P-112 - O Homem De Duas Caras - Kurt Brand

  • November 2019
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  • Words: 29,501
  • Pages: 64
(P-112)

O HOMEM DE DUAS CARAS Everton Autor

KURT BRAND Tradução

RICHARD PAUL NETO

Um espaço mental onde residem duas personalidades...

Tudo começou porque os órgãos de vigilância do Império Solar e do reino estelar arcônida não dispensaram a necessária atenção ás atividades dos antis. Foi por isso que os servos de Baalol puderam iniciar a execução de seu infame plano sem que ninguém os impedisse. E esse plano previa a disseminação do liquitivo, um perigoso entorpecente, em todos os mundos habitados da Galáxia. Acontece que, no fundo, os guardiões da ordem interestelar não têm culpa de nada. Não se pode dizer que tenham negligenciado na execução de sua tarefa de vigilância. Afinal, cientistas de renome haviam manifestado a opinião de que o liquitivo, o licor-tóxico, era um excelente meio de retardar o processo natural de envelhecimento do organismo humano e conferia novas forças aos que o tomavam. O engano lamentável já foi reconhecido. Empreendem-se todos os esforços possíveis para curar os viciados. Mas há um detalhe que até então ninguém percebeu, nem mesmo os mutantes. E esse detalhe poderá produzir efeitos profundos em todos os mundos habitados da Via Láctea. Perry Rhodan encontra-se preso, e O Homem de Duas Caras é quem está dirigindo os destinos do Império Solar...

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Personagens Principais: = = = = = = =

Thomas Cardif — Um inimigo público que está no governo. Reginald Bell e Allan D. Mercant — Que ficam espantados com as atitudes do administrador. A-Thol — Emissário dos antis. Brazo Alkher e Stana Nolinow — Tenentes da Ironduke. Ele ou Aquilo — O Ser do planeta Peregrino que resolve divertir-se. Rhabol — Alto sacerdote de Baalol.

1 Reginald Bell guardou o relatório e balançou a cabeça. Parecia pensativo. O relatório trazia a assinatura de Perry Rhodan. Era um dentre muitos que Bell lera naquele dia. Todos os documentos haviam saído do gabinete de Rhodan e parado em sua escrivaninha. Em alguns deles lia-se uma nota manuscrita: aprovado. Inclusive o relatório que lhe causava dor de cabeça: Investigações sobre o pedido dos mercadores galácticos, de instalar mais trezentos entrepostos comerciais na área submetida à soberania do Império Solar. Todos os peritos que cooperaram na elaboração do relatório haviam chegado à conclusão de que o pedido dos saltadores devia ser indeferido. Acontece que Rhodan lhe havia aposto uma nota manuscrita: A instalação dos entrepostos comerciais deve ser permitida. Rhodan. Bell respirava com dificuldade. — Perry, o que há com você desde que voltamos do planeta Okul? A irrupção do gênio de Bell revestiu-se de uma violência considerável. Praguejava furiosamente, dando vazão ao nervosismo. Depois de algum tempo bateu na tecla do aparelho de intercomunicação, incrustada no pequeno painel. O rosto de Allan D. Mercant apareceu na tela. O chefe do Serviço de Segurança viu o rosto furioso de Reginald Bell em seu aparelho. Esse quadro dispensava comentários. Mercant aguardou para descobrir o que Bell tinha a lhe dizer. Não podia ser nada agradável. Dois meses depois que haviam regressado de Okul, trazendo um Rhodan ferido e afetado por um grave abalo psíquico, os risos alegres e as piadas não mais se fizeram ouvir. — Mercant — esbravejou Bell em tom contrariado. — Rhodan acaba de me entregar o resultado do exame pericial. O senhor já está informado. Trata-se de um pedido dos ciganos estelares, que querem espalhar-se cada vez mais entre nós. Rhodan lançou uma nota manuscrita no respectivo requerimento: “A instalação dos entrepostos comerciais deve ser permitida.” O que acha disso? Mercant respondeu com a maior tranqüilidade: — Se as coisas continuarem assim, infelizmente me verei obrigado a decuplicar o quadro de pessoal da Segurança Solar. — Diga Isso a ele, Mercant! — exclamou Bell. Mercant balançou a cabeça. — O chefe transformou-se num homem de decisões solitárias, Bell. — Como vai acabar isso, Mercant? Perry me parece cada vez mais estranho. Até parece que também andou tomando liquitivo. Ora, não sei não... Perdeu até o senso de humor. Todos o evitam, inclusive Gucky. — Talvez o erro seja justamente este. Talvez deixemos que o chefe perceba que se transformou num estranho entre nós. Pode ser que nosso comportamento o leve a isolarse cada vez mais. Bell interrompeu o marechal solar. — Que diabo, Mercant. Se estiver doente, que entre de férias, mas não nos traga os ciganos estelares às legiões.

— Afinal, o senhor é o melhor amigo dele, Mr. Bell — ponderou Mercant. — Seu dever é chamar a atenção do chefe. — Nem penso nisso! — gritou Bell a plenos pulmões. — Já tive de ouvir dos médicos duas advertências muito sérias, apenas porque ponderei certas coisas diante de Perry. Os médicos vivem dizendo que devo ter a devida consideração pela sua terapia de choque e não perturbar a reconvalescença. Mas quando toma uma decisão errada, alguém deve dizer-lhe alguma coisa. Ao que parece, sou o menos indicado para isso. Mercant, o senhor é mais diplomata que eu. Peço-lhe encarecidamente que passe por aqui, pegue o relatório dos peritos e vá falar com Rhodan. Tenho esperança de que ele o ouça e não permita que a invasão dos saltadores se transforme em realidade. Notou que Mercant hesitava; não insistiu. Allan D. Mercant não deixaria que ninguém o influenciasse. — Está bem — disse depois de algum tempo. — Estou disposto a tentar. Aguardeme dentro de dez minutos, Mr. Bell. — Perfeitamente. Esta palavra foi proferida num suspiro. Bell desligou. As preocupações por Perry Rhodan não o abandonavam. O desastre começara com a decisão de Rhodan, que resolvera em Okul defrontar-se a sós com seu filho Thomas Cardif. Voltara transformado e psiquicamente arrasado. Levaram-no à Terra numa viagemrelâmpago, a fim de confiá-lo o quanto antes aos cuidados dos médicos. As maiores sumidades acorreram ao leito de Rhodan. Os diagnósticos apresentavam uma espantosa coincidência. E a junta médica logo chegou a acordo quanto ao tratamento mais adequado ao estado de Rhodan. Aplicaram o processo de choque de Thmasson. Tratava-se de uma terapia criada em conjunto por médicos terranos e aras, que possibilitava a neutralização de depressões psíquicas profundas, fazendo com que depois do tratamento estas parecessem um sonho ao enfermo. Também no caso de Rhodan, os resultados do tratamento foram admiráveis. Três dias depois do início da aplicação do processo de Thmasson, o boletim médico já informava: Perry Rhodan, Administrador do Império Solar, está a caminho da cura. Não existe mais nenhum perigo iminente. Daqui em diante não serão emitidos outros boletins. No interior do império estelar terrano, a doença de Rhodan só causava preocupações em setores isolados. O vício do liquitivo e a fúria de milhões de viciados prendia todas as atenções. Enquanto o estado-maior de Terrânia ainda receava pela saúde mental de Rhodan, grandes quantidades de liquitivo chegaram ao Império Solar. Foram suficientes para transformar os homens enfurecidos em pessoas aparentemente normais. Além disso, na área de interesses do Império Solar estavam sendo realizados esforços gigantescos para serem construídas em poucas semanas as fábricas que permitissem a produção de quantidades bastantes do antídoto, o alitivo. Muito tempo depois de Rhodan ter obtido alta da clínica de Terrânia, ficou-se sabendo que foi graças a ele que os viciados puderam ser curados da dependência da droga.

Em toda a história do Império Solar, a estrela da popularidade de Rhodan não brilhara tanto como naquelas semanas. Nunca um homem foi condenado tão intensamente como Thomas Cardif. Tanto no Império de Árcon como no sistema solar, todos tomaram conhecimento do papel desempenhado por esse homem. Era procurado em toda parte. Mas sempre que se seguiam as pistas que deveriam conduzir a Cardif, avançava-se no vazio. Ao que parecia, Thomas Cardif mantinha-se escondido na selva das estrelas, ou seja, nas regiões inexploradas da Galáxia. Ninguém conseguia aproximar-se da verdade. Não havia ninguém que fosse capaz de imaginar que esse homem, procurado por milhões de criaturas, estava em Terrânia, onde ocupara o lugar de Perry Rhodan. Ninguém seria capaz de imaginar que Perry Rhodan fora seqüestrado e se encontrava nas garras dos antis. Mas o homem que dizia ser Perry Rhodan percebia com uma nitidez cada vez maior que se metera num jogo perigoso. Os mutantes, que no inicio lhe inspiraram tamanhos receios, não representavam uma ameaça tão grande. As funções duplicadas de seu cérebro, que lhe possibilitava ativar o modelo de vibrações cerebrais de Rhodan sempre que algum telepata ou localizador do Exército de Mutantes se encontrasse nas proximidades, o identificavam como o verdadeiro Rhodan, constantemente. Face a isso não poderia surgir a menor suspeita de que realmente era Thomas Cardif. O perigo da descoberta vinha de uma direção totalmente diversa. Aquele homem, que assimilara a maior parte do saber de Rhodan, não possuía o elevado grau de intuição que fizera com que seu pai sempre se destacasse em meio às massas. Quando conversava com Cardif-Rhodan sobre os trabalhos de aperfeiçoamento do sistema de propulsão linear, o professor Kalup foi o primeiro a desconfiar. — Sir — interrompera-o Kalup, perplexo. — Como se explica que o senhor manifeste uma opinião como essa? Para sair do aperto, Cardif-Rhodan não teve outra alternativa senão recorrer à desculpa de que ainda sofria os efeitos do tratamento de choque de Thmasson. A partir dali a idéia do choque de Thmasson andou vagando por Terrânia. Rhodan aparecia cada vez menos na companhia dos cientistas, engenheiros e técnicos. Desde seu regresso do planeta Okul nunca mais apresentara uma idéia pioneira, que servisse de impulso para levar avante um projeto que tivesse entrado em estado de estagnação. Todos viviam dizendo: — O choque de Thmasson roubou ao chefe a sensibilidade pelos problemas técnicos. Cardif soubera tirar proveito dessa idéia. Com o maior descaramento apresentara-se aos médicos, relatara a palestra mantida com o professor Kalup e fizera questão de ressaltar seu fracasso. — Será que o choque de Thmasson me privou de parte das minhas faculdades mentais? Os médicos não puderam dizer nem sim, nem não. Satisfeito no seu íntimo, Cardif-Rhodan voltara a deixá-los a sós. Dali em diante enfrentava os perigos desse tipo com a alegação de ainda se encontrar sob os efeitos da terapia de choque. Face ao público não havia sofrido qualquer modificação. Cardif era muito parecido com Rhodan, não só no aspecto exterior, mas também sob muitos ângulos mentais. Além

disso, podia tirar proveito do saber que lhe fora transferido de Rhodan. Seus talentos permitiram-lhe tirar tamanho proveito do mesmo, que muitas vezes até os amigos mais Íntimos de Rhodan tinham a impressão de que o administrador voltara aos seus bons tempos. Quando se via a sós — e a cada semana que passava enclausurava-se cada vez mais — sentia-se fustigado pela idéia terrível de que não passava de uma marionete nas mãos dos antis. Os sacerdotes tinham em seu poder o verdadeiro Perry Rhodan, que poderia ser usado como trunfo contra ele. Sempre que Cardif não quisesse dançar de acordo com a música dos antis, estes poderiam usar Rhodan para exercer pressão. Até mesmo de noite mal conseguia dormir. Procurou desesperadamente um caminho que lhe permitisse libertar-se da dependência dos sacerdotes do culto de Baalol. Enquanto desempenhava o papel de Rhodan, sentia-se dominado cada vez mais pela embriaguez do poder, e esta sensação fez minguar cada vez mais o ódio que antes sentira pelo pai. No entanto, não deixou de notar esse perigo. Lutou contra a embriaguez do poder com o desespero de um viciado em drogas. Não devia deixar que a mesma o dominasse, pois desde o primeiro instante dera-se conta de que sempre teria de agir exclusivamente como Thomas Cardif, nunca como Perry Rhodan. A transferência realizada em Okul fora um êxito apenas parcial. Em sua opinião, a causa disso fora o tempo reduzido de que dispunham. Não sabia que a causa era ele mesmo. O ego de Thomas Cardif era totalmente incapaz de aceitar a subordinação numa situação de emergência como aquela. Ouviu alguém bater à porta. — Pois não! — gritou em tom de espanto. Fora arrancado violentamente de um estado de profunda reflexão e trazido de volta à realidade. No momento em que olhou para a porta já havia conseguido controlar-se. — É o senhor, Mercant? — perguntou ao ver Allan D. Mercant entrar. — Não me lembro de ter registrado em minha agenda uma palestra com o senhor. Antigamente Perry Rhodan também costumava usar vez por outra esse tom áspero, mas somente quando havia algum motivo para isso. Depois de seu regresso de Okul esse tom passou a predominar. O marechal solar não se sobressaltou. Como de costume, sentou-se à esquerda da escrivaninha de Rhodan. — Sir — principiou, colocando à sua frente o relatório dos peritos. — Encontrei este parecer em poder de mister Bell. Peço licença para ponderar que o quadro de pessoal da Segurança Solar terá de ser aumentado consideravelmente, caso mais trezentos entrepostos dos saltadores sejam abertos ao lado dos já existentes nos mundos coloniais do império. Cardif-Rhodan fitou Mercant com a maior tranqüilidade. Os traços mareantes de seu rosto não revelavam os pensamentos que lhe enchiam o cérebro. Naquele momento Thomas Cardif pensava nos antis e desejava que os sacerdotes fossem para o inferno. Fora a pedido deles que atendera à solicitação dos mercadores galácticos. Fora vítima de sua primeira chantagem. Há quatro dias lhe haviam enviado um aviso inconfundível, por intermédio de uma delegação de mercadores. Estes se veriam

obrigados a tirar as necessárias conseqüências, caso o pedido de licença para a instalação de novos entrepostos comerciais tivesse decisão desfavorável. O patriarca dos saltadores que lhe transmitiu a notícia não tinha a menor idéia do que realmente estava dizendo ao administrador. Mas Cardif-Rhodan entendeu as cordiais lembranças. O nome Fut-O1 dizia tudo. Fut-O1 mandara lembranças. Acontece que Fut-O1 fora morto há quatro anos pelos antis, isso porque esse mercador galáctico não se mostrara disposto a colocar-se a serviço dos sacerdotes de Baalol. Agora Mercant estava sentado à sua frente e tentava convencê-lo de que deveria revogar a permissão que acabara de conceder. — Mais alguma coisa, Mercant? — perguntou com a voz fria. O marechal solar parecia espantado. Seu olhar envolveu o homem que, segundo acreditava, era seu chefe. — Si-sir — gaguejou Mercant um tanto perturbado — o aumento do número dos entrepostos comerciais dos saltadores em mais trezentos constitui um assunto de importância vital. Sir, não estaremos em condições de vigiar os escritórios comerciais dos saltadores situados no Império Solar, conforme seria necessário à nossa segurança. Abriremos as portas a uma série de cavalos de Tróia. — Deixe isso por minha conta, Mercant! Deferi o pedido. Será que isso não basta? No seu íntimo, Thomas Cardif sentia-se aflito. Compreendia o ponto de vista do chefe da Segurança Solar. Também percebia o que havia atrás do pedido dos saltadores. Tratava-se de uma conquista sorrateira do Império Solar pelos mercadores galácticos, e comandando estes, estavam os sacerdotes de Baalol. O rosto de Mercant transformou-se numa máscara. Seus lábios estreitaram-se. A respiração era entrecortada. Lentamente, quase a contragosto, voltou a dobrar o relatório dos peritos, alisou-o e voltou a guardá-lo na pasta. Cumprimentou o chefe com um gesto. Não disse uma palavra. Levantou-se e saiu. Cardif seguiu-o com os olhos. Assim que a porta se fechou atrás de Mercant, respirou ruidosamente. Possuído de uma raiva impotente, cerrou os punhos. — Malditos antis! — disse, rangendo os dentes. Estremeceu ligeiramente quando a tela do videofone se iluminou a seu lado. Reginald Bell estava chamando. Ainda não poderia saber que a visita de Mercant não fora bem-sucedida. — Perry — disse. — A recepção acaba de avisar que você está disposto a dialogar com um arcônida de nome Banavol. Será que desta vez posso saber o que esse homem quer de nós? Cardif aborrecia-se constantemente porque a curiosidade de Reginald Bell fazia com que se intrometesse nos assuntos mais íntimos. Por várias vezes procurara pôr paradeiro a isso, mas todas as tentativas fracassaram diante da obstinação de Bell. Este não se abalou e conseguiu dar esta resposta diante da enérgica repreensão de Cardif-Rhodan: — Perry, enquanto você não estiver cem por cento em ordem, continuarei a tomar conta de você. Afinal, devo-me este favor, e um dia você saberá agradecer. Que diabo! O choque de Thmasson transformou-o num estranho! Thomas Cardif encontrou uma resposta plausível. — A visita de Banavol está ligada a Cardif, gorducho. Está satisfeito?

Bell não estava nem um pouco satisfeito. Conhecia a mentalidade dos arcônidas. Em sua opinião eram as criaturas mais indolentes da Galáxia. E Bell não deixou de manifestar tal conceito. — Por que justamente um arcônida será capaz de ajudar-nos numa situação que a Segurança Solar não consegue resolver? Bem, se você acha que deve perder seu tempo com isso, fique à vontade. Realmente quer recebê-lo, Perry? Cardif esforçou-se para mostrar uma disposição jovial, embora a obstinação de Bell o deixasse zangado: — Quero, sim, gorducho. Ainda bem que você me deu sua bênção. Mais alguma coisa? Viu Bell atirar a cabeça para trás. — Sim, Perry. Quero fazer-lhe um pedido todo especial. Procure não dizer constantemente “mais alguma coisa?”. Antigamente você proferia esta frase no máximo dez vezes por mês, ao passo que hoje a ouvimos pelo menos dez vezes por dia. OK, meu velho? — Está certo, seu tomador de conta. Obrigado pela indicação — respondeu Cardif, sorrindo para a tela. Reginald Bell sorriu de volta e desligou. “Perry vai-se restabelecendo aos poucos”, pensou. “Ao menos consegue rir vez por outra.” Mercant entrou. Não havia necessidade de formular qualquer pergunta. O rosto do marechal solar estava rígido. Atirou a pasta com o relatório dos peritos sobre a escrivaninha. — A invasão vai começar! — Como? — perguntou Bell. — Isso mesmo — disse Mercant em tom de cansaço. — Quais são os motivos que o chefe lhe deu, Mercant? — Será que ultimamente o chefe costuma dar motivos? — perguntou Allan. — O que acontecerá, Bell? — De quanto tempo precisa para colocar mais dois mil agentes na Segurança Solar? Mercant fez um gesto de desespero com os braços. — O quê? Nem sei como arranjar cem colaboradores competentes, quanto mais dois mil, O serviço da Segurança Solar também tem de ser aprendido, Mr. Bell. Quero dizerlhe desde logo, para evitar futuros mal-entendidos entre nós dois, que a Segurança Solar não mais estará em condições de cumprir sua tarefa, se além dos entrepostos comerciais que os saltadores já possuem forem criados mais trezentos. Antes que isso aconteça, eu me aposentarei. Desta vez Bell conseguiu dominar-se. — Mercant, sei que estou assumindo um risco tremendo. Você é a única pessoa à qual conto, em particular, o que pretendo fazer. Introduzirei uma modificação no pedido dos ciganos estelares, no sentido de que no Império Solar só poderão ser criados mais cem entrepostos comerciais dos saltadores por ano. Se for assim, ainda se verá obrigado a pedir aposentadoria? — Se o senhor conseguisse isso, mister Bell... — os olhos de Mercant iluminaramse, mas o brilho dos mesmos não durou muito. — Mister Bell, quando o chefe descobrir, ele derrubará todo o esquema.

— Estou disposto a assumir o risco, Mercant. Aliás, você sabe quem está falando com o chefe neste momento? Um arcônida, que veio por causa de um assunto ligado a Thomas Cardif. — Conhece o nome dele? — limitou-se Mercant a perguntar, sem se mostrar surpreso. — Banavol. — Conheço. É filho de pai e mãe arcônidas. Muito vivo e inteligente; é um negociante muito sagaz. Há vários anos seu escritório colabora conosco. — Com quem? Com a Segurança Solar? — Isso mesmo. Banavol criou um centro de consulta de problemas econômicos. Trata-se de um dos raros centros de espionagem, situado no Império de Árcon, que serve para alguma coisa. Então Banavol foi falar com o chefe, por causa de Cardif. Aliás, também neste ponto houve uma modificação radical com o chefe. Com uma obstinação que antes não costumava demonstrar esforça-se para encontrar o filho. Não sei se devo ficar satisfeito com essa modificação ou não. — Bem, no momento temos outras preocupações. Nem desconfiavam das preocupações que afligiam o homem que acreditavam ser Perry Rhodan. *** Banavol, que pelo aspecto exterior era um arcônida típico, estava sentado à frente de Cardif-Rhodan. Aquele homem de cerca de trinta anos não procurou dissimular sua arrogância tipicamente arcônida. Para ele o Administrador do Império Solar ainda era um ser primitivo. O arcônida foi diretamente ao assunto. — Não precisamos conversar sobre Thomas Cardif, terrano. Posso falar à vontade? Quero dizer: Posso falar sem que ninguém me ouça? Cardif encontrava-se em estado de alarma. As palavras insolentes que Banavol proferira a título de introdução prenunciavam uma notícia da maior importância. Os olhos de Cardif chamejaram. Foi este o único sinal visível de nervosismo. — Posso falar à vontade? — voltou a perguntar Banavol. Mais uma vez, a pergunta ficou sem resposta. — Está bem — disse o arcônida em tom indiferente. — O problema não é meu. Venho diretamente do mundo de cristal. Fut-O1 aguarda seus cumprimentos, terrano. Essa alusão não seria capaz de levar Cardif à discussão. Limitou-se a sorrir. — Bem; faço apenas aquilo pelo qual sou pago — prosseguiu o arcônida. — Não fui pago para fazer discursos. Rhabol quer vinte ativadores celulares. Com isso ganhei meu dinheiro, terrano. Acho que não tenho mais nada a dizer. Havia um tom de espreita na voz de Banavol, e uma expressão de desconfiança em seus olhos avermelhados de arcônida. Achava-se confortavelmente reclinado na poltrona. Cardif-Rhodan acabara de decepcioná-lo. A cópia fiel de Rhodan que via à sua frente nem pestanejara quando fora citado o nome do sacerdote Rhabol. E muito menos estremecera, no momento em que formulou a exigência dos antis: vinte ativadores celulares. Vinte anti-mutantes tinham vontade de alcançar a vida eterna, tal qual o Imperador Gonozal VIII.

