena de aula e unir as cenas de aula para compor um todo maior, instaura uma modalidade artística didática. Este processo de montagem deve ser percebido como parte da construção dramática, e a partir deste fazer artístico espera-se proporcionar uma experiência de produção na aprendizagem significativa para o educando, personagem da cena. Trazendo o “Método de Dramatização” deleuziano (DELEUZE, 2006) para essa encenação cinemática da aula almeja-se: [...] produzir um movimento de pensar, capaz de colocar o espírito fora de toda representação; fazer desse movimento uma obra, sem interposição; substituir os signos diretos pelas representações mediadas; inventar vibrações, rotações, gravitações, que atinjam diretamente o espírito [...] é isso o que significa drama: performar as Ideias, quase encobertas pela ação. O método visa pôr em destaque o caráter dramático de todo acontecimento. (CORAZZA, 2013, p. 173).

A montagem transforma, dramaticamente, os planos evidenciando espaço/tempo/movimento, fazendo de cada transição entre planos, drama. É através do corte que a narrativa adquire força e avança o drama proposto (LEONE, 2005). “A extração do pensar do domínio do senso comum e da generalização pelo conceito é o que a dramatização objetiva.” (CORAZZA, 2013, p. 175). Através da montagem transdisciplinar em sala de aula, o professorcineasta apresenta uma visão pessoal de mundo, que exige participação ativa do aluno, exige que o aluno se insira no processo de criação. O princípio da montagem, ao contrário do princípio da representação, obriga o “espectador a criar e é graças a essa criação que se atinge no espectador essa força de 196 • 197

emoção criativa interior que distingue a obra patética do simples enunciado lógico dos acontecimentos” (MARTIN, 2005, p. 203).

Professor-Cineasta e o Currículo-Roteiro O professor-cineasta transforma matéria, transmuta o papel, conteúdo ou currículo-roteiro em imagem, cria blocos de movimento e duração (DELEUZE, 2003). “[...] realizar um filme é verdadeiramente um trabalho de alquimia, de transmutar papel em filme. Transmutação. Transformar a própria matéria.” (CARRIÈRE, 1995, p. 146). O conceito de professor-cineasta das cenas de aula é da ordem do “docente artistador” (CORAZZA, 2006), dirige alunos e cenários. O professor-cineasta é exigente na composição de sua arte, mas cria com os alunos também artistas, personagens do real, “artistas porque, definindose como sensíveis, fazem a mesma coisa que a Arte” (CORAZZA, 2013, p. 21). Docência que, ao modo de seu artífice, poderia ser chamada “artística”. Que, ao se exercer, cria e inventa. Docência que “artista”. Que, ao educar, reescreve os roteiros rotineiros de outras épocas. Desenvolve a “artistagem” de práticas pedagógicas ainda inimagináveis e, talvez, nem mesmo possíveis de serem ditas. Práticas que desfazem a compreensão, a fala, a visão e a escuta das mesmas coisas, dos mesmos sujeitos, dos mesmos conhecimentos. (CORAZZA, 2001).

O docente-artistador que movimenta-se a partir de uma didática cinemática, uma didática que opera montagem, construindo drama em aula, o faz através da tradução. O professor é por excelência um tradutor e ao encenar suas traduções opera ora como diretor de cinema, montador na mesa de edição, ou teatrólogo; sempre adaptando um texto escrito à cena. Este transporte do texto dramático à cena de aula é tradução, o professor-cineasta deve dramatizar o currículo, conteúdo específico ou texto. “A tradução de um conjunto de palavras dispostas num espaço, que antes era o do papel, com vistas a uma concretização audiovisual, requer uma nova espécie de signo.” (GUINSBURG, 2009, p. 121). As construções entre texto escrito e encenado, embora tragam o mesmo conteúdo, estabelecem

uma outra constelação de signos concretamente materializados. “Daí a exigência de uma tradução, que é criação, na medida em que o texto sempre propõe possibilidades interpretativas.” (GUINSBURG, 2009, p. 121). O currículo, traduzido por uma didática do cinema, é um currículoroteiro, definido pelo que pensou o roteirista Jean-Claude Carrière (1995) quando se referiu ao roteiro como objeto estranho, escrito e, muitas vezes, “fadado a desaparecer, que uma metamorfose indispensável o espera” (CARRIÈRE, 1995, p. 147). O currículo-roteiro é onde o autor-curriculista trabalha sobre algo destinado a mudar de forma, quando executado em cena. No entanto, a escrita deste permite a reestruturação mental das ações dramáticas e construções das aulas, da atuação do professor, dos personagens, e do tempo e espaço, que dão corpo à cena, fazendo com que as traduções imagéticas se manifestem previamente. A potencialidade de tradução estética do currículo-roteiro é definida na medida em que ele é levado a outros aportes, poéticos e cinemáticos. Na roteirização de um currículo, são pensadas formas de as palavras se expressarem como imagens em movimento, isto é, uma forma de currículo a ser cinematizado. [...] a elaboração se liga ao roteirista e ao diretor: o primeiro cria e organiza a estrutura do roteiro, possibilitando pela palavra as diversas formas de tradução imagética; o segundo realiza, por meio da construção do olhar, a escritura fílmica. (CUNHA, 2007, p. 29).

A natureza discursiva do currículo-roteiro é ficcional, sua ficção elabora um modo de formular e interpretar o mundo e atribuir-lhe sentidos (CORAZZA, 2001). Seu campo discursivo é constituído por um “ato poético, enquanto criação de um domínio específico de objetivação” (CORAZZA, 2001, p. 15). O professor-cineasta cria cenas de aula em imagens, o que se torna: um exercício, cada vez mais consciente, de formas possíveis de modificar a mesmice da formação e da ação docentes, diante da repetição quase secular da prática pedagógica; transformando-se em trampolim para um outro nível de educação; e colocando em funcionamento uma outra máquina de

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pensar e criar, de estudar e escrever, de ensinar e aprender, de ser professor e professora. (CORAZZA, 2013, p. 97).

A arte da encenação e aprendizagem em aula é potencializada na “cultura dramática” referida por Corazza (2013). E se a autora demonstra que há drama no currículo, a didática que lida com conceitos do cinema e da composição de imagens, propõe um currículo-roteiro a ser encenado, dramatizado em sala de aula, e constituindo drama na aula. Os dramas “colocam em cena forças e potências que agem nos acontecimentos, em detrimento daquilo que aparece na superfície do pensar.” (CORAZZA, 2013, p. 175). O drama é a performance das ideias, que a ação pode encobrir. Há sempre “um ‘drama’ sob todo logos.” (DELEUZE, 2006, p. 139). A Didática Cinemática converge para o que definiu Deleuze (2006a) em sua conferência O Método de Dramatização, apresentada em 1967 diante dos membros da Sociedade Francesa de Filosofia. Os conceitos devêm da dramatização e são eles dramatizados. “Os conceitos são diferençados graças a procedimentos que não são exatamente conceituais, que remetem, sobretudo, a Ideias.” (DELEUZ, 2006a, p. 142). A dramatização, constituída na montagem, “são dinamismos, determinações espaço-temporais dinâmicas [...] que têm por ‘função’ atualizar Ideias...” (DELEUZ, 2006a, p. 145). A aula cinemática dramatiza informação, dramatiza conceitos. O drama se constitui na montagem, conforme o “efeito Kuleshov” (AUMONT; MARIE, 2003), ou seja, como o aluno assimila o jogo de ação e reação entre imagens distintas. O cineasta russo e teórico do cinema Lev Kuleshov mostrou que o “significado de uma sequência de planos pode depender apenas da relação subjetiva” (AFONSO, 2010) que cada um estabelece entre as imagens que vieram antes ou virão depois, isoladamente, essas imagens não possuem qualquer significação. Conteúdos isolados de aula, que não se relacionam com algo maior, nem anterior ou posterior, não podem ser inseridos na cena de aula. Pois se referem a imagens isoladas e independentes, que não dizem nada ao educando, desligadas de um todo complexo, não possuem significações para o aluno, o qual não pode assimilar qualquer narração sem relação com a vida, com seu repertório escolar ou de fora dela.

O espaço e tempo serão atualizados em aula através do movimento do professor-cineasta, em seus cortes e junções de material. O tempo será condicionado pela velocidade da percepção e pela duração dos elementos selecionados para apresentação da ação. Ação esta, que ocorre no tempo e espaço vinculados ao processo de montagem, “sob a dramatização, a Ideia encarna-se ou atualiza-se, vem a diferençar-se”. Pela junção dos diferentes conteúdos pré-selecionados pelo professor-cineasta que cria “espaços e tempos particulares” (DELEUZE, 2006, p. 130). As partes do conteúdo são projetadas pelo professor-cineasta em uma ordem que forme ações com sentidos que vão se tornando conceitos.

Referências ADÓ, Máximo Daniel Lamela & TESTA, Letícia. Para “Dar” uma Aula “Contemporânea”. In: CORAZZA, Sandra Mara. Caderno de Notas 3: Didaticário de Criação – Aula Cheia. Porto Alegre: Supernova Editora, 2012. (Coleção Escrileituras) AFONSO, Victor. O “Efeito Kuleshov”. Disponível em: . Acesso em: 03 abr. 2014. AUGUSTO, Maria de Fátima. A Montagem Cinematográfica e a Lógica das Imagens. São Paulo: Annablume, 2004. AUMONT, Jacques; Michel, MARIE. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. (Tradução Eloisa Araújo Ribeiro). Campinas: Papirus, 2003. CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio: Lições Americanas. (Tradução Ivo Barroso). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. CAMPOS, Haroldo de. Da transcriação - poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011. CARRIÈRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. (Tradução Fernando Albagli e Benjamin Albagli). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. _____. Caderno de Notas 3: Didaticário de Criação – Aula Cheia. Porto Alegre: Supernova Editora, 2012. (Coleção Escrileituras) _____.  Didática da Tradução, Transcriação do Currículo – Uma Escrileitura da Diferença. In: Pro-Posições. Campinas. Vol.26 no.1  Jan./Apr. 2015. _____. O que quer um currículo? – Pesquisas Pós-Críticas em Educação. Petrópolis: Vozes, 2001

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CORAZZA, Sandra Mara. O Que Se Transcria em Educação? Porto Alegre: Supernova Editora, 2013. CUNHA, Renato. Cinematizações: Ideias sobre Literatura e Cinema. Brasília: Círculo de Brasília, 2007. DELEUZE, Gilles.  A ilha deserta: e outros textos. (Organizador Luiz B. L. Orlandi). São Paulo: Iluminuras, 2006. _____. Cinema - A Imagem-Movimento. (Tradução Stella Senra). São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. _____. Cinema II: A Imagem-Tempo. (Tradução Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. DELEUZE, Gilles. Deux Régimes de Fous. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. _____. Diferença e repetição. (Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 2006. GUINSBURG, Jacó. A Cena em Aula: Itinerários de um Professor em Devir. São Paulo: EDUSP, 2009. LEONE, Eduardo. Reflexões sobre a Montagem Cinematográfica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. (Tradução Lauro António e Maria Eduarda Colares). Lisboa: Dinalivro, 2005. PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. SOARES, Olívia de Andrade. Imagem e Movimento do Vazio no Cinema de Ozu: Traduções em Educação. In: IX ANPED SUL, 2012. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2013. XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a Transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

currículo & transcriação

Procedimento erótico, na Formação, Ensino, Currículo Gabriel Sausen Feil Sandra Mara Corazza

Resumo O Procedimento Erótico é aqui apresentado em três possíveis variações. O Procedimento I descreve a crise existencial que leva o Educador, primeiro, à destruição e, em seguida, a um novo nascimento. O Procedimento II coloca como condição do Ensino a possibilidade do ato de ensinar envolver prazer. O Procedimento III mostra que é mais livre aquele que se desvia dos caminhos postos, não importando se os desvios consideram ou não a Moral. Os três Procedimentos são instigados pela seguinte problemática: de que modo fazer, em Educação, outra coisa com as Formas educacionais? Por fim, o Procedimento Erótico resulta em pelo menos quatro projetos: o Libertino (sádico), o da Humilhação Redentora (masoquista), o do Prazer do Ensino e o do personagem Klóvis. Todos, de algum modo, constituem-se em projetos educacionais.

