(P-195)
A QUEDA DO DITADOR ESTELAR Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Depois de frustrar os planos da organização terrorista Estrela Negra, a Segurança enfrenta mais uma vez Iratio Hondro...
Depois de terem vagado durante meses pelo cosmos, Perry Rhodan e seus companheiros voltaram à Terra, embora muitas vezes sua situação tivesse sido tão desesperada que ninguém lhes teria dado uma chance. Na Terra os calendários registram os últimos dias do mês de junho do ano de 2.329. Foi possível frustrar os planos da organização terrorista Estrela Negra, cujos agentes fanatizados por pouco não destruíram os mundos principais do Sistema Solar. A posição de Perry Rhodan como Administrador Geral do Império Solar foi consolidada, e em sua maioria os administradores dos mundos colonizados por terranos já reconheceram que nas condições políticas reinantes na Galáxia é mais seguro continuar sob a proteção do Império Solar do que defender seus objetivos egoísticos. Mas Iratio Hondro, chefe supremo de Plofos, não pensa assim! Trata-se de um homem que fundou seu poder sobre a opressão e o terror, e por isso não está disposto a abandonar o mesmo, embora já tenha sofrido uma derrota grave. Julga-se bastante forte para desafiar o poder do Império Solar. Destruir este poder — é este o objetivo dos homens e das mulheres da Segurança Galáctica que descem em Plofos. Terranos, sob o disfarce de mercadores galácticos, desenvolvem seu trabalho para conseguir A Queda do Ditador Estelar.
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Personagens Principais: = = = = = = =
Kel Bassa — O primeiro ser humano que recebe o soro da liberdade. Isit Huran — Chefe do serviço secreto plofosense. Iratio Hondro — Chefe supremo de Plofos e inimigo ferrenho de Perry Rhodan. Jerk Hansom — Conselheiro secreto de Hondro. Arnt Kesenby, Will Heeph e Sono Aront — Figuras-chave da revolução de Plofos. Guri Tetrona, Kazmer Tureck, Porro Mallin, Wilbro Hudson e Faun Perrigan — Participantes da operação subterrânea.
1 Depois de fechar a porta atrás de si, Kel Bassa deu uma olhada rápida pelo pequeno recinto. No mesmo instante compreendeu que acabara de entrar numa armadilha. Não tinha a menor idéia de quem poderia ter preparado a armadilha ou por que alguém queria pôr as mãos nele. Acontece que conhecia o recinto em cuja porta se encontrava e sabia qual era seu aspecto normal. E também conhecia os métodos pelos quais se transformava um quarto numa coisa como a que se encontrava à sua frente. Era o recinto em que nos últimos dois anos Kel Bassa passara as noites em que não estava de serviço e a maior parte de seu tempo livre. Só os oficiais tinham o direito de residir em quartos como este. Na parede da direita havia uma janela de tamanho médio, e como se encontrava no vigésimo andar do edifício de apartamentos, dali podia ver a parte ocidental da cidade. À frente da janela havia uma pequena mesa de centro e mais duas poltronas, que Kel colocara na posição que lhe parecia mais prática e elegante. O ângulo direito dos fundos era ocupado por um banco de canto à frente do qual se via uma larga mesa de refeições; A esquerda do banco havia uma segunda porta, que levava à cozinha e ao banheiro. A esquerda dessa porta ficava o sofá, que de noite servia de cama. O círculo completava-se junto à porta de entrada, onde havia um guarda-roupa que Kel adquirira com seus próprios recursos. Sobre uma pequena cômoda via-se o videofone, cuja moldura luminosa indicava que se tratava de um equipamento de serviço. Normalmente a distância que separava a porta de entrada da porta da cozinha era de aproximadamente seis metros. Mas agora, pelos cálculos de Kel, a distância era pelo menos três vezes maior. O quarto perdia constantemente em largura e ganhava em comprimento. Kel teve a impressão de encontrar-se no interior de uma mangueira de borracha fortemente iluminada, cuja extremidade alguém puxava com toda força. Sua cabeça zumbia. A apatia tomou conta de seu cérebro. Kel estava disposto a deixar-se capturar, fosse qual fosse a pessoa que tinha colocado a armadilha ou a finalidade que a mesma deveria desempenhar. Mas no mesmo instante fez um esforço tremendo para controlar-se. Não podia permitir que o capturassem. Se na noite do dia seguinte não aparecesse em seu posto, estaria perdido. Além disso não tinha a menor idéia dos planos do desconhecido que colocara a armadilha. Kel esforçou-se ao máximo para resistir à influência hipnótica. Girou a mão direita e colocou-a para trás. Se conseguisse chegar à porta, só precisaria deixar-se cair para o corredor e estaria salvo. Mas uma força terrível e irresistível atingiu a mão e impediu seu movimento. Kel fechou os olhos e concentrou-se exclusivamente na tarefa que pretendia levar adiante. Entesou os músculos e procurou empurrar a mão até que o suor cobrisse seu rosto. Mas foi derrotado. A força hipnótica contra a qual estava lutando era muito mais forte que ele. Kel desistiu. Sem abrir os olhos, procurou descontrair-se. Não devia permitir que nada o distraísse. Afinal, ainda restava o videofone. Bastava comprimir o botão que o acionava e falar por algum tempo para dentro do microfone, para que o alarme automático soasse em algum lugar. Era tão simples que ele se admirou por não se ter lembrado disso antes. Girou ligeiramente para o lado sem abrir os olhos, e procurou calcular de que maneira deveria deixar cair o corpo para atingir exatamente o videofone.
Empurrou-se para a frente. Mas até parecia que subitamente tinha entrado num campo gravitacional artificial: não caiu para a frente, mas tombou exatamente no lugar em que se encontrava. A queda parecia tão pesada que ficou inconsciente por algum tempo. Quando recuperou os sentidos, não sabia mais por que tinha resistido às ordens vindas de fora. Era inútil, e além disso não podia saber se a armadilha tinha sido colocada para favorecê-lo. Ouviu uma voz falar repentinamente a ele e aceitou-a como uma coisa perfeitamente natural. Até se sentia satisfeito porque alguém lhe dizia o que deveria fazer. — Kel Bassa, o senhor sairá imediatamente deste edifício — ordenou a voz. — Siga dois quarteirões na direção oeste. Nas proximidades da via lateral situada entre o segundo e o terceiro quarteirão um carro voador virá ao seu encontro e parará junto ao meio-fio. Uma portinhola se abrirá no veículo, e alguém gritará: Vamos para Fuller City. O senhor entrará no carro, e dali em diante deixará tudo por nossa conta. Caso tenha compreendido, repita as instruções que acabo de dar. Kel repetiu. Depois a voz ordenou: — Vá andando! Kel fez o que a voz estava dizendo. O relógio que ficava junto à porta indicava 19:31. A partir das 19:31 daquela noite o serviço secreto plofosense, a chamada Guarda Azul, ainda não dispunha de nenhuma indicação sobre o paradeiro do Tenente Kel Bassa, que pertencia à corporação. A não ser que se quisesse ver uma indicação no incêndio que irrompeu no apartamento de Kel Bassa pelas vinte horas do mesmo dia, e derreteu ou queimou todas as instalações a ponto de torná-las irreconhecíveis. O superior de Kel não sabia explicar o desaparecimento do tenente. A injeção de Kel vencia na noite do dia seguinte, e ninguém se arriscava a perder o prazo da mesma, a não ser que estivesse doido. *** Isit Huran detestava aquele corredor frio, de paredes lisas e profusamente iluminado. Mas embora soubesse que ninguém o estava observando, esforçou-se para pensar numa coisa desagradável e conservar a expressão de indiferença de seu rosto que era uma de suas características. Da saída do elevador antigravitacional até a porta cinzenta que ficava na outra extremidade do corredor, e que Isit Huran costumava chamar de porta do destino, eram dez metros. Eram dez metros de chão liso, paredes lisas e teto liso, situados duzentos metros embaixo da superfície e impregnados de uma atmosfera tão aconchegante que a pessoa poderia sofrer um acesso de agorafobia. Isit parou à frente da porta cinzenta. Permaneceu imóvel por trinta segundos. Procedeu assim para que o sensor individual colocado acima da porta tivesse oportunidade de registrar suas vibrações cerebrais e compará-las com o modelo da pessoa que deveria comparecer naquele momento. O resultado da comparação satisfez o sensor individual. O trecho da parede situado acima da porta emitiu uma luminosidade verde. — Isit Huran pede a mercê de receber a dose prescrita — disse Isit. Pelo menos esta humilhação ele poderia dispensar, pensou. Sabemos perfeitamente que dependemos de suas boas graças. Não precisaria obrigar-nos a recordar isso a cada trinta dias.
A porta deslizou para o lado, isso depois de outro aparelho ter examinado o modelo de modulação e comparado o mesmo com um padrão. Isit entrou na pequena sala, cujo equipamento consistia unicamente numa espécie de cadeira de dentista e numa tela. Corria o boato de que nessa tela aparecia o rosto do chefe supremo, quando o mesmo anunciava a algum dos seus subordinados que o mesmo fora julgado indigno de receber a injeção e ficaria sem a mesma. Toda vez que entrava na pequena sala Isit lançava um olhar assustado para a tela antes de sentar na cadeira. Foi o que fez desta vez, mas tal qual das outras vezes não houve qualquer complicação. Uma espécie de garra mecânica saiu da braçadeira direita da cadeira e comprimiu o braço de Isit contra o estofamento. Isit sentiu uma pontada no braço. Depois disso a pressão das garras desapareceu e Isit pôde levantar. Respirou aliviado quando a porta do destino se fechou atrás dele. Durante um mês não corria perigo. Nestes trinta dias teria oportunidade de contrariar o chefe supremo, fazendo com que lhe recusasse a próxima injeção e o deixasse morrer miseravelmente. Mas não aconteceria nada disso. Isit Huran era um homem inteligente e não tinha o hábito de sofismar com a realidade. Seu destino e o do governo de Plofos estavam indissoluvelmente ligados. Se quisesse viver, teria de fazer aquilo que fosse útil ao chefe supremo. E tinha de fazê-lo embora justamente por isso odiasse o chefe supremo mais do que qualquer outra coisa no mundo. *** O caso Kel Bassa provocou um ligeiro espanto entre o público, enquanto as autoridades competentes ficaram extremamente nervosas. Há muito corria entre o público o boato de que o chefe supremo Iratio Hondro usava uma espécie de entorpecente para garantir a fidelidade de todos os oficiais do serviço secreto e de outras pessoas importantes. O chefe supremo era a única pessoa que possuía o perigoso veneno, e qualquer pessoa que não estivesse completamente louca não teria alternativa senão obedecer fielmente às ordens do chefe supremo. Ninguém sabia até que ponto esse boato era verdadeiro. Muita gente acreditava que o chefe supremo era um patife, mas que sua maldade não chegaria ao ponto de ser tão cruel para com seus colaboradores. Todo mundo estava convencido de que o Tenente Bassa se retirara do serviço por sua livre vontade. Era impossível que tivesse havido alguma interferência estranha, pois Iratio Hondro mantinha as rédeas muito curtas. Mas como o público ignorava até que ponto o boato sobre o entorpecente era verdadeiro, ninguém sabia se Kel Bassa deveria ser considerado um herói, ou se era apenas uma pessoa que tinha fugido por estar cansado de tudo isso. Apesar de ter sido colonizado há trezentos anos, Plofos continuava a ser um mundo selvagem e escassamente povoado. Kel teria inúmeras possibilidades de esconderse na selva, caso quisesse passar sozinho o resto dos seus dias. Era assim que pensava o público, que estava dividido e se sentia inseguro. Já entre as autoridades da Guarda Azul que trabalhavam no caso reinava a unanimidade. Era bem verdade que também ali ninguém duvidava de que o chefe supremo era um mau caráter, pois cada membro da Guarda recebia de mês em mês o antídoto revitalizante, que neutralizava por algum tempo o vírus injetado em seu sangue. Os membros da Guarda Azul eram as únicas pessoas, além do próprio chefe supremo e de alguns civis que colaboravam com o mesmo, que poderiam esclarecer o público sobre o fato de que a recusa do antídoto não significava a loucura, mas a morte — uma morte provocada pela deterioração progressiva de alguns órgãos vitais.
Mas será que isso tinha alguma importância? As autoridades compreenderam imediatamente que Kel Bassa não poderia ter desaparecido por sua livre vontade. No dia de seu desaparecimento os calendários registravam o dia 27 de junho de 2.329, tempo central. A injeção deveria ser aplicada em Kel nas primeiras horas da manhã do dia 29 de junho. Se não recebesse a injeção, estaria morto na noite do dia 3O de junho, ou o mais tardar na manhã do dia 1o de julho. Mas não havia indícios de que Kel Bassa tivesse sido seqüestrado. Se tivesse havido luta em seu apartamento, o alarme teria entrado em ação. E a fechadura da porta não poderia ser aberta sem o respectivo aparelho eletrônico que transmitia o código, a não ser com o uso de certos aparelhos que nem mesmo o serviço secreto possuía. Naturalmente existia uma duplicata da chave eletrônica, mas durante as investigações apurou-se que a mesma se encontrava num cofre do serviço secreto, de onde não fora retirada. Restava a possibilidade de que em algum momento do passado Kel Bassa tivesse permitido a entrada de um estranho em seu apartamento — possivelmente uma pessoa que considerava amiga — e que em sua ausência esse estranho tivesse instalado um mecanismo acionado por controle remoto, que obrigara Kel Bassa a fugir. É bem verdade que as autoridades não conseguiram dar qualquer explicação convincente sobre a natureza desse mecanismo. A única coisa que souberam dizer foi que num caso como este não se podiam impor limites à fantasia. Aliás, além do citado mecanismo, o hipotético estranho devia ter introduzido uma bomba incendiaria no apartamento, pois o incêndio que acabara por destruir o apartamento de Bassa fora mais que uma explosão — gerara bastante calor para destruir tudo que se encontrava entre as paredes, e fora tão rápido que não representara nenhum perigo para os apartamentos vizinhos. Isso era lógico. Naturalmente o estranho queria evitar que durante as investigações que seriam inevitáveis o mecanismo por ele usado fosse descoberto, pois o mesmo talvez poderia revelar sua identidade. Segundo os registros do porteiro automático instalado na entrada principal do edifício, Kel Bassa saíra do edifício às 19:31:58. Como de costume, o aparelho tirara uma fotografia, que mostrava Kel Bassa com o rosto pensativo. Estava só. Os ocupantes dos dois apartamentos vizinhos, o Tenente Lem Chandler e o capitão Wynn Ralston, estavam de serviço no momento crítico. De serviço também estava o Tenente-Coronel Killam Feep, que ocupava o apartamento situado acima do de Kel Bassa. O ocupante do apartamento situado embaixo deste, o Tenente Henny Opal, estava de folga, mas não se encontrava em casa. Indagado, exibiu um sorriso embaraçado e a título de desculpa disse que tinha uma amiga na cidade. Em outras palavras, Isit Huran e seu serviço secreto tateavam no escuro. Continuavam sem a menor pista de Kel Bassa. Não havia a menor indicação de como e por que “tinha desaparecido”. Diante disso Isit Huran não se surpreendeu ao receber a informação de que o chefe supremo pedia seu comparecimento imediato, para apresentar um relatório. *** Iratio Hondro, o chefe supremo, mantinha-se imóvel na poltrona que ficava atrás de uma enorme escrivaninha. Quem o visse poderia ser levado a acreditar que fosse uma estátua. Naturalmente isso não aconteceu com Isit Huran. Este conhecia Iratio desde os dez anos, quando foram colocados juntos na mesma sala de aula. Desde os primeiros anos da infância Iratio não conhecera outro objetivo senão tornar-se um homem poderoso. Na época não pudera formular seu objetivo em termos mais precisos, mas o fato é que ele o
tinha atingido. E, conforme explicara na época ao colega de escola, para ele um dos sinais de superioridade intelectual era a capacidade de parecer completamente frio e insensível diante dos outros. Isit reprimiu o sorriso que as recordações queriam fazer aflorar em seus lábios e fez uma profunda mesura. — Meus cumprimentos ao chefe supremo! — disse em voz alta. De repente Iratio movimentou-se. A poltrona rangeu ao descrever uma rotação de noventa graus. — Deixe de bobagem, Isit — resmungou Iratio. — Sente e preste atenção. Isit obedeceu. A decoração do gabinete de Iratio não era nada mesquinha. Seis pesadas poltronas revestidas de couro formavam um semicírculo em torno da enorme escrivaninha. O couro era de animais nativos. Sempre que recebia diplomatas estrangeiros, o chefe supremo sentia-se orgulhoso em ressaltar este fato. O aspecto exterior de Iratio não era nada impressionante. Sua altura era ligeiramente inferior à média, e procurava compensar pelo volume o que lhe faltava em comprimento. Tinha grandes olheiras e o rosto parecia flácido. “Um dia”, pensava Isit Huran cada vez que o via, “ele sofrerá um ataque cardíaco. O que será de nós quando isso acontecer?” — Mandei chamá-lo por causa do caso Bassa — principiou Iratio em voz áspera. — Como estão as investigações? Isit recostou-se na poltrona e colocou as mãos uma em cima da outra. — Não conseguimos absolutamente nada, senhor. A informação não parecia surpreender Iratio. — Mandei fazer uma avaliação da situação — disse. — Como sabe, coisas estranhas têm acontecido ultimamente. O pouso de emergência da Maltzo com doze saltadores a bordo, a explosão da nave robotizada, e agora o seqüestro de um oficial da Guarda. Achei que talvez os dados fossem suficientes para alimentar o centro de computação positrônica. Fez uma pausa e pôs-se a limpar uma poeira imaginária em sua escrivaninha, dando a impressão de que o assunto não tinha nenhuma importância e não valia a pena perder uma única palavra com o mesmo. — Pois não, senhor — disse Isit em tom submisso. — O resultado não é muito impressionante — prosseguiu o chefe supremo. — A única informação que a máquina pôde fornecer só oferece uma probabilidade de sessenta por cento — e em minha opinião trata-se de uma idiotice rematada. Isit fitou-o com uma expressão de curiosidade. — O centro de computação positrônica afirma que deve haver um grupo de agentes terranos em Plofos — concluiu Iratio. Isit parecia respirar com dificuldade. Não era que nunca tivesse tido a idéia. Aparecia todas as noites e era um verdadeiro pesadelo que não conseguia sacudir. Mas durante o dia Isit costumava afastar essa idéia. A malha de segurança que se estendia sobre Plofos era tão estreita que nenhum agente do Império Solar conseguiria atravessá-la sem ser notado. Isit Huran montara pessoalmente o sistema e tinha certeza de que podia confiar no mesmo. O que o surpreendia tanto era que a máquina com sua lógica tivesse chegado à mesma conclusão que lhe ocorrera durante um pesadelo totalmente ilógico. — Ou será... — disse Iratio de repente, e sua voz parecia vir bem de longe... — que há alguns terranos entre nós? Isit sobressaltou-se.
— Tem alguma suspeita definida, senhor? Iratio não deu uma resposta direta. — Como vão os nove saltadores que pretendem fornecer-nos molkex? Isit fez um gesto hesitante. — Já pensei neles, senhor — confessou. — Tenho certeza de que há algo de errado com eles, mas ainda não descobri o que é. Todavia... — levantou os olhos — ...devo dizer que não existe a menor dúvida de que pertencem à raça dos saltadores. Quer dizer que nesse caso o Império Solar teria contratado agentes de outra raça. Iratio esboçou um sorriso de desprezo e bateu com a mão aberta na escrivaninha. — Pois então! Existe algum motivo para não fazerem isso? — perguntou em tom irônico. Isit compreendeu a insinuação e levantou-se. — Cuidarei disso imediatamente, senhor — disse em tom solícito. O chefe supremo despediu-o com um gesto. Isit cerrou os dentes. Toda vez que era despedido dessa forma lembrava-se do tempo em que ajudara Iratio a fazer as tarefas de matemática. *** Kel Bassa jazia na escuridão. O ambiente era tépido, e vozes abafadas saíam da escuridão. Kel Bassa não sabia onde estava e toda vez que tentava coordenar as recordações, estas lhe escapavam. Mas de repente deu-se conta de uma coisa. Não podia perder tempo. Se não comparecesse na hora da injeção, estaria perdido. Quanto tempo já estava deitado? Quanto tempo lhe restava? Procurou erguer-se, mas alguma coisa sobre o ombro impediu-o de fazê-lo. Quis gritar, mas a única coisa que saiu de sua boca foi um burburinho surdo. Tinha a impressão de que o maxilar não pertencia ao seu corpo e as cordas vocais não fazia o que ele queria. — Sentido da visão eliminado; é o primeiro sintoma — disse alguém em meio à escuridão. — Os músculos da laringe estão cada vez mais flácidos — respondeu uma segunda voz. Alguém murmurou algumas palavras de concordância. Kel Bassa refletiu sobre o que acabara de ouvir. Sentido da visão...? Laringe...? Certamente seu cérebro não estava funcionando bem, senão teria percebido antes que estavam falando dele. Seu sentido de visão fora eliminado e os músculos da laringe se tornavam flácidos. Os sintomas a que estavam aludindo eram sintomas da intoxicação que inundava o organismo de qualquer um que não recebesse o antídoto no momento adequado. Kel fez um esforço para erguer-se, mas foi apenas um esforço mental. Seus músculos estavam impotentes. O que pretendiam fazer com ele? Teria sido escolhido como cobaia, para que pudessem estudar calmamente a decadência progressiva do organismo? Por que justamente ele fora escolhido? Por que tinham ido atrás dele? Como fora parar ali? Em meio às trevas da agonia, a inteligência de Kel Bassa travava seu último combate. O intelecto revoltava-se contra a idéia de estar irremediavelmente condenado à morte, e quanto mais se revoltava, mais apertado se tornava o cerco angustiante, menor era o espaço no qual se moviam os pensamentos tempestuosos.
Coisas estranhas estavam acontecendo no cérebro de Kel. Um estado de inconsciência benfazeja quis tranqüilizá-lo, mas a certeza de que esta inconsciência era o prelúdio da morte quase o levou à loucura. Por uma única vez, durante três ou quatro segundos, Kel voltou a ser conscientemente dono de seus pensamentos. Foi quando alguém disse a seu lado: — Está na hora! No mesmo instante Kel sentiu uma dor ardente. Não sabia qual era sua causa. Só compreendeu que significava a morte. Uma onda de desespero varreu o que restava do seu consciente. A centelha apagou-se e a escuridão total o envolveu. *** Isit Huran, chefe do serviço secreto, estava sentado em seu gabinete, refletindo sobre os problemas com que de repente se defrontava. Pois bem. Ele mesmo já pensara em oportunamente voltar a investigar os saltadores recém-chegados. Havia muita coisa estranha em sua história, e Isit tinha certeza de que atrás de suas figuras exóticas escondia-se muito mais do que queriam aparentar. Mas precisava de tempo. Não queria precipitar as coisas. Se as suspeitas não se confirmassem, os prejuízos de Plofos poderiam atingir a casa dos bilhões. Que o diabo carregasse o chefe supremo com sua máquina lógica. O centro de computação positrônica chegara à conclusão de que provavelmente havia agentes terranos em Plofos. As únicas pessoas em que Iratio podia concentrar suas suspeitas eram os saltadores. Por isso empurrara a bola para Isit, a fim de que este a passasse adiante. Queria resultados, e depressa. Se Isit demorasse demais, cairia no desagrado de Iratio, se não demorasse e tomasse medidas comprometedoras que frustrassem o negócio do molkex, também cairia no desagrado do chefe supremo. Isit via perfeitamente a faixa estreita em que tinha de movimentar-se. De ambos os lados da mesma abria-se o abismo. Bastaria um passo em falso, e seria atirado no mesmo. E isso não exigiria muito trabalho. Na verdade, bastariam duas palavras pronunciadas pela boca autorizada: — Injeção recusada! Isit perguntou-se o que estaria disposto a pagar para receber uma quantidade de antídoto que lhe permitisse viver um total de setenta anos. Daria tudo, concluiu no mesmo instante. Os bens materiais que possuía, a fama, seu posto, as honrarias. Sairia às escondidas numa pequena espaçonave e deixaria Plofos bem para trás. Viveria os dias que lhe restavam em paz, num outro mundo, talvez até na Terra. Bateu com o punho fechado na testa. Era inútil refletir sobre isso. Ninguém sabia quem fornecia o veneno e o antídoto ao chefe supremo. Provavelmente um e outro provinham de máquinas incorruptíveis. Várias tentativas de analisar o veneno e descobrir um antídoto já tinham sido feitas. Os homens de Isit Huran tinham prendido os malfeitores empenhados nessas tentativas. Nenhuma delas foi bem sucedida. A droga secreta de Iratio Hondro não estava ao alcance nem mesmo dos métodos mais modernos de análise. Isit levantou-se e olhou pela janela. Seu gabinete ficava no primeiro andar do edifício amplo, não muito alto, funcionava a central do serviço de segurança. A janela dava para uma espécie de parque, cujas árvores velhas e gigantescas impediam a visão para a rua que ficava a uns duzentos metros. Por cima das árvores viam-se os arranhacéus modernos do centro da cidade.
Os pensamentos de Isit voltaram a ocupar-se com os nove saltadores. Eram em doze quando, há pouco menos de três meses, tinham realizado um pouso de emergência em Sicos, o planeta exterior do sistema. Uma patrulha composta por cruzadores do Império tentara aprisioná-los. O patriarca da nave, um homem chamado Maltzo, resistira à tentativa. A patrulha quase chegara a destruir a nave, mas a mesma ainda conseguira arrastar-se até Sicos. Maltzo e mais onze tripulantes da nave tinham escapado ao inferno da destruição. Os outros tripulantes, em número de cinqüenta, tinham morrido. Isit dirigira pessoalmente as investigações sobre o caso. Num esconderijo localizado no interior da nave tinham sido encontradas mais de quarenta toneladas de molkex, uma substância misteriosa graças à qual a raça dos blues tinha alcançado a supremacia no setor leste da Galáxia. As declarações prestadas pelos sobreviventes passaram pelo crivo das investigações. O próprio Isit acabara por empenhar-se para que Maltzo e seus companheiros fossem levados para Plofos. Uma ampla casa de residência foi colocada à sua disposição, e o carregamento de molkex de sua nave foi comprado por um preço justo. Um contrato foi celebrado com Maltzo, pelo qual o mesmo se obrigou a fornecer durante certo tempo novas quantidades de molkex ao governo de Plofos. Maltzo assinou o contrato, envolveu-se numa briga numa espelunca qualquer e foi morto a tiros. Na mesma oportunidade foram mortos dois companheiros de Maltzo. Outro saltador passou a ocupar o lugar deste. Tratava-se de um homem baixo, de cabelos negros, chamado Kural, que prometeu cumprir o contrato celebrado com o governo plofosense e colocou sua assinatura ao lado da de Maltzo. Ao que parecia, Kural estava empenhado em preparar a primeira expedição destinada a trazer molkex. De forma alguma o material assumia grande importância bélica na situação em que se encontrava a política plofosense. Se Isit chocasse os saltadores, Kural poderia descobrir um meio de anular o contrato. Neste caso Plofos teria de adquirir o molkex através de intermediários nos mundos do Império, e seria obrigado a pagar um preço bem mais elevado. Plofos não estava em condições de fazer isso. Isit perguntou-se como, com todos os demônios, o chefe supremo imaginava que fosse sua ação contra os nove saltadores. Resolveu fazer uma visita aos forasteiros. *** Kel Bassa abriu os olhos. A primeira idéia que lhe ocorreu foi que na verdade nem deveria ter mais um par de olhos que pudesse abrir. Alguém o prendera e o amarrara em algum lugar. Acontece que o prazo da injeção do antídoto já estava vencido, e como não tinha recebido a injeção, já deveria estar morto. Olhou em torno, estupefato. Estava deitado numa cama, trajando uma calça, mas nu da cintura para cima, e protegido por um cobertor leve. A cama encontrava-se no interior de um quarto de tamanho médio, pintado em cores claras. Não havia nenhuma janela, mas o teto luminoso espalhava uma luz semelhante à do Sol. Além da cama Kel descobriu uma mesa redonda com duas poltronas num canto, um banheiro fechado com uma porta de vidro fosco e um armário embutido. A dois metros do armário embutido havia uma porta. Isto tem um aspecto de hospital, pensou Kel. Levantou o braço esquerdo e constatou que tinham deixado seu relógio. Era o relógio usado em serviço. Além da data local indicava num pequeno mostrador branco a
data segundo o calendário central. Kel leu que era o dia 1o de julho de 2.329, dez horas e quarenta e dois minutos. A impressão de que havia algo de muito estranho tornou-se cada vez mais forte... quando de repente a porta se abriu e um gigante entrou no quarto. Olhou para Kel e riu. Aquele riso tinha um timbre simpático, achou Kel. O gigante estendeu a mão e Kel a pegou e apertou. — Então já voltou, não é? — perguntou o gigante com a voz grave. — Não estou bem de volta — respondeu Kel, cansado. — Onde estou? — Hum — fez o desconhecido em tom pensativo. — Acho que vamos deixar isso para depois. De qualquer maneira, permita que me apresente. Sou Guri Tetrona e faço votos de que se sinta bem. — Tudo bem — asseverou Kel e acrescentou com a voz um pouco tímida: — A única coisa que me aflige é a pergunta sobre se ainda estou vivo. Guri soltou uma estrondosa gargalhada. Diante dele Kel parecia uma criança indefesa, embora não fosse nada pequeno. — É por causa da injeção? — perguntou Guri. Kel fez um gesto afirmativo. — Não se preocupe com isso — pediu Guri. — Tomamos todas as providências para que o senhor continue vivo. Kel teve a impressão de que acabara de levar um choque elétrico. Ergueu-se abruptamente e, incrédulo, fitou o gigante com os olhos arregalados. — O senhor tem... o senhor possui... — a voz de Kel atropelou-se — ...o antídoto? Guri confirmou com a voz tranqüila. — Caramba! — gritou Kel, entusiasmado. — Ainda não sabe que com isso o senhor pode dominar um império estelar? Guri não se mostrou nem um pouco impressionado. De repente Kel sentiu-se confuso. Quem era este homem, que decifrara o maior segredo do chefe supremo e dizia isto sem pestanejar? Kel caiu para trás. — Quem é mesmo o senhor? — perguntou com a voz apagada. O gigante fez uma mesura irônica. — Eu já disse... sou Guri Tetrona, major da frota espacial do Império Solar. Kel Bassa fechou os olhos. — Bem, neste caso... — disse, perturbado. *** Dali a quinze minutos Guri Tetrona, e o antigo patriarca dos saltadores de nome Maltzo, estavam sentados com dois de seus oficiais em sua sala de estar. Os dois oficiais eram Wilbro Hudson e Faun Perrigan. Eram os homens que teriam sido mortos juntamente com Maltzo durante a briga na taberna. A sala de Guri, da mesma forma que as outras salas e o quarto de doente em cujo interior Kel Bassa estava se recuperando do susto, encontrava-se no interior de uma base instalada nas montanhas, que fora construída há bastante tempo por um agente do serviço secreto chamado Artur Konstantin nas proximidades de Taylor City, capital de Plofos. A base formava uma pequena cidade totalmente independente do mundo exterior. Possuía depósitos em cujo interior estavam guardados mantimentos e instrumentos, uma garagem de carros planadores e todas as outras coisas de que um comando terrano precisaria para entrar em ação num mundo inimigo.
Não se poderia dizer que a sala de Guri fosse bem decorada. Uma cama fora empurrada para um canto com certa pressa, mas sem o menor senso de simetria. A mesa redonda fora colocada no centro da sala, onde atrapalhava todo mundo, isto porque Guri estava convencido de que o lugar de uma mesa é no centro. Havia roupas sujas e outras bugigangas espalhadas sobre uma das duas poltronas, obrigando Wilbro a sentar na mesa. A porta de vidro que dava para o banheiro estava aberta, e uma lata de sabonete em spray tinha rolado para dentro da sala. Guri Tetrona, que estava sentado na cama, disse com a voz retumbante: — Vamos atacar imediatamente! Em minha opinião devemos começar bem em cima. Wilbro e Faun fitaram-no com uma expressão de espanto. Mas o espanto de Faun logo se transformou em entusiasmo. Bateu com a mão na mesa e gritou: — É uma idéia excelente, chefe! Vamos começar bem em cima. Guri fez uma careta e lançou um olhar provocador para Wilbro. — Que acha? Por causa do rosto carrancudo e dos cabelos ralos, Wilbro parecia dez anos mais velho do que realmente era. — Nem sei do que estão falando — afirmou. Guri apontou com o polegar para Faun. — Peça a ele que explique. Faun pigarreou. Era um jovem alto e magro, que gostava de falar, geralmente parecia nervoso e em linhas gerais parecia ridículo à primeira vista. — Pois bem... — principiou em tom hesitante. — Como já disse, vamos começar em cima. Guri sacudiu a cabeça. — Por que não fica com a boca calada quando não sabe do que estamos falando? — resmungou. — As investigações que já realizamos revelaram que a hostilidade contra o chefe supremo atinge os escalões superiores da hierarquia funcional. Levamos dois meses colhendo dados e interpretando os mesmos. Vocês devem estar lembrados que no início planejamos corroer a organização do serviço secreto de baixo para cima. Pretendíamos agarrar em primeiro lugar os elementos menos importantes, dar-lhes o antídoto, curá-los e possivelmente soltá-los. Seria um procedimento bastante demorado. Acontece que já conhecemos um homem importante, do qual sabemos que deve ser um inimigo ferrenho do chefe supremo, embora não deixe perceber nada. Nossos psicólogos descobriram isso e mandaram que o centro de computação positrônica testasse a descoberta. A não ser que as bases da ciência psicológica sejam inteiramente falsas, este homem só precisará de um ligeiro empurrão para passar para o nosso lado. Faun escorregava de um lado para outro em sua poltrona. Wilbro fitava Guri, totalmente imóvel. Somente em seus olhos via-se um ligeiro brilho. — Quem é este homem, chefe? — perguntou Faun, que já não conseguia controlar a curiosidade. — Isit Huran, chefe do serviço secreto. Faun engoliu em seco. — Você só pode estar louco — disse Wilbro de todo o coração. *** Isit Huran não sabia por que, mas o fato é que simpatizava com os saltadores. Já refletira sobre as possíveis causas desse sentimento. A única coisa que conseguiu
descobrir foi a total independência das nove pessoas diante do protocolo político de Plofos e a indiferença total que demonstravam pelo culto da personalidade instituído por Iratio Hondro. Talvez fosse isto que o ligava aos mesmos. Era bem verdade que até então sempre soubera ocultar sua simpatia. Os saltadores tinham travado conhecimento com o elenco completo de métodos com os quais Plofos se defende contra os intrusos indesejáveis. Nem uma única vez Isit dera mostras de compaixão. Naquele dia em que estava entrando na casa dos forasteiros com um esquema de segurança extremamente fraco não pretendia agir de outra forma. Além do motorista do carro planador só era acompanhado por um jovem capitão, que não parecia sentir-se nem um pouco à vontade em presença do poderoso chefe do serviço secreto. Era bem verdade que Isit trazia consigo um pequeno aparelho de alarme, com a qual poderia avisar a central a qualquer momento de que estava em perigo. O carro parou à frente da entrada principal da grande casa. O jovem oficial atravessou o portão do jardim à frente de Isit, subiu alguns degraus de uma escada antiquada e acionou o botão da cigarra, instalado à direita do pesado portal. Um dos lados do portal abriu-se. A escolta de Isit parecia sentir-se um tanto insegura ao olhar para a penumbra reinante no interior do hall de entrada. — Vá entrando — recomendou Isit. — Esta gente não tem o habito de receber os visitantes na porta. O oficial entrou no hall. Isit seguiu-o numa distância conveniente. Divertiu-se ao ver o jovem manter a mão constantemente nas proximidades do coldre em que guardava a arma. Parecia um pouco assustado. Dos fundos do hall, duas enormes escadas rolantes em curva levavam ao primeiro andar. Na parede dos fundos havia outro portal, quase do mesmo tamanho daquele pelo qual Isit acabara de entrar. Conforme sabia, atrás do mesmo ficavam os corredores e aposentos e o pavimento térreo. Alguém desceu aos saltos pela escada rolante da esquerda. Isit reconheceu o saltador baixo, de cabelos negros, que passara a chefiar o grupo. Kural por sua vez reconheceu o chefe do serviço secreto e ficou parado ao pé da escada. — O que está preocupando o chefe supremo desta vez? — perguntou em tom áspero. Isit viu seu acompanhante estremecer. Deu uma risada. — Nada — respondeu em tom alegre. — Só vim para fazer uma visita em caráter particular. Kural sorriu, exibindo os dentes brancos. — Será que alguém vai acreditar nisso? O jovem oficial dirigiu-se a Isit. — Senhor... — disse, ofegante. — Se quiser... Isit interrompeu-o com um gesto. — Não quero, não — disse. — Acho que seria conveniente que sentasse em algum lugar e aguardasse minha volta. Tenho certeza — disse com uma mesura irônica em direção a Kural — de que nosso anfitrião encontrará uma sala mais confortável onde possa conversar comigo. Kural não deu a impressão de que a idéia o deixara entusiasmado, mas depois de algum tempo abriu a porta grande da parede dos fundos e convidou Isit a entrar. O jovem oficial ficou no hall, um tanto perplexo e com a impressão de que sem querer entrara num
circo. Como aquele saltador podia ter a audácia de tratar o chefe do serviço secreto dessa forma? Por que Isit Huran não reagia a esse tratamento? O nervosismo do jovem foi diminuindo aos poucos. Nunca tivera contato com forasteiros e procurou convencer a si mesmo de que no trato com as mesmas as regras eram diferentes. Olhou em torno e entre os numerosos móveis esquisitos que ornavam o hall descobriu um que parecia mais ou menos confortável: Sentou no mesmo e procurou relaxar. Mas ficou com a mão próxima à arma. *** A tela pequena mostrava o rosto grosseiro e largo de Guri Tetrona. Guri estava falando pelos restos da rede de microcomunicação que tinham resistido ao tempo passado desde os dias de Artur Konstantin. — Compreendeu bem, moça? — perguntou Guri. A moça era uma criatura castanha, cujas linhas perfeitas não eram afetadas nem mesmo por uma peça deformante como a toga dos saltadores. Sacudiu a cabeça e lançou um olhar furioso para Guri. — Não — chiou. — E continuo a afirmar que vocês enlouqueceram no seu deserto de pedra, ou que o computador positrônico tem alguns parafusos frouxos. Guri não perdeu a calma. — Está bem — resmungou. — Vamos agir de forma diferente. Preste atenção. Você ou um dos outros fica com o material encaminhado e o faz chegar às mãos de Isit Huran. Isso tem de ser feito de tal maneira que no momento em que estiver examinando o material Isit Huran possa ser vigiado pela forma que combinamos. O assunto tem pressa, e espero receber quanto antes a notícia de que a tarefa foi executada. Neste meio-tempo Curd receberá novas instruções. Entendido? A moça tapou os ouvidos. — Você já disse isso — protestou. — É verdade, mas acontece que desta vez é uma ordem! — gritou Guri, furioso, e desligou. Por algum tempo a moça fitou o receptor mudo com uma expressão de perplexidade. Depois também desligou. Foi à janela do aposento espaçoso e olhou para fora. “Quer dizer que agora é para valer”, pensou. “Não será aos poucos, conforme pretendíamos, mas de uma só vez, num golpe. Querem começar logo com o segundo homem de Plofos.” Á esquerda da janela havia uma mesinha. Sobre essa mesinha estava o embrulho que um mensageiro trouxera na manhã daquele dia. A moça sabia o que havia nesse pacote. Era o material que deveria ser encaminhado a Isit Huran. Isit encontrava-se no andar térreo, onde estava conversando com Curd. Os preparativos para a vigilância só demorariam alguns segundos. Curd nem precisaria saber disso. Fora tudo preparado de tal maneira que a situação era controlada automaticamente. Além disso Curd era um homem inteligente. Saberia o que devia dizer. Mais tarde colheria suas informações. Terry Simmons, especialista da segurança terrana, conhecida pela polícia plofosense pelo nome de Malita e identificada como uma das pessoas pertencentes ao clã do saltador
Maltzo, iniciou os preparativos do primeiro grande passo da operação destinada a provocar a queda da ditadura em Plofos. *** — O senhor já tomou bastante do meu café — observou Kural em tom pouco amistoso. — Acho que já está na hora de dizer por que veio. A sala em que estava sendo travada esta conversa seria confortável, se os saltadores não a tivessem decorado ao seu gosto, que era bastante exótico. As pesadas cortinas só deixavam à vista algumas frestas das enormes janelas, e as poltronas verticais, de encosto alto, juntamente com os sofás construídos no mesmo estilo, davam a impressão de um museu. A sala ficava no mesmo nível do jardim que se estendia atrás da casa, e as pontas floridas dos arbustos penetravam pelas frestas das janelas. — O senhor tem uma casa muito confortável — disse Isit em tom pensativo. — Sim, graças ao seu chefe supremo — resmungou Kural. — Que mais? Isit sorriu e passou a dedicar sua atenção exclusivamente ao saltador baixo. — Como vão os preparativos da expedição de molkex? — perguntou. Kural fez um gesto de pouco caso. — Não foi por isso que o senhor veio — respondeu em tom contrariado. — Se quiser saber isso, basta pedir informações no porto espacial. O senhor sabe tão bem quanto eu que daqui a trinta dias estaremos em condições de partir. Isit confirmou com um gesto. Kural tinha outra pergunta na ponta da língua, mas antes que pudesse formular a mesma, a porta abriu-se. Uma moça entrou na sala. Isit a conhecia. Era Malita, uma das três mulheres pertencentes ao grupo dos saltadores. Malita era um pouco mais alta que Kural. Dava a impressão de uma moça que acabava de festejar seu décimo-sétimo aniversário. Mas a expressão de seu olhar era mais amadurecida, e de resto, com os saltadores a gente nunca sabia exatamente a quantas andava. De qualquer maneira, era uma moça bonita; quanto a isso não havia a menor dúvida. Malita segurava um pequeno embrulho e foi diretamente para perto de Kural. Falou com ele numa língua que Isit não entendeu. A desconfiança começou a tomar conta do mesmo. Acontece que não possuía qualquer aparelho que lhe permitisse registrar a conversa, nem podia proibir os saltadores de usarem uma das numerosas línguas que eles dominavam. Teve a impressão de que aquilo que Malita disse a Kural deixou o mesmo bastante surpreso. A moça acrescentou mais três ou quatro palavras. Kural sacudiu os ombros e deu-se por satisfeito. Pegou o embrulho. Malita lançou um olhar pouco amistoso para Isit e retirou-se. O silêncio passou a reinar na ampla sala. Kural contemplou o embrulho guardado no seu colo. Finalmente levantou os olhos. Isit surpreendeu-se ao ver um ligeiro sorriso irônico, que sem dúvida era dirigido a ele. O saltador baixo levantou-se. — Tenho uma coisa para o senhor — disse e atirou o embrulho para Isit. Voltou à poltrona, estendeu a mão em direção à mesa que ficava junto à mesma e comprimiu alguns botões numa régua de comando. Uma tampa abriu-se numa mesa em forma de coluna que ficava no centro da sala, e um aparelho de formato cúbico apareceu na mesma. Isit não deixou que isso o perturbasse. Abriu o embrulho, tendo o cuidado de notar que já fora aberto antes, e examinou seu conteúdo. Era apenas uma pequena fita de videofone. Isit contemplou-a de todos os lados e certificou-se de que tinha um aspecto inofensivo.
— Esse aparelho está ligado para a Terra — disse Kural. — O senhor mesmo pode operá-lo. Isit levantou-se e foi para perto da mesa. Sabia como funcionava o toca-fitas. Inseriu o pequeno carretel e comprimiu o botão de partida. A tela, que ficava na tampa do aparelho, iluminou-se. Uma voz começou a falar: — Primeiro de julho de dois mil trezentos e vinte e nove, onze horas e trinta minutos, tempo central. Há cerca de dez minutos uma chuva muito estranha para esta época do ano começou a cair. — Isit aguçou o ouvido. Isso fora ontem. A chuva derrubara todas as previsões de tempo. Nestes meses simplesmente não podia chover em Taylor City. Isit compreendeu o que o homem que estava falando queria. Pretendia fixar o momento exato em que a fita tinha sido gravada. Era bem verdade que a indicação apenas representava o limite inferior. A fita não poderia ter sido gravada antes da chuva. — Dentro de alguns segundos meu retrato aparecerá na tela — prosseguiu a voz. — E o mesmo retrato que pode ser encontrado em meus documentos. O número de meu documento de identidade e os outros dados importantes estão registrados na margem inferior. Faço questão de ressaltar que minha identidade pode ser cabalmente provada com base nesta fita e no modelo de modulação guardado no arquivo. A voz silenciou. Os pensamentos começaram a executar uma dança louca na cabeça de Isit, quando o retrato apareceu na tela. Tratava-se do retrato constante de um documento de identidade do serviço secreto. O número da matrícula, a data da fotografia e a unidade da tropa estavam registrados na parte inferior do retrato. Era claro que o nome do portador do documento também constava do mesmo. Isit leu, e sua inteligência recusou-se a acreditar naquilo que os olhos viam. KEL BASSA. — Como vê, ainda estou vivo! — disse a voz. Isit teve uma tontura. Existem momentos em que a alegria e a sensação de triunfo inundam a mente de tal forma que a mesma perde o controle sobre o corpo e suas reações. Isit cambaleou, tropeçou e por pouco não caiu. Kural veio em seu auxílio, aparando a queda. De repente Isit recuperou o autocontrole. Notou o olhar de Kural e compreendeu que caíra numa armadilha rudimentar como se fosse um principiante.
2 Plofos era a carga que mais pesava para o governo do Império Solar. Era o grande centro de resistência contra o poder do Império. Plofos estava no começo e no fim dos esforços de separar os mundos coloniais do Império e transformá-los em estados independentes. Com a queda de Plofos, o maior perigo estaria removido. O governo do Império possuía provas suficientes da prática de atos ilegais pelo chefe supremo e seus colaboradores, entre os quais se pode citar o seqüestro de Rhodan e outras pessoas pela Guarda Azul de Plofos. Pelas normas contidas na Constituição, seria perfeitamente possível obrigar o chefe supremo e seus asseclas a enfrentar o tribunal, condená-lo e colocar um governador militar no seu lugar. Dessa forma o problema estaria resolvido, pois não havia a menor dúvida de que Iratio Hondro, o chefe supremo, era a força que impelia para a frente os movimentos de independência dos mundos coloniais. As coisas pareciam muito simples, mas Perry Rhodan resolveu adotar um procedimento bem mais complicado. Seria necessário muito mais que uma sentença judicial para obrigar Hondro a abandonar seu posto. Para executar a sentença, o Império teria de atacar Plofos com sua frota espacial. Os outros mundos coloniais, que não sabiam muito bem a quem deveriam dar ouvidos, teriam passado, ao menos em parte, para o lado de Hondro, e dessa forma se alcançaria exatamente aquilo que se queria evitar. A queda de Iratio Hondro devia ser provocada de dentro para fora. Teria de haver uma revolução em Plofos, que afastasse Hondro e seus lacaios. As extensas investigações realizadas a grande distância e principalmente em base teórica haviam revelado que o potencial revolucionário do mundo colonial Plofos era bastante amplo. Em outras palavras, havia muita gente insatisfeita. Dessa forma o plano tinha boas chances de ser bem sucedido. Sem que a segurança plofosense ficasse sabendo, uma base subterrânea foi instalada no mundo gelado Sicos, que era o sexto planeta do sistema plofosense. Doze especialistas da Segurança Galáctica, entre os quais se encontrava o Major Guri Tetrona, chegaram oficialmente a Plofos a bordo de uma nave de guerra plofosense. Outros quarenta agentes seguiram-nos por um caminho secreto. Dessa forma a base tinha sido lançada. Só faltava fazer rolar as pedras. E este era um problema difícil. Como é que um grupo de revolucionários amadores poderia triunfar sobre um serviço secreto equipado com os recursos mais modernos, e cujos membros possuíam um excelente treinamento, além de estarem inteiramente à mercê do chefe supremo, que poderia recusar-lhes o antídoto de que precisavam para não terem uma morte miserável? Esta pergunta só poderia ter uma resposta bem simples. A Terra precisava descobrir o antídoto. As pesquisas neste sentido estavam sendo realizadas há muito tempo. Vários médicos aras trabalhavam para o governo do Império. Se alguém pudesse ser bem sucedido neste setor, só poderia ser um ara. Por muito tempo tudo indicava que a tarefa era difícil demais até mesmo para um ara. Mas finalmente Sima-Orth entrou em cena. Tratava-se de um toxicólogo ara, ao qual um médico da mesma raça que trabalhava para o Império pedira um conselho. De início Sima-Orth analisou amostras do sangue do Administrador Geral e dos homens mortos que tinham recebido a injeção de veneno. Os
ativadores celulares que usavam tinham neutralizado a ação do veneno, mas em seu sangue ainda devia haver traços do elemento estranho. Sima-Orth encontrou-os. Descobriu os vírus em estado de rigidez cristalizada. Sima-Orth também descobriu a enzima que causava essa rigidez. A mesma era produzida com abundância pelos ativadores celulares, por assim dizer sob a forma de resíduo. O organismo normal, não intoxicado, não sabia o que fazer com elas e expelia-as. Livres da enzima paralisante, os vírus logo despertaram e deram início à sua atividade funesta. O soro foi injetado num animal. Este morreu depois de algum tempo e seu organismo apresentou sinais visíveis de degenerescência. Sima-Orth prosseguiu nas experiências, até ter certeza. A enzima era o chamado antídoto, que o chefe supremo dava de trinta em trinta dias às pessoas de sua confiança. Só faltava produzir esse antídoto em quantidades suficientes, pois Sima-Orth também descobrira que uma variante da enzima, que só se diferenciava da substância original pela posição de dois átomos, matava o vírus em vez de colocá-lo num estado de rigidez cristalina. O ara deu ao medicamento o nome de biocompentim. O primeiro ser humano usado como cobaia foi o próprio Perry Rhodan, que recebeu uma injeção de biocompentim. Num exame de sangue realizado duas horas depois não se encontrou mais o menor sinal dos vírus. Estes se tinham dissolvido. Depois disso foi iniciada a produção em grande escala. O Administrador realizou uma manobra simulada para levar o medicamento para Plofos. No dia 25 de junho de 2.329 apareceu com um grupo composto por oito naves nas proximidades do sistema do sol Eugaul, ao qual pertencia o planeta Plofos. Estacionou a cerca de um dia-luz da órbita do planeta mais distante desse sol e intimou o chefe supremo pelo hiper-rádio a restabelecer as relações diplomáticas normais com o mundo-metrópole do Império e manifestar sua concordância com a restituição da embaixada terrana. Iratio Hondro nem sequer julgou necessário dar uma resposta. Perry Rhodan nem contara com a mesma. O que lhe interessava era somente que o Tenente Ali el Hagar saísse da nave-capitânia num envoltório-contorno e seguisse em direção a Plofos. O envoltório-contorno era uma das conquistas mais recentes da técnica. No fundo consistia num campo energético dirigível, dotado de um sistema de autopropulsão, capaz de transportar um passageiro pelo espaço. O campo energético tinha uma vantagem: seu teor de radiação era insignificante, motivo por que era praticamente impossível que fosse detectado pelos rastreadores. A bordo do envoltório em cujo interior viajava Ali el Hagar havia cinco mil ampolas de biocompentim, o que era mais que suficiente para subtrair os elementos mais importantes do serviço secreto à influência do chefe supremo. Assim que tiveram certeza de que Iratio Hondro não responderia à intimação, as oito naves retiraram-se da área que estava ao alcance dos rastreadores das patrulhas plofosenses. Enquanto isso o Tenente Ali el Hagar penetrava em velocidade considerável no sistema de Eugaul. Fez uma parada em Sicos, o mundo de gelo onde havia uma base subterrânea e constatou que por lá tudo estava em perfeita ordem. Fez uma ligeira pausa e prosseguiu viagem em direção a Plofos, onde Guri Tetrona o recebeu de braços abertos, depois que tinha explicado o motivo de sua presença. É bem verdade que além das cinco mil ampolas de biocompentim, Ali el Hagar trouxe uma ordem do próprio Perry Rhodan. A ordem era a seguinte: Agir com a maior rapidez! E Guri Tetrona pautou sua ação por esta ordem.
*** Nos longos anos de trabalho no serviço secreto Isit Huran aprendera a recuperar-se depressa de uma surpresa. Libertou-se da mão de Kural que o apoiava e deu dois passos para trás. — O senhor cometeu um erro — disse em tom sério. — Não deveria ter-me dado isso. Apontou para o toca-fitas, no qual a espula que já chegara ao fim girava que nem um pequeno carrossel. — Por que não? — perguntou Kural com uma ironia mordaz. — Kel Bassa foi seqüestrado — respondeu Isit. — O senhor conhece seu paradeiro, e dali se conclui que provavelmente é um dos responsáveis pelo seqüestro. Mesmo que não seja, possui informações suficientes para justificar um rigoroso interrogatório. No fundo Isit sabia que não conseguiria blefar o pequeno saltador. Afinal, a armadilha provavelmente fora montada pelo próprio Kural. Mas ainda havia uma pequenina chance de que tudo não passasse de uma série de acasos, e Isit Huran não seria capaz de numa situação como esta deixar de lado qualquer chance, por menor que fosse. Kural sorriu. Via-se que se divertia com a situação. — O senhor não vai fazer nada disso — disse com a maior calma. — Na verdade, não nos julga tão bobos como finge. Sabe perfeitamente que as chamadas reações de ponta de qualquer cérebro podem ser detectadas a grande distância com aparelhos relativamente simples. Uma reação de ponta é a atividade que o cérebro desenvolve num momento de choque. Cada tipo de reação de ponta produz um modelo característico de radiação. É perfeitamente possível distinguir a alegria do susto. Nesta casa existe um aparelho cujos registros provam que sua reação à notícia de que Kel Bassa sobreviveu foi de alegria. Se sua reação tivesse sido diferente, a fita e o aparelho teriam desaparecido imediatamente. O que será que o chefe supremo acharia se lhe apresentássemos fotografias da cena em que o senhor ouviu a reprodução da fita e lhe fornecêssemos uma prova irrefutável do tipo de reação surgida em seu cérebro? Isit enxugou o suor da testa. Quem sabe se o homem cuja voz acabara de ouvir nem era Kel Bassa? Era bem verdade que não era nada fácil falsificar o retrato de um documento de identidade, mas a organização em cujo nome Kural falava parecia estar muito bem equipada. Se Kel Bassa não estava mais vivo, ele se teria alegrado em vão. Neste caso estaria em poder dos saltadores. Enfiou a mão no bolso. A confusão que se apoderara dele passou imediatamente. Seus dedos vigorosos seguraram o pequeno aparelho de alarme. Acontecesse o que acontecesse, ele não permitiria que alguém o fizesse de bobo. Bastaria que Kural desse a resposta errada, e estaria liquidado. Era bem verdade que o próprio Isit Huran também estaria. — Diga uma coisa — principiou com uma calma forçada. — A pessoa cuja voz acabo de ouvir não foi Kel Bassa, foi? — O senhor viu seu rosto — disse Kural, esquivando-se a uma resposta direta. — Vi na tela — reconheceu Isit. — Mas nunca o vi em pessoa. Kel Bassa era tenente. O senhor acha que eu sou obrigado a conhecer todos os tenentes do serviço secreto? Kural sacudiu a cabeça. — Não; mas não tenha medo — disse em tom sério. — O homem cuja voz e imagem foi gravada nesta fita realmente é Kel Bassa.
— Exijo provas — disse Isit em tom áspero. De repente Kural parecia transformado. Deu a impressão de ser um homem que não podia ser subestimado. — O senhor não está em condições de fazer exigências — disse em tom calmo. — Nosso plano prevê que lhe apresentemos Kel Bassa para provar que o chefe supremo não tem o monopólio do antídoto. O fato de aquele saltador estar informado sobre a prática do veneno e do antídoto, adotada pelo chefe supremo, deixou Isit indiferente. — Quem são vocês? — perguntou. Kural voltou a exibir por alguns segundos o sorriso quase infantil com o qual tanto enervava Isit. — Faça o favor de deixar por nossa conta a escolha do momento em que lhe daremos as necessárias informações — respondeu. Voltou para a poltrona e com um gesto convidou Isit a sentar. — É preferível conversarmos sobre como e quando poderemos apresentar-lhe Kel Bassa — sugeriu. *** Jerk Hansom não possuía qualquer título oficial. Costumava-se dizer que era o assessor do chefe supremo, mas o cargo de assessor não constava de qualquer lista do serviço público. Jerk Hansom tinha uma entrevista por semana com Iratio Hondro. Era voz corrente que Jerk assessorava o chefe supremo em questões econômicas. Essa opinião fundava-se em grande parte no aspecto exterior de Jerk. Tinha um metro e setenta e cinco centímetros de altura, era um pouco cheio de corpo e devia ter seus cinqüenta anos. Três quartas partes de sua cabeça eram tomadas por uma calva, que geralmente cobria com um chapéu de abas duras. Trajava roupas sofisticadas, usava uma linguagem distinta e dava a impressão de ser o presidente de um grande complexo industrial. Era bem verdade que em Plofos não existiam grandes complexos industriais, e as indústrias menores não pertenciam a nenhum particular, pois todas elas tinham sido estatizadas. Acontece que a impressão causada por Jerk estava profundamente gravada na mente das pessoas. Para todos os efeitos era um grande dirigente industrial, e logicamente a única coisa que o chefe supremo poderia querer dele era ouvir suas opiniões sobre o desenvolvimento e as potencialidades da economia plofosense. Na noite do dia 2 de julho de 2.329 a entrada de Jerk Hansom foi cercada das mesmas circunstâncias de sempre. Chegou ao palácio do chefe supremo com o rosto sério, segurando uma pasta de couro embaixo do braço. Uma sentinela acompanhou-o ao primeiro andar. Como sempre, o oficial que se encontrava na ante-sala quis anunciar a presença do assessor ao chefe supremo, mas como das outras vezes o chefe supremo adiantou-se ao subordinado, anunciando pelo alto-falante: — Faça entrar o senhor Hansom, capitão! Jerk Hansom fez uma mesura em direção ao alto-falante e exibiu um sorriso bem estudado. A porta abriu-se, e Jerk subtraiu-se aos olhares das pessoas que o cercavam. Ao ouvir o clique da trava da porta que acabara de fechar-se atrás dele, Jerk segurou a pasta que mantivera embaixo do braço entre dois dedos e deixou-a cair ao chão no lugar em que se encontrava. Foi para perto da poltrona que ficava ao lado da enorme escrivaninha e deixou-se cair na mesma com um suspiro. Iratio Hondro acompanhou tudo com uma expressão alegre. Jerk sentou com tanta força que a peça rangeu e recuou um pedaço.
Antes de dizer qualquer coisa, Jerk tirou um cigarro de um estojo metálico, acendeu-o, puxou fortemente a fumaça e expeliu-a, formando nuvens azuis. Só depois disso mostrou-se disposto a falar. Voltou a pegar o cigarro, examinou-o demoradamente e finalmente disse: — Sua bodega está fedendo, meu caro chefe supremo. Iratio deu uma risada. — Em que se baseia para dizer isso? — perguntou. — Várias coisas. Jerk levantou-se, pegou a pasta que deixara cair e tirou uma placa escrita da mesma. — Elaborei uma programação detalhada do caso Bassa para o centro de computação positrônica e alimentei o mecanismo com a mesma. O programa entra bem mais profundamente nos resultados das investigações do que foi possível das vezes anteriores. — E daí...? Jerk soprou fortemente o ar. — A máquina chegou à conclusão de que só existem duas possibilidades — respondeu. — Houve um milagre, ou então... — Ou então...? — Ou então P.R. está metido nisso. Iratio recostou-se na poltrona e passou a mão pelo queixo. — Então é isso — disse em tom deprimido. — Sim, é isso mesmo — confirmou Jerk, sem impressionar-se nem um pouco com o sobressalto de Iratio. — A esta altura já não existe a menor dúvida de que o apartamento foi aberto com uma cópia da chave. O desconhecido não teve outra oportunidade de instalar seu mecanismo. Você sabe como funcionam as fechaduras eletrônicas. Para fabricar a chave certa, deve-se conhecer uma entre noventa bilhões de combinações possíveis. Esta combinação só pode ser identificada na própria fechadura. Ora, ficou provado que a fechadura da porta de Bassa nunca foi retirada. Dali se conclui que o desconhecido deve ter apurado in loco aquela uma entre as combinações cujo número chega a dez na décima potência. E, por sua vez, esse desconhecido possui um aparelho que nossos especialistas ainda não conhecem. Iratio Hondro pigarreou. — Você poderia fazer o favor de explicar melhor? — perguntou em tom de dúvida. — É claro que sim. — Jerk levantou os olhos e brindou o chefe supremo com um sorriso condescendente. — Não sei se você compreenderá, mas vamos lá. Qualquer trava eletrônica funciona com base em quatorze séries de impulsos. Estas séries podem ser coordenadas em aproximadamente noventa bilhões de maneiras diferentes. Quer dizer que qualquer instrumento que tenha por fim transmitir o código dessa trava deve estar em condições de irradiar cada uma das quatorze séries de impulsos. Isto não é tão difícil assim. Quase todo mundo conhece as modalidades dos impulsos. Mas dali surge o problema. O instrumento teria de irradiar noventa bilhões de combinações de impulsos, para verificar a qual delas a trave reage positivamente. E não é só isto. Tudo isso tem de ser feito dentro de dois minutos, pois sempre que alguém mexe por mais de dois minutos na fechadura, o alarme automático dispara na central. — Jerk voltou a guardar os papéis na pasta. — Você é capaz de imaginar como deve ser esse aparelho? Iratio olhou para a tampa da escrivaninha. — É claro que para o centro de computação positrônica de Plofos isso seria uma brincadeira — prosseguiu Jerk implacavelmente. — Mas pelo que sabemos ninguém
desmontou o centro de computação e carregou-o ao edifício em que residia Bassa. Aliás, por lá não foi registrada a entrada de qualquer pessoa que tivesse introduzido um objeto muito grande. Quer dizer que o instrumento que tateou a fechadura deve ter sido tão pequeno que cabe no bolso de uma calça. Jerk colocou a pasta cuidadosamente no chão e bateu nas coxas. — E isso, meu caro, é uma coisa que só os terranos podem fabricar, com o auxílio da microtecnologia siganesa. O chefe supremo permaneceu calado. Não havia uma única luz acesa na ampla sala. O crepúsculo começou a descer sobre o planeta, e a única coisa que Jerk via de Iratio era uma sombra negra que se destacava contra o retângulo cinzento da janela. — Pois é, sua tarefa passa a ser esta — disse o chefe supremo depois de algum tempo. O relato deixara-o bastante impressionado. Jerk percebeu isso por sua voz. — Quero que você descubra quem são os agentes de Rhodan e onde se encontram. Como sabe, o assunto é muito urgente. Quanto maior for o tempo em que podem fazer das suas, maior será o prejuízo que poderão causar. — Hum — fez Jerk. — Quanto a isso não existe dúvida. Depois disso permaneceu imóvel em sua poltrona. — Será que você tem mais alguma notícia alarmante? — perguntou Iratio com um ligeiro tom de pânico na voz. Jerk deu uma risadinha. — Não é tão ruim assim — disse para tranqüilizar seu interlocutor. — Fiz uma observação interessante. Iratio soltou um suspiro. — Vamos lá! Jerk Hansom endireitou-se na poltrona, dando a impressão de que queria prepararse para uma fala mais prolongada. — Como sabe — principiou — qualquer pessoa normal tem um número normal de conhecidos, com os quais conversa pelo videofone um número normal de vezes em cada mês. Os números são bem conhecidos. Qualquer conhecido de um homem normal pode esperar dele umas três chamadas por mês. Por favor, não me interrompa. Isto foi estatisticamente verificado, e a estatística estabelece uma média entre os conhecidos mais ou menos íntimos. — Iratio realmente tivera uma objeção na ponta da língua, mas resolveu ficar calado. — Como sabe, — prosseguiu Jerk — exerço uma vigilância regular das ligações feitas pelos funcionários mais importantes do país. Não tenho poderes para fazer a escuta, e provavelmente isso não renderia muito. Mas estou em condições de verificar quando e com quem alguém falou. Foi o que fiz, e notei uma coisa estranha. — Fez uma pequena pausa para acender outro cigarro. — Existem três pessoas que mantêm um número extremamente elevado de palestras videofônicas com duas pessoas pertencentes ao seu círculo de conhecidos. É claro que isso acontece com certa freqüência. Alguém pode ter um excelente amigo e não se sente bem se não conversar com ele ao menos uma vez por dia. Mas aqui as coisas são diferentes. As pessoas a que me refiro são Will Heeph, Arnt Kesenby e Sono Aront. Iratio Hondro ficou totalmente confuso. Jerk sorriu. Compreendia perfeitamente que Iratio estivesse assustado. Arnt Kesenby era almirante da frota espacial plofosense, Will Heeph exercia as funções de ministro do interior e Sono Aront era chefe da equipe de pesquisas de ciência política. — Gostaria que também cuidasse desse assunto — disse o chefe supremo. — Hum — fez Jerk. — Era o que eu imaginava.
— Quero ser informado quanto antes. Jerk levantou. — Calma, meu chapa — advertiu. — Não podemos excluir a possibilidade de que não há nada de errado nisso e não queremos chocar ninguém, não é mesmo? O chefe supremo não respondeu. Jerk pegou sua pasta e retirou-se. Deixou a sós um homem que refletia profundamente sobre o curso desagradável que os acontecimentos estavam tomando e sobre o estranho relacionamento que mantinha com Jerk Hansom. *** Kazmer Tureck sentiu-se como um gato que morde o próprio rabo. Como especialista de Guri Tetrona em questões procedimentais, elaborara pessoalmente o plano de estabelecimento de contato com os neutralistas de Plofos e tinha certeza de que o melhor método era o estabelecido neste plano. Baseado nesta certeza, Guri encarregara Kazmer de executar seu próprio plano. Acontece que, embora o plano fosse o melhor possível, segundo acreditava Kazmer, ainda era miseravelmente ruim. Bastaria uma reação errada do homem com o qual Tureck pretendia entrar em contato, e ele estaria liquidado. Kazmer Tureck usava o uniforme de um oficial da frota plofosense. A cabeça grosseira era coberta por um boné de pano azul-marinho com o distintivo de capitão. Era bem verdade que o carro planador em que Tureck viajava tinha placa particular. Tureck decidira assim por uma questão de diminuição de risco, muito embora a placa oficial da frota lhe tivesse dado um aspecto mais genuíno. Tureck estacionou o veículo na praça alongada que ficava à frente do grande conjunto de edifícios da administração da frota. Ao descer lançou um olhar triste para o elegante veículo e perguntou-se se jamais voltaria a vê-lo. Dali a um segundo passou a concentrar-se exclusivamente em sua tarefa. Na área de estacionamento o trafego era bastante intenso. Centenas de pessoas uniformizadas caminhavam entre os veículos e deslocavam-se sobre as esteiras rolantes que saíam da extremidade sul da área e, atravessando alguns gramados bem cuidados, dirigiam-se ao enorme portal do conjunto. “Talvez minha idéia nem seja tão boa assim”, pensou Kazmer. “Certamente demorarão em receber-me”. A esteira rolante descarregou-o juntamente com outros passageiros num gigantesco hall coberto por uma cúpula transparente. As saídas emolduradas de vermelho dos elevadores antigravitacionais brilhavam nas paredes. No centro do hall via-se uma série de guichês de informações dispostos em círculo. Kazmer Tureck dirigiu-se para lá e foi informado por um robô rudimentar em forma de caixa de que os escritórios da administração superior da frota ficavam no décimo quinto andar. Kazmer atravessou a confusão do gigantesco hall e tomou um elevador expresso que ia diretamente ao décimo quinto andar. Foi parar num corredor amplo e bem iluminado. Havia portas de ambos os lados, pequenos bancos junto às paredes e uma movimentação muito escassa. Esperou que uma das portas se abrisse. Um sargento com uma pilha de pastas embaixo do braço saiu da mesma. Kazmer perguntou onde ficava a sala em que poderia pedir uma entrevista e obteve uma informação minuciosa. A sala ficava quinze metros adiante, no mesmo corredor. Kazmer entrou e viu-se numa pequena sala quadrada, em cujo interior uma jovem tenente e um capitão de meia idade pertencente ao corpo feminino passavam o tempo em conversas particulares. Kazmer entrara um tanto abruptamente, não dando tempo para que as duas disfarçassem sua inatividade. O tenente levantou-se de um salto e
sua continência foi um pouco rígida demais. O capitão, que era uma mulher rechonchuda de aproximadamente trinta e cinco anos, brindou Kazmer com um sorriso embaraçado. — Kazmer Tureck, da linha externa de defesa — disse Kazmer. — Vim por iniciativa própria para tratar de um assunto oficial da maior importância. Solicito uma entrevista com o almirante que está no comando. O tenente continuava de pé atrás de sua escrivaninha. Quando ouviu a solicitação de Kazmer, exibiu um sorriso embaraçado. — Não me compete dar conselhos ao senhor — principiou, bastante constrangida. — Mas no caso... — Pois não, tenente. — O chefe não costuma receber ninguém que simplesmente vai entrando. A solicitação tem de passar pelos canais competentes. O senhor compreende? O senhor pode preencher um formulário e dar entrada do mesmo. Depois disso sua solicitação será classificada segundo a importância e... — ...e até lá toda a linha de defesa externa vai para o inferno — interrompeu Kazmer em tom áspero. — Não vou fazer nada disso. Submeta minha solicitação ao chefe. — Pôs a mão no bolso e tirou um porta-documentos, do qual tirou uma pequena peça de plástico retangular. — Apresente minha identificação. A única coisa que o chefe pode fazer é dizer não, e se fizer isso, mais tarde terá de culpar-se pelas conseqüências. O tenente ensaiou uma última objeção. — O senhor não poderia formular sua solicitação por escrito? — perguntou. — Não! — gritou Kazmer em tom zangado. —Saia andando logo, senão farei com que o senhor preste serviço numa nave de guerra! Dentro de alguns segundos o tenente saiu da sala. Kazmer puxou uma cadeira e colocou-a à frente da escrivaninha do capitão. Acomodou-se na mesma, apoiou os cotovelos sobre a escrivaninha e sorriu para a mulher. — Diga-me uma coisa. Que tipo de homem é Arnt Kesenby? — perguntou. *** Arnt Kesenby não tinha a intenção de receber um visitante tão insolente. Mas enquanto balançava na mão o retângulo de plástico com a identificação do solicitante, começou a suspeitar de que o mesmo realmente pudesse ter uma coisa importante para dizer-lhe. As linhas externas de defesa garantiam a defesa de Plofos e cuidavam para que nenhum estranho pudesse desrespeitar a proibição geral de entrada. Talvez não fosse nada inteligente mandar o homem embora. Arnt Kesenby era um homem de estatura mediana, cujo crânio enorme era coroado por uma calva reluzente. Quem o visse sentia o sopro de dureza e resolução que fizeram Arnt atingir o posto de comandante supremo da frota espacial. Era uma das raras pessoas que eram rápidas e seguras quando se tratava de uma decisão importante. O retângulo de plástico foi enfiado numa fenda que ficava no canto inferior direito da escrivaninha. Arnt Kesenby estava decidido a receber o capitão insolente, mas antes disso queria saber mais a seu respeito. No pavimento do subsolo do conjunto de edifício havia uma memória positrônica que continha as informações sobre todos os membros da frota espacial, informações estas que eram fornecidas a uma simples solicitação. O cartão de identificação continha o código que levava a máquina a fornecer informações sobre seu portador. Arnt Kesenby ficou olhando para a fenda de saída e ficou tamborilando impacientemente na escrivaninha.
Ouviu-se um arranhar quando um cartão saiu da fenda e escorregou um pedaço sobre a escrivaninha. Arnt pegou o cartão e examinou-o. O texto gravado no mesmo era pouco extenso, mas as poucas palavras que compunham o mesmo bastaram para que o almirante quase ficasse sem fôlego. NÃO EXISTEM INFORMAÇÕES SOBRE O CAPITÃO KAZMER TURECK. Arnt Kesenby ficou atordoado por alguns segundos. Mas de repente despertou para uma súbita atividade. Se a máquina dizia que não possuía informações sobre Kazmer Tureck, era porque na frota espacial não havia nenhuma pessoa com este nome. O cartão de identidade que foi expelido da fenda logo após o cartão era falso. Arnt tinha certeza absoluta disso, mas preferiu conhecer a opinião da máquina. Voltou a introduzir o retângulo de plástico na fenda e mandou que a máquina examinasse a autenticidade do documento. Teve tanta certeza do resultado que, em vez de aguardar a resposta, se dispôs a tomar as medidas que o caso requeria. Finalmente o cartão-resposta foi atirado sobre a escrivaninha, seguido de perto pelo cartão de identidade. No cartão-resposta lia-se: O DOCUMENTO ATENDE AOS REQUISITOS DE AUTENTICIDADE. Ao ler isso, Arnt Kesenby teve de interromper suas atividades e recostar-se profundamente na poltrona, para recuperar-se do choque. Na frota espacial não existia nenhum capitão Kazmer Tureck, mas o cartão de identidade apresentado pelo homem que usava esse nome e título era autêntico. Portanto, concluiu o almirante, existem duas possibilidades. As informações sobre os membros da frota espacial, armazenadas na máquina, eram incompletas, ou então o cartão de identidade era uma falsificação tão bem feita que nem mesmo o computador positrônico era capaz de reconhecer a falsidade. Depois de refletir um pouco, Arnt excluiu a primeira alternativa. Os registros dos membros da frota espacial eram inteiramente automatizados. Era impossível ocultar a existência de um homem que fosse ao computador positrônico. Portanto, o documento era falso. E para falsificar um cartão de identidade de tal forma que nem mesmo o banco de memória o percebesse precisava-se de uma série de aparelhos bem mais avançados que o computador positrônico instalado no subsolo. E este computador era uma das máquinas mais aperfeiçoadas existentes em Plofos. De repente Arnt Kesenby sorriu. Precisava ver o homem que andava com um documento como este. Mas antes disso teria de garantir a própria segurança. Mandou que um oficial com cinco homens permanecessem na sala situada do outro lado do corredor e mandou que prendessem o Capitão Kazmer Tureck assim que ele desse o sinal. Depois recebeu Kazmer Tureck. *** Kazmer fez uma continência impecável ao entrar na sala. O rosto indiferente de Arnt Kesenby e a atitude distraída com que respondeu ao cumprimento eram um sinal de que seu plano estava dando resultado. O almirante estava quebrando a cabeça. O documento de identidade deixara-o tão curioso que não poderia deixar de receber seu portador, pois mais que isso contrariasse as praxes. — Capitão Tureck? — perguntou Arnt. — Sim senhor. — Qual é o assunto que o traz aqui? Tureck sorriu e fez um gesto em direção à porta. — Mande retirar os guardas — sugeriu. Arnt Kesenby deu um salto de alguns centímetros.
— Como...?! — O senhor não precisa deles — prosseguiu Kazmer. — Não mandará prender-me. Pelo contrário. Ficará grato porque eu o levei a afastar todas as testemunhas de nossa conversa. O almirante levantou-se e cruzou as mãos nas costas. Contornou a escrivaninha e aproximou-se de Tureck. Fez avançar a grande cabeça calva e os olhos frios e duros pareciam querer perfurar Kazmer Tureck. — O senhor vai dizer agora mesmo por que veio, — disse Arnt Kesenby em tom enérgico — ou não me chamarei mais de Kesenby se dentro de cinco minutos não estiver trancado numa cela. Tureck pôs a mão no bolso. — Como queira — resmungou. Tirou um pequeno embrulho e entregou-o ao almirante. — Aqui está uma fita de videofone — disse. — É uma peça bem pequena. Coloquea no aparelho e faça a reprodução. O almirante pegou o embrulho com as pontas dos dedos e fitou Tureck. — Não aceito ordens dos subordinados — observou em tom frio. Tureck não se abalou. Apontou para o embrulho. — Faça a reprodução e depois repita o que acaba de dizer — recomendou. A calma inabalável do homem acabou por convencer Arnt Kesenby. Voltou à escrivaninha e colocou a pequena espula no videofone. Ligou-o e olhou para a tela. Quando a imagem apareceu, sobressaltou-se. Viu uma jovem ruiva que o fitava com o rosto sério. O alto-falante transmitiu suas palavras: — Dirijo-me a todos os seguidores de Kositch Abro. Aqui fala Mory Abro, filha e substituta do lorde. O portador desta fita é meu homem de confiança, que tem uma mensagem detalhada para o senhor. Suas ordens devem ser acatadas. Chegou o momento. Vamos atacar. Não havia mais nada na fita. A tela apagou-se. Arnt Kesenby fitou Tureck por cima da escrivaninha. Seus olhos chamejavam. — O quê... como... — gaguejou. — Mande embora os guardas para que possamos conversar — disse Tureck. Arnt Kesenby obedeceu imediatamente. *** Não foi difícil convencer Isit Huran de que o antídoto realmente existia. Viu Kel Bassa a grande distância, para que pudesse reconhecê-lo, mas não teve possibilidade de falar com ele. Já sabia que a fotografia constante do documento de identidade representava o verdadeiro Bassa, e que o modelo da voz gravada na fita conferia com aquele que o serviço secreto mandara confeccionar com base na voz do Tenente Bassa. A apresentação foi feita numa casa vazia situada na periferia de New Taylor. Kural levou Isit Huran para lá. Não se sabia de que maneira Kel Bassa tinha chegado ao local. Ao que parecia, estava sozinho na casa. Estava lá quando Isit Huran e Kural chegaram, e continuou depois que eles se retiraram. — Para que todo esse segredo? — perguntou Isit quando se encontrava novamente no carro ao lado de Kural. Kural manobrou o veículo para a pista de rolamento, digitou o endereço de sua casa e deixou o resto por conta do piloto automático. Lá fora o sol estava baixando para o horizonte. A escuridão quis cobrir a cidade, mas as luzes acenderam-se.
— Todo mundo tem seus segredos — disse Kural em tom indiferente. — Para mim não — respondeu Isit com um sorriso. — Será... ? — respondeu Kural. — Por que não permitiu que Bassa falasse comigo? — perguntou Isit e logo respondeu à sua própria pergunta: — Porque poderia revelar alguma coisa sobre a organização que está atrás disso. Naturalmente conhece as pessoas que lhe forneceram o antídoto. Sabe por exemplo... Hesitou e Kural olhou-o de lado. — Sabe o quê? — Bem... sabe que essas pessoas não são saltadores. — Ah, é? Isit resolveu atacar de frente. — Como o senhor está ligado a esses desconhecidos e, como se sabe, os saltadores raramente se associam a indivíduos de outras espécies, só se pode concluir que o senhor também não é nenhum saltador. Kural permaneceu calado. Isit sentiu-se decepcionado porque a revelação que acabara de fazer praticamente não abalou seu interlocutor. — O senhor é um homem perfeitamente normal — prosseguiu. — Se não veio da Terra, seus antepassados vieram. E quem está interessado na introdução do antídoto e na queda do governo do chefe supremo é o governo do Império, não um bando de saltadores que veio parar aqui ao acaso. — Parece que o senhor tem muita certeza do que está dizendo — disse Kural em tom calmo. Isit confirmou com um gesto. — O senhor desempenhou muito bem o seu papel. Acredito que tenha sido condicionado. Traz em sua mente as recordações de um saltador. Mas não é a pessoa que finge ser. Kural deu uma risada. — Como soube disso? — Houve um pequenino erro — respondeu Isit. — Admiro-me de que o mesmo tenha ocorrido apesar do condicionamento a que foi submetido. Lembra-se da conversa que tivemos hoje de manhã? Estávamos sentados numa sala de sua casa, e o senhor não quis acreditar que eu tinha vindo para fazer uma visita de cortesia. — Naturalmente — respondeu Kural. — Uma moça entrou e falou com o senhor numa língua estranha. Disse alguma coisa que o senhor não quis acreditar. Era ao menos a impressão que se tinha. Ela explicou melhor. O senhor não se convenceu, mas acabou cedendo. Existe um gesto típico para esta situação. O senhor sacudiu os ombros. — Isit sorriu, e as luzes do quadro de controle iluminaram seu rosto alegre. — Infelizmente para o senhor trata-se de um gesto terrano. Kural acenou com a cabeça. — O senhor tem razão — confessou. — Foi um erro. Provavelmente os efeitos do condicionamento estão diminuindo. Isit fitou-o com uma expressão de perplexidade. — Quer dizer que confessa que é um terrano? — É claro que sim. — Seu nome não é Kural?
— Não. Sou Curd Djanikadze, tenente da frota do Império Solar, no momento em missão especial. Isit Huran imaginara que no momento em que as máscaras caíssem fosse um pouco mais dramático. Mas a calma de Curd era contagiante. — O objetivo da missão especial é o afastamento do chefe supremo? — perguntou para certificar-se. — O senhor é um homem inteligente — respondeu Curd com um sorriso. — O que se pode ganhar com isso? — A unidade do Império. Iratio Hondro é o núcleo das tendências de separar os mundos coloniais da Terra. Acontece que não enxerga a situação existente fora dos limites do Império. Se dependessem exclusivamente de seus próprios recursos, as colônias seriam vítima do primeiro conquistador que aparecesse por aí. Naturalmente a posição da Terra também pioraria com isso. Isit permaneceu calado. O veículo foi deslizando rapidamente sobre as ruas onde o tráfego era bastante intenso. Isit lembrou-se da idéia que tivera a respeito do desenvolvimento deste mundo. Foi há muitos anos, antes que o chefe supremo tivesse instalado seu governo ditatorial. Plofos era a colônia mais antiga, e antes que fosse imposta a proibição da entrada de pessoas, atraíra milhares de imigrantes por ano. Não teria demorado muito, e Plofos seria um mundo florescente, densamente povoado, onde nada indicaria que sua colonização só tinha sido iniciada há alguns séculos. Iratio Hondro tinha outros planos. Tudo girava em torno de um princípio. O princípio da independência face à Terra, atrás do qual se ocultava sua ânsia de influência e poder. Caso alcançasse seu objetivo, procuraria exercer influência nos outros mundos coloniais. Queria construir um novo império e governar o mesmo. Os outros mundos não concordariam com isso. Haveria guerra, e a economia plofosense teria que trabalhar em benefício da mesma, não pelo bem-estar dos plofosenses. — Não — disse Isit em voz alta. — Não é o que nós queremos. Curd Djanikadze olhou-o. Isit sorriu; parecia embaraçado. — Andei refletindo — disse a título de desculpa. — Gosto muito deste mundo. Curd acenou com a cabeça. — Nós também — disse em tom singelo. Isit olhou para a frente, através do pára-brisa. — Quando a coisa começar de verdade, — disse em tom firme — pode contar comigo.
3 Na manhã do dia seguinte Guri Tetrona encontrou-se com os futuros revolucionários. Will Heeph, um homem baixo e magro, e Sono Aront, que não era muito alto, mas corpulento e possuía uma barba que lhe dava um aspecto compenetrado, tinham sido trazidos para o lado dos terranos de maneira semelhante à de Arnt Kesenby. Os três eram seguidores de lorde Kositch Abro, o finado chefe dos neutralistas, que tinham arrancado Perry Rhodan e seus companheiros das mãos do chefe supremo em Greendoor. Por enquanto os neutralistas constituíam o único movimento subversivo em Plofos e nos mundos que formavam protetorados plofosenses. Não dispunham dos recursos necessários para enfrentar Iratio Hondro, mas representavam os aliados ideais para o projeto de Guri Tetrona. O quarto homem do grupo era Isit Huran, chefe do serviço secreto. Isit ficara profundamente impressionado ao saber que durante todos estes anos os neutralistas tinham formado uma poderosa sociedade secreta em Plofos, que nunca fora descoberta por ele. Não teve nenhuma objeção contra a proposta de colaborar com os neutralistas. No entanto, Will Heeph, Arnt Kesenby e Sono Aront resistiram com todas as forças contra a participação de Isit no complô. Não acreditavam que o chefe do serviço secreto pudesse participar de livre e espontânea vontade de uma operação que visava à queda do chefe supremo. Realmente, a operação por pouco não se frustrou por causa da desconfiança dos neutralistas para com Isit Huran. Guri Tetrona teve de usar toda a capacidade de persuasão de que dispunha para levar os três a participarem da entrevista. Mais uma vez o encontro foi realizado numa casa abandonada situada na periferia de New Taylor. Não foi o mesmo em que Kel Bassa tinha sido apresentado a Isit Huran. O número de lugares iguais a este era assustadoramente grande, pensou Isit Huran. Muitos imigrantes tinham abandonado Plofos ao saberem qual era a política seguida pelo chefe supremo. De outro lado, a proibição de entrada fora um meio eficaz de impedir a chegada de elementos vindos de fora. Guri Tetrona já estava presente quando os participantes da conferência secreta foram chegando um após o outro. Arnt Kesenby foi o último a chegar. Mal entrou na sala vazia em que estava sendo realizada a reunião, Guri deu início à sua exposição. No chão empoeirado via-se uma lanterninha de mão, cujo feixe de luz espalhava uma suave claridade. A sala ficava na parte interna da casa e não possuía janelas. Do lado de fora ninguém perceberia que havia visitantes secretos na casa. — Todos conhecem as idéias básicas do movimento — principiou Guri com sua voz forte e profunda. — Pretendemos o afastamento do chefe supremo e de seu governo. Nós, ou seja, o Império Solar, estamos tão interessados nisso quanto os cidadãos de Plofos. Colocaremos à disposição do movimento os recursos que tornam possível a operação: doses de biocompentim, que é o antídoto que até aqui só o chefe supremo possuía. Será nossa contribuição para a revolução a ser desencadeada em Plofos, e creio que não é uma contribuição desprezível. Portanto, para sermos bem claros, devo ressaltar que serão os senhores que farão a revolução. Permanecerei em segundo plano. Os senhores elaborarão os planos, levarão as pessoas intoxicadas aos pontos de reunião e lhes aplicarão doses de biocompentim. Os senhores derrubarão o chefe supremo. Nada deve transpirar sobre a participação do Império Solar no movimento, para que não haja complicações diplomáticas. Entendido?
Os quatro homens manifestaram sua concordância. — De qualquer maneira, — concluiu Guri — ficar-lhes-ei muito grato se quiserem manter-me informado sobre a evolução do movimento. Entrem em contato com o saltador Kural. Ele possui por assim dizer uma ligação direta comigo. Arnt Kesenby fez uma pergunta. — De que forma o biocompentim chegará à nossas mãos? — Os senhores espalharão a notícia de que dispõem do antídoto. Assim que aparecerem as primeiras pessoas para solicitar uma injeção, avisem Kural. Este lhes fornecerá quantidades suficientes de soro. Arnt deu-se por satisfeito. — Desejo-lhes boa sorte — disse Guri a título de despedida. — A tarefa não será fácil, mas atenderá a uma finalidade nobre. Havia um brilho de esperança e de confiança nos olhos daqueles homens, quando Guri lhes deu as costas e foi saindo. Sabia que tinha escolhido as pessoas certas. Não perderiam tempo, e encontravam-se nos lugares de onde poderiam encaminhar a revolução com força total. Um peso saiu de cima de Guri Tetrona. Ele e seus companheiros tinham feito sua parte em prol da democratização de Plofos. Não lhes restava mais muita coisa para fazer. Só teriam de permanecer em segundo plano e prestar auxílio aos revolucionários quando estes se vissem em dificuldades. Pegou a maçaneta empoeirada, girou-a e abriu a porta. A lanterna jogada no chão lançou sua sombra em tamanho gigantesco para o corredor. Mas à sua direita o cano reluzente de uma arma energética saía da sombra. — Dê um passo para trás, meu caro — disse uma voz calma. — A conferência ainda não terminou. *** Era uma armadilha perfeita demais. Guri não tinha a menor chance de defender-se. Foi recuando diante da arma ameaçadora e manteve os braços afastados do corpo. O homem que segurava a arma foi entrando atrás dele. Era de estatura mediana e um tanto corpulento. Tinha a cabeça parcialmente calva e usava roupas muito elegantes. De certa forma tinha um aspecto tão nobre que a arma que segurava na mão parecia inteiramente fora do lugar. O nobre deu um ligeiro olhar para avaliar a cena e sorriu. — É bom vê-los reunidos aqui, cavalheiros — disse. — Sou Jerk Hansom, assessor de sua excelência, o chefe supremo, e como tal estou muito interessado nas coisas que as autoridades mais importantes de nosso país fazem a estas horas da noite. Guri examinou-o atentamente. Sabia perfeitamente que não poderia esperar nenhum auxílio dos quatro plofosenses, pois os mesmos não possuíam nenhuma experiência em situações deste tipo. Era o único que tinha uma chance. Em sua opinião o desconhecido que segurava a arma era um homem perigoso. Tinha certeza de que o mesmo não se arriscara a entrar sozinho na casa abandonada. Seus homens deviam estar escondidos na escuridão. Até parecia que Jerk tinha adivinhado os pensamentos do homem que se encontrava à sua frente. Virou-se para ele. — Nada de tolices — advertiu, e de repente o tom amável de sua voz desapareceu. — Fique com as mãos onde estão. Sem desviar os olhos, gritou:
— Pronto! Podem colocá-los fora de ação. Guri entesou o corpo quando viu três homens atravessarem a porta. Estavam vestidos à paisana, mas em seus rostos havia a dureza característica dos fanáticos. Dois foram para junto dos plofosenses. O terceiro, um homem magro e alto, cujo rosto de menino formava um contraste grotesco com os olhos frios, contornou Jerk Hansom e plantou-se à frente de Guri. Estendeu a mão e Guri viu o brilho metálico de uma agulha entre seus dedos. Reconheceu o perigo e tentou atirar-se para o lado. Mas o homem foi mais rápido. Guri sentiu a picada da agulha no antebraço e caiu ao chão. Não perdeu os sentidos, mas não sentia mais o próprio corpo. Guri conhecia o veneno que acabara de ser injetado em seu corpo. O mesmo paralisava o sistema nervoso, mas não provocava a inconsciência da pessoa atingida. Guri olhou para cima e viu à luz débil da lanterna um pedaço do teto revestido de madeira. Não podia mover a cabeça. Acreditava que os quatro plofosenses tinham sido postos fora de ação da mesma maneira que ele. Perguntou-se o que aconteceria dali em diante. Se Jerk os entregasse ao chefe supremo, tudo estaria perdido. Só teriam uma chance se nos próximos minutos conseguisse transmitir uma mensagem à base situada nas montanhas. Na ausência de Guri Kazmer Tureck comandava a mesma. Se Kazmer agisse como devia, colocando fora de ação Jerk Hansom e seus três guardas pessoais antes que deixassem a casa, a catástrofe poderia ser evitada. Guri tentou mexer os dedos da mão direita. Não conseguiu. Era ao menos o que parecia. Mas uma dor misturada com um formigante subiu por seu braço, provando que seu sistema nervoso já começava a recuperar-se da ação do veneno. Guri teria sorrido se ainda possuísse o domínio de seus músculos faciais. Tinha uma vantagem sobre Jerk Hansom. Sabia por quanto tempo o veneno paralisaria seu corpo. De repente uma sombra entrou em seu campo de visão. — Enquanto meus homens fizerem os preparativos para o transporte, vou explicarlhe a situação — disse Jerk em voz calma e indiferente. — Vários elementos de suspeita nos levaram a vigiar constantemente Will Heeph, Arnt Kesenby e Sono Aront, isso há bastante tempo. Hoje de noite, quando vieram para cá, alguém os seguiu. Fui avisado, e julguei o assunto bastante importante para verificar pessoalmente o que estava havendo. Fez uma pausa, e Guri tentou novamente mexer os dedos da mão direita. A dor provocada pelo esforço muscular era alucinante. Mas Guri sentiu a reação dos dedos. Só precisaria de mais sete ou oito minutos para recuperar-se a ponto de poder entrar em ação. — É bem verdade que mesmo para mim a presença de Isit Huran num lugar como este foi uma surpresa total. Tenho certeza de que o chefe supremo também estará muito interessado em saber disso. Infelizmente não cheguei em tempo para ouvir sua conversa. Mas imagino que de forma alguma a reunião atendeu aos objetivos da segurança do estado. Não sei de que forma esperam afastar o meio de pressão de que dispõe o chefe supremo. Talvez sejam idiotas a ponto de arriscar uma revolta contra o atual governo, contando com a disposição para o suicídio por parte de seus participantes. Mas também é possível que o quinto homem, que não conheço, seja a chave do mistério. Seja como for, os senhores serão submetidos a um interrogatório no qual não poderão esconder absolutamente nada. Que o bom Deus conserve sua presunção, implorou Guri. A vida retomou ao seu corpo sob a forma de uma onda de dor surda. Começou a sentir que não era feito exclusivamente de pensamentos. Era uma coisa pesada, ainda um tanto entorpecida, que
teria de movimentar-se muito depressa nos próximos minutos se quisesse ter uma chance contra Jerk Hansom. — Talvez o senhor esteja admirado com o papel que estou desempenhando nesta jogada — prosseguiu Jerk. — Faz apenas alguns anos que estou em Plofos. Já possuía certa experiência como detetive particular autônomo e ofereci meus serviços ao chefe supremo. Ele os aceitou, e naturalmente quis garantir minha lealdade pelos mesmos meios que usou com os senhores. Mas consegui provar-lhe que não tinha medo de morrer. Deixei bem claro que poderia conseguir um colaborador dedicado sem veneno, ou então, pelo menos por trinta dias, um inimigo ferrenho com veneno. Iratio Hondro escolheu a primeira alternativa e, conforme provam os acontecimentos desta noite, não tem motivo para arrepender-se da escolha. A explanação de Jerk distraíra a atenção de Guri por alguns segundos. Nas ações que se seguiriam seria bom saber que o chefe supremo mantinha um trunfo muito forte escondido na manga do paletó. Ao que parecia, nem mesmo Isit Huran sabia da existência de Jerk Hansom. O fato de que não se mantinha dedicado a Iratio Hondro por causa da ação do veneno, mas de sua livre e espontânea vontade, transformava-o no inimigo número um, ao lado do chefe supremo. Guri percebeu que Jerk estava passando por ele. Arriscou-se a deitar de lado. Conforme dissera Jerk, os três homens estavam preparando o transporte dos prisioneiros. Provavelmente estavam à procura dos veículos que tinham trazido os participantes da conferência. Olhando debaixo para cima, Guri viu as botas de Jerk Hansom desaparecer nos fundos da sala. Também viu os quatro corpos imobilizados pelo veneno paralisante. Finalmente descobriu a lanterna, que estava a apenas dois metros do lugar em que ele se encontrava. Ouviu os passos de Jerk ficarem mais lento e rolou, retomando sua posição original. Jerk estava voltando. Voltou a falar. — Certamente o senhor não compreende os motivos que me levam a agir assim. Sou um inimigo do Império Solar, que acredita... Guri não prestou mais atenção às palavras de Jerk. Estava na hora. Jerk acabara de chegar ao ponto final de sua caminhada e estava voltando. Sua sombra caiu sobre o rosto de Guri, quando passou à frente da lanterna. Guri girou para o lado. Levou um segundo para orientar-se sobre a posição das portas. Depois disso encolheu as pernas e saltou em direção à lanterna. Jerk ouviu o ruído. Sua reação foi instantânea. Guri segurava o metal frio da lanterna e viu-o virar-se abruptamente. O cano da arma energética brilhava em sua mão. Guri atirou-se para o lado e arremessou a lanterna contra a parede. Um raio compacto e ofuscante de luz e calor chiou ao penetrar no chão bem à sua frente. O vidro da lanterna espatifou-se de encontro à parede, e a mesma apagou-se. Guri já se pusera de pé. Sentiase ofuscado pelo clarão do tiro energético. Anéis coloridos dançavam diante dos seus olhos. Mas lembrava-se perfeitamente de onde ficavam as portas. O segundo tiro passou a alguns centímetros de Guri. Este sentiu a lufada do ar quente deslocado pelo feixe energético. A porta estava bem à sua frente. Atirou-se com toda a força contra a mesma. O plástico velho e quebradiço espatifou-se. Guri caiu num corredor escuro, que cheirava a mofo, mas no mesmo instante pôs-se de pé e saiu correndo para salvar a vida. De repente teve medo de Jerk Hansom, um homem de reações extremamente rápidas. O mesmo atirou pela terceira vez atrás dele. Desta vez Guri sentiu que o raio energético o atingira de raspão, queimando seu ombro. Soltou um
grito de dor, mas no mesmo instante o clarão do tiro mostrou-lhe a janela alta e larga que ficava no fim do corredor. Guri não teve alternativa. Quando se encontrava a dois passos da janela, preparou o salto. Impeliu-se com os pés e saltou de cabeça em direção à janela. Protegeu o crânio com as mãos. Ouviu-se um estrondo seguido de um tilintar, e uma dor ardente atravessou as mãos. Por um segundo apavorante Guri perdeu o controle da situação. Mas logo atingiu o chão. A sujeira esguichou no seu rosto e rangeu entre os dentes. O cheiro da grama penetrou em seu nariz. Conseguira! Estava do lado de fora. Ainda um pouco atordoado com a queda, levantou-se e saiu cambaleando. Ouviu a voz de Jerk Hansom na escuridão que se estendia atrás dele. Já não era calma e amável, mas áspera e penetrante. Guri não compreendeu o que Jerk estava gritando, mas provavelmente estava chamando os homens que tinham vindo com ele. Guri correu uns cem metros e atingiu uma cerca velha, bastante estragada. Derrubou um pedaço da mesma e continuou a correr. Atravessou um caminho e de repente viu-se no interior de um pequeno bosque; as luzes dos carros planadores passavam junto à outra extremidade do mesmo. Sentou atrás de alguns arbustos. Tirou do bolso a caixinha do minicomunicador e chamou a base. Kazmer Tureck respondeu imediatamente. Guri explicou-lhe o que deveria ser feito. *** Guri foi voltando cautelosamente para a casa. Kazmer Gureck levaria cerca de quinze minutos para chegar ao palco dos acontecimentos. Teria de manter Jerk Hansom ocupado durante este tempo. Em hipótese alguma poderia permitir que os prisioneiros fossem levados dali e que Jerk e seus companheiros voltassem à cidade. Guri atravessou a cerca, deitou rente ao chão e pôs-se a escutar. Ouviu o ruído de passos à sua frente. Eram os homens de Jerk que estavam revistando o jardim. Era estranho que permanecessem em silêncio absoluto durante o trabalho. Guri viu a luz de uma lanterna que se acendeu por um instante. O feixe de luz muito amplo só rompeu a escuridão por meio segundo e logo voltou a desaparecer. Guri pôs a mão na pequena arma que trazia no bolso. Não tivera oportunidade de usá-la contra Jerk, pois este fora muito rápido. Mas agora a situação era diferente. Aqueles homens não sabiam onde estava Guri. O fator surpresa trabalharia a seu favor. Teria sido fácil pôr fora de ação o homem que estava segurando a lanterna! Mas sua intenção não era esta. Jerk Hansom e seus homens só podiam ter vindo num carro planador. Provavelmente o tinham escondido em algum lugar, da mesma forma que Guri, os plofosenses tinham colocado seus veículos em bons esconderijos. Era possível que o veículo possuísse um transmissor e neste caso Jerk talvez resolvesse informar o chefe supremo sobre as ocorrências. Era necessário impedir que isso acontecesse. Iratio Hondro não devia ter conhecimento dos acontecimentos mais recentes. Guri deslocou-se para o lado e contornou os homens bem ao longe. Não era difícil. O ruído de seus passos na folhagem revelava sua posição e a única coisa que tinha de fazer era manter-se fora do feixe de luz da lanterna. À sua direita o cubo escuro da velha casa foi saindo da escuridão. Guri ficou deitado algum tempo e pôs-se a escutar. Lá da frente, bem de longe, vinham os ruídos da rua. Perguntou a si mesmo se Jerk Hansom ainda estaria lá dentro, com os prisioneiros. Se estivesse, devia ser atraído para fora antes que Kazmer Tureck aparecesse com seu
grupo. Guri não tinha a menor dúvida de que Jerk mataria os prisioneiros no momento em que percebesse que estava cercado. Os olhos de Guri já se tinham acostumado à escuridão. O veículo planador de Jerk devia estar por perto. Jerk tivera muita pressa. Por pouco não chegara tarde. Certamente não perdera muito tempo escondendo o veículo. Guri seguiu para a esquerda. Um conjunto de plantas ornamentais despertou seu interesse. Fazia meses que um jardineiro tinha cuidado desse conjunto pela última vez, e os arbustos formavam uma parede quase impenetrável. O cheiro de ozônio enchia o ar. Guri respirou aliviado. O ozônio formava-se nas imediações do propulsor de um veículo. As emanações radioativas que atravessavam o revestimento do reator de fusão produziam as moléculas compostas de três átomos de oxigênio em quantidades fáceis de constatar. Guri levantou-se e atravessou a confusão de galhos. Não precisou esforçar-se muito. Logo a sombra escura do carro planador apareceu à sua frente. Jerk certamente o colocara entre os arbustos, vindo de cima. Guri parou e forçou os ouvidos. O veículo estava abandonado. Não havia ninguém por perto. Guri aproximou-se e abriu a portinhola do motorista. Uma luz acendeu-se, iluminando o painel de instrumentos. Era exatamente o que Guri supusera. Entre os instrumentos com que o veículo estava equipado havia um transmissor de ondas ultracurtas. Os botões de controle ficavam à direita do motorista, e o microfone estava preso a dois grampos embaixo da coluna da direção. Guri ajoelhou-se no assento do motorista e estendeu a mão para baixo para tirar o microfone do suporte. Foi neste momento que foi atingido subitamente por uma pancada na cabeça. Seus ouvidos zumbiram e as forças pareciam abandonar seus músculos. Mas conseguiu dar-se conta de que estava em perigo. Não precisava mais do que isso. Alguém agarrou violentamente seus pés e procurou puxá-lo para fora do carro. Guri encolheu os joelhos e impulsionou os pés para a frente. O desconhecido soltou um grito. Guri rolou do assento e caiu no nicho destinado ao joelho do acompanhante do motorista. Encontrou a pequena arma energética que lhe tinha caído das mãos. Levantou apressadamente o braço esquerdo e pegou a alavanca que abria a portinhola. Esta abriu-se. Guri voltou a impelir-se com os pés e caiu do lado de fora. Ouviu alguém espernear do outro lado do carro. Guri correu em torno do capo do motor. Ouviu-se o chiado de um ofuscante tiro energético, que cortou o ar alguns centímetros à sua frente. O inimigo estava deitado no chão e voltou a apontar a arma. Guri reconheceu o homem com rosto de criança, que lhe aplicara a injeção paralisante. Levantou a arma energética e atirou. Acertou em cheio. Ouviu-se o ruído de passos, vindo do lado da casa. — Mannin... ? — gritou uma voz áspera. Era Jerk Hansom. Guri respirou aliviado. — Aqui! — gritou, colocando a mão na frente da boca. — Ele me escapou. Atirou-se com toda força contra a parede vegetal elástica e rompeu a mesma. Jerk veio correndo da casa. Guri conseguira enganá-lo, mudando a voz. Era ao menos o que acreditava. Encontrava-se numa pequena clareira, que não tinha mais de dois metros de diâmetro è estava cercada de todos os lados por uma vegetação selvática. Ficou quieto, para não fornecer qualquer indicação a Jerk. Mas logo percebeu que Jerk não precisava disso. O ruído de seus passos cessou de repente. Uma claridade ofuscante surgiu à frente de Guri e no mesmo instante os arbustos pegaram fogo. Guri soltou um grito de pavor.
Jerk não se deixara enganar. Os arbustos estavam muito secos. Um único tiro energético fora suficiente para incendiá-los. Guri não perdeu tempo. Precisava sair dali, fosse o que fosse o que o esperava do lado de fora. No meio da vegetação morreria com certeza. No lado em que ficava a casa as chamas já estavam chegando à clareira. Guri atirou-se para a direita. A fumaça e o calor quase o deixaram sem fôlego, mas os arbustos foram quebrando sob o impacto furioso de seu corpo. Com a força do desespero, Guri rompeu uma trilha larga entre a confusão de galhos. Finalmente saiu cambaleante. Deixou-se cair imediatamente ao chão. Certamente Jerk esperava que fosse sair do lado oposto à casa. Devia estar por perto, à espera do momento em que pudesse atingi-lo com um tiro energético. As chamas levantaram-se atrás de Guri. A madeira seca espalhava um calor escaldante. Guri saiu rastejando. Olhou cautelosamente para os lados. Viu uma coisa que emitia um brilho fosco suspensa no ar pouco atrás dele. O objeto foi descendo lentamente. Guri levantou-se de um salto. Kazmer Tureck e seu grupo estava chegando. As bolhas cintilantes dos envoltórios-contorno iam pousando, apagavam-se assim que tocavam o chão e expeliam homens. Tiros de armas energéticas iluminaram a escuridão. Em meio ao barulho Guri ouviu a voz retumbante de Tureck, que gritava ordens. A luta estava no auge. Guri lembrou-se de Jerk. Contornou a moita incendiada e saiu tropeçando em direção à casa. Kazmer, que estava à sua esquerda, gritou alguma coisa que ele não entendeu. Um homem alto passou balançando perto de Guri. Este não lhe deu nenhuma atenção. Guri entrou correndo na casa, com a arma energética na mão. Foi em direção à sala em que fora realizada a conferência. Estava escuro. Guri encontrou a porta, abriu-a abruptamente e saiu correndo para a escuridão. Esperava que a claridade dolorosa de um tiro energético rompesse a escuridão e o impacto da energia concentrada o derrubasse. Mas não aconteceu nada disso. Guri tropeçou por cima de um corpo imóvel e caiu ao chão. Perdeu sua pistola energética e apalpou o chão. Tocou em mais dois corpos. Passou a mão pelo mesmo, encontrou a cabeça e colocou os dedos à frente da boca. Passaram-se alguns segundos carregados de medo e tensão. Mas logo sentiu o sopro suave da respiração entre os dedos, e a tensão desapareceu como que por encanto. Guri deixou-se cair de lado. Jerk Hansom estava lá fora, e Kazmer Tureck e seus homens não permitiriam que ele escapasse. Já não havia mais nada a recear. A situação estava sob controle. A revolução seguiria seu curso em Plofos. Guri relaxou. *** De repente um raio de luz atingiu seu rosto. Era o feixe de luz de uma lanterna que caminhava ao acaso pela sala. — Aqui! — gritou Guri. — Aqui há quatro homens inconscientes, que precisam recuperar os sentidos quanto antes. Mais duas lanternas acenderam-se, e de repente a sala empoeirada ficou mergulhada numa luz ofuscante. Guri ergueu-se. Sentia-se exausto, mas não era hora de deixar-se vencer pelo cansaço. Kazmer Tureck aproximou-se. — Pegamos dois homens — disse.
Guri sobressaltou-se. O homem com rosto de menino estava morto. Desta forma ainda restavam dois dos homens que tinham acompanhado Jerk Hansom. Tureck deveria ter prendido um total de três homens. — Mostre-me os dois — resmungou Guri. Kazmer Tureck virou a cabeça e fez um sinal. Dois homens passaram com as mãos levantadas pela porta escura, ao lado da qual se haviam colocado os homens de Tureck com suas lanternas. Um soldado com a arma apontada seguiu os dois homens. Guri só olhou uma vez. Os dois homens pertenciam à escolta de Jerk. Este tinha escapado aos homens de Tureck. — Revistaram todo o terreno? — perguntou Kazmer. — Revistamos, com o maior cuidado — respondeu alguém. Guri hesitou um segundo. — Onde está Wilbro Hudson? — perguntou. — Está chegando! — disse uma voz contrariada vinda da porta. Wilbro entrou, com uma enorme bolsa embaixo do braço. — Ainda bem que chegou — resmungou Guri, contrariado. Apontou para os quatro corpos imóveis. — Estes homens receberam um tóxico para os nervos. Provavelmente é um simples veneno da polícia. Faça com que recuperem os sentidos o mais depressa possível. Ainda temos muita coisa para fazer hoje de noite. Wilbro ajoelhou-se perto de Isit Huran e abriu sua bolsa. Guri deu-lhe as costas. — Sofremos alguma perda, Kazmer? — perguntou sua voz retumbante. Tureck sacudiu a cabeça. — A surpresa foi tamanha que não tiveram a menor chance. Uma idéia atravessou a cabeça de Guri. — Nem sequer houve feridos? — perguntou em tom de espanto. — Nada. Ninguém foi atingido. Nem sequer estes dois — disse, apontando para os homens pertencentes à escolta de Jerk. — Chame seus homens — ordenou Tureck. Via-se que Tureck ficou surpreso com a ordem. Apesar disso obedeceu. Atravessou o corredor escuro, chegou à porta e chamou os homens. Estes vieram depressa. A sala ficou cheia, pois o grupo era formado por vinte homens. Guri examinou o rosto de cada um e viu que sua suposição fora correta. Entre os homens de Tureck havia alguns que eram quase do mesmo tamanho do homem que quase o derrubara lá fora, quando estava correndo em direção à casa. Acontece que o rosto desse homem estava manchado de sangue, e nenhum dos homens de Tureck estava ferido. Guri não tinha a menor idéia de como Jerk Hansom conseguira transformar-se de um instante para outro de um homem de estatura mediana num homem muito alto, mas nem por isso mudou de opinião. Jerk passara correndo por ele sem que ninguém o impedisse. À esta hora devia estar parado à beira da estrada, tentando fazer parar um carro planador. Dali naturalmente iria para junto de Iratio Hondro. Guri não sabia qual era o relacionamento entre Jerk e o chefe supremo e quanto tempo levaria o primeiro para conseguir uma audiência. Na pior das hipóteses Jerk seria admitido imediatamente. Neste caso, mesmo calculadas todas as eventualidades, restar-lhe-iam cerca de dez minutos para cercar o palácio do chefe supremo e prender Jerk Hansom assim que o mesmo aparecesse por lá. Virou-se abruptamente.
— Como vão as coisas, Wilbro? Wilbro nem levantou os olhos. — Isit está acordando — resmungou. — Este magricelo voltará dentro de alguns segundos, e os outros dois ainda levarão dois ou três minutos. Guri ajoelhou-se. Sacudiu os ombros de Isit Huran. Isit abriu os olhos e fitou-o com uma expressão de perplexidade. — Onde... o quê,..? — Não temos tempo — disse Guri com um gesto apressado. — Jerk Hansom... Lembra-se de Jerk Hansom? Isit passou a mão pela testa e finalmente respondeu com um aceno de cabeça. — Pois é, Jerk escapou— gritou Guri em tom exaltado. — Já deve ter percorrido metade do caminho que leva ao palácio do chefe supremo. Precisamos pegá-lo antes que possa informar Hondro. Naquele momento Isit Huran provou que era um homem duro. Empurrou-se com as mãos e levantou-se. — Venha comigo — limitou-se a dizer. — Vamos no meu carro. Guri virou a cabeça. Will Heeph começava a erguer-se sobre os cotovelos. Guri apoiou-o embaixo das axilas e levantou-o. O homem pequenino emitiu um grunhido de surpresa. — Venha conosco — ordenou Guri em tom áspero. — Kazmer, você nos seguirá com seus homens e ficará postado nas proximidades do palácio. Será uma ação improvisada. Você mesmo verá o que deve ser feito. Avise Porro Mallin, que está na base, e diga-lhe que deve ficar de prontidão. Tureck confirmou com um gesto, mas Guri não viu mais. Correu pelo corredor escuro, seguindo Isit Huran e apoiando Will Heeph, que continuava meio atordoado. Era tudo uma questão de segundos. *** A viagem pela cidade foi um verdadeiro pesadelo. Na direção de seu próprio carro, Isit Huran praticamente não deixou de violar nenhum dos duzentos artigos do código de trânsito plofosense. De qualquer maneira, isso fez com que Will Heeph acordasse de vez e protestasse em alta voz pela maneira como Isit estava dirigindo. Guri cortou-lhe a palavra e explicou em frases curtas e apressadas qual era a situação em que se encontravam. Explicou que, se Iratio Hondro tivesse tempo de tomar suas providências a revolução estaria perdida. Will Heeph calou-se; estava apavorado. Isit Huran fez o carro descrever mais uma curva violenta e o fez parar junto à entrada do palácio do chefe supremo. Uma sentinela saiu da guarita e enfiou a cabeça pela janela do carro. — O senhor me conhece? — perguntou Isit. A sentinela fez continência. — Estou trazendo o ministro do interior e um prisioneiro muito importante — disse Isit. — Preciso falar o mais depressa possível com o chefe supremo. A segurança do Estado está em jogo. Anuncie-me. A sentinela retirou-se. O carro planador entrou em movimento e Isit voltou a olhar para o lado: — Quantos carros passaram por aqui nos últimos quinze minutos? — perguntou em voz alta. — Nenhum, senhor — respondeu a sentinela.
Isit respirou aliviado. O carro planador subiu velozmente pela rampa larga situada junto à entrada principal do palácio. Os três homens desembarcaram. O grande portal de vidro abriu-se diante deles e um oficial em uniforme de gala foi ao seu encontro no hall de recepção. Isit Huran falou pelo grupo. Will Heeph ficou atrás de Guri, com uma arma energética apontada para suas costas. Guri ficou com os olhos semicerrados e procurou dar a impressão de que estava zangado e desesperado. Não foi muito difícil. O tiro disparado por Jerk Hansom, que o atingira de raspão, doía que nem o diabo, e Guri preferiria mil vezes estar numa cama vazia a desencadear a revolução plofosense no meio da noite. O nome de Isit Huran abria todas as portas. O oficial em uniforme de gala já fora informado pela sentinela que se encontrava junto ao portão o que estava acontecendo. Levou imediatamente o chefe do serviço secreto e seus acompanhantes ao elevador e subiu com eles ao primeiro andar. O largo corredor principal estava vazio. Só havia dois guardas postados junto à entrada da ante-sala do gabinete em cujo interior Iratio Hondro passava as horas de trabalho. O oficial encarregou-se de conduzir os visitantes e fez com que os guardas se afastassem. Na ante-sala um major de meia idade estava classificando documentos. Arregalou os olhos de espanto ao ver Isit Huran entrar. A escolta aproximou-se de uma escrivaninha e fez menção de segurar um microfone para informar o chefe supremo de que as pessoas anunciadas acabavam de chegar. Mas antes que o aparelho fosse ligado, o alto-falante colocado sobre a porta interna entrou em atividade. — Entre! — disse uma voz áspera. No mesmo instante a porta abriu-se. Fez um gesto de agradecimento para a escolta. Finalmente entrou no gabinete do chefe supremo à frente do grupo. Como sempre, Iratio Hondro estava sentado atrás de sua escrivaninha. Guri lançou um olhar ligeiro pela sala. Viam-se todos os cantos da peça e não parecia haver ninguém além de Iratio. Era claro que ninguém sabia quantas entradas e saídas ocultas possuía a sala. Guri resolveu ficar com os olhos bem abertos. Era a primeira vez que via o chefe supremo, e não tinha a menor dúvida de que se tratava de um dos homens mais perigosos com que jamais se confrontara. Depois de fazer a devida mesura, Isit Huran começou a explicar os motivos da surpreendente visita feita a essa hora. Guri e Isit haviam estabelecido as linhas gerais da exposição durante a viagem. Pretendiam entreter o chefe supremo por algum tempo e, se possível, arrancar-lhe uma informação sobre se Jerk Hansom já tinha aparecido de novo. Guri Tetrona assumiu o papel do observador mudo. Por enquanto ninguém sabia se Jerk revelara ao chefe supremo as suspeitas que tinha contra Will Heeph. Quando este entrou na sala, Iratio Hondro não mostrara nenhuma reação suspeita. Era bem verdade que isso não significava nada. A chegada de Will Heeph fora anunciada pela sentinela que se encontrava no portão principal, e dessa forma o chefe supremo tivera tempo de sobra para preparar-se. Isit desempenhou seu papel de forma eficiente e elegante. Fez um relato amplo, cheio de minúcias, sobre a localização dos prisioneiros, sem revelar nada sobre o que havia atrás disso. Iratio Hondro não o interrompeu nem uma única vez. Ficou com os olhos quase fechados, e era difícil saber quando olhava por baixo das pálpebras. Guri não se impressionou com isso. Finalmente Isit calou-se. De pé e com um sorriso amável aguardou a resposta de chefe supremo. Estava inteiramente transformado num homem que fizera um bom trabalho e esperava um elogio. Iratio acenou com a cabeça.
— Foi um bom serviço, Isit — reconheceu. Fitou Guri. — Será que eu me lembro deste homem? Tenho a impressão de tê-lo visto pelo menos uma vez numa fotografia. Isit não se perturbou nem um pouco. — Tem uma semelhança extraordinária com o saltador Maltzo que, segundo dizem, teria sido assassinado num botequim — confessou. — Ainda vamos descobrir se é o mesmo homem. Iratio inclinou a cabeça. — Está vendo? Desde o início afirmei que havia algo de errado com os saltadores — observou em tom sarcástico. Guri sentiu que a conversa estava tomando um rumo desastroso. Aquele homem baixo e corpulento de rosto inchado e gasto não estava levando a cena tão a sério como seria de esperar. Guri teve a impressão de que sabia perfeitamente que aquilo não passava de um drama. Guri fez um esforço tremendo para descobrir uma indicação de que Jerk Hansom estava escondido em algum lugar. Precisaria proferir a palavra que representava a senha para que Isit entrasse em ação; isso deveria ser feito assim que tivesse certeza de que Jerk estivera ali antes deles. — Já tomou alguma providência neste sentido? — perguntou o chefe supremo. Isit disse que tinha visitado os saltadores no dia anterior e que não encontrara nada de suspeito. Fez uma exposição extensa sobre aquilo que Kural lhe teria dito sobre os preparativos da expedição de molkex. O olhar de Guri vagava de um lado para outro. As cortinas da janela larga e alta tinham sido puxadas para o lado. Ninguém poderia esconder-se atrás delas. As paredes eram lisas e não havia nenhuma reentrância nas mesmas. — Isso não basta — disse Iratio Hondro. — Se necessário poderemos obrigá-los a arranjar o molkex. Você sabe disso tão bem quanto eu. Se estivesse escondido atrás de alguma porta escondida, Jerk não poderia ouvir o que estava acontecendo na sala. Mas Guri tinha certeza de que o chefe supremo pretendia lançar seu trunfo no momento adequado, mesmo que fosse somente para ver a reação dos visitantes. Lançou um olhar para a escrivaninha. A tampa da mesma estava ligeiramente inclinada em direção à janela. Um homem de tamanho normal que se encontrasse na posição de Guri não veria nada que não sobressaísse pelo menos trinta centímetros da tampa. Acontece que Guri tinha mais de dois metros de altura. Viu a régua de comando com cerca de três dezenas de botões e luzes de controles. Uma luz vermelha estava acesa. Isit deu uma resposta indiferente, mas Guri não prestou atenção. Viu o microfone do intercomunicador a cerca de um palmo da luz vermelha. Fora tirado do suporte e colocado de tal forma que a grade ficava virada para a sala. Alguém que se encontrava fora da sala estava ouvindo a conversa! Guri sabia que não poderia perder mais tempo. Encontravam-se na toca do leão, e cada segundo que demorassem representaria uma vantagem de Iratio Hondro, que poderia representar o fim da revolução. Colocou-se na ponta dos pés, de tal maneira que sua cabeça quase tocou o teto, e disse em voz alta: — Saia, Jerk! Sabemos que está aí! Isit Huran deu um salto para o lado. Guri observou o chefe supremo. Iratio não esperara nenhuma surpresa vinda dessa direção. Virou-se abruptamente e a expressão de
espanto e incredulidade que se viu em seus olhos era a prova de que Guri Tetrona precisava. — Vamos acabar com isso, Isit! Era a senha. A pressão da arma energética nas costas de Guri cessou. Atrás dele Will Heeph afastou-se para o lado, a fim de cobrir a retirada. A reação de Isit Huran foi instantânea. Num movimento tão rápido que os olhos não seriam capazes de acompanhálo puxou a arma e apontou-a para o chefe supremo. Teve-se a impressão de que hesitou uma fração de segundo. Guri viu um clarão vermelho cobrir seu rosto. Depois disso a claridade ofuscante do tiro cobriu a cena. A salva de raios chiou, enchendo a sala comum calor escaldante. Guri iniciou a retirada. Sem olhar para trás, saiu andando em direção à porta. Seus pensamentos estavam lá fora, perto dos soldados e oficiais da guarda, que dentro de alguns segundos bloqueariam o edifício e tentariam evitar a fuga dos autores do atentado. Sentiu a porta dura nas costas. A mesma logo se movimentou, abrindo-se de lado. Só então deu-se conta de que o quadro que via à sua frente era bem diferente do que esperara. Isit já baixara a arma, mas a estranha luminosidade continuava a encher a sala. A claridade era tamanha que Guri ficou com os olhos quase completamente fechados para não sentir-se ofuscado. A claridade saía do centro da sala. Guri forçou os olhos e viu os contornos de uma figura humana envolta em fogo, que estava de pé junto à escrivaninha. A idéia atingiu-o com a força de um raio. Tinham esquecido uma coisa! A luz ofuscante apagou-se de repente, e Iratio Hondro estava à frente da escrivaninha, são e salvo. — Ninguém contava com um campo defensivo individual, não é mesmo? — perguntou em tom cínico.
4 Guri agiu imediatamente. — Vamos dar o fora! — gritou, fazendo estremecer as paredes com sua voz potente. A porta estava aberta. Guri pôs a mão para trás e deu um tremendo empurrão em Will Heeph, que saiu cambaleando. Isit seguiu-o. Enquanto isso Guri ficou de arma em punho. Teve a impressão de que uma fresta se abria no canto da sala que ficava junto à janela. Levantou a arma e disparou uma salva ligeira. A parede ficou incandescente. Os tijolos de plástico derreteram-se com um chiado e a massa escorreu preguiçosamente pela parede. Nuvens de fumaça levantaram-se. Guri recuou. A ante-sala estava vazia. Isit e Will já tinham fugido para o corredor. O major de meia idade provavelmente estava escondido atrás de alguma escrivaninha. Gritos soaram no corredor. Ouviu-se um único tiro. Guri saiu correndo. Um dos dois guardas que vigiavam os aposentos de Iratio jazia no chão. Estava ferido. O outro aparecia nos fundos do corredor, correndo para salvar a vida. Isit Huran e Will Heeph estavam à espera a dez metros dali, junto à saída do elevador. Guri ainda se encontrava a alguns metros deles, quando o alto-falante começou a rugir. Era á voz de Iratio Hondro que anunciava que o chefe do serviço secreto, Isit Huran, o ministro do interior, Will Heeph, e o desconhecido que estava em sua companhia deviam ser mortos imediatamente. Guri não esperou que o chefe supremo concluísse sua fala. Empurrou os dois plofosenses para dentro do elevador antigravitacional e saltou atrás deles. O campo energético polarizado levou-os ao andar térreo, muito devagar para seu gosto. Guri mandou que Isit lhe desse passagem e foi o primeiro a saltar para o amplo hall de recepção. Uma penumbra silenciosa enchia o enorme recinto. Havia uma única lâmpada acesa. Guri não perdeu tempo para classificar cada uma das numerosas sombras que havia por ali. Saiu correndo em direção à porta, seguido por Isit e Will. O portal estava fechado. Guri comprimiu os botões do mecanismo de trava, mas as pesadas batentes permaneceram imóveis. O alto-falante voltou a entrar em atividade. — Os traidores estão na entrada principal. O portal está trancado. Não poderão sair. Guri recuou. No mesmo instante em que apontava a arma energética para a trava do portal e comprimia o acionador, o hall ficou movimentado. Ouviram-se passos vindos de todos os lados. — Detenham-nos por alguns segundos — disse Guri entre os dentes. — Vamos sair daqui. Não deu atenção à luta que se desenvolvia atrás de suas costas. Com os olhos semicerrados, observava o raio branco-amarelado da arma energética que lambia o pesado metal plastificado do portal. O material chiava enquanto se derretia e pingava ao chão. Guri apontou um palmo para a direita para soltar a caixa em cujo interior estava instalado o mecanismo de travamento. Atrás dele lampejos atravessavam a penumbra do hall. Sentia-se o cheiro de queimado, e o calor aumentava a cada segundo que passava. Guri mordeu os lábios de
impaciência. O raio da arma energética foi penetrando com uma lentidão inacreditável na trava e começou a dissolvê-la. Guri ouviu um grito estridente e estremeceu. Uma coisa dura bateu em seu ombro e atirou-o um passo para a frente. — É Will! — fungou Isit Huran ao seu ouvido. — Conseguiram atingi-lo. Você ainda não... Até parecia que a trava entendera o chamado. Fez um último movimento. O bombardeio incessante tinha perturbado o desempenho de suas funções. Abriu-se repentinamente e atirou o lado direito do portal para dentro. Guri mal teve tempo para dar um salto para o lado, evitando que a massa tremenda o derrubasse. Atirando ininterruptamente, Isit retirou-se em direção à saída. Guri deixou-se cair sobre os joelhos e pegou o corpo flácido de Will Heeph. Virou-se abruptamente e empurrou-se com os pés. Precipitou-se pelo portal semi-aberto, arrastando Will e, escorregando de barriga, desceu alguns degraus que davam para a passagem de veículos. Isit estava abrigado atrás de um carro. Dividia sua atenção entre a guarita da sentinela que ficava na saída do parque e o portal situado atrás dele. Guri pegou o ferido nos braços, atravessou a passagem de veículos e empurrou-o às pressas através da portinhola do carro, que Isit abrira. Isit saltou atrás dele. Guri correu em volta do carro, disparou ao acaso em direção ao portal e saltou para o assento do motorista. No momento em que o motor estava pegando, os primeiros perseguidores apareceram na saída do edifício. Isit abriu a janela do lado direito e manteve-os sob controle. O motor do carroplanador uivou enquanto o veículo descia pela rampa e se precipitava em direção à saída do parque. Guri respirou aliviado. Só restava um obstáculo no seu caminho: a guarita da sentinela. Acreditava que neste meio-tempo o chefe supremo postara nesse lugar grande parte dos seus guardas. Depois da rampa o caminho descrevia uma curva ampla no parque, para desembocar na estrada, na altura do centro da rampa. De ambos os lados do caminho árvores e arbustos formavam uma cortina impenetrável. A guarita da sentinela ficava à direita da saída, e a curva do caminho era tão fechada que Guri não poderia imprimir a necessária velocidade ao carro. Estava quase decidido a fugir por outro caminho, quando percebeu que errara nos seus cálculos. Um detalhe importante passara despercebido na confusão da luta. De repente lembrou-se. Ao longe, bem à sua frente, um lampejo varreu a escuridão. Devia ter vindo de além da curva que a estrada descrevia à frente do palácio do chefe supremo. Guri abaixou-se instintivamente. Conhecia a luminosidade ofuscante da boca dos pesados canhões energéticos automáticos. O tiro fora dirigido para o palácio. Em todos os lados, novas salvas iluminavam a escuridão. Os lampejos sucediam-se em rápida seqüência, e a noite mergulhou num fogo selvagem. Kazmer Tureck acabara de chegar! Estava atacando o palácio do chefe supremo. Guri pensou em fazer o carro-planador avançar velozmente. Naquele momento a atenção dos guardas tinha sido desviada. E deviam aproveitar o momento para abrir passagem. Então ele viu. O fogo das armas energéticas não atingia o palácio. Quebrava-se numa parede cintilante que saía do chão além da guarita da sentinela, e se estendia para ambos os lados, até onde os olhos de Guri não alcançavam mais. Toda vez que um tiro energético atingia a parede, o lugar, atingido emitia uma forte luminosidade.
Guri Tetrona era entendido em campos defensivos. O que se erguia à sua frente era um dos mais eficientes que já vira. *** Parou o carro e virou a cabeça para Isit Huran. — Então é isto — resmungou. — Não podemos sair. Isit levantou a mão. — Espere aí! — gritou. O tratamento familiar surgira espontaneamente no ardor da luta. — Dê uma olhada! Apontou para além do pára-brisa do carro. Guri viu dois guardas que se encontravam no centro da entrada. Não tinham nada a recear. O campo defensivo protegia-os. Guri percebeu que colocavam em posição um pequeno canhão energético e o apontavam para a escuridão. Quando o canhão disparou, viraram o rosto. Um raio energético de vinte centímetros de diâmetro saiu do cano curto e rompeu a escuridão. Até parecia um pedaço de filme: Guri viu um edifício alto iluminar-se bem ao longe e quebrar em pedaços, quando a salva o atingiu em cheio. — Isso... — disse Isit com uma estranha ênfase. Guri acenou furiosamente com a cabeça. — O campo é transparente de um lado, não é mesmo? — perguntou. Isit Huran confirmou. Guri virou a cabeça e olhou para fora. O portal do edifício continuava aberto. Não parecia haver ninguém por lá. Os homens pertencentes à guarda de Iratio Hondro não quiseram assumir o risco de ficarem expostos ao fogo, o que aconteceria assim que passassem pelo portal. Certamente estavam usando as saídas laterais. Poderiam facilmente aproximar-se do carro, protegidos pela vegetação. Era possível que naquele momento alguém já estivesse apontando a arma para o veículo. — Temos que tentar — disse Guri como se estivesse falando a sós. Os dois guardas estavam preparando o canhão para a segunda salva. Os tiros disparados do lado de fora cessaram repentinamente, mas logo passaram a concentrar-se na entrada do parque. Kazmer Tureck percebera que não poderia romper o campo defensivo. Todavia, o lampejo das salvas representaria uma proteção adicional para os homens de Tureck, pois tiraria a visão dos dois guardas. O carro-planador arrancou. Não se via ninguém por perto, além dos dois homens que se encontravam junto à guarita da sentinela. Guri fez a última curva bem de fora e, acelerando ao máximo, fez com que o carro se precipitasse em direção ao portão aberto. Quando os guardas notaram o perigo, já era tarde. Guri fez subir suavemente o veículo. Atirou os dois homens para o lado e o fundo do veículo arranhou o canhão. O planador subiu abruptamente. O canhão foi atirado para fora do portão e tombou. Guri fez o veículo descrever uma curva. Rompeu o campo defensivo a vinte metros do lugar em que Kazmer Tureck estava concentrando seu fogo. Prosseguiu mais uns cem metros em meio à escuridão e procurou abrigar-se atrás de um pequeno edifício, um tanto isolado. Parou. Isit foi para trás e cuidou de Will Heeph, que continuava inconsciente Guri deixou-o à vontade. Olhou pelas janelas e viu que ambos os lados haviam suspendido o fogo. Bem ao longe viam-se as luzes débeis da cidade. Era um sinal vindo de outro mundo, que não sabia que por ali se travava uma luta de vida e morte por um planeta. Uma sombra saiu da escuridão e aproximou-se do carro. Guri abriu a portinhola e desceu. Viu que a sombra era um dos veículos de Kazmer Tureck. Kazmer em pessoa
desceu do mesmo. Aproximou-se de Guri e apertou-lhe a mão. Guri aceitou o cumprimento, mas seus pensamentos estavam em outro lugar. *** Era pouco antes da meia-noite quando o som estridente do alarme encheu toda a casa. Curd e Terry Simmons eram os únicos que ainda estavam acordados. Os outros se tinham deitado há tempo. O alarme foi dado por um minicomputador, que fazia a leitura de vários instrumentos e interpretava as indicações dos mesmos. Sempre que algum instrumento indicava alguma ocorrência fora do comum, o aparelho dava um sinal de advertência. Se havia suspeita de perigo imediato “para a casa e seus habitantes, o aparelho dava o alarme. O painel que controlava o computador ficava no escritório de Curd. A única coisa que este tinha que fazer era virar a cabeça e comprimir alguns botões para que o aparelho expelisse um cartão impresso que explicava os motivos do alarme. Há alguns minutos o tráfego na rua que passava à frente da casa assumira uma intensidade extraordinária para aquela hora e loca. Os instrumentos registraram a mesma ocorrência na rua que passava atrás da casa, além do parque. Os veículos causadores da intensificação do tráfego não saíram dessas ruas. Estacionaram nos lados opostos à casa. Alguns homens desceram dos mesmos e dirigiram-se às casas mais próximas. Dali a pouco um verdadeiro enxame de pessoas carregadas de bagagem pesada saiu dessas casas. Isso fez com que o aparelho desse o alarme. Só uma lâmpada fraca estava acesa no escritório de Curd. Terry estava sentado mais ao longe, no meio da escuridão. A única coisa que Curd viu foi o brilho do copo que ela segurava na mão. — Algum problema? — perguntou em tom tranqüilo. — E que problema — respondeu Curd. — A casa está cercada, e quem fez o cerco está evacuando as casas vizinhas. A porta abriu-se repentinamente. As pessoas despertadas pelo alarme entraram correndo. Um deles ligou a luz do teto. Os ocupantes da sala, pegados de surpresa, piscaram diante da súbita claridade. — Peguem as armas! — rangeu a voz de Curd. — Estamos sendo atacados. Curd não esperou até que os outros saíssem da sala. Sentou atrás da escrivaninha e pegou o microfone do videofone. Era necessário informar Guri. O sistema de comunicações entre os agentes terranos sediados em Plofos ainda funcionava segundo o esquema que Artur Konstantin desenvolvera há bastante tempo. Um minicomunicador, que funcionava com base num certo código, tinha sido instalado na rede central da cidade. A pessoa que conhecia o código discava determinado número. Em vez de ser transmitida pela rede videofônica, a mensagem era conduzida pelo minicomunicador. Dessa forma as autoridades de Plofos não tinham como saber quem participava da comunicação. Curd discou o número-código, mas o aparelho continuou mudo. A tela brilhava num branco uniforme. As pessoas que se mantinham ocupadas do lado de fora não estavam esquecendo nada. Terry observou a tentativa frustrada de Curd. Atravessou rapidamente a sala e abriu um armário embutido. Curd virou a cabeça e ela lhe entregou um pequeno transmissor. Curd agradeceu com um gesto e ligou o aparelho. Uma luz de controle acendeu-se.