A única pessoa que podia arranjar o aparelho do tamanho de um ovo que possibilitava a ativação celular era Cardif-Rhodan, o sósia de Rhodan. Para ele, deveria ser fácil descobrir os dados galácticos do mundo artificial denominado Peregrino. Os antis ficaram sabendo por intermédio de Cardif que Aquilo, a criatura solitária de Peregrino, era amigo de Rhodan. Na opinião dos sacerdotes de Baalol deveria ser fácil para Cardif ir a Peregrino, pedir a Ele que lhe desse vinte ativadores celulares e voltar com essas maravilhas. — Banavol, diga a Rhabol que seu pedido não pode ser atendido — disse Cardif. O arcônida respondeu com a voz fria: — Não estou autorizado a discutir o assunto com o senhor, terrano. Se o desejo de Rhabol não for do seu agrado, o senhor poderá dar expressão à sua contrariedade no estabelecimento comercial dos saltadores, situado em Plutão. Antes que vá a Peregrino, esperam-no por lá. Ainda bem que o senhor me lembrou, pois, do contrário, poderia terme esquecido de lhe dar o recado. Desde a fundação do Império Solar nunca ninguém falara nesse tom com o administrador. Acontece que, ao que tudo indicava, para Banavol o homem que se encontrava à sua frente não era Perry Rhodan. Os antis deviam ter-lhe confiado o maior dos seus segredos. Thomas Cardif passara quase cinco decênios entre os anti-mutantes. Nenhum terrano conhecia melhor os sacerdotes de Baalol do que ele. Por isso mesmo sabia que Banavol não representava nenhum perigo para sua pessoa. Alguém, que recebesse uma incumbência desse tipo dos antis, já não era dona de si mesma. Banavol devia estar totalmente submetido aos sacerdotes, tal qual ele mesmo. — Ficarei mais um pouco, para que a visita não pareça muito breve — disse Banavol. — Gostaria de conversar a respeito de Thomas Cardif, terrano. Com sua licença quero observar que no início não acreditei, quando recebi a visita de Rhabol, que me contou certo segredo. Mas não demorei a ver o célebre Perry Rhodan. Cardif, o senhor está com um aspecto melhor que o dele. Da antiga grandeza de seu pai não sobrou quase nada. Não acha estranho que apesar disso os antis ainda sintam mais respeito por um Perry Rhodan reduzido à impotência que pelo seu filho? O senhor é capaz de entender uma coisa dessas, terrano? Thomas Cardif compreendeu perfeitamente o sentido das palavras de Banavol. Fazia questão de ressaltar mais uma vez que Cardif não passava de marionete nas mãos dos antis. Assim que os antis não mais precisassem dele, seria atirado fora tal qual uma laranja depois de chupada. A permissão de instalar trezentos entrepostos comerciais dos antis no sistema solar representava o primeiro passo para a conquista pacifica do império. E na operação aproveitavam-se dele como instrumento de seus planos de conquista. Durante alguns segundos, os dois fitaram-se intensamente, O rosto de Thomas Cardif não mostrava a menor reação. — Meus respeitos, terrano — disse Banavol. — O senhor tem um excelente autodomínio. Rhabol não me informou sobre isto. Posso retirar-me, ou prefere que fique mais um pouco? — o rosto do arcônida continuava a exibir o sorriso arrogante. — Fique mais um pouco, arcônida — respondeu Cardif em tom indiferente. Retribuiu o sorriso. Dois comparsas defrontavam-se de igual para igual.

Enquanto Banavol falava, procurando provocá-lo, um plano começou a formar-se na mente de Cardif. De repente sentiu-se tentado a atender à exigência de Rhabol, e também se sentiu tentado a entrar no jogo, durante o qual mediria forças com os antis. Mas resolveu tomar uma atitude negativa diante de Banavol. Queria que o agente dos antis transmitisse a Rhabol a notícia de que Cardif não era nenhum joguete nas suas mãos. — Sua última palavra é essa, terrano? — voltou a perguntar Banavol para certificarse e dispôs-se a sair do gabinete. — Recusa-se a viajar para Peregrino? — Acho que me exprimi com suficiente clareza, arcônida! — respondeu Cardif em tom indignado. — Seja o que quiser, terrano. Acontece que não fui incumbido de transmitir sua recusa aos sacerdotes. A mesma só pode ser manifestada no escritório do entreposto comercial dos saltadores em Plutão. Não tenho mais nada a ver com o assunto. Cardif acreditava no que acabara de dizer. Conhecia os antis e sabia como trabalhavam. Bem, não se importaria em fazer uma viagem para Plutão, nem receava a palestra com um anti mascarado de saltador. Pela primeira vez desde o momento em que assumira o papel de Rhodan, sentia-se bem-disposto. Quando Banavol se retirou do gabinete, um sorriso irônico aflorou aos seus lábios. E o sorriso continuou quando fez uma ligação de videofone com Bell. — Sim — disse Bell. — O arcônida disse algo de importante sobre Cardif, Perry? Num instante, a mente de Cardif-Rhodan adaptou-se à nova situação. A resposta foi proferida com a voz tranqüila: — Banavol não disse nada de importante, a não ser talvez três indicações que possivelmente poderão representar uma pista, gorducho. Mas não é por isso que estou chamando. Não quero mostrar-me indiferente às preocupações de Mercant. Você compreende? Refiro-me à petição dos mercadores galácticos. Quero modificar a permissão por mim concedida no sentido de que os saltadores poderão instalar cem entrepostos por ano em nosso império... — Perry — interrompeu Bell entusiasmado. — Será que sua faculdade telepática está voltando aos poucos? Você leu meus pensamentos! Pretendia fazer exatamente isso. Apenas queria colocá-lo diante de um fato consumado. O rosto de Thomas Cardif continuou com a expressão amável, embora a arbitrariedade de Reginald Bell o fizesse ferver de raiva. Respondeu com uma gentileza fingida: — Ainda não confio muito nas minhas faculdades telepáticas, gorducho. Nunca foram intensas. De qualquer maneira fico satisfeito de saber que temos a mesma opinião. Estas palavras fizeram com que Bell se lembrasse de que, de forma alguma, concordava em permitir que os saltadores penetrassem no sistema solar. Acreditava que havia chegado um momento favorável de modificar a opinião de Perry Rhodan. — Ouça — sugeriu. — Não acha que deveríamos recusar de vez o pedido dos ciganos estelares? Estes negocistas gananciosos só poderão criar-nos problemas. — Tenho meus planos com os saltadores — respondeu Cardif-Rhodan em tom bem mais frio. Esperava que a insinuação freasse a curiosidade de Bell. Mas o gorducho continuou a insistir. — Que planos são esses, Perry?

— Oportunamente falaremos sobre isso. De qualquer maneira, peço-lhe que por enquanto não solte a permissão que acabo de dar aos saltadores. Antes disso quero dar uma olhada em seu entreposto comercial de Plutão. Observou cautelosamente o rosto de Bell na tela. O gorducho disse com uma risada: — Isso me deixa ainda mais curioso para conhecer seus planos, Perry. Pela Via Láctea, que relação poderá existir entre Plutão e os ciganos estelares? — Quando chegar a hora você saberá disso, meu caro. — Não é a primeira vez que você diz isso, Perry — disse Bell. — Vou desligar para avisar Mercant. Quando pretende ir a Plutão? — Provavelmente amanhã. Desligo, Bell. A comunicação foi interrompida. Cardif-Rhodan levantou-se e aproximou-se da janela. Quantas vezes seu pai estivera de pé ali, lançando os olhos por cima do complexo de construções de Terrânia e fitando a faixa de terra que há um tempo relativamente curto ainda fora um deserto? Quantas vezes Rhodan estivera ali, a sós com suas preocupações grandes e pequenas? Quantas vezes no curso dos anos lutara consigo mesmo a fim de chegar a uma decisão? A mesma coisa estava acontecendo com o filho. Apenas, seus problemas situavamse em outro plano. No fundo todas as suas reflexões, todos os seus planos moviam-se fora da legalidade.., e não passavam de uma trama criminosa. — Rhodan — disse em voz alta, e o ódio pelo pai voltou a inflamar-se. Ao assumir o papel de Rhodan, Cardif colocara-se numa posição bastante difícil, e seu êxito e seu fracasso dependiam exclusivamente dos antis. Os mesmos haviam pedido vinte ativadores celulares por intermédio de Banavol. Ao pensar nisso, Thomas Cardif não pôde deixar de rir. Mas não foi um riso de bondade. Imaginava perfeitamente qual era o motivo do pedido. Vinte dos sacerdotes mais Influentes do culto de Baalol namoravam a idéia de, por meio dos ativadores, alcançar a imortalidade relativa. Cardif parecia satisfeito. Seu plano ia adquirindo uma configuração mais nítida. O mesmo previa uma prova de força entre ele e os antis. Tinha certeza de que sairia vitorioso na luta. — OK — disse para si mesmo, pegou um cigarro, acendeu-o e deleitou-se com o fumo. Nas brumas da distância uma gigantesca sombra esférica desceu à Terra. Um dos supercouraçados da Frota Solar estava pousando. A Wellington acabara de regressar de uma missão. *** Gucky, o rato-castor, estava com visita em sua residência, um confortável bangalô situado nas margens do lago salgado de Goshun. Era a área em que residiam os colaboradores e amigos mais antigos e mais chegados de Rhodan. Era maravilhoso morar longe do movimento e da inquietação de Terrânia. Apesar disso o visitante de Gucky não parecia nada satisfeito. E o rato-castor também não estava de bom humor, pois seu dente roedor solitário continuou escondido, e os olhos de camundongo, que costumavam brilhar numa expressão marota, estavam totalmente apagados. — Isto é pior que uma geladeira, John! — piou Gucky.

Esta observação foi proferida depois de cinco minutos de silêncio ininterrupto. John Marshall, que era chefe do Exército de Mutantes e o melhor telepata do grupo, com exceção de Gucky, fez um gesto de assentimento. Compreendera o que Gucky queria dizer. Não poderia deixar de confirmar as palavras da pequena criatura. Desde que voltara do planeta Okul, o chefe passara a erigir uma muralha Invisível em torno de sua pessoa. Para os amigos passara a transformar-se simplesmente no administrador. Agora era uma eminência solitária, inacessível e assustadoramente impessoal. Gucky acomodara-se no sofá e John Marshall na cadeira-balanço. Ao lado do ratocastor via-se certa quantidade de cenouras frescas. Gucky conhecia seus deveres de anfitrião. Escolheu as cenouras mais bonitas. — Quer uma, John? Para seu espanto, desta vez o telepata não recusou com um gesto enérgico. — Passe para cá. Uma dose de vitamina não me fará mal. Qualquer atividade mental consome muitas vitaminas. Diga-me uma coisa, cá entre nós. Você ainda consegue chegar aos pensamentos do chefe? Havia uma norma antiga, segundo a qual era proibido a qualquer telepata utilizar sua capacidade para introduzir-se nos pensamentos de Perry Rhodan e seus colaboradores mais chegados. E John Marshall era um dos mutantes que sempre fizera questão de que essa norma fosse cumprida. Acontece que Gucky sempre cometera muitos “pecados”. Sendo assim, não costumava deter-se nem mesmo diante dos pensamentos de Rhodan. Atualmente até mesmo Marshall estava disposto a violar a norma. — Sim, John, consigo chegar aos seus pensamentos. Mas quando estou com as antenas ligadas, sinto-me tomado de pavor. O que foi que os médicos fizeram com Perry? John, você já notou que o chefe se interessa pouco em saber se o maldito vício do liquitivo vai diminuindo ou não? Os pequenos homens-pepino, os swoons, já se sentem traídos e vendidos, porque o chefe não os procura mais. Se soubesse que os médicos realmente são responsáveis pela modificação ocorrida com Perry, eu seria capaz de reunir o grupo de eruditos e fazê-lo realizar um vôo em mergulho para dentro do lago. — Calma, pequeno... Mas não havia mais nada que detivesse Gucky. — Por que veio visitar-me, se não quer que eu diga o que penso a respeito de nosso chefe? Sempre que me introduzi em seus pensamentos, procurei em vão pelo impulso que se dirige a Thomas Cardif. Será que nunca mais pensou em seu degenerado filho? — Então já modificou sua opinião sobre Cardif, pequeno? — perguntou Marshall. — Nem poderia deixar de fazê-lo, John. Hoje em dia até chego a arrepender-me do que fiz por ele. Certamente você também andou fuçando os pensamentos do chefe nestas Últimas semanas. Pode dizer, John. Não contarei a ninguém, mesmo que um dia briguemos. Não notou nada de estranho no chefe? Marshall entesou o corpo; parecia surpreso. — O que quer dizer com isso, Gucky? — Bem que eu gostaria de saber, John! A partir do maldito tratamento de choque o chefe é uma pessoa totalmente diferente. Já não sabe ler pensamentos e em matéria de tecnologia quase chego a saber mais que ele. E já não sabe rir. Mas não é o que importa. Atualmente existe algo que nunca notei nele, algo de confuso. Muitas vezes, quando procuro ler seus pensamentos, tenho a impressão de encontrar-me diante de um vidro translúcido, atrás do qual vejo sombras... Sombras de impulsos mentais. De repente tudo

desaparece, não há mais nenhum vidro translúcido e não vejo mais nenhuma sombra. Você nunca percebeu nada, John? O chefe do Exército de Mutantes fitou prolongadamente o rato-castor. Estava pensativo. Finalmente respondeu: — Você acaba de exprimir em linguagem precisa alguma coisa de que só agora me dei conta, pequeno. Também notei as sombras de impulsos. Pela grande Via Láctea! Será que essas sombras são a causa das modificações que houve com o chefe? Nem mesmo os dois telepatas mais competentes do Império Solar tiveram a idéia de que essas sombras poderiam ser os impulsos mentais de Thomas Cardif, encobertos pelo saber de Rhodan, que lhe fora transferido por um processo hipnótico-sugestivo. — Gucky — disse John Marshall depois de algum tempo. — Daqui em diante teremos de vigiar atentamente o chefe, a fim de evitar que ele cometa algum erro de conseqüências desastrosas. Quando penso nos males que o único filho de Rhodan já andou causando, tenho vontade de chorar. — É o inimigo público número um da Galáxia. Nunca pensaria que um dia teria de falar dessa forma a respeito de Thomas. É um gênio, mas só pode ser um psicopata. — O ódio pelo pai fez com que enlouquecesse. Além disso, é um homem de dois mundos, meio terrano, meio arcônida. Pois é, pequeno! Gucky fez um gesto de assentimento e disse em voz alta: — De qualquer forma não consigo compreender que alguém seja capaz de passar por cima de cadáveres para destruir o pai. — Não se esqueça dos antis, pequeno. Cardif está em poder deles, e se essas criaturas põem as mãos em alguém, não o soltam mais. Cardif tem que dançar de acordo com a música que eles tocam. Já não é senhor de sua própria vontade.

2 — As coisas estão cada vez piores! Depois destas palavras, proferidas em tom contrariado, Bell saiu de trás da escrivaninha, olhou de relance para o intercomunicador, que acabara de transmitir uma mensagem de Rhodan, e afastou-se. Ao passar pela ante-sala, resmungou: — Estarei no gabinete de Mercant! Depois que a porta da ante-sala também se fechou ruidosamente, os presentes disseram em voz alta: — Quanto mais esquisito fica o chefe, mais mal-humorado se torna o gordo. Enquanto isso Reginald Bell descia pelo elevador antigravitacional. Dirigia-se ao gabinete do Marechal Solar Allan D. Mercant. A meio caminho esbarrou com o professor Manoli no interior do elevador. — Fico muito satisfeito em encontrá-lo meu caro! — disse o homem ruivo com a voz forte. — Um momento; vou mudar de elevador. Passou para o setor ascendente, subiu três metros, até atingir o próximo pavimento, e saiu ao lado do professor. — Vai falar com o chefe? Manoli lançou-lhe um olhar de espanto. — Vou. Como soube? Rhodan pediu-me expressamente que mantivesse em segredo a visita que pretendo fazer-lhe. Bell não demonstrou a surpresa que sentia. — Sabe o motivo, professor? — O chefe quer mais uma verificação de seu estado de saúde. O gordo fez um gesto afirmativo. — Ainda acabarei me acostumando à mania do segredo que tomou conta de Perry. Marshall e Gucky falaram com o senhor, Manoli? — Há algumas horas, sir. O senhor já está informado, não está? — Sem dúvida. O que acha dessa sombra nos impulsos mentais de Rhodan? O professor parecia desorientado. — Infelizmente não somos telepatas. Nossos instrumentos não nos proporcionam o desempenho de uma pessoa capaz de ler pensamentos. Por isso dependemos exclusivamente das indicações dos telepatas e, sob o ponto de vista médico, essas indicações podem ser tudo, menos aproveitáveis. Precisamos de curvas, dados, diagramas. Temos necessidade de cifras exatas que retratem a intensidade dos fenômenos... Bell interrompeu-o. — Já sei. O senhor e seus colegas não dispõem disso. Quero conhecer sua opinião pessoal sobre o chefe, Manoli. Perry está doente ou não está? Sim ou não. Nada de Subterfúgios. Era uma atitude típica de Reginald Bell. “Nada de subterfúgios.” Costumava simplificar as coisas. Muitas vezes esse método causava um malogro lastimável, mas outras vezes fazia com que atingisse muito bem o objetivo. Manoli, que estava acostumado a raciocinar exclusivamente em termos médicos, contorceu-se o mais que pôde, mas o olhar implacável de Bell acabou por obrigá-lo a manifestar sua opinião pessoal.

— O chefe não está doente, mister Bell. Apenas sofre depressões... Bell teve a impressão de não ter ouvido bem. — O chefe sofre de quê? De estados de desânimo? E o senhor vem me dizer que ele não está doente? Será que nunca se deu conta de que um estado de depressão não se harmoniza com a mentalidade de Rhodan? Por que faz questão de não acreditar nas sombras que foram constatadas por Marshall e Gucky? — Porque a medicina não conhece sombras nos impulsos cerebrais, O que os dois telepatas pensam ter descoberto não passa de uma tolice, coisa de leigos. Sabe lá o que pode acontecer se o chefe descobrir que alguém anda espionando seus pensamentos, mister... Foi interrompido por Bell. — Sabe lá, caro Manoli, o que farei com o senhor se contar alguma coisa a Perry? Estamos entendidos? — O senhor acaba de exprimir-se com muita franqueza! — respondeu Manoli, profundamente chocado. Bell passou a falar em tom mais amável: — Faça o favor de me informar sobre o resultado do exame. — Não, mister Bell. Em hipótese alguma. Sou médico. O dever do sigilo profissional... Mais uma vez foi interrompido por Bell. — Desta vez o senhor pode esquecer-se do sigilo! Até a próxima — com estas palavras Bell deixou a sós o professor, que parecia perplexo. O antigo companheiro da primeira viagem lunar de 1.971 nunca lhe falara nesse tom. Até então sempre haviam sido bons amigos. Viu Reginald Bell desaparecer no poço do elevador. Sentia-se irritado. “Será que existe algo de verdadeiro na observação dos dois telepatas?”, pensou. “Se for assim, por que não me explicaram melhor a natureza dessa sombra infame?” Enquanto se dirigia ao gabinete do chefe, resolveu submeter Rhodan a um exame extremamente minucioso. Bell pegou o carro e pediu que o levasse ao quartel-general da Segurança Solar. — Mercant está? — perguntou laconicamente, ao entrar no hall do enorme edifício. — Sim senhor. O Marechal Solar Mercant encontra-se em seu gabinete. Dali a pouco Bell estava sentado à frente de Mercant. — Então? — perguntou este, sem desconfiar de nada. — Ainda bem que está sentado, Mercant. Ultimamente sempre é bom que um de nós esteja sentado quando o outro aparece para trazer-lhe alguma novidade. A Ironduke está sendo preparada para a decolagem. — Já sei, mister Bell. — E não há nada de especial nisso — respondeu o gorducho com uma ligeira ironia na voz. — Agora, o motivo por que o chefe mandou preparar a Ironduke para dar um pulinho a Plutão? Será que nisso há algo de especial, Mercant? — A Ironduke só viajará até Plutão? — os olhos de Mercant se estreitaram. Reginald Bell prosseguiu imediatamente: — Parece que o senhor não tem a menor idéia do outro acontecimento, não é, marechal solar? Eu mesmo fiquei sabendo por puro acaso. Às vezes, em Terrânia, até mesmo os assuntos secretos vêm à luz do dia. Perry entrou em contato com o cérebro positrônico de Vênus para pedir as coordenadas galácticas do planeta Peregrino.

— Então o chefe vai a Peregrino? — espantou-se Mercant. — Isso mesmo, Mercant. Se as coisas continuarem assim, explodirei e Perry me porá para fora. Nunca tinha mentido para mim. Mas há pouco mentiu. O que acha, Mercant? — Não acho nada, enquanto não conhecer as intenções do chefe. Imagino que tem em mente um projeto enorme. E tenho uma idéia do ponto a que pretende chegar. Deseja realizar uma surpresa para restaurar a confiança em sua pessoa, que anda bastante abalada. — Queira Deus que o senhor continue a acreditar em Papai Noel! — exclamou Bell. — Não é possível... — O quê? — perguntou Mercant. — Nada — respondeu Bell, desviando-se do assunto. Esperava encontrar mais compreensão no chefe da Segurança Solar. Acreditava que ele poderia compartilhar sua convicção de que muita coisa não estava em ordem com Perry Rhodan. E qual era o resultado? Mercant acreditava que o chefe estava preparando uma ação que surpreenderia todo mundo, a fim de firmar a confiança em sua pessoa. — Meu Deus! — disse num gemido. — Só posso supor que o senhor se obstina numa visão das coisas que não guarda a menor relação com a realidade, Mr. Bell — disse Mercant em tom contrariado. Bell balançou a cabeça, num gesto de desânimo. — Pouco me importa o que o senhor queira supor, Mercant. Ninguém me convence de que Perry não está doente; está mentalmente enfermo. Quando vinha para cá, encontrei o professor Manoli. O chefe mandou chamá-lo para que ele o examinasse de novo. Mas não é isso que importa. Conheço Rhodan muito bem, e por isso tenho de notar melhor que qualquer outra pessoa como ele está modificado. “Às vezes parece ser o mesmo de antes, isso quando se trata de tomar uma decisão instantânea. Nesses momentos é a pessoa que eu conheço, mas quando ele se retrai e toma suas decisões a sós, vejo-me diante de um estranho. “Rhodan mentiu para mim. Mentiu ao dizer que tinha necessidade premente de ir a Plutão. Alega que a visita que pretende fazer ao entreposto dos saltadores assume uma importância extraordinária. “Mercant, desde quando o chefe costuma cuidar de ninharias como esta? Qual a utilidade do Serviço de Segurança? Por que mandou preparar a Ironduke, se apenas quer ir a Plutão? Por que solicitou ao cérebro instalado em Vênus as coordenadas galácticas do planeta Peregrino? No momento não temos nada a fazer em Peregrino!” — Mr. Bell, o senhor acha que posso mandar vigiar o chefe? — objetou Mercant, que com estas palavras reconheceu que a fala de Bell não deixara de impressioná-lo. — Alguém falou em vigilância? Queremos que ele recupere a saúde. Com mais insistência que nunca, afirmo que ele está doente mas não sofre de depressões, conforme Manoli quer nos fazer acreditar. Existe outro tipo de doença dentro do chefe... — Será Thomas Cardif? — Acredito que sim. Quando esse sujeito pôs as mãos no pai em Okul, alguma coisa deve ter-se esfacelado dentro de Perry. Ele não está deprimido, não mostra nenhum abatimento. Desde o incidente de Okul, alguma coisa lhe falta. O lado humano e vivo está ausente. Mercant, não sei como exprimir-me. — Ele não lhe falou sobre a experiência que teve com o filho em Okul, Mr. Bell?

