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O lugar da linguagem no direito: prolegômenos sobre a filosofia da linguagem e sua aplicação no Direito contemporâneo

O LUGAR DA LINGUAGEM NO DIREITO: PROLEGÔMENOS SOBRE A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E SUA APLICAÇÃO NO DIREITO CONTEMPORÂNEO The position of language in law: prolegomena about the philosophy of language and its application in contemporary law Revista dos Tribunais | vol. 998/2018 | p. 561 - 582 | Dez / 2018 DTR\2018\22558 Georges Abboud Mestre e Doutor em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor de processo civil da PUC-SP e do Programa de Mestrado em direito constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP-DF. Advogado e Consultor Jurídico. [email protected] Renato Mantoanelli Tescari Mestrando em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor Assistente de processo civil da PUC-SP. Advogado. [email protected] Área do Direito: Filosofia Resumo: A partir de uma perspectiva histórica, o artigo objetiva introduzir o leitor à filosofia da linguagem e ao paradigma hermenêutico que deve guiar a interpretação e a aplicação do Direito contemporâneo. Palavras-chave: Filosofia da linguagem – Virada ontológico-linguística – Paradigma hermenêutico – Interpretação e aplicação do Direito – Martin Heidegger – Hans-Georg Gadamer Abstract: The article aims to introduce the reader to linguistic philosophy and to philosophical hermeneutics by means of a historical approach. Keywords: Linguistic philosophy – Linguistic-turn – Philosophical hermeneutics – Interpretation and application of Law – Martin Heidegger – Hans-Georg Gadamer

Sumário: 1.Introdução - 2.Pensamento Clássico Essencialista/Objetivista: a essência das coisas (entes) inatingível pela linguagem (Platão, Aristóteles) - 3.Pensamento Moderno Antropocêntrico: a essência e a razão na perspectiva sujeito-objeto (J. Locke, L. Wittgenstein I) - 4.Virada Linguística I: a linguagem como constituidora do mundo ( Wittgenstein II): o pragmatismo - 5.Virada ontológico-linguística-hermenêutica: a Hermenêutica como Filosofia (Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer) - 6.Conclusão – o lugar da linguagem no Direito e o Direito enquanto linguagem num paradigma hermenêutico - 7.Referências bibiográficas 1.Introdução O presente artigo objetiva fornecer uma breve introdução à filosofia da linguagem e ao nascimento da hermenêutica jurídica e sua relevância ao Direito contemporâneo. O papel da linguagem no mundo e sua relação com o conhecimento e com a verdade é tema altamente complexo, cuja primeira abordagem talvez date de 388 a. C., com o 1 Crátilo, de Platão. Página 1

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De lá para cá centenas de trabalhos foram publicados a respeito da linguagem, que assumiu distintas roupagens ao longo da evolução do pensamento filosófico, principalmente no campo da epistemologia, até chegar ao século XX e se fundir propriamente à filosofia com as contribuições de Heidegger e Gadamer como forma de superação à metafísica clássica e ao esquema filosófico de sujeito-objeto. A partir desse momento, a que se atribui o nome de giro ontológico-linguístico (ou linguistic turn), é possível falar no surgimento da Filosofia Hermenêutica (Heidegger) e, posteriormente, da Hermenêutica Filosófica (Gadamer), que representaram verdadeira reviravolta filosófica no campo da linguagem e do conhecimento e, assim, alteraram toda a matriz do pensamento científico ocidental. Entre os campos afetados pelo giro ontológico-linguístico está o Direito, foco principal de nossos estudos. Nesse contexto, o presente trabalho não pretende abordar toda a complexidade da historiografia escrita pelo tema, mas tão somente apresentar ao leitor as principais nuances da historicidade do processo, necessárias à compreensão do paradigma hermenêutico que hoje guia o pensamento do Direito contemporâneo e permite a superação de teorias jurídicas insuficientes sobre a norma e a Jurisprudência. Para tanto, o artigo se dividirá em quatro pequenos itens: o primeiro, tratando do pensamento clássico essencialista da linguagem; o segundo, explicitando suas nuances antropocêntricas; o terceiro, introduzindo o pensamento de Wittgenstein II e o aspecto pragmático da linguagem; e o quarto, explorando os principais aspectos do giro ontológico-linguístico propriamente dito, introduzindo o leitor ao pensamento heideggeriano e gadameriano. Por fim, a conclusão do artigo irá apresentar os efeitos diretos que esse novo paradigma trouxe ao Direito e às suas teorias. 2.Pensamento Clássico Essencialista/Objetivista: a essência das coisas (entes) inatingível pela linguagem (Platão, Aristóteles) Como já introduzido, o primeiro estudo sobre a linguagem de que se tem conhecimento é o Crátilo, de Platão, datado, ao que indica a historiografia, de 388 a. C. Nesse diálogo, Platão introduz o pensamento clássico sobre a linguagem, pensamento cujas bases fundamentais perduram até os dias de hoje, ainda absolutamente predominantes no 2 “senso comum” dos cientistas contemporâneos. Segundo o pensamento clássico, a significação da linguagem e do discurso reside basicamente na “essência real” das coisas que as palavras representam. A linguagem, portanto, é um mero instrumento para se classificar, explicar e estudar o verdadeiro conhecimento, conhecimento esse que está na essência das coisas, acessível somente por meio do pensamento puro, supostamente independente da linguagem. Nas palavras de Manfredo A. Oliveira, o ponto fundamental do pensamento platônico é que “é possível conhecer as coisas sem os nomes”, pois “na linguagem não se atinge a verdadeira realidade (aletheia ton onton) e que o real só é conhecido verdadeiramente 3 em si (aneu on onomaton) sem palavras, isto é, sem a mediação linguística”. Nessa visão, portanto, a compreensão do mundo prescindiria da linguagem, que seria apenas uma ferramenta para explicá-la, por meio de sons ou pela escrita, a terceiros. Mais que isso, a linguagem se situa em uma dimensão absolutamente distinta dos objetos reais, paradigma em que se funda a Metafísica clássica. Embora seu pensamento apresente importantes oposições e nuances em relação ao pensamento platônico, a corrente aristotélica sobre a linguagem mantém o mesmo caráter essencialista e objetivista, de forma que a ele se aplica o mesmo fundamento da “visão clássica” aqui exposta, reconhecendo a linguagem com um papel absolutamente Página 2