Palavras-chave Erotismo. Libertinagem. Sadismo. Masoquismo. Educação.

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1 Apresentação Por Frei N

1.1 descrição À guisa de apresentação desta Escritura, eu, Frei N, Vos descrevo a minha impressão. A todos que a lerem, eu, mísero servo de Deus, desejo saúde e sobriedade. Vós deparareis com três Procedimentos; entretanto, acredito que, em verdade, trata-se de apenas um, o Procedimento Erótico, em três possíveis variações. O Procedimento I, denominado Formação, entende que a destruição é pressuposto dos processos formativos: “A destruição é uma das primeiras leis da natureza, e deve, por isso, ser considerada não como um crime, mas como uma necessidade natural”, diz o personagem Educador. Aliás, esse primeiro Procedimento é o procedimento desse personagem; digo, supostamente, criado por ele. O Educador não poupa nada; descreve a crise existencial que lhe leva, primeiro, à destruição e, em seguida, a um novo nascimento. Sobre o Procedimento II, denominado Ensino: entendo que um educador, aquele que se incumbe do ofício de tornar bons os outros, deve, primeiramente, ser ele mesmo bom, deve ele mesmo ter a bondade como hábito. Distante desse princípio está Aquela-que-aceitou-ensinar (personagem protagonista desse segundo Procedimento): ela coloca como condição do seu ensinar o fato de sentir prazer com o Ensino. Ora, respondei: como alguém poderia ensinar a virtude tendo o vício como hábito? E mesmo que o prazer seja tomado como um modo para se alcançar a Divindade, ainda assim ele é um vício, pois, egoísta. Aliás, parece-me que o Erotismo desses Procedimentos (não apenas desse segundo) almeja a Divindade, porém, uma divindade completamente desvirtuada. A respeito disso, eu poderia organizar o Procedimento Erótico a partir dessa dissimulação da Divindade – devo essa organização a William Blake (2011): Os homens ordinários têm cometido os seguintes erros: 1) Que o homem possui um Corpo e uma Alma.

2) Que os sopros, considerados como sendo o Mal, provêm unicamente do Corpo. E a razão, denominada Bem, deriva tão somente da Alma. 3) Que Deus atormentará o homem pela eternidade por dar chance aos sopros. O Procedimento Erótico, por outro lado, afirma que: 1) O homem não tem uma Alma distinta do Corpo, pois aquilo que denominamos Alma não passa de sopros apreendidos. 2) Os sopros são a única força vital e emanam do Corpo. A razão é apenas a codificação deles. 3) Os sopros nos movem. Quando o homem é capaz de exceder a Alma, alcança a ordem divina, que lhe concede uma soberania. É preciso considerar que somente há soberania onde há independência em relação aos sentimentos pessoais, pois embora ela esteja em toda parte, é preciso exceder as pessoalidades para que seja tocada de verdade. 1) É exatamente quando deixamos de ser, quando o Eu sai de cena, mesmo que somente por um breve instante, que as relações eróticas aparecem. É quando as Formas são desintegradas, quando as luzes são apagadas, quando o álcool faz efeito, quando o Demônio toma conta, quando o surto acontece. 2) Se a Moral é o que possibilita o Eu, o Erotismo é o que possibilita a sua reinvenção, que é sempre divina, sagrada, justamente porque acontece numa ordem superior. 3) Tornar-se soberano, divino, sagrado, porém, não é adquirir o controle da situação, pelo contrário, ilusão de controle é o que temos na ordem das Formas; tornar-se soberano é precisamente livrar-se do peso dessas Formas. É nesse sentido que a redenção do Procedimento Erótico é uma mostra de soberania. Aliás, é isto que os personagens desses Procedimentos querem: tornarem-se soberanos, divinos. É verdade que o Procedimento III, denominado Currículo, não fala em Liberdade, mas, se bem o entendi, diz que é mais livre aquele que, mais e melhor, desvia-se dos caminhos postos, criando os seus próprios, não importando se esses desvios consideram ou não a Moral. Parece-me que há, nesse Procedimento, ênfase demasiada no aspecto trágico, e tal ênfase acaba por suprimir o aspecto humano da vida. 206 • 207

Antes de dar por encerrado esta Apresentação, vejo como urgente a necessidade de Vos chamar a atenção, pontualmente, para algumas atrocidades cometidas, em especial, pela Educação Libertina. Frágeis Irmãos, eu espero que não tenhais a ingenuidade de encontrar nesta Escritura um Livro de Educação para Vossos filhos. 1) Trata-se de uma prática de vida que recusa os processos que induzem à obediência cega em relação ao que chega, pela tradição, até nós. (Até aqui nenhum problema, afinal, Vós sabeis que nós, franciscanos, também nos recusamos a obedecer, cegamente, à tradição. Entretanto, o problemático é o que agora se segue...). 2) Essa recusa implica uma clara hierarquia entre aqueles que mandam e aqueles que obedecem. 3) O principal, que é a Libertinagem em si, funciona somente para aqueles que mandam, que ordenam, que criam os seus próprios procedimentos, ou seja, funciona somente para os professores libertinos. 4) Em vez de se ocupar com o ensinar a Liberdade, a Educação Libertina se ocupa em dar lições para a Libertinagem. 5) O Povo jamais se torna Libertino: ou se nasce livre de espírito ou se é escravo para sempre. 6) Em vez de se relacionar com os movimentos populares, a Educação Libertina está envolvida, substancialmente, ao estilo de vida dos nobres ligados à Monarquia (acima, inclusive, da Burguesia). 7) É uma organização que se basta por si mesma. 8) Não tem responsabilidades sociais e traça um universo paralelo, onde a realidade ordinária aparece somente como objeto a ser pervertido, ou seja, como matéria de perversão. 9) A Educação Libertina ocupa-se dos pobres apenas para aproveitar-se dos seus espíritos frágeis. Considerai e vede que se aproxima o dia em que o crime poderá ser concebido como virtude e a virtude como tolice. Peço-Vos que leiais esses Procedimentos sem Vos afastardes dos mandamentos do Senhor. Pois se Vós os desconsiderais, sereis amaldiçoado. Quanto mais próximo estivérdes desses Procedimentos e mais afastados estiverdes dos Mandamentos, mais tormentos enfrentareis. Por isso aconselho-Vos, meus Leitores, que deixeis de lado esses Procedimentos caso escolheis o lado do Senhor. Os que levarem consigo essa Escritura saibam que serão abençoados por alguns instantes, porém, sofrerão por toda a Eternidade.

Vós quem? Quem sois Vós? A quem me dirijo? Mesmo que os Procedimentos talvez prefiram os devassos, os sem freios e sem obstáculos, eu escrevo para Vós, os desavisados, os sonhadores, os humanizadores. É Vós que desejo que leiais essa Escritura. Se dei mostras do contrário, fazendo advertências, foi apenas no sentido de instigar-Vos, no sentido de resgatar o que resta de energia vital em Vosso corpo!

1.2 relação com o Projeto Escrileituras, com a linha 09, com o grupo de orientação BOP e com o grupo de pesquisa DIF Por Frei N Conto-Vos sobre esta Escritura apenas porque tal proximidade minha com uma das cenas narradas mostra o quanto esses Procedimentos estão próximos da humanidade comum. É isto que me preocupa: não se trata de aventuras distantes, mas, ao contrário, de aventuras que invadem o mais banal dia a dia. Aliás, é isto que torna os Procedimentos tão perigosos: eles podem sempre lidar com os mesmos assuntos lidados em outros contextos, eles podem até usar as mesmas palavras, porém, não fazem isso sem se afastar dos sentidos frequentes. É justamente essa peculiaridade que deixa o Educador (personagem do primeiro Procedimento) ainda mais ameaçador, pois sinaliza que ele tem acesso às coisas do Povo. Quando eu pensava na existência de uma sociedade libertina e secreta, sempre imaginava que quem as compunha eram pessoas monstruosas, demoníacas, facilmente identificáveis em meio à multidão, e não homens que pudessem circular normalmente pelos eventos sociais. Eis que me deparo com um homem (ainda que não religioso e nem pai de família) que sempre perambulaou pela nossa sociedade, servindo-se dela normalmente. Sem dúvida, melhor seria se os Procedimentos estivessem limitados às obscenidades, pois assim qualquer um poderia, facilmente, distingui-los dos livros bem intencionados.

2 Problemática Por Aquela-que-aceitou-ensinar Ainda que não de maneira formal e ainda que não sem experimentar inflexões, os três Procedimentos são instigados pela seguinte problemática: 208 • 209

de que modo fazer, em Educação, outra coisa com as Formas educacionais? Não se trata, portanto, de, simplesmente, fazer uma Educação diferente, mas de fazer com que a própria Forma Educação entre em colapso em seu próprio território.

3 Teorização Por Educador A fim de elucidar o Procedimento Erótico, eu, Educador, apresento alguns elementos constitutivos da consistência teórica envolvida. O plano como condição: é curioso como se repete entre os eróticos o fato de todos traçarem um plano: seja via contrato, via projeto ou via pacto. Não se trata de uma mera coincidência, o plano é a condição para que o erotismo de que tratamos se realize. O objetivo último desse erotismo jamais se encontra na obscenidade, mas sempre no diluir os papéis prontos. O conteúdo erótico não funciona como um fim, mas como a consistência de uma estratégia que visa outra coisa. Se o erotismo fosse um fim, não seria necessário um plano, bastaria uma linguagem obscena por si só. É precisamente aí que os pornólogos se distinguem dos pornográficos (DELEUZE, 1983). Estes têm o erotismo como fim; aqueles não visam o erotismo, visam outra coisa. A estrutura seria esta: 1) O conteúdo erótico funciona chamando a atenção e preparando os corações. 2) O enredo, às vezes sendo uma narrativa, funciona como uma estratégia, uma engenhoca. 3) O novo (o novo nascimento) é o fim, é o visado. 4) O erotismo, propriamente dito, é o procedimento, que envolve os três elementos anteriores. Os planos eróticos, portanto, não formam um gênero, o gênero erótico, pois o erotismo não funciona, ao menos para os pornólogos, como um gênero, mas como um modo de proceder. O erotismo é um procedimento, que dilui as Formas em função de uma suspensão. Em A arte da palmada (ENARD; MANARA, 1991), por exemplo, o erotismo não se encontra na narrativa, por mais obscena e provocadora que possa mostrar-se, mas se encontra na estratégia usada pelo conquistador para forçar a personagem a agir de outra maneira, que não a sua ordinária. A narrativa funciona fisgando a personagem (e o leitor também), a tal ponto que esta passa a se interessar pela arte da palmada, transformando-se na responsável pela tarefa