Com esta pergunta, Mercant convencia-se cada vez mais que as preocupações, que Bell sentia por Perry Rhodan, tinham sua razão de ser. A sineta do videofone interrompeu-os: — Atenção, temos um aviso importante. A decolagem da Ironduke foi antecipada para as 18 horas e 35 minutos, tempo padrão. Repito: A decolagem da Ironduke... Bell desligou apressadamente. De repente aquela voz rangedora o perturbava. — O senhor irá na Ironduke, Mercant? — Não recebi ordens para isso. — Também não recebi. Apesar disso estarei a bordo. John Marshall e alguns dos velhos mutantes também já estão na Ironduke. Mercant soltou um assobio. — Mr. Bell, o senhor está assumindo um risco muito grande. Não sei qual será a reação do chefe quando descobrir que o senhor e os mutantes estão a bordo. Um sorriso obstinado surgiu no rosto de Bell. — Mais admirado ficará ao notar que o senhor também estará a bordo, Mercant. Mercant fitou-o intensamente, respirou fortemente e disse: — Desde o momento em que o senhor passou a acreditar que Perry Rhodan está doente, vem revelando faculdades que nunca suporia em sua pessoa, Mr. Bell. OK. Estarei a bordo. Bell retirou-se. Não dissera a Mercant que não se sentia muito à vontade. *** A nave esférica Ironduke descia sobre Plutão. Os holofotes do veículo acenderam-se a vinte mil metros de altura, iluminando a paisagem desolada e hostil à vida do último planeta solar. Na direção verde, trinta graus. O rádio-farol do forte estelar Plutão 6 enviava seus raios à nave. O raio vetor que orientaria o pouso da Ironduke estava posicionado. À medida que a nave descia, mais formidáveis pareciam as posições de artilharia de Plutão 6, iluminadas pela luz dos holofotes. Os radiadores térmicos de maiores calibres, as posições de desintegradores e os canhões de impulsos foram entrando no campo de visão. Alguns quilômetros ao sul, ficavam as enormes estações de rastreamento, que mediam qualquer abalo estrutural de quinta dimensão ocorrido no espaço cósmico e eram capazes de detectar a uma distância enorme a presença de qualquer espaçonave que se aproximasse. A enorme construção era abrigada por um potentíssimo campo energético, capaz de resistir ao bombardeio de meia dúzia de supercouraçados. Nem mesmo durante o pouso da Ironduke, o campo energético foi desativado. Cardif-Rhodan dera ordens expressas nesse sentido. Também ordenara que a nave pousasse no pequeno porto espacial que os mercadores galácticos haviam construído. O entreposto dos clãs unidos dos saltadores ficava na extremidade leste do porto, sob a proteção de uma cadeia de montanha coberta de gelo até as cumeadas. Era para lá que Cardif-Rhodan pretendia dirigir-se. O objetivo da visita aos saltadores representava um mistério para todas as pessoas que se encontravam na nave. Mas não era esta a primeira vez que o chefe iniciava uma ação cujo objetivo só ele conhecia. Apesar disso, a grande sala de comando da Ironduke parecia crepitar de tensão.

Seria porque há alguns minutos Reginald Bell aparecera de repente no recinto, acompanhado por John Marshall e Allan D. Mercant? Até mesmo Jefe Claudrin, um terrano nascido em Epsal e um colosso robusto de pele cor de couro, passara a respirar com dificuldade quando viu entrar os três homens. No mesmo instante resolveu dizer umas boas ao oficial da eclusa, porque este não o informara sobre a presença dessas altas personalidades. Cardif-Rhodan não deu o menor sinal de surpresa, salvo talvez um ligeiro lampejo dos olhos. — Ah... — foi a única coisa que disse e cumprimentou Bell com um gesto. Este aproximou-se, enquanto Mercant e Marshall se mantinham num ponto mais afastado da sala de comando. — As últimas horas que passamos em Okul ainda me revoltam o estômago, Perry — disse, dirigindo-se ao amigo. — Desconfio dos ciganos estelares, aos quais você pretende fazer uma visita, tanto quanto desconfio dos antis. — É mesmo? — respondeu Cardif-Rhodan. — Mas da próxima vez quero ser avisado das precauções que você adotar. Combinado, gorducho? Bell limitou-se a acenar levemente com a cabeça. O incidente terminou aí. Mas ninguém desconfiava das conseqüências que a surpresa produziu em Cardif, nem mesmo o telepata Marshall, que pela terceira vez se introduzia nos pensamentos do chefe. O sósia de Rhodan só pensava em fragmentos. Desconfiava de que Marshall controlava seus pensamentos. Realmente, era o que o telepata deveria fazer. Por isso Cardif-Rhodan pensava apenas nos moldes do pai, encobrindo completamente seus impulsos pessoais. O ponto dominante de suas reflexões era o requerimento dos mercadores galácticos. Vez por outra uma velha recordação refulgia em meio a estas reflexões, O pseudoRhodan pensava nas manobras escusas dos saltadores. Realizou seus cálculos sobre risco adicional que resultaria da criação de cem escritórios comerciais no interior do sistema solar. Deixou que seus pensamentos vagassem até este ponto e teve o cuidado de não pensar no que viria depois. Por várias vezes fez surgir num lampejo a alegria que sentia ao pensar que no fim os mercadores galácticos sairiam do negócio logrados. Enquanto isso a Ironduke, pilotada por Jefe Claudrin, desceu suavemente no pequeno porto espacial dos saltadores. As gigantescas colunas de apoio do veículo espacial esférico fizeram alguns movimentos de molejo. Depois disso a nave pousou firmemente no solo congelado de Plutão, a mais de vinte quilômetros do Forte Plutão 6. A tensão criada com a entrada repentina de Bell, Mercant e Marshall chegou ao auge. O homem, que era considerado como Perry Rhodan, deu uma risadinha matreira para Bell. — Vamos ver se da próxima vez você não se mostra tão bem-intencionado comigo. Para isso irei sozinho, veja bem, caro gorducho, sozinho, sem qualquer companhia, fazer uma visita ao entreposto dos saltadores. Dêem-me um traje espacial, por favor. As mãos gigantescas do comandante epsalense seguraram firmemente a braçadeira da poltrona especialmente feita para ele. Não compreendia o que acabara de ouvir. E não era o único que não conseguia compreender a decisão que Rhodan acabara de tomar. — Sir — principiou Allan D. Mercant, mas viu-se obrigado a ficar calado, face ao gesto repentino de Rhodan. Contrariando todas as expectativas, Bell não disse nada.

Rhodan enfiou-se num pesado traje espacial. Controlou o armamento com uma calma fenomenal. Após o primeiro encontro com os anti-mutantes, uma das peças do equipamento de qualquer traje espacial ficou sendo um revólver calibre 44, bastante antiquado, em cujos cartuchos não havia balas metálicas, e sim rolhas de plástico dotadas de tremenda força de impacto. Por enquanto essas rolhas constituíam o único meio de romper o campo defensivo individual dos sacerdotes, que adquiria uma força enorme, face às energias mentais dos mesmos. Rhodan limitou-se a lançar um ligeiro olhar para a arma antiquada. Dedicou seu interesse principalmente às armas de radiações. Verificou os indicadores de capacidade. — Em ordem — constatou. — Bell, devo estar de volta dentro de uma hora no máximo. Qualquer mensagem de emergência poderá ser transmitida pelo minicomunicador. Obrigado — disse, quando viu que Bell pretendia acompanhá-lo. — Prefiro ir só até a eclusa. Afinal, devo mostrar-me agradecido pelo cuidado que você teve comigo, meu caro. Talvez tivesse dito isso por brincadeira... ou por deboche. A escotilha da sala de comando fechou-se ruidosamente atrás de Cardif-Rhodan. Bell lançou um olhar indagador para Marshall, piscou discretamente e saiu da sala. Dali a pouco Mercant e Marshall também se retiraram. Dirigiram-se diretamente ao gabinete de Bell. — Então? — perguntou este, ao vê-los entrar. A pergunta fora dirigida a Marshall. O telepata deu de ombros. — O chefe tem um plano maluco com os saltadores e os trezentos entrepostos comerciais que eles pretendem criar, mas infelizmente não me fez o favor de pensar nos detalhes desse plano. Só sei que espera encontrar uma coisa bem definida no escritório dos saltadores. — O quê? — perguntou Bell, muito curioso. — É justamente isso que eu não sei. Não concebeu um pensamento preciso a este respeito. Nem sequer se aborreceu quando nos viu de repente... — Como? — enquanto formulava a pergunta lacônica, Bell levantou-se de um salto. Lançou um olhar desconfiado para Marshall. — Ora, John, não me conte lorotas. Perry não se aborreceu nem um pouco com meu procedimento arbitrário? Caramba! Antigamente ficava com muita raiva quando eu procedia assim. Será que sua mente foi virada pelo avesso? — É só o que eu posso informar — respondeu John Marshall. — Nesse caso já não sei o que pensar! — disse Bell e voltou a sentar. Mudando de assunto, voltou a dirigir-se a Marshall: — Está em contato com os outros telepatas? — Eles aguardam minhas instruções, mister Bell. — Muito bem. Deixemos passar uns trinta minutos. No momento, a torre polar da Ironduke não faz outra coisa senão observar o entreposto dos saltadores. Na minha opinião os ciganos estelares pensarão duas vezes antes de fazer qualquer coisa contra o chefe. De qualquer maneira, ele nos enganou quando resolveu sair só, e isso me deixa muito satisfeito. É uma atitude típica dele, que me faz ter esperança de vê-lo restabelecido dentro em breve. Então, Mercant, o que acha? — Nada — respondeu Mercant. — Estou esperando... ***

Catepan, o chefe do entreposto comercial dos saltadores em Plutão, enviara o maior carro ao local em que estava pousada a Ironduke. O veículo aguardava o administrador na pequena rampa C da espaçonave esférica. Cardif-Rhodan desceu pela rampa, frio e destemido. Já conhecia Plutão com suas condições inóspitas. Como tenente da Frota Solar fora degredado para Plutão, onde prestara serviços, isso até que subitamente uma imensa frota inimiga — a dos druufs — aparecesse nas proximidades do sistema solar. Na oportunidade, o destino da Terra parecia selado. Mas os mercadores galácticos com suas naves cilíndricas armadas e a frota robotizada de Árcon vieram em auxílio de Rhodan. Teve uma ligeira lembrança desses fatos, mas não se recordou de sua deserção. Desligou-se no mesmo instante. Colocou sua mente em posição de usufruir do saber acumulado por Rhodan. Não pôde deixar de sorrir. Era um sorriso de satisfação. Os mutantes que, conforme acreditara no início, representavam o maior perigo, fracassavam diante da barreira mental do verdadeiro Rhodan, que envolvia os remanescentes da personalidade de Thomas Cardif. Constatavam sempre a presença dos impulsos mentais de Rhodan, e por isso nem desconfiavam de que estes estavam detendo os de outra pessoa. Um jovem saltador, cujo rosto foi iluminado pelo farol do carro, cumprimentou o Administrador do Império Solar. Num impecável intercosmo pediu que tomasse lugar no veículo. Cardif-Rhodan respondeu laconicamente ao cumprimento e acomodou-se no assento. O carro disparou pela pista lisa. Os contornos imensos do entreposto dos saltadores tornaram-se cada vez mais nítidos sob a iluminação indireta. O carro penetrou numa eclusa que mais parecia um pavilhão. O jovem motorista abriu a porta, voltou a cumprimentar Cardif-Rhodan quando este desceu e avisou-o de que poderia descerrar o capacete espacial de plástico. O homem que envergava o uniforme do personagem mais importante da Terra voltou a cumprimentar. Caminhou em direção ao mercador que se aproximava às pressas. Era Catepan, chefe do entreposto comercial dos saltadores em Plutão. Pediu ao administrador que sentasse. Foi só depois de chegar aos recintos privados do patriarca que Cardif-Rhodan abriu o capacete e desligou o rádio, montado no interior do mesmo. Fê-lo de propósito, pois dessa forma interrompeu as comunicações entre ele e a Ironduke. — Catepan, o senhor já deve ter conhecimento do pedido dos mercadores galácticos, que pretendem instalar novos entrepostos na área de influência do Império Solar. Concederei a permissão, desde que por aqui não encontre motivos para objeções. O velho mercador fitou-o com uma expressão de espanto. — Só por isso o senhor resolveu vir pessoalmente, administrador? — Isso mesmo — respondeu Cardif-Rhodan em tom indiferente, dissimulando a satisfação provocada pelas palavras do saltador. Catepan lhe havia provado que o considerava como Rhodan, o administrador. E era só o que Cardif desejava saber. Levantou-se. Catepan seguiu seu exemplo. Cardif-Rhodan agradeceu com um gesto. — Não me perderei nas salas e nos corredores, Catepan. Irei só. Dentro de meia hora estarei de volta. Deixou totalmente perplexo um saltador muito experimentado. Catepan não queria conformar-se com a idéia de que o homem mais poderoso do Império Solar perdesse

tempo com um simples controle. E sentia-se ainda mais incapaz de compreender que Perry Rhodan resolvesse realizar em pessoa o controle. Por fim, não conseguia enxergar qualquer relação entre esse controle e o pedido formulado por todos os clãs dos saltadores. Cardif-Rhodan saiu do setor residencial e, passando por um corredor profusamente iluminado, atingiu o primeiro depósito. Olhou em torno. Quase não se interessava pelas mercadorias. Um saltador estava parado junto à porta que dava para outro corredor. Parecia esperar pelo administrador. Mas quando este se aproximou, o saltador deu-lhe as costas e afastou-se. Cardif lembrou-se do que lhe dissera Banavol, o arcônida. Só aqui, no entreposto comercial dos saltadores, poderia protestar contra a exigência dos antis, que queriam que ele fosse buscar vinte ativadores celulares em Peregrino. “Será o homem, que acabou de afastar-se pelo corredor, um agente dos sacerdotes de Baalol?”, pensou. Cardif quis ter certeza. Ao chegar à porta, virou a cabeça. O pavilhão em cuja extremidade se encontrava media cem metros de comprimento e mais de cinqüenta de largura. Resolveu verificar se estava sendo seguido. Satisfeito, acenou com a cabeça. Até mesmo nessa área extraterritorial o desejo do administrador do Império Solar representava uma ordem. Cardif sentiu-se inteiramente dominado pela embriaguez do poder; a sensação indescritível de quem tem a impressão de que basta mandar para que todos os desejos sejam cumpridos encheu sua mente. Mas a lembrança da exigência de Rhabol, sacerdote supremo do culto de Baalol, desabou sobre ele, como raio destruidor. “Vinte ativadores celulares com regulagem individual automática!”, refletiu. A miragem desmanchou-se; a realidade nua e crua surgiu diante de seus olhos. Thomas Cardif era uma marionete, mesmo oculta sob a máscara do pai. Fechou os olhos e respirou profundamente. Aqui, no entreposto dos mercadores galácticos em Plutão, daria início à execução do plano que levaria à destruição dos sacerdotes de Baalol. Thomas Cardif abriu a porta que dava para o corredor. Este seguia em ângulo reto com o pavilhão. A parte dianteira fora instalada para servir de abrigo em caso de catástrofe. Possuía eclusas duplas e era de construção muito resistente. Atravessou a segunda eclusa e chegou ao setor em que ficavam os escritórios. Num relance Cardif-Rhodan constatou que todos eles ficavam do lado esquerdo, dando frente para o porto espacial dos mercadores. Cardif caminhou tranquilamente pelo tapete à prova de som. Atingiu uma porta aberta, que lhe permitiu ver o interior do recinto. Um homem estava de pé junto à janela. Virou-se e fitou prolongadamente a pessoa que se aproximava. Com um ligeiro aceno de cabeça convidou Cardif a entrar. Cardif-Rhodan avançou. Deu um ligeiro empurrão à porta, que se fechou silenciosamente. O homem junto à janela tinha o aspecto de um mercador galáctico. A barba aparada à moda dos saltadores e os trajes típicos reforçavam tal suposição. Inclinou-se ligeiramente e disse num intercosmo impecável:

— Fut-Gii incumbiu-me de transmitir recomendações ao Administrador do Império Solar. — Obrigado — respondeu Cardif laconicamente, revelando uma elevada dose de autodomínio, enquanto os olhos exprimiam indiferença. — Posso sentar? Não aguardou a resposta; acomodou-se numa poltrona. Thomas Cardif lançou os olhos para além do homem que se encontrava na sala. Viu a superfície inóspita de Plutão. Do lugar em que se achava, via parte do porto espacial dos mercadores. Na extremidade oposta do campo de pouso destacava-se a enorme esfera formada pela Ironduke, que estava com os holofotes ligados. O olhar de tédio de Cardif retornou para o emissário de Baalol. Sem dúvida o homem que se encontrava à sua frente tinha essa qualidade. A menção do nome Fut-Gii constituía prova disso. — Então? — perguntou Cardif em tom irônico. O agente de Baalol manteve-se em silêncio. Encostado ao peitoril da janela, com os braços cruzados sobre o peito, fitava o homem que alegava ser Perry Rhodan. Cardif começou a sentir-se contrariado. Os modos arrogantes do enviado de Baalol começaram a irritá-lo. — Não posso e não quero arranjar as vinte maravilhas — disse. — Você fará exatamente isso — respondeu o outro, mostrando-se impassível. — Se não fizer, Cardif, os seus dias de poder e de vida estarão contados. — Deu as costas a Rhodan e, contemplando a espaçonave esférica, disse: — Que prisão maravilhosa você terá. A Ironduke levá-lo-á a Terrânia para ser julgado. — Você fala demais — disse Cardif em tom Irônico. — O que esperam conseguir com ameaças? — Nada — respondeu o outro, que voltara a encará-lo. — Nada, a não ser vinte ativadores celulares. — Quer dizer que é uma chantagem? — Os servos de Baalol estão acima de qualquer acusação imunda — respondeu o agente. — Há cerca de sessenta anos os saltadores quiseram transformar-me numa marionete. Não se saíram bem. Aliás, quem é você? — A-Thol, enviado pessoal do supremo sacerdote Rhabol. Deseja mais alguma informação, Cardif? — A exigência de Rhabol é inexeqüível, A-Thol! — respondeu Cardif em tom áspero. — Nesse caso não teremos nenhuma alternativa. No planeta Lepso, você jurou fidelidade e gratidão eterna ao culto de Baalol. Hoje Baalol toma suas palavras ao pé da letra. Dentro de poucos dias, a Galáxia saberá livrar-se do inimigo público número um. Bastará uma insinuação nossa, habilmente formulada, para arrancar-lhe a máscara. Escolha logo, Cardif. Você terá que se decidir antes de sair desta sala. Muito frio, Cardif perguntou como quem se sente dono da situação: — O que o sacerdote me dará em troca, se conseguir fornecer-lhe o que pede? Pela primeira vez notou-se uma alteração no rosto do anti. Fitou Cardif com um sorriso de desprezo. — O quê? Por acaso o olhar de Cardif desviou-se do anti. Olhou para fora, para a área de penumbra, e descobriu alguma coisa que fez ruir imediatamente parte de seu plano. Não perdeu tempo; adaptou-se logo à nova situação.

Não deixou que seu interlocutor percebesse o que havia descoberto. *** O silêncio passara a reinar no camarote de Bell. Allan D. Mercant não participara da palestra entre Reginald Bell e John Marshall; apenas fizera uma ligeira observação. Os três homens esperavam que Perry Rhodan se comunicasse pelo rádio do capacete. Sentiram-se contrariados ao perceber que, logo após o cumprimento do patriarca Catepan, Rhodan o desligara. Seguiu-se um período de silêncio e de espera. Quem chamou de repente pelo intercomunicador de bordo não foi Rhodan, mas o mutante Fellmer Lloyd, cujo rosto apareceu na tela. — Sir, vejo o modelo de vibrações cerebrais de um anti. Bell, Mercant e Marshall só ouviram a palavra anti. — Destacamento de robôs número um, ficar de prontidão! — gritou Bell para dentro do microfone especial. Imediatamente transferiu a ligação. As informações de Fellmer Lloyd passaram a ser ouvidas em todos os recintos da Ironduke. — Sir — voltou a soar a voz de Lloyd depois da ligeira interrupção. — Localizei as vibrações cerebrais no escritório dos saltadores. As características do modelo são as seguintes: ódio, desprezo, intenções assassinas. Infelizmente a localização é incompleta, O anti deve ter-se protegido num campo defensivo reforçado por suas energias mentais. Localização de vibrações cerebrais... — Obrigado! — interrompeu Bell. — Ponha em ação todos os telepatas, Lloyd. Jefe Claudrin, o senhor ouviu? — essa pergunta foi dirigida ao comandante da Ironduke. — Ouvi! — disse a voz potente saída do alto-falante. — OK, Claudrin. Se estes ciganos estelares conseguirem levar uma espaçonave ao espaço, por menor que seja, e desaparecer na mesma... Bell viu-se interrompido. — Já sei. Nesse caso irei para o inferno. Bell, que já estava saindo do camarote, ouviu a risadinha de Mercant. Apesar da gravidade da situação não pôde deixar de sorrir da pronta resposta de Claudrin. Três homens correram em direção ao elevador antigravitacional mais próximo. Enquanto corria, Bell ligou seu minicomunicador. — Destacamento de robôs número um — gritou para dentro do microfone. Aguardem até que estejamos na eclusa. Fiquem de prontidão. Entraram no poço do elevador. Desta vez tiveram a impressão de que demoravam demais para chegar ao destino. Ainda no elevador, Bell voltou a entrar em contato com Fellmer Lloyd, o localizador. Ele não havia constatado nada de novo. O antimutante localizado no entreposto comercial dos saltadores devia manter-se passivo sob o campo defensivo reforçado por suas energias individuais. Seus impulsos mentais já não chegavam aos mutantes. Antes que chegassem à última eclusa, houve uma pequena demora. Bell, Mercant e Marshall tiveram de colocar trajes espaciais. Estavam com muita pressa, mas naquela altura não precipitavam nada. — Controle dos armamentos! — ordenou Bell, que foi o primeiro a enfiar-se em seu traje.