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secundário na compreensão. No pensamento de Aristóteles, porém, além do rompimento entre palavra e ser que Platão havia antevisto (o ser não pode ser conhecido pela palavra, que apenas serve para externar a compreensão prévia), existe, ao mesmo tempo, em sua visão, uma clara relação entre eles, representada pelo estado psíquico dos sujeitos que integram a conversa. Para Aristóteles, na verdade, a palavra representa não diretamente o ser, mas a sua significação no estado psíquico do intérprete, que intermedia essa relação mediata existente entre palavra-significado-ser. De toda forma, ainda que com suas nuances, na visão clássica como um todo, é possível dizer que o juízo de verdade/falsidade em relação a uma dada proposição possui uma transcendentalidade, na medida em que é refém de uma comparação com o “estado real” do ser a que se relaciona. Em outras palavras, a avaliação sobre a veracidade/falsidade de uma certa proposição é feita com base na observação direta do próprio ser (objeto) a que as palavras se referem, que, para serem verdadeiras, devem expressar a sua essência. Daí porque é possível dizer que esse pensamento se baseia na ontologia clássica, já que as palavras só possuem sentido se devidamente relacionadas às essências dos objetos cujo significado representam. Trata-se de perspectiva imanentista de enfrentamento da realidade. A linguagem, nessa perspectiva, é apenas “condição de possibilidade da 4 comunicação humana” , e deve manter relação direta com a essência dos seres, sem a qual as palavras não poderiam ser compreendidas intersubjetivamente. 3.Pensamento Moderno Antropocêntrico: a essência e a razão na perspectiva sujeito-objeto (J. Locke, L. Wittgenstein I) A partir da Idade Média, esse pensamento semântico clássico ganha uma nova roupagem ao surgir na relação objeto-linguagem uma nova faceta, introduzida pelo sujeito: o sentido das frases/proposições. Isso porque a atenção agora se volta à função da linguagem enquanto parte fundamental da comunicação humana, embora ainda produzida de forma individual e subjetiva. Veja-se, nesse sentido, com John Locke, que “as palavras significam também a realidade das coisas” e geram “ideias na mente de outros homens também, com os quais se 5 comunicam. De outro modo, falariam em vão, não poderiam ser entendidos”. Na verdade, todo o movimento antropocêntrico da filosofia traz a ideia de que o pensar é o verdadeiro responsável pela objetificação, já que os objetos só são considerados como tal porque alvos do pensamento do sujeito que o investiga. O pensamento, nessa perspectiva, passa a ser a condição de possibilidade da objetificação e a verdade deixa de poder ser encontrada pura e simplesmente no objeto do mundo físico, pronta e esgotada, e passa a ser aferida na razão do investigador que sobre o mundo construirá suas proposições de forma lógica. A verdade será não o atributo direto do objeto físico 6 observável pelo sujeito, mas a “correspondência entre conhecimento e realidade”. Essa nova vertente de pensamento pode ser ilustrada, obviamente que com diversas distinções, com as obras de J. Locke, I. Kant, E. Husserl, F. V. Kutschera, F. L. G. Frege, 7 R. Carnap e Wittgenstein I (Tratactus Logico-Philosophicus). Respeitada a finalidade deste trabalho, que não é o exame minucioso dos estudos filosóficos de cada um desses autores, o importante é notar que há um ponto comum em todos eles, a imprescindibilidade da subjetividade humana no processo de conhecimento. Na lição de Manfredo A. de Oliveira: Precisamente nisso consistiu a revolução copernicana proclamada por Kant: em vez de nos dirigirmos aos objetos, transcendemos dos objetos para sua condição de possibilidade, isto é, passa-se dos objetos para o espírito finito como condição de Página 3

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possibilidade do processo de objetivação da realidade. Assim se manifesta à reflexão filosófica a consciência humana como mediação necessária no processo do conhecimento, de tal modo que o pensamento clássico é considerado, em bloco, dogmático por não ter sido capaz de tematizar a mediação consciencial do processo do 8 conhecimento. Um exemplo que bem sumariza o pensamento moderno é a filosofia de Wittgenstein no Tratactus Logico-Philosophicus (sua primeira fase). Wittgenstein, no Tratactus, tem 9 como tese central que a linguagem é uma figuração do mundo sobre o qual ela fala , que só adquire sentido quando expressada por meio de uma proposição (Frege), formada logicamente, cuja estrutura sintática e semântica corresponda à estrutura real do mundo (“estado de coisas”). À essa correspondência, verificável empiricamente no caso concreto, Wittgenstein atribui o nome de isomorfismo. Veja-se, com esse exemplo, que a herança do pensamento clássico é ainda latente, não se podendo falar em uma verdadeira ruptura com as ideias antecedentes, mas tão somente um aprofundamento do tema com um maior foco na subjetividade humana e no uso da linguagem para fins científicos. Nesse aspecto, um dos coautores já salientou, [...] a verdade passa a ser uma construção subjetiva do sujeito cognoscente, possibilitando-se falar em um conceito subjetivista de verdade. Dito de outro modo, a questão do fundamento repousa numa dimensão objetivista, a priori; e subjetivista, a 10 posteriori. Será só a partir da segunda fase do pensamento de Wittgenstein, com a publicação póstuma de seus escritos em Investigações Filosóficas, e, posteriormente, a partir da revolução ontológica de Heidegger e Gadamer, como se verá adiante, é que esse paradigma passará a ter sua fundamentação verdadeiramente questionada. 4.Virada Linguística I: a linguagem como constituidora do mundo (Wittgenstein II): o pragmatismo Para o pensamento essencialista/objetivista (clássico ou moderno), [...] a essência da linguagem depende, assim, em última análise, da estrutura ontológica do real. Existe um mundo em si que nos é dado independentemente da linguagem, mas 11 que a linguagem tem a função de exprimir. E já que a linguagem não passa de um reflexo da realidade, o fundamental do conhecimento é a análise da estrutura ontológica do mundo, isto é, o estudo da 12 constituição dos entes “reais” que o compõem. Para essa corrente, o conhecimento prescinde da linguagem, que servirá somente para externar à sociedade o conteúdo adquirido pelo indivíduo. O falar é um ato privado, cujo uso é social. Nesse sentido é possível afirmar que [...] a tradição [objetivista] tem uma função subjetivista e individualista da linguagem humana: individualista, porque se subtrai da função comunicativa e interativa da linguagem. Subjetivista, porque considera as convenções e regras linguísticas como dados imediatos da intuição do sujeito falante e não como resultado de um processo de 13 socialização. Wittgenstein, após a publicação do Tratactus, passa a questionar todas essas bases que ele próprio havia ajudado a lapidar, tentando evidenciar a sua insuficiência frente aos reais usos da linguagem. Seu novo pensamento será compilado em Investigações Filosóficas, publicação póstuma que reuniu alguns dos esparsos escritos da segunda fase de sua filosofia. Página 4

