P-117 - Frota Espacial Roubada - Clark Darlton

  • November 2019
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  • Words: 29,409
  • Pages: 62
(P-117)

FROTA ESPACIAL ROUBADA Everton Autor

CLARK DARLTON

Tradução

RICHARD PAUL NETO

O grande golpe dos ladrões cósmicos — a subtração de 992 espaçonaves.

A época desastrosa de Thomas Cardif chegou ao fim. Perry Rhodan voltou. Vinte dias já se passaram desde o regresso do verdadeiro administrador, e nestes vinte dias Perry Rhodan praticamente não teve descanso. As conferências sucedem-se. Rhodan tem muitos problemas a resolver, muitas dúvidas a esclarecer, muitos males a reparar. Precisa corrigir os erros que Cardif, o usurpador, cometeu durante sua ausência. Não é de admirar que, depois de concluído o trabalho e superadas as canseiras, o administrador entre de férias para descansar. Mas acontece que o trabalho parece não estar findo. Uma mensagem de Atlan arranca Rhodan de seu merecido descanso. O imperador volta a falar a Perry sobre as mil espaçonaves robotizadas do último tipo que cedera aos acônidas na época em que Cardif espalhou o desassossego em toda a Via Láctea. Perry Rhodan conhece o perigo que essas naves — entre as quais há vinte supergigantes da classe Império — podem representar nas mãos dos acônidas, que são uma raça ativa e inteligente. Por isso elabora, juntamente com Atlan, o plano que leva à operação denominada Frota Roubada.

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Personagens Principais: = = = = = = =

Estanislau Jakobowski e Axel Wiener — Representantes do Império Solar no mundo central dos acônidas. Auris de Las-Toor — Uma mulher bela e inteligente. Atlan — Imperador de Árcon e amigo de Perry Rhodan. Perry Rhodan — O administrador que age como ladrão de frotas. Gucky e Toureiro — Um abandona um monte de cenouras enquanto o outro rouba cápsulas de comando. Morkat — Um passageiro involuntário que não se lembra das suas experiências.

— ...e para mim um copo de leite — completou Gucky, o rato-castor, e sorriu para o garçom de fraque branco, exibindo o dente roedor. — Quero morno. O garçom do Clube de Regatas de Goshun não se abalou nem um pouco diante da idéia de ter que servir um copo de leite. Sabia quem era Gucky e conhecia seus hábitos. — Pois não — disse e saiu andando em direção ao balcão. Gucky parecia radiante. Olhou em torno com uma expressão de triunfo. — Esse sujeito é muito educado — constatou, tirando do bolso do uniforme uma cenoura já roída. — Mas você, não — disse Perry Rhodan, numa repreensão fria. — Neste clube não se aprecia que alguém traga seus próprios alimentos. Como é que a associação poderia sustentar-se se todos agissem assim? Gucky mordeu gostosamente a cenoura. — Será que eu sou igual a todo mundo? — perguntou um tanto chocado e lançou um olhar sonhador para as velas brancas que singravam a superfície azul do lago muito próximo. O hotel do clube ficava numa elevação que proporcionava uma vista excelente. O lago salgado que ficava no antigo deserto de Gobi não tinha nada em comum com as águas que ali existiram em séculos passados. Face à proximidade de Terrânia, a grande metrópole mundial, o lago salgado transformara-se num centro de recreação de primeira categoria. Em suas margens viam-se as casas de fim de semana dos citadinos que apreciavam a natureza. De noite — e às vezes mesmo de tarde, como estava acontecendo naquele dia — as pessoas costumavam encontrar-se no clube. Aquelas poucas horas de descanso faziam muito bem a Perry Rhodan. Os últimos vinte dias poderiam ter sido tudo, menos agradáveis. Tivera de pôr em ordem a “herança” de seu filho falecido, Thomas Cardif — e conseguira. Rhodan tivera de realizar conferências diárias, a fim de ir corrigindo os erros cometidos pelo traidor enquanto este ocupara seu lugar. A revolta da Frota Espacial, que já se esboçava, fora abafada no nascedouro assim que se soubera que toda a série de ordens absurdas, que abalara a estrutura do Império Solar, não provinha de Rhodan, mas de seu sósia Cardif. Os membros do governo que haviam sido presos foram libertados e os terranos retirados de Árcon foram reinvestidos em seus cargos. Rhodan expediu mensagens de rádio dirigidas a todas as inteligências da Galáxia, a fim de informá-las sobre a seqüência dos acontecimentos trágicos e sobre a morte de seu filho. Não deixou de mencionar que a mobilização da Frota, ordenada por Cardif, seria conservada sem alterações.

E também se manteve a legislação de emergência, que antes autorizara Cardif e agora autorizava Rhodan a adotar, segundo seu critério, decisões da maior importância, sempre que a situação o exigisse. Os aspectos mais importantes haviam sido resolvidos. Aquele fim de semana estava sendo dedicado ao repouso, pois, nos vinte dias anteriores, Rhodan quase não tivera descanso e muitas vezes sua presença era exigida para tomar decisões importantíssimas quando fazia apenas umas poucas horas que se recolhera para dormir. Não havia melhor local de repouso que o lago de Goshun, que ficava a poucos quilômetros do centro da Administração do Império Solar. Um planador gastaria apenas alguns minutos para levar Rhodan a Terrânia. Reginald Bell esticou as pernas. Deleitava-se com as horas em que podia ficar a sós com seu amigo Rhodan. Era muito raro que o administrador e chefe de governo da Terra tivesse tempo para dedicar-se a si mesmo e ao velho amigo. E era inevitável que nessas oportunidades Gucky também estivesse presente. Afinal, sua casa de fim de semana ficava bem ao lado da de Bell, e, além disso, era pelo menos o segundo melhor amigo de Rhodan, embora não fosse um ser humano, mas apenas um rato-castor. — Você deveria passar a consumir legumes mais nobres — disse Bell, em tom condescendente e viu o resto da cenoura desaparecer pela boca de Gucky. — Afinal, um feixe de aspargos ficaria melhor à sua posição de membro mais competente do Exército de Mutantes. Gucky bocejou de tédio. — Os humanos são criaturas estranhas. Comem alcachofras com ostras porque acham que isso é elegante. Não é que achem gostoso; nada disso. Gosto de aspargos, mas não é fácil guardá-los no bolso. E acontece que me delicio com cenouras. Por isso as como. Então, gorducho, tem algum argumento a contrapor a isso? Bell sentia-se preguiçoso demais para discutir. Deixou-se envolver pelos raios de sol. E justamente naquele momento o garçom trouxe as bebidas. Gucky pegou o copo e experimentou o leite. Agradeceu ao garçom. — Está morninho — confirmou e espreguiçou-se de forma pouco distinta. Rhodan deleitou-se com a paz daqueles momentos. No clube todos o conheciam, mas ninguém se interessava por ele. Era um homem como qualquer outro, e todos respeitavam seu desejo de descansar. O Sol caminhava para o oeste, mas o calor continuava; quase chegava a ser demais. As pessoas que gostavam de tomar banho no lago andavam por suas margens. A água do lago salgado sustentava os corpos, e até mesmo a pessoa que não soubesse nadar poderia penetrar sem o menor risco nos trechos em que as águas eram mais profundas. Não seria nada fácil morrer afogado por ali, e para praticar o mergulho precisava-se recorrer a pesados cintos de chumbo. — Ainda bem que tudo passou — disse Bell num cansaço agradável e recostou-se ainda mais, depois de ter tomado um gole de cerveja. — Tudo se arranjará e as coisas voltarão a ser como antes. Nada está perdido. Rhodan parecia olhar para além disso. — Isso mesmo — confirmou. — Nada está perdido. Tenho de fazer de conta que nunca tive um filho... Na verdade, foi isso mesmo. Ninguém há de dizer que Cardif parecia ser meu filho. Não há dúvida de que por fora se parecia comigo. Mas no resto éramos totalmente diferentes. Cardif também não tinha qualquer semelhança com a mãe.

Dois jovens oficiais que envergavam o uniforme de passeio da Frota Espacial passaram e cumprimentaram com uma respeitosa discrição. Rhodan retribuiu o cumprimento com um gesto amável. — Atlan deve sentir-se satisfeito por saber que pode contar novamente conosco — disse Bell. — O que seria do Império de Árcon se não fosse o auxílio da Terra? Rhodan pôs-se a refletir. Fechou os olhos por um instante e depois fitou o céu sem nuvens. — Toda vez que penso em Atlan tenho a impressão de que nos esquecemos de alguma coisa. Houve algo com Atlan que tem certa ligação com Cardif, mas por mais que me esforce não consigo lembrar-me. É bem possível que se trate de coisa sem importância. De qualquer maneira, era espantoso que, apesar de possuir uma memória que quase chegava a ser fotográfica, Rhodan tivesse esquecido alguma coisa. Bell tinha certeza de que não se tratava propriamente de um esquecimento, mas de falta de atenção. — Se for uma coisa importante, Atlan não deixará de lembrar-se, Perry. Vamos velejar um pouco? Meu barco está preparado. — Que bom! — exclamou Gucky, muito feliz, e esvaziou seu copo de leite. — Bell, queira ter a gentileza de pagar a conta. Rhodan notou a expressão de perplexidade no rosto do amigo e chamou o garçom. Dali a alguns minutos levantaram-se e foram descendo em direção ao lago. O pequeno barco a vela estava guardado no porto. O vento era muito fraco, mas os dois homens e Gucky bem que gostaram disso. Queriam velejar para repousar, e não queriam que o barco corresse perigo de adernar a qualquer momento. O barco foi-se afastando lentamente da margem. Rhodan estava estendido na parte dianteira do convés e deleitava-se com a calma. Bell cuidava das velas e do leme. Gucky revistou a pequena cabina, à procura de alguma coisa comestível. O quadro não poderia ser mais tranqüilo. Gucky saiu da cabina. Pôs-se a resmungar: — Não encontrei nada. Apenas há conservas e bebidas alcoólicas. Rhodan levantou os olhos para o céu e soltou um suspiro. Ninguém seria capaz de imaginar como lhe fazia bem esta hora, durante a qual não tinha nada a fazer, a não ser manter o equilíbrio em meio aos balanços leves do barco. Fechava os olhos sempre que o Sol entrava no campo de visão. — Vamos nadar um pouco, baixinho — sugeriu Bell e prendeu o leme. — Vou tirar estas roupas. Dali a cinco minutos os dois amigos brincavam nas águas. Rhodan deitou de barriga para baixo e olhou-os. Sempre que Gucky mergulhava nas águas límpidas, com o auxílio do cinto de chumbo, não tinha a menor dificuldade de acompanhá-lo com a vista. Bell preferiu ficar deitado sobre a água, deixando-se tostar pelo sol. De repente um leve zumbido interrompeu o idílio. Rhodan virou-se e levantou o braço. Com a outra mão comprimiu o botão do pequeno aparelho de múltiplas finalidades. — Aqui fala Rhodan. Quem é? — É de Terrânia. Recebemos uma mensagem de hiper-rádio. Árcon deseja uma ligação direta. Quer que transfira a onda, ou prefere comparecer até a sala de rádio? Rhodan refletiu apenas durante dois segundos. Demoraria demais para chegar a Terrânia. Teria que desistir da imagem, contentando-se com a transmissão acústica. — Transfira a ligação para meu aparelho.

Bell teve sua atenção despertada. Aproximou-se do barco. Gucky emergiu das águas. Era telepata e captara os pensamentos de Rhodan mesmo submerso, motivo por que já sabia do que se tratava. Rhodan aumentou o volume do pequeno receptor. Esperou. — Será que é Atlan? — perguntou Bell, subindo a bordo. A água que lhe escorria do corpo acumulou-se junto aos pés. Dali a pouco estava dentro duma poça. Gucky continuou boiando e deixou que a correnteza o carregasse. Não dependia da palavra falada. O vento parara quase por completo. Era tudo paz e sossego. — Quem poderia ser? — disse Rhodan. — O que será que ele quer? Tomara que não seja nada de sério. — Aqui fala Árcon! — disse subitamente a voz que saía do pequeno aparelho que Rhodan trazia no pulso. — É a central de hiper-rádio de Árcon. Gonozal VIII deseja falar com Perry Rhodan, Administrador do Império Solar. Gonozal VIII era o nome oficial que Atlan passara a usar desde que se tornara Imperador de Árcon. Depois de tanto tempo o arcônida imortal, que vivera quase dez mil anos na Terra sem que ninguém descobrisse sua identidade, voltara ao seu império estelar, a fim de assumir a herança dos antepassados. A Terra não poderia desejar um amigo e aliado melhor que ele. — Aqui é Rhodan. Pode fazer a ligação. O fato de que as ondas de rádio atravessavam numa fração de segundo a distância de trinta e quatro mil anos-luz e, reforçadas pelas estações retransmissoras, faziam sair aquela voz do minúsculo receptor, mostrava a evolução ocorrida nos últimos tempos. — Você me ouve, Perry? Por que sua imagem não aparece na tela? — Não estou na sala de rádio, Atlan. Teremos de contentar-nos com o som. O que houve? — Na verdade, não houve nada — respondeu Atlan. Bell soltou um suspiro de alívio e voltou para junto do leme, modificando a rota do barco. Com o vento contrário levariam mais de uma hora para voltar ao pequeno cais. O sol já tocava as cumeeiras das montanhas distantes. — É bom ouvir sua voz — respondeu Rhodan, que também se sentia aliviado, e descontraiu-se. Raramente uma hipermensagem tinha um conteúdo inocente. — Acho que você está interessado em saber o que aconteceu na Terra nestes últimos tempos. — Os terranos que voltaram para cá já me informaram sobre isso. Você teve sorte por eu ter conseguido libertá-lo e porque Cardif foi morto. De qualquer maneira, você deve agradecer a ele por estar de posse do ativador celular. Com isso você se tornou imortal que nem eu. — Os agradecimentos devem ser dirigidos ao Ser de Peregrino — retificou Rhodan, em tom indiferente. — É bem verdade que sua existência quase me custou a vida. Mas acho que já está na hora de deixarmos para trás o passado e pensarmos no que vamos fazer com o futuro. Os problemas criados por Cardif já foram resolvidos. Afastamos um grande perigo. Vamos... — Espere aí — interrompeu Atlan. Uma ligeira preocupação parecia vibrar em sua voz. — Nem todos os problemas foram resolvidos. Não se esqueça dos acônidas. Rhodan não compreendeu logo. — Os acônidas não representam nenhum problema, Atlan. Afinal, temos um tratado com eles e instalamos um entreposto comercial em seu planeta central, chamado Sphinx. Não se atreverão a fazer qualquer coisa contra mim ou contra você, pois não possuem

nenhuma frota espacial, mas apenas os transmissores de matéria. É bem verdade que são os ancestrais dos atuais arcônidas, mas nem por isso... Mais uma vez Atlan o interrompeu. — Pois é aí que está, Rhodan! Você diz que não têm frota espacial. É claro que os acônidas já possuem sua frota espacial. São exatamente mil unidades modernas. Tive de entregá-las a Ácon, pois, diante do procedimento de Cardif, não tive outra alternativa. Bell ouvira as palavras de Atlan. Parou em meio ao movimento e olhou para Rhodan. Teve a impressão de que o bronzeado sadio desaparecia da face do amigo, dando lugar a uma palidez mortal. — Mil naves... meu Deus! Por alguns segundos reinou o silêncio. Finalmente Atlan disse: — Isso mesmo. E entre elas há vinte gigantes da classe Império. É uma força nada desprezível, que representa a pior herança que Cardif nos poderia ter deixado. — Quase que me esqueço disso! — observou Rhodan, em tom de autorecriminação. Sentia certo alívio porque a busca infindável em sua memória chegara ao fim. Já sabia o que tanto martirizara seu subconsciente nesses últimos dias. — O que vamos fazer, Atlan? — O que vamos fazer? Em hipótese alguma devemos violar o tratado e recuperar a frota pela força. Ninguém mais confiaria em nós. Devemos encontrar outro caminho de pôr fora de ação a frota dos acônidas. — Vamos encontrar-nos, Atlan. Traga os dados exatos sobre as naves entregues aos acônidas. Acharemos um meio de trazê-las de volta sem desrespeitar o tratado. Daqui a cinco horas meu centro de rádio lhe fornecerá as coordenadas exatas do local de encontro. Poderíamos marcá-lo para o dia dez de novembro do calendário terrano. — Muito bem, Perry. Estarei lá. Vou levar os dados; é bom que você leve uma boa idéia. — Combinado, Atlan. Felicidades até lá. A ligação foi interrompida. Rhodan desligou o receptor e olhou para Bell. — Receio que mais uma vez nossas férias estejam chegando ao fim. Temos que fazer nossos preparativos — olhou para as velas, que pendiam frouxamente do mastro. — Bem, acho que contra isto não podemos fazer nada. — Ainda bem — piou Gucky em tom satisfeito e mergulhou por baixo do barco, para voltar à tona do outro lado. — Chegarei ao cais antes que vocês estejam lá com essa canoa preguiçosa. Bell não se impressionou com isso. Prendeu o leme e foi ao lugar em que se encontrava Rhodan. — Você acredita mesmo que os acônidas com suas mil naves poderão representar um perigo para nós? Rhodan fez que sim. — Com a avançada tecnologia de que dispõem bem que podem... se nós os deixarmos em paz. Mas é o que não vamos fazer. Durante o resto da confortável viagem envolveu-se num silêncio total. *** No dia dez de novembro do ano 2.103, Atlan e Rhodan encontraram-se num planeta quase desabitado, situado entre a Terra e Árcon. Sentiam-se satisfeitos por não terem de submeter-se às cerimônias pomposas que a tradição mandava realizar em Árcon. Aqui

estavam praticamente sós. A base arcônida era guarnecida quase exclusivamente por robôs, e os nativos não demonstravam o menor interesse pelos desconhecidos visitantes. As duas naves estavam pousadas lado a lado no porto espacial provisório. A atmosfera do planeta era semelhante à de Árcon e da Terra. Por isso os dois homens saíram de suas naves, acompanhados por dois robôs de combate, e encontraram-se ao ar livre. Caminharam um pedaço, em direção ao rio próximo, e sentaram numa colina coberta de capim. O sol avermelhado estava quase a pino, mas não fazia muito calor. Uma brisa agradável soprava do leste. Raras nuvens desfilavam sob o céu rosado. Atlan soltou um suspiro e disse: — Você nem imagina como ansiei por uma solidão agradável como esta, Perry. Um rio, um campo coberto de grama e nada de seres humanos. Em Árcon nunca se consegue encontrar uma coisa destas. A guarda pessoal não tira os olhos da gente por um segundo que seja. A gente vive tropeçando sobre os cortesões e tem de ouvir suas frases feitas. Mas aqui... Calou-se e contemplou o rio. A água deslizava graciosamente. Era límpida e transparente. Não havia indústrias que a poluíssem. Naquele planeta não havia uma única fábrica. — Comigo as coisas não são tão ruins assim — disse Rhodan, lembrando-se do lago de Goshun, situado nas proximidades de Terrânia. — Quando resolvermos encontrar-nos, devemos escolher um lugar como este, afastado de todas as solenidades. Só então podemos ser aquilo que a natureza fez de nós: seres humanos, criaturas inteligentes e ligadas à natureza. Fico-lhe muito grato, Atlan, por ter concordado com a escolha do lugar de encontro. — Está bem. Trouxe os dados. Estão com meu robô. Já pensou sobre a maneira de levarmos os acônidas a devolver-nos as espaçonaves? — Andei pensando sobre isso, mas não cheguei a nenhuma conclusão. Que motivo plausível poderíamos apresentar aos acônidas para formular uma pretensão como esta? Não podemos dizer-lhes que estamos com medo. — Vamos invocar Cardif. Diremos que o tratado foi concluído sob um falso pressuposto. Atlan fez um sinal para o robô que o acompanhara. O monstro metálico aproximouse e entregou uma pasta ao arcônida. Depois disso retirou-se e examinou o terreno. Sua tarefa era esta. Atlan e Rhodan não poderiam desejar melhor guarda pessoal que a formada pelos dois robôs. — Isto é uma relação das naves fornecidas aos acônidas — disse Atlan, retirando uma pasta de folha metálica e entregando-a a Rhodan. — Inclui todos os detalhes técnicos. Poderei fornecer-lhe quaisquer outros que ainda desejar. Estou muito bem informado sobre o assunto, pois o mesmo causou-me bastante aborrecimento. Rhodan pegou a pasta e abriu-a. Já conhecia os dados técnicos, que não adiantavam nada. Apesar disso estudou a lista, enquanto Atlan se deixava cair na grama macia e fechava os olhos. Via-se que precisava muito desse tipo tão simples de descanso. Dali a dez minutos Rhodan fechou o mapa. — Posso ficar com isto? — perguntou. Atlan continuou na mesma posição. — Naturalmente. Por quê? Rhodan também se deitou na grama. Os dois homens mais poderosos do Universo estavam deitados num prado de um planeta quase desconhecido. Era uma situação tão estranha que Rhodan não pôde deixar de sorrir; foi um sorriso alegre e satisfeito.