Mercant e Marshall anunciaram que tudo estava em ordem. Entraram apressadamente na eclusa. Correram lado a lado pela rampa. Ao pé da mesma estava um planador, no qual havia vinte robôs de guerra e um piloto. Quando se tratava de travar um combate, um robô desses equivalia a cem homens muito bem treinados da Frota Solar. O planador levantou vôo. Sua aceleração era tremenda. Bell estava sentado ao lado do piloto. Puxou o microfone para junto de si, mas por enquanto não falou nada para dentro do mesmo. Viu que o planador corria vertiginosamente em direção ao entreposto comercial dos saltadores, a dez metros de altura. Olhou para o instrumento que indicava a distância que os separava do campo energético que protegia o escritório dos saltadores. Faltavam dois quilômetros. Bell continuava calado. Mais um quilômetro! Finalmente transmitiu sua mensagem: — Chamo Catepan, o saltador. Aqui fala Reginald Bell, representante de Rhodan. Abra imediatamente o campo defensivo. Vamos logo, senão a Ironduke atirará. Dali a três segundos o indicador de certo instrumento caiu para a posição zero. Não havia mais nada que pudesse ser detectado pelo mesmo. Os campos defensivos que envolviam o entreposto dos saltadores em Plutão haviam sido desativados. O planador, ocupado por vinte robôs e três homens, pousou junto à eclusa de entrada do escritório. As máquinas de guerra desembarcaram instantaneamente, com a precisão de uma manobra. Três robôs subiram. Usaram seus aparelhos antigravitacionais para manter-se a cinqüenta metros de altura e dali controlaram praticamente todos os pavilhões e edifícios. Os outros correram em direção à eclusa, acompanhados por três homens. A mesma abriu-se sem que Bell pedisse. O patriarca dos saltadores veio correndo pelo recinto que se estendia à frente deles. Parecia muito nervoso. Não usava traje espacial. Bell e seus companheiros viram nisso um sinal de que podiam abrir seus capacetes. — Onde está o administrador? — berrou Bell para o chefe dos saltadores. O nervosismo de Catepan transformou-se em espanto. — Perry Rhodan? Está em um dos meus escritórios, mas... — Onde ficam os escritórios? — interrompeu-o Bell. Totalmente confuso, Catepan apontou para a outra extremidade do depósito muito comprido. — Ali atrás, à esquerda? — perguntou Bell para certificar-se. O patriarca dos saltadores fez que sim. O gorducho saiu correndo. Ao que parecia, o pesado traje espacial não representava nenhum obstáculo para ele. Mas mal os robôs perceberam seu objetivo, sete deles se adiantaram e chegaram à porta quando havia percorrido apenas metade do caminho. Apesar da preocupação que sentia por Rhodan, aquele homem baixo e gordo não se esqueceu de manter informados todos a bordo da Ironduke. Gritou pelo rádio embutido em seu traje espacial: — Claudrin, estamos no escritório. Dirigimo-nos ao lugar em que se encontra o chefe. Os robôs vão à nossa frente. Desligo.

John Marshall corria a seu lado. Allan D. Mercant encontrava-se a uns metros atrás deles, quando atingiram a porta que dava para o corredor, pela qual já haviam passado sete robôs. Mal haviam dado os primeiros passos no corredor, Bell, num gesto impulsivo, segurou o braço de Marshall e gritou: — O senhor ouviu? Não foi um tiro? John Marshall fez que sim. *** O anti não desconfiou de nada quando viu um objeto desprender-se da Ironduke e deslocar-se a cerca de dez metros de altura em direção ao escritório dos saltadores. Mas Cardif-Rhodan compreendeu de que se tratava, assim que observou o fenômeno. Por um instante sentiu-se dominado pelo pavor. Lembrou-se de que Bell, Mercant e Marshall o haviam acompanhado para Plutão sem que ninguém tivesse pedido. Naquele instante Cardif deu-se conta de que além desses homens devia haver um grupo de mutantes a bordo da Ironduke. “Foi idéia de Reginald Bell!”, pensou. O pavor nasceu da suposição de que os telepatas pudessem ter identificado seus impulsos cerebrais com a pessoa de Thomas Cardif. Mas logo se tranqüilizou ao lembrarse de que a saída dos seus impulsos estava sendo impedida. De qualquer maneira, precisava concentrar-se ao máximo para poder continuar a pensar “nos moldes” de seu pai. Nem atrevia-se a pensar nos seus planos. Encontrava-se numa situação de extremo perigo. Nunca estivera tão próximo de ser desmascarado. Para dissipar qualquer suspeita dos telepatas, obrigou-se a, dentro do esquema mental do pai, criar uma mentira altamente refinada. Em pensamento fez de conta que naquele momento descobrira que a pessoa à sua frente era um anti. Thomas Cardif nem desconfiava de que estava realizando um trabalho extraordinário, que seria digno de melhor causa. Dirigiu-se ao anti, explicando-lhe que risco assumira ao penetrar no coração do Império Solar. Não se falou mais nos ativadores celulares, O nome de Rhabol não foi pronunciado uma única vez. O anti nem percebeu que de repente Thomas Cardif estava conduzindo a palestra, e também não notou que a conduzia a um plano indiferente. Muito menos o anti desconfiava de que a tropa de choque, desembarcada do couraçado linear Ironduke, já se encontrava no interior do entreposto dos saltadores. Apesar disso, alguma coisa em Cardif o assustou. Por uma questão de instinto preveniu o mesmo, que se aproximava lentamente: — Não chegue muito perto, Cardif! Liguei meu campo defensivo assim que o vi à minha frente. Fique onde está! Nem um passo a mais! Naquele instante, o ruído forte dos passos do primeiro robô de guerra fez-se ouvir no corredor. — O que é isso? O anti ainda conseguiu formular esta pergunta. Depois cometeu um erro: tirou os olhos de cima de Cardif e olhou para a porta.

A-Thol não viu o objeto que Thomas Cardif tirou do bolso do traje espacial num gesto rapidíssimo. Quando a luz indireta se refletiu no cano de um velho revólver calibre 44, já era tarde para fugir. O projétil de plástico antimagnético rompeu o campo defensivo superpotente e atingiu o anti, no lugar exato em que Thomas Cardif queria ver colocada a bala. O homem, que usava a máscara de Rhodan, não se esqueceu de nenhum detalhe. Pegou a arma pelo cano e bateu com a coronha no lado direito do queixo. A pele abriu-se e a ferida começou a sangrar. A seguir Cardif deu um passo rápido em direção à escrivaninha. Havia um peso metálico junto aos papéis. Cardif segurou-o, esfregou-o pela ferida sangrenta e deixou-o cair. Enquanto isso teve de pensar ininterruptamente nos antis e imaginar a caverna de Okul, o que representava um ato de máxima concentração mental. Subitamente a porta abriu-se atrás dele. Dois robôs entraram precipitadamente. Seus sistemas visuais enxergaram o morto que estava jogado ao pé do administrador. Subitamente as máquinas de guerra enxamearam em torno de Cardif-Rhodan. Dali a pouco chegaram Bell e Marshall, seguidos de perto por Allan D. Mercant. — Perry! — gritou Bell em tom de espanto ao ver o morto. — Você o matou? — Será que você não está gostando, Bell? — gritou Cardif-Rhodan com a voz áspera. — Queria que me deixasse dominar por um anti? — como que por acaso, mostrou o queixo ferido a Reginald Bell. Este continuava de pé junto ao anti morto. Viu o peso metálico no chão, abaixou-se e levantou-o. Quando estava prestes a colocá-lo sobre a escrivaninha, viu o sangue grudado no mesmo. “É estranho,” pensou. Não sabia por que tinha certas dúvidas... Seria porque Rhodan nunca lhe parecera tão estranho como naquele momento? Perry defendera sua vida. Sem dúvida era um caso de legítima defesa. Mas será que Perry Rhodan tinha necessidade de matar? Não poderia ter posto o anti fora de combate? Não era justamente Perry Rhodan que vivia insistindo em que qualquer vida humana deve ser poupada, sejam quais forem as circunstâncias? — Bell, parece que você não está gostando de alguma coisa. O que é? Vamos logo! Diga! Estas perguntas atingiram Reginald Bell com a força de chibatadas. Passou por cima do morto, permaneceu junto à escrivaninha, lançou um olhar discreto para Mercant e Marshall e viu que estes também não concordavam com o procedimento de Rhodan. Fitou intensamente os olhos cinzentos do amigo, que subitamente pareciam tão frios, e perguntou: — Perry, como soube que este morto é um anti? Cardif-Rhodan limitou-se a sorrir. — Parece que você se esqueceu da visita que recebi de Banavol. O fato de eu querer visitar justamente o escritório dos saltadores em Plutão não lhe causou muita preocupação. Teria vindo apenas para inspecionar o escritório? — soltou uma risadinha e fez com que até mesmo Allan D. Mercant estremecesse e desse um pequeno passo para trás. — Sei que não devia estar fazendo pessoalmente as inspeções, meu caro. Entretanto quis convencer-me pessoalmente de que as suspeitas de Banavol tinham fundamento. E este morto constitui a melhor prova de que um anti se introduziu no entreposto dos

saltadores em Plutão. Será que ultimamente os mercadores galácticos também possuem a capacidade de criar campos defensivos por meio de suas energias individuais? Bell deu vazão ao seu temperamento. Com um gesto afastou os argumentos de Rhodan. — Há pouco você deu a entender que agiu intencionalmente ao matar o anti, Perry? Cardif-Rhodan nem pestanejou. — Será? Realmente fiz isso? Nesse caso não formulei devidamente as minhas palavras, ou você não me entendeu.

3 Quando regressaram à Ironduke, havia uma notícia importante vinda da Terra. Em Pagny sur Moseile, onde fora construída a fábrica de alitivo, destinada a suprir a Europa, os trabalhadores e técnicos haviam entrado em greve. Exigiam aumento de ordenado de vinte por cento. Se a greve não terminasse até a tarde do dia seguinte, os médicos da Europa estariam ameaçados de ficar sem o antídoto. As conseqüências que resultariam disso para alguns milhões de viciados eram imprevisíveis. Quando tomou conhecimento da notícia, Cardif-Rhodan encontrava-se na sala de comando da nave linear. Passou-a a Bell. — Cuide disso. Bell fitou-o com uma expressão de perplexidade. Seria verdade? Até parecia que Perry Rhodan nem se interessava mais em saber se os viciados da Europa eram curados ou não! Bell resolveu controlar-se, embora fervesse por dentro. — Está bem; cuidarei disso, Perry. Retirou-se da sala de comando e foi à sala de rádio. No meio do caminho encontrouse com o oficial de artilharia, Brazo Alkher. — Onde vai, Alkher? — perguntou Bell. — Vou falar com o chefe. Ele me chamou pelo minicomunicador. Não sei o que deseja. — Ah, é? O chefe o chamou? Está bem, Alkher. Obrigado. Bell falava como quem está muito distraído e foi exatamente esta a impressão que o oficial de artilharia teve a respeito do representante de Rhodan. Bell entrou na sala de rádio da Ironduke. Não cumprimentou os presentes, como costumava fazer. Parecia não ver ninguém. Colocou-se ao lado do homem encarregado do hiper-rádio e fitou o painel de chaves. O tenente muito jovem que estava sentado diante do aparelho levantou os olhos. “As coisas não estão nada boas”, pensou. Preferiu não dirigir a palavra a Reginald Bell. Este ficou refletindo sobre os motivos por que Perry ordenara ao oficial de artilharia que comparecesse à sala de comando. A partir do momento em que tinham saído do escritório, acompanhados do anti morto, não mais se haviam separado. “Será que Perry já tinha chamado o oficial enquanto se dirigia ao entreposto dos saltadores?”, refletiu o representante de Rhodan. “Esses médicos.., O que não fizeram de Perry! Será que aquilo que há de novo e incompreensível em sua mente não foi provocado pelo choque de Thomasson?” Sobressaltou-se em meio às reflexões. — Ah, sim. Quero enviar uma mensagem à estação de hiper-rádio Europa. Referência: Greve nas fábricas de alitivo de Pagny sur Moselle. A administração do Império Solar recorre ao artigo 43, inciso II, proclamando o estado de emergência para a fábrica de alitivo. Esta determinação entra em vigor a zero hora. Os grevistas devem ser informados de que estarão sujeitos a penas de prisão se continuarem a recusar-se a trabalhar. Reginald Bell.

— A mensagem será codificada? — perguntou o tenente que se encontrava junto ao aparelho de hiper-rádio. — Não! — disse Bell em tom contrariado. — Mostrarei a essa gente de Pagny sur Moselle o que acontece com quem pretende tirar proveito numa situação dificílima. Um instante, meu caro. Vamos modificar a última frase. Transmita o seguinte: Os grevistas serão avisados de que, se persistirem na recusa de trabalhar, serão deportados. A administração invoca o artigo 1, parágrafo 1o da lei reguladora do estado de emergência. Reginald Bell. Acho que desta forma entenderão melhor. Que diabo! Não tenho nada contra uma greve justa, mas o que está sendo feito neste caso é uma pouca-vergonha; é uma... Preferiu não dizer a última palavra. Saiu ruidosamente da sala de rádio. Entrou na de comando da Ironduke sem desconfiar de nada. Jefe Claudrin, comandante da Ironduke, parecia uma estátua de mármore plantada no centro da sala. Imóvel, fitava o chefe. Perry Rhodan estava de costas para Bell. — É isso mesmo, Claudrin! A Ironduke ficará em Plutão. Voarei sozinho. Mande preparar um jato espacial. Nolinow e Alkher, sabem o que têm a fazer? Os dois jovens tenentes prestaram continência para Rhodan e responderam com a voz rangedora: — Sim, senhor! Fizeram menção de retirar-se. Mas Bell interpôs-se em seu caminho. — Aonde vão? — perguntou. Os oficiais na sala de comando, cujos olhares até então haviam vagado entre o chefe e o comandante, passaram a fitar exclusivamente Perry Rhodan. O mesmo encontrava-se a oito passos de Bell. — Bell, quero pedir-lhe que não impeça a passagem dos dois tenentes — disse. Os olhos de Bell chamejaram. Fitou Rhodan e voltou a fitar os dois oficiais. Finalmente disse em meio à tensão reinante na sala de comando, em tom não menos áspero que o que o chefe acabara de usar com ele: — Quero saber por que estão preparando um jato espacial. Pelo que sei, todos os jatos espaciais que se encontram a bordo estão prontos para decolar. Jefe Claudrin adiantou-se ao chefe. Livrou Rhodan do trabalho de responder à pergunta de Bell. Mas a gentileza de Jefe Claudrin não provinha exclusivamente de razões altruístas. Pretendia informar Bell sobre aquilo que se passara na sala de comando durante sua ausência. — O chefe quer voar sozinho para Peregrino. Não precisa da Ironduke. Bell não compreendeu tamanha tolice. Naquele setor da Via Láctea não havia nenhuma nave mais segura e mais veloz que a Ironduke. Será que Perry Rhodan ainda não compreendera que estava literalmente sendo perseguido pela desgraça? Queria provocar alguma catástrofe? Há algumas semanas vivia chocando todo mundo! “É de amargar,” pensou o gorducho, bastante desanimado. — Pois não! — disse Bell para espanto dos presentes e deixou que os dois oficiais passassem.

Vira um brilho estranho nos olhos cinzentos de Rhodan. Conhecia esse sinal de alarma. Era uma característica do chefe. Naquele momento nada neste mundo conseguiria demovê-lo da sua intenção de viajar só para Peregrino. E Bell não estava disposto a lutar contra moinhos de vento. Nunca se sentira tão contrariado como nas últimas horas. *** O jato espacial 1-109 desapareceu no espaço. O dispositivo de rastreamento estrutural da Ironduke mediu a manobra de mergulho no hiperespaço realizada pelo pequeno veículo espacial. — O vôo está correndo bem! — comentou Jefe Claudrin. Com os dois tripulantes que se encontravam em companhia do chefe, isso não era de admirar. Stana Nolinow, um homem atarracado que comandava os robôs da Ironduke, era um sujeito arrojado, tal qual Brazo Alkher, o oficial de artilharia. Mas a característica principal desses homens não era sua audácia. Dispunham da sensibilidade especial que lhes permitia, nas situações difíceis em que não havia tempo para refletir, agir acertadamente por simples intuição. Não haviam adquirido essa faculdade durante o curso que fizeram na Academia Espacial Solar, mas certos psicólogos inteligentes reconheceram o valor imenso que jazia nos dois jovens. Por isso essas faculdades foram desenvolvidas com o auxilio de professores sensíveis, até chegarem às raias da automação. Brazo Alkher pilotava a 1-109. O grande cérebro positrônico da nave transmitira ao pequeno computador do jato espacial as coordenadas de Peregrino. O cérebro de Vênus as apurara pouco antes, num trabalho de várias horas. Alkher e Nolinow estavam sós na sala de comando da 1-109. O chefe se retirara para seu camarote. O barco espacial em forma de disco, que media apenas trinta e cinco metros de diâmetro, parecia uma casca de noz em comparação com qualquer espaçonave esférica. No entanto, oferecia tudo que se podia esperar de um bom veículo espacial. Estava equipado com um hiperpropulsor do tipo mais moderno e os melhores dispositivos automáticos; neste ponto levava uma vantagem imensa sobre muitas espaçonaves maiores de outras raças. Quanto ao armamento, seria um erro subestimar o jato espacial. Apesar disso, sob o ponto de vista objetivo, era pura tolice ir a Peregrino num veículo pequeno como este. A Ironduke sempre ofereceria uma segurança infinitamente superior, em qualquer eventualidade. Brazo Alkher e Nolinow conversavam a meia voz sobre isso. Não viram nada de estranho no fato de o chefe se ter retirado ao camarote pouco depois da decolagem. Nem poderiam desconfiar de que, naquele momento, o homem que acreditavam ser Perry Rhodan não queria ver ninguém por perto. Thomas Cardif calculou suas chances de encontrar no planeta artificial um ser que, em sua configuração indescritível, constituía um povo, apesar de apresentar-se como um único indivíduo — um indivíduo sem substância física, mas dotado do saber imenso de uma raça que dominara a Galáxia antes dos eônios. Com uma lógica fria avaliou a situação em que se encontrava e o plano por ele elaborado.

Lembrou-se da transmissão de conhecimentos realizada em Okul, processo durante o qual Perry Rhodan fora obrigado a transferir suas faculdades a ele, Thomas Cardif. A transmissão não fora um sucesso total. O ego de Thomas Cardif continuava a dominar. Era ali que residia o maior perigo do jogo que estava desenvolvendo no sistema solar. Ele, Thomas Cardif, era o pior inimigo de si mesmo. Sabia disso. Mas não sabia o que aconteceria quando se encontrasse diante do Ser de Peregrino e pedisse para que Ele lhe entregasse os ativadores celulares. Perscrutou sua mente, à procura de sinais de insegurança, mas quanto mais demorava no seu exame, mais tranqüilo se sentia. Os telepatas e localizadores de Rhodan não haviam percebido o logro. Continuavam a acreditar que era Perry Rhodan, e era essa certeza que lhe conferia a segurança de que precisava para enfrentar o Ser do planeta Peregrino. Deitado no sofá, Thomas Cardif parecia um sonhador. Seu rosto apresentava as feições do verdadeiro Rhodan. Era expressivo e achava-se descontraído. Sua postura não revelava a menor tensão. Ninguém desconfiaria de que era um psicopata genial que elaborava um plano destinado a sacrificar a vida do pai e a libertar o próprio Cardif da dependência dos antis. Continuava a odiar Rhodan da forma que fazia há sessenta anos. Para ele, o administrador não era seu pai, mas apenas o homem que havia produzido sua semente, e que causara intencionalmente a morte de Thora, sua mãe. Era isso mesmo! Tinha certeza absoluta; quem afirmasse o contrário estaria mentindo a fim de proteger Rhodan. Muitas vezes revirara o saber que assumira de Rhodan, mas nunca encontrara no mesmo um único impulso mental que dissesse respeito à sua mãe. Esse impulso não existia. Mas Thomas Cardif tinha uma explicação para isso. Perry Rhodan submetera-se a um tratamento sugestivo, a fim de libertar-se do conhecimento do fato de ter sido o assassino de Thora, uma princesa arcônida. Cardif nem teve a idéia de que, se assim fosse, essa parte dos conhecimentos de Rhodan forçosamente teria sido transferida a ele. A mensagem vinda da sala de comando fez com que se sobressaltasse em meio às reflexões. — Sir — anunciou Nolinow. — Saltaremos dentro de três minutos e trinta segundos. Será o último salto. O verdadeiro Rhodan teria agradecido depois de receber o anúncio, já que era um líder nato. Sabia como tratar seus colaboradores com o intuito de estimulá-los a darem o máximo de si. O sósia de Rhodan não possuía essa capacidade. Nolinow olhou para Brazo. — Então, meu caro — perguntou. — Que tal lhe parece o humor do velho? Já passeei com gente mais alegre. Brazo Alkher não estava disposto a concordar desde logo com a opinião de Nolinow. — Não se esqueça do que o chefe passou em Okul. Afinal, ele só tem um filho, e, com uma coisa dessas, até mesmo o pai mais forte pode ter problemas psicológicos. Nolinow parecia cético. — Poder-se-ia dizer isso se Perry Rhodan fosse um homem comum, que nem você e eu.

