P-215 - O Ponto Final De Horror - H. G

  • November 2019
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  • Words: 31,315
  • Pages: 66
(P-215)

O PONTO FINAL DE HORROR Autor

H. G. EWERS Tradução

RICHARD PAUL NETO Digitalização

VITÓRIO Revisão

ARLINDO_SAN

Quando se encontrava no centro da Galáxia, Perry Rhodan e sua nave-capitania entraram repentinamente na área de sucção da rota de transmissores que levava para Andrômeda. Na estação de Gêmeos, a Crest II foi arremessada para adiante pelo guardião moribundo — mais precisamente, para o interior de Horror, um mundo oco artificial. Lutando sempre, os humanos foram subindo nível após nível, até atingir a superfície do planeta artificial, em torno do qual circulam três sóis. Quando já tinham alcançado a segurança do espaço cósmico, voltaram a sacrificar a mesma, aproximando-se novamente da superfície do planeta Horror. Na oportunidade penetraram no campo de ação de uma arma secreta chamada Horror — e foram atingidos por um processo de redução, que diminuiu em mil vezes o seu tamanho e o dos objetos que os cercavam. Durante a luta com os “Gigantes no Pólo Sul” Rhodan e seus companheiros tiveram de conscientizar-se plenamente de que depois da falha de todos os equipamentos atômicos e hiperfísicos da Crest não lhes restava a menor chance de modificar o destino que os esperava. Mas ainda havia uma esperança. Pawel Kotranow viria em seu auxílio, com a Androtest II. O Coronel Kotranow e seus companheiros já estão voando em direção a Horror, para O Ponto Final de Horror...

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Personagens Principais: = = = = = = =

Julian Tifflor — Marechal solar que mobiliza uma frota enorme para ocupar o sistema de Gêmeos. Coronel Haile Trontor — Comandante da nave Péricles. CKSP-0001 — Robô que acredita estar sofrendo uma alucinação. Omar Hawk — Indivíduo adaptado ao ambiente, vindo de um planeta extremo. Sherlock — Um okrill domesticado. Coronel Pawel Kotranow — Comandante da Androtest que “parteja”. Major Ez Hattinger — Imediato da Androtest II. O dull — Um ser espácio-temporal que tem seu segundo encontro com os terranos. Perry Rhodan — Administrador-Geral que afirma que os homens da Androtest são idiotas.

1 O fogo de artifício silencioso produzido pelas energias titânicas parecia não ter começo nem fim. Nem sempre os olhos humanos podiam ver aquilo que fluía constantemente entre os sóis das concentrações estelares galatocêntricas, como o fluxo das marés de um oceano terrano. Era só nos momentos em que os raios, normalmente invisíveis, se quebravam nas névoas de matéria, que surgiam lampejos fulgurantes no vazio aparente, nos lugares em que pouco antes tudo fora escuridão, despejando uma cascata de beleza inebriante feita de cores luminosas. Às vezes as luzes eram refletidas por uma cadeia de objetos esféricos, dando a impressão de que estava caindo em espelhos gigantescos. A grande tela frontal da espaçonave alterava sua intensidade luminosa no mesmo ritmo do espetáculo mudo proporcionado pela natureza. A silhueta, imóvel feito uma estátua, de um homem alto destacava-se contra o fundo de claridade cambiante. O Marechal Solar Julian Tifflor estava com os olhos semicerrados, para não ser ofuscado pela profusão de luzes. Mas o que prendia sua atenção não era o espetáculo oferecido pela natureza, de uma beleza sem par, mas ameaçador ao mesmo tempo. Estava com os olhos presos na extraordinária constelação formada por seis gigantescas estrelas azuis. Só mesmo uma pessoa familiarizada seria capaz de ver a olho nu o que havia de extraordinário nas mesmas. Muitas vezes as gigantescos sóis azuis formavam condensações estelares abertas ou fechadas. Mas jamais se constituíam num hexágono geometricamente perfeito. Com uma única exceção: o transmissor hexagonal galatocêntrico pertencente a um povo que vivia na galáxia de Andrômeda e era conhecido como os senhores da galáxia. — Que coisa incrível! — observou Tifflor. Atrás dele ouviu-se uma risada borbulhante. — Não diga, senhor! Acha isso incrível...! Pensei que durante os anos de atividade na Frota o senhor já tivesse perdido a capacidade de admirar-se com alguma coisa. Julian Tifflor virou a cabeça e fitou os olhos penetrantes de um paisano atlético e calvo com as bochechas entremeadas de veias azuis, meio ocultos entre as massas de gordura. Tratava-se do professor Amo Kalup, inventor do sistema de propulsão linear, que era conhecido por suas observações e irrupções emocionais menos respeitosas. Um sorriso irônico apareceu no rosto de Tifflor. — Até parece que o senhor acha perfeitamente natural que alguém não se limite a extrair a energia de seu transmissor de um conjunto hexagonal de sóis, chegando a transformar os próprios sóis em peças de um gigantesco sistema de transmissão. Não, não diga nada — pediu Tifflor ao ver o hiperfísico abrir a boca. — Se disser que é isso mesmo, responderei que o senhor sozinho nunca teria tido a idéia de que alguém pudesse recolher seis sóis gigantescos como se fossem grãos de ervilha e dispô-los em hexágono, além de influenciá-los de maneira tal que á simples aproximação de uma espaçonave criam seu próprio arco de transmissor.

As bochechas murchas do professor Kalup tremeram de tão indignado que ficou. Fungou tão fortemente que parecia uma locomotiva soltando vapor. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, a campainha de alarme soou. Uma retumbante voz de tenor encheu a sala de comando. — Façam o favor de atar os cintos, senhores! O rastreamento automático anuncia uma forte tempestade magnética vinda do setor verde. A sobrelevação é de somente 0,210613 graus. As coisas poderão ficar um pouco desagradáveis. No mesmo instante Julian Tifflor esqueceu o hiperfísico. Com um misto de curiosidade e tensão no rosto, deixou-se cair na poltrona que ficava ao lado da do coronel Haile Trontor, um epsalense que exercia as funções de comandante da Péricles, um supercouraçado da Frota Solar. Não fez nenhuma pergunta a Trontor. Se o epsalense os prevenia da chegada de uma tempestade magnética, ele não se referia a uma das tempestades provocadas por descargas a que já estavam acostumados. Bastante preocupado, Tifflor pôs-se a observar as indicações dos rastreadores. Ali o quadro era bem diferente daquele projetado nas telas da galeria panorâmica. Uma coisa que por lá se acendera de vez em quando como uma fileira de refletores esféricos, aqui permanecia numa relativa imobilidade, sob a forma de um bando infinito de ecos verdes de rastreamento. Eram oito mil espaçonaves da Frota Solar...! Em obediência à ordem do Administrador-Geral, trazida pelo comandante da Androtest I, a primeira espaçonave terrana com um raio de ação de um milhão de anosluz, uma enorme força se concentrara diante do conjunto hexagonal de sóis situado no centro da Galáxia. Das oito mil espaçonaves ali reunidas, cinco mil eram unidades pesadas e superpesadas da Frota Solar, enquanto as três mil unidades restantes formavam gigantescos recipientes transportadores, carregados com tudo que se fazia necessário para instalar uma base em pleno espaço cósmico. E agora o comandante supremo de uma força titânica receava pela sorte de seu grupo, somente porque um sistema de rastreamento automático tinha detectado uma tempestade magnética. — Está pensando em mandar acordar os tripulantes...? Julian Tifflor nem virou a cabeça. Limitou-se a fazer um gesto. O professor Kalup acabara de tocar exatamente no problema crítico. O centro galáctico era temido por suas imprevisíveis tempestades magnéticas. Constantemente se verificava o desaparecimento de espaçonaves, inclusive de unidades superpesadas, nesse inferno energético. Normalmente um grupo concentrado deste tamanho não estaria exposto a um perigo deste tipo. Nem mesmo uma nave bastante avariada desapareceria de um instante para outro; sempre haveria tempo para ao menos resgatar a tripulação. Isto se os tripulantes estivessem em condições de serem salvos! Naquele momento a tripulação de nenhuma das oito mil naves estava em condições. Os terríveis choques de desmaterialização e de rematerialização que se verificavam por ocasião da passagem pelo transmissor hexagonal produziriam graves danos psíquicos, a não ser que a tripulação orgânica se encontrasse em estado de congelamento narcótico. A Frota estava preparada para passar pelo transmissor. Tifflor só esperava a confirmação de que as três naves enviadas na frente tinham chegado sãs e salvas ao receptor instalado no sistema de Gêmeos. Dessa forma as tripulações de oito mil naves — com exceção do número reduzido de pessoas que permaneciam de prontidão nas salas de comando — encontravam-se em

estado de congelamento narcótico e, portanto, numa condição que a medicina considerava quase equivalente à morte clínica. — Não! — disse Tifflor em voz alta e em tom áspero. — Seria inútil. Ninguém recuperaria os sentidos bastante depressa para recuperar a capacidade de ação caso haja uma catástrofe. Ao despertar, esses homens só perturbariam as guarnições das salas de comando. — Além disso — Tifflor não manifestou este pensamento em voz alta — é preferível que as tripulações das naves, condenadas à morte, não sejam testemunhas indefesas de seu próprio fim cruel. — Ainda acabo enlouquecendo! — disse o Coronel Trontor em tom espontâneo. — Queira desculpar, senhor — acrescentou um tanto embaraçado. Tifflor fez um gesto de impaciência. — O que houve? Haile Trontor sacudiu o crânio enorme. Parecia que ainda tinha certas dúvidas. Mas de repente empertigou-se. Os traços de seu rosto, que até poderiam confundir-se com uma máscara, descontraíram-se um pouco. — O transmissor, senhor! — exclamou em tom exaltado. — Faz um segundo que uma concentração de energia se formou no centro do mesmo. Até parece que vai haver uma passagem. Mas os fenômenos-magnéticos que costumam acompanhar a mesma têm a polarização invertida... A poltrona anatômica de Tifflor girou abruptamente. O marechal solar lançou um olhar apressado para os controles de Trontor. Mais aos fundos ouviu-se um fecho que se abria. Os cintos foram afastados ruidosamente. A figura obesa do hiperfísico atravessou a sala de comando fungando fortemente. — Aposto — bradou em tom malicioso — que seu grande comandante confundiu o impulso magnético do transmissor, que por ocasião da chegada de uma espaçonave logicamente deve ter a polarização invertida, com o centro de uma tempestade magnética. Deixe que um homem experimentado lhe di... — O senhor ficou louco? — Dificilmente alguém já tinha visto o marechal solar tão nervoso. — Volte a colocar os cintos. Rápido! Julian Tifflor quis dizer mais alguma coisa. Antes de mais nada, queria explicar que o Coronel Trontor não se enganara, e que realmente uma tempestade magnética extremamente forte se aproximava do grupo de espaçonaves, e que, conforme mostravam os instrumentos, a mesma se transformaria num furacão, se coincidisse com o impulso emitido pelo transmissor. Mas preferiu não dizer mais nada, pois viu os campos defensivos da nave Péricles, compostos por vários estágios, iluminarem-se repentinamente. Os elementos de ligação do casco da nave, forçados ao máximo, rangeram terrivelmente. No mesmo instante Tifflor também desatou os cintos de segurança. Com um salto colocou-se ao lado de Kalup. Enlaçou o homem enorme com os braços, atirou-o para dentro da poltrona como se fosse uma trouxa de roupa e precipitou-se atrás dele, para atar os cintos do cientista, que tremia de raiva. Concluiu o serviço bem em cima da hora. Uma torrente de energias gravitacionais e magnéticas indomadas desabou sobre a Péricles, rasgou os campos defensivos, que seriam capazes de resistir ao impacto de um planetóide, e transformou a nave de quinhentos metros de diâmetro numa bola que gemia nas soldas e era atirada de um lado para o outro.

Quando a poltrona anatômica que se encontrava à sua frente foi colocada repentinamente na horizontal por obra do dispositivo de salvamento, Julian Tifflor caiu ao chão. Raios amarelos pálidos saíam dos fusíveis queimados e pequeninos fragmentos chilreavam ao ricochetear traiçoeiramente pela sala de comando, que de um instante para outro se encheu com uma fumaça causticante. Quando começou a surpreender-se porque o primeiro golpe violento não o tinha esmagado de encontro à parede dos fundos da sala de comando Tifflor sentiu uma mão de ferro que segurava seus quadris. Ficou deitado com o rosto no chão, e o silêncio que se espalhou de repente parecia tão chocante que perdeu os sentidos. *** O estado de inconsciência não podia ter durado mais que alguns segundos. Quando recuperou os sentidos, Julian Tifflor estava sendo erguido violentamente pelo Coronel Trontor. Fez um gesto distraído, passando a mão pelos lábios rachados para limpar o sangue. — Quais são as notícias, coronel? — Só agora estão começando a reagir, senhor — disse a voz de tenor de Trontor. Sua mão gigantesca apontou para o console de comunicação da nave-capitânia da Frota do centro: Este console ocupava uma área de um metro quadrado. Neste espaço reduzido as colunas de algarismos se enfileiravam lado a lado. Cada uma das oito mil naves era representada por um número situado num quadro minúsculo. Naquele momento as primeiras manchas verdes estavam aparecendo nos respectivos quadrados. Julian Tifflor esforçou-se em vão para descobrir um quadro com uma luz vermelha. Não encontrou nenhum e respirou aliviado. Parecia que pelo menos não houvera nenhuma perda total. Dali a cinco minutos tiveram certeza de que nenhuma nave sofrerá avarias graves. Somente quatorze naves de transporte e cruzadores ligeiros informaram que seus projetores de campos defensivos tinham falhado parcialmente, mas essa falha podia ser removida por meio de outros conjuntos. — Parece que tivemos sorte, senhor — observou o epsalense. Deu uma risada que antes soava como o trombetear de um elefante adulto. Tifflor gemeu. Os epsalenses eram considerados os oficiais de espaçonaves mais competentes, mas o tamanho enorme dos humanos de Epsal adaptados ao ambiente naturalmente não poderia deixar de ter seus reflexos nas cordas vocais. Ouvir um epsalense falar ou até mesmo dar uma gargalhada podia ser tudo, menos um bálsamo para os nervos. — Isso quase chega a ser um milagre — disse Tifflor em tom pensativo. — Ainda não recebeu nenhuma mensagem de hipercomunicação de Kahalo? — acrescentou depois de uma pausa. Até parecia que o hipercomunicador só estivera esperando por esta pergunta. Uma mensagem condensada foi recebida, produzindo um apito estridente no receptor. O grande centro de computação positrônico de bordo deu início automaticamente à decifração da mensagem. Como o respectivo código tinha sido introduzido em sua memória, o texto da mensagem não levou mais de um segundo para ser apresentado. — CW-333Y-51-SP chamando MST, no momento PE-RIK-SIX-S-TR: concentração esférica de energia SPEZ. 333Y em 20.12.2400 TT, 23,06,41 horas sobre pirâmides de Kahalo. Fim da Transmissão — CW-333Y-51-SP.

Tifflor leu o texto em voz baixa. Uma pessoa estranha não saberia o que significava o mesmo, mas quem conhecesse a linguagem telegráfica sabia que MST significava Marechal Solar Tifflor e que o sentido da mensagem era simplesmente o de que os observadores que se encontravam no planeta Kahalo tinham registrado e interpretado uma concentração de energia sobre o transmissor piramidal, específica para o caso 333Y. O caso 333Y, por sua vez, significava que se tratava de um impulso partido de Gêmeos em direção ao transmissor formado pelo conjunto hexagonal de sóis. Alguém gemeu e engoliu ruidosamente em seco. Tifflor viu pelo canto dos olhos que o professor Kalup estava recuperando os sentidos. Não deu muita atenção ao fato, pois segundo a mensagem recebida de Kahalo outra mensagem estava para ser transmitida, e Tifflor esperava ansiosamente pela mesma. — Oh...! — disse o hiperfísico com a voz borbulhante e a língua pesada. — Ka... ha... lo cha... chamou! — respirou profundamente e com um ruído estranho. — Tudo bem? Tifflor fez um gesto afirmativo. — Tudo, exceto a nave. — Ah, é... — disse Kalup, para logo acrescentar em voz alta: — Queira desculpar, senhor. Acho que me comportei que nem... que nem... — Que nem o professor Kalup — completou Tifflor com um sorriso. — Faça o favor de não repetir isso, professor — acrescentou em tom sério. Kalup fungou. Só então viu as placas de revestimento empretecidas dos fusíveis e os fragmentos de vidro e plástico. Ficou abatido. — Acho que o senhor salvou minha vida. Muito obrigado. — Deixe para lá. Tifflor virou a cabeça. Antes de compreender o sentido oculto da resposta, Kalup foi contagiado pelo sorriso de Tifflor. Fez um gesto vago de ameaça com o dedo erguido. Mas Tifflor nem chegou a ver. Uma nova mensagem estava chegando naquele instante. Também foi decifrada pelo centro de computação positrônica numa questão de segundos. — Graças a Deus, senhor! — disse o Coronel Trontor do fundo do coração. — É a nave Return III. Parece que voltou intacta. Tifflor voltou a tirar os dedos que enfiara nos ouvidos. — Nem por isso o senhor precisaria estourar meus tímpanos, coronel! Mas o senhor tem razão. Envie um raio vetor à nave. O professor Kalup saiu gemendo da poltrona de Tifflor. — Acho que daqui a pouco vai começar. Pelo que sei, é a primeira vez na história que uma nave volta do sistema de Gêmeos pelo mesmo caminho. — É a primeira vez na história do Império Solar — retificou Tifflor, para acrescentar em tom pensativo: Também acho que daqui a pouco poderemos começar. Mas vamos aguardar para ver quais são as novidades que nos traz a tripulação da nave especial. *** A tripulação da Return III estava num estado próximo à euforia. Parecia inebriada de alegria por ter retornado sem incidentes. No meio da alegria nem notou uma coisa que não escapou ao comandante da Return III. Apesar do atraso em relação ao cronograma, o Marechal Solar Julian Tifflor não se

esqueceu de, numa mensagem-cumprimentar, felicitar a tripulação pelo êxito alcançado, tendo chegado a apertar pessoalmente as mãos de todos os oficiais. Para Tifflor isso era perfeitamente natural. Afinal, todas as pessoas que viajavam na nave especial tinham empenhado todas as suas forças e arriscado a vida para evitar que as tripulações de oito mil naves tivessem de fazer sacrifícios desnecessários. Quando os oficiais da nave especial se retiraram da Péricles, a ligação humana que os unia ao “seu” marechal solar tornara-se ainda mais firme e íntima. Mas Tifflor não sabia absolutamente nada do resultado que acabara de conseguir. Seu ato não resultara de um cálculo frio, mas de um traço fundamental de seu caráter, traço este que fazia dele um chefe nato, tal qual Rhodan. Além disso havia outra característica básica. Tratava-se do comandante da Frota que transmitiu as ordens destinadas a oito mil espaçonaves com uma precisão que quase chegava a ser positrônica, sem esquecer nenhum detalhe importante — e que exigiu que todos os comandantes cumprissem suas ordens com uma correção cem por cento. Oito mil espaçonaves começaram a movimentar-se. Quando acabou de transmitir a última ordem, Julian Tifflor permaneceu por uma fração de segundo numa posição dura que não correspondia à sua natureza. Mas logo voltou a descontrair-se. — Pronto! — disse e passou a dirigir-se ao comandante da Péricles: — Coronel, chame os robôs! O professor Kalup balançava nervosamente o corpo. — Está na hora de inventarmos uma coisa que nos permita dispensar o congelamento narcótico. A idéia de que dentro de alguns minutos serei um pedaço de carne congelada completamente inútil não me agrada nem um pouco. — Ah, é? — Tifflor sorriu. — O senhor acha que será mais útil correndo por aí feito um louco? — O senhor é um sádico! — fungou o hiperfísico em tom indignado. — De quem partiu a recomendação de usarmos o caminho direto através do conjunto hexagonal de sóis...? — É claro que fui eu. Será que o senhor acredita... — Kalup soltou uma estrondosa gargalhada. — Deixe para lá, senhor. De fato seria bastante problemático levar oito mil naves pelo caminho correto através do transmissor de Kahalo. Basta que nos aproximemos o bastante para que o sistema de proteção automático do conjunto hexagonal de sóis seja ativado a favor de nossos objetivos. Uma escotilha blindada emitiu um zumbido ao deslizar para o lado. Passos rangeram e cessaram atrás de Kalup. — Pede-se que procure controlar seus movimentos nervosos, senhor — disse uma voz mecânica rouca, saída de um robô-médico. Kalup virou abruptamente a cabeça. Seus olhos pareciam saltar das órbitas ao contemplar o robô. Desta vez foi Tifflor que deu uma estrondosa gargalhada. Uma seringa pressurizada emitiu um chiado. Kalup lançou um olhar de perplexidade para o antebraço. No mesmo instante o corpo caiu silenciosamente para trás. Outros robôs tinham entrado na sala de comando atrás dos três robôs-médicos. Assumiram sua posição ao lado de Tifflor e Trontor.