de multiplicar essa estranha atividade, no sentido de divulgá-la às pessoas. O erotismo dessa obra não se constitui num fim; seria isto se o erotismo se restringisse à narrativa. Tese do imediatamente nu: o erotismo como procedimento (um procedimento não sobre o erotismo, mas o próprio erotismo se constituindo num procedimento) não funciona como o erotismo ordinário. A função da roupa nos romances e nos contos de Sade, em que os libertinos se encontram imediatamente nus, já é um elemento suficiente para distinguir o erotismo de função superior do erotismo comum, no qual a grande graça se encontra no jogo de esconder e descobrir as partes interessantes, reduzindo o erotismo ou ao conteúdo obsceno ou à narrativa. O obsceno, quando sozinho, não passa de um conteúdo grosseiro, que quer se impor independentemente de uma expressão. Sobre o erotismo não se confundir com a obscenidade: a fim de mostrar a diferença entre o erótico e o obsceno, faço um paralelo entre o erotismoobscenidade e o barroco-caricatura. Diz Borges (1989, p. XXIII): “o barroco é aquele que deliberadamente esgota (ou pretende esgotar) suas possibilidades e faz limite com a própria caricatura”. Diria eu que sim, o barroco é aquele que esgota, mas, acrescentaria, é também aquele que esconde. Esgota não porque mostra, mas porque, com o exagero da caricatura, esconde o que somente deve aparecer no momento certo, e somente para os videntes certos. É como um projeto, o qual faz do exagero a sua estratégia. Ainda que o erotismo não funcione como o barroco, o seu procedimento aproxima-se do procedimento barroco quando o que está em questão é a existência de uma estratégia. Quero dizer que o erotismo usa a obscenidade (ou qualquer assunto vinculado ao sexo e à sexualidade), no papel que, no barroco, é o da caricatura. A obscenidade, no erotismo, serve somente para ludibriar, enganar, retardar; o importante vem, sempre, depois. A obscenidade é somente um passo dentro de um procedimento muito mais sofisticado. A obscenidade não esgota, não pode esgotar o erotismo, assim como o exagero não resume o barroco. No mesmo parágrafo, Borges complementa: “eu diria que é barroco a fase final de toda arte, quando ela exibe e exaure os seus recursos”. Digo que é erótica a fase final de todo processo, quando este atinge um ponto de ebulição, exibindo os seus efeitos e os seus recursos. 210 • 211

Um, dentre os recursos usados pelos escritores da Literatura Erótica, tem sido a obscenidade. “Quando a obscenidade se revela na arte, e mais particularmente na literatura, manifesta-se, sempre ou quase, como um dispositivo técnico” (MILLER, 1991, p. 49). Impulso e instituição: o Procedimento Erótico não quer, simplesmente, desorganizar tudo, pelo contrário, quer instituir uma ordem. O procedimento é uma instituição, no sentido de colocar ordem nos impulsos. “Certas coisas”, já disseram, “devem estar em seus lugares, é preciso ter o plano organizado para que ele escape” (COSTA, 2007, p. 126). A questão, a grande questão, é criar uma ordem aos impulsos de tal maneira que estes não sejam negados, mas afirmados.

4 Metodologia Por Educador O próprio Procedimento Erótico é uma metodologia, contando, inclusive, com um manual: A noção de procedimento aqui em questão não funciona como um mero protocolo, mas como um empreendimento de desmontagem, que visa uma variação. “O procedimento é o próprio processo da psicose” (DELEUZE, 1997, p. 19), o que quer dizer: uma invenção descompromissada com as intenções e com as regras ditas normais. Ele é, nesse sentido, a via alternativa em relação ao manual de conduta ou ao manual de comportamento. O procedimento é aqui usado como um modo de extrair das Formas algo de estrangeiro, sob a condição de não negar as Formas anteriores. 1) Se capazes, inventemos os nossos próprios procedimentos, ou seja, nossas próprias maneiras de deixar de ser o que somos. 2) O procedimento é um interrogatório que parte do vazio, fantasiado de lista universal de respostas. Deve, portanto, ser usado observando a sua verdadeira face. 3) Se, em algum momento, o procedimento parecer ser contrário à religião, rever os teus conceitos: saiba que não tem nada contra ela, apenas teima com a sua obsessão em querer que sejamos sempre os mesmos, com a sua soberba em nos penalizar se acaso desejarmos não permanecer os mesmos.

4) O procedimento gosta de ser vazio em matéria de conteúdo. Cabe a cada um, que dele se apropriar, envolver aquele conteúdo que achar mais interessante. 5) O procedimento é uma invenção, mas uma invenção que deve ser praticada efetivamente na vida. 6) Não interessa qual é o ponto de partida: pode ser o Eu, a Formação educacional, o Ensino, o Currículo, uma fotografia, um livro, uma instituição, a linguagem, a escrita etc. O que importa é a invenção de procedimentos que extraem, das Formas, linhas sem Formas. 7) O procedimento é, primeiramente, uma maneira de ocupar o vazio provocado pelas Formas doentes. Depois, é uma maneira de recuperar o vazio. Em suma, o procedimento é uma maneira de preencher o vazio sem se desfazer dele. 8) A tarefa de inventar procedimentos pode não interessar à maioria, pois a ela interessa somente a pequena fatia do mundo que lhes é apresentada. O procedimento importa somente àqueles que querem ver mais, embora no clímax não haja mais nada para se enxergar. 9) O procedimento não deve ser usado para fugir da realidade, pelo contrário, deve ser usado para alargar a realidade. 10) A linha do procedimento, por excelência, não é a de fuga e muito menos a molar, mas é a molecular, aquela que nos disponibiliza algum tipo de controle sobre ela, a partir da sua flexibilidade. A linha de fuga é a meta do procedimento, aquela que somente dá o ar de sua graça em caso de êxito.

5 Resultados/efeitos Por Frei N Todos os sopros aqui se misturam, de tal modo que fica difícil identificar qual é o resultado do Procedimento Erótico. Pelo o que pude entender, há, como efeito, ao menos quatro projetos eróticos: o Libertino (sádico), o da Humilhação Redentora (masoquista), o do Prazer do Ensino e o do personagem Klóvis. Por outro lado, também posso dizer que esses quatro projetos são, além de efeitos, elementos constitutivos do Livro.

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São efeitos na medida em que são apresentados pelos três Procedimentos; mas também são elementos constitutivos porque dão os passos que acabam por compor os mesmos três Procedimentos. Mas o que realmente choca é que todos eles são – de alguma maneira – projetos educacionais. Do Projeto Libertino (sádico), posso fazer as seguintes afirmações: 1) Quem experimenta o novo não é o inventor, mas é o envolvido no projeto. Ou seja, não é o professor libertino, mas o aluno. 2) O inventor do projeto (sempre um libertino) é um decorador, um diretor de teatro. A sua utopia não está tanto no que ele diz (seja na aula ou fora dela), mas no modo em que dirige a sua vida cotidiana e a dos demais envolvidos. Portanto, para identificar um libertino, basta identificar quem é que detém a direção da cena. 3) Um libertino é valorizado por sua engenhosidade e intelectualidade, e não por deixar tudo acontecer. O libertino recebe esse nome por ser adepto não da liberdade/bagunça, mas da liberdade de criar novos modos de ordenações. 4) Esse projeto não se coloca contra códigos/regras; coloca-se contra estes somente quando se referenciam em classes morais. Ou seja, nenhum problema quando códigos são definidos no interior da Sociedade Libertina. A lei, nesse sentido, somente é repudiada quando substitui a arte de julgar, quando ela mesma julga pelo homem. 5) Os valores morais são entendidos como pertencentes a uma segunda natureza, que deve ser ultrapassada para que se retorne à primeira. Toda lei humana contraria a natureza primeira, merecendo, por isso, o desprezo. 6) Um professor deve debochar da natureza humana; mostrar ao aluno o quão ridículos são os seus preconceitos; chocar o aluno, violentálo; mostrar que há somente uma maneira de a Educação se mostrar vantajosa: se ela for suficientemente perversa. 7) A ultrapassagem da natureza inferior à natureza superior implica no esforço em fazer instituir, sobretudo, uma Sociedade Libertina, que faz

degenerar as leis, os costumes, os valores, colocando-se acima disso tudo. 8) Para o Projeto Libertino, o bom aluno é aquele que sabe seguir o mestre, e o bom mestre é aquele que se delicia com a ingenuidade de seu aluno. É que o prazer libertino se encontra na destruição daquilo que quer parecer tão puro. 9) O aluno perfeito é aquele que se excita com as perversões do mestre, após ter os seus valores terrivelmente destruídos. 10) Esse projeto implica um professor que ensina, mas que não forma. Ou seja, o inventor/professor/libertino vive sempre da mesma maneira, dedicando-se somente a transformar a vida dos alunos, mas jamais a dele mesmo. Do Projeto da Humilhação Redentora (masoquista), posso fazer as seguintes afirmações: 1) O inventor do projeto experimenta a sensação de sofrer golpes em vez de golpear. E faz isso sozinho, não no interior de uma sociedade. 2) O inventor (com doses masoquistas) deve ser humilhado pela última pessoa que gostaria que lhe visse humilhado. Mas como fazer com que tal pessoa aceite essa estranha missão? Este é o desafio educacional da vez: formar a própria carrasca. 3) Implica a convicção de que somente aquele que cria o projeto tem, efetivamente, o prazer de um segundo nascimento. Quem renasce é o próprio inventor. 4) O sofrimento pode ser considerado um pressuposto da tarefa; ele é positivado. Somente se torna num mau problema, quando o doente não sabe lidar com o seu sofrer. O inventor se torna um doutor da sua própria doença, que, neste caso, é o Eu. 5) Em vez do educador (inventor do projeto) se envolver com os alunos se postando como um exemplo a ser seguido, posta-se como um exemplo a ser traído: o aluno é persuadido a agir não como já age e muito menos como o seu educador, mas de um outro jeito, de um terceiro jeito. 214 • 215

6) O projeto não se preocupa com a seguinte questão: quem está no poder, a mulher ou o homem? A sua verdadeira questão é esta: o projeto em função da suspensão da ordem estabelecida, do já formado. O interesse está na hesitação e nos dilemas. 7) O inventor/educador/masoquista destrói a si mesmo, e essa é a grande pornografia. O prazer está em fazer a si mesmo agonizar: apanha-se para redistribuir-se. 8) O contrato envolvido ao projeto não é neurótico, é esquizo: inventa uma nova realidade que se sustenta em pé sozinha. 9) As Formas são as inimigas, porém, em vez do projeto se inclinar sobre elas de modo destruidor, inclina-se ao modo de Kafka: sofrendo com elas e mesmo amando-as (BATAILLE, 1989, p. 147). Do Projeto do Prazer do Ensino, seleciono as seguintes máximas: 1) É possível ensinar o que não se sabe. 2) O ensino implica a invenção de uma fantasia. 3) A graça da sala de aula está nas crises. 4) Uma aula não é nem um espetáculo, nem uma convenção e nem uma luta. 5) A preferência é pela aula magistral. 6) A aula envolve um contrato e distribuição de funções. 7) A aula é movida pela sedução e pelo envolvimento. 8) A aula vale mais pela sua preparação do que pela sua realização. Do Projeto de Klóvis, seleciono as seguintes máximas: 1) As Formas flutuam sempre, mas tal flutuação pode ser intensificada ou não. 2) Aquele que evita os costumes a todo custo não está tão distante daquele outro que neles se agarra até a morte. 3) A agonia é positiva, mas desde que não se perpetue.

4) A obsessão pode ser sinal de seriedade, controle e sobriedade; mas também pode ser sinal de insegurança. 5) Há uma impossibilidade de permanecer indiferente diante da ação erótica. 6) O homem superior é, simplesmente, aquele dos atos consistentes. 7) O Erotismo violenta as Formas pretensamente acabadas. É por isso que quem ama o Erotismo deve dizer: “dê-me ao menos UMA Forma”. 8) As Formas acabadas não existem, são ilusórias. 9) A combinação erótica é inusitada. 10) Uma nova presença envolve uma nova fórmula ou até um novo projeto. 11) Na medida em que envelhecemos mais a perversão se faz necessária. 12) A perversidade do Erotismo aparece justamente quando se quer negá-la. 13) Educadores e educandos devem ser extemporâneos. 14) Há uma impossibilidade de o gesto condizer com o que a alma planeja. 15) Tomar decisões com elegância implica não mostrar que está assim procedendo. Saúde, Leitores, para cantar todos os sopros!