Acontece que não é. A melhor prova é o fato de que criou o Império Solar. Não, Brazo, não acredito que se trate de problema psicológico. Não confio nesse... como é mesmo o nome? Tanto faz! Não confio no tratamento de choque a que foi submetido. Se tiver de adivinhar, direi que está a caminho de Peregrino, a fim de procurar um remédio para sua situação. Brazo Alkher lançou um olhar de surpresa para o companheiro mais baixo que ele, mas não teve tempo de responder. O salto pelo hiperespaço seria realizado dentro de cinco segundos. A contagem regressiva aproximava-se do fim. Os dois homens ataram os cintos. O momento zero chegou. Seguiu-se o hiper-salto, com a desmaterialização, a rematerialização, e a dor que acometeu os homens a bordo da 1-109. Tal dor se manifestava principalmente na nuca. Os dois jovens oficiais gemeram, depois foram se livrando dos últimos efeitos do choque e passaram a dedicar sua atenção exclusivamente à grande tela de visão global. Viram um setor espacial, muito pobre de estrelas, dentro de um raio de cinco anosluz. — Será que saímos no lugar errado, Brazo? — perguntou Stana Nolinow em tom preocupado. Brazo recorreu ao computador de bordo a fim de verificar a posição galáctica do jato espacial. O cérebro positrônico levou menos de um minuto para expelir a folha de plástico com os sinais perfurados. Os dois homens leram esses sinais como se fossem caracteres comuns. — Chegamos... — disse Nolinow em tom de espanto. — Quando a gente se aproxima de Peregrino, sempre é assim. Em condições normais o mundo artificial não pode ser visto nem localizado. Atenção, Stana, entrarei em contato com o chefe. Uma vez recebido o chamado, Cardif-Rhodan ergueu-se do sofá, espreguiçou-se, respirou profundamente e deu um passo para sair do camarote. Estava prestes a dar o passo mais perigoso de sua vida. Não poderia deixar de dá-lo, pois, do contrário, Perry Rhodan, seqüestrado pelos antis, colocaria em perigo sua posição pelo resto da vida. Não poderia deixar de assumir o risco, porque não queria continuar a ser uma marionete dos antis. No momento em que saiu do camarote o desassossego abandonou-o de vez. Tinha certeza de que também conseguiria enganar o Ser imaterial. *** Quando o jato espacial penetrava pela abertura larga do anteparo energético do planeta Peregrino, prenderam a respiração. Cardif reuniu as forças que lhe restavam para não perder o autodomínio. De repente Peregrino, o mundo artificial onde reinava a imortalidade, estendeu-se embaixo deles. Não era um planeta no sentido usual da palavra. Era um disco de seiscentos quilômetros de diâmetro, protegido por um campo energético em forma de abóbada. Naquele disco encontrava-se tudo que havia de belo no cosmos. Brazo Alkher e Stana Nolinow gostariam de fitar a maravilha por horas a fio, mas viram-se impedidos de fazê-lo já que Rhodan lhes ordenou que se dirigissem ao campo de dois quilômetros de

extensão, em cuja extremidade se erguia uma torre fina e de aspecto frágil, de mais de mil e trezentos metros de altura. Era este o mundo em que vivia Ele ou Aquilo — desde tempos imemoriais. Thomas Cardif ouvira-o antes que surgisse a abertura no anteparo energético. Uma voz falou no interior de Cardif. Aquilo formulou uma pergunta: — Perry Rhodan, quer falar comigo? Antes que Cardif pudesse recuperar-se do impacto produzido pela mensagem, a voz voltara a soar: — Fico muito satisfeito em revê-lo. Parece que você sente muitas saudades de mim. Você não me visitou há poucos instantes? Os conhecimentos que Cardif absorvera de Rhodan informaram-no sobre o que o Ser coletivo entendia pela expressão “poucos instantes”. Ele ou Aquilo pensava em padrões temporais diferentes. Um espaço de tempo que, para os homens, constituía alguns decênios, representava apenas um momento para ele. E agora a voz continuava calada, enquanto o veículo espacial 1-109 descia suavemente no campo de pouso de dois quilômetros de extensão ladeado pela torre esguia. De pé atrás dos dois oficiais, Cardif olhava a tela de visão global. Os conhecimentos de Rhodan permitiram-lhe compreender o que via. Não existia nada que lhe fosse estranho. Até sabia para onde dirigir-se. Os últimos mecanismos do jato espacial pararam de funcionar. Alkher e Nolinow haviam colocado todos os controles na posição zero. — Esperem-me aqui. Irei só — disse o chefe às costas dos tenentes. Seguiram-no com os olhos enquanto caminhava pelo corredor e parava junto à eclusa. Cardif retirou-se do veículo espacial apenas com a roupa do corpo, sem a menor proteção. A gravitação de Peregrino chegava a 0,90. As condições eram quase iguais às da Terra. Atravessou o campo de pouso e dirigiu-se a um pavilhão, quando de repente ouviu no seu subconsciente uma estrondosa gargalhada. — Rhodan, quase fui devorado pelo tédio! Você nem imagina como me alegro de revê-lo, amigo. É uma pena que eu não seja feito de substância para poder abraçá-lo e dar-lhe uns tapinhas no ombro. Mais uma vez uma ruidosa gargalhada soou no subconsciente de Thomas Cardif, mas ele não se perturbou com isso. Aquilo o cumprimentara como se ele fosse Perry Rhodan. E manifestara o desejo de dar “uns tapinhas” no ombro dele, que acreditava ser Perry Rhodan. A gargalhada cessou abruptamente. — Chegue mais perto, amigo! O que deseja? Oh, você sabe perfeitamente o que quer de mim. Vinte e um ativadores celulares com regulagem individual seletiva, não é? Cumprirei minha palavra. Fornecer-lhe-ei os mesmos. Você sabe perfeitamente que gosto de ficar como espectador quando o Jogo de forças cósmicas é travado em vários rounds. Terrano, estou convencido de que para mim a época de tédio chegou ao fim. A voz calou-se. As risadas tornavam-se cada vez mais fracas, pareciam vir de uma distância longínqua, e depois de algum tempo cessaram de vez.

Cardif não parara ao ouvir a voz dirigida ao seu subconsciente. Adotou o mesmo procedimento que Rhodan teria usado se estivesse em Peregrino. O saber transferido forneceu-lhe as necessárias informações a este respeito. Sentia-se mais seguro do que nunca de que Ele ou Aquilo também se tornara vítima do logro genial. Cardif nem desconfiava de que, ao fazer a visita ao planeta artificial, proferira sua própria sentença de morte. Viu-se no interior do pavilhão. Esperou pacientemente. Não teve de realizar um esforço de concentração muito intenso para que seu pensamento se desenvolvesse exatamente nos moldes do de Rhodan. Olhou em torno com uma euforia indescritível. Não parecia curioso, mas apenas interessado, como alguém que, depois de muito tempo, revê coisas a que já está familiarizado. Ali estava o fisiotron, o aparelho singular que até então conservara a vida de Rhodan e das pessoas mais chegadas ao mesmo. Tinham de comparecer a Peregrino com intervalos de sessenta e dois anos, a fim de renovar o processo de rejuvenescimento biológico. Cardif sabia disso há muito tempo, e também sabia que teoricamente a expectativa de vida de Atlan não tinha limite, em virtude de um aparelho do tamanho de um ovo, denominado ativador celular. Pedira ao Ser imaterial que lhe desse vinte e um aparelhos desse tipo, e Aquilo dera a entender que, em conformidade com o que fora combinado, não deixaria de atender ao pedido. Sentiu um ligeiro estremecimento diante da fraude vergonhosa. Concentrou-se ao máximo para afastar a voz da consciência. “Devo pensar nos moldes de Rhodan”, refletiu. “Vou pensar no vigésimo primeiro ativador.” Começou a sentir-se como se fosse Rhodan. Pensava através dos conhecimentos do pai, mas não pensava corretamente a respeito d’Aquilo. “Não quero comparecer aqui a cada sessenta e dois anos para receber a ducha celular”, disseram seus pensamentos. “Quero continuar jovem, que nem o Imperador Gonozal VIII.” Seus pensamentos giravam exclusivamente em torno deste ponto. Sabia do humor peculiar d’Aquilo, e sabia ainda que Ele gostava de complicar todas as coisas a sua maneira. Cardif estremeceu quando a voz chamou em seu subconsciente, sem aviso prévio: — Você está fazendo concorrência ao velho Odisseu, amigo. Esta brincadeira obriga-me a mostrar-me reconhecido. Quer que coloque o vigésimo primeiro ativador celular no fisiotron para adaptá-lo às suas vibrações individuais, Perry Rhodan? Cardif estava banhado de suor. “Quero”, pensou. “Regule o ativador.” A resposta foi uma risadinha, seguida de uma ligeira pausa. Mais uma vez ouviu a voz vinda de qualquer lugar: — Hoje você me diverte ao máximo, terrano! E eu lhe pagarei de igual para igual. Aguarde lá fora, perto do pavilhão. Perry Rhodan, assim que o ativador celular for regulado, você também estará de posse dos outros vinte aparelhos desse tipo. Ao sair do pavilhão, Thomas Cardif sentiu-se inebriado de uma sensação que nunca experimentara. Achou que a espera do lado de fora seria menos cansativa que naquele recinto fechado. Obrigou-se a andar devagar, a passos comedidos, segundo o feitio de Rhodan.

Lá fora sentiu-se atingido pelo clima suave do mundo artificial. O Jato espacial encontrava-se a um quilômetro dali. Alkher e Nolinow cumpriram suas ordens: nem sequer saíram da pequena sala de comando do veículo espacial 1-109. Thomas Cardif olhou para a torre esguia. “Isto está liquidado”, pensou, mas logo voltou a controlar a atividade de sua mente. Essa precaução era uma das qualidades herdadas do pai, que não costumava arriscar levianamente uma coisa que conseguira conquistar. Aspirou gostosamente o ar perfumado de Peregrino. O subconsciente voltou a chamar. Teve a impressão de que Ele cochichava esta frase: — Você faz concorrência ao Odisseu da Antigüidade de sua raça. Será que Ele descobriu alguma coisa? Será que a manobra por meio da qual pretendia enganar o Ser de Peregrino fora mal-sucedida? De repente o ego de Thomas Cardif cochichou no subconsciente do mesmo: “Ele não descobriu coisa alguma. Apenas se diverte com o fato de que pretende usar o ativador celular para escapar à ducha celular que tem de ser realizada a cada sessenta e dois anos. Foi por causa desse truque que Ele o comparou com Odisseu, o astucioso.” Thomas Cardif passou a mão pela testa. A tensão foi diminuindo. Voltou a aspirar o ar perfumado. Esperava que Aquilo lhe entregasse vinte e um ativadores celulares. *** Homunc, uma criação d’Aquilo, era um robô humanóide altamente aperfeiçoado, criado especialmente para Rhodan, por ocasião da primeira visita que este fizera ao planeta Peregrino. E Homunc ouviu que, Ele, o seu senhor, soltou uma risadinha alegre. Homunc permanecia nos fundos do pavilhão. Só penetrara no mesmo depois de Thomas Cardif ter saído. Aquilo não queria que houvesse um encontro entre eles. Ele apenas queria conversar com Homunc à sua maneira toda peculiar. Aquilo não precisaria da presença do robô, mas a situação parecia tão grotesca que achava necessária a presença de Homunc. Seguiu-se uma palestra mental, bastante estranha. — Homunc, você o reconheceu? — Reconheci-o imediatamente, senhor. — Qualquer pessoa que use o nome de Rhodan diverte-me a valer, Homunc. Esses bárbaros vindos do terceiro planeta de um sol, que chega a ser ridículo de tão pequeno que é, têm cada idéia que merece um prêmio. — Pretende apoiar o filho de Rhodan, senhor? — Por que não iria apoiá-lo, desde que o patifezinho tenha bastante inteligência? Mas antes de mais nada terá de provar se realmente tem inteligência. Um patife inteligente permite que alguém o chame pelo nome de outra pessoa, mas nunca procura identificar seus pensamentos com os dessa pessoa. — Senhor, será que ele entendeu o sentido exato da sua pergunta? “Quer que coloque o vigésimo primeiro ativador celular no fisiotron para adaptá-lo às suas vibrações individuais, Perry Rhodan?” Foi isso que o senhor perguntou.

— Homunc, você está me decepcionando. Será que sou o Destino? Só mesmo um tolo procura atirar-se nos braços da onipotência. Por isso nem penso em ajudar Rhodan. Uma pessoa que assume o risco que ele assumiu em Okul terá de pagar o preço. — Senhor, os dois correm o perigo de serem mortos. — Não digo que não seja assim, Homunc. — Senhor, expõe Cardif a um perigo tremendo! — Por enquanto não. Quando chegar a hora eu o prevenirei, Homunc. Eu o prevenirei com muita insistência. Ele assumiu todo o saber que Rhodan acumulou a meu respeito. Uma pessoa que assume o risco de agir, da forma que fez Thomas Cardif, deve possuir inteligência suficiente para trabalhar com o saber alheio. Está na hora de retirar o ativador celular do fisiotron. Homunc, quer fazer o favor de certificar-se de que o mesmo está regulado exatamente para as vibrações de Perry Rhodan, conforme deseja Thomas Cardif? — Acontece que Cardif não é Rhodan, senhor. Não conseguiu iludir nem ao senhor nem a mim, como fez com todos os outros. No seu caso o ativador celular será contraindicado. — Eu o advertirei dessa contra-indicação, farei uma advertência muito precisa, Homunc, quando chegar a hora. — Como serão os outros vinte ativadores celulares, que os sacerdotes de Baalol exigem de Cardif? — Serão uma graça, Homunc, e uma lição muito proveitosa, que talvez faça com que os antis compreendam que não podem brincar comigo. Mas Thomas Cardif me diverte; não deve conhecer o provérbio do ladrão roubado... Não tem a inteligência do pai. Com isso a palestra travada no interior do pavilhão chegou ao fim. Aquilo voltou a soltar a risadinha alegre. Homunc, cujo cérebro era uma combinação semi-orgânica e positrônica, que funcionava em base hexadimensional, não se atreveu mais a dirigir a palavra a Aquilo. Homunc não estava preocupado. Conhecia perfeitamente seu senhor, e por isso sabia que Thomas Cardif tinha em mãos seu próprio destino, que determinaria sua vida futura. Homunc continuava a manter-se nos fundos do pavilhão. Viu o ativador celular sair do fisiotron e seus olhos acompanharam o objeto em forma de ovo que se deslocava pelo ar, em direção à porta. Aquele ativador, regulado para as vibrações individuais de Perry Rhodan, conferiria a esse terrano a imortalidade relativa desde que ele o trouxesse junto ao corpo. Acontece que Thomas Cardif não era propriamente Perry Rhodan. Será que em virtude disso o ativador não produziria nenhum efeito? Ou provocaria alguma reação que o termo contra-indicação só designava de forma bastante vaga? Os olhos de Homunc continuavam a seguir o ativador, que se afastava lentamente. A risada alegre d’Aquilo não era muito forte, mas era capaz de encher o grande pavilhão. Aquilo divertia-se com os terranos. Desde que passara a ser Aquilo, nunca ninguém tentara ludibriá-lo. Mas agora isso acabara de ser feito. E o ser imaterial divertia-se com isso. Thomas Cardif caminhou em direção ao jato espacial. Conseguira! Trazia o ativador celular junto ao corpo. Tinha diante de si a vida eterna. Só mesmo um acontecimento violento poderia causar-lhe a morte. Estava

protegido contra a degenerescência das células. A atuação ininterrupta do objeto em forma de ovo que trazia sobre o peito provocaria uma renovação incessante das células. Conseguira! Apesar de tudo, reprimiu a sensação de triunfo. Ainda se encontrava em Peregrino. Ainda havia o perigo de que Aquilo percebesse a manobra levada a efeito para lográ-lo. Aquilo manteve-se em silêncio. Aquilo se despediu no momento em que Cardif pendurou o ativador pelo pescoço e o escondeu sob o uniforme. — Perry Rhodan, regulei o aparelho exatamente para suas vibrações individuais, e tive muito prazer em agir assim, meu amigo. As vinte peças restantes lhe serão enviadas posteriormente. Você as encontrará junto à eclusa de seu barco espacial. Não se preocupe por causa do recipiente em que serão entregues. Ele se abrirá no momento em que você desejar que isso aconteça. Se quiser que permaneça fechado, não haverá força no Universo que seja capaz de pôr as mãos em seu conteúdo. Passe bem, Rhodan. Sua visita me deixou alegre como nunca. — foram estas suas últimas palavras, que Cardif captou. Depois disso o Ser fictício de Peregrino voltara a soltar uma estrondosa gargalhada. Acompanhara Thomas Cardif até o centro da praça circular, onde desapareceu abruptamente. Quando se encontrava a apenas cem metros do veículo espacial 1-109, Cardif sentiu que um fluxo vivificante que nunca sentira lhe inundava o corpo. “O ativador está funcionando”, pensou. Teve de esforçar-se ao máximo para não cair num estado de euforia. Conteve o passo e perscrutou seu interior. E então não teve mais dúvida; de repente sentia-se jovem e recarregado com um máximo de energia. Parecia libertado de um peso que o oprimia desde o momento em que pela primeira vez pisara em Peregrino. Quando atingiu a pequena rampa do jato espacial, uma esfera luminosa vermelhopálida de meio metro de diâmetro surgiu à sua frente, vinda do nada. Flutuava na altura de sua cabeça. Em seu interior reconheceu vinte objetos escuros em forma de ovo, iguais ao ativador celular que trazia sobre o peito. Estendeu a mão e tocou a superfície do envoltório esférico. Dava a impressão de ser feita de substância material, mas Cardif não acreditou que realmente fosse. O saber de Rhodan permitiu-lhe que tivesse uma idéia sobre a estrutura da esfera oca, que se encontrava à sua frente. Era um campo temporal adaptado aos seus impulsos, que só se abriria por sua vontade. De repente compreendeu o sentido das palavras do Ser coletivo: “Não haverá força no Universo que seja capaz de pôr as mãos em seu conteúdo.” Havia um sorriso de triunfo em seus lábios quando entrou na pequena sala de comando do jato espacial. Stana Nolinow e Brazo Alkher estavam confortavelmente instalados e jogavam xadrez. Fizeram menção de levantar-se de um salto assim que viram o chefe à sua frente. Este conteve-os com um gesto. Cumprimentou-os com um aceno de cabeça. Tinha de encontrar uma maneira de dar vazão ao triunfo. Naquele momento, os jovens oficiais viram nele Perry Rhodan, que estava disposto a dar ouvidos a qualquer pessoa, sempre que isso fosse possível. — Infelizmente terão de interromper a partida de xadrez. Vamos decolar.

Cardif-Rhodan viu os olhares curiosos dos dois tenentes, que não paravam de fitar a esfera vermelho-pálida que flutuava na altura dos ombros do chefe. Mas este não lhes deu nenhuma informação. Nolinow e Alkher levantaram-se apressadamente. Ocuparam seus lugares. Uma vez à frente do painel de controle, recolheram a rampa e fecharam a eclusa. Deram início ao processo de pré-aquecimento dos propulsores. O maravilhoso silêncio no interior do jato espacial chegara ao fim. As máquinas zumbiram, trovejaram, apitaram. Os dispositivos automáticos ligaram, simultânea ou sucessivamente, uma série de conjuntos mecânicos. O conversor central entrou em funcionamento com um som de barítono. Um tremor sacudiu o veículo espacial 1-109. Os dois oficiais não tiveram tempo para virar a cabeça, quando ouviram às suas costas os passos do chefe, que saía da sala de comando. Antes que concluíssem os preparativos da decolagem, Cardif-Rhodan retornou, desta vez sem a esfera vermelhopálida. — Decolagem! — disse Brazo Alkher, seguindo seu costume. Embora na Ironduke desempenhasse as funções de oficial de artilharia, tivera que absorver cursos rigorosíssimos na Academia Espacial Solar, tal qual acontecera com seus companheiros. E nesses cursos aprendera a pilotar jatos espaciais, naves da classe Estado e até mesmo cruzadores. A 1-109 levantou-se suavemente. Descreveu duas curvas em torno da torre de mais de mil e trezentos metros de altura, que se encontrava na periferia do campo de pouso circular. Enquanto isso, Brazo Alkher balançou o jato espacial. Era um aceno de despedida, um costume que se disseminara rapidamente pela Frota, mas que só podia ser praticado por quem não pilotasse uma nave esférica. O veículo espacial 1-109 subiu em direção à abóbada energética, uma semi-esfera que se estendia sobre o disco de seiscentos quilômetros de diâmetro. — Olhe a abertura! — exclamou Stana Nolinow em tom de surpresa. No mesmo instante, Alkher regulou os propulsores para o desempenho máximo. Com um rugido dos motores, a 1-109 precipitou-se para o espaço cósmico normal. Assim que o pequeno barco estelar alcançou a fronteira, a tela de visão global deixou de mostrar a abertura. E do campo energético também não se notava mais nada. Nada nas proximidades dava a entender que naquele setor espacial, onde escasseavam as estrelas, ficava o misterioso mundo artificial que os homens haviam batizado com o nome de Peregrino. Sem dizer uma palavra, Cardif-Rhodan saiu da pequena sala de comando. Precisava ficar só. Desejava ficar só. Queria desfrutar intensamente o seu triunfo. Ele, um imortal, conseguira. E com a isca que trazia numa versão multiplicada por vinte não teria a menor dificuldade em livrar-se das garras dos antis. Fechou a porta do camarote atrás de si. Acomodou-se na poltrona. A esfera energética-temporal, que reluzia numa tonalidade vermelho-pálida, flutuava num canto. Cardif concentrou-se na mesma. “Abra-se!”, pensou. A esfera aproximou-se em silêncio, parou dez centímetros acima do colo de CardifRhodan e deixou ver uma fresta. Um dos corpos com formato de ovo que se encontrava

no interior da esfera deslocou-se em direção à fresta. E um dos ativadores celulares saiu do recipiente em que estava contido e caiu no colo de Cardif. Segurou-o. Examinou o ativador de todos os lados. A peça só se distinguia num ponto do ativador que ele mesmo trazia sobre o peito. Na saliência de dois centímetros havia o contato que realizava a regulagem automática das vibrações. Aquilo fizera questão de chamar sua atenção para o fato de que um ativador celular não é transferível. Uma vez tentada a transferência, suas funções perdem-se. Ao lembrar-se disso, Cardif soltou uma gostosa gargalhada. — A vida eterna multiplicada por vinte, seus sacerdotes! — exclamou em tom de deboche. Naquele momento desejava ver os antis à sua frente. Se quisessem mesmo os ativadores, teriam de pagar o preço que ele exigisse. A vida eterna era impagável. — Por que não poderei arrancar tudo dos antis em troca de um único ativador? Voltou a enfiar o objeto em forma de ovo na fresta do campo temporal. A esfera reluzente tornou a fechar-se automaticamente. Deslocou-se para o canto em que estivera antes. Até parecia que era um ser pensante. — Consegui! — exclamou Thomas Cardif com a voz orgulhosa.

4 Depois que o patriarca Catepan e os outros mercadores foram interrogados por horas a fio, não havia mais nada a fazer a bordo da Ironduke. De início os terranos dispensaram um tratamento bastante áspero aos saltadores. Ninguém podia levar isso a mal, pois não se haviam esquecido da desgraça que os antis e Thomas Cardif haviam causado à Galáxia. A morte de milhões de viciados devia ser atribuída a esses antimutantes que se intitulavam de sacerdotes. Allan D. Mercant dirigia os interrogatórios. Era esta a sua especialidade, e com o auxilio de três membros da Segurança Solar que viviam constantemente em Plutão, tornou-se possível a realização de uma série de inquirições cerradas. O patriarca Catepan jurou por todos os deuses de Árcon que não tinha a menor idéia de que o homem, que acabara de ser morto por Rhodan, era um anti. Ninguém acreditou nele. Mas dali a várias horas, quando foi iniciada a terceira série de interrogatórios e o conteúdo da mente de cada um dos mercadores galácticos, que trabalhavam no entreposto de Plutão, foi examinado pelos telepatas, chegou-se à conclusão de que o patriarca Catepan não mentira. Mas a surpresa ainda estava por vir. O interrogatório havia chegado ao fim e os saltadores tinham voltado aos seus escritórios. Os responsáveis pelo interrogatório dormiam em seus camarotes quando foram colocados em estado de alarma pela divisão clínica da nave linear. Bell praguejou, saltou da cama, vestiu-se às pressas e correu para a grande enfermaria. No elevador lateral encontrou-se com Mercant. Este também sabia apenas que acabara de ser arrancado da cama. Foram recebidos pelo Dr. Pinter. Jefe Claudrin, comandante da Ironduke, estava ao seu lado. Não havia nada de especial nisso. Mas o fato de que Jac Aníbal, especialista em aparelhos de hiper-rádio, também se encontrava lá tornava-se uma grande surpresa. Bell e Mercant entreolharam-se. — Não posso deixar de pensar em nosso amigo Tiff, Mercant — disse Bell. — Também estou pensando nele — confessou Mercant. A pessoa à qual se referia era o agora General Julian Tifflor, que os amigos chamavam de Tiff, nome que costumava ser usado até mesmo por Rhodan. Em certa época, quando ainda era cadete, desempenhara as funções de “chamariz cósmico” e fizera coisas que chegavam às raias do milagre. Mas tudo isso só se tornara possível graças a um hiper-transmissor goniométrico que fora implantado em seu corpo por meio de uma operação e ainda se encontrava no mesmo lugar. Esse transmissor, que tinha um alcance de vários anos-luz, representara na época a pista que sempre levava Rhodan ao centro dos acontecimentos, onde muitas vezes pudera intervir no último instante com as forças de que dispunha. Nem Jefe Claudrin, nem o Dr. Pinter e nem o especialista de hiper-rádio sabiam o que significavam as observações de Reginald Bell e do Marechal Solar Mercant. Os três ainda não haviam nascido na época em que se realizou a ação “chamariz cósmico”. — Queiram acompanhar-me ao laboratório médico-técnico — pediu o Dr. Pinter.