— Porque tive uma idéia. Acho que ainda está lembrado do ataque temporal dos acônidas. Desligaram o centro de computação e com isso quase conseguiram destruir Árcon. Todas as instalações comandadas pelo centro de computação entraram em pane, inclusive as frotas espaciais robotizadas. — Sei. Mas o que isso tem que ver com o nosso problema? — Procure inverter a situação, Atlan. Atlan abriu os olhos. Deitou-se de lado para poder olhar para Rhodan. — Não compreendo, Perry. Rhodan soltou um suspiro. — É simples. Pelo que vi na lista, você enviou aos acônidas uma frota composta exclusivamente de unidades que antigamente eram tripuladas por robôs. Em outras palavras, as naves obedeciam ao centro de computação de Árcon. Correto? — Se é o que está na lista, deve ser isso. — Muito bem. Acredito que os acônidas saibam disso. — É claro que sabem. E fizeram logo suas adaptações. Rhodan assustou-se. Ergueu-se sobre os braços. — Adaptações? Que adaptações? — Pois é simples. Pretendem tripular as naves com seus homens. Por isso certos comandos robotizados devem ser eliminados. Na verdade não se trata propriamente de adaptação, mas antes de ligação direta de diversos sistemas de controle. Os elementos capsulares são retirados do sistema de acionamento, e com isso os computadores de bordo são postos fora de ação. Para que estes possam voltar a entrar em funcionamento, as cápsulas, que são do tamanho de um dedo, devem ser recolocadas. — Ah, então é só isso. — Depois de refletir um pouco, Rhodan perguntou: — Os acônidas pretendiam fazer outro tipo de adaptação? — Só pretendiam servir às adaptações destinadas a tornar as naves mais confortáveis. É claro que uma nave comandada por robôs não possui camarotes residenciais e outros luxos desse tipo. Naturalmente os acônidas não querem dispensar esse tipo de conforto. Há lugar de sobra para isso. — E as cápsulas? Eles as devolveram? Atlan abanou a cabeça. — É claro que não. Afinal, não poderíamos fazer nada com elas. Não sei o que fizeram com isso — fitou Rhodan. — Por que faz estas perguntas? Tem alguma idéia? — Tenho, sim. Como já disse, podemos reconstituir certo acontecimento em sentido contrário. Há algum tempo os acônidas colocaram-nos fora de ação porque desligaram nosso centro de computação. Desta vez nós lhes daremos uma surpresa, acionando suas naves robotizadas. Compreendeu o que quero dizer? — Ah — disse Atlan e sentou-se na grama. De repente sorriu. — A idéia não é nada má. E mais tarde ninguém saberá como aconteceu. Os acônidas não sabem lidar com naves robotizadas, não é isso? De qualquer maneira, nós não teremos a menor culpa se perderem sua frota porque algum comando automático se descontrolou... No entanto, não devemos subestimá-los. E como é que pretende preparar toda uma frota que se encontra em outro planeta? Não se esqueça de que em Ácon não poderemos mover-nos com a liberdade que seria desejável para levar avante um plano desses. Seremos mantidos sob observação. Não tirarão os olhos de nós por um instante. Em todo sistema de acionamento de cada nave deve ser instalado um microcomando. E isso só pode ser feito por um especialista, não por um dos seus teleportadores, se é que você pensa nisso. — Os teleportadores poderão levar um especialista para qualquer lugar, inclusive para dentro de uma nave. Conseguiremos. Mas antes disso teremos de discutir

minuciosamente certas medidas. Tudo tem de ser feito com a precisão de um minuto. E os acônidas não devem desconfiar de nada. Devem acreditar que sua frota se descontrolou e acabou por destruir-se a si mesma. De qualquer maneira, isto será melhor que pedir-lhes que nos devolvam as naves. Até devemos fazer de conta que, para nós, é indiferente que possuam uma frota. Não podemos arriscar complicações políticas, muito menos uma guerra com os acônidas. Depois de discutir mais alguns detalhes, levantaram-se e voltaram para suas naves. Cada um deles voltaria ao seu planeta: Atlan para Árcon e Rhodan para a Terra. O plano acabara de ser concebido. Sua execução era apenas uma questão de tempo. Acontece que o tempo trabalhava a favor dos acônidas... *** Bem ao centro da Via Láctea ficava o gigantesco sol azul denominado Ácon. Era o centro do Sistema Azul, do mundo dos acônidas, dos quais descendiam os arcônidas. Ácon possuía cinco planetas, e o planeta Ácon V era Sphinx, o mundo misterioso onde os terranos e os acônidas tiveram seu primeiro encontro. Era o centro de um império não movimentado por meio de espaçonaves, mas de transmissores de matéria. Em todos os planetas do sistema havia receptores e transmissores. Com um simples passo através do arco luminoso, qualquer pessoa podia transportar-se de um planeta a outro. O campo energético azul havia desaparecido. As naves de Rhodan tinham destruído os satélites que lhe supriam energia. Só mesmo uma nave dotada do sistema de propulsão linear seria capaz de atravessar esse campo, que por vários milênios isolara o império dos acônidas do resto da Galáxia. Agora o isolamento fora rompido, e tanto a Terra como Árcon possuíam um porto espacial comercial em Ácon V. O contato fora estabelecido e era garantido por uma série de tratados. A base que Rhodan mantinha em Sphinx era pequena. O diâmetro do porto espacial não ultrapassava cinco quilômetros. Junto ao mesmo havia alguns edifícios destinados a abrigar os serviços administrativos, além da residência do representante permanente que a Terra mantinha no sistema de Ácon. Estanislau Jakobowski não se sentira muito feliz quando lhe deram este posto, que representava o degredo num mundo situado a dezenas de milhares de anos-luz de seu lar. Seu assistente Axel Wiener compartilhava com ele a solidão infinita de uma civilização que, sob vários pontos de vista, era superior à sua. Os dois haviam instalado a casa segundo seus gostos pessoais, pois representava o único local em que poderiam permanecer. A área situada fora do porto espacial era território proibido. Não podiam abandonar a base terrana. Todas as tentativas de obter algum alívio da situação esbarravam na teimosia dos acônidas. Estes invocavam o texto dos tratados, nos quais Perry Rhodan apenas solicitava uma base em Sphinx. Esses tratados não mencionavam a possibilidade de entrar nas cidades acônidas. Estanislau Jakobowski era um funcionário civil do governo terrano. Tinha direito a aposentadoria, desde que não deixasse o serviço antes do tempo. Por isso aceitara sem qualquer objeção a ordem de seus superiores, segundo as quais deveria dirigir-se a Ácon a fim de defender os interesses da Terra. Um pequeno hipertransmissor lhe permitia manter contato permanente com Terrânia, de onde recebia suas instruções. Quase todos os dias pousavam espaçonaves mercantes vindas da Terra ou dos planetas coloniais. Traziam mercadorias que eram

trocadas com as dos acônidas, bem como o correio e mantimentos para Jakobowski e Wiener. Estanislau afastou-se da janela, que permitia uma visão ampla sobre toda a área do porto espacial. Não era alto e usava barba no estilo dos mercadores galácticos. — Eles nos mandaram filmes, chefe. São filmes sobre as moças da Terra. E nós estamos presos em Ácon. Jakobowski também não estava nada satisfeito, mas não deixou seu interlocutor perceber. — Os filmes — respondeu — pelo menos provam que não nos esqueceram. Querem ajudar-nos a espantar o tédio. Se não tivermos vontade, não os olhamos. — O quê? Acha que devemos dispensá-los? — disse Wiener, em tom indignado. — E logo quando não nos custam nada? Essa não! Sacudiu a cabeça e continuou a revirar o conteúdo da mala postal trazida por uma nave mercante na manhã daquele dia. Havia jornais, revistas, livros, correspondência particular destinada aos tripulantes das espaçonaves que pousavam regularmente em Ácon, rolos de filme, fitas gravadas com música e instruções. Instruções! Wiener tirou da mala um envelope alongado e fitou-o com uma expressão de espanto. Trazia o nome de Jakobowski e não indicava o remetente. Wiener encostou a carta ao nariz. — Não há nenhum perfume — disse com um sorriso e balançou a carta. — Estou curioso para saber quem resolveu escrever ao senhor. Será que foi sua namorada? — Não tenho namorada — disse Jakobowski e pegou a carta. Examinou a letra sem compreender nada. — Não conheço a letra — disse. Abriu o envelope e quase chegou a assustar-se com a enorme folha escrita de cima até embaixo. Esforçou-se em vão para decifrar o conteúdo. As letras se enfileiravam, separadas por lacunas e sinais de pontuação. Mas as palavras eram incompreensíveis. Não conseguiu extrair-lhes qualquer sentido. — Então? — perguntou Wiener, em tom impaciente. — O que estão querendo do senhor? Será que a moça está com saudades ou...? — Cale a boca! — gritou Jakobowski, em tom severo. Entregou-a a Wiener. — Procure ler esta bobagem. Wiener tentou. É claro que também não conseguiu. Perplexo, fitou a carta. Formulou sua teoria. — Alguém se permitiu uma brincadeira com o senhor, chefe. Mas será que algum dos seus amigos sabe que o senhor se encontra em Ácon? — contemplou o selo de alto valor do correio espacial. — Devo dizer que é uma brincadeira muito cara. Jakobowski voltou a pegar a carta. — Naturalmente terei de informar meus superiores sobre o incidente — disse em tom indiferente. — Não se pode admitir que o correio, já sobrecarregado, seja utilizado para infantilidades deste tipo... Ouviu-se um zumbido vindo do teto. Alguém procurava estabelecer contato pelo hiper-rádio. Provavelmente era uma nave que pretendia anunciar sua chegada. — Cuide disso — ordenou Jakobowski e continuou a examinar a carta. Finalmente sacudiu a cabeça e guardou o envelope no bolso. Retirou-se. Sempre que desejava refletir sobre alguma coisa, costumava dar um passeio. Em Ácon só podia passear no porto espacial, mas mesmo ali estaria ao ar puro. Não importava que esse ar fosse aquecido por um sol azul.

Um sol azul...? Depois de ter percorrido algumas centenas de metros, Jakobowski parou abruptamente e olhou para cima. Por ali o céu quase sempre era azul, mas poucas vezes era tão radiante como hoje. Não se via nenhuma nuvenzinha. Havia apenas o azul maravilhoso e o brilho quase violeta do gigantesco sol. Hum... Jakobowski lembrou-se de que, no dia anterior, o céu não fora tão azul. Mas sempre havia certos fatores de que só agora se lembrava. Como por exemplo, as extraordinárias medidas de segurança dos últimos dias. Os acônidas haviam colocado guardas armados em torno do porto espacial. Antigamente achavam que isso não era necessário. Por que de repente resolveram agir assim? Prosseguiu na sua caminhada. Voltou a pensar na estranha carta que acabara de receber. Quem se teria permitido essa brincadeira? Só podia ser um dos seus velhos amigos. Teve a impressão de que alguém acabara de chamá-lo. Virou-se lentamente. Wiener estava parado junto à casa e gesticulava com os braços. Parecia muito exaltado. “É uma pena que não trouxe meu rádio portátil”, pensou Jakobowski. — O que houve? — perguntou em tom áspero quando se encontrava a uma distância em que podia entender as palavras do outro. — Não grite desse jeito! Não consigo entender uma palavra. — É um chamado de Terrânia — gritou Wiener, sem reduzir o volume da voz. — É da central. — Como? — perguntou Jakobowski, respirando com dificuldade. De repente pôs-se a correr. — Por que não disse logo? Passou rapidamente pelo companheiro, que parecia perplexo. Com alguns saltos atingiu a pequena sala de rádio e precipitou-se em direção ao receptor. O rosto de Perry Rhodan contemplava-o da tela. É claro que Jakobowski conhecia Rhodan, embora este nunca tivesse entrado em contato direto com o entreposto comercial. Era um acontecimento tão extraordinário que por alguns segundos Jakobowski quase perdeu o autocontrole. Mas era um funcionário muito capaz e logo recuperou-se da surpresa. Enquanto tomava lugar na poltrona, para que Rhodan, que se encontrava na Terra, pudesse vê-lo, fez sua apresentação: — Aqui é a base de Ácon, sir. Estanislau Jakobowski falando. — O senhor recebeu minha carta, Jakobowski? — Sua carta, sir? — revirou todos os recantos de sua memória, mas não se lembrou de nenhuma carta. Pelo menos não se lembrou de nenhuma carta de Perry Rhodan. — Não, sir, não recebi nenhuma mensagem escrita do senhor. Rhodan sorriu como quem compreendia. — A carta não indica o remetente e o senhor deve ter quebrado a cabeça com o conteúdo da mesma. Achei que este seria o melhor meio de transmitir-lhe minhas instruções. Mesmo que usemos o código, sempre existe o perigo de que alguém consiga decifrar nossas mensagens de hiper-rádio. Preste atenção, Jakobowski. Quando receber uma carta sem indicação de remetente, formada por uma série aparentemente desconexa de letras e... — Sir! — interrrompeu Jakobowski. — Recebi a carta há meia hora. Queira desculpar.

— Excelente! — disse Rhodan. — Leia a carta com toda calma e responda dentro de três dias. Tenha cuidado. Daqui a três dias escreva suas respostas e comentários. Use o mesmo método que eu usei ao escrever a carta. Expeça a mensagem sob a forma de carta comum. Um comandante de nave mercante chamado Samuel Graybound entrará em contato com o senhor e lhe perguntará se tem alguma correspondência para a Terra. É a ele que deve entregar a carta. — Sir! — exclamou Jakobowski antes que a ligação fosse cortada. — Como faço para ler a carta? Deve estar codificada. Rhodan riu. — É simples. Use o código 20A. Espero notícias suas daqui a três dias. Confio no senhor. A tela apagou-se. Mais uma vez Jakobowski viu-se a sós, mas apenas por dois segundos. Wiener logo entrou na sala de rádio. — Então, chefe? Alguma novidade? Vão revezar-nos? Jakobowski sacudiu a cabeça, levantou-se e foi tirando do bolso a misteriosa carta. Contemplou-a com uma expressão que era um misto de veneração e repugnância. Abriu o envelope e pôs-se a decifrar o conjunto caótico de letras, segundo o indicado por Rhodan. 0 texto da carta era o seguinte: Para Estanislau Jakobowski: Preciso que o senhor me dê resposta às seguintes perguntas: 1 — Onde estão estacionadas as mil espaçonaves que os acônidas receberam de Árcon? Que tipo de trabalho foi realizado nas mesmas? Qual é a vigilância a que estão submetidas? 2 — Houve alguma modificação do comportamento dos acônidas, face aos terranos nestes últimos vinte dias? 3 — Foram notadas medidas especiais destinadas a evitar que os terranos saiam da base? 4 — Notou mais alguma coisa? 5 — O senhor poderia receber em sua casa cerca de dez pessoas, sem que haja necessidade de modificações na construção? Preste atenção aos seguintes detalhes: Na mesma nave em que foi transportada esta carta enviamos um traje de combate arcônida. Tal traje encontra-se numa caixa marcada com a palavra Conservas. Faça tudo que for necessário para responder às cinco perguntas que acabo de formular. Ass.: Rhodan. *** Wiener devolveu a carta e lançou um olhar indagador para Jakobowski. — É uma tarefa estranha, se permite que use esta linguagem. Será que somos representantes da administração comercial ou agentes do Império Solar? Se os acônidas nos pegarem fazendo espionagem, torcerão nosso pescoço. — Não será bem assim! — conjeturou Jakobowski. — Mas de qualquer maneira seria muito desagradável. Afinal, Rhodan enviou-nos um traje de combate. Se não me

engano, ele torna a pessoa invisível. Quer dizer que poderemos penetrar tranqüilamente na área proibida e procurar a resposta às perguntas formuladas por Rhodan. O senhor se prestaria muito bem a isso, Wiener. Quase diria que é um espião nato... — Obrigado! — respondeu Wiener. — Não aprecio os acônidas e não tenho vontade de deixar-me pegar por eles. Mesmo que eu me torne invisível, sempre haverá a possibilidade de que isso aconteça. Com eles tudo é possível. Jakobowski soltou um suspiro. — Está bem. Eu irei. Será preferível que seja assim. Um traje de combate arcônida tornava quase inviolável a pessoa que o usava. Os campos antigravitacionais permitiam a adaptação a qualquer força de gravidade e até tornavam possível o vôo. O campo de deflexão proporcionava a invisibilidade. Havia um aparelho que permitia a qualquer tempo envolver o traje num campo energético que protegia contra um ataque, caso este não fosse muito forte. Em sua embalagem o traje parecia inofensivo e não pesava mais que um dos leves trajes espaciais, destinados a uma permanência não muito prolongada no vácuo. Os aparelhos, instrumentos e chaves de controle estavam embutidos no cinto largo, onde era fácil alcançá-los. Jakobowski contemplou o traje. Teve uma sensação estranha e leu cuidadosamente a descrição que o acompanhava. Finalmente colocou-o e se dispôs a cumprir as ordens de Rhodan. Ligou o defletor e a expressão de perplexidade que via no rosto de Wiener mostroulhe que se tornara invisível. Sentiu-se dominado pela vontade de experimentar. Deu alguns passos cautelosos e, passando junto ao seu auxiliar, saiu para o ar livre. Wiener continuava a olhar fixamente para o lugar em que o chefe acabara de desaparecer. — Estou aqui, Axel! Ora essa, não se assuste. Como vê, isto funciona muito bem. Os acônidas não me descobrirão. Farei logo minhas experiências. — Leve uma arma — pediu Wiener, avançando em direção a Jakobowski com os braços estendidos. — Para quê? Mesmo que me descubram, devo evitar toda e qualquer violência. A reação só produziria complicações diplomáticas, que por certo não seriam apreciadas por Rhodan. Além disso, não permitirei que me peguem. Até logo mais. Saiu da casa e, empolgado por uma sensação de leveza que nunca antes experimentara, caminhou em direção à fronteira bem próxima da base. Com uns poucos movimentos da mão regulou a gravitação artificial. Passou a pesar não mais de cinco quilos. Com isso um salto de cinqüenta metros não representava nenhum problema. Poderia superar qualquer obstáculo. E não teve de esperar muito para dar uma prova dessa capacidade. Os acônidas haviam colocado estacas de cerca de três metros de altura em torno do porto comercial. Essas estacas distavam cinqüenta metros uma da outra, e estavam ligadas por um único fio. Quando atingiu o obstáculo aparentemente inofensivo Jakobowski parou, perplexo. Uns quinhentos metros à sua esquerda havia um acônida, que não parecia uma sentinela muito atenta. E deveria prestar atenção, pois aquela cerca de arame não dava a impressão de ser capaz de impedir que alguém saísse da base. “Os acônidas são inteligentes, muito inteligentes”, pensou Jakobowski sem sair do lugar. “Nunca seriam capazes de subestimar os terranos...” Jakobowski logo se deu conta de que aquele fio era uma armadilha. Manteve-se imóvel e pôs-se a refletir:

“Por que o fio foi estendido justamente numa altura tal que normalmente não se pode saltar por cima dele, enquanto é fácil passar por baixo? O perigo, ou seja, a barreira, deve ficar embaixo do fio, não acima do mesmo.” Por acaso Jakobowski contemplou naquele instante o céu e voltou a refletir sobre a intensa coloração azul que este apresentava. Baixou os olhos e quando fitou o lugar em que o fio parecia separar o céu em duas partes, notou que embaixo dele o azul era diferente. Parecia mais pálido e um tanto apagado. Tinha-se a impressão de que estava coberto por um véu invisível. Era um véu que enchia o espaço que ficava entre o fio e o chão. Compreendeu imediatamente. O fio emitia raios, dirigidos exclusivamente para baixo. Gerava um campo de radiações que se estendia em torno do porto espacial tal qual uma cortina invisível e se mostraria mais eficiente que uma muralha sólida, evitando, assim, que alguém abandonasse a área. O caráter traiçoeiro da barreira deixou Jakobowski ainda mais aborrecido. Se não tivesse sido tão desconfiado, teria prosseguido na caminhada e o passo seguinte talvez lhe tivesse custado a vida. Era possível que o choque energético apenas o deixasse inconsciente, mas não se podia afirmar que não fosse mortal. Antes de vencer o obstáculo num salto, resolveu verificar os efeitos da cortina de radiações. Olhou em torno, à procura de uma pedra de tamanho adequado, quando o acaso veio em seu auxílio. Um grande besouro de Berol, do tamanho de um pardal, voou pelo campo, pouco acima do pavimento de concreto, e tomou a direção da barreira. Voou muito devagar, conforme costumavam fazer esses insetos nativos de Ácon, mudou de direção por várias vezes e finalmente, quando se encontrava a menos de dez metros do lugar em que estava Jakobowski, tentou passar por baixo do fio. Não houve a descarga energética que Jakobowski esperava. Tinha certeza de que veria uma luminosidade. Mas o que aconteceu foi muito mais assustador. O besouro desapareceu! Jakobowski compreendeu. A cortina de radiações não constituía uma barreira energética, mas uma versão simplificada de um transmissor de matéria. Qualquer objeto que entrasse no campo de radiações era desmaterializado, para rematerializar-se em outro lugar. Isso podia acontecer num ponto bem próximo, ou então a cem quilômetros de distância. O acônida que se encontrava a quinhentos metros não esboçou o menor gesto. Parecia não ter notado o fenômeno. Talvez o besouro fosse muito pequeno para acionar o alarma que por conseguinte existia por ali. Enquanto Jakobowski ainda refletia, viu outro besouro que se aproximava. Um tanto curioso, seguiu o vôo irregular do inseto, até que este fosse desmaterializado mais à direita pela terrível barreira. Vira perfeitamente que a asa esquerda do inseto estava ferida. Por isso seu vôo fora irregular. Quando já estava decidido a arriscar o salto sobre o fio, ouviu outro besouro que se aproximava. Vinha de trás! Jakobowski não acreditou no que seus olhos viam. — Não é possível! Era o mesmo besouro de antes. A asa esquerda era um pouco mais curta que a direita, motivo por que o vôo era inseguro e sinuoso. Com a obstinação característica dos insetos, o besouro voltou a dirigir-se ao obstáculo invisível e desapareceu pela terceira vez. Jakobowski agiu imediatamente, como que por instinto. Virou-se e olhou na direção da qual tinham vindo os besouros — ou o besouro. Teve sorte. Um pequeno ponto

escuro, vindo do nada, surgiu a menos de cinqüenta metros. Era o besouro! Desta vez, naturalmente por pura coincidência, voou numa altura tal que passaria por cima do fio. Passou menos de vinte centímetros acima do obstáculo, e desta vez não aconteceu nada. Para Jakobowski, isso representava a prova final de que a transmissão só funcionava embaixo do fio. Concluiu que os acônidas preferiram não criar uma barreira mortal. Qualquer terrano que tentasse passar por baixo do fio seria levado de volta uns cinqüenta metros. Apenas isso. Era um processo inofensivo, mas muito eficiente. Empurrou-se fortemente com o pé e subiu lentamente a vinte metros de altura. Deixou-se cair obliquamente por cima do fio. Não sentiu nada enquanto passava por cima do obstáculo. Pousou suavemente na grama rala, ignorou o acônida, que não desconfiava de nada, e ligou o campo gravitacional para zero. O minúsculo propulsor fornecia empuxo suficiente para que voasse pouco acima do solo sem ser visto. Durante trinta minutos seguiu a rota aérea larga pela qual se desenvolvia todo o tráfego entre a base terrana e os acônidas. Sempre que pousava uma espaçonave, as mercadorias a serem trocadas eram trazidas por essa rota e os artigos vindos da Terra eram transportados pela mesma. Hoje essa via estava deserta e abandonada. À sua direita a silhueta da cidade começou a desenhar-se no horizonte, mas Jakobowski não se interessou muito por ela, pois à sua esquerda surgiu o grande porto espacial dos acônidas. O que havia de estranho nesse porto espacial era o fato de que este só voltara a entrar em atividade há poucos meses. De certa forma os acônidas já haviam superado a fase da navegação espacial. Seus transmissores de matéria possibilitavam uma comunicação mais rápida e segura entre os planetas. Mas em certa altura haviam aparecido os terranos e os arcônidas, que lhes provaram de forma inequívoca que nem sempre a conquista de um futuro perfeito representa a derrota do passado menos perfeito. Depois da destruição do campo energético defensivo que envolvia seu planeta, os acônidas precisavam de uma frota espacial potente, a fim de poderem defender-se das raças de astronautas. Por isso resolveram recuperar o velho porto espacial. E nesse porto espacial estavam pousadas mil naves. Jakobowski viu como elas se destacavam contra o horizonte iluminado e de repente compreendeu que perigo representavam, se os acônidas voltassem a aprender como usálas. Começou a compreender por que Rhodan formulara as perguntas que deveria responder. Reduziu a velocidade e subiu um pouco. O perigo de uma descoberta casual por meio dos aparelhos de localização não era grande, pois os acônidas certamente confiavam na barreira transmissora. E não se sabia se conheciam os trajes de combate arcônidas. Ninguém deixaria de notar a presença da frota. Os vinte couraçados da classe Império ocupavam uma área superior à de uma grande cidade. As gigantescas esferas espaciais cercavam o grosso da frota, formado por unidades de outro tipo. Jakobowski reconheceu cruzadores ligeiros e pesados e couraçados. Ao que parecia, só haviam entregue veículos espaciais esféricos aos acônidas, pois Jakobowski não viu nenhuma gazela ou destróier. Jakobowski sobrevoou o conjunto por duas vezes, antes de decidir-se a pousar no pólo superior de um cruzador ligeiro, que ocupava uma posição central e, com seus cem metros, não podia ser considerado muito alto. Enquanto se aproximava, notou a atividade febril que se realizava nas naves. Exércitos de técnicos estavam ocupados no descarregamento de comboios. As caixas com os materiais eram levadas para as escotilhas. Os elevadores gravitacionais trabalhavam