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Em Investigações Filosóficas, demonstra-se pela primeira vez que a linguagem faz muito mais do que simplesmente reproduzir as estruturas do real. Para o filósofo, “há um número incontável de espécies [de proposições]: incontáveis espécies diferentes da aplicação daquilo a que chamamos ‘símbolos’, ‘palavras’, ‘proposições’. E esta multiplicidade não é nada fixa, dada de uma vez por todas”. Muito pelo contrário, a linguagem possui uma série de outros usos possíveis, entre os quais, por exemplo: “dar ordens ou agir de acordo com elas; [...] formar e examinar uma hipótese; [...] Inventar 14 uma história; lê-la; representação teatral; cantar numa roda viva [...]” (IF 23) etc. Com efeito, dada a multiplicidade de formas que pode vir a adotar a linguagem, o seu sentido não pode ser determinado, a priori, por uma simples convenção ou escolha do sujeito, em função de seu isomorfismo com a realidade, mas, pelo contrário, está exclusivamente ligado ao seu uso e só pode ser compreendido se levado em consideração o contexto de sua utilização e a historicidade da construção dos conceitos a que faz referência. Nessa perspectiva, a intersubjetividade como dimensão da (re)produção do conhecimento passa a figurar como ponto de destaque. Para Wittgenstein, a “essência” dos entes a que se refere a filosofia objetivista como forma de dar significado às palavras não passa de uma invenção filosófica, pois, na verdade, há apenas semelhanças e parentescos entre o uso dos conceitos, que, ao longo do tempo, podem vir a adotar diferentes significados a depender do contexto em que 15 utilizados, sempre de forma a manter uma “textura aberta” na linguagem. Nessa perspectiva, podemos concluir que [...] é exatamente o exame atento desses contextos que nos vai mostrar que usamos as palavras não de acordo com uma significação definitiva, estabelecida de antemão, nem também de modo arbitrário (uma das teses do nominalismo), mas de acordo com as semelhanças e parentescos. Nesse sentido, podemos dizer que nossa linguagem é, sempre, de certo modo, ambígua, uma vez que suas expressões não possuem uma 16 significação definitiva. Em resumo, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem

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(IF 43).

É por esse motivo que a segunda fase do pensamento de Wittgenstein já pode ser considerada uma primeira virada no pensamento filosófico da linguagem, na medida em que propõe a total substituição do aspecto semântico da linguagem (significação objetivista) por um paradigma analítico-pragmático (análise de seu uso prático). Mais do que isso, o pensamento Wittgenstaniano, em sua segunda fase, aborda ainda os pressupostos epistemológicos de sua posição, explicitando o erro do tradicionalismo essencialista no que diz respeito à atribuição de um caráter secundário (de cariz instrumental) à linguagem, que supostamente não interferiria no processo de conhecimento humano. Em sua visão, se a teoria objetivista da linguagem é uma ilusão e se a linguagem deve ser analisada tão somente sob seu caráter pragmático, não pode haver conhecimento sem linguagem, na medida em que ela passa a ser “condição de possibilidade para a 18 própria constituição do conhecimento enquanto tal”. Nesse sentido é que podemos falar no caráter transcendental da linguagem na segunda fase da filosofia de Wittgenstein, pois não há um “mundo real” independente da linguagem, ao qual ela deve se referir. Na realidade, o mundo só existe na linguagem, “entidades, atributos, as 19 próprias coisas se manifestam em seu ser precisamente na linguagem” , de forma que o conhecimento transcende dos entes para a linguagem. Com base em Ernildo Stein, é possível resumir com fidelidade a inauguração desta filosofia: Filosofia analítica da linguagem, portanto, como a própria expressão analítica indica, caracteriza aquilo que lhe é próprio, a analiticidade, as condições de possibilidade da Página 5