Deixaram que ele os conduzisse. Era a primeira vez que Bell se encontrava naquele lugar. Tinha uma repugnância acentuada por tudo que cheirasse a hospital, enfermaria ou clínica. Seu instinto antipatizava com as instituições desse tipo. — Façam o favor de sentar — pediu o Dr. Pinter. — Obrigado; preferimos ficar de pé — respondeu Bell. — Não quero demorar muito por aqui. O que houve? Jac Aníbal, especialista em hiper-rádio, adiantou-se. Dirigiu-se à mesa de instrumentos. Pegou uma pinça. Sobre uma pequena lâmina de vidro via-se um objeto do tamanho de um grão de ervilha. Segurou-o com a pinça. Aníbal levantou o pequeno objeto. — Isto é um transmissor de hiper-rádio de um tipo que não é encontrado todos os dias. Não digo isto porque tem um alcance superior a cinqüenta anos-luz, mas sim porque esta maravilha técnica usa o tímpano de uma pessoa como microfone. “Duas horas após a morte do antimutante, o tímpano do mesmo ainda não havia sido afetado pela rigidez cadavérica. E duas horas após a morte, o transmissor de hiper-rádio existente no músculo de seu antebraço esquerdo ainda transmitia todas as palavras pronunciadas nas proximidades do morto. Infelizmente o aparelho só foi descoberto há pouco menos de três horas. Foi este o tempo que levei para estudar as funções do mesmo. Mr. Bell, permite que eu lhe mostre? Acontece que Bell não estava interessado em ver o aparelho. De repente sentiu-se atormentado por outras preocupações. Lembrou-se do vôo de Perry Rhodan para o planeta artificial Peregrino. Indagou em vão a si mesmo o que teria sido falado na presença do anti morto. Sem dúvida alguém mencionara o fato de que o administrador se encontrava num jato espacial, a caminho de Peregrino. Mercant devia estar pensando na mesma coisa, pois puxou Bell pelo braço e disse em voz baixa: — Vamos! Jefe Claudrin percebera os cochichos. Lançou um olhar indagador para os dois homens. Mercant respondeu com um sinal de cabeça. O nativo de Epsal compreendeu e seguiu-os. O especialista de hiper-rádio olhou-os com uma expressão de desapontamento. Ao chegar à porta, Bell virou a cabeça. — Muito obrigado, meu caro Aníbal — disse. — Acho que todos devemos muito ao senhor. Depois dirigiu-se ao Dr. Pinter e perguntou: — Quem achou essa coisa diabólica no músculo do antebraço? — Fui eu — respondeu o doutor com a voz modesta. Bell acenou com a cabeça. Enquanto caminhava em direção aos camarotes, Bell perguntou: — Por que será que a central de rádio e os fortes de Plutão não registraram a transmissão? Geralmente essa gente ouve até a tosse de uma pulga. — Será que o senhor se esqueceu dos swoons, Bell? — ponderou Mercant. — Não venha me dizer que nossos homens-pepinos, que residem na Terra e em Marte, trabalham para os antis! — Não me refiro a estes swoons. Aludi aos homens-pepino radicados em seu planeta natal. Se foram eles que construíram um transmissor tão potente, nesse caso será

perfeitamente possível que o aparelho seja provido de um condensador. E uma mensagem condensada de duração inferior a um nanossegundo pode perfeitamente atravessar nosso sistema de vigilância de rádio sem ser notada. — Que belas perspectivas. O que acontecerá ou terá acontecido neste meio tempo com o chefe? Será que o senhor se recusa a pensar nele? Está praticando a política do avestruz? — perguntou Bell. Mercant limitou-se a sorrir. — Parece que o senhor não se lembra dos tenentes Stana Nolinow e Brazo Alkher. O chefe não poderia ter escolhido tripulação melhor. Se alguma coisa tivesse acontecido ao jato espacial, ou se o mesmo se encontrasse numa situação de perigo, pelo menos teríamos recebido um pedido de socorro. Todos conhecemos a rapidez das reações de Alkher. — Tomara que desta vez ele também saiba reagir depressa. Mercant ficou parado. Quando Reginald Bell, o otimista, se transformava numa ave de mau agouro, quase sempre surgia um acontecimento inesperado e nada agradável. Os dois chegaram à porta do camarote de Mercant e pararam. Olharam para o relógio. — Bem, ainda poderemos dormir umas quatro horas, senão surgir outro imprevisto — disse Bell com um bocejo e deu boa-noite a Mercant. — Boa noite — respondeu Mercant e entrou em seu camarote. Deitou, mas não conseguia dormir. Seus pensamentos ficavam girando em torno do chefe. E quanto mais sua mente se ocupava com Perry Rhodan, mais preocupado se sentia. Seus olhos abertos fitavam a escuridão que o rodeava. E essa escuridão não o impedia de ver o rosto de Rhodan com os olhos da mente. Conhecia cada traço desse rosto, mas teve a impressão de ver algo de estranho no quadro que sua imaginação lhe oferecia. Mas não sabia dizer em que consistia o aspecto estranho. Apenas o sentia, e depois disso as idéias de Mercant passavam a desenvolver-se num plano equívoco. Omitira as conclusões lógicas, sem que disso se desse conta. Não atribuía a devida importância aos seus sentimentos. O Marechal Solar Mercant perdeu totalmente a noção do tempo. Não sabia por quantos minutos estivera deitado na escuridão, mergulhado em reflexões, quando as sereias da Ironduke uivaram, anunciando o grau máximo de alarma. *** O jato espacial 1-109 acabara de ultrapassar metade da velocidade da luz, mas ainda não se dispôs a entrar em transição. Cardif-Rhodan ordenara pelo sistema de intercomunicação de bordo que a mesma só fosse realizada depois de atingidos 99,01 por cento da velocidade da luz. Para os dois jovens oficiais, a ordem do chefe era lei; seus rostos contrariados eram o único sinal de que não concordavam com essa ordem. Stana Nolinow virou-se para Alkher: — Sabe lá a que distância fica o cruzador de patrulhamento mais próximo, meu chapa? — Não tenho a menor idéia, Stana — respondeu Alkher. — Se quiser saber, pergunte ao cérebro positrônico. — O computador está muito longe.

Naturalmente estas palavras representavam um tremendo exagero. Bastava que Stana Nolinow se virasse com a poltrona, para ter à sua frente o computador positrônico de bordo. E depois de alguns segundos, o cérebro lhe teria dito por meio de um cartão perfurado onde se encontrava o cruzador mais próximo. O jato espacial ia galgando a escala da velocidade. Brazo Alkher controlava os aparelhos de localização. Todos os indicadores estavam na posição zero. A sua frente e atrás deles, à esquerda e à direita, só havia, com exceção de alguns sóis distantes, o espaço vazio. Examinou o controle de armamentos. — O que está fazendo? — perguntou Stana com uma ligeira curiosidade na voz. Até mesmo dormindo, Brazo seria capaz de dominar todos os tipos de controle de armamentos. Não tinha necessidade de olhar o que suas mãos faziam. E agora não estava olhando. — Nunca se pode saber, Stana. Como estamos apenas nos arrastando, podemos e devemos perfeitamente destacar uma unidade energética para os armamentos. Quando estou sentado numa casca de noz como esta, sempre me sinto satisfeito ao saber que os jatos espaciais estão muito bem armados. — Acho que só mesmo um oficial de artilharia pode alegrar-se com isso. Quanto a mim, tenho um respeito terrível por tudo quanto é arma de radiações. Basta lembrar-me dos primeiros exercícios de tiro real na Academia. Meu instrutor gritou comigo que nem um louco. — O que foi que você andou fazendo, Stana? — perguntou Brazo, acionando o último contato do painel de controle de armamentos. — O que faz um cadete que ainda não concluiu seus treinamentos? Estávamos voando dentro do anel de asteróides. Meu alvo era um bloco de trezentos metros de diâmetro. Tudo teria saído bem, se uns oito ou dez quilômetros atrás do mesmo não houvesse um asteróide de cerca de quarenta quilômetros de diâmetro. Bem, no entusiasmo provocado por meu primeiro tiro real acabei atingindo o tal asteróide. Brazo Alkher soltou um grito de surpresa. Stana Nolinow já não poderia refestelarse nas recordações. O sistema de rastreamento estrutural da 1-109 acabara de mostrar uma reação. E juntamente com essa reação, uma gigantesca espaçonave cilíndrica surgira no espaço. A ampliação imediata do jato espacial mostrou o cilindro grotesco de extremidades arredondadas com uma nitidez terrificante. Até parecia que a nave se encontrava bem à sua frente. Acontece que se achava a mais de um milhão de quilômetros. Mas a uma velocidade de 0,6 por cento da luz isso não importava. No interior da 1-109 três sereias deram o sinal de alarma. Brazo Alkher mudou de um instante para o outro. Apenas via a nave desconhecida correr velozmente em direção ao jato espacial. Sua mão, que ia acionar a chave sincronizada que desencadeava a transição, passou ao lado da mesma. Um raio volumoso disparado pela torre de canhões da nave cilíndrica fez com que pusesse a mão na chave de controle do armamento. A mão esquerda fez recuar a chave dos propulsores. Os motores da 1-109 começaram a uivar. O raio mortífero passara pelo espaço a alguns milhares de quilômetros do jato espacial. — Vou assumir! — gritou o tenente Stana Nolinow. Com um movimento rapidíssimo dos controles passou a pilotar o jato espacial. Alkher podia usar ambas as mãos para controlar o armamento.

Tudo se passara numa fração de segundo. Brazo Alkher começou a dar mostras de suas qualidades. Uma nave cilíndrica pretendia abordá-los. Estavam interessados no chefe. A tecla de pedido de socorro afundou no painel. Acoplado ao computador de bordo, que constatou no mesmo instante a posição galáctica da 1-109, o potente hipertransmissor do jato enviou para o espaço o pedido de socorro. No mesmo instante, Brazo Alkher disparou os três canhões de impulsos do jato espacial. A modificação casual de rota realizada pela nave cilíndrica teve conseqüências desastrosas para esta. Os disparos de Alkher não atingiram o nariz achatado do veículo espacial, conforme o mesmo pretendera, mas derreteram o casco da nave inimiga na altura da sala de máquinas. Num instante as duas naves passaram uma pela outra. — Desligar! — disse Brazo com uma voz que não admitia contradita. E Stana Nolinow nem pensava em discutir. Os instrumentos diziam bastante. E também diziam quem estava atacando os terranos. Eram antis! A unidade de força do jato espacial continuava a gerar energia, mas esta não produzia nenhum resultado efetivo. Um campo energético mental criado pelos servos de Baalol envolvera o centro energético pequeno, mas superpotente da 1-109. Com isso, Brazo Alkher e Stana Nolinow ficaram separados do setor da nave em que estavam instaladas as máquinas. E esse setor teria de transformar-se numa bomba, se as máquinas não fossem desligadas imediatamente. Foi o que Stana Nolinow fez. A chave mestra foi colocada na posição “desligado”. O homem que, segundo acreditavam, era o chefe, veio correndo do camarote. — São antis, sir! — disse Alkher laconicamente. Com um gesto cansado apontou para a tela de visão global. A nave cilíndrica descreveu uma curva ampla e voltou a aproximar-se. — Antis...? — exclamou Cardif-Rhodan. Muito tenso, fitou a tela. — Sir, acho que ainda consegui transmitir um pedido de socorro — disse Alkher sem desconfiar de nada. Naquele momento Thomas Cardif teve a impressão de que iria enlouquecer. Então fora irradiado um pedido de socorro? — O quê...? — gritou para Brazo Alkher. — O senhor chamou a Frota pelo hiperrádio? Mal acabou de pronunciar a última palavra, compreendeu o que havia feito. — Como, sir? — gaguejou Brazo Alkher, fitando-o com uma expressão de perplexidade. — Está bem, Alkher — disse Cardif em tom contemporizador. — Como soube que se trata de antis? — Sir — respondeu o jovem tenente, com uma perplexidade cada vez maior. — Não está ouvindo? Tivemos de desligar as máquinas para não explodir. Os antimutantes envolveram a sala de máquinas com um campo mental. Nem uma única partícula de radiações consegue sair da mesma... Thomas Cardif interrompeu o jovem tenente em tom áspero: — Eu lhe pedi que me desse lições? Virou-se e saiu da sala de comando do jato espacial.

— Será que você pode explicar a causa de toda essa confusão do chefe? — perguntou Stana em tom apavorado. Brazo, que parecia deprimido pela repreensão injusta que acabara de sofrer, fez um gesto de indiferença. — Sei lá! Olhe! Estão puxando nossa nave com um raio de tração. Caramba! Por que não acertei exatamente a sala de máquinas dessa nave pirata? Por enquanto não podiam fazer nada para modificar a situação. Sua única esperança era a Frota Solar, isso se a mensagem de hiper-rádio ainda tivesse sido expedida pela antena do jato espacial. Brazo usou o dispositivo de emergência para consultar o computador de bordo. Uma sombra que surgiu à sua direita fê-lo levantar os olhos. Reconheceu o chefe e ouviu-o perguntar com a voz gelada: — O que deseja saber, Alkher? — Estou indagando se a mensagem de hiper-rádio ainda chegou a ser expedida, sir. — E então? Brazo Alkher conseguiu engolir a grosseria, mas teve de esforçar-se ao máximo para responder em tom cortês: — O pedido de socorro ainda foi transmitido, chefe... — Acabamos de chegar! — disse Stana Nolinow como num eco e apontou para a tela. Viram que o jato espacial 1-109 estava sendo recolhido a bordo da nave cilíndrica por meio de um potente raio de tração. Cardif-Rhodan inclinou-se em direção à tela. Estreitou os olhos. Acabara de notar as avarias no casco da nave dos antis. — Foi o senhor quem acertou a nave nesse ponto, Alkher? Abriu fogo contra a nave? O tenente não conseguiu compreender o sentido da última pergunta. — Naturalmente! Infelizmente só consegui disparar um único tiro, sir. Afinal, só dispunha de alguns segundos. O pequeno barco espacial sofreu um forte solavanco. O jato espacial 1-109 acabara de entrar no grande hangar da nave desconhecida. A tela de visão global escureceu. A única coisa que mostrou foi a grande eclusa da nave cilíndrica que se fechava. Demorou alguns minutos até que as luzes do hangar se acendessem. Nesse meio tempo deviam ter bombeado ar para dentro do grande pavilhão, pois um homem sem traje protetor entrou por uma porta. Thomas Cardif reconheceu-o ao primeiro relance de olhos. O sacerdote Rhabol caminhou em direção ao lugar em que ficava a eclusa do jato espacial. Só então Thomas Cardif compreendeu que subestimara os antis. Não era fácil enganá-los. A manobra, que acabavam de realizar, frustrara seu plano, que previa o exercício de certa pressão por meio da retenção dos ativadores celulares. — Que diabo! — praguejou sem o menor autocontrole, e no mesmo instante recriminou-se asperamente. Mais uma vez se comportara como Thomas Cardif e não como Perry Rhodan. Nolinow e Alkher sobressaltaram-se. No mesmo instante, Cardif disse: — Abra a eclusa, Nolinow.

— Sim, senhor. — Mais um detalhe. Caso os antis não tenham percebido a transmissão e nosso pedido de socorro, em hipótese alguma deverão mencioná-lo. Este pedido é nossa única chance. Virou-se e foi andando. Não queria que houvesse testemunhas de seu encontro com Rhabol. — Brazo — disse Stana ao companheiro, que parecia rijo de espanto no assento do piloto. — Será que você também está enlouquecendo? Não basta que o chefe se faça de louco. Brazo Alkher balançou a cabeça. Parecia desesperado. — Stana, você sabe explicar o que terá deixado o chefe neste estado? — Só há uma resposta, Brazo. Foi a doença. Nesta hora estou firmemente convencido de que Rhodan está muito mais doente do que desconfiávamos. Naquele momento o homem que para eles era o chefe encontrava-se frente a frente com Rhabol. Este fez uma mesura. — Os servos de Baalol sentem-se felizes em cumprimentar Perry Rhodan, Administrador do Império Solar, em sua espaçonave. Queira acompanhar-me. Cardif não saiu do lugar. — Por favor, administrador — repetiu, olhou cautelosamente para a esquerda e para a direita e obrigou Cardif a fazer a mesma coisa. Mergulhados na sombra do hangar, num lugar em que mal chegava a luz, uma série de máquinas de guerra enfileiravam-se. Todos os robôs fitavam o homem que usava o uniforme simples da administração terrana. As armas de radiações estavam apontadas para ele. Assim que Cardif deu o primeiro passo, Rhabol disse bem baixinho, para que só ele ouvisse: — Eu sabia que chegaríamos a um acordo. *** Bell ainda estava a caminho da sala de comando e as sereias da nave continuavam a uivar, quando a Ironduke levantou vôo. Os motores de impulsos rugiram na protuberância equatorial reforçada da nave esférica. Fora do envoltório esférico, os dois anéis de colunas telescópicas de apoio desapareceram no casco, enquanto centenas de homens corriam para seus postos. Perguntavam-se pelo motivo do alarma. Ninguém sabia. Só dois homens imaginavam o que tinha acontecido: Reginald Bell, o representante de Perry Rhodan, e o Marechal Solar Mercant, chefe da Segurança Solar. Bell correu para a sala de comando. Mas teve de esperar tal qual os outros. A decolagem da Ironduke, realizada com a equipagem de plantão, exigia o máximo de concentração de todos. Jefe Claudrin, o epsalense, fez com que sua nave linear se erguesse do solo. Era um dos melhores comandantes. Parecia ter nascido com uma disposição toda especial de pilotar naves esféricas. Transmitiu suas ordens com a voz trovejante. Bell lançou um olhar para o lado quando viu alguém aproximar-se. Era Mercant.

Um oficial vindo da sala de rádio entrou na de comando. Ao ver os dois, hesitou ligeiramente, mas logo correu em direção à poltrona feita especialmente para Claudrin. — Obrigado! — trovejou a voz do epsalense. O oficial de rádio voltou. Parou à frente de Bell e Mercant. — Recebemos um pedido de socorro do jato espacial 1-109 — anunciou. — É uma mensagem automática. Infelizmente a indicação das coordenadas não é completa. Se havia alguém, que entendesse o que isso significava, esse alguém era Reginald Bell. A indicação incompleta das coordenadas significava que possivelmente a nave nunca mais seria localizada. Algumas regulagens foram efetuadas no computador positrônico de bordo. Mal as mesmas foram concluídas, a fita perfurada saiu da fresta. — Então, qual é o resultado? — perguntou Claudrin com sua voz trovejante. Sempre fazia tudo com a maior rapidez, e exigia a mesma rapidez de seus oficiais, além de boa dose de precisão. — O setor espacial em que possivelmente se encontra o jato espacial 1-109 mede cerca de cento e oitenta anos-luz cúbicos, O grau de probabilidade é de 73,6 por cento — disse o oficial incumbido do computador, dirigindo-se ao comandante. Bell aproximou-se de Claudrin. O epsalense fitou-o ligeiramente, afastou o microfone, colocando-se bem à frente do representante de Rhodan e não se interessou mais pelos outros. Bell disse para dentro do microfone: — Mensagem de rádio dirigida ao quartel-general da Frota Solar. Coloquem em prontidão o terceiro grupo de cruzadores pesados, a décima oitava, décima nona e vigésima terceira flotilha de cruzadores ligeiros e três unidades do grupo de supercouraçados. Destino.. Seguiram-se as coordenadas incompletas incluídas no pedido de socorro do jato espacial 1-109. Bell acrescentou mais uma frase: — O administrador desapareceu nesse setor do espaço. Reginald Bell. A sala de rádio forneceu a repetição do texto. Bell não prestou atenção. Olhava para o chão. — Isso não vai dar certo para alguém — disse. — Para quem, mister Bell? — perguntou Claudrin. Bell fitou-o com uma expressão de surpresa. Só agora deu-se conta do que acabara de dizer. — Não sei, Claudrin. Nem sei o que me levou a fazer esta observação. Quando poderemos mergulhar no semi-espaço? Além da Ralph Torsten, que já fora recuperada, a Ironduke era a única espaçonave equipada com o novo mecanismo de propulsão linear. Não havia necessidade de transições, com suas desmaterializações e rematerializações. O conversor de compensação denominado kalup criava um campo de linhas de força, situado no espaço de seis dimensões, que compensava as partículas energéticas e materiais de quatro e cinco dimensões. Só assim um corpo podia deslocar-se no semi-espaço, localizado entre o universo de quatro e o de cinco dimensões, alcançando milhões de vezes a velocidade da luz, sem perder de vista a estrela-destino, que permanecia ininterruptamente no rastreador de relevo. Podia-se dizer, de certa forma, que se tratava de um vôo visual.