Referências BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. (Tradução Suely Bastos). Porto Alegre: L&PM, 1989. BLAKE, William. O casamento do céu e do inferno. In: _____. O casamento do céu e do inferno e outros escritos. (Tradução Alberto Marsicano). Porto Alegre: L&PM, 2011. BORGES, Jorge Luis. História universal da infâmia. (Tradução Flávio José Cardozo). São Paulo: Globo, 1989. COSTA, Cristiano Bedin da. Matérias de escrita. 2007. Porto Alegre: UFRGS, 2007. 1 volume. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2007. DELEUZE, Gilles. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. (Tradução Jorge Bastos). Rio de Janeiro: Taurus, 1983.

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DELEUZE, Gilles.. Louis Wolfson ou o Procedimento. ______. Crítica e Clínica. (Tradução Peter Pál Pelbart). São Paulo: Ed. 34, p. 1997. ENARD, Jean Pierre; MANARA, Milo. A arte da palmada. São Paulo: Martins Fontes, 1991. MILLER, Henry. Obscenidade e reflexão. (Tradução Pedro Alvim). [S.l.]: Vega; Passagens, 1991.

Conexões heterogêneas: uma Educação Potencial Máximo Daniel Lamela Adó Sandra Mara Corazza

Resumo Trata-se de um resumo de Tese defendida no PPGEDU da UFRGS em janeiro de 2013. A mesma tem como enfoque o dimensionamento de um meio prático e relativamente autônomo para um fazer na Educação. Tal fazer é nomeado na Tese como: Educação Potencial. A concepção de autonomia, assim como a de potência não estão relacionadas a uma essência, mas à intensidade imanente e material de sua prática que, por sua vez, inclui-se a uma composição de síntese relacional com a divergência. Envereda pelo gosto de fomentar relações que escolham antes o diferencial do que o referencial. Preocupa-se com a noção de que deve agir de modo a desestimular modelos e estimular a proliferação daquilo que ainda não se sabe. Desta maneira a própria escrita da Tese atua performativamente por uma composição fragmentária e digressiva. Escolhe a selfvariance valéryana e a literatura borgeana e oulipiana como modos de proceder com a palavra escrita e, a sua vez, incorpora esse processo na Educação.

Palavras-chave Autocomédia. Intelecto. Literatura. Filosofia. Valéry.

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A Tese assumiu, desde o resumo, que o conjunto toma a forma de um textotese; palavra composta que visa explicitar que a Tese antes, durante e depois de ser Tese é texto. Essa fórmula varia podendo assumir a composição contrária, ou seja, de tesetexto. Isso ocorre, pois ao considerar que a Tese antes, durante e depois de ser Tese é texto se considera, também, que este se torna Tese e se retroalimenta por aquilo que ele mesmo é, tese e texto. O que faz com que se afirme, em explicitação epigráfica, que o textotese é composto mediante restrita, estrita e estreita relação com a realidade. Tratase, evidentemente, da realidade textual; de uma vivência pela palavra. De palavra vivente. Na abertura de seu conjunto há um aviso: Este textotese pressupõe leitura acelerada. A rapidez do leitor ou a velocidade da leitura importa como um modo de impor ao conteúdo, mais que um valor de sentido, um efeito de presente. Um convite a uma leitura errada, por errática e, por isso mesmo, implicar o leitor como escritor. No entanto, um escritor que toma a palavra em sua superfície e não faz dela a efígie de uma identidade.

1. Perigrafia Não se pode ter certeza de quantas são as entradas. Não há entradas. A coesão ou unidade se faz dispersa. As fronteiras não estão fortificadas. Os subúrbios, arrabaldes ou periferias são permanentemente retrojetados e permanecem em discórdia com relação às suas identidades ou posições marginais.

2. Anúncio A criação é vista como um ato de composição. Um artifício da forma. O textotese atenta para processos, leis, regras, restrições; autoimplica-se na produção de imagens sem semelhanças. Tudo isso na espreita de exercícios que se entreveem em uma escritura como potência de ação alegre, ou seja, de um aumento do grau de potência em educação. Trata-se de uma autofabricação que procura agir como um dínamo para compor relações combináveis, composições de corpo-corpus; um catálogo compositivo que mistura elementos ditos da realidade e da ficção. Assume fazer coisas com as palavras.

3. Advertência O textotese possui valor transitório e considera, também, desnecessário afirmar seu valor de transitoriedade. Qualquer texto que se apresente como um sistema estanque carrega na sua clausura de suposta estabilidade a responsabilidade de uma promessa. Estamos cercados de textos promessas.

4. Preâmbulo A tarefa é infindável. Tanto é assim que não coube iniciá-la no textotese, pois, se é infindável assim o é por não ter fim nem começo. Não traçamos linhas de um ponto a outro por existir, naquilo que compõe a linha, um ponto inicial e um final pelos quais possamos figurar o mundo por essa redução inteligível. Traçamos linhas para visualizar nessa especulação a metáfora de uma extensão de continuidade. A linha – explicação figurada – traduz-se como valores contínuos e está para conceber uma ordem no caos; conceber um fimcomeçoemordem.

5. Prolegômeno Devo considerar, de chofre, que o que se deseja desenvolver aqui, é uma ação voluntária tendo uma ação exterior como fim. Essa ação voluntária é o movimento da escritura. E tal movimento tem como objetivo uma ação exterior que age como uma oscilação que coloca em jogo a ideia de que a pobreza da linguagem deve tornar-se a sua própria riqueza (DELEUZE, 2006, p. 100).

6. Prelúdio A autocomédia do intelecto não se interessa por uma história da verdade; mas por uma narrativa de sua própria potência como contingência de composição. Um escrever que funcione, apenas, como experimento do trabalho de alguém que escreve. A autocomédia do intelecto aposta na literatura como um meio da Educação Potencial; atividade libertária, nietzschiana, de começar a partir de si mesmo, pelo esquecimento, pelo jogo da roda que gira sobre si, na

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afirmação, na superfície, na afecção alegre e no riso. Não o riso triste que pode surgir pelo ódio e desprezo, lamento das ações humanas, que é também um riso de escárnio, sátira e depreciação, mas o riso que questiona a morte e as regras do bem e do mal por se expor como potência de vida. A vida como um modo eterno de ser, em todos os seus atributos, e o riso como um desses atributos.

7. Prólogo Talvez como a exemplo de um escritor como Xavier de Maistre (1998) – ao dizer-nos que os inconvenientes da vida social e da solidão destroem-se mutuamente e assim esses dois modos de existência se embelezam um pelo outro – o Educador, um Educador, encontre na espontaneidade de sua própria determinação a de um Outro que o afeta como num paradoxo do sentido íntimo ao dizer: eu sou um outro. Representando para si a atividade do próprio pensamento. Ele faz assim, uma reflexão representacional antes e ao mesmo tempo de colocar o próprio pensamento na ação como pensamento. No entanto, paciente leitor, pressupomos, ao escrever este texto, que o pensamento não se elabora quando não passa de uma violência do tipo interrogatório. Uma violência que introduz previamente o que pretende encontrar, pois isso constrange a própria fisiologia de um pensamento.

8. Prefácio Este prefácio é míope, sua disfunção obriga que enxergue, sem distorções, apenas aquilo que está muito próximo; este prefácio obriga-se a não usar subterfúgios ao reescrever uma frase falseada de Robbe-Grillet (1998, p. 139): Este texto não é nem significado, nem absurdo, nem pródigo, nem exemplar, nem frouxo ou celibatário, nem potente ou risível, nem enfadonho, nem delirante, nem é; ele se escreve somente.

9. Precondição Escrever como uma máquina de agenciamentos que funciona como literária e em conexão a uma multiplicidade que chamo Educação. Escrever atento às próprias regras de escritura. Escrever, pois, é disso que

se trata, experimentar a Educação como superfície de inscrição autovariante.

10. Exodiário No teatro romano (antigo), um exodiário é o ator do êxodo, sendo o êxodo ou exodus a parte final de uma comédia ou, ainda (quando se trata de uma peça trágica), uma passagem do trágico para o cômico. Eis que este textotese se veste de exodiário. Busca trazer à cena uma aversão resistente às forças explosivas do trágico. Agir como potência de liberação por meio de afecções alegres. Fugir, ao modo nietzschiano, de estados de tristezas, opressões, depressões, ressentimentos venenosos que nos envergonham da menor felicidade. Não ser arrestado pelas forças trágicas, mas tomá-las como matérias para preencher potências de liberação, como na malignidade spinoziana (DELEUZE, 2005, p. 291), que opera em função da valoração de forças, agindo com aversão à resistência anunciada por um pensamento da negação e da contradição.

11. Prestatário O empréstimo é constante. Procedimento econômico. Um dispêndio de palavras e coisas. Muitas. Ocorre como um duplo movimento de fabricação ao modo de um golpe, uma pancada quiasmática escrileitora. Emprestar da escritura uma instrumentalidade de retroalimentação, fazer da mesma uma autocomédia intelectual que, a sua vez, empresta a uma Educação Potencial um modo de induzir ambiguidades. Modo intransitivo que procura não dar atenção a um significado, mas à produção. São os empréstimos em processo de retroalimentação constante. Não há nada além de empréstimos, empréstimos de empréstimos, empréstimos de empréstimos de empréstimos. Escrileitura.

12. Prolepse O privilégio é o do paradoxo que refuta por antecipação qualquer objeção, pois todas as objeções serão aceitas e retrojetadas ao jogo. Um jogo que convida a atuar como Laurence Sterne em seu Tristam Shandy (CALVINO, 2000); ter como procedimento de escritura se expor como

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estrutura que desautomatiza o modo de ler; usa a digressão como maneira de protelar qualquer conclusão, pois toda conclusão está associada à morte. E a questão, aqui, é essa: procurar procedimentos que auxiliem a refutar a morte por antecipação. A refutar a conclusão antes que ela nos refute.

13. Restrições Entende-se que uma restrição é uma condição que impõe certos limites e os limites são sempre inventados.

13.1 Educação Potencial Uma Educação para um pensamento do não-específico, do genérico, do informe e da infâmia. Uma Educação que afirma as diferenças dos seres, unicamente, pelos seus graus de potência. Uma Educação que procura esquecer as concepções de gêneros e espécies na medida em que se ocupa em operar com uma concepção a respeito dos agenciamentos dos quais cada ser é capaz de entrar. Uma Educação Potencial funciona como uma Educação sem mediação e sem finalidades; é ela mesma o seu propósito na medida em que atua como um agente de composições heterogêneas. Se há restrições é nelas que temos de observar certa liberdade. Escandir as imputações dadas pelas restrições e atribuir às mesmas um movimento para exercer a potência necessária do intelecto. Via intelecto, direcionamos nossa atenção ao mais potente dos afetos, o conhecimento. A liberdade, aqui, não pode ser associada à vontade ou livre-arbítrio. A liberdade tem um tom spinoziano e nietzschiano. Alcançar liberdade seria um meio de reforçar o presente com certa determinação do porvir. Levar a imaginação a produzir conexões necessárias e que dependem somente de nossa potência e que se apoiam em relações ainda ignoradas por nós (CHAUI, 2009, p. 59-79). Abandonar a ideia de livre-arbítrio é o mesmo que abandonar um modo de vida amedrontada, uma ordem moral do mundo. Mas tal abandono não é facilmente praticado. Percebe-se a ordem moral do mundo com muita dificuldade. A ordem moral do mundo está travestida em nossos hábitos e costumes, hábitos do raciocínio que procuram vestir-se de liberdade.

