O MEL E A CICUTA ALBERTO MADEIRA
“O que mais nos interessa na História, a nós que não somos historiadores, é o lado pitoresco e psicológico”. Henri Robert, da Academia Francesa
À minha irmã Maria do Carmo Madeira Portella, a cujo estímulo fraternal devo a publicação de “O Mel e a Cicuta”. É grande também o débito para com a minha filha Claudia Virmond Madeira pelos ajustes e sugestões feitos no decorrer do seu trabalho de revisão do original deste livro.
PREFÁCIO
Platão, depois da morte de Sócrates, narra o professor espanhol Julian Marias, afastouse de Atenas com asco e indignação, e decidiu realizar seu grande sonho político em Siracusa, grande e populosa cidade do sul da Itália Grega. “Foram quarenta anos destinados a essa empresa: três viagens à Sicília, com travessias perigosas por mares em guerra, prisões, escravidão, ameaças de morte e intrigas palacianas. Um jogo arriscado com os tiranos, entre o temor e a esperança, com o apoio apenas do seu grande discípulo Dion”. Até aqui Julian Marias.
Os acontecimentos desta odisséia platônica, despida de dissertações filosóficas, constituem, por si só, um formidável romance de aventuras, um relato de sedutora beleza e misteriosas emoções que poderia ter sido escrito por um ficcionista como Daniel Defoe ou Herman Melville.
Parra narrar estes eventos, raros na vida de um filósofo e comuns aos navegantes e descobridores, tomei emprestado o nome de Aristipo de Cirene, um filósofo menor, divergente do grupo socrático, cujas obras não chegaram até nós. Aristipo, entretanto, é citado por seus contemporâneos como um crítico irreverente e mordaz de sua época, uma espécie de Voltaire da Antigüidade. Este pensador morreu sem saber que lançara as
sementes do “epicurismo” moderado, sabedoria que busca conter o sofrimento, evitando os excessos emocionais e físicos.
Will Durant relata que Aristipo era fisicamente belo, querido das mulheres, requintado de maneiras, hábil no falar e, por onde passava, ia conquistando simpatias. Em Rodes, náufrago e sem vintém, dirigiu-se a um ginásio, fez discursos e, a tal ponto seduziu os ouvintes, que eles lhe forneceram todo o conforto possível, o que levou Aristipo a observar que os pais deviam suprir os filhos com essas riquezas (sabedoria e filosofia), bens que podem ser salvos no caso de naufrágio. Diz, ainda, Durant que Aristipo suportava com igual graça a pobreza e a riqueza. Quando o tirano Dionísio de Siracusa perguntou-lhe por que os filósofos batem às portas dos poderosos enquanto estes não procuram os filósofos, Aristipo respondeu: “Os filósofos sabem o que lhes falta, os ricos não”.
Como este livro foi supostamente escrito por um homem da Antigüidade, com o objetivo de criar atmosfera de época, tentei imitar, com moderação, o estilo dos escritores antigos, conforme transparece nas edições vertidas para o nosso idioma. Algumas expressões destas traduções foram usadas, sempre que as mesmas aparecem em diferentes traduções, o que caracteriza maneira própria de expressar-se do homem antigo, como ocorre com nossas expressões idiomáticas. Sei que enfrento um desafio, mas Chesterton lembra que até um tiro que falha se enobrece se for disparado em um duelo.
O AUTOR
O GOLPE DE ESTADO Dizem em Atenas que na política os bons são virtuosos e os maus são cruéis, como se o mesmo terreno produzisse o saboroso mel e a mortífera cicuta. (1)
O macedônio Aristóteles, filho de Nicômaco, e o mais talentoso discípulo de Platão, dizia que para fazer política o homem tem que se colocar abaixo ou acima de si mesmo: ser fera ou deus.
Nas minhas viagens por cidades gregas e bárbaras, testemunhei que na prática da política os povos são iguais, embora se diferenciem pelo idioma e pelos costumes. E continuarão a ser sempre assim.
Eu, Aristipo natural de Cirene, cidade grega bastante povoada no litoral da Líbia, vim para Atenas seduzido pela fama de Sócrates. Fui discípulo deste filósofo e depois fundei, na minha cidade natal, uma escola própria que tomou o nome de Escola Cirenaica.
Disto falarei mais adiante. Tenho pressa de narrar fatos mais importantes em virtude de uma enfermidade que contraí, de causa desconhecida, e que vem se agravando.
(1) Plutarco
como febre maleitosa, e traz o meu corpo debilitado. Decidi, por isso, omitir acontecimentos pessoais e evocar certos fatos ligados à cruel ditadura dos Trinta, imposta por Esparta que, pelos desmandos praticados por atenienses traidores que colaboraram com o inimigo, deixaram a vida em Atenas sempre alterada. Quero falar, também, da injusta condenação de Sócrates por uma democracia assustada, e das três viagens de Platão à Sicília.
Apenas para dar uma idéia ao leitor da atmosfera política que reinava naquela época, e dos sofrimentos que todos enfrentamos enquanto durou a Tirania dos Trinta, começo recordando aquela noite terrível quando o orador Lísias do partido democrata, perseguido pela ditadura, procurou-me. Lembro que reboava sobre Atenas violenta tempestade. Eu havia ceado e recostei-me ao leito acolchoado para ler. Adormeci. Tive, naquele momento, um sonho estranho: Apolo apareceu envolto em um manto surrado e envelhecido, de forma a causar horror, descarnado como uma múmia egípcia, e apontando o dedo para o alto, advertiu-me com voz cansada que mais parecia um sussurro: - De tantos males, Aristipo, a natureza cobre a velhice, que até aqueles que foram belos tornam-se feios. Lembra-te do conselho que te deu o mais sábio dos homens: os estudos nobres, na mocidade servem de adorno, na velhice, de refúgio.
O motivo pelo qual eu sabia que aquela figura decadente e crepuscular era Apolo ou Febo, como o chamam os deuses, sem que ele houvesse mencionado seu nome, nem por que se encontrava naquele mísero estado, e ainda o porquê de nada disso ter me causado estranheza enquanto sonhava, são coisas que a razão desconhece. Somente os mistérios dos sonhos explicam.
Um espantoso e violento estrondo reboou nos céus. Alguém sacudia o meu ombro. - Senhor! Senhor! Estão batendo à porta. Era meu servo Calímaco que me despertava. A noite estava vermelha de relâmpagos. O vento uivava lá fora. -Quem é? gritei junto à porta. - Lísias! sou eu, Lísias! Pedi que tornasse a dizer quem era para reconhecer bem a voz. Era, realmente, o orador Lísias do partido democrata.
Calímaco abriu a porta. A lufada de vento torceu a chama das candeias. Lísias, encharcado e transtornado, abraçou-me. - Aristipo, mataram meu irmão! -Polemarco? - Sim. E não penses que foi porque ele desaprovava o atual regime. Foi por causa de seus vinhedos e olivais. A ditadura precisa de dinheiro. Decidiram prender os cidadãos
que apoiavam a democracia, mas que possuíam fortuna, a fim de confiscar-lhes os bens. Prendem também gente comum para dar a impressão de que agem apenas por motivos políticos. Mataram meu irmão por causa da fortuna de nossa família. Eu serei o próximo. - Quem te disse? - Crítias, tio de Platão, tem cargo importante na junta ditatorial. Sabe que Platão me considera e mandou me avisar. Confesso que o pavor apoderou-se de mim, mas não podia abandonar Lísias naqueles apuros. Abracei-o, comovido. Fi-lo trocar a túnica e o manto, e ordenei às mulheres da casa que servissem ceia ao recém-chegado. Lísias pertencia a uma rica família siracusana. Era grande orador. Escrevia discursos para os chefes democratas que a ditadura derrubara. Fora discípulo do famoso sofista Protágoras na cidade de Tulii e não perdia as palestras do “professor”, como ele o chamava, sempre que este vinha à Atenas. Lísias acreditava de boa fé que aquele que fala bem, age bem. Jamais tentei demovê-lo desta crença ingênua.
Enquanto comia, Lísias narrou-me a desventura de sua família que, além de possuir terras e plantações, tinha também, em Atenas, uma oficina de escudos com cerca de duzentos escravos.
- Eratóstenes prendeu Polemarco na rua - continuou - e na prisão obrigaram-no a beber cicuta. Nem sequer disseram por que ele tinha que morrer. Meu irmão foi retirado morto da prisão, não obstante possuir três casas. De nenhuma deixaram sair o enterro. Alugaram um telheiro e ali o expuseram. À minha cunhada, arrancaram-lhe das orelhas os brincos de outro que ela trouxera da casa dos pais. Entraram nas nossas oficinas e arrolaram os escravos e todos os bens que ali encontraram. Perguntei a Eratóstenes se por dinheiro me salvaria. Respondeu-me que sim, se fosse quantia grossa. Prontifiqueime a dar um talento de prata. Abri meu cofre. Pisão avançou e carregou tudo o que este continha, apoderando-se, não da quantia ajustada, mas de três talentos de prata, doze mil dracmas e quatro jarros, de grande valor de estimação para a nossa família. E ainda disse que me desse por satisfeito em ter a vida poupada (2). E aqui estou eu, Aristipo. Em nome de nossa velha amizade, preciso de tua proteção. Acreditei em tudo que acabara de ouvir. Embora Lísias fosse propenso a denúncias extravagantes, eu sabia que os crimes dos Trinta eram de tal vulto, que nem
(2) Contra Eratóstenes, oração de Lísias mentindo se poderiam assacar fatos mais terríveis do que os que haviam acontecido, e nem querendo dizer a verdade, referir todos. (3) - Acalma-te, Lísias. Antes do amanhecer colocar-te-ei fora das muralhas e te levarei à quinta de um amigo. Possuo salvo-conduto por causa das aulas que dou fora da cidade. Tu, com manto e capuz, por causa do mau tempo, passarás por meu servo.
A tempestade amainava e o vinho embotava nossos sentidos. Esvaziada a jarra de vinho, logo adormecemos; Lísias, no quarto de hóspedes, e eu, ali mesmo, no leito acolchoado das minhas leituras.
Mal raiara o dia, meus escravos aparelharam duas montarias. Deixei minha filha Areta com a ama e partimos. A cidade estava envolta em uma névoa espessa sob um céu que a oprimia.
Cruzamos o umbral da grande porta sem dificuldades. Os campos estavam encharcados. Bestas carregadas de fardos molhados passavam por nós rumo à cidade. Olhando para trás vi, através da neblina, a cidade murada em todos os lados, cujas casas e templos, com suas colunatas, escalavam as verdes colinas. Um menino com túnica de lã de carneiro, presa em um só ombro, corria ao lado de um rebanho de cabras. Um cão nos acompanhou por algum tempo latindo. Carros de boi chiavam, transportando cereais para o mercado. Ao longo da estrada encontrávamos, de quando em vez, túmulos de mortos esquecidos, cobertos pela vegetação.
(3) Idem
Logo que deixamos para trás as ricas vilas dos nobres retirados da vida pública, moderei a andadura do cavalo para emparelhar com o de Lísias, que me seguia cabisbaixo, encapuzado e silencioso como um servo. Precisava colocar meu amigo a par da personalidade de Timon de Atenas, aquele que ia ser seu hospedeiro.
TIMON DE ATENAS Timon de Atenas era um tipo curioso. Os infortúnios da nossa cidade e a perda da fortuna inspiraram-lhe profundo ódio contra o gênero humano. Tornou-se um impiedoso misantropo. Dizia-se filósofo, seguidor de Heráclito de Héfeso, mas não passava de um charlatão. Nos tempos da opulência, conquistara a frívola sociedade ateniense com banquetes aparatosos, aos quais concorriam poetas, músicos, políticos e prostitutas famosas. Estas festas terminavam em bacanais, com homens idosos possuindo formosos adolescentes e mulheres lascivas, deitadas em esteiras, agarradas às próprias amigas. No meio destes tratantes amáveis, Timon, nu, com um enorme membro viril, taça de vinho na mão, cantava versos obscenos, enfim, coisas que neste livro não cabe narrar.
Desde que Timon perdera o patrimônio nos azares do comércio e fora processado por abuso de confiança e malversação do dinheiro público, praticada nos altos cargos que ocupara, os amigos desapareceram. Timon caíra na miséria. Eu, de quando em vez, enviava-lhe dinheiro, lembrando-me de que em outros tempos ele ajudara Sócrates. Há dois anos, o misantropo vivia na companhia de uma escrava síria, numa cabana de troncos no meio de uma espessa floresta, distante meia jornada de Atenas.
Timon, antes de entregar aos credores sua luxuosa casa, fora ao mercado na hora mais concorrida e, subindo num carro de boi, chamou o povo aos gritos. Todos acorreram curiosos, visto que Timon há muito que não falava com ninguém. -Vou entregar minha casa a dois miseráveis agiotas - anunciou ele - mas devo antes, a pedido destes pusilânimes credores, derrubar uma grande figueira que fica no fundo do quintal, cujas raízes estão pondo em risco as paredes da casa. Eis porque vos venho prevenir das minhas intenções, a fim de que os que queiram se enforcar apressem-se a fazê-lo, antes da figueira ser derrubada.
Ao deixar a cidade, Timon prestou homenagem a Alcebíades. Quando lhe perguntaram por que se curvava até o chão, quando encontrava este general, Timon explicou: - Presto a Alcebíades todas as homenagens porque sei que por obra sua hão de os atenienses sofrer grandes males e ter grandes perdas.
O oráculo délfico não teria vaticinado sentença tão profética. Alcebíades foi, realmente, a maior praga política que caiu sobre Atenas.
Voltemos à Lísias. Com os animais emparelhados, entramos numa floresta úmida e espessa. - Tu achas, Aristipo - perguntou-me o orador - que este homem de obscuro entendimento possa compreender um pensador como Heráclito de Éfeso? - Copiam-se os defeitos dos grandes homens quando não podemos imitar-lhes as virtudes. Tu sabes, Lísias, que Heráclito foi um homem de paixões ardentes e, também, um misantropo. Seus pensamentos eram elevados, mas possuía temperamento orgulhoso e cheio de desprezo pelos outros, como transparece em muitos de seus escritos. Considerava sua cidade natal totalmente depravada. Os efésios, em sua opinião, deviam ser todos enforcados, poupados, apenas, os imberbes. E isto porque os habitantes de Éfeso haviam desterrado Hermedoro, que Heráclito considerava o melhor de todos os cidadãos. Ele achava também que Homero merecia ter sido expulso dos certames dos poetas e açoitado, e Arquíloco, igualmente. Este aspecto contraditório dos pensamentos de Heráclito abalou a mente de Timon, propensa a idéias paradoxais. Mas não te preocupes, Lísias, tu vais encontrar um homem mergulhado numa raiva amarga, mas que te hospedará pelo tempo necessário, a preço de moeda.
A cabana de Timon apareceu oculta pelas ramagens das árvores. Ouvindo o tropear dos cavalos, Timon assomou à porta da choça, alto, esguio, envolto num esburacado manto de cor indefinida, barba e cabelos crescidos, mãos nos quadris, na postura de quem aguarda intrusos.
Apeamos. Fiz as apresentações. Os olhos duros do misantropo observaram Lísias. Timon havia envelhecido. No seu rosto esquálido e barbudo viam-se, agora, apenas as duas expressões das máscaras cênicas do teatro grego que vem de Téspis: a da máscara satírica quando falava dos outros, e a da máscara trágica, quando falava de si mesmo.
Frio e desdenhoso, olhando de quando em vez a bolsa de moeda que eu trazia presa ao cinto, Timon não se furtou às leis da hospitalidade tão gratas ao povo grego. Logo ficou à vontade. Lísias era homem de falar festivo, e Timon conservara dos velhos tempos o respeito pelas coisas bem ditas.
Ceamos mais cedo, já que eu tinha pressa de voltar à cidade. Passadas as primeiras libações e amabilidades, Timon avisou à escrava: - O professor Aristipo é vegetariano. Traga-lhe capim. Comi de tudo com prudência e escolha. Em casa alheia prolongo a refeição, adotando a ordem comum. Ao entardecer voltei à Atenas. No mês seguinte enviei carta a Lísias, e dinheiro a Timon. De volta, meu escravo trouxe a resposta de Lísias. Estava ansioso por retornar a Atenas. Agradeceu-me o trato e os cuidados que dediquei a ele e à sua família. Contou-me que numa noite de luar dissera à Timon: - Que bela noite, Timon!
Ao que o misantropo lhe respondeu: - Bela seria se eu estivesse aqui sozinho. Decorridos alguns meses, Lísias pôde voltar a Atenas. Os motivos de sua volta devemse a Trasíbulo, de quem falarei adiante.
Interrompo o fio de minha narrativa para falar do destino de Timon de Atenas, visto que o leitor já está familiarizado com esta prolixa personagem. Timon sentia pela morte invencível aversão, acreditando que Atenas inteira alegrar-se-ia com seu desaparecimento do mundo dos vivos.
Este homem de ridículo pessimismo morreu aos setenta e oito anos de idade, sufocado de prazer entre as pernas da escrava síria. Deixou um pedido que não foi atendido. Queria ser sepultado à beira-mar, no ponto onde as ondas lambem as areias, para que os atenienses ignorassem o local de sua sepultura. Seu corpo foi largado numa cova em uma das espessas florestas da Ática.
Atenas ignorou sua morte. Eu o soube por intermédio de Astério, um agiota cretense que veio cobrar a dívida que o misantropo contraíra com ele, na qual eu fora honrado assim dissera Timon - como avalista. Não era quantia de dar cuidado.
SÓCRATES Quero falar agora dos acontecimentos que precederam a condenação de Sócrates e dos motivos que levaram a democracia ateniense, amedrontada e vacilante, a mandar para a morte o seu maior filósofo.
Peço aos deuses que me ajudem neste intento, pois não me surpreenderei se o leitor não me der crédito.
A Tirania dos Trinta, imposta à Atenas por Esparta, durou apenas um ano, mas neste curto período cometeu mais crimes do que déspotas de longa vida. Nesta época foi governada por colaboracionistas que se submeteram ao jugo espartano, mas foi um ateniense, Trasíbulo, filho de Lico, quem libertou Atenas dos ditadores. Esta figura merece ser admirada mais pelo mérito do que pela fortuna. Companheiro de Alcebíades na guerra do Peloponeso, conquistou pela bravura o posto de general. O próprio Alcebíades, que não primava pela modéstia, costumava dizer que nas vitórias conquistadas por ambos, ele devia muito a Trasíbulo enquanto que este nada lhe devia.
Quando declarou guerra à ditadura, Trasíbulo acusou os atenienses de falarem mais do que lutarem pela liberdade. Com apenas trinta companheiros, refugiou-se em Files, fortaleza da Ática. Quando se entrincheirou em Muníquia, já comandava setenta patriotas. Exército tão pequeno não preocupou a ditadura, o que foi fatal para os colaboracionistas. Este fato me leva a recordar aquela máxima que diz: “Na guerra nada se deve desprezar". Duas vezes apenas a ditadura entrou em combate com Trasíbulo e seus homens. No segundo combate, morreu Crítias, o mais cruel dos tiranos, tio de Platão e um dos piores discípulos de Sócrates.
Morto Crítias, os espartanos procuraram um acordo com Trasíbulo que determinava a anistia para os cidadãos atenienses, exceto para os trinta tiranos e os dez cidadãos que executavam suas ordens, e que seriam julgados por seus crimes. O tratado determinava que Atenas tivesse um governo democrata. Só então, Lísias pôde abandonar a companhia do excêntrico filósofo e voltar a Atenas, retomando posse de seus bens.
Trasíbulo, para cumprir a palavra e honrar a promessa de anistia, enfrentou ressentimentos de muitos atenienses que queriam se vingar das crueldades sofridas. Durante algum tempo, ele foi um dos chefes do novo governo, almejando. restaurar a democracia nos moldes de Péricles. Cedo decepcionou-se. Os demagogos logo dominaram a Assembléia do Povo.
Desiludido, abandonou a política e partiu para a Ásia, comandando uma expedição que tinha por objetivo reconquistar províncias perdidas. Na Cilícia, encontrando-se deficientemente guardado seu acampamento pelas sentinelas, fizeram os bárbaros uma investida noturna e o assassinaram em sua tenda. Assim, morreu o último dos autênticos democratas atenienses. (4) (4) Vida de Trasíbulo, de Cornélio Nepote
O domínio dos demagogos logo fez grassar a execrável corrupção. Só então o povo passou a entender melhor o sentido da palavra democracia e o valor de Péricles, que dominara Atenas pelo período de mais de uma geração. Acusado de almejar a ditadura, o estadista lograva arrasar seus adversários com sua oratória eloqüente sem, no entanto, recorrer à perseguição política. Mas não dava tréguas aos demagogos e corruptos, tornando-se senhor absoluto da Assembléia Popular. Só agora, cinqüenta anos depois, compreendia o povo que aquela autoridade, malvista em sua época fora, na verdade, o baluarte salvador da Constituição e do Estado.
Foi a democracia dos demagogos, e não a de Péricles, figura inesquecível para todos nós, que condenou Sócrates à morte. A crítica socrática aos maus governos tinha endereço certo. Havia um motivo político encapuzado dentro do processo movido contra ele. Preferiram acusar o filósofo de irreligiosidade e de corruptor da juventude. Para que a razão desta injusta acusação se conheça, passo agora a falar de Sócrates, o cidadão, o pai de família, o amigo e mestre.
Há na Grécia muitos Sócrates, alguns famosos - um que se dedicou à História, um outro que compunha interessantes epigramas, outro ainda que enaltecia os deuses e heróis mas este Sócrates de quem vou falar foi de todos o maior.
Falo daquele que nasceu em Alopeca, povoado da Ática, filho de Sofronisco, escultor e jardineiro e de uma parteira chamada Fenereta. Graças à sua precoce sagacidade, foi alvo, desde menino, da admiração de seus mestres. Anaxágoras, preceptor de Péricles, impressionou-se de tal forma com seu talento e espírito, que resolveu iniciá-lo nos estudos da Geometria e da Física. Com a condenação e exílio de Anaxágoras, Sócrates, adolescente, passou-se para as aulas de Arquelau, o físico, assim chamado por ter sido o último representante da Filosofia naturalista, aquela que estuda o universo. Mas Sócrates foi o primeiro filósofo que realmente incluiu a Moral no estudo da Filosofia - o que lhe foi fatal - e também o primeiro filósofo da Grécia que morreu condenado pela justiça. (5) Algumas observações de Arquelau em sua obra “Da Filosofia das Leis, do Bom e do Justo”, bem como aquela sua máxima, segundo a qual, “O justo e o injusto não estão na natureza, e sim nas leis” chamaram a atenção de Sócrates para o grave problema da moral daqueles que formulam as leis e dirigem o Estado. Sócrates morava em um casebre num bairro pobre de Atenas. Era casado com duas mulheres: Xantipa, pessoa de gênio difícil, a quem Sócrates suportava com paciência, e Mirto, filha de Aristides, o Justo, que nem dote tinha para o casamento. Os atenienses, querendo povoar a cidade depois de tantas guerras e epidemias, decretaram que um homem podia se casar com duas mulheres. De Xantipa, Sócrates teve Lamprocles, rapaz duro e insolente, a quem o pai tornou moderado para que respeitasse a mãe. De Mirto, mulher apática, teve dois filhos: Sofronisco e Menexeno. Mirto, depois do casamento, recebeu pensão do Estado, como reconhecimento da cidade pelos serviços prestados por seu ilustre pai. Eu ia muitas vezes à casa de Sócrates, e constatava que seus filhos demonstravam por ele grande afeto. O filósofo falava pouco de sua vida familiar. Uma vez, apenas, eu o ouvi dizer que tendo suportado Xantipa, estava apto a conviver com qualquer pessoa. Em outra ocasião, ouvi os dois discutindo e, quando Sócrates juntou-se a nós, Xantipa atirou-lhe uma bacia d’água. (5) Nota do Autor: Sócrates referia-se à moral subjetiva, isto é, o cumprimento do dever pela vontade, e não à moral objetiva, aquela que determina os costumes e as leis. É, entretanto, a primeira vez em que a consciência individual aparece na História humana, separada do Estado, da Polis. Por isso referi-me a essa idéia como fatal. - Depois da trovoada, a chuva - foi o comentário de Sócrates.
As discórdias domésticas, entretanto, não o abalavam. Conservava ânimo constante e amável. A um discípulo que lhe perguntou se o homem deve casar-se ou não, respondeu: “Te arrependerás se casares ou não.” Basta quanto à sua vida familiar.
Sócrates era homem de estatura mediana, ventre proeminente e de feições grosseiras. Costumavam compará-lo a Silene, velho sátiro que fora preceptor de Baco, cujo busto se encontra na rua das tavernas. O vulgo, incapaz de perceber a alma, se apega às aparências. Para seus discípulos, a fisionomia do mestre transmitia tranqüilidade e sabedoria.
O filósofo usava túnica presa num só ombro e andava descalço. No inverno, enrolava-se em um manto grosseiro. No exército, chamava a atenção de seus comandantes pela maneira como enfrentava o frio e a fome sem se queixar. Cuidava do corpo e era cauteloso com a alimentação. Xantipa, que era excelente cozinheira, nos servia excelentes jantares, sempre que lá íamos cear. Sócrates comia ervas, peixe e queijos. Vinho bebia misturado com dois terços de água. Era o suficiente para Xantipa queixarse. O marido desculpava-se dizendo que aquele que come com fome não necessita de comidas esquisitas e que ele comia para viver e não para comer. Para prolongar nossa permanência, Sócrates, depois da ceia, tocava lira e dançava ao som da flauta tocada por um de seus filhos. Moças que freqüentavam a casa, muito alegres, dançavam com ele.