O novo método oferecia, em comparação ao velho sistema das transições, uma vantagem que não devia ser subestimada. Em virtude do sistema de propulsão linear, a Ironduke chegou ao respectivo setor espacial muito antes dos outros veículos espaciais esféricos que recorriam aos saltos para transpor abismos de milhares de anos-luz. Jefe Claudrin não deixou que a pergunta de Bell, que quis saber quando seria ligado o kalup, lhe roubasse a calma. — Na mesma hora de sempre, mister Bell. Não assumirei nenhum risco, nem mesmo quando se trata do chefe. A resposta de Claudrin, formulada em termos um tanto ásperos, tinha sua razão de ser. A catástrofe da Fantasy, que explodira durante o vôo de regresso do Sistema Azul, ainda não fora esquecida. Para qualquer comandante, dotado de senso de responsabilidade, esse incidente serviria de advertência para que não se realizassem experiências com o novo propulsor. — OK, Claudrin — respondeu Bell, que de forma alguma se sentia ofendido com a ponderação. — Se houver alguma novidade, estarei na mapoteca. Pediu a Allan D. Mercant que o acompanhasse. No caminho, os dois regalaram-se do silêncio. Preferiram não criticar a atuação de Perry Rhodan. Ao chegarem à mapoteca, encontraram o Major Lyon, que já se achava sentado à frente dos mapas. O Major Lyon fez menção de ficar em posição de sentido ao reconhecer os dois homens que acabavam de entrar na sala. — Deixe para lá, Lyon — disse Bell. — Vejo que já está estudando os mapas. Obrigado, estamos vendo muito bem... Depois disso apenas soltou uma observação lacônica. A seguir, Bell pegou um lápis magnético e desenhou um círculo na parte norte do grande mapa. — É aqui que temos de procurar Rhodan — olhou para Mercant. — Não notou nada, meu caro? — Notei duas coisas, mister Bell. Nossos rastreadores estruturais não registraram nenhum salto. Isso já aconteceu antes, quando duas naves entravam em transição simultaneamente em pontos diversos do espaço. Quando ocorre uma superposição desse tipo, que é bastante rara, muitas vezes um dos saltos, que é um pouco mais fraco que o outro, não pode ser detectado. — “Bem, isto é a primeira coisa. A outra é o pedido de socorro que o jato espacial transmitiu pelo hiper-rádio. No tráfego de hiper-rádio não existem as perturbações que costumam causar-nos tantas dificuldades no rádio comum. A mutilação da mensagem no que diz respeito às coordenadas só tem uma explicação. Aquilo deve ser obra dos antimutantes.” — Infelizmente estamos de acordo — constatou Bell em tom contrariado. — O círculo que acabo de traçar no mapa assinala o setor do espaço onde devemos procurar Perry Rhodan. Mas há uma coisa que eu não entendo. Por que o chefe não iniciou a transição assim que saiu do planeta Peregrino? Mercant resolveu ser cauteloso. — Talvez o assalto ocorreu pouco depois de o jato espacial ter decolado de Peregrino. No momento Só podemos fazer suposições, mister Bell. Por enquanto não

sabemos de nada. O tamanho assustador deste setor espacial, com seus cento e oitenta anos-luz cúbicos, abre margem a inúmeras possibilidades. O Major Lyon não se atreveu a intervir na palestra. Escutava atentamente. Bell soltou um gemido. — Se Perry ainda fosse o mesmo de antes, poderíamos constatar exatamente o que fez depois de ter saído de Peregrino. Mas assim... Estas palavras constituíam uma expressão inequívoca da perplexidade de Bell. Atirou o lápis sobre o mapa. — Está bem — principiou em tom ligeiramente contrariado. — Cento e oitenta anos-luz cúbicos representam um espaço muito grande. No mesmo não existem muitas estrelas, mas sempre teremos pela frente cerca de dez mil sóis. Se procuro tirar as conseqüências lógicas desta idéia, sinto náuseas. — Já estou sentindo náuseas há muito tempo, mister Bell — respondeu Mercant em tom seco. Bell viu-se dominado pela cólera. Bateu com o punho cerrado sobre a mesa na qual estava estendido o mapa. — O que será que Perry andou pensando? Tenho vontade de mandar para a Sibéria todos os médicos que participaram da terapia do choque. Um sorriso irônico surgiu no rosto de Mercant. — A Sibéria transformou-se em área de veraneio. Quando eu me aposentar, quero passar o resto dos meus dias na tundra. Mr. Bell, será que o senhor quer recompensar os médicos? — Quer dizer que o senhor também está convencido de que a causa de toda a desgraça é o tratamento de choque mal-sucedido? — Nem posso deixar de estar. O senhor encontra outra explicação para o estranho comportamento de Rhodan? Se penso na morte daquele anti no entreposto comercial... Não consigo tirar da cabeça a lembrança desse fato. Dei uma boa olhada no anti. Pois bem.. A maneira pela qual Mercant concluiu sua fala era estranha. Bell fitou-o. Esquecerase de que o Major Lyon se encontrava a seu lado. — Foi assassinado? — perguntou. Sua voz revelava medo. — Até gostaria de enfeitar esta palavra com um ponto de exclamação, mister... Mercant deu-se conta de que estavam em três. Colocou a mão sobre o ombro do major e fitou-o prolongadamente, mas não disse uma palavra. O Major Lyon enfrentou o olhar de Mercant. — Acho que nesta altura não posso deixar de participar da palestra. O que tenho a dizer é pouca coisa. Sou capaz de jurar que o chefe não seria capaz de assassinar quem quer que seja. Deve haver um engano. A mão de Mercant continuava pousada no ombro do major. Respirava fortemente. — Lyon, faço votos de que o senhor tenha razão. Voltou a examinar atentamente o mapa. Lembrava-se das coordenadas galácticas de Peregrino. — Se registrássemos a posição de Peregrino neste mapa, o planeta artificial formaria o centro do círculo que o senhor acaba de traçar, mister Bell. Se minha hipótese for correta, basta procurar na linha imaginária que liga Peregrino ao sistema solar, com desvios de até três anos-luz para todos os lados. Bell não prestara atenção a estas palavras. — O que havia com o antimutante, Mercant?

O marechal solar não se sentiu surpreendido com a pergunta. — O homem estava desarmado. A posição em que se achava deitado constitui prova evidente de que não estava atacando quando foi abatido. A explicação do ataque com o peso de papel, fornecida por Rhodan, em hipótese alguma pode ser correta, O sangue grudado no objeto constitui outra prova disso. O ferimento que Rhodan apresentava no queixo era insignificante e não poderia ter sujado o peso de sangue. Só no caso de ferimentos graves surgem vestígios de sangue em objetos contundentes. — Por que só me diz isso agora, Mercant? — perguntou Bell com a voz fria. Sem que o percebesse, ia assumindo o papel de Rhodan. Estava prestes a transformar-se por suas próprias forças no sucessor do amigo, que parecia incapacitado para o exercício do cargo. — Porque só há algumas horas me dei conta disso. Quando voltamos da enfermaria, não consegui dormir. E quando ouvi o alarma.., bem, acho que o senhor já compreendeu desde quando eu sei. Nesse instante, o Major Lyon soltou uma observação: — Pois eu não acredito! O chefe nunca seria capaz de uma coisa dessas! Estas palavras foram proferidas num tom de profunda convicção, fazendo com que Bell e Mercant se sobressaltassem. — Major Lyon — disse Reginald Bell. — Se o senhor tiver razão, o marechal solar e eu já não seremos dignos da amizade de Perry Rhodan. *** Stana Nolinow e Brazo Alkher ouviram os passos pesados de robôs. Imaginavam o que era aquilo que se aproximava. — Por enquanto terminou; talvez para sempre — constatou Nolinow em tom sarcástico e tirou os cintos. Brazo Alkher fez a mesma coisa. Estavam de pé junto aos seus assentos, sem armas, quando a primeira máquina de guerra entrou, seguida por mais quatro. — Venham conosco! — ordenou um dos robôs positrônicos. No mesmo instante, as armas foram apontadas para os dois terranos. Escoltados por dois robôs, os dois oficiais saíram do jato espacial. A nave em forma de disco estava cercada por robôs. Uma passagem muito estreita abriu-se para os terranos. Acompanharam a máquina de guerra que acabara de dar-lhes a ordem. Assim que Stana tentou falar com Brazo, a voz metálica fez-se ouvir: — Não permitimos palestras! Nolinow manteve-se calado. Um robô sempre age segundo sua programação. E nessa programação não entra qualquer dose de sentimento. Stana Nolinow não tinha vocação para o suicídio. Não tiveram a menor possibilidade de fugir e esconder-se na nave cilíndrica. Ao chegarem ao convés principal, viram um grupo de pessoas que discutia exaltadamente. A inquietação parecia ter tomado conta da nave. Ouviram-se gritos e falava-se num incêndio que ainda não pôde ser debelado. Um incêndio na sala de máquinas. Brazo Alkher sorriu. Sentia-se satisfeito porque seu tiro triplo causara tamanho estrago na sala de máquinas da nave cilíndrica. Este fato melhorava sua situação global. A Frota Solar já devia estar a caminho do setor espacial em que se encontravam, e não teria nenhum problema para alcançar a nave semiparalisada dos antimutantes.

Subitamente um forte solavanco sacudiu a espaçonave de mais de trezentos metros de comprimento. O chão ainda tremia quando as sereias começaram a uivar. Os grupos de pessoas na extremidade do convés principal correram para todas as direções. Os antis que passavam por Alkher e Nolinow não deram a menor atenção aos dois terranos. Os rostos dos sacerdotes estavam marcados por uma expressão de pânico. Um sorriso largo surgiu no rosto de Stana Nolinow. Seus olhos brilharam ao notar que, assim que as sereias começaram a uivar, o nervosismo tomou conta da nave. Subitamente um dos robôs segurou-os fortemente. Os dois homens foram empurrados para dentro de um camarote cuja porta fora aberta pelo homem mecânico que caminhava à sua frente. Os dois caíram. Quando se levantaram, a porta já se fechara atrás deles. Olharam em torno, perplexos. — Estes robôs não têm nenhum senso de humor! — constatou Stana Nolinow e procurou certificar-se de que realmente estavam sós no camarote. Um segundo solavanco, acompanhado de um rangido, sacudiu a nave cilíndrica, mas desta vez o impacto da explosão foi menos violento. As sereias continuavam a uivar. — Parabéns, meu caro — disse Stana, muito satisfeito. — Você atingiu esta nave pirata no lugar em que a mesma menos pode suportar uma avaria. Brazo recusou o elogio com um gesto de modéstia. — Este impacto resultou do acaso, Stana. No momento exato em que disparei o tiro, a nave realizou uma manobra de alteração de rota. Por isso não sofreu um impacto frontal, mas foi atingida na sala de máquinas. — Você ainda acaba morrendo de modéstia, Brazo — disse Stana e examinou o camarote bem instalado. — Precisamos de um objeto bem manejável, que nos permita arrombar a porta. Não está vendo nada por aí? — Será que você pretende tentar a fuga sem o chefe? — perguntou Brazo Alkher em tom de recriminação. — Se não houver outro jeito, quero — respondeu Nolinow sem a menor hesitação. — Acho que não deveríamos fazer isso, Stana. Prestaremos um melhor serviço ao chefe e a nós mesmos se provocarmos mais algumas explosões na sala de máquinas. Cada minuto que continuamos no mesmo lugar melhorará nossas chances. Não se esqueça de que irradiamos um pedido de socorro. Casualmente Brazo colocou a mão sobre a maçaneta da porta. Girou-a sem pensar em nada. Ficou perplexo ao notar que a porta se abriu. Olhou pela fresta e viu dois antis no corredor, que estavam de costas para eles. Lançou um olhar ligeiro para Nolinow. Stana piscou. Compreendera as intenções de Alkher. Sem dizer uma palavra, abriu a porta de vez. Agarrou por trás o sacerdote que se encontrava do lado direito. Nolinow encarregou-se do outro. O grito dos antimutantes foi abafado pelo uivo das sereias. Em poucos segundos, dois antimutantes inconscientes foram arrastados para o interior do camarote. A porta voltou a fechar-se. Stana ajoelhou ao lado de um dos sacerdotes e Brazo ao lado do outro. Dali a cinco minutos os dois servos de Baalol estavam deitados no banheiro, amarrados e amordaçados. Traziam pouca roupa no corpo. Nolinow e Alkher se haviam apoderado de quase todas as peças. Seus disfarces não eram muito bons, mas esperavam que em meio à confusão e desordem reinante na nave conseguissem avançar até a sala de máquinas. As pesadas armas de radiações, encontradas em poder dos antis, deram-lhes uma sensação de relativa segurança.

— Pronto? — perguntou Brazo. — Podemos começar, meu chapa — respondeu Nolinow. Os dois prisioneiros saíram do camarote. Ninguém desconfiou quando caminharam pelo convés principal, em direção à sala de máquinas. As sereias continuavam a uivar e os tripulantes corriam nervosamente de um lado para o outro. Ainda se ouvia o trovejar das explosões na parte traseira da nave, onde ficavam os propulsores. Ao que parecia, os antis ainda não haviam conseguido controlar o incêndio. “Temos uma sorte inacreditável”, chegou Stana Nolinow a pensar, quando a surpresa se aproximou sob a forma de um robô, saído de um dos camarotes. Thomas Cardif acreditou que fora abandonado pela sorte quando olhou em torno e viu os rostos dos sacerdotes fanáticos. Mesmo Rhabol, o supremo sacerdote, já não tinha nenhum olhar amável para ele. Colocou-se de pé à frente de Cardif, que fora o único a ser convidado a sentar-se no grande camarote. Com a voz fria e ameaçadora, disse: — Baalol lhe permitiu que estudasse em Aralon sob o nome de Edmond Hugher. E, sob o nome de Edmond Hugher, você jurou fidelidade eterna a Baalol. Foi graças a Baalol que você foi libertado depois de cinqüenta e oito anos de bloqueio hipnótico, imposto por Árcon, a pedido de seu pai. Sob o nome de Thomas Cardif, você voltou a jurar eterna gratidão ao grande Baalol. Foi graças ao nosso auxílio que Perry Rhodan pôde ser posto de lado, e ainda foi graças ao nosso auxilio que você passou a ser Perry Rhodan. E como é que você nos agradece? Procurando lograr-nos. “Cardif, basta uma palavra nossa e os terranos lhe arrancarão a máscara. Com isso seu jogo terá chegado ao fim. “Revelaremos sua verdadeira identidade, a não ser que você nos entregue aquilo que trouxe do planeta invisível. Se tivesse conseguido voltar à Terra com os ativadores celulares, nós teríamos contado tudo aos terranos. Será que você realmente acreditava que poderia praticar chantagem contra nós?” Estas palavras atingiram Cardif com a força de marteladas. — Cardif, onde estão os ativadores celulares? — perguntou Rhabol em tom de ameaça, dirigindo a arma hipnótica contra Cardif. Numa raiva impotente Thomas reconheceu que qualquer resistência seria inútil. Mas naquele momento de depressão máxima lembrou-se de que os vinte ativadores celulares se encontravam envoltos num campo temporal esférico, que só se abriria quando ele o quisesse. — Rhabol, os vinte ativadores estão no meu camarote, no interior do jato espacial. Estas palavras foram proferidas com a voz tranqüila. Numa atitude típica de Rhodan, Cardif espreguiçou-se. Parecia não enxergar a arma hipnótica apontada para ele. Mais de duas dezenas de antis sobressaltaram-se. A mudança ocorrida com Cardif era tão pronunciada que não poderia deixar de ser notada. De repente o filho de Rhodan passara a irradiar o fluido que sempre distinguira o pai em meio às massas. — Vá buscá-los, Rhabol! — disse. — Sei perfeitamente que seu interesse pelos ativadores celulares é apenas secundário. Afinal, o que significa a vida eterna? Para vocês não deve significar nada. Ou será que significa alguma coisa? Quem de vocês receberá os pequenos ativadores? Vocês já os rifaram? Conhecia os servos de Baalol melhor que qualquer outro terrano.

Numa hábil manobra psicológica, jogou uns contra os outros. Encontrava-se diante dos mais influentes dentre os antis. Conhecia todos eles. Nenhum deles estava livre da ânsia do poder. Sabia a que meios cada um havia recorrido para conquistar a posição em que se encontrava. Nenhum dos homens que se achavam à sua frente renunciaria voluntariamente ao ativador celular. — Cardif — advertiu Rhabol em tom insistente. — Você não conseguirá semear a discórdia entre nós, e muito menos conseguirá escapar-nos. Não se esqueça de que Perry Rhodan ainda está vivo. E continuará vivo enquanto você viver, a fim de que sempre possamos lembrar-lhe que você apenas é seu filho. Pela primeira vez os olhos de Cardif chamejaram. — Antis! — pronunciou esta palavra em tom de desprezo e fitou cada um deles. — Vocês não são mais fortes que eu. Pretendem apoderar-se do Império Solar. Pois experimentem fazê-lo sem a minha colaboração. Por enquanto a instalação de mais trezentos entrepostos comerciais dos saltadores não foi autorizada. Como esperam consegui-las, se não puderem contar comigo? Nem Banavol, agente de vocês, nem o servo de Baalol em Plutão conseguiram exercer pressão contra mim. — Você assassinou Juglun, ou melhor, A-Thol — disse Rhabol. Cardif soltou uma risada cínica. — Custa-me acreditar que essa acusação tenha saído justamente de sua boca. Pois bem. Como prosseguiremos na conversa? Na base da igualdade de direitos? Ou será que vocês ainda acreditam que são a parte mais forte? Cardif aguardou tranqüilamente o que o sumo sacerdote tinha a dizer-lhe. Rhabol dirigiu-se a dois antis: — Tragam os ativadores celulares que se encontram no jato espacial. Nesse instante, uma pancada violenta sacudiu a nave cilíndrica. Cardif sorriu. Rhabol notou o sorriso. — Vão logo! — ordenou aos dois sacerdotes, que haviam parado, apavorados. Depois, com os olhos chamejantes de cólera, dirigiu-se a Cardif: — Se a nave explodir por causa do ataque traiçoeiro de seu jato espacial, você morrerá conosco. — Não posso fazer nada — respondeu Thomas Cardif em tom frio. Esperaram o regresso dos dois servos de Baalol. Quando alguém abriu a porta do lado de fora, todos acreditaram que já estivessem de volta com sua presa. No entanto, um robô tangeu Brazo Alkher e Stana Nolinow para dentro do recinto. — Os dois terranos dirigiam-se à sala de máquinas — disse a voz metálica do robô. Suas mortíferas armas de radiações continuavam apontadas para Alkher e Nolinow. Os dois tenentes esperaram em vão que o chefe lhes dedicasse um olhar. Mas o homem que acreditavam ser Rhodan olhava para outro lado, indiferente. Brazo ainda viu o anti, que se encontrava à frente do chefe, levantar a arma hipnótica e puxar o gatilho. Depois disso só restou uma hipnose profunda para os dois tenentes da Frota estelar. Já não sabiam o que estava acontecendo com eles. E não sentiram nada quando o robô, obedecendo à ordem de Rhabol, os levantou e os carregou para fora. Mal a porta voltou a fechar-se, o intercomunicador chamou, transmitindo uma notícia importante.

O fogo que lavrava na sala de máquinas acabara de ser debelado. As três unidades energéticas de maior potência não poderiam ser reparadas com os recursos de que se dispunha a bordo da nave. O engenheiro-chefe da nave cilíndrica não escondeu nada. — Ainda poderemos realizar transições, mas acho preferível não realizar mais que uma. Qualquer solicitação excessiva poderá acarretar o colapso total das máquinas. Desligo. Os sacerdotes discutiram animadamente. Por vários minutos esqueceram-se de Thomas Cardif. Finalmente Rhabol, que tinha nervos de aço, ponderou que não corriam perigo de vida. — A qualquer momento podemos pegar o jato espacial de Cardif e dar o fora. Todos faziam sinais de satisfação e, no mesmo instante, voltaram a dedicar sua atenção a Cardif. Mais uma vez, a porta abriu-se. Os dois sacerdotes voltaram. Entre eles flutuava o campo temporal vermelho-pálido de cinqüenta centímetros de diâmetro. No interior do mesmo viam-se objetos negros em forma de ovo; eram os ativadores celulares. Uma admiração misturada de respeito desenhou-se naqueles rostos marcados pelo fanatismo. Mas a admiração inspirava-se exclusivamente na cobiça. Diante deles flutuava a vida eterna, cercada por um envoltório energético desconhecido. — Abra a esfera, Cardif! — disse Rhabol com a voz trêmula. Thomas Cardif recostou-se confortavelmente na poltrona. — Será que tenho algum motivo para isso? Por que você não abre o envoltório, Rhabol? — perguntou, fitando-o intensamente. Não viu que Rhabol estava regulando a intensidade de sua arma hipnótica. A pequena roda dentada foi colocada na posição mínima. Sem qualquer advertência Rhabol ergueu a arma e fez um disparo hipnótico contra Cardif. — Cardif — disse o sumo sacerdote do culto de Baalol, dirigindo-se ao terrano, que enrijecera em sua poltrona. — Abra a esfera! Espantados, os antis ouviram Cardif dizer: — Quero que você se abra! Mas a esfera luminosa vermelho-pálida continuou fechada. Afinal, o que sabiam os antis a respeito do Ser fictício de Peregrino? Seus conhecimentos estavam restritos às informações recebidas de Cardif, e antes de sua visita ao planeta Peregrino essas informações não poderiam ter sido completas. — Vamos cortar isso! — sugeriu um dos sacerdotes, mal conseguindo falar, de tão nervoso que estava. Um desintegrador foi apontado para o envoltório energético. O raio atingiu o pólo superior da esfera. A bola vermelho-pálida balançou ligeiramente, mas continuou intacta, sempre flutuando no centro do recinto. — Vamos tentar com a arma térmica — sugeriu outro servo de Baalol. — Não! — protestou Rhabol, que a essa altura já desconfiava de que a esfera não cederia a qualquer tentativa de abri-la. — Só o terrano é capaz de abri-la. — Mas ele acaba de tentar, Rhabol! — respondeu alguém. — Enquanto estiver submetido ao choque hipnótico, o terrano não é ele mesmo — respondeu o sumo sacerdote em tom impaciente. Encontrava-se perto da esfera. Com uma expressão de fascínio contemplava os ativadores celulares, que por enquanto

continuavam inatingíveis. Teve de fazer um esforço sobre-humano para não dar mostras da exaltação tremenda de que se sentia possuído. A sua frente flutuava a vida eterna. O futuro abria-se diante dele. O futuro dele e de mais dezenove servos de Baalol. Tornar-se-iam imortais, tal qual o Imperador Gonozal VIII. Alguns dos presentes começaram a recriminar Rhabol, por ter disparado a arma hipnótica contra Cardif. A ânsia de possuir os ativadores celulares rompia toda hierarquia. Ninguém considerava o fato de que Rhabol era seu superior. Não queriam esperar mais pela vida eterna. Exigiam os ativadores. Começaram a proferir ameaças contra Rhabol. Será que este já contara com isso? Virando-se ligeiramente, o sumo sacerdote gritou em voz alta: — Robôs! A porta que dava para uma sala contígua abriu-se. Quatro máquinas de guerra entraram, colocaram-se de ambos os lados da porta e ameaçaram os servos de Baalol com suas armas de radiações. — Estes robôs foram especialmente programados para mim — disse Rhabol com a voz fria. — Qualquer um que tentar sair daqui estará morto. Thomas Cardif, que já despertara da ligeira hipnose, soltou uma risada. Aquilo parecia diverti-lo. Rhabol parecia ter sido mordido por um bicho. Virando-se, disse: — Abra esta esfera, terrano, pois do contrário eu o obrigarei a fazê-lo. — Palavras pomposas atrás das quais não há nada — constatou Cardif. Levantou-se e afastou o anti. Colocou-se ao lado da esfera e envolveu-a com os braços. Ergueu-a acima de sua cabeça, como se fosse uma bola. — Olhem estes ativadores celulares, que poderão dar-lhes a vida eterna. Vinte aparelhos deste tipo estão à sua espera, mas vocês nunca os receberão, a não ser que eu emita espontaneamente o comando mental para que a esfera se abra. Os ativadores estão ocultos atrás do nosso tempo. Será que vocês compreendem? Estão envoltos num campo temporal, e esse campo temporal permanecerá fechado enquanto eu não ordenar de minha livre e espontânea vontade que o mesmo se abra. Então, Rhabol, ainda se atreve a proferir ameaças contra mim? Soltou a esfera energética, que continuou a flutuar no mesmo lugar. A luminosidade vermelho-pálida tinha um efeito tranqüilizador, mas os antis, extremamente exaltados, não reagiam ao mesmo. Cardif voltou a acomodar-se na poltrona, demonstrando uma tranqüilidade irritante. — Então, Rhabol, já está disposto a negociar? Ou ainda acredita que pode dar ordens? — Vamos negociar! Vamos negociar! — gritaram alguns dos antis. Mas o anúncio transmitido pelo sistema de intercomunicação superou suas vozes: — Rhabol, uma nave da Frota Solar aproxima-se do ponto em que nos encontramos. Mais de duas dezenas de antis ficaram rígidos de pavor. O homem que ocupara o lugar de Perry Rhodan no Império Solar praguejou no seu íntimo. Imaginava que o nome da nave que se aproximava era Ironduke. E sabia que com o aparecimento da nave linear sua situação piorara consideravelmente.