Na Proposição 48 da Segunda parte de Ética, Spinoza explicita que “não há, na mente, nenhuma vontade absoluta ou livre: a mente é determinada a querer isto ou aquilo por uma causa que é, também ela, determinada por outra, e esta última, por sua vez, por outra, e assim até o infinito” (SPINOZA, 2007, p. 145). Desta proposição ele comenta que a mente é um modo definido e determinado do pensar e, por esta razão, não pode ser causa livre de suas ações. Não possui a faculdade livre de querer ou não. Não havendo na mente uma faculdade absoluta do compreender, desejar ou amar, estas são faculdades fictícias ou entes metafísicos universais que formamos a partir de coisas particulares. Os homens se acham livres, pois pressupõem que todas as coisas naturais agem tal como eles próprios, tal afirmação spinoziana está desenvolvida no Apêndice da Primeira parte de Ética (SPINOZA, 2007, p. 63-75). E é desse tipo de pressuposição humana que surgem definições de uma ordem moral do mundo e se originam “[...] os preconceitos sobre o bem e o mal, o mérito e o pecado, o louvor e a desaprovação, a ordenação e a confusão, a beleza e a feiura, e outros do mesmo gênero” (SPINOZA, 2007, p. 65). Tais preconceitos se tornam superstições que explicam causas de ganhos futuros possíveis. Faz com que um desejo de liberdade se torne servidão à superstição que comanda via um modelo de vida que atua como potência triste. Um modelo que traduziu platonismo em cristianismo e, nesse mesmo processo, alguns aspectos da modernidade filosófica são derivados de uma laicização da moral cristã. Tal laicização ganha voz, via metanarrativas, como Jean-François Lyotard (2011) soube chamar atenção. Uma ordem moral do mundo é inseparável de uma questão de poder (SANTIAGO, 2009, p. 176). A potência que evocamos aqui pertence ao potencial, mas não o poder. O poder atua no campo da mediação, por uma simetria associada a uma finalidade ou teleologia, trata-se de uma política, ou melhor, está associado a uma concepção jurídica do mundo. Nessa concepção uma relação de forças tem origem no individual e privado, tem de ser socializada para gerar uma reação apropriada que lhe corresponda, tem de ser mediada, ou seja, funciona por intermédio de um Poder e sua perspectiva se dá inseparável de uma noção de crise gerada e geradora por e de antagonismos. 224 • 225

Desse modo o poder intervém como um poder dos antagonismos e via uma solução antagonista (DELEUZE, 1993), dito isto não é preciso destacar que se trata de uma postura dualista e, portanto dicotômica, ou seja, tratando a presença como uma verdade dada pela representação. Pergunto, não seria este o lugar da Educação que conhecemos nas práticas institucionais? A Educação como o lugar de um poder de mediação via uma concepção jurídica do mundo e para o mundo e não em-o-mundo? Uma Educação como sendo: a Educação; instituição que medeia ou se quer a mediadora das relações de uma vida aos modos do conhecimento? Quando falo Educação Potencial e uso da palavra Educação estou preocupado em manter, de certo modo, apenas seu costume lexicológico e não o axiológico. Falo de uma Educação rasurada, ao modo derridiano da rasura (DERRIDA, 2002), o que fica é apenas um arquitraço, pois sua marca política de aparato jurídico e de potestas (poder) não se nutre (não quer que se nutra). Por isso o que se quer com uma Educação Potencial é a presença da potentia como o conatus spinoziano (potência via uma doutrina dos afetos ou um esforço de autoperseveração no ser) afirmando uma produtividade possível sem mediação. Uma posição, possivelmente, naturalista, pois de certa forma aposta na crença de que existe nesse ente que a antropologia filosófica escolheu denominar de homem um princípio natural e que, tal princípio, se efetiva nos seres vivos microscópicos que constituem o seu organismo enquanto potência (conatus) e impulso dinâmico, mas, claro, interessa-me observar e chamar atenção que esse princípio natural extrapola o humano. Ao modo nietzschiano não se privilegiaria uma identificação antropomórfica com um Deus como um criador ilimitado (HAAR, 1993). Promovendo, de certo modo, por meio de um amor dei intellectualis spinoziano, um caráter necessário ao que se efetiva. Daí, dessa concepção, temos uma Educação que não atua como mediação, mas se assume como potência positiva e produtiva, criadora, portanto. Pois não se dirige a um objeto em particular ou age por uma finalidade ou teleologia. Atua de modo deliberadamente anacrônico, digressivo, desorientado, ou orientado a seu modo; agencia-se na composição de singularidades, ou seja, agencia singularidades para produzir novas

singularidades. Essa é sua restrição; inventar por meio da inovação que se estabelece como invenção ao se apropriar de uma inovação anterior ou, ainda, futura. Apropriar-se do que está por vir e fazer disso o seu modo de disposição. Um estar-lançado. Uma Educação que não se preocupa pela satisfação de algo ou alguém e, tampouco, com o preenchimento de algum vazio. O seu sentido está em seu ato como o uso da materialidade mundo em conjunção e composição para um aumento de seus graus de potência de ação. Uma Educação Potencial se configura como um lugar que não visa produzir deciframentos ou apresentar resultados. Se, por algum acaso, ela se erige em um espaço dito de educação ao modo de fazer de si experimento de uma potência educacional, parecendo com isso intervir com algum procedimento sistemático, assim o faz sem ter por ação um método heurístico, mas um método de invenção. Tem a si mesma e à sua linguagem como objeto na medida em que procura inutilizar todo discurso que por ela atravessa e, com isso, fazer de tudo ficção, sua ficção.

14. Possest – as coisas são a potência Em um curso sobre Spinoza, ministrado em 09 de dezembro de 1980, em Vincennes, Gilles Deleuze menciona Nicolau de Cusa como o criador do termo possest. Deleuze afirma ser possest uma palavra-valise, uma corruptela de duas palavras latinas, uma criação verbal elaborada por Nicolau de Cusa. “Possest é feita de ‘posse’ que é o infinitivo do verbo ‘poder’, e ‘est’, que é a terceira pessoa do verbo ‘ser’ no presente: ‘ele é’. Ele [Nicolau de Cusa] corrompeu as duas e isto dá ‘possest’. O ‘possest’ será precisamente a identidade da potência e do ato pelo qual defino alguma coisa. Então eu não definirei alguma coisa por sua essência, aquilo que é, eu a definirei por esta noção bárbara, o ‘possest’, aquilo que ela pode. Ao pé da letra: aquilo que ela pode em ato” (DELEUZE, 2009, p. 83). Com essa noção elaboramos uma questão: o que pode a Educação? O que interessa é o que ela pode e não o que ela é, pois sua existência se dá por meio de suas práticas. Então, o que interessa, também, – ao gosto do que pretendemos chamar de Educação Potencial – é empreender uma atenção ao que pode a Educação como ação de inteligência, ou seja, o que

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pode a Educação ao modo de querer provocar um riso ético, um riso de um homem dito livre, um riso benevolente vindo de uma ação de alegria. É importante chamar a atenção para a ideia de que uma ação de alegria está diretamente relacionada ao que Deleuze chama, via a leitura de Spinoza, de “linha melódica da variação contínua constituída pelo afeto” (DELEUZE, 2009, p. 27), essa linha é constituída por dois polos denominados, por Spinoza, de paixões fundamentais, esses polos são: alegria e tristeza. “A tristeza será toda paixão, qualquer paixão, que envolva uma diminuição de minha potência de agir; e a alegria será toda paixão que envolva um aumento de minha potência de agir” (DELEUZE, 2009, p. 27). Uma Educação Potencial, para que possa ser uma Educação que aumente a potência de agir terá de eleger modos de ser atravessada, em especial, pelo polo da alegria. Nessa linha contínua do afeto39 – constitutivo pelas paixões fundamentais – como força da variação de existir de alguém (neste caso esse alguém seria a ideia de uma Educação Potencial), e sendo que esta variação é decidida e motivada pelas ideias que este alguém tem, ou seja, essa ideia que o atravessa, aumenta e diminui a sua potência de agir, uma Educação Potencial assoma-se a querer o cultivo de ideias que promovam a inteligência e a vivacidade. Então, o que pode a Educação?

Tentativa de esgotar um lugar da Educação Podemos nos interrogar sobre aquilo que nos é tão próximo, mas, a cada vez, nos é tão distante? Somos capazes de nos surpreender com a maquinaria que modelou nossos modos de surpreender-nos? Talvez haja um lugar na Educação que, me parece, esteja cansado; precisamos tentar esgotá-lo? Seria, a nossa, uma Educação acomodada em um lugar conhecido como o consenso? Podemos esgotar os recantos desse lugar cheio de promessas harmônicas, virtudes, finalidades, deveres, estatutos, passados e futuros? Podemos inventar uma Educação nossa; que sim, no meio; da excursão, do delírio, do necessário, do absurdo, que nem comece ou termine Lembro que estou utilizando a palavra afeto para a noção de affectus spinoziano. O afeto em Spinoza é uma capacidade de afetar e ser afetado, não denota um sentimento pessoal, mas uma intensidade pré-pessoal que corresponde à passagem de um estado de experiência a outro. Isto implica na diminuição ou aumento de agir de um corpo.

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ou diga ou hesite ou marche ou espere ou ou, mas mais mais? Podemos inventar uma Educação fragmento feita de cacos, relâmpagos das festas do intelecto, festas dos corpos; das festas todas que nos sugiram isto e aquilo, coisas compositivas; uma Educação Potencial? Há muitas coisas nesse nome, nessa identidade Educação. Seria necessário contaminá-la, fazê-la variar de modo que não consiga mais ser idêntica a si. Esgotar o seu nome como o lugar que a faz repousar em uma pessoalidade imperativa e conciliadora de contrários; fazer desse nome uma potência de diferença positiva; fazê-lo variar por um movimento virótico que se autoimplica em uma reciprocidade assimétrica. A Educação Potencial é isso; um modo de festejar conexões heterogêneas; uma tentativa de esgotar o lugar do consenso para a Educação. A Educação Potencial se concebe como potência para a especulação de si como existência que difere; diferença intensiva. A Educação Potencial atua como um convite para se chegar alhures. “Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões.” (ANDRADE, 1955)

Referências ADÓ, Máximo Daniel Lamela. Educação Potencial: autocomédia do intelecto. Porto Alegre, 2013. Projeto de Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. ANDRADE, Mário de. Obras completas de Mário de Andrade II: Poesias completas. São Paulo: Martins Editora, 1955. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: Lições americanas. (Tradução Ivo Barroso.) São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CHAUI, Marilena. Da impotência à potência ou a imagem do livre-arbítrio à ideia da liberdade. In. MARTINS, André (Org.). O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 59-79. DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). (Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso et al.) Fortaleza: EdUECE, 2009. _____. Raymond Roussel ou o horror do vazio. (Tradução Hélio Rebello Cardoso Júnior.) In: ORLANDI, Luiz B.L. (Org.). A Ilha Deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 99-101.