Estouros e chiados agudos saíram do alto-falante. Curd prestou atenção ao ruído por algum tempo, mas logo resignou-se e colocou o aparelho sobre a mesa. Além de cortar as comunicações videofônicas, as pessoas que se encontravam do lado de fora usavam um potente transmissor para causar uma interferência tão forte que o aparelho de Curd, que era muito fraco, não tinha a menor chance de fazer chegar a mensagem à base. Não havia nenhum transmissor híbrido. Ninguém julgara que o mesmo se tornasse necessário, já que sempre se poderia contar com o minicomunicador introduzido na rede central. Curd começou a compreender que a situação era mais grave do que acreditara. Distribuiu as pessoas, sem ocultar a gravidade da situação. Explicou que estavam completamente isolados e que não assistiriam ao nascer do soí no dia seguinte, se não conseguissem defender-se dos inimigos. Os homens e as mulheres receberam a notícia com a maior calma. Postaram-se de tal maneira que seu fogo cobria todos os pontos situados à frente, atrás e dos lados da casa. Naquele momento começou o ataque. O comandante da tropa atacante nem tentou o golpe de tocar a campainha para pegar o inimigo de surpresa quando o mesmo abrisse a porta. Colocou na rua um carro com um alto-falante e comunicou com muito estrépito que a casa tinha sido cercada pela Guarda Azul, e que exigia a capitulação de seus ocupantes nos próximos dez minutos. Do contrário iniciaria o ataque. Os saltadores não deram sinal de vida. Os dez minutos passaram. Curd chegou a pensar em aceitar parcialmente as exigências do inimigo, para ganhar tempo. Mas enganara-se sobre a pessoa do comandante. Assim que o último segundo dos dez minutos chegou ao fim, o lampejo de um canhão energético pesado rompeu a noite e uma explosão abalou a casa. O grupo comandado por Curd respondeu ao fogo. Sem impressionar-se com os impactos, concentraram seu fogo sobre a equipagem do canhão. Este silenciou por algum tempo. Foi mudado de posição e o bombardeio começou de novo. Como até então nada tinha acontecido nos fundos e dos lados da casa, Curd retirou as cinco pessoas que tinham sido postadas lá, com exceção de uma, e mandou que ajudassem na frente virada para a rua. Logo viu que isso foi um erro. O inimigo conseguiu levar um canhão pequeno para o parque e colocá-lo nas imediações da casa. No momento em que as pessoas que se encontravam nas peças de frente começaram a soltar gritos de triunfo por terem repelido um ataque, a primeira salva foi disparada contra a parede dos fundos da casa. Um rombo de dois metros de largura, que ia do telhado ao chão, foi aberto na mesma. A rocha tornou-se incandescente nas bordas desse rombo, e o incêndio lavrou nas peças colocadas à mostra. Curd compreendeu que não poderia sustentar sua posição por muito tempo. Só havia duas possibilidades. Ele e os membros de seu grupo poderiam capitular, ou então morreriam. Não havia duvida de que, se necessário, Curd optaria pela primeira alternativa. Não valia a pena sacrificar vidas humanas, se a revolução poderia irromper no dia seguinte e libertar os prisioneiros. A cada segundo que passava, a situação tornava-se mais insuportável. O incêndio atado pelo bombardeio ininterrupto espalhou-se pela casa. Não havia tempo para apagar o mesmo. O ar estava quente e impregnado de fumaça. As lágrimas saíam em abundância dos olhos dos nove pseudo-saltadores. Dois homens tinham sofrido ferimentos leves.
Curd encarregou Terry de colocar o alto-falante em posição. Chegara o momento de oferecer a capitulação ao inimigo. Terry instalou o aparelho embaixo de uma janela semiderretida e entregou o microfone a Curd. *** O furioso incêndio era visível a grande distância. As pessoas aglomeraram-se nas ruas e contemplaram o mar de chamas. O chiado forte dos canhões energéticos enchia o ar. Guri sentiu-se possuído de uma raiva obstinada. Conseguira ativar o transmissor de seu veículo e entrar em contato com Kazmer Tureck. Mas havia uma forte interferência provocada por um transmissor situado nas proximidades, e à medida que se aproximava do foco do incêndio, piores se tornavam as comunicações. Finalmente Guri mandou que Tureck agisse segundo seu critério e desligou. Duzentos metros além da casa uma fila de veículos isolava a rua. Guri fez subir o planador e passou rente aos tetos dos carros. Alguns tiros energéticos foram disparados atrás dele, mas a pontaria não foi boa. O veículo não chegou a ser perseguido. A turbulência dos acontecimentos que se desenvolviam na rua era tamanha que ninguém teve tempo para perder tempo com um incidente insignificante. Guri fez descer o veículo junto ao meio-fio, do lado direito da rua. Encontrava-se a apenas cinqüenta metros da casa dos saltadores, e a menos de trinta metros de um dos canhões que os homens de Iratio Hondro, tinham colocado no nicho de uma casa. Guri pediu a Isit que continuasse a cuidar do ferido e desceu do carro, saltando imediatamente para a sombra projetada por uma casa. Só gastou alguns segundos para observar a cena. A casa estava quase desabando. As salvas disparadas pelos canhões energéticos tinham arrancado blocos enormes das paredes, e as chamas saíam de quase todas as janelas. Dentro de dois minutos, no máximo, Curd teria que tentar levar seu pessoal para fora, senão seria tarde. Ao notar que, segundo tudo indicava, o inimigo não fazia questão de pegar vivos os pretensos saltadores, Guri ficou bastante preocupado. Era necessário que interviesse logo na luta, para evitar que o inimigo abrisse fogo contra Curd e seu grupo quando este saísse para a rua. Guri pôs-se a observar a rua. A dez metros do lugar em que se encontrava havia um carro-planador com um alto-falante montado. Este planador certamente fora usado para convidar Curd a capitular. Guri não perdeu tempo para avaliar suas chances. Talvez não tivesse nenhuma. Mas pelo menos criaria confusão nas linhas inimigas, o que talvez poderia ajudar Tureck a colocar seus veículos nos pontos mais favoráveis. Ninguém notou quando Guri correu em direção ao veículo. Abriu a portinhola e saltou para dentro. Não havia ninguém no carro. Nenhuma luz de controle do painel estava acesa. Mas Guri já aprendera a lidar com as viaturas policiais plofosenses. Fez funcionar o propulsor em ponto morto, para garantir o necessário suprimento de energia para o alto-falante. Tirou o microfone do suporte e colocou-o à frente dos lábios. Perdeu alguns segundos refletindo sobre as palavras que deveria proferir. A primeira frase teria de produzir um efeito fulminante. As pessoas precisavam ter sua atenção despertada para ouvi-lo. Devia explicar-lhes que estavam sendo enganados pelo chefe supremo, e que poderiam alcançar a liberdade; bastaria que quisessem. Quando finalmente soube o que iria dizer, a janela estourou ao seu lado. Uma torrente de ar superaquecido passou sobre sua cabeça. Guri deixou-se cair. Ainda durante a queda acionou a alavanca da portinhola da direita. A mesma abriu-se e, aproveitando o
impulso, Guri deixou-se rolar para fora. Rastejou para a frente e olhou para o outro lado do carro. Do outro lado da rua havia um homem agachado, com a arma apontada. Guri fez pontaria com a maior calma. O homem estava de olho no carro. Ao que parecia, sabia que a pessoa contra a qual atirara já não se encontrava no interior do mesmo. Descobriu Guri no momento em que este conseguiu colocá-lo na mira. O tiro fez surgir uma trilha incandescente através da rua. Guri praguejou e levantouse de um salto. O homem atirara-se para o lado, e o tiro passara perto dele. Guri viu o desconhecido levantar-se instantaneamente. Naquele momento Guri estava em desvantagem. A manobra do inimigo fizera-o perder um ou dois segundos. Guri tinha certeza de que conseguiria pôr-se a salvo nos arbustos que cresciam logo atrás dele. Mas subestimara o homem. Este deu um salto elegante e saiu correndo na direção de Guri. Enquanto corria, levantou a arma e apontou-a para Guri. De tão perplexo que ficou, este quase não conseguiu esboçar nenhuma reação. Só no último instante deu-se conta do perigo e atirou-se para trás do carro. Apontou sua arma para o lugar em que o desconhecido teria desaparecer quando saísse de trás do carro. Procurou avaliar a velocidade do mesmo e começou a atirar quando acreditou chegado o momento. Uma sombra fugaz apareceu bem em cima do capo do motor. Estupefato, Guri baixou a arma e acompanhou com os olhos o desconhecido que acabara de dar um salto tão alto por cima do obstáculo. Contemplou-o boquiaberto enquanto corria em direção à casa mais próxima e desaparecia num nicho. Fez um disparo apressado atrás dele. O raio energético passou pela rua bem atrás do desconhecido e fez ferver o asfalto. Viu o estranho inimigo mais uma única vez, quando o mesmo procurou um abrigo mais seguro. Neste momento Guri reconheceu-o. Era Jerk Hansom, conselheiro secreto de Iratio Hondro. *** Guri ficou paralisado por alguns segundos. Mas logo lembrou-se de que tinha um dever a cumprir. Jerk fugira dele. Não havia mais nada a recear de sua parte. Voltou a entrar na viatura policial. Desta vez não houve ninguém que o impedisse de pegar o microfone. Sua voz soava claramente, superando o barulho dos canhões. — Aqui fala Maltzo, o saltador. Vocês estão lembrados de mim. Tive de simular um ataque durante o qual alguém me teria matado para livrar-me do chefe supremo. — Vocês estão empenhados numa luta inútil. Matam por ordem do chefe supremo. Mas os dias do mesmo estão contados, è a posteridade não saberá recompensá-los por sua lealdade para com Iratio Hondro. — Sei que estão sob coação. Na veia de vocês corre um veneno mortal, que causará a decomposição do organismo numa questão de dias ou semanas, se o mesmo não for neutralizado por um antídoto. Vocês acreditam que têm de obedecer ao chefe supremo, porque este é a única pessoa que possui o citado antídoto. — Mas não é assim. Também conheço a composição do antídoto e possuo quantidades suficientes do mesmo. Estou disposto a entregá-lo a qualquer pessoa que pedir. Mais do que isso. Meu antídoto não desativa a toxina pelo prazo de trinta dias. Elimina-a para sempre. Quando parou de falar, os canhões dispostos ao longo da rua tinham silenciado. Guri lançou um olhar rápido para a casa e viu Curd e seu grupo sair pelo portal e abrigarse atrás dos arbustos do parque. Um grande peso saiu de seu coração. Se não conseguisse mais nada, pelo menos conseguira salvar nove companheiros da morte pelas chamas.
Os homens que guarneciam os canhões e os que se encontravam do outro lado da rua permaneceram em silêncio. Guri desceu o veículo e ficou parado no meio da rua, para que todos o vissem. Ficou de olho no lugar em que Jerk Hansom tinha desaparecido. De forma alguma podia ter certeza de que o mesmo realmente tinha desistido de seu intento. Ouviu-se uma voz saída de outro alto-falante, bem ao longe. — Prove o que está dizendo, saltador! Mostre que possui o antídoto! Guri voltou ao carro e pela terceira vez segurou o microfone. — Vocês não devem acreditar nele! — disse de repente uma voz retumbante, vinda do lado. — Ele quer enganá-los. É claro... quer ajudar sua gente. E vocês são idiotas a ponto de deixar que isso os desvie da luta. Guri não via a pessoa que falava nem o aparelho que a mesma estava usando. A voz parecia sair de uma das casas situadas do lado direito da rua. O aparelho estava sendo forçado, mas reconhecia-se perfeitamente a voz de Jerk Hansom. — Seja lá quem for você, cale a boca — gritou o segundo alto-falante. — Deixe que o saltador se explique. — Eu lhes apresentarei Kel Bassa! — gritou Guri. — Como sabem, Kel desapareceu há alguns dias e que, se não recebeu o antídoto, não pode estar vivo. A outra parte ficou quieta por alguns segundos. Finalmente veio a resposta. — Isso bastaria para convencer-nos, saltador. Vamos esperar... Guri estremeceu. Ouviu um estrondo vindo de cima. De repente um buraco enorme, com uma incandescência vermelha nas bordas, abriu-se no teto do carro. Uma coisa quente e pesada caiu sobre Os ombros de Guri e quase lhe quebrou a espinha. Um cheiro acre quase o deixou sem fôlego. Jerk Hansom reconhecera sua última chance. O objeto embaixo do qual Guri estava saindo às pressas era o alto-falante que o mesmo acabara de destruir. O cheiro penetrante era produzido pelos assentos de plástico, sobre os quais pingava o metal derretido da cobertura. Guri atirou-se para fora do veículo. A dor nas costas quase fez com que perdesse os sentidos. Viu Jerk Hansom parado bem à sua frente, no meio da rua. Segurava um microfone, e o alto-falante portátil estava no chão, ao lado dele. — É tudo mentira! — disse sua voz retumbante. — Prestem atenção ao que vou dizer, homens! Ninguém trai o chefe supremo sem sofrer o castigo merecido. Guri não pôde deixar de admirar aquele homem. Estava totalmente desprotegido. Nem se dera ao trabalho de verificar se o inimigo realmente fora colocado fora de ação. Estava de costas para Guri e dirigia-se aos policiais que se encontravam mais adiante, na rua. Jerk Hansom não mentira quando afirmara que conseguira provar ao chefe supremo que não tinha medo de morrer. Guri acreditava piamente. — Kel Bassa está morto! — prosseguiu Jerk. — Sofreu um acidente durante uma excursão nas montanhas. A polícia encontrou seu cadáver há poucas horas. Não existe nenhum antídoto além daquele que o chefe supremo possui. Guri foi erguendo o corpo. Jerk era um orador bastante hábil. Se conseguisse fazer com que os homens voltassem aos seus postos, não teria mais a menor importância que ele lhes apresentasse o cadáver de Kel Bassa ou não. — Vamos à frente, pessoal — concluiu Jerk. — Façam o que eu lhes digo, e ninguém saberá do incidente.
“Seu mentiroso”, pensou Guri, zangado. “Sua voz chega pelo menos a duzentos metros, e mais de cinco mil curiosos devem tê-la ouvido.” Jerk Hansom aguardava o resultado de suas palavras. Guri viu os homens movimentarem-se lenta e indecisamente à luz do incêndio. Levaram menos de um minuto para tomar uma decisão. Voltaram aos seus postos e entraram em formação de combate. Jerk Hansom saíra vencedor. Guri girou para o lado. Um ferro em brasa parecia atravessar o corpo. Jerk Hansom continuava parado no meio da rua. Por que não conseguia mover o braço? Por que a arma estava tão atrás no cinto? Quem dera que Jerk ficasse parado mais um instante...! O mundo começou a girar em torno de Guri. Notou que estava perdendo os sentidos. A cabeça retumbava que nem um tambor no qual alguém batesse sem parar. A perspectiva começou a estreitar-se: parecia que Guri estava enxergando através de um tubo fino e comprido. Viu atrás do tubo Jerk Hansom virar a cabeça: Não parecia surpreender-se nem um pouco ao ver seu inimigo jogado no chão. Com um movimento rápido trocou o microfone que segurava na mão pela arma energética e apontou-a para Guri. Guri desistiu. Esperou que um raio energético o atingisse através do tubo e o libertasse de todos os sofrimentos. Não agüentava mais. O braço recusava-se a fazer qualquer movimento, e os dedos não conseguiam segurar mais nada. Atire, Jerk... atire logo! O fim de Jerk Hansom foi tão inesperado que Guri levou algum tempo para compreender o milagre. Uma silhueta prateada apareceu na periferia de seu campo de visão. A mesma movimentava-se alguns metros acima do solo com uma velocidade surpreendente. Um raio energético ofuscante saiu da silhueta e atingiu a rua no lugar em que estava Jerk Hansom. Guri fitou a sombra com uma expressão de incredulidade e viu-a pousar a cinco metros do lugar em que ele se encontrava. Era um carro planador. Uma portinhola abriuse e um homem saltou pela mesma. Uma voz vinda de cima trovejava: — As armas ficarão em silêncio! Vocês estão cercados! A oferta feita há pouco ainda está em vigor. Kel Bassa lhes será apresentado. Esperem para tomar sua decisão. Guri reconheceu o homem que se abaixou sobre ele. Era Kazmer Tureck. — Pois então... — cochichou Guri e desmaiou. *** Quando recuperou os sentidos, estava estendido sobre o assento traseiro dum carroplanador. Ergueu-se cautelosamente e olhou em torno. A sua frente estavam sentados Kazmer e o Tenente Ali el Hagar, o homem que tinha trazido o antídoto para Plofos. O veículo deslocava-se em meio a um tráfego denso pela rua principal de New Taylor. Era noite, mas o tráfego era mais intenso do que Guri jamais tinha visto de dia. — Que houve? — perguntou. Sua voz rouca fez com que Kazmer e Ali virassem abruptamente a cabeça. — Então, já voltou? — disse Tureck em tom de escárnio. Guri resmungou uma observação pouco amável e repetiu a pergunta. — A revolução está em pleno andamento — respondeu Kazmer. — O chefe supremo continua entrincheirado em seu palácio, mas aqui fora vai tudo às mil maravilhas. Guri não teve a menor dúvida de que realmente era assim. Bastava olhar pela janela do carro.
— Que horas são? — Três da madrugada. — Como começou a revolução? — Foi iniciada em dois pontos diferentes. Primeiro, Porro Mallin apareceu com Kel Bassa à frente da casa de Curd e pôs fim à luta. Curd e seus companheiros estão em segurança, embora tenham sido um pouco arranhados. E os policiais não tiveram outra coisa a fazer senão evacuar o lugar e espalhar a novidade o mais depressa possível. Já tinham ouvido o rádio, e sabiam que alguma coisa estava acontecendo. — O rádio...? — Isso mesmo. Sono Aront e Arnt Kesenby também não permaneceram inativos. Foram ao quartel-general da frota e anunciaram pelo rádio que o chefe supremo tinha sido deposto e que qualquer pessoa que tivesse a toxina no sangue poderia comparecer ao quartel-general para receber o antídoto. Num instante uma verdadeira multidão se reuniu à frente do quartel-general. Depois de mostrar Kel Bassa diante da casa dos saltadores, Porto foi ao quartel-general e deixou que as pessoas que estavam lá também o vissem. Um serviço de transporte foi organizado para levar o antídoto da base nas montanhas ao quartel-general. Porro assumiu o comando da operação. Ainda não confia muito em que tudo continue calmo. Cada transporte possui uma proteção tripla, pois não queremos perder uma única injeção. Guri respirou aliviado. — E não é só isto — prosseguiu Kazmer. — Isit Huran e Will Heeph, que a esta hora já está passando muito bem, reuniram-se com Aront e Kesenby. Formaram em conjunto o governo transitório de Plofos. Ficou calado. — E daí? — perguntou Guri em tom insistente. — Passaram a ser o órgão oficial de representação do povo de Plofos. No desempenho de suas funções pediram ao governo do Império Solar que lhes preste ajuda na consolidação da situação de Plofos. Um grupo de cruzadores está a caminho e deverá chegar o mais tardar ao meio-dia. Só depois disso Guri sentiu-se verdadeiramente aliviado. Sua missão fora cumprida. Plofos estava praticamente livre.