É oportuno lembrar que Sócrates tinha saúde de ferro. Jamais caiu doente, não obstante as epidemias que grassavam em Atenas. Era comum vê-lo alhear-se, como se estivesse com o pensamento distante. Após essas ausências da mente costumava dizer coisas profundas e bem pensadas. Era muito cuidadoso em gastar dinheiro. Quando passávamos pela rua das tendas costumava dizer: “Tantas coisas de que eu não preciso...”
Este homem, o maior mestre de nosso tempo, jamais lecionava a troco de dinheiro. Nós, socráticos, o ajudávamos. Eu, que ensinava por estipêndio, trazia minha bolsa na cintura cheia de moedas, o que chamava sua atenção. Sócrates perguntou-me certa vez: - De onde tiras tanto dinheiro? - De onde tu não tiras nada - respondi.
Mas Platão, rico, era quem realmente provia todas as necessidades econômicas de seu mestre e o dinheiro rendia muito, tal a parcimônia de Sócrates em gastar. Timon de Atenas, com sua língua ferina dizia que Sócrates emprestava, a juros, o dinheiro que Platão lhe dava. Sócrates queixava-se: “Este não aprendeu a falar bem.”
Na guerra militou nos combates em Anfípolis, quando salvou Xenofonte, mais tarde seu discípulo, que caiu da montaria. Nos reveses dos combates, quando os atenienses fugiam em pânico, Sócrates recuava a passos lentos, voltando-se a todo momento para defender-se dos que tentavam golpeá-lo. Citado por heroísmo na expedição de Potidea, cedeu a honraria a Alcebíades, seu companheiro de tenda.
Dizia-se em Atenas que Sócrates ajudava Eurípedes na composição de suas tragédias. Vários poetas confirmaram isso. Aristófanes, em sua comédia “As nuvens”, diz: “Este Eurípedes famoso que escreve tragédias e o faz com o auxílio daquele filósofo que fala de todos os assuntos, e assim elas se tornam belas e sábias.” (6) (6) Sócrates, Diógenes Laércio. Os dois eram muito amigos e algumas vezes viajavam juntos. Tendo Eurípedes perguntado a Sócrates sobre as obras de Heráclito de Éfeso, o filósofo respondeu: - A parte que eu compreendi é boa. Acredito que a parte que eu não entendi também o seja. Para o mestre só havia um bem, a sabedoria, e um mal, a ignorância. Aristófanes, mordaz por natureza, costumava dizer que Sócrates era capaz de tornar boa as causas más, e vice-versa, visto que tinha a mesma força para persuadir como para dissuadir. Timon, em suas sátiras referia-se a Sócrates nos seguintes termos: “Aquele sábio aparente e simulador, burlador e semi-atenienese.”
Para nós, socráticos, a ironia do mestre não era burladora, e sim um método dialético. Como educador, Sócrates conseguia tornar moderada muita gente violenta por natureza, como aconteceu com seu filho mais velho que sempre fora grosseiro. Muitos jovens atenienses freqüentavam suas aulas, induzidos pelos pais, para aprender a não se exceder em nada. Dissuadiu o irmão de Platão de entrar na política, por considerá-lo incapaz, e induziu Carmides a dedicar-se à coisas pública, por considerá-lo apto para tal.
Sócrates detestava os sofistas, acusando-os de empregarem a dialética de má fé, como os comerciante fazem para vender suas mercadorias.Era orador veemente. Muitas vezes, durante as discussões, alterava-se de tal forma, que passava a dar murros na cabeça ou a puxar os poucos cabelos que possuía, o que levava muita gente a debochar dele. Mas o filósofo tinha paciência ilimitada para sofrer incompreensões e injustiças.
Era incansável quando se tratava de ajudar os amigos. Quando soube que Fédon, jovem de grande beleza, cujos pais Sócrates conhecera, fora vendido em Atenas como escravo, por ser prisioneiro de guerra, e forçado a se prostituir pelo próprio dono, o mestre conseguiu a importância necessária para o resgate, vindo a transformá-lo em um de seus melhores discípulos. Muitas vezes, Sócrates falava de um gênio que o inspirava. Nós sabíamos que este gênio era a inspiração ou intuição, e que a ele assim se referia, para facilitar o entendimento àqueles que se iniciavam nos estudos.
A vida de Sócrates começou a mudar quando Pítia, sacerdotisa do Templo de Delfos, testemunhou àquele oráculo o que todos na Grécia repetem: “Sócrates é o mais sábios dos homens.” Este oráculo desatou a inveja de muitos, entre eles os seus acusadores Melito, Anito e Licon. Os adversários políticos de Sócrates induziram estes três oportunistas a fazerem a acusação contra o filósofo. Deles falarei adiante.
Já os ditadores impostos por Esparta detestavam Sócrates, por ele haver se recusado a obedecê-los no caso de Leonte e de Salamina. Coubera ao filósofo, por sorteio, prender Leonte para ser executado. Como a pena era injusta, ele negou-se a cumprir a ordem, colocando em risco a própria vida. Os democratas também não o viam com bons olhos, em virtude das criticas constantes de Sócrates aos demagogos e corruptos que dominavam de forma nefasta a Assembléia do Povo. Daí a perseguição movida contra ele por simpatizantes das duas correntes. O motivo da acusação, puramente político, foi transformado numa denúncia em defesa da religião e dos costumes. É sobre seu julgamento que passo falar agora.
A acusação jurada contra Sócrates foi formulada por três cidadãos que, não podendo ser notados pelo mérito, o fizeram pela infâmia: Anito, Melito e Licon. Foi formulada nos seguintes termos: Sócrates quebrou as leis atenienses negando a existência dos deuses
que a cidade tanto venera, e age contra as mesmas leis, corrompendo a juventude. Anito representava os artesãos e magistrados do povo, Melito, os poetas, e Licon, os oradores.
Anito era um político ricaço que fracassara como general dez anos antes. Processado pela derrota, salvou-se, corrompendo os juízes. Abandonou o Partido Aristocrata e passou-se para o Partido Popular, tornando-se muito influente. Melito - este eu conheci pessoalmente - era um poeta de segunda ordem, um desequilibrado que vivia o drama cotidiano de conviver consigo mesmo. Quanto a Licon, escrevia discursos para os políticos carreiristas e não passava de um bajulador. Estes eram os homens que acusaram Sócrates de maquinar calamidades e revoluções. O tribunal foi convocado por meio de arautos e editais. Uma corte de justiça de quinhentos e trinta juízes se reuniu para o julgamento.
Platão era muito jovem naquela ocasião. Subiu ao púlpito e começou assim seu discurso: - Sendo eu, atenienses, o mais jovem dentre aqueles que neste lugar subiram... Os acusadores e seus companheiros começaram a bater os pés e a gritar: - Desce! Desce! Platão, que tinha voz débil, não conseguiu se fazer ouvir. Sócrates o fez descer do púlpito, abraçou-o, e ocupou a tribuna. Fez-se um profundo silêncio. O filósofo começou pedindo a atenção dos juízes, lembrando que o mérito do juiz é escutar; e o do orador, dizer a verdade. Num estilo franco e atrevido, fez uma defesa de grande beleza. Ele sabia, melhor do que ninguém, dispor e ordenar os argumentos com a maior perfeição. Rebateu, sem excessos, todas as acusações imputadas contra ele: - Das muitas aleivosias que os meus acusadores assacaram contra mim, uma sobretudo me assombrou: a recomendação de cautela a fim de não se deixar embair pelo orador formidável que sou! formidável? creio que esta gente considera formidável quem diz a verdade, eis o que me pareceu o maior descaramento. Verdade, senhores, eles não proferiram nenhuma, ou quase nenhuma. De mim, porém, ides ouvir a verdade inteira. E Sócrates leu de forma pausada a acusação que fora formulada contra ele: “Sócrates é réu de corromper a mocidade e de não crer nos deuses em que o povo crê, e sim em uma divindade nova! “
O mestre lembrou que qualquer um ali poderia perguntar: “Afinal, Sócrates, qual é tua ocupação" ? De onde procedem as calúnias a teu respeito? Tu não estarias aqui e não haveria esse falatório, se não tivesses uma ocupação muito fora do comum ou praticasses alguma extravagância. - Pois eu vos respondo - replicou - Para testemunhar a minha ciência, se é uma ciência, e qual é ela, vos trarei o deus de Delfos. Conhecestes Querofonte, de certo. Era meu amigo de infância e, também, amigo do partido do povo. Ele já morreu, mas seu filho se acha nesse tribunal e poderá confirmar o que vou dizer. Querofonte, tendo ido a Delfos, arriscou uma consulta ao oráculo. Perguntou se havia alguém mais sábio do que eu. Respondeu a sacerdotisa do templo que não havia ninguém mais sábio do que Sócrates. - O provável, senhores, é que, na realidade, sábio seja o deus que ditou o oráculo. Apolo quis dizer que pouco ou nenhum valor tem a sabedoria humana. E se usou meu nome, Sócrates, foi como se dissesse: “O mais sábio dentre vós é quem, como Sócrates, compreendeu que a sabedoria é verdadeiramente desprovida de valor.” O filósofo confessou então que a partir da consulta ao oráculo de Delfos, ficara apreensivo. Poetas e sábios rançosos passaram a ter aversão por ele. Seus acusadores que representavam estes cidadãos decidiram trazê-lo ao tribunal na suposição de lhe causarem dano, e não por sua maneira de pensar. - Imaginemos se dissésseis - conjecturou - “Sócrates, por ora, não atenderemos a acusação e te deixaremos ir, mas com a condição de abandonares suas investigações e a filosofia.” Pois eu vos responderia: “Enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações e de ministrar ensinamentos. E mais, minha inclinação para a filosofia é tão forte que negligenciei justamente naquilo que cuida toda gente: riquezas, negócios, postos militares, tribunas, funções públicas, altos cargos, conchavos e lutas próprias da políticas, enfim, coisas nas quais eu me considero por demais escrupuloso para me imiscuir sem me perder.”
Sócrates lembrou ainda ao tribunal que nas guerras em que participou, quando jovem, permaneceu no posto designado pelos chefes e ali enfrentou a morte. Assim aconteceu na expedição de Anfípolis e na batalha naval de Potidea. Quando se toma uma posição qualquer que seja, porque tal foi a ordem do comandante ou da consciência, nesta situação deve-se permanecer diante dos perigos, sem considerar o risco de morte ou qualquer outro. Lembrou que em toda a sua vida atuou na política só quando lhe coube,
por sorteio, fazer parte da delegação que age em nome do governo, delegação esta que chamamos de prítanes. (7)
(7) Como na Grécia antiga não havia as magistraturas de um estado moderno para a execução das ordens emanadas do poder público, o governo, por sorteio, designava uma comissão chamada de “prítanes” destinada a facilitar o andamentos das resoluções políticas.
- Naquela ocasião - advertiu - fui o único dos delegados que se opôs às ações ilegais tanto no regime democrático como na ditadura dos Trinta. Esses tiranos ordenaram que nossos delegados fossem a Salamina buscar Leonte Salamínio para ser condenado à morte. Os ditadores se valiam de uma delegação em certas ações a fim de comprometer o maior número de pessoas na prática de uma iniqüidade. Pois bem, por atos, e não por palavras, neguei-me a praticar qualquer injustiça. Quatro delegados, entretanto, sorteados como eu fui, dirigiram-se a Salamina e trouxeram Leonte para morrer. Eu permaneci em casa. Quiseram prender-me. Achei do meu dever correr o perigo da prisão e da morte, mas ficar do lado da lei e da justiça. Bem poderia ter sido morto, se a ditadura não tivesse caído. Há muitas testemunhas deste fato aqui no tribunal e na cidade. - Pode ser - avisou ainda o réu - que aborrecidos porque eu vos despertei, como fazem as abelhas com uma ferroada, deis ouvidos à acusação e me condeneis levianamente à morte. Depois voltaríeis a dormir o resta da vida, salvo se o deus, cuidadoso de vós, vos enviar algum outro, que se dedique inteiramente à cidade, e que não cesse de vos despertar, persuadir e repreender. Mas ficai certos de uma coisa: se me condenardes por ser eu como sou, causareis a vós próprios maior dano do que a mim. Neste momento, atenienses, longe de atuar na minha defesa, como poderíeis crer, atuo na vossa, evitando que, com a minha condenação, cometais uma falta para com a dádiva que recebemos do deus. Assim a sentença que este tribunal decidir não deve ser, somente, a melhor para mim. Deve ser, também, a melhor para vós. Os juízes, perdidos nas astúcias forenses, pareciam indecisos. Inquietos, falavam uns com os outros com voz ciciada. Deviam condenar Sócrates à morte ou ao pagamento de multa? (8)
(8) A multa imposta nos casos de indignidade cívica, na Grécia antiga, era uma degradação. Sócrates desceu da tribuna e disse: - Se eu tivesse dinheiro, estipularia uma multa dentro das minhas posses. Não sofreria nada com isso. Infelizmente não tenho mesmo, salvo se quiserdes estipular tanto quanto eu possa pagar. Talvez possa pagar uma mina de prata. É quanto estipulo no momento.
Platão aproximou-se do mestre e falou-lhe ao ouvido. - Aqui está Platão, atenienses - disse Sócrates apontando para seu discípulo Juntamente com Críton, Critóbulo e Apolodoro pede que se estipule trinta minas, sob sua fiança. Estipulo, pois essa quantia. Serão fiadores estas pessoas idôneas.
O presidente do tribunal, o mais idoso dos juízes, com voz de homem fatigado ao extremo, pediu que se fizesse a votação. Um a um, em fila, os juízes depositaram seus votos na urna. Os que queriam a condenação de Sócrates colocavam pedrinhas pretas, os que o absolviam, pedrinhas brancas.
Sócrates foi condenado à morte por duzentos e oitenta votos, trinta a mais do que os que o absolviam. Platão quis falar, mas a voz travou-se-lhe na garganta. Voltou para seu lugar e chorou. Sócrates estava pálido e falou de forma pausada. - Para que eu me conforme com este resultado concorrem muitas razões, entre elas a de não se tratar de fato inesperado. Eu imaginava que a decisão seria esta, não por pequena, mas por grande margem. Constato que com a transposição de apenas trinta votos, eu estaria absolvido. Jogando para o ombro a dobra do manto, o filósofo voltou-se para os cidadãos presentes e, agora com voz hostil e fria, continuou: - Nas batalhas, atenienses, muitas vezes se pode escapar à morte arrojando as armas e suplicando piedade aos inimigos. De mim não ouvireis lamentos e gemidos, coisas que declaro indignas. Não é difícil escapar à morte, difícil é escapar da maldade. Voltando-se para os juízes, advertiu: - Eis-me chegado àquele momento em que os homens vaticinam melhor, quando estão para morrer. Eu vos afianço, homens que me mandais matar, que o castigo vos alcançará logo após a minha morte. Serão numerosos os que vos pedirão contas. Até
agora eu os continha e vós não percebíeis. Eles serão tão mais importunos, quanto mais jovens são. À minoria que votara pela sua absolvição, disse, para seu consolo: - A morte, quer seja aniquilamento do ser ou ingresso em outra vida imortal não é um mal, pois que não há males para o homem bom, vivo ou morto. Peço apenas que tratem meus filhos como sempre tratei meus concidadãos: corrigindo-os e estimulando-os a serem virtuosos. E concluiu: - Já é hora de partirmos, eu, para a morte e vós, para a vida. A quem caberá melhor sorte, ninguém sabe, somente as divindades. Dois oficiais da Guarda Carcerária levaram Sócrates de volta à prisão. Uma peregrinação a Delfos, em homenagem a Apolo, adiou a execução de Sócrates. Manda uma lei que, a partir do momento em que se começa a tratar de uma peregrinação religiosa, enquanto ela durar, a cidade não pode ser maculada por nenhuma execução capital em nome do povo.
Com o término da peregrinação, os magistrados ordenaram a execução. Na véspera da chegada do barco, Críton anunciou-lhe: - Amanhã terás que morrer. - Em boa hora - respondeu o filósofo - se assim o desejarem os deuses, assim seja. Críton suplicou-lhe que aceitasse a fuga que os amigos lhe haviam preparado. - Não se atraiçoe a si próprio, nem aos filhos e amigos recusando o nosso plano. - A única coisa que importa - redargüiu Sócrates - é viver honestamente, sem cometer injustiça, nem mesmo para retribuir uma injustiça recebida. Se no momento da fuga, as leis me fossem apresentadas e me perguntassem se, subtraindo-me ao seu mandato, desejo desprezá-las, e cometer a maior impiedade contra a pátria, que poderia eu responder? Críton deu-se por vencido. - Basta, pois, Críton, e vamos pelo caminho por onde os deuses nos levam. (9) As autoridades entregaram uma lista designando as pessoas que podiam acompanhar Sócrates em seu último dia de vida. Além dos familiares do condenado, autorizaram Fédon a escolher doze discípulos que poderiam ficar no cárcere e acompanhar a execução. Fédon, o escravo que Sócrates libertara, havia se tornado um de seus mais ardentes seguidores. Platão, enfermo e submetido a grande tensão emocional, não
compareceu. Eu e Colombroto estávamos viajando. Coube-nos, por sorteio, fazer parte de uma delegação à cidade de Engina.
Fédon contou-nos que, no dia da execução encontrara Sócrates tranqüilo, embora sofrendo de uma dificuldade para urinar. Recordo-me que o mestre queixava-se, há muito, da eliminação lenta e dolorosa da urina. (10) (9) Foram usados trechos da “Defesa de Sócrates” escrita por Platão (col. “Os Pensadores, trad. Jaime Bruno, Ed. Victor Civita e de “Sócrates”, R. Mondolfo, trad. Lycurgo G. Costa, ed. MestreJou. (10) Carta de Platão
Ao ver Fédon e os outros discípulos, mostrou-se alegre. As mulheres de sua casa estavam ao seu lado. Xantipa teve uma crise de nervos e, com a chegada dos amigos do marido, começaram a chover maldições e palavrórios como só ela sabia proferir. Gritava que a condenação de Sócrates fora injusta. Sócrates procurava acalmá-la dizendo: “Querias que a minha morte fosse justa, mulher? “ Vendo que Xantipa se tornava cada vez mais enfurecida, o filósofo pediu a Críton que levasse a mulher para casa. Em seguida, com suavidade, pediu a Mirto e aos filhos que o deixassem a sós com os discípulos. A mulher e os filhos o abraçaram, chorando, e se retiraram.
O carcereiro aproximou-se e pediu a Fédon que não deixasse Sócrates falar muito. - Falando muito - explicou o homem - a pessoas se aquece, contrariando a ação do veneno. Caso ele fale em demasia - insistiu - a morte será mais lenta e talvez seja necessário dar duas ou três doses, para o veneno surtir efeito. Depois de tirar as correntes do prisioneiro, o carcereiro se retirou.
Sócrates, esfregando as pernas, queixou-se de entorpecimento dos membros. Pediu aos discípulos que se sentassem em torno dele, e perguntou a Fédon se ele iria cortar os cabelos. O jovem, que tinha cabelos longos, respondeu que sim. O filósofo acariciou os cabelos do discípulo e pediu que não o fizesse. Desencolheu as pernas e, massageandoas, começou a conversar. - Pois, amigos, quanto a mim, parece que vou hoje mesmo, uma vez que os atenienses assim o ordenaram.
Fédon, que fora ao cárcere angustiado, mas com a intenção de encorajar o mestre, constatou que acontecera o contrário. As palavras de Sócrates é que o fortaleciam. O filósofo teve, então, com seus discípulos sua última palestra. Tomando em consideração uma proposta feita por Cebes sobre a licitude do suicídio, que ele, Sócrates, condenava, evocou uma imagem que lhe ficara na memória dos tempos em que, de lança na mão e escudo no braço, lutara nas batalhas de Anfípolis e Potidea, sem jamais abandonar o posto - imagem essa que já tinha usado em sua defesa: - A vida, Cebes, é um posto que o destino nos deu e que não podemos abandonar. Temos que aguardar a determinação da sorte. E quando este dia chegar, devemos estar preparados. Aquele que aplicou toda a sua vida à Filosofia não faz mais do que se preparar para a morte. Praticar o bem e a justiça enquanto vivemos nos encoraja no momento extremo. Essas virtudes nos levam à sabedoria, e a verdadeira sabedoria não teme a morte. Tendo alguns discípulos expressado suas dúvidas sobre a imortalidade da alma, Sócrates falou longamente sobre o destino da alma após a morte. - O que faz o corpo viver é a alma - disse ele - e esta leva em si a vida, que é imortal. E por ser imortal, temos que cuidar da alma antes de tudo, levando-a para o bem e a justiça. Nosso corpo não possui nenhum sentido para apreciar o belo, o bem e a grandeza. Para atingirmos a sabedoria que nos leva à verdade, servimo-nos da alma, isolando-a do corpo, das fraquezas e das ilusões deste: amores, enfermidades e temores. Sócrates falou longamente sobre este tema. Confesso que ultrapassa as minhas faculdades expor seu raciocínio sobre a imortalidade da alma. Minha doutrina vê este tema sob outro ângulo. Mais tarde, Platão veio a escrever sobre este assunto um belo diálogo, chamado “Fédon”. Declaro que não sei onde termina Sócrates e começa Platão neste escrito. Os dois se confundem, tamanha era a afinidade entre ambos. A certa altura, Sócrates levantou-se, passou para um pequeno quarto e se banhou, a fim de que os outros não tivessem o trabalho de lavar seu cadáver.
Ao voltar do banho, sentou-se novamente, mas a conversa durou pouco. Logo se apresentou o carcereiro que falou com humildade e voz incerta: - Sócrates, por certo não me darás a mesma razão de queixa que tenho contra outros condenados que se enchem de cólera e me cobrem de imprecações quando os convido a tomar veneno, porque tal é a ordem dos magistrados. Tu, conforme tive ocasião de verificar, és um homem corajoso e brando.
Sócrates levantou-se, colocou a mão no ombro do carcereiro, e voltando-se para nós, disse: - Durante toda a minha permanência aqui, este homem várias vezes veio me ver, e até conversou comigo. Excelente homem! Pois bem, avante! Que me tragam o veneno. O carcereiro pareceu emocionado e nós começamos a chorar. - Que estais fazendo? - lamentou Sócrates - Se mandei as mulheres embora, foi sobretudo para evitar semelhante cena, pois segundo me ensinaram, é com belas palavras que devemos morrer. Acalmai-vos, vamos! Dominai-vos! O carcereiro saiu e retornou depois de alguns instantes com uma taça. Sócrates perguntou: - Então, meu caro! Tu que tens experiência disto, o que é preciso que eu faça para facilitar a ação do veneno? - Nada mais - explicou o homem - do que dar umas voltas caminhando, depois de haver bebido, até que as pernas se tornem pesadas, e deitar-se. Desse modo o veneno produzirá seu efeito mais rapidamente.
Dizendo isso, estendeu a taça a Sócrates. Este a recebeu, conservando a serenidade. - Dize-me, é ou não permitido derramar no chão algumas gotas, em homenagem aos deuses, como fazemos nos banquetes? - Só sei, Sócrates, que trituramos a cicuta na quantidade suficiente para produzir seu efeito, nada mais. - Entendo - respondeu Sócrates. Levantou a taça e, cerrando os olhos, recitou uma prece. Em seguida, sem relutar, bebeu até o fundo. Nesse momento, nós, que havíamos nos controlado atendendo ao pedido do mestre, não pudemos mais nos conter, e prorrompemos em pranto, abraçando-nos uns aos outros. Sócrates, mais uma vez, insistiu para que nos controlássemos. Sua fisionomia estava contraída em virtude do amargor da poção. Assim ficou alguns momentos, mas logo voltou à expressão serena que lhe era habitual. Pôs-se, então, a andar de um lado para outro como aconselhara o carcereiro. Este, vendo que o prisioneiro esvaziara a taça, retirou-se. Sócrates, depois de andar um pouco, sentiu as pernas pesadas. Deitou-se, então, de costas, como lhe havia recomendado o homem. Passados alguns momentos, momentos
esse que foram os mais trágicos que vivemos, lembraria Fédon alguns anos depois, o carcereiro voltou e apalpou os pés e as pernas de Sócrates. E assim continuou a fazê-lo a intervalos. Num certo momento, depois de apertar os pés, perguntou a Sócrates se o sentia. O mestre sussurrou que não. Depois disso, tocou o tornozelo e, subindo aos poucos, nos fez ver que Sócrates começava a ficar frio e a enrijecer-se. O filósofo, com voz sumida, chamou Críton. Este se debruçou sobre Sócrates. - Críton - murmurou - devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças de pagar esta dívida (11) (11) Sócrates refere-se a alguma oferenda a Asclépio, deus hábil na ciência de curar. Seus templos foram os primeiros hospitais da Grécia antiga. - Assim farei - prometeu Críton, com voz embargada. Ao cabo de alguns instantes, Sócrates fez um movimento. Ouviu-se um longo suspiro e seu corpo ficou imóvel. O olhar estava apagado e fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou a boca e os olhos. O carcereiro ainda se demorou alguns momentos. Depois de cobrir o corpo, retirou-se. Nós chorávamos. Apolodoro, com gritos de dor e de cólera, abraçouse ao corpo do mestre. (12) Assim morreu Sócrates, o homem mais justo de nosso tempo. Depois de sua morte, Platão e outros de seus discípulos, buscaram refúgio na casa de Euclides (13), em Mégara, a oeste de Atenas, cidade debruçada sobre a baía de Salamina.
Desejo dizer duas palavras sobre este filósofo maçante e amável, para depois me voltar para Platão. Euclides fora seguidor de Parmênides, e depois estudou com Sócrates. Era enérgico nos debates e muito cuidadoso na escolha das palavras. Assim agia, porque seu primeiro mestre escrevera que se alguma palavra é usada com algum sentido é porque quer dizer algo, não nada, e portanto, o que a palavra significa deve existir de algum modo.