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compreensão que são implicações analíticas do modo de uso das palavras com que articulamos a proposição. E disso se conclui uma coisa essencial: que a Filosofia depois da virada linguística da tradição anglo-saxônica apresenta um programa de Filosofia transcendental. Só que neste programa o pressuposto a priori a ser esclarecido não é o conhecer, mas o compreender. E, se fazemos a crítica, desde uma Filosofia analítica, da Filosofia representacionista como a teoria da consciência, o fazemos, justamente, porque ela não dá conta desse todo do nosso compreender por meio da explicitação das expressões linguísticas. Este é o motivo básico da crítica que a Filosofia analítica faz ao 20 pensamento da tradição continental. Supera-se, também assim, o dualismo epistemológico-antropológico da filosofia objetivista, já que o entendimento humano não se faz por meio da junção de um 21 comportamento externo (fala, escrita) com uma significação do espírito a ele atribuído – o que dá margem a uma série de arbitrariedades e solipsismos no processo de interpretação e no entendimento das palavras –, mas, sim, exclusivamente no aspecto pragmático da linguagem. Nesse contexto, para descobrirmos o verdadeiro significado de uma proposição qualquer, devemos não pesquisar as “essências dos entes reais” a que elas se referem (sic) – teoria da semântica objetivista –, mas analisar o contexto, as regras do “jogo de linguagem” inseridas naquela determinada situação. Nas precisas palavras de Lenio Streck, em Wittgenstein II: [...] o problema não estava mais na relação dos signos como signos, que é uma questão de sintaxe, não estava mais na relação dos signos com os objetos que se designam, mas 22 a questão que surgia estava na relação dos signos com seus usuários. As palavras estão inseridas numa situação global que regra seu uso, com sentidos determinados por sua historicidade. Assim, não se trata de apreensão de um conteúdo metafísico, mas, sim, de uma práxis inserida em um contexto maior da atividade humana, razão pela qual se pode concluir “que alguém compreendeu uma palavra se 23 posso observar que ele a emprega retamente” , e que “saber usar corretamente as 24 palavras significa saber comportar-se corretamente”. Concluímos com Manfredo Araújo de Oliveira, afirmando que [...] para Wittgenstein, as expressões linguísticas têm sentido porque há hábitos determinados de manejar com elas, que são intersubjetivamente válidos (IF 198, 199). É precisamente o hábito que sanciona sua significação determinada (IF 349) e constitui o 25 jogo de linguagem em questão, que é uma forma específica da atividade humana. A capacitação humana para manejar a linguagem é, portanto, algo historicamente adquirido, adquirido por meio do adestramento das normas envolvidas na linguagem e 26 dos significados de seus atos. O significado das palavras, nesse espectro, está ligado exclusivamente ao seu uso, e não a objetos, essências ou intencionalidades do sujeito 27 que fala. Eis a primeira virada linguística na filosofia, chamada de virada pragmático-linguística ou linguistic turn I. 5.Virada ontológico-linguística-hermenêutica: a Hermenêutica como Filosofia (Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer) A partir do pragmatismo analítico da segunda fase da Wittgenstein (Investigações Filosóficas), o abandono o modelo sintático-semântico clássico e subjetivista, como vimos, e a assunção de um modelo com base pragmática, em que se privilegia o uso efetivo da linguagem e o aspecto comunicacional intersubjetivo dotado de historicidade, construíram as bases para o surgimento de uma hermenêutica existencial, intimamente 28 ligada com a praxis. Página 6

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A hermenêutica, em seu entendimento clássico-moderno, sempre deteve o caráter de disciplina auxiliar à filosofia, considerada a “arte da interpretação e compreensão de 29 textos produzidos, principalmente, no âmbito da literatura, da teologia ou do direito”. Era aplicada usualmente na tentativa de garantir objetividade às interpretações 30 realizadas, para se chegar à verdade (sic) das proposições contidas no texto. Veja-se, nesse diapasão, que a visão clássica da hermenêutica acreditava que, por meio dos cânones interpretativos (métodos gramatical, lógico e sistemático, na terminologia 31 de Carlos Maximiliano ), o intérprete poderia apreender a totalidade dos sentidos do texto e, assim, reconstruir o seu significado e chegar à verdade (sic) daquela proposição. 32

Contudo, o que esse pensamento não consegue notar é que a sua intenção, por melhor que possa ser, já nasce morta. Isso porque, a partir do giro linguístico – e, principalmente, com a filosofia existencialista de Heidegger, inaugurada em Hermenêutica da Faticidade e Ser e Tempo –, nota-se que “é impossível chegar aos objetos diretamente. O acesso ao objeto [...] se dá a partir de um médium universal: a 33 linguagem” , a estrutura constituidora de nosso mundo. Para além do giro linguístico-pragmático que havia superado o modelo sintático-semântico clássico e subjetivista do conhecimento e ressaltado o aspecto comunicacional intersubjetivo dotado de historicidade da linguagem, a filosofia heideggeriana introduz uma nova reviravolta na filosofia, batizada de giro ontológico-linguístico. Conforme já pudemos pontuar: O giro ontológico-linguístico consiste, assim, na grande revolução – na mais decisiva pelo menos – que Martin Heidegger legou para a filosofia. Para Heidegger, Metafísica relegou a um plano ôntico um problema que é necessariamente ontológico, isto é, investigou objetivando o ente algo que pertence à esfera do ser. Daí que toda pesquisa 34 que explore apenas o ente em parte alguma encontrará o ser. Em outros termos, a revolução da pesquisa da Heidegger está no fato de que ele compreendeu que a filosofia até o momento buscava o conhecimento diretamente no ente, no objeto de um “mundo físico” (sic), e, para isso descartava, ou ao menos relegava a um segundo plano (em relação ao conhecimento, como pregava a filosofia da consciência), a relevância do homem nesse processo, como se ele pudesse “enxergar de 35 fora” o conhecimento sobre algo. Assim, [...] para mencionar algo precisamos dizer o que esse algo é [...]. Ora, quem diz o é do ser é este ente chamado homem, ser humano e que em Heidegger responde pelo nome 36 alemão Dasein , definido por Paul Ricouer como “um ser cujo ser consiste em 37 compreender”. Compreendendo, portanto, o homem (único ente capaz de compreender o ser dos entes) e suas estruturas, compreende-se o ser. E mais do que isso: “O Dasein existe porque compreende o ser e, compreendendo o ser, compreende a si, lançando-se para adiante 38 da própria existência”. Não conseguimos explicar o que é o homem, mas tão somente compreender como ele é e verificar como se dá o processo de existência (compreensão dos seres dos entes numa compreensão também de si mesmo). Na didática explicação de Wolfgang Stegmuller, o homem é: [...] “um ente constituído pelo seu próprio ser. Nesta expressão, “constituído pelo” repousa, antes de qualquer reflexão teórica, a relação duradoura consigo mesmo. É nessa relação que se manifesta 39 a existência.” Um interessante exemplo é fornecido por Ernildo Stein para ilustrar a exclusividade do Página 7