Estes robôs pilotariam a nave durante a passagem pelo transmissor, até que os humanos despertassem. Por enquanto estavam à espera. Julian Tifflor e o Coronel Haile Trontor concentraram-se nas telas e nos rastreadores. O grupo de naves entrou em formação. De repente parecia menos disforme que antes. Notava-se uma disposição matematicamente exata. O primeiro grupo penetrou na concentração energética chamejante do transmissor solar, dirigida por um raio energético vermelho-alaranjado. Os sóis irromperam em chamas, dando a impressão de que queriam transformar-se numa estrela nova. Uma coluna de números apagou-se no console de comunicação da Péricles. O segundo grupo foi atraído por forças tremendas. As naves seriam incapazes de resistir ao raio vermelho-alaranjado, mesmo que utilizassem toda a potência de seus jatos-propulsores. Energias mais poderosas que aquelas de que os gigantes do espaço podiam dispor estavam em ação. A segunda coluna de números apagou-se. A terceira... a trigésima... a tricentésima... Julian Tifflor sentiu o chiado da seringa pressurizada. Enquanto o corpo começava a ficar duro e dormente, seus olhos perceberam o fogo vermelho-alaranjado que subitamente envolveu a Péricles. No mesmo instante seus olhos cobriram-se de gelo. O sistema de climatização insuflou lufadas de ar polar na sala de comando. *** A sensação de, ao despertar, ser cumprimentado pelo rugido uniforme dos geradores, era infinitamente tranqüilizadora. — Está tudo em ordem, senhor — disse o robô-médico e deu um passo para o lado. Julian Tifflor mostrou um sorriso forçado. Seus músculos ainda não obedeciam com a rapidez costumeira. E os olhos captavam o quadro projetado nas telas da galeria panorâmica como se estivessem envoltos numa névoa. Mas a visão era suficiente. Dois monstruosos sóis amarelos brilhavam no céu em que não havia outras estrelas. Entre eles fervilhava o núcleo energético que formava o terminal do transmissor. Até parecia um inferno atômico. Mãos de fantasmas pareciam expelir grandes esferas metálicas desse inferno, esferas estas que lançavam reflexos fantasmagóricos do fogo em cujo meio materializavam e saíam correndo sobre lanças de fogo atrás da Péricles. Tifflor contou vinte e quatro supercouraçados, e outros gigantes iam aparecendo ininterruptamente. O marechal solar virou a cabeça para o console de comunicação. Depois disso deu a ordem final de ocupação e bloqueio do sistema de Gêmeos... *** Todos os tripulantes de oito mil espaçonaves despertaram para uma nova vida. A sala de comando da Péricles também estava novamente com a guarnição completa. Para garantir o cumprimento da tarefa que cabia à unidade como navecapitânia do grupo, principalmente os postos de observação, os sistemas de rastreamento e a sala de rádio estavam com a guarnição duplicada. O Marechal Solar Tifflor acabara de retirar-se para a mesa dos mapas. O Coronel Haile Trontor e seus oficiais voltaram a ser os únicos responsáveis pela direção do supercouraçado. Tifflor exercia as funções de comandante supremo de toda a Frota, o professor Amo Kalup era seu assessor técnico e os seis cibernéticos do estado-maior

cuidavam do processamento das informações que chegavam e determinavam os lances táticos e estratégicos com o auxílio do potente computador positrônico de comando. Mas as decisões cabiam única e exclusivamente a Tifflor. O rugido e o estrondo dos reatores energéticos enchia a Péricles. A nave desenvolvia metade da velocidade da luz e atravessava o sistema cercada por mais de quatrocentas unidades, que juntamente com ela formavam o grupo de invasão número IV. O transmissor solar continuava a expelir uma nave atrás da outra. Mas as primeiras naves já estavam pousando. — Posto de observação colocado em Septimo e devidamente protegido, senhor — informou um dos cibernéticos. — Obrigado! — Tifflor acenou com a cabeça. Por um instante tentou imaginar as condições reinantes em Septimo, um supergigante com uma gravitação de 59 gravos. Não conseguiu evitar um ligeiro calafrio. Nenhum dos homens destacados para servir em Septimo merecia ser invejado. Era bem verdade que os homens que guarneciam o posto de observação colocado em Septimo só tinham um inimigo: a natureza. Em outros lugares não seria assim. — Entre em contato com o grupo II e pergunte se encontrou resistência! A tarefa do grupo de invasão II consistia em pousar em Quarta, um planeta semelhante à Terra, pertencente ao sistema de Gêmeos e, numa ação relâmpago, cercar a supercidade de Bigtown com campos energéticos. Tratava-se de uma gigantesca colônia penal destinada a criminosos vindos da nebulosa de Andrômeda, que tinha de ser isolada de qualquer maneira, para evitar surpresas desagradáveis. Naquele lugar o Administrador-Geral encontrara alguém que por pouco não o derrotara. Ninguém sabia se o drung realmente era o ser vivo mais perigoso de Quarta — e o mesmo seria capaz de, sozinho, causar problemas gravíssimos a uma Frota de oito mil naves. — O grupo II pousou no planeta segundo o plano, senhor — disse a informação. — A resistência foi quebrada com raios narcotizantes. Os projetores dos campos energéticos já estão funcionando com quarenta por cento de sua capacidade. — E as naves de transporte? — perguntou Tifflor. — Estão sendo descarregadas, senhor. Por enquanto não houve nenhuma baixa. — Obrigado. Entre em contato com Sexta. Dali a trinta segundos foram recebidas as informações sobre o grupo de invasão número III. O mesmo acabara de ocupar o velhíssimo mundo seco chamado Sexta — um planeta com uma gravitação de 195 gravos — sem encontrar qualquer resistência. Comandos de robôs já estavam perfurando as primeiras galerias nas quais seriam instalados os abrigos. Além disso tinham iniciado a construção de seis portos espaciais, juntamente com as posições de defesa. — Está dando tudo muito certo — disse Tifflor. — Para meu gosto está dando certo demais — esbravejou o professor Kalup. — Afinal, Gêmeos é um elo muito importante na corrente transmissora transgaláctica. Não consigo imaginar que os senhores da galáxia permaneçam inativos diante da invasão que estamos realizando. — Não estão mesmo — disse Tifflor. Lembrou-se do relatório do Coronel Kraysch, comandante do couraçado Mohikan, que tinha reencontrado o planeta Kahalo com seu conjunto hexagonal de pirâmides e de repente se defrontara com vinte das temíveis naves-lápis negras, uma das quais há menos de seis meses tinha destruído, no interior do sistema de Gêmeos, uma gigantesca nave espacial dos pos-bis, para ser derrotada pela Crest depois de uma batalha difícil. Foi este um dos motivos por que um número tão

elevado de espaçonaves em relação à magnitude da tarefa foi utilizada para realizar a ocupação do sistema de Gêmeos. — Kahalo está sob nosso controle! — disse Tifflor em tom obstinado. — Com isso as naves-lápis já não têm possibilidade de aparecer de surpresa no sistema de Gêmeos. Para fazer isso, teriam de reconquistar Kahalo. O professor Kalup deu uma risada; parecia zangado. — Ninguém melhor que eu para saber disso, meu caro. Acontece que ainda não desvendamos todos os mistérios de Kahalo, e me sentirei inseguro enquanto não fizermos isso. — Não espero mesmo que o senhor se tome leviano — respondeu Tifflor em tom sarcástico. — Certamente ainda teremos pela frente milhares de surpresas desagradáveis vindas dos senhores da galáxia. Por que não damos passos relativamente pequenos? Interrompeu abruptamente a palestra quando o sinal de outra notícia se acendeu na tela do intercomunicador. — Pois então! — disse. — Finalmente podemos tirar as passas do bolo. — Virou a cabeça para o aparelho de intercomunicação que mantinha contato permanente com o grupo de invasão número IV. — Tifflor falando. Operação Quinta terá início dentro de trinta segundos, conforme o plano. Aguardo confirmações constantes sobre todos os detalhes dos comandantes do grupo IV. O cronograma terá de ser mantido exatamente, sejam quais forem as circunstâncias. Fim. Olhou para a galeria panorâmica. De repente as telas movimentaram-se. Mas era apenas uma ilusão ótica. Na verdade naquele momento o grupo de naves do grupo IV começou a movimentar-se repentinamente em direção a Quinta. Em toda parte surgiam fenômenos luminosos nas protuberâncias em que estavam instalados os propulsores. O rugido no interior da Péricles subiu a um nível infernal. Quinta era o coração do transmissor de Gêmeos. Era onde ficava o centro de comando, com o qual o transmissor podia ser ajustado para o receptor desejado. A tarefa do grupo de invasão número IV consistia em, numa operação relâmpago, ocupar e proteger o centro de comando, de tal forma que as unidades geradoras e conversoras que ocupavam até mesmo as entranhas do planeta não pudessem ser avariadas durante os combates. Dali a quinze minutos o disco que representava o mundo aquático chamado Quinta preencheu a tela frontal da sala de comando. Com a mudança de rota, os jatospropulsores instalados na protuberância circular fizeram estremecer a nave. As massas aquáticas foram deslizando rapidamente embaixo da Péricles. O único continente do planeta aproximou-se. Trilhas de fogo atravessaram a atmosfera. Mas não se tratava dos rastros de mortíferos tiros energéticos; eram os comandos avançados que estavam penetrando na atmosfera. Caças e jatos espaciais saídos das naves espalharam-se aos milhares sobre o continente, preparados para romper qualquer resistência com seu fogo concentrado. Mas por enquanto tudo permanecia em silêncio. No entanto, Tifflor sabia que a situação poderia mudar rapidamente. Os robôs inimigos destinados à proteção do centro gerador e da cúpula de regulagem certamente continuavam estacionados em Quinta. Era altamente improvável que todos eles tivessem sido postos fora de ação durante as operações anteriores da Crest II e da Androtest I.

Realmente, as primeiras notícias não demoraram a chegar. Os robôs de guerra terranos, que há alguns minutos choviam ininterruptamente sobre a superfície do planeta, anunciaram os primeiros contatos com o inimigo. Mas logo conseguiram livrar-se dos mesmos. Tifflor voltou a concentrar-se exclusivamente na operação de pouso da Péricles. Os campos defensivos acabavam de iluminar-se. O supercouraçado penetrou na atmosfera, usando os jatos-propulsores na frenagem. Uma ampliação setorial mostrou uma campânula de material transparente. Tifflor sabia que se tratava da estação de regulagem. Espantou-se com o tamanho da mesma. A campânula tinha somente cinqüenta metros de diâmetro e setenta de altura. No entanto, abrigava os comandos com os quais se podia controlar o gigantesco transmissor solar do sistema de Gêmeos. A Péricles pousou nas proximidades da estação de regulagem, juntamente com cento e vinte unidades pesadas e superpesadas. No mesmo instante divisões de robôs choveram no interior do anel formado pelas naves. As placas luminosas instaladas nas paredes da sala de comando anunciaram a abertura das eclusas. Tifflor colocou o cinto com dois coldres. — Vamos, professor! Chame sua gente. Vamos resolver quanto antes a tarefa mais importante. Tifflor e o professor Kalup saíram num carro voador. Voaram para dentro das nuvens de pó levantadas com o pouso das naves. Constantemente grupos de robôs cruzavam seu caminho. Plataformas antigravitacionais de dimensões formidáveis estavam transportando os primeiros equipamentos aos locais de trabalho. De vez em quando ouvia-se o rugido das armas energéticas ou o estrondo provocado pelas explosões atômicas, mas os grupos de robôs já davam início à construção de fortes planetários. Canhões conversores eram colocados em posição e os maquinismos queimavam galerias profundas na superfície do planeta. O único continente do planeta Quinta fervilhava de trabalho. Julian Tifflor olhou para o relógio. — As primeiras mil naves transportadoras descarregadas já deveriam iniciar a viagem de regresso — gritou ao ouvido de Kalup para fazer-se entendido no meio do barulho. O professor Kalup acenou com a cabeça. — Naturalmente os cozinheiros das naves já estão afiando as facas, senhor. Não sei o que a festa da vitória tem que ver com os problemas que estamos enfrentando. — Eu disse que as naves de transporte já estão iniciando a viagem de regresso — berrou Tifflor em voz ainda mais alta. — Por que iriam cometer um excesso? Não compreendo... — Chegamos — disse Tifflor enquanto o carro voador pousava bem ao lado do centro de regulagem. Nesse instante os sóis de Gêmeos se iluminaram. — Até que enfim! — gritou Kalup. — As primeiras mil naves transportadoras estão iniciando a viagem de regresso. — É o que estou dizendo o tempo todo — resmungou Tifflor em tom exaltado. — O senhor tem razão — disse o professor Kalup, levantando-se com um suspiro. — Não temos tempo. Vamos dar uma olhada no mecanismo de regulagem. *** Julian Tifflor cambaleou e teria caído se um tenente prestativo não o amparasse.

— Os poços antigravitacionais ainda não estão bem regulados, senhor — disse a título de desculpa. Tifflor fez um gesto de pouco caso e olhou em torno. Encontrava-se no interior de um amplo recinto abobadado, em cujo interior terminava um total de quarenta poços antigravitacionais. Em toda parte viam-se técnicos e robôs ocupados em montar instrumentos de controle e instalar equipamentos auxiliares. Até mesmo para Tifflor tornava-se difícil imaginar que fazia somente quatro horas que neste mesmo lugar tinham sido construídos os primeiros poços. O uivo estridente das sereias o fez levantar a cabeça. Tentou obter informações de algum dos homens que se encontravam no interior da cúpula, mas nenhum deles parecia incomodar-se com o ruído. Tifflor sacudiu a cabeça e aproximou-se do buraco aberto cercado de placas vermelhas de advertência. Tratava-se do terminal de transmissão de passageiros, ainda em construção. De repente o chão balançou levemente. Ouviu-se um rugido surdo: Depois disso vagas de um uivo infernal passaram por cima da construção abobadada. Tifflor encostou o transmissor de pulso à boca. — Tifflor falando. Alguma novidade, Coronel Trontor? — Nada de especial, senhor — respondeu a voz estrondosa do epsalense. — Cerca de duzentos robôs voadores inimigos tentaram um ataque de surpresa à área que circunda o centro de regulagem. Foram destruídos por seis grupos de caças, antes que pudessem aproximar-se das defesas de superfície. — As naves de transporte já foram descarregadas? — Foram descarregadas e iniciaram a viagem de regresso, senhor. A ligação está funcionando muito bem. Tomara que não seja perturbada por controle remoto. — Quanto a isso não se preocupe. — Tifflor deu uma risada petulante. — O professor Kalup já descobriu e interrompeu os respectivos cabos e condutores. O transmissor está sendo controlado exclusivamente por nós. Coronel, mande decolar a Frota descarregada. Seguiu-se um momento de silêncio. Finalmente o Coronel Trontor perguntou: — Que transmissor será usado, senhor? Tifflor sorriu. — Certamente não será o transmissor solar, coronel. Já não se lembra de que me encontro num edifício destinado a transmissores estratégicos. — Sei, sim senhor. Mas não é possível que já esteja pronto... — Para os técnicos terranos a rapidez não se confunde com a bruxaria, coronel. Pelo menos os transmissores ligados à campânula em que me encontro estão prontos. Mande ativar o terminal receptor da Péricles. “Pois é”, pensou, enquanto se dirigia ao setor do pavilhão destinado aos transmissores. “Estes homens já conseguiram uma coisa incrível. Ocupar e proteger um sistema solar no espaço de doze horas, e isso com todos os recursos técnicos.” — O transmissor está preparado? — perguntou, dirigindo-se ao oficial técnico que se encontrava junto ao quadro de controle. O homem ficou em posição de sentido. — Sim senhor. Mas a ligação com a Péricles ainda não foi testada... — O senhor não confia no seu trabalho. — Senhor, os transmissores estão preparados, embora os revestimentos ainda não tenham sido colocados.

O oficial ficou vermelho. Não se sabia se era por estar embaraçado ou por alegrar-se com a confiança que o marechal solar depositava em seu trabalho. De qualquer maneira executou alguns movimentos seguros para ativar o transmissor e ajustar o mesmo para a estação receptora instalada na Péricles. Dentro de alguns segundos Tifflor saiu do terminal receptor instalado no supercouraçado, que se abriu à sua frente, e caminhou os poucos metros que o separavam da sala de comando. Ouviu com a maior calma o relato dos cibernéticos do estado-maior. A supercidade de Bigtown, situada no planeta Quarta, tinha sido cercada sem que a Frota sofresse nenhuma perda e fora colocada sob um conjunto impenetrável de campos energéticos. Alguns dos seres estranhos que habitavam a cidade tentaram sair, mas foram rechaçados com armas narcotizantes. Entre eles também não houve mortos. Tifflor não tinha a intenção de mandar ocupar a cidade. Seria muito difícil e complicado regular sem violência as condições reinantes num núcleo de proporções quase continentais, onde viviam milhares de raças inteligentes, que além de tudo eram descendentes de criminosos deportados e haviam erigido o crime numa lei invariavelmente observada. Por enquanto teriam de contentar-se com o isolamento da cidade. Tifflor também ficou sabendo que a Frota fora dividida. Grande parte das cinco mil naves estava penetrando no espaço cósmico conforme fora planejado, a fim de proteger o sistema de Gêmeos de um eventual ataque vindo de fora. A área em torno do transmissor propriamente dito foi cuidadosamente bloqueada. Quem quer que tentasse um ataque externo ou interno teria uma surpresa desagradável. Julian Tifflor acabara de dar suas instruções e colocar-se ao lado da poltrona ocupada por Haile Trontor, quando foi anunciado o regresso da última nave de transporte. Dali a dez minutos apareceram os primeiros grupos das naves de transporte recarregadas, trazendo novas peças destinadas à construção dos depósitos de mantimentos e armamentos. — Acho que o senhor já merece uma pausa — disse Tifflor com um sorriso, dirigindo-se ao robusto epsalense. — O quartel-general de Quinta já foi instalado, e as ordens de Rhodan foram integralmente cumpridas. — Muito obrigado, senhor — rugiu a voz de Trontor. — Acontece que o senhor está de pé há tanto tempo quanto eu, e eu suporto mais que o senhor. Além disso falta cumprir um item do programa. Tifflor confirmou com um gesto. — Já sei. A Androtest II deverá chegar dentro de vinte minutos... Soltou um suspiro ligeiro. No íntimo invejava os cinqüenta homens que viajavam na nave especial. Tinha de ficar ali, enquanto esses homens dentro em breve estariam à frente de Perry Rhodan. A não ser que houvesse algum imprevisto...

2 O robô CKSP-0001 mantinha-se imóvel à frente do comando geral. Exercia as funções de comandante da Androtest II enquanto a tripulação orgânica permanecia em estado de morte clínica. O fato de a nave de 1.200 metros de comprimento por 300 de diâmetro estar envolta pela torrente de energia trêmula de um gigantesco transmissor solar não o deixava nem um pouco abalado. Também não se abalou com a tormenta gravitacional que rugia fora do campo defensivo. Mas nem por isso se podia dizer que CKSP-0001 tivesse sido desativado. Pelo contrário! Nenhum detalhe dos quadros projetados nas telas da galeria panorâmica escapava às suas células oculares que brilhavam numa cintilância vermelha, e nenhuma das inúmeras indicações dos instrumentos de controle deixaria de ser notada por um segundo que fosse. Os setores perceptivos acústicos e eletromagnéticos também tinham sido ativados no grau mais elevado. Os ruídos e as ondas eram recebidos e analisados ininterruptamente. Mas por enquanto era só isso. O robô CKSP-0001 só entraria em ação quando o sistema estacionário de pilotagem automática não conseguisse controlar mais a situação. Além dele outros trinta robôs altamente especializados mantinham-se vigilantes. Houve um forte clique, e a cabeça metálica de CKSP-0001 virou-se abruptamente. Parte de seu dispositivo positrônico fizera a classificação do ruído e detectara nele um instrumento estranho, que não pertencia à nave. Outra parte do dispositivo positrônico registrou um movimento. Tratava-se de um movimento que não fora provocado por qualquer parte da nave, nem por um dos membros de sua tripulação orgânica. Além disso a tripulação se encontrava em estado de congelamento narcótico. Em virtude de sua programação, CKSP-0001 costumava manifestar reações alérgicas diante de tal tipo de percepção. Um alarme imperceptível ao ouvido humano ressoou pela nave, espalhado pelo transmissor embutido no robô. Estranhos na nave! *** O alarme, as percepções e os movimentos no interior da nave foram interrompidos por um tempo indeterminável. Isso aconteceu quando a Androtest II se precipitou no núcleo energético do transmissor solar galatocêntrico e deixou de constituir uma parte material do Universo. Os relógios ainda indicavam exatamente o mesmo tempo, quando a 900.000 anosluz de distância o núcleo energético comum de dois sóis voltou a expelir a Androtest II. O fenômeno provocou um suspiro de alívio no interior de outra espaçonave. Tudo correra segundo o plano. Era ao menos o que parecia. CKSP-0001 não esqueceu o alarme. Os indivíduos mecânicos da mesma espécie que lhe estavam subordinados prosseguiram nas reações provocadas pela notícia alarmante, como se não houvesse um trajeto de 900.000 anos-luz entre a desmaterialização e a rematerialização.

No entanto, embora nada escapasse, nem devesse ou pudesse escapar aos sentidos infalíveis dos robôs, a causa do alarme já deixara de existir. Não se registrou nenhum ruído estranho, nenhum movimento extraordinário. E como CKSP-0001 não tinha percebido outra coisa, o robô comandante entregou-se aos cuidados de duas unidades cibernéticas de reparos. CKSP-0002 passou a ocupar seu lugar. *** Véus coloridos juntavam-se em desenhos que cambiavam rapidamente, voltavam a desmanchar-se, estavam ora próximos, ora distantes. Uma queda d’água ribombava em alguma parte. Uma cascata de melodias cintilantes espalhava sentimentos impregnados de sonhos. Arcos-íris brilhantes estendiam-se entre os tons, como pontes graciosas feitas de teias de aranha. Manchas negras desfizeram-se numa fresta. Um tom triste subia estourando num fogo de artifício feito de bolhas de sabão verdes. Era a velha canção. O pensamento surgiu de repente, penetrante, doloroso, retumbante, martelante, sacudindo violentamente as figuras criadas pela fantasia, rompendo a última muralha. Todas as cores desbotaram, transformando-se numa mancha negra: no meio dela, dois sóis avermelhados. O preto vazio — universos em chamas. Universos em chamas! Chamas... incandescência... calor... fogo... morte! Um bálsamo pulsando lentamente, o estrondo das marteladas do coração, sensações, percepções auditivas... Vida! Ornar Hawk ergueu-se soltando um grito estridente. Ali estava de volta, a escuridão. Os pontos avermelhados brilhavam no nada. De repente a claridade se espalhou. A claridade suave e benfazeja reinante num camarote de espaçonave. O robô-médico estava de pé ao lado da cama. Segurava a pistola de injeção com a mão de aço, enquanto as células oculares vermelhas se fixavam no ser humano. — O que... houve? — as palavras saíram da boca de Hawk com uma lentidão martirizante. — Faça o favor de recostar-se, senhor. — O robô não saiu do lugar. — Parece que o senhor não sofreu nada de grave, mas peço-lhe que aguarde até que o médico-chefe acorde. Omar Hawk, um indivíduo adaptado ao ambiente que possuía uma constituição robusta, tenente do corpo especial de patrulhamento, esforçou-se em vão para conceber uma idéia clara. Não conseguiu. O entendimento foi surgindo aos poucos em seu espírito. A raiva sacudiu-o, fazendo com que acordasse de vez. De repente soube o que tinha acontecido. Acabara de atravessar — pela segunda vez — o transmissor solar galatocêntrico. Da mesma forma que os outros tripulantes orgânicos, fora colocado em estado de congelamento narcótico — e provavelmente, tal qual da primeira vez, fora o primeiro a acordar. Por que esse robô queria que ele aguardasse até que o médico-chefe acordasse? — Talvez você queira justificar o desejo estranho que acaba de manifestar — respondeu em tom agressivo. — Como vê, minha reação à injeção estimulante foi excelente. Sinto-me perfeitamente bem.