Quando estive em Mégara, ceando em sua casa, num ambiente de moderada animação, lembrei aquele trecho da tragédia de Sófocles, quando Electra encontra seu irmão Orestes. Euclides me interrompeu para corrigir: - Electra não sabia que Orestes era seu irmão, quando este voltou a Argos para vingar a morte do pai.
(12) A cena foi baseada no diálogo “Fédon” de Platão (col. “Os Pensadores, ed. Victor Civita) (13) Não se trata do famoso geômetra
- Mas Electra era irmã de Orestes - insisti. - Ela não o reconheceu de imediato - teimou Euclides - a palavra irmão não tinha nenhum significado para Electra naquele momento. Euclides usava a significação das palavras com extremo rigor. Sócrates costumava criticar-lhe os argumentos, por serem excessivamente minuciosos. O mestre, que aos vinte anos conhecera Parmênides já em idade avançada, afirmava que o próprio filósofo não era tão exigente na escolha das palavras, como seu discípulo fazia crer. Euclides estava sendo, neste assunto, mais realista que o rei. Voltemo-nos agora para Platão.
Quando Sócrates morreu, Platão tinha vinte e sete anos. Obras como “Górgias”, “O Banquete”, “Fédon”, e a “República” já andavam de mão em mão. Cinco anos depois, foram publicadas. Platão ficara em evidência e sabia que os demagogos não lhe dariam trégua. De Mégara, não voltou a Atenas. Velejou para Cirene, minha cidade natal, e se fez discípulo de Teodoro, o matemático. De Cirene foi para a Itália, onde estudou com os pitagóricos Filolao e Eurito. De lá viajou para o Egito, acompanhado de Eurípedes, o escritor de tragédias. No Egito, caiu enfermo e os sacerdotes o curaram com banhos de mar, o que levava Platão a dizer: “O mar lava as doenças dos homens.” e lembrava que o próprio Homero escrevera que no Egito todos são médicos.
Depois de estudar com os magos, foi para a Sicília, fugindo das guerras asiáticas. Lá voltamos a nos encontrar e reatamos nossa amizade depois de longos anos de desentendimentos. Nesta ilha, Platão viveria sua grande aventura política na corte dos dois Dionísios, tiranos que pouco caso faziam do bem comum.
Eu já havia estado na Sicília em outros tempos. O primeiro dos dois Dionísios, que se fizera generalíssimo nos tempos das guerras contra Cartago, assumira o poder absoluto. Este tirano era uma figura estranha: culto, velhaco, vingativo, embriagava o povo com festas, jogos e banquetes públicos. Defendia a iniqüidade dos oligarcas, ao mesmo tempo em que encurtava as rédeas da aristocracia. Pagava oradores para elogiá-lo em praça pública. Todos os cargos importantes em Siracusa, centro político mais
importante da ilha, eram ocupados por parentes seus ou por pessoas de sua confiança. Era, entretanto, um político hábil, bom negociador, fundara várias feitorias e fizera de Siracusa uma cidade bastante procurada por mercadores fenícios, sírios, persas e egípcios. Os tiranos das cidades gregas do sul da Itália e da Sicília eram militarmente protegidos por Esparta, adversária de Atenas. Quinze anos antes da morte de Sócrates, o ateniense Alcebíades, numa malograda expedição, tentara tirar esta região do domínio de Esparta, mas foi vencido. Ainda hoje os atenienses choram seus mortos.
Quando jovem, na época das guerras cartaginesas, Dionísio casara-se com a filha de um rico cidadão de Siracusa. Houve uma conspiração contra ele. Sua esposa, apavorada, suicidou-se. Impressionado com este acontecimento, o ditador, depois de se consolidar no poder, casou-se com duas mulheres ao mesmo tempo, como que para se precaver contra a viuvez. Vivia em harmonia com as duas, não se sabendo com qual delas dormiu a primeira noite. Tratava-as igualmente na mesa e na cama.
Doris, uma das esposas, era de Locres, cidade opulenta do sul da Itália. A outra, de nome Aristômaca, pertencia a uma importante família de Siracusa. Era irmã de Dion, cidadão da mais alta reputação que, pela sua natural disposição para a sabedoria, tornara-se amado discípulo de Platão e personagem importante nesta narrativa.
Das duas esposas de Dionísio, a estrangeira de Locres foi a primeira a lhe dar um filho. Este fato tornou Dionísio impopular, parecendo aos siracusanos que a linha de descendência se desviaria para a família italiana.
Atormentado por este problema, Dionísio, sabendo que eu me encontrava na ilha, mandou-me chamar, visto que os pitagóricos da cidade não se cansavam de falar dos meus conhecimentos de drogas e purgas. Depois que fui revistado pela guarda, Dionísio recebeu-me com um amável sorriso.
Vou direto aos conselhos que dei ao tirano. Disse-lhe que “no ato sexual, para engendrar novo ser, certas posições do corpo são preferíveis a outras. Os esposos devem fazer a união carnal na posição dos quadrúpedes porque a elevação das costas favorece a direção do fluido gerador. Disse-lhe ainda que os movimentos lascivos pelos quais a mulher procura excitar o marido são prejudiciais para a fecundação, visto que pode
afastar o arado do sulco. Pedi-lhe que observasse os animais entre os quais a fêmea se conduz com modéstia e calma. (14)
Meses depois, indo ao sul da Itália, Arquitas de Tarento contou-me que Dionísio mandara matar a sogra, a mãe da italiana, acusando-a de celebrar mistérios ocultos para que Aristômaca, a esposa siracusana, não tivesse filhos. Não falei a Arquitas dos conselhos que dei ao tirano nem das ervas afrodisíacas que prescrevi. Os compromisso hipocráticos não me permitiam.
(14) Ensaios de Montaigne
O tirano Dionísio, que mostrava na guerra uma coragem que beirava a temeridade, trazia, na paz, a mente fustigada por pavores e maus sucessos. Não dormia duas noites consecutivas no mesmo quarto. Mandou cavar prisões em plena rocha para os condenados políticos, com corredores estreitos, cuja acústica lhe permitia ouvir, num sítio secreto, as conversas dos prisioneiros. Ninguém entrava no vestíbulo de sua sala sem ser revistado, e até mesmo desnudado, para provar que não portava punhal ou estilete. Seu irmão, que apanhara a lança da sentinela para mostrar, no piso, a forma geométrica de um terreno que adquirira, provocou no tirano um tal pavor que ele passou a recriminar o irmão aos berros e matou, ali mesmo, o guarda por ter cedido a lança sem esboçar reação. A um tal Marsias, a quem dera um importante posto de comando, mandou matar em virtude de um sonho que tivera, no qual Marsias o assassinava. Basta isso quanto a Dionísio. Falemos da Sicília.
A ilha da Sicília tem a forma de um amplo triângulo. Uma trirreme leva oito dias para contorná-la. Está separada do continente italiano por um ínfimo estreito de vinte estádios (15) Na parte oriental da ilha ficam as cidades gregas, na ocidental, as cidades cartaginesas, visto que, deste lado, elas estão mais próximas de Cartago. O rio Halicos, que deságua no sul da ilha, separa os dois povos que durante tantos anos viveram em guerra. (15) 3,5 quilômetros.
AS TRÊS VIAGENS DE PLATÃO A SIRACUSA Após a morte de Sócrates, ao longo de quarenta anos, Platão, já filósofo de reconhecida notoriedade, navegou três vezes para a Sicília. A primeira, para conhecer a ilha e observar o vulcão Etna, sendo então senhor de Siracusa o tirano Dionísio de quem falei há pouco. Na segunda vez, veio à Sicília para pedir ao jovem Dionísio, filho do anterior, que reconstruísse e repovoasse as cidades gregas destruídas pelos cartagineses. O tirano prometeu, mas não cumpriu. Na terceira e última vez, já velho, saciado de sabedoria e cansado de desilusões, voltou pela última vez para encorajar seu amado discípulo Dion, ministro e tio do ditador, a transformar a tirania em uma monarquia constitucional.
Em todas estas viagens, Platão enfrentou grandes perigos ”mares infestados de piratas, jogo arriscado com os dois tiranos, intrigas palacianas, escravidão e ameaças de morte sob suspeita de tramar para derrubar a tirania.”(16).
De volta de jornada médica ao sul da Itália, eu soube que Platão havia chegado a Siracusa há mais de uma semana. No porto, um marujo me informou que o filósofo descera à praia e se dirigira ao local onde se faz a raspagem do casco das embarcações.
(16) “A Filosofia Grega desde sua Origem até Platão”, de Julian Marias
Disse-me ainda que Platão estava a procura do piloto Hacóris para entregar cartas para amigos em Corinto.
Lá, realmente, encontrei Platão palestrando com o piloto. Após abraços e saudações, afastei-me a fim de que os dois terminassem a conversação. A trirreme que trazia, no extremo da proa, uma carranca de monstro marinho de cores berrantes, pareceu-me gigantesca posta a seco, sobre troncos de madeira. Os remos soltos lembravam as asas de um pássaro ferido. Homens da tripulação, reluzentes de suor, trabalhavam em torno de caldeirões fumegantes de pez e alcatrão.
Observei o filósofo. Bronzeado do sol, espadaúdo, vestia uma túnica de linho siciliano, cingida no ventre por um cinto largo do qual pendia uma bolsa de couro. O piloto era o
mesmo que me trouxera um ano antes. Era de raça fenícia, nariz adunco, barba negra, sem bigode. Trajava túnica colorida à moda persa, trazia anéis em todos os dedos e usava colares e braceletes que tilintavam com os gestos exagerados de homem habituado a expressar-se também com mímica no comércio com povos de todas as raças. Hacóris, entretanto, falava grego sem sotaque. Homem rude, calejado pelos perigos do mar, costumava se deliciar com o pavor dos passageiros nos momentos difíceis da viagem.
Terminadas as instruções de Platão ao piloto, os dois vieram ao meu encontro. Platão me disse que fora alegremente hospedado, na cidade, pelo pitagórico Amiclas.
Antes de nos despedirmos, o piloto Hacóris, que era dado a gracejos, como todo oriental, contou a Platão que no ano anterior, quando me trouxera em seu barco, caíra sobre nós uma negra tempestade, na altura da ilha de Chipre. Tal havia sido o meu pavor, que levara ele, Hacóris, a perguntar de que servia a minha filosofia, se numa desgraça comum eu me lamuriava. E eu lembrei, rindo, a resposta que havia lhe dado naquele momento no barco: “ Oh, Hacóris, se houver um naufrágio hoje à noite, entre nós dois, a perda não será a mesma.” (17) Platão observou: - Não te envergonhes do medo, Aristipo, desde que continues a enfrentá-lo. Tudo terminou em risos e abraços. Hacóris retornaria a Atenas no dia seguinte, comandando, além de sua galera, dois barcos mercantes com carregamento de trigo para os habitantes da cidade.
De volta à muralha, informei a Platão que Dionísio parecia preocupado com a presença dele na cidade. O ditador perguntava-me constantemente o que vinha o filósofo fazer na ilha. Aconselhei-o a visitar o tirano. Platão sacudiu os ombros sorrindo e me explicou que estava fatigado com a viagem, e se deixara ficar por ali alguns dias sem compromisso. Iria, entretanto, pedir uma audiência a Dionísio como mandam os bons costumes.
Soube depois que Platão fora levado à presença de Dionísio pela mão de Dion, discípulo inflamado do filósofo e ministro do tirano. Logo percebi a razão pela qual Platão, estando na ilha há mais de uma semana, se mostrara evasivo ao me dizer que,
oportunamente, pediria audiência ao ditador. Na verdade, ele aguardava o retorno de Dion, que fora a Acragas, cidade muito concorrida na ilha, chefiando uma delegação. Tudo havia sido ajustado, por cartas, quanto Platão se encontrava em Tarento, no sul da
(17) Diógenes Laércio Itália, em visita a Arquitas, tirano daquela cidade. Compreendi, então, que a política era para Platão o chão firme por onde caminhavam suas idéias. Sem a política, o filósofo não tinha onde arrimar-se. A viagem de Platão a Siracusa tivera, portanto, um propósito há muito amadurecido por ele e Dion. Dion, muito jovem, mostrara possuir um caráter altivo, magnânimo e corajoso. Culto, amante do trabalho, ocupava o posto mais importante na cidade depois de Dionísio. Seu sonho era aperfeiçoar as instituições políticas da parte grega da ilha, transformando a tirania em monarquia, com leis iguais para todos. Com este objetivo, aconselhava-se, sempre, com Platão. A política externa era o calcanhar de Aquiles do governo de Dionísio. A dependência militar de Esparta e as difíceis relações com os cartagineses podiam, a qualquer momento, desgraçar a cidade. Dion, pela energia no trato e fidelidade à palavra empenhada, inspirava aos bárbaros um respeito que nenhum grego conseguira até então. O tirano sabia que o cunhado era a face boa de seu governo. Sentia por ele sincero afeto e o distinguia com honrarias, embaixadas e comissões. Dionísio dera ordem ao seu tesoureiro para colocar à disposição de Dion, sem prestação de contas, qualquer importância de que ele necessitasse. As virtudes de Dion e os postos que ele ocupava na Sicília grega levaram Platão a ver nele o monarca esclarecido e justo do seu ideal político. Isso viria a ser fatal para ambos, como veremos adiante. O clarividente Prometeu, para libertar os homens, desafiara os senhores do Olimpo. Platão e Dion, para libertar os gregos da ilha da negra tirania, iriam enfrentar Dionísio e uma oligarquia empedernida, egoísta e ambiciosa. A funesta Caríbidis,(18) como o próprio Platão chamava a Sicília, estava com o olhar sinistro pousado no filósofo e em seu discípulo. (18) Mulher que, por ter roubado dois bois a Hércules, foi fulminada por Júpiter e transformada em perigoso golfo que se encontrava no estreito da Sicília. Platão fundou outra academia em Siracusa. Cidadãos de todas as idades acorriam para ouvir suas palestras. Dionísio, também, animava-se com a idéia de transformar Siracusa
num centro de estudos de filosofia, matemática e poesia, visto que pensadores, poetas e escultores pareciam desiludidos com os acontecimentos em Atenas.
Na ilha, todos pareciam felizes. Ao anoitecer havia no palácio música, dança, tertúlias regadas a vinho e ceias prolongadas por discussões filosóficas. Dionísio, mostrando o apreço que tinha por Platão, convidou-o a participar do Conselho e, para tê-lo à vista, persuadiu-o a mudar-se para a casa pequena, bem acabada, rodeada de roseiras, nos fundos do jardim do palácio. Platão não pôde recusar, mas viu nesta amabilidade hospitaleira certa astúcia. O tirano estaria assim informado de todos os seus passos e das visitas que recebia.
Com o andar do tempo, as coisas foram mudando. Durante uma ceia, à qual Platão não comparecera, e tampouco Dion, por estar viajando, nós falávamos de leis. O tirano aproveitou para reprovar a opinião de Platão, exposta na noite anterior e, com um olhar estranho voltado para nós, exclamou: - O que quis Platão dizer? Ele ontem falou de leis como se condenasse as instituições siracusanas.
Eu cuidadosamente ponderei que Platão não tivera a intenção de criticar os costumes de Siracusa. As leis estão sujeitas a aperfeiçoamento, conforme o rumo dos acontecimentos. Submetê-las a críticas é melhorá-las.
Dionísio, que estava reclinado em coxins, ergueu-se, apoiando-se no cotovelo e lembrou: - Todos aqui ouviram! Platão falou como se não houvessem leis em Siracusa!
Os convidados concordaram numa só voz, todos se lembravam. Sentido-se apoiado, o tirano inchou de cólera e berrou: - Boas máximas e bons costumes transmitidos de pai para filho são melhores do que leis escritas. Como se discutia política - ponderei - o que Platão disse é que o bom governo é aquele que tem boas leis e se submete a elas.
Dionísio levantou-se pesadamente e se inclinou como se fosse me abraçar, como era de seu hábito com os amigos. Mas não. Cuspiu-me na cara. Gargalhadas explodiram na sala. Pálido, ele voltou a se reclinar nos coxins. Limpei o rosto com a toalha. - Os pescadores se molham pescando sardinhas - murmurei - Eu me molhei tentando pescar uma baleia. (19) Dionísio, mais tranqüilo, sentenciou: - Os fatos determinam as leis, e não as idéias, como pensa Aristócles. Pela primeira vez, ouvi Dionísio chamar Platão pelo nome de nascimento, e não pelo apelido tão familiar a todos nós. Um abismo se abrira entre os dois.
Dias depois, por ocasião do meu aniversário, o tirano, como se quisesse reparar a grosseria que me fizera, mandou-me dois talentos de prata. (20) À noite decidi ir ao palácio agradecer a dádiva. Antes passei na Taverna dos Marinheiros para entregar ao piloto de uma trirreme cartas para minha filha. Lá, na (19) Diógenes Laércio (20) Equivalente a 12 mil dólares
companhia de amigos, prolongando o vinho por amor à conversação, embotei de tal forma meu espírito, a ponto de me tornar inconveniente. No palácio, ajoelhei-me aos pés de Dionísio, como é costume nas cortes de potentados, pronunciando palavras de gratidão. Platão, que nos observava de longe, chamou-me à parte e, num tom de censura, murmurou: - Um cidadão ateniense não se ajoelha diante de um tirano! Tentei justificar minha humildade: - Mas Dionísio tem os ouvidos nos pés. Em Siracusa corriam rumores de que Platão não gozava mais das graças do tirano. Os amigos de Dionísio - o grupo partilhava uma amizade de lobos - sentiam um prazer perverso quando ouviam o tirano censurar Platão.
Nós, socráticos, reconhecíamos a importância histórica de Dionísio na preservação do domínio grego da ilha. Se os bárbaros tivessem dominado toda a Sicília, teriam, também, conquistado o sul da Itália. Dionísio fora o baluarte que impedira esta catástrofe. Milcíades, Temístocles, Leônidas, Pausânias e Aristides, ao derrotarem os
persas, salvaram a Grécia continental. Dionísio e seu cunhado Dion fizeram o mesmo, derrotando os cartagineses. Um, com as armas, e outro, com tratados e alianças.
As cidades gregas do sul da Itália produziram filósofos e matemáticos de suma importância. Pitágoras veio de Samos e estabeleceu-se lá, fundando uma das mais eminentes escolas de filosofia e matemática. Os pitagóricos educaram várias gerações de jovens gregos na Itália. Empédocles era siciliano, Parmênides e Zenon, itálicos. Os bárbaros teriam destruído as obras destes pensadores e assassinado seus seguidores.
Achava Platão que terminadas as guerras, cabia aos tiranos da região o aperfeiçoamento das instituições políticas. Foi neste ponto que começaram os desentendimentos entre Platão e Dionísio. Silenciado o fragor das armas, os donos do poder deveriam estabelecer leis justas que conciliassem a clemência e a justiça. Os príncipes, no entanto, continuavam a governar com as leis de guerra, como se o povo fosse o grande inimigo.
Dion concordava com seu mestre. As crueldades e iniqüidades do cunhado todopoderoso o consumiam. Pensara muitas vezes em exilar-se com a família. Platão o dissuadiu da idéia: ele, Dion, era o elemento moderador do governo de Dionísio e deveria continuar no posto de Primeiro-Ministro do tirano para o bem dos gregos da ilha.
Dionísio, o generalíssimo, já cumprira sua missão. Dionísio, o chefe de estado devia, agora, dizer ao povo o que pretendia. O conselho de Platão a Dion desencadeou o drama que passarei a narrar.
Naquela tarde, quando Amiclas, amigo de Platão em Siracusa, bateu à minha porta, fiquei preocupado. O pitagórico trazia-me notícias que demandavam cautela. Eram confidenciais. - Dionísio decidiu demitir Platão do Conselho - queixou-se - e ordenou-lhe que deixasse a ilha. Fiquei perplexo. Eu sabia que os pitagóricos, cuja seita acreditava na transmigração das almas, vaticinavam calamidades até para depois da morte. Aquela notícia, entretanto, caiu sobre mim como um raio. - E Platão, o que disse?
- Que não sendo um hóspede do agrado do príncipe, deixaria a ilha depois do próximo Conselho. Ocupara um alto cargo e não poderia embarcar na calada da noite, como fugitivo. Queria primeiro explicar ao Conselho suas verdadeiras intenções. Viajaria em seguida. - E Dionísio concordou? - Discutiram muito. Dionísio cedeu. Tu sabes como Platão é inflexível quando defende suas idéias. Eu nada falei a Platão, conforme me pedira Amiclas. Mas fiquei com a mente turvada. No dia seguinte, avisaram-me que o Conselho fora convocado para dali a três dias. Vi que Dionísio tinha pressa em se desfazer de Platão.
Quis avisar a Dion, que viajara para Tarento, credenciado que fora junto à corte de Arquitas, tirano daquela cidade. A mão do tempo, entretanto, não colocaria Dion em Siracusa no dia da realização do Conselho. Preferi não enviar qualquer notícia a Arquitas, homem violento e amigo de Platão, pois poderia praticar algum desatino, o que tornaria mais arriscada ainda a situação do filósofo.
Na ausência de Dion, o Conselho era presidido pelo próprio tirano. A intenção de Dionísio era clara: prolongar a estada de Dion em Tarento e livrar-se de Platão antes da volta do cunhado.
O Conselho de Siracusa reunia-se, eventualmente, por edital afixado na praça. Os trinta cidadãos mais importantes da cidade compunham a comissão. Era pura formalidade, que tinha por objetivo dar apoio institucional a Dionísio nas relações de Siracusa com as outras cidades.
Eu participava do Conselho como auxiliar de Dionísio nas questões matemáticas das despesas e dos cálculos das obras. Sentava-me numa mesa, ao lado do tirano, juntamente com um servo que portava a tábua de cálculos.
O Conselho já estava reunido quando eu cheguei. No pátio onde, usualmente, havia dois guardas, achava-se formado todo o corpo da guarda do palácio. Dionísio cruzou a sala com arrogante rapidez e deu início à sessão. Mostrava-se mal-humorado. Foram votadas questões relativas à exportação de cereais, construção de barcos mercantes e obras para
a ampliação do porto. A pedido do príncipe, eu desci ao porão para buscar documentos relativos às obras das casas de banho e das fontes públicas, cujas despesas deveriam ser apreciadas. Quando voltei, ouvi vozes confusas. Platão havia chegado e falava. As palavras saíam lentas e contadas. Vi que ele se dirigia ao Conselho. - Durante minha longa estada junto de vós, como ministro do vosso poder, cabia-vos o proveito e a mim as calúnias, por mais duras que fossem. Dionísio, irritado, mexeu-se na cadeira. - O Conselho é soberano - disse com voz áspera. - As decisões foram submetidas à votação. Platão, impassível, continuou: - Todos aqueles que participam da vossa administração dão disso testemunho, esses que em tão grande número socorri e salvei de terríveis castigos, pois sabiam bem que nenhuma só das vossas crueldades me seriam atribuídas.
Ouviram-se protestos. Dionísio, com um gesto, pediu silêncio. E Platão continuou: -Depois de ter sido muitas vezes, responsável absoluto pela guarda de vossa cidade, vime despedido ignominiosamente, como não seria lícito esperar que se fizesse a um mendigo expulso com ordem de embarcar, eu, que tanto tempo passei junto de vós! “ Os membros do Conselho se entreolhavam, vigiando os gestos do tirano. Foi então que Platão pela primeira vez dirigiu-se ao Príncipe. - A tão avultada quantia que me mandastes para a viagem, o portador irá devolver-te. Era insuficiente para a despesa da jornada e sem nenhuma outra utilidade além dessa.” Dionísio replicou irritado: - Eu apenas enviei a importância que te devia, visto que foi atendendo ao apelo de Dion que eu te chamei. Eu te reembolsava da despesa que fizeste em meu nome. - Aliás, só te traria a ti, que a davas, a pior das desonras, e a mim, acaso a aceitasse, um não menor quinhão de ignomínia. Por isso recuso. - Não vejo nenhum desdouro em recebê-la - insistiu Dionísio. - Sem dúvida que para ti não tem qualquer importância receber ou dar qualquer quantia. Assim, guarde-a e aproveita-a para com ela adulares teus amigos, como a mim próprio adulaste. E por ti já o fui demasiado.” - Respeitava apenas aqueles que te consideram o maior filósofo vivo - explicou Dionísio com voz trêmula. - Baseado nesta informação te chamei. Dinheiro não me falta. Posso chamar a Siracusa todos os filósofos famosos.