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homem na compreensão do ser. Diz o autor para imaginarmos um quadro de Volpi na parede de uma sala, com moldura, cores e desenhos. O que faz com que olhemos para aquilo e o reconheçamos como um quadro, a ponto de até mesmo exprimirmos algum juízo estético a seu respeito? Seriam apenas seus componentes físicos, que capitamos com nossos sentidos? Segundo ele, a resposta seria negativa. Na verdade, no exemplo fornecido, há um “excesso da coisa” na percepção que recebemos, algo que nos permite compreender que o que olhamos é, de fato, um quadro, excesso esse que não está presente em suas 40 “características físicas” (sic). Esse “excesso” não faz parte do quadro; é, na realidade, o seu ser. Não houvesse o homem naquela situação, o único ente capaz de compreender o ser, o quadro não existiria. Ou, nas herméticas palavras do autor, “nada é sem o Dasein. Logo, esse quadro não tem sentido, como as leis de Newton não são leis sem o 41 ser-aí [Dasein]”. Veja-se, ainda a partir do exemplo de Stein, que a compreensão do ser do ente chega ao homem (ser-aí) antes de qualquer interpretação. E assim o é porque o Ser-aí só existe porque compreende o ser e desde sempre foi assim. Está inserido, portanto, num mundo cujos seres já compreendeu (facticidade) e segue compreendendo para ao mesmo tempo compreender a si, já que tem-que-ser-no-mundo (existência). Este é o círculo hermenêutico heideggeriano. A esse respeito, fundamentais os esclarecimentos de José Lamego: Segundo Heidegger, a “compreensão” pertence à constituição ôntica existencial do ser-aí (Dasein), da existência. A interpretação de algo como algo se move numa estrutura de antecipação que corresponde à essência da compreensão. É da totalidade do mundo da compreensão que resulta uma “pré-compreensão” que abre um primeiro acesso de intelecção. A “pré-compreensão” representa uma antecipação de sentido do que se compreende, uma expectativa de sentido determinada pela relação do intérprete com a coisa no contexto de determinada situação. A pré-compreensão constitui um momento essencial do fenómeno hermenêutico e é impossível ao intérprete desprender-se da 42 circularidade da compreensão. O fato de a compreensão sempre chegar ao Ser-aí antes de qualquer interpretação implicará também em uma nova superação da filosofia heideggeriana em relação àqueles que o precederam, que opera sobre o método enquanto critério para se atingir uma suposta verdade objetiva das proposições. Isso porque a compreensão humana, como demonstra Heidegger, não depende de uma estrutura metodológica rígida, pré-definida racionalmente pelo sujeito para se chegar à objetividade, mas está ligada à diferença ontológica da compreensão: o homem (Ser-aí) procura o ente (no campo ôntico) para encontrar o ser (no campo ontológico). O sentido do ente (ser), contudo, se nos dá num fenômeno, antecipada e independentemente a qualquer método ou racionalidade. No exemplo que trouxemos de Stein, o “excesso da coisa”, o ser, aparece antes mesmo que possamos interpretar o ente. E é por isso que “o método sempre chega tarde” ao conhecimento humano. Na lição de Ernildo Stein, “Seria a diferença ontológica de Heidegger, em que ser e ente são, justamente, aquele lugar no qual se decide a relação significação e objeto. O como, o modo de, o método com o que temos de tratar a questão do ser está ligado à totalidade do nosso compreender. A questão do ser já está sempre subentendida quando nos confrontamos 43 com a experiência com os entes. (Grifos originais). Nesse aspecto é que podemos falar que Heidegger opera também uma segunda revolução no campo da filosofia, agora no que diz respeito ao uso da hermenêutica, 44 “alçada a um nível de verdadeira filosofia prática”. A hermenêutica, após a virada Página 8

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heideggeriana, passa a ter “raízes existenciais porque se dirige para a compreensão do 45 ser-dos-entes” , e seu objeto se torna a facticidade (o ser do Ser-aí) para assim 46 permitir “a abertura do horizonte para o qual ele se encaminha (existência)”. Daí as duas fundamentais críticas de Heidegger à ontologia tradicional: (a) o fato de não analisar “a condição de ser objeto, a ciência da natureza e da cultura, o mundo” a partir do Dasein e de suas possibilidades; e (b) o fato de, ao objetificar o conhecimento, barrar 47 o acesso ao ente decisivo da Filosofia, o Dasein, “para o qual a filosofia é”. Veja-se, nesse sentido, que a revolução desse novo paradigma está principalmente no fato de que a linguagem deixa de ter caráter instrumental e secundário no conhecimento humano, para se tornar sua condição de possibilidade, sem a qual a própria existência do homem não se faz possível. Nas palavras de Manfredo A. de Oliveira, “todo pensar já se movimenta no seio da linguagem, ou seja, se articula numa abertura, num espaço linguisticamente mediado, no qual se abrem para nós a perspectivas para a experiência 48 do mundo e das coisas”. A partir de toda a revolução da filosofia operada por Heidegger, principalmente no que diz respeito ao modo-de-ser do homem (Ser-aí), é que Gadamer concluirá seu ensaio acerca do conhecimento humano, publicado com o título Verdade e Método. Em Verdade e Método (que, na realidade, deve ser lido como “Verdade contra o método 49 Método” ou “Verdade apesar do Método”) , Gadamer passa a analisar a possibilidade da compreensão humana como um todo, que é comum a todo e qualquer campo da filosofia ou da ciência. Para tanto, percebe que há uma estrutura pré-conceitual de toda a compreensão, vinculada à historicidade do homem. Isso significa reconhecer, com apoio em Heidegger, que, ao ser exposto ao ente e assim conhecer o ser, o homem o faz a partir de seus pré-conceitos, que lhe são fornecidos pela historicidade de seu ser e pela tradição (construção intersubjetiva do sentido do ser dos entes). Nesse passo, é possível reconhecer, com Abboud, Carnio e Oliveira que, a partir do pensamento de Heidegger e Gadamer, a hermenêutica deixa de ser metodológica “e passa a ser filosófica, na medida em que está estruturada na antecipação de sentido 50 presente na base do círculo hermenêutico [heideggeriano, supra descrito]”. Explicitando melhor, trata-se de uma “antecipação de sentido” que é inerente ao modo-de-ser do homem, na medida em que, em sua existência, está sempre fadado a conhecer o ser dos entes a partir de suas prévias experiências no mundo. Referidas experiências, contudo, não podem ser consideradas de maneira subjetiva e solipsista a autorizar ou fazer renascer o paradigma subjetivista de uma filosofia da consciência, que reside na arbitrariedade do intérprete “na escolha da forma como vai compreender o ente” (sic). Na realidade, a tradição gadameriana não está ligada a “pré-conceitos de um sujeito, mas muito mais à realidade histórica de seu ser, aquele 51 todo histórico de sentido no qual os sujeitos emergem como sujeitos”. Como bem alerta Lenio Streck, [...] o Dasein, diferentemente do sujeito solipsista que se basta em si, está sempre lançado na facticidade, compreendendo a si no encontro com os demais. Ou seja, para o Dasein o conhecer é uma experiência intersubjetiva, para o sujeito solipsista, não. O 52 sujeito solipsista limita as possibilidades do constrangimento vir à objetividade. Nas sempre precisas palavras de Ernildo Stein, em Gadamer, [...] empreende-se expor a existencialidade e a facticidade que nunca se supre na subjetividade. Somos, segundo a ideia central de Gadamer, antecipados em todo o nosso esforço de racionalidade por uma historicidade, e nunca pode ser recuperada numa transparência. Assim, Gadamer envolve o todo do momento da história e da Página 9