ininterruptamente, levando máquinas e instalações para o interior das naves, onde eram recebidas por equipes de trabalhadores. Com isso já tinha a resposta à primeira das perguntas formuladas por Rhodan. A frota continuava no mesmo lugar em que fora estacionada no princípio; as naves estavam recebendo equipamento novo, já que antes ofereciam pouco conforto a tripulações humanas; a vigilância não era muito rigorosa porque os acônidas não contavam com a possibilidade de que alguém pudesse atravessar a barreira que cercava a área da missão comercial terrana. E a segunda pergunta também podia ser respondida tranqüilamente com um sim. Os acônidas haviam modificado sua atitude face aos terranos. Depois da derrota voltaram a tornar-se mais confiantes e arrogantes. Formularam suas exigências e passaram a reforçálas por meio de atitudes concretas. Também já tinha a resposta à terceira pergunta. Os acônidas haviam descoberto um novo método de impedir que os terranos saíssem da área que lhes fora reservada. Jakobowski até conseguira descobrir de que tipo era a barreira. A quarta pergunta ainda continuava em aberto, enquanto a resposta à quinta também consistia num sim. Naturalmente seria possível receber mais dez pessoas na casa residencial, sem que houvesse necessidade de realizar modificações na sua estrutura. Ora, a quarta pergunta! Havia algo de extraordinário? Para descobrir isso, consumiria os dois dias que lhe restavam. Não sabia exatamente o que Rhodan queria dizer com isso, mas resolveu registrar toda e qualquer conduta estranha dos acônidas e transmiti-la a Rhodan. Jakobowski resolveu fazer um exame mais demorado dos trabalhos que se realizavam no interior das naves. Olhou cautelosamente em torno. Um pouco abaixo do “horizonte” da pequena espaçonave as escotilhas dos compartimentos de carga estavam bem abertas. Naquele momento não havia nenhum acônida por perto. Aqui devia ser menos perigoso entrar em uma nave, e era o que tinha de fazer se quisesse descobrir quais as modificações que estavam sendo realizadas em seu interior. Deslocou-se cautelosamente em direção à escotilha. Uma queda dessa altura não representaria nenhum perigo para ele, mas preferia fazer o possível para evitá-la. Era possível que por acaso um aparelho de localização estivesse dirigido sobre ele e, sendo assim, a queda seria notada. Entrou num corredor vazio, cujo estilo puramente finalista não tinha nada de humano. Os camarotes que se enfileiravam de ambos os lados do corredor também estavam vazios e não tinham qualquer tipo de instalação. Os construtores das naves não haviam feito qualquer diferença entre as unidades tripuladas e as dirigidas por robôs, já que as mesmas eram fabricadas em linhas de montagem. Era fácil transformá-las de um tipo em outro. Jakobowski ouviu passos que se aproximavam. Parou e pôs-se a esperar. Dois acônidas dobraram a curva mais próxima. Carregavam uma caixa alongada, que em virtude dos campos gravitacionais ligados era muito mais leve que fora da nave. Passaram a poucos centímetros de Jakobowski, que conteve a respiração de susto e só se sentiu aliviado quando haviam passado. Empurraram a caixa para dentro de um camarote e puseram-se a esvaziá-la. Continha peças de plástico, destinadas à montagem de uma cama. As naves estavam sendo adaptadas para serem tripuladas por seres humanos. Jakobowski criou coragem e foi avançando. Notou que, na sala de comando, os controles robotizados continuavam no mesmo lugar. Haviam sido cobertos por placas de

plástico. De resto estavam inalterados. As naves poderiam ser adaptadas novamente ao controle robotizado. Jakobowski não era técnico, motivo por que teve que dar-se por satisfeito com o que acabara de observar. E Rhodan também ficaria satisfeito com isso, pois, do contrário, teria solicitado outros detalhes ou enviado um técnico. Três acônidas estavam examinando os controles. Falavam pelo intercomunicador com os colegas que se encontravam na sala de máquinas. Jakobowski compreendeu perfeitamente o que diziam, embora o arcônida moderno fosse mais objetivo e menos prolixo que o primitivo. Os elementos fundamentais das duas línguas provinham da mesma fonte e eram bastante semelhantes. Do texto da palestra, o terrano concluiu que todos os comandos robotizados já haviam sido desativados. As microcápsulas estavam depositadas num arsenal, do qual poderiam ser retiradas a qualquer tempo. Jakobowski teve a impressão de que, para aquele dia, já descobrira o suficiente. Sua autoconfiança cresceu ainda mais quando passou bem no meio de um grupo de técnicos sem que ninguém percebesse sua presença. Naturalmente tinha de evitar toda e qualquer forma de contato direto, pois não se desmaterializara. Não podiam vê-lo, mas seriam capazes de senti-lo... Entretanto a pane só aconteceu quando voltou à base comercial! Pousou suavemente na grama macia, a vinte metros da sentinela. O acônida, que era um homem de estatura mediana e trazia uma arma portátil de radiações, olhou bem em sua direção. Jakobowski sentiu um ligeiro mal-estar, mas logo disse a si mesmo que não passava de um idiota. O acônida não podia vê-lo. Era por puro acaso que olhava para o lugar em que se encontrava. Acontece que o acônida olhou exatamente em sua direção e foi levantando a arma. Os dedos da mão direita seguraram o gatilho. Um brilho ameaçador surgiu nos olhos pálidos, enquanto o cano da arma subia cada vez mais. Jakobowski não pôde evitar uma sensação desagradável. Tinha a impressão de que o acônida fitava seus olhos. Será que seu traje de combate não estava funcionando? Estaria ficando visível? Olhou para seu corpo, mas não notou nada de anormal. Num movimento instintivo ligou seu campo defensivo individual. E ele o fez no momento exato. — Sei onde você está, mesmo que se tenha tornado invisível — disse o acônida com a voz insegura. Sua mão direita tremia de tão fortemente que segurava a arma. — Fique onde está. No momento em que um pedacinho de grama se levantar, disparo. Então era isso. Jakobowski compreendeu que subestimara bastante aquele acônida. Ele devia ter notado a marca do pé quando olhara por acaso em sua direção. E não era só isso. Sabia perfeitamente qual seria a posição do homem invisível. No momento em que Jakobowski desse um passo, a grama voltaria a levantar-se, revelando seus movimentos. Não poderiam fazer-lhe nada, mas o acônida já conhecia seu segredo. Não poderia realizar outras expedições, pois a descoberta seria inevitável. Praguejou contra a leviandade que acabara de cometer. Rhodan não ficaria nada satisfeito, mesmo que obtivesse resposta às suas perguntas. Fez outro movimento e ligou o equipamento de vôo. Subiu rapidamente. A grama voltou a erguer-se, mas devagar demais, pelo menos para o acônida. Quando este atirou, Jakobowski já se encontrava a vinte metros de altura. O raio energético perdeu-se no ar e logo se apagou. Mas com isso os acônidas logo descobririam que o inimigo invisível

sabia voar, e tal coisa só podia acontecer com quem usasse um traje de combate arcônida — isso naturalmente se os ancestrais dos arcônidas conhecessem esse tipo de traje. Jakobowski voou por cima da barreira e aterrissou à frente de sua residência. Só desligou os aparelhos e voltou a tornar-se visível depois de ter entrado na casa. Wiener saiu da sala de rádio. — Já está de volta, chefe? Duas naves acabam de anunciar sua chegada. Deverão pousar ainda hoje, antes do pôr do Sol. Já avisei a administração espacial acônida, conforme manda o regulamento. A permissão de pousar foi concedida. Jakobowski já tirara o traje de combate e o guardara na caixa, depois de dobrá-lo cuidadosamente. Ainda se sentia meio paralisado pelo susto proveniente da quasedescoberta. — Duas naves? Qual é a carga? — A de sempre. Equipamento técnico e máquinas agrícolas. Os acônidas anunciaram que têm carga de retorno. Se me permite esta observação, tenho a impressão de que todo este comércio de troca não passa de um gesto de cortesia. Trata-se de um pretexto para a manutenção do entreposto comercial neste planeta. Jakobowski confirmou com um gesto. — É bem possível que o senhor tenha razão, Wiener. Talvez não demoraremos a descobrir. Tenho esta impressão. Naquele momento nem desconfiava de que suas sensações e pressentimentos se confirmariam muito depressa.

A Odin era um couraçado de quinhentos metros de diâmetro, equipado com propulsores de hipersalto. Sendo assim não podia realizar o vôo visual a velocidade superior à da luz. Dependia das transições. O Major Scott, comandante da nave, quase teve um ataque quando soube que o administrador em pessoa pretendia fazer uma verificação na nave. Depois disso, tudo foi muito rápido. Cinco mutantes e alguns oficiais do Serviço de Segurança Solar subiram a bordo juntamente com Rhodan. Várias caixas com equipamentos vieram atrás deles. Só no momento em que a nave saía do sistema solar, Rhodan explicou ao Major Scott qual era a missão que tinham pela frente. Depois de realizados os cálculos das transições, a Odin iniciou a longa viagem que a conduziria por várias etapas através do hiperespaço de cinco dimensões. Levariam vinte e quatro horas para chegar ao Sistema Azul. Uma última conferência foi realizada no camarote de Rhodan, pouco antes da pausa para dormir. Gucky também estava presente. Sentado numa grande poltrona, pôs as orelhas de pé, embora não tivesse necessidade disso, já que possuía o dom da telepatia. John Marshall, chefe do Exército de Mutantes, estava sentado a seu lado. Além de Wuriu Sengu, o espia, estavam presentes dois teleportadores: Ras Tschubai e Tako Kakuta. Ainda se encontravam ali o Tenente Groeder, do Serviço de Segurança, e o Tenente Jenner, especialista em positrônica e cibernética. — Já sabem o que está em jogo — disse Rhodan, pondo a mão no bolso do paletó. — O relatório de nosso representante Jakobowski diz claramente que as instalações de controle robotizado não foram retiradas das naves. Por isso não será muito difícil instalar as cápsulas. Dispomos de três teleportadores, e cada um deles será acompanhado por um especialista. Tenente Jenner, o senhor tem certeza de que pode confiar em seus dois homens? — Certeza absoluta — disse o jovem oficial de cabelo escuro. — Recebemos nosso treinamento ao mesmo tempo, em Terrânia, e além disso passamos por um processo de ensino hipnótico relativo aos controles com que teremos de contar. — Muito bem — respondeu Rhodan. — Amanhã pousaremos em Ácon e esperaremos dois dias. As cápsulas de comando serão enviadas depois. Poderíamos ter retardado nossa chegada por mais dois dias, mas se eu chegar a Ácon com uma única nave não provocarei tantas suspeitas. Para os acônidas, os vôos das naves transportadoras que se seguirão serão considerados de rotina. Além disso, disporemos de dois dias para nos familiarizarmos com a situação. Pelo que diz Jakobowski, a vigilância foi reforçada

depois que quase o pegaram. Caberá a mim transformar o incidente numa bagatela e explicar que se trata de um acontecimento sem importância. Rhodan olhou em torno. — Mais alguma pergunta? Nenhuma? Muito bem. Nesse caso está tudo esclarecido. O êxito de nossa missão dependerá mais da sorte que da capacidade dos especialistas e teleportadores. Se os acônidas tiverem a menor desconfiança da finalidade real de nossa visita, nossa presença aumentará suas suspeitas. E não podemos permitir que isso aconteça. Assim que Rhodan se viu só, bloqueou seus pensamentos contra os telepatas e voltou a examinar a carta que recebera de Jakobowski. Havia um detalhe insignificante que lhe chamara a atenção, mas ainda não estava na hora de preocupar-se com isso. *** O sistema de neutralização de vibrações da Odin não foi ligado, e assim a transição podia ser registrada e acompanhada por qualquer sistema de rastreamento estrutural situado na Galáxia. Rhodan não queria que a chegada da Odin surpreendesse os acônidas. Quando a nave saiu da última transição e se aproximava do Sistema Azul, tudo correu conforme se esperara. O campo energético azul que antigamente cercara o sistema não existia mais. O mesmo protegera o império dos acônidas por vários milênios contra quaisquer intrusos, até que a frota de Rhodan destruiu as unidades energéticas montadas em satélites. Atualmente penetrava-se livremente no sistema. Alguns dos dezoito planetas foram avistados e ficaram para trás, enquanto a Odin reduzia a velocidade. Sphinx, o quinto planeta, entrou no campo de visão. Rhodan, que se encontrava na sala de comando, ao lado do Major Scott, notou o globo azul. Estremeceu e lembrou-se das linhas escritas por Jakobowski. Será que havia alguma relação entre as observações deste e aquilo que Rhodan via com os próprios olhos? A atmosfera que envolvia o planeta Sphinx possuía um brilho azul que em hipótese alguma podia ser natural. Sua transparência acompanhada da capacidade de reflexão lembrava demasiadamente o campo energético que antigamente envolvera e protegera todo o sistema. Acontece que desta vez o brilho envolvia somente o planeta Sphinx, e ficava tão próximo à superfície que qualquer tentativa de romper o campo com uma nave linear estaria condenada ao fracasso. A nave se despedaçaria na superfície muito próxima. E, como os geradores do campo energético estavam instalados em Sphinx, seria impossível destruí-los. Os acônidas haviam aproveitado o tempo. E conseguiram tirar proveito do fator surpresa. Haviam criado às escondidas uma nova arma defensiva, que lhes possibilitava impedir o pouso de qualquer nave espacial em seu mundo central. Rhodan dirigiu-se ao comandante. — Entre em órbita, major. Vamos tentar estabelecer contato com eles e perguntarlhes o que significa essa bobagem. Afinal, devem saber que uma nave se aproxima de seu planeta. O Tenente Groeder, do Serviço de Segurança, apontou para uma tela lateral. — É uma nave, sir. Uma nave acônida. Naquele mesmo instante o radioperador chamou pelo sistema de intercomunicação: — Temos uma comunicação de rádio, sir. Pedem que nos identifiquemos. O que devo responder?

Rhodan correu para a sala de rádio. O rosto presunçoso de um oficial acônida o contemplava da tela. E a expressão desse rosto não se modificou, nem mesmo quando Rhodan se colocou à frente da câmera. — Nave terrana Odin — disse Rhodan, fitando os olhos frios do acônida. — Pedimos permissão para pousar. — Qual é a carga? Rhodan sorriu. — O Administrador do Império Solar, isto é, minha insignificante pessoa. Parecia que os cantos da boca do acônida tremiam um pouco, mas talvez fosse engano. Sua voz continuou inalterada. — Permissão concedida. O porto comercial terrano foi liberado. Quando chegar lá, aguarde novas instruções. Desligo. Antes que Rhodan tivesse tempo de dar qualquer resposta, a tela apagou-se. Hesitou um pouco e voltou à sala de comando. O Major Scott fitou-o com uma expressão indagadora. — Quais são as ordens, sir? — Pousaremos conforme já havíamos previsto. Acredito que daqui a pouco desligarão o campo energético. Vejo que a barreira serve principalmente para fortalecerlhes a autoconfiança. Talvez devamos dizer-lhes que de nossa parte não temos nenhuma objeção contra o tal campo. Isso os deixará confusos — apontou para a tela lateral. — A nave acônida voltou a afastar-se. Acredito que seu comandante informará o Grande Conselho de Ácon sobre a identidade do visitante. É bom que procurem matar suas charadas. — O campo energético azul representa uma surpresa nada agradável — disse o Tenente Groeder. — Mas não deixa de ter seu lado bom. — Ah, é? — disse Rhodan e esperou que o oficial lhe comunicasse a conclusão a que chegara. — Não tenha a menor dúvida, sir. Os acônidas acreditarão que viemos por causa desse campo e se orientarão por essa crença. E nós deixaremos que eles a conservem, enquanto os mutantes e os especialistas ativarem a frota com toda tranqüilidade. Rhodan acenou com a cabeça. Um sorriso de aprovação surgiu em seu rosto. — A conclusão não deixa de ser inteligente, tenente. Quer dizer que em sua opinião os acônidas cairão na cilada que nós lhes armarmos? Bem, veremos — voltou a olhar para o Major Scott. — Prepare o pouso, major. Desça e aguarde até que o campo azul se apague. Quando isso acontecer, pouse imediatamente — mais uma vez dirigiu-se a Groeder. — Venha comigo, tenente. Os acônidas não são melhores que os arcônidas. Os dois povos dão mais importância às tradições e à exibição. Pois façamos-lhes o favor e acompanhemos seu jogo. Aconteceu exatamente aquilo que Rhodan previra. No momento em que a Odin descia em direção ao pequeno campo de pouso, o campo energético azul apagou-se. O colosso pousou sem problemas. Estanislau Jakobowski veio apressadamente com o planador de colchão de ar, a fim de receber seus hóspedes. Logo no início constatou-se que o campo energético em torno de Sphinx só fora ativado há um dia. As observações de Jakobowski, que haviam sido comunicadas a Rhodan, aparentemente só se relacionavam com experiências no solo. De qualquer maneira os acônidas se surpreenderiam ao notar que os terranos foram informados tão depressa e mais uma vez desconfiariam de que a base comercial do planeta Terra não era apenas um espaçoporto comercial.

Axel Wiener preparara tudo para abrigar os hóspedes. A Odin voltaria a decolar dentro de pouco tempo e ficaria à espera na periferia do sistema, onde manteria contato com Bell, que não estaria muito longe. Mal se haviam instalado, um grande planador dos acônidas pousou sem aviso. Rhodan sentiu-se um tanto contrariado com o fato de que ele mesmo precisava de uma permissão especial para pousar, enquanto os acônidas não se preocupavam com esse tipo de formalidade. “Afinal Sphinx é o planeta deles”, pensou Perry. “Os terranos por aqui apenas são tolerados como visitantes. Este deve ser ao menos o ponto de vista dos acônidas.” Três oficiais de alta patente desceram do veículo e dirigiram-se à casa residencial. Ignoraram a Odin; faziam de conta que a mesma nem existia. Rhodan caminhou na direção deles alguns metros e parou. Esperou que os acônidas se aproximassem o suficiente. — Estamos falando com o administrador da Terra? Rhodan fitou o oficial pelo menos por dez segundos e retificou: — Estão falando com o Administrador do Império Solar, para sermos mais exatos. Trazem alguma mensagem para mim? — O Grande Conselho de Ácon pede-lhe que nos acompanhe. Prepararam uma recepção de chefe de Estado. O Conselho supõe que o senhor tenha vindo numa missão definida e está disposto a fornecer-lhe algumas explicações. Rhodan confirmou com um aceno de cabeça. — Queira aguardar um momento. Daqui a pouco irei com os senhores. Deixou que os oficiais continuassem de pé e voltou para dentro da casa. — Pretende acompanhá-los? — perguntou Groeder, em tom preocupado. — Sozinho e sem qualquer proteção? — Não se preocupe — disse Rhodan em tom tranqüilizador. — Nada me acontecerá. Os acônidas podem ser muito convencidos, mas não são bobos. Sabem aprender com a experiência. Além disso, estarão interessados em descobrir qual é a minha opinião sobre o campo energético deles. Fique tranqüilo, tenente. Voltarei dentro de algumas horas. Gucky entrou balançando o corpo. — Posso ir com você, Perry. Ninguém dará atenção a uma criatura como eu. — Pois darão mais atenção a você que a qualquer outra pessoa — interrompeu Rhodan, em tom resoluto. — Você vai ficar aqui, mas poderá manter contato telepático comigo. Se houver algum imprevisto, tome suas providências. — Não tenha a menor dúvida — prometeu Gucky, muito satisfeito. O rato-castor não gostava de ser deixado de lado, mas não era o que estava acontecendo. Rhodan vestiu o uniforme simples verde-pálido, igual ao usado por todos os oficiais da Frota. A arma de radiações que trazia no cinto não era nenhuma contrafação; era verdadeira. Quando voltou a reunir-se aos três oficiais acônidas que o esperavam, sentiuse como um pardal em meio a um bando de papagaios, mas esse fato não prejudicou sua autoconfiança nem melhorou a dos acônidas. O Tenente Groeder estava parado ao lado do Major Scott, quando o planador subiu e afastou-se rapidamente com Rhodan, em direção à capital não muito distante. Jakobowski juntou-se a eles. — Isso foi um tanto inesperado — observou em tom de dúvida. — Será que Rhodan está sendo atraído para uma armadilha?