- Já vi tiranos caídos, sem amigos - disse Platão - mas sem dinheiro nunca vi. Adeus. Reconhece os grandes erros que cometestes para comigo, a fim de melhor te poderes conduzir com ou outros (21) (21) As palavras de Platão foram retiradas de trechos de cartas que ele escreveu a Dionísio. Assim falou Platão na grande sala do Conselho de Siracusa. E mais não quis dizer. Com passos lentos, retirou-se. Ao contrário do que todos pensavam, Dionísio não reteve o filósofo. Parecia até aliviado. Provara ao Conselho que tinha razão quando decidira expulsar Platão da ilha. Pálido e calmo, perguntou: - De que assunto trataremos agora? Platão decidiu deixar Siracusa o mais rápido possível para não criar dificuldades para Dion. Encontrava-se ancorada no porto de Siracusa, naquela época, uma trirreme com partida marcada para a Grécia dali a três dias. A nave era comandada por um almirante espartano de nome Pólis, que viera visitar Dionísio como embaixador, a serviço de sua cidade. Depois de ajustar com Platão as condições da viagem, o comandante foi ocultamente ao palácio a fim de consultar o tirano, que autorizou a viagem do filósofo. Gente do palácio, entretanto, contou-me que o Dionísio e o espartano conversaram longamente , caminhando os dois a passos lentos no jardim. Pólis deixou o palácio, noite alta, com a fisionomia descorada e sombria. A preocupação do navegador tinha origem num murmúrio secreto do tirano em seu ouvido. Ele foi visto na taverna dos marinheiros, de madrugada, com a cabeça apoiada nas mãos, cismando com os olhos cerrados. Quais os motivos que atormentavam a mente do espartano? Interrompo aqui o fio da minha narrativa a fim de expor um fato que chegou ao meu conhecimento anos mais tarde, para depois voltar a ela, na ordem certa dos acontecimentos. Eu soube posteriormente em Engina, cidade grande e fortificada no sul de Atenas, que Dionísio pactuara com o comandante da trirreme matar Platão em alto-mar e atirar o corpo aos peixes. Na opinião do tirano, Platão devia morrer porque tentara desviar Dion, provocando transtornos no seu governo e prejuízos à aliança com Esparta. Dizem que Dionísio pagara uma vultosa quantia ao espartano para a prática de tão infame tarefa. Mas Pólis, cavilando à noite na taverna, preferiu tirar proveito daquele jogo de celerados e malfeitores. Decidiu vender Platão como escravo em Engina. Esta cidade estava em luta com Atenas e, pelas leis de guerra, qualquer cidadão inimigo,
aprisionado ou vendido, seria considerado escravo, acontecendo o mesmo do lado oposto. Se fosse cidadão importante, como no caso de Platão, estaria sujeito a resgate.
Desse modo, a astúcia e a cupidez do comandante salvaram Platão da morte certa. Depois de longas e exaustivas negociações, os discípulos de Platão conseguiram levantar a importância exigida para a sua libertação, e o filósofo voltou, são e salvo, à sua cidade e à sua Academia. Dion ignorava estes acontecimentos. Volto agora à Siracusa, na época em que Platão deixou a cidade por ordem de Dionísio. Dion retornou de Tarento alguns dias depois da partida de seu mestre. Após ler a longa carta deixada por ele, instando-o para que não deixasse o cargo de ministro do tirano para o bem da cidade, tornou-se silencioso e sombrio. A ele, Dion, o tirano contara que Platão fora chamado às pressas a Atenas em virtude da guerra que sua cidade travava contra Engina. Sorrindo, tentou um gracejo: - Platão veio à Siracusa à procura de um homem de bem. Creio que não o encontrou. Alguns meses depois, Dionísio caiu gravemente enfermo. Passava as noites caminhando pelo quarto com dores e gemidos. Excrementava, com raridade, vertendo sangue. Aflito, por causa da febre, da sede interminável e da debilidade, o tirano caiu em profundo abatimento. Pedia aos médicos, e eram vários em torno de seu leito, que lhe dessem uma poção que o fizesse vomitar a enfermidade. Um regime de infusões e purgas não lhe trouxe melhores. Em virtude do agravamento da doença, Dion tentou falar com o cunhado a sós, sobre a questão da sucessão. O jovem Dionísio, filho mais velho do tirano, receando que Dion tramasse a favor de sua irmã Aristômaca, que tinha dois filhos siracusanos de sangue, enquanto ele era filho da italiana Dóris, ordenou aos médicos que dessem um narcótico ao pai. Na mesma noite, o velho Dionísio juntou o sono com a morte.
Este foi o motivo das discórdias entre o segundo Dionísio e Dion, inimizade agravada pelo tempo, embora, por necessidade política, houvesse aparentemente entre os dois um convívio de fingida amabilidade. (22)
Os funerais do velho Dionísio foram realizados com grande pompa. O féretro desfilou pelas ruas da cidade, seguido pela guarda e pelos mercenários que lutaram sob seu comando. As ruas estavam apinhadas de gente que chorava e carpia, rasgando as vestes
aos gritos, de tal forma o herói das guerras cartaginesas superara as recordações das crueldades do déspota. Dionísio, o velho, foi, entretanto, rapidamente esquecido.
Retornando a acontecimentos já narrados, recordo, aqui, o casamento simultâneo do primeiro Dionísio com as duas mulheres: Dóris, de família italiana, e Aristômaca, de família siracusana. De Dóris nasceu o primogênito que tomou o nome do pai, de Aristômaca, dois varões, Hiparinos e Niseus, e duas filhas, Sofrosine e Arete. Esta última casou-se com seu tio Dion e Sofrosine, com seu meio-irmão, Dionísio.
De fato, havia sido para colocar Hiparinos no poder que Dion tentara falar, secretamente, com o tirano enfermo. Vimos como o jovem Dionísio antecipou-se ao tio e conseguiu dos médicos a poção narcótica que fez o pai mergulhar em seu sono de morte. (22) Cornélio Nepote
Este rapaz, inteligente e de falar fluente, tinha, entretanto, costumes pervertidos. Era inclinado aos dados e ao vinho. Cercado, desde adolescente, de amigos endoidados, corria pelas ruas da cidade, altas horas da noite, aos gritos e à rédea solta dos cavalos. Freqüentava mulheres fáceis, banquetes ruidosos e criava cavalos de raça. Seu meioirmão, Hiparinos, dois anos mais jovem, era o oposto do filho da italiana. Mostrara-se desde cedo estudioso e de ânimo prudente. Era rapaz sóbrio, sem afetação, sentencioso e de poucas palavras. A todos inspirava um respeito amável e natural. Estas foram as razões pelas quais Dion preferia Hiparinos como sucessor do velho Dionísio.
O Conselho, entretanto, levando em consideração que o falecido tirano não deixara vontade expressa sobre a sucessão, comunicou à cidade, por meio de arautos e editais, que o jovem Dionísio era o novo chefe de Estado. E, por cautela, o ato determinava que Dion continuaria no cargo de primeiro-ministro do novo governo. A posse, uma semana depois da morte do velho tirano, foi aparatosa, com festas, banquetes públicos e corridas de carros que duraram três dias.
Assim, o jovem tirano e seu experiente e cauteloso tio ficaram amarrados um ao outros mais pela discórdia do que pela concórdia. O segundo Dionísio não pôde dispensar Dion dos altos cargos que ocupava. Teve que degluti-lo na chefia do Conselho por
razões de Estado. Dion conhecia todos os problemas da ilha, falava o idioma dos bárbaros, que tinham por ele o maior respeito, além do que, o povo o considerava como o lado bom do governo. Do outro lado da ilha, os cartagineses, informados pelos mercadores fenícios de todos estes acontecimentos, comunicaram ao jovem tirano que os tratados de paz entre os dois povos continuariam válidos, desde que Dion permanecesse na direção da política externa dos gregos da ilha.
Por longos anos, uma concórdia discordante paralisou o governo de Siracusa. O segundo Dionísio não podia agravar a tirania como seria do seu interesse, nem Dion podia aperfeiçoar as leis. Os dois arrastavam o governo como uma dupla de bois no arado, suportando a pesada canga do poder. Dion vinha ao palácio apenas para as reuniões do Conselho. Vivia mais para a família, preocupado com um filho doente dos nervos. Dedicava-se à administração das suas fazendas de plantio e criação de gado. Era imensamente rico, parte pelos bens deixados pela família, e parte pelas dádivas generosas do falecido tirano que sentia por ele verdadeira afeição.
Já fazia vinte anos que Platão voltara a Atenas, quando apareceu em Siracusa aquele que faria o filósofo empreender sua segunda viagem à ilha: seu sobrinho, Euspesipo. Euspesipo era filho de Potona, irmã de Platão, e seguidor do filósofo nos ensinamentos, mas não nos costumes. Entregue aos prazeres da mesa era, de comum, mal-humorado. Comparecia aos casamentos de familiares e amigos por causa dos banquetes. Quando chegou à ilha, mancava de uma perna devido a uma semi-paralisia. Platão ensinava filosofia de graça, Euspesipo, embora rico como o tio, o fazia a troco de estipêndio. Eu tolerava os alunos que atrasavam o pagamento. Euspesipo não perdoava. De temperamento colérico, entregava-se à ira de tal forma, que certa vez arrojou um cão no fundo de um poço por causa dos latidos do animal. Era grande matemático e estudioso dos mistérios e dos fatos ocultos. Diógenes, seguidor de Antístenes (23), sentia por Euspesipo insuportável antipatia. Certa vez, Euspesipo, carregado numa liteira devido a uma doença, saudou-o: - Salve, Diógenes! Diógenes respondeu: - Não digo o mesmo de ti que, sendo o que és, ainda continuas vivo. (23) Antístenes e Diógenes, foram os antecessores dos “hippies” da época de hoje. Faziam parte de uma seita que tinha desprezo pela propriedade e pelas convenções
sociais, doutrina esta que tomou o nome de “Cínica”, palavra que na Antigüidade tinha significado diferente do atual. Para os cínicos, ingênuos simplificadores dos hábitos e dos costumes, visando à purificação dos sentimentos, Euspesipo, pela arrogância e riqueza ostensiva, devia, à sombra de seu famoso tio, Platão, parecer um indivíduo repulsivo. Euspesipo era irreverente e maldoso. Vendo um amigo rico ao lado da esposa, mulher feia, comentou: -Que necessidade tens disso? Por dez talentos te arranjo uma mulher formosa (24) Foi este homem que se tornou amigo do tirano, de tal forma as afinidades se buscam, para o bem e para o mal. Ouvi muitas vezes Platão queixar-se do temperamento insuportável do sobrinho. Tolerava-o, contudo, por causa do parentesco e do vigor demonstrado por Euspesipo no trabalho acadêmico e nas viagens a serviço da causa platônica.
Euspesipo presenteou Dionísio com as obras de Platão já publicadas, Górgias, O Banquete, Fédon e República, que os copistas da Academia tinham dado ao público logo após a morte de Sócrates. Desde então, passei a ver o segundo Dionísio, à sombra do caramanchão, lendo Platão. O novo tirano não tinha o espírito preparado pelos estudos, mas, graças à sagacidade natural e à fluência no falar, impressionava as pessoas. Depois de ler Platão, passou a ter acessos intermitentes de falsa sabedoria nas tertúlias e nos banquetes. Lançava mão de argúcias dialéticas procurando triunfar nas discussões a partir de argumentos capciosos, com total desprezo pela verdade. Dionísio chegara aos problemas políticos e éticos pela vala negra do charlatanismo intelectual. (24) Diógenes Laércio A frivolidade do jovem Dionísio revelava-se nos seus caprichos de potentado, pela maneira como se divertia com aqueles que não podiam contestá-lo. Nas reuniões, propunha questões que se demonstrariam falsas quaisquer que fossem as respostas, tais como: pergunta-se se mente aquele que confessa que mente. Chamá-lo de mentiroso seria falso, pois não mente aquele que diz que mente. Não chamá-lo de mentiroso seria, também, falso, visto que ele próprio afirmou que mentira. Lembro-me de que propôs ainda este outro tema: havia uma cidade cercada de muralhas, em cuja porta só entravam as pessoas que dissessem a que vinham. Aquele que mentisse seria enforcado. Um viajante afirmou que vinha para ser enforcado. Os juízes afirmaram que nada havia contra o recém-chegado, e que o forasteiro mentira. Criou-se a dúvida se o estrangeiro
devia ou não ser enforcado, visto que se assim o executassem, o homem teria dito a verdade, e se não o enforcassem, ele teria mentido e, portanto, deveria morrer. (25) Essas e outras falácias divertiam o tirano mais do que as questões filosóficas, dando rédea solta ao seu espírito ardiloso e enganador. A leitura das obras de Platão, que Euspesipo lhe dera, levaram Dionísio a reflexões sérias, mostrando que sabedoria é uma coisa, e destreza mental, outra bem diversa. Dion surpreendeu-se com as modificações surgidas na mente do sobrinho e achou que era oportuno - como grande discípulo do filósofo que era - explicar corretamente as idéias do mestre. Os dois passaram a conversar longamente sobre assuntos que nada tinham a ver com os acontecimentos imediatos ocorridos no governo da ilha.
Os meses seguintes foram definitivos para os acontecimentos políticos de Siracusa. Dion convenceu Dionísio a chamar Platão pela segunda vez à ilha. Seguiu-se uma intensa troca de cartas entre Dion e o filósofo, mas este se recusava a voltar. (25) Notas do professor de grego José Ortiz y Sanz para”Vida dos filósofos ilustres” de Diógenes Laércio Devo esclarecer que o segundo Dionísio ignorava a ordem que seu pai dera ao almirante espartano Pólis de matar Platão, embora soubesse pelos membros do Conselho que houvera desentendimentos entre o velho tirano e o filósofo.
Dionísio estava encantado com as obras de Platão. Decidiu, ele mesmo, escrever-lhe uma carta. Disse, com habilidade que o mestre tinha fama de grande pensador político, mas temeroso dos problemas de ordem prática no governo das cidades. Para fechar a boca de pessoas mais versadas em intrigas do que em sabedoria, pedia a Platão que viesse a Siracusa para aconselhá-lo nos graves problemas que enfrentava, com o povo inquieto e os poderosos propensos a corrupção e conjuras.
Platão concordou em voltar à Sicília, não obstante as humilhações e perigos que enfrentara trinta anos antes. Tinha agora sessenta e um anos de idade e era celebradíssimo entre seus discípulos.
Na época em que se formam as espigas de trigo, o filósofo chegou a Siracusa. Foi recebido no porto por um séqüito dos mais notáveis da cidade. Dion, Euspesipo e os pitagóricos o levaram ao palácio, onde, em grande gala, cercado por seus auxiliares, o
tirano o aguardava. Platão estava no auge do seu vigor e maturidade, e seu aspecto não denunciava a idade que tinha na época. Alto, largo de ombros, rosto bronzeado, barba e cabelos ainda negros, vestia uma túnica branca, como de hábito, e manto violáceo.
Dionísio o abraçou carinhosamente, e apresentou Platão a seus auxiliares como sendo o homem mais estimado por gregos e bárbaros. Houve festa com banquete, música e dança até tarde da noite.
Durante meses, nos altos círculos de Siracusa, só se falava de filosofia e geometria, as duas matérias que mais uniam platônicos e pitagóricos. Novos alunos, filhos das famílias mais importantes da cidade, inscreveram-se na academia local, fundada por Euspesipo, semelhante nas acomodações, ensinamentos e até nos jardins à Academia de Atenas. Dionísio tornou-se mais sóbrio. Bebia menos e já não propunha aos seus convidados os argumentos enganadores de outros tempos. Estudava filosofia com seriedade.
O ideal de Platão continuava o mesmo: leis justas que se aplicassem igualmente a todos, inclusive aos poderosos, bem como a reconstrução e povoamento das cidades gregas da ilha destruídas pelos bárbaros. Dionísio, diante de todos, prometeu atendê-lo.
Naquela ocasião, eu viajei para Cirene, minha cidade natal, a fim de fundar a Escola Cirenaica que considera a prudência o fundamento da felicidade, nega a existência dos deuses e defende o cosmopolitismo. Voltei um ano depois em virtude dos compromissos assumidos com Dionísio, o único chefe de Estado que pagava com prodigalidade os meus conhecimentos de matemática e de medicina, visto que eu fiz passar uma lei que punia com gravidade aquele que urinasse nos riachos e fontes.
De volta, encontrei em Siracusa uma figura sinistra, o historiador Filisto, homem de mente prodigiosa, mas de ambições mesquinhas. Sua ligação com a cidade devia-se mais ao seu amor pela tirania do que pelo tirano. O velho Dionísio já o havia exilado em virtude de falatórios que surgiram de relacionamentos de portas adentro entre Filisto e familiares do tirano. Voltava agora a Siracusa a pedido dos poderosos da cidade. Filisto chegara com o objetivo de contrabalançar a influência de Platão sobre o segundo Dionísio. A funesta Caríbidis tudo tramara do alto do rochedo do estreito itálico. Platão
tinha agora pela frente um adversário perigoso que sabia manejar a língua e o punhal. Historiador emérito, Filisto escrevera uma minuciosa História do Egito e um formidável relato que abrangia desde o estabelecimento da tirania de Gelo, em Gela, na Sicília, quase cem anos antes, até os dias do velho Dionísio. Fora nomeado alto comandante da armada siracusana devido à sua habilidade e arrojo em entrar e sair dos perigos nos combates navais.
A crise política causada por Filisto teve origem numa mudança de palavras, feita por Dionísio, no texto da oração solene comemorativa de uma data importante. Em vez de ler “vida longa para a tirania”, o arauto deveria ler “vida longa para o atual governo”.
Filisto mostrou-se surpreso. Ali estava a influência nefasta de Platão. Passou a pedir a seus amigos que não faltassem com a memória e a prudência, enquanto evocava: - Quando eu era jovem, os atenienses enviaram contra Siracusa uma expedição militar comandada por Alcebíades. Não conseguindo, naquela época, vencer-nos pelas armas, enviam-nos agora este sofista para nos hipnotizar com palavras vãs, como fazem os flautistas sírios com as serpentes. (26) Filisto acusou Dion de seguir os conselhos de Platão com o objetivo de dissolver a força militar de dez mil mercenários - a quem, ele, Filisto, chamava de assalariados - e que eram a base e garantia de ordem na cidade. Como comandante supremo da armada, ele não iria permitir que Dion transformasse as trezentas naves de guerra em barcos mercantes. Acusava, ainda, Platão de induzir os jovens a buscar na Academia o tão celebrado bem supremo, em vez de apegar-se aos costumes dos antepassados.
(26) Plutarco
- Quando Platão enfraquecer a tirania - dizia - Dion se apossará do poder a favor dos sobrinhos Hiparinos e Niseus, filhos de sua irmã Aristômaca. Filisto propalava estas e outras acusações contra Dion e Platão no palácio, nas ruas e no mercado. Seus agentes conseguiram, nesta época, interceptar uma carta de Dion aos grandes de Cartago, que foi imediatamente entregue ao tirano. O ministro pedia aos generais cartagineses que não discutissem questões de fronteira com Dionísio sem sua presença.
O tirano não demonstrou a ninguém a agitação que a carta lhe causou. Dias depois, com afetada indiferença, chamou Dion à parte, e lhe mostrou a mensagem. Com calma, este procurou explicar o verdadeiro sentido de suas palavras. A política externa das cidades gregas na Sicília era extremamente complicada. Esparta protegia os gregos da ilha, mas via os cartagineses como inimigos. Cartago não suportava a presença da Grécia tão perto de seu território. Siracusa vivia entre dois povos hostis e aguerridos. A paz fora conseguida à custa de pacientes concessões e nebulosos tratados. Qualquer deslize de uma das partes poderia provocar novas guerras. - Como mandante de teu pai - explicou Dion - eu tinha poder absoluto para tratar com os cartagineses. Não podemos deixar a paz na ilha ao sabor dos caprichos de Esparta e da insensatez dos bárbaros. Nosso povo já padeceu de enormes sofrimentos. Vivemos num lodaçal de intrigas pelo domínio da ilha. Luto, apenas, pela paz entre os dois povos.
Dionísio abraçou Dion. Com fingida reconciliação, ordenou a ele, como se quisesse protegê-lo de graves riscos, que deixasse a Sicília e fosse viver algum tempo no Peloponeso. Até mesmo um tirano não governa sozinho. Dion fizera inimigos poderosos, colocando no Conselho cidadãos de Corinto em prejuízo de habitantes da ilha com antepassados gloriosos. Ele, Dionísio, não poderia garantir sua segurança e a de seus familiares. Com o tempo, tudo se resolveria, e todos poderiam voltar. Colocou, ainda, à sua disposição duas trirremes para o seu transporte, bem como de servos e amigos mais chegados. (27) - Não se trata de exílio - explicou Dionísio, com um sorriso descorado - e sim de uma peregrinação para evitar males maiores. Ao mesmo tempo, o príncipe queria que a viagem fosse feita com ostentação, para mostrar ao mundo o poder do tirano de Siracusa. Não conhecendo a verdadeira natureza de Platão, Dionísio achou por bem, para evitar que o filósofo, levado pela ira por causa da saída de Dion do governo, praticasse alguma insensatez. Pediu-lhe que se mudasse para a cidadela como proteção simulada por uma benigna hospedagem.
Dionísio temia que Platão acompanhasse o discípulo na viagem, dando ao mundo testemunho das injustiças praticadas pelo governo. A cidade, inquieta com os boatos e a inesperada viagem de Dion, viveu dias de incertezas e silêncio. O tirano procurava
acalmar os amigos do tio com gentilezas e dádivas. Às mulheres de sua família fazia crer que, assim agindo, as protegia, e que cedo todos estaria novamente unidos.
Depois que Dion viajou para Corinto, a atenção de Dionísio voltou-se para Platão. O tirano admirava e temia o filósofo. Receava que ele deixasse Siracusa e desacreditasse o governo, usando de seu prestígio como maior filósofo da época. Amigos do tirano também me confidenciaram que Dionísio temia ser derrubado por Dion, que era amado pelo povo, tendo sido este o verdadeiro motivo de seu afastamento. E tão prolixa era a alma deste déspota, que tinha a intenção, ainda, de substituir Dion no coração de (27) As mulheres da família de Dion, que não o acompanharam na viagem, eram parentes próximas do tirano Dionísio Platão, tendo chegado a prometer-lhe que faria mudanças nas leis da cidade, conforme este aconselhava, desde que ele renunciasse à amizade do discípulo. Ao mesmo tempo, para acalmá-lo, assegurava que traria Dion de volta no próximo verão. Eram tantas as promessas e tantas as contradições, como ocorre com os amantes tresloucados, que o filósofo já não podia mais dar crédito às palavras de Dionísio.
Confesso que eu achava divertido ver o filósofo vexado com aquela súbita paixão do tirano, justamente por ele, que tanto valor dava à coerência, à moderação e à lealdade. Vi muitas vezes Dionísio, com passos de raposa, caminhado ao redor da cidadela, à sua procura, temeroso, ao mesmo tempo, de perturbar a meditação ou mesmo o sono do pensador. Platão, avisado, vinha ao seu encontro. O tirano o recebia com olhares de amante “recusado na soleira da porta”. (28) - Tu estás sempre ocupado quando preciso de ti! Platão já não queria mais ficar a sós com Dionísio que, a todo momento, com rogos e anseios, procurava sua companhia, buscando os menores pretextos para tê-lo junto de si. O filósofo passou a recear mais a afeição do que o ódio do tirano. Quando ia ao palácio, por cautela, pedia a um dos pitagóricos que o acompanhasse.
Os deuses, entretanto, pareciam proteger Platão. Um fato imprevisível veio quebrar aquele ridículo idílio de um só. Como uma trovoada reboando no horizonte, veio a guerra. Dionísio teve que partir com suas tropas para honrar tratados e alianças. Cidades do sul da Itália pediam ajuda ao tirano de Siracusa. O mensageiro, depois de duas
jornadas de seis mudas, chegara à grande porta tarde da noite. Levado à presença de Dionísio, ainda ofegante e empoeirado, informou que as tropas lucanianas haviam (28) Figura integrante da comédia grega chegado até as margens do rio Crathis, pondo em risco Crotona e Locres, esta última, a cidade natal da mãe do tirano. Toda a planície além do rio Crathis, disse o mensageiro com um gesto largo, estava coberta de cavalos, escudos e lanças das tropas invasoras.
Durante a ceia, na casa do pitagórico Amiclas, Platão nos disse que Dionísio sofrera uma verdadeira transformação diante do mensageiro, como alguém que desperta de um sono letárgico. Chamou Filisto e os comandantes dos mercenários para combinar os aprestos de guerra. Eu mesmo havia sido chamado ao palácio para fazer os cálculos das despesas com o abastecimento de víveres e com a forragem dos cavalos para o prazo de três meses.
Platão deixou a cidadela e hospedou-se na casa de Amiclas. O próprio Dionísio fora buscá-lo no forte. Abraçou-o com amabilidade. Prometeu-lhe que logo que voltasse da guerra chamaria Dion de volta. Tudo se resolveria bem, desde que Platão colaborasse. Dionísio não queria se separar do filósofo sem esclarecer os desentendimentos ocorridos. Peço apenas - disse - que sejas coerente e me digas como devemos nos comportar um com o outro. - Vim para a Sicília - explicou Platão - com a reputação de ser muito melhor do que todos os outros filósofos. Vim a Siracusa para receber de ti um testemunho de fé, a fim de que na minha pessoa, a filosofia recolhesse as homenagens da própria multidão. Não o consegui, afinal. (29) - Neste ponto, discordo de ti - objetou Dionísio. Impassível, Platão continuou: - Não pretendo repetir o que muitos invocariam, mas tu pareces não ter já grande confiança em mim. (29) Carta de Platão ao segundo Dionísio - Agora entendo - ponderou o tirano - mas deixa-me observar. Não discordei do filósofo, e sim do político. - Afirmo que a verdadeira opinião que se tiver sobre a filosofia será a melhor forma, se formos honestos. A nossa malícia obteria resultados contrários. Ouve bem o que é justo
fazer-se, pois é desse modo que respondo à pergunta que me formulas: como devemos nos comportar um com o outro. - É exatamente o que desejo - insistiu o tirano. Platão não se deu por vencido, e explicou: - Se realmente desprezas a filosofia, então dize-lhe adeus! Mas, se junto de outro ou por ti próprio, não encontraste algo melhor do que aquilo que te dei, então honra o que achaste. Se, por acaso, foram os meus ensinamento que te satisfizeram, nesse caso, sou eu o quem tu deves honrar acima de tudo. Honrado por ti, honrar-te-ei. Desprezado por ti, deixarei de intervir. Numa palavra, se me honrares, será tanto para mim como para o outro uma vantagem. Mas se for eu a fazê-lo, será desonra para ambos. Dionísio, então confessou comovido: não queria que Platão, ressentido com ele, o desacreditasse junto aos gregos ou se referisse a ele em termos desagradáveis. Platão acalmou o tirano: - Na tua opinião, não deveria ser eu apenas a guardar silêncio a teu respeito, mas até todos os meus amigos, salvo Dion, devem evitar dizer ou fazer o que quer que seja que te desagrade. Ora, precisamente tal expressão, “salvo Dion”, dá a entender que não tenho nenhuma influência sobre meus amigos, pois se tivesse, como afirmas, sobre eles, sobre ti ou Dion, sem dúvida que nós e todos os outros gregos teríamos muito a lucrar com isso. Dionísio, com leve sorriso, observou que Platão apresentava naquele momento melhor aspecto do que quando chegara a Siracusa. O filósofo respondeu com frieza: - O que faz agora a minha força resulta do fato de viver de acordo com os meus princípios. (30) Três dias depois, Dionísio passou revista às tropas, cujos escudos polidos brilhavam ao sol da manhã. Partiu para o norte da ilha, montado num cavalo de raça com freio de ouro, à testa de cinco mil mercenários, dois mil ginetes e centenas de carros com as rodas munidas de foices. As naus comandadas por Filisto, abastecida de víveres, já estavam ancoradas em Zanclé para o transporte de tropas para o outro lado do estreito. Várias naus mercantes, transformadas em embarcações-estábulos, transportavam cavalos para a muda, no caso da guerra se prolongar.