— Não posso deixar de concordar com o senhor — disse o robô-médico, falando muito devagar, como quem se dirige a uma criança — no que diz respeito ao fato de ter acordado e de aparentemente estar em perfeitas condições, senhor. Infelizmente isso não aconteceu em virtude de uma injeção estimulante. O senhor acordou exatamente três nanosegundos antes da injeção planejada. Esta ainda não foi realizada. Sem dúvida o fato de não ter oportunidade de olhar num espelho ajudou Hawk a conservar a autoconfiança. Os músculos da face só se descontraíram paulatinamente. Finalmente irrompeu numa estrondosa gargalhada. Não deu a menor atenção às objeções do robô. Levantou e colocou seu equipamento. Lançou um olhar para Sherlock, seu okrill. O animal ainda estava dormindo. — Senhor, eu lhe peço... — principiou o robô. O mesmo foi interrompido abruptamente. — E eu lhe peço que fique com a boca calada. Parece que a notícia de que sou um indivíduo adaptado ao ambiente vindo de Oxtorne ainda não se espalhou entre os robôsmédicos. Da primeira vez vocês me injetaram uma dose muito pequena para o congelamento narcótico, fazendo com que meu subconsciente não fosse desativado. Até parece que desta vez a dose foi menor. Talvez tenha ficado inconsciente, mas não fui colocado em estado de morte clínica, pois nesse caso não poderia ter despertado sem a injeção estimulante. — Desta vez o senhor recebeu uma dose dupla, senhor — respondeu o robô-médico sem abalar-se. — Além disso a temperatura no interior de seu camarote era de menos cento e dez graus centígrados. É completamente impossível que depois disso um ser orgânico acorde sem injeção. Hawk não pôde deixar de sorrir ao notar o contra-senso existente na argumentação do robô. — Se quiser, continue a acreditar que ainda estou mergulhado num sono profundo. Sei que estou bem acordado e que minha saúde é perfeita, e é quanto basta. Passou pelo robô que se encontrava em estado de perplexidade e ficou alegre ao ouvir o zumbido dos comandos eletrônicos. Ao que parecia, os clichês introduzidos na programação do robô eram incapazes de digerir os fatos. No interior da nave reinava o silêncio. Só se ouvia um rugido distante produzido pelo trabalho uniforme dos geradores que alimentavam o sistema de propulsão do primeiro estágio. Tal qual sua antecessora, a Androtest I, a nave Androtest II era um veículo espacial de quatro estágios, com 1.200 metros de comprimento e 300 de diâmetro. Cada estágio tinha o mesmo diâmetro e outro tanto de largura e estava equipado com um sistema completo de propulsão linear com conversores kalupianos de compensação e todos os outros acessórios. O raio de ação de cada estágio era de 250.000 anos-luz e o dos quatro estágios chegava a um milhão de anos-luz. Como os propulsores das espaçonaves comuns não possuíam raio de ação superior a 600.000 anos-luz, os construtores da Androtest II tinham recorrido ao sistema de propulsão de estágio múltiplo, usado nos primeiros ensaios da astronáutica. O Tenente Omar Hawk deslizou sobre a esteira transportadora que zumbia levemente, deixando-se transportar para a pesada escotilha blindada da sala de comando. Não encontrou uma única criatura viva. Parecia que os robôs-médicos ainda estavam empenhados em acordar os seres orgânicos confiados à sua proteção. Hawk perguntou-se por que motivo justamente ele acordara independentemente da injeção específica. Por mais que refletisse, sempre chegava à conclusão de que na

verdade não chegara a ficar em estado de congelamento narcótico. Era bem verdade que Oxtorne, seu planeta de origem, era um mundo dado a extremos, cujas condições climáticas não raro mudavam rapidamente de oitenta graus positivos para oitenta graus negativos, produzindo os estados intermediários e as seqüelas ligadas à mudança, mas até então nem mesmo um oxtornense fora capaz de agüentar temperaturas de cento e dez graus negativos, a não ser que usasse um traje com calefação. Omar Hawk interrompeu suas reflexões num estado de acentuada insatisfação. Era tal qual na primeira viagem. A Androtest II parecia uma nave-esquife. Mas desta vez o quadro projetado nas telas panorâmicas era diferente, bem diferente. Os dois sóis amarelos do sistema de Gêmeos também estavam pulsando, mas era uma pulsação muito mais intensa e assustadora que a que tinha visto a bordo da Androtest I. Além disso não havia o menor indício de que o núcleo energético do transmissor de Gêmeos iria apagar-se. Pelo contrário. Naquele exato momento inflou como um balão superaquecido. De repente um grupo desordenado de espaçonaves saiu do mesmo. Omar Hawk reconheceu as gigantescas espaçonaves de transporte com as quais já tinha travado conhecimento em Opposite. Isto o trouxe de volta definitivamente para o presente. Hawk passou pelo comandante, Coronel Pawel Kotranow, que permanecia esticado no leito anatômico; aproximou-se das telas dos rastreadores e modificou a regulagem das mesmas. Dali a instantes surgiram inúmeros pontos verdes, que indicavam a posição das naves de guerra do Império Solar que cercavam o núcleo energético do transmissor de Gêmeos feito uma enorme concha. Havia grupos esparsos de espaçonaves mais para o lado do planeta, enquanto os ecos de rastreadores caminhavam constantemente entre o núcleo energético e o anel planetário. Eram as naves de transporte que levavam equipamentos e mantimentos para as bases recém-instaladas e regressavam às pressas. Hawk admirou-se de que nenhuma das naves pertencentes à Frota enviasse uma mensagem para solicitar a identificação da Androtest II, mas logo se lembrou de que por enquanto para a Frota a tripulação da nave ainda não tinha acordado. Além disso o robôcomandante certamente transmitira um sinal em código assim que a nave retornasse ao Universo normal. Virou a cabeça e ficou observando os robôs-médicos. Parecia que os mesmos já tinham aplicado as injeções estimulantes. No momento os robôs permaneciam imóveis ao lado das pessoas confiadas à sua proteção, esperando que as mesmas dessem os primeiros sinais de vida. Hawk pôs os olhos no robô-comandante. Já pretendia virar a cabeça, quando viu o letreiro no peito do robô: CKSP-0002! Hawk esfregou os olhos, mas o letreiro era este mesmo. Bateu com o dedo estendido no peito do robô. — Ei, meu velho! Que houve? Por que está aqui, no lugar do verdadeiro comandante-robô? O robô ficou em posição de sentido, conforme prescrevia sua programação. — Senhor! Informo que CKSP-0001 submeteu-se ao tratamento por parte das unidades de reparos. Motivo. Uma falha provável de seus setores de percepção. Segundo as instruções em vigor, assumi o comando na qualidade de unidade imediatamente

inferior em hierarquia e entregarei o mesmo ao comandante orgânico ou ao substituto do mesmo, assim que este despertar. Omar Hawk ergueu as sobrancelhas espessas, que formavam o único revestimento capilar de seu crânio completamente liso. — Como ocorreu a falha do setor de percepção? — Senhor, pouco antes da entrada no transmissor solar CKSP-0001 deu o alarme e comunicou que havia alguma coisa estranha na nave. Afirmou que notou um movimento indefinível e ouviu um ruído estranho à nave. Acontece que a busca realizada imediatamente após a saída do transmissor solar não revelou o menor indício da existência de qualquer objeto não pertencente à nave, pelo que CKSP-0001 concluiu que houve uma falha de seu setor de percepção. Hawk fitou o robô por um instante como se estivesse olhando através do mesmo. Depois virou-se sobre os calcanhares e retirou-se da sala de comando. Ao que tudo indicava, realmente houvera uma falha de CKSP-0001, mas Hawk resolveu fazer uma verificação. Era a única pessoa a bordo da Androtest II que possuía os meios — ou melhor, o meio — para isso. *** O Coronel Pawel Kotranow despertou sem complicações. Depois de um ligeiro exame, seu robô-médico declarou que estava em bom estado de saúde. O congelamento narcótico não produzira nenhuma seqüela prejudicial. Antes de mais nada, o comandante olhou para as telas panorâmicas e para os rastreadores. Respirou aliviado. Tudo parecia ter dado certo. A Androtest II encontravase no sistema de Gêmeos. Naquele momento estava atravessando a segunda linha de bloqueio das naves de guerra solares. Estava na hora de apresentar-se ao Marechal Solar Tifflor. Mas antes disso precisava comunicar-se com o comandante oficial. Sem virar a cabeça, disse: — CKSP-0001, peço um relatório sobre ocorrências extraordinárias e o estado da nave. Atrás dele o robô bateu os calcanhares. — Senhor! Aqui fala CKSP-0002. CKSP-0001 teve de submeter-se a tratamento por parte de unidades cibernéticas de reparos, já que é altamente provável que seus setores de percepção tenham falhado. Só agora o Coronel Kotranow resolveu olhar para o robô. — Por favor. Quero um relatório minucioso. O robô CKSP-0002 apresentou um relato dos acontecimentos que tinham se verificado na sala de comando, antes e depois da passagem pelo transmissor, e expôs a conclusão que CKSP-0001 tinha tirado de tudo isso. Antes que concluísse seu relatório, MLP-II começou a zumbir. Tratava-se do novo computador positrônico matelógico da Androtest II, que fora instalado na mesma para substituir o computador positrônico ML que por ocasião do vôo da Androtest I fora transferido para a Crest II. Kotranow olhou com uma expressão de contrariedade para Folger Tashit, matelógico e cientista-chefe da expedição. Embora mal acabasse de despertar, Tashit estava sentado à frente de seu adorado computador positrônico ML, fazendo seus cálculos.

Kotranow esperou que CKSP-0002 concluísse seu relato e exclamou em tom sarcástico: — Tashit, bem que o senhor poderia ter prestado atenção ao que o robô estava dizendo e pensado um pouco. Folger Tashit nem reagiu às palavras do comandante. Só virou a cabeça quando o computador positrônico encerrou o trabalho, expelindo o cartão gravado com símbolos da fenda de saída. Havia um sorriso delicado em seu rosto. — O senhor deveria abster-se de tirar conclusões apressadas. Pensei no assunto. E não pensei sozinho, mas juntamente com o computador positrônico. Como vê, havia pelo menos dois cérebros funcionando. Kotranow quase perdeu o fôlego ao compreender o sentido dúbio das palavras de Tashit. Este não esperou que o comandante falasse. — Segundo o computador positrônico ML, a probabilidade de uma falha completa dos setores de percepção de um robô do tipo de CKSP-0001 é de um para oito bilhões e meio. Nesta altura seria conveniente que o senhor tentasse pensar...! — Que coisa! — disse Kotranow, referindo-se ao tom usado por Tashit. — Não é mesmo, senhor? — respondeu o matelógico sem abalar-se. — Recomendo encarecidamente que o senhor solicite um diagnóstico preciso às unidades de reparos. A raiva de Kotranow desvaneceu-se quando lhe veio uma idéia segundo a qual havia outra possibilidade. Um sorriso malicioso apareceu em seu rosto. — Muito obrigado pelo trabalho intelectual realizado por seu computador positrônico, Tashit. Seguirei sua recomendação. Mas antes disso quero verificar uma possibilidade que, segundo parece, foi negligenciada pelo computador positrônico, apesar de seu nome pomposo. Folger Tashit passou a mão pelo cabelo castanho ondulado. — Que possibilidade é essa, senhor? O Coronel Kotranow não deu uma resposta direta. Dirigiu-se ao seu imediato, o Major Hattinger, que também acabara de despertar. — Hattinger, faça uma ligação com o camarote deste indivíduo vindo de um mundo dado a extremos. Tomara que já esteja acordado. — Ora! — Esta palavra foi proferida, em tom de decepção, por Folger Tashit. O sorriso alegre de Kotranow passou a cobrir todo o rosto. — O tenente não responde, senhor — gritou o Major Hattinger. — O quê? — Kotranow parecia decepcionado. A escotilha abriu-se ruidosamente. — Pretendia mandar chamar-me? — perguntou Omar Hawk quando ainda se encontrava na entrada. — Sinto muito. Já estou acordado há bastante tempo. É a segunda vez que estou aqui. — Pois então! — disse Kotranow. — Quer dizer que já está acordado há bastante tempo. Num indivíduo com a sua constituição não era mesmo de esperar outra coisa. Vejo que por acaso trouxe seu okrill... — Não foi por acaso, senhor. O robô CKSP-0002 informou-me sobre uma ocorrência bastante estranha e pensei que Sherlock pudesse procurar uma pista no local. Folger Tashit deu uma risada sarcástica. A veia na testa de Kotranow inchou de raiva. — Já que está aqui, procure! — chiou para Hawk. — Ou será que quer um convite especial?

Hawk colocou a mão aberta sobre o focinho largo do okrill. Da mesma forma que ele mesmo, o animal vinha do planeta Oxtorne. Por enquanto era o único exemplar de sua espécie que tinha sido domado. O animal possuía um valor inestimável para o corpo de patrulhamento especial ao qual pertencia o Tenente Omar Hawk. Os okrills eram rastreadores superinfravermelhos e possuíam a capacidade de, com suas faculdades especiais, detectar até mesmo os acontecimentos e vestígios do passado que não eram acusados nem mesmo pelos infradetectores mais aperfeiçoados. Omar Hawk era o único que sabia lidar com o okrill. Sob a influência do toque de sua mão, a montanha de músculos de um metro de comprimento e meio metro de altura, em forma de sapo, entesou-se. Os olhos redondos e sem pupilas examinaram o interior da sala de comando com uma expressão de indiferença. — Procure, Sherlock! — chiou Hawk. O okrill estalou a língua com tamanha força que Kotranow estremeceu. Depois passou a martelar o piso de metal plastificado da sala de comando com os oito pés que terminavam em garra. Seu corpo aparentemente pesado começou a girar desajeitadamente. Omar Hawk ficou com os olhos fechados. As percepções do okrill eram transmitidas diretamente ao centro sensorial de seu cérebro, por meio de dois amplificadores de vibrações cerebrais. Era o único meio que permitia a transmissão de informações, já que Sherlock, tal qual todos os okrills, não possuía um grau de inteligência superior ao de um cão pastor terrano bem treinado. O Coronel Kotranow observava tudo com muita atenção. Mas antes que Hawk conseguisse um resultado, a sala de rádio da Androtest II transmitiu uma ligação urgente para a sala de comando. O Marechal Solar Tifflor queria saber por que o comandante da nave especial ainda não se apresentara. Kotranow sentiu-se embaraçado, mas não mencionou o incidente que se verificara antes da passagem pelo transmissor. Por enquanto não se podia excluir a possibilidade de que CKSP-0001 realmente tivesse dado um alarme falso por causa de um defeito. O Coronel Kotranow era um oficial que só costumava apresentar fatos aos seus superiores. Bem que desta vez deveria ter feito uma exceção... *** Via-se que Omar Hawk não sabia o que fazer. Seu espírito trabalhava quando contemplava, através de seu amplificador de vibrações cerebrais, os quadros irradiados pelo amplificador implantado no cérebro de Sherlock, mas isso acontecia independentemente de seu corpo e sem que este sentisse nada. Já conhecia o fenômeno, mas este sempre tinha algo de assustador e deprimente. As concepções reproduzidas em seu espírito provinham de um espírito diferente, e, mais do que disso, tinham origem num tempo diferente, mais precisamente, no passado. Omar Hawk “viu” a sala de comando da Androtest II, no momento anterior à passagem pelo transmissor. Todos os seres orgânicos estavam em estado de congelamento narcótico, talvez com uma exceção, que não vinha ao caso. Em meio ao silêncio absoluto reinante — os ruídos não podiam ser reconstituídos — um único robô permanecia bem ereto à frente do console de comando, como um fantasma metálico. Era CKSP-0001.

O robô virou abruptamente a cabeça e Hawk estremeceu de forma quase imperceptível. Sem que se desse conta disso, o tenente dirigiu o okrill na direção em que CKSP-0001 acabara de olhar — ou melhor, olhara há quinze minutos, a 900.000 anos-luz dali. Durante alguns segundos os traços infravermelhos gerados nestes quinze minutos se confundiram, mas o ajuste temporal logo funcionou. Hawk viu um setor do chão. Neste setor pequenino parecia haver um objeto em forma de cilindro ou bastão, de dimensões quase microscópicas. No mesmo instante tudo desapareceu: a sala de comando, o chão, a luz o objeto. Só sobrou um débil brilho vermelho. Hawk abriu os olhos e suspirou decepcionado. — Então...? — perguntou o Coronel Kotranow, muito curioso. Hawk sacudiu a cabeça e inclinou-se sobre Sherlock. O okrill mantinha os olhos cerrados. Hawk bateu algumas vezes fortemente com a mão aberta em seu focinho largo. Cada pancada teria sido suficiente para derrubar um homem normal, mas para o okrill era apenas uma carícia. — Procure, Sherlock, procure! O okrill grunhiu em tom de desprezo. Estendeu confortavelmente as pernas, arranhou o chão com as garras afiadas e deitou. Continuou com os olhos fechados. — Sherlock! — berrou Hawk. As coberturas vitrificadas das chapas de revestimento tilintaram. — Sherlock! Está ouvindo? Procure. O okrill foi abrindo a boca de sapo, pondo á mostra a dentadura de tigre. Mas seus dentes pareciam um pouco mais ameaçadores que os de um tigre, pois davam a impressão de serem formados por pontas de lança bem afiadas. Era bem verdade que um homem como Omar Hawk não se impressionaria com isso. O que deixou o tenente assustado foi a língua que ia se desenrolando milímetro apôs milímetro. Por um segundo seu corpo entesou-se. Hawk sabia perfeitamente que a língua do okrill era capaz de desferir choques elétricos que eram absolutamente mortais para o ser humano. Quando Sherlock mostrava a língua desse jeito, ele queria formular uma ameaça. Era como se dissesse: Deixe-me em paz! Mas como era o dono do okrill, Hawk sabia perfeitamente que não poderia deixar-se intimidar, pois nesse caso perderia totalmente o controle sobre Sherlock. Soltou um assobio estridente. O okrill estremeceu. Hawk aproximou-se mais um passo. Voltou a assobiar. O okrill estremeceu de novo. Tinha-se a impressão de que a montanha de músculos envolta numa pele que parecia ser de couro curtido queria enrodilhar-se para formar uma bola disforme. A língua desapareceu e a boca horrível fechou-se. — Muito bem! — disse Hawk. — Ótimo, Sherlock! Ui, Sherlock! Estendeu a mão e estalou a língua. O corpo do animal descontraiu-se. O animal caminhou para perto do dono, desajeitado como um pingüim. Nem parecia que era capaz de tornar-se perigoso a um ser humano. Hawk bateu ruidosamente no focinho do okrill. — Ui, Sherlock, ui! Sherlock levantou as pupilas duras, dirigiu os olhos sem pupilas para Hawk — e começou a espirrar. Hawk cochichou mais uma ordem, que só ele e o okrill eram capazes de entender.

Sherlock foi passando pelo dono e enfiou-se no espaço situado entre a escada que levava à sala de rádio e um aparelho emissor de radiações, cercado por uma camada de ar tremeluzente. Caiu ao chão perto do aparelho, com um baque surdo que fez estremecer a sala. Voltou a espirrar. Omar Hawk virou a cabeça para outro lado. Seu corpo balançava ligeiramente. Passou distraidamente a manga do uniforme pela testa, para enxugar o suor. O Coronel Kotranow fitou-o como se visse um fantasma. — O que houve, Hawk? — perguntou em tom áspero. Hawk fez um grande esforço para controlar-se. Um sorriso forçado apareceu em seus lábios. — A partir de certo momento Sherlock recusou-se a colaborar, senhor. Relatou o que tinha “visto” através dos olhos de Sherlock. — Uma coisa cilíndrica? — repetiu Kotranow em tom de dúvida. — Não conseguiu reconhecer outros detalhes? — Para isso eu precisaria de um microscópio, senhor. — Não tem uma idéia dos motivos por que o okrill recusou a colaboração a partir de determinado instante? — perguntou Ez Hattinger. Hawk sacudiu a cabeça. — Simplesmente fechou os olhos. — Olhou com uma expressão pensativa para o okrill, que dormia junto à aparelhagem aquecida. — Sua rebeldia terminou no instante em que deixei de insistir na execução da ordem de fazer o rastreamento. Para mim é um mistério por que ele se recusou de forma tão obstinada a cumprir esta ordem. Trata-se do primeiro incidente deste tipo, desde que ele me reconhece como dono. — Quer dizer — perguntou em voz baixa Folger Tashit, que estava sentado à frente de seu computador positrônico — que a recusa de cumprir a ordem só diz respeito a este caso específico? Hawk confirmou com um gesto. Kotranow pigarreou. — Está bem! Não vamos dramatizar as coisas sem necessidade. Examinaremos o relatório sobre CKSP-0001, a ser fornecido pelas unidades de reparos, e ficaremos com os olhos abertos. Em minha opinião, no fim veremos que o incidente é totalmente inofensivo. O incidente com CKSP-0001 e a recusa do okrill em cumprir as ordens que lhe tinham sido dadas caiu no esquecimento por algum tempo, quando uma nave auxiliar da Péricles atracou na eclusa principal da Androtest II. O Marechal Solar Tifflor anunciara uma breve visita. Como a nave especial se encontrava na área submetida à soberania terrana, o Coronel Kotranow pôde dar-se ao luxo de dar ordem para que a maior parte da tripulação entrasse em forma na sala dos oficiais. Embora ocupasse apenas o posto de tenente, Omar Hawk era um dos oficiais especialmente designados para fazer parte do estado-maior. O Coronel Kotranow dirigira-se à eclusa principal em companhia do engenheiro-chefe da nave, Major TongJaho, e do psicólogo-chefe, Major Jorg von Eschde. Um aquecedor alimentado com energia atômica foi instalado no teto da sala dos tripulantes, especialmente para Sherlock. O okrill parecia sentir-se muito bem com o calor escaldante que o aparelho irradiava, pois de vez em quando soltava um espirro. Hawk também foi atingido pelo terrível calor, mas como estava habituado às condições climáticas extremamente ásperas de Oxtorne, não se via um pingo de suor em sua testa. O Major Hattinger gemeu e afastou-se um metro de Hawk.

— Que coisa, careca! Este calor infernal ninguém agüenta. Hawk limitou-se a sorrir. Estava ansioso para rever Tifflor. Aquele homem magro, que raciocinava com uma rapidez extraordinária, mas apesar disso estava cheio de bondade humana e que até mesmo no aspecto exterior tanto se parecia com Rhodan, já lhe fora simpático durante o primeiro encontro que tivera com ele, em Opposite. Viu pelo canto dos olhos a tripulação formada. Na verdade, o termo tripulação poderia levar a engano, pois a bordo da Androtest II só havia especialistas e sábios selecionados, bem como homens que a experiência habilitava a resolver qualquer problema. Havia Ire Maclshott, um homem bochechudo que recebera a condecoração mais elevada já conferida a um piloto de destróier espacial do Império Solar; ao lado dele erguia-se a figura alta e esbelta de Gorm Ngudru, preto como ébano, que apesar dos seus trinta e dois anos tinha cabelos prateados. Ngudru era o oficial de artilharia da Androtest II; quem o visse nem desconfiaria de que tinha maxilar e laringe artificial; tratava-se de uma recordação das lutas travadas com as Frotas dos blues. Na fileira de trás sobressaía o rosto de Elmar Kurdson, que parecia uma máscara. Kurdson fora comandante de uma gazela, um tipo de jato espacial, antes que os aconenses aprisionassem sua nave e o prendessem. Conseguira fugir de um acampamento fortemente vigiado dos aconenses e trazer informações importantes ao comando da Frota Solar. Na oportunidade tivera de agüentar seis minutos, preso entre destroços, no hangar de uma nave-correio que ia sendo destruída por explosões sucessivas. Nunca se soube como conseguiu atravessar com a mesma nave-correio, depois de quatro dias, os limites do Império Solar. De qualquer maneira naquela altura os ossos de seu crânio eram de massa plástica orgânica, e a pele do rosto fora reconstituída com plasma artificialmente cultivado. Suas lentes oculares eram outra obra-prima da biotécnica terrana. Até parecia uma ironia do destino que Elmar Kurdson fora investido nas funções de programador-chefe dos robôs da Androtest II. Nem todos os tripulantes tinham sofrido um destino tão cruel, mas sem exceção eram de nível bastante superior à média dos especialistas da Frota, que eram homens extraordinários. A escotilha larga produziu um zumbido ao escorregar para o lado. Hawk virou a cabeça O Major Ez Hattinger caminhou ruidosamente para a frente da tripulação formada e gritou a apresentação. O Marechal Solar Tifflor parecia um tanto desajeitado ao entrar na sala. Quase chegava a parecer tímido entre o robusto Kotranow e Eschde, que irradiava uma intelectualidade fria. Mas esta impressão desapareceu repentinamente quando seus olhos caíram nas pessoas que estavam à sua espera. “Este olhar parece estar fora do tempo”, pensou Hawk, constrangido. “Há nele algo que lembra o isolamento frio de uma esfinge e o intelecto de um velho filósofo.” Mas mudou de opinião quando a figura de Julian Tifflor se entesou. Aos poucos começou a imaginar por que, quando Rhodan foi dado como desaparecido, este homem foi investido no comando supremo. Tifflor retribuiu o cumprimento de Hattinger e da tripulação e seu temperamento logo rompeu o formalismo rígido. — Façam o favor de sentar, senhores! — Fez um gesto convidativo e acomodou-se na cabeceira da mesa comprida. Esperou pacientemente até que todos estivessem sentados. Depois pigarreou e sorriu.

— Permitam que lhes diga que invejo cada um dos senhores. Invejo-os por terem oportunidade de em breve encontrar-se pessoalmente com o Administrador-Geral. Os senhores já tiveram este privilégio quando se dirigiram ao planeta Horror com a Androtest I para levar abastecimentos à expedição de Rhodan. Desta vez a tarefa não é bem a mesma, e isso me faz esquecer um pouco a inveja que sinto. Os senhores levarão Rhodan de volta à nossa galáxia. De repente Tifflor ficou sério. — Quero preveni-los para que não se tornem descuidados pelo simples fato de já terem percorrido o mesmo trajeto. Nunca se esqueçam de que estamos trilhando o caminho de um arrombador que tenta abrir a porta que dá para outra galáxia com uma simples gazua. Já sabemos que os seres que governam Andrômeda, os chamados senhores da galáxia, podem apresentar alguma coisa em matéria de sofisticação técnica de que nós nem desconfiamos. Cada passo que damos na rota invisível pode ser um passo para a desgraça. — É bem verdade — Tifflor voltou a sorrir — que os senhores da galáxia certamente não esperavam encontrar em cada um dos senhores um mestre na arte de resolver problemas aparentemente insolúveis e de tornar possível o impossível. O marechal solar levantou-se. — O milagre da ascensão da Humanidade está encerrado na energia, na coragem, na inteligência e na disposição para o heroísmo cotidiano encontradas em cada indivíduo. Pode parecer um pouco estranho se depois do que acabo de dizer eu lhes recomende que redobrem suas cautelas, mas não queremos heróis mortos; queremos homens vivos. Lembrem-se disso e, caso se encontrem com Rhodan, transmitam-lhe os cumprimentos de seu mundo, de Reginald Bell, de minha pessoa e dos bilhões de estrelas de nossa boa e velha Galáxia. As palavras de Tifflor ainda ressoaram por muito tempo no espírito de Omar Hawk, depois que o marechal solar se retirou da sala dos oficiais. Caso se encontrem com Rhodan. Caso... Será que Tifflor esperava que a expedição não fosse coroada de êxito? Mais tarde, em viagem, quando Omar Hawk teve oportunidade de ler na biblioteca da nave um relatório sobre a expedição para Gom, realizada há muito tempo por Tifflor, e que era conhecida como a expedição desastrosa, ele teve a impressão de poder derivar o pessimismo de Tifflor das experiências colhidas durante essa expedição. Quando percebeu que as palavras de Tifflor encerravam simplesmente a sabedoria de um imortal, já era tarde...