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DELEUZE, Gilles. La univocidad del Ser y la diferencia como grados de potencia. Sobre Spinoza. (Tradução Equipo editorial Cactus.) In.: DELEUZE, Gilles. Derrames entre el capitalismo y la esquizofrenia. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2005, p. 281-292. _____. Prefácio. In. NEGRI, Antônio. A anomalia selvagem: poder e potência em Spinoza. (Tradução Raquel Ramalhete.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, p. 7-9. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. (Tradução Maria Beatriz Marques Nizza da Silva.) São Paulo: Perspectiva, 2002. HAAR, Michel. Nietzsche et la métaphysique. Paris: Gallimard, 1993. LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. (Tradução Ricardo Corrêa Barbosa.) Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2011. MAISTRE, Xavier de. Viagem ao redor de meu quarto. (Tradução Armindo Trevisan.) Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998. ROBBE-GRILLET, Alain. O ciúme. (Tradução Waltensir Dutra.) São Paulo: Círculo do Livro, 1988. SANTIAGO, Homero. Superstição e ordem moral do mundo. In. MARTINS, André (Org.). O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 171-212. SPINOZA, Baruch. Ética. (Tradução Tomaz Tadeu - Edição Bilíngue). Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

Sou Pedagogo, Didata, Curriculista, escrevo. Marcos da Rocha Oliveira Sandra Mara Corazza

Resumo Este “Sou pedagogo, didata, curriculista, escrevo”, doa um modo de organização textual e mostra como a pesquisa se desloca em suas páginas. Tal escolha visa aludir ao estudo praticado no texto que se apresenta como Tese, impelindo o leitor a uma imanência estrutural que acompanha o problema de pesquisa que se escreve. Por sua vez, a impessoalidade deliberadamente afastada é grafada na marca da primeira pessoa do singular (índice notório e desavergonhado da autoria e da ordem original) que, ao insistir com frases explicativas, visa criar um efeito de leitura que perfaça certa duplicidade perfeita entre texto e autor: estranho artifício que explicita a obliteração de toda origem e do próprio pensamento enquanto original, visto que o duplo é sempre fruto de traição.

Palavras-chave Criação. Aula. Pedagogia. Didática. Currículo.

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Há muito insisto nos temas comuns às pesquisas em educação – sobremodo na inflexão que educatio comporta em sua possível tradução por criação. No Mestrado em Educação, escrevi um educador e o cotidiano via uma prática biografemática de pesquisa (OLIVEIRA, 2010). E foi, talvez, tal Dissertação que tenha possibilitado a formulação e necessidade de um projeto inicial de pesquisa para o Doutorado sobre uma Didática Neobarroca40, instada pela prática de “transcriação” ou “pedagogia ativa” de Haroldo de Campos, pelo “neoBarroco” de Gilles Deleuze e pelo “texto” de Roland Barthes (sendo, por sua vez, “texto” e “neoBarroco” noções incorporadas em variação por Haroldo de Campos). Dessa formulação e composição inicial e dessa insistência decorre a Tese que hoje apresento neste Caderno de Notas, marcada por um viso das pesquisas escritas na linha de pesquisa “Filosofia da diferença e educação”, do Programa de Pós-Graduação em Educação e em especial por aquelas que acompanho de perto em suas artesanias do pensar e escrever, sob orientação da Profª Drª Sandra Mara Corazza. É sob esse registro que apresento a tese desta Tese, em algumas de suas variações – bem como uma visada sobre seus temas e sua estruturação textual. Tomado por questões simples, tais como “O que é a pedagogia?” (ao modo de Deleuze e Guattari, ao grafarem “O que é a filosofia?”), “O que faço ou tento fazer quando digo que faço pedagogia?”, “É possível ter ideias em pedagogia?”, “É possível ser didático e ter estilo?”, “Como funciona um currículo?”, reúno uma série de operadores pedagógicos diferenciais, marcados pela grafia do nome de alguns autores tornados, aqui, pedagogos: Roland Barthes, Haroldo de Campos, Gilles Deleuze, Osman Lins (somente para abrir a lista ou inventário breve). E é com eles, da maneira mais rápida que consigo, de pronto, que defino: a pedagogia como atividade de criação de didáticas; que se atualizam em currículos; sendo a didática um modo de operar deslocamentos, e um currículo o dinamismo dramático desta didática. Notadamente, nesta formulação, Gilles Deleuze é o operador mais presente e talvez o mais traído. É dele que tomo o método de dramatização 40 “Didática Neobarroca” é o anteprojeto de Tese que apresentei, no ano de 2009, por ocasião da seleção para ingresso no Curso de Doutorado em Educação (com início no ano de 2010).

(1976; 2006a; 2006b; 2010) para dizer algo a respeito de uma ideia em pedagogia, o que é análogo a dizer algo sobre uma criação pedagógica – e é neste ponto, então, que me aproprio das formulações mais tardias de Deleuze acerca da filosofia, da arte e da ciência enquanto atividades – específicas – de criação (1987; DELEUZE; GUATTARI, 1997), fazendo uma leitura de sobrevoo em sua obra e mergulhando em textos e fragmentos escolhidos por atração (àquilo que me faz escrever) e distração (àquilo que me faz ponderar, deixar para depois o texto: a Obra deleuziana enquanto objeto de especialistas). Assim, o título da Tese, “Método de dramatização da aula: o que é a pedagogia, a didática, o currículo?”, marca bem seus intercessores iniciais: as conferências “O Método de dramatização” (apresentada em 1967) e “O que é o ato de criação?” (pronunciada em 1987), e o livro “O que é a filosofia?”, escrito com Félix Guattari (em 1991). É a própria implicação de tais textos, as primeiras linhas ou guias iniciáticos que atravessam meu problema (qual seja: o que faço ou tento fazer quando digo que faço pedagogia?), que me faz leitor de uma tradição inventada para a pedagogia “a operar como contravolução, como contracorrente oposta ao cânon prestigiado e glorioso” (CAMPOS, 2006, p. 237), ou apenas uma linhagem incomum de pedagogos – entendidos, desde já, como criadores de didáticas. E é desta forma que eles surgem no texto, como esboços (potencialmente) permanentes ou atos de personagens larvares em constante formação – única possibilidade, para mim, de praticar “a ruptura, em lugar do traçado linear”, uma “historiografia como gráfico sísmico da fragmentação eversiva, antes do que como homologação tautológica do homogênio” (CAMPOS, 2006, p. 237). Gilles Deleuze, pedagogo. E outros também. Como Roland Barthes e Haroldo de Campos, principalmente no que diz respeito às coordenadas textuais da pedagogia como atividade de criação – um ensino escritural (com Barthes) e uma pedagogia ativa do texto (com Campos). E Osman Lins, dos pedagogos presentes (e incertos) aquele que de forma menos sutil é homenageado e traído, pois é dele que tomo a (fantasia de) estrutura da Tese, valendo-me do seu grande empenho em criar um percurso singular e em fuga, em seu livro “Avalovara”. 232 • 233

É o modo de deslocamento, ou o estilo pedagógico do “Avalovara” de Lins que resolvo recriar, fantasiando tal texto (a Tese) como o meu próprio ato pedagógico. É a variação e o fragmento, múltiplos, porém conduzidos, que me permitem deslocar constantemente meu problema de pesquisa ou minha tese inicial – ou seja: dramatizar minha própria definição compartilhada anteriormente, colocando-a em crise ou à prova diante de suas próprias engendrações, escrevendo dinamismos catastróficos, uma barafunda calculada em termos de deslizamentos e rotações distintas. Por isso transcrio o palíndromo latino SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, guia ou condutor da narrativa em “Avalovara”, atualizando dramaticamente um ato didático específico: O Pedagogo a Caminho Está (minha maneira concreta de efetuar o palíndromo, de voltar à ação do percurso, correr outra vez, de re-imaginá-lo de maneira singular, mas não mais preso na recursividade infinita de seu vai-e-vem). É desta forma, então, seguindo a figura da variação, a espiral, que retorno a cada um dos componentes de meu problema (em sua versão mais concentrada, outra vez mais: o que é a pedagogia?), na forma de quadrículas temáticas, cada uma correspondente a uma das oito letras do palíndromo-guia, e comportando uma dimensão imprescindível para a própria criação de tal problema. Desta forma, de modo indiciário, assim se apresenta a composição da Tese – onde cada temática (pois não se tratam, por funcionamento, de capítulos e seus assuntos; de modo mais preciso, seriam – aproveitando os sentidos de – temas e direções de um fragmento melódico), cada quadrícula temática, se apresenta de modo fragmentado, obedecendo, ao mesmo tempo, a uma rigorosa disposição textual e a um impulso “rebelionário” (non serviam, não servil) no trato de suas matérias (portanto, não assuntos: direções). A pesquisa encarna suas temáticas, e toda minúcia de sua estruturação textual deve ser aprendida na própria leitura do texto, de modo que o seu funcionamento mostrar-se-á facilmente para aqueles que a ele atentarem (o título de cada quadrícula entre colchetes, abrindo e reaparecendo em cada fragmento; e cada fragmento, por sua vez, marcado por uma indicação específica, escrita à margem, grafada em itálico). Por isso, quase nenhuma benevolência para com a inteligência do texto nesta nota sobre a Tese, apenas indicações, faíscas indiciárias:

1) “O que é a pedagogia?”, dispõe a dimensão predominantemente dissertativa da Tese. Busca apresentar, mesmo sem desenvolver completamente, as diferentes dimensões do meu problema – apontando os diversos cruzamentos conceituais e os autores implicados em sua formulação. É responsável por tentar um “efeito de tese”, ou seja, marcar o ponto inicial do texto, ser um disparador – irradiação e ressonância dizem de seu efeito para os demais temas. Por isso, sua extensão é longa; e por sua vontade textual, sua tendência à aliança, é a quadrícula temática que menos se aproxima do fragmento, necessidade formal (de expressão) da Tese. 2) “Virgiliano, diz o pedagogo.”: a frase é uma chamada no Ulisses de James Joyce (2007) e, aqui, é responsável pelas coordenadas de construção da Tese, reverberando as demais quadrículas em uma nova disposição ou ênfase de leitura: possui, claramente, um caráter meta-temático, pois informa o leitor sobre o intento de cada um dos temas, inclusive do seu, em minúcias que não trato neste texto. A quadrícula mantém em sua paisagem a seguinte passagem joyciana: “Você acha minhas palavras obscuras. A escuridão está em nossas almas você não acha?” (p. 78). Tratase, definitivamente, de um guia; porém, sem abdicar de um fundo obscuro – que aposta no tom introdutório ou de apresentação, cujo efeito de parada propõe uma reescrita tanto dos fragmentos que lhe antecederam quanto daqueles aos quais se antecipa. 3) Em “O Drama da Aula”, seus fragmentos referem-se aos “Retratos Pedagógicos” de modo distinto: duplos, como biografemas didáticos, escritos em primeira pessoa, trazem a dramatização da aula para alguns pedagogos (aqui, professores): ao modo de Paul Valéry e seu “Meu Fausto” (2010), tais pedagogos não representam os papéis que lhes designo, mas emplois que lhes atribuo de acordo com seu estilo pedagógico. 4) “O Drama do Currículo de Pedagogia”, comporta a tomada do Currículo de Licenciatura em Pedagogia, presencial, da UFRGS, pelo método de dramatização. O intento é: tomar cada um dos oito eixos articuladores de tal Currículo e submetê-lo aos movimentos crítico-genealógico e experimental-exploratório presentes em tal método (CORAZZA, 2010b; 2011; 2012a; 2012b). Desta forma, a pesquisa ganha uma inflexão para o problema já apresentado na quadrícula “O que é a pedagogia?”, de modo 234 • 235