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cultura humanas numa dimensão que sempre determina como um acontecer da tradição, e sempre as abrange numa compreensão prévia que pode ser determinada como a historicidade do mundo vivido. A obra de Gadamer, portanto, faz parte de um outro tipo de análise filosófica, que não mergulha no mundo, mas o envolve no todo de uma hermenêutica filosófica que abrange, de modo envolvente, toda a interpretação da cultura. Com Gadamer estamos situados diante da tarefa de compreender aquilo que se 53 desenvolve como um único grande texto cuja compreensão jamais podemos esgotar. E essa tradição, presente em Gadamer como o ponto de partida de todo e qualquer conhecimento, é inteiramente percebida e expressada justamente pela linguagem, que, como introduzido por Heidegger, é condição de possibilidade de todo o conhecer humano. É nesse sentido que mencionamos que “temos acesso às coisas e chegamos a 54 conhecê-las porque temos palavras para mencioná-las” (que vale também para a tradição). Nesse exato sentido deve ser interpretada a afirmação de Vilém Flusser de que “a língua, tal qual a somos, tal qual ela se derramou até nós para formar-nos, é o acúmulo de toda a sabedoria, de todo o esforço criador, de todas as vitórias e de todas as 55 derrotas dos intelectos que nos precederam”. 56

Para o filósofo, a realidade se constitui no conjunto das línguas existentes no mundo. Em poucas palavras, “Os dados brutos [entes] se realizam somente quando articulados em palavra”; “cada língua por si é o lugar onde os dados brutos e intelectos se 57 realizam”. Daí porque, na poética (para usar um termo do próprio filósofo) colocação de Flusser: Todos os nossos pensamentos, dos quais nos compomos, carregam a marca de nossos antecessores, tanto em seus conceitos (palavras) como em sua estrutura. Cada palavra, cada forma gramatical é uma mensagem que nos chega do fundo do poço da história, e por meio de cada palavra e cada forma gramatical a história conversa conosco. A procura de restos arqueológicos e históricos nas cinzas da civilização que as disciplinas históricas estão empreendendo é incomparavelmente menos significativa do que seria uma pesquisa histórica das palavras e das formas e regras gramaticais dentro do nosso intelecto. Cada um de nós, sendo intelecto, é por isso uma formação viva de história e 58 de arqueologia. A linguagem, contudo – e na linha do que de certa forma já apresentavam Heidegger e Gadamer com o círculo hermenêutico e a facticidade e existência do Dasein – não é apenas uma realização do passado, mas, também uma criação para o futuro. Nesse sentido, também com Flusser: Cada palavra, cada forma gramatical é não somente um acumulador do passado, mas também um gerador de todo o futuro. Cada palavra é uma obra de arte projetada para dentro da realidade da conversação a partir do indizível em cujo aperfeiçoamento colaboraram as gerações incontáveis dos intelectos em conversação e a qual nos é confiada pela conversação a fim de que a aperfeiçoemos ainda mais e a transmitamos aos que viverão, para servir-lhes de instrumento em sua busca do indizível. É a partir desse pensamento que Flusser irá concluir que o mundo vive, portanto, em 59 uma “grande conversação” , intersubjetiva e intergeracional, em que a língua compõe a nossa realidade. Diante de toda a virada ontológico-linguística-hermenêutica ocorrida na Filosofia no Século XX, e das contribuições de Flusser para o esclarecimento do novo paradigma hermenêutico em que vivemos, podemos concluir que todo o conhecimento humano está na linguagem e é linguagem, pois tem a linguagem como sua condição de possibilidade. Página 10