Antes de voltar para Atenas, Platão ainda terminou uma série de palestras organizadas pelos pitagóricos sobre os legisladores e filósofos de Solon até Sócrates. Numa destas palestras, fez uma declaração que eu achei interessante registrar: “Não há obras de
Platão e nunca haverá. O que hoje se designa com esse nome é de Sócrates, quando estava no esplendor da juventude. (31) O filósofo viajou para a Grécia continental. Este homem de alma tranqüila, celebérrimo no mundo grego pelos seus numerosos discípulos, apresentava, aos sessenta anos, um tão forte encanto pessoal e tal vigor físico e mental que espantava a todos.
Soube por Amiclas que Platão conseguira de Dionísio a promessa de considerar, oficialmente, a vigem de Dion como peregrinação de estadista e não como exílio. Este reconhecimento era importante, a fim de que as vultosas rendas de Dion ficassem depositadas no tesouro à sua disposição, visto que os exilados pelos tiranos tinham seus bens confiscados. (30) Trechos de carta de Platão ao segundo Dionísio (31) Carta de Platão aos amigos de Dion A guerra durou dois meses. Com o recuo dos lucanianos para o norte do rio Crathis fora evitado o avanço rumo a Locres, cidade amada por Dionísio. Não lobrigando inimigos, e vendo os seus carros de guerra rodando à toa, Dionísio procedeu à contagem de seus homens, arrumou os feridos e doentes nos carros de bois, as bagagens ao lombo das azêmolas. Ergueu as tendas e colocou as colunas em marcha de volta à sua cidade. No sul da Itália, deixou tropas aquarteladas sob o comando de Filisto para assegurar que os lucanianos observassem rigorosamente os tratados.
Dionísio não cumpriu a promessa feita a Platão de chamar Dion logo que terminasse a guerra. Como se quisesse suavizar essa deslealdade, passou a enviar a Dion, em Atenas, através dos banqueiro fenícios que comerciavam com Siracusa, as rendas de suas muitas propriedades.
Em Atenas, e muitas vezes em Corinto, Platão procurava manter a disciplina e a ordem mental de Dion dentro da adversidade, ministrando-lhe estudos filosóficos. Eu havia feito um trato com Dionísio de ficar na ilha oito meses por ano a seu serviço. Não podia me dar ao luxo de dispensar as suas dádivas, com as quais eu mantinha a Escola Cirenaica, por mim fundada. No verão eu viajava para Cirene, na Líbia, e ficava à testa da escola, tendo minha filha Areta, aficionada seguidora da minha doutrina, que sempre insistirei no meu ponto de vista - considera a prudência como fundamento de
todo prazer físico e mental, partindo do princípio de que o homem não necessita de auxílio alheio para conseguir a felicidade, o sossego e o repouso.
Voltemos a Dion: o exilado era um dos mais assíduos freqüentadores da Academia de Platão. Este centro de estudos fica no arredores de Atenas, num terreno adquirido pelo filósofo. Lá ele mandou construir um casa vasta e cômoda, cercada de densa vegetação que envolve o ambiente numa atmosfera verdejante e suave. A palavra academia deriva, dizem, de certo herói mitológico chamado Ecademo que dera seu nome ao bosque ali existente, mas por que Ecademo transformou-se em Academia, só os deuses sabem.
Quando lá estive, há anos, uma porção de escravos dirigidos pelo incansável Euspesipo, sobrinho de Platão, dava os últimos retoques no reboco, na caiação da casa e na construção de um belo peristilo. Era um jardim murado nos fundos da habitação, com um tanque cheio de peixes das mais variadas cores, repuxos e fontes jorrando água, uma das quais exibia uma cabeça de monstro, com a goela escancarada, esculpida na pedra.
Cidadãos de toda a Grécia vinham buscar os ensinamentos de Platão. Ali havia aulas de filosofia, oratória, matemática, leis e outras disciplinas. Dion criou para a Academia um curso de música e formou um coral de jovens afinados. Morava então na casa de Calipo e recebia, anualmente, as rendas de suas propriedades na Sicília por intermédio de Pasion, um escravo liberto que se transformara em banqueiro, favorecido pela herança do seu antigo senhor. Pasion representava em Atenas os banqueiros fenícios da Sicília. Dion, muito prestigiado em Atenas e Corinto, recebia convites de várias cidades gregas para pregar a doutrina de Platão. Esparta concedeu-lhe mercês e dignidades, chamandoo de cidadão espartano.
Estes fatos chegaram ao conhecimento de Dionísio, cuja mente não necessitava de muitas novas para perturbar-se. Ficou de tal forma transtornado com o sucesso do exilado no exterior, que decidiu não mais enviar as rendas a que Dion tinha direito. Privado delas, cismava o tirano, não poderia freqüentar os cidadãos ricos e poderosos, visto que era homem orgulhoso e amante da ostentação. Aos amigos, o tirano confessava, amargurado - nisto era sincero - o dilema que se criara com sua incompatibilidade com Platão. E aquele homem de homéricos embustes, imaginou, naquela ocasião, uma política oportunista: transformar Siracusa em uma cidade
protetora de sábios e artistas, cujas atividades seriam custeadas pelas rendas públicas. Platão, homem de numerosos discípulos, não poderia ignorar este movimento cultural. Os pitagóricos do sul da Itália, amantes do saber, seriam os primeiros a chamá-lo de volta à Sicília.
Nomes famosos da cultura grega encetaram palestras em Siracusa sobre filosofia e matemática pagas com dinheiro farto do tesouro da cidade. Neste propósito, Dionísio teve o apoio de Arquitas de Tarento, governante pitagórico com quem Platão vivia nos melhores termos. A partir de então, Arquitas e os pitagóricos da ilha se tornaram fiadores das boas intenções de Dionísio para com o filósofo. A irmã e a esposa de Dion passaram a enviar cartas a este pedindo que convencesse Platão a voltar a Siracusa, e a participar do movimento cultural que se iniciara, insinuando que isso melhoraria as relações do tirano para com ele, Dion.
Platão, pressionado pelos dois lados - seus amigos e o próprio Dion - decidiu voltar pela terceira vez à ilha da Sicília. Desta vez, a funesta Caríbidis soltou uma sonora gargalhada de vitória do alto do estreito itálico, onde Zeus a aprisionara por ter roubado os bois de Hércules.
Contava Platão naquela altura sessenta e seis anos. Viera de Atenas com uma só intenção: reconciliar Dion com Dionísio. E, como nas outras viagens, insistiu também no aperfeiçoamento das leis e no restabelecimento das cidades gregas destruídas pelos cartagineses. O relatório, cintilante de lógica, redigido por ele e Dion, aconselhava também a redução do número das cidades gregas a partir do rio Haliscos, sugerindo, ainda, a concentração dos seus habitantes. Este planejamento geográfico, há muito sonhado por Platão para a Sicília, tinha o claro objetivo político e militar de defender a civilização grega na região. - A dispersão da população helênica na Sicília - advertira sempre Dion - representa riscos dos quais os bárbaros saberão tirar proveito mais cedo ou mais tarde.
Para a execução deste projeto, Platão contava com o apoio de Arquitas de Tarento, tirano itálico, urbano e franco, que se fizera - e bom lembrar - fiador da segurança de Platão nesta terceira viagem.
Arquitas, tirano de Tarento, era uma figura interessante. Homem de incrível força física, entregava-se à dança e à filosofia com o mesmo vigor com que lançava o disco ou o dardo. Era muito admirado pelos pitagóricos, cuja seita seguia, em virtude de seus conhecimentos matemáticos. Bastava um curto momento de reflexão para Arquitas resolver os mais complicados problemas matemáticos. Sua realização mais importante nesta matéria foi a duplicação do cubo, isto é, a descoberta do processo para calcular o comprimento do lado de um cubo cujo volume é o dobro do volume de um cubo dado. Era hábil, também, em resolver questões mecânicas. Foi o inventor do chocalho para crianças. Queixava-se de que seus filhos faziam barulho quebrando coisas. Com o chocalho - explicava - fazem alarido sem danificar meus jarros. (32) Com a chegada de Platão e o apoio ostensivo de Arquitas, Filisto eclipsou-se. Deixou recados e avisos - ninguém pedira - informando que fora a Catane adquirir barcos para transportes. Mesmo ausente, tomava conhecimento de tudo por intermédio de amigos. Sua influência sobe o jovem Dionísio fora nefasta. Se Dion, havia sido o lado (32) Diana Bowder bom do pai, conforme confessara o primeiro Dionísio, Filisto fora o lado mau do filho. Com banquetes, mulheres e caçadas, conservava o jovem tirano afastado do centro das decisões políticas. Cercado de sofistas velhacos e bajuladores, Dionísio se considerava um homem feliz. Certa noite, em que esvaziávamos uma jarra de vinho, contei-lhe a história de Creso, o rei da Lídia, que se jactava de ser o homem mais feliz da terra por possuir belas mulheres, ouro e grandes palácios. Sólon, o sábio, advertiu-o: Só na hora da morte, o homem pode dizer se foi feliz ou não. Vencido na guerra e despojado de todos os seus bens, Creso foi levado à forca por Ciro, rei dos Persas. Já com o baraço no pescoço, degradado e nu como um escravo, Creso gritou: “Oh, Sólon! Oh, Sólon!” (33)
Com esses lamentos, Creso confessava o quanto fora sábia a advertência que fizera Sólon chamando a atenção para a instabilidade das coisas humanas e para as ciladas do destino.
Nesta terceira viagem, Platão se fez acompanhar de Xenócrates, seu jovem discípulo. Este rapaz, de curta inteligência, sentia por Platão uma espécie de fanatismo religioso. Comparado com outro jovem discípulo de Platão, o macedônio Aristóteles, que tinha uma disposição natural para a sabedoria, Platão dizia: “Xenócrates necessita acicate, Aristóteles, freio.” (34) O macedônio costumava irritar Platão com sua hábil dialética, o
que levava o mestre a dizer aos outros discípulos: “Aristóteles me escoiceia como os potros fazem com a égua mãe.”(35) (33) Ensaios, Montaigne (34) Diógenes Laércio (35) Idem
A volta de Platão à ilha causou alvoroço e alegria ao povo siracusano. Uma comitiva de cidadãos veio com seus familiares e servos saudar o filósofo. Gente do povo nas estradas e nos campo informava festivamente aos amigos sobre sua chegada. Todos acreditavam que ele iria contrabalançar a perniciosa influência que o historiador Filisto exercia sobre o governo da cidade. A fama de Platão obrigava Dionísio a cumulá-lo de honrarias. O filósofo era convidado a fazer palestras em todas as cidades vizinhas. Isso preocupava Dionísio, que certa vez lhe disse: - Não quero que tu me recrimines junto aos teus discípulos! Ao que Platão respondeu: - Tenho tantos assuntos para tratar, que não me sobra tempo para pensar em ti. (36) Em virtude dos desatinos de Dionísio, Siracusa atravessava situação de extremo perigo. Parecia que somente com a volta de Dion haveria ordem e cessariam os tumultos. Dos cárceres cavados nas rochas, vinham lamentos e gritos. Cadáveres deformados e inchados eram devolvidos à praia pelo mar espumante. O povo, sobrecarregado de dívidas, mostrava-se inquieto. Cidadãos dignos viviam expostos a acusações e difamações. Nas ruas os jovens da nobreza derramavam sangue pelas esquinas, na prática de torpes vinganças. A alta sociedade vivia apenas para banquetes e orgias.
Esta situação escandalizou Platão, visto que Dionísio filho lhe parecera, de início, ter melhor índole do que o pai. Que vida era aquela? Um luxo irresponsável, festins dia e noite, homens inescrupulosos cometendo toda casta de violências em nome do Estado. Platão sentia horror vendo as coisas públicas à deriva. Crise política e moral desgraçava as cidades gregas (37). Para Platão, somente a educação em todos os níveis do homem grego poderia modificar este estado de coisas. (36) Carta de Platão a Dionísio (37) “A Filosofia Grega desde sua Origem até Platão”, de Julian Marias. O filósofo passou a buscar o ensejo de falar a sós com Dionísio. Freqüentava com mais constância o palácio, acompanhando o tirano nas festas e jogos. Ele, Platão, já dissera a
que vinha. Cabia agora a Dionísio dizer por que o chamara. Voltara à Sicília enfrentando riscos e vicissitudes, por causa das carta de seus familiares, das insistências de Arquitas de Tarento e dos pedidos de Dionísio e do próprio Dion. O que estava ele fazendo em Siracusa? Era isso que desejava saber.
Num dia de descanso, ausentes os cortesãos e estando Sofrosina, a esposa do tirano na ala das mulheres, Platão apareceu de surpresa no palácio. Eu aproveitara aquele dia, sem trabalho, para colocar em ordem as contas do governo. Estava à minha mesa, na sala do Conselho, com o escravo-escriba sentado no chão ao meu lado, com a tábua de cálculos sobre o joelho, quando vi o filósofo falando com Cilônio, o secretário de Dionísio. Com um aceno, Platão cumprimentou-me. Logo o tirano veio ao seu encontro e o abraçou amavelmente. Os dois foram para o pórtico e, com passos lentos, começaram a caminhar lado a lado. Da minha mesa eu os via andando entre as colunas e ouvia de quando em vez uma ou outra frase. A conversação prolongava-se. Ouvi Dionísio altear a voz: - És insidioso na argumentação, Platão. Explica-te com mais clareza. Ouvi o filósofo responder: -Peço-te apenas que sejas coerente contigo mesmo. Vim a Siracusa chamado por ti. (38) Os dois se desentendiam. À medida que o tirano levantava a voz, Platão também elevava a sua. Dionísio, com os olhos em chispas, passou a gritar, mas o filósofo mantinha-se impassível, argumentando e encarando o interlocutor com o olhar severo. (38) Carta de Platão ao segundo Dionísio.
Falava com voz pausada e firme: - Nas tuas cartas dizias-me que se viesse a Siracusa os assuntos de Dion arranjar-se-iam segundo os meus desejos. Senão seria o contrário. Todos, a começar por Dion, são da opinião de que eu deveria embarcar. Ah, eu teria tanto a dizer sobre as muitas promessas feitas por ti e que nunca mantiveste! (39) Dionísio gritou: - Pois então nada mais tenho a falar contigo! E aconteceu o que ninguém em Siracusa julgaria ser possível. Dionísio, pálido de cólera, com a boca espumando, deixou o pórtico. Ao passar defronte da minha mesa, gritou: - Platão conseguiu me irritar! Não muda de opinião e não muda de assunto!
Foi para o seu gabinete, fechando o cortinado com um gesto brusco. A qualquer momento, poderia vir o comandante da guarda prender Platão. Aproximeime dele e pedi: - Vem comigo, Platão. Eu te acompanho até a casa de Amiclas. O filósofo meneou a cabeça tristemente. Apoiando-se numa coluna, ficou olhando o mar distante e azul como a sua túnica.
Dionísio não voltou mais ao salão. Depois de algum tempo, Platão retirou-se. Preocupado com o agravamento das relações entre o tirano e o filósofo, dirigi-me à casa de Amiclas. Recordo-me de que era uma noite negra com céu estrelado e lua minguante. Embrulhado no manto, atravessei a cidade acompanhado de um escravo que portava a tocha. (39) Idem
Amiclas habitava uma casa vasta com muitos cômodos no caminho que conduz aos banhos públicos. Platão já lá estava, acompanhado de amigos, todos reclinados em leitos em torno da mesa. Ceia copiosa fora servida. O pitagórico era um anfitrião amável e atento. Ordenou a um escravo que colocasse ao meu lado uma jarra de vinho diluído em água em uma vasilha de barro com um primoroso peixe. Candeias suspensas em argolas de ferro, presas nas paredes, projetavam sombras vacilantes, alongadas no lajedo. Todos ouviam Platão que, com a alma turvada, falava dos últimos acontecimentos: - Dionísio me acusa de lhe roubar os projetos de restabelecer as cidades gregas da ilha e do intuito de transformar a tirania em realeza. Segundo ele me disse, eu o teria desviado deste objetivo para agora encarregar Dion de realizar estes mesmos desígnios, roubando assim suas idéias. (40) - E com que intenção farias isso? - perguntaram. - Eu e Dion estaríamos planejando tirar-lhe o poder. Acusei-o de faltar com a verdade. Disse-lhe que já bastavam as calúnias contra mim assacadas por Filisto e seus amigos junto aos mercenários e ao povo. (41) Não é inoportuno relembrar que, na viagem anterior, Platão propusera a Dionísio o estabelecimento de uma realeza com leis às quais o próprio rei estaria sujeito, dizendo: “Um tirano precisa de mercenários, um rei não”. Queria dizer que as leis garantiriam a ordem, bastando a guarda nos tempos de paz, e o povo armado nos tempos de guerra.
Os mercenários souberam por intermédio de Filisto deste conselho que o pensador dera ao tirano. Filisto acrescentara ainda aos soldados assalariados: “Dionísio ouve Platão em tudo! “ A partir de então o filósofo passou a ser odiado também pelos mercenários.
(40) Idem (41) Carta de Platão aos amigos de Dion
- Em questões políticas - continuou Platão naquela noite durante a ceia - se eu consenti em partilhar até certo ponto dos trabalhos do governo foi apenas, a princípio, por supor que podia prestar alguns serviços. E salvo assuntos de pouca importância, só me ocupei um pouco mais a sério dos projetos de autoria de Dionísio e de membros do Conselho. Outros redigiram estes projetos e as diferentes redações saltarão aos olhos de quem quer que esteja em condições de apreciar meu estilo. Tenho, portanto, que deixar bem claro dois pontos: primeiro, mostrar que eu tive razão em recusar toda a participação no governo da cidade, e segundo, quero provar que não vieram de mim os obstáculos que Dionísio aponta para o restabelecimento das cidades gregas, ou que eu o teria impedido de realizar este propósito. (42) - Oh, Aristipo - exclamou Xenócrates - os deuses falaram por tua boca quando anunciaste que Platão e Dionísio se tornariam inimigos! Fez-se na sala um silêncio envergonhado. Xenócrates possuía um alma simples, não obstante ter o espírito preparado pelos estudos. Ele não percebeu que aquela observação era imprópria. Platão afagou a mão do discípulo e murmurou: - Ainda não te acostumaste, meu caro Xenócrates, às observações extravagantes de Aristipo. Confesso que fiquei vexado. Explicarei ao leitor a razão deste infeliz gracejo. O astrônomo e matemático Helicon de Cícico, amigo de Platão, previu um eclipse solar que realmente aconteceu. Dionísio, admirado, deu-lhe um talento de prata. Eu achei que era oportuno esclarecer que não houve profecia, visto que há previsões de fatos conhecidos pela experiência ou concluídos pela intuição. Numa tertúlia regada a vinho, gracejos e gargalhadas, anunciei com voz pomposa:
(42) Carta de Platão aos amigos de Dion
- Se Helicon de Cícico é profeta porque previu um eclipse do sol, eu vou então fazer minha profecia: Platão e Dionísio, muito em breve, tornar-se-ão inimigos. Foi uma pilhéria de mau gosto, reconheço. Como havia na mesa gente que gosta de investigar mistérios e que se delicia com o oculto, quis, com esse gracejo impensado, dar uma lição de lógica. Helicon de Cícico, baseado na matemática e na ciência dos astros, previra o eclipse. Eu, apoiado nos recentes acontecimentos políticos, vaticinara desentendimentos graves entre Platão e Dionísio.
Platão, que ouviu a minha explicação, sossegou-me, à maneira de desculpas: - Conheço tua alma, Aristipo. Eu, quando me calo diante das evidências sombrias, é porque não quero profetizar senão a felicidade. (43) Dias depois, uma notícia caiu como um raio na cidade. Platão, por ordem de Dionísio, mudara-se para o forte da Acrópole, onde ficavam aquartelados os mercenários.
Sempre que eu dava um passeio fora dos muros da cidade, observava aquela construção maciça e sombria logo abaixo do Templo: um gigantesco quadrado de altos muros, encrespado de ameias, com quatros torres de pedras nas esquinas.
Os amigos de Platão, angustiados, perguntavam-se qual seria a secreta intenção de Dionísio internando Platão no forte da Acrópole. Evitar que ele fosse assassinado pelos homens de Filisto ou expô-lo, deliberadamente, ao risco de ser morto pelos mercenários? Era pelo menos o que se dizia. As causas do ódio dos soldados assalariados por Platão já foi explicada, e volto a lembrar: nas reformas que o filósofo preconizava, os mercenários seriam dispensados. (43) Carta de Platão aos amigos de Dion
Depois de angustiosas considerações, decidimos informar Arquitas de Tarento, que se fizera fiador de Platão junto a Dionísio nesta terceira viagem do filósofo a Siracusa. O fiel Xenócrates prontificou-se a ser o mensageiro da carta. Nós o levamos até a Grande Porta para o caso dos guardas impedirem sua saída, visto ser praticamente um desconhecido na cidade.
Nunca as patas dos cavalos nos pareceram tão sonoras nas pedras do caminho, como aquelas que ouvimos quando Xenócrates, curvado sobre a montaria, mergulhou a galope, nas trevas da noite.
Tínhamos agora que suportar o passar do tempo, enquanto nosso amigo percorria a distância entre as duas cidades. Nas ceias, à luz mortiça das candeias, na casa de Amiclas, ficávamos cavilando quais seriam os planos de Dionísio. Sabíamos que os mercenários andavam inquietos e insolentes em virtude do descaso do tirano para com eles. Os salários estavam atrasado e eles viam nesse desapreço a influência de Platão. Os assalariados recordavam com nostalgia os tempos do velho Dionísio, que militava com eles nos combates, pagava dinheiro grosso às tropas tanto na guerra quanto na paz, além de distribuir os saque das cidades vencidas. O pai do atual tirano comia e bebia com eles nos banquetes públicos, rindo às gargalhadas das obscenidades narradas pelos soldados. O filho, entretanto, embebido das doutrinas dos sofistas - assim falava Filisto a eles - só pensava em construir edifícios magníficos com colunas marmóreas sustentando pórticos lavrados por artistas de alto preço. Os mercenários, quando desciam ao mercado, lançavam olhos endurecidos para os filósofos e artistas recémchegados a Siracusa. Falava-se, também, dos donativos e presentes dados pelo jovem tirano àquela gente efeminada que jamais pegara numa espada ou num arco. Filisto espalhava que o tesouro que o pai deixara prenhe, o filho deixava magro. Os nobres, agora aliados a Filisto, apontavam Platão como culpado, repetindo que Dionísio ouvia Platão em tudo.
Os pitagóricos eram da opinião que Dionísio fazia jogo duplo. No caso de Platão ser assassinado a mando de Filisto, ele ficaria comprometido, visto ser este, na época, o segundo homem do governo. Na suposição do crime ser cometido pelos mercenários, Dionísio denunciaria com alarde a rebelião e, com a ajuda dos tiranos aliados das cidades próximas - sempre houvera, para o caso de motim, acordo nesse sentido crucificaria centenas de soldados fora dos muros da cidade, ao longo dos caminhos, com ordem de deixá-los apodrecer na cruz, comidos pelos abutres. Para o mundo grego, o fato pareceria verossímil e a crucificação dos mercenários, um ato de justiça.
Confesso que fiquei esperançoso quando Demerato entrou no caso. Ele era um rico cidadão siracusano em cuja opulenta fazenda, Dionísio caçava e repousava no verão.
Eram companheiros desde a infância. Amadurecidos - um pelo poder, e o outro pela riqueza - continuaram amigos e confidentes. Tratei muitas vezes com Demerato. Pacificador, maneiroso, de falar nobre e discreto, pronunciava as palavras como se estivesse ditando uma carta. Com voz suave e olhar prestativo, colocando a mão amiga no ombro do interlocutor, mostrava com decência e lógica qual o caminho a seguir, mesmo que fosse o da forca. No caso de Platão, entretanto, eu achava que Demerato tentaria evitar o pior.
Ainda me recordo das idas e vindas de Demerato entre o palácio e a Acrópole, bem como de suas longas conversas, no pátio do forte, com Araspas, capitão dos mercenários. Era um persa gigantesco, fugitivo da corte do segundo Artaxerxes, que Dionísio acolhera a pedido de Esparta. Com o tempo, por vê-lo inexcedível nas artes da guerra, fê-lo comandante. Quando eu ia visitar Platão no forte da Acrópole, costumava ver Demerato, com a mão pousada no ombro do persa, falando com suavidade ameaçadora.