3 Omar Hawk lançou um olhar preocupado para a figura de Kotranow. O comandante da Androtest II estava encolhido em sua poltrona e dava a impressão de estar muito doente. Não parecia ser o homem que iria levar uma nave especial pelo abismo intergaláctico. Von Eschde, que ocupava um dos assentos de emergência, parecia ter a mesma idéia. Encontrava-se numa posição em que só podia ver Kotranow de trás. Hawk levou algum tempo para perceber que o rosto de Kotranow se refletia numa tela de imagem, e que o lugar em que estava von Eschde era o ponto ideal para observar discretamente a imagem do comandante. Hawk perguntou-se qual seria o motivo da atitude estranha de Kotranow. Seria por causa das informações recebidas das unidades cibernéticas de reparos? Seria realmente motivo bastante para ficar contrariado. O relato que tinham apresentado sobre CKSP-0001 era inquietante, talvez mesmo alarmante, a não ser que se quisesse supor que as duas unidades de reparos apresentassem defeitos de funcionamento. Trabalhando independentemente uma da outra, as duas unidades foram uníssonas em informar que CKSP-0001 se encontrava nas melhores condições técnicas possíveis. — Então, careca? Hawk não teve necessidade de levantar os olhos para saber quem acabara de lhe dirigir a palavra. Só havia um homem que tinha o atrevimento de escarnecer de sua cabeça calva e do rosto sem barba. Era Ez Hattinger, o imediato da nave. — Como é? Vamos tomar uma cerveja juntos? Hawk piscou os olhos de surpresa. — Como? O senhor tem permissão de beber em serviço? Hattinger deu uma risada. Apontou com o polegar por cima do ombro. — Acabo de ser revezado, careca. Então, como é? Hawk olhou para o lugar do imediato. O Tenente Tolko Mare acabara de acomodar-se no mesmo. Tratava-se de um latino delicado, de gênio agitado. — Mare...? A vez dele só chegaria daqui a duas horas... Hattinger inclinou-se para a frente. — São ordens de Eschde. Provavelmente ele espera que Mare seja capaz de reanimar nosso velho. Hawk acenou com a cabeça. Estava muito sério. — Está bem; eu vou. — Cochichou uma ordem para seu okrill. Sherlock levantouse com movimentos pesados, estalou a língua e saiu caminhando atrás de seu dono como um buldogue irremediavelmente superalimentado. A sala dos tripulantes estava cheia de nuvens de fumaça azul. Hawk e Hattinger dirigiram-se à máquina automática que fornecia bebidas e encheram dois canecos de papelão com cerveja. — Que falta de classe! — resmungou Hattinger. — Onde já se viu tomar cerveja em canecos de papelão? — Fungava de raiva. Hawk sorriu. Enfiou com grande perícia o dedo indicador num hamburguer que se encontrava numa bandeja, girou-o rapidamente numa montanha de mostarda que fizera sair do respectivo aparelho automático e enfiou tudo na boca. — Quer alguma coisa, Sherlock? — perguntou sem parar de mastigar.

O okrill deu um espirro e abriu a boca. Hawk usou a mão larga para fazer passar quatro hamburgers pela montanha de mostarda e enfiou o sanduíche cuidadosamente preparado com toda força na boca aberta do animal. Viu a quantidade enorme de mostarda forte que estava grudada nos hamburgers. Mas o okrill engoliu ruidosamente e com muito gosto, embora algumas lágrimas grossas rolassem de seus olhos. Sentaram junto a uma das mesas redondas que guarneciam o recinto e ergueram seus canecos. — Vamos brindar para que tenhamos uma boa viagem, careca! — A saúde de nosso comandante — disse Hawk. Hattinger acendeu um cigarro. — Sem dúvida as coisas não parecem muito boas — disse entre duas baforadas. — Mas conheço melhor o velho que o senhor, e melhor ainda que este intelectual frio. Raramente sofre de alguma coisa, e quando sofre logo se recupera. — A não ser que não se trate de uma doença física — disse Hawk em tom sombrio. Hattinger deu uma risada. — Não deixe que o velho ouça isso, meu chapa. Quando ele perder os nervos — quero dizer quando perder de verdade e não se fazer apenas de zangado — nós outros já estaremos loucos. — Não sei. O problema do CKSP-0001 também me dá o que pensar. Posso imaginar que isso deixa Kotranow bastante deprimido. Ou será que o senhor tem uma explicação para o incidente? Hattinger esvaziou seu caneco, enxugou a espuma dos lábios e levantou-se. Quando voltou com outro caneco de cerveja, estava sacudindo a cabeça. — Aposto que todos vocês estão se perturbando com uma alucinação. Quantas coisas misteriosas não devem acontecer quando uma espaçonave é engolida por um transmissor solar? É possível que tudo isso não tenha passado de um fenômeno colateral dos processos energéticos. Isso explicaria por que depois da passagem não havia mais o menor sinal do objeto estranho. — Talvez o senhor tenha razão, major — disse Hawk em tom hesitante. Os dois levantaram a cabeça e puseram-se a escutar quando os alto-falantes entraram em funcionamento. — Atenção! Aqui fala o comandante. Para sua informação: Dentro de sessenta segundos será realizada a manobra de penetração da segunda etapa do vôo linear. Repito: Dentro de sessenta... — Esse disco já está gasto! — disse uma voz irônica atrás do Major Hattinger. Hawk levantou os olhos. O Tenente Maclshott acabara de aproximar-se de sua mesa. — Os senhores permitem? — perguntou, fazendo um gesto em direção a uma das cadeiras desocupadas. — Pare de fazer perguntas! — resmungou Hattinger. — Pegue uma cerveja e sente aqui. — Obrigado! — Maclshott levantou a mão. O caneco de vidro ghama brilhava como uma pedra preciosa banhada pela luz do Sol. Era o que parecia, mas na verdade era o uísque contido no mesmo que emitia o brilho misterioso à luz indireta. O vidro ghama não produzia reflexos. — Fico com minha bebida predileta, major. Os olhos de Hattinger ficaram redondos.

— Ora essa! Onde arranjou este caneco? Sempre pensei que por aqui só existissem estes malditos recipientes de papelão. Maclshott deu uma risada. Suas bochechas vermelhas adquiriram uma tonalidade que quase chegava a ser violeta. — É minha propriedade particular, major. — Contrabando? — perguntou Hattinger num cochicho. — Que é isso? — os olhos cor de água de Maclshott chamejaram. — Restringi minha bagagem particular. — Bagagem particular! — repetiu Hattinger em tom de espanto. — Até parece que ali ainda se pode restringir alguma coisa. Só se a gente quiser dispensar a escova de dentes. Mostre os dentes, seu... Omar Hawk começou a aborrecer-se com a brincadeira que em sua opinião era estúpida, quando outra mensagem circular silenciou o major. — Atenção! Aqui fala o Tenente Mare. A manobra linear que acaba de ser anunciada foi adiada até novo aviso. Solicita-se ao Major Hattinger que compareça prontamente à sala de comando. Fim. Hattinger levantou-se de um salto. Havia uma expressão de perplexidade em seu rosto. — Deve ter acontecido alguma coisa com o velho! — disse, falando entre os dentes. No mesmo instante saiu correndo em direção à saída da sala da tripulação. Maclshott emborcou seu uísque. Fitou Hawk com os olhos mais ingênuos deste mundo. — O que será que o major quer dizer com isso? — Acho que o comandante sofreu uma pequena indigestão — disse Hawk em tom inseguro.— Não leve isso tão a sério, Maclshott. Levantou-se e foi atrás de Hattinger. O okrill seguiu-o como se fosse sua sombra. O rosto de Hawk assumiu uma expressão sombria. Não acreditava que Kotranow estivesse com indigestão. *** O Coronel Kotranow contorcia-se sobre a maca. Hawk notou imediatamente que o comandante estava inconsciente. Dois robôsmédicos cuidavam dele e empurravam a maça antigravitacional à sua frente. O Major Hattinger começava a acomodar-se na poltrona do comandante, enquanto o Tenente Mare continuou sentado no lugar de Hattinger. — Que houve? — perguntou Hawk, dirigindo-se ao matelógico. Folger Tashit afastou cuidadosamente uma mecha de cabelo da testa. — Aposto que o comandante vai ter um filho — respondeu em tom seco. Com movimentos fleumáticos e lentos, que podiam dar a impressão de que o desmaio sofrido pelo comandante não o interessava nem um pouco, voltou a dirigir-se ao quadro de comando de seu computador ML. Hawk seguiu-o com os olhos. Estava furioso. Achava bastante inconveniente fazer brincadeiras sobre o estado de Kotranow. — Senhor! Era um robô que o chamava em tom exaltado. Hawk virou-se abruptamente. — Sherlock! Ui! O okrill deu um forte espirro e deixou-se cair novamente sobre as oito pernas, depois de permanecer ereto ao lado da maca na qual estava deitado Kotranow.

No mesmo instante Hawk colocou-se a seu lado. Seu rosto ainda trazia a marca do susto que acabara de levar. Mas não se notava nenhum ferimento em Kotranow. Era bem verdade que um dos robôs-médicos tinha sido inutilizado. O corpo metálico, que quase chegava a ser gracioso, estava deitado no chão, dobrado feito um canivete, à frente da escotilha blindada e a cerca de quatro metros da maca suspensa no ar. Mas ao que parecia ainda era capaz de falar e pensar. — Que houve? — perguntou Hawk, dirigindo-se ao mesmo. — Senhor, o okrill levantou-se e tentou chegar perto do comandante. Segundo as instruções que recebi, não pude permitir que isso acontecesse. Interpus-me em seu caminho. Mas ele me afastou com um movimento da pata dianteira. Preciso de reparos, senhor. — Com um movimento de uma das patas traseiras — retificou Hawk em tom pedante. Virou a cabeça para o okrill. — O que lhe deu na cabeça, Sherlock? O okrill fitou-o com os olhos sem pupilas como um cachorro que espera ouvir um sermão. Mas logo deu vários espirros. Hawk viu nisso uma contradição. O okrill podia sentir-se culpado; neste caso teria a consciência pesada e não soltaria espirros. Ou então ele se sentia muito bem, o que explicaria os espirros. Hawk nunca se sentira tão perplexo diante do okrill. — Não se deveria permitir a presença de um monstro destes nessa nave! — disse Mare em tom exaltado. — Fique quieto! — advertiu Hattinger. — Trate de ajustar as coordenadas das diversas etapas do vôo linear. Assim que o comandante se encontrar na clínica de bordo, executaremos a manobra linear. — Quer que leve a maca sozinho, senhor? — perguntou o robô que fora poupado pelo okrill. — Naturalmente! — berrou Hattinger em tom zangado. — Você certamente sabe conduzir sozinho uma maca antigravitacional. O robô-médico confirmou sem abalar-se e retirou-se da sala de comando, empurrando à sua frente a maça na qual estava deitado o Coronel Kotranow. Hawk notou que Sherlock seguiu a maca com os olhos até que a mesma desaparecesse. Depois disso dirigiu-se calmamente ao seu canto preferido, junto à aparelhagem que irradiava calor, e deixou-se cair pesadamente ao chão. Parecia satisfeito consigo mesmo e com o mundo em que vivia. — O comportamento deste animal é semelhante ao de um cão mal-educado, que se diverte assustando as pessoas. Estas palavras foram proferidas pela voz cultivada e fria de von Eschde. Hawk lançou um olhar zangado para o psicólogo-chefe. — Não cheguei a afirmar que todos os seres humanos têm boa educação, tenente. Acontece que seu animal não fez nenhum mal ao comandante. Praticamente limitou-se a derrubar o robô-médico. É interessante que num corpo tão pequeno possa haver tanto dinamismo. Vi quando ele deu o golpe. Quase chegava a parecer desleixado. Era como um homem espantando uma mosca. — No lugar do qual veio Sherlock precisa-se desse dinamismo para sobreviver — respondeu Hawk em tom mais conciliador. — Mas sua teoria, segundo a qual o comportamento do okrill pode ser comparado ao de um cão mal-educado, não está certa. — O senhor tem uma teoria melhor? — Tenho. Aposto que há algo de errado nesta nave. Um sorriso alegre brincou em torno dos lábios de von Eschde.

— Se o senhor acha que isso chega a ser uma teoria... — Pigarreou como se quisesse dizer mais alguma coisa. Hawk deu-lhe as costas sem dizer uma palavra e voltou a acomodar-se num dos assentos de emergência que ficavam ao lado da poltrona do comandante. Era seu lugar predileto, desde o momento em que pela segunda vez iniciara uma viagem numa nave da classe Androtest. — Então, careca! — resmungou Hattinger em tom cordato. — Este velho nojento andou aborrecendo o senhor? — Parece que ele não quer admitir que no Universo existem certas coisas que um cérebro de psicólogo não conhece. Os olhos de Hattinger assumiram uma expressão dura. — Ora! — disse depois de algum tempo. — A gente só se acostuma a estas coisas quando tem de enfrentá-las. Não me leve a mal, careca, mas qual é a conclusão a que chegou? — Aí o senhor está perguntando demais — confessou Hawk. Olhou casualmente para o quadro estranho projetado na tela frontal. À frente deles não havia nada além do negrume infinito do espaço cósmico, mas à direita e esquerda, bem na margem da grande tela, viam-se duas nebulosas delicadas. Eram a Via Láctea e a galáxia de Andrômeda. A Androtest II deslocava-se paralelamente às duas galáxias, já que a ligação que se imaginava existir entre o sistema de Gêmeos e o sistema de Horror também corria paralelamente às mesmas. — Diria antes que é uma simples impressão — disse Hawk depois de algum tempo, durante o qual não conseguiu refletir sobre o assunto. — Caso esteja interessado no que significa esta impressão, major, devo dizer que a mesma anuncia uma desgraça. Acho que deveríamos voltar enquanto é tempo. Hattinger fitou-o com uma expressão de surpresa. — Está falando sério? Hawk levantou-se. Parecia agitado. Soltou uma risada forçada, nervosa. — É claro que só estava brincando, major. Esqueça. Enquanto o Tenente Omar Hawk caminhava em direção à escotilha blindada da sala de comando, o okrill se levantava estalando a língua, para acompanhá-lo, e Hattinger transmitia o aviso da manobra linear pelo microfone do sistema de intercomunicação circular, uma parte de Hawk sentiu que o pavor estava tomando conta dele. Era o pavor do desconhecido que se havia instalado na Androtest II... *** Caminhava nervosamente pela nave. Naquele momento encostou-se ao bar automático da sala dos tripulantes e sorveu um uísque. Hawk estava tão absorto em pensamentos que estremeceu quando alguém lhe bateu no ombro. — Olá, tenente! — Olá! — disse a voz débil de Hawk como que num eco. Ainda estava um tanto distraído enquanto contemplava o homenzinho magro, de cabelos louro-platina, cuja capa branca se agitava em torno do corpo. Finalmente reconheceu seu interlocutor. Não era outro senão o chefe da cozinha da Androtest II responsável pelo bem-estar corporal dos tripulantes enquanto a nave atravessava o abismo sideral. Hawk sorriu instintivamente. Irwin Folk era exatamente o contrário do tipo que se esperava encontrar num cozinheiro.

— O senhor não é o domador de animais? — perguntou Folk com sua voz estridente. O sorriso de Hawk alargou-se. — Quer que lhe faça uma apresentação, senhor preparador de sopas? Talvez deseje montar um pouco em meu okrill... — Deixe de tolices! — chiou Folk. — Não quero maltratar seu animalzinho. — Um sorriso fugaz passou por seu rosto enrugado, mas logo desapareceu. As bochechas murchas enrubesceram. — Ouvi dizer que o comandante está doente. Hawk limitou-se a acenar com a cabeça. — O que é que ele tem? Hawk deu de ombros. — Ah! — fez Irwin Folk. — Ah o quê? — perguntou Hawk em tom contrariado. — O senhor é um difamador! — Folk empertigou o corpo e seu dedo ossudo parecia querer espetar o peito de Hawk. — Um difamador e um ordinário! — Como? — Hawk descansou ruidosamente o caneco de uísque. — Não compreendo... — Além disso o senhor é um covarde! — a voz de Folk quase chegou a atropelarse. Os tripulantes de folga que se encontravam presentes olharam fixamente para os dois homens tão desiguais. O sangue subiu à cabeça de Hawk. Segurou o chefe de cozinha pela capa e puxou-o para perto. — Vamos logo! Diga alguma coisa que faça sentido, meu chapa. Rápido! O que lhe deu na cabeça? Apesar da situação ameaçadora em que se encontrava, Folk virou a cabeça para os presentes, que olhavam atentamente para seu lado. — Vocês ouviram! — esbravejou em tom triunfante. — Ele não se atreve a repetir suas difamações na minha frente, porque sabe que tudo que andou espalhando por aí é mentira. Mas eu o obrigarei a retirar as baixezas que disse a meu respeito. — Fungou fortemente. — Na minha cozinha não se faz nenhuma comida que não seja boa. Se o comandante teve uma intoxicação intestinal, a culpa não foi minha. Hawk ficou tão perplexo que soltou o chefe da cozinha. Este não conseguiu segurarse logo e acabou sentado no chão. — Quem afirmou que o comandante sofreu uma intoxicação intestinal? — perguntou Hawk. — O senhor! — gritou Folk. — E ainda andou dizendo que diante das condições reinantes na cozinha de bordo isso não era de admirar. — Ele enlouqueceu! — gemeu Hawk, que de repente se lembrou. — A única coisa que eu disse foi que o comandante teve uma pequena indisposição do estômago. — Olhou em torno, à procura de alguma coisa. — Venha cá, Maclshott! — disse sua voz retumbante quando viu o piloto, que tentava em vão esconder-se atrás das costas de outro homem. — Foi isto que eu disse ao senhor, e nenhuma palavra a mais. — Pois a mim ele disse que o senhor andou falando mal da minha cozinha — protestou Folk, apoiando-se no balcão para pôr-se de pé. — É tudo mentira. Hawk quis dizer mais alguma coisa, mas de repente riu tanto que nenhuma palavra saiu de sua boca. A causa de seu acesso de riso era Maclshott, o piloto espacial

destemido, que parecia a má consciência personificada, olhando ora para ele, ora para Folk. Todos acompanharam a gargalhada, com exceção de Maclshott e de Folk. O chefe de cozinha sacudiu furiosamente os punhos na direção de Maclshott. — O senhor ainda virá para pedir a repetição de um prato ou outro. Seu... seu... demônio bochechudo! Saiu correndo, tremendo de raiva. — Que coisa! — berrou o Tenente Tsuka, chefe do comando de desembarque. — Aposto que durante pelo menos um mês a comida a bordo da Androtest terá gosto de bílis. Maclshott, que até então parecia embaraçado, levantou a cabeça e aspirou ruidosamente o ar, como se estivesse farejando alguma coisa. — O que vamos apostar, Tsuka? — Uma garrafa de aguardente de arroz. Maclshott estalou os dedos. — Pois o senhor já perdeu a aposta. Se na próxima refeição a comida não tiver gosto de bílis, ganharei a aposta, não é mesmo? — Bem... — disse Tsuka para esquivar-se — minhas palavras não podem ser interpretadas literalmente. Mas de qualquer maneira a comida estará queimada, salgada demais ou sem tempero. — Está bem! — Maclshott fez um gesto generoso. — Mesmo assim o senhor perderá a aposta. Dirigiu-se ao aparelho automático, tirou uma ficha do bolso e deixou-a cair na respectiva fenda. Quem quisesse adquirir uma garrafa inteira de bebida alcoólica tinha de sacrificar alguma coisa de sua escassa provisão de fichas, pois as quantidades desse tipo de mercadoria existentes a bordo da nave eram limitadas. Maclshott sorriu, pegou a garrafa que ainda estava na embalagem, enfiou-a embaixo do braço e saiu andando em direção à cozinha. Tsuka, que aos poucos começava a compreender o que estava acontecendo, pôs-se a praguejar. — Bem feito — disse Hawk com uma risada. — Finalmente este pão-duro tem alguma coisa para apaziguar o gênio de Folk, e em virtude disso o senhor logicamente vai perder a aposta e ainda por cima financiar sua própria derrota. Mais uma vez uma onda de gargalhadas encheu a sala. Mas as gargalhadas cessaram abruptamente, quando o uivo estridente das sereias de alarme encheu todos os cantos da nave. Hawk ficou rígido de susto. — Caramba! — gemeu. — Agora a coisa nos agarrou. *** Não demorou, e o ruído de passos perdeu-se nos corredores e nas salas da nave. De qualquer maneira, a tripulação da Androtest II era formada por apenas cinqüenta homens, um okrill — e uma coisa que viajava na nave sem ser vista. A sala de comando parecia completamente modificada, quando Omar Hawk entrou correndo à frente de seu okrill. No primeiro instante o piscar das luzes de controle deixou-o nervoso. Mas logo ouviu as ordens precisas faladas para dentro dos microfones a meia voz. Até parecia que a Androtest II estava fazendo um treinamento no ambiente

seguro da galáxia de origem, em vez de enfrentar o perigo a 900.000 anos-luz dali, em pleno abismo intergaláctico. Hawk acalmou-se. Colocou-se silenciosamente atrás da poltrona de Hattinger. O major não virou a cabeça para ele. Com o rosto tenso e petrificado observava as telas de transição que mostravam os resultados das medições realizadas pelos instrumentos do centro de rastreamento. Dava suas ordens com voz calma e segura, acentuando cada palavra. Omar Hawk sentiu-se supérfluo. Era o único membro da tripulação que não tinha uma tarefa constante. Só lhe restava acompanhar os acontecimentos na qualidade de espectador e esperar que chegasse sua hora. Colocou a mão aberta sobre o focinho do okrill quando o animal emitiu alguns sons inconstantes. Nem se deu conta de que num okrill esses sons representavam o nível máximo de excitação. Passou os olhos pelas telas da galeria panorâmica. Nada! Tentou olhar por cima do ombro de Hattinger para lançar um olhar ligeiro nas telas acopladas com o centro de rastreamento. Viu um reflexo confuso e apagado, de cor verde, e também viu as outras telas cheias de diagramas, fórmulas e algarismos que mudavam constantemente. Viu as colunas de algarismos, que até então tinham caminhado ininterruptamente de baixo para cima, pararem repentinamente. O Major Hattinger inclinou-se para a frente. A nuca gorda estava muito vermelha. — Atenção! Aqui fala o imediato. Conseguimos a imobilização relativa ao objeto não identificado. A distância é de dois e meio minutos-luz. Todas as armas serão apontadas para o objeto. Aguardar minhas ordens para abrir fogo. Atenção! Chamo o Tenente Maclshott, que deverá dirigir-se o mais depressa possível ao hangar dos caças espaciais para preparar um destróier de três lugares. Atenção! Chamo o Tenente Hawk! Encaminhe-se ao hangar de caças espaciais e entre no destróier juntamente com Maclshott. Deve levar o okrill. A tarefa é a seguinte: aproximar-se do objeto não identificado, fazer o reconhecimento e regressar depois de receber as respectivas instruções. — Sim senhor! — berrou Hawk, que se sentia satisfeito porque finalmente poderia mostrar que também sabia ser útil. Hattinger virou a cabeça. — Ah, vejo que está aqui, careca. Ande depressa. E tenha cuidado. Hawk mal e mal ouviu as últimas palavras. A escotilha blindada fechou-se atrás dele. Só quando já se encontrava no hangar de caças espaciais deu-se conta de que, contrariando seus receios, o alarme não fora dado por causa de um perigo existente no interior da nave, mas em virtude de um objeto que aparecera de repente no espaço cósmico. Perguntou-se por que o major Hattinger agia com tanta pressa. Desde quando se costumava enviar um destróier espacial para investigar um objeto detectado pelos rastreadores sobre o qual não se sabia nada além da distância a que se encontrava? Ou será que Hattinger sabia mais alguma coisa? Talvez não tivesse tempo para dar maiores explicações. O corpo aerodinâmico do destróier de três lugares com seu brilho prateado erguia-se bem à sua frente.