Os antis voltariam a ameaçá-lo; o denunciariam como um impostor e o entregariam à Frota Solar caso não lhes desse imediatamente os vinte ativadores celulares. Levantou a cabeça. Rhabol estava de pé à sua frente. Um sorriso de triunfo brincava no rosto do anti. — Então? — perguntou, dirigindo-se a Cardif. — Então, Cardif? *** O rastreador de relevo da Ironduke não só registrara a presença de uma espaçonave, mas até mostrara o formato do veículo estelar na tela especial. Enquanto isso, a Ironduke corria velozmente para seu destino, deslocando-se pelo semi-espaço. Bell aguardara esse acontecimento há meia hora. O rastreador de relevo fora sua única esperança. Esse sistema de localização pelo rádio de grau superior baseava-se na compensação paraestável de um campo envolvente, que protegia o raio de eco contra os efeitos de distorção da quarta e da quinta dimensão. Uma vez que, à medida que aumentava a distância, o raio de eco se tornava cada vez mais amplo, produzindo um efeito de leque acompanhado pelo campo isolador da nave, havia possibilidade de ver o espaço de quatro dimensões que se estendia à frente da nave. — São antis! — constatou Reginald Bell. Jefe Claudrin ouvira estas palavras. — Sir, dentro de seis a sete minutos estaremos junto ao costado da nave. Naquele instante, o estranho rugido do kalup cessou. Claudrin desligara o propulsor linear. Não queria que a Ironduke passasse em disparada pela nave que acabara de ser localizada. Depois de alguns minutos de silêncio, ouviu-se o bramido dos motores de impulsos. Uma vez desligado o kalup, a Ironduke saiu do semi-espaço e passou a desenvolver 0,9 por cento da velocidade da luz. Mas nem mesmo esta velocidade foi conservada, O velocímetro indicava cifras cada vez menores. Ao que parecia, Claudrin apertara alguns botões de alarma. Os hangares, onde estavam guardados os jatos espaciais, anunciaram que os mesmos estavam prontos para entrar em ação. A central de comando de fogo, que costumava ser dirigida por Brazo Alkher, anunciou: — Estamos preparados para abrir fogo! A sala de rádio chamou. Claudrin pegou o microfone. — Avise as outras naves. Transmita as coordenadas e outros detalhes. — Sim senhor — disse a voz saída do alto-falante. — Dentro de alguns segundos avisaremos o cumprimento da ordem. Bell não saía de junto das telas do sistema de rastreamento de relevo. A nave cilíndrica de pontas achatadas desenhava-se cada vez mais nitidamente. O sistema de rádio-localização, acoplado ao grande computador de bordo, já fornecera os primeiros dados para os cálculos. A partir do momento em que a Ironduke voltou a penetrar no universo normal, o computador positrônico recebia, a cada segundo, cento e oitenta grupos de dados que mudavam constantemente. O cérebro não tinha a menor dificuldade em digeri-los.

Embora ainda desenvolvesse metade da velocidade da luz, o couraçado parecia aproximar-se de forma quase imperceptível da nave cilíndrica. Bell esteve a ponto de pedir esclarecimentos sobre este ponto, quando o oficial de serviço junto ao computador anunciou: — Nave desconhecida aumentando velocidade! Jefe Claudrin agiu imediatamente. Os motores de impulso voltaram a rugir fortemente. O corpo esférico da nave começou a trovejar. Por alguns segundos ninguém entendia o que o outro falava, mas o rugido cessou tão subitamente como começara. — Consegui uma vantagem de pelo menos um minuto — cochichou Jefe Claudrin. — Quanto tempo levaremos para alcançar a distância de tiro, Claudrin? — perguntou Bell, que se achava perto das telas de imagem do rastreador. — Cavalheiro que se encontra junto ao computador: quer fazer o favor de fornecer a indicação de tempo a Mr. Bell? Depois que pousarmos em Terrânia voltaremos a conversar, tenente! Jefe Claudrin, que geralmente era um tipo de bonachão, não brincava em serviço. Quando ameaçou o oficial de serviço junto ao computador, devia ser levado a sério. — Sir — disse o homem, dirigindo-se a Bell. — Alcançaremos a distância de tiro entre cento e trinta e cento e quarenta segundos, caso a nave cilíndrica não entre em transição. Há vinte segundos ela está acelerando fortemente. Bell não estava interessado numa informação tão precisa. Também receava que a nave ainda conseguisse escapar. Via perfeitamente na tela do rastreador que a mesma acelerava tremendamente. Mais uma vez a voz de Claudrin fez-se ouvir. — Atenção, sala de rádio. Mensagem à nave desconhecida. Parar para fins de controle. Diga que abriremos fogo se não obedecerem. Mercant estava de pé à direita de Bell. O marechal solar só olhava vez por outra para a tela. Em compensação olhava constantemente para seu cronógrafo. Cem segundos já se haviam passado, desde o momento em que o oficial da computação fornecera a indicação de tempo. — Já se passaram cem, mister Bell... Não conseguiu prosseguir. A sala de rádio da Ironduke transmitiu uma notícia apavorante. — Nave Baa-Lo ameaça matar Perry Rhodan se a ordem de parada não for retirada imediatamente. Formularam ultimato. Prazo do ultimato termina em dezessete segundos. Bell praguejou em altas vozes. — Esses malditos antimutantes nem nos deixam tempo para pensar. Sala de rádio, aqui fala Reginald Bell. Transmitam imediatamente uma mensagem. Ordem de parada suspensa. Prometemos não chegar à distância de tiro. Estamos interessados em negociar. Claudrin sabia o que devia fazer. O couraçado modificou sua rota. Ao mesmo tempo freou fortemente a nave esférica. O dispositivo de absorção de pressão, situado nas profundezas da nave, começou a uivar subitamente com o aumento de carga. Nenhuma das pessoas que se encontravam na sala de comando deu a menor atenção ao fato. Não se pronunciou uma única palavra supérflua. Todos aguardavam as palavras que nos próximos segundos seriam transmitidas pelo alto-falante. A espera transformou-se numa eternidade.

Mercant não tirava os olhos do cronógrafo. — Já se passaram cem segundos. Cento e cinco, cento e... Finalmente chegou a notícia tão ansiada: — Aceitamos proposta. Estamos dispostos a negociar, mas Perry Rhodan morrerá se houver um único incidente. Rhabol. — Rhabol! — exclamou Bell e enxugou o suor da testa. Jamais esqueceria o nome desse homem. *** O sumo sacerdote Rhabol provou que não usava seu título em vão. Agiu com uma tremenda rapidez e coerência ao receber a notícia da aproximação de uma nave de guerra do Império Solar. Fez questão de que Thomas Cardif ficasse perto dele e ouvisse todas as decisões que tomaria. Rhabol compreendeu que teria de agir numa questão de segundos, se quisesse evitar que ele e seus companheiros perecessem na nave cilíndrica avariada. Neste setor da Galáxia sabia-se há decênios como as naves terranas costumavam golpear quando a situação o exigisse. Antes que se dirigisse a Cardif, colocou em estado de prontidão todos os sacerdotes que se encontravam no interior da nave cilíndrica e ordenou-lhes que recorressem às suas energias individuais para reforçar o campo defensivo da Baa-Lo. Por ocasião da fuga de Lepso haviam constatado que nem mesmo os raios dos supercouraçados, cuja espessura atingia vários metros, eram capazes de romper o campo defensivo de uma nave, reforçado pelas energias mentais dos antis. No momento sua única desvantagem, que era muito grande, consistia nas graves avarias das máquinas, que permitiriam no máximo uma transição. Sem dizer uma palavra, o sumo sacerdote fitou o homem que, usando o nome Edmond Hugher, servira ao culto de Baalol quase cinco decênios. Durante esse tempo estivera submetido a um bloqueio hipnótico. O que era mais importante, descobrira nas glândulas do fura-lama o hormônio que era um agente rejuvenescedor muito potente, embora limitado no tempo, mas transformava-se no corpo humano num entorpecente de alto grau de toxicidade. Milhões de terranos e arcônidas foram vitimados por esse veneno disfarçado sob a capa de um preparado rejuvenescedor, conhecido pelo nome intergaláctico de liquitivo. E agora o anti e Cardif, que durante decênios haviam sido sócios, defrontavam-se como inimigos: o chantagista via-se diante de sua vítima. — Sua vida depende de você, Cardif! — limitou-se Rhabol a dizer. — E os ativadores celulares? Será que não contam? — perguntou Thomas Cardif, muito nervoso. — Você poderia explicar de que eles servem numa situação como esta? — ironizou Rhabol. Depois apontou para a tela. Um ponto minúsculo e brilhante destacava-se no negrume do espaço. Era a Ironduke, que se mantinha em posição de espera. A nave linear ligara todos os holofotes, dando a entender aos antis que se encontravam na Baa-Lo que o comando da nave estava disposto a entrar em negociações. Thomas Cardif respirava pesadamente. Sentia-se possuído por uma raiva impotente. Teve de controlar-se ao máximo.

Compreendia as intenções de Rhabol. O anti não queria dar nada pelos vinte ativadores celulares. — Decida, Cardif. Não é apenas sua vida que repousa em suas mãos, mas a vida de todos nós. Mas só lhe darei o direito de tomar uma decisão depois que você nos tiver entregue os vinte ativadores. A esfera vermelho-pálida, que cingia um campo temporal, flutuava ao lado dos dois. A recepção chamou. A voz de Reginald Bell saiu do alto-falante. Na Baa-Lo estava ligada apenas a transmissão de som. A transmissão de imagem fora desligada, O fato de a tela continuar apagada constituía um meio de pressionar Thomas Cardif mais fortemente. Se a situação exigisse, Rhabol estaria disposto a ligar inesperadamente a transmissão de imagem, para mostrar aos homens da Ironduke uma cena que se passava a bordo da BaaLo, e que forçosamente os faria ficar bastante desconfiados em relação ao chefe. — Cardif, você ouviu as exigências de Reginald Bell, seu representante e sucessor eventual. Queremos que as negociações logo cheguem ao fim. Então, o que diz de minha exigência de entregar os ativadores? Se você recusar, os servos de Baalol morrerão com você. Se resolver entregá-los, não impediremos que se retire desta nave. Caso saia, não se esqueça de que dentro de três dias, no máximo, deverá ser concedida a permissão para a instalação de mais trezentos entrepostos dos mercadores galácticos. Se recusar, infelizmente não teremos outra alternativa senão causar-lhe problemas. Mais uma vez a recepção soou em meio às suas palavras. E mais uma vez a voz de Bell saiu do alto-falante. — Chamando espaçonave Baa-Lo. Aqui fala Reginald Bell, representante do administrador. Quero avisá-los de que uma grande frota se aproxima do ponto em que nos encontramos. Face ao grande número de naves, haverá a possibilidade de um incidente. Para evitar este elemento de risco, sugiro o inicio imediato das negociações. Aguardo confirmação. Desligo. Três robôs de guerra mantinham-se nos fundos da sala de rádio. Sua vigilância dirigia-se exclusivamente a Thomas Cardif. Os outros cinco sacerdotes que se encontravam presentes já se haviam acalmado. Aguardavam as instruções de Rhabol. — Vou abrir! — Cardif resolvera ceder. — Não se esqueça de nos mostrar como se deve fazer a regulagem dos ativadores celulares para adaptá-los às vibrações individuais de cada um — lembrou Rhabol. Thomas Cardif cerrou os lábios. Sentou-se. A esfera flutuava acima de seu colo. Depois de algum tempo disse em tom insistente: — Abra-se! A esfera vermelho-pálida não se abriu. Desapareceu sem o menor ruído. Transportou-se para o nada, liberando vinte objetos em forma de ovo que caíram no colo de Cardif. O sumo sacerdote pegou dezenove desses objetos e guardou-os num bolso. O outro ativador foi entregue a Cardif. — Mostre-nos como se faz a regulagem, Cardif! A voz de Rhabol parecia muito tranqüila. Os olhos de Thomas Cardif chamejavam de ódio. Mas o filho de Rhodan logo mostrou ao sumo sacerdote como era simples ajustar o ativador celular para as vibrações de seu futuro portador. Rhabol pegou também o vigésimo ativador e guardou-o no bolso.

— Chame a Ironduke, Cardif, e anuncie sua chegada. Não se esqueça de dar ordem para que nos deixem partir em paz. Será que você acredita se eu lhe disser que nos sentimos muito felizes por tê-lo a bordo da Baa-Lo? Thomas Cardif deu-lhe as costas, colocou-se à frente do rádio, ligou a imagem e esperou até que os contornos se estabilizassem na tela. O rosto de Reginald Bell, marcado pela tensão e pela preocupação, surgiu na mesma. — Pegarei o jato espacial e irei à Ironduke, Bell. Ordene às unidades da frota que se aproximam para não impedirem a viagem da Baa-Lo, depois que eu tiver saído da nave dos antis. Desligo. Enquanto falava, colocara instintivamente a mão direita sobre o peito. Os dedos sentiram o objeto em forma de ovo que trazia junto à pele. Era o vigésimo primeiro ativador celular, uma maravilha vinda de um mundo superior, que fizera dele mais um imortal. E foi baseado nessa imortalidade que naqueles segundos elaborou um plano. Plano este por meio do qual pretendia quebrar o poder dos antis, eliminar Perry Rhodan e destituir o Imperador Gonozal VIII. Thomas Cardif era terrano e arcônida. Queria ser o soberano de ambos os impérios. *** O jato espacial corria velozmente em direção à Ironduke. Os propulsores trabalhavam ao máximo de sua potência. O vulto esférico da nave linear adquiria contornos cada vez mais nítidos. Cardif mantinha contato de rádio permanente com a Ironduke. Naquele instante estava abandonando a zona, só fixável por estimativa, que correspondia ao alcance da artilharia da Baa-Lo. Foi quando gritou para dentro do microfone: — Ataquem a nave cilíndrica! Alarmem as unidades da frota que se aproximam! Quero a destruição total! Sua voz tonitroava. A ordem era irrevogável. Jefe Claudrin reagiu imediatamente. Cardif já começava a exultar, quando viu que a Ironduke, uma nave de oitocentos metros de diâmetro, deixou de deslocar-se em queda livre e passou a acelerar com uma rapidez tremenda. A sombra da nave esférica passou a menos de cinqüenta quilômetros do Jato espacial. Thomas Cardif viu a torre polar da nave linear abrir fogo com todas as peças. Quase no mesmo instante, o rastreador estrutural do jato espacial deu um sinal. Apesar das avarias na sala de máquinas, a Baa-Lo abandonara a queda livre e entrara em transição. Cardif estudou a escala do rastreador estrutural. Em vão procurou o resultado das medições. A indicação numérica estava na posição zero. Compreendeu instantaneamente: os antis haviam recorrido às suas energias mentais para desaparecer no hiperespaço sem deixar o menor vestígio. A estrutura espaço-temporal não reagiu diante da manobra de imersão da Baa-Lo, quando a nave retornou ao universo normal, em algum ponto situado entre as estrelas distantes. Dali a meia hora, o jato espacial 1-109 entrava no hangar da Ironduke. Alguns minutos depois, Cardif-Rhodan entrou na sala de comando. — Perry! — exclamou Bell em tom de alívio.

Suas mãos remexeram o cabelo ruivo cortado à escovinha. Tinha de dar vazão ao sentimento de euforia. — Ainda bem que o senhor está conosco de novo, sir! — disse Allan D. Mercant, e seus olhos brilhavam. Jefe Claudrin também manifestou suas congratulações, mas logo passou a praguejar porque a nave cilíndrica lhe escapara. Sem pensar em nada, Reginald Bell perguntou depois de algum tempo: — Nolinow e Alkher dirigiram-se aos seus postos, Perry? Cardif-Rhodan já esperava a pergunta desde o momento em que entrara na sala de comando. — Não — disse, balançando a cabeça. — Os dois tenentes não vieram comigo. Acredito que estejam mortos. Naquele instante, a frieza do espaço cósmico parecia invadir a sala de comando da Ironduke. — Você acredita que estejam mortos, Perry? Quer dizer que não tem certeza? — gaguejou Bell, aproximando-se do amigo. — Perry, não devo ter ouvido bem. Pelo amor de Deus, Perry, o que você estava pensando no momento em que deu ordem para que a nave cilíndrica fosse destruída? — Pensei exatamente aquilo que acabo de dizer, Bell — respondeu Cardif-Rhodan em tom áspero, e um brilho feroz surgiu em seus olhos. Todas as pessoas na sala de comando prenderam a respiração. Só viam um homem: o chefe. Mas não tinham diante de si um Perry Rhodan que lhes era totalmente estranho? Será que alguma vez Rhodan já abandonara um homem pertencente às suas fileiras? Será que o chefe jamais dera ordem para abrir fogo contra uma nave na qual se encontrasse um só companheiro que ainda estivesse vivo? — Perry! — a voz de Bell estava marcada pelo desespero, mas Cardif-Rhodan interrompeu sua fala. — Você acredita que não lamento a morte dos dois? Vi-os serem levados por um robô. Pareciam mortos. Infelizmente os antis não me deram qualquer informação quando perguntei por Nolinow e Alkher. Portanto, poderia perfeitamente ter respondido à sua pergunta: os dois pareciam mortos. Se tivesse agido assim, teria evitado qualquer malentendido. — Perry, antigamente você não pensava nem agia dessa forma — disse Bell, profundamente abalado. — Não o entendo mais. Compreendo perfeitamente a ação desenvolvida em Plutão. Banavol avisou-o de que havia um anti na base dos saltadores. Mas não compreendo por que você se empenhou pessoalmente em descobrir se a notícia transmitida pelo agente era ou não verdadeira. Afinal, para que serve a Segurança Solar? Cardif-Rhodan interrompeu-o. — Pois chegou a hora de a Segurança Solar mostrar se continua a ser aquilo que sempre foi no curso dos decênios! — lançou um olhar provocador para Allan D. Mercant. — O que quer dizer com isso? — esbravejou Bell em tom contrariado. O fato de a discussão se travar na sala de comando da Ironduke deixou-o nervoso. — O que quero dizer com Isto, Bell? — perguntou Cardif-Rhodan com uma ironia mordaz. — Você logo descobrirá. Sem dúvida será interessante sabermos por que os antis resolveram atacar-me, e como souberam de que eu havia voado para o planeta Peregrino. Não desejo sabê-lo, Bell: faço questão de saber. E agora permita que lhe dê um conselho. Procure controlar-se quando eu manifestar minhas suspeitas.

“Stana Nolinow, ou Brazo Alkher, ou ambos, devem ter informado os antis sobre minha viagem ao planeta Peregrino. E a única possibilidade, pois os antis deram a entender perfeitamente que ficaram à espreita do jato espacial.” Alguém pigarreou atrás de Cardif-Rhodan. Era Jefe Claudrin, comandante da Ironduke e superior hierárquico imediato dos dois homens contra os quais se dirigiam as pesadas acusações do chefe. — Sir... — disse com a voz trovejante, mas Cardif-Rhodan Interrompeu-o. — Não pedi sua opinião, Claudrin! — berrou de volta. — Mercant, exijo que, dentro de um prazo brevíssimo, seu Serviço de Segurança descubra em que lugar pousou a Baa-Lo, o destino que tomaram os antis, e se Alkher e Nolinow estão mortos ou não. Quero uma resposta cabal a estas perguntas dentro de uma semana. O rosto de Mercant parecia indiferente. Ignorou o olhar significativo de Bell. O marechal solar não se lembrava de que o chefe já lhe tivesse dado uma ordem nesse tom. Nunca antes o chefe duvidara da capacidade da Segurança Solar. — Sir — ponderou Mercant tranqüilamente. — O senhor quase chega a exigir o impossível da Segurança Solar. O gesto autoritário de Cardif-Rhodan falava por si. — Impossível para cá, impossível para lá, Mercant. No presente caso não estou interessado em saber se a tarefa é impossível ou não, O senhor sabe o que está em jogo? Sabe lá do que os antis conseguiram apoderar-se graças à traição de um ou de dois oficiais da Frota Solar? E sabe por que os antis me libertaram sem formular outras exigências? “Conseguiram apoderar-se de vinte ativadores celulares. São aparelhos de um tipo que por enquanto só Atlan possuía!” Essa notícia fez com que até Allan D. Mercant tivesse de calar-se. Bell mal e mal conseguia respirar. Os oficiais que se encontravam na sala de comando enxugavam o suor da testa. O epsalense já se esquecera da advertência grosseira que recebera do chefe. Cardif-Rhodan mantinha-se em atitude de triunfo a frente de todos eles, e perguntou em meio ao silêncio geral: — Será que a esta hora os senhores já conseguem compreender por que dei ordem de abrir fogo? Thomas Cardif exultava no seu íntimo ao notar que até mesmo o Marechal Solar Allan D. Mercant o fitava com um ligeiro sentimento de culpa. Sua jogada infame, através da qual atirou a pecha de traidores contra dois oficiais de reputação ilibada, estava produzindo seus frutos. Havia uma única pessoa que não se deixava demover de sua opinião. Jefe Claudrin voltou a objetar com sua voz trovejante: — Queira desculpar, sir, mas não posso acreditar que Alkher ou Nolinow, ou ambos, o tenham traído para entregá-lo aos antis. Se fosse assim, ver-me-ia forçado a renunciar à fé que deposito na Humanidade. Nesse caso eu cometeria uma traição contra o senhor e o Império Solar. Cardif-Rhodan deixou que o comandante da Ironduke concluísse sua fala. Aproximou-se do epsalense. Num gesto genuinamente rhodaniano, colocou-lhe a mão sobre o ombro. — Claudrin — disse. — Se é assim, como se explica que os antis soubessem do meu vôo para Peregrino? Será que minha acusação contra os dois tenentes é injusta? Será que o traidor ou os traidores ainda se encontram nesta nave? Existe outro detalhe,

Claudrin. Como se explica que os sacerdotes de Baalol perguntassem pelos ativadores celulares quando me aprisionaram em sua nave? O comandante fitou o chefe com os olhos muito abertos. Balançou lentamente a cabeça ampla. — Sinto muito, sir, mas apesar de tudo não julgo os dois oficiais capazes de uma traição. Deve haver outros fatores, dos quais nem desconfiamos. Talvez a Segurança Solar consiga fornecer a resposta. Cardif-Rhodan não teve tempo de responder. Mercant, que se encontrava num ponto mais afastado, interveio na palestra: — Claudrin, eu lhe juro uma coisa. A Defesa Solar esclarecerá este caso, ou então não quero chamar-me mais de Allan D. Mercant.

*** ** *

Thomas Cardif, o renegado, exulta por dentro, pois está de posse de um dos lendários ativadores celulares. E acredita que nem mesmo o Ser espiritual de Peregrino descobriu seu disfarce... Também os antis, que julgam poder pressionar Cardif à vontade, com a ameaça de desmascará-lo, acreditam que seus desejos foram cumpridos. Nem desconfiam das brincadeiras cruéis que Aquilo fará com eles. No próximo volume da série, intitulado A Flor Milagrosa de Utik, lances indescritíveis acontecem...

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