que sua tese é confrontada com uma outra matéria, desta vez documental, extroversa, que incide no referente – um modo de resolver, à sua maneira, o próprio choque do quadrado com a espiral. Se meu problema de pesquisa ganha oito temas, arbitrários – alguém poderá dizer –, é preciso notar que para formar um pedagogo via um currículo institucional específico, oito eixos foram inscritos – correspondendo, a seu turno, a um outro problema, encarnando sob seus termos um outro drama. 5) “Didática da Transcriação”, trabalha, sobremodo, as minúcias da transcriação do palíndromo incrustado no quadrado mágico e rasurado pela espiral. Aproveita, em sua feitura, para ressaltar a dimensão didática de tal pedagogia ativa da tradução, mostrando onde e quando chamo Haroldo de Campos, a partir desta Tese, de didático, e como o trato por pedagogo – com olhos e ouvidos que furam sombras. 6) Em “Tópicos Curriculares”, a variação do tema é que a constitui; porém seu funcionamento é regular, funcionando como um lugar de divergência, acolhendo notas – principalmente conceituais – sobre algo que mereça algum reparo ou insistência. Tentando aplainar algumas arestas, tais “Tópicos Curriculares”, paragens rápidas do deslocamento pela Tese, visam dar velocidade a temas que estiverem lentos, servindo como uma espécie de mola. A consistência de seus fragmentos é pretensamente explicativa, de modo que posso afirmar tais tópicos como referenciais ou enquanto verdadeiros portadores de referência. Como escrito por um pedagogo no quadro negro, cada tópico é sempre assinalado com a distinção “Sobre...”, vindo, então, o prometido e futuro tema variável a ocupar o espaço dos três pontos – variando, por certo, não mais que os próprios pontos a cada pulsar da espira. 7) “Retratos Pedagógicos”, ao modo de um pintor que, por respeito à cor e ao pintar, dedica-se ao retrato (como um modo prudente de tornarse atento aos signos ou digno de sua atividade), esta quadrícula temática escreve retratos pedagógicos de pedagogos, pequenas cenas breves, inflexões de suas aulas (onde, diante de cada retrato, pode-se dizer: há currículo aí). Cada retrato afirma textualmente um currículo como “biografema derradeiro” (CORAZZA, 2009, p. 46) e pode ser dito pelo burburinho impessoal de um “diz-se” sobre suas aulas.

8) “O Plano de Aula Escritural”, onde ensinar e escrever incidem sobre a aula (com planos e ementas desatinadas). Trata-se de um experimento de concreção textual. Possui seus atratores específicos: um “ensino escritural” barthesiano ou “uma pedagogia dos efeitos”; bem como: uma didática da concreção em Haroldo de Campos e o entendimento deleuziano da aula enquanto um espaço-tempo especial – margeando Deleuze quando afirma que no horizonte de toda atividade de criação está a constituição de espaços-tempos específicos. Texto de um pensamento da diferença em Educação, a Tese escreve a tese de que a pedagogia pode ser afirmada como uma atividade de criação. Define o que é ter uma ideia pedagógica; afirma a didática enquanto criação em um plano pedagógico; e o currículo como atualização de uma ideia em pedagogia. Escrita com o método de dramatização de Gilles Deleuze, ela enfatiza o drama e não o logos. E dramatiza: o Currículo de Licenciatura em Pedagogia da UFRGS; uma linhagem de pedagogos que inclui, entre outros, Osman Lins, Roland Barthes, Haroldo de Campos; e a aula como espaço-tempo de criação. Texto de um pedagogo, didata e curriculista, a Tese escreve: planos e dramas de aulas; didáticas escriturais, de transcriação e neobarrocas; retratos pedagógicos; modos de deslocamento por planos pedagógicos; e dramas curriculares. A Tese, tal como a imagino, funciona como dramatização de uma ideia em pedagogia, que consiste em afirmar tal atividade como criadora de didáticas, que se atualizam em currículos. Desta forma, o empenho do texto, da pesquisa, é o de oferecer uma Tese de Doutorado em Educação imediatamente pedagógica, de modo que o seu volume possa ser lido como um objeto de aprendizagem.

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CAMPOS, Haroldo de. Barrocolúdio deleuzeano. In: ALLIEZ, Éric. (Org.) Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 525-533. _____. Deus e o diabo no Fausto de Goethe: marginália fáustica (leitura do poema, acompanhada da transcriação em português das duas cenas finais da segunda parte). São Paulo: Perspectiva, 2005. _____. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2006. CORAZZA, Sandra Mara. Currículo. In: AQUINO, J.G.; CORAZZA, S.M. (Orgs.). Abecedário: educação da diferença. Campinas: Papirus, 2009, p. 40-46. _____. O drama do currículo: pesquisa e vitalismo de criação. In: IX ANPED SUL. 2012a. Disponível em: . _____. Didaticário de criação: aula cheia. Porto Alegre: UFRGS, 2012b. _____. Dramatização do infantil na comédia intelectual do currículo: método ValéryDeleuze. Projeto de Pesquisa e Plano de Trabalho; Bolsa de produtividade em pesquisa – CNPq. Texto digitado. 2011a. _____. Introdução ao método biografemático. In: FONSECA, T. M. G.; COSTA, L. B. (Org.). Vidas do Fora: habitantes do silêncio. 1 ed. Porto Alegre, 2010a, v. 1, p. 85-107. _____. Seminário Avançado: O método de dramatização na comédia do intelecto: Valéry & Deleuze. Seminário Avançado realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no primeiro semestre de 2010. Porto Alegre, 2010b. Anotações do Seminário. _____. Seminário Avançado: O que é o ato de criação? Método Valéry-Deleuze. Seminário Avançado realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no segundo semestre de 2010. Porto Alegre, 2010c. Anotações do Seminário. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 2006a. _____. A Dobra: Leibniz e o barroco. (Tradução de Luiz B. L. Orlandi). São Paulo: Papirus, 1991. _____. O Método de dramatização. In: A ilha deserta: e outros textos. Org. e revisão técnica da edição brasileira de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006b. _____. Nietzsche e a filosofia. (Tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias). Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

DELEUZE, Gilles. Qu’est ce que l’acte de Création? – Conférence donné dans le cadre dês “ Mardis de la Fondation ”, le 17 mars 1987. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 09, às 13 h. _____. Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O esgotado. (Tradução de Fátima Saadi, Ovídio de Abreu e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010. _____.; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. 2ª Edição. JOYCE, James. Ulisses. (Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro). Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. OLIVEIRA, Marcos da Rocha. Biografemática do homo quotidianus: O Senhor Educador. Porto Alegre, 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. Disponível em: . _____. Método de dramatização da aula: o que é a pedagogia, a didática, o currículo? Porto Alegre, 2014. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: . VALÉRY, Paul. “Meu Fausto” (Esboços). Introdução, tradução e notas de Lídia Fachin e Silvia Maria Azevedo. Cotia: Ateliê Editorial, 2010.

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Epílogo: A filosofia da composição do Projeto Escrileituras Sandra Mara Corazza Ester Maria Dreher Heuser Carla Gonçalves Rodrigues Silas Borges Monteiro (Coordenadores Instituticionais do Projeto Escrileituras)

No ensaio intitulado A filosofia da composição, publicado em 1846, na revista Graham’s Magazine da Filadélfia, acerca do próprio processo de montagem e execução do poema The Raven (O corvo), o poeta, contista e ensaísta norte-americano Edgar Allan Poe (2009, p.113) atribui ao escritor britânico Charles Dickens uma nota, na qual este teria dito que o mecanismo do seu romance histórico Barnaby Rudge começara pelo epílogo: “Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de consequência, ou casualidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção”.  Poe afirma também que, após escolher um assunto, prefere começar por um efeito vivo: “Eu prefiro começar com a consideração de um efeito” (POE, 2009, p. 114). Assim como para o poeta, tratou-se, para nós, participantes do Projeto Escrileituras – que também escrevemos e lemos –, de escolher entre os inúmeros efeitos ou impressões advindos da vida mesma; aqueles capazes de despertar a sensibilidade e a inteligência, a imaginação e a memória, bem como outras faculdades que não são mais do que a composição entre as forças no homem e aquelas que advêm de fora (DELEUZE, 1991, p. 132). Foram esses efeitos que nos interessaram como disparadores de escrituras e leituras; efeitos que estão contidos na vitalidade, tanto dos incidentes habituais de uma vida, como nos tons especiais dos autores que amamos, e que escolhemos para serem nossos intercessores no Projeto. Intercessores que funcionaram durante as

pesquisas que resultaram em teses e dissertações, expostas nesse Caderno de Notas 9, ou na realização das diversas Oficinas de Transcriação, que desenvolvemos junto a estudantes de todas as idades e professores das redes públicas de ensino.  Ora, Poe espanta-se em face da raridade com que são dados a conhecer os processos, por meio dos quais cada escritor atinge o ponto de acabamento do seu texto, afirmando que não sabe explicar os motivos pelos quais não é dada ao mundo uma revista, ou outra publicação que se ocupasse desses procedimentos, na qual os autores explicitam o passo a passo de suas composições. Ainda que existam dificuldades de detalhar como se deu a produção de uma obra – seja um livro, um poema, um texto, uma música, uma peça, ou outra criação humana –, a reconstituição do percurso que um autor seguiu até atingir as suas conclusões é omitida “muito mais por vaidade do que por qualquer outra coisa” (POE, 2009, p. 114). Qualquer que seja a intenção de um autor – no caso literário, criar uma obra no campo da beleza, ou, caso filosófico, da verdade –, o seu objetivo só poderá ser alcançado por meio de rigor técnico e nunca de uma intuição estática ou de um sutil frenesi. No entanto, pondera Poe, ele sabe que uma publicação desse tipo dificilmente aconteceria, devido justamente a uma autorial vanity (vaidade autoral), diretamente relacionada com a necessidade da manutenção da imagem do poeta inspirado, que interessa especialmente ao mercado editorial. Para discutir essa posição, Poe é incisivamente crítico: assim como uma obra literária não cai do céu, também não surge sozinha no papel; mas, ao contrário, ela é produto de um processo longo, cansativo, nem sempre prazeroso para o autor – embora, a vaidade dos poetas (seus contemporâneos, mas podemos incluir nessa lista também filósofos, romancistas, cientistas e pesquisadores acadêmicos) não queira deixar que o mundo saiba que não é a pura inspiração que os move, mas muito trabalho que jamais chega ao conhecimento dos leitores. Como toda crítica que vale a pena, a de Poe é propositiva, já que ele próprio faz com uma de suas obras aquilo que aponta faltar entre os seus contemporâneos: mostra o que está por trás dos bastidores, aquilo que é parte inseparável do trabalho do artista, e acaba por atacar uma concepção 240 • 241

cara à tradição crítica, que é a do poeta como um ser inspirado. Daí nasce o texto referido – A filosofia da composição – em que mostra o modus operandi pelo qual a sua mais conhecida obra poética O corvo se completou, com precisão e sequência rígida, tal como se fosse um problema matemático; desde que a sua intenção era compor um poema que agradasse, ao mesmo tempo, tanto ao gosto do público quanto o da crítica. Mesmo que se trate, neste texto de Poe, segundo alguns, de uma provocação literária, na qual ele teria rido, ao afirmar que o seu mais famoso poema era escrito ao revés, de trás para diante, e que ele teria começado pelo fim; longe de considerar tal atitude uma burla, um charlatanismo literário ou uma provocação, dirigida especialmente aos críticos, seguimos Haroldo de Campos (1996, p. 9) afirmando que tivemos “a contraprova por meio da poética contemporânea, moderna, sobretudo através dos trabalhos de Roman Jakobson”; além de que o problema estava sendo enfrentado, por Poe, “até no nível micrológico da fatura fônica do poema, uma vez que raven (corvo) é o avesso de never”; ou seja, Campos confirma a probabilidade da tese de Poe, pelo expediente usado de tomar como refrão do poema (raven) o seu próprio nome ao contrário (never). Sem entrar no maior ou menor mérito de cada um dos polos dessa discussão (ABRAMO, 2011), para nós, pesquisadores participantes e coordenadores dos núcleos do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio a vida, interessa responder, ainda que sucintamente, aos desafios lançados por Poe, na introdução do seu A filosofia da composição, ou seja: acerca daquilo que está em cena na realização desse trabalho – de pesquisa, orientação, ensino e extensão – que aconteceu durante mais de quatro anos em três estados do Brasil: quais foram os seus percursos; quais suas rudezas vacilantes e espinhosas do pensamento; como se deram os processos de seleção e rejeição de ideias e oficinas; como realizamos pesquisas que lidaram com a empiria do projeto e também com as teorias que o ampararam, realizando algo que tentou se aproximar de um empirismo transcendental (DELEUZE, 1988)? Assim, como Poe, afirmamos que a realidade do Projeto Escrileituras não foi um objeto mágico, fruto da intuição de vários educadores e grupos de pesquisa, tomados por uma fina inspiração; mas sim o resultado

do trabalho produzido artisticamente por mãos humanas, por meio de um processo inteligível de pensamento e de sensibilidades; o qual foi, ampla e publicamente, apresentado em todas as escolas e universidades onde aconteceu, bem como em muitos eventos regionais, nacionais e internacionais; onde fizemos questão de, sempre, mostrar as peças, as engrenagens e o funcionamento da maquinaria, que acabou por constituir o Escrileituras. Isso porque, desde o início, valorizamos, em primeiro lugar, o processo do trabalho e, só posteriormente, o seu resultado (CORAZZA, 2011, p. 48). Assim como um problema matemático, o Escrileituras não foi, desde o início, um objeto de arte já dado. Ao contrário, consistiu em uma situação de resposta ao Edital 2010 do Observatório da Educação, que demandou solução, por via da elaboração e obediência a certas regras e procedimentos. Como a poesia de Poe, o Escrileituras acabou formando suas próprias leis e teoremas, tributárias da filosofia da diferença, teorias de tradução literária e poética, bem como de formulações didáticas e curriculares contemporâneas; de modo que os movimentos da rede, formada pelos quatro Núcleos, compreenderam modos plurais de intervenção, nas formas de ensinar e de aprender a ler e a escrever; modalidades de planejar, organizar e desenvolver as Oficinas; criação de espaços-tempos para encontros, pragmáticos e críticos, que passaram pela escrita-e-leitura e configuraram uma determinada epistemologia educacional. Essas leis e teoremas não se mostraram como transcendentes, mas foram produzidos de acordo com as necessidades e as circunstâncias que se apresentavam e impulsionavam a produção do que hoje podemos considerar um grande arquivo, constituído por dissertações, teses, artigos, relatos de experiências já publicados; mas, sobretudo, pelo esforço editorial na criação da Coleção Escrileituras, composta por nove Cadernos de Notas, publicados por editoras universitárias, que apostaram nesse gênero, que não é nem um livro em sua forma clássica, nem um relatório de pesquisa, mas algo híbrido que se dispõe a pormenorizar o trabalho, a mostrar o passo a passo dos processos de composição daquilo que inventamos e que cabe neste imenso guarda-sol em que se transformou o Projeto Escrileituras. 242 • 243

Atualmente, tomando como matéria empírica de composição ensaística o arquivo do Projeto Escrileituras, ressaltamos a necessidade que se nos apresentou, após o encerramento do mesmo, em 2015, pela CAPES, de trabalhar a genealogia dos atos curriculares e procedimentos didáticos tradutórios, experimentados e desenvolvidos pelos diversos núcleos, grupos, bolsistas e pesquisadores. De tal necessidade nasceu o Grupo de Pesquisa Escrileituras da diferença em filosofia-educação, cujos pesquisadores, docentes e escrileitores passaram a olhar para “os apetrechos de mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco” (POE, 2009, p. 114); a fim de problematizá-los e perceber suas potências e impotências, para que possamos avaliar e potencializar as ideias e os procedimentos capazes de continuar criando modos de ler e escrever em meio à vida.

Referências ABRAMO, Claudio Weber. O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe. São Paulo: Hedra, 2011. CAMPOS, Haroldo de. Sobre Finismundo: a última viagem. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996. CORAZZA, Sandra Mara. Notas. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1991. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Tradução Oscar Mendes, Milton Amado. São Paulo: Globo, 2009, p. 113-128.

Alessandra Christina Arantes Abdala Azevedo Mestre em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso, Integrante do EFF/IE/UFMT - Grupo de Pesquisa Estudos de Filosofia e Formação. Possui graduação em Fonoaudiologia pela Universidade do Sagrado Coração. Especialista em Linguagem pela Universidade Católica Dom Bosco. Email: [email protected]

Altair de Souza Carneiro Possui Mestrado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – TOLEDO/PR, graduação em Filosofia pela Faculdade Padre João Bagozzi e graduação em Letras Português Inglês pela Universidade Paranaense. É especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira pela Universidade Paranaense. Atualmente é Professor da Universidade Paranaense – UNIPAR, de Filosofia e Ética; de Língua portuguesa e Técnico Pedagógico da Educação Básica de Filosofia e Sociologia do Núcleo Regional da Educação de Umuarama – Paraná. Email: [email protected]

Ana Carolina Cruz Acom Mestre em Educação pela UFRGS, na linha da pesquisa Filosofias da Diferença e Educação. Graduada em Filosofia pela UFRGS (licenciatura e bacharelado) e Especialista em Moda, Criatividade e Inovação pelo SENAC/ RS. Atualmente é professora de Semiótica e Produção de Moda no Curso de Design de Moda da UDC (Centro Universitário Dinâmica das Cataratas – Foz do Iguaçu). Email: [email protected]

Carla Gonçalves Rodrigues Doutora em Educação – UFRGS. Professora Adjunta do Departamento de Ensino da Faculdade de Educação da UFPel. Coordenadora do Núcleo Escrileituras da UFPel. E-mail: [email protected]

Clara Lisandra de Lima Silva Mestre e Especialista em Ensino de Ciências e Matemática – UFPel. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPel. Professora de Biologia da rede estadual de ensino. E-mail: [email protected]

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Cristiano Bedin da Costa Heterotopologista; Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Docente no Centro Universitário Univates. Interessa-se pelas relações entre Arte, Literatura e Filosofia, tomadas como intercessores do pensamento em Educação e Psicologia; Com Foucault, Deleuze, Nietzsche e Barthes, pesquisa estratégias de criação em meio às formações curriculares contemporâneas. Email: [email protected]

Deniz Alcione Nicolay Doutor em educação pela UFRGS. Membro do DIF. Professor da área de Fundamentos da Educação na UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul). E-mail: [email protected]

Eduardo Alexandre Santos de Oliveira Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Graduado em Filosofia (Licenciatura Plena) pela Universidade Estadual do Centro-Oeste/UNICENTRO. Possui Especialização em Formação de Professores para Docência no Ensino Superior pela Universidade Estadual do Centro-Oeste/UNICENTRO. Atualmente é Professor na Universidade Estadual do Centro-Oeste/UNICENTRO. Atua com pesquisas filosóficas sobre Educação e Política. Email:

Emília Carvalho Leitão Biato Possui graduação em Odontologia pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba e doutorado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso. Atualmente é professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso. Trabalha com Ciências Humanas em Saúde, principalmente com os temas: educação em saúde e filosofia da diferença. E-mail: [email protected]

Ester Maria Dreher Heuser Professora-pesquisadora adjunta C da UNIOESTE, Campus Toledo (PR), nos cursos de Filosofia - Licenciatura, Mestrado e Doutorado. Pesquisa, publica e leciona em torno da Filosofia de Deleuze e seus intercessores, Filosofia da Educação e do Ensino de Filosofia. Graduada em Filosofia e mestre em Educação

pela UNIJUÍ. Doutora em Educação, linha de pesquisa Filosofia da diferença e educação (2008), pela UFRGS. Coordenadora do Núcleo UNIOESTE do projeto Escrileituras: um modo de ler e escrever em meio à vida. E-mail: [email protected]

Gabriel Torelly Fraga Corrêa da Cunha Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul na linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação. Professor de História no Colégio Israelita do Brasil (CIB) e no Projeto Educacional Alternativa Cidadã (PEAC). Email: [email protected]

Gabriel Sausen Feil Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); professor na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) – Campus São Borja. E-mail: [email protected]

Hilda Regina P. M. Olea Estudante de doutorado do Programa Pós-Graduação em Estudos de cultura contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso – ECCO UFMT. E- mail: [email protected]

José Carlos Leite Professor do Programa Pós-Graduação em Estudos de cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso – ECCO UFMT. E-mail: jcleite343@ gmail.com

Josimara Wikboldt Schwantz Pedagoga. Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPel. Email: [email protected]

Larisa da Veiga Vieira Bandeira Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Mestre em Educação e estudante de doutoranda pelo Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Email: [email protected]

246 • 247

Maria Idalina Krause de Campos Doutoranda em Educação PPGEDU/ UFRGS. Bolsista do Observatório da Educação CAPES/INEP. Membro integrante do BOP – Bando de Orientação e Pesquisa; da Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferença e Educação; e do Grupo de Pesquisa DIF – artistagens, fabulações, variações - Diretório do CNPq. E-mail: [email protected]

Máximo Daniel Lamela Adó Doutor em Educação (UFRGS). Mestre e Literatura (Teoria literária) e Licenciado em Ciências Sociais (UFSC). Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

Nilton Mullet Pereira Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre em Educação e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da área de Ensino de História. Pesquisa o papel do uso de fontes no ensino da História, através do projeto Vestígios do Passado: as fontes no ensino de História. E-mail: [email protected]

Paola Zordan Professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Articuladora do M.A.L.H. A., Movimento Apaixonando pela Liberação de Humores Artísticos. Trabalha com performances, escultura social e micropolíticas. Doutora e Mestre em educação pela UFRGS, coordena a Linha de Pesquisa Filosofia da Diferença e Educação, desenvolvendo temas que envolvem historiografia da arte, formação de professores e esquizoanálise. E-mail: [email protected]

Polyana Olini Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pesquisa na Linha Filosofias da Diferença e Educação; Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

Samuel Edmundo Lopez Bello Professor do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pósgraduação (PPGEDU) da UFRGS. E-mail: [email protected]

Sandra Mara Corazza Professora titular do Departamento de Ensino e Currículo da Universidade Federal do Rio Grane do Sul. Líder dos Grupos de Pesquisa, cadastrados no Diretório CNPQ, 1) DIF - Artistagens, Fabulações, Variações; 2) Escrileituras da diferença em filosofia-educação. Coordenadora Geral do projeto Escrileituras: um modo de Ler-Escrever em meio à vida. E-mail: [email protected]

Silas Borges Monteiro Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Associado do Departamento de Teorias e Fundamentos da Educação do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso; Coordenador do Núcleo UFMT do projeto Escrileituras: um modo de ler e escrever em meio à vida. E-mail: silas@terra. com.br

Simone Vacaro Fogazzi Artista e Professora. Mestra em Educação, pela linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação FACED/UFRGS; Especialista em Museologia-Patrimônio Cultural – IA/UFRGS; Licenciada em Educação Artística habilitação Artes Plásticas IA/UFRGS; Docente de Artes Visuais do Departamento de Expressão e Movimento do Colégio de Aplicação/UFRGS. Como artista visual pesquisa processos criativos nas poéticas da memória e do tempo. E-mai: simone.fogazzi@ ufrgs.br

Wagner Ferraz Mestre em Educação - PPGEDU/UFRGS. Dançante, performer e professor. E-mail: [email protected]

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[email protected] Porto Alegre/RS – Fone: (51) 3386 1984

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