Um rosto bochechudo apareceu na carlinga. — Ande depressa, Hawk! Hawk enfiou-se no assento traseiro com a velocidade de um indivíduo nascido num mundo dado a extremos. Cochichou uma ordem para o okrill. O animal impeliu-se do chão e foi parar no assento do meio. O destróier ficou balançando por alguns segundos. Hawk sentiu um calor na espinha ao lembrar-se do som intermitente que Sherlock tinha emitido na sala de comando. Mas o animal o tinha acompanhado sem oferecer resistência. Não dava a impressão de que iria regredir ao estado das feras perigosas de Oxtorne. Chamou o okrill. Sherlock virou a cabeça e encostou o focinho largo na palma da mão de Hawk. Para o okrill o gesto era um sinal de fidelidade e submissão irrestrita. Por que ele se mostrara tão obstinado quando recebera ordem para localizar o desconhecido e indefinível existente no interior da nave? Naquele momento Sherlock parecia ansioso para colaborar com seu dono. — Vamos decolar! — preveniu a voz de Maclshott no fone de ouvido do capacete espacial. O destróier foi deslizando cada vez mais depressa em direção à escotilha que se ia abrindo. — Será que existe alguém capaz de entender a psicologia de um okrill? — perguntou Hawk a si mesmo. *** Hawk olhou para trás. A Androtest II ainda refletiu por alguns segundos o ofuscante fogo branco-azulado dos jatos-propulsores do destróier, mas logo tudo foi mergulhando na noite devoradora do abismo transgaláctico. Dali em diante dependeriam exclusivamente de sua própria capacidade. Quem dependia era um piloto ruivo, baixo e bochechudo, um indivíduo vindo de Oxtorne, um mundo dado a extremos, e um monstro em forma de réptil vindo do mesmo mundo com uma gravitação de 4,8 gravos. A única ligação entre o mundo fechado do destróier de três lugares e a sala de comando de sua espaçonave eram os fios invisíveis do telecomunicador. Omar Hawk sabia que, se necessário, poderiam contar com a proteção dos quatro canhões energéticos que eram o único armamento da Androtest II, mas não se entregava a ilusões. Quando se encontrassem nas proximidades do objeto, os canhões da nave representariam um perigo para o próprio destróier, se resolvessem disparar com toda potência. A voz do Major Hattinger soou áspera e ranhenta nos fones de ouvido dos rádiocapacetes ligados ao tele-comunicador do destróier. — Objeto não identificado continua imóvel. Está vendo alguma coisa, Tenente Maclshott? Hawk pôs-se a escutar atentamente, pois do lugar em que se encontrava não via os instrumentos e as indicações dos rastreadores do destróier. — Objeto inalterado, senhor — respondeu a voz calma e quase indiferente de Maclshott. — A distância ainda é de um e meio minuto-luz. Passarei a descrever o laço de circunvolução, senhor. — Obrigado e de acordo. Deixe nossa linha de tiro desimpedida, tenente. Ngudru enquadrou o objeto perfeitamente na tela da mira.

— Sim senhor. Maclshott virou a cabeça e sorriu para Hawk. — O dispositivo de mira e disparo do desintegrador de popa fica atrás do senhor, Hawk. O senhor pode achar engraçado, mas se girar sua poltrona até poderá cuidar disso. Hawk ficou vermelho de tão embaraçado que se sentiu. Naturalmente não estava ali por brincadeira. Girou rapidamente com a poltrona e ligou a tela do dispositivo de mira do desintegrador. Os contornos nítidos de uma sombra em forma de cilindro apareceram numa pequena tela, no ponto de interseção das linhas eletrônicas. Estava prestes a abrir a boca para soltar um grito de alarme, mas antes disso lembrou-se de que a sombra não era outra coisa que a imagem da Androtest II, lançada na tela pelo traçador de silhuetas. O fato de a nave ter permanecido invisível até então fizera com que se esquecesse de sua proximidade. — Atenção, vamos iniciar a manobra de envolvimento! — preveniu Maclshott. Hawk viu a sombra cilíndrica projetada na tela do rastreador tombar de repente e sair rapidamente da tela de mira. O destróier mudara de rota. Hawk manipulou o sistema de busca do desintegrador. A sombra da Androtest II voltou a deslizar pela tela, mas logo uma nuvem cintilante atravessou a borda da mesma e foi-se aproximando do ponto de interseção das linhas. No mesmo instante aquilo que parecera uma nuvem transformou-se numa massa viscosa que se espalhava com uma rapidez tremenda. A forma do objeto desconhecido modificou-se de um instante para outro. Quem olhasse a tela de mira tinha a impressão de que fios prateados de teia de aranha saíam do centro do objeto e se espalhavam por toda a superfície da tela, formando uma rede filigramática. Quando os jatos de proa do destróier foram acionados com toda força para realizar a frenagem, Hawk viu-se atirado violentamente contra os cintos de segurança. A voz de Hattinger voltou a sair dos fones de ouvido. Desta vez soou forte e parecia dolorosa. — Atire, Maclshott! A coisa está cercando o senhor! Por que não está atirando? Não se iluda. A coisa desapareceu do lugar em que estava ainda há pouco. Aproximou-se num sal... A voz de Hattinger silenciou abruptamente. No mesmo instante o canhão energético superpesado embutido na proa do destróier rugiu ao expelir uma fulminante descarga energética. O destróier foi sacudido de lado a lado. Hawk viu a trilha energética chamejante bater na rede filigramática, que cobria inteiramente o campo do rastreador — e desfazer-se no nada. Soltou um grito de pavor. Ao que tudo indicava, a rede não era afetada pelo raio de energia concentrada. Manteve-se inalterada, e a trilha energética terminou pouco antes dela, como se estivesse sendo devorada por um buraco no espaço. Maclshott praguejou e desligou o canhão energético. — Maclshott chamando Androtest II! Favor responder! Atenção! Maclshott chamando Androtest II! Responda, Major Hattinger. — Não adianta — ponderou Hawk. — As comunicações foram interrompidas. — Que loucura! — Maclshott fungava ao falar. — Faz dez segundos que corremos à velocidade de 10,5 por cento luz em direção à rede, mas não nos aproximamos um milímetro da mesma.

Hawk pôs-se a refletir intensamente. Olhou para Sherlock. O okrill estava com o corpo ligeiramente erguido e seus olhos infinitamente profundos pareciam ver alguma coisa situada além das chapas de vidro blindado da cabina. Hawk fez um esforço sobrehumano, obrigando-se a ficar calmo. Tentou concentrar-se no amplificador de vibrações cerebrais embutido no cérebro de Sherlock. Não sabia por que, mas agarrava-se à esperança vã de que o okrill pudesse apontar-lhes o caminho que levasse para fora da armadilha pavorosa em que se encontravam. Sua mente agarrou-se à confusa imagem infravermelha. *** A figura grosseira de quatro braços destacava-se como um fantasma contra o cinza apagado do solo. Três olhos vermelhos brilhavam na semi-esfera que girava ininterruptamente sobre o tronco do estranho ser. Estes olhos pareciam fitar Hawk. Uma agitação do ar, semelhante ao tremeluzir por cima da rocha superaquecida, surgiu ao lado do “monstro”. Do tremeluzir saiu uma figura pequena com uma enorme cauda de castor. O dente-roedor amarelado da criatura brilhava. O “monstro” que envergava um conjunto-uniforme verde muito justo bateu as pernas que eram da grossura de uma árvore. Algumas pedras não muito grandes foram transformadas em poeira. O dente-roedor do ser peludo desapareceu. O “monstro” desapareceu no mesmo instante. Em vez dele uma cratera abria-se na planície poeirenta. Na borda da cratera o ser peludo voltou a sair de uma massa de ar cintilante. Um par de olhos negros que girava sem parar parecia dirigir-se sobre Hawk. Os olhos negros e brilhantes transformaram-se abruptamente em lagos e Hawk parecia cair nos mesmos. Depois o cenário mudou de repente. A mente de Hawk, que continuava concentrada nas percepções do supersensor infravermelho chamado Sherlock, teve a impressão de que os dois olhos negros se derretiam, para formar uma gigantesca esfera cinza-poeira. Mas isso durou apenas uma fração de segundo. A esfera aproximou-se em alta velocidade, estendeu-se para além dos limites do campo de visão, e de repente só se via um setor, de um quadro que mostrava a superfície de um planeta, lisa como uma tábua. O setor foi diminuindo cada vez mais. Finalmente só mostrava algumas ondulações da superfície e umas poucas rochas. Atrás dessas ondulações via-se uma esfera metálica que emitia um brilho fosco. Não tinha mais de um metro e meio de diâmetro. A mente de Hawk teve de fazer um grande esforço para absorver o quadro, que afinal não era transmitido por seus olhos. Teve a impressão de que alguma coisa no mesmo lhe era familiar. Mas no momento em que teve a impressão de que seria capaz de identificar a esfera, todo o quadro foi encoberto por uma filigramática teia de aranha prateada. *** O dull conscientizou-se de que os motivos que o animavam eram bastante duvidosos.

Inicialmente só quisera brincar com os seres que lembravam um episódio passado num mundo antiqüíssimo e uma experiência feita num planeta que ele identificara como armadilha. Em momento algum tivera a intenção de interferir nos acontecimentos. O dull limitava-se a observar. Sempre tinha sido assim, e assim deveria continuar para todo o sempre. Mas de repente percebeu que o órgão sensorial de um dos três seres começava a consumir sua concha do tempo, e diante disso o dull não pôde resistir à tentação de permitir que o ser desse uma olhada no passado — e também no futuro. Não lançaria um olhar para aquilo que costuma ser chamado de futuro absoluto, mas para um futuro que de certa forma poderia ser chamado de relativo. Para o dull isso já era parte do passado. Voltou do lugar em que os três seres estranhos e seus companheiros estavam viajando na nave cilíndrica. Ao permitir-lhes um olhar por cima do abismo que separava o presente do futuro, já cometera uma infração às suas leis. O dull sabia que o motivo de seu procedimento não tinha nascido na razão, mas em alguma coisa que já acreditava ter superado e que os seres estranhos designariam como sentimento. Estava na hora de romper o contato. O dull abriu a concha do tempo — e voltou a fechá-la. *** A rede filigramática dilatou-se — e desapareceu abruptamente. — ...responder! A voz ressoou com uma força assustadora nos alto-falantes embutidos nos capacetes. — Não está respondendo mais. Ngudru, o senhor ainda tem o objeto não identificado nas telas da mira? Em caso afirmativo, abra fogo com todos os canhões. — Maclshott falando! — berrou o piloto do destróier. Sua voz quase chegava a atropelar-se. — Não atire, senhor! A voz de Hattinger parecia aliviada. — Que houve com o senhor, Maclshott? — Fique tranqüilo, que não vamos atirar. De qualquer maneira Ngudru não consegue localizar mais o objeto. Nem eu. Por que ficou sem responder por tanto tempo, Maclshott? — Fiquei falando o tempo todo, senhor — respondeu uma voz débil. — Alguma coisa deve ter interferido nas ligações de telecomunicação nestes últimos dois minutos. Ficaram em silêncio por algum tempo. O único ruído transmitido pelos receptores era a respiração apressada dos homens. Finalmente Hattinger voltou a falar, num tom de incredulidade. — Dois minutos...? O senhor quis dizer vinte minutos, não é mesmo, Maclshott? Procure não ficar louco, meu chapa. Hawk lançou um olhar rápido para o relógio. Hattinger estava errado. Realmente não tinham passado mais de dois minutos. Nesse momento ouviu-se a resposta de Maclshott. — Senhor, pelo meu relógio faz exatamente dois minutos e quatorze segundos que as comunicações foram interrompidas. Caso não queira acreditar em mim, é só verificar o registro de tempo depois de minha volta. — É o que vou fazer. Não tenha a menor dúvida. Onde se meteu o senhor? O centro de rastreamento acaba de informar que não consegue colocar seu destróier nas telas.

A voz de Hattinger voltou a fazer-se ouvir dentro de um segundo. — Acabam de detectá-lo. Mas já pode pensar em alguma coisa para explicar por que se aproxima de estibordo, embora tenha voado para bombordo. Maclshott deu uma risada rouca. — Por que justamente eu iria ter a explicação, senhor? Não interceptei a rota da nave. Quem sabe se a Androtest não fez um giro de cento e oitenta graus? — Deixe para lá! — respondeu Hattinger em tom exaltado. — Prepare-se para ser captado por um raio de tração. Quando tiver sido recolhido, não saia do hangar dos destróieres enquanto eu não der permissão. Entendido? — Sim senhor. Hawk pigarreou. — O que é isso, major? Será que o senhor desconfia de nós? — Desconfio de qualquer coisa que não ande certa, careca. — Não deixe que Eschde ouça isso — ironizou Hawk — senão ficará tão mal-visto por ele como eu. — Quero que ele vá...! — esbravejou Hattinger. — O.k., careca — acrescentou em tom conciliador. — Estou apenas cumprindo as normas de segurança, mas acho que daqui a alguns minutos nos reencontraremos na sala de comando. — Muito bem. Prepare-se para ouvir o relatório mais maluco que já lhe foi apresentado em toda sua vida. *** Hawk concluiu seu relatório e recostou-se na poltrona que ficava à frente da mesa dos mapas. Observou o major com uma atenção misturada com tensão. O que diria o mesmo sobre as observações incríveis que o okrill lhe permitira fazer? O rosto de Hattinger não revelava os pensamentos que deveria haver atrás de sua testa larga e angulosa. Acendeu calmamente um cigarro. Depois — Hawk não quis acreditar no que seus olhos viam — sorriu como quem já sabe de tudo. — Devo confessar — a voz de Hattinger não revelava a menor emoção — que de início acreditei que tudo não passou de imaginação. Mas de repente lembrei-me do que me contou um rato-castor tagarela de nome Gucky da última vez que estivemos na periferia do sistema de Horror. Para ser franco, na oportunidade não acreditei em uma palavra do que Gucky dizia. Mas agora que ouvi seu relato as coisas já parecem bem diferentes. O que o senhor viu em matéria de experiências passadas, graças à capacidade que possui o okrill de fazer a reconstituição por meio de Seu sentido de rastreamento infravermelho, constitui parte do que me foi contado por Gucky. Se não me engano, os acontecimentos se passaram no planeta Sexta, no sistema de Gêmeos. Hattinger sacudiu a cabeça. — Realmente parece incrível, Hawk. Mesmo agora ainda acho difícil acreditar na história contada pelo senhor e por Gucky. O senhor sabe que o rato-castor é conhecido pelas brincadeiras esquisitas que costuma fazer com qualquer pessoa, exceto Rhodan. A mim ele contou que o estranho ser do planeta Sexta, que se chama dull, era o que se poderia chamar de um ser temporal, que não existe no espaço, mas somente no tempo, muito embora, quando abre a concha do tempo, também se torne visível aos olhos das pessoas normais, às vezes como uma figura poeirenta, outras vezes como uma substância cintilante e inidentificável. A esta altura já sabemos que só pode ser projetado na tela em forma de mancha luminosa. — E sob a forma de um fantasma prateado e filigramático — acrescentou Hawk.

Hattinger acenou com a cabeça. — Quer dizer que ele o prendeu na concha do tempo, juntamente com o destróier, da mesma forma que fez com o rato-castor em Sexta. Apagou o cigarro e seu rosto assumiu uma expressão de repugnância. — Como já disse, aquilo que o senhor viu faz parte das experiências que Gucky fez em Sexta, só que não foi visto com os olhos de Gucky, mas percebido através dos sentidos do dull. Por mais incrível que isso possa parecer, o caso não representa nenhum mistério para nós. Já com a segunda parte da... — um sorriso fugaz apareceu no rosto de Hattinger — ...da apresentação, se me permite dizer assim, as coisas são diferentes. Não sei o que fazer com a imagem de uma superfície de planeta lisa como uma tábua, na qual se vê uma esfera metálica de um metro e meio de diâmetro. Qual é sua opinião a este respeito? — A imagem desapareceu muito depressa. — Hawk hesitou um pouco. — Tive a impressão de que o dull arrependeu-se de sua comunicabilidade e empurrou-nos para fora da concha do tempo, ou seja lá o que for. — Gucky afirma que teve a mesma impressão. — Hattinger suspirou. — Em que se baseou para avaliar o tamanho da esfera? — perguntou. Hawk abriu a boca, como se quisesse dizer alguma coisa, mas acabou por ficar em silêncio. — Neste momento o senhor não parece muito inteligente — resmungou Hattinger. Hawk sacudiu a cabeça. — Isso mesmo. O que me deu a idéia de que a esfera tem um metro e meio de diâmetro...? — Fechou os olhos e pôs-se a refletir intensamente. — Se penso bem e procuro deixar de lado a idéia do tamanho... — Voltou a sacudir a cabeça. — Fale logo! — gritou Hattinger. — Tolice! — disse Hawk. — Como? — indignou-se Hattinger. — Esse tom... Hawk sorriu. — Não me refiro a qualquer tolice cometida pelo senhor, mas à idéia que acaba de me passar pela cabeça. Se deixo de lado a idéia do tamanho... — O senhor está se repetindo — disse Hattinger em tom impaciente. — Talvez esteja — respondeu Hawk em tom seco. — A idéia realmente é absurda demais. Realmente seria capaz de imaginar que a tal da esfera é um supercouraçado, se... hum! Hattinger inclinou-se para a frente. — Será que terei de chamar mesmo von Eschde, meu chapa? Um supercouraçado de um metro e meio de diâmetro! Nem sei por que não estou rindo! — Ha ha! — fez Maclshott. — Como? — Tomei a liberdade de dar uma risada, senhor. — Pois eu não vejo nada de engraçado. — Hattinger estava furioso. — Nem eu — disse Hawk. De repente sentiu-se cansado e abatido. — Quem me dera que eu soubesse de onde tirei as dimensões da esfera... — disse em tom pensativo. — Nem sei por que ainda está quebrando a cabeça — observou Maclshott. — Acho que já não existe a menor dúvida de que o okrill com seu sentido infravermelho só é capaz de reconstituir os acontecimentos do passado. E uma coisa que passou há muito tempo não deve transformar-se em nosso problema principal. É ao menos o que acho. Hattinger bateu com o punho fechado na mesa dos mapas.

— Ele tem razão. Caramba; tem razão mesmo. Tenente Hawk, sugiro que vá tirar um bom sono. Enquanto isso tentaremos levar a nave mais um pouco adiante. Combinado? Hawk acenou com a cabeça. Neste instante deu pela falta do okrill. — O senhor viu Sherlock? — perguntou, perplexo. Hattinger assustou-se. — Ele não entrou com o senhor? Hawk levantou os ombros. — Não prestei atenção a este detalhe, pelo simples motivo de que até hoje o okrill nunca fez outra coisa senão acompanhar-me para todos os lugares, a não ser que eu lhe desse uma ordem em contrário. Hattinger pôs a mão na testa. — Droga! Se me lembro... Não teve tempo para terminar a frase, pois nesse instante a luz do intercomunicador acendeu-se. Hattinger fez a ligação. — Tenente Mare falando — disse a voz saída do alto-falante. — O doutor Rabonew quer falar com o senhor. — Quem? O médico-chefe? — Kotranow! — exclamou Hawk em tom assustado. Hattinger fitou-o. Também estava assustado. Ao que parecia, também não se lembrava mais do comandante que tinha adoecido. — Complete a ligação, Mare. — Rabonew falando — disse uma voz calma dentro de uma fração de segundo. O rosto moreno com o cabelo louro-claro cuidadosamente penteado que apareceu na tela do intercomunicador combinava com essa voz. — Como vai o comandante? — perguntou Hattinger em tom apressado. O Dr. Rabonew não perdeu a calma, se bem que havia um tom de recriminação em sua voz. — Muito obrigado pelo interesse que resolveu demonstrar por seu superior, major. — Permite que lhe diga que a nave estava em estado de alarme? — perguntou Hattinger em tom frio. — Permito, major. — O Dr. Rabonew inclinou-se para a frente. — O senhor está sentado, major? Hattinger agarrou-se instintivamente às braçadeiras da poltrona. De repente seus olhos assumiram uma expressão zangada. — Isso não é da sua conta. Como vai o Coronel Kotranow? — Ele acaba de ter um filho, senhor. — O quê...? Major Hattinger saltou da poltrona como se estivesse sentado sobre brasas. O Tenente Maclshott, o piloto do caça espacial distinguido com as maiores condecorações do Império Solar, ficou pálido como cera e, sem dizer nada, encolheu-se em sua poltrona como uma trouxa de roupa molhada. As mãos de Hawk crisparam-se com tanta força nas braçadeiras da poltrona que uma peça das mesmas se desprendeu ruidosamente. — O senhor... só... só pode estar louco! — balbuciou Hattinger depois de algum tempo. — De forma alguma, senhor. — Um sorriso sarcástico apareceu no rosto do Dr. Rabonew. — O pai da criança acaba de despertar. Atenção. Vou aumentar o volume.

Quando o alto-falante transmitiu alguns espirros fortes, Hawk também se encolheu em sua poltrona.

4 O Dr. Rabonew, médico-chefe da Androtest II, levou os visitantes ao seu consultório e convidou-os a sentarem. Via-se que o Major Hattinger gostaria de contestar o que acabara de ouvir, mas parecia não estar passando melhor que Maclshott, que mal e mal conseguia agüentar-se sobre as pernas. O estado do Tenente Omar Hawk era um pouco melhor. Para um indivíduo adaptado a um mundo de 4,8 gravos sua figura era pequena e delicada, pois com a altura de 1,90 m e a largura dos ombros de 1,20 m Hawk não se distinguia de um terrano de constituição atlética, mas seu corpo concentrava a força de um gigante. Não era um indivíduo adaptado igual a qualquer outro; tal qual todos os humanos nascidos em Oxtorne, possuía aquilo que se costumava chamar de constituição compacta. Foi por isso que se recuperou tão depressa do choque causado pela notícia que o Dr. Rabonew acabara de transmitir. Apesar disso aceitou prontamente quando o Dr. Rabonew ofereceu uísque. — Então, minha gente — disse o médico com um sorriso. — Acho que já estão mais calmos. — Onde está Sherlock? — perguntou Hawk. O Dr. Rabonew interrompeu-o com um gesto ligeiro. — Não se preocupe com isso, Tenente Hawk, e faça o favor de não me interromper mais. Bebericou um pouco de uísque, voltou a encher o copo de seus visitantes e enlaçou os dedos finos sobre a mesa. — Quando fiz o primeiro exame do comandante, depois que o mesmo deu entrada na clínica, já comecei a imaginar parte da verdade. Felizmente, sinto-me inclinado a dizer. O Coronel Kotranow estava com febre alta: quarenta e um graus e meio. Além disso tinha câimbras de estômago. O exame radiológico revelou uma obstrução da entrada do estômago, por contração muscular, e um bloqueio semelhante do duodeno. Normalmente eu o teria operado imediatamente. Acontece que a chapa radiográfica mostrava um pequeno corpo estranho em forma de bastão. Além de boiar numa espécie de suco gástrico enriquecido, este objeto estava vivo. A chapa mostrava nitidamente a sombra de um coração batendo. — Nessas circunstâncias preferi não recorrer a um método de tratamento convencional. Em vez de aplicar injeções para baixar a febre, preferi irradiar a área do estômago com raios térmicos das mais variadas espécies. Quando usei os raios infravermelhos, o estado do paciente melhorou de repente. A febre baixou. Fiz uma experiência, afastando temporariamente o aparelho de raios infravermelhos. A febre voltou a subir no mesmo instante. — Como a obstrução da entrada e da saída do estômago se mantivessem inalterada, passei a alimentar o paciente por meio de uma infusão permanente de gotejamento. Praguejou a valer, mas quando acordou do delírio provocado pela febre e voltou a raciocinar claramente, acabou concordando com a experiência. Faço questão de ressaltar que o Coronel Kotranow se mostrou disposto, de sua livre e espontânea vontade, a dispensar a operação.