A volta de Xenócrates devolveu-nos a força de ânimo. O jovem, coberto de poeira, entrou como uma rajada de vento na casa de Amiclas. Trazia num rolo lacrado a carta de Arquitas para Dionísio.
Arquitas era homem capaz de ir aos maiores extremos para socorrer um amigo. Ao tomar conhecimento da situação em que Platão se encontrava, enviou, além de uma carta a Dionísio, uma embaixada formada por ilustres cidadãos de Tarento para deputarem junto a este a proposta de embarcar Platão de volta a Atenas. Uma trirreme armada viera ancorar próximo a Siracusa com o objetivo de apoiar Dionísio, no caso dos oligarcas causarem perturbações.
Depois que Xenócrates banhou-se e ceou, fomos, acompanhados dos pitagóricos, solicitar uma audiência. O tirano mostrava grande respeito por este grupo de estudiosos, visto que sua seita é muito considerada no sul da Itália. Recebeu-nos amavelmente. Passadas as saudações, entregamos-lhe a carta de Arquitas. A fisionomia de Dionísio, até aquele momento serena, transformou-se, tornando-se desdenhosa e fria. Quebrou o lacre com as mãos trêmulas e desenrolou o manuscrito. Seus olhos assumiram uma expressão dura, ao correr da leitura. Enrolou a carta com um olhar distante e me
ordenou que a arquivasse. O tirano preferiu não tratar do assunto de forma confidencial com o objetivo de que todos soubessem dos riscos que Siracusa correria, caso Platão não partisse livremente para Atenas. Era um advertência dirigida a Filisto e aos nobres. A carta foi redigida nos seguintes termos: “Arquitas a Dionísio: Saudações: Nós, amigos de Platão, enviamos Lamisco e Fótidas , a fim de que lhes entregues aquele varão conforme combinamos. Sei que nos atenderás, recordando-te o interesse com que pediste que nós encorajássemos Platão a empreender esta terceira viagem a Siracusa, visto que tu o receberias dignamente e que lhe permitirias permanecer na cidade ou retornar a Atenas livremente. Aproveito a oportunidade para lembrar-te o quanto o admiraste na viagem anterior, mais do qualquer outro filósofo. E se aconteceu entre ti e ele algum desentendimento, convém que ajas com humanidade e o deixes partir, sem lhe causar nenhum dano. Assim procedendo, tu serás justo e nos agradarás. “ (44)
Recordo-me de que naquele dia, Xenócrates, que era simplório, perguntou a Dionísio: - Então, senhor, podemos buscar Platão no forte? Dionísio olhou-o com frieza. - A paciência, jovem, é a arte de esperar. Aqui fora Platão pode encontrar pessoas que queiram cortar-lhe o pescoço. E passou a mão acima do peito, fazendo o gesto da degola. Xenócrates apontou para a própria garganta e retrucou: - Ninguém cortará o pescoço de Platão, antes de cortar este! Dionísio teve uma reação surpreendente. Com um olhar de espanto, deu uma risada áspera e voltou aos seus aposentos desfeito em risos.
Não existia para nós, àquela altura, nada que demandasse tanta pressa quanto o embarque de Platão para Atenas. Demerato, extremado nas providências e imperturbável no trato, pedia paciência. Eu, Xenócrates e os pitagóricos visitávamos Platão diariamente. (44) Diógenes Laércio O filósofo escrevia muito. Eram cartas a vários amigos da Itália, visto que não se cansava de dizer que, em virtude da idade, não pretendia mais viajar. Ia realizar seu velho sonho: dedicar-se inteiramente à filosofia e à sua Academia em Atenas.
Semanas depois, aportou em Siracusa a nave que devia levar Platão de volta a Atenas. Demerato providenciou o transporte de seus pertences para a embarcação. Na véspera do embarque, Dionísio ofereceu um banquete em homenagem ao filósofo. Apenas os amigos mais íntimos de ambos foram convidados. A guarda do palácio foi reforçada. Uma preciosa baixela e vasos ricamente pintados pelos melhores oleiros de Corinto, usados apenas em banquetes oferecidos a chefes de Estado, foram retirados das arcas e colocados na mesa naquela noite. Nós nos sentíamos felizes com a volta de Platão são e salvo a Atenas, conforme pedira Arquitas de Tarento. A funesta Caríbidis devia olhar aquela viagem com repugnância e antipatia.
Na noite do festim, atrasei-me por causa de uma aula que dera fora dos muros da cidade. Ao subir a escadaria, ouvi vozes e aplausos. Um servo retirou o meu calçado e lavou meus pés. Entrei de mansinho no salão iluminado por dezenas de candeias suspensas por correntes de ouro. Observei que Demerato, hábil conhecedor de muitas coisas, atendia os convidados e dava ordens aos escravos. Dionísio, ao seu lado, parecia tranqüilo e sem malícia. Justifiquei ao tirano o meu atraso e reclinei-me num dos leitos ao lado das mesas. Eram descansos de pouca altura com patas de animais esculpidas nos pés e rodeados de leitos almofadados onde os comensais, recostados, palestravam. De repente fez-se silêncio. Platão, de pé, com a taça na mão, fazia um brinde: - Alegra-te, Dionísio, alegra-te. Terei eu encontrado a melhor forma de te fazer um brinde? Ou antes, como é meu costume, quando me dirijo aos amigos, devia desejar-te boa sorte? Tu próprio, conforme me informaram os que foram testemunhas, saudaste o deus em Delfos precisamente por esta forma, e dizem que pediste que o deus alegrasse e conservasse feliz a vida de um tirano. Por mim, não quereria exprimir tais votos a um homem, quanto mais a um deus: a um deus porque os meus desejos seriam incompatíveis com a natureza divina, que está além do prazer e da dor; a um homem porque, a maior parte das vezes, prazer e dor são fontes de desgosto. E aqui fica a minha saudação. Cabe a ti escolheres a que te parece melhor.”(45)
Dionísio então se ergueu e, conforme os costumes, ofereceu a terceira taça aos deuses. Nós repetimos a libação e em coro cantamos o Péan. Reclinados nos leitos, iniciamos a refeição . O vinho nos tornara amáveis e alegres. Foram servidas carne de carneiro e de perdizes com legumes. Veio, em seguida, um primoroso peixe. Jovens, trajando túnicas
das mais variadas cores, continuavam a verter vinho nas taças e a trinchar a carne. Um grupo de músicos, para não perturbar a conversação, tocava no fundo da sala melodias suaves nas cítaras e flautas.
Falei há pouco dos famosos vasos de Corinto, da baixela de Dionísio, usados apenas nos momentos solenes e que Demerato ordenara fossem colocados na mesa naquela noite. Eram de rara beleza. Vasos e travessas de duas asas com figuras pretas de atletas e animais em fundo rosado, ou figuras vermelhas em fundo preto, fabricados por oleiros famosos, verdadeiros artistas de Corinto.
Depois de nos banquetearmos, voltamos para casa de Amiclas com passos pesados. (45) Carta de Platão a Dionísio
Dionísio despedira-se de Platão no palácio. Os dois haviam conversado a sós. Na casa do pitagórico, Platão nos falou longamente desta sua terceira viagem à Sicília, dirigindo-se, principalmente, a Lamisco e Fótidas, embaixadores de Arquitas de Tarento, que vieram a Siracusa como negociadores da paz entre o filósofo e Dionísio. Platão realçou, mais uma vez, que viera à ilha atendendo solicitação de Dion, seu sábio conselheiro em assuntos itálicos, cujo pedido ele não podia desprezar. - Conheço bem Dion, meu discípulo há longos anos. Homem generoso e justo, em plena força e maturidade de espírito, condições absolutamente indispensáveis a pessoas chamadas a deliberar sobre questões tão graves como são os assuntos do governo de Dionísio. Este, eu conheci muito jovem, totalmente desprovido de experiência e até então desconhecido para mim. Depressa Dion foi banido e Dionísio ficou sozinho entregue a uma multidão de homens perversos, que ele julgava comandar, não fazendo senão obedecer a essa gente, em vez de exercer o poder. Devo acusar um homem, um deus ou à fortuna ajudada por Dionísio? Nós sabíamos que com Dion ausente, Platão não poderia participar dos assuntos políticos de Siracusa. - Tendo perdido aquele meu sábio companheiro - continuou o filósofo - qual deveria ser a minha atitude? Não seria aquela que fui forçado a tomar? Dizer adeus, a partir de então, aos assuntos políticos, precaver-me contra as calúnias dos invejosos e empregar todos os meios, apesar das divisões e discórdias, para reatar a amizade entre Dion e
Dionísio? Eu vim, então, pela terceira vez a Siracusa. O próprio Dionísio me chamou pedindo que viesse sozinho. A Dion, ele prometia fazê-lo voltar mais tarde. Relutei, então, em viajar, provocando o descontentamento de Dion, que julgava preferível que eu viesse e me submetesse às ordens de Dionísio. Naquela época, aportou em Atenas um barco trirreme com cartas deste, nas quais ele me dizia que se eu viesse a Siracusa, os assuntos de Dion se arranjariam segundo os meus desejos. Senão, vejam bem, senhores, seria o contrário. E passei, então, a receber cartas de Dionísio, da Itália, daqui da Sicília, dos meus familiares e amigos. Todos me incitavam a vir e suplicavam que eu obedecesse ao tirano. Portanto, todos, a começar por Dion, eram da opinião de que deveria embarcar sem vacilar. Em vão eu dava como pretexto para não viajar a minha idade, quase setenta anos, e insistia no fato de que Dionísio seria incapaz de resistir aos que me caluniassem, sonhando ver-nos como inimigos. Contudo, pus de parte todas estas razões e vim pela terceira vez a Siracusa. Eu não queria que meus amigos pudessem me acusar de ter abandonado Dion, por negligência, quando podia salvá-lo. Eu vim, pois, e todos sabem bem tudo que se passou. Quero deixar bem claro, antes da minha viagem, que eu insisti com Dionísio para que, segundo as promessas que continham as cartas que ele me enviou, chamasse Dion de volta. Seria melhor para ele, para os siracusanos e para todos os gregos. Assim pelo menos eu acreditava. Pedi também que confiasse os bens de Dion à sua família e não a administradores que apenas ele, Dionísio, conhecia. Deixei bem claro que era preciso enviar a Dion, todos os anos, os rendimentos habituais e até aproveitar a minha estada aqui para os aumentar e não para diminuir. Não conseguindo nada, pensei em partir. Dionísio persuadiu-me a ficar, visto que ele liquidaria toda a fortuna de Dion para enviar metade a este e o resto a seu filho. Oh, eu teria muito a dizer sobre as tantas promessas feitas por Dionísio, e que nunca foram mantidas. Mas onde eu quero chegar com este discurso? Quero que Dionísio não me calunie mais, e disse isso há pouco a ele, não me calunie, pretendendo que eu o impedi de restabelecer as cidades gregas destruídas pelos bárbaros e de aliviar o peso da tirania. Eu poderia, aliás, desmenti-lo com argumentos mais claros ainda, se houvesse um tribunal competente para provar que os conselho vinham de mim e as recusas, dele. Disse-lhe também há pouco, quando nos despedimos: Se negas ter pronunciado as palavras que disseste, pedirei satisfações. Se confessas, se te resolveres a imitar a retratação de todo o homem sábio, passa, então, da mentira à verdade. (46) (46) Carta de Platão aos amigos de Dion.
Assim falou Platão aos amigos na última noite que passou em Siracusa. No dia seguinte, o filósofo compareceu a várias homenagens que lhe foram prestadas e tomou parte no banquete público. E quando o sol estava quase no ocaso, com ventos vindos da África, embarcou. Xenócrates o acompanhou.
Observando o piloto debruçado na proa, com a sonda em punho como se temesses os baixios, perguntei a Demerato quem era aquele comandante que parecia não conhecer o porto de Siracusa. Ele me respondeu que se tratava de navegador de inteira confiança de Arquitas de Tarento. Eu e os pitagóricos nos tranqüilizamos. Com a saída de Platão, a luta pelo aperfeiçoamento das instituições políticas da Sicília perdeu toda a grandeza. Os oligarcas festejaram sua partida como se tivessem se livrado da peste. Dionísio tornou-se mais cínico e debochado ainda. Dizia sempre: “Aquele que viver ao lado de um tirano, se torna escravo, mesmo que seja cidadão livre.” Perdeu também o interesse pelos estudos filosóficos. Perguntou-me certa vez: - Que diferença há entre um filósofo e um homem comum? - Coloque os dois numa cidade sem lei e verás a diferença - respondi. (47) A disputa pelo poder na Itália Grega voltou a ser uma perversa e mesquinha luta de lobos e chacais. Dionísio pensava em fazer novas alianças políticas para se fortalecer na região e, naquela altura, via Arete, esposa de Dion, como moeda de troca. Rica e sem igual em formosura, conquistaria facilmente as graças de algum príncipe. Platão ficara de tocar neste assunto com Dion que, todos sabiam, não se dava bem com a esposa. Assim, ele também ficaria livre para fazer novas alianças. (47) Diógenes Laércio
O plano de Dionísio era casar Arete, sua meia-irmã, com Timócrates, importante cidadão siracusano, chefe do partido dos proprietários das ricas terras que cercam a cidade, além de ser pessoa protegida pelo Tirano de Rhegion. Logo que Platão chegou a Corinto, onde naquela altura morava Dion, escreveu carta a Dionísio comunicando que aquele se sentiria insultado se fosse levado a cabo o seu plano de casar Arete com outro homem. Dionísio não recuou. Fazendo uso do seu poder, como tirano, de anular casamentos, não somente casou Arete com o poderoso Timócrates, como também confiscou os bens de Dion e adotou seu filho, que há muito vivia no palácio com a mãe e a avó, madrasta do tirano. A outra esposa do velho
Dionísio vivia, naquela época, em Locres, no sul da Itália. Estes acontecimentos colocaram Dion em ânimo de guerra contra Dionísio.
DION Antes de narrar os trágicos acontecimentos que terão lugar em Siracusa, em virtude do lodaçal no qual Dion e Dionísio se lançaram, não é inoportuno lembrar que, em situação semelhante, o pai do tirano se portou melhor do que o filho. Polixeno, seu cunhado, desavindo-se com ele, fugiu. A princípio, o velho Dionísio julgou que havia conluio entre sua irmã, Testes, e o marido. Interpelou-a. Testes era mulher de forte personalidade e muito querida na cidade. Costumava visitar os bairros pobres levando alimentos e roupas. Respondeu nos seguintes termos: Pensas, meu irmão, que sou tão mal casada, tão infeliz com meu marido que se soubesse da sua intenção de abandonar a ilha não o teria seguido para participar de sua sorte? Pois te digo: não sabia dos planos de Polixeno. E digo mais: daqui em diante prefiro que me chamem de esposa de Polixeno do que de irmã de um tirano! “ (48)
Dionísio retirou-se, admirado com as palavras de sua irmã. Continuou a tratá-la com toda a consideração. Parece-me que, evocando este fato, não me desviei do assunto principal.
Em Corinto, Dion convocava os desterrados de Siracusa para formarem um exército e invadirem a Sicília grega. Heráclides, que havia sido chefe da cavalaria siracusana e fora (48) Plutarco expulso da ilho pelo próprio Dionísio, uniu-se a Dion. Ambos começaram os preparativos para a guerra. Platão, pretextando idade avançada e o fato de ter sido hóspede de Dionísio, não se uniu a eles. Euspesipo, sobrinho de Platão e os demais filósofos que haviam visitado Siracusa e conheciam bem a opinião do povo, exortavam os dois a libertar a população siracusana. Em carta dirigida a seus amigos, Dion explicava que depois de longa prosperidade via-se, agora, humilhado pelas desgraças impostas por Dionísio. Foram-lhe confiscados os bens que lhe permitiam viver com
dignidade no estrangeiro e sua esposa fora obrigada a se casar com outro homem por um capricho do tirano. Aquela grandeza moral, imposta por Platão nas decisões políticas da cidade durante sua estada na ilha, procurando aperfeiçoar as leis e os costumes para tornar o povo mais feliz, transformaram-se num espetáculo hediondo de infâmias e humilhações. Os conselhos de sabedoria e prudência encontraram ouvidos moucos. O ferro e o fogo falariam agora.
Dion e Heráclides passaram a recrutar, em segredo, tropas mercenárias, aquartelando-as numa ilha sinistra e sombria, afastada da costa, lugar propício para empreendimentos obscuros. Ficou acertado que Dion comandaria a tropa e Heráclides, as naves. Siracusanos e sicilianos exilados uniram-se à expedição, jurando derrubar o governo despótico. Mais adiante veremos que muitos deles odiavam o tirano, e não a tirania.
Em pleno verão, quando os preparativos de guerra chegaram ao auge, já abastecido de víveres, Dion, tendo formado em ordem a infantaria, a cavalaria e a frota na praia, fez um sacrifício a Apolo, acompanhado em grande pompa pelos soldados. Depois dos sacrifícios e libações, os chefes ofereceram aos combatentes um lauto banquete em mesas preparadas na areia, deixando-os maravilhados com a riqueza dos pratos, vasilhas e jarros de ouro e prata, abastança mais própria de uma cidade do que de um único cidadão.
Ao cair da tarde a expedição partiu rumo à Sicília, com ventos favoráveis e mar tranqüilo. Os soldados brandiam as armas, soltando urros como incentivo à força e à coragem.
Em alto mar, os combatentes tomaram conhecimento de que iam fazer guerra a Dionísio, tirano de Siracusa, cidade grande e bem fortificada. Todos ficaram surpresos e aturdidos, considerando a empresa temerária, visto que teriam que atacar uma tirania de quase cinqüenta anos, considerada muito sólida.
Uma proclamação escrita por Dion foi lida em todas as naves: “Sicilianos e siracusanos esperam-nos na ilha para abraçarem a mesma causa. Eu, Dion, meu irmão Mégacles e o ateniense Calipo, homens maduros e exercitados nos assuntos de guerra, possuidores de muitos bens e riquezas na Sicília, não se arrojariam a empreendimento de tamanha
magnitude sem certeza da vitória e da ajuda de amigos e aliados na própria Sicília, que lhes oferecerão grandes e custosos auxílios.”
Depois de doze dias, com vento favorável, a esquadra se viu envolta por uma fúnebre calmaria, em meio a denso nevoeiro; parecia que o céu e o mar se confundiam.
Navegando ao longo da costa africana, onde o Mediterrâneo se estreita, as naves de Dion deslizaram durante três dias, lentamente, como sombras, num mar acinzentado, a fim de evitar as galeras de proa pontiaguda de Filisto. De repente, o céu clareou e um vento úmido inflou as velas das estrebarias flutuantes, que levavam cavalos e forragem. As galeras a remo dos combatentes puderam então avançar. Dois dias depois, atingiram a costa da Sicília, no ponto onde está situada Minoe, povoado cartaginês.
Após curto desentendimento com a guarda do forte, Sinato, comandante da praça, amigo de longa data de Dion, proporcionou alojamento aos soldados e ofereceu àquele coisas de necessidade naquela emergência.
O cartaginês informou a Dion que Dionísio partira para o sul da Itália com oitenta naves, deixando Siracusa entregue a mãos sem firmeza. A razão da viagem do tirano com toda a sua armada não parecia fazer sentido. Teria Dionísio julgado que Dion atacaria primeiro o sul da Itália, como outros inimigos já haviam feito? Cabia aproveitar a oportunidade que os deuses lhe ofereciam. Dion decidiu, então, investir diretamente contra Siracusa. Temócrito, que se casara com sua esposa, ficara no governo da cidade. Tomando conhecimento de que Dion se aproximava com um grande exército, ao qual já se haviam unido centenas de cidadãos do sul da Sicília, entrou em pânico e enviou um veloz mensageiro ao tirano. Ao estafeta ocorreu um fato jamais esclarecido: não chegou ao destino e jamais foi visto. A armada de Filisto, em virtude de circunstâncias que narraremos adiante, nada pôde fazer. Quis o destino que Dionísio soubesse tarde demais do ataque à sua cidade.
Diante de Siracusa, Dion deteve a marcha, ergueu tendas, fez sacrifícios aos deuses e ouviu dos adivinhos promissores augúrios. Na cidade, sobre as muralhas, a multidão, louca de alegria, atirava flores. No lado oposto à porta principal, os guardas, mudos de
espanto, viram Timócrates e seus amigos, curvados sobre as montarias, fugindo à rédea solta.
Dion e seu exército entraram em triunfo na cidade. Nobres, vestidos de gala, acompanhados de suas famílias, comerciantes com seus escravos, artesãos e suas mulheres acorreram para receber o homem que vinha libertar Siracusa. Dion, vistosamente armado, montando um corcel branco, seguido dos soldados que entoavam hinos de guerra e dos carros munidos de foices nas rodas, desfilou pelas ruas da cidade engalanada para recebê-lo.
Assim, Dion se apoderou da parte da Sicília que antes lhe obedecia, exceto do alcazar, quase na entrada do porto, na ilha de Ortígia, que continuou sob o domínio de Apolócrates, filho de Dionísio, cuja libertação dependia da armada comandada por Heráclides, que ainda não havia chegado.
Na praça, Dion falou à multidão, exortando-a a lutar pela liberdade. Cercado de seus principais auxiliares, assinou uma anistia que beneficiava os prisioneiros políticos. Como prova de gratidão e apreço, os cidadãos mais eminentes o nomearam chefe do governo com a finalidade de dar uma constituição à cidade. Os magistrados empossaram um novo conselho, composto de cidadãos residentes em Siracusa e de exilados que retornaram com Dion.
Informado por boatos incertos de que sua família deixara a cidade, Dion correu à sua casa. Seu velho servo, Damon, contou chorando que as duas mulheres e o menino, por ordem de Dionísio, haviam sido levados para o forte da ilha de Ortígia, aos cuidados de Apolócrates, filho do tirano. As mulheres não sofreram nenhuma violência. Concordaram em partir temendo os perigos da cidade inquieta. Dion, desolado, caminhou pela casa abandonada que lhe parecia triste e sinistra. Nada havia sido tocado, tudo estava em seu lugar, como antigamente. Mostrava-se, no entanto, árida como um deserto.
Mais uma vez, Dion procurou interpretar as verdadeiras intenções de Dionísio, de tal forma aquele homem de alma escorregadia sabia ser amável na baixeza, e cruel nas afeições. Teria ele colocado sob sua proteção as duas mulheres que também eram
parentas suas, ou estaria usando Arete, Aristômaca e Hiparinos como garantia para conseguir concessões? O certo era que Dion não poderia mais atacar o forte da ilha de Ortígia, estando lá sua esposa e filho. Na manhã seguinte, mandou abrir valas em torno da cidade e nomeou os comandos das guarnições que se encarregariam de sua vigilância e defesa. Sete dias depois, um alarido se fez ouvir no alto das muralhas. Dionísio acabara de chegar diante de Siracusa com um poderoso exército. Os campos do lado norte ficaram coalhados de ginetes e tendas. Ouviam-se ruídos de armas e relinchos de cavalos. Os comandantes de Dion reuniram-se em conferência.
Com o objetivo de avaliar o poder dos exércitos de Dion, Dionísio, sob pretexto de dirimir divergências, enviou delegados à cidade para parlamentarem com ele. Mandou também espalhar na praça e no mercado promessas aos siracusanos de moderar os tributos e de não obrigá-los à guerra, a não ser no caso da invasão de bárbaros. A Dion, ele pedia que permitisse a volta à cidade dos nobres que o haviam acompanhado ao sul da Itália, e que possuíam família e propriedades em Siracusa. Não se cansava também de agradecer a Dion, com alarde, o apoio que dele recebera, durante tantos anos, para o fortalecimento da tirania. Lembrava ainda que o seu pai, o primeiro Dionísio, que fora tirano mais poderoso da Itália Grega, conservara o poder graças aos relevantes serviços prestados por Dion. Dion respondeu aos emissários que trataria dos assuntos de Dionísio - propriedades e rendas - por meio de um procurador escolhido por este, a partir do momento em que ele abdicasse da tirania. Foi então que reapareceu Demerato, aquele cidadão astuto e de agudeza de ânimo, muito versado em transes difíceis.
Em colóquio reservado com Dion, Demerato propôs uma solução política nova e desusada naquelas regiões, e que em sua opinião, atenderia aos interesses de ambas as partes: Dion, em virtude de suas boas relações com os cartagineses, governaria a Sicília Grega, inclusive cidades grandes e ricas como Catane, Tauremonin, Naxos e outras. Dionísio ficaria com o sul da Itália e seu filho Apolócrates governaria exclusivamente a cidade de Siracusa. Desta forma, ponderou Demerato com a mão no ombro de Dion, estaria garantida a paz eterna para sicilianos, itálicos e cartagineses. Tão forte era o encanto pessoal de Demerato - e Dion o tinha em grande apreço - que o assunto ficou para ser resolvido pelo Conselho das cidades envolvidas ou mesmo por um plebiscito.
Dion nada mais prometeu, não ficando esclarecido se seria assinado pacto, ajuste ou simples proposta.
Ao mesmo tempo, era voz corrente na cidade que Dionísio abdicaria da tirania por sua própria vontade e não por pressão de Dion. Tudo isso, porém, não passava de tretas e enganos.
Dois dias depois, a cidade se cobriu de pânico. Dionísio atacou o lado norte das muralhas. Os siracusanos, apavorados, correram com as mulheres e filhos para o lado oposto. Megácles, irmão de Dion, atravessou a cidade a cavalo, tentando conter a fuga e ordenando aos mercenários que contra-atacassem. Dion, espada na mão e escudo no braço, correu para o local do combate seguido de soldados. Parte das tropas de Dionísio já haviam atingido o topo das muralhas, e outros tentavam o mesmo, brandindo as armas e soltando urros.