— Não; em hipótese alguma! Podemos ficar bem tranqüilos, agindo em conformidade com as instruções de Rhodan. A Odin decolará dentro de dez minutos. Os acônidas já deram permissão para isso e ainda não voltaram a ativar o campo energético. Gucky e Wuriu Sengu realizarão uma excursão exploradora, a fim de verificar em que ponto estão os trabalhos nas naves. Em virtude da imprudência cometida pelo senhor, Jakobowski, seria muito arriscado recorrer aos trajes arcônidas. Por isso Gucky depende da teleportação. Os acônidas não contam com essa possibilidade. — A culpa não foi minha e... — Ninguém está acusando o senhor — disse Groeder, encerrando a discussão. — Mantenha contato de rádio permanente conosco, Major Scott. Avise em tempo a chegada da nave cargueira pela qual esperamos tão ansiosamente. Quanto ao resto, o senhor está informado. — Sim, estou informado — Scott confirmou e despediu-se, para logo em seguida voltar para a Odin. Dali em diante passou a ser apenas um elo importante de uma corrente que deveria voltar a prender Ácon ao seu sistema. — Quando devo saltar? — perguntou Gucky. Groeder olhou para o relógio que trazia no pulso. — Daqui a uma hora, quando começar a escurecer. *** Quando as solenidades da recepção chegaram ao fim, e ele se viu a sós com Auris de Las-Toor num aposento particular do palácio, onde o Grande Conselho costumava realizar suas sessões, Rhodan sentiu-se muito satisfeito. Perry deixou que a visão daquela mulher, extraordinariamente bela, produzisse seus efeitos. Para ele, essa acônida era pura e simplesmente a representante de sua raça. Não pôde deixar de confessar que tinha uma personalidade impressionante. O cabelo cor de cobre combinava muito bem com a tez morena aveludada, enquanto os lábios vermelhos e cheios formavam um contraste encantador com os olhos claros. Trajava um conjunto apertado e uma ampla manta violeta. — Além de encantadora a senhora também é muito inteligente — disse Rhodan, em tom amável. — Nem tentou ocultar a instalação do novo campo defensivo. A idéia foi sua? Auris retribuiu o sorriso. Entre aquelas criaturas tão diferentes havia uma simpatia secreta, que nenhum deles queria confessar. Cada um representava uma raça diferente e estava disposto a colocar interesses da mesma sobre seus interesses pessoais. Por outro lado, porém, nenhum dos dois queria enganar o outro ou fazer-lhe algum mal. Por isso viram-se num dilema do qual parecia não haver saída. — A instalação foi ordenada pelo Grande Conselho — respondeu Auris. — Achamos preferível não encobrir sua existência com o véu de um segredo que só poderia dar origem a suspeitas. O campo energético existe e será desligado toda vez que uma nave terrana peça permissão para pousar. — Aliás, esse campo não me preocupa — confessou Rhodan e olhou para a janela. Lá fora já começava a escurecer. Gucky e Wuriu Sengu já deviam estar a caminho. — Minha vinda não tem a menor relação com o mesmo, embora a senhora talvez supusesse que tinha — concluiu depois de uma pausa. — Não tínhamos opinião formada a este respeito — respondeu Auris, esquivando-se à insinuação.

Rhodan inclinou o corpo para a frente e fitou os olhos de sua interlocutora, que enfrentou calmamente o seu olhar. Era uma adversária nada fácil. — Vim para esclarecer os acônidas sobre os acontecimentos que nestes últimos meses têm semeado a inquietação na Galáxia. Sei perfeitamente que por aqui não houve muito interesse por esses acontecimentos, mas nem por isso os mesmos deixaram de produzir sua influência em Ácon. Rhodan relatou em palavras sucintas e objetivas como Thomas Cardif assumira o posto de administrador e criara uma confusão tremenda em quase todos os setores. Concluiu da seguinte forma: — Acabei sendo libertado e restabeleci a ordem. Foi um trabalho muito duro, mas se pudermos contar com a compreensão de Ácon poderemos dar o caso por encerrado. Auris sorriu sem demonstrar o menor embaraço. — Ficamos-lhe muito gratos pelos esclarecimentos, administrador. Realmente certos acontecimentos eram incompreensíveis aos nossos olhos, mas a esta altura não o são mais. Afinal, foi graças a essas perturbações que recebemos a frota espacial que nos foi fornecida por Árcon. É mais um motivo de sermos gratos ao senhor. — Ora, isso não é nada — respondeu Rhodan com a maior tranqüilidade, sem dizer uma única palavra sobre a frota espacial. Passou a outro assunto, que parecia interessá-lo muito mais. — As relações comerciais entre nossos mundos estão tomando um rumo bastante satisfatório, Auris de Las-Toor. Não será esta a oportunidade de discutirmos a possibilidade da ampliação de nosso território neste planeta? Ainda acontece que não gosto de barreiras. Será que vocês têm medo de espiões? Auris esboçou um sorriso amável e descontraído. — Sobre a ampliação da área poderemos conversar com o Grande Conselho, mas as barreiras serão mantidas. A finalidade destas não consiste em evitar atos de espionagem, mas em lembrar constantemente aos terranos que Ácon não é nenhuma colônia, mas um império estelar independente. A medida é puramente psicológica. — Ah, é? Fico-lhe muito grato — disse Rhodan, com um sorriso irônico. — De qualquer maneira nunca nos esqueceríamos. Depois disso discutiram vários problemas. No fim combinaram que no dia seguinte Auris visitaria a missão comercial terrana. Rhodan ficou espantado porque a representante de Ácon não disse uma palavra sobre o aparecimento misterioso de um homem invisível. Aliás, teria sido inútil formular uma acusação contra um fantasma de cuja existência não havia nenhuma prova além das declarações bastante duvidosas de um soldado. As despedidas foram cordiais. Rhodan sentiu a simpatia de sua anfitrioa, que ressaltava das palavras convencionais, sem exprimir-se claramente. Seus olhos brilhavam, mas os gestos continuavam comedidos. Rhodan teve de fazer um grande esforço para resistir à tentação de segurar sua mão por mais tempo que o estritamente necessário. Afinal, ainda era sua adversária, embora Rhodan não pudesse deixar de se convencer que nunca se sentira tão contrariado para lutar contra alguém. De qualquer maneira, o perigo era muito grande. Auris nunca tomava as decisões sozinha. Atrás dela havia o Grande Conselho de Ácon, formado por um grupo de homens dotados de elevada agilidade mental, que só visavam ao bem de seu povo. O planador que deveria levá-lo de volta ao porto espacial terrano estava parado à frente do palácio. Havia soldados formados em sua honra. Um comando de robôs fez continência.

Auris acompanhou o visitante até a escotilha. Voltou a estender a mão para Rhodan, e desta vez teve a impressão de que a pressão de seus dedos era mais forte. — Até amanhã, Perry Rhodan. Deverei chegar pelo meio-dia. — Estaremos à sua espera, madame — disse Rhodan em tom um tanto formal e entrou na pequena nave. Voltou a acenar com a mão. Depois disso a escotilha fechou-se. Em alguns segundos o palácio e a área fronteiriça foram tragados pela escuridão da noite.

A noite foi calma e sem incidentes. Gucky e Sengu voltaram pela meia-noite e apresentaram seu relato a Rhodan. Ninguém notara sua presença ou demonstrara qualquer desconfiança. Puderam fazer suas incursões com a maior tranqüilidade e constataram que os comandos robotizados realmente continuavam intactos. Com exceção dos microcontroles. Pelo meio-dia Auris chegou num planador, conforme era esperado. Estava acompanhada de dois acônidas de meia-idade, que causaram boa impressão em Rhodan. A recepção foi simples, mas muito mais cordial do que costumam ser as recepções de chefes de Estado. Ficaram sentados bem à vontade na pequena varanda da casa, regalando-se com os raios do sol e conversando. O campo energético azul não estava ligado, fato que levou Rhodan a perguntar se não pretendiam ativá-lo constantemente. — Nossa intenção não é esta — respondeu Auris. — Basta a certeza de que a qualquer momento podemos recorrer a ele. No seu íntimo Rhodan sentiu-se aliviado, pois as palavras que acabara de ouvir lhe permitiam esquecer um problema grave. Se o campo energético fosse ativado ininterruptamente, seu plano poderia correr perigo. — Não queremos que o campo defensivo afete nossas relações, Perry Rhodan. — Não afetará, Auris. Mesmo entre amigos costumam ser tomadas certas precauções. Permita que lhe pergunte qual é a opinião do Grande Conselho sobre minha proposta de ampliar a zona franca? Auris apontou para os dois homens que a acompanhavam. — Para facilitar as coisas, trouxe os especialistas que não se negam a discutir o assunto. No entanto, quero avisar desde logo que a barreira transmissora será mantida, ou melhor, ampliada. — Quanto a isso, nada a objetar. Acho que a barreira representará um obstáculo para eventuais ladrões ou contrabandistas. Espero que a senhora também pense assim. — Também pensamos assim — disse Auris, com um sorriso. A discussão girou em torno da pretendida ampliação e terminou num tratado assinado por Rhodan, Auris e os dois membros do Conselho. Rhodan ficou satisfeito com o resultado da discussão, mas não conseguiu evitar certo peso na consciência. Os acônidas tratavam-no com a maior franqueza e suas propostas eram bem recebidas. Enquanto isso, ele mesmo planejava uma traição, uma verdadeira traição. Pretendia tomar-lhes a frota espacial. Será que isso era uma atitude correta? Será que suas

preocupações de que os acônidas poderiam atacar a Terra conforme já haviam tentado por várias vezes não eram exageradas? Bem, naquela oportunidade não conhecera Auris tão bem quanto a conhecia hoje, mas por outro lado não deveria cometer o erro de pensar que Auris fosse Ácon. Era apenas a representante do Grande Conselho e tinha de seguir as ordens deste. Mesmo que essas ordens se dirigissem contra ele, Rhodan, ela as cumpriria, pois o bem do povo era colocado acima de tudo. Mas a consciência continuava a pesar-lhe. Quando a delegação se despediu, Rhodan prometeu que no dia seguinte participaria pessoalmente de uma sessão do Conselho, durante a qual usaria a palavra para formular propostas que visavam à ampliação do comércio. Os dois acônidas já se encontravam no interior do planador que os levaria de volta para a cidade. Auris e Rhodan ainda se encontravam no campo de pouso. Auris estendeulhe a mão. — No futuro nossas relações deverão firmar-se e tornar-se cada vez melhores — disse com a voz embaraçada. — Às vezes tenho a impressão de que os acônidas têm mais em comum com a sua raça que com a dos arcônidas, que são nossos colonos. De qualquer maneira, os elos que ligam Ácon e a Terra são mais fortes que os que unem a Terra a Árcon. Isso em termos muito gerais. — O imperador de Árcon e eu somos amigos, e esta amizade representa um elo — respondeu Rhodan, sabendo perfeitamente qual era o sentido da alusão que acabara de fazer. — É bem verdade que em termos gerais a senhora tem razão. Os acônidas são uma raça mais atuante e possuem maior agilidade mental que a maioria dos arcônidas, que podem ser considerados uma raça degenerada. Possuem um imenso reino estelar, mas este se encontra em desagregação. Seu povo, Auris, nunca teve a ambição de construir um reino estelar desse tipo, e é uma atitude que eu sei prezar muito. Nem sempre a sede de poder constitui sinal de um espírito nobre. Só agora Auris retirou sua mão da de Rhodan. Confirmou com um aceno de cabeça. — Independentemente de sua opinião sobre nosso povo, Perry Rhodan, o senhor sabe distinguir entre mim como membro do Conselho e como... Hesitou. Rhodan animou-a com um sorriso. — E como mulher — concluiu Auris valentemente. Ao responder, Rhodan não se esquivou de seu olhar indagador: — As amizades pessoais entre os representantes de povos diferentes contribuem para melhorar as relações entre os mesmos, Auris. Posso garantir-lhe que, se não fosse Atlan, não teria tanto interesse por Árcon. Seria bom se, em virtude da senhora, eu também pudesse ter mais simpatia por Ácon. E que a senhora pudesse ter mais simpatia pela Terra. Auris fitou-o prolongadamente. Depois confirmou com um gesto. — Obrigado, Perry Rhodan. Até amanhã. Virou-se abruptamente e entrou no planador. Fez um gesto de despedida antes que a escotilha se fechasse. Rhodan seguiu o veículo com os olhos enquanto o planador se erguia lentamente e ia se afastando. Uma tormenta emocional rugia em sua mente, ameaçando transformar-se num caos. Apesar disso conseguiu voltar à casa com o passo firme e tranqüilo. Quando o futuro da Humanidade estava em jogo, Perry não deveria considerar seus sentimentos pessoais. Já provocara um tremendo perigo, quando começara a amar uma mulher pertencente a uma raça estranha. Será que o fato se repetiria?

*** A nave cargueira tão ansiosamente esperada só chegou dali a dois dias. As autoridades acônidas concederam a permissão rotineira de pousar, isso depois de o comandante ter apresentado a declaração da carga. Naturalmente não mencionou os microcontroles guardados numa caixa. Para seu imenso espanto, Jakobowski viu diante de si um velho conhecido, que não era outro senão o homem ao qual entregara há menos de uma semana uma carta destinada a Rhodan. Samuel Graybound, comandante espacial e co-proprietário de uma sociedade comercial privada, recebera de Rhodan a missão delicada de levar os microcontroles para Ácon. Para aquele velho fogoso isso representava uma ótima oportunidade de dar uma demonstração de sua capacidade e das qualidades de sua velha nave. Quando Graybound, que era um homem de seus cinqüenta anos, baixo e com o abdômen avantajado, atravessou o campo de pouso, havia alguma coisa colorida sobre seu ombro. Ao chegar mais perto, notou-se que era um papagaio. Bicava alegremente a barba ruiva do dono, como se estivesse procurando alguma coisa. Vez por outra soltava um grito e batia com as asas. O nariz grosso de Graybound estava escondido entre um par de enormes bochechas e brilhava num estranho tom vermelho-azulado, o que de forma alguma provinha do uso excessivo do álcool, mas tinha sua origem nos efeitos do sol azul. Gucky fitou o papagaio. Só depois de algum tempo olhou para Graybound. — Você não poderia ter evitado isso? — perguntou em voz baixa a Rhodan, que se encontrava a seu lado e olhava o comandante da nave mercante com um ligeiro sorriso. — Logo esse velho contrabandista com a ave faladora. — Não poderia ter encontrado elemento melhor. — Respondeu Rhodan, também em voz baixa, e acrescentou: — Não se esqueça de que Graybound salvou nossa vida, quando fizemos o pouso de emergência no planeta protoplasmático. Pode ser um esquisito, mas é um sujeito honesto. E é só o que conta, Gucky. O rato-castor calou-se, um tanto envergonhado. Não era bem isso que queria dizer. Mas sabia que Toureiro, o papagaio, beliscaria sua cauda na primeira oportunidade, caso Gucky não se cuidasse. Graybound irradiava um espírito bonachão quando parou à frente de Rhodan e, numa atitude bem paisana, colocou a mão direita no boné. — Cumpri as instruções, trazendo a carga para Ácon, sir — proferiu com a voz rouca, piscando para Gucky. — Quer que mande iniciar imediatamente a descarga? Rhodan apertou a mão do velho. — Obrigado, Graybound. O senhor nem imagina com que ansiedade o esperávamos. — A mim, ou à carga? — perguntou Graybound, voltando a piscar para Gucky. — Então, sempre continua alegre e bem-disposto, baixinho? Faz tempo que não nos vemos. — Sinto-me satisfeito em encontrá-lo nesta oportunidade — disse Gucky com certo esforço, olhando de soslaio para Toureiro, que parecia infundir-lhe um respeito tremendo. — Como vai essa ave? — Toureiro? — Graybound soltou uma estrondosa gargalhada. — Fica cada vez mais inteligente. Ontem meteu-se a corrigir a rota da minha nave, que havia sido calculada pelo computador positrônico. E não é que o papagaio estava com a razão?

Rhodan contemplou o céu azul, como se não tivesse outra coisa a fazer. Alguém soltou uma risada. Por um instante Gucky sentiu-se perplexo, mas logo leu a verdade nos pensamentos de Graybound. — Vá mentir pra outro! — protestou com a voz aguda e saiu balançando o corpo, deixando de lado os cumprimentos. Para evitar brigas, Gucky fez de conta que não ouvira a observação de Toureiro, que como sempre era muito adequada. Haveria de encontrar uma oportunidade de fechar o bico dessa ave atrevida. Dali a meia hora havia pilhas de caixas ao lado da Lizard. Os primeiros veículos de carga dos acônidas chegaram para receber as mercadorias. Uma caixa maior marcada com a palavra Alimentos desaparecera logo no início. Naquele momento encontrava-se no porão da casa em que Rhodan estava residindo. O comandante Graybound estava presente quando a tampa da caixa foi retirada. Trazia o papagaio sobre o ombro direito. O Tenente Groeder afastou a camada de algodão destinada a amortecer os choques. As caixinhas forradas com os reluzentes microcontroles estavam bem empilhadas. Não eram maiores que um dedo humano. Dependeria dessas cápsulas aparentemente tão inofensivas para que Ácon continuasse a dispor de uma frota espacial ou não. Graybound apontou para as cápsulas. — Que contrabando é este? — perguntou. — Parece... parece... — hesitou um pouco — bem, parece que são cargas de pistolas energéticas. — Não é nada disso, meu velho. — Se fosse o senhor, não quebraria a cabeça com estas cápsulas. Nunca encontrará a resposta correta. Por que sobrecarregar a mente com isso? O senhor as trouxe e ganhou um bom dinheiro. E essa quantia lhe foi paga inclusive para que o senhor não faça perguntas. Graybound resmungou alguma coisa, cocou a cabeça e acabou confirmando com um gesto. — De acordo, sir. Tem outras instruções para mim? — Tenho. O senhor decolará assim que a carga de retorno esteja a bordo. Quando chegar a Terrânia, dirija-se ao centro comercial e entregue uma cópia do novo tratado que firmei com Ácon. Mister Marshall lhe entregará essa cópia. Em Terrânia lhe será confiada outra missão. É só. Graybound apertou a mão de Rhodan, acenou alegremente para os outros homens e fez meia-volta para retirar-se do recinto em que entrara por puro acaso, quando procurava Rhodan. Mas antes que chegasse à porta, Toureiro levantou vôo com um grito agudo, dirigiu-se de asas abertas para a grande caixa, segurou um dos preciosos microcontroles e, sempre soltando gritos agudos, passou por Graybound e subiu para o corredor, de onde uma porta aberta levava para fora da casa. — Pegou uma das cápsulas! — gritou o tenente, em tom assustado. — Vamos agarrá-lo! Rhodan passou por Graybound e correu atrás de Groeder. Ras Tschubai teleportouse e chegou ao campo de pouso antes dos dois homens. Esforçaram-se em vão para localizar o papagaio. Se o pássaro saísse voando com a cápsula e caísse nas mãos dos acônidas, todo o plano poderia frustrar-se. Graybound subiu os degraus fungando e parou ao lado de Rhodan, esbaforido. — Sinto muito, sir — disse em tom embaraçado. — Toureiro costuma ser obediente e não tem criado problemas. Não sei o que deu nele... Rhodan não respondeu. Vira um movimento no telhado achatado da casa. Recuou um passo e avistou Toureiro, que agora estava brincando com a cápsula. Quase no

mesmo instante Gucky saiu da porta e fitou os homens exaltados com uma expressão de indiferença. — O que houve? — perguntou em tom de tédio. — Não faça perguntas tolas. Está vendo o papagaio em cima do telhado? Vá buscálo. Gucky prendeu a respiração. — Buscá-lo? Você permite mesmo que eu vá buscá-lo? — Isso mesmo. Tenha cuidado para não ter de voar atrás dele. É bem verdade que, se deixar o microcontrole onde está, ele pode ir até a próxima Galáxia, mas você não! Gucky adiantou-se mais um passo e fitou Toureiro. O papagaio nem desconfiava das faculdades maravilhosas do rato-castor. Sentia-se seguro no telhado. Empurrava a cápsula reluzente à sua frente, sem saber o que fazer com ela. Não reagia aos gritos do dono. Quando notou o olhar concentrado de Gucky, gritou com a voz travessa: — Alguém quer alguma coisa? Alguém quer alguma coisa? — Eu quero! — chiou Gucky e teleportou-se. Materializou a menos de dez centímetros de Toureiro, que continuava a bater as asas e olhar para o lugar em que Gucky estivera pouco antes. Gucky segurou Toureiro com ambas as mãos. A voz irônica do papagaio terminou numa grande dissonância. — Eu lhe mostrarei o que acontece com quem rouba ovos dos ninhos dos outros — disse o rato-castor com a voz ameaçadora e olhou para o lugar em que os homens o fitavam ansiosamente. — Quer que eu lhe torça o pescoço, Perry? Não sei se um papagaio em molho picante é um prato saboroso. Para mim seria duro demais — pegou o microcontrole e enfiou-o no bolso do uniforme. — Então, o que me diz, bicho fantasiado? A pergunta fora dirigida a Toureiro, que deixou pender tristemente as asas e já parecia conformado com a idéia de ter de morrer. Fitou Gucky com uma expressão ingênua nos olhos semicerrados e disse com a voz trêmula: — Retire-se imediatamente do local, cavalheiro! Graybound gritou uma explicação: — Este papagaio passou alguns anos num botequim de cais de última categoria. É por isso que usa essa linguagem. Solte-o, baixinho. Afinal, você já recuperou o objeto que roubou. — Quer que eu o solte? — perguntou Gucky, dirigindo-se a Rhodan. Este confirmou com um aceno de cabeça. De repente Toureiro recuperou a atitude orgulhosa e voltou a sentir-se seguro. Ficou sentado por mais alguns segundos no braço de Gucky, alisou com o bico as penas que ficavam embaixo do pescoço e desceu do telhado com uma gritaria enervante, dirigindose diretamente para o ombro de Graybound, onde pousou em segurança. Gucky seguiu-o num salto ligeiro. Tirou a cápsula do bolso e entregou-a a Rhodan, que a fitou em atitude pensativa, refletindo sobre o milagre que representava esse objeto pequeno e de aspecto insignificante, capaz de ativar todos os comandos robotizados de um enorme couraçado. Até um papagaio podia sair voando com isso. Graybound afastou-se. Falou por mais algum tempo com o papagaio, e todos ouviram perfeitamente o papagaio repetir: — Retire-se imediatamente do local, cavalheiro! Rhodan seguiu-o com os olhos.