— Felizmente o corpo estranho com vida não permaneceu por mais de dezoito horas no corpo em que se alojara temporariamente. A certa altura a saída do estomago abriu-se, e dali a mais dez minutos o jovem okrill abandonou o corpo de Kotranow — como direi? — pelo caminho natural. O Dr. Rabonew piscou para Hawk. — Será que isto não o surpreende? Hawk sacudiu a cabeça. — Já imaginei uma coisa parecida quando o senhor transmitiu os espirros de Sherlock. Pelo menos já sei por que ele se recusou a me obedecer na sala de comando. Hattinger enxugou o suor da testa e soltou um gemido. — O senhor tem nervos de aço, careca! Quer dizer que o que CKSP-0001 viu antes da passagem pelo transmissor foi... aquela coisa... foi o jovem okrill? — É mais provável que tenha sido a larva do mesmo — disse o Dr. Rabonew. — Não sabemos praticamente nada sobre a forma de reprodução dos okrills. O senhor — passou a dirigir-se a Hawk — certamente também não sabia nada. — Pelo amor de Deus! — disse Hawk. — Não faço a menor idéia de como se reproduzem os okrills. Os biólogos de meu mundo de origem vêm tentando em vão desvendar o mistério. O Dr. Rabonew acenou com a cabeça. — Já podem visitar o paciente, senhores. *** O Coronel Kotranow acabara de mudar de roupa e parecia muito bem disposto. — Estão espantados, não estão? — perguntou em tom mordaz. — Meus... meus parabéns, senhor — gaguejou Maclshott. Kotranow lançou um olhar furioso para o piloto. — Deixe de brincadeiras. Os senhores deverão guardar sigilo absoluto sobre o caso. Não quero ser alvo das chacotas de toda a Frota Solar. — Foi por isso que eu trouxe Maclshott, senhor — disse Hattinger. — Ninguém sabe do caso, fora nós dois e o Dr. Rabonew. — Graças a Deus! — Kotranow lançou um olhar penetrante para Hawk. — Mas ainda preciso ter uma conversa com o senhor. Desde logo posso garantir uma coisa. O senhor e seu okrill nunca mais subirão em minha nave, depois que tivermos terminado esta viagem. — Onde está o animal? — perguntou Hattinger. O Dr. Rabonew abriu uma porta. Sherlock estava deitado no centro da sala sob a exposição dos raios. Todas as lâmpadas geradoras de calor estavam ligadas, fazendo com que a temperatura subisse a um nível insuportável. Quando viu o dono, Sherlock espirrou. Depois abriu ligeiramente a boca, avançou o lábio inferior em forma de pano e mostrou uma coisinha do tamanho de um dedo humano, que era sua imagem exata, salvo no tamanho. O animalzinho fez um movimento ligeiro e um espirro débil se fez ouvir. Sherlock apressou-se em fechar novamente a boca. — Meu Deus! — gritou Maclshott em tom de surpresa. — Onde já se viu? — Passou a dirigir-se a Hawk. — Seu Sherlock é do sexo feminino? — Não tenho a menor idéia — respondeu Hawk. — Deve ser; mas nem por isso vou mudar o nome. Entendido?

— Acho que deveríamos ir à sala de comando — disse o Coronel Kotranow. Hawk observou o comandante e constatou que de repente o rosto do mesmo ficara todo verde. O aspecto daquilo que ele criara em seu estômago fora demais para seus nervos. — Perfeitamente, senhor — respondeu Hattinger. — Mas não há motivo para preocupar-se com o cronograma. Dei ordem para que o Tenente Mare acelerasse o curso do vôo linear, para que cheguemos ao sistema de Horror no momento previsto. O Coronel Kotranow já se encontrava perto da porta. — Tanto faz, Hattinger. Eu... eu já vou. *** A situação não era menos deprimente que no primeiro vôo. A Androtest II tinha percorrido um total de 250.000 anos-luz em vôo linear. Era um trecho imenso, que no interior de uma galáxia teria sido suficiente para que o esplendor dos quadros siderais cambiantes, as nuvens de poeiras cósmicas e os gases luminosos desfilassem em rápida seqüência diante do espectador. Acontece que a nave não se encontrava no interior de uma galáxia. O Tenente Omar Hawk tinha certeza de que qualquer pessoa que nunca tivesse feito uma viagem pelo espaço intergaláctico seria capaz de ter uma idéia, mesmo pálida, da assustadora solidão do negrume do nada, que podia levar qualquer um à loucura. A Androtest 11 deslocava-se a velocidade muitas vezes superior à da luz. No entanto, parecia permanecer relativamente imobilizada em relação às duas galáxias. Parecia não haver nada de que ela se afastasse ou aproximasse. O abismo estendia-se ao infinito para todos os lados, ameaçando engolir a inteligência dos cinqüenta tripulantes. Em relação aos efeitos psicológicos positivos, os resultados do fato de que, com exceção de três homens que tinham morrido na primeira expedição, os homens estavam fazendo o vôo pela segunda vez, era igual a zero, isto porque a rota que levava de Gêmeos para Horror era invisível, sendo formada por uma linha imaginária, arbitrariamente fixada como elo de ligação entre dois sistemas solares que pelos padrões humanos ficavam a uma eternidade um do outro. O psicólogo-chefe parecia exausto quando apresentou ao comandante um relatório sobre a situação psicológica reinante a bordo da nave. Kotranow limitou-se a sorrir. — O que foi que o senhor fez para melhorar o estado de espírito dos homens, professor von Eschde? — Proferi conferências sobre a distância entre as galáxias, coronel. Expliquei que a Androtest se encontra na menor extensão do espaço intergaláctico que a astronomia conhece, e que os astronautas do futuro terão de percorrer distâncias bem maiores através do nada. Nossa Via Láctea e Andrômeda realmente só ficam a um pulo de gato uma da outra, se compararmos a distância com os 1,45 milhões de anos-luz que separam outras galáxias. — Isso foi muito inteligente de sua parte, professor, muito inteligente. — Havia um tom irônico na voz de Kotranow. — Infelizmente não existe ninguém que seja capaz de formar uma idéia concreta do que sejam 1,45 milhões de anos-luz. — Acontece que a distância entre nossa Via Láctea e Andrômeda é uma coisa concreta — respondeu von Eschde em tom indignado.

— Naturalmente, naturalmente. Tudo depende do ponto de vista do qual se queira encarar a coisa. Se quisermos admitir que tudo que é real também é concreto, o senhor naturalmente tem razão. Resta saber se somos capazes de imaginar de forma real tudo que é real. — Isso são sutilezas inúteis! — protestou von Eschde. — Talvez o senhor tenha razão. — Já conseguiu alguma coisa com seu método? — Evitei a irrupção de uma psicose coletiva, coronel. É bem verdade que oito homens estão em tratamento. — Nada mau — confessou Kotranow em tom sério. — Poderia ter sido pior. Mas acho que já está na hora de fazermos uma coisa para levantarmos o ânimo dos homens. Von Eschde suspirou resignado. — Seria bom que o senhor me mostrasse como se faz isso, coronel. — Era exatamente o que eu pretendia fazer, professor. O Coronel Kotranow sorriu sem dizer uma palavra, enquanto ligava o interfone circular. — Atenção! Aqui fala o comandante. Prestem atenção, minha gente. Há dez minutos acabamos de percorrer os primeiros 250.000 anos-luz. Faz cinco minutos que o Major Tong-Jaho me informou de que o quarto estágio, completamente gasto, acaba de ser ejetado, ou seja, o primeiro estágio, conforme o ângulo do qual se queira encarar a coisa. Quer dizer que nesta altura nossa nave só tem novecentos metros de comprimento. Apesar disso acho que por enquanto ainda não estamos tropeçando uns sobre os outros. De qualquer maneira, acho que os senhores deveriam afastar as bagagens supérfluas e pôr em ordem os uniformes. Não se esqueçam de que hoje receberemos uma visita importante. Quando tivermos percorrido mais 50.000 anos-luz, deveremos encontrar-nos com a Crest II e com Perry Rhodan. Peço aos pacientes do professor von Eschde que se encontram na clínica de bordo que não se esqueçam dos bons modos militares, caso o Administrador-Geral resolva visitá-los. Fim da mensagem. Von Eschde sorriu. — O senhor foi áspero e cordial ao mesmo tempo — disse em tom irônico. — Realmente acredita que conseguiu alguma coisa? — Esperemos! — limitou-se Kotranow a dizer. Ele e o Major Hattinger entreolharam-se, enquanto o psicólogo-chefe, que parecia ofendido, se retirava da sala de comando. Omar Hawk passou os olhos pelo uniforme que vestia e viu que o mesmo precisava ser lavado com urgência. Retirou-se um tanto embaraçado, para ir ao seu camarote e mudar de roupa. A única coisa que ouviu enquanto ainda se encontrava na sala de comando foi um aviso do médico-chefe, segundo o qual os oito pacientes de von Eschde queriam falar com urgência com o psicólogo-chefe, para que o mesmo lhes desse alta. *** As sereias deram o alarme preliminar, quando a Androtest II emergiu nas imediações do sistema de Horror, depois de ter completado a última manobra linear. Dali a quatorze segundos os chefes de setores informaram que todos os postos estavam com a guarnição completa. Não havia mais nenhum doente a bordo. Os homens até pareciam exageradamente animados.

No entanto, Hawk notou que Kotranow estava tendo um calafrio quando deu ordem para que o centro de rastreamento e a sala de rádio usassem todos os recursos para localizar a Crest II e as duas naves dos pos-bis. Hawk também não se sentia muito à vontade. Alguma coisa o obrigava a pensar constantemente na oportunidade em que chegara ali na Androtest I. Na oportunidade não tinham visto o menor sinal da Crest II, mas de repente o supercouraçado se desprendeu da superfície do planeta Horror, que se arrebentou, e abriu fogo contra a Androtest I e as duas naves pos-bis que a acompanhavam. Daquela vez os ocupantes da Crest II tinham atingido o limite da resistência psíquica. Isso acontecera até mesmo com Rhodan. Demorou alguns dias até que se pudesse falar direito com eles. Ninguém podia acusá-los por isso, já que, depois de ser irradiada pelo transmissor de Gêmeos, a Crest II rematerializara no interior do planeta Horror. Naquela altura já se sabia que o planeta Horror era um mundo oco artificialmente criado, que continha uma concentração de energia semelhante à de um sol no centro do espaço vazio, e três níveis constituídos em forma de concha, antes de chegar ao quarto nível, que correspondia à superfície. Horror era uma armadilha diabólica, que os misteriosos senhores da galáxia tinham introduzido na rota de transmissores que levava para Andrômeda — juntamente com outras armadilhas. Ao mesmo conjunto estranho pertenciam os três sóis amarelos do tipo G 1; Horror não circulava em tomo dos mesmos mas, contrariando todas as leis da natureza, estes gravitavam em volta do único planeta do sistema. Hawk sacudiu o medo e aproximou-se do comandante, que permanecia imóvel em sua poltrona, sem tirar os olhos da tela frontal, enquanto prestava atenção aos avisos transmitidos pelo centro de rastreamento e pela sala de rádio. Hawk olhou para Hattinger. — Então, major, desta vez não teremos surpresas, não é mesmo? Hattinger deu de ombros. — Para mim a Crest está demorando demais para responder, careca. Os dois homens abaixaram-se como se quisessem dar um salto quando o Coronel Kotranow deu ordem para fazer sair três destróieres espaciais, que deveriam realizar operações de rastreamento cruzadas na área do sistema. — Por que será? — perguntou Hattinger, cujos lábios estavam pálidos, embora ao menos desconfiasse de qual seria a resposta. — Por quê? — Kotranow deu uma risada muito alta. — Porque quero ter certeza antes de dar ordem para voltar. A única coisa que conseguimos detectar com os aparelhos de rádio e os rastreadores mais avançados do Império Solar foi um planeta e três sóis. Não encontramos o menor sinal da Crest II e das naves dos pos-bis... *** — O senhor não pode voltar sem mais aquela! — gritou Hawk em tom exaltado. O Coronel Kotranow fitou-o com seus olhos profundos. Havia rugas de amargura nos cantos da boca. — Ah, é? — disse. — Não posso? — bateu com o punho fechado no console de comando. — Quem manda aqui? Sou eu ou é o senhor? Será que pode me dizer o que deverei fazer se o rastreamento cruzado também for infrutífero?

— Posso — respondeu Hawk em tom decidido. — Podemos procurar até que encontremos a Crest e as duas naves pos-bis, ou ao menos quando encontrarmos uma pista que permita uma conclusão sobre seu destino. — Ah, já ia me esquecendo! — Kotranow enfatizou ironicamente cada uma das palavras. — Seu adorável animal doméstico é um rastreador infravermelho. Traga-o para cá! Talvez eu resolva catapultá-lo — Kotranow pigarreou — o catapultá-lo para o espaço, para que ele ou ela procure descobrir uma pista infravermelha. — Não estou para brincadeiras! — resmungou Hawk. — Nem eu — disse Kotranow. — E farei tudo que estiver ao meu alcance para encontrar o Administrador-Geral. Acontece que também sou responsável pela tripulação da Androtest II e... Interrompeu-se ao ver que a placa de controle do telecomunicador se iluminara. — Kotranow! — Tenente Maclshott falando, senhor. O grupo de busca assumiu a formação prescrita. Podemos aproximar-nos de Horror, senhor? — Não podem, não! — respondeu Kotranow em tom áspero. — Dirija-se à posição de destino atrás dos sóis A, B e C e ajuste os rastreadores da maneira já estabelecida. Desligou abruptamente. — Mais um que quer ditar regras ao seu comandante. — Queira desculpar, senhor — objetou Hawk. — Não tenho nenhuma intenção de ditar regras ao senhor. Baseio-me no fato de que a tarefa de nos aproximarmos de Horror foi estabelecida pelo Administrador-Geral em pessoa, que também elaborou o cronograma juntamente com o senhor. Por isso mesmo sabe quando deveremos chegar. É difícil imaginar que tenha abandonado o sistema sem deixar uma indicação sobre seu paradeiro atual. Além disso não devemos esquecer que as duas naves pos-bis só podiam ser usadas como bases espaciais. Seus propulsores estavam completamente gastos e não agüentariam mais de 1.000 anos-luz. — Acontece que eu posso imaginar perfeitamente — observou Kotranow, que já estava mais calmo. — Existem inúmeros motivos que não conhecemos e que podem ter levado o Administrador-Geral a modificar seus planos. Talvez nem tenha tido possibilidade de deixar uma indicação sobre seu paradeiro. Pois não, Tashit. Que houve? O matelógico acabara de aproximar-se em silêncio, conforme era seu costume. Abaixou a cabeça, dando a entender que queria fazer uma mesura. — Posso apresentar meus cálculos em apoio à sua teoria, senhor. Segundo o computador positrônico ML, a presença de Rhodan neste sistema é um dado que não deverá ser considerado, caso o resultado da operação de rastreamento cruzado seja negativo. — Que apoio valioso — respondeu Kotranow em tom sarcástico. — Bem que eu gostaria que o senhor me tivesse contestado. — Eu também, senhor — respondeu Folger Tashit em tom seco. — Os fatores que podem interferir no presente caso são muito numerosos. Basta dizer, por exemplo, que o computador considerou a possibilidade de ter aparecido uma ou mais naves-lápis. Estas poderiam ter destruído ao menos as naves dos pos-bis. Quanto à Crest II, que dispõe de outros recursos para enfrentar as naves-lápis, o computador positrônico aventou outra possibilidade, ainda mais assustadora. Como sabemos, o transmissor do mundo oco ainda continua a existir no interior do planeta Horror. Que tal se esta entidade energética conseguiu atrair a Crest e talvez também as duas naves pos-bis para arremessá-las em direção à estação receptora mais próxima?

O rosto de Kotranow assumiu uma tonalidade cinzenta. — O diabo não deve ser tão feio, Tashit! — Kotranow pôs-se a refletir por um instante. — Hum! Talvez possamos fazer isso. Acho que não devemos desprezar nenhuma possibilidade. Se uma espaçonave foi destruída no interior deste sistema, os rastreadores de matéria e os aparelhos analíticos certamente detectarão os vestígios. Se o transmissor do mundo oco atraiu as naves, as coisas mudam de figura. — Ainda existem outras possibilidades — disse Hattinger em voz baixa. — O Tenente Hawk poderia tentar, por exemplo, examinar a superfície do planeta Horror a uma distância segura, com o auxílio de seu okrill. Talvez isso nos dê uma pista. Afinal, a superfície de Horror é quase completamente plana. Dificilmente pode haver uma coisa escondida por lá. — O senhor acha que seu okrill seria capaz disso? — perguntou Kotranow. — Quanto a isso não tenho a menor dúvida, senhor. — Hawk fingiu uma segurança que na verdade não estava sentindo, mas tinha esperança de que, aproximando-se do planeta Horror, poderiam encontrar alguma pista. Kotranow parecia desconfiar de que era assim. — Os senhores estão me levando a assumir um risco que quase chega a ser uma irresponsabilidade. Mas vamos fazer as coisas na devida ordem. Depois que tivermos recebido notícias sobre a operação de rastreamento, veremos o resto. Hawk respirou aliviado. Dali a dez minutos chegaram as notícias sobre a operação de rastreamento, que estavam esperando. As mesmas poderiam ser tudo, menos tranqüilizadoras. O Coronel Kotranow resumiu o resultado numas poucas frases lacônicas. — Vamos primeiro aos aspectos positivos. Nenhuma espaçonave foi destruída no interior do sistema. De qualquer maneira, não foi possível detectar as respectivas radiações ou concentrações de matéria. De outro lado, porém, a operação de rastreamento cruzado não revelou qualquer vestígio da presença de uma espaçonave. O sistema está vazio. Resolvi aproximar-me de Horror o suficiente para que possamos ter uma visão geral da superfície do planeta. Acho que isso não é difícil. Mas a idéia de que talvez não encontremos nada que represente um progresso me faz tremer. Tashit, pense juntamente com seu computador inteligente o que poderemos fazer nesse caso. Folger Tashit inclinou a cabeça e caminhou silenciosamente para o quadro de comando do computador positrônico ML. Hawk, que teve de sair da sala de comando para trazer o okrill, caminhou alguns passos ao lado do matelógico. — Quais são nossas chances, senhor? Tashit parou. Havia uma expressão triste nos olhos cinzentos que fitaram o tenente. — Não são muitas, tenente. Existe mais uma possibilidade, que preferi não mencionar perante o Coronel Kotranow. Cada um dos transmissores solares cria um raio de tração. O que acontece se, em vez de atrair os objetos para junto de si, o mesmo os conduz a um dos sóis? — O senhor acredita nessa possibilidade? — perguntou Hawk em tom nervoso. — Eu não, mas meu computador positrônico incluiu a hipótese no âmbito do possível. Não posso falar sobre isso com Kotranow, pois é apenas uma possibilidade — e a mais apavorante de todas. Hawk estremeceu. Logo acenou com a cabeça. — Peço-lhe que por enquanto não fale sobre isso com ninguém. Isso poderia levar Kotranow a regressar.

— Ficarei silencioso como um túmulo. Não é assim que se costuma dizer no planeta Terra? Folger Tashit estremeceu. — O senhor tem um senso de humor que faz a alma da gente revoltar-se. Que nem um túmulo... — Sacudiu o corpo. — Acho que para o astronauta o destino nem sequer prevê um túmulo. Se morrermos, nossos átomos se espalharão em todas as direções. *** A tela frontal tinha sido regulada para a ampliação máxima. A superfície de Horror parecia precipitar-se para dentro da tela a uma velocidade apavorante, à medida que a nave se aproximava da mesma. Por enquanto não se distinguiam os detalhes, embora a ampliação permitisse que se vissem claramente montanhas e mares de tamanho médio a uma distância de um milhão de quilômetros. O Tenente Hawk estava de pé logo atrás da fileira de poltronas em que estavam sentados os homens que faziam seu trabalho na sala de comando. Sua mão direita segurava a forte coleira de metal plastificado que prendia o okrill. Tivera de fazer um grande esforço para levar Sherlock a olhar ininterruptamente para a tela frontal. O animal parecia sentir um temor inexplicável. Hawk lembrou-se de que um animal muitas vezes sente instintivamente um perigo antes de o mesmo se manifestar. Hawk voltou a fechar os olhos e concentrou-se na imagem transmitida pelo amplificador de vibrações cerebrais embutido no centro de percepção de Sherlock. Quando chegavam a seu cérebro, as ondas eram captadas por um segundo amplificador, embutido no mesmo, que voltava a reforçá-las e só então os transmitia ao respectivo órgão do sentido. Por estranho que isso pudesse parecer, não se registrou a presença de qualquer forma de vida. Em compensação de vez em quando se viam formações estranhas, semelhantes a cogumelos, que deslizavam como véus de névoa bem acima da atmosfera, espalhando-se e turvando a visão. Hawk só reconheceu a natureza dessas formações depois que Kotranow tinha identificado sua causa na tela. Em tempos passados o planeta Horror tinha sido devastado por uma terrível guerra atômica. As formas nebulosas semelhantes a cogumelos que o supersentido infravermelho de Sherlock estava captando deviam ser os cogumelos levantados pelas explosões atômicas. Transmitiu sua impressão a Kotranow. — Quando aproximadamente ocorreu a guerra atômica? — perguntou o comandante. Hawk não pôde fornecer informações concretas. — De qualquer maneira não foi nos últimos cem anos, senhor. Pode ser que tenha sido há mais de mil anos. Não sei quais são os limites da faculdade de Sherlock. — Quer dizer que em hipótese alguma pode ter sido nos últimos cem anos — disse Kotranow como se estivesse falando consigo mesmo. — Mas deve ter sido uma guerra devastadora. A superfície de Horror parece ter sido varrida por uma vassoura gigantesca. Não há montanhas, nem mares, nem construções... — Espere aí! — gritou Hawk. — Um momento! Senhor, estou... ora... que é isso? — Que houve? — perguntou Kotranow, assustado.

— Não sei, senhor — confessou Hawk, desanimado. — Há pouco tive a impressão de que uma gigantesca nave esférica estava pousando. Mas a imagem desapareceu de um instante para outro — em alguma dimensão do passado. — Horror é o planeta das alucinações — gemeu Hattinger num estranho desespero. — Atenção! Rastreamento chamando comandante! — berrou uma voz estrondosa saída dos alto-falantes, que quase chegava a atropelar-se. — Estou ouvindo! — respondeu Kotranow. Observava com a testa enrugada o rosto do Major Le Croix, chefe do centro de rastreamento, projetado na tela do intercomunicador. Tratava-se de um especialista que servia na estação de defesa do sistema sediada em Plutão, especialmente destacado para essa missão. Seu rosto moreno, com as orelhas salientes e o nariz enorme faziam dele uma caricatura. Mas ninguém melhor que Kotranow para saber que Le Croix era um dos especialistas mais competentes em matéria de rastreamento no Sistema Solar. — Os contornos de um grupo de ruínas destacam-se no pólo norte do planeta Horror, senhor. Conforme resulta do processamento dos dados, trata-se de edifícios antigos e gigantescos, totalmente destruídos. É provável que tenham sido edifícios abobadados. — Muito obrigado! — Kotranow falava apressadamente. — Continue a concentrarse na área, major. Enquanto isso seguirei com a Androtest em direção ao pólo norte. O coronel virou a cabeça. Seu rosto exprimia uma profunda satisfação, mas também um esgotamento enorme. — Então, o que me diz, Tenente Hawk? Parece que nem mesmo seu okrill percebeu isso. Hawk despertou de uma espécie de transe. — Como? Ah, sim. O senhor estava aludindo à estação do pólo norte. A mesma acaba de ser atacada e completamente destruída, senhor. Por lá não existe mais nenhum perigo. — O quê...? — berrou Kotranow. — Acaba de ser atacada...? — E destruída — acrescentou Hawk. — Ah! — comprimiu a cabeça entre as mãos. — Esqueci de mencionar que percebi este acontecimento por intermédio do sentido de rastreamento de Sherlock. Deve ter-se verificado há alguns dias. — Rhodan! — limitou-se Hattinger a dizer. — Vamos ficar de prontidão rigorosa! — gritou Kotranow para dentro do intercomunicador. — Fechar capacetes, atar cintos. — Passou a dirigir-se a Hawk. — Tomara que a estação do pólo norte realmente tenha sido completamente destruída, meu caro. Do contrário poderemos estar viajando para o inferno. — Ainda não, senhor, ainda não... — respondeu Hawk em tom distraído.