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Nessa perspectiva, não escapa o Direito do mesmo destino, devendo ser compreendido enquanto linguagem, inserido num paradigma maior da hermenêutica filosófica. Isso faz com que, nas palavras de José Lamego, surjam oposições a teorias do direito “convencionais” ou semânticas” a partir da “assunção rigorosa dos pressupostos de uma 60 Hermenêutica de cariz existencial-ontológico” e, mais do que isso, traz profundas alterações “práticas” na sua efetivação. Passamos, portanto, na parte final deste estudo, a introduzir as principais implicações jurídicas que esse paradigma filosófico trouxe à Teoria e à prática jurídicas. 6.Conclusão – o lugar da linguagem no Direito e o Direito enquanto linguagem num paradigma hermenêutico Ao se perguntar a respeito do lugar da linguagem no Direito, considerando toda a “reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea” (para usar o termo de 61 Manfredo Araújo de Oliveira ) que este trabalho procurou relatar, somos obrigados a reconhecer que de mero instrumento auxiliar ao conhecimento e às suas diferentes disciplinas (por exemplo, o Direito), a linguagem passa a ser condição de possibilidade de todo o conhecimento e geradora do mundo. Assim, a única resposta possível a essa pergunta passa a ser o reconhecimento da linguagem como o lugar, no sentido Heideggeriano, de realização do Direito, de sua constituição. O Direito só é na linguagem e, portanto, não mais deve ser “interpretado” com base em paradigmas subjetivistas ou objetivistas, mas, sim, utilizando-se de uma fundamentação fenomenológica-hermenêutica, em uma “hermenêutica jurídica” de 62 definição Gadameriana. Mas o que isso significa? Primeiramente, no plano da fundamentação da interpretação jurídica, leciona Georges Abboud que, a partir do giro ontológico-linguístico, [...] “o direito, quando visualizado como linguagem, não pode simplesmente ser instrumentalizado, sob pena de ser transformado em mera ferramenta. Não podemos fazer o direito dizer apenas o que 63 queremos.” A partir da Hermenêutica filosófica, somos obrigados a levar em conta “toda a dimensão histórico-interpretativa que está por trás de cada conceito jurídico”, pois, a cada novo 64 conhecer, “já somos tomados pela dimensão linguística do direito”, que nos antecede. Já no plano da Teoria do Direito, José Lamego coloca que a principal conquista do “acesso hermenêutico ao Direito” envolve “a superação do paradigma observacional – fundado num ponto de vista estritamente ‘externo’ – que caracteriza o sociologismo jurídico”, com o que acredita ser possível superar “modelos simples” de teoria jurídica, 65 que reduzem a norma a uma mera entidade linguística. Neste plano, um dos coautores já teve a oportunidade de acrescentar que, ante o acesso hermenêutico ao Direito, “as teorias [convencionais] do direito (de Kelsen a Hart) 66 entram nos trilhos desse giro linguístico” e precisam se modernizar, se reinventar, para se adequar ao novo paradigma filosófico e superar o velho (e superado) esquema interpretativo baseado numa relação relativista de sujeito-objeto. E isso porque – e aqui já ingressamos no campo da prática – “ignorar a diferença ontológica [no conhecimento] e todos seus desdobramentos é condição essencial para [a manutenção de] diversos equívocos que ainda permeiam nossa dogmática jurídica”, tais como [...] a não compreensão da distinção entre vigência e validade; crença equivocada na possibilidade da distinção entre vigência e validade; ingênua crença de que ainda há [ou se poderia falar em] silogismos; falsa suposição de que é possível decidir e depois buscar o fundamento; cisão pura entre questão de fato e questão de direito; [a defesa Página 11

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de que] ato de decidir é ato de vontade,

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ou, ainda, crença de que ainda se pode falar em interpretação de normas como revelação da vontade da lei (voluntas legis) ou vontade do legislador (volunta legislatoris 68 ) ou a cisão prévia de casos jurídicos na dualidade de fáceis/difíceis (easy/hard cases). O ponto fundamental de estofo do acesso hermenêutico ao direito – que, aliás, é capaz de resolver todos os pontos supra citados – , está no reconhecimento de que “as normas jurídicas não são capazes de antecipar totalmente a multiplicidade de suas possibilidades de uso e aplicação, elas permanecem incompletas ou, ao menos, carentes de 69 interpretação” , interpretação essa que deverá ser realizada como ato de conhecimento hermenêutico, concretizada ante o caso concreto (ainda que de forma fictícia): devemos deixar que os casos e os institutos jurídicos nos digam algo, nos digam seu ser, para que possamos conhecê-los em sua complexidade e historicidade. Afinal – conforme já concluímos, [...] se o direito é linguagem e na linguagem e se o problema do compreender é determinante para a formatação do sentido que se projeta dos enunciados jurídicos (textos normativos), toda questão jurídica deve passar pela exploração deste “elemento 70 hermenêutico” que caracteriza a experiência jurídica. No âmbito dos tribunais, isso significa dizer que, em se admitindo o acesso hermenêutico ao Direito, não podemos mais aceitar conviver com interpretações arbitrárias a respeito dos institutos e conceitos jurídicos; entre dezenas de outros graves problemas que enfrentamos hodiernamente no âmbito da concretização do direito brasileiro. Na verdade, ensina-nos Lenio Streck que, “a partir da hermenêutica, não há mais espaço para qualquer tipo de raciocínios que levam à discricionariedade judicial, justamente pelo fato de ter superado o problema filosófico que aí se instaura, o solipsismo”. E isso se dá porque com a hermenêutica se tenta controlar o subjetivismo a partir “da força da 71 tradição, do círculo hermenêutico e da incindibilidade entre interpretação e aplicação”. Em resumo, sabermos situar o lugar da linguagem no direito constitui premissa necessária para compreendermos o que consideramos como direito. Vale dizer, direito enquanto linguagem (re)produzido pela sociedade e por instituições democráticas em um contexto civilizatório e histórico de uma determinada comunidade. Compreender a correta posição da linguagem no direito nos permite superar visões obsoletas do fenômeno jurídico ora reduzindo-o exclusivamente à norma, à lei, à decisão judicial ou pior, à vontade política do detentor do poder ou ao voluntarismo do aplicador. Se não ajustarmos nossa bússola interpretativa acerca da localização da linguagem no direito, continuaremos incorrendo nos seguintes equívocos: a) confusão entre texto e norma; b) interpretac�ão como ato revelador de vontade, ora do legislador ora da própria lei; c) sentenc�a judicial como processo interpretativo meramente silogístico em que por simples subsunc�ão o suporte fático é normatizado, dando origem, assim, à decisão judicial; d) direito é aquilo que os Tribunais dizem que é; e) teoria do direito tem função meramente descritiva e não corretiva; f) impossibilidade de sistematização da relação entre direito e moral; g) possibilidade de se decidir discricionariamente; h) é legítimo decidir e depois buscar fundamento; i) não compreensão do paradigma da autonomia do direito; j) acreditar na pura dicotomia entre questão de fato e questão de direito como se existisse o puro fato e o puro direito; k) crer na existência e verificação da verdade real no processo; entre outros anacronismos e sincretismos constantemente utilizados na prática judicial brasileira. Portanto, toda essa revolução na filosofia de que este breve estudo pretendeu tratar está na base do nascimento de novas teorias do direito a partir da segunda metade do Século XX, que, ainda que de maneira parcialmente imprecisa e insuficiente, podem ser classificadas de pós-positivistas (para usar o termo cunhado por Friedrich Muller), ou Página 12