A luta foi renhida. O próprio Dion correu grande risco, batendo-se com valentia e arrojo, debruçado sobre as ameias, tendo sido ferido no braço, tantas foram as setas e as duras bolas de barro disparadas contra ele pelos arqueiros e fundibulários. Diante da reação dos soldados de Dion, os invasores bateram em retirada ao toque de trombeta.
Dias depois destes acontecimentos, os guardas do alto da Acrópole viram cinco galeras trirremes colhendo as velas na entrada do porto. Era Heráclides, outro exilado que chegava. Tendo se indisposto com Dion ainda em Corinto, onde buscara refúgio depois de ter sido banido por Dionísio, decidira armar seus homens e vir por conta própria. Bom militar, tinha a fama de possuir mão forte no comando. Rico e querido do povo, possuía, entretanto, caráter dúbio e sabia ser arrojado tanto na luta quanto na deserção. (49) Foi naquela ocasião que eu o conheci. Heráclides era homem incensado pelos nobres por causa de sua perícia nos combates navais, e detestado pelos magistrados em virtude de sua arrogância no trato com a coisa pública. Era mais baixo do que a média dos homens, sendo, entretanto, tão bem proporcionado que não se notava ser ele de pequena estatura, caso não tivesse ao seu lado uma pessoa mais alta. Tinha humor cortante, maneiras esquisitas e fala rápida. Seria belo se não tivesse o lábio lascado abaixo do
nariz mostrando um dente, o que emprestava à sua fisionomia uma expressão desdenhosa. (49) Cornélio Nepote
Dion, necessitando de aliados naquela hora difícil, recebeu-o amavelmente, não obstante os desentendimentos ocorridos em Corinto. Com o exército de Dionísio acampado defronte da cidade, o Conselho nomeou Heráclides comandante da armada.
Antes de chegar a Siracusa, Heráclides, navegando pela costa, teve a surpresa de ver os navios de Filisto tomando uma rota paralela à sua, como se estivesse à espreita de ocasião favorável para um ataque. Num assomo de audácia, Heráclides deu ordem às suas naves para que atacassem as naus inimigas e, aproveitando um vento forte que soprou a seu favor, lançou-se sobre as forças de Filisto com tal ímpeto, espatifando os remos da nau capitânia, que não permitiu aos adversários manobras em qualquer sentido. Filisto, vendo-se cercado, suicidou-se. As outras naves, valendo-se da tempestade, fugiram.
Heráclides ordenou que o corpo de Filisto fosse exposto na praça, para que não pairasse dúvidas sobre o seu feito. O povo arrastou o cadáver pelas ruas da cidade com uma corda amarrada em uma das pernas, com gritos de escárnio, lembrando que Filisto costumava dizer a Dionísio que não abandonasse a tirania correndo, e sim saltando numa só perna, sem pressa.
Informado do que estava acontecendo, Dion desceu à praça e ordenou que se desse sepultura ao corpo de Filisto. Falando ao povo, recordou que o comandante ofendera gravemente a cidade, quando tramara o assassinato de Platão, mas que ainda assim, seu corpo devia ser enterrado, visto que sua alma tomara o caminho escuro de onde ninguém volta. Lembrou ainda que Filisto fora um dos maiores historiadores de sua geração. Sua “História do Egito”, “História da Sicília” e uma rica biografia do primeiro Dionísio eram consideradas obras perfeitas na narrativa dos fatos e na beleza de estilo. (50) Como (50) Cornélio Nepote homem público, entretanto, Filisto cavara a própria ruína, praticando toda casta de violências. Nada mais fizera Heráclides do que lhe aplicar o corretivo merecido. Assim
falou Dion diante do cadáver do seu inimigo, e não voltou mais a tocar em seu nome. Heráclides tivera sua primeira vitória a favor dos siracusanos, mas a Dion, ele iria trazer amargos desgostos e cruéis dissabores. Mas disto falarei mais adiante. Dion ausentava-se constantemente da cidade, em fatigantes jornadas, acompanhado de auxiliares e de sua guarda pessoal, para fiscalizar o trabalho dos operários nas cidades restauradas. Ele e seus amigos dormiam muitas vezes em péssimas condições de alojamento, enrolados em mantos, dentro de úmidos telheiros. Nestas ocasiões, seu irmão Mégacles assumia o governo da cidade. Para fortalecer o tesouro, criou um imposto sobre capital e ganâncias, a fim de angariar fundos para as despesas dos sacrifícios públicos, de utilidades comuns e para a guerra.
Assumindo o comando da nau do Estado em meio a inquietações e cuidados, Dion procurou o rumo do bom governo. Cercando-se de homens da mais alta reputação, impôs à cidade dieta rigorosa nos gastos públicos, como fazem os médicos aos doentes, com sangrias e poções, a fim de colocar em ordem o tesouro que Dionísio deixara definhado. (51) Dirigindo-se aos ricos por meio de palestras e audiências palacianas, fez ver que a riqueza só é um bem quando dela desfrutam as massas empobrecidas por meio de salários justos, benefícios e proteção, de maneira que encontra cada um sua conveniência num pacto mútuo e solidário entre as classes sociais. Isto é, Dion esperava dos ricos uma conversão moral que beneficiasse os mais pobres. Só assim aqueles formariam no seu próprio meio os “melhores cidadãos” para o governo da cidade. (52) (51) Plutarco (52) “As origens do pensamento grego” , Jean Pierre Vernant Ao povo miúdo, nos banquetes públicos, cumprimentando cada cidadão pelo nome, graças à sua excelente memória, pedia respeito às leis, dedicação à família e empenho na defesa da ordem pública, como faziam os combatentes na defesa das muralhas. Aos desempregados e ociosos, propensos à prática da violência, Dion prometia amplos lotes de terras e ricas pastagens, com charrua e parelha de bois, situados nas cidades gregas que estavam sendo reconstruídas. Informava também que estas cidades, logo que os pedreiros e agrimensores as entregassem prontas, seriam governadas por legados seus com leis retas e justas. As cidades recuperadas teriam templo e fortaleza, constituindose em centro religioso e militar, como defesa avançada contra os bárbaros.
Na parte política, Dion já havia proposto ao Conselho um plano, que seria submetido à votação do povo, para a transformação da tirania em monarquia. Tudo viria a seu tempo, visto que a monarquia pressupõe magistraturas com delegação de poderes, o que não ocorre com a tirania, que é o poder de um só homem. Durante a execução deste plano, houve intensa troca de cartas entre Dion e Platão.
Depois da morte de Filisto, Dionísio enviou Demerato como mediador, propondo sob a fé de um tratado, retirar-se para o sul da Itália, desde que Dion enviasse as rendas de suas propriedades, assunto que este deixara pendente para ser decidido pelo Conselho. E mais, queria ainda que fossem pagos cinco meses de salário aos mercenários. Em uma reunião tumultuada por Heráclides e seus amigos, o Conselho recusou as propostas de Dionísio. Tornou-se evidente que aquele, na condição de comandante da armada siracusana, desejava prolongar a guerra para beneficiar-se do poder militar.
Diante desta situação, Dionísio entregou o comando de suas forças ao norte da Sicília a seu filho, Apolócrates, e, com parentes e amigos, fez vela para o sul da Itália, sem que Heráclides o percebesse. Da Itália, enviou mensageiro com carta para Dion. Nela o tirano deposto pedia ao tio que conservasse a tirania. “Se afrouxares a rédea do poder observava ele - o povo se tornará afoito, os nobres arrogantes, e o Conselho usará os debates apenas para protelar as reformas preconizadas por ti”. Terminava a missiva com uma consideração que poderia ser uma ameaça ou uma advertência: “Teus familiares e amigos sofrerão as conseqüências de teus atos.”(53)
Dion tinha agora inimigos dentro e fora das muralhas. Não passava despercebido que Heráclides, obsequioso na presença de Dion, tramava ocultamente contra ele, mancomunado com dois cidadãos de costumes obscuros: Sósis, conhecido por sua maldade e insolência, e o agitador Hipon, que sonhava implantar em Siracusa uma democracia uniforme com grande matança de nobres. Aos mercenários, Heráclides fazia crer que Dion tentara a paz com o objetivo de despedir as tropas assalariadas, enquanto ao povo, queixava-se dos impostos e do arrocho do tesouro. No mercado e na praça, seus amigos comentavam, à boca pequena, que Dion havia dado a cada mercenário cem minas como recompensa após a fuga de Dionísio. Sósis e Hipon não tinham permissão para entrar no palácio, mas a Heráclides, Dion tratava com consideração, procurando abrandá-lo e corrigi-lo. E assim, ia Dion rolando para o incontrolável e o imprevisível.
Passadas muitas luas, a Assembléia do Povo foi convocada para eleger os magistrados que auxiliariam o governo por um ano no comando da Armada, na execução da justiça, na cobrança dos impostos e na guarda do tesouro.
Dion não era inclinado a superstições, mas sabia que nas cidades gregas nenhum ato público pode acontecer sem a consulta aos auspícios. A deusa protetora da ilha era (53) Plutarco Perséfone, aquela que foi raptada por um deus horrendo quando colhia flores nos prados da Sicília. Mégacles, irmão de Dion, foi ao templo da deusa, situado no alto de uma colina para informar aos sacerdotes sobre a convocação, a fim de que a deusa recebesse as homenagens do povo, deixando claro que a Assembléia só aconteceria no caso dos augúrios não decidirem o contrário. Pedia ainda que eles designassem um sacerdote para presidir os sacrifícios não sangrentos.
Arautos e editais afixados na praça e no mercado informaram ao povo a data da consulta popular. O agitador Hipon, na hora em que o mercado estava mais concorrido, pedia aos passantes que exigissem do governo a inclusão na pauta da votação de proposta para a dispensa dos mercenários como economia para o tesouro, e a formação de um exército popular com generais escolhidos por plebiscito.
Dion sabia que era prematuro aceitar as propostas de Hipon, uma vez que o exército de Apolócrates, filho de Dionísio, havia erguido suas tendas a uma jornada da cidade. A tirania que dominara Siracusa durante cinqüenta anos deixara o povo debilitado, visto que Dionísio negligenciara a instrução e a disciplina militar. Seria uma temeridade, àquela altura, despedir os mercenários. Por outro lado, Heráclides e seu tio Teodotes, dominados pela ambição, espalhavam entre os mercenários boatos alarmantes de cortes e dispensa, explorando a fácil credulidade de homens rudes e ignorantes que viviam sob o acicate do perigo. Dion encontrava-se agora num lodaçal de intrigas e lutas pelas posições de mando.
Depois que os sacerdotes do culto a Perséfone, com brancas vestes, colocaram a Assembléia sob a proteção da divindade, Dion conclamou o povo a votar em homens íntegros para a direção dos negócios públicos. Neste momento, ouviram-se gritos vindos
da ladeira que leva à rua dos prostíbulos. Sósis, amigo do tirano deposto, aproximavase, sujo e ensangüentado, denunciando, aos gritos, que fora vítima de uma atentado. Houve grande agitação entre o povo que se encontrava na praça para votar. Dion pediu a todos que se acalmassem, e lembrou que Sósis era irmão de um arqueiro da antiga guarda pessoal de Dionísio. (54)
Médicos que se encontravam na praça para votar examinaram Sósis, a pedido de Dion, e constataram que os ferimentos eram superficiais, diferentes daqueles que são causados por espadas, e sem a profundidade das feridas produzidas por punhal. Não havia lesões provocadas por cacetadas ou pedradas. (55)
Demerato, amigo desprendido de Dionísio, ali presente, perguntou a Sósis, com suavidade ameaçadora, onde ele deixara o punhal, visto que a bainha presa à cintura estava vazia. Cidadãos que rodeavam o ferido lembraram que Sósis costumava levar um punhal com cabo de ouro.
A votação continuou. Sósis, até que o caso se esclarecesse, ficou sob custódia na casa de Símias, presidente do Conselho. No dia seguinte, ele foi denunciado por uma vizinha, que o vira agachado, escondendo alguma coisa no buraco de um muro defronte de sua casa. No local, foi realmente encontrada a lâmina de punho de ouro que pertencia a Sósis. Julgado, ele foi condenado à morte por plebiscito.
Corria o tempo. Dion, lutando em prol da cidade, via-se cercado de oligarcas turbulentos e de demagogos atrevidos. O povo, agitado, dava ouvidos a toda casta de (54/55) Plutarco boatos. Heráclides, que fora confirmado pela Assembléia no cargo de comandante da armada, insinuava entre os mercenários que se tivesse o poder supremo na cidade, outorgaria aos soldados estipendiários o direito de cidadania, garantindo a todos uma velhice tranqüila. Os amigos de Dion alertavam-no, citando aquele verso homérico do segundo canto da Ilíada que diz: “o governo de um Estado não pode ser bom quando muitos mandam.” (56). Aconselhavam-no a desfazer-se de Heráclides e de seu tio Teodoto pelo ferro ou pelo exílio, lembrando que os erros políticos são redimidos a troco de cruéis sofrimentos. Dion respondia que Heráclides e Teodoto haviam estudado
apenas a arte da guerra, enquanto que ele cursara a Academia de Platão, onde exercitara a razão para agir com prudência e justiça. O agitador Hipon, por sua vez, espalhava furtivamente no meio do povo, com consumada perícia, que Platão ensinara a Dion como trazer a cidade sempre rendida à sua autoridade com enganosas palavras sobre o supremo bem e a perfeita justiça, conforme a opinião que os ricos tinham dessas virtudes. Voltou a Siracusa, a essa altura, um cidadão ateniense de nome Calipo, em cuja casa Dion hospedava-se quando ia a Atenas. Este o chamara, por considerá-lo homem muito versado nos negócios públicos, e o tratava como amigo. Calipo passou a viver na casa que fica no fundo dos jardins do palácio onde três anos antes morara Platão, e transformou-se em conselheiro de Dion e preceptor de seu filho, rapaz sombrio, que causava ao pai sérias preocupações. Como médico que prescreve ao doente rígida dieta visando à cura, Dion impôs à sociedade um rigoroso sistema nos gastos públicos, procurando atender as necessidades de todos os cidadãos, necessidades estas descuradas por uma tirania que mantinha o povo sob um jugo penoso. (56) Cornélio Nepote
Os adversários de Dion incitavam o povo à desobediência. O agitador Hipon não se cansava de falar da sangria que os salários dos mercenários causavam ao tesouro. Por que pagar estipêndio aos combatentes? Numa democracia o povo é chamado a pegar em armas quando a cidade está em perigo. Heráclides, por sua vez, queixava-se de que Dion descurava da marinha para proteger as forças de terra. Lembrava que os inimigos de Siracusa atacavam por mar, como os atenienses de Alcebíades e os persas, visto que a cidade ficava numa ilha. Até mesmo os cartagineses preferiam o combate naval, já que seus protetores na África eram mais fortes neste gênero de luta. Heráclides incitava os mercenários com a fome do ouro, acusando Dion de não permitir pilhagens nas cidades fronteiriças. Os nobres, visando prolongar a tirania, lembravam a Dion que era mais fácil trazer o povo obediente e ordeiro, quando um só homem governava. Os sacerdotes, impedidos de fazer gastos excessivos com as cerimônias religiosas, explicavam que as oferendas poderiam ser simples, mas os rituais precisavam ser dispendiosos e complicados, para não irritar os deuses.
Dion, com seu pulso de ferro, não recuava um só passo no seu plano de governo para encurtar a transição da tirania para a monarquia. As cidades arruinadas pelos cartagineses nos tempos do velho Dionísio já haviam sido restabelecidas, como pedira Platão. Nelas foram colocadas centenas de colonos, aliviando Siracusa de uma horda de desocupados e desordeiros. Aqueles que venderam seus lotes, visando lucro ocioso, o Conselho condenou aos remos nas galeras.
Dion concluiu que não poderia dispensar os mercenários se não expulsasse da Sicília Apolócrates, filho de Dionísio, que continuava com as tropas aquarteladas ao norte da ilha. Conquistado este objetivo, a Sicília estaria livre para uma nova modalidade de governo. Esta era a verdadeira razão pela qual Dion, até aquele momento, não dispensara os mercenários e continuava a decidir a paz e a guerra sozinho, e não por plebiscito, como mando um governo justo.
Depois de colher informações da boca dos trânsfugas, Dion conferenciou com os comandantes quanto ao plano que convinha adotar. Como obtivera a informação de que as naves inimigas velejavam em águas profundas, ordenou a Heráclides que navegasse com as trirremes ao longo da costa, a fim de manter sobre a frota de Apolócrates a vantagem das linhas interiores. A situação de sua família, no entanto, inquietava-o. Dion não temia ataques à sua pessoa, mas se preocupava com possíveis atentados à sua esposa, irmã e filho. Sentiu-se aliviado quando soube, por um domador de cavalos que vendia montarias aos potentados do sul da Itália, que todos estavam em segurança em Locres, cidade natal da mãe de Dionísio, e não com Apolócrates, no forte de Ortígia, como lhe haviam dito. Dionísio tinha as duas mulheres em grande apreço. A Aristômaca, chamava de segunda mãe, e quanto a Arete, esposa de Dion, jamais a chamou pelo nome, e sim pelo termo afetivo de “mana”. Logo que a situação política permitisse, visto que Dion não perdera a esperança de voltar a Siracusa, ele delegaria poderes a Demerato para negociar com Dionísio o retorno da família.
No terceiro dia do mês Gamelion, (57), Dion marchou para o norte levando consigo cinqüenta carros foiçadores, mil ginetes comandados por seu irmão Mégacles e quinhentos arqueiros. Depois de caminharem duas jornadas com três altas, levantou tendas e recomendou a seus comandantes que, no caso de aprisionarem Apolócrates, não lhe fizessem nenhum mal. Logo que as forças acamparam para passar a noite,
ouviram-se gritos das sentinelas. Das trevas emergiu um cavaleiro a galope em um corcel, coberto de (57) Janeiro suor. O recém-chegado comunicou a Dion que o agitador Hipon tomara a cidade e fizera grande matança. Heráclides não seguira por mar o exército, conformes as ordens. Em vez disso, formara a esquadra com as proas voltadas para a cidade, como se aguardasse o resultado da rebelião de Hipon, para então definir sua posição.
Dion ficou estarrecido. Heráclides e Hipon - representantes de partidos opostos - teriam feito alguma aliança? Pela primeira vez, ele conheceu o ódio, sentimento que denominava “a vala negra da alma humana”. Ordenou aos soldados que erguessem as tendas e voltassem para Siracusa em som de guerra. Um corpo de arqueiros incendiários tomou a dianteira com ordem de cercar a cidade, não deixar ninguém entrar ou sair, e aguardar a ordem para o ataque.
Na jornada de retorno, Dion, em silêncio, cismava sobre o difícil momento em que se encontrava. Que conselhos lhe daria Platão naquelas circunstâncias? Seriam os princípios platônicos a respeito da política impossíveis de serem colocados em prática? A política nas cidades gregas, fosse nas democracias, nas monarquias ou nas tiranias, não passava de uma luta encarniçada de lobos e chacais. Como conter a força oculta e irresponsável dos poderosos e moderar as perturbações e os caprichos do povo, sempre inconstante como o vento na mudança das estações?
A razão, a grande inimiga das decisões impetuosas, voltou a dominar, pouco a pouco, a alma de Dion. Decidiu, então, resolver as pendências com seus inimigos e adversários por meio de delegados e negociadores, antes de chegarem às vias de fato. Atormentavao saber que era difícil parlamentar com homens que não faziam nenhum caso do bem comum.
Diante de Siracusa, com as tropas em formação de batalha, Dion ficou surpreso com o alarido da multidão no alto das muralhas. Eram gritos e insultos dirigidos a ele. Contra o inimigo externo ele poderia lançar as tropas mercenárias, mas contra o seu povo isso era impossível. Somente os tiranos usam tropas estrangeiras contra sua própria cidade.
Amigos de Dion vieram ao seu encontro tentando resolver as pendências. Ele soube, pela comitiva, que entre os mortos a mando de Hipon encontrava-se Demerato, aquele homem tão diligente em fazer amigos. Sua condenação baseou-se numa lei do ateniense Sólon que determinava que, em caso de guerra civil, aquele que não tomasse partido, deveria morrer. (58)
A notícia entristeceu Dion que, nos últimos anos afeiçoara-se a Demerato. Os siracusanos não deviam se esquecer, lembrou ele, de que Demerato fora amigo de infância do tirano Dionísio, mas não se beneficiara do poder. Equânime, lento, refletido, Demerato sempre fora um embaixador prudente e confiável. Poderia ainda prestar grandes serviços aos gregos da ilha.
Rodeado de cidadãos confiáveis, Dion conferenciou com os comandantes o dia todo, buscando uma solução para o impasse criado por Hipon. Disse aos delegados que não estava ali para anunciar perigos, mas lembrou que as cidades gregas do sul da Itália eram aliadas tradicionais de Esparta. Do Peloponeso, os siracusanos sempre receberam apoio militar nas guerras contra Cartago. Ele, Dion, conseguira fazer um governo independente abrandando o perigo cartaginês. Esparta aceitara este novo estado de coisas por saber (58) Leis de Sólon: “A lei permite matar o cidadão neutral nas desordens civis”, ‘O gênio do Cristianismo’, de Chateaubriand. que Dion jamais se inclinaria a favor de Atenas. Não interessava ao povo siracusano derramar seu sangue por Esparta ou Atenas, como acontecera no passado. Há muito, ele e Dionísio vinham lutando por uma posição de neutralidade, que possibilitasse a paz na ilha. O golpe de estado do ateniense Hipon vinha romper o equilíbrio político e militar da região.
Já anoitecia quando Dion tomou a decisão que até hoje causa estranheza: a renúncia. Seus amigos ficaram atordoados, e os adversários, perplexos. A notícia caiu como um raio na cidade. Arautos corredores levaram a surpreendente nova às cidades da ilha. O fantasma da guerra voltou a pairar sobre a Sicília grega, visto que os cartagineses consideravam Dion o único grego confiável no sul da Itália.
Foi na cidade dos leontinos, a dois dias de jornada de Siracusa, onde Dion possuía uma fazenda de criação de gado, vinhedos e oliveiras, que ele voltou a viver como cidadão comum. Os mercenários pediram para acompanhá-lo, visto que Dion os proibira de atacar os camponeses armados por Hipon. As cidades vizinhas pediram-lhe que aquartelasse as tropas às margens do rio Anapos, onde havia um forte com campos de jogos e amplas acomodações. O salário dos mercenários seria pago pelo erário comum das cidades da região.
Sem medo nem ódio no coração, Dion, do alpendre da casa grande da fazenda, olhava os campos verdes, os enevoados montes e cismava. Qual seria a reação de Esparta ao golpe de estado desfechado por Hipon, um ateniense? As notícias que os fugitivos traziam de Siracusa inspiravam-lhe cuidados. Naqueles momentos, a leitura dos livros de Platão serviam-lhe de amparo e conforto, e ele, aos poucos, ia encontrando repouso no tempo.
Ao amanhecer, antes do sol dissipar as névoas dos montes, os camponeses vinham, um a um, beijar a mão do grande senhor e receber a pesada moeda de um óbolo que Dion apanhava de um cesto que os servos colocavam ao seu lado.
Nos dias de mercado, ele recebia a visita dos ilustres cidadãos das povoações vizinhas, dos nobres exilados de Siracusa, dos fiéis correligionários e dos servos por ele alforriados. Admiradores e afeiçoados enviavam-lhe presentes. A todos Dion dava conselhos de sabedoria e prudência. Àqueles que se queixavam da ingratidão do povo, lembrava que o verdadeiro estadista é um homem apto para o sofrimento e olha seus súditos como um educador olha seu discípulo. Cada ato de um homem de estado deve servir de exemplo para aqueles a quem governa, como o comportamento de um pai com relação a seus filhos.
Logo que o sol abrandava, Dion, montado num cavalo branco de longas crinas, percorria suas extensas terras, observava as videiras e oliveiras, o lago azul dos peixes, o gado zebu de robustas corcovas. Junto às cercas dos casebres, inclinava-se na montaria e indagava sobre a saúde dos moradores, aconselhando poções indicadas pelos tratados hipocráticos. À noite, lia as cartas enviadas pelos amigos e admiradores e, à luz bruxuleante da candeia, escrevia seu livro de memórias. Para exercitar-se, atirava com o
arco e flecha e se defendia com a espada e o escudo redondo dos ataques simulados de seus amigos. Nos dias dedicados à deusa Perséfone, protetora da ilha, moças com flores nos cabelos, entoando canções de pastoreio, traziam-lhe cestos com douradas maçãs. Depois, cantavam o hino à deusa, agradecendo o templo com portas chapeadas, dedicado a ela, que Dion, como mostra de gratidão à cidade, mandara construir, e cujo solene culto ele financiava.
Tempos depois, os carvalhos que dormiam nos campos leontinos foram sacudidos pelos ventos que sopravam de Siracusa. Os viajantes, com semblantes carregados, apeavam-se defronte da casa grande da fazenda, e relatavam os tormentos por que passavam os siracusanos. Dion, como homem vigilante que era, compreendeu que a disputa pelo poder entre homens cruéis e corruptos continuava desgraçando a cidade.
Galeras enviadas por Dionísio, comandadas por Nípsio de Nápoles, homem perverso, travaram violentos combates contra as naves de Hipon, na entrada do porto de Siracusa. Nípsio de Nápoles fora encarregado por Dionísio de levar mantimentos e armas para o forte próximo ao porto, ainda em poder de seu filho Apolócrates. Ou porque atingira seus objetivos, ou por encontrar resistência dos siracusanos, o napolitano batera em retirada.