5 Hawk procurou descontrair-se. Não foi muito difícil, pois estava bem esticado numa poltrona anatômica inclinada para trás, que ficava junto à mesa dos mapas. Mas o rugido súbito, o estertor e o estrondo dos jatos-propulsores começavam a deixá-lo nervoso. Além disso de vez em quando o alarme dos neutralizadores de pressão ressoava pela sala de comando. No entanto, Hawk sabia que o Coronel Kotranow não era culpado do comportamento rebelde assumido pela nave. Afinal, a Androtest era uma nave especialmente construída para vencer distâncias imensas, sem dispor de dispositivos especiais de correção de rota. Dentro de um tempo relativamente curto deveriam fazer uma correção de rota de noventa graus, e isso num setor espacial bastante restrito. A nave não se prestava para isso a catástrofe só foi evitada graças à grande habilidade de Kotranow, que acabou realizando a modificação de rota que fora planejada. As áreas adjacentes ao pólo norte estavam reduzidas a um montão de destroços. Ao que tudo indicava, tremendas energias atômicas tinham se descarregado por ali, devastando completamente uma área de cerca de cinco mil quilômetros quadrados. Hawk depreendeu dos fragmentos das mensagens transmitidas captadas por seu rádio-capacete que de início a área construída fora bem menor. Alguém devia ter agido sem a menor contemplação, alguém que resolvera usar todos os recursos disponíveis para ter certeza de que no centro da destruição não restava mais nenhum vestígio de vida. Omar Hawk começou a desconfiar de quem tinha sido esse alguém. Perry Rhodan. Era bem verdade que por motivos que ele não conhecia o supersentido de rastreamento de seu okrill costumava falhar de vez em quando. Hawk teve a impressão de que havia alguma coisa desconhecida que distraía a atenção de Sherlock. Mas a imagem transmitida pelo amplificador de vibrações cerebrais foi suficientemente clara para que pudesse reconstituir as explosões e identificá-las como efeitos dos disparos de canhões de conversão. Vez por outra até se via no céu a figura de uma gigantesca nave esférica. Só podia ser a Crest II, com o aspecto que tivera há dois ou três dias quando viajava por ali. — Onde estaria a nave naquele momento? — O que acha? — perguntou Hattinger. Hawk arregalou os olhos de espanto. Só neste momento deu-se conta de que acabara de falar em voz alta. — Estou me referindo à Crest. Foi ela que destruiu estes edifícios. — Isso combina com meus cálculos — disse Folger Tashit, que se encontrava num ponto mais afastado. — Consegue “ver” a Crest? — perguntou Hattinger em tom de curiosidade. — Às vezes vejo-a por uma fração de segundo. Sherlock hoje não está muito atento. Há algo de errado por aqui. De vez em quando desliga seu sentido infravermelho. Até parece que eu o obrigo a olhar para a bola de fogo de uma nova. — Para a bola de fogo...? — Hattinger empalideceu. — Não é o que o senhor está pensando — apressou-se Hawk em dizer. — A Crest não se transformou numa bola, pois nesse caso ela não poderia aparecer de vez em quando.

— Quer dizer que não é a Crest — observou Kotranow. — Era o que eu imaginava. A estação do pólo norte foi destruída tão depressa e de forma tão completa que dificilmente poderia atingir a Crest. O que acha, Tashit? O matelógico já tinha voltado ao seu adorado computador positrônico. Kotranow suspirou. — Vamos mudar novamente de rota. Aposto que no pólo sul de Horror encontraremos uma estação semelhante. — O senhor me chamou? — disse a voz de Tashit, saída do rádio-capacete. — Meu Deus! Como o senhor custa a compreender! — disse Kotranow com um gemido. — Perdão, senhor! — Tashit aproximou-se. — Acabo de calcular o grau de probabilidade de que no pólo sul de Horror possa existir uma estação semelhante... — Interrompeu-se, atordoado, quando Hattinger soltou uma ruidosa gargalhada. Kotranow mostrou um sorriso malicioso. — Para isso o senhor precisa de um computador positrônico matelógico? Para que serve seu cérebro? — Faça-me o favor! — principiou Tashit. — Silêncio! — gritou Kotranow. — Trate de atar os cintos; depressa. Fui um pouco mais rápido que seu computador positrônico. Daqui a dois segundos darei início à mudança de rota para seguirmos em direção ao pólo sul. *** Omar Hawk ouviu um ruído estranho, assim que o primeiro rugido forte provocado pelo empuxo dos propulsores cessou. Desconfiou de alguma coisa. Virou a cabeça e observou Folger Tashit. O matelógico parecia ter dificuldades com seu suprimento de oxigênio. Hawk viu-o fazer tentativas desesperadas de abrir seu capacete pressurizado. O estranho ruído estertorante continuava a sair do rádio-capacete. Hawk bateu no fecho de seus cintos. Neste mesmo instante voltou a soar o alarme dos neutralizadores de pressão. — Fique sentado, seu bezerro lunar! — gritou Kotranow, zangado. — Bezerro lunar é o senhor! — resmungou Hawk. No mesmo instante foi obrigado a segurar-se no encosto de sua poltrona. Uma força tremenda queria arremessá-lo contra o teto. O tenente olhou para as telas e via ora a superfície do planeta Horror, ora um dos três sóis do sistema. Ao que parecia, a Androtest II estava girando em tomo de seu eixo transversal. Hawk sentiu-se fascinado ao contemplar seu okrill. O animal não estava atado à poltrona. A falha transitória do neutralizador de pressão fizera com que subisse. Bateu ruidosamente no teto e voltou a cair ao chão. Atrás dele ouviu-se o tilintar de uma pequena tela que, segundo parecia, fora arrancada do suporte com a força do impacto. Sherlock não parecia estar ferido. Hawk soltou um assobio estridente entre os dentes e empurrou-se. Com um único salto percorreu a distância que o separava do computador positrônico e foi parar ao lado do matelógico. Mas chegou tarde. Folger Tashit já conseguira abrir seu capacete pressurizado. A boca aberta aspirava ruidosamente o ar, enquanto as mãos esfregavam o rosto, principalmente os olhos, dos quais não se via quase nada.

Hawk fitou o matelógico com uma expressão de perplexidade. Não compreendia que uma pessoa escolhida para uma missão especial vomitasse pelo simples motivo de que o “mundo” parecia girar nas telas. Antes que Hawk pudesse fazer qualquer coisa para ajudar o matelógico, um robômédico compareceu ao lugar. Tirou o traje espacial de Tashit e, vencendo a resistência deste, colocou-o numa maca. Depois desapareceu pela escotilha blindada. — Ei, careca o que houve? — perguntou a voz de Hattinger, saída do intercomunicador de Hawk. — Tashit vomitou — respondeu Hawk. — Essa você não esperava! — exclamou Hattinger em tom alegre. Mas de repente parou de rir. — Espere aí, careca! Quer dizer que Tashit...? Não é possível. Ele deve ter agüentado em situações muito mais difíceis, senão não estaria nesta nave. Há algo de errado nisso, careca. Se Hattinger tivesse tido tempo de prosseguir em suas reflexões até chegar a uma conclusão lógica, talvez ainda pudesse ter salvo a situação. Mas não teve tempo. — A estação do pólo sul está intacta! — anunciou a voz do Major Le Croix. — É formada por quatro abóbadas dispostas em retângulo. Cada abóbada consiste numa semiesfera de dez quilômetros de altura e dez quilômetros de diâmetro. — A gente acaba ficando com dor de cabeça, de tanto que este sujeito grita! — esbravejou Hattinger. — Além disso só fica dizendo bobagens. O sargento Usbekian, que estava registrando a rota da Androtest II, levantou a cabeça de seu estilete sincronizado. — O senhor também. Minha cabeça está quase estourando. Hawk olhou em torno com uma expressão de perplexidade. Também tinha uma sensação oca na cabeça. Além disso parecia que ver o estado de Tashit lhe fizera mal. Seu estômago começava a revoltar-se. Seu rádio-capacete transmitiu um arroto abafado e doloroso, seguido da voz áspera do Coronel Kotranow. — Aqui fala o comandante. Vamos lançar um ataque contra a estação do pólo sul. Ngudru, abra fogo com todas as peças assim que os rastreadores de mira tenham enquadrado o alvo. O objetivo do ataque será a destruição total da base do sul. Hawk reprimiu as náuseas e, apesar da pressão que superava os neutralizadores, foi avançando em direção à poltrona do comandante. Olhou para a tela frontal e viu a estação que se aproximava. — Quer mesmo destruir a estação, senhor? — perguntou assim que conseguiu colocar-se ao lado de Kotranow. — Sem nenhum reconhecimento prévio? — A estação já foi atacada — respondeu o coronel com a voz penetrante. — Apresenta sinais de danos de pequena monta, sinais estes que constituem indício seguro da ação das armas da Crest. Para mim isso é uma prova concreta. Pense um pouco para descobrir por que a estação não foi destruída, apesar de ter sido atacada. Hawk refletiu a este respeito. Enquanto as trilhas energéticas dos quatro canhões da Androtest II atingiam o alvo, compreendeu a conclusão final a que Kotranow tinha chegado. A mesma lhe pareceu lógica. Se Rhodan ordenara o ataque à fortaleza do pólo sul e este só apresentava danos relativamente insignificantes, dali só se poderia concluir que o ataque lançado pela Crest II fora rechaçado. Hawk esperava com o coração palpitante que a mesma força que, segundo tudo indicava, fora fatal à Crest II, também viesse a ser empregada contra a Androtest II.

Mas não houve nada que se opusesse à ação da Androtest II, que atirava ininterruptamente. Cogumelos atômicos subiam bem acima das camadas superiores da atmosfera e o céu ainda parecia estar numa estranha incandescência quando a nave já tinha mergulhado atrás da linha do horizonte. O silêncio reinava na sala de comando no momento em que Kotranow freou a Androtest II no espaço situado entre o sol B e o planeta Horror, ao mesmo tempo em que modificava a rota. O único ruído que se ouvia era o murmúrio do computador positrônico, e os estalos dos relês que soavam toda vez que os dados apurados pelos rastreadores eram transmitidos às telas de transmissão. A estes ruídos misturava-se o zumbido uniforme dos reatores que alimentavam o sistema de propulsão, ruído este que vinha das profundezas da nave. *** Rhodan olhou com uma expressão de compaixão para o corpo do homem deitado na mesa de exames, que se tornara macilento com as canseiras imensas e sangrava de inúmeras feridas pequenas. As faces do Capitão Redhorse pareciam brilhar num estranho fogo por cima dos maxilares angulosos. As pálpebras tremiam. Os lábios rachados movimentavam-se em silêncio. O médico que estava realizando os exames largou o spray de plasma, pegou uma seringa e enfiou a agulha na veia do braço de Redhorse. “Ninguém diria que ele não tem mais de dois milímetros de altura”, pensou Rhodan e um traço amargo surgiu em torno dos cantos da boca. Quem poderia imaginar uma coisa dessas? Afinal, o tamanho de todas as coisas diminuiu sob a ação do condensador potencial. Isso praticamente teria de compensar o processo apavorante... Quem dera que todo o Universo tivesse sido reduzido juntamente com eles! Na situação em que se encontravam estavam isolados dos amigos, do mundo em que viviam, de sua galáxia de origem. Isolados estavam todos aqueles que pertenciam à tripulação da Crest II, um supercouraçado que não tinha mais de um metro e meio de diâmetro... De repente a figura musculosa do índio cheiene entesou-se. Redhorse abriu os olhos e fitou Rhodan. Até parecia ter notado o olhar atento que este lhe lançara. Fez um grande esforço para levantar a mão e um sorriso orgulhoso apareceu em seus lábios. — H'gun — disse. — Coragem. As pálpebras voltaram a fechar-se como se pesassem demais. O braço caiu para trás. O tórax subia e descia num ritmo uniforme. — Está dormindo, senhor — disse o médico num cochicho. Rhodan acenou com a cabeça. Não disse uma palavra; fez meia-volta e saiu andando. Não havia necessidade de perguntar se Redhorse se recuperaria. Ele sabia que sim. Rhodan atravessou o corredor comprido com a cabeça caída. Caminhou em direção à escada de emergência que levava à sala de comando da nave-capitânia da Frota do Império. Deu uma risada amarga. A nave-capitânia! Uma nave-capitânia com um metro e meio de diâmetro!

Um ser humano de tamanho normal nem acharia que o vale em que estava pousada a Crest II era um vale; seria antes uma pequena reentrância no solo. Mas para Rhodan e os outros tripulantes este vale representava uma depressão de cinqüenta quilômetros de diâmetro, limitada por uma cadeia de montanhas em ferradura de oito mil metros de altura. Todas as coisas existentes na superfície de Horror tinham sido reduzidas ao mínimo por meio de um conjunto de máquinas que há muito tempo tinha posto um fim terrível à guerra atômica travada entre duas espécies inteligentes. As únicas coisas que tinham conservado o tamanho normal eram as estações que haviam gerado o campo de redução. A estação do pólo norte tinha sido destruída pela Crest II antes que se manifestasse a catástrofe. Mas a estação do pólo sul ainda existia — e com ela as irradiações do condensador potencial, a arma mais terrível que um ser humano já tinha conhecido, e cujos efeitos chegavam até o equador. Rhodan parou instintivamente. Suspirou, e seu suspiro encerrava todo o desânimo e desespero que lhe enchia a alma. Mas de repente lembrou-se do Capitão Redhorse. Teve vergonha de sua atitude de resignação. — Coragem! — dissera o índio cheiene, embora mal e mal tivesse escapado do inferno, mais precisamente, o inferno da estação do pólo sul. — Coragem! — repetiu Rhodan. Subiu a escada, pisando fortemente. De um instante para outro a Crest II viu-se no meio do concerto ensurdecedor de um furacão. Massas de ar impregnadas de areia passavam uivando pelas paredes externas. A escada em que pisavam os pés de Rhodan começou a balançar. Rhodan hesitou um pouco, mas logo subiu apressadamente, como se o demônio em pessoa estivesse atrás dele. Imaginou que o que estava acontecendo por ali realmente devia ser uma coisa diabólica. Realmente, em Horror tempestades fortes como estas eram desconhecidas — ao menos as tempestades naturais... *** Quando Rhodan entrou na sala de comando, Mory Rhodan-Abro virou a cabeça. Rhodan fitou seu rosto branco. Seu coração contraiu-se. Mas não deixou que ninguém percebesse o desespero que sentia. Mais à frente, à meia-luz espalhada pela iluminação de emergência, reconheceu os contornos da figura de Atlan. O arcônida estava mexendo em alguns comandos. De repente uma tela acendeu-se — uma única. Era a tela que permitia a visão para o sul, na direção em que as montanhas Tortas de Areia recuavam, formando a abertura do vale. Rhodan colocou-se ao lado de Mory e apertou a mão da mesma. Sentiu um ligeiro tremor. — Coragem! — disse, repetindo sem querer a palavra pronunciada por Redhorse. Mais uma rajada de vento atingiu a Crest II, fazendo balançar a nave. As peças de sua estrutura gemiam como se fossem seres vivos. A esse ruído juntava-se o uivo infernal de um terrível furacão.

Mas nenhum dos presentes, nem Rhodan ou Mory, sua esposa, nem Atlan ou Icho Tolot ou Bert Hefrich, Cart Rudo ou Jury Sedenko, deu atenção a isso. Os olhos de todos estavam literalmente pregados no horizonte ao sul, sobre o qual uma série de línguas de fogo subia cada vez mais. Eram colunas de chamas que subiam ao céu, bolas incandescentes que se expandiam rapidamente, e os cogumelos de fumaça que representavam um acompanhamento típico das explosões nucleares. As pessoas que se encontravam na sala de comando da Crest II tiveram de segurarse. A nave balançava. Não era somente o furacão, nem os ventos escaldantes que rugiam sobre as montanhas ou os torvelinhos que se formavam no interior do vale: tinha-se a impressão de que a própria estrutura do planeta estava sendo sacudida. Alguém deu uma estrondosa gargalhada. O Major Hefrich, que exercia as funções de engenheiro-chefe, pôs-se a praguejar. — Procure não enlouquecer, Kasom! Aquele que está promovendo este fogo de artifício pode explodir todo o planeta. Rhodan pigarreou. — Calma, minha gente. Em minha opinião é o Coronel Kotranow que está atacando a estação do pólo sul com a Androtest II. E faz muito bem atirando primeiro para perguntar depois. — Major Hefrich! Dr. Holfing! Providenciem para que os três conjuntos geradores de emergência desta nave trabalhem a plena potência. Transmita toda a energia gerada à estação de rádio. Major Wholey! O senhor fica encarregado de orientar a antena direcional exatamente para a posição matematicamente determinável da Androtest II. Irei imediatamente para aí a fim de fornecer o texto da mensagem de alerta que deverá ser expedida. Os três homens retiraram-se e Atlan juntou-se a Rhodan e Mory. — Você acha que Kotranow voará para a própria desgraça? Rhodan acenou com a cabeça. A figura enorme de Icho Tolot, que antes parecia um monstro saído de um pesadelo, aproximou-se pisando fortemente. “Quem vê este halutense até é capaz de esquecer que o mesmo só tem três milímetros e meio de altura”, pensou Rhodan. — Ele correrá para a própria desgraça — disse Tolot. — Kotranow nem desconfia do perigo que o espera em Horror. — Por isso mesmo quero preveni-lo — disse Rhodan. Voltou a apertar a mão de Mory e, usando a escada secundária, subiu à sala de rádio. — Tomara que a mensagem alcance a Androtest! — disse Atlan com um suspiro. Ninguém respondeu, pois todos sabiam que nada tinham a acrescentar às palavras do lorde-almirante. Só lhes restava esperar.

6 Nuvens luminosas que antes pareciam erupções de fogo rodopiaram na extremidade da tela. O rosto do Coronel Kotranow estava rígido como o de uma estátua. Suas pupilas refletiam o fogo das explosões que continuavam a devastar a região do pólo sul. Se alguma vez houvera vida por lá, a mesma certamente já fora extinta. Mas apesar disso Kotranow não se arrependeu de ter dado ordem de abrir fogo. Estava informado de que cada estação de transmissor situada na rota de Andrômeda era uma armadilha diabólica, e Kotranow sabia golpear implacavelmente quando isso se tornava necessário. Fez uma ligação de intercomunicador com o centro de rastreamento. — Estou à espera de seu relatório, Major Le Croix! — Dentro de cinco minutos teremos o resultado do processamento dos dados, senhor. Kotranow não fez nenhuma objeção. Se o Major Le Croix afirmava que os dados só podiam ser processados dentro de cinco minutos, isso era um fato em que ninguém podia mexer. Kotranow desligou e fez uma ligação com a sala de rádio. — Como estão as coisas por aí, Tenente Plagge? — Nenhum sinal de rádio, senhor. Só se ouve o chiado ininterrupto das radioestrelas das duas galáxias. — Não estou nem um pouco interessado em suas radioestrelas — respondeu Kotranow em tom contrariado. — Continue a manter todos os rádio-operadores junto aos receptores. — Não compreendo — observou Hattinger. — O que é que o senhor não compreende? — perguntou Kotranow em tom penetrante. — Acabamos de destruir a estação do pólo sul com nossos canhões energéticos. Será que a Crest II não teria conseguido a mesma coisa...? — Não estive lá — disse Kotranow em tom sarcástico. A luz de aviso de intercomunicação acendeu-se. Kotranow fez a ligação. Era o Major Le Croix. — Senhor, os rastreadores detectaram a presença de nuvens provocadas por explosões e de zonas de incandescência nas áreas adjacentes ao pólo sul do planeta Horror, diante das quais se pode concluir que a estação foi completamente destruída. — O senhor está se exprimindo de forma muito diplomática — queixou-se Kotranow. — Senhor, por aqui nada me surpreenderá. — Nem a mim, major — disse Kotranow em tom resignado. — Acontece que no planeta Horror não havia nada que pudesse representar um perigo para nós, além das duas estações. Acho que já podemos começar a examinar com mais cuidado a superfície do planeta. Major, tome todas as providências para que nem mesmo uma mosca nos escape. Kotranow desligou abruptamente e virou a cabeça para Hattinger. — Vamos dirigir-nos novamente a Horror. O senhor cuidará da pilotagem da nave, Hattinger. Pretendo dedicar-me principalmente à coordenação da operação. — Perfeitamente, senhor. — Hattinger mexeu numa chave.

A mesma ativava os controles de seu console, enquanto os do console de Kotranow eram postos fora de ação. Dali a pouco começou a manipular os mesmos. O rugido vindo do interior da nave tornou-se mais forte e a Androtest II começou a movimentar-se. A nave voou para a própria desgraça. *** O Major Hattinger pilotava com grande habilidade, praguejando constantemente contra as péssimas condições de manobrabilidade da Androtest II e mantendo a nave a oitocentos quilômetros do equador. Pretendia contornar o planeta nesta altura, sobre a linha do equador. O Coronel Kotranow não estava satisfeito. Deu ordem para que penetrasse na atmosfera e prosseguisse na rota fixada a apenas cinqüenta quilômetros de altura. Hattinger começou a transpirar quando a Androtest II penetrou obliquamente na atmosfera e começou a jogar. Teve de concentrar-se ao máximo para manter sob controle a nave que não tinha sido construída para manobras desse tipo. O engenheiro-chefe, Major Tong-Jaho, esbravejava pelo intercomunicador sobre a regulagem dos propulsores, que em sua opinião era impossível. Já não sabia de onde tirar tanta gente para remover os defeitos e corrigir as reações catastróficas dos reatores e das câmaras de condensação, que surgiam em virtude da sobrecarga constante e das súbitas alterações de potência. Hattinger não perdeu a calma. Lançou um olhar indagador para Kotranow. Este sacudiu a cabeça. — Deixe que Tong-Jaho se queixe à vontade, major. Não podemos ter nenhuma consideração por nossas máquinas. Dali a cinco minutos tinha-se a impressão de que o resultado da operação dava razão às suas palavras. A luz de sinal do intercomunicador voltou a acender-se. Desta vez era o chefe da sala de rádio, Tenente Plagge; era a primeira vez desde a chegada ao sistema de Horror que chamava por sua própria iniciativa. — Senhor! — A voz de Plagge parecia nervosa. — Estamos captando sinais de rádio. — Pois então! — Kotranow esfregou as mãos. — Já decifrou o texto? O intercomunicador transmitiu um grunhido. — Pois é justamente isso, senhor. Os sinais são quase imperceptíveis. Meus instrumentos mal conseguem registrar a entrada. Não há possibilidade de estabelecer distinção entre os diversos sinais. — Talvez sejam raios vetores! — observou Hattinger. — Já pensei nisso — respondeu Kotranow. — Plagge, faça imediatamente a determinação goniométrica da posição do transmissor, para que possamos aproximar-nos do mesmo. — Não estou gostando — disse Hattinger. — Se a Crest estivesse em Horror, Plagge não teria nenhuma dificuldade em decifrar os sinais, fosse qual fosse o ponto em que estivesse. — Já lhe disseram que o transmissor de uma nave pode apresentar falhas? — perguntou Kotranow numa ironia mordaz. Hattinger deu uma resposta impublicável. Kotranow empalideceu. Era amigo de Hattinger, mas nem por isso estava disposto a deixar passar uma infração disciplinar grave. — Ainda falaremos sobre isso, major. Desde já aplico-lhe a pena de advertência.

— Não sabia que as citações literárias são proibidas a bordo desta nave — disse Hattinger, aborrecido. Hawk recostou-se calmamente na poltrona. Não tirava os olhos das telas. Não deixou que o nervosismo generalizado o contagiasse. De vez em quando olhava para Sherlock. O okrill estava deitado a seus pés e no momento não parecia interessar-se por nada além de seu rebento, que a tripulação já batizara com o nome de Orfeu, por causa da pele muito negra. Fazia um dia que Orfeu tinha saído da boca da mãe — ou do pai — para abrigar-se numa dobra da pele virada para dentro, situada embaixo do queixo de Sherlock. Costumava pôr a cabecinha com os olhos do tamanho de uma cabeça de alfinete para fora dessa dobra, observava atentamente as coisas que o cercavam, fazia a língua fina feito uma folha de papel avançar uns vinte centímetros sempre que alguém passava por perto e espirrava de alegria quando conseguia fazer saltar uma faísca para algum objeto metálico. Hawk só passou a escutar atentamente quando o Tenente Plagge voltou a chamar. As palavras que dirigiu ao Coronel Kotranow foram entendidas em toda a sala de comando, fazendo com que os oficiais interrompessem imediatamente suas conversas e olhassem atentamente para a tela de intercomunicação do comandante, que mostrava o rosto pálido e estreito de Plagge. — Os sinais de rádio vêm de 45 graus latitude sul, 21 graus longitude oeste, senhor. Ainda não é possível fazer a separação da seqüência. — Não é possível...! — Kotranow voltou o rosto para Hattinger. — A que distância fica o ponto de transmissão? — A cento e vinte quilômetros em linha reta, senhor. Se quiser saber minha opinião, direi que os sinais não vêm da Crest. Até mesmo os sinais de um minicomunicador seriam perfeitamente compreensíveis a uma distância de cento e vinte quilômetros. — Quer que transmita uma consulta, senhor? — perguntou Plagge. — Não! — respondeu Kotranow depois de refletir ligeiramente. — Não enquanto não conseguirmos identificar o transmissor. — Vamos mudar de rota? — perguntou Hattinger. — Naturalmente. Desça mais, major. Hattinger inclinou-se sobre os controles. Estava contrariado. Parecia não gostar de grande parte das ordens de Kotranow. Mas sabia que as objeções fundadas no sentimento seriam inúteis. Por isso preferiu ficar em silêncio. Omar Hawk cochichou uma ordem para Sherlock. O okrill estalou com a língua. Dirigiu os olhos sem pupilas para o dono. Hawk inclinou-se sobre o animal, bateu com a mão aberta em sua boca e começou a falar com ele. Depois de algum tempo o okrill levantou-se. Seu corpo, que parecia macio e gordo como o de um porco de engorda enquanto estivera descansando, ficou bem entesado. Os tendões e grupos de músculos duros como aço sobressaíram embaixo da pele que tinha o aspecto de couro curtido. Os movimentos, que costumavam ser desajeitados, de repente eram ágeis e tão rápidos que só mesmo um olho bem treinado seria capaz de acompanhar sua seqüência. Uma luz mortiça brilhou nos olhos infinitamente profundos. Sherlock virou a cabeça para as telas. — Deu ordem de prontidão ao seu animalzinho? — perguntou Folger Tashit em tom irônico. — Não fui eu que dei a ordem, mas ele — respondeu Hawk em tom calmo. — Como? Hawk virou a cabeça e fitou o matelógico com uma expressão séria.

— Os animais têm a sensação instintiva do perigo e reagem à mesma. Desde que Orfeu nasceu, Sherlock nunca tinha fechado a dobra da pele. Mas há um minuto ele o fez. Só deixou um orifício minúsculo para que Orfeu possa respirar. Bem que gostaria de dispor de uma proteção tão eficiente como a que é dispensada ao nosso miniokrill. Tashit suspirou. — E eu gostaria que meu computador positrônico possuísse um pouco do instinto de Sherlock. Para ser franco, ele não sabe o que fazer com os fatos. E a primeira vez que se vê em estado de perplexidade. — O.k., Hattinger — disse a voz de Plagger, saída dos alto-falantes. — A nave encontra-se exatamente sobre o local em que fica o transmissor. — Descer para trinta quilômetros — ordenou Kotranow. Depois passou a falar para dentro do intercomunicador. — Ainda não conseguiu extrair o texto da mensagem, Plagge? — Nada, não senhor. Os sinais chegam distorcidos, são muito fracos e além de tudo sofrem interrupções. Sugiro que o centro de rastreamento seja consultado sobre eventuais influências capazes de produzir a distorção dos sinais de rádio, senhor. — O senhor deveria ser capaz de constatar isso. — Pois é justamente isso, senhor. Enquanto os sinais forem tão fracos, não posso. — Eu ouvi, senhor — interveio o Major Le Croix. — Lá embaixo não existe nada que possa interferir com os sinais de rádio. Pelo menos não existe nada que possamos detectar com os recursos de que dispomos. — Quer dizer que realmente não existe nada — concluiu Kotranow. — O equipamento de rastreamento de nossa nave é o melhor que existe. — Ora veja! — cochichou Tashit. — Como o velho está enchendo a boca. Não acha, Hawk? Hawk fez um gesto de pouco caso. — Seria preferível perguntar ao seu computador positrônico matelógico por que, com os mil demônios, Le Croix e seus rastreadores, que são os melhores que existem, não consegue detectar a presença da Crest ou de qualquer de suas naves auxiliares. Afinal, os sinais de rádio não podem vir do nada. — Quem sabe se o transmissor não fica embaixo da superfície? — Vejo que o senhor não prestou atenção. Pelo que constatou Plagge, não há dúvida de que a fonte das transmissões fica em cima da superfície de Horror — e não se encontra a mais de trinta quilômetros do lugar em que estamos. E agora peço que me deixem em paz. Tenho a impressão de que Sherlock descobriu alguma coisa. Hawk fechou os olhos e concentrou-se no condensador de vibrações cerebrais de seu okrill. No mesmo instante abriu a boca para dar um grito. Mas o grito foi engolido pelo uivo desagradável das sereias de alarme. *** Hawk teve de fechar os olhos. Uma tempestade energética se desenvolvia nas telas, inundando todos os cantos da sala de comando com uma luz branca ofuscante. As sereias de alarme continuavam a uivar. Mas este ruído também não demorou a ser abafado. Energias mais potentes faziam seu jogo selvagem. Terríveis ondas de tremor sacudiram a Androtest II. Seus jatospropulsores bramiram, numa tentativa de escapar à área perigosa. O Major Hattinger esforçou-se ao máximo, mas uma espaçonave que está imobilizada a trinta quilômetros

de altura e não se presta a manobras rápidas é como uma lagarta tentando escapar a um pássaro, Hawk ainda tinha bem diante dos olhos a imagem transmitida pelo sentido de rastreamento infravermelho de Sherlock. Não fora um quadro do presente, mas do passado, se bem que de um passado muito recente. E a imagem era a de uma fortaleza espacial que estava lançando um ataque. Um cilindro de duzentos metros de comprimento, que ficava em posição perpendicular relativamente à superfície do planeta Horror, tendo cinqüenta metros de espessura e apresentando oito barras horizontais com cinqüenta metros de comprimento, que partiam do centro do cilindro. Em cada uma dessas barras havia dez figuras esféricas de cerca de dois metros, enfileiradas nessas barras como as contas de um colar — e um jato espacial terrano explodindo sob a tempestade de fogo despejada por essa fortaleza espacial... Quando voltou a abrir os olhos, Hawk viu aquilo que há um instante fora o passado precipitar-se sobre a Androtest II, vindo do céu azul-escuro do planeta Horror. Quatro trilhas energéticas branco-azuladas correram na direção da Fortaleza e foram bater nos campos defensivos da mesma. Ngudru fizera boa pontaria. A Fortaleza cambaleou, mas logo voltou a controlar-se e executou uma manobra destinada a desviarse do bombardeio. Antes que Hattinger pudesse fazer um giro com a desajeitada Androtest II, a Fortaleza aproximou-se em alta velocidade pelo ângulo morto da nave e despejou um furacão de fogo sobre a mesma. A Androtest II empinou sob a força dos impactos. Seus campos defensivos não conseguiram repelir inteiramente a tormenta de energia. Apesar disso Hawk teve de reconhecer que, se tivessem notado a presença da Fortaleza mais cedo, poderiam ter uma chance. Até mesmo o jato espacial que se despedaçara no passado não deveria ter sido destruído, pois tinha uma agilidade extraordinária e possuía um poder de fogo equivalente ao da Androtest II, embora fosse bem menor. Concluiu que o grande perigo da fortaleza em forma de roda consistia na possibilidade de aproximar-se sem ser notada. Talvez estivesse equipada com algum dispositivo que a protegia contra o rastreamento. Quando Ngudru conseguiu disparar mais uma salva contra a Fortaleza, Hawk criou nova esperança. Desta vez o oficial de artilharia fora bastante hábil para orientar os raios energéticos de seus quatro canhões de maneira a concentrá-los no campo defensivo da Fortaleza. Este rompeu-se por uma fração de segundo. Uma bola de fogo formou-se e destroços saíram voando. Mas o impacto quase não parecia afetar a Fortaleza. Era uma das vantagens de sua estranha estrutura. A “roda gigante” que cuspia fogo voltou a entrar no ângulo morto da Androtest II. O rangido das peças de metal que se rompiam penetrou dolorosamente nos ouvidos de Hawk. O cheiro cáustico dos acumuladores incendiados espalhou-se pela sala de comando. Depois disso o sistema de renovação de ar falhou. Hawk fechou o capacete. Os outros tinham tomado essa precaução bem antes dele. — Tentarei pousar! — disse no mesmo instante a voz de Hattinger no rádiocapacete. Nas telas da galeria panorâmica a superfície do planeta Horror foi caindo para baixo. Os reatores que alimentavam o sistema de propulsão rugiam. De vez em quando o

ruído era entremeado pelo estrondo surdo das explosões que se verificavam no interior da nave. Hawk puxou o okrill pela coleira e bateu em seu focinho para acalmá-lo. Sherlock emitiu sons inconstantes. Os abalos que sacudiam a nave fizeram com que perdesse o equilíbrio. Apesar disso tentava proteger constantemente a dobra da pele em cujo interior estava escondido Orfeu. Hawk teve pena do animal. Ele o arrancara do ambiente a que estivera habituado, e naquele momento se via envolvido nos conflitos travados entre espécies inteligentes, conflito este que terminaria com a destruição da Androtest II, a não ser que acontecesse um milagre. A nave sofreu uma forte pancada ao tocar o solo. No mesmo instante foi atingida por outra salva concentrada. As telas de imagem apagaram-se no mesmo instante. Ouviram-se gritos, que foram engolidos pelos estrondos que cresciam cada vez mais, até terminar num ribombar contínuo. Hawk não teve necessidade de soltar os cintos de segurança. Os mesmos se romperam com o impacto. Viu-se ao lado da montanha de músculos que formava o okrill. Sherlock tocou nele. — Está bem! — resmungou Hawk. — Não perdi os sentidos. Avançou tateando sobre objetos indefiníveis, até chegar ao console de comando. Sherlock permaneceu bem a seu lado. Bastou que Hawk olhasse para a enorme fenda que se abria na parede da sala de comando para compreender que a Androtest II se partira. Estava tudo relativamente quieto. Só depois de algum tempo, quando os ouvidos meio ensurdecidos pelo barulho das explosões voltaram a ser capazes de ouvir ruídos mais fracos, ouviu um perigoso crepitar. De repente a voz de Kotranow soou nos rádio-capacetes. Tinha-se a impressão de que o coronel fazia um grande esforço para controlar-se. — Aqui fala o comandante. A Androtest II foi transformada num montão de destroços em chamas. Cada um sairá da nave da forma mais rápida possível e procurará proteger-se do lado de fora. Levem os feridos. Cada um avisará pelo rádio-capacete quando chegar do lado de fora. Fim da transmissão. Hawk não pôde deixar de admirar o comandante, embora em sua opinião o mesmo fosse parcialmente culpado pela destruição da nave. Suas mãos apalparam uma coisa macia. — Seu idiota! — disse uma voz conhecida. — Não pode ter um pouco de cuidado? — Por que não está saindo, Hattinger? — perguntou Hawk. — Não diga tolices, careca! Estive preso entre as ferragens. Devo ter algumas costelas quebradas. — Um momento. Eu o carregarei. Hawk tentou enlaçar o major com o braço. Foi relativamente fácil colocá-lo de pé. Mas depois disso Hattinger resistiu. — Daqui em diante poderei ir sozinho. Trate de levar Tashit. Esse pateta não consegue separar-se de sua máquina de pensar. Num gesto hesitante Hawk largou Hattinger. De repente lembrou-se do dom de Sherlock. Passou a concentrar-se nas percepções infravermelhas do okrill. Dentro de pouco tempo obteve uma visão geral da sala de comando. Folger Tashit realmente continuava junto ao seu computador positrônico ML. Acontece que estava inconsciente. Hawk colocou-o sobre o ombro como se fosse uma trouxa de roupa bem leve e saiu andando na direção da fenda mais larga. Enquanto estava passando pela mesma, o teto da sala de comando desabou. Uma lufada de ar quente atirou Hawk de vez para fora.

Ficou cambaleando como um cego atrás do okrill. Passou por uma colina insignificante e desceu pela encosta do lado oposto, quando ouviu alguém,chamar seu nome. Era o Coronel Kotranow. Hawk colocou Tashit no chão. — Onde está Hattinger? — perguntou. — Está num lugar seguro. Deite no chão, cara. Ou quer que a Fortaleza o derrube? Hawk obedeceu a contragosto. — Há mais alguém na nave, senhor? — Não faça perguntas inúteis. Quem estiver lá dentro não sai mais com vida. Os olhos de Hawk chamejaram de raiva. — Há mais alguém lá dentro? — repetiu Hawk em tom enfático. — Só Ngudru. Mas o senhor não pode entrar mais, Hawk. A nave é um mar de chamas. Hawk levantou de um salto, soltando um urro vindo do fundo da garganta. O calor irradiado pela nave em chamas atingiu-o feito uma muralha sólida. Mas Hawk não perdeu tempo. Confiou na resistência de seu organismo, habituado às condições extremas do mundo em que tinha nascido. Saiu em direção à Androtest — ou melhor, daquilo que restava da orgulhosa nave — dando saltos de doze metros. Descobriu uma fresta insignificante entre as chamas. Respirou profundamente e saltou pela mesma. Por alguns segundos ficou cambaleando, totalmente desorientado, entre a fumaça e as línguas de fogo. Suas mãos tocaram peças de metal incandescente. Levou algum tempo para orientar-se. Estava num corredor quase irreconhecível, que levava ao centro de artilharia da Androtest. As paredes ainda não estavam incandescentes, mas a tempestade escaldante que rugia no corredor atingia a carne de Hawk como milhares de agulhas incandescentes. Naquele momento Hawk desejava que depois da queda tivesse procurado seu capacete pressurizado. Finalmente encontrou a entrada da sala de artilharia — e atrás dela um monte confuso de escombros. O incêndio ainda não lavrava na sala de artilharia, mas diante dos destroços Hawk tinha pouca esperança de encontrar Ngudru com vida. Ouviu um gemido fraco e estremeceu. Hawk pôs-se a apalpar apressadamente os destroços. Seus dedos encontraram uma mão, outra mão e finalmente uma cabeça humana. — Puxe! — cochichou Ngudru. — Até aqui consegui chegar, mas agora não consigo fazer mais nenhum movimento. Hawk começou a puxar cautelosamente as mãos de Ngudru. Aos poucos o tórax do oficial de artilharia foi aparecendo. Houve mais uma explosão e o corredor que ficava mais adiante, um pouco embaixo de Hawk, desabou. Hawk compreendeu que precisava andar depressa. Finalmente conseguiu. Hawk segurou o corpo flácido nos braços e olhou em torno, à procura de um lugar pelo qual pudesse sair. Embaixo dele o mar de chamas ia se aproximando. Por lá nem mesmo um rato conseguiria passar. Só restava o caminho que levava para cima — ou pelo menos ao lugar em que no momento era em cima. Hawk comprimiu Ngudru contra seu corpo e foi abrindo caminho entre um labirinto de chapas, barras e fio retorcidos. Olhou para cima e viu um buraco. Era por lá que tinha de sair.

Realmente saiu. Mas quando se viu com as pernas afastadas em cima do buraco, que só então identificou como o orifício de entrada de um raio energético, notou que estava numa parede inclinada. Uns vinte metros mais embaixo as chamas lambiam a borda da nave, esfacelada pelas explosões. Hawk não sabia o que havia atrás dessas chamas. Fazia votos que de lá não fosse descer uns cem metros ou mais, ou cair num extenso mar de chamas. Saiu correndo aos saltos em direção às chamas — e pulou. Parecia durar uma eternidade até que atingisse o solo. As chamas esticaram-se em sua direção, mas não o atingiram. Finalmente bateu no chão. Virou-se imediatamente, para cair de costas, evitando que Ngudru fosse esmagado sob o peso de seu corpo. No mesmo instante sentiu-se seguro por garras afiadas, que penetraram em sua carne. Foi levantado e carregado. O okrill colocou-o suavemente no chão, bem à frente do Coronel Kotranow. — Cuide de Ngudru! — gritou Hawk, ofegante. Kotranow arregalou os olhos e segurou o oficial de artilharia. — E a Fortaleza? Hawk ia se recuperando a olhos vistos. — Foi embora — conseguiu dizer Kotranow. Mudou de rumo. Parece que não se interessam mais por nós. — Pois eu acho que se interessam. Mande reunir o pessoal, e vamos dar o fora daqui, senhor! O que houve com o senhor? Os olhos de Kotranow arregalaram-se ainda mais. Abriu a boca, soltou um grito estridente e ficou se debatendo no chão. Hawk olhou para o comandante. Já não entendia mais nada. Só compreendeu que a situação mudara quando ele mesmo sentiu as dores lancinantes, que mexiam com todos os músculos. Pôs-se de joelhos e tentou ficar de pé, mas sempre voltava a cair no chão. A dor cruel vinha em espasmos. Finalmente o véu de uma inconsciência benfazeja cobriu seus olhos. Quando acordaram, contemplaram a paisagem cheios de espanto. O desmaio os surpreendera entre ondulações ligeiras do chão, nas proximidades de um regato cujas águas marulhavam tranqüilamente. Mas agora viam-se cercados de três lados por montanhas gigantescas, e atrás deles um rio caudaloso, que a vista não alcançava, tangia ondas espumantes através de uma planície fértil. Os cinqüenta tripulantes da Androtest II foram chegando um após o outro e reuniram-se em torno do comandante. Ninguém dizia uma palavra. Só havia seis homens inconscientes, certamente por causa dos ferimentos que tinham sofrido durante a queda. — Estamos numa armadilha — constatou Hattinger. — Quem sabe se não conseguimos decolar de novo? — observou Folger Tashit num acesso de humor sombrio. Os destroços da Androtest II ainda estavam incandescentes. — Nem sei se o regresso ao nosso mundo realmente é desejável — disse von Eschde, interrompendo o silêncio. — O que quer dizer com isso? — perguntou Kotranow com a voz rouca. Von Eschde apontou para as montanhas, e em seguida para o rio. — Certamente os senhores acreditam que alguém nos levou a outro lugar, enquanto estávamos inconscientes. — Ficou calado por um instante e lançou um olhar pensativo para os destroços da nave. — Só se fosse um louco. Para que esse alguém iria precisar de

uma nave quebrada e queimada? Por que iria levá-la ao mesmo lugar em que nos colocou...? — Meu Deus! — gemeu Le Croix. — Quer dizer que em sua opinião continuamos no mesmo lugar? Mas como... como se explicaria então o aumento do tamanho das montanhas? Por que o regato se teria transformado de repente num grande rio? — Não foram os objetos que nos cercam que cresceram — disse von Eschde em tom arrastado. — Nós é que... — Cale a boca! — gritou Kotranow. — Por que haveríamos de ocultar os fatos? — perguntou von Eschde em tom tranqüilo. — A tripulação da nave tem o direito de conhecer a verdade, senhor. Fiz meus cálculos. Cada um de nós tem no mínimo 1,7 a 2 milímetros de altura, a não ser que queiramos supor que as montanhas cresceram. Depois disso o silêncio foi completo. Até parecia que nunca mais alguém iria falar. Finalmente Plagge disse com a voz apagada: — Então foi por isso que os sinais recebidos pelo rádio eram tão fracos. Certamente os ocupantes da Crest tiveram o mesmo destino que nós. Plagge viu-se interrompido por um forte estrondo. Hawk virou-se abruptamente. Será que alguém já tinha perdido os nervos? Mas logo ele viu, e os outros também. Três aviões a jato em forma de flecha atravessaram o ar com um chiado. Os jatospropulsores rugiram. Os aviões descreveram uma curva e pousaram na planície. Foram parar pouco antes de chegar ao lugar em que se encontravam os cinqüenta tripulantes da Androtest II. Alguns vultos que envergavam o uniforme da Frota do Império saíram dos antiquados aparelhos supersônicos. O coração de Hawk contraiu-se quando reconheceu na primeira pessoa que se aproximava o Administrador-Geral, Perry Rhodan. E Rhodan não era maior que eles mesmos... Rhodan deteve-se diante do comandante da Androtest II, que estava pálido e em posição rígida. — Seja bem-vindo no planeta Horror — seu idiota! Kotranow estremeceu. — O que lhe deu na cabeça? — prosseguiu Rhodan. — Por que não atendeu aos nossos sinais de alerta, voltando imediatamente e buscando um auxílio eficaz? O Tenente Plagge deu um passo para a frente. — Recebemos os sinais de rádio, senhor, mas eram tão fracos que não conseguimos extrair nenhum texto dos mesmos. Pensamos que se tratasse de raios-vetores. — Além disso — acrescentou Hawk — não somos os únicos que cometeram este erro. Peço desculpas, mas as acusações que o senhor acaba de formular contra o Coronel Kotranow são injustas. Rhodan virou-se abruptamente. — Quem é o senhor? — Tenente Omar Hawk, senhor, membro do destacamento especial de patrulhamento galáctico, destacado para servir na Androtest II. Rhodan respirou profundamente e percorreu em passos rápidos a distância que o separava de Hawk. Estendeu-lhe a mão. — Muito obrigado, tenente. Às vezes precisamos de gente como o senhor, que não tem medo de dizer francamente o que pensa de seus superiores.

Hawk comprimiu cautelosamente a mão de Rhodan, mas os lábios do Administrador-Geral crisparam-se de dor. — De que mundo vem o senhor, tenente? — De Oxtorne, senhor. Gravitação de 4,8 gravos. Rhodan acenou com a cabeça e voltou a dirigir-se ao Coronel Kotranow. — Desculpe o que acabo de dizer, coronel. Não se esqueça de que já faz alguns dias que sabemos como somos pequenos. Esperávamos que os senhores viessem salvar-nos — e agora... Hawk viu alguns dos homens da Androtest cambalear. Colocou a mão sobre a cabeça de seu okrill. — Em Oxtorne há um provérbio que diz: Existem homens sem esperança, mas não situações sem esperança. Um homem alto, de cabelos brancos, que se encontrava atrás de Rhodan, deu uma risada. Os olhos avermelhados eram um sinal de que o mesmo descendia de arcônidas. — Aí está, bárbaro! Um simples tenente fica lhe dando lições. Um sorriso fugaz atravessou os lábios de Rhodan. — Realmente não vale a pena ficarmos parados aqui, à espera de um milagre, amigo. — Passou a dirigir-se aos homens da Androtest. — Procurem conformar-se com os fatos, minha gente, e pensem num meio de destruir a estação do pólo sul. — Pois pensei que já a tivéssemos destruído — disse Kotranow. — Um dia vamos destruí-la — observou Hawk em tom confiante.

*** ** *

Mais uma tentativa de salvar Rhodan e seus companheiros falhou. Certamente a maior parte das espécies inteligentes da Galáxia já teriam abandonado a luta contra o destino cruel que os havia atingido. Mas com Rhodan e seus terranos as coisas eram diferentes! Uma nova operação é preparada. Rhodan quer retornar para o interior do mundo oco, à frente de um grupo de voluntários, para resgatar o que ainda pode ser salvo. A Partida dos Oldtimers tem início! História do próximo volume da série Perry Rhodan.

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