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“além-positivistas”, como preferiria o jusfilósofo. As bases do pensamento dos diversos juristas que a compõem (e inclusive o (des)cabimento e/ou a (im)precisão da alcunha de “pós-positivismo” para essas teorias) são assuntos, contudo, que poderão ser melhor abordados em outros estudos, oportunamente desenvolvidos e publicados. 7.Referências bibiográficas ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2018. ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. São Paulo: Ed. RT, 2013.

Tomaz

de.

FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2007. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Trad. de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópoles: Vozes, 1999. LAMEGO, José. Hermenêutica e Jurisprudência – Análise de uma “Recepção”. Lisboa: Fragmentos, 1990. LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. Trad. de Anoar Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Linguístico-Pragmática Contemporânea. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

na

Filosofia

STEIN, Ernildo. A Caminho do Paradigma Hermenêutico. Ensaios e Conferências. 2. ed. Injuí: Unijuí, 2017. STEIN, Ernildo. Seis Estudos sobre “Ser e Tempo”(Martin Heidegger). Petrópolis: Vozes, 1988. STEGMULLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea – Introdução Crítica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Jurisdição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. VESTING, Thomas. Teoria do Direito. Uma Introdução. São Paulo: Saraiva, 2015. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. de M. S. Lourenço. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002.

1 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia Contemporânea. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 17. 2 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 18. 3 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 22. 4 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 32. 5 LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. Trad. de Anoar Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999. Cap. I à III, p. 148-149. Página 13

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6 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 35. 7 Sobre o tema, cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., Parte I – a semântica tradicional, em especial, p. 35-112, passim. 8 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 36. 9 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 96. 10 ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2018. p. 187. 11 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 121. 12 Idem. 13 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 125. 14 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 3. ed. Trad. de M. S. Lourenço. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002. p. 189-190. 15 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 130-131. 16 Idem. 17 WITTGENSTEIN, Ludwig. Op. cit., p. 207. 18 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 128. 19 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 127-128. 20 STEIN, Ernildo. A Caminho do Paradigma Hermenêutico. Ensaios e Conferências. 2. ed. Injuí: Unijuí, 2017. p. 92. 21 Cf. LOCKE, John. Op. cit., Cap. I a III. 22 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Jurisdição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 98. 23 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 136. 24 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 139. 25 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 141. 26 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 143. 27 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 146. 28 LAMEGO, José. Hermenêutica e Jurisprudência – Análise de uma “Recepção”. Lisboa: Fragmentos, 1990. p. 132-134. 29 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. São Paulo: Ed. RT, 2013. p. 351. 30 Idem. 31 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Página 14

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Forense, 2002. p. 87-100. 32 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 355-356. 33 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 362. 34 ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2018. p. 190. 35 Cf., a este respeito, falando sobre o paradigma anterior: “num plano de impostação que é ainda o da Hermenêutica historicista, a atitude ‘interpretativa’ ou ‘compreensiva’ ( verstehend) sublinha que a determinação do sentido das práticas e comportamentos humanos só pode ser cabalmente empreendida mediante a rejeição de um paradigma observacional e de um ponto de vista puramente ‘externo’ [...]”. LAMEGO, José. Op. cit., p. 110. 36 Para fins deste artigo, traduziremos Dasein como “Ser-aí”. E, ainda sobre a terminologia do “ser”, cf. FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2007. Cap. II. item 6. p. 115-121. 37 ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2018. p. 190. 38 Idem. 39 STEGMULLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea – Introdução Crítica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 115. 40 STEIN, Ernildo. Op. cit., p. 109-110. 41 STEIN, Ernildo. Op. cit., p. 112. 42 LAMEGO, José. Op. cit., p. 134-135. 43 STEIN, Ernildo. Op. cit., p. 95. 44 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 375. 45 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 374. 46 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 372. 47 STEIN, Ernildo. Op. cit., p. 164. 48 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 206. 49 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 375. 50 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 382. 51 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., p. 229. Página 15

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52 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Jurisdição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 107. Sobre o “sujeito solipsista”, conferir p. 107-109. 53 STEIN, Ernildo. Op. cit., p. 156-157. 54 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 362. 55 FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2007. p. 188. 56 FLUSSER, Vilém. Op. cit., p. 53. 57 Idem. 58 FLUSSER, Vilém. Op. cit., p. 188. 59 FLUSSER, Vilém. Op. cit., p. 201. 60 LAMEGO, José. Op. cit., p. 91. 61 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. cit., passim. 62 Sobre hermenêutica filosófica e hermenêutica jurídica, cf. VESTING, Thomas. Teoria do Direito. Uma Introdução. São Paulo: Saraiva, 2015. Cap. 6, p. 230-246. 63 ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2018. p. 189. 64 Idem. 65 LAMEGO, José. Op. cit., p. 102. 66 ABBOUD, Georges. Op. cit., 189. 67 ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 191. 68 ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 194. 69 VESTING, Thomas. Op. cit., p. 211. 70 ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 193 71 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Jurisdição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 110.

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