Um sorriso de compreensão surgiu em seu rosto. Para Graybound, Toureiro significava a mesma coisa que Gucky significava para ele. *** Os três teleportadores e os especialistas que os acompanhariam prepararam-se para entrar em ação. Sengu explicara mais uma vez a disposição das naves. Não havia necessidade de outros esclarecimentos, pois os técnicos sabiam perfeitamente o que fazer. Cada um deles levava uma sacola com cinqüenta cápsulas de microcontrole. Poderiam dar-se por satisfeitos se conseguissem instalar todos numa noite. — Gucky, você e o Tenente Jenner cuidarão em primeiro lugar dos couraçados pesados da classe Império. Só depois disso cuide das outras naves. Kakuta e Tschubai cuidarão dos cruzadores pesados. Não poderá haver nenhuma revisão de trabalho, pois o tempo é muito escasso. Se os acônidas perceberem que os microcontroles por eles retirados voltaram ao mesmo lugar, naturalmente desconfiarão. Vocês terão de terminar o serviço em duas ou três noites. Boa sorte. O primeiro salto foi realizado em conjunto. A fim de evitar que esbarrassem na barreira de transmissão, escolheram como primeiro alvo o topo de uma montanha não muito alta, que ficava na linha de visão direta acima do fio. As naves reluzentes estavam enfileiradas lado a lado e seu brilho metálico parecia revelar o poder tremendo que corporificavam. — Foi muito rápido — observou o Dr. Ranault, que pela primeira vez na vida fizera a experiência de um salto de teleportação. Lançou um olhar de admiração para seu companheiro, Tako Kakuta. — Já ouvi falar muito a respeito, mas nunca acreditava que... bem, não me leve a mal... que é tão fácil. O japonês esboçou um sorriso condescendente. — Parece fácil, doutor, mas o fato é que além da capacidade em mutação isso exige uma forte dose de concentração. Antigamente nós costumávamos errar o alvo ou os saltos falhavam pura e simplesmente. Hoje as teleportações se transformaram em rotina. — Daqui em diante agiremos separadamente — disse Gucky, interrompendo a palestra. — Cada um salta com seu parceiro. E não deveremos esquecer que, quando voltarmos, deveremos saltar em primeiro lugar para esta montanha. Seria muito desagradável se, em meio ao salto, esbarrássemos no campo de transmissão. — Naturalmente — disse Ras Tschubai, em tom lacônico. Segurou a mão do Dr. Sorowski, sorriu para animar os outros e desapareceu à vista de todos. Gucky esperou que Kakuta e o Dr. Ranault também saltassem. Só depois disso fixou o alvo, segurou a mão do Dr. Jenner e saltou. O topo da montanha voltou a ficar deserto, como se nunca tivesse sido pisado por qualquer homem. Naquele mesmo instante, os homens que ali tinham estado materializaram-se a muitos quilômetros, no porto espacial dos acônidas. A gigantesca área era mais difícil de abranger com a vista do que haviam imaginado. As sentinelas patrulhavam principalmente a área periférica. Mantinham contato com canhões robotizados prontos para disparar, que atirariam contra qualquer aeronave ou veículo espacial que procurasse aproximar-se da área bloqueada. A fileira de sentinelas era tão densa que seria praticamente impossível que um pedestre passasse por ela sem ser descoberto. Para os teleportadores, essa fileira evidentemente não representava nenhum obstáculo.

Gucky e Jenner materializaram-se a mil e quinhentos metros de altura, no pólo de um couraçado da classe Império. O campo de visão era bastante restrito. De qualquer maneira, viam-se claramente os pólos superiores das outras naves do mesmo tipo. O sol azul já descera abaixo da linha do horizonte e escurecia rapidamente. Jenner apalpou a sacola com os micro-controles. — Como faremos para entrar na nave? Gucky olhou em torno. — O começo sempre é difícil. Mais tarde teleportaremos simplesmente de uma sala de comando para outra, ou melhor, de um centro de controle robotizado para outro. Mas antes disso terei de orientar-me. Siga-me bem de perto, Jenner. Se houver algum imprevisto, segure imediatamente minha mão, para estabelecer contato físico. Entendido? Jenner fez que sim. Não encontraram nenhuma escotilha que não estivesse trancada e por isso não tiveram outra alternativa, senão teleportarem-se para dentro da nave. Não se encontraram com ninguém. Os acônidas não haviam postado sentinelas no interior das naves. Gucky e Jenner não tiveram qualquer problema em chegar ao centro de controle automático. Uma vez lá, o especialista imediatamente se pôs a trabalhar. Todos os centros de ativamento eram do mesmo tipo, tanto nos grandes couraçados como nos cruzadores ligeiros. No fundo, a montagem da cápsula era simples, mas assim mesmo a operação só poderia ser realizada pela mão experimentada de um especialista, cujos dedos sensíveis seriam capazes de colocá-las na posição correta, de maneira tal que houvesse contato nas duas pontas. Além disso, era muito importante que as instalações não entrassem logo em atividade. Haveria apenas um minúsculo receptor robotizado, que a um determinado sinal de comando transmitiria o impulso capaz de ativar o gigantesco sistema de controle robotizado. Quando isso acontecesse, não haveria mais possibilidade de dar uma contra-ordem. Jenner recuou um passo. — Pronto, Gucky. A primeira cápsula foi colocada. O rato-castor riu. Parecia satisfeito. — Tomara que com as outras também seja tão fácil. Acho que o senhor terá bastante inteligência para ir buscar outras cápsulas, caso termine antes do tempo. — Foi o que combinamos, baixinho. Não vamos perder tempo. Cuidemos da próxima nave. Pelas duas horas da madrugada, tempo terrano, Gucky e Jenner haviam preparado os vinte couraçados e trinta outras unidades. Saltaram de volta para o entreposto comercial, onde ficaram sabendo que Kakuta e o Dr. Ranault já haviam estado lá para reabastecerse. O japonês tinha certeza de que antes do nascer do sol conseguiria cuidar de cem naves. Jenner voltou a encher a sacola. No momento em que se dispôs a saltar juntamente com Gucky, chegaram Ras Tschubai e o Dr. Sorowski. Até o nascer do sol realmente ativariam quase um terço da frota. As coisas pareciam ser mais fáceis do que se previra. Durante três dias e noites, tudo correu bem. Na quarta noite aconteceu o incidente fatal...

Foi um dia cansativo. Perry Rhodan obteve permissão de sair de Ácon numa nave cargueira. Não indicou o destino da viagem, mas deixou claro que voltaria na noite seguinte. Ninguém fez perguntas. Rhodan teve oportunidade de, uma vez no espaço, passar para a Odin, que o aguardava na periferia do sistema, e fazer uma troca de mensagens de hiper-rádio com Atlan. O Major Scott ficou satisfeito de rever Rhodan. Apresentou o relato em palavras lacônicas, conforme era seu costume. — Mantivemos contato com Reginald Bell em seqüência ininterrupta. Encontra-se com a frota a dez anos-luz daqui, no setor espacial constante das instruções. — Excelente — disse Rhodan, muito satisfeito. — Já está informado? — Bastará transmitir o sinal combinado, sir. Rhodan respondeu com um aceno de cabeça e dirigiu-se para a sala de rádio, onde o rosto de Atlan já o fitava da tela. Os distorçores haviam sido ligados, para que ninguém pudesse compreender uma palavra da palestra. Além disso, Rhodan não falou nada além do estritamente necessário. — Já está informado, Atlan? — Tudo entendido, Perry. — Nossa estação montada em Ácon está pronta para a recepção. Até aqui tudo correu bem. Assim que eu lhe transmitir a senha, você saberá o que fazer. Se não acontecer nada, voltarei a entrar em contato com você de bordo da Odin. Até lá faça votos de que tudo continue a dar certo. Falaram mais quinze minutos sobre as providências a serem tomadas. Depois disso cortaram a ligação. Rhodan tinha certeza de que os acônidas não podiam ter conhecimento da palestra, pois possuíam poucas naves para dar-se ao luxo de manter um serviço permanente de escuta espacial. As ondas de hiper-rádio não poderiam ser captadas na superfície de Ácon. O Major Scott esperou cinco horas antes de levar Rhodan de volta para o entreposto comercial. Também recebeu uma série de instruções especiais. Decolou imediatamente para manter-se no espaço, onde seria um importante elo de ligação entre Rhodan de um lado e Bell e Atlan do outro. Sabia perfeitamente o que devia fazer, mesmo que o contato com Rhodan fosse interrompido. Isso aconteceria no momento em que os acônidas ativassem o campo energético azul, que não permitia a passagem da matéria nem das ondas comuns de rádio.

Já fazia bastante tempo que Gucky, Ras Tschubai, Jenner e o Dr. Sorowski tinham voltado para a casa residencial, situada na área do porto espacial. Todos os microcontroles haviam sido instalados. Tako Kakuta e o Dr. Ranault ainda não tinham voltado mas, como só tinham levado vinte cápsulas, logo deveriam concluir o trabalho e regressar à base. Sempre havia atrasos; devia-se contar com isso. Era possível que um dos suportes do setor de ativamento de um computador estivesse muito apertado e o Dr. Ranault fosse obrigado a fazer uma correção. Isso poderia levar dez minutos ou uma hora. Só à meia-noite, quando Tako Kakuta apareceu só, materializando-se em meio às pessoas que esperavam nervosamente, compreenderam: Alguma coisa não dera certo. O teleportador japonês explicou em palavras apressadas... *** Haviam saído com vinte cápsulas. Ranault conhecia o trabalho. Seria perfeitamente capaz de montar os microcontroles com os olhos vendados. Não era isso que o deixava nervoso. O que o enervava era simplesmente o fato de que já montara mais de duzentas cápsulas sem que houvesse qualquer incidente. A tarefa parecia fácil demais. Quando tentava montar com as mãos trêmulas a décima segunda cápsula, esta escapou dos seus dedos e caiu ao chão. Kakuta deu um salto, mas não conseguiu segurá-la. — Está quebrada? — perguntou em tom preocupado. Ranault hesitou um pouco. — Não tenho certeza — abaixou-se e examinou a cápsula. — Por fora não se vê nada. Teremos de experimentar — de repente aguçou o ouvido. — Ouviu alguma coisa, Kakuta? O japonês recuou alguns passos e comprimiu a orelha direita contra a porta fechada. Teve a impressão de que ouvia alguma coisa, mas não conseguiu identificar o ruído. — Deve haver mais alguém na nave, Ranault. Vamos dar o fora. — Só depois que eu tiver instalado o controle — respondeu o técnico e abriu o setor de ativação. Kakuta ficou parado junto à porta. Contemplou os enormes geradores e quadros de comando, as ramificações do comando robotizado e os bancos de energia dos computadores positrônicos. Tudo isso ficava num pavilhão que tinha ao menos trinta metros de comprimento e quase a mesma largura. O ruído às suas costas foi tão súbito que não teve tempo de virar-se. Apenas conseguiu dar um passo para o lado. No mesmo tempo, a porta abriu-se violentamente e dois acônidas com a farda de policiais entraram. — Deve ser aqui — disse um deles, apontando para a frente. Não viram Kakuta, que teleportou-se para o corredor. Era tarde para levar Ranault. Talvez o técnico fosse bastante inteligente para esconder-se atrás de uma máquina e ficar quieto até que os dois acônidas fossem embora. — Isso mesmo; o alarma veio daqui — confirmou o outro policial e examinou a confusão das instalações reluzentes, cuja finalidade desconhecia. — Aqui não é o número trezentos e dez?

Ranault abaixara-se instintivamente quando a porta foi aberta. Segurava o microcontrole na mão. Não tivera tempo de montá-lo. O setor de ativação do cérebro estava aberto. Se os acônidas percebessem... Felizmente os dois guardas não eram técnicos. Sua tarefa consistia unicamente em cuidar para que ninguém entrasse na nave. E só haviam vindo porque em algum lugar soara um alarma. Kakuta lembrou-se vagamente de ter visto sentinelas que patrulhavam a área entre as naves estacionadas. Por que o tal alarma não soara antes? Por que isso acontecera justamente nesse momento? Infelizmente nunca saberia as respostas a estas perguntas. Um dos acônidas voltou a sair da sala e dirigiu-se para o corredor. Kakuta não teve outra alternativa senão desaparecer imediatamente. Não foi intencionalmente, mas antes por instinto, que seu salto o levou para a montanha e dali para a base, onde materializouse sem Ranault. Rhodan sentiu-se preocupado. — Por que voltou sem Ranault, Kakuta? Sem o senhor estará completamente indefeso e... — Não foi por querer, sir. Voltarei imediatamente e... — O senhor não sabe o que aconteceu neste meio tempo. Fique. Rhodan arrependeu-se imediatamente de ter gritado com seu mutante. Imaginava que o japonês estava submetido a uma pesada carga psicológica. — A culpa não foi sua, Kakuta. Tranqüilize-se. Gucky, que é pequeno, poderá esconder-se melhor. Irá para lá e trará Ranault. Gucky aproximou-se e deu uma palmadinha cordial nas costas de Kakuta. — Não se preocupe, baixinho. Eu o tirarei de lá. Gucky era menor que Kakuta, mas o japonês realmente era baixo e franzino. — Isso pode acontecer a qualquer um. Para dizer a verdade, este negócio também me afetou bastante. A esta altura só faltam oito naves. Estas não deverão representar nenhum problema — concluiu Gucky. Mal acabou de falar, desapareceu. Neste meio tempo Ranault se retirara mais para o interior da casa de máquinas. Não tirava os olhos do acônida que continuava no pavilhão. O outro desaparecera, tal qual Kakuta. De qualquer maneira Ranault teve a impressão de que este que se encontrava por ali representava um sério perigo, pois achava-se bem ao lado do setor de ativação do computador. A tampa atrás da qual seria instalado o microcontrole estava bem aberta. Se aquele acônida entendesse um pouquinho do assunto... De qualquer maneira teria de fechar a tampa e encontrar um esconderijo para as nove cápsulas de controle. Depois disso não se importaria em ser preso pelos acônidas. Mas era possível que antes disso conseguisse instalar a cápsula na nave em que se achava. O outro acônida voltou. — Gostaria de saber qual foi o motivo do alarma — disse. Ranault, que aprendera o arcônida antigo num processo de ensinamento hipnótico, entendeu cada palavra. Os dois homens encontravam-se a menos de cinco metros. Suas pesadas armas de radiações faziam prever o pior. — Viu alguma coisa? — perguntou ainda o mesmo acônida. O outro respondeu que não. Olhou em torno e chegou a dirigir os olhos bem na direção em que estava Ranault. O técnico abaixou-se ainda mais. “Tomara que não me descubram”, pensou.

Não trouxera arma. Justamente na última missão ele a deixara em casa, porque até então tudo fora tão fácil e a arma de radiações o incomodava. — Acontece que alguém deve ter passado na frente da câmara, pois do contrário não teria sido dado o alarma. E foi nesta sala. — Onde estamos? — Não tenho a menor idéia. Suponho que se trate de uma sala de controle, mas não da sala de comando — pôs-se a refletir. — Vamos revistar o lugar; talvez descubramos alguma coisa. Ranault rastejou cautelosamente para trás, à procura de um esconderijo melhor. Se fosse descoberto, deveria buscar a melhor maneira de lidar com eles. Onde estaria Kakuta? Será que o teleportador perdera o autocontrole e o abandonara? Se fosse assim, ninguém poderia acusá-lo por isso, pois as últimas noites os haviam cansado muito. Encontrou um corredor estreito e avançou de quatro. Depois de passar pela primeira curva ficou deitado e pôs-se a escutar. Não via mais os dois acônidas, mas ouvia seus movimentos. Em sua opinião ninguém costumava pisar nesse túnel estreito, que apenas representava um espaço inaproveitado, situado entre os instrumentos e outros equipamentos robotizados. No momento em que chegou a essa conclusão voltou a lembrar-se dos microcontroles. Em hipótese alguma deveria ser descoberto com os microaparelhos. Empurrou a sacola para dentro de uma pequenina abertura. No lugar em que agora se encontrava, mal conseguia tocá-la com a mão. Mesmo que a nave continuasse em poder dos acônidas, poderia demorar vários anos ou mesmo decênios até que a sacola fosse descoberta por algum acaso. Isso só poderia acontecer por ocasião de uma reforma geral. Ranault guardou no bolso um dos controles. A sacola escondida constituía mais um motivo para que fizesse o possível para instalar essa cápsula, a fim de que a nave pudesse participar da operação planejada. Caso não conseguisse, o doutor teria ao menos feito o que estava ao seu alcance para evitar que o plano fosse descoberto antes da hora. Virou-se e rastejou um pedaço na direção de que viera. De repente viu os pés de um dos policiais acônidas a menos de dois metros do lugar em que se encontrava. O acônida estava bem à frente do seu esconderijo e naquele momento se abaixava. *** Gucky cometeu um erro bem perdoável: foi parar na sala de comandos robotizados da nave errada. Kakuta lhe explicara da melhor maneira possível a posição do cruzador ligeiro em que estivera, mas havia umas cem naves desse tipo estacionadas no campo de pouso. O rato-castor materializou-se e imediatamente se abaixou atrás de um gigantesco bloco metálico, no interior do qual havia certo tipo de mecanismo. Aguçou o ouvido, mas não notou nada. Se Ranault ainda continuasse por ali, deveria estar muito bem escondido. De qualquer maneira, os acônidas não estavam mais, pois não ficariam tão quietos. Naquele momento Gucky ainda não tivera a idéia de que poderia ter entrado na nave errada. Quando teve certeza de encontrar-se na sala de controle teve uma idéia. Segundo lhe dissera Kakuta, existia um total de nove cruzadores ligeiros, nos quais ainda não haviam sido instalados os microcontroles. Este era um deles. Gucky nunca se atreveria a instalar

uma dessas cápsulas supersensíveis, mas vira muitas vezes como Jenner costumava fazêlo. Por isso sabia onde eram colocadas as cápsulas. Caminhou a passos saltitantes até o setor de ativação. A tampa estava fechada. Concluiu que a cápsula ainda não fora montada. Apesar disso resolveu abrir a tampa. Foi então que teve a primeira surpresa. O microtransmissor estava no lugar em que deveria estar. “Será que apesar de tudo Ranault instalou o aparelho antes que os acônidas o descobrissem e levassem?”, pensava Gucky. “Aquele francês era bem capaz de uma proeza dessas...” Gucky começou a desconfiar de que poderia haver uma outra possibilidade, e de repente teve a impressão de que esta não era tão remota. “Encontro-me na nave errada! Até é possível que esta seja uma das naves em que já estive antes!”, concluiu mentalmente. Gucky teleportou-se para o pólo do cruzador ligeiro e olhou cautelosamente em torno. Os cruzadores ligeiros formavam uma fileira comprida. As unidades maiores cercavam-nos como se quisessem protegê-los. Dois acônidas patrulhavam a faixa larga, coberta quase completamente pelo abaulamento das naves esféricas. Os dois homens uniformizados saíram do campo de visão de Gucky, que se sentiu perplexo, sem desconfiar de que cada segundo que passava era muito importante. “Quem sabe se eu experimentar a nave do lado...?” Gucky olhou instintivamente pela fileira das naves e constatou que era a última fileira de cruzadores ligeiros. Sem dúvida. Tinham começado a operação do lado oposto e chegaram até aqui. Não havia a menor possibilidade de engano. Gucky contou as naves. Encontrava-se em cima do décimo cruzador, contado a partir do fim da fileira. — Sou mais estúpido do que Bell costuma dizer — observou numa atitude de autorecriminação. Resolveu que não revelaria seu insucesso a ninguém, pois zombariam dele. A nona nave estava bem a seu lado. Saltou diretamente para dentro da mesma e materializou-se junto à porta que dava para a sala de controle. Desta vez tinha certeza de que não se enganara, pois ouviu vozes. Aproximou-se da porta que apenas estava encostada e entendia o que falavam. — Ouço alguém respirar. — Onde? — Aqui, no espaço entre as máquinas. Há alguém lá dentro. Gucky adiantou-se e lançou um olhar para dentro do grande pavilhão. Viu os dois acônidas, que se encontravam mais ao lado. Estavam de pé num corredor. Um deles abaixava-se para examinar atentamente alguma coisa que Gucky não via. Naquele momento alguns pensamentos começaram a tornar-se mais nítidos em meio à confusão de impulsos mentais captados por Gucky. Até então não prestara a necessária atenção a isso. Caso não se concentrasse, jamais conseguiria delimitar os impulsos de Ranault. Mas o acaso veio em seu auxílio. Ranault viu os pés do acônida bem à sua frente. Seu susto foi tamanho que provocou uma fagulha mental. E esta atingiu os órgãos perceptivos de Gucky com toda a força de seu impacto. O contato acabara de ser estabelecido, mas era apenas um contato unilateral. Naquele momento Gucky defrontava-se com um problema. Precisava descobrir um meio de pôr os dois acônidas fora de combate sem que o vissem ou reconhecessem. Não

queria nem deveria matá-los. Mas se continuassem vivos, poderiam prestar declarações e trair sua presença. — Dê-me sua lanterna — disse um dos acônidas. Gucky já havia compreendido que Ranault estava deitado no túnel estreito e percebera o perigo que o ameaçava: seria descoberto pelos acônidas. E o técnico estava indefeso. Gucky afastou-se um pouco e escondeu-se atrás de um bloco metálico prateado. — Estão à minha procura? — piou com a voz aguda e logo mudou de lugar. Os dois acônidas sacaram as armas, esquecendo Ranault e o corredor estreito. — Deve estar por ali. Vá por esse lado, enquanto eu vou por aqui. Se possível devemos pegá-lo vivo. Separaram-se, fazendo exatamente aquilo que Gucky desejava. Seria mais fácil enfrentá-los um de cada vez. Estava muito bem escondido e esperou até que conseguiu ver o primeiro guarda. Assim que isso aconteceu, fez uso de suas faculdades telecinéticas. No século anterior as faculdades parapsicológicas do cérebro humano ainda pertenciam à área dúbia das chamadas ciências ocultas. Ninguém tinha coragem de reconhecer a existência dessas faculdades. Muitos cientistas arriscavam sua reputação quando ocupavam seu tempo em experiências nesse setor. Mas subitamente apareceram os mutantes, criaturas que haviam sido atingidas positivamente pelas radiações, e suas capacidades cerebrais adormecidas despertaram de repente. Essas criaturas muito contribuíram para o desenvolvimento da Humanidade, e sob certo prisma podiam ser consideradas monstros. Gucky não era um ser humano. Vinha do planeta Vagabundo. Os seres de sua raça nasciam com o dom da telecinese. Na juventude não conhecera brincadeira mais agradável que a de mover objetos distantes por meio de suas forças mentais e levá-los a um lugar diferente. Ao ser atingido pelos fluxos mentais de Gucky, o acônida endureceu de repente. Nem sequer conseguia mover a boca. Subitamente perdeu o apoio dos pés. Gucky estava entretido em sua brincadeira predileta, mas naquele momento a mesma tinha um fundo sério e decisivo. O acônida não deveria vê-lo. Gucky fez com que o homem totalmente indefeso subisse ao teto, tomando cuidado para que seu companheiro não notasse o estranho fenômeno. Depois fê-lo voar de cabeça para a frente contra a parede oposta. O guarda ficou inconsciente. O rato-castor pousou-o suavemente no canto mais afastado. Levaria algumas horas para recuperar os sentidos e poder dizer alguma coisa. Restava saber se alguém acreditaria no que dissesse. Faltava o outro. Ranault já percebera que o perigo imediato fora afastado. Reconhecera perfeitamente a presença de Gucky. O técnico saiu cautelosamente do seu esconderijo e ergueu-se. Não viu nenhum acônida nem enxergou o menor sinal de Gucky. Era a chance pela qual esperara. Tirou do bolso a cápsula que lhe restava e correu para o setor de ativação. A tampa continuava aberta. Ninguém percebera. Num movimento apressado, mas cauteloso, enfiou o microcontrole no suporte de mola, verificou sua posição e ligou o receptor robotizado para o respectivo sinal. Depois disso fechou a tampa e soltou um suspiro de alívio. Lembrou-se das oito cápsulas escondidas. “Devo buscá-las?”, indagou-se. Viu-se dispensado de tomar uma decisão sobre isso.

— “Ranault. Onde está você? Responda! É Gucky!” — pensou. — “Será que conseguiu livrar-se dos dois acônidas?” — Aqui! — gritou Ranault e olhou em torno. Estou aqui. — Vá para o corredor! Já irei para lá. Gucky falara em inglês, não em arcônida. Ranault esqueceu-se da sacola com as oito cápsulas e correu em direção ao corredor, mas Gucky demorou a aparecer. E teve motivo para isso. Com o primeiro acônida as coisas haviam sido tão fáceis que Gucky se tornou menos cuidadoso. Quando acordasse, o sujeito poderia contar o que lhe desse na cabeça. Não vira ninguém e por isso mesmo não poderia fornecer nenhuma descrição. Talvez acreditassem no que dissesse, talvez não. Respondeu e transmitiu suas instruções a Ranault. O técnico já devia estar no corredor, onde os guardas não poderiam vê-lo. No momento em que Gucky pensava nisso, muito satisfeito, um raio energético passou tão perto de suas costas que chegou a chamuscar-lhe o pêlo. Sentiu o calor e teleportou-se instintivamente para a outra extremidade da sala. Fora descoberto pelo acônida, que o vira perfeitamente. O tal guarda atirara contra o estranho visitante, mas não acertara. No mesmo instante, o intruso desaparecera. O acônida parou, perplexo, olhando em torno. Mantinha a arma pesada pronta para disparar. Onde estaria o desconhecido? Não era possível que se dissolvesse no ar. Ouviu um ruído num canto. Abaixou-se e correu na direção do ruído o mais depressa que pôde. Até mesmo seu pior inimigo não poderia deixar de reconhecer que aquele homem não sabia o que era medo. Estava no interior de uma nave, a sós com um desconhecido que devia possuir faculdades espantosas. Quase tropeçou no companheiro, que jazia inconsciente. No primeiro momento acreditou que estivesse morto, mas logo viu que se enganara. Aquele homem devia ter batido com a cabeça na parede. Sem que o quisesse o acônida olhou para cima e viu algumas manchas de sangue bem embaixo do teto. A conclusão que teve de extrair da sua observação não resistiria a qualquer das leis da lógica. Seu companheiro devia ter voado em posição horizontal, quatro metros acima do solo, para bater com a cabeça na parede. Acontece que um acônida não sabe voar, ao menos sem certos equipamentos. Saltou para trás do gerador mais próximo, pois ouviu passos cautelosos. Alguém aproximava-se. Naturalmente esse alguém era Gucky, que avistou o acônida e captou seus pensamentos. “É uma pena que já começou a suspeitar”, pensou. “A essa hora já sabe que o autor das brincadeiras não é um acônida.” Gucky contornou cautelosamente o gigantesco gerador e... subitamente viu-se a frente com o acônida. Agiu com uma rapidez tremenda, mas não pôde evitar que o acônida o fitasse por um segundo que parecia uma eternidade. A arma adquiriu sua independência e caiu em algum lugar entre as máquinas. Depois disso uma força invisível começou a girar o acônida, cada vez mais rápida e violentamente, até que os objetos que se encontravam na sala desaparecessem diante de seus olhos. Ficou inconsciente, pois a pressão fora muito grande. Gucky segurou a mão do acônida. e teleportou para cima do pólo do couraçado mais próximo. Colocou o homem inconsciente nesse lugar e teve certeza de que nunca se

poderia encontrar uma explicação de como o guarda conseguira subir ao topo da nave. A afirmativa de ter achado um desconhecido numa outra nave se tornaria ainda mais inacreditável. — Isto é apenas um paliativo — confessou Gucky a si mesmo. — Mas que mais posso fazer? Teleportou-se de volta e tirou Ranault da incerteza. Naquele momento, o técnico esqueceu-se completamente dos oito microcontroles que deixara para trás e sentiu-se satisfeito por ver o rato-castor. — Ora veja, Gucky! O que houve? — Quer saber o que houve com os acônidas? Estão dormindo. Vamos embora! Depressa! Saltaram para o topo da montanha e dali para o entreposto comercial, onde já estavam sendo esperados com grande nervosismo e preocupação. Gucky apresentou seu relato, sem ocultar nada. Admitiu a possibilidade de ter sido reconhecido pelo guarda, embora este não o visse por mais de um segundo. Por outro lado era pouco provável que alguém acreditasse nele, pois suas palavras iriam parecer fantásticas demais. — Deixei a sacola com as oito cápsulas na nave — confessou Ranault. — Está muito bem escondida; ninguém a encontrará. — A nave foi preparada; logo, receberemos as cápsulas de volta — disse Rhodan, pausadamente. — Seria muito perigoso prosseguirmos na operação. — Ainda faltam oito cruzadores ligeiros — ponderou Marshall. — É preferível que os acônidas fiquem com eles a que nos descubram nesta altura — decidiu Rhodan. — Ainda temos algumas horas até o raiar do dia. Vamos para a cama. Quem sabe o que nos aguarda amanhã? Gucky sentiu-se martirizado pelas preocupações. — Por que não damos o fora? Temos algum motivo para ficar aqui até que desconfiem? — Ah, é? Então você acha que não desconfiarão se desaparecermos de repente no meio da noite? Até parece que você se esqueceu de que para amanhã programei uma visita às instalações agrícolas juntamente com Auris. Ninguém poderá provar nada contra nós. Tenho de cumprir meu programa diplomático. — Ah, sim, Auris — disse Gucky como quem compreende tudo e retirou-se.

Assim que o dia começou a raiar, Rhodan foi acordado de forma bastante violenta. Estanislau Jakobowski entrou correndo no quarto de Rhodan, sem fazer-se anunciar. — Sir, o campo energético azul! — gritou. — Voltaram a ligá-lo. As comunicações com a Odin estão interrompidas. Rhodan não se levantou logo. — Era o que eu imaginava. Então encontraram os homens. Ninguém pode negar que sabem agir depressa — fez um sinal para Jakobowski. — Está bem. Acorde os outros. Encontramo-nos daqui a dez minutos, na sala de estar. Esperou que Jakobowski se retirasse. Depois levantou-se e mudou de roupa. Lavouse, penteou-se cuidadosamente e certificou-se de que só dali a algumas semanas seria necessário fazer a barba. Aliás, não faria propriamente a barba, mas antes realizaria uma depilação com um preparado adequado. Quando Rhodan entrou na sala, o Tenente Groeder estava de pé ao lado de Marshall. Os rostos dos dois estavam preocupados, mas Rhodan sorriu. — Aconteceu exatamente aquilo que esperávamos — disse ao sentar-se. — Os acônidas perceberam alguma coisa, mas aposto o que quiserem que não têm a menor idéia dos nossos planos. — E o campo azul? — perguntou Groeder. — Perdemos o contato com a Odin. — O Major Scott agirá em conformidade com as instruções. Avisará Atlan e Bell. O tempo trabalha a nosso favor, não a favor de Ácon. Pelo menos desta vez não. Axel Wiener entrou. — O campo energético azul envolve Ácon a dez quilômetros de altura — disse, anunciando o resultado da primeira medição. — Nenhuma nave linear conseguirá passar, sem espatifar-se no chão. Rhodan confirmou com um gesto. — Quer dizer que são dez quilômetros — parecia pensativo. — O tráfego aéreo sobre Ácon não será prejudicado. Isso significa que daqui a pouco teremos visita. Dali a vinte minutos pousou um planador. Auris de Las-Toor desceu, acompanhada por três oficiais. Rhodan foi ao seu encontro com o rosto mais inocente deste mundo e estendeu-lhe a mão. Auris apertou-a num gesto instintivo, mas soltou-a quase apressadamente. — Quero uma explicação para os acontecimentos da última noite — disse em tom frio. — O Conselho encarregou-me de comunicar-lhe que por enquanto o senhor não poderá sair do planeta. Só quando tivermos descoberto o culpado, poderemos cogitar de seu regresso à Terra.

Rhodan respondeu em tom de estranheza: — Que acontecimento é esse, Auris de Las-Toor? Auris fitou-o prolongadamente. Nos rostos dos três homens que a acompanhavam havia uma expressão sombria e resoluta. Num gesto provocador colocaram as mãos sobre as armas que traziam no cinto. — O senhor sabe perfeitamente a que acontecimento me refiro, Perry Rhodan. Na última noite um desconhecido penetrou em nosso porto espacial e quase matou dois dos nossos homens. E o fato aconteceu em circunstâncias muito estranhas. — O que houve mesmo? — perguntou Rhodan, em tom de espanto. — O senhor realmente não sabe? Pois eu lhe explicarei. Auris contou em que condições haviam encontrado os dois policiais e concluiu: — Esse ato só pode ter sido praticado por um mutante, e no caso trata-se de um pequeno ser peludo, que muitas vezes foi visto perto do senhor. Sabemos que esse ser dispõe de faculdades extraordinárias. — Ah, refere-se a Gucky? — Rhodan soltou uma risada; parecia aliviado. — Infelizmente tenho que decepcioná-la, madame. Gucky encontra-se na Terra. Será que a senhora acredita que ele poderia ter vindo aqui, sem dispor de uma nave espacial e sem que eu soubesse? Auris fitou-o prolongadamente. — Quer dizer que a pequena criatura não está aqui? — olhou para a casa, à frente da qual havia algumas pessoas. — O senhor permitiria que eu e meus oficiais revistássemos o local? — Se a senhora faz questão e se isso a tranqüiliza, fique à vontade — respondeu Rhodan. — Mas exijo que depois disso o campo energético seja desligado, pois ele impede nossas comunicações pelo rádio. — O campo será desligado quando nós acharmos conveniente — disse Auris, em tom atrevido. — O senhor cometeu uma infração grave e não estamos dispostos a tolerar isso. O Conselho adiou a decisão sobre a ampliação da base até que o assunto seja esclarecido. “Dê o fora!”, pensou Rhodan intensamente, esperando que Gucky mantivesse contato telepático com ele. Perry era um telepata tão fraco que não poderia prestar atenção aos impulsos de Gucky, sem chamar a atenção dos presentes. Auris e os oficiais executaram o trabalho com o maior cuidado. Revistaram todos os compartimentos da casa. Rhodan ajudou-os e chegou mesmo a levá-los ao porão. Não viram o menor sinal do pequeno ser peludo. Apenas, um dos oficiais pisou numa cenoura meio roída e escorregou. Ninguém teve a idéia de que essa cenoura pudesse representar uma pista da presença de Gucky, embora na verdade fosse o sinal mais evidente que poderia ter deixado. Dali a meia hora Rhodan acompanhou sua visitante até o planador. — Quando a senhora me espera para a visita que planejamos, madame? — Não o espero, Rhodan. E o campo energético será mantido. O senhor terá notícias minhas. Rhodan olhou para o relógio. Dentro de duas horas terminaria o prazo combinado com o Major Scott. — A senhora está cometendo um erro, Auris — disse em tom preocupado. — A interrupção dos contatos com a Terra desencadeará certas operações que farão com que a senhora se arrependa da atitude que está tomando. Sua frota ainda não está em condições

de entrar em combate. O que pretende fazer quando minhas naves partirem para o ataque? Auris fitou-o com uma expressão triste. Via-se perfeitamente que agia contra sua vontade e contra suas convicções. — O campo azul nos protegerá. — De forma alguma — respondeu Rhodan. — A senhora sabe perfeitamente que nossas naves podem atravessar o campo energético. Ao menos as naves que dispõem do sistema de propulsão linear. Auris sorriu. — As naves se espatifariam e seus homens morreriam. Foi a vez de Rhodan sorrir. — Naturalmente se espatifariam, mas serão naves sem tripulantes, que transportarão uma carga muito perigosa. As bombas de Árcon serão detonadas com o impacto. Seu campo azul será eliminado e a senhora ficará entregue ao seu destino. Auris fitou-o. A coloração moreno-aveludada de sua pele desapareceu. Havia um brilho de insegurança em seus olhos, enquanto se afastava. — Avisarei o Grande Conselho. Oportunamente o senhor será cientificado. Desta vez não estendeu a mão a Rhodan. Este teve a impressão de que assim agira somente por causa dos oficiais, que haviam acompanhado a conversa em silêncio. A escotilha fechou-se e o planador foi subindo, para afastar-se rapidamente em direção à cidade. Rhodan seguiu-o com os olhos até que desaparecesse atrás das colinas. Depois voltou lentamente para a casa. Os amigos aguardavam-no do lado de fora. Gucky, que já tinha voltado, mantinha-se num ponto mais afastado. Teleportara-se para o topo da montanha que antes lhe servira de estação intermediária nos seus saltos. De lá acompanhara atentamente a palestra travada por Rhodan e Auris, e assim tivera conhecimento da partida do planador. — E agora? — perguntou John Marshall. — Antes de mais nada, Atlan intervirá. Como todos sabem, o campo energético azul não constitui um obstáculo invencível para as ondas de hiper-rádio. Um transmissor que tenha bastante potência é capaz de rompê-lo, o que não é possível com o rádio comum. Atlan entrará em contato comigo “por puro acaso” e tomará conhecimento dos acontecimentos. Pedirei que me ajude. Os acônidas, que poderão captar a transmissão, ficarão sabendo como Atlan reagirá diante do... Viu-se interrompido antes que pudesse completar a frase. Axel Wiener, que estava de plantão na sala de rádio, saiu da casa. — Uma mensagem de hiper-rádio, sir. É a central de Árcon. Rhodan fez um gesto. — Está na hora. Vamos fazer votos de que os acônidas estejam grudados nos aparelhos de escuta. Nesse caso terão uma boa surpresa, que tornará ainda mais forte o choque que sofrerão depois. Os outros seguiram-no. Estavam curiosos para ver o que iria acontecer. Rhodan entrou na sala de rádio. Viu o rosto de seu amigo Atlan na tela. A imagem do imperador era pouco nítida porque o campo energético prejudicava gravemente a transmissão. — Você se encontra no mundo dos ancestrais — disse Atlan, dando início à palestra. — Eu o vejo muito mal, Perry. Não existe nenhum motivo especial para este

chamado, mas se você dispuser de tempo, eu gostaria que, por ocasião do regresso para a Terra, você se dirigisse ao sistema de Proxyta. No segundo planeta... Neste ponto foi interrompido por Rhodan. — Ainda bem que você chamou, Atlan. Os aparelhos de que disponho aqui são muito fracos para romper o campo energético de Ácon. Encontro-me numa situação melindrosa. Os acônidas estão criando problemas. Preciso do seu auxílio. Atlan mostrou-se espantado, conforme fora combinado. — Você precisa de ajuda? Diga logo do que se trata. Rhodan apresentou seu relato. Recriminou amargamente os acônidas, fazendo questão de ressaltar que não tinha o menor interesse em provocar complicações diplomáticas com Ácon. Mas também ressaltou que, se não tivesse outra alternativa, seria obrigado a defender-se. — Como pretende fazer isso se não dispõe de nenhuma frota? — perguntou Atlan. De repente havia uma tonalidade irônica na voz de Atlan, que por certo provocaria a atenção dos acônidas. — Quanto a mim, nem penso em ajudá-lo. Afinal, descendemos deles, e se houve conflitos entre nós, os mesmos não mais existem. Hoje em dia as relações entre Árcon e Ácon são amistosas. Rhodan parecia indeciso. — Peço-lhe que me ajude, Atlan. Você não poderá negar seu auxílio. Não se esqueça de nossa aliança. — Também tenho uma aliança com os acônidas, e a mesma é mais importante. Perry, no presente caso não posso prestar-lhes qualquer auxílio, sem provocar uma guerra com Ácon. Será que vale a pena assumir um risco tão grande por uma bagatela como essa? — Não, não vale — confessou Rhodan, aparentemente a contragosto. — É verdade que se trata de uma bagatela. Gucky está na Terra, e o homem que sofreu um ataque diz tê-lo visto numa nave dos acônidas. Ninguém poderá provar isso. Todavia... — Procure conseguir permissão de decolar e dê o fora de Ácon. É o único conselho que lhe posso dar. Sinto muito, mas estou do lado dos meus ancestrais. Estão com a razão, pois afinal Ácon é seu mundo. Os terranos não têm nada a fazer por aí. Rhodan fitou Atlan com uma expressão furiosa. Depois de algum tempo disse: — Seja o que você quiser, Atlan. Nunca me esquecerei de que você me negou seu auxílio. Desligou abruptamente. Dali a alguns segundos, quando a ligação foi interrompida também do lado de Árcon, a imagem de Atlan apagou-se. Marshall, Groeder e os outros fitaram Rhodan com uma expressão de perplexidade. Rhodan sorriu e fez um gesto. — Excelente, não acham? Atlan bem que poderia ter abraçado a profissão de artista. Marshall, que já lera os pensamentos de Rhodan, sorriu. Com o Tenente Groeder não aconteceu a mesma coisa. — Quer dizer...? — É claro que só pode ser isso. A briga entre mim e Atlan faz parte do espetáculo. Daqui a uma hora, Bell dará início à segunda fase. Para os acônidas será mais fácil atender às minhas exigências se pensarem que Atlan está do seu lado. Parece um paradoxo, não parece? — um sorriso irônico esboçou-se em seu rosto. — Acontece que não é. Os acônidas ficarão satisfeitos, pois isso talvez lhes renda uma aliança com Atlan. Veremos. Além disso, mais tarde, quando houver necessidade, os acônidas estarão mais dispostos a acreditar nas declarações de Atlan. E é o que importa.

Alguém, que se encontrava mais ao fundo, fez um sinal. Todos viraram-se. Gucky passava a mão no pêlo que lhe cobria o peito. — Na minha opinião isso é muito confuso e complicado. Drama e mentira — soltou um assobio de desaprovação. — Nos círculos civilizados tudo isso costuma ser designado pela palavra diplomacia. Afastou-se em atitude de desprezo. *** Naturalmente os postos de escuta de Ácon haviam acompanhado a comunicação audiovisual entre Rhodan e Atlan. O Grande Conselho foi convocado imediatamente para examinar a nova situação. Durante a sessão, Auris de Las-Toor manteve uma atitude bastante discreta. Quase chegava a dar a impressão de estar decepcionada. Ninguém soube explicar sua atitude, mas quando chegaram os primeiros avisos de abalos estruturais em torno do sistema, muitos membros do Conselho acreditaram ter encontrado uma explicação para a atitude discreta e a decepção da representante feminina. As informações eram inquietantes. Os abalos estruturais ininterruptos nas imediações do Sistema Azul provavam que uma gigantesca frota ia se materializando. Saiu do hiperespaço e fechou o cerco em torno de Ácon. As mensagens de rádio que foram captadas indicavam que se tratava de uma frota terrana que viera para libertar Rhodan. Os conselheiros acônidas sentiram-se dominados pelo pânico. O comando de sua frota informou que as naves que estavam sendo adaptadas ainda não podiam entrar em ação. Além disso, parecia haver uma superioridade de um para cinco a favor dos terranos. Constatara-se a presença de cinco mil unidades. Por algum motivo desconhecido a mensagem de rádio dirigida ao imperador de Árcon ficou sem resposta. O Conselho precisava urgentemente de bons conselhos. Finalmente incumbiu Auris de Las-Toor de procurar um entendimento com Rhodan. *** — A senhora já deve ter visto que nestas últimas horas a situação se modificou bastante, Auris de Las-Toor — disse Rhodan. — Veio para avisar-me que já posso sair livremente de Ácon? Auris fitou atentamente os olhos cinzentos de Rhodan. — O senhor não pode contar com o apoio de Atlan, Rhodan. Rhodan fez um gesto de desprezo. — Saberei defender-me sem Atlan, Auris. O Império de Árcon não intervirá no conflito, nem a meu favor, nem a seu favor. Para mim é quanto basta. — Quais são suas exigências? John Marshall mantinha-se em posição mais afastada. Cabia-lhe examinar os pensamentos da acônida e avisar Rhodan assim que a mesma tramasse alguma traição. Por enquanto não dera o sinal combinado. — Quero ter liberdade para sair daqui e exijo o cumprimento do que combinamos em relação à ampliação de nosso entreposto comercial. Várias naves mercantes já estão à espera no interior do sistema. Conceda a permissão de pousar.

— E sua frota de guerra? Será que não atacará quando abrirmos o campo energético? Rhodan surpreendeu-se. Era uma idéia nova, com a qual ele não contara. — Seria possível manter o campo energético, abrindo apenas uma passagem? Auris confirmou com um gesto hesitante. Rhodan prosseguiu: — Pois bem, vou formular outra exigência. No futuro, Ácon poderá ativar o campo azul quando quiser, mas obriga-se a deixar livre o espaço aéreo acima de nosso entreposto. Poderia fazer o favor de transmitir esta exigência ao Conselho? — Nossos geradores foram colocados de tal maneira que nesse caso uma área muito mais ampla que sua base ficaria desguarnecida. — Mantenho minha exigência, Auris — de repente o tom de sua voz parecia mais suave e acessível. — Procure compreender que tenho de tomar minhas precauções, Auris. Quero que a senhora compreenda, mesmo que os membros do Conselho não queiram ou não possam. Tente. Auris fitou-o. — É o que estou tentando desde que nos conhecemos, Rhodan. Nem sempre tem sido fácil. Compreendo seus atos, mas nem sempre estes correspondem aos interesses dos acônidas. E mesmo que eu compreenda tais atos, não posso concordar com os mesmos. Rhodan soltou um suspiro. — A senhora torna as negociações bem difíceis, Auris, pois não quero decepcionála nem magoá-la. A senhora cumpre seu dever de acônida e eu cumpro o de terrano. Os sentimentos pessoais porventura existentes deverão ser deixados de lado. De qualquer maneira, porém, eles não deixam de desempenhar seu papel, conforme já ressaltei. Por isso desejo que volte à cidade e peça ao Conselho que me envie outro representante, caso minhas propostas sejam rejeitadas. Perante qualquer outra pessoa poderei abandonar certas considerações que tenho para com a senhora. Desta vez Auris estendeu-lhe a mão antes de entrar no planador. — O senhor terá notícias nossas, Perry Rhodan — prometeu e fitou-o em cheio. — E eu voltarei, haja o que houver. John Marshall fez um sinal para Rhodan, que acompanhava o planador com a vista. — Auris disse a verdade, sir. Não há em sua mente qualquer falsidade, nenhuma idéia de traição. Suas intenções são honestas. — Sei disso — respondeu Rhodan em tom pensativo. — É justamente por isso que minha tarefa se torna tão difícil. Se todos os acônidas fossem falsos e traiçoeiros, eu seria de opinião que nossos atos se justificariam. Mas do jeito que estão as coisas, acho que nosso plano não passa de pura traição, mesmo que não tenhamos outra possibilidade de proteger a Terra. Mesmo que hoje em dia os acônidas não tenham nenhuma traição em mente, um belo dia terão. Isso acontecerá quando se sentirem bastante fortes. E esse dia chegará quando possuírem uma frota espacial. Daí se conclui que nossa atuação é correta. — Naturalmente — concordou o Tenente Groeder, que acabara de aproximar-se. — Afinal, esse campo energético não representa um ato amistoso para conosco. Gucky apareceu. — Já estou cansado de esconder-me no porão ou teleportar-me para as montanhas toda vez que aparece um acônida — lamentou-se. — Vivo escondido, em vez de participar dos acontecimentos. — Temos de tomar nossas precauções — disse Rhodan, em tom apaziguador. — Se você for visto, a trama estará descoberta. Por enquanto os acônidas não têm certeza de

quem colocou fora de ação os dois policiais. Suspeitam, e as suspeitas dirigem-se a você. Mas não podem provar nada. — Sim, compreendo. Mas bem que gostaria que pudéssemos dar logo o fora daqui. É bem verdade que não há nenhum perigo, mas é justamente por isso que sinto tanto tédio. — Não há perigo? — perguntou Rhodan, erguendo as sobrancelhas. — Receio que você esteja subestimando a situação. Se os acônidas não caírem no meu blefe dos bombardeios espaciais de mergulho, ficaremos presos embaixo do campo azul pro resto da vida. Bell não pode fazer nada sem assumir um grande risco para si ou colocar-nos em perigo. — Hum — fez Gucky. Preferiu afastar-se sem outros comentários. Rhodan olhou para o relógio que trazia no braço. — Ainda faltam três horas para a próxima ação. Espero que até lá tenhamos uma resposta dos acônidas. Enquanto isso cuidaremos do receptor de impulsos. Groeder e Wiener me ajudarão — fez um sinal para Jenner e Ranault, que se encontravam perto deles. — É claro que os senhores também ajudarão. Desceram para o porão, onde Gucky, bastante contrariado, se mantinha agachado num canto, como quem não tem nada com o que se passa em torno de si. Três minutos antes do fim do prazo o pequeno receptor audiovisual entrou em atividade. Auris apareceu na tela. Alguém foi chamar Rhodan. Muito tenso, mas aparentando calma, entrou na sala de rádio. Cumprimentou Auris com um gesto e sentouse numa cadeira. — Então, o que diz o Grande Conselho de Ácon? Auris fechou os olhos por um instante e começou a falar: — Suas propostas foram aceitas. O campo azul ficará aberto permanentemente em cima da base terrana. Haverá a respectiva adaptação dos geradores. — Obrigado — respondeu Rhodan e esboçou um sorriso amável, parecendo que nunca houvera divergências entre ele e Auris. — E a ampliação de nosso porto espacial? — Também foi aceita, se bem que... Interrompeu-se abruptamente. John Marshall, cuja faculdade telepática lhe permitia controlar os pensamentos de uma pessoa a uma distância relativamente grande, lançou um olhar preocupado para Rhodan. — Se bem o quê? — Não é nada, Perry Rhodan. Apenas quero preveni-lo. O senhor conseguiu isso por meio de ameaças. O Conselho só concordou a contragosto. — Não tive outra alternativa. — Pois é justamente isso. Uma amizade forçada não dura. Rhodan lançou um olhar penetrante para Auris. — A amizade que une nós dois não é forçada, Auris. Surgiu espontaneamente. E não é afetada por aquilo que a senhora e eu devemos fazer em virtude do cargo que ocupamos. Não nos esqueçamos disso, haja o que houver — apontou para o teto. — Providencie para que o campo energético seja desligado. Minha frota recebeu ordens para iniciar o ataque a Ácon daqui a cinco minutos. Auris assustou-se. Olhou em torno, como quem procura auxílio. — Como posso fazer isso tão depressa? O Conselho terá de ser convocado. Pela decisão do mesmo, o desligamento só estava previsto para hoje de noite e...

— Aja independentemente do Conselho, Auris! Dê logo a ordem, senão será tarde para Ácon. Auris hesitou. Mas quando voltou a fitá-lo, leu nos olhos de Rhodan a gravidade da situação. Confirmou com um gesto e disse em tom resoluto: — Está bem. Mandarei desligar o campo energético. — E deixe-o desligado por cinco horas, para que minhas naves mercantes possam pousar e decolar livremente. Já há muitas unidades reunidas no sistema. Garanto que nenhuma nave de minha frota de guerra pousará no planeta. — Obrigado — respondeu Auris e desligou. Rhodan olhou para o relógio. — Ainda dispomos de dois minutos, Groeder. Faça uma ligação para Bell e chameme assim que estiver completada. Espero que o campo azul desapareça de um instante para outro — levantou-se. — Esperarei lá fora. Jakobowski e Jenner encontravam-se à frente da casa e olhavam para o céu, que brilhava num azul intenso. Quando viram Rhodan, sentiram-se aliviados. — O campo energético será desativado a qualquer momento — disse este. — Não acredito que os acônidas assumam o risco de um ataque. Acredito que a abertura que consegui pelo prazo de cinco horas será suficiente para permitir a saída de toda a frota robotizada. Pelo que concluí das palavras de Auris, o campo azul será aberto também sobre o porto espacial dos acônidas. Se tudo correr conforme previmos, não terão tempo de voltar a ativá-lo. Jakobowski apontou para o alto. — Olhe o campo energético, sir. Foi desligado. Realmente o azul do céu tornara-se mais pálido. Só junto à linha do horizonte havia uma faixa azul-escura. Parecia que naquela região se estendia o oceano. Naquele momento Wiener saiu correndo da casa. — Sir, o Tenente Groeder já conseguiu a ligação com mister Bell. — Excelente — Rhodan correu para a sala de rádio. O rosto do Major Scott apareceu numa segunda tela. Rhodan poderia falar com ele e com Bell ao mesmo tempo. — Tudo bem, Bell — principiou, esperando mais uma vez que os acônidas o ouvissem. — A frota continuará de prontidão. Não ataquem! As naves cargueiras que estão esperando podem pousar. Major Scott, o senhor também pousará para levar-nos. Acho que as negociações a concluir poderão ser conduzidas por Jakobowski, que será meu representante. — São sete naves cargueiras, sir — disse Scott. — Quer dizer que juntamente com minha nave serão oito unidades que precisarão de permissão para pousar. — Ácon já concedeu a permissão — respondeu Rhodan em tom indiferente, numa interferência consciente nas atribuições do Grande Conselho. — Acredito que no futuro não haverá mais necessidade de obter uma permissão de pousar. Mais alguma pergunta, major? — Não senhor. Quer dizer que pousarei juntamente com as naves mercantes. Rhodan fez um gesto para Scott e Bell. — O contato de rádio será mantido. Bell, se o campo energético for ativado de novo, você atacará imediatamente com bombas robotizadas. — Naturalmente — disse Bell com um sorriso. Rhodan fitou-o com uma expressão de advertência e saiu para assistir ao pouso das naves terranas. Antes que a primeira tocasse na superfície de Ácon, pousou um planador e dele desceu Auris. Rhodan viu-a aproximar-se sem que ninguém a acompanhasse e

compreendeu que seria a última vez que a olharia por algumas semanas. O futuro encontro traria algumas perguntas desagradáveis para ele, cujas respostas já preparara. — Muito obrigado pelo auxílio, Auris — disse em tom amável. — Já avisou os comandos de carga? Sete naves terranas pousarão e descarregarão mercadorias destinadas ao comércio. Auris fitou-o prolongadamente, mas não entrou no assunto em que Rhodan acabara de tocar. — Seria difícil influenciar o Conselho tão depressa. Portanto, dei por conta própria a ordem para que a barreira energética fosse retirada. Faço votos de que minha ordem não seja revogada. Se isso acontecer, a culpa não será minha. Talvez não permitirão sua saída do planeta, enquanto o incidente da última noite não for esclarecido. — Por quê? Auris continuava a fitá-lo. — O intruso colocou fora de ação dois policiais nossos que patrulhavam o porto espacial. O Grande Conselho quer saber o que estava fazendo por lá. Receia-se que tenha agido por ordem sua, a fim de danificar as naves. — Um simples intruso? Isso é ridículo! Como é que uma única pessoa pode inutilizar toda uma frota? — É justamente o que queremos saber. Ainda não encontramos nenhuma resposta — confessou Auris, honestamente. Continuavam de pé na área que ficava entre o planador e a casa. Ninguém podia ouvir o que diziam, com exceção de Marshall e Gucky, que se encontravam no interior da casa. — De qualquer maneira peço-lhe que não saia de Ácon, Rhodan, enquanto as naves não tiverem sido examinadas por peritos. — Sinto muito, Auris, mas já tomei todos os preparativos para deixar Ácon nestas próximas horas. Não posso revogar tudo sem que haja um motivo bem plausível. — E se eu lhe pedisse? Rhodan manteve-se inflexível. — Isso não alteraria nada, por mais que lamente não poder encontrar-me mais com a senhora... ao menos num futuro previsível. De repente surgiu uma expressão de tristeza nos olhos de Auris. O brilho do sol nascente deu uma colaração violeta ao seu cabelo cor de cobre, fazendo-o ficar com uma tonalidade quase igual à da manta que usava constantemente. — Terei dificuldades... — disse Auris. — Por ter agido por conta própria? Não acredito que isso aconteça se explicar ao Conselho que se viu coagida pelas circunstâncias. Ninguém poderá acusá-la, Auris. A senhora apenas defendeu os interesses de Ácon. — É estranho. Foi logo o senhor quem me obrigou a defender os interesses de Ácon. Seria perfeitamente compreensível que só pensasse nos seus interesses... Rhodan sorriu. — Às vezes os interesses das duas partes são paralelos, Auris. A palestra prolongou-se por mais dez minutos, até ser interrompida pelo pouso da Odin. — Este é o comandante de minha nave — disse Rhodan, apontando para o Major Scott, que acabara de entrar no elevador antigravitacional que o levou suavemente da escotilha para o solo. — Peço licença para apresentar-lhe o Major Scott — esperou que

os dois se apertassem as mãos. — Major Scott, recolha o pessoal. Decolaremos dentro de meia hora. Dali a pouco despediu-se de Auris, que parecia bastante insegura. Sentiu que algo estava para acontecer, algo que talvez poderia ter evitado. Mas não dispunha de qualquer prova de que Rhodan pretendia enganá-la. Quando Marshall informou Rhodan sobre esses pensamentos da acônida, o administrador soltou um suspiro de alívio. — É exatamente o que eu quero que ela acredite; ela e os acônidas. Será um acaso, um acaso incompreensível, mas nada improvável na área da Cibernética. Terá sido um pequeno erro na manipulação dos controles, que não foi notado por ninguém. Uma causa insignificante produziu um efeito tremendo. As naves cargueiras foram pousando uma após a outra. Jakobowski teve o que fazer. Esqueceu-se das preocupações que Rhodan procurara apagar. — Não se preocupe com os acônidas — dissera Rhodan. — Quando o “acaso” acontecer, procurarão prendê-lo, atribuindo a culpa a mim e ao senhor. Mas o senhor sempre poderá apresentar o argumento de que nunca teria ficado no planeta se a subtração da frota acônida tivesse sido planejada por nós. Ninguém faz uma cova para deitar-se no interior da mesma. Finalmente a Odin decolou. A abertura no campo energético azul era perfeitamente visível a grande altitude. Realmente cobria uma área bem ampla. A gigantesca frota espacial dos acônidas jazia desprotegida na zona neutra. Sem dúvida pretendiam retirá-la dali quanto antes. Mas quando isso acontecesse seria tarde. Rhodan encontrava-se na sala de comando, juntamente com Jenner. Olhou para o relógio. — São três horas e dez minutos, tempo padrão da Terra. Exatamente às cinco horas, ou seja, dentro de menos de duas horas, o transmissor de impulsos emitirá o sinal de ativação. Tem certeza de que tudo está certo, tenente? — Tenho certeza absoluta. Todos os setores de ativação das naves foram regulados para a mesma freqüência. Assim que o sinal de impulsionamento for transmitido, o dispositivo robotizado assumirá o comando de todas as unidades da frota. A rota será programada. Dentro de cinco minutos os propulsores desenvolverão sua plena potência. Assim que as naves tenham sido colocadas na rota, o transmissor de impulsos será destruído. A pequena carga explosiva que se encontra no porão da casa de Jakobowski será detonada exatamente às cinco horas e três minutos. A nuvem de ácido dissolverá o transmissor. Ninguém encontrará o menor vestígio do mesmo. Rhodan confirmou com um gesto. Parecia satisfeito. — Se tudo der certo, daqui a duas horas os acônidas só terão oito naves e não mil. Sinto não poder ver seus rostos quando a frota decolar. Ácon foi-se afastando no espaço. A Odin reuniu-se à frota de Bell. Todas as unidades realizaram uma transição não camuflada em direção à Terra. O salto seria facilmente registrado pelos rastreadores estruturais dos acônidas. Até mesmo a segunda e a terceira transição poderiam ser acompanhadas sem dificuldade. Rhodan não tomou nenhuma providência para que a direção e a intensidade dessas transições fossem mantidas em segredo. Subitamente prenderam a respiração. Os ponteiros dos relógios avançavam para a marca das cinco horas, tempo padrão da Terra.

Auris de Las-Toor tentava defender seu ponto de vista junto ao Conselho convocado às pressas. Não foi fácil, mas os acônidas acabaram reconhecendo que, nas circunstâncias relatadas, não haveria outra solução. As medidas adotadas por Auris foram aprovadas a posteriori. Os técnicos realizaram um exame por amostragem. Não encontraram qualquer alteração nas naves vistoriadas. Isso não lhes dava uma certeza cem por cento de que o intruso desconhecido fora perturbado na execução do seu plano, mas o fato sempre representava uma tranqüilidade. Uma hora depois da partida de Perry Rhodan, os últimos técnicos saíram das naves e anunciaram que estavam prontos para prosseguir nos trabalhos de adaptação. No entanto, o Grande Conselho chegou à conclusão de que a redução da área de abertura do campo energético seria mais urgente. Para isso tornava-se necessária a remoção das unidades geradoras, que exigia toda a força de trabalho disponível. Auris foi para casa e finalmente teve tempo para refletir. Da janela tinha uma boa visão da cidade, que ficava de um lado. À sua esquerda viam-se os bojos reluzentes de centenas de espaçonaves. No horizonte, confundiam-se com o azul do céu. Auris recapitulou as declarações dos policiais que haviam sido atacados. Era impossível que tivesse havido um engano. O ser que aquele homem vira só podia ser o pequeno rato-castor que costumava estar sempre em companhia de Rhodan. Mas desta vez não foi visto em companhia do administrador. As suspeitas de Auris iam aumentando. “Por que Rhodan mandou o rato-castor para aquela nave?”, indagou-se. Não se sabia muita coisa a respeito daquele animal que, segundo se dizia, possuía faculdades sobrenaturais. Devia ser um mutante. A maneira pela qual o policial fora colocado fora de ação parecia indicar isso mesmo. Auris lembrou-se do homem invisível que fora “visto” quando se encontrava na frente da barreira, deixando uma marca na grama. Haveria alguma relação entre os dois fatos? À medida que refletia sobre isso, tornava-se cada vez mais preocupada. “Será que não cometi um erro ao permitir que Rhodan saísse livremente do planeta?”, voltou a questionar-se. Afastou-se da janela e sentou-se numa confortável poltrona anatômica que ficava próxima à mesma. De repente a casa foi atingida por uma tormenta vinda da planície. A janela rachou sob a pressão. As vidraças e a poeira penetraram pela janela. Alguma coisa comprimiu o corpo de Auris, prendendo-a à poltrona. Mal conseguia mover-se, mas finalmente conseguiu olhar pela janela. E então viu. Era a frota! Os propulsores começaram a uivar e as unidades precipitaram-se para o céu azul de Ácon. Eram cinqüenta ou cem naves de cada vez. Só agora o deslocamento de ar provocado pela decolagem do primeiro grupo atingira a casa de Auris. Metade da frota já subira ao céu. E o resto seguia as primeiras unidades com uma terrível precisão. Mesmo que a pressão não a impedisse de levantar-se, Auris teria permanecido na poltrona. De repente começou a compreender. A consciência da culpa aliou-se ao medo da responsabilidade que teria de carregar sozinha. Fora enganada por Perry Rhodan, pois ninguém senão ele poderia ter provocado a fuga da frota robotizada. Então foi esse o motivo da “excursão do invisível”, foi esse o motivo do ataque aos dois policiais.

Mas no momento em que as últimas naves decolavam e a pressão causada pelo deslocamento de ar foi diminuindo, Auris lembrou-se de uma frase que Rhodan proferira numa prolongada palestra, durante a qual haviam abordado temas filosóficos. — No amor e na guerra todos os recursos são permitidos — dissera Rhodan, citando um provérbio muito em voga entre os indivíduos de seu povo. Auris prosseguiu em suas reflexões. Se Rhodan tivesse agido de acordo com os princípios morais de seu povo, ninguém poderia acusá-lo por isso. Fizera o que devia. Além disso, ainda não havia como afirmar se a fuga da frota realmente fora obra sua ou se resultará de um acaso técnico incompreensível. Levantou-se e saiu da casa. Teria de chamar trabalhadores, mas era bem possível que tivesse de esperar bastante para que o estrago fosse consertado. Por certo sua casa não havia sido a única que fora atingida pelo deslocamento de ar. Soltou um suspiro e entrou no pequeno planador, que numa viagem rápida a levou até a cidade. *** Os rastreadores automáticos dos acônidas funcionavam muito bem. Entraram em ação assim que o propulsor da primeira nave entrou em funcionamento. E acompanharam o curso de toda a frota que, segundo parecia, era dirigida por um comando robotizado, até o momento em que mergulhou no hiperespaço. Mais tarde os registros positrônicos contaram sua história. As naves decolaram em grupos, com um intervalo de poucos segundos. Aceleraram imediatamente ao máximo e todas se dirigiram a um ponto predeterminado, onde se reuniram. Chegando lá, prosseguiram na mesma rota, que levava para um sol também azul, situado a cinco anos-luz do ponto pré-fixado. Subitamente toda a frota desapareceu no hiperespaço, como se obedecesse a um comando único. No mesmo instante houve um acontecimento extraordinário, que só pôde ser constatado dali a cinco anos, a olho nu. O cruzador de patrulhamento Ácon VIII transmitiu o relato uma hora depois da decolagem da frota. Os tripulantes testemunharam o acontecimento, pois o vôo de inspeção levava o cruzador em direção ao sol azul. O texto do relatório era o seguinte: O sol sem planetas teve urna nova irrupção. Um fenômeno inexplicável que se desenrolou na superfície do sol provocou uma reação em cadeia, que atingiu a parte interna da estrela e provocou a explosão da mesma. Isso aconteceu quando nos aproximávamos deste sol. Conseguimos voltar em tempo. Nossos filmes revelam claramente que alguns objetos voadores saíram do hiperespaço nas proximidades do sol e foram atingidos por sua gravitação. A queda destes objetos e as explosões nucleares que se seguiram devem ter causado a irrupção. Aguardamos novas instruções. Comandante Kondor. Depois de ter ouvido o relato vindo de Ácon VIII, o Grande Conselho teve suas primeiras dúvidas sobre a culpabilidade de Rhodan. Que interesse poderia ter o terrano em roubar-lhes a frota para fazer com que se precipitasse num sol? A tese de Auris,

segundo a qual o fenômeno poderia ter sido causado pelos comandos robotizados que provocaram uma ação independente, firmou-se cada vez mais. Mas não havia como provar uma hipótese ou outra. Auris foi incumbida de manter um contato de hiper-rádio com o imperador de Árcon. Recebeu suas diretrizes e foi imediatamente à estação de rádio que ficava na periferia do porto espacial, agora quase vazio. Atlan ouviu o relato sem interromper Auris. Seu rosto manteve uma expressão de indiferença, embora em seu olhar surgisse um brilho de simpatia quando encontrava com o de Auris. Assim que Auris concluiu, perguntou: — Por que Ácon resolveu avisar-me sobre a falha dos comandos robotizados da frota? Será que posso ser culpado pela incompetência dos seus técnicos? As naves estavam em boas condições, mas acabam de cair sobre um sol e foram destruídas. É claro que a decolagem inesperada pode ter sido provocada por alguma manipulação errônea do comando. — As causas ainda serão esclarecidas. O Grande Conselho de Ácon gostaria de saber se o senhor pode colocar à nossa disposição mais uma frota de mil naves. Estamos dispostos a pagar o preço que for pedido. Atlan fitou-a com uma expressão de espanto. — Mil naves? Isso só pode ser uma brincadeira, Auris de Las-Toor. Onde poderia arranjar mil naves, num momento em que os inimigos ameaçam o Grande Império em todos os lados? Se houver alguma emergência poderei ajudar, mas sinto muito não poder fornecer as mil naves. — E se provássemos que Perry Rhodan roubou nossa frota? — perguntou Auris, com a voz tensa. Atlan parecia espantado. — Provar que Rhodan roubou a frota? — soltou uma gargalhada. — Por que faria uma coisa dessas? Sua frota espacial é tão grande que não iria transformar-se num ladrão para fortalecê-la. Não, Auris de Las-Toor, essa idéia não tem nenhuma base lógica. — Pois ele provocou suspeitas — insistiu Auris. — Estranhas coisas aconteceram enquanto se encontrava em Ácon. — Isso pode ter sido coincidência. Se Rhodan tivesse subtraído a frota, sem dúvida teria encontrado um porto melhor que aquele sol azul. Não acha, Auris? Auris confirmou com um gesto. — Apenas estou repetindo o que diz o Conselho. Da minha parte não acredito que Rhodan seja culpado. Mas insisto no pedido de que o senhor nos ceda outra frota. Sem couraçados espaciais, estaremos indefesos diante de qualquer ataque. — Pois eu insisto em dizer que é impossível. E também insisto na garantia de que, em caso de ataque, não negarei meu auxílio a Ácon. Tenho certeza de que Rhodan fornecerá uma garantia idêntica quando souber do acidente. Um instante, Auris. Nesse momento estou recebendo uma mensagem. Olhou para o lado e pegou uma chapa de plástico na qual estavam gravadas certas letras. Isso provava que se tratava de uma mensagem de hiper-rádio, recebida pela estação robotizada. Leu-a e voltou a olhar para Auris. — Ouça as informações que acabo de receber, embora não representem nenhuma novidade para a senhora. Mas por certo removerão quaisquer dúvidas que ainda possam haver em seu espírito. A mensagem vem de um posto móvel de observação espacial e diz respeito ao sol azul que ficava a cinco anos-luz de Ácon. Preste atenção, Auris: “Cerca

de mil esferas espaciais dirigiram-se a esse sol e, com pequenos intervalos, desapareceram sob o envoltório gasoso, provocando uma reação nuclear no coração do sol, que sofreu nova irrupção. Estas observações provam que as naves não obedeceram a qualquer comando humano. E também não se pode provar se eram comandadas por robôs. As naves, depois de superarem a força de tração do sol, desmaterializaram-se.’’ Voltou a olhar para Auris. — Como vê, também por outro caminho chega-se a conclusão idêntica à sua. Quero fazer-lhe uma pergunta. A senhora realmente acredita que Rhodan seria tolo a ponto de destruir uma frota espacial, depois de ter assumido riscos enormes ao roubá-la? Auris enfrentou o olhar de Atlan. — Não — disse em tom apático. — Não acredito — procurou esboçar um sorriso débil. — Fico-lhe muito grata, Atlan. Transmitirei suas informações ao Grande Conselho de Ácon. Passe bem. — Muitas felicidades, Auris de Las-Toor — respondeu Atlan antes que a tela escurecesse. Auris se viu novamente a sós com as dúvidas e a incerteza que a enchiam cada vez mais. *** Uma mão lava a outra, e com isso ambas ficam limpas. Rhodan e Atlan haviam seguido este princípio. Sob o ponto de vista moral não haviam cometido nenhum roubo, mas apenas “recuperaram” algo, que os acônidas tinham adquirido sob falsos pressupostos, embora não fossem culpados disso. Estavam novamente sem frota, mas bastariam alguns decênios para que construíssem uma. Mas muita coisa aconteceria até lá, e Rhodan e Atlan saberiam aproveitar o tempo. O sol azul, que sofrerá nova irrupção, representava apenas uma manobra destinada a desviar as atenções dos acônidas. Rhodan nem pensara em sacrificar uma única das novecentas e noventa e duas naves. Mal saíram da atmosfera de Ácon, e o gigantesco centro de computação de Árcon III, situado a milhares de anos-luz, assumira o comando sobre elas e as reunira. Acontece que as naves não se materializaram num ponto próximo, mas afastadas dois mil anos-luz, onde modificaram sua rota e logo voltaram a entrar em transição. Depois disso as naves desapareceram. Oportunamente Atlan as traria de volta e apagaria todos os sinais que pudessem indicar que as unidades já tinham estado em poder dos acônidas. No momento em que a frota realizou sua primeira transição, as bombas robotizadas, que gravitavam em torno do sol azul, reduziram a velocidade, penetrando no campo de gravitação da estrela, e precipitaram-se sobre a mesma. Conforme se esperara, explodiram. Acreditava-se que fossem as naves que haviam decolado abrupta e inesperadamente de Ácon. A estrela azul sofreu nova irrupção, que a transformou num astro chamejante. E a frota deveria ser considerada perdida. Tudo isso aconteceu enquanto Rhodan regressava para a Terra. Atlan informou-o sobre o curso da operação destinada a remover os restos da desastrada herança deixada por Thomas Cardif. As condições anteriores foram restabelecidas. Por enquanto o perigo de outro ataque dos acônidas contra a Terra fora removido. Rhodan poderia dedicar-se tranqüilamente ao trabalho de reconquistar a confiança das raças inteligentes da Galáxia.

Trabalhava em cooperação com Atlan e, como os dois unidos representavam um poder que ninguém conseguiria derrotar, sem dúvida seriam bem-sucedidos. Rhodan sobressaltou-se quando recebeu o chamado do Capitão Burkow, que se encontrava na sala de rádio da Odin. — Há uma mensagem de hiper-rádio de Ácon, sir. É Jakobowski. Rhodan aproximou-se do gravador e deixou correr a fita que continha a mensagem. Não era longa nem minuciosa. Ao que parecia, Jakobowski não tinha muito tempo: — Deslocamento de ar causado pela decolagem da frota danificou a casa residencial e o edifício administrativo da base terrana de Ácon. Dois policiais acônidas que se encontravam junto à barreira e três dos nossos homens, foram feridos. Uma nave cargueira sofreu danos ligeiros em virtude da queda de um elevador gravitacional. Comissão do Grande Conselho realizou investigações. Suspeitas de que tenhamos participado da subtração da frota foram abandonadas. Jakobowski — Falou pouco e bem — elogiou Rhodan e desligou o aparelho. — Os danos que sofremos acabarão por convencer os acônidas de que não tivemos nada com isso. Obrigado, Capitão Burkow. Ainda não chegou nenhuma mensagem de Atlan? — Eu o avisarei assim que chegar, sir. Enquanto se realizavam os cálculos para o próximo salto e a nave se aproximava do ponto de transição, Gucky entrou na sala de comando. Ainda não aparecera desde a decolagem. Rhodan fitou-o com uma expressão de espanto. — Então, ainda está vivo? Até parece que você se sente ofendido, baixinho. — Pelo menos você não me chama de Tenente Guck — disse o rato-castor, em tom contrariado. Parecia sentir-se aliviado. — Afinal, todos cometem erros. Será que você nunca cometeu nenhum? Rhodan lembrou-se dos olhos avermelhados de Thora, a esposa que morrera há tanto tempo. Depois lembrou-se da expressão indagadora dos olhos de Auris de LasToor. Fitou Gucky com uma expressão pensativa. — Sim, Gucky, já cometi meus erros, mas sempre suportei as conseqüências. E estas foram mais pesadas do que eu esperava. — Não foi tanto assim — disse Gucky, e acabou revelando o que realmente lhe oprimia o coração. — Não quero que Bell saiba que tive de esconder-me no porão, toda vez que a bela Auris aparecia. É capaz de pensar que tenho medo das mulheres. Rhodan colocou a mão sobre o ombro de Gucky. — Isso fica entre nós, baixinho. Não direi nada a Bell — levantou o dedo e ameaçou em tom de brincadeira. — Você também vai calar a boca, não vai? Em relação a Auris. Aposto que andou espionando nos meus pensamentos. Caso eu tenha pensado alguma tolice, isto ficará entre nós. Senão Bell acabará descobrindo toda a verdade. É possível que eu esteja exagerando. — Combinado! — disse Gucky. — Acontece que não andei espionando — piscou para Rhodan e saiu para o corredor. Uma cenoura meio roída caiu de seu bolso, rolou pela sala de comando e parou aos pés do comandante. O major Scott contemplou-a com uma expressão de contrariedade. — Em toda parte a gente encontra os sinais do rato-castor — lamentou-se e abaixou-se para pegar a cenoura que tanto o chocara, mas a mesma levantou-se subitamente, como se tivesse sido agarrada pela mão de um fantasma e passou silenciosamente pela porta aberta. — Ah, você está aí — disse a voz alegre de Gucky.

O Major Scott resmungou e passou a dedicar sua atenção aos controles. Os computadores tiquetaqueavam ininterruptamente. A Odin aproximava-se do ponto de transição. A frota de Bell já saltara e desaparecera. Finalmente a Odin também saltou. *** Momentos depois Atlan chamou e informou Rhodan sobre a palestra que tivera com Auris. — A operação está concluída. — Disse, acrescentando: — Se é que alguém tinha suspeitas contra você, as mesmas foram eliminadas pelas informações que prestei a Auris. De mim nunca suspeitaram. Se a situação esquentar muito, disponha da frota arcônida. — Muito obrigado. A ação foi inútil a mim e a você. Não devemos nada um ao outro — Rhodan fez uma pausa. — Auris disse mais alguma coisa? Atlan sorriu. Foi um sorriso indagador e curioso, mas também um tanto irônico. — Auris de Las-Toor, a jovem e bela acônida? É uma representante encantadora da raça dos meus ancestrais. Tenho a impressão de que se sentiu muito feliz quando afastei as suspeitas de você. O argumento do sol azul acabou por convencê-la. Ela não gostaria de acreditar que você seja tão tolo. — Bem... mais alguma coisa? — Mais nada. Felicidades, Perry. Voltaremos a ver-nos no próximo contato de rotina. — Felicidades, Atlan. Muito obrigado. *** Dali a exatamente dois dias, Rhodan transmitira a Auris de Las-Toor, em nome do Império Solar, sua tristeza pela perda inexplicável da frota robotizada, ressaltando que se dispunha a ajudar o Império de Ácon com suas naves, sempre que este fosse atacado. Ainda agradeceu pelas atenções dispensadas aos homens da base terrana. Auris confirmou o recebimento da mensagem e informou que o Império de Árcon também garantira seu auxílio. Disse que Ácon ficava satisfeito em saber que possuía amigos. Quando Rhodan entrou no planador que o levaria ao lago de Goshun, não imaginava a suspresa que o aguardava. Ainda não conhecia os antecedentes dessa surpresa. Esses antecedentes datavam de quase três dias... *** Um técnico chamado Morkat concluiu as inspeções em dez cruzadores e não encontrou o menor indício de que algum desconhecido tivesse tentado uma sabotagem ou colocado bombas nos mesmos. Em sua opinião os dois policiais haviam sofrido uma alucinação, ao acreditarem que tinham visto um estranho. É bem verdade que não soube explicar o ataque. “Pois bem”, pensou depois de algum tempo, “apenas estou realizando um exame por amostragem, tal qual os sete técnicos restantes. E um exame por amostragem sempre tem seus pontos fracos. As verificações costumam ser realizadas justamente nos lugares

em que não aconteceu nada. Examinarei mais cinco naves. Isto não está previsto nos planos, mas justamente por esse motivo talvez traga bons resultados.” E assim o técnico Morkat, que se encontrava no cruzador ligeiro número 75 quando o sinal do transmissor de impulsos liberou as fúrias do inferno, foi raptado! Felizmente os campos antigravitacionais ligaram-se automaticamente, pois, do contrário, a pressão o teria esmagado. Olhou para a tela e apenas viu o porto espacial de Ácon V afastar-se com uma tremenda rapidez, não demorando a desaparecer de vez da tela. Viu que as outras naves também estavam decolando. No início a idéia de que pudesse ter tocado um dos numerosos comandos robotizados, provocando a fuga em massa, deixou-o assustado, mas logo se chamou de idiota. Mas o susto provocado pela surpresa continuou. Era técnico e sabia alguma coisa sobre os sistemas propulsores das espaçonaves. E estava por puro acaso na sala de comando do cruzador. Tinha certeza de que não ligara os propulsores. Isso devia ter acontecido por si, através um impulso transmitido pelo rádio, ou por meio de um transmissor instalado em algum lugar. O desconhecido! Morkat começou a compreender que só por acaso estava vivendo um acontecimento inconcebível. Compreendeu imediatamente quem era responsável pela decolagem imprevista da frota. Ele sabia, mas será que os acônidas também sabiam? Esquecendo todas as precauções, correu para a sala de rádio. Não era muito versado na matéria, mas achou que seria capaz de pôr o transmissor a funcionar. Quando conseguiu, já era tarde. Sentiu a dor da transição e sabia que os sinais de rádio que conseguisse expedir só chegariam a Ácon dali a alguns anos ou mesmo séculos. As características da transição não lhe forneceram nenhuma indicação sobre a distância percorrida. Procurou, depois de refeito, colocar em funcionamento o hipertransmissor, mas não conseguiu. Desconfiou de que seus conhecimentos não bastavam para isso. Logo após seguiu-se outra transição. Morkat constatou um total de sete transições, mas não sabia que cada uma delas levava numa direção diferente e que todas foram realizadas sob o efeito dos compensadores de vibrações. Ninguém seria capaz de localizá-los. Quando o cruzador voltou a materializar-se depois de sair da última transição, Morkat viu um céu estranho projetado nas telas. As outras naves foram aparecendo, até que toda a frota ficasse reunida. Da leitura dos instrumentos concluiu que o vôo prosseguia à metade da velocidade da luz, em direção a um sol não muito distante. Durante as primeiras manobras convenceu-se de que as naves estavam sendo dirigidas. E comandadas com muita segurança e precisão. Com a mesma segurança com que toda a frota estava sendo dirigida desde o início. Porém, na sala de comando de sua nave, não havia ninguém! Dois planetas gravitavam em torno do sol. O destino parecia ser o planeta exterior, um enorme mundo seco coberto de imensos desertos e estepes. Quando as naves roubadas entraram nas órbitas de pouso e desceram sobre o mundo que, segundo parecia, era desabitado, a velocidade foi reduzida fortemente. Dali a dez minutos o cruzador ligeiro pousou suavemente. Por alguns segundos, Morkat permaneceu na sala de comando, em atitude indecisa, mas logo correu para a eclusa principal. Soltou um suspiro de alívio quando leu nas escalas os dados relativos à atmosfera do planeta. O ar era respirável e a gravitação aproximava-se da de Ácon V.

Abriu a eclusa e parou na mesma, perplexo. A visão que se descortinou à sua frente era fantástica, embora correspondesse exatamente ao quadro que imaginara. A frota estava pousando. Nave após nave descia e pousava suavemente e com grande maestria no chão desértico do planeta desconhecido. Até mesmo a disposição das unidades, que fora observada no campo de pouso de Ácon V, foi mantida. Até parecia que a frota fora transferida pura e simplesmente de um mundo para outro. E com toda certeza foi o que aconteceu. Morkat esperou que a última nave pousasse. Só depois disso ligou o elevador antigravitacional que o conduziu à superfície do planeta. O pequeno sol amarelo estava quase a pino, mas o calor irradiado era muito escasso. Nesse planeta, as noites por certo seriam muito frias. Caminhando pela areia fria, foi andando de uma nave a outra, na esperança louca de que mais algum técnico tivesse experimentado a mesma desgraça que ele. Logo se deu conta de que nunca seria capaz de fazer decolar o cruzador sem que ninguém o ajudasse. Seus conhecimentos não bastavam para isso. Entendia os vários controles e sabia lidar com os mesmos. Mas seria totalmente impossível realizar a decolagem, ainda mais numa posição desconhecida. Mas a força que provocara a decolagem da frota não deixaria de cuidar da presa. Realmente teria sido Perry Rhodan? Teve suas primeiras dúvidas, embora estas tivessem menos fundamento que as suspeitas. Subitamente Morkat assustou-se. — E se eu for descoberto? Sim, o que acontecerá? Tive conhecimento de um segredo terrível. Não vão permitir que continue a viver! Quando eles chegarem não devem encontrar-me por aqui. Mais uma vez deu-se conta de que a situação não oferecia nenhuma esperança. Onde poderia esconder-se? Numa das naves? Isso seria uma tolice, pois logo seria descoberto. Que tal se se escondesse no planeta? Olhou em torno e soltou uma risada amarga. Era tudo deserto ou estepe. Nem sequer havia montanhas ou outros acidentes da natureza que pudessem oferecer alguma proteção. Seria inútil. Além disso, morreria de fome se levassem a frota, deixando-o para trás. Finalmente os acontecimentos decidiram por ele. Dois dias passaram-se numa expectativa angustiante. Nada aconteceu. As naves mantinham-se imóveis, como se estivessem petrificadas na solidão cruel daquele planeta desabitado. De noite, Morkat voltava para dentro de seu cruzador, para não morrer de frio. Assim que raiava o dia saía e ficava a olhar o céu verde-pálido, de onde teriam de vir os ladrões. E de repente apareceram. Uma nave esférica da classe Império pousou a pequena distância da frota bem alinhada e imediatamente constatou a presença de Morkat. Grupos de robôs saíram das escotilhas, acompanhados por alguns humanos. Quando chegaram mais perto, Morkat constatou que se tratava de arcônidas. Surpreendeu-se, pois esperava ver terranos. Dispensaram-lhe um tratamento cortês, mas não responderam às suas perguntas. Os arcônidas permaneceram no planeta juntamente com os robôs. Puseram-se a trabalhar nas naves. Morkat não sabia o que estavam fazendo, mas imaginava. Removeriam todas as inovações deixadas pelos acônidas. Entretanto, ainda havia algo, que não podia ser removido. Era ele, Morkat, o acônida!

O comandante da nave esférica colocou à sua disposição um camarote e decolou. Morkat constatou que a nave realizou uma única transição e logo pousou. Dali a meia hora viu-se à frente de Gonozal VIII, Imperador de Árcon... *** Mais uma vez estavam deitados sobre o convés do pequeno barco a vela, tal qual há pouco mais de uma semana. Não havia quase nenhum vento e os raios de sol dardejavam do céu azul. Desta vez Bell não estava nadando. Deitado ao lado de Rhodan, ouvia o relato de Atlan, cuja voz saía, forte e bem compreensível, do minúsculo receptor. E Gucky não mergulhou. Sentado na beirada do barco, mantinha-se em silêncio, esforçando-se em vão para atingir a água com os pés. Não conseguiu, pois suas pernas eram muito curtas. Atlan fez uma pausa. Rhodan perguntou: — E agora, Atlan? Você não pode prender o acônida Morkat. Também não pode matá-lo. O que fazer? — Já pensei sobre isso. Tive uma idéia, Perry. Se você concordar, modificarei a memória de Morkat. Quando voltar a Ácon, não terá a menor lembrança do roubo da frota. — Pretende aplicar-lhe um bloqueio hipnótico acompanhado de outra memória? — Rhodan fez um gesto afirmativo. — A idéia não é nada de má. Mas será que dará certo? Como pretende levá-lo de volta para Ácon? Atlan sorriu. — Se quiser, eu lhe conto a história. É curta. — Conte logo, Atlan. Bell e Gucky também estão curiosos. — Estão ouvindo? Tanto melhor. Aliás, os homens que enviei a Xorbaty para receber e arrumar a frota encontraram, justamente no cruzador ligeiro em que Morkat tinha vindo e que desempenhou um papel todo especial na história, os restos de uma cenoura. Será que alguém pode explicar como aquilo foi parar lá? — Hum — murmurou Gucky e fitou Rhodan com a cabeça inclinada. — Como terá sido? — Sim, como? — repetiu Rhodan. — Mas conte logo a história. — Bem, é o seguinte. “Os acônidas já estão superando a perda da frota. O mistério não foi desvendado, e o culpado, se é que existe, continua desconhecido. “Um belo dia as naves de vigilância constatam a presença de um cruzador ligeiro que não se identifica. Parece não ter tripulação, mas acaba pousando em Ácon. O pouso é um tanto desajeitado. A nave é danificada. “A escotilha abre-se e dela sai um homem. É Morkat! “Morkat, o técnico desaparecido, acaba de voltar. Logo apresenta seu relato ao Grande Conselho, que é convocado às pressas. Conta que estava no cruzador quando a frota decolou. Conseguiu ligar as telas, mas não pôde fazer mais nada, pois os comandos não obedeciam. E o equipamento de rádio também não funcionava. “Na tela surgiu um gigantesco sol azul, que se aproximava rapidamente e desapareceu de repente. Mas só desapareceu por alguns segundos, e logo voltou a surgir na tela. Isso depois de uma transição que certamente fora realizada de surpresa, sem seguir nenhum plano.

“Todas as naves precipitaram-se sobre o sol e caíram no mesmo. Não sabia dizer por que seu cruzador ligeiro tomou outra rota, escapando à terrível destruição. Resolvera verificar mais uma vez os comandos e constatou que de repente o cruzador obedecia aos mesmos. Depois de vagar por vários dias pelo espaço e dar alguns saltos que falharam, acabou parando nas proximidades de Ácon. O resto do trecho foi percorrido em vôo visual direto. “O Grande Conselho de Ácon ouve com muita atenção o relato de Morkat e vê nele a prova definitiva de que o comando robotizado realmente deve ter sido ativado, em virtude de uma falha técnica, e de que a perda da frota não foi devido à atuação de qualquer potência estrangeira. “Auris de Las-Toor solta um suspiro de alívio. Uma pedra parece sair de cima de seu coração. “O técnico Morkat repete sua história sob o detector de mentiras. E o aparelho confirma que diz a verdade. “Dali em diante os acônidas voltarão a defrontar-se sem o menor constrangimento com os terranos e os arcônidas, contra os quais nutriam graves suspeitas. “Então, amigos, que tal a minha história?” — Parece formidável — disse Rhodan. — Só me resta fazer votos de que se torne verdadeira. — Não tenha a menor dúvida! — Se isso acontecer, Morkat nos terá prestado uma inestimável ajuda — Rhodan respirou mais aliviado. — Às vezes um incidente imprevisto pode ser bom para muita coisa. — Não é mesmo? — piou Gucky, muito satisfeito. Rhodan despediu-se de Atlan. Estendeu-se gostosamente sob os raios do Sol e prestou atenção ao ruído borbulhante da água que passava pelo casco do barco. Tudo saíra bem, e dali a alguns dias, quando a história de Atlan se transformasse em verdade, Auris abandonaria de vez as vagas suspeitas que ainda mantinha contra ele. — Acho que é isso que realmente importa — disse Gucky em voz alta. Ao ver que Bell o fitava com uma expressão indagadora, acrescentou: — O que realmente importa é que desta vez nossas férias tão curtas não sejam interrompidas. O que poderia ser senão isso? — Também penso assim — disse Bell e deixou-se cair na água. Aliviado da pesada carga, o barco voltou a endireitar-se subitamente, e o rato-castor, que se encontrava do outro lado, perdeu o equilíbrio. Mesmo contra a vontade, juntou-se a Bell. Rhodan foi o único que continuou deitado. Estava estendido bem no centro do barco, e por isso as modificações que ocorriam à sua direita e à sua esquerda não o afetavam. Com um sorriso viu Gucky mergulhar até o fundo, trazer uma pedra achatada e colocá-la sobre a barriga de Bell. Bell limitou-se a dar uma gargalhada. Era maravilhoso ficar deitado sobre a água, deixando-se envolver sob os raios do Sol e não fazendo absolutamente nada. As férias sempre são maravilhosas... *** ** *

Não teria sido nada inteligente usar a força para obrigar os acônidas a devolverem as espaçonaves. Por isso Perry Rhodan recorre à astúcia e alcança seu objetivo. Assim, parece estar liquidado o último remanescente da triste lembrança de Cardif. Estará mesmo? O sargento biorrobô revelará! O Sargento Robô, é este o título do próximo volume da série Perry Rhodan, que conta mais uma excitante aventura da Divisão III.

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