(P-187)
SOLDADOS DE KAHALO Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
SKIRO
Novas tecnologias para um futuro muito próximo... e o despertar para novo amor.
Desde o dia 2 de novembro de 2.328 circula na Galáxia a notícia da morte de Perry Rhodan, Atlan e Reginald Bell. Os desconhecidos que espalham esta notícia podem apresentar fotografias da majestosa nave-capitânia da Frota Solar — a Crest — totalmente destruída. Em Terrânia sabe-se que os três personagens mais importantes do Império Unido realmente se encontravam a bordo da Crest, no momento crítico. Não há como desmentir a notícia da morte, já que os desaparecidos não podem transmitir nenhum sinal de vida. Nem podem impedir a dissolução lenta, mas inexorável da Aliança Galáctica, cujos membros passam a dedicar-se em escala cada vez maior aos seus próprios interesses. Os desaparecidos imaginam o que está acontecendo na Galáxia, mas não podem intervir ativamente nos acontecimentos, pois não têm possibilidade de entrar em contato com a Frota Solar ou a USO. Desde o dia em que Perry Rhodan, Atlan, Reginald Bell, André Noir e Melbar Kasom caíram nas mãos do Chefe Supremo de Plofos, os homens mais importantes da Via Láctea vêem-se praticamente indefesos diante de um destino estranho, que os leva de um planeta para outro. A misteriosa espaçonave, que há alguns dias os desembarcou no planeta Lovely para que pusessem fim às atividades da esfera hipnótica, volta para levá-los... e fazendo com que recebam uma nova tarefa: são recrutados como Soldados de Kahalo!
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Personagens Principais: = = = = = = =
Perry Rhodan — Administrador Geral do Império Solar... e soldado de Kahalo. Mory Abro — Uma mulher bonita que tem medo. Melbar Kasom — Um ertruso que se comporta como um elefante numa loja de porcelanas. Atlan — Que constata que os terranos estão confusos. André Noir — Um mutante que sai à procura dos invisíveis. Reginald Bell — Que age como sabotador no espaço. Okra, Karr e Perk — Seres estranhos do planeta Kahalo.
Prólogo
No início do século XXIV, a Aliança Galáctica compreendia cerca de cem mil mundos. Este número inclui os planetas habitados cujo diâmetro médio seja superior a trezentos quilômetros, bem como os planetasbase inabitáveis, e ainda os satélites naturais de planetas, ou seja, as luas. Segundo os resultados das pesquisas estatísticas realizadas pelo Instituto de Astrofísica da Universidade de Terrânia, o número total de corpos celestes da Galáxia, com exclusão daqueles que têm características de estrelas fixas ou cujo diâmetro seja inferior a trezentos quilômetros chega a cerca de trinta bilhões, na data-base de 2 de abril de 2.312. Por mais imponente que pudesse ser a Aliança Galáctica, a mesma só compreendia um tricentésimo milésimo da massa planetária total da Via Láctea. Nos trinta mil anos que se passaram desde que os aconenses deram início à colonização galáctica, eles e seus sucessores só travaram conhecimento com uma parte quase insignificante da Galáxia. Alguém que afirmasse no início do século XXIV que tinha viajado por todas as partes da Via Láctea seria parecido com os viajantes fanfarrões do fim do século XIX, que acreditavam ter visitado “as profundezas das terras amazônicas depois de terem visto duas palmeiras na periferia da cidade de Belém”. “Diante da atividade tremenda desenvolvida pela Frota espacial”, disse o diretor do Instituto de Astrofísica, em tom pensativo, logo após a publicação da análise estatística, “a gente se admira de que não sejamos brindados diariamente com novas notícias sensacionais”.
1 A escuridão parecia não ter fim. O feixe de luz emitido pela lâmpada caminhava invisível pelo ar livre de poeiras, parecia perturbado, continuava sua caminhada e desaparecia nas profundezas do espaço. Os minutos foram passando em silêncio. De repente uma mancha luminosa emergiu da escuridão — uma pequenina superfície oval, que ficava bem longe. O raio de luz parou. A superfície foi mostrando os detalhes: dois olhos grandes muito arregalados e o traço fino formado pelos lábios cerrados. Ouviu-se um grito, desesperado e fino, que se perdeu na imensidão do espaço. Então a lâmpada apagou-se. *** André Noir ainda não conseguira acalmar-se quando Melbar Kasom abriu a escotilha que levava do recinto escuro para o corredor central do convés principal, deixando que o mutante passasse por ele. Era uma cena grotesca. O gigante de Ertrus erguia-se a dois metros e meio de altura, e, com seus ombros muito largos que se destacavam contra a figura delicada de André, parecia um ser vindo de outra dimensão. Se quisesse olhar no rosto de Melbar, o mutante teria de jogar a cabeça para trás. Caminharam em silêncio pelo corredor vazio. O chão tremia sob os passos de Melbar. As lâmpadas que ficavam no teto e de ambos os lados enchiam o túnel com uma luz amarela sem sombras. — Quer dizer que quase conseguiu atingi-los, não é? — perguntou Melbar depois de algum tempo. — É isso mesmo — resmungou André, irritado. — Levei duas horas para encontrar um lugar em que pudesse concentrar-me sem ser perturbado. Quando estava no melhor do trabalho, o senhor entrou e estragou tudo. Melbar fez um gesto embaraçado, passando as mãos pela trilha estreita de cabelos amarelo-avermelhados que se erguiam como uma crista de galo sobre a cabeça calva. — Sinto muito — disse com a voz retumbante. — Da próxima vez pendure uma placa na escotilha... Entrada proibida. André fez um gesto de contrariedade. — Afinal, o que veio mesmo fazer aqui? Pois deveria estar na cama, e não de sentinela. — Depende do que se queira entender por cama — respondeu Melbar Kasom em tom resignado. — Não pude dormir. A idéia de que... de que eles nos cercam por toda parte deixa-me nervoso. Olhou apressadamente para trás, como se pudesse descobrir um deles desde que virasse a cabeça bem depressa. — O senhor não fica nervoso também? — perguntou. André sacudiu a cabeça. A enorme escotilha que dava para o recinto no qual tinham permanecido desde o momento em que a nave decolara de Lovely parecia crescer no fim do corredor. — Não. Sei que estão por aí. A maneira pela qual conseguem esconder-se de nós é apenas uma questão técnica. — Levantou os olhos para Melbar Kasom e pela primeira
vez sorriu. — E a maneira pela qual nós os mantemos presos é apenas uma questão das nossas faculdades. — Hum — resmungou Melbar. — Bem que gostaria de ajudá-lo. Mesmo quando falava em tom pensativo, sua voz rugia que nem um trovão. A escotilha abriu-se automaticamente quando se encontravam a dois metros da mesma. Deslizou silenciosamente para o lado. Atrás dela havia um recinto circular de cerca de cinco metros de diâmetro. Do lado oposto havia outra escotilha, que levava para certas partes da nave estranha que ainda continuavam desconhecidas. O recinto estava completamente vazio, com exceção das placas luminosas amarelas instaladas em toda parte e de algumas caixas presas ao teto, que não permitiam qualquer conjetura sobre as funções que desempenhavam. Havia quatro seres humanos espalhados pelo recinto. Estavam sentados no chão, com as costas apoiadas na parede. Três deles usavam o uniforme de campanha da Frota espacial terrana e carregavam pesadas armas automáticas nos cintos. O outro ser humano era uma mulher, que também estava armada, mas cujo conjunto calça-blusa muito justo representava uma violação grave às normas que regulavam as vestes a serem usadas na Frota. André lançou um olhar ligeiro sobre a cena assim que atravessou a escotilha. Por alguns segundos a situação lhe pareceu tão ridícula e grotesca que teve de reprimir um sorriso. Aqui estavam eles, personagens ilustres da política galáctica, trancados numa espaçonave desconhecida de uma raça desconhecida... e não sabiam o que fazer. O mutante aproximou-se de um homem de olhos frios e cinzentos que o fitava atentamente, esticando as pernas compridas tão à vontade que dava a impressão de que neste mundo não existia nada que pudesse perturbar seu conforto. André parou à sua frente. Sem que o soubesse, entesou o corpo. — Fracassei, senhor — informou. — Estava progredindo muito bem, quando apareceu — apontou por cima do ombro, em direção a Melbar Kasom — este elefante e atrapalhou minha concentração. O homem de olhos cinzentos levantou-se. O distintivo preso à gola aberta da camisa de seu uniforme emitia um brilho fosco. Este distintivo, do qual havia um único exemplar, era o de Administrador Geral. Perry Rhodan fitou o gigante de Ertrus com uma expressão pensativa. — Então é isso? — perguntou a meia voz. — Mandamos o senhor para a cama para não atrapalhar os outros, e o senhor fica andando pela nave. Melbar enfrentou tranqüilamente o olhar de Rhodan. — A culpa é minha, senhor — confessou. — Mas não podia saber que André... Perry Rhodan interrompeu-o com um gesto. — Não importa, Melbar. A culpa não é tão grande assim. Sei o que nos falta e sei que sou o único responsável pela falta de que padecemos: a falta de coordenação. Alguém deu uma risadinha. Outro homem levantou-se do lugar em que estava sentado, no chão desguarnecido do recinto circular. Era esbelto e seus ombros não muito largos, mas ao voltar cresceu numa altura surpreendente. Mas o que mais chamava a atenção nesse homem era a testa muito alta, que terminava numa cabeleira lisa e branca como neve. — O terrano assume uma atitude generosa como sempre — escarneceu o homem de cabelos brancos. — Devo dizer que não deixa de haver um certo egoísmo em sua atitude. É tão fácil esconder nossas motivações baixas ou elevadas, desde que assumamos uma culpa, uma responsabilidade.
Aproximou-se do Administrador Geral. Os dois homens tinham aproximadamente a mesma altura, e quem os visse frente a frente dificilmente poderia subtrair-se ao encanto irradiado por essas personalidades notáveis. — Em outras oportunidades você soube fazer-se entendido — resmungou Rhodan. — Aonde quer chegar mesmo? O homem de cabelos brancos sorriu. — Estamos confusos, não estamos? — Muito bem. Estamos confusos. — Encontramo-nos numa espaçonave da qual não sabemos a quem pertence. Esta espaçonave levou-nos de Badum para Lovely, em Lovely enfrentamos algumas aventuras bastante misteriosas, e agora a mesma espaçonave nos leva de Lovely para algum lugar. Não podemos exercer a menor influência sobre o curso da mesma. É bem verdade que entramos nela quase espontaneamente, mas o resto fica por conta dos medonhos desconhecidos. — Você se exprime com muita clareza — admitiu Rhodan. Em sua voz vibrava uma ligeira ironia. — Pois então — disse o homem de cabelos brancos, atirando os braços para o alto num gesto ligeiramente dramático. — Estamos confusos. Você não quer admitir que está confuso e por isso ainda não tentou introduzir um pouco de coordenação em nossas ações. Foi por isso que você assumiu a culpa de Melbar. Não precisa ficar constrangido. Estamos todos confusos. Por enquanto ninguém teve tempo de refletir calmamente. Ninguém... Perry Rhodan colocou a mão sobre seu ombro, fazendo com que se calasse. — Você está fantasiando, Atlan — disse Perry em tom enfático. — Também deve ser por causa da confusão generalizada. Finalmente o último uniformizado levantou-se do chão, gemendo e praguejando baixinho. Era corpulento, não muito alto, e apresentava cabelos ruivos rebeldes. Ao lado de Perry Rhodan e do arcônida tinha um aspecto quase insignificante. Mas ele mesmo não parecia notar essa insignificância. Mesmo no círculo dos grandes homens comportava-se com uma petulância que em seus longos anos de vida se transformara numa das suas características. — Uma palavra franca sempre é bem-vinda — exclamou. Parecia ofegante com o esforço de levantar-se do chão. Deu uma palmadinha amistosa no ombro do arcônida e acrescentou: — Já está na hora de alguém dizer a verdade. Atlan deu uma risada. — Muito bem. O importante é que eu provoquei uma divergência. A divergência anima os espíritos. Afinal, precisamos de um pouco de movimento. Rhodan dirigiu-se ao mutante. — André, até onde conseguiu chegar? — Só consegui chegar ao corredor central e à primeira escotilha. Naturalmente consegui atravessar a mesma. Atrás dela fica uma sala ampla sem iluminação. Está vazia... tal qual todos os recintos desta nave. Achei que a escuridão favoreceria minha concentração, por isso fiquei parado. Aí apareceu... — interrompeu seu relato e permaneceu calado. — Acho isso muito importante — disse Rhodan, dirigindo-se aos outros. — Desde que estamos na nave, todos os recintos, com exceção deste aqui e do corredor em forma de túnel, permanecem fechados para nós. André foi o primeiro que conseguiu acesso a
outro recinto. É possível que os desconhecidos estejam prestes a abandonar sua atitude de cautela e desconfiança para permitir que tenhamos maior liberdade de movimento. — Que desconhecidos que nada — resmungou o gordo em tom de desprezo. — Alguém teria de provar que realmente existem desconhecidos a bordo desta nave. Depois disso poderei refletir se vale a pena acreditar neles ou não. André pediu a palavra. — Acontece que ouvimos suas vozes, senhor! — ponderou. — E daí? Qualquer idiota sabe acoplar um sistema de alto-falantes a um toca-fitas. André abanou demoradamente a cabeça. — O senhor está enganado — disse em tom indiferente. — Não sou telepata, mas estou captando as emanações mentais dos desconhecidos. Não há a menor dúvida de que existem. O homem encorpado estreitou os lábios e fez avançar o queixo num gesto belicoso. — Há, sim. Eu tenho minhas dúvidas. Perry Rhodan deu uma risada. — Reginald Bell, você é um tipo obstinado, antiquado, desconfiado... Bell virou-se abruptamente e interrompeu-o, atirando os braços para cima. — Chega! — gritou, fingindo-se de zangado. — Não quero ouvir o resto. — É uma falha psicológica — escarneceu Atlan. Quando não gosta de uma coisa, fecha os olhos, ouvidos e os outros órgãos dos sentidos que possui. Reginald Bell não esboçou a menor reação. Em compensação, ergueu-se em sua defesa a voz da única mulher presente na sala, que até então acompanhara tudo em silêncio. — Isso apenas prova que ele é humano — disse a voz grave. Mory Abro levantouse com movimentos ágeis. Nem precisou usar as mãos. — E isso — prosseguiu, brindando o arcônida com um olhar hostil — torna-o mais simpático aos meus olhos do que o senhor jamais conseguiu ser. Atlan suspirou num estranho desespero. — Administrador Geral, estamos lidando com um bando de idiotas incapazes de, numa situação concreta... Quando notou que Perry Rhodan não prestava atenção ao que dizia, ficou calado. Perry estava dedicando sua atenção exclusivamente à moça. — Em princípio concordo, Mory — admitiu. — Mas na situação em que nos encontramos dependemos de formas de pensamento menos convencionais. Atlan acompanhou seu olhar. Não era a primeira vez que tinha de confessar que a presença de Mory Abro constituía motivo suficiente para interromper imediatamente uma conversa com Perry Rhodan ou qualquer outro homem. Mory era alta. Quase chegava a ser alta demais para uma mulher, mas sua estatura era a ideal para uma reunião de homens grandes. Ninguém nunca a vira usar outra coisa senão roupas bem justas. Sabia que valia a pena exibir suas formas e não tinha o menor constrangimento em realçá-las. Mory Abro era o tipo de mulher à qual muitos homens dão as costas depois de um olhar de admiração, porque não têm esperança de impressionar a ponto de despertar-lhe a atenção. — Na situação em que nos encontramos! — ironizou a moça. — Se não podemos defender-nos com atitudes humanas, de qualquer maneira estaremos perdidos. Perry fitou-a com uma expressão de espanto e esboçou um sorriso.
— Veja bem, moça — disse em tom delicado. — Os princípios são uma coisa bonita, mas às vezes a gente precisa mais do que isso. Por exemplo... aqui! — bateu com o dedo na cabeça. Mory ergueu os punhos. Por um instante deu a impressão de que iria precipitar-se sobre o Administrador. Perry continuava a sorrir. Mory voltou a baixar os punhos e soltou um chiado entre os dentes. Sem dizer mais uma palavra, voltou a sentar. — Quer dizer que consideramos provado — voltou a falar o Administrador Geral — que além de nós existem seres desconhecidos a bordo desta nave, que de vez em quando nos dirigem a palavra, mas de resto não estabelecem contato conosco. Não vale a pena refletir para descobrir seus planos. Nossa fuga de Badum, as lutas que travamos em Lovely, nossa partida de Lovely, isso são coisas que parecem tão absurdas que nem precisamos tentar explicá-las. Devemos limitar-nos ao que podemos fazer. André constatou que outros setores da nave se tornaram acessíveis. Nada nos impede de avançar até onde pudermos, para ao menos obter algumas informações sobre a estrutura e as instalações desta nave. É possível que os desconhecidos nem sejam invisíveis. Talvez estejam escondidos em um dos recintos que têm permanecido fechados. Neste caso poderíamos entrar em contato com eles e esclarecer o mistério. André Noir levantou a mão. Perry respondeu com um aceno de cabeça. — Pelo que consegui apurar — disse o mutante — os desconhecidos são mesmo invisíveis. Até aqui consegui, sempre que captei pensamentos estranhos, determinar a distância da respectiva fonte. Tenho certeza de que por várias vezes tive contato com desconhecidos a bordo desta nave, que não se encontravam a mais de três ou quatro metros. Deveria tê-los visto... Interrompeu-se. — Onde foi? — perguntou Reginald Bell apressadamente. André apontou para a escotilha. — Lá fora, no corredor. — Nunca aconteceu nesta sala? — Não senhor. O arcônida levantou os olhos. — Isso significa alguma coisa? Bell deu uma risada aborrecida. — É claro que significa. Se André tivesse observado a mesma coisa no interior desta sala, teríamos de concluir que os desconhecidos podem entrar sem abrir a escotilha. Teoricamente poderiam ser entidades imateriais, não é mesmo? — Entidades que, embora fossem capazes de movimentar-se através de paredes sólidas, teriam instalado portas, escotilhas e coisas semelhantes — completou Atlan. — Só poderia ser por brincadeira. Bell abriu os braços. — Muito bem. Quer dizer que devemos supor que os desconhecidos são seres materiais que são capazes de tornar-se invisíveis. Atlan fitou-o com um sorriso. — Dali resulta outra conclusão — prosseguiu Perry. — Não querem que nós os vejamos. Não conhecemos seus motivos. Mas, ao que parece, estão dispostos a revelar novos segredos de sua nave. Quem sabe se um dia não aparecem pessoalmente na nossa frente? Saiu caminhando com a cabeça abaixada em direção à escotilha, ficou parado por alguns segundos e voltou ao mesmo lugar.
— Não adianta elaborar um plano detalhado — disse. — Vamos andar por aí, em grupos de dois. O objetivo será a exploração da nave. Precisamos saber o que existe na mesma além das três salas vazias e do corredor em forma de túnel que já vimos. Bell e André, Mory e Melbar, Atlan e eu, estes são os grupos. Vamos todos examinar a sala escura na qual André já chegou a entrar. Dali procuraremos avançar para outros lados. Estão todos de acordo? Não houve objeções. Mory Abro ergueu-se lentamente. Deu a perceber que não gostava da tarefa. Perry abriu a escotilha. No momento em que viu o corredor comprido pela frente, ouviu-se uma voz metálica e fria vinda do nada, que falou num intercosmo entrecortado: — Às vezes pode ser mau querer apressar o curso natural das coisas. Perry deteve-se em meio ao movimento. Gastou um segundo para refletir sobre as palavras que acabara de ouvir. Finalmente virou a cabeça e fitou os companheiros. — Se isso representa uma advertência — disse com a voz tranqüila — então acho que poderemos dar-nos ao luxo de não considerar a mesma. Sem aguardar resposta, saiu para o corredor, passou pelas escotilhas quase invisíveis das duas salas que usavam como dormitórios e seguiu em direção à misteriosa sala escura. *** Havia uma porção de coisas, grandes e pequenas, sobre as quais Perry Rhodan gostaria de saber mais. Havia tanta coisa que permanecia em mistério, e ele compreendia tão pouco das situações em que se tinha encontrado que às vezes tinha a impressão de que tudo não passava de um sonho — desde a fuga de Badum até aquele momento em que tateava ao lado de Atlan por um corredor iluminado apenas por uma minúscula lanterna. Até então tivera bastante habilidade para ocultar dos amigos a extensão de sua ignorância. Sabia que viam nele um homem superior — até mesmo Atlan e Mory, que eram espíritos mais independentes. Via-se obrigado a fingir conhecimentos e uma compreensão das coisas, ou ao menos exibir certo otimismo, para proteger o moral do grupo. Acontece que não tinha nenhum otimismo e não sabia de nada. Naquele momento, por exemplo, ignorava se ele se deslocava para a frente ou para trás. A nave era de formato cilíndrico e tinha uns duzentos metros de comprimento por quarenta de espessura. Mesmo quem a visse de fora não saberia dizer onde ficava a proa e a popa. Era possível que para os desconhecidos isso não tivesse muita importância. Era perfeitamente possível que as duas extremidades da espaçonave desempenhassem as mesmas funções. Afastou este pensamento. Na oportunidade apropriada descobririam como estavam as coisas. No momento o importante era travar conhecimento com o interior da nave. Na outra extremidade da sala escura realmente havia várias escotilhas; para ser mais exato, cinco ao todo. Conseguiram abrir todas elas. Os corredores que se estendiam atrás das mesmas eram escuros e levavam a direções diferentes. Perry decidiu que de início examinariam o corredor do meio e os situados nas extremidades. Cada grupo devia avançar o mais que pudesse. Atlan e ele passaram pela escotilha situada no centro. Já tinham avançado cerca de trinta metros sem descobrir nada de novo. O corredor era mais estreito, mas estava vazio tal qual o que já conheciam. O fato de a nave estar vazia era outro enigma que Perry gostaria de ver resolvido.
Era possível retirar de um veículo espacial todos os aparelhos e instrumentos que não fossem indispensáveis à navegação cósmica, mas sempre sobrariam tantos instrumentos que qualquer pessoa se defrontaria com os mesmos a cada passo. Porém não era o que estava acontecendo na nave em que se encontravam. Até se tinha a impressão de que a mesma ainda tinha de ser preparada para a primeira decolagem. De vez em quando via-se uma caixa de instrumentos bem revestida. Talvez fossem saídas das instalações de climatização. Mas estas caixas não representavam um centésimo do volume de instrumentos que qualquer astronauta experimentado espera encontrar a bordo de uma espaçonave. Naturalmente podia-se inventar uma explicação. Os desconhecidos não queriam ser vistos, e por isso talvez tivessem tornado invisíveis também seus instrumentos. Mas, se tudo isso devia permanecer em segredo, como se explicava a presença de seis terranos a bordo da nave? Se os desconhecidos eram entidades materiais e sua nave possuía uma forma perfeitamente reconhecível, seria de esperar que os instrumentos que se encontrassem a bordo dessa nave tivessem as mesmas características. Perry ficou parado. A idéia deixou-o fascinado. Dirigiu o raio da pequena lanterna para o teto do corredor, que ficava pouco acima de sua cabeça. Aproximou-se da parede esquerda, estendeu a mão e pôs-se a tatear a mesma. Atlan observou-o. — Ah, é a nova tática — observou em tom irônico. Perry dirigiu a luz da lanterninha para o arcônida e viu que este estava sorrindo. — Você sabe...? — Sei. Devemos ter tido a idéia ao mesmo tempo. É estranho que não tenhamos pensado nisso mais cedo, não é mesmo? Perry confirmou com um gesto e reiniciou as buscas. Dirigiu a luz da lâmpada para a parede e roçou a mesma com a mão direita. Os dedos tocaram o material fosco e liso. A mão acompanhava os contornos que os olhos viam. Não havia nada escondido. Perry avançou mais um passo. A busca continuou a não produzir nenhum resultado. Não havia nada escondido na parede. Esta era tão lisa quanto aparentava ser. Sobressaltou-se quando ouviu o arcônida dar uma risadinha. — O que houve? — Aqui — disse Atlan. — Vire a lanterninha para cá. Perry dirigiu o facho de luz para o arcônida. Estendeu o braço direito para o lado. Manteve os dedos esticados e estes permaneceram imóveis a vinte centímetros da parede. Perry compreendeu. Deu um passo rápido em direção a Atlan e também estendeu a mão. A um palmo da parede, pouco abaixo do teto, seus dedos tocaram uma superfície metálica lisa que os olhos não viam. — Então é isso — disse com uma risada. — Acho que sim — respondeu Atlan. — Resta saber que resultado pode alcançar um cego que não possui instrumentos e tenta investigar os instrumentos produzidos por uma tecnologia estranha. De repente Rhodan teve a impressão de que uma lufada de ar frio atravessava o corredor. Olhou para trás, mas a mesma escuridão compacta continuava a estender-se fora do feixe de luz de sua lanterna. — O que foi isto? — perguntou Atlan. Rhodan virou a lanterninha e iluminou o trecho do corredor pelo qual tinham vindo. O que viu foi tão inacreditável que ficou com os olhos semicerrados e sacudiu a cabeça, para livrar-se da imagem assustadora.
Mas a imagem continuou. Era a imagem de uma parede lisa, que fechava o corredor uns três metros atrás deles. E não era apenas uma imagem: os dedos de Rhodan esbarraram numa resistência dura e fria, quando começaram a apalpar a imagem inconcebível. Não havia dúvida — estavam isolados!...
2 Certas pessoas recuperam-se mais depressa dos choques e das surpresas que outras. E Perry Rhodan era uma destas pessoas. O raciocínio lhe disse que a existência daquela parede era um dado concreto, e todas as reflexões sobre sua origem seriam em vão. A situação era esta. Portanto, só havia uma conclusão lógica: — Quer dizer que só podemos seguir para lá! Rhodan girou a lanterninha e passou a iluminar a parte do corredor que ainda não conheciam. Atlan estava examinando a parede que acabara de aparecer. Bateu nela com os dedos e abanou a cabeça, contrariado. — É uma parede grossa — disse. — Muito grossa. Acho que do outro lado nem se ouve se batermos. Seguiu Perry Rhodan, que já saíra caminhando. Rhodan teve a impressão de que mais uma surpresa os aguardava. Até parecia que queriam obrigá-los a seguir na direção em que estavam indo. Na opinião de Perry Rhodan não havia nenhum perigo, pois os desconhecidos já tinham tido oportunidades bem melhores para livrar-se deles. De repente o corredor terminou numa parede lisa. Rhodan aproximou-se da mesma; esperava que deslizasse para o lado, mas isso não aconteceu. A parede continuou no mesmo lugar. Rhodan apalpou-a de cima até embaixo. Era lisa e não havia aparelhos escondidos. Rhodan não insistiu nos esforços. Virou-se e sentou no chão. Esticou as pernas através do corredor, desligou a lanterninha e enfiou-a no bolso. O corredor mergulhou numa escuridão pesada. Rhodan ouviu a respiração apressada de Atlan em cima de sua cabeça. — E agora? — perguntou o arcônida. — Vamos refletir — decidiu Rhodan. — Por onde devemos começar? Com o fato de que estamos numa armadilha? Rhodan não era da mesma opinião. — Pense um pouco! Por que haveriam de atrair-nos para uma armadilha? A própria nave é uma armadilha. Suas intenções devem ser outras, e se tivermos paciência nós as descobriremos. Pelos ruídos não se podia saber se Atlan também estava sentando. De repente Rhodan teve uma idéia. Lembrou-se de uma situação muito semelhante àquela em que se encontrava. Daquela vez um ser invisível também o atraíra para tudo quanto era armadilha, tão-somente para observar como fazia para encontrar uma saída. Fora há bastante tempo, no início de sua carreira cósmica, quando saíra com Crest e Thora à procura do Ser misterioso do planeta Peregrino. O Ser fizera com que percorresse um determinado caminho, porque só queria entrar em contato com aqueles que fossem capazes de segui-lo. As armadilhas eram provas, e ele passara por todas elas. Seria esta a intenção dos invisíveis? Será que só queriam mostrar-se quando tivessem certeza de que os seis passageiros que se encontravam a bordo da nave eram capazes de enfrentar todos os contratempos? A idéia parecia plausível. Se fosse correta, percebeu Rhodan repentinamente, os acontecimentos de Lovely adquiriam um aspecto novo. Será que os desconhecidos só haviam promovido aquela reunião grotesca de todas as raças galácticas para encontrar a
espécie mais útil? Seria aquela que suportasse a luta mortal de todos contra todos por mais tempo e com as menores perdas? Rhodan não teve tempo para refletir sobre isso. De repente ouviu-se uma risada, uma risada fanhosa. Vinha do ar, da mesma forma que aquela voz terrível tinha vindo do ar. Alguém parecia divertir-se. Pelo tom da risada Rhodan seria capaz de jurar que a mesma vinha de um débil mental. A risada cessou, e outro ruído se fez ouvir. Um zumbido leve veio do outro lado das paredes e fez tremer o chão. Rhodan levantou-se de um salto. Pegou a arma e destravoua. Não encontrou nenhum alvo. O zumbido terminou, e de repente uma luz amarela penetrou no corredor. De início era uma faixa estreita, que foi aumentando, e finalmente havia um quadrado formado por uma claridade amarela ofuscante no lugar em que antes ficara a parede que os detivera. Rhodan fechou os olhos, pois sentia-se ofuscado. Quando voltou a abri-los, viu uma sala retangular não muito grande, na qual havia grande quantidade de aparelhos de formato estranho. *** O primeiro exame da sala não produziu nenhum resultado. Os aparelhos, dispostos em fila contínua em forma de mesinhas baixas junto às paredes, não revelaram suas funções. Mas Rhodan notou outra coisa. As mesinhas eram muito baixas. Imaginou o tamanho que alguém deveria ter para manipular os controles em posição sentada e chegou à conclusão de que essa altura seria de setenta a oitenta centímetros, desde que se tratasse de criaturas humanóides. Este resultado combinava com a altura reduzida do corredor pelo qual tinham vindo. A distância entre o soalho e o teto não excedia dois metros. Era bem verdade que havia a sala em que tinham permanecido, o corredor principal e a sala escura, cujas dimensões eram bem maiores. Mas não são os recintos grandes que devem servir de base à avaliação das dimensões do corpo de uma raça estranha, mas os menores. Rhodan fez um registro mental: os desconhecidos eram menores que os terranos! Passou a estudar a disposição das chaves e botões instalados nos pequenos quadros de comando. Só mesmo um olho bem treinado seria capaz de concluir sobre as características dos membros das criaturas que manipulavam esses controles. Rhodan levou cerca de quinze minutos para descobrir que o alcance dos braços estranhos devia ser de cerca de cinqüenta centímetros e que as mãos dos invisíveis deviam possuir dedos. Fez mais um registro: os desconhecidos provavelmente eram humanóides. Nesse instante Atlan soltou um grito baixo. Rhodan ergueu-se apressadamente e viu quando a escotilha pela qual tinham vindo acabava de fechar-se. Atlan saiu correndo em direção à mesma e bateu com os punhos fechados no material liso. A escotilha continuou na mesma posição. Não fez o menor movimento. Mais uma vez estavam presos. Atlan virou-se. — Ainda acabo enlouquecendo — gritou em tom de desespero. — Paciência, paciência — tranqüilizou-o Rhodan com um sorriso. — O lugar em que estamos pelo menos é mais interessante que o outro. Quanto tempo devemos levar para descobrir o que há atrás destes aparelhos? Atlan pôs a mão na barriga e respondeu com um estranho desespero:
— Levaremos mais tempo do que conseguirei continuar vivo com o estômago vazio. Rhodan estacou no meio do movimento. Atlan acabara de proferir a palavra-chave. Das outras vezes uma observação deste tipo sempre provocara a reação imediata dos desconhecidos. Rhodan olhou cautelosamente em torno. Viu que à frente do arcônida uma tênue névoa branca subia ao ar. De início era uma bola brilhante que rodava, depois passou a desmanchar-se rapidamente, assumiu novas formas e perdeu a luminosidade. Novas cores surgiram. Uma espécie de bandeja apareceu no ar, e nela havia dois recipientes em forma de concha. Entre eles havia um instrumento de um palmo de comprimento, de cabo firme e com um alargamento em forma de bacia, que tinha certa semelhança com uma colher. Atlan esfregou as mãos. — São atenciosos como sempre! — elogiou. Segurou a bandeja e sentiu a força que segurava a mesma desaparecer rapidamente. Colocou a armação cuidadosamente no chão. Uma das conchas continha água límpida, a outra um mingau nutritivo alaranjado. Era o mesmo alimento que os seis passageiros forçados recebiam desde a partida de Lovely — e sempre da mesma forma, isto é, pelo ar. — Com licença, Administrador Geral — disse Atlan em tom alegre e brandiu a colher. Seu apetite provocou um eco imediato no estômago de Rhodan. — Também estou com fome — disse este. Não precisou fazer mais nada. O espetáculo repetiu-se. Outra neblina apareceu no ar e transformou-se numa bandeja com duas conchas e uma colher. Os dois, fechados no recinto, consumiram sua refeição em boa paz, beberam metade da água fresca e cristalina e afastaram as bandejas. Estas permaneceram por alguns segundos junto a uma das mesinhas. De repente, seus contornos se dissolveram. As conchas pareciam subir em nuvens finas de fumaça branca. Dali a alguns segundos o lugar junto à mesinha voltou a ficar tão vazio como estivera antes. Rhodan bateu palmas e levantou-se de um salto. — Agora é que a coisa vai começar! — exclamou, bem-humorado. — Daqui a duas horas... Foi interrompido. A risada infantil aguda voltou a soar. Parecia vir do teto, bem em cima da cabeça de Perry Rhodan. Mas fosse qual fosse sua origem, o efeito foi o mesmo da primeira vez. A escotilha abriu-se. Dois vultos apareceram na luz que saía para o corredor. Rhodan mordeu os lábios para não soltar um grito de surpresa. Os dois vultos eram Reginald Bell e o mutante André Noir. Viam-se diante de um enigma insolúvel. Bell e André afirmavam de pés juntos que nunca tinham visto outro corredor senão aquele no qual Rhodan os mandara entrar. Não passaram por qualquer bifurcação e nunca mudaram de direção. Também perceberam que, de repente, uma parede lhes fechou o caminho para a retaguarda. Mas não perderam a calma e prosseguiram. — De repente o corredor terminou — concluiu Bell. — Não havia como tirar aquilo ali do lugar. — Apontou para a escotilha. — Sentamos no chão e pusemo-nos a refletir. André tentou estabelecer contato com os desconhecidos, mas não conseguiu. De repente, alguém soltou uma risada idiota — e a escotilha abriu-se.
Atlan e Perry entreolharam-se. Bell e André tinham passado exatamente pela mesma experiência que eles. Mas não sabiam o que era feito de Melbar Kasom e Mory Abro. — Vamos esperá-los aqui — decidiu Rhodan. — Acho que Melbar e Mory também acabarão aparecendo. Não explicou por que resolvera esperar em vez de aproveitar a escotilha, que ainda não se fechara depois da entrada de Bell e André. Não disse que, em sua opinião, tinham alcançado um estágio decisivo no estabelecimento de contato com os desconhecidos invisíveis. Havia dois motivos para isso. Primeiro, queria que os companheiros seguissem seus próprios pensamentos. Talvez isso fizesse parte da prova a que estavam sendo submetidos. Era possível que Bell, Atlan, André, Melbar e Mory crescessem no respeito dos desconhecidos se encontrassem a solução sem ajuda de ninguém. Além disso, não tinha certeza absoluta. Era bem possível, que através do véu do mistério, se escondesse uma coisa bem diferente do que ele supunha. O tempo foi passando. Bell e André ocuparam-se ligeiramente com os aparelhos desconhecidos, mas chegaram à conclusão de que não seriam capazes de compreendê-los. Pediram comida e esta lhes foi fornecida imediatamente. Atlan e Perry ficaram absortos em seus pensamentos. Há algum tempo Perry Rhodan tivera uma idéia da qual não conseguia livrar-se mais. Ao que tudo indicava, os desconhecidos dominavam uma técnica que deixava a dos terranos irremediavelmente para trás. A imagem de figuras muito compenetradas surgiu em sua mente. Mas havia a risada estúpida e infantil que de vez em quando enchia o ar. Rhodan teve de reconhecer que estava avaliando a mesma pelos padrões humanos. Se as cordas vocais dos desconhecidos emitiam sons que aos ouvidos de um terrano deviam parecer estúpidos, isso em nada afetava sua dignidade. Era possível que para eles a linguagem e o riso dos terranos fosse infantil e estúpido. Havia milhares de motivos pelos quais o observador apressado devia abster-se de tirar conclusões apressadas. Mas apesar de tudo Rhodan não conseguiu livrar-se da impressão de que alguma coisa não era como devia ser. A hipertécnica dos desconhecidos e aquela risada estúpida formavam uma dissonância. A idéia deixou o Administrador Geral nervoso. Ficou entretido com a mesma e assustou-se quando de repente voltou a ouvir a risada infantil. Na verdade, ele a esperara o tempo todo. A escotilha abriu-se imediatamente e Melbar Kasom e Mory Abro entraram tropeçando, ofuscados pela profusão de luz amarela. Melbar continuava a andar encurvado, porque para ele o corredor era muito baixo. Rhodan levantou-se. Afastou com um gesto a torrente de perguntas que Mory devia trazer na ponta da língua. Explicou como Atlan e ele tinham parado na sala em que se encontravam, e André e Bell depois deles. Ainda não havia concluído sua explicação, quando a escotilha voltou a fechar-se. Rhodan entesou os músculos. Sabia que dentro de instantes aconteceria alguma coisa. Estavam todos reunidos. Todos tinham provado que possuíam coragem e tranqüilidade suficiente para atravessar uma série de situações críticas e chegar à sala que os desconhecidos provavelmente haviam escolhido como alvo. Era a vez dos estranhos agirem. Isso era o que pensava Perry Rhodan. Porém havia uma pessoa que não pensava assim. Era André Noir, o mutante.
Sentiu as emanações de uma inteligência desconhecida. Tratava-se de vibrações cerebrais que não se destinavam a eles. Moviam-se no plano de uma lógica estranha, que ele não compreendia. Só sabia que havia um organismo pensante nas imediações. Prosseguiu nas suas pesquisas mentais. Se os pensamentos estranhos não eram dirigidos a ele, então deviam ser destinados a outra pessoa, a um estranho. Mas onde estava ele? André fechou os olhos para concentrar-se melhor. Ninguém lhe deu atenção. Depois da explicação de Perry Rhodan todos ficaram em silêncio. Esperavam que acontecesse alguma coisa. Depois de algum tempo André começou a sentir as emanações do outro estranho. Estava na extremidade oposta da sala, a seis metros do lugar em que o hipnomutante se encontrava. Havia uma superposição das vibrações de André com as do desconhecido que se encontrava perto dele. Eram vibrações quase imperceptíveis, e André nunca as teria notado se não soubesse que devia haver outro estranho por ali. Abriu então os olhos e lançou-os pela sala. Se quisesse levar avante seu plano, não devia pensar nos desconhecidos. Para executar o mesmo precisaria de auxílio. Mory Abro estava a seu lado, porém nunca conseguiria explicar-lhe suas intenções sem revelar o plano. Melbar Kasom, o gigante ertruso, estava parado ao lado de Mory. André deu um passo silencioso para trás e, passando atrás da moça, aproximou-se do ertruso. O hipno não tirava os olhos dos quadros de comando. O quadro da tecnologia estranha provocava, em sua mente, um volume suficientemente grande de reações de espanto para dissimular seus verdadeiros pensamentos, ao menos por alguns instantes. A reação de Melbar foi imediata quando André o segurou pelo braço. Virou a cabeça e lançou um olhar indagador para o mutante. André apontou para sua própria testa, depois para o lado oposto da sala e finalmente para o alto. Melbar franziu a testa. Lia-se a perplexidade em seu rosto. André prosseguiu. Encostou o dedo em Melbar, voltou a apontar para o outro lado da sala e fez um movimento rápido com as mãos, como se quisesse agarrar alguma coisa. Depois apontou para si mesmo, voltou a apontar para cima e repetiu o gesto de agarrar. Depois fechou os olhos e pôs-se a escutar. Se os desconhecidos tinham percebido suas intenções, seus pensamentos deviam revelar isso. André respirou aliviado ao notar que as vibrações irregulares dos pensamentos estranhos não tinham mudado. Levantou os olhos e percebeu que Melbar já o compreendera. O gigante acenou levemente com a cabeça e começou a deslocar-se cautelosamente. Deixou cair o queixo sobre o peito e cruzou as mãos atrás das costas. Era a pose de quem caminha de um lado para outro em atitude pensativa, que ninguém estava acostumado a ver em Melbar Kasom. André Noir mordeu os lábios. O importante era que Melbar fosse capaz de guardar seus pensamentos para si mesmo. Se os desconhecidos percebessem suas intenções... Melbar passou entre Atlan e Bell. Os dois abriram caminho. Melbar atingiu a parede do lado direito e, com alguns passos pequenos e cautelosos, foi caminhando junto às mesinhas, em direção ao canto. Estava representando muito bem. Parou perto da parede que ficava à sua frente e levantou os olhos. Seu rosto grosseiro exprimiu espanto. Até parecia que o fato de defrontar-se repentinamente com uma parede lhe causara uma grande surpresa. André viu-o piscar ligeiramente com os olhos e respondeu com um aceno de cabeça. Os dois invisíveis continuavam na mesma posição. Ainda estavam conversando.
“Quem sabe se não estão pensando sobre a próxima peça que vão pregar em seus passageiros”, pensou André, que se divertia com a idéia. Foi erguendo os braços. Melbar observava-o atentamente e fez a mesma coisa. André virou para o lado, já que o estranho ao qual visava sua ação estava flutuando em cima das mesinhas. Melbar também se virou, mas André fez um movimento apressado de incerteza. Não sabia exatamente onde estava o invisível ao qual se dirigia a ação de Melbar. Encontrava-se naquele canto. Era só o que sabia. Mais uma vez Melbar compreendeu. Abriu os braços. André confirmou com um gesto. Depois saltou. Mory, que se encontrava a seu lado, soltou um grito de pavor. André saltara com um impulso muito grande. Bateu de frente numa mesinha. Sentiu uma dor lancinante no peito, que o impediu de respirar. Mas ficou com os braços levantados, as mãos estendidas e os dedos bem abertos. Não conseguiu apoiar-se na mesinha. Começou a escorregar para baixo. Algumas chaves foram arrancadas com um rangido e caíram ao chão. Atarantado, ficou agitando o ar com as mãos. Foi só quando as pontas dos pés voltaram a tocar o chão que sentiu resistência entre os dedos. Parecia que estava agarrando uma porção de ar endurecido. Segurou com mais força e percebeu que o corpo invisível cedia à sua força e escorregava para baixo com ele. Conseguira! Fosse o que fosse, ele o segurava firmemente entre os dedos e não o soltaria mais. De tão entusiasmado que ficou, perdeu o equilíbrio e caiu de costas. A coisa invisível caiu sobre ele. Não sentiu nenhuma dor. A coisa não devia ser muito pesada. Continuava a segurá-la. Estava quieta, sem fazer o menor movimento. Talvez tivesse ficado inconsciente de susto ou sob os efeitos da queda. Quem sabe se não se tornaria visível? Uma neblina confusa começou a formar-se. Tremendo, foi-se adensando e assumiu formas definidas. André viu duas esferas que se formavam. Ficou perplexo ao notar que as superfícies das esferas começavam a articular-se. Da esfera inferior cresceram tocos de braços, enquanto na de cima surgiam depressões das quais grandes olhos redondos o fitavam. Perplexo, fitou a estranha criatura anã que seus dedos continuavam a segurar fortemente. Virou a cabeça e viu que Melbar Kasom segurava uma criatura igual entre as mãos gigantescas. André levantou-se. Nem por um segundo diminuiu a pressão dos dedos sobre o pescoço do prisioneiro. Olhou para Rhodan como quem pede ajuda, e depois para o arcônida. Mas não havia ninguém na sala que não se sentisse tão perplexo quanto ele. A tensão represada no interior de Noir começou a ceder. Começou a rir. Foi uma risada estridente, histérica. *** Então eram estes os desconhecidos. Anões de noventa centímetros de altura e com enormes cabeças esféricas, cujo tamanho das mesmas correspondia a mais de metade do tronco. Possuíam um minúsculo corpo redondo e um par de pernas finas que terminavam em pés de pássaros com três dedos. Da cabeça saíam grandes olhos salientes e duas narinas abriam-se diretamente na pele do rosto. A boca não passava de uma terceira abertura, semelhante à dum peixe. De cada lado do crânio esférico havia uma saliência rudimentar. Eram as orelhas mais feias que o olho de qualquer homem já viu.
Os braços eram curtos e ficavam em posição oblíqua em relação ao corpo. As mãos pequenas possuíam seis dedos. Eram a única parte do corpo dos desconhecidos que tinha aspecto humano. O tronco minúsculo estava coberto por mantas coloridas. Tratava-se de tiras de tecido multicor que os desconhecidos haviam enlaçado em curvas graciosas. Em torno do pescoço, que era apenas uma reentrância entre a cabeça e o tronco esférico, cada um usava uma caixinha do tamanho de uma caixa de fósforos, que balançava sobre o peito. Tinha-se passado cerca de um minuto depois da ação arrojada de André Noir sem que ninguém dissesse uma palavra. Mais uma vez Rhodan foi o primeiro a recuperar-se da surpresa. — Aí estão eles — disse com a voz tranqüila. — Kasom, coloque esse homem no chão, senão acaba por sufocá-lo com essas mãos enormes. O ertruso obedeceu. Quando os pés de três dedos tocaram o chão, o desconhecido ficou parado, imóvel. Seus olhos de peixe, incolores e sem pálpebras, exprimiam medo. — Vocês nos compreendem? — perguntou Rhodan. O desconhecido não mexeu com a boca ao responder, mas, apesar disso, todo o grupo de Rhodan, ali na sala, ouviu perfeitamente suas palavras. — Sim, eu o compreendo, terrano. Foi só. Não houve nenhum comentário sobre os acontecimentos dos últimos minutos. Não acusou ninguém, não deu nenhuma explicação, não quis saber nada. — Não queremos nada de mal — disse Perry Rhodan, sentindo-se um tanto ridículo, pois por enquanto ele era prisioneiro do pequeno, e não o contrário. — Agradecemos a todos vocês por nos terem salvo de Badum. O ser de cabeça grande pareceu alegrar-se com a declaração. — Sinto-me feliz porque você diz isso — respondeu em tom simplório. — Seria ruim se quisessem fazer algo de mau. Ruim para nós. Rhodan surpreendeu-se. — Ruim para vocês? — Isso mesmo. Meu nome é Okra, e este é Karr. Afastou o braço fino mais um pouco do tronco e apontou para o prisioneiro de André. A súbita mudança de assunto deixou Rhodan confuso. — É ruim para vocês? Não compreendo — disse, tentando voltar ao mesmo assunto. — Sim — respondeu Okra. — Somos vinte a bordo desta nave. — O susto parecia ter passado, as palavras foram brotando espontaneamente. — Daqui a pouco verão todos. Depois disso colocaremos a nave na rota final e dentro de algumas horas deveremos chegar ao destino. O ser parecia feliz. — Será o fim de toda a miséria — disse. Perry fitou o arcônida com uma expressão de curiosidade. Atlan sacudiu a cabeça. Seria inútil repetir a pergunta. O estranho ser não a entendia, ou então não queria responder. — Gostaríamos de retirar-nos — disse Okra. — Os outros estão à nossa espera. Caminhou com uma rapidez surpreendente através da sala, sobre as pernas curtas e finas. A escotilha, que voltara a fechar-se depois da chegada de Melbar e Mory, deslizou para o lado.
Rhodan olhou pela abertura ampla. Sentiu um calafrio na espinha. No lugar em que há pouco houvera um corredor escuro estendia-se uma sala redonda bem iluminada. Havia muitos móveis, adaptados ao tamanho do corpo dos seis prisioneiros. Rhodan nunca tinha visto aqueles móveis, mas lembrava-se perfeitamente da sala. Tinha cinco metros de diâmetro e era a mesma em que tinham ficado desde a primeira decolagem da nave desconhecida. *** Ouviram-se alguns gritos apavorados, mas Perry fez sinal para que seus companheiros se calassem. Ainda um pouco atordoado, contemplou a mesa redonda e as seis cadeiras, que os bigheads tinham introduzido na sala, Deus sabe como. Junto à parede redonda havia quatro camas, de estilo pouco convencional, mas sem dúvida confortáveis. O recinto vazio transformara-se de repente numa sala confortável. Enquanto Perry Rhodan ainda estava olhando em torno, o ambiente de repente começou a encher-se de vida. Névoas ondulantes formaram-se no ar, desmancharam-se e assumiram formas definitivas. Os bigheads vinham de todos os lados. Alguns formaramse embaixo da mesa, outros entraram pela escotilha aberta, ainda outros desceram do teto. De repente a sala redonda encheu-se com uma atividade agitada. A semelhança entre os bigheads era perturbadora. Num instante Rhodan perdeu Karr e Okra de vista e não conseguiu distingui-los na multidão de indivíduos da mesma espécie. Lançou um olhar indagador para Noir. Este sorriu e abanou a cabeça. Não havia perigo. Os bigheads eram criaturas pacatas. — Quero falar com os terranos — anunciou uma voz metálica aguda. A ordem fez-se nas fileiras dos cabeças de bola. Estavam sentados nos cantos das camas. Apenas um ficou de pé no chão, perto da mesa. — Meu nome é Perk. Sou o comandante deste veículo — prosseguiu o bighead. — Eu os salvei do astro a que vocês deram o nome de Badum e os levei ao mundo chamado Lovely. Observei-os enquanto estavam lá e cheguei à conclusão de que são as pessoas que estamos procurando. De repente Rhodan lembrou-se de certas coisas que tinham acontecido depois da fuga de Badum. Voltou a ver a luminosidade cintilante que de repente o cercara juntamente com os companheiros na área das cavernas de Badum e os arrancou no último instante do pesadelo de um fim de mundo nuclear. Voltou a sentir as incertezas do vôo. Viu os monstros terríveis de Lovely, que não pareciam pensar em outra coisa senão em dar cabo de qualquer criatura estranha. Ficaram escondidos por vários dias, tremendo a cada segundo pela própria vida. Finalmente passaram à ofensiva e impuseram respeito. Seguiu-se a partida de Lovely e o vôo, até esse momento... Então não era um sonho? Tudo fazia parte de um plano concebido por vinte seres esféricos de cabeça grande? Rhodan passou a mão pela testa. Ainda não sabia qual era a intenção que estava atrás da confusão dos últimos dias. Mas houve uma coisa que os deixou impressionados. Como devia ser grande o poder e como devia ser avançada a tecnologia de uma raça que manipulava membros de todas as espécies galácticas como se fossem figuras de xadrez, que seqüestrou seis criaturas ameaçadas por um incêndio nuclear quase no centro desse incêndio, que os envolveu nos acontecimentos de um sangrento circo galáctico em Lovely — tudo isso sem que os participantes tivessem a menor possibilidade de rebelar-se contra esse destino. Para exercer todo este poder, deviam contar com recursos inimagináveis. Que interesse poderiam ter em seqüestrar cinco terranos e um arcônida?
De repente um pensamento horrível atravessou sua cabeça. Onde quer que ficasse o mundo dos bigheads, era possível que nele existisse uma espécie de jardim zoológico, no qual os cabeças de bola recolhiam e expunham espécimes de todas as raças. Não teve tempo para prosseguir em suas reflexões. Perk continuou sua fala: — Causamos alguns incômodos a vocês. Não pudemos evitá-lo. Já causamos incômodos a outros seres. Vocês se encontraram com eles no mundo chamado Lovely. Vocês derrotaram todos eles, e por isso resolvemos levar só vocês nesta nave. Continuamos a observá-los, sem que vocês notassem. Submetemo-los a certas provas, e vocês souberam enfrentá-las melhor do que esperávamos. Mudaremos a rota desta nave para voltar o mais depressa possível para Kahalo. Encontramos o que estávamos procurando. A voz ridiculamente aguda fez uma ligeira pausa e prosseguiu: — Precisamos de vocês para que nos salvem do maior perigo que já ameaçou nosso povo. *** Então era isso — uma história inacreditável, mas bem clara. Precisavam de auxílio. Rhodan lembrou-se que nas primeiras horas que se seguiram ao relato de Perk andara desesperadamente à procura de um motivo que lhe permitisse acreditar que aquilo que acabara de ouvir fosse um mal-entendido. Perk nunca usava a boca ao falar. As palavras surgiam no ar. Provavelmente o aparelho que ele e os outros bigheads traziam pendurado no pescoço tinha alguma coisa a ver com isso. Talvez esse aparelho não fizesse uma tradução muito correta dos impulsos mentais de Perk. Quem sabe se ele não quis dizer uma coisa bem diferente do que seus ouvintes tinham entendido? Também era possível que tivesse havido outro tipo de erro na transmissão. Mas no curso do tempo viu que tudo não passava de um jogo mental estéril. A constatação de Perk era inabalável. A raça dos bigheads precisava de auxílio, apesar de sua tecnologia infinitamente superior. Enviara uma espaçonave cuja missão era procurar raças inteligentes em toda a Galáxia. Alguns exemplares de cada espécie tinham sido levados para Lovely. A idéia que estava atrás disso era a de que a raça que fosse mais bem-sucedida nas lutas intermináveis que se travavam em Lovely logicamente seria a que mais se prestasse a ajudar os bigheads. Ajudar contra quem? Era uma pergunta que ainda estava sem resposta. André foi o homem incumbido por Rhodan de analisar a atitude mental dos bigheads, pois o Administrador Geral tinha uma suspeita bem definida, e os resultados do trabalho realizado por André não demoraram a provar que essa suspeita era justa. Perk confessara que tinha causado incômodos aos prisioneiros. De forma alguma pretendia pedir desculpas. Os incômodos faziam parte do plano, e um bighead nunca seria capaz de compreender que alguém não pudesse estar de acordo com um plano que tivesse base lógica. A mesma coisa acontecia com as perguntas que os terranos formulavam. Perk tinha uma idéia muito exata sobre a seqüência e o ritmo em que as diversas informações deviam ser transmitidas aos prisioneiros. Ignorava as tentativas de perturbar essa seqüência ou modificar o ritmo. Este procedimento não resultava de uma arrogância de que ele tivesse conhecimento ou de um pensamento mecanista. Seus fundamentos deviam ser procurados em outra parte. Os bigheads, que se chamavam a si mesmos de kahals, eram uma raça antiqüíssima. Sua idade chegava a milhões de anos, conforme André pôde constatar numa busca cautelosa realizada nos pensamentos que enchiam as cabeças esféricas. Sua tecnologia
superava a de qualquer outra raça da Galáxia. Durante sua longa história tinham-se acostumado à situação de superioridade. Nunca tinham demonstrado qualquer disposição bélica. Ao que parecia, nunca tinham possuído uma esfera de influência que abrangesse mais de vinte planetas. Mas onde quer que aparecessem eram os seres que tinham as melhores idéias e cujos conselhos tinham de ser seguidos. Em sua mente formara-se a convicção de que as coisas sempre teriam de ser assim. Esta concepção atingira um estágio de rigidez mental, no qual os bigheads nem sequer chegavam a perceber qualquer iniciativa estranha. Nem tiveram consciência da arrogância de seu modo de pensar. Afinal, o mesmo não fora criado por eles, pois haviam-no adquirido por herança. Dessa forma continuavam a considerar-se infinitamente superiores, embora naquele momento confessassem que precisavam de auxílio. Continuavam convencidos que só havia uma maneira de lidar com determinada situação: à sua maneira. O ponto seguinte que constava da agenda de Perk era uma visita a todas as dependências da nave. Pela primeira vez Rhodan e seus companheiros tiveram oportunidade de ver toda a extensão do colosso. Os aparelhos e instrumentos já não eram invisíveis. Isso transmitiu uma nova impressão óptica aos prisioneiros, mas nem por isso deixou as coisas mais claras. Não parecia haver nenhum ponto de contato entre a tecnologia terrana e a kahalense. Era praticamente possível identificar as finalidades de um instrumento com base em seu aspecto exterior. De outro lado, a exposição de Perk poderia ser tudo, menos esclarecedora. Disse, por exemplo: — A partir daqui são determinados os dados existenciais de mundos estranhos. Damos o nome de dados existenciais a todas as informações de que precisamos dispor antes de descer num mundo desconhecido, tais como a temperatura superficial média, a maior oscilação da temperatura, a composição da atmosfera, a presença de bactérias perigosas, a massa planetária, a órbita e muitas coisas mais. Foi só o que disse. Não perdeu uma palavra para explicar de que forma eram colhidas essas informações. Rhodan perguntou-lhe várias vezes, mas não obteve resposta. Finalmente André passou a ocupar-se com o problema. No fundo era uma tarefa impossível. Devia analisar os pensamentos estranhos para identificar as características de uma tecnologia estranha. Já constatara que, quando os bigheads trocavam pensamentos, não conseguia identificar o conteúdo da palestra, mas somente a presença de vibrações mentais. Começou a pesquisar os cérebros dos bigheads que os acompanhavam na visita às dependências da nave. Agiu com toda cautela, para que não percebessem nada. Penetrava suavemente em seus pensamentos e os pesquisava, sem que soubesse muito bem o que deveria procurar. Quando se encontravam numa sala de instrumentos e Perk ou outro kahalense descrevia em termos muito gerais a finalidade dos diversos instrumentos, não sabia se devia procurar detalhes da Física clássica, da Física pós-einsteiniana ou de outra Física que surgisse durante as explicações nos cérebros das criaturas estranhas. Apesar de todas as dificuldades, conseguiu alguma coisa. Quando entraram numa sala ampla, cheia de instrumentos, que segundo Perk era a sala de comando da grande nave, André aproximou-se discretamente de Perry Rhodan e observou: — Senhor, na minha opinião eles mesmos não têm a menor idéia de como funcionam estes aparelhos. Com isso a situação adquiria um novo aspecto. Nem por um instante Rhodan duvidou do resultado das observações de André. Mas se os bigheads estavam em
condições de usar os serviços dos construtores da nave sem compreender o funcionamento da mesma... quem eram eles? Havia duas hipóteses plausíveis. Eram testas-de-ferro enviados pelos verdadeiros criadores dessa tecnologia para tirar as castanhas do fogo, ou então aquela tecnologia fora criada por seus antepassados, e a raça kahalense atravessara no curso de milhares de séculos uma degenerescência tamanha que perdera todos os conhecimentos técnicos. Um estado sentimental fez com que Rhodan acreditasse que a segunda hipótese era a mais provável. Não havia dúvida quanto à genialidade dos construtores da espaçonave na qual se encontravam. O primeiro aparelho existente a bordo cujas funções Rhodan conseguiu identificar sem que ninguém lhas explicasse foi o propulsor. O princípio do vôo linear não permitia modificações mais profundas. O ser inteligente da estrela A tinha de construir seu propulsor linear exatamente da mesma forma que o ser inteligente da estrela B, embora não houvesse nenhum contato entre os dois. Uma coisa que deixou Rhodan entusiasmado foram as dimensões do propulsor. Em comparação com o cilindro de vinte metros de espessura e cinco metros de comprimento usado pelos bigheads, o conjunto do tamanho de uma casa residencial usado pelos terranos parecia um monstro pré-histórico. Das explicações lacônicas de Perk deduzia-se facilmente que apesar das dimensões reduzidas do cilindro propulsor seu empuxo era muito superior ao dos propulsores terranos. Dali em diante Rhodan passou a ver no encontro com os kahalenses somente uma providência do destino, que ajudaria o Império Solar a dar mais um salto na evolução de sua técnica astronáutica. De repente as canseiras que tinham atravessado nas últimas semanas adquiriram um novo sentido. Não tinham lutado em vão. Voltariam à Terra com muito mais saber. Rhodan não tinha a menor dúvida de que voltariam. Não conhecia os planos dos bigheads, e por enquanto não havia o menor indício de que os mesmos pretendiam um dia libertar seus prisioneiros. Mas Rhodan sabia avaliar as situações. A experiência de mais de trezentos e cinqüenta anos ensinava que não se encontrava num dilema sem saída. Depois que vira o propulsor linear, não demonstrava mais muito interesse pelas explicações de Perk. Atlan ficou encarregado de descobrir o maior número possível de detalhes, enquanto ele se pôs a estudar os bigheads e elaborar planos de fuga. Percebeu que, depois de terem aparecido, os cabeças de bola continuavam visíveis. Concluiu que a invisibilidade não era seu estado normal. Deviam possuir um aparelho, um defletor de alta potência, que nos momentos de perigo os tornava invisíveis aos olhos das pessoas que os cercavam. Talvez fosse a caixinha que traziam pendurada no pescoço. Rhodan sabia que seria cinco vezes mais fácil realizar seus planos de fuga se conseguissem apoderar-se de um defletor para cada membro do grupo. Outro fato de que teve conhecimento deixou-o bastante aliviado. Os bigheads não eram telepatas por natureza. Depois que deixaram de esconder-se atrás de seu campo defletivo, André apurara isso sem a menor sombra de dúvida. Transmitiam seus pensamentos, que nos dias anteriores se tinham tornado perceptíveis em forma de vozes não identificáveis que flutuavam no espaço, por meio de um projetar hipnomecânico. Aquilo que sabiam sobre o conteúdo da parte consciente dos cérebros de seus prisioneiros devia ter sido extraído por meio de psicossondas logo após a decolagem de Badum, quando as pessoas inesperadamente salvas permaneceram por algum tempo em estado de
inconsciência. Dessa forma não havia perigo de que um dos bigheads pudesse reconhecer os pensamentos e os planos de Rhodan. Mas havia mais um problema. Era a questão da parede que surgira de repente, a questão de como seis pessoas vindas por corredores diferentes podiam ter chegado à mesma sala, atravessando a mesma porta, e a questão de como esta sala conseguia ficar ora numa ora noutra extremidade da nave. Perry perguntou a Perk, indagou junto a Okra, Karr e todos os bigheads de que conseguiu aproximar-se. A resposta sempre foi a mesma: — Quisemos submetê-los a uma prova. Isto fazia parte do plano. Ao que tudo indicava, eram de opinião que bastava explicarem seu motivo. Nem pensavam na possibilidade de que alguém pudesse formular uma pergunta sobre os recursos técnicos que lhes permitiam executar seus planos. As pessoas às quais foram dirigidas as perguntas só sabiam que botão de que aparelho devia comprimir para criar uma parede ou transferir uma sala de um lugar para outro. Os aparelhos também foram mostrados aos terranos. Mas estes não puderam reconhecer suas características; só viram que os condutores que os supriam de energia eram muito espessos. Perry reconheceu que por enquanto não poderia resolver o problema e afastou-o de sua mente. Uma parede ou uma sala deslocada não lhe seriam úteis na fuga. O importante era que no momento decisivo os bigheads não voltassem a manipular os instrumentos. A excursão pela nave durou cinco horas. Rhodan viu reforçada a impressão de que a nave e suas instalações eram o produto de uma tecnologia que tinha um avanço de alguns milênios sobre qualquer tecnologia conhecida. Se conseguisse colocar essa técnica ao alcance dos cientistas terranos, o Império Solar se encontraria numa situação inexpugnável. “Isso se amanhã ou depois não aparecer outra raça que exceda à dos bigheads”, acrescentou em pensamento. No tom usual, que não admitia objeções, Perk declarou que queria familiarizar seus hóspedes com o futuro papel de protetores do planeta Kahalo. Para esse fim voltaram à sala circular, onde desta vez além dos prisioneiros e de Perk só se encontravam Okra e Karr. Perk foi diretamente ao assunto. — Kahalo está sendo atacado por uma raça estranha — disse com sua voz metálica, vinda diretamente dos pensamentos. — Seu mundo de origem é Flooth, o segundo planeta do sol Orbon, enquanto Kahalo é o terceiro planeta. Os flooths são uma raça bárbara e prolífera, cujo mundo tornou-se pequeno demais. No sistema do sol Orbon só há dois mundos habitáveis: Kahalo e Flooth. Por isso nada seria mais natural que os flooths escolhessem Kahalo como alvo de seu expansionismo. Suas armas são terríveis e são de uma crueldade extrema. Para eles a vida de um ser inteligente não vale nada. E, o que é mais importante, são tão numerosos que podem formar exército cada um dos quais com a força de toda a população de Kahalo. A invasão prossegue há três anos planetários. Os flooths conquistaram cabeças-de-ponte e as fortificaram a tal ponto que não temos possibilidade de destruí-las. Estão devastando nosso mundo paradisíaco. Fomos obrigados a sair Galáxia afora, à procura de representantes de uma raça suficientemente enérgica e combativa para ajudar-nos. Pela primeira vez as palavras tinham um tom suave e suplicante. Até parecia que o aparelho que produzia a voz metálica sentia um pouco da angústia que havia nos pensamentos de Perk.
— Todas as instalações de nosso mundo, todas as conquistas de nossa tecnologia ficarão à sua disposição. Serão venerados. Serão festejados como heróis que salvaram Kahalo. Qualquer desejo que tenham será cumprido... mas queremos que nos ajudem! De repente parecia que alguém arrancara um véu que cobria os olhos de Rhodan. Este compreendeu onde estava o verdadeiro problema dos bigheads. Sabia por que não conseguiam rechaçar os flooths. Sabia desde o momento em que vira o interior da nave, mas só agora compreendia a ligação entre os fatos. A bordo daquela nave enorme não havia um único artefato de guerra!...
3 Os bigheads deixaram seus prisioneiros a sós, depois que Rhodan lhes garantira que em Kahalo eles os ajudariam nas dificuldades. Dali a pouco Rhodan explicou seus receios no círculo dos amigos. Era o único que tinha percebido a ausência de armamentos. O detalhe escapara até mesmo a um homem atento como Atlan. — Quer dizer — disse Bell em tom seco — que teremos de enfrentar os flooths com as mãos. Atlan fez um gesto tranqüilizador. — Calma! — exclamou. — A bordo desta nave não existem armas. Tudo bem. Será que isso prova que em Kahalo também não existem? Olhou em torno. — É — respondeu Rhodan com a voz calma. Todos os olhares voltaram-se em sua direção. — Não consigo imaginar qualquer motivo pelo qual uma civilização que possua arma não vá equipar suas espaçonaves com as mesmas — disse Rhodan prontamente. — Acho que uma raça armada deve sentir a necessidade de armar suas naves. Dificilmente haverá uma oportunidade em que se enfrentam riscos mais graves que numa viagem interestelar. — Isso parece lógico — admitiu o arcônida. — Mas quem lhe diz que os bigheads seguem a mesma lógica que nós? — Ninguém — confirmou Rhodan com um sorriso. — Mas sempre que no passado me encontrei com uma raça estranha, julguei recomendável determinar suas reações segundo minha lógica, em vez de me enganar a mim mesmo procurando uma lógica estranha em seus cérebros. — Fez uma ligeira pausa e prosseguiu. — Conheço alguém que deveria saber disso melhor que eu, porque tem alguns milênios mais de experiência. Atlan deu uma risada. — Obrigado, amigo. O arcônida mereceu a lição que você lhe deu. Bell pigarreou. Estava impaciente. — Então... O que vamos fazer? — Será que não poderíamos apoderar-nos da nave e dar o fora antes que cheguemos a Kahalo? — perguntou Mory. Bell deu uma risada entrecortada. O tórax de Melbar Kasom descreveu movimentos convulsivos quando o mesmo se esforçou para reprimir um ataque de riso. Mas Rhodan continuou sério. — Já pensei nisso — admitiu. Mory lançou um olhar fulminante para Bell. — Nossas chances de pôr as mãos nos mecanismos de comando da nave contra a vontade dos bigheads são mínimas. A tentativa de apresamento da nave representaria um risco maior que nossa chegada a Kahalo e a luta com os flooths. Mory deixou-se cair novamente na cama, com os olhos semicerrados. Parecia satisfeita porque sua proposta chegara a ser discutida. — A única coisa que poderemos fazer é criar da noite para o dia uma grande indústria de armamentos em Kahalo — prosseguiu Rhodan.
Expôs suas idéias de forma rápida e bem coordenada. Já devia ter havido um tempo em que os bigheads produziam e usavam armas. Era possível que alguns dos velhos locais de produção tivessem sido conservados. Os bigheads teriam de ser instruídos no uso das armas. Talvez fosse este um dos problemas mais difíceis. Geralmente as raças que desaprendem o uso das armas num processo milenar possuem alguma teoria pseudoreligiosa, fabricada a posteriori, que vê no uso de armas uma atitude imoral. Seria necessário superar certas resistências, mas Rhodan tinha certeza de que o avanço dos flooths representaria um grande auxílio. Restava saber se haveria tempo para executar o plano. Dos relatos de Perk deduzia-se que a situação em Kahalo era bastante perigosa. A única esperança de Rhodan era que o pessimismo típico dos velhos, dos fracos e dos injustamente atacados se tivesse apoderado deles, e que os flooths ainda não se tivessem instalado tão firmemente em Kahalo. — Se essa suposição for correta — objetou Bell e apontou para Rhodan — estamos atolados até o pescoço. Não é verdade? Perry ficou calado. — Isso depende de uma série de fatores — interveio Atlan. — O mais importante deles parece ser o estágio alcançado pela civilização dos flooths. Que gente é essa? Como serão suas armas? Será que usam fuzis de projéteis, canhões energéticos? — Transportam exércitos de milhões de soldados de um planeta para outro — ponderou Melbar. — Dali se conclui que possuem uma técnica bem eficiente. Rhodan confirmou com um aceno de cabeça. — Não é só isso. Suponhamos que os flooths sejam inimigos primitivos, que só se tornam perigosos por sua belicosidade, crueldade e pelo grande número. Nesse caso os bigheads poderiam ter usado seus defletores para aproximar-se sorrateiramente dos inimigos e abatê-los a paus e pedras. Ou então poderiam levantar paredes em torno de suas bases ou transferir estas de um lugar para outro. — Sacudiu a mão. — Nada disso. Tenho certeza de que os flooths que vamos enfrentar são uma raça bastante evoluída. Os bigheads nem conseguem aproximar-se do inimigo. É possível que o mesmo utilize campos defensivos energéticos. Os bigheads devem conhecer o princípio segundo o qual se coloca um campo desses fora de ação, mas não possuem os respectivos aparelhos. Esse aparelho seria uma arma, e eles não possuem armas. Atlan olhou para o chão com uma expressão pensativa. — Parece que as perspectivas não são muito otimistas — disse Mory sem se levantar da cama. — É verdade — admitiu Perry. — Mas receio que não tenhamos alternativa. Encerraram a discussão e foram para a cama. As duas salas situadas do outro lado da escotilha, uma à esquerda e outra à direita do corredor principal, continuavam reservadas para eles. Mas os bigheads tinham colocado móveis nas mesmas. Na sala da esquerda havia uma cama confortável para Mory Abro e instalações sanitárias modernas, de cuja falta já se haviam queixado várias vezes. As instalações da sala da direita eram mais espartanas. Além de quatro camas, dispostas uma em cima da outra, só havia os objetos mais necessários. Rhodan assumiu o primeiro turno de guarda. Não temiam mais nenhum perigo, mas devia haver alguém acordado e pronto para entrar em ação se acontecesse uma coisa fora do comum — como, por exemplo, o pouso da nave. Perk não fornecera uma data de referência precisa, mas parecia que a chegada a Kahalo não devia demorar muito.
Mory foi a última que se despediu. Rhodan acompanhou-a até a porta. De repente sentiu uma vontade irresistível de dizer-lhe algumas palavras de consolo. Cedeu a ponto de colocar a mão sobre seu ombro. Mory fitou-o com os olhos arregalados. — Está com medo? — perguntou Rhodan. Mory fez um gesto afirmativo. — Um pouco — confessou. — Não há motivo para isso — disse Rhodan em tom delicado. — As pessoas que estão com a senhora são muito eficientes. — Eficientes? — Isso mesmo. Eficientes em descobrir saídas nas situações difíceis. — Obrigada — limitou-se Mory a dizer e deu-lhe um beijo. *** Aconteceu exatamente aquilo que Rhodan esperara. Ainda não tinha ficado sozinho uma hora na sala redonda, quando a voz metálica vinda do ar se fez ouvir e anunciou que a nave pousaria dentro em breve. Rhodan não se contentou com isso. — Quem está falando? — perguntou em voz alta. — Perk? Tinha certeza de que havia microfones que transmitiam sua pergunta. A resposta não se fez esperar. — Sim, é Perk. — Escute — pediu Rhodan. — Se quiser que os ajudemos, precisamos ter certo conhecimento das coisas. Meus companheiros e eu queremos observar o pouso. Perk concordou. Rhodan estava esperando um convite para comparecer à sala de comando, mas em vez disso metade da parede redonda transformou-se numa gigantesca tela panorâmica. A iluminação da sala foi reduzida, para realçar a imagem projetada na tela. Rhodan fitou a profusão compacta de estrelas do centro da Galáxia. Em certos lugares os pontos luminosos ficavam tão próximos uns dos outros que tinham o aspecto de uma parede sólida de luz. Por enquanto não se podia saber qual era a estrela à qual se dirigia a nave. O quadro modificava-se rapidamente. Sem dúvida deslocava-se praticamente à mesma velocidade da luz. Perry admirou a técnica que era capaz de libertar uma imagem televisada completamente de certos efeitos relativísticos, como a distorção das cores e das dimensões. Apressou-se em acordar os companheiros. Quando voltou à sala redonda, uma das estrelas já se destacara tanto da profusão estelar que se transformara numa grande esfera amarela que parecia estar situada em primeiro plano. Cresceu rapidamente e quando encheu a quarta parte da tela começou a deslizar para o lado. A nave estava executando a manobra de pouso. Os prisioneiros acompanharam atentamente todas as fases do pouso que, face aos recursos de uma tecnologia superior, foi realizada de forma tão fácil e correta que até parecia que se tratava apenas de colocar um automóvel junto ao meio-fio. Kahalo entrou no campo de visão. Era uma esfera brilhante verde-azulada. Os prisioneiros começaram a distinguir certos detalhes da superfície, como os enormes oceanos, as extensas planícies verdes e as manchas azul-turquesa das florestas. Era um mundo lindo, que irradiava paz e tranqüilidade. Não havia cidades. Perry só se deu conta disso depois de meditar por algum tempo para descobrir o que estava faltando no quadro. A pessoa não familiarizada, que não estivesse na escuta para captar sinais de rádio ou outras mensagens, seria levada a
acreditar que Kahalo era um mundo desabitado. Mas, no fundo, a ausência de cidades não devia causar espanto. Estas se tornavam necessárias nos estágios iniciais e médios da evolução. Nos estágios mais avançados as cidades eram abandonadas e a população espalhava-se pelo campo. A nave descia rapidamente. Uma ilusão óptica transformou a superfície do planeta numa bacia rasa. O observador parecia cair em direção ao centro da mesma. Rhodan descobriu uma faixa luminosa que passava em linha reta sobre a área coberta de capim. Supunha tratar-se de uma faixa-guia para veículos planadores. Os bigheads já não tinham necessidade de estradas. Uma colina à direita prendeu sua atenção. O sol do sistema estava acima da mesma, só permitindo o reconhecimento dos seus contornos. Teve a impressão de que se tratava de uma ruína. Mas não pôde prosseguir nas observações. A nave descreveu mais uma curva e pousou. Parecia que Perk não queria perder tempo. No instante em que a nave pousou sua voz voltou a soar: — Não pretendemos ficar aqui por muito tempo. Estamos numa área perigosa. Quero mostrar-lhes uma coisa. Saiam pela escotilha que dá para o corredor principal. Obedeceram prontamente. Do outro lado da escotilha não encontraram o corredor, mas o compartimento de uma grande eclusa. A escotilha externa estava bem aberta, deixando entrar uma brisa morna e perfumada. Ninguém se surpreendeu com isso. Os bigheads conheciam essas artes. O que mais lhes chamou a atenção foi o panorama da planície ensolarada, coberta de grama alta. Uma esteira transportadora levava da saída da eclusa para o solo situado vinte metros abaixo. A nave pousara na horizontal. Parecia um cilindro enorme pousado na superfície verde. A esteira era formada somente por energia cintilante. Rhodan confinouse cautelosamente à mesma, e ela o levou rapidamente para baixo como se fosse uma escada rolante. Os outros seguiram-lhe o exemplo. — Olhem a colina ali na frente! — gritou a pseudovoz de Perk vinda do ar. — Ela representa um testemunho da opressão cruel que os flooths exercem contra este mundo. Rhodan viu os contornos da ruína já vista na tela se destacarem contra a luz ofuscante do sol. A colina ficava a uns trezentos metros. Bell virou-se. Parecia surpreso. — O que é isso? Será que ele tem tanto medo que nem se atreve a sair da nave? Perry sorriu, enquanto atravessava a grama que lhe chegava aos joelhos, tomando a direção da ruína. O ar era morno e agradável, e uma brisa suave balançava a grama. Insetos zumbiam em torno dos talos. Era um quadro de paz acolhedora. Ninguém imaginaria que algum perigo pudesse ameaçar o mesmo. Acontece que Perk tinha medo, e para Rhodan isso representava uma advertência. Resolveu ficar com os olhos bem abertos. Mas quando chegou ao pé daquilo que acreditava ser uma colina, esqueceu suas precauções. Ficou surpreso ao ver o objeto jogado à sua frente. Devia ter caído ao chão com uma violência tremenda, pois abrira uma cratera que prendia a parte dianteira, enquanto a parte traseira se erguia no ar. Parte do material tinha desfolhado no curso do tempo. Mas, na opinião de Rhodan, o objeto não se encontrava ali há mais de dois anos do calendário terrano. Tratava-se de um barco voador. Era um aparelho grande, construído para cerca de quinhentos passageiros. Uma das asas em flecha tinha sido arrancada pela metade e pendia junto ao tronco. A outra, que ficava do lado oposto, ainda se erguia no ar. Rhodan
conseguiu ver o interior do barco. Havia um rombo na parte lateral do corpo do mesmo. Rhodan reconheceu restos de paredes e tetos, entre eles alguns artefatos que tinham certa semelhança com bancos. Não se via o menor sinal dos passageiros. Perry Rhodan virou a cabeça. — Trata-se de um veículo de desembarque dos flooths. Quanto a isso não existe a menor dúvida. Alguém tem alguma coisa a dizer? Os lábios de Bell executavam movimentos convulsivos. — Isso... isso... — começou a gaguejar. Finalmente fez um gesto desolado para a popa achatada e o corpo cilíndrico preso ao tronco da nave, pouco embaixo da asa arrancada pela metade. Atlan acenou com a cabeça. — Está bem — disse em tom tranqüilo. — Qualquer um pode enganar-se. Mory parecia perplexa. Lançava os olhos ora para um dos homens, ora para o outro. — Como? O que houve? Quem está enganado? Perry estendeu a mão em sua direção e puxou-a para onde estava ele. — Lembra-se da discussão que tivemos sobre o nível técnico dos flooths? Mory fez que sim. — Pois olhe lá em cima! Vê a popa achatada e aquela panela embaixo da asa? Mory voltou a fazer um gesto afirmativo. — Pois bem. Este veículo de desembarque é um avião a jato movido a combustível químico. Na Terra estes veículos eram usados há trezentos e cinqüenta anos.
4 A voz de Perk pediu que voltassem. Enquanto seus companheiros admiravam o veículo caído, Rhodan examinara os arredores, em parte porque queria pôr os pensamentos em ordem, e em parte porque estava à procura de algum sinal dos passageiros acidentados. A única coisa que encontrou foi uma placa oval, ligeiramente abaulada, feita de um material duro e brilhante. A chapa tinha menos de um palmo de comprimento. Apresentava algumas irregularidades junto à borda. Rhodan não conseguiu adivinhar a finalidade do objeto achado. Voltaram para a nave. Perk disse que seriam levados para junto do membro mais antigo do Conselho Central. A nave decolou imediatamente. A tela panorâmica continuou acesa. Os humanos puderam observar perfeitamente os detalhes da superfície do planeta. Até parecia que voavam junto à mesma numa cúpula transparente. Era bem verdade que seus pensamentos estavam longe dali. Mais uma vez surgiu o problema que já acreditavam ter resolvido. Como poderiam ajudar os bigheads em sua luta contra os flooths? Ao ver o barco voador caído, Rhodan só experimentara uma sensação de triunfo, e a mesma coisa acontecera com os outros. Se o estágio da evolução técnica dos flooths era tão baixo, deveria ser fácil enfrentá-los. Mas de repente viu-se diante de uma pergunta. Se era assim, por que os bigheads não tinham conseguido? Na mão de uma pessoa que usa um defletor até mesmo um bastão de madeira é uma arma mortífera. Por que os bigheads não se tinham defendido? Só podiam adivinhar a resposta, e esta era aterrorizante. Os bigheads não tinham nenhuma compreensão para qualquer coisa que se relacionasse com a guerra ou com a luta. Fazia milênios, ou talvez milhares de séculos, que sua raça tinha enfrentado a última guerra. Depois reinara a paz. Os bigheads não desenvolviam uma política expansionista que os colocasse constantemente diante de novos inimigos. Quando ainda havia armas em Kahalo, os flooths não representavam nenhum perigo. Era possível que a crença de que o uso de armas era um sacrilégio estivesse enraizado na mente dos bigheads desde tempos imemoriais, mas também era possível que eles a tivessem elaborado numa época mais recente. De qualquer maneira já não possuíam armas e eram incapazes de defenderse. As conseqüências desse estado de coisas saltavam aos olhos. Dos bigheads eles não receberiam armas, nem diretamente, nem por meio da reativação de velhas fábricas de armamentos. Os bigheads tinham abjurado de toda e qualquer atividade bélica, a tal ponto que sua raça estava prestes a ser suprimida sob a ação de uma raça mais jovem e primitiva. Quando Rhodan acabava de conformar-se com o fato de que só poderiam contar consigo mesmos, a nave voltou a pousar. A sua frente, a menos de quinhentos metros de distância, via-se um bosque verde-azulado formado por estranhas árvores. Na sombra do bosque havia um edifício baixo. O edifício não possuía janelas, e o estilo cheio de curvas, e os arredondamentos, saliências e nichos sem finalidade, que se viam nas paredes, pareciam ter nascido no cérebro de um arquiteto doente. Mais uma vez Perk pediu que descessem. Desta vez a faixa luminosa estendia-se da saída da eclusa ao edifício. Desta vez Perk não teve medo de sair da nave. Ao lado de
seus companheiros fiéis Okra e Karr deslizou ao lado dos prisioneiros em direção ao estranho edifício. Ninguém esperara outra coisa: de repente uma das paredes do edifício desapareceu por completo, a faixa luminosa deu um salto para a frente sem que seus ocupantes sentissem qualquer trepidação, desembarcando os passageiros num recinto baixo em forma de hall. Uma suave luz amarela penetrou pela janela fictícia aberta na parede que voltou a aparecer assim que a faixa luminosa se desfez. O soalho era feito de uma massa mole e elástica, que lembrava um tapete terrano. O centro do hall estava completamente vazio. Só havia alguns objetos junto à parede. O formato bizarro dos mesmos não permitia que se soubesse se eram móveis ou enfeites. Perk não fez menção de chamar alguém ou olhar em torno. Ficou parado, à espera de alguma coisa. De repente a figura de um quarto bighead apareceu em um dos objetos encostados à parede dos fundos. Usava um aparelho pendurado ao pescoço, igual ao de Perk e seus companheiros. Perk dirigiu-se a ele. Notava-se perfeitamente que estava realizando um intercâmbio de pensamentos com o mesmo, pois os traços de seu rosto modificavam-se, transformando-se em caretas nervosas. Não se ouvia o menor ruído. Ao que parecia, os bigheads usavam a telepatia para comunicar-se entre si, mas não eram capazes de realizar um intercâmbio mental direto com cérebros estranhos. Durante a conversa, que durou dez minutos, Okra e Karr mantiveram-se num silêncio completo, que quase chegava a representar uma atitude de devoção. Finalmente Perk dirigiu-se a Rhodan. — Hant, o venerável conselheiro, já está informado sobre os acontecimentos. Vai dirigir-lhes as palavras. Os dez minutos deviam ter sido suficientes para transmitir os necessários conhecimentos da língua intercosmo ao aparelho pendurado no pescoço de Hant. Seus pensamentos foram transmitidos numa linguagem correta e corrente. — Vamos a minha casa, para fazer os necessários preparativos para que possam entrar em ação — disse Perk depois que Hant voltara a dissolver-se no nada em sua poltrona hipermoderna. Bell praguejou baixinho. — Bem que gostaria de ter paz ao menos uma vez — resmungou. — Não se preocupe — disse Perk para tranqüilizá-lo. — O último trecho da viagem não lhe causará nenhum incômodo. As casas dos indivíduos de categoria superior possuem instalações que proporcionam mais conforto. Ergueu o braço curto e fez um gesto estranho com a mão de bebê de seis dedos. De repente Rhodan sentiu-se levantado. Olhou em torno, surpreso, e percebeu que o ambiente em que se encontrava estava mergulhando numa neblina turva. O fenômeno não durou mais que um ou dois segundos. A neblina desapareceu, e Rhodan viu-se novamente ao lado dos companheiros, no interior de uma sala com aspecto de hall. Mas não era a mesma. Mory soltou um grito de surpresa. — É minha casa — disse Perk. — Precisamos conversar sobre certas coisas. Provavelmente a conversa consumirá algumas horas de seu calendário. Os móveis não foram criados para as dimensões de seus corpos, mas o chão é macio. Sentem. — Era o que eu já pretendia fazer — resmungou Bell e sentou. Perk fez como se não tivesse ouvido a observação. Virou-se para uma das paredes laterais, junto ao qual havia algumas peças de móvel do mesmo estilo que Rhodan já tinha admirado em casa de Hant. Perk fez um gesto com
a mão. Os objetos desapareceram e uma grande tela iluminou-se na parede. Okra e Karr colocaram-se dos lados da tela, enquanto Perk ficou ao lado de seus hóspedes, que pareciam um pouco cansados, mas esperavam ansiosamente por suas explicações. Nas horas que se seguiram Rhodan resolveu mais um enigma da alma dos bighead. Os pequenos cabeças redondas podiam não ter muita criatividade, mas sem dúvida possuíam um espírito sistemático. Perk falou durante duas horas sobre a situação reinante em Kahalo e não esqueceu o menor detalhe. Perry estava tão bem informado sobre a guerra com os flooths como se a tivesse acompanhado desde o início. Essa guerra não se enquadrava no esquema de vida kahalense, e por isso os bigheads elaboraram seu próprio esquema. Seu sistema de processamento de dados funcionava impecavelmente. Qualquer dirigente sabia a qualquer momento o que estava acontecendo nos pontos críticos. Mas não queriam fazer nada para enfrentar os acontecimentos. A seguir Perk relatou coisas interessantes sobre o planeta Kahalo. Rhodan viu confirmadas suas suposições. Havia um sistema inteiramente automático de regulagem do clima. Com um dispêndio enorme de energia, os bigheads deixavam que as máquinas criassem as condições de tempo em cada continente. Havia estradas que contornavam todo o planeta. Eram as faixas luminosas que Rhodan já tinha observado. Eram usadas pela parcela menos graduada da população, que se deslocava pelas mesmas em veículos planadores. Há pouco Rhodan e seus companheiros tinham visto qual era o meio de transporte usado pelas camadas superiores. Ao concluir, Perk garantiu que em Kahalo seria feito tudo para dar apoio técnico aos estranhos. Nem uma única vez mencionou a existência de armas. Disse que ficaria permanentemente em contato com os combatentes, fosse qual fosse o lugar de Kahalo em que se encontrassem. Qualquer coisa que pedissem lhes seria encaminhada imediatamente. Rhodan preferiu não fazer perguntas. Sentia-se cansado e abatido. Amanhã era outro dia. No momento precisava de algumas horas de descanso. Pretendia pedir a Perk que lhe fornecesse alguns veículos planadores de grande potência e uma pequena espaçonave. Esta ultima poderia prestar-lhe bons serviços, pois ajudá-los-ia a cortar os suprimentos dos flooths. Era possível que Perk lhe entregasse um veículo capaz de realizar viagens a grande distância, como, por exemplo, um vôo linear ao planeta Terra. Nas últimas horas a idéia da fuga passara a ocupar uma posição cada vez menos importante nas reflexões de Perry. Realmente estava disposto a ajudar os bigheads, se bem que não apenas por motivos altruísticos. Mas assim que o serviço fosse concluído — ou mesmo antes, se notasse que o problema não tinha solução — pretendia abandonar Kahalo e voltar para casa, fossem quais fossem os planos dos bigheads. Perk percebeu que seus hóspedes estavam exaustos. Encerrou a aula. Cada humano foi levado a um quarto diferente. Uma mão invisível colocou camas nos quartos. Essas camas correspondiam exatamente às dimensões dos corpos humanos. Até mesmo para Melbar Kasom havia uma, e a mesma agüentou perfeitamente o peso do ertruso. Os quartos eram pequenos e não tinham janelas. Não possuíam qualquer instalação além das camas. Não se podia acusar os bigheads de exagerarem na hospitalidade. Mas os seis humanos estavam tão exaustos que nem pensaram nisso. Deixaram-se cair nas camas macias e adormeceram imediatamente. *** A luz branco-azulada que de repente inundou o quarto fez com que Rhodan se erguesse abruptamente. Sentiu-se ofuscado e tentou levantar-se, mas constatou que
perdera o controle sobre seu corpo. Parecia flutuar. O quarto em cujo interior adormecera tinha desaparecido. Uma grande planície ensolarada estendia-se à sua frente. Parecia que estava voando por cima da mesma. Via o capim balançar ao vento lá embaixo. Havia uma fileira de edifícios estranhos no horizonte. Rhodan calculou sua velocidade com base na rapidez com que estes edifícios cresciam para o alto. Ao menos acreditava que podia. Não demorou a descobrir que subestimara o tamanho dos edifícios. Erguiam-se pelo menos a quinhentos metros de altura. Eram gigantescas pirâmides de paredes lisas, feitas de um material avermelhado que brilhava à luz do sol do planeta. Rhodan já não se deslocava para a frente, mas para o alto. Subiu bem acima da ponta das pirâmides que, segundo via, se encontravam nos ângulos de um hexágono regular traçado no interior de um círculo branco, que pelos cálculos de Rhodan devia ter cerca de dois quilômetros de diâmetro. Absorveu o quadro, que provocou um espanto enorme em sua mente. Uma voz parecia dirigir-se a ele. — Ouça, estranho! Você será o único que descobrirá os mistérios do grande Kahal. Aqui é o centro do mundo. Daqui partem as forças tremendas que governam Kahalo. Os deuses governavam aqui — há um tempo infinitamente longo. A coisa mais antiga que existe no mundo é o grande Kahal. A voz calou-se, dando tempo para que Rhodan contemplasse uma parede luminosa que brilhava em todas as cores, surgida de repente entre as pirâmides. Espalhou-se pelo círculo como se fosse um tapete, recolheu-se para o centro e desapareceu num raio fulgurante. — Ninguém, a não ser os eleitos, pode ultrapassar os limites deste círculo — prosseguiu a voz. — Será destruído com a luz. Aqui é a sede de forças misteriosas. A parede luminosa voltou a bruxulear. Rhodan estremeceu ao ver as energias imensas que lá embaixo faziam um jogo elegante, libertas da força da gravidade. — Os kahalenses já ultrapassaram o estágio em que podiam responder à violência com a violência. Para cada raça chega o momento em que abandona definitivamente as formas animalescas de pensamento, a não ser que seja destruída antes disso. Até agora um único meio de defesa contra os atacantes brutais foi oferecido aos kahalenses: o grande Kahal com seu círculo da morte, no qual nenhuma pessoa não-eleita pode entrar. Atraíram o inimigo para cá e fizeram-no ultrapassar os limites do círculo. As hordas dos flooths foram eliminadas. Por várias vezes o plano foi bem-sucedido, mas para cada flooth que morre aparecem dez vivos. O grande Kahal não basta para salvar Kahalo. — Não se esqueça disso, forasteiro, e guarde para si o segredo do grande santuário! Mais uma vez Rhodan foi colocado em movimento. Afastou-se da cena em velocidade tão alucinante que ficou tonto. Quando voltou a enxergar, estava deitado em sua cama na casa de Perk. Refletiu sobre o acontecimento. Sem dúvida acabara de receber uma mensagem telepática, por meio da qual Perk ou alguma outra pessoa o informara sobre o grande Kahal. Parecia que os bigheads realmente estavam empenhados em evitar que muita gente soubesse do santuário, senão Perk o teria mencionado durante a aula ministrada aos humanos. Rhodan perguntou a si mesmo o que realmente havia atrás das seis pirâmides. De onde vinham as quantidades enormes de energia? Qual era a finalidade das gigantescas instalações?
Resolveu examinar mais detidamente o santuário. Em sua opinião o dever de guardar segredo não valia perante os companheiros. Sorriu ao lembrar-se que os bigheads tinham esquecido um detalhe. Seria difícil esconder uma coisa por muito tempo de André Noir. Voltou a recostar-se na cama e, apesar dos pensamentos que lhe enchiam a cabeça, não demorou a adormecer de novo. Teve uma noite de sono profundo, que lhe restituiu as forças. Acordou e, antes de abrir os olhos, lembrou-se de que pretendia entregar a Perk uma lista detalhada dos equipamentos de que precisava. Meio sonolento, virou para o lado e ouviu um estranho farfalhar. Abriu os olhos, espantado, e percebeu que estava deitado, confortável mas inesperadamente numa depressão pouco profunda cheia de areia morna, em cuja extremidade superior alguns galhos secos balançavam ao vento. *** Provavelmente nunca levantou-se tão depressa. Apalpou automaticamente o cinto, no lugar em que costumava guardar a arma, e respirou aliviado ao notar que a mesma continuava lá. De pé conseguiu olhar por cima da borda da depressão. À sua frente o solo arenoso, no qual descia um capim ralo, descia suavemente em direção a um lugar em que terminava abruptamente, como se terminasse numa beirada. Em cima dessa beirada viase o azul apagado do céu. De ambos os lados erguiam-se paredões de rocha íngremes e entrecortados. Rhodan virou a cabeça e viu que atrás dele se erguia uma encosta quase vertical, que subia a um cume no qual a neve eterna brilhava ao sol. Pelos cálculos de Rhodan, o platô no qual se encontrava não media mais de duzentos metros de comprimento e metade disso, na largura. Saiu da depressão com um salto e continuou a olhar em torno. Havia muitas depressões iguais àquela em que passara a noite. Pareciam entradas de galerias desabadas de uma mina abandonada. E em cinco delas havia uma pessoa dormindo, que ainda tinha pela frente a surpresa pela qual Rhodan já tinha passado. Acordou-os. Todos se levantaram de um salto, sobressaltaram-se e levaram algum tempo para adaptar-se ao novo ambiente. Cada um reagiu à sua maneira, um calmamente, outro apavorado — e de todos eles, somente Reginald Bell praguejava fortemente contra a perfídia dos bigheads. Rhodan tranqüilizou-os. — Isso logo se esclarecerá! — exclamou. — Os bigheads não nos trouxeram para cá na intenção de deixar-nos abandonados. — É isso mesmo, amigo — respondeu uma voz vinda do ar. — Fui eu, Perk, que os trouxe para cá. Tive a impressão de que durante o sono o transporte seria mais agradável. Vocês se encontram no litoral sul do continente principal. Se forem à extremidade do platô, verão o Cabo dos Sete Sábios lá embaixo. Coloco à sua disposição um planador no qual poderão locomover-se. Vocês o encontrarão na fenda que fica ao pé da encosta que se ergue atrás de vocês. Se precisarem de mais algum auxílio ou conselho, falem comigo. O locutor invisível retirou-se. Rhodan e seus companheiros, cuja curiosidade tinha sido despertada, dirigiram-se à extremidade do platô e olharam para baixo. Embaixo deles a encosta, interrompida somente por um pequeno nicho que era o platô no qual se encontravam, continuava a descer na vertical. Uns duzentos ou trezentos metros mais embaixo a mesma terminava numa faixa de areia branca da praia, que o mar cobria com suas espumas brilhantes. À esquerda e à direita as rochas avançavam mar adentro, formando um pequeno fiorde e impedindo a visão para os lados. A sua frente estendia-se
a superfície infinita do mar azul. Mais à esquerda uma ponta de terra estreita avançava além da rocha. Mal podia ser vista na bruma do amanhecer e era difícil avaliar a distância a que ficava: era o Cabo dos Sete Sábios, um dos marcos do litoral sul do continente principal. Não demoraram a constatar que a outra afirmação feita por Perk também era correta. Realmente havia uma grande fenda no paredão que se erguia nos fundos do platô, e no interior da mesma havia um ovo cinza-claro de cerca de cinco metros de comprimento. A parte superior do ovo era de material transparente. No interior, do lado da proa, havia uma confortável poltrona estofada, com um quadro de comando de aspecto simples montado lateralmente. Atrás do assento do piloto havia alguns bancos. No veículo cabiam facilmente quinze passageiros de dimensões humanas. As instalações estavam adaptadas aos padrões terranos. Rhodan aproximou-se mais um pouco do veículo, e parte da cobertura metálica desapareceu. Entrou sem a menor dificuldade. Os outros recuaram cautelosamente, deixando livre a saída da fenda, enquanto Rhodan se punha a manipular os controles. As diversas alavancas estavam assinaladas por setas. Rhodan puxou a que estava marcada por uma seta que apontava para cima. O ovo desprendeu-se prontamente do solo e ficou flutuando na penumbra da caverna. Rhodan executou algumas manobras ligeiras e cautelosas, até ter certeza de que estava em condições de controlar o planador em qualquer situação. Levou-o para fora da fenda e pousou no platô. Não sabia qual era o mecanismo que mantinha o ovo constantemente numa posição em que a parte transparente ficava voltada para cima. Explicou seus planos em palavras ligeiras. Não adiantava ficar no platô. Não havia qualquer subida ou descida praticável. Dependiam do planador. A primeira coisa que tinham de fazer era colher informações sobre os flooths, sobre a movimentação de suas tropas e seus planos. O platô oferecia uma boa oportunidade para isso. — Perk não nos mandou para cá por causa da vista bonita — disse Rhodan. — Conforme se depreende das informações que nos foram fornecidas, a principal cabeça de ponte dos flooths fica a apenas dez quilômetros do Cabo dos Sete Sábios. *** O planador passou cautelosamente junto às encostas íngremes. Deixou para trás o fiorde. Meio quilômetro abaixo deles deslizava a estreita faixa de areia da praia, e para o leste a vista alcançava um trecho mais plano da costa. O quadro continuava impressionante, mesmo depois que o veículo deixou para trás as escarpas alcantiladas das montanhas. Lá embaixo espalhava-se um trecho de terra coberto de colinas. Via-se uma floresta fechada. Um rio gigantesco vindo do norte formava um delta extenso, despejando suas águas no oceano junto à linha do horizonte. Não se via o menor sinal de uma casa ou de uma povoação. Mas sobre o delta havia uma estranha nuvem de bruma, que balançava preguiçosa-mente ao vento. Parecia que há pouco uma tempestade tinha soprado por lá. Talvez fosse uma tempestade, refletia Rhodan. Os propulsores dos veículos de desembarque floothianos deviam ser muito potentes. Sem dúvida eram capazes de levantar toneladas de poeira ao pousar. O rio que estava à sua frente era o Namé. O nome parecia ter sido criado numa época em que os bigheads ainda não eram telepatas, ou então Perk o havia inventado no momento. De qualquer maneira a cabeça-de-ponte dos flooths ficava no delta do Namé, e a nuvem de bruma constituía um sinal evidente de que o inimigo continuava ativo.
Rhodan freou o planador e manteve-o suspenso no ar. O veículo encontrava-se a cerca de cinco quilômetros do paredão de rocha compacto da cadeia de montanhas que se levantava ao oeste. Sua coloração era discreta. Se os flooths ainda não tinham tido motivo para manter as montanhas sob observação, eles não descobririam o planador. Enquanto isso, seus ocupantes tiveram oportunidade de observar calmamente o que estava acontecendo na cabeça-de-ponte. Percebia-se perfeitamente que critérios o inimigo tinha usado na escolha do local. O terreno plano oferecia uma excelente oportunidade de pouso aos veículos que traziam os suprimentos. Mas ao mesmo tempo o acesso ao mesmo era difícil, por causa dos numerosos braços do rio. Quem quisesse atacar e ocupar a base só poderia vir pelo mar, e não havia nada mais fácil de viajar que a superfície lisa do oceano. Se houvesse alguma emergência, as montanhas ficavam bem próximas. Os flooths poderiam fugir para lá e esconder-se nas mesmas. Era interessante como avaliavam as medidas tomadas pelo inimigo por seus próprios padrões. Nem imaginavam que para os bigheads um paredão de rocha maciça não representava nenhum obstáculo, da mesma forma que um rio, um pântano ou a superfície lisa do mar. Era uma forma de pensamento típica de uma raça jovem. Julgavam-se superiores aos outros. Se não eram capazes de fazer uma coisa, os outros muito menos. Enquanto refletia sobre isso, Rhodan tocou com a mão numa coisa dura que se encontrava em seu bolso. Sobressaltou-se, apalpou o objeto por algum tempo e tirou-o. Era a concha negra que encontrara junto ao veículo de embarque caído e que quase tinha esquecido. Ergueu-a contra a luz e girou-a de um lado para outro. — Que é isso? — perguntou Bell. Rhodan explicou onde tinha encontrado o estranho objeto. Os outros também tiveram sua atenção despertada para o mesmo. — Não tem nenhuma idéia de que é feito isso e para que possa servir? — perguntou o arcônida. Rhodan abanou a cabeça e voltou a apalpar o material liso. Entreteve-se em meio ao movimento, ao ver que de repente os olhos de André Noir se arregalavam de susto. André era apenas um hipno, mas para isso precisava de um cérebro dotado de certas paracapacidades. O pensamento de Rhodan fora tão intenso que André conseguira identificá-lo. — Não sei... — disse Rhodan em tom inseguro. — Veja você mesmo. Entregou a concha negra a Atlan. Este passou o dedo pela substância dura e fez uma careta. — Tive uma idéia — disse. — A julgar pelo seu rosto, é a mesma que acabo de ter — disse Rhodan. Atlan estendeu a concha em sua direção. — Não é bem a mesma coisa, mas é bastante semelhante — disse. — Semelhante a quê? — perguntou Mory em tom impaciente. — Chitim — respondeu Rhodan. Bell soltou um gemido. — Os céus que nos ajudem! Não me venham novamente com insetos inteligentes!
5 Por enquanto não havia como responder à pergunta. A distância que os separava da base era muito grande para que pudessem reconhecer os detalhes. Por isso, no momento, tiveram de ficar na suposição de que a concha encontrada junto ao veículo de desembarque realmente era um pedaço de chitim pertencente ao corpo de um dos passageiros acidentados. Dessa forma os flooths seriam inteligências descendentes de insetos, moscas ou gafanhotos gigantes, ou coisa que o valha. Na Galáxia existiam muitas espécies desse tipo. Talvez até fossem mais numerosas que as espécies humanóides. No entanto, os humanos sentiam-se dominados pelo pavor toda vez que se defrontavam com um ser dessa espécie. Existem coisas às quais a gente nunca se acostuma. Quando Rhodan pretendia manobrar o planador para voltar ao platô, ouviu-se um trovejar vindo de longe. O ruído aumentou rapidamente. A superestrutura transparente do planador possuía um razoável isolamento acústico. Se atrás das paredes transparentes ainda se ouvia tanto, lá fora devia soar um rugido de fim de mundo. A manobra foi interrompida. O planador voltou à posição de observação. De repente André disse: — Eu os sinto. Vêm de cima. Todos os olhares dirigiram-se para o alto. Pontos cintilantes que cresciam rapidamente surgiram no céu azul. No início eram apenas um pequeno grupo, mas a cada segundo que passava apareciam outros. Desciam em disparada, cresciam rapidamente e depois de algum tempo os pontinhos luminosos transformavam-se em veículos de embarque cinzentos com asas em forma de flecha. Os observadores prenderam a respiração enquanto acompanhavam o espetáculo. A frota era formada por pelo menos cem unidades. Estas desceram quase na vertical, voando em formação compacta. Só duas máquinas adiantaram-se às outras. Deviam ser os barcos-piloto, que conheciam as condições reinantes em Kahalo. Rhodan viu os dois barcos passarem repentinamente para o vôo horizontal, descreverem uma curva fechada e se aproximarem da terra firme vindos do sul. Estavam voando a uns cem metros de altura, bem abaixo do planador, e fizeram a frenagem invertendo o sentido dos jatos. Sua velocidade diminuiu tão depressa que se tinha a impressão de que a qualquer momento cairiam na água, muito antes que atingissem a terra. O grupo que os seguiu imitou a manobra. A formação de máquinas gigantescas constituía um quadro impressionante enquanto os mesmos se aproximavam da desembocadura do rio. Rhodan aspirou fortemente o ar ao ver os dois barcos-pilotos caírem rapidamente. Os retrofoguetes tinham parado de funcionar. Os veículos caíram para a frente e precipitaram-se em direção à superfície. Viu-se um lampejo ofuscante quando os propulsores de popa voltaram a funcionar por uma fração de segundo. O empuxo ligeiro, mas potente, colocou o barco na horizontal pouco antes de o mesmo tocar a superfície da água. Um chuvisco branco e espumoso levantou-se. Um manto de água pulverizada envolveu a cena por alguns segundos. Quando o vento o desfez, Rhodan viu o barco pousado na água rasa.
Uma suposição surgiu na mente de Rhodan e ela se reforçou enquanto observava o resto do grupo que seguiu o exemplo dos barcos-piloto. Esguichos brancos iam subindo à medida que os barcos caíam ao mar. Não era um acidente! Era a manobra habitual de pouso dos flooths. Nem precisavam do terreno em torno do delta, pois haviam encontrado um lugar muito melhor: o fundo do mar, que junto ao delta descia suavemente e numa extensão de alguns quilômetros só ficava um ou dois metros abaixo da superfície. O espetáculo que se desenrolava lá embaixo entrou no segundo estágio. Os barcos começaram a esvaziar-se. Uma torrente interminável de seres estranhos, que do ponto em que se encontravam só apareciam como pontinhos, precipitou-se do local de pouso dos barcos em direção a terra, atravessando a água rasa. A torrente era tão compacta e extensa que chegava a encobrir o verde azulado do mar. Por algum tempo parecia flutuar acima da água, mas na opinião de Rhodan isso não passava de uma ilusão óptica. Os ocupantes do planador não tiravam os olhos do estranho espetáculo — com exceção de um: André, o mutante. Este inclinou-se para a frente e comprimiu as têmporas com as mãos. Estava com os olhos fechados. No meio da agitação nem o ouviram gemer. — Trezentos homens por barco — calculou Bell. — Cem barcos. São trinta mil homens. — Não é muito — observou Melbar. Embora se esforçasse para falar baixo, sua voz fez tremer o ar. — Segundo afirma Perk, eles são capazes de formar exércitos tão grandes que cada um deles é tão numeroso quanto a população de Kahalo. — Provavelmente é um exagero — respondeu Atlan em tom pensativo. — Mas mesmo assim a coisa impressiona bastante. Parece que realmente não dão muito valor à vida. Gostaria de saber quantos homens perderam no pouso violento. Mory estava sentada no chão, ao lado da poltrona do piloto. Até parecia que queria ver o espetáculo bem de perto. Rhodan viu que a moça estava tremendo. — Se não fizermos alguma coisa para detê-los, eles inundarão o planeta — disse. Olhou para André. — O que há, André? Atlan, que só nesse momento estava notando o estado em que se encontrava o mutante, levantou-se de um salto para ajudá-lo. André levantou a cabeça. Tinha os olhos lacrimejantes e injetados de sangue de tanto que se esforçara. Fez um gesto de pouco caso. — Tudo bem — resmungou. — Está quase no fim. A primeira onda de entusiasmo passou. Já começam a acalmar-se. — Quem? — perguntou Bell. André apontou através do material transparente. — Os flooths não são telepatas. Tenho certeza. Mas têm a capacidade de sentir com tamanha força que a gente pode identificar suas emanações a grande distância. De forma bastante nítida. Foi... — sua mão tremeu enquanto ele a passava pela cabeça — ...foi terrível. — O que foi terrível? — perguntou Bell. — Sua belicosidade — gemeu o mutante. — Seu entusiasmo selvagem, seu arrojo. Com tanta energia acumulada dentro deles, devem ser capazes de matar um inimigo simplesmente olhando para ele. *** Assim que voltaram ao platô, Rhodan entrou em contato com Perk. Bastou chamálo pelo nome para que o bighead respondesse. Rhodan começou a relatar o que tinha
observado. Mas Perk interrompeu-o e explicou que estava informado sobre tudo. A seguir Rhodan pediu um veículo capaz de viajar no espaço, três ou quatro trajes protetores e um defletor que pudesse tornar invisível o veículo espacial. Perk disse que providenciaria imediatamente. Cumpriu a promessa. Alguns minutos depois do fim da conversa a fenda existente nos fundos do platô ampliou-se. A entrada estreita da caverna transformou-se num enorme pavilhão, e no interior desse pavilhão via-se o brilho fosco do casco de um veículo em forma de lentilha com aproximadamente quinze metros de diâmetro e quatro metros de altura. Rhodan já traçara seu plano, e segundo o mesmo devia-se evitar toda perda de tempo. Examinou às pressas juntamente com Atlan o interior do veículo. O recinto em que ficavam os propulsores estava separado do resto e não havia como chegar lá. Mas o mesmo só ocupava pequena parte do espaço interno do veículo. O resto era formado por um recinto em forma de pavilhão. O teto era abaulado, correspondendo à forma do barco, e do lado interno era formado por uma grande tela, que desempenhava as funções de janela. O quadro de comando do piloto ficava no lugar em que o teto descia em direção ao chão. Além dos necessários comandos, o piloto dispunha de uma série de telas pequenas, que lhe permitiam observar o que se passava fora da nave sem depender da tela que ficava no teto. Além disso havia vários outros assentos. Rhodan ficou espantado ao notar que o quadro de comando do piloto continha legendas em intercosmo. Atlan examinou o resto do pavilhão. — Não há trajes protetores — constatou. Rhodan sobressaltou-se. — O quê? — voltou a examinar a série de comandos e as legendas que descobrira por último. — Acho que há uma explicação para isso — prosseguiu. — Eles possuem uma coisa toda especial, chamada de campo defensivo individual. Leu a legenda embaixo dos botões. — Ligar campo... Saída individual... Saídas fechadas, campo do barco apagado... apagado... Campo do barco ligado... Entrada individual... desligado. Rhodan fitou o arcônida com um sorriso. — Acho que é bastante claro, não é? Atlan fez um gesto dramático. — Para seu espírito luminoso, Administrador Geral — declamou — todos os mistérios do Universo são iluminados por um sol radiante. — Pois trate de arranjar logo um espírito igual ao meu — respondeu Rhodan. — Você vai sair neste barco. — Ora — disse Atlan em tom de surpresa. — Você e Bell — completou Rhodan. Expôs suas idéias ao arcônida. Atlan ouviu-o com muita atenção. Quando Rhodan formulou sua conclusão, pôs-se a sorrir. — Teria muito prazer em dizer que cheguei à mesma conclusão — disse e colocou a mão no ombro de Rhodan. — Mas isto seria uma infantilidade, não seria? Rhodan deu-lhe um soco amistoso no peito. — Deixe de bancar o modesto, arcônida — exclamou com uma risada. — Sei que você é pelo menos tão inteligente quanto eu. Caminharam em direção à saída. Tratava-se de um pedaço de parede que desaparecia e voltava a aparecer conforme desejassem os ocupantes do aparelho. De repente Atlan tornou-se sério.
— Num ponto fomos enganados por Perk — disse. Rhodan parecia curioso. — Que ponto é este? — Não há defletores a bordo. *** Em comparação com a confusão inextricável que reinava na superfície do planeta Kahalo, Bell sentiu o espaço infinito com o mar chamejante de estrelas como um terreno com o qual já estava familiarizado. Era bem verdade que por enquanto não estava informado sobre o sentido e a finalidade da missão, e isso fazia com que não se sentisse muito bem. Estava sentado numa das poltronas que os bigheads tinham colocado no centro do compartimento de passageiros do barco. Em cima dele estendia-se a enorme tela abaulada do teto, transmitindo a impressão de que a pessoa estava abandonada no espaço, impressão que no início era bastante perturbadora. A sua frente viu as costas altas e estreitas do arcônida, que se mantinha calado no assento do piloto, dirigindo o barco. Bell sabia que estavam viajando de Kahalo para Flooth. A esfera verde-azulada de Kahalo aparecia numa das telas instaladas junto ao quadro de comando. Pelos cálculos de Bell deviam ter-se afastado cerca de meio milhão de quilômetros de Kahalo na primeira hora de vôo. Atlan não parecia estar interessado em imprimir a potência máxima ao propulsor. Até parecia que o destino não era Flooth, mas um ponto situado entre os dois mundos. Um zumbido agudo interrompeu os pensamentos de Bell. Este levantou os olhos. De repente Atlan abandonou sua imobilidade e manipulou apressadamente alguns comandos. O chiado repetiu-se algumas vezes e cessou. O arcônida fez girar uma das telas pequenas de tal maneira que Bell pudesse vê-la do lugar em que se encontrava. — Lá estão eles — disse. Bell viu uma superfície luminosa azul-escura com uma série de pontos. Devia ser uma tela de rastreamento. — Quem? — perguntou. — Os flooths — respondeu Atlan. — Mais uma frota de abastecimento. Bell levantou-se. A gravitação a bordo do barco era igual à do planeta Kahalo, por maior que fosse a velocidade desenvolvida pelo mesmo. — Sala de comando chamando todas as posições de artilharia — gritou. — Inimigo à vista. Preparar armamentos. Aguardar ordem de disparo do comandante. Desligo. Atlan girou a poltrona e fitou-o com um sorriso. — É disso que nós gostamos, não é mesmo? Parecia alegre. Então disse: — Mas desta vez as coisas serão um pouco diferentes. — É verdade — resmungou Bell. — Desta vez entraremos na sala de comando, passando pela tela de proa, e teremos o prazer de torcer pessoalmente a cabeça do comandante. Atlan sacudiu a cabeça. — Você viu como pousaram os barcos em Kahalo. Acredita que estes veículos poderão ser usados novamente? Bell ergueu as sobrancelhas. Seus cabelos cor de areia pareciam arrepiar-se de belicosidade.
— Por que não? Basta levá-los para a terra, retirar a água que penetrou nas câmaras de combustão e encher os tanques. — Muito bem. Quanto tempo você acha que demoraria isso? — Sei lá! Talvez alguns dias, talvez um pouco mais, conforme os recursos... Atlan interrompeu-o. — Deixe para lá. Os flooths estão com pressa. Precisam desembarcar suas tropas o mais rapidamente possível. Se tivessem a intenção de reutilizar os veículos de desembarque, teriam construído um campo de pouso em terra firme. Não construíram. Deixam os barcos abandonados no mar. Não precisam deles, pelo menos por enquanto. Cada frota com reforços traz seus próprios barcos. Bell teve vontade de contestar as palavras de Atlan, mas antes que começasse a falar, compreendeu. — Flooth é um planeta pequeno, com uma gravitação reduzida, não é mesmo? — perguntou. — Pois é. Para os flooths é muito mais econômico entregar a cada frota um suprimento suficiente de veículos de desembarque, abastecidos para as manobras de pouso, mas não para a decolagem de Kahalo. Bell coçou a cabeça. — Compreendo — disse. — Devem ter uma frota enorme de foguetes de alta potência estacionada em Flooth. Estes foguetes disparam as partes dos veículos de desembarque para uma órbita, onde são recolhidas pela frota. A frota recolhe as peças, que são montadas... Atlan levantou a mão. — Não adianta quebrar a cabeça agora — exclamou. — Lá estão eles. Enquanto Bell estava falando, Atlan manipulara os comandos. O barco possuía um telescópio acoplado a uma das telas pequenas. O potente dispositivo óptico acabara de enquadrar os pontos que por enquanto só estavam sendo captados pelo rastreamento e os trouxera para perto. Os dois ocupantes do barco olharam espantados para a mais estranha procissão que já tinham visto. Tratava-se de um grupo de vinte gigantescas espaçonaves. Deviam ser espaçonaves, se bem que de fora não tinham a menor semelhança com os veículos desse tipo que Atlan e Bell conheciam. Eram parecidas com gigantescas torres de perfuração, armações infinitamente compridas de trançados filigramáticos, uma profusão de barras e travessas. No interior do poço estavam penduradas cerca de dez figuras cilíndricas. Tratava-se de formas metálicas, que deviam servir de alojamento aos tripulantes da nave. Bell aspirou fortemente o ar. Antes do início da era espacial os habitantes do planeta Terra imaginavam que a ponte espacial entre a Lua e a Terra assumiria essa forma. As naves que se encontravam à sua frente não tinham sido feitas para atravessar a atmosfera de um planeta. Estavam ambientadas no espaço. Havia um serviço de suprimento que as abastecia a partir da superfície dos planetas. Era difícil avaliar o tamanho das naves. No espaço não existem pontos de referência. Mas os ocupantes do barco perceberam logo que aquelas naves eram gigantescas. As formações que flutuavam atrás das naves constituíam um ponto de referência um pouco mais exato. As naves-armação movimentavam-se aproximadamente na mesma altura. Cada uma delas arrastava uma longa corrente de objetos, semelhantes à cauda de papel de uma pipa Terrana. Estes objetos emitiam um brilho fosco aos raios amarelos do
sol Orbon. Atlan modificou a focalização. As naves-armação desapareceram para a esquerda e veículos de desembarque apareceram na tela. Eram filas longas; havia cinqüenta veículos atrás de cada nave. — Montaram-nas durante o vôo — disse Atlan em voz baixa. — No período de aceleração as peças estavam firmemente ligadas às naves. Terminado esse período, retiraram-nas e montaram os barcos. Voltou a girar a ampliação. Dois veículos de desembarque afastaram-se para os lados, um para a esquerda e outro para a direita. Um traço reto meio apagado apareceu entre eles. — Estão sendo rebocados com um cabo, o que diante da ausência de gravidade no espaço não era perigoso. Antes que seja iniciada a fase de frenagem, os barcos recebem a tripulação, desatracam e seguem seu próprio caminho. Bell acenou com a cabeça. Parecia pensativo. — Se é assim — disse — vamos estragar o jogo deles. *** Prendeu a respiração, quando a parede se abriu de repente. Por um instante teve a impressão de que sentia como o frio do espaço penetrava no próprio espaço, como o vácuo fazia o sangue ferver, inchando as veias e artérias. Mas não aconteceu nada disso. Tudo continuou como era antes, com a diferença de que parte da parede tinha desaparecido. Bell lançou mais um olhar para Atlan e saltou para fora da nave. Segurou-se no degrau externo, colocou-se numa posição firme e empurrou-se. Por um instante teve a impressão de estar preso num fio elástico que tentava puxá-lo de volta. Até teve a impressão de ouvir um ruído, como se o elástico se tivesse rompido. De qualquer maneira de repente sentiu-se livre e o impulso o deslocava lentamente em direção ao veículo de desembarque que flutuava no espaço a uns cem metros do lugar em que se encontrava. Era o último de uma das dez fileiras, e a fileira era a que ficava mais à esquerda para quem olhasse no sentido do deslocamento das naves. Não ficou pensando muito no estranho campo energético que o protegia do frio do espaço e das conseqüências das condições ali reinantes. Não via o campo, mas sentia-se bem em seu interior. Até parecia que nunca tinha saído de Kahalo. Estendeu os braços para interromper o vôo no casco redondo do veículo dos flooths. De repente sentiu medo. Era possível que a situação não fosse a que Atlan imaginara. Quem sabe se os flooths nem estavam mais na nave-armação, mas já se encontravam no interior dos barcos? Deixou passar dois minutos. Como tudo continuou em silêncio, foi deslizando junto ao casco do barco, em direção à proa. Atingiu o cabo que ligava os barcos entre si e com a nave e foi deslizando para a frente. A “lentilha” espacial que levava Atlan desapareceu atrás do último barco da fileira. Bell sentiu-se abandonado. Pelo menos dez quilômetros o separavam do primeiro barco. Estremeceu ao pensar nas longas horas que teria de passar só no espaço. Mas quando ultrapassou o segundo, o terceiro e o quarto barcos sem que os flooths dessem sinal de vida, recuperou a antiga audácia. Já não usava o cabo como meio de transporte, mas pegou a arma e disparou um forte raio energético para trás. O impulso do disparo conferiu-lhe uma velocidade bem superior à que poderia ter alcançado junto ao cabo. Bell espantou-se ao notar que o raio energético atravessava facilmente o campo defensivo, enquanto o mesmo prendia o ar e o calor. Mas se tivesse sido diferente, a esta hora não estaria quebrando a cabeça com isso. Deu um mergulho elegante por baixo do
barco mais próximo, corrigiu a rota com um tiro ligeiro e voltou a subir. Desta forma levou menos de vinte minutos para chegar à extremidade da fileira. A enorme popa da nave erguia-se à sua frente, bem ao longe. Bell viu os buracos negros de disparo de foguetes. A distância era de cerca de um quilômetro, mas ainda assim a armação amedrontava pelo tamanho. Bell pôs-se a trabalhar. A cerca de cinqüenta metros da proa do primeiro veículo de desembarque, cortou o cabo de sustentação com um único tiro energético. As duas extremidades do cabo deslocaram-se para o lado sob o impacto do tiro. Satisfeito, Bell contemplou sua obra. Por enquanto o movimento dos veículos de desembarque não sofrera nenhuma modificação. Seu deslocamento não dependia de qualquer forma de energia. Não tinham motivo para mudar de rota pelo simples fato de o cabo ter sido cortado... pelo menos por enquanto. Bell precipitou-se em direção à segunda fileira de barcos, atravessando um abismo cheio de estrelas de cinqüenta quilômetros de largura. Cortou o segundo cabo, o terceiro, o quarto... Estava tão entusiasmado com seu trabalho que quase não se lembrava do perigo que representavam as dez naves. Raramente olhava para as aberturas existentes em suas popas, para certificar-se se de repente não apareceria um flooth para observá-lo durante o trabalho. O tempo foi passando sem que ele o percebesse. Atingiu a última fileira de barcos, segurou-se no cabo e lançou um olhar para trás. Viu as extremidades torcidas e desfiadas dos cabos que brilhavam ao sol. Ficou muito satisfeito com o quadro. Trabalhava para valer. Só faltava que Atlan o recolhesse. Virou-se e fez pontaria para o último cabo. De repente teve uma sensação de perigo, que fez com que tirasse o dedo do gatilho e olhasse para trás. Deixou que seus olhos vagassem por algumas naves. De repente sentiu um calafrio. Reconheciam-se perfeitamente três vultos na popa da nona nave. Bell não sabia se já o tinham descoberto. Só sabia que havia pressa, muita pressa. Não se sentiu muito à vontade quando deu as costas aos desconhecidos. Ficou nervoso e o primeiro tiro passou rente ao cabo, mas não o atingiu. Bell praguejou. Se ainda não o tinham visto, não podiam ter deixado de notar o lampejo do tiro. Quis virar novamente a cabeça, mas recebeu uma forte pancada no ombro. O impacto do tiro atirou-o para a frente. Por uma fração de segundo sentiu a pressão do cabo contra o corpo, mas logo passou por cima do mesmo. O obstáculo transformara o vôo em linha reta num movimento de rotação. Viu o mar de estrelas deslocar-se vertiginosamente, transformando-se numa multidão de traços coloridos que giravam em torno dele. Perdeu o sentido de orientação e sentiu náuseas. Se não conseguisse frear o movimento estaria perdido. Não via nada, mas sentiu perfeitamente que os estranhos estavam bem perto. Apontou a arma pesada para o lado e disparou ao acaso. Isso adiantou um pouco. Começou a girar mais devagar e, se concentrava os olhos numa direção, até conseguia enxergar um pouco. Mas o que enxergou não foi muito agradável. Encontrava-se a alguns quilômetros do último veículo de desembarque e continuava a afastar-se. Os três desconhecidos estavam atrás dele, e na popa das duas últimas naves apareceram reforços. Deu mais um tiro e conseguiu imobilizar-se por completo. Os três flooths tinham deixado para trás o último cabo e precipitavam-se em sua direção. Viu que usavam trajes protetores com um formato esquisito dos quais de vez em quando saíam pequenas
chamas ofuscantes. Eram mestres na arte de manipular os aparelhos. Aproximavam-se de três lados. Se Bell não se desviasse, eles se encontrariam exatamente no lugar em que estava. Bell fez uma avaliação rapidíssima de suas chances. Não podia envolver-se numa troca prolongada de tiros. Cada tiro exigia uma correção de rota, e cada correção exigia tempo, além de uma certa dose de concentração. Precisava voltar ao último cabo. Se o mesmo continuasse intacto, todo o trabalho teria sido em vão. Tinha de cortá-lo. Prendeu a respiração ao ver os três flooths se deslocarem rapidamente em sua direção. Desenvolviam uma velocidade elevada. Até parecia que queriam esmagá-lo pela força do impacto. Esperou até que se encontrassem a meio segundo de distância e disparou sua arma energética. O tiro dirigido obliquamente para cima impeliu-o para baixo. Mergulhou por baixo dos atacantes, voltou a disparar às pressas e passou a subir quase na vertical em direção ao último veículo de desembarque. Sua manobra causara a confusão que ele esperara. Os três flooths estavam reduzindo a velocidade para voltar. Tinha uma dianteira de pelo menos meio minuto. Mas havia outro perigo vindo da frente. Os reforços haviam abandonado as popas das naves e vinham em sua direção. No íntimo Bell admirava sua vista penetrante. Ele mesmo nunca seria capaz de reconhecer lá de cima qual dos quatro pontos agitados era o inimigo. Ficou apavorado ao notar que os flooths chegariam ao cabo antes dele, a não ser que aumentasse sua velocidade. Mas se a aumentasse a manobra de frenagem junto ao cabo consumiria muito tempo. Não dispunha de um segundo que fosse para refletir em busca de uma saída. Num gesto de sangue-frio resolveu colocar tudo numa só cartada. Deu um terceiro disparo breve para aumentar sua velocidade. Os flooths pareciam espantados e hesitaram um momento. De repente os propulsores de seus cintos também se iluminaram. Mas Bell já estava perto do último cabo que ainda não fora cortado. Não havia tempo para frear. Bell apontou a arma para o cabo e fez pontaria cuidadosa. O cano da arma girava lentamente, enquanto Bell se deslocava em direção ao cabo e por cima do mesmo. Puxou o gatilho. Um feixe energético ofuscante saiu do cano da arma. Bell encostara o cabo ao ventre, para que o recuo da arma atingisse o centro de gravidade de seu corpo. Sentiu uma pancada violenta no estômago e foi impelido para o alto, mas viu as duas extremidades incandescentes do cabo afastarem-se rapidamente. Soltou um grito de entusiasmo, mas no meio do grito foi atingido por uma saraivada de tiros dos flooths, que o fez turbilhonar por cima da armada de veículos de desembarque. Bell reprimiu o enjôo. Naquele momento não devia frear o vôo. Quanto mais irregular fosse seu deslocamento, melhor. Agüentou mais alguns segundos, mas de repente percebeu que estava perdendo os sentidos. Estendeu a mão que segurava a arma e disparou. Passou a girar mais devagar. Viu que os últimos barcos tinham ficado bem para trás e abaixo dele. Reconheceu a minúscula mancha brilhante produzida pelo barco de Atlan à luz do sol e passou a deslocar-se em direção à mesma. Depois de algum tempo Atlan avistou-o. O barco veio em sua direção. Bell orientou-se de novo. Os flooths tinham ficado bem para trás. Provavelmente naquele momento começavam a reparar os cabos. Um sorriso sarcástico apareceu no rosto de Bell. Cada tiro derretera o cabo atingido numa extensão de pelo menos dois metros. Aproximar os barcos dois metros das naves e soldar os cabos podia parecer fácil. Mas o trabalho consumiria algumas horas. E até lá...!
Bell entrou no barco em forma de lentilha da mesma forma que tinha saído. Atlan manipulou alguns comandos e virou-se em sua direção. — Houve algum problema? — perguntou em tom amável. Bell acariciou o cano de sua arma. — Que nada — respondeu. — Mas precisamos tratar de terminar logo o que falta. Os flooths estão bem nervosinhos. Atlan não fez nenhuma pergunta. Virou o barco e seguiu em direção ao veículo de desembarque mais próximo. Vinham obliquamente de baixo. Bell acompanhou a manobra com muita atenção. A enorme parede escura do veículo dos flooths cresceu à sua frente. Produziu um ligeiro solavanco ao tocar na aresta lateral do barco em forma de lentilha. Atlan regulou o propulsor para o empuxo máximo. O pequeno veículo empurrou o grande barco dos flooths como se este fosse de papelão. Atlan seguiu obliquamente para a frente, na direção das popas das naves e também das outras fileiras de veículos de desembarque. Antes que o veículo que estava empurrando com outro da fileira seguinte, fez subir seu barco e passou a observar o desenrolar dos acontecimentos de uma altitude segura. Desenvolvendo uma velocidade considerável, o barco que acabara de ser empurrado colidiu com outro. O impacto fez com que outro barco se deslocasse obliquamente, em direção à terceira fileira. O primeiro veículo recuou diante da força do impacto e deslocou-se para fora. Até parecia que Atlan tinha calculado os movimentos, pois o mesmo colidiu a meia nau com um dos barcos presos ao mesmo cabo e também o desviou da rota. Dali em diante a sucessão dos acontecimentos foi muito rápida. A distância era tão grande que nem mesmo por meio da teleóptica se podia ver o que estavam fazendo os flooths. De qualquer maneira, seus veículos de desembarque estavam numa terrível confusão. O grupo foi ficando para trás das naves. Em alguns lugares dois barcos que tinham colidido ficaram presos um ao outro e executaram uma dança mortal. Como o movimento giratório consumia parte de sua energia dinâmica, a velocidade de seu deslocamento em linha reta diminuiu e outros barcos colidiam. Atlan voltou a olhar para o quadro de comando. — Tenho a impressão de que os flooths ficarão sem seus veículos de desembarque — disse em tom calmo. — São uns cento e cinqüenta mil a menos que os que estão lá embaixo terão de enfrentar. Na opinião de Bell isso era motivo suficiente para acender um cigarro do último maço que lhe restava. Deleitou-se com a fumaça azulada que balançava à sua frente. — Sei mais uma coisa — principiou de repente. — As armas energéticas dos flooths assemelham-se bastante às nossas. Dispararam contra mim, mas a energia de seus raios não conseguiu romper meu campo defensivo. Podemos envolver o próprio barco com um campo energético. Desse jeito da próxima vez não precisaremos ser tão cautelosos. Poderemos voar diretamente para junto dos cabos. Atlan acenou com a cabeça. — Acho que é uma excelente idéia — disse.
6 Ruídos indescritíveis enchiam a selva. De vez em quando ouviam-se alguns estalos seguidos de um baque surdo. Era um animal grande ou uma árvore que estava tombando. Mais à frente via-se uma luz vermelha bruxuleante por entre os arbustos. Era a fogueira de um acampamento! Para os habitantes do segundo planeta, denominado Flooth, a noite tépida da selva era fria demais. Rhodan caminhava com o corpo erguido. Por enquanto não havia necessidade de esconder-se. Pelos seus cálculos, a fogueira mais próxima devia ficar pelo menos a quinhentos metros de distância. Os flooths não desconfiavam de nada. Nos últimos três anos não tinham sido atacados uma única vez e nesta noite não contariam com um ataque. Rhodan lembrou-se de Mory, que ficara no planador, junto ao delta fluvial. Não gostou de deixá-la por lá, mas alguém tinha de ficar no planador. Não tinha qualquer plano definido para o ataque ao acampamento inimigo. Antes de mais nada precisava ter uma idéia da situação. O objetivo principal era este. Se houvesse oportunidade de criar uma grande confusão entre os flooths ou de destruir parte de seus suprimentos, ele a aproveitaria. Tinham combinado que ele, Melbar e André se encontrariam o mais tardar dentro de cinco horas, ou seja, pouco antes do alvorecer, junto ao planador. Perry recuou apavorado quando de repente uma coisa se mexeu embaixo de seus pés, debatendo-se ruidosamente com os membros invisíveis e desaparecendo com um rosnado entre a vegetação. Perk afirmara que não havia animais perigosos na selva, mas restava saber o que poderia tornar-se perigoso para um bighead que era capaz de tornar-se invisível a qualquer momento. Um curso de água raso e estreito abrira uma vereda na mata. Rhodan lançou um olhar desconfiado para a água e entrou na mesma. Havia lama embaixo de seus pés. A cada passo que dava afundava quase até os joelhos no leito branco e gosmento e a água penetrava em suas botas. Quando finalmente chegou à outra margem, sentiu uma pressão em torno da parte inferior da perna direita, que aumentava constantemente. Era como se alguém apertasse um cinto em torno da mesma. Abaixou-se para examinar a perna. Viu à luz débil das estrelas que aquilo que acreditara ser um cinto era uma serpente colorida, que fazia esforços entusiásticos para sufocar sua pretensa vítima. Rhodan tirou a faca e cortou o corpo da serpente em duas partes. As duas partes caíram ao chão e o sangue represado refluiu ao pé, causando um doloroso formigamento. Rhodan passou a andar mais depressa. Não tinha nenhuma vontade de ver sua ação frustrada pela agressividade de um animal da selva. Precisava ver os flooths e estudá-los por algum tempo, antes de envolver-se com eles. Um forte chiado passou a superar os ruídos da selva. Perry viu por entre os galhos sombras que se moviam em torno das fogueiras. Os flooths não pareciam ter muita necessidade de dormir. Perry lembrou-se da impressão que as tropas de desembarque tinham causado em André. Eram enérgicos, combativos e entusiasmavam-se pela causa em que estavam empenhados. Quase chegou a sentir certa repugnância por ter de combatê-los. Será que essa raça, mesmo que pertencesse à classe dos gafanhotos, em sua mentalidade não era muito mais semelhante à dos terranos que a dos bigheads que já tinha vivido sua vida e dentro em breve pertenceria ao passado?
Afastou estes pensamentos, que eram um estorvo para ele. Na verdade não estava empenhado em proteger os bigheads, mas em evitar a destruição de uma civilização antiqüíssima, a fim de que a Terra pudesse tirar proveito da mesma. Só isso. “Os sentimentos sempre vêm em último lugar”, pensou. Mas como que por ironia, ao pensar assim, lembrou-se de Mory Abro. Dali a alguns minutos estava a apenas cinqüenta metros da fogueira mais próxima. Era enorme e espalhava tanto calor que até mesmo em seu esconderijo chegava a ser desagradável. Os flooths tinham incendiado a selva. Seu acampamento ficava numa área enorme coberta de cinza negra. Em toda parte viam-se estranhas barracas, construídas à maneira de favos de mel. Cada barraca era formada por cerca de uma dezena de compartimentos distintos. Cada compartimento era um hexágono regular de dois metros de lado, aproximadamente. As barracas pareciam ter sido feitas de um material plástico flexível. As paredes divisórias eram infláveis. Em seu conjunto as barracas eram muito práticas, exigiam um mínimo de espaço durante o transporte e ofereciam um máximo de abrigo. O tamanho das barracas era variável. Mais ao longe havia algumas que tinham a altura de um edifício de tamanho médio, ou seja, cerca de oitenta metros. Provavelmente os flooths usavam estas barracas para guardar equipamentos maiores. Se possuíssem aviões, o que Rhodan julgava bastante provável, os mesmos deveriam ser procurados nas barracas maiores. Todas as barracas tinham uma coisa em comum: a construção em forma de favo. Não se precisava de mais nada para que qualquer observador se convencesse de que os flooths descendiam de insetos. Na parte do acampamento que Rhodan via do seu esconderijo na selva havia cerca de duas mil das estranhas criaturas. Elas se mantinham ininterruptamente em movimento. Os sons que emitiam eram agudos e estridentes. Ficavam próximos ao limite máximo de perceptibilidade do ouvido humano. Rhodan não reconheceu qualquer forma de articulação que fizesse supor a presença de palavras ou frases que integram uma língua plenamente desenvolvida. Era possível que os flooths apenas estivessem soltando gritos de alegria ou entusiasmo, pois era o que parecia indicar o barulho infernal que faziam. Rhodan só viu os contornos das estranhas figuras que se destacavam contra a claridade das fogueiras. Seus movimentos eram ágeis, dando a entender que estavam acostumados a uma gravitação mais elevada. Rhodan sabia que isso não era possível. Flooth era um planeta pequeno, cuja gravitação era aproximadamente igual à de Marte. Acabou por descobrir por que os flooths se movimentavam com tamanha facilidade. Uma das figuras ficou saltando sobre três pernas muito finas em torno da fogueira mais próxima. Rhodan viu que de tempos em tempos abria os braços, baixava-os num movimento abrupto e no mesmo instante atravessava o ar que nem uma flecha. Por uma fração de segundo Rhodan viu as membranas que se estendiam entre os braços e o tronco. Rhodan ainda constatou que a cor da pele dos flooths era verde-amarelada. Também viu que usavam um uniforme de duas peças: uma jaqueta curta, recortada na altura dos braços, que não chegava bem à metade do corpo, e dali para baixo, até a articulação das pernas, uma peça de roupa que antes parecia uma atadura. Rhodan não chegou a ver os rostos. A distância era muito grande e as chamas deixavam-no ofuscado. Também não viu armas, e eram justamente estas que mais o interessavam. Voltou a dedicar sua atenção às barracas maiores, que ficavam mais ao longe. Ficou ainda mais convencido de que os flooths guardavam seus equipamentos mais importantes, tais como armas e veículos, nas gigantescas estruturas em forma de favo. Para impedir seu avanço, teriam que destruir essas barracas.
Com um único olhar Rhodan certificou-se que ninguém seria capaz de atravessar o acampamento sem ser visto, para chegar às barracas. Os flooths as tinham levantado em posições estrategicamente favoráveis, muito embora tivessem todos os motivos para ficar despreocupados diante de criaturas indefesas como os bigheads. Só havia uma possibilidade: um ataque com planadores. Perry desenhou mentalmente um mapa da parte do acampamento que conseguia ver. Enquanto não conhecesse as armas dos flooths, não poderia arriscar-se a passar com o planador por cima do acampamento. Teria de golpear, destruir e retirar-se. Era a velha tática da guerrilha. Um sorriso amargo aflorou aos lábios de Rhodan quando se lembrou de que seria fácil libertar Kahalo dos intrusos, se conseguisse explicar aos bigheads que deviam permitir que regressasse à Terra para voltar com uma frota espacial terrana. De repente sentiu que alguma coisa tentava penetrar em seus pensamentos. Defendeu-se instintivamente, e sua mente teve forças para pôr em fuga a influência estranha. Todo perplexo, pesou a possibilidade de que os flooths pudessem ser telepatas. Mas lembrou-se de André. O hipnomutante estava nas proximidades. Até então nunca tentara entrar em contato com Rhodan por esse meio. Devia ter um motivo bastante forte para fazê-lo naquele instante. Rhodan abandonou a resistência e deixou que os pensamentos estranhos penetrassem em sua mente. — Sinto que há perigo — dizia a mensagem para-hipnótica. — Lá atrás, perto do planador. Há algo de errado. Rhodan recuou apressadamente para dentro da vegetação. Assim que os galhos o protegiam da visão direta a partir do acampamento, endireitou o corpo e saiu correndo. Ainda não tinha dado cinco passos, quando um uivo semelhante ao das sereias encheu a grande clareira que tinha deixado para trás. As sereias só silenciaram quando atingiu o curso d’água no qual a serpente se tinha enrolado em sua perna. Parou e pôs-se a escutar. Os ruídos que ouvira no acampamento dos flooths tinham cessado. A única coisa que se ouvia era o crepitar das fogueiras. O silêncio era absoluto. *** Mory estava com medo. Já fazia muito tempo que sentira medo pela última vez. Em Badum todo mundo tinha medo dela, da figura inacessível da filha do Chefe. Desde que sabia pensar estava acostumada a ver as pessoas tremerem à sua frente. Naquele momento estava sentada num veículo estranho, uma verdadeira casca de nozes, num planeta estranho, escondida na confusão noturna da selva estranha — e estava só. Por isso sentia um medo terrível. Pensou em Rhodan, e isso lhe deu coragem por algum tempo. Perry estava lá na frente, observando os flooths. Imaginou que para ela não haveria nenhum perigo enquanto Rhodan se interpusesse entre sua pessoa e o inimigo. Mas sua inteligência logo veio à tona e disse que estava se enganando a si mesma. Um único homem não poderia controlar todo o delta. O medo voltou a apossar-se dela. De repente teve a impressão de que a pequena carlinga era apertada demais. Aproximou-se da parede, esperou que a mesma desaparecesse e desceu. Crispou os dedos da mão direita em torno da arma energética pesada. A selva terminava alguns metros além do veículo. Mory ficou de pé à margem de um rio largo, cujas águas corriam em direção ao mar próximo. Ouviu o ruído de pequenas ondas batendo na margem. A claridade fosca produzida pela profusão de estrelas descia
do céu. O medo desapareceu. De repente Mory começou a sentir o lado romântico da situação. Nunca sonhara com a possibilidade de um dia sair de Badum. Por maior que fosse a liberdade que seu pai lhe concedia em Badum, voar numa espaçonave era uma atividade exclusivamente masculina. E agora encontrava-se em Kahalo, um mundo de que ninguém ouvira falar lá fora na Galáxia. O ar era tépido. Os ruídos de uma fauna estranha saíam da selva. De repente um traço formado por bolhas atravessou o rio de lado a lado. Mory só o viu quando já estava atingindo a margem. Olhou atentamente para a água, com a arma pronta para disparar. Que animal seria este que andava vagando pela noite? O traço de bolhas terminou na margem e a superfície da água voltou a alisar-se. Mory esperou mais algum tempo e saiu andando, decepcionada. Devia ter sido um peixe ou coisa semelhante. De qualquer maneira, a criatura não tinha a intenção de subir a terra. Já se sentia novamente bastante tranqüila para ficar a bordo do planador. Afastou os galhos e foi voltando. Teve a impressão de ouvir um ruído vindo do rio. Era como se alguém tivesse mexido apressadamente na água. Mory não lhe deu atenção. Viu-se novamente na pequena clareira aberta pelo próprio veículo, quando o mesmo baixou sobre a folhagem. Quando pretendia aproximar-se da parede da nave, alguma coisa saiu em disparada da escuridão da selva, atravessou a clareira que nem um raio verde-pálido e colocou-se à frente de Mory. Mory olhou para uma cara diabólica na qual sobressaía um focinho pontudo. Olhos negros semi-esféricos fitavam-na atentamente. Logo embaixo dos olhos o crânio avançava para a frente, terminando numa ponta cônica. Embaixo do cone via-se um focinho meio aberto, em cujo interior brilhavam presas afiadas. Mory não teve olhos para outra coisa que não fosse a cara diabólica. Notou as antenas curtas que saíam da testa achatada, pouco acima dos olhos esféricos. Lembrou-se do que Rhodan e os outros lhe tinham dito a respeito dos flooths e o sangue gelou em suas veias. Era incapaz de fazer qualquer movimento. O pânico parecia tê-la prendido com garras de ferro. Quis gritar. Abriu a boca, mas no mesmo instante a criatura fez um movimento rápido. *** Rhodan correu pela floresta. Lá atrás, bem ao longe, voltou a soar barulho. Os flooths tinham sido colocados em alarme. Teve a impressão de que os ruídos se aproximavam rapidamente. Os flooths estavam atrás dele. Suas membranas voadoras permitiam que se locomovessem mais depressa que ele. Não era de supor que o estivessem perseguindo. Não sabiam de sua existência. Mas o planador ficava na direção em que se deslocava. E este era o destino dos flooths. Não se sabia como, mas eles o haviam descoberto. O medo que sentia por Mory fez com que Rhodan avançasse mais depressa. Tropeçou, caiu, levantou-se praguejando e correu, correu, correu. Atrás dele o barulho estridente tornava-se cada vez mais intenso. De repente o planador apareceu à sua frente. Rhodan aproximou-se da parede e olhou para dentro do veículo. Não havia ninguém na carlinga. Chamou Mory pelo nome. Mory não respondeu. Pegou sua lanterninha e iluminou o chão. Numa pequena mancha sem vegetação viu três impressões em forma de traço, próximas uma da outra. Parecia que alguém tinha comprimido três varetas de três centímetros de espessura e vinte centímetros de comprimento no barro.
De repente ouviu um estrondo vindo da selva. O chão tremeu, e Melbar Kasom entrou em cena. Sem dizer uma palavra e sem que lhe dessem ordem, virou-se e apontou sua arma energética para a parede densa da vegetação. O barulho foi-se aproximando. Dali a alguns segundos André Noir chegou ao veículo. — Mory está em perigo! — disse, ofegante. — Perdi o contato. Rhodan apontou na direção da qual vinha o barulho estridente. — Os flooths estão atrás de nós! — gritou. — Mory está presa. Vamos dar o fora! Dali a alguns segundos a parede do planador fechou-se atrás deles. Rhodan levantou o veículo e deixou-o suspenso no ar na altura das copas das árvores. — Desta forma ainda teremos oportunidade para fazer uma experiência — disse. Lá embaixo a vanguarda dos flooths atingiu a clareira em que pouco antes estivera pousado o planador. Pareciam confusos por encontrarem o lugar vazio. Levaram algum tempo para descobrir o veículo suspenso no ar. Ouviram-se tiros. Os projéteis bateram ruidosamente no casco do veículo e foram desviados. O fogo adensou-se assim que a força principal do inimigo apareceu na clareira e entrou em ação. Perry deixou passar um minuto. O matraquear produzido pelo impacto dos projéteis transformou-se numa metralha e num rugido. Mas os tiros não pareciam produzir o menor efeito no planador. O material transparente e duro evitava a penetração dos projéteis. — Prepare-se, Melbar! — gritou Rhodan para superar o barulho. — Vamos descer. Melbar compreendeu imediatamente. Ficou de joelhos por causa do teto baixo e escorregou em direção à parede lateral. Com um movimento abrupto Rhodan empurrou uma alavanca para a frente. O veículo caiu que nem uma pedra. Lá embaixo cessaram os tiros. Viam-se figuras apressadas na penumbra, que fugiam em carreira desabalada para a selva. O planador parou pouco antes de tocar no solo. Ficou suspenso apenas alguns centímetros acima do lugar em que pouco antes estivera pousado. Melbar estava ajoelhado junto à parede. Os tiros cessaram de vez. A parede desapareceu e o barulho estridente dos fugitivos penetrou no veículo. Uma salva energética saiu trovejante da arma pesada de Melbar. Nos lugares em que encontrava alguma resistência, tochas luminosas subiam ao céu. A luz ofuscante iluminava as figuras esverdeadas dos fugitivos. Estes tinham perdido a cabeça. Soltando gritos e chiados, corriam para dentro dos feixes de energia e desmanchavam-se em chamas. Rhodan voltou a levantar o planador. Melbar deixou-se cair para trás e a parede fechou-se. O planador sobrevoou o rio a pequena altura, aumentou de velocidade e seguiu em direção às montanhas. Dali a alguns minutos estava pousado no platô inacessível, sob a proteção dos penhascos, no lugar exato que Rhodan escolhera como ponto de partido de suas ações. André ainda não conseguira entrar em contato com Mory. Tinha suas dúvidas de que à distância em que se encontrava esse contato seria possível. — A não ser — observou — que ela tenha sofrido uma espécie de choque. Os raios mentais direcionados que surgem numa situação como esta podem, em certas circunstâncias, ser detectados a grande distância. — Quer dizer que ainda nos resta uma pequena esperança — disse Rhodan em tom deprimido. — Quando recuperar os sentidos, Mory provavelmente sofrerá um choque atrás do outro. Ficaram no planador e tentaram dormir algumas horas antes do nascer do sol. Deitado, mas acordado, Rhodan recordava as experiências que fizera durante o dia. Os
flooths usavam armas de projéteis, fuzis antiquados. Estavam numa desvantagem enorme diante das armas energéticas que ele e seus companheiros usavam. *** A manhã seguinte trouxe duas surpresas ao mesmo tempo. Perk, que estivem em contato com Bell e Atlan, chamou para relatar os êxitos que os dois astronautas tinham alcançado. O mais interessante era que Bell aludira a algo semelhante a armas energéticas, com as quais estavam equipados os flooths. A outra surpresa foi preparada pelos próprios flooths. Estes tinham abandonado durante a noite sua base no delta, deslocando-se para o superior. O confronto com o inimigo equipado com armas superiores devia tê-los convencido de que seria preferível apressar-se um pouco na conquista de Kahalo. Talvez houvesse mais um motivo. As bases deviam manter contato pelo rádio com as espaçonaves que vinham em sua direção. Talvez tivessem sido informados de que por enquanto não poderiam contar com reforços, porque o inimigo dispunha de meios muito eficientes para evitar que os veículos de desembarque fossem rebocados para Kahalo. Dessa forma a base, que só tinha sido montada no delta porque este era um excelente local de pouso, perdia todo valor. Perk confirmou a suposição. O sistema automático de vigilância dos bigheads havia constatado que ao norte do delta os flooths se haviam dividido em cinco grupos, cada um dos quais seguia numa direção diferente. O equipamento de cada grupo era formado por aviões e veículos de passageiros. Mas nem mesmo os bigheads conseguiram descobrir qual dos grupos mantinha Mory em seu poder. Rhodan já tinha elaborado seu plano. André seria capaz de descobrir o paradeiro de Mory, desde que fosse levado para perto da mesma. Passariam voando perto dos diversos grupos. Atacariam aqueles que não tivessem Mory em seu poder, causando-lhes os maiores prejuízos materiais possíveis. Até mesmo os belicosos flooths deixariam de ser um inimigo perigoso quando tivessem de sair às suas conquistas a pé. De início o relato de Bell sobre as armas energéticas dos flooths deixou Rhodan confuso. Parecia pouco lógico que não equipassem suas tropas de terra com as melhores armas de que dispunham. A única explicação que Rhodan conseguiu imaginar foi que os flooths só tinham criado suas armas energéticas num passado muito recente, e que as tropas com as quais Atlan e Bell se tinham defrontado eram as primeiras que as possuíam. Se essa suposição era correta, a ação que impedira a remessa de reforços pelos flooths não poderia ter sido desenvolvida numa oportunidade mais favorável. *** A partir do momento em que o estranho veículo foi descoberto na selva do delta e a criatura esquisita foi aprisionada, a desgraça passou a perseguir os conquistadores. Abandonaram a base, pois não poderiam esperar mais reforços. O mesmo inimigo que aparecera repentinamente da superfície do planeta verde também passara à contraofensiva no espaço. Era invulnerável e agia com uma rapidez inacreditável. Onde quer que golpeasse, a destruição era total. As outras duas bases não tinham sido molestadas. Mas também lá os chefes prepararam a partida. A fase de reforço das bases foi suspensa. A conquista do planeta verde iria ter início. Para os que vinham do delta esse início seria acompanhado de morte e destruição. Assim que se dividiram em cinco grupos, cada um destes grupos foi atacado por um veículo que se deslocava com a rapidez de uma flecha. Parecia ser o mesmo que
tinha sido encontrado na noite anterior no interior da selva. Resistia ao fogo, por mais violento que fosse, e sua velocidade era pelo menos cinco vezes maior que a do mais veloz dos aviões. Atacava em vôo baixo e de seu corpo saía um fogo fulminante, que transformava os veículos em chapas incandescentes retorcidas e matava os combatentes. Os valentes conquistadores entraram em pânico. Privados dos veículos, começaram a espalhar-se para todos os lados. Quanto mais afastados estivessem uns dos outros, menores seriam as probabilidades de servirem de alvo aos seres medonhos. A terra era fértil. Bastava acostumar-se a comer as plantas e animais estranhos para não depender das provisões que tinham trazido. Era possível que ainda chegasse o dia em que novos barcos pousassem no planeta, trazendo outras tropas que reiniciassem a operação de conquista do planeta verde. Um grupo após o outro foi-se espalhando pela imensidão da terra estranha. As mensagens transmitidas pelos chefes das outras duas bases não foram respondidas mais. O silêncio desceu sobre os seiscentos mil homens da cabeça-de-ponte do delta. *** Perk passou a chamar com mais freqüência. Ao que parecia, já não via nos terranos simples instrumentos da resistência contra os flooths. Um certo respeito vibrava em seus pensamentos — se é que os bigheads podiam ter um sentimento dessa espécie. Cinco grupos do exército floothiano, que formavam toda a guarnição de uma das três cabeças-de-ponte, tinham sido destruídos ou haviam debandado. De qualquer maneira, foram postos fora de ação. Nas outras bases viam-se sintomas evidentes de pânico. O perigo representado pelos flooths parecia ter entrado na fase de declínio. As sondas espaciais informaram que os flooths tinham chamado de volta as espaçonaves que viajavam de Flooth para Kahalo, por causa do perigo que as ameaçava. Os flooths que se encontravam em Kahalo ficariam sem reforços por um tempo imprevisível. Os dois homens que tinham conseguido o milagre num tempo tão reduzido já tinham voltado para Kahalo. Seu barco espacial tinha desaparecido nos depósitos subterrâneos, já que não precisavam mais dele. Perk tinha motivos de sobra para alegrar-se com os resultados da operação. Não compreendia por que os terranos não compartilhavam sua alegria. Afinal, só tinham perdido uma mulher. A mesma não foi encontrada junto a nenhum dos cinco grupos. Até se poderia ter a impressão de que desaparecera da face do planeta. Perk não compreendia por que, apesar de tudo, o terrano alto de olhos cinzentos insistia em que só abandonaria seu posto quando soubesse que a moça estava em segurança. Afinal, qualquer um via que seu destino, fosse ele qual fosse, permaneceria em segredo perante todo mundo. Foi o que Perk pensou, até que recebeu outro relatório do sistema de vigilância automática. O sistema acabara de descobrir um grupo de aproximadamente dois mil flooths, que segundo tudo indicava se haviam separado de um dos grupos sem que ninguém o percebesse e deslocavam-se rapidamente para o nordeste. Isso deixou Perk bastante preocupado, pois na direção do avanço desse grupo havia uma célula do sistema principal de geração de energia. Além da célula ficava o grande Kahal, mas Perk não conhecia os detalhes técnicos e não sabia se o mesmo ainda funcionaria depois que os flooths tivessem desmontado a célula. Transmitiu a novidade aos terranos. A única resposta foi esta: — Já estamos a caminho!
7 A única coisa de que Mory se lembrou foi que levara um susto mortal, e o que viu quando acordou não era de molde a diminuir seu pavor. Estava deitada numa maca de um veículo rudimentar, que se deslocava ruidosamente e aos sacolejos sobre o terreno não preparado. Sentiu um forte cheiro de gasolina. Em torno dela ouviam-se assobios estridentes. Mory não teve coragem de levantar-se para olhar por cima da borda da maca. Tinha medo de ver as figuras estranhas. Mas bastava virar a cabeça para ver dois deles no banco do motorista, que ficava em posição mais elevada. Estavam de costas para ela. Mory venceu a repugnância ou ao menos se acostumou à mesma e pôs-se a estudá-los calmamente. Eram esbeltos e seus movimentos eram ágeis e vigorosos. Vistas de trás as cabeças não tinham nada de estranho, mas sempre que se viravam de lado mostravam o perfil pontudo da parte dianteira do crânio, que lhes dava o aspecto de insetos. De cada lado do crânio havia uma placa oval, ligeiramente abaulada, de chitim negro. Mory lembrou-se do objeto que Rhodan havia encontrado. Ninguém lhe dava atenção, e isso a deixou contente. O sol devia ter nascido há pouco. Uma luminosidade vermelha cobria os corpos esverdeados dos dois flooths, um dos quais dirigia o veículo sacolejante. Mory permaneceu imóvel por uma hora, refletindo sobre a situação. Sua coragem aumentou um pouco. Acabou por erguer-se sobre os cotovelos e olhou por cima da borda da maca. A área em torno do veículo era plana e estava coberta de capim. Bem ao longe, junto à linha do horizonte, algumas montanhas azuladas brilhavam à luz do sol. A planície estava cheia de veículos, e estes por sua vez estavam cheios de flooths. Mory viu que na plataforma de cada veículo havia pelo menos cinqüenta figuras esverdeadas, e havia pelo menos dois mil veículos na planície. Uma coisa não escapou a Mory. As paredes dos veículos formavam uma estrutura composta por pequenos quadrados. Ao que parecia, cada uma delas fora montada com centenas de peças. Os flooths pareciam ser mestres nesta arte. Sem dúvida tinham transportado seus veículos a bordo dos veículos de desembarque, desmontados em milhares de peças, e os montaram depois da chegada ao planeta. As peças eram bastante pequenas para que cada um deles que saísse dos veículos de desembarque pudesse carregar sua parte para terra. Mory também descobriu uma esquadrilha de aviões cujos propulsores chiavam enquanto circulavam em cima da coluna de veículos. Provavelmente estes aviões também tinham sido montados no planeta. Voltou a deitar-se e deixou que as horas passassem. Aos poucos começou a sentir fome. Os flooths pareciam não se preocupar com isso. Faziam como se nunca tivessem feito uma prisioneira. Pelo meio-dia houve uma ligeira pausa. Enquanto o veículo parava, com o motor ligado, Mory teve a impressão de que o barulho que se ouvia lá fora ia desaparecendo ao longe. Só se atreveu a olhar em torno quando o veículo voltou a movimentar-se. Uma imensa nuvem de pó levantava-se ao norte, e só havia uns cinqüenta veículos nas proximidades daquele em que se encontravam. O resto, que formava a grande maioria, ocultava-se embaixo da poeira. Também constatou que a coluna mudara de rumo. Deslocava-se para o nordeste, em direção às montanhas. Os carros iam mais depressa que antes, e notava-se perfeitamente
que os flooths estavam nervosos. Parecia que se sentiam em perigo, pois se esforçavam para colocar-se o mais depressa possível sob a proteção das montanhas. Mory ficou preocupada. Concordava plenamente em que alguém estragasse o jogo dos flooths, mas fazia votos de que isso não acontecesse justamente naquele momento, em que ela também sofreria as conseqüências da ação. Mas as horas foram passando sem que acontecesse nada e Mory voltou a acalmarse. Devia ter adormecido, pois a primeira coisa que viu foram paredões íngremes tão próximos um ao outro que os veículos dos flooths mal podiam passar entre os mesmos. A coluna estava subindo. Os seres em forma de inseto mantinham-se plenamente ocupados para vencer os acidentes do terreno. Depois de algum tempo o desfiladeiro foi dar num vale bem grande. Mory, que já se convencera de que os flooths não lhe dariam a menor atenção, mesmo que começasse a dançar na carroceria do veículo, pendurou-se à balaustrada do mesmo e procurou enxergar melhor os arredores. O vale era bastante acidentado. Havia blocos de pedra de dois metros de altura espalhados por toda parte. A vegetação era escassa. O vale parecia ficar em grande altitude, pois o ar era rarefeito. Tudo isso formava um estranho contraste com o gigantesco edifício abobadado que se erguia no centro do vale, dando a impressão de que este era habitado. Os carros entraram em formação de combate. Cerca de um terço das tropas dos flooths desembarcou e avançou com as armas apontadas em direção ao edifício. Mory acompanhou os acontecimentos com muita atenção. Notou que os flooths não demonstravam muita cautela durante o avanço. Provavelmente seus aviões já tinham observado a construção abobadada durante algumas horas e chegaram à conclusão de que a mesma não era habitada. Os primeiros destacamentos realmente atingiram o edifício sem encontrar qualquer resistência. Mory ainda os viu abrirem sem a menor dificuldade um gigantesco portal. Depois disso voltou a sentar na carroçaria do veículo. Estava decepcionada. Dali a pouco a coluna parou. Barracas em forma de favo foram levantadas na área. Quando o sol começou a baixar, os flooths acenderam fogueiras e passaram a aquecer-se nas mesmas. A fome de Mory tornara-se aflitiva, mas ninguém lhe dava a menor atenção. A fome começou a superar o medo dos flooths, a tal ponto que Mory passou a caminhar de um lado para outro na carroçaria, para despertar a atenção de seus torturadores. Parecia que estava conseguindo. Quatro flooths aproximaram-se do carro, vindos de uma das barracas maiores, montada junto ao edifício abobadado. Carregavam alguma coisa, mas Mory só viu o que era quando os flooths se haviam aproximado em meio ao crepúsculo a alguns metros de distância. Tratava-se de uma espécie de maca. Mory saltou voluntariamente do carro, para evitar que algum dos flooths tivesse que tocar nela. Mas seu esforço foi em vão. Assim que seus pés tocaram o chão, dois dos estranhos precipitaram-se sobre ela, seguraram-na com as mãos que antes pareciam tenazes e arrastaram-na para cima da maca. Mory ficou tão atordoada de susto que quase não conseguiu fazer nenhum movimento. Não ofereceu a menor resistência quando os flooths a amarraram à maca com algumas ataduras. Ficou tão bem amarrada que não conseguia fazer o menor movimento. A maca foi levantada e carregada em direção à barraca maior. Mory compreendeu que todo esse trabalho teria sido desnecessário, se lhe tivessem dado alguma coisa para comer. ***
Não foi difícil encontrar a rota da pequena coluna. Os rastros continuaram marcados no chão da estepe. O pequeno grupo se separara de outro maior no momento em que os ataques furiosos do planador estavam dizimando as outras divisões, espalhando-as para todos os lados. Via-se perfeitamente que os flooths atribuíam uma importância toda especial a esse grupo. Mesmo que as outras ações não fossem bem-sucedidas, a pequena coluna deveria atingir seu objetivo. Acontece que a única coisa que Perry Rhodan e seus companheiros podiam fazer era adivinhar qual era esse objetivo. O planador avançou o mais rapidamente possível para as montanhas. Os aviões dos flooths tinham desaparecido do céu, pois deslocavam-se com as colunas em marcha. O sol descia rapidamente para a linha do horizonte, e tudo indicava que as buscas prosseguiriam noite adentro. A bordo do planador todo mundo estava tenso. Ninguém dizia uma palavra. Desta vez a ação não se resumia a um ataque desfechado contra um grupo relativamente indefeso de flooths com um veículo fortemente blindado. Teriam de arrancar um prisioneiro das mãos de milhares de seres-inseto. O veículo passava lentamente pelo desfiladeiro alto e estreito, que exigia a atenção redobrada de Rhodan, que se encontrava no assento do piloto, quando de repente André, o mutante, soltou um grito e levantou-se abruptamente. Rhodan imediatamente parou o planador. — Mory...! — gritou André, ofegante. — Não está longe... a uns cinco ou seis quilômetros... corre um grande perigo! Querem...! Interrompeu-se e caiu molemente na poltrona. O esforço do contato mental fora muito intenso. No mesmo instante Rhodan voltou a colocar o veículo na rota. A luz crepuscular mal permitia que reconhecesse as arestas e saliências mais perigosas do paredão. Pelo que dissera André, faltavam cinco ou seis quilômetros. Provavelmente havia um vale ou um planalto por lá. A idéia de que Mory estava em perigo fez porejar o suor em sua testa. Chegou um momento em que gostaria de gritar de raiva e desespero. O planador começou a descer de repente. Perplexo e furioso, Rhodan começou a mexer nos controles, mas o veículo não obedecia mais. Desceu em curva íngreme para o fundo do desfiladeiro. Rhodan não teve tempo de soltar um grito de advertência. O planador bateu ruidosamente no chão. Rhodan foi atirado para fora da poltrona e sua cabeça bateu numa coisa dura. Depois foi o silêncio. Pelo menos por algum tempo. *** Um cacho enorme de lâmpadas também enormes enchia o interior da barraca com uma dolorosa claridade. Mory fechou os olhos e parou de gritar. Percebeu que a maca estava sendo colocada no chão. Começou a olhar cautelosamente entre as pálpebras semiabertas e viu que se encontrava ao lado de uma armação alta, parecida com uma mesa. Em torno dela um punhado de flooths mantinha-se intensamente ocupado numa atividade que Mory não conseguiu identificar. Na perspectiva que se lhe oferecia, Mory só via três pernas cobertas de pele verde de cada vez, que se moviam elegantemente num ritmo alucinante. Chiados estridentes e gritos enchiam o ar. No meio de sua aflição Mory teve uma idéia esquisita. Achou que para o ser humano seria impossível para todo o sempre aprender a língua dos flooths.
A maca foi levantada abruptamente e colocada sobre a mesa. As ataduras caíram. Dois flooths levantaram a maca de um dos lados e fizeram a moça rolar de forma pouco suave para cima da mesa. Mory soltou um grito e abriu os braços para apoiar-se. Um braço-tenaz segurou-a violentamente no ombro e puxou-a, para que ficasse deitada novamente de costas. A maca desapareceu. Mory não estava mais amarrada, mas ao pé da mesa havia um flooth de arma apontada, que a fitava ameaçadoramente com os olhos frios e imóveis. Mory só se atreveu a fazer um movimento lento com a cabeça para ver o que havia em torno dela. O recinto em cujo interior se encontrava não passava de uma cela da barraca em forma de favo. Em uma das paredes estreitas havia uma passagem que dava para a cela seguinte. Mas o recinto que ficava atrás dessa passagem estava escassamente iluminado e Mory não conseguiu distinguir o que estava acontecendo por lá. Concentrou sua atenção nos quatro flooths que se movimentavam apressadamente em torno da mesa, separando instrumentos reluzentes que se encontravam em pequenas prateleiras dispostas em torno das paredes. De repente um ser com trajes estranhos atravessou a passagem que separava as duas celas. Em vez do uniforme de duas peças usava uma espécie de manta negra, que descia até o joelho, deixando os braços completamente livres. A vestimenta sombria, a cabeça de inseto angulosa e a expressão dos olhos rígidos, que pareciam dissecá-la — tudo isso deixou Mory apavorada. Assim mesmo procurou controlar-se. Viu a criatura negra fazer um sinal para os outros, que rolaram duas prateleiras baixas para junto da mesa. Mory lançou um olhar para os instrumentos colocados sobre as mesmas. Então compreendeu. A manta negra, os preparativos cuidadosos, os instrumentos reluzentes, a posição em que ela e os flooths se encontravam — de repente viu a ligação que havia entre as coisas. O flooth usava uma vestimenta negra numa ocasião em que seus colegas humanos prefeririam trajes impecavelmente brancos, mas já não havia a menor dúvida de quais eram suas intenções. Haviam capturado um ser estranho. E pretendiam cortá-lo para estudar sua anatomia. Naquele momento não havia nada que segurasse Mory na mesa. Foi mais rápida que o guarda e levantou-se de um salto. Saiu gritando em direção à saída, de cabeça caída e com os punhos erguidos. Alguma coisa segurou-a por trás e virou-a. Por uma fração de segundo fitou um horrível rosto de gafanhoto. Logo sentiu uma picada dolorosa na parte superior do ombro — e no momento seguinte não sentiu mais nada. *** A voz martelava na cabeça de Rhodan, arrastando-o obstinadamente de volta ao estado de consciência. — A central energética desta área foi paralisada. Os flooths destruíram propositadamente uma série de geradores. Por enquanto o veículo em que vocês se encontram não pode funcionar, e por causa da falta de energia no momento não pode ser substituído. Aqui fala Perk. A central energética desta área foi paralisada. Os flooths... Rhodan ergueu-se abruptamente. A voz silenciou no mesmo instante. Em torno dele reinava a escuridão. Rhodan tirou as pernas de baixo de um corpo frouxo e mole e levantou-se. Alguém gemeu na escuridão. Rhodan lembrou-se então da lanterninha que trazia consigo. O feixe de luz mostrou a extensão dos danos causados pela queda. O quadro de comando tinha sido arrancado dos suportes e quebrara-se completamente. As
poltronas amontoavam-se na proa. Tinham sido atiradas para a frente com o impacto. André e Bell estavam deitados junto ao monte de poltronas, contorcidos e inconscientes. O corpo debaixo do qual Perry tirara as pernas era o de Atlan. Quem saltara gemidos era Melbar Kasom, que estivera deitado entre as peças do quadro de comando e começava a levantar-se. — Acorde-os, Melbar! — ordenou Rhodan. — Não podemos perder um segundo. O acampamento dos flooths não fica longe. Podemos chegar lá a pé em alguns minutos. Aproximou-se da parede lateral. Por um instante receara que o mecanismo de abertura também pudesse depender do suprimento central de energia. Mas viu que a preocupação não tinha razão de ser. Como sempre, uma faixa estreita da parede desapareceu silenciosamente. Rhodan saiu. Avançou mais algumas centenas de metros pelo desfiladeiro à luz de sua lanterna. Chegou a um lugar em que os paredões de rocha descreviam uma curva fechada para o norte. Além da curva o desfiladeiro começava a alargar-se, e mais ao longe Rhodan viu a luminosidade vermelha das fogueiras de um acampamento. Voltou apressadamente. Melbar fizera um trabalho bem-feito. Os tripulantes do barco já estavam de pé. Ninguém sofrera ferimentos graves. Quem estava pior era Bell, que tinha um grande ferimento na testa. O sangue correra por seu rosto e coagulara, dando-lhe um aspecto grotesco. Com algumas palavras ligeiras, Rhodan explicou a situação. Concluiu da seguinte forma: — Não tenho a menor idéia de como poderemos tirar Mory das mãos dos flooths. Tudo terá de ser feito segundo as circunstâncias do momento. De qualquer maneira não nos separaremos. Se necessário, teremos de fugir do acampamento num veículo dos flooths. A direção da fuga será para o noroeste. Na direção leste-oeste as montanhas não são muito altas. Ao oeste existe uma grande planície. Se conseguirmos chegar à mesma, não teremos mais motivo para temer os flooths. De repente notou um brilho nos olhos de André. — Ah — cochichou o mutante. — O grande... como é mesmo seu nome?... o grande Kahal. Vejo-o perfeitamente...! Rhodan bateu em seu ombro com tanta força que o fez dobrar os joelhos. — Não se preocupe com os meus pensamentos! — pediu Rhodan. — Como vão os contatos com Mory? André passou a mão pela testa. — Desapareceram quase completamente — respondeu em tom abafado. — Só resta uma emanação muito débil, típica do estado de inconsciência. — E o que estamos fazendo aqui? — perguntou Rhodan, desesperado. Dali a alguns minutos deixaram para trás a curva do desfiladeiro e viram o vale com o edifício abobadado no centro. Em torno da abóbada ardiam os fogos do acampamento dos flooths. Desta vez eram pequenos, porque no vale situado nas montanhas quase não havia vegetação. A atividade no acampamento também não era tão intensa como a que Rhodan observara na noite anterior. Os flooths tinham ido “dormir” mais cedo. Só se viam alguns vultos que patrulhavam entre as fogueiras. Deviam ser os sentinelas. Rhodan contou sessenta barracas ao todo, excluídas aquelas que talvez ficassem atrás do edifício em forma de abóbada. Cerca de cinqüenta veículos de carroçaria aberta, que tinham certa semelhança com os caminhões terranos dos tempos mais antigos, estavam reunidos numa área plana a oeste do edifício. O cheiro de combustível,
semelhante ao de gasolina, ainda enchia o ar. Não devia fazer muito tempo que os flooths tinham chegado ao vale. Rhodan fitou o mutante sem dizer uma palavra. André apontou para uma barraca grande, que ficava perto do estranho edifício. — Os impulsos vieram de lá — disse em tom nervoso. — Continua inconsciente. Perry levantou o braço. — Vamos atacar — disse a meia voz. — Melbar virá comigo. Vamos entrar na barraca e tirar Mory de lá. Atlan, Bell e André, vocês nos protegerão. Ficarão na frente da barraca. Entendido? Confirmaram com um gesto. Rhodan virou-se e começou a descer para o vale. Conseguiram chegar a uma enorme pedra que ficava a vinte metros da primeira fogueira, sem que ninguém os notasse. Um dos flooths estava com a arma descansada sobre o braço e tirava lenha de uma pilha para colocá-la na fogueira. Melbar saiu da sombra da pedra. Com alguns passos enormes chegou à fogueira. O flooth levantou os olhos quando o chão começou a tremer embaixo de seus pés. Mal conseguiu soltar um fraco chiado. Melbar agarrou-o e ergueu-o. Quando o deixou cair, não havia mais nenhum sinal de vida na estranha criatura. O incidente chamou a atenção de mais duas sentinelas, que interromperam sua ronda. Rhodan, que já se encontrava ao lado de Melbar, avançou com este em direção à grande barraca. As sentinelas levantaram as armas. Gritos estridentes encheram a noite escura. Os primeiros tiros energéticos rugiram pelo ar. Atlan e Bell abriram fogo cada um contra uma sentinela, enquanto André observava o resto do acampamento. Línguas de fogo ofuscantes subiram ao céu no lugar em que pouco antes haviam estado os flooths. Mas o barulho continuou. O tumulto tomou conta do acampamento. Rhodan atingiu a parede da barraca grande. Melbar descobriu o fecho estreito que balançava molemente ao vento e puxou-o para o lado. Por um instante Rhodan sentiu-se ofuscado pela luz forte de inúmeras lâmpadas amarelas, que pendiam numa estranha disposição do teto da barraca. Mas logo compreendeu a situação. À sua frente um flooth com uma manta negra inclinava-se sobre um corpo humano despido. Outros quatro flooths mantinham-se nos fundos do recinto, preparados para obedecer prontamente às ordens do indivíduo trajado de preto. Melbar avançou com um rugido. O chão tremia enquanto atirava para o lado o flooth de manta negra. Os quatro assistentes ficaram rígidos de pavor. Melbar pegou dois deles ao mesmo tempo e arremessou-os através da parede mais próxima. Dos fundos da barraca vieram assobios estridentes e as paredes balançaram. Quanto a dois outros flooths, Melbar afastou-os com a mão como se estivesse espantando um inseto. Rhodan já soltara as ataduras que prendiam Mory na mesa de operações. O corpo da moça parecia arrebatador e desolado ao mesmo tempo em sua beleza desnuda. Rhodan levantou-o, descansou-o cuidadosamente sobre ambos os braços e saiu da barraca. O chão tremia sob seus pés, como um sinal de que Melbar o seguia de perto. Lá fora o silêncio da noite transformara-se num inferno barulhento de luzes. Os flooths tinham sido despertados. André, Bell e Atlan estavam ombro a ombro e atiravam sem parar. De todos os lados ouvia-se o matraquear dos tiros, mas o rugido incessante das armas energéticas parecia assustar os flooths a tal ponto que não tinham nem tempo para fazer pontaria. — Vamos para os carros! — gritou Rhodan. — Melbar, dê-nos cobertura! André, venha comigo!
Correu juntamente com o mutante em direção à coluna de veículos. À sua frente estava tudo em silêncio. Os flooths nem pareciam pensar na possibilidade de que o inimigo pudesse fugir justamente num de seus próprios veículos. Atlan, Bell e Melbar cobriram a retirada apressada com os feixes energéticos bem abertos disparados por suas armas. Os flooths não conseguiram avançar um passo. A maior parte de suas barracas foi consumida pelas chamas. Atlan dirigiu algumas salvas através do vale, criando uma barreira de rocha incandescente e fumegante, que os flooths por um bom tempo não poderiam atravessar. André saltou para o assento de motorista do primeiro carro que apareceu à sua frente. Rhodan empurrou o corpo flácido de Mory cuidadosamente para cima da carroçaria e colocou-o delicadamente no chão. Arrancou a jaqueta que usava e cobriu Mory. Depois saltou sobre o banco ao lado de André. O mutante já examinara, à luz de sua lanterna, os poucos comandos que saíam de um painel inclinado. — Acho que já descobri — fungou. Puxou uma alavanca. O motor pareceu tossir embaixo do capô. O veículo tremeu. André comprimiu ao acaso alguns botões, e o tossir transformou-se num zumbido uniforme. Atirando sempre, Bell, Atlan e o ertruso subiram na carroçaria do veículo. André moveu outra alavanca. O carro arrancou. Por um momento teve-se a impressão de que o motor iria falhar. Mas André encontrou um pedal no chão, que escapara à sua atenção. Pisou no mesmo e imprimiu maior rotação à máquina. O veículo disparou para oeste, sacolejando e levantando uma nuvem de pó. Dali a trinta segundos desapareceu num desfiladeiro secundário, que levava agora para noroeste. O barulho do acampamento foi diminuindo. “Se o desfiladeiro não termina de repente num paredão”, pensou Rhodan, “estaremos salvos por enquanto”. André provou ser um especialista em veículos de carga floothianos. O veículo não possuía luzes. Era um detalhe estranho, que provavelmente proporcionaria algumas informações sobre as condições de luminosidade em Flooth a quem se pusesse a refletir sobre isso. Rhodan usou sua lanterninha, dirigindo o estreito feixe de luz para o desfiladeiro. Havia muitos obstáculos que só apareciam no último instante. Mas André parecia possuir uma espécie de sexto sentido para isso. Sempre desviava o carro no último instante. O desfiladeiro começou a descer e o veículo aumentou de velocidade. Rhodan comprimiu o corpo contra o pára-brisa e agarrou a moldura metálica do mesmo com a mão esquerda para não perder o apoio. André mal tinha tempo para desviar-se dos obstáculos. Por várias vezes o veículo deu saltos de alguns metros, quando a inclinação do terreno se tornava mais acentuada. Melbar, que continuava sobre a carroçaria, encostara-se a Mory, para evitar que ela caísse do veículo. Foi uma viagem infernal. Rhodan ainda sentia nos ouvidos o eco forte do ruído do motor, projetado pelas rochas, quando já tinham deixado as montanhas para trás e o carro se deslocava sobre a ampla planície que ficava a noroeste. Não se via o menor sinal dos flooths. Isso não significava muita coisa. A luminosidade espalhada pelas estrelas não permitia que se reconhecesse o que estava acontecendo junto às montanhas que ficavam ao sul. Mas Rhodan não tinha dúvida de que tinham uma dianteira suficiente para poderem permitir-se uma ligeira pausa. Cuidou de Mory, que foi recuperando os sentidos aos poucos. Mas parecia que ainda não estava compreendendo o que acontecia ao seu redor. A experiência pela qual
passara no acampamento dos flooths devia ter-lhe causado um tal choque que levaria algum tempo para recuperar-se. André foi incumbido de cuidar de Mory e facilitar-lhe o retorno ao mundo da realidade. Tinham uma luta pela frente e a situação era ameaçadora, mesmo sem a presença de um paciente que precisava de seus cuidados. O carro voltou a ser colocado em movimento. Desta vez Bell sentou ao volante. Rhodan começou a relatar aos companheiros o que sabia a respeito do grande Kahal. André era o único que já sabia do que se tratava, e nas próximas horas seria conveniente que todos soubessem o que os esperava. As horas foram passando e o céu começou a iluminar-se. A beleza e o esplendor da esfera amarela de Orbon subiu no horizonte e derramou sua luz suave sobre a paisagem. As pontas das seis pirâmides apareceram a oeste. Estas pirâmides formavam o grande Kahal. Pelos cálculos de Rhodan, as mesmas deviam ficar a cerca de trinta quilômetros de distância. Porém mais uma coisa apareceu. Era uma fila extensa de pontos escuros que se aproximavam rapidamente, vindos de sudeste. A brisa fresca trouxe o ruído dos motores antiquados e os estalos das carroçarias, quando Rhodan fez o veículo parar por trinta segundos. Os flooths não haviam desistido da perseguição. Estavam atacando! *** Dali a quarenta e cinco minutos Rhodan percebeu que errara nos cálculos. Os veículos dos flooths deviam possuir uma marcha especial que lhes imprimia maior velocidade, marcha esta que os seres-inseto conheciam, mas ele não. A distância entre o veículo isolado e a fila ampla dos perseguidores diminuíra constantemente nos últimos minutos, por mais que Rhodan se esforçasse para aumentar a velocidade. Já podia prever que atingiria o círculo mortal do grande Kahal aproximadamente ao mesmo tempo que os flooths. Nos últimos trinta minutos Mory se recuperara muito bem. Sentada no banco do motorista ao lado de Rhodan, ela o mantinha informado a que distância se encontravam dos seus perseguidores. Sua única vestimenta continuava a ser a jaqueta de Rhodan, mas no momento do perigo nem ela nem os homens se importaram com isso. Bell, Atlan e o gigante Melbar estavam sentados na parte traseira da carroçaria, à espera do momento em que os flooths se colocassem ao alcance de suas armas energéticas. André esforçava-se para estabelecer contato com Perk. Não conseguiu, e isso representou mais um revés com o qual Rhodan não calculara. Começou a compreender que mesmo o contato com Perk não era estabelecido unicamente por meio das energias mentais, mas também com os recursos energéticos. Como o suprimento de energia fora interrompido, Perk se encontrava fora de seu alcance. Rhodan sentiu-se dominado por uma raiva fria e desesperada. À sua frente, a uns quinhentos metros de distância, começava o círculo mortal do grande Kahal. As gigantescas pirâmides, que em outras circunstâncias seriam um quadro fascinante e venerável, pareciam monstros vermelhos que os espreitavam ameaçadoramente. Mais quinhentos metros, e a viagem chegaria ao fim. O que vinha depois dependia de quais fossem as armas de maior alcance — os fuzis de projéteis dos flooths ou as armas energéticas de produção terrana. A pergunta encontrou resposta mais depressa do que Rhodan esperara. Ouviu um estalo bem à sua frente. Fechou instintivamente os olhos e recuou. Uma coisa afiada
arranhou seu rosto. Levantou os olhos e notou que o vento morno batia em seu rosto. O pára-brisa tinha desaparecido. Bell gritou da carroceria: — Abriram fogo contra nós! Droga! Conseguem fazer boa pontaria a dois quilômetros de distância. Rhodan dirigiu o carro para o lado e parou a cem metros do círculo da morte. A batalha estava praticamente perdida antes que realmente tivesse começado. As armas energéticas eram infinitamente superiores a qualquer arma antiquada no poder de fogo, mas não no alcance. A única coisa que os flooths precisavam fazer era parar no lugar em que estavam, pois só assim poderiam abater os terranos um por um. — Desçam do carro e protejam-se! — gritou Rhodan. Dali a alguns segundos estavam abrigados atrás das grandes rodas do veículo. Os flooths continuavam a aproximar-se. O rugido e o matraquear dos motores misturava-se à metralha ininterrupta das salvas de fuzil. Nuvens de poeira levantaram-se e tufos de capim foram arrancados e atirados para o alto. Perry não deu atenção ao que se passava. Encostado a um dos pneus de plástico, ficou de olhos fechados. Perk! Por que Perk não respondia? Será que não sabia que estavam em perigo? Ou será que isso não lhe interessava? “Precisamos de uma saída, Perk! Um túnel que atravesse o grande Kahal. Um túnel igual ao que você criou num instante no interior de sua espaçonave para submeterse à prova. Ajude-nos, Perk, senão você também estará perdido!”, pensou angustiado. Ouviu-se um rugido furioso vindo do lado. Melbar saíra demais de trás de seu abrigo e levara um tiro no ombro esquerdo. Os flooths estavam apenas a um quilômetro de distância e ainda não haviam reduzido a velocidade. Dentro de alguns segundos estariam ao alcance das armas energéticas. Rhodan não percebeu nada. “Ajude, Perk! Um túnel que atravesse o grande Kahal! Só assim poderemos destruir os flooths. Um túnel ou outra coisa! Ajude, Perk!”, insistiu Rhodan, em seus pensamentos. De repente ouviu-se uma voz. — Olhe, Rhodan! Era uma voz estridente e histérica. Não era a voz de Perk. Perry sacudiu o corpo. — Rhodan, veja! Era a voz de Mory. Rhodan abriu os olhos. Perk não respondera. Então Rhodan viu. Uma faixa estreita de terra coberta de capim, que devia ter uns cinqüenta metros de largura, atravessava em linha reta o grande Kahal, passando por cima do círculo da morte. A superfície lisa do círculo acabara de dividir-se o bastante para dar passagem a uma coluna de oito, ou dez carros. Perry compreendeu imediatamente. Não fora criado nenhum túnel, mas em compensação aparecera um caminho. Perk acabara por ouvi-lo. — Para o carro! — gritou com a voz estridente. — Vamos sair daqui! Ninguém tinha até então subido tão depressa num caminhão. Melbar, que se enfurecera com a ferida dolorosa no ombro, abriu o fogo energético e interrompeu a marcha do primeiro veículo dos flooths. Uma nuvem de gases incandescentes levantouse. O capim pegou fogo. Rhodan colocou o carro em movimento. O mesmo saiu aos solavancos em direção ao círculo da morte.
Quando levou o carro para dentro da faixa estreita, Perry prendeu a respiração. Era possível que não houvesse nenhuma trilha. Quem sabe se a luz colorida não surgiria em torno deles e acabaria por destruí-los? Porém não aconteceu nada. O carro atravessou o santuário jogando violentamente. As primeiras duas pirâmides foram ficando para trás, depois mais duas. Mais tarde Rhodan não seria capaz de dizer quanto tempo demorara a viagem através do círculo. Com a velocidade que o veículo devolvia não devia ter demorado mais que alguns minutos. Mas estes minutos pareciam uma eternidade. Quando atingiu a parte da planície situada além do santuário, parou. Olhou para trás e viu os flooths reagruparem seus carros e penetrarem em fila de dez na faixa coberta de capim. Os veículos viajavam bem próximos uns aos outros. Avançaram vertiginosamente pelo círculo da morte, cegados pela ânsia da perseguição. Rhodan deixou cair os ombros. — Pode apertar o botão, Perk — disse. Até parecia que alguém tinha colocado uma máquina pesada situada nas profundezas. O chão tremeu e um forte zumbido encheu o ar. Cortinas de luz nebulosa subiram nas bordas do círculo da morte, precipitaram-se para o alto e deslocaram-se em direção ao centro. Os flooths não pareciam perceber nada. A névoa luminosa tornou-se mais intensa enquanto avançava de todos os lados em direção à faixa de capim. Depois de algum tempo a claridade colorida tornou-se tão ofuscante que Rhodan teve de fechar os olhos. Finalmente os flooths viram o que estava avançando sobre eles. A faixa de capim desaparecera quase completamente. Só no lugar em que se deslocavam os carros dos perseguidores é que foi conservado um pequeno trecho. Assustados, os flooths corriam nervosamente de um lado para outro. A luz começou a envolver os veículos. Um grande facho colorido subiu a alguns quilômetros, ficou tremendo por alguns segundos sobre o centro do grande santuário e apagou-se. As névoas luminosas começaram a encolher-se e desapareceram. O grande Kahal voltara a ter o mesmo aspecto de antes. Não havia nenhuma faixa de capim. E nenhum flooth... *** Dali a dez dias o perigo da invasão tinha sido afastado definitivamente. Os terranos reiniciaram suas atividades num lugar em que o suprimento de energia ainda funcionava. Os exércitos dos flooths foram atacados. Em parte foram destruídos e em parte debandaram. Só restaram alguns flooths, tão preocupados em permanecer vivos que não poderiam representar perigo para ninguém. Rhodan cumprira sua promessa. Ele e seus companheiros voltaram à casa de Perk. Este mostrou-se impressionado. Desfiou as palavras mais exaltadas que conseguia encontrar em sua linguagem mental. Rhodan pediu que colocassem um hiper-transmissor à sua disposição, pois estava ansioso para enviar uma mensagem à Terra. Mas por mais que se esforçasse para fazer com que Perk o entendesse, não conseguiu nada. Os velhos kahalenses deviam ter possuído hiper-transmissores. Mas Perk não sabia o que era isso, e muito menos seria capaz de dizer onde poderia ser encontrado um aparelho desse tipo.
Mas fez outra sugestão. Os terranos poderiam usar a espaçonave que os tinha trazido a Kahalo para voltar ao seu mundo. Rhodan não poderia esperar mais do que isso. Aceitou a oferta, e os preparativos para a viagem de volta foram iniciados imediatamente. Dali a meio dia a nave estava viajando pelo espaço. A bordo da mesma encontravam-se cinco terranos e um arcônida, que depois de muito tempo tiveram pela primeira vez a sensação de que tudo iria acabar bem. As mentes mais simples deleitar-seiam com o fato de que uma odisséia cansativa e perigosa, que os tinha levado através de milhares de anos-luz, estava chegando ao fim. Os espíritos mais exigentes alegravam-se ainda mais com o fato de que os êxitos que acabaram por alcançar reverteriam em benefício da Terra. Rhodan já preparara sua agenda, que incluía a visita de um grupo de naves terranas a Kahalo num futuro muito próximo. Era necessário desvendar os segredos da tecnologia kahalense, principalmente o mistério que cercava o grande Kahal. Só um dos passageiros da grande nave cilíndrica não estava inteiramente satisfeito com seu destino. Era Mory Abro. Há muito conhecia o papel que Perry Rhodan desempenhava no grande palco da política galáctica. Até então não precisara quebrar a cabeça com isso. Rhodan andava de um lado para outro, que nem ela, e não havia diferenças de classe ou regras sociais que tivessem de ser observadas. Mas agora estava a caminho do planeta Terra. Assim que pisasse em solo terrano, as coisas tomariam outro rumo. *** Devemos mencionar um acontecimento de que os dirigentes terranos só tomaram conhecimento mais tarde. Logo após a partida da espaçonave quase toda a classe dirigente do reino de Kahal reuniu-se em Kahalo, em casa de seu membro mais antigo, Hant. Os participantes da reunião viram um relato cinematográfico elaborado pelo sistema automático de vigilância, que mostrou os acontecimentos que se tinham desenrolado por ocasião da destruição de um destacamento das tropas floothianas no grande Kahal. Não havia a menor dúvida de que naquele momento não havia nenhum contato mecanotelepático entre os seis forasteiros que haviam atraído os flooths para a armadilha e seu guardião Perk. Os forasteiros só podiam contar com seus próprios recursos. Apesar disso conseguiram uma coisa que nos últimos milênios nem mesmo um kahalense conseguira: levaram o grande Kahal a construir para eles uma ponte que levava ao círculo da morte. Não hesitaram em usar essa ponte. Até pareciam achar natural que o grande Kahal estivesse a seu serviço. Com muita veneração — e também com algum temor — os kahalenses procuraram avaliar a imensa energia espiritual que devia estar encerrada nos forasteiros e lhes dava o poder de submeter o grande Kahal aos seus desejos. Afinal, por milênios incontáveis o santuário vivera sua própria vida, sem nunca obedecer a quem quer que fosse.
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Os desaparecidos travaram conhecimento com os bigheads — criaturas anãs, que parecem ter esquecido quase tudo, para ainda poderem utilizar a supertecnologia que têm a seu serviço. Os bigheads dispensam os terranos depois de estes lhes terem prestado os serviços prometidos, mas a espaçonave automática não os leva à Terra conforme esperavam, mas a um ponto ainda mais distante, onde Os Mortos-Vivos estão à espera... Os Mortos-Vivos — título do próximo volume da série Perry Rhodan.