5 Ao nascer do sol a revolução já se havia estendido a todo o planeta de Plofos. Arnt Kesenby e os outros membros da junta que governava o planeta já não tinham necessidade de irradiar suas mensagens por um simples transmissor de ondas curtas. Os emissores de trivídeo existentes no planeta estavam em mãos do governo, e nas telas dos mesmos a população espantava-se diante da visão de Kel Bassa, que devia estar morto há muito tempo, mas continuava bem vivo. Revelando grande habilidade diplomática, Arnt Kesenby soube apresentar a súbita disponibilidade do antídoto como uma coisa natural. Não disse uma palavra sobre a origem do medicamento e sobre o motivo por que tinha uma vantagem em comparação com o do chefe supremo: destruía para todo o sempre as toxinas existentes no organismo. Quem ouvisse Arnt Kesenby ficaria se perguntando por que, se tudo era tão simples, o antídoto não vinha sendo fornecido há mais tempo. Foi uma revolução incruenta como poucas. Enquanto a população de Plofos se entregava à alegria exuberante causada pela liberdade recém-adquirida e aguardava entusiasticamente a chegada do grupo de cruzadores terranos, Guri Tetrona e seus companheiros continuavam a dedicar-se às suas tarefas no interior da base. Enquanto o chefe supremo continuasse livre, mesmo que numa área restrita, o problema de Plofos não estaria resolvido. O campo defensivo que cercava o palácio continuava a ser mantido com o mesmo potencial energético. Um cordão de veículos ocupados por homens da base terrana e policiais plofosenses vigiava a área para evitar que qualquer pessoa saísse do palácio sem ser notada. Segundo uma avaliação ligeira, além de Iratio Hondro devia haver pelo menos vinte membros da Guarda Azul no interior do palácio. Três horas antes do meio-dia Guri Tetrona convocou alguns oficiais para uma conferência a fim de discutirem a situação. Da conferência participaram Porro Mallin, representante do chefe do grupo, Faun Perrigan, especialista em radiotransmissões híbridas e problemas correlatas e, como não poderia deixar de ser, Kazmer Tureck, com a figura, o rosto e o comportamento de um carroceiro, especialista em questões procedimentais. A conferência foi realizada no gabinete particular de Guri Tetrona, que se encontrava num surpreendente estado de ordem, porque Guri não o utilizava há bastante tempo. — Faun, já examinou o campo? — principiou Guri. — O que acha? — Não se trata de um campo defensivo convencional — respondeu Faun. — O campo é alimentado por um projetor mecânico, mas existem indícios de que também é apoiado por certas energias mentais. Trazia mais algumas palavras na ponta da língua, mas Guri interrompeu-o com um gesto brusco. — Já conhecemos isso — disse. — Na Galáxia existe um tipo de gente que dispõe de certos dotes espirituais, como por exemplo o de reforçar um campo defensivo por meio de suas energias psíquicas. — Os antis! — exclamou Porro. — Exatamente. Há tempo correm boatos segundo os quais Iratio Hondro tem seguidores do culto de Baalol a seu serviço. Acontece que por enquanto ninguém viu
nenhum deles. As medições realizadas por Faun provam que essa gente realmente existe. Resta saber o que podemos fazer contra eles. — Em minha opinião só temos uma possibilidade — disse Kazmer Tureck. — Sobrecarregaremos o campo defensivo em determinado lugar a tal ponto que ele entra entre em colapso. Alguns segundos serão suficientes para que possamos fazer passar pelo campo um número suficiente de pessoas para conquistar o palácio. Guri olhou-o. — Existe uma coisa de que eu gosto em você, Kazmer — disse em tom pensativo. — Você sempre vai diretamente ao assunto... e geralmente suas idéias são boas. Os três planadores aproximaram-se do campo defensivo e criaram um campo permeável de um lado, pois os homens que se encontravam no palácio abriram fogo assim que os veículos ficaram ao alcance dos canhões energéticos. Havia oito homens em cada veículo. Vinte deles penetrariam no palácio, caso se conseguisse neutralizar o campo defensivo numa área limitada. Entre os quatro restantes encontravam-se Guri Tetrona, Faun Perrigan e Porro Mallin. Kazmer Tureck fazia parte do grupo de vinte homens que penetrariam no palácio. Queria estar com sua gente quando estes travassem uma luta mortífera. Guri, Faun e mais alguns homens desceram sob a proteção de seu campo, para instalar os projetores que tinham sido trazidos. Estes projetores eram apenas armas energéticas de grande potência. Sua finalidade consistia em sobrecarregar o campo defensivo do inimigo em determinado lugar a tal ponto que as forças metálicas e mentais combinadas do inimigo se tornassem insuficientes para manter a proteção. Faun foi de um aparelho para outro, examinando sua focalização. Ficava falando nervosamente e fazia gestos violentos. Finalmente endireitou o corpo e lançou um olhar penetrante para Guri. — Pronto? — Pronto — respondeu Faun. Foi uma das poucas vezes em que conseguiu dar uma resposta numa única palavra. Guri entrou no planador e segurou o microfone. — Entre, Wilbro! Wilbro respondeu. — Estamos a postos. Vocês estão preparados? — Estamos. Fique com os olhos bem abertos. — Quanto a isso não tenha a menor dúvida — asseverou Wilbro. Wilbro estava parado do outro lado da curva da estrada, à frente da entrada principal do palácio. O veículo com o qual se mantinha à espreita era um girocarro. Seu desempenho no ar era superior ao de um carro-planador. Caberia a Wilbro encetar a perseguição, se alguém tentasse sair do palácio em algum tipo de veículo voador. Havia outros carros estacionados em lugar seguro, prontos para intervir quando fossem convocados. Guri não quis assumir nenhum risco. O chefe supremo não podia escapar. Desceu e fez um sinal para Faun Perrigan, que estava sentado no chão de um pequeno aparelho em forma de caixa, em cujo interior havia uma série de comandos e instrumentos. Acionou dois dos comandos, e os projetores entraram em funcionamento. Feixes de raios ofuscantes bateram no campo defensivo inimigo, fazendo-o brilhar numa grande extensão. Faun colocou um par de óculos de proteção e examinou os instrumentos.
Guri contou os segundos. Muitas idéias passaram-lhe pela cabeça. Será que vinte homens bastavam para dominar os ocupantes do palácio? Quantos homens de Baalol estariam a serviço do chefe supremo? Será que Jerk Hansom tinha sido um anti? Sem que ele o quisesse, a personalidade de Jerk Hansom e o papel estranho que o mesmo tinha desempenhado nos conflitos das últimas horas tinham ocupado ininterruptamente seus pensamentos nas últimas horas. Quem era Hansom? De onde vinha? O que fizera com que um homem de altas qualidades com ele se colocasse a serviço de um ditador? Guri chegou à conclusão de que quem deveria responder a estas perguntas era Iratio Hondro. Provavelmente era a única pessoa em Plofos capaz de dar informações sobre Jerk Hansom. O grito de triunfo de Faun Perrigan interrompeu Guri em suas reflexões. — Está caindo...! Guri virou-se abruptamente. Num raio amplo em torno do ponto atingido pelos projetores o campo defensivo assumira uma estranha coloração amarelenta. Parecia que tinha ficado muito tempo no sol e estava ficando encardido. Guri sabia o que isso significava. Era o aspecto que um campo defensivo assumia pouco antes de entrar em colapso. Perdia a transparência, tornava-se opaco... e acabava desaparecendo. Kazmer Tureck e os homens de seu grupo estavam prontos para entrar em ação. Guri deu uma palmadinha no ombro de Kazmer. — Ânimo, meu chapa! Kazmer mal teve tempo para responder com um aceno de cabeça. A ampla superfície amarelenta desapareceu de repente. Passaram pela brecha, deslocando-se rente aos raios energéticos. A disposição de batalha de Kazmer mostrou seu valor. A primeira fila de seu grupo saiu correndo em direção ao palácio, enquanto as outras fileiras avançavam mais devagar, disparando ininterruptamente contra a fachada do palácio. Nenhum tiro foi disparado do palácio. Um pedaço de parede desprendeu-se sob o efeito do fogo concentrado e caiu ruidosamente e fumegante no parque. Os arbustos ralos logo pegaram fogo. Os homens do grupo de Kazmer Tureck atravessaram uma parede compacta de fumaça e avançaram sobre o último ninho de resistência do inimigo. Guri Tetrona pôs-se a esperar. Não mantinha ligação de rádio com Tureck. O campo defensivo só era permeável a uma faixa estreita do espetro eletromagnético. Este espetro incluía a luz visível, mas não as ondas de rádio. Além disso Faun tinha desligado seus projetores. A brecha aberta no campo defensivo voltou a fechar-se imediatamente. Os minutos foram passando. De vez em quando Guri olhava para a área em torno do palácio, para ver se alguém tentava fugir. Mas não aconteceu nada. O gigantesco edifício jazia mudo e quieto aos raios do sol do amanhecer. O incêndio da vegetação tinha atingido uma área úmida e somente gerava uma espessa fumaça branco-acinzentada. Wilbro Hudson chamava de vez em quando para avisar que ainda não havia visto ninguém sair do palácio. Finalmente Guri perdeu a paciência. Explicou a Wilbro que queria ser deixado em paz, pois tinha uma visão muito melhor para o palácio do que ele. Depois disso Wilbro permaneceu em silêncio e não voltou a ser ouvido até bem depois do fim da operação. Guri estava cada vez mais nervoso. Kazmer e seus homens já deviam ter encontrado os defensores do palácio. Por que não se via nenhum sinal da batalha? Depois de quinze minutos Guri mandou que Faun ligasse novamente os projetores. Porro Mallin manteve de prontidão um pequeno aparelho de rádio, com o qual pretendia penetrar na área cercada pelo campo defensivo e entrar em contato com Kazmer. O
quarto homem do grupo, Ali el Hagar, estava encostado ao capo do propulsor de seu veículo e acompanhou os preparativos com uma calma tipicamente arábica. Os projetores voltaram a chiar, e cores cintilantes foram subindo pelo enorme campo defensivo. Guri acompanhou o espetáculo com grande interesse, como se nunca tivesse visto nada igual. Mordeu o lábio e ficou com os olhos pregados no jogo turbilhonante de cores. Não quis pensar em outra coisa. Não quis pensar, por exemplo, na possibilidade de Kazmer e os homens de seu grupo poderem ter caído numa armadilha. A receita não deu resultado. De repente as cores desapareceram. Guri sobressaltouse. Os projetores de Faun Perrigan continuavam a chiar e a lançar feixes incandescentes, mas as cores tinham desaparecido. No lugar atingido pelos projetores o campo voltara a ser transparente. Até parecia que não estava suportando nenhuma carga. De repente o asfalto entrou em ebulição a cinqüenta metros do lugar em que se encontrava Guri. Este compreendeu por que tudo era transparente e incolor. O campo defensivo não existia mais. *** A voz dura de Kazmer Tureck saiu do receptor de Porro Mallin. — Tureck chamando chefe! Tenho uma surpresa para você! Guri arrancou o aparelho da mão de Porro. — Diga logo! — gritou em tom impaciente. — O palácio está vazio — disse Tureck. — Não se vê vivalma. Os pensamentos atropelaram-se na cabeça de Guri. Uma idéia parecia impor-se sobre as outras. Será que Tureck tinha caído numa armadilha e estava submetido a uma espécie de compulsão hipnótica? A possibilidade de que fosse assim não poderia ser excluída. Se o chefe supremo dispunha de todos os recursos bélicos modernos, não havia motivo para que não contasse também coma hipnose. Guri chegou à conclusão de que, se ficasse parado ali, não descobriria a verdade. Precisava ver Tureck. Precisava entrar no palácio. Devolveu o rádio a Porro e mandou que ficasse a postos. Saiu correndo em direção ao palácio. Tossindo e fungando, atravessou a fumaça produzida pelo fogo baixo e subiu apressadamente pela rampa em curva. Metade do portal alto continuava aberta, conforme ele trazia na lembrança da noite anterior. O hall de entrada estava vazio, mas Guri ouviu as vozes potentes dos homens de Kazmer Tureck vindas dos corredores. Respirou aliviado. Parecia um grupo de homens revistando a casa, não uma massa hipnotizada. Apoiou as mãos nos quadris e chamou Tureck aos gritos. E quando Guri gritava, a gente ouvia a dois quilômetros de distância. Kazmer Tureck veio de um dos corredores. — Meu Deus — fungou. — Não precisa berrar desse jeito. O que houve? Guri contemplou-o, e o que restava de suas preocupações se esvaeceu. Era Kazmer Tureck com sua verdadeira personalidade. — O que está acontecendo por aqui? — perguntou. — Só o diabo sabe — respondeu Tureck. — Este monstro está vazio. — Por que o campo defensivo entrou em colapso? Tureck sorriu. — Nós o desligamos. O quadro de comando fica no porão. Guri acenou com a cabeça e olhou em torno. — Receio que não haja nenhum mistério — disse. — Existe uma saída bem camuflada. Fica embaixo da superfície e vem à fona Deus sabe onde. — Estendeu a mão. — Passe para cá seu rádio.
Tureck carregava o pequeno aparelho a tiracolo. Tirou-o e entregou a Guri. Este chamou Porro e mandou que destacasse cinco carros-planadores para vigiar a área em torno da cidade. Comunicou suas suspeitas a Porro. — Acredito — acrescentou — que o chefe supremo possuía pelo menos uma antena oculta fora do campo defensivo. Quer dizer que sabia o que estava acontecendo fora do palácio. Sabe que esperamos um grupo de naves da frota espacial e que seu papel estará no fim assim que as naves pousarem. Provavelmente está escondido em alguma espaçonave com a qual quer fugir para um lugar seguro. Aliás, quem comanda nosso grupo de naves? Porro não sabia. — Tanto faz — prosseguiu Guri apressadamente; — Avise-o e diga que deve fazer um cuidadoso rastreamento do espaço em torno de Plofos. Se não conseguirmos pegar o chefe supremo por aqui, talvez consigam lá fora. Porro confirmou o recebimento da ordem. Guri desligou e devolveu o aparelho a Tureck. Este voltou a pendurá-lo sobre o ombro. Parecia tão pensativo que Guri lhe perguntou se estava preocupado com alguma coisa. — Estou pensando, chefe — confessou Tureck. — Se o chefe supremo está escondido em alguma espaçonave, porque... Foi interrompido. Um rugido surdo veio das profundezas e fez tremer o chão. Kazmer Tureck virou-se abruptamente. Até parecia que um raio tinha caído logo atrás dele. Sua voz retumbante encheu o hall. — Todo mundo para a rua — depressa! Ouviram-se as batidas das botas. Os homens foram saindo dos recintos que estavam revistando e saíram correndo em direção ao portal. O tremor do chão tornou-se cada vez mais forte. Guri não compreendeu o que estava acontecendo. Quis que Tureck lhe desse uma explicação, mas este encostou o rádio aos lábios e gritou para Porro Mallin: — Mande todos se afastarem o mais depressa possível. Daqui a dois minutos não deve haver mais ninguém num raio de quinhentos metros. Desligo. Deixou cair o rádio e aproximou-se de Guri. Segurou-o pelo ombro e fez girar seu corpo. — Vamos; depressa! — fungou. Saíram correndo. Lá fora a fumaça era mais densa. Guri quis fazer uma pergunta, mas a fumaça e o esforço da corrida deixaram-no sem fôlego. Começou a imaginar qual era o receio de Tureck. Era uma idéia medonha, mas afinal de contas estavam lidando com Iratio Hondro. Correram pelo portão do parque e atravessaram a largos passos a curva da estrada. Guri quis correr em linha reta, mas Tureck segurou-o no braço e puxou-o para a esquerda. — Ali não há lugar — disse. Mesmo ao ar livre percebia-se perfeitamente o ruído e o tremor. Até parecia que um terremoto estava sacudindo a cidade. Guri olhou ligeiramente para trás. Teve a impressão de que apesar do esforço que estavam desenvolvendo não saíam do lugar. As muralhas do palácio erguiam-se numa proximidade ameaçadora. Os edifícios que poderiam abrigá-los no fim da curva pareciam ficar a quilômetros de distância. Apesar de tudo conseguiram. Os homens estavam correndo mais adiante pela estrada. Guri tropeçou quando mal havia alcançado a primeira parede e deixou-se cair. Um forte estrondo encheu o ar. Guri virou a cabeça e olhou de trás da parede. Tureck estava deitado bem a seu lado.
— O que eu quis dizer era o seguinte: — conseguiu dizer, ofegante. — Por que o chefe supremo não teria escondido sua nave embaixo do próprio palácio? *** O espetáculo teve seu desfecho num verdadeiro trovão. De repente o palácio desmanchou-se. Parecia que de repente a argamassa perdera toda a resistência e que os tijolos não queriam continuar juntos. A pomposa residência do ditador de Plofos desapareceu numa nuvem de pó e entulho. De repente uma luz forte surgiu à sua frente. Atravessou a cortina de fumaça e ofuscou as pessoas que estavam testemunhando o drama. O ribombo e o trovejar entraram num crescendo alucinante quando a nave do chefe supremo subiu sobre um raio de fogo ofuscante, elevando-se sobre a bruma e a poeira. Guri contemplou a cena entre os dedos. Viu um cilindro esbelto, de cerca de oitenta metros de comprimento, com as paredes ligeiramente abauladas e medindo vinte metros de diâmetro no lugar mais grosso. Longas aletas estabilizadoras saíram da popa da nave. O estranho veículo parecia hesitar alguns segundos sobre os escombros do palácio. Mas finalmente arrancou e subiu ao céu azul, acelerando fortemente. O ruído do propulsor foi diminuindo, mas para Guri Tetrona isso não adiantou mais nada. O barulho incessante representara uma carga excessiva para seus tímpanos. Levantou-se e, muito zangado, seguiu a estrela cintilante com os olhos. — Apesar de tudo ele nos escapou — gritou, furioso. *** Menos de três horas depois pousou o grupo de cruzadores. O comandante era o coronel Konz Hoenneman. Guri Tetrona foi ao campo de pouso para recebê-lo. Hoenneman confirmou que um veículo espacial tinha saído de Plofos e penetrado no espaço interestelar. Algumas unidades tinham saído em sua perseguição, mas tiveram de constatar que a capacidade de aceleração da nave desconhecida era muito superior à dos veículos espaciais terranos. A perseguição foi suspensa assim que se viu que a mesma não tinha a menor chance. Mory Abro, filha de lorde Kositch Abro, chefe dos neutralistas, encontrava-se a bordo de um dos cruzadores terranos. Os neutralistas residentes em Plofos prepararamlhe uma recepção entusiástica. O envio de Mory Abro para Plofos fora um astucioso lance político. Mory ocupou duas horas do programa de televisão plofosense. Entusiasmou os espectadores do sexo masculino com seu aspecto exterior, e os do sexo feminino com a exposição minuciosa dos objetivos do movimento neutralista e as delícias da vida em Plofos — delícias estas que surgiriam agora, que a revolução alcançara a vitória. Todas as pessoas que estavam sujeitas à influência o veneno traiçoeiro receberam às pressas a injeção de antídoto. Uma vez concluída esta operação, a junta provisória começou a normalizar as condições reinantes em Plofos, para que o planeta voltasse ao costumeiro dia-a-dia. Alguém sugeriu que Mory Abro passasse a chefiar o governo provisório, até que fossem realizadas as eleições. A operação subterrânea, nome dado à missão de Guri Tetrona entre o público interno da Segurança galáctica dirigida por Mercant, foi um grande êxito, com uma exceção insignificante. Plofos voltara a pertencer ao Império, e os habitantes de Plofos tinham readquirido sua liberdade.
Acontece que Iratio Hondro não tinha sido posto fora de ação, conforme previra o plano da operação. Continuava a representar uma ameaça. Plofos possuía vários mundossatélite. O chefe supremo poderia descer em qualquer um deles e cercar-se de um novo grupo de adeptos. Ninguém sabia aonde se dirigiria e quando voltariam a ouvir falar nele. Os escombros do palácio foram examinados. Embaixo do entulho foi encontrada uma galeria de cento e cinqüenta metros de profundidade por quarenta e cinco de largura. No fundo da galeria havia um quadro de comando, cuja função consistia em separar os componentes do edifício para deixar livre a saída da galeria, assim que a nave escondida estivesse pronta para decolar. Allan D. Mercant e seus colaboradores em Terrânia ainda não arquivaram a questão de Plofos. Apenas a puseram de lado de maneira que pudessem puxá-la para junto de si com um ligeiro movimento. *** Dois dias depois da chegada do grupo de cruzadores foram iniciados os trabalhos de remoção nas proximidades da casa em que Curd Djanikadze e seus companheiros tinham residido sob o disfarce de saltadores. Os remanescentes da luta foram retirados da rua. Os escombros da casa totalmente queimados foram aplainados ao nível do solo. Enquanto isso Guri Tetrona preparou o regresso de seu grupo. Não tinham mais nada a fazer em Plofos. A tarefa estava concluída. Tureck foi tirando um bilhete que trazia no bolso e pôs-se a ler. — Análise de resíduos metálicos encontrados em 5 de julho de 2.329, tempo central, na rua... bem, tanto faz. De qualquer maneira, a análise acusa a presença de noventa e oito por cento de ferro, um vírgula um por cento de metais nobres, zero vírgula dois por cento de molibdênio, zero vírgula... — Chega! — disse Guri. Sua voz parecia tranqüila, mas foi justamente isso que levou Tureck a calar-se imediatamente. — São os restos de Jerk Hansom, não são? — perguntou Guri. Tureck confirmou com um aceno de cabeça. — Isso mesmo. A não ser que alguém os tenha levado e derramado uma poça de metal na rua. Guri atirou o lápis na mesa com tanta força que o mesmo saltou e caiu ao chão. — Eu deveria ter visto logo — disse, enquanto dava alguns passos em direção à porta. — Nunca se viu um homem com as reações tão rápidas como Jerk Hansom, e que não tem medo de morrer. Ficou parado algum tempo com a cabeça abaixada. De repente virou a cabeça e fitou Kazmer Tureck. — Só gostaria de saber — disse — quem fabrica robôs desse tipo e os fornece aos ditadores.
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Plofos, que era o centro da resistência contra a Terra e o Império Solar, foi conquistado num golpe de audácia. Mas Iratio Hondro, o chefe supremo, que usou um veneno para subir ao governo e que foi derrubado por um soro, conseguiu escapar ao castigo merecido e foge para O Planeta da Última Esperança... e nesse planeta, no interior de uma estação de pesquisa, desenvolvem-se os acontecimentos excitantes relatados no próximo volume da série Perry Rhodan.