Orgulhosos da vitória, os siracusanos entregaram-se a festejos, cantos e vinho por vários dias. Julgando-se donos da cidade, acabaram por perder a cidade (59)Dionísio, informado dos festins, banquetes e relaxamento da autoridade, atacou as muralhas. Apoderando-se delas, invadiu a cidade, dando força aos mais cruéis instintos, causando morte e destruição. Homens eram degolados, mulheres violentadas nas ruas, crianças atiradas das ameias. O agitador Hipon, traído pelos camponeses por ele armados, foi feito prisioneiro. Submetido a torturas, negou-se a denunciar os grupos de artesãos que haviam financiado sua conspiração, contra os quais Dionísio preparava terrível vingança. O próprio Dionísio desceu ao cárcere cavado na rocha para interrogar Hipon. O déspota encontrou um homem acorrentado em umas andas, que mais parecia uma posta de carne e sangue, porem ainda ofegante. Debruçando-se sobre aquele corpo transformado em carniça pelos ferros de seus algozes, gritou: (59) Plutarco
- Diga, quem te deu armas? Os boieiros? Os oleiros? Os mineiros? Vamos, diga, e eu colocarei tua mulher e teu filho em lugar seguro! Aquele ser de carne dilacerada, arquejante, moveu-se, e erguendo a cabeça ensangüentada, num último esforço, cuspiu na cara do tirano. Assim Hipon deixou o mundo dos vivos para o eterno descanso no mundo dos mortos. Seus amigos afirmam que ele decepou a própria língua com os dentes para não denunciar seus protetores. Creio que isto seja lenda. Hipon morreu como um homem que não conheceu o medo covarde. Sua esposa e seu filho foram mortos a mando de Dionísio.
Com a morte de Hipon, seus comandantes acovardaram-se e fugiram, abandonando a população à sanha dos homens de Dionísio. Logo que raiou o dia, os soldados do déspota, comandados pelo seu filho Apolócrates, abandonaram Siracusa. Os arqueiros ainda atiraram flechas incendiárias, por cima das muralhas, causando grandes estragos à cidade. Só então os siracusanos compreenderam o quanto deviam ao governo de Dion. Aquela autoridade tão mal compreendida fora mais forte do que as muralhas. As leis, como as fortalezas, são inúteis quando não há um governo forte que as defenda. Os siracusanos viviam, agora, cobertos de aflições, temendo um novo ataque das tropas de Dionísio e de seu filho.
Foi então que reapareceu o enigmático Heráclides. Aquele chefe militar, tão arrojado nas batalhas como na deserção, alegou que vinha em socorro da cidade. Os magistrado o submeteram a severo interrogatório. Acusaram-no de trair a população. Por que ele não seguira as tropas de Dion, quando estas foram dar combate a Apolócrates, antes que o filho de Dionísio atacasse Siracusa? Se não pudera seguir as ordens de Dion, por que não retornara a Siracusa para lutar contra o golpe de estado desfechado por Hipon?
Frio, arrogante, com palavras bem pensadas, Heráclides informou que não seguira as tropas de Dion por causa do vendaval e do mar grosso. Se o fizesse, teria destruído a esquadra. Graças à sua prudência, preservara as trirremes e agora as trazia de volta para servir os siracusanos. E não entrara no porto para lutar contra Hipon porque seria uma temeridade, e não um ato de coragem. Merece punição o comandante militar que luta por uma cidade além do razoável. Tratava-se de uma guerra civil e não de guerra contra uma cidade estrangeira ou bárbara. As decisões tinham que ser bem pensadas no caso. Lançou ainda um sutil veneno como os arqueiro fazem com as setas peçonhentas: Dion
era um sábio e renunciara ao combate contra seu povo, como manda o bom senso. Não tivera alternativa diante da ingratidão dos siracusanos. Assim falando, Heráclides fazia supor que a mesma razão determinara a sua atitude. O desertor lançou mão ainda de uma jogada arriscada: propôs ao Conselho que enviasse uma delegação dos melhores cidadãos de Siracusa com o objetivo de pedir a Dion que voltasse ao governo. Submetida à votação, a proposta de Heráclides foi aprovada por aclamação, gritos e aplausos.
Os inimigos de Dion tentaram impedir o envio da embaixada que, entretanto, seguiu logo ao amanhecer. Este recebeu os delegados siracusanos no teatro dos leontinos, um amplo semicírculo em degraus, na convergência de duas colinas suaves
Importantes cidadãos siracusanos e os comandantes espartanos Arcônides, Telésides e Helânico, que dispunham de poderosas forças para a defesa da hegemonia de Esparta nas cidades gregas do sul da Itália, compareceram ao lado de seus capitães. Depois que os delegados disseram a que vinham, assim falou Dion: - Espartanos e aliados: estamos aqui reunidos para deliberar se devemos ou não salvar Siracusa. A mim não cabe decidir contra a minha cidade. Se não puder salvá-la, morrerei por ela. Espero, portanto, a vossa decisão. Se quiserdes, todavia, salvar gente do povo, ingênua e leviana, iludida por políticos sem escrúpulos, advirto-os de que o tempo escasseia. Mas se aborrecidos com os siracusanos, vós os abandonais, então apaguemos da nossa memória as glórias de nossos antepassados e a grandeza de tantos feitos que eles e nós, juntos, realizamos. Eu mesmo corri em vosso auxílio nos tempos do primeiro Dionísio, quando vossas cidades corriam perigo, como acontece agora com Siracusa. (60)
Dion recordou as guerras sicilianas contra os persas e cartagineses e a derrota que os siracusanos impuseram à esquadra do ateniense Alcebíades. Ressaltou a paz conquistada na ilha por meio de alianças e tratados que ele, em fatigantes jornadas, consertara com os bárbaros, impondo o rio Halicos como limite entre os dois povos.
A proposta de Dion foi aceita por aclamação. Os chefes espartanos e os comandantes das cidades vizinhas colocaram-se à sua disposição. Todos bebiam e se confraternizavam quando um cavaleiro chegou em extenuado galope, saltou do cavalo
lustroso de suor e, dirigindo-se de imediato a Dion, informou que Nípsio de Nápoles atacara Siracusa por mar e por terra. Heráclides e seu tio Teodoto combatiam no mar contra o napolitano. O primeiro, agindo com audácia e rapidez, atraíra parte da frota inimiga para os estreitos, destruindo várias trirremes com os esporões e abordagens arriscadas. Nípsio de Nápoles tivera que reter várias naves fora da enseada por não conhecer os arrecifes e baixios. Vendo sua frota em perigo, içou velas e se retirou. Mas a luta em terra continuava, desfavorável aos siracusanos, com o exército do napolitano assolando as terras e ateando incêndios. Dion estranhou o reaparecimento de Heráclides naquelas circunstâncias, visto que pretendia submetê-lo a julgamento por deserção e traição. As tropas de Dion colocaram-se sob a tutela das divindades e partiram para Siracusa em marcha acelerada. Seus aliados ficaram na cidade dos leontinos conferenciando acerca (60) Plutarco do plano a adotar caso a guerra se prolongasse. Dion soube, nas estradas, pelos fugitivos da cidade que Nípsio de Nápoles causava grandes estragos às casas e à população. Seus homens corriam pelas ruas com a espada numa mão e a tocha acesa na outra, matando e causando incêndios. Os arqueiros atiravam flechas incendiárias nos depósitos de alimentos. Os moradores que fugiam do fogo eram chacinados nas ruas, não se poupando mulheres e crianças.
Quando Dion chegou defronte da grande porta, viu o povo do alto das muralhas implorando por socorro e salvação. O fogo e a fumaça envolviam grande parte da cidade. Com o objetivo de evitar maiores sofrimentos à população, Dion enviou Helânico para intimar Nípsio de Nápoles a depor as armas. O napolitano, desejoso de ganhar tempo, disse ao emissário de Dion que um comandante de uma praça de guerra não deve sair para parlamentar, mesmo quando esta estiver sitiada. E, inclinando-se na montaria respondeu de maneira ignóbil como Amásis, rei dos egípcios, a Artabemis, resposta essa que deixo de mencionar por questão de decoro. (61) O corajoso Helânico então gritou: - Pois então prepare teus cornos, Nípsio, pois terás um duro adversário! Puxando as rédeas do corcel voltou a galope para junto de Dion. A batalha que se travou foi difícil e sangrenta, o que levou este a dizer que sempre lutara pela vitória, mas que naquele dia, lutara apenas para não morrer. A chuva de setas atiradas contra ele o
obrigara a apoiar o escudo no joelho, tornando-o mais firme, para avançar agachado a fim de dissimular sua alta estatura. Guiado por um traidor siracusano, Nípsio de Nápoles e seus comandantes fugiram por apertadíssimos subterrâneos e desconhecidas trilhas, deixando em ruínas uma cidade outrora bela e opulenta. (61) História, Heródoto, Livro III, CLXII
Mais do que as armas, foram os sofrimentos dos siracusanos que abriram as portas da cidade. (62) A multidão, em prantos, veio receber Dion com lamentos, cantos e flores, chamando-o de salvador da cidade e enviado dos deuses. Os amigos de Dion o advertiam, como faz o coro nas tragédias gregas, que aquela multidão, um ano antes, o apupava e insultava do alto das muralhas, querendo com este aviso pedir que ele não afrouxasse as rédeas do poder. Dion respondia que o povo sofrido é inconstante como as crianças, e que um chefe de estado preparado pelos estudos, deve orientá-lo e educá-lo com paciência e severidade, afastando da cidade os homens perversos, como fazem os pais quando repelem as companhias nocivas aos filhos.
Por sete longos dias foram sepultados os mortos, curados os feridos, julgados e executados os capitães napolitanos que ordenaram a matança da população civil. Aos combatentes abandonados por Nípsio de Nápoles coube o trabalho de reconstruir as casas e reparar as muralhas. A maioria destes prisioneiros era constituída de latinos fugitivos do Lácio, região ao norte de Nápoles, dominada por uma vasta e soberba cidade chamada Roma.
Neste entrementes, aportou em Siracusa uma enorme galera com três carreiras de remos e proa curva como o pescoço de um cisne. Chegava Gisilo de Esparta. A frota que ele comandava - dez galeras rápidas e três naus para transporte - lançou âncoras fora da enseada. Gisilo era homem poderoso que capitaneava espartanos e recrutava exércitos em terras estrangeiras para defender a hegemonia de Esparta no sul da Itália. Viera de Tarento, onde fizera uma estada de misteriosa duração na corte do tirano Arquitas. Hoje (62) Plutarco sabemos que Gisilo fora enviado por Esparta para ocupar o governo de Siracusa, em virtude da renúncia de Dion, antes que algum capitão ateniense o fizesse. Tendo o
siracusano recuperado o poder - e Esparta respeitava Dion - coube a Gisilo reconciliar este com Heráclides e conseguir a paz entre Siracusa e Apolócrates, o filho de Dionísio que ainda ocupava parte da Sicília.
Eu conheci Gisilo de Esparta quando estive a serviço de Arquitas de Tarento - um dos poucos governantes interessado na saúde do povo - a fim de fazer palestras para os médicos tarentinos sobre “Ares e águas e a influência do ambiente sobre as enfermidades locais” (63), em virtude da febre dos rios que grassava naquela região.
Gisilo era uma figura típica da decadência dos costumes em Esparta, outrora uma cidade de combatentes de rígida educação, mas de cultura sumária. Da Pérsia, onde permanecera alguns anos a serviço de sua cidade, ele trouxera o gosto bizarro pelas túnicas coloridas e jóias tilintantes. Levava vida faustosa, degradando-se nos excessos da mesa e da cama. Entregava-se com fúria aos pratos suculentos, às mulheres e aos jovens comprados com dinheiro farto nos mercados da Síria. Era homem de estatura elevada, ventre bojudo e voz cava, que lembrava uma trovoada distante. Sua delicadeza afetada dissimulava um egoísmo feroz. Àquele que lhe era útil, tratava de forma bajulatória, enquanto que para os outros, transformava-se no homem-fera. Seu argumento preferido era: “assim querem os deuses”. Os nobres de Siracusa, entretanto, consideravam Gisilo de Esparta um potentado prestativo e, alvoroçados, cercavam-no de amabilidades e conversas ao pé do ouvido. (63) “ Mundo Antigo”, de Aldo Mieli
Dion e Gisilo conversavam longamente a sós. Em seguida, Heráclides e seu tio Teodoto, com passos e atitudes de suplicantes, apresentaram-se à clemência de Dion, que para espanto de todos, restituiu a Heráclides o comando da armada. Este, por sua vez, pediu ao povo que nomeasse Dion generalíssimo de terra e mar, posição que este já ocupava pelas armas, mas que, naquele dia, foi referendado por plebiscito.
Novamente os amigos de Dion voltaram a adverti-lo - como insiste o coro nas tragédias gregas - dos riscos a que se expunha conservando em tão alto posto um semeador de discórdias e sedições como Heráclides. Dion continuava dizendo que cursara por longo tempo a Academia de Platão, estudando como dominar o ódio e os ressentimentos, e que não iria agora tornar-se vingativo porque os outros eram desleais.
Desta vez confesso que não acreditei em suas palavras e faço aqui um reparo: o Dion platônico dera lugar ao Dion siracusano. Aquele modelo moral não poderia ser compreendido pelos potentados vizinhos, audaciosos e sem escrúpulos. O Bem e a Justiça continuariam a ser o objetivo de Dion, mas os meios empregados seriam determinados apenas pela experiência e intuição. Os fins voltariam a justificar os meios. Agora, a hipocrisia e o punhal, se necessário, substituiriam a persuasão e os tratados.
No mês seguinte, Apolócrates, filho de Dionísio, depois de longas conversações com Gisilo de Esparta, abandonou a ilha de Jacinto e fez vela para o sul da Itália com suas tropas. O tratado que devolveu a paz à ilha fora redigido por Gisilo, homem conhecedor de palavras enganosas e maquinador da mais alta reputação. Foi então que a esposa, o filho e a irmã de Dion, que estavam no sul da Itália, juntaram-se a ele. Sobre isso diremos algo.
Quando seis anos antes Dion partira para Corinto, sua família mudara-se para o palácio de Dionísio, que a ela ficou ligado pela lei da hospitalidade. Lá ficara, de livre e espontânea vontade. Sofrosine, esposa de Dionísio, era irmã de Arete, esposa de Dion. Ao lado da irmã, Arete sentia-se em casa. Dionísio, por sua vez, era franco e generoso para hospedar as pessoas e, fora da política, era espirituoso e gracejador. A educação do filho de Dion, entretanto, preocupava a mãe e a avó do rapaz. O déspota, intencionalmente, descurava do disciplinamento de Hiparinos, com o objetivo de favorecer seu filho Apolócrates na sucessão. O filho de Dion tornara-se moço luxento e indisciplinado, chegado aos vinhos, às cortesãs e aos dados.
Com o tratado de paz consertado com o tirano deposto, as mulheres da família de Dion voltaram para Siracusa. Aristômaca veio antes falar com o irmão. Os dois conversaram longamente a sós. A matriarca pediu que ele esquecesse os desentendimentos conjugais e recebesse Arete de volta.
- Minha filha - queixou-se Aristômaca - foi vítima da cruel política de Siracusa. Casouse com outro homem contra a sua vontade. Peço a ti, meu irmão, que a recebas de volta como tio e marido que és de Arete. Tu pertences à tua família, e tua família te pertence.
- Como posso pertencer à minha família, Aristômaca, se eu mal me pertenço? redargüiu Dion. Os dois irmãos abraçaram-se, chorando. No dia seguinte, Dion levou Arete e Hiparinos para sua casa. Se meu escrito terminasse aqui, teríamos um final feliz,. mas a roda do destino continua em movimento. Nós, humanos, estamos amarrados a ela como Prometeu ao monte Cáucaso. Ela tanto pode nos levantar bem alto, como nos mergulhar nas águas turbulentas que a movem. Na Sicília, a roda do destino é movida pela funesta Caríbidis, como a chamava Platão. Como e por que esta infame ladra dos bois de Hércules decidiu intervir no destino de Dion e da bela Arte é o que te vou narrar.
Ao fim de um ano, com tantos acontecimentos suscitados pelo destino, viu-se Dion diante de grandes dificuldades. O tesouro estava vazio, o povo reclamava as moradias e as terras que ele prometera, além daquelas cedidas aos colonos nas cidades reconstruídas. Começou a faltar dinheiro. O próprio Dion levava vida modesta comparada com as de outros potentados das cidades vizinhas. Vendera seus escravos rústicos e bárbaros, (64) conservando apenas os servos domésticos, visto que arrendara suas terras. As contas públicas o preocupavam. Sua saúde já não era a mesma, quebrantada que estava pelos longos trabalhos enfrentados. O destino, não satisfeito em colocar em seu caminho tantos males, desfechou-lhe um doloroso golpe. Hiparinos, seu filho, ainda adolescente, não suportando a mudança ocorrida em sua vida, visto que o pai procurava educá-lo, suicidou-se, atirando-se de cabeça do alto do mirante que sobrepassa o telhado da casa de sua família. Dion havia contratado um preceptor, homem de paciência prolongada, encarregado de desabituá-lo dos vícios adquiridos no palácio de Dionísio. Diante dessa tragédia, a mãe, a infeliz Arete, transformou-se numa sombra vagando pela casa, silenciosa. Apenas Aristômaca ouvia, de quando em vez, a voz da filha.
Com o andar do tempo, Heráclides, que era protegido pela aristocracia, passou a agir com mais arrogância, tomando decisões pessoais e buscando oportunidade, outra vez, de trair Dion. Meditando sobre a ruína do rival, aliou-se a Faraces de Esparta, um dos capitães que naquela altura rondavam Siracusa, praticando qualquer crime, conforme o (64) Escravos rústicos eram os empregados nas plantações, e os bárbaros, os conquistados nas guerras contra povos não gregos.
lucro. Eram muitas as acusações que Heráclides fazia contra Dion, a saber: ele destruíra a tirania, derramando sangue dos siracusanos e não se retirara dela; não exumara os restos mortais do primeiro Dionísio para atirá-los ao mar, conforme mandavam os costumes, como prova de repúdios a um regime odioso; permitiu a fuga do segundo Dionísio para não submetê-lo a julgamento pelos crimes que o tirano cometera; assim agira, pelo muito que devia à tirania, e suportara os dois déspotas, pai e filho, com os olhos fixos no bem-estar dos seus; Dion se voltara contra a tirania depois que fora condenado ao exílio e perdera suas rendas; e por fim, para agradar aos potentados do sul da Itália, substituíra uma tirania cruel por uma tirania mais branda. Até aqui, Heráclides.
Eu soube por Euspesipo, sobrinho de Platão, que estas acusações afligiam Dion. Euspesipo era da opinião de que este procurava implantar um governo misto de monarquia e democracia. A aristocracia teria os postos mais importantes por se tratar de cidadãos aperfeiçoados pelos estudos nobres, na condição de que as massas e os pobres desfrutassem dos benefícios oriundos das propriedades e dos bens, isto é, que recebessem salários justos e tivessem a velhice amparada. Como Platão, Dion esperava uma conversão moral dos melhores cidadãos no uso moderado da riqueza e do poder. O equilíbrio assim realizado - autoridade com justiça - traria paz à cidade. Dion era, também, da opinião de que a ação irresponsável dos demagogos e políticos inescrupulosos deveria ser contida pela força, a fim de não transformar a Assembléia do Povo num mercado da política. Esta era a razão pela qual conservava para si a parcela maior do poder. A respeito da exumação dos restos mortais do primeiro Dionísio, para que fossem atirados ao mar, Dion lembrava que o tirano fora o grande herói das guerras cartaginesas e persas nos tempos em que ocupara, ainda jovem, o cargo de estratego. (65) (65) generalíssimo Não fosse a destemida ação do primeiro Dionísio, não existiria a Sicília grega e os helenos da ilha teriam sido mortos ou vendidos como escravos. O repúdio à tirania deveria ser expressado pelo aperfeiçoamento das instituições políticas com leis boas e justas que o próprio monarca seria obrigado a seguir. Dion lamentava que as reformas, por meio de debates, fossem sempre lentas e dispendiosas. Os nobres procuravam obstruí-las com protelações, e o povo, instigado pelos demagogos, assustava os
aristocratas com tumultos e depredações. Para a implantação das novas leis, era necessário que ele, Dion, conservasse durante algum tempo o poder soberano.
Heráclides e os nobres espalhavam boatos sobre a sucessão. Diziam que Dion nomearia Apolócrates seu sucessor, visto que seu filho havia morrido. Fiados na possibilidade de êxito, os inimigos de Dion tornavam-se, dia a dia, mais audaciosos. Este decidiu então recorrer às armas para dominar seus opositores. Primeiro atacou Faraces, que, a se dar crédito aos informantes, armava emboscadas contra ele, em secreto conluio com Heráclides. Os escutas informaram também que este atacaria Siracusa com a armada, logo que Dion saísse a campo para combater Faraces.
E assim aconteceu. Heráclides, acantonado em Mesena, partiu com a armada no dia em que Dion deixou a cidade. Seus amigos, infiltrados na esquadra assassinaram Heráclides. Vendo Dion que este era um estorvo para a ordem do Estado e que jamais lhe daria trégua por ser leviano e propenso a sedições, concordara com o plano urdido por seus aliados dentro da frota. (66)
Ao corpo de Heráclides, Dion proporcionou, à custa do erário, magnífico enterro (66) Cornélio Nepote acompanhado pelo exército. Sabendo que o povo e os nobres estavam na praça comentando os acontecimentos, desceu ao local e assumiu em público a responsabilidade pela morte do adversário. Disse que renunciara ao poder a fim de evitar uma guerra civil e se exilaria. O povo siracusano foi buscá-lo. Para ele, o apelo da população equivaleria a um plebiscito. - Cheguei para proteger a cidade - disse - Tentarei ou morrerei. Olhando duramente os nobres que ali se encontravam, continuou com voz firme: - Àqueles que tenham pendências ou queixas contra mim, aqui estou. Ninguém falou. Dion então se retirou da praça. Na intimidade, entretanto, mostrava-se amargurado, confessando que aquele assassinato manchara seu nome para a posteridade. Tinha esperanças de que os gregos compreendessem o dilema em que ele se encontrava: matar ou morrer, visto que as dissensões seriam contínuas, se ele e Heráclides governassem juntos. E evocava com amargura que já o havia perdoado duas vezes.
A partir daquele momento, a história de Dion transforma-se em um declínio quase ininterrupto. Platão, alarmado, escreve-lhe seguidas cartas. “Boa sorte. Penso que a minha boa vontade não deixou de ser evidente em toda esta questão, assim como meu zelo em conduzi-lo até o fim, sem outro motivo mais premente do que meu ardor por tudo que é justo.”(67) Naquela altura, Platão tinha conhecimento dos desentendimentos entre seu discípulo e Heráclides, mas ignorava o assassinato. O filósofo refere-se à ajuda moral que nunca deixara de prestar a Dion, visto que o nome de Platão era famoso em toda a Grécia. Seu testemunho sobre os acontecimentos em Siracusa pesava na opinião dos gregos. (67) Carta de Platão a Dion “No futuro a luta será dura - acrescentava - e a superioridade da coragem, da agilidade, da força corporal pode ser o apanágio de muita gente, mas a da verdade, a da justiça, da generosidade e da distinção inseparável de todas essas virtudes, deve confessar-se que tem a sorte de pertencer àqueles que fazem profissão de honrá-las. O que eu digo é evidente, mas não é menos necessário lembrar a nós mesmos que - aqueles que tu sabes (68)- devem distinguir-se ainda mais dos outros homens do que das crianças. (69) Quis Platão lembrar que aqueles que devem se diferenciar mais dos outros homens, do que um homem se diferencia de uma criança, são sem dúvida os que estudaram na Academia e que sob a sua direção se iniciaram na virtude e na ciência.
Lembra ainda Platão, nas cartas, que muitas cidadãos têm necessidade de vaguear de país em país, para serem conhecidos, mas que Dion se encontrava em tal situação que todas as cidades gregas, sem cair no exagero, estavam com os olhos postos num único lugar, e muito especialmente, nele, Dion. E esclarece: “Quase todos aqui afirmam que, morto Dionísio, é preciso esperar as coisas ruírem devido à tua ambição, à de Heráclides, de Teodoto e de outros notáveis. O ideal seria que nenhum de vós fosse atacado por tal mal, mas se tem que acontecer, compete a ti transformar-te em médico e tudo mudará para melhor. Acharás talvez ridículo que eu te diga tudo isso: tu já o sabes perfeitamente. Escreve o que tens feito ou o que fazes, pois ouvimos muitos murmúrios, mas não sabemos de nada. Acabam de chegar cartas de Teodoto e de Heráclides à Lacedemônia e a Engina, mas mais uma vez circula toda (68) Aqueles que estudaram na Academia (69) Carta de Platão a Dion
espécie de rumores sobre os que se passa entre vós e ignoramos tudo. Toma também cuidado com o seguinte: tu te mostras a alguns mais rude do que conviria. Não esqueças de que é contentando as pessoas que se pode agir; a arrogância, ao contrário, mora ao lado da solidão. Boa sorte. (70) Até aqui Platão.
Tomei conhecimento destas cartas muitos anos depois por intermédio de Euspesipo, sobrinho de Platão. Pois bem, estavam as coisas neste pé, quando aquele ateniense de nome Calipo, que vinha prestando serviços a Dion, por ser capaz de pensar claro e depressa, embora fosse homem de sabedoria moderada, assumiu o cargo que eu exercera nos tempos do velho Dionísio: o de encarregado das contas públicas e dos arquivos.
A dedicação de Calipo ao trabalho chamou logo a atenção de Dion que, naquela altura, perdera nas guerras seus melhores auxiliares. O ateniense madrugava no trabalho e deixava o palácio noite alta. Nos dias de mercado ou naqueles em que se ouviam cânticos nos templos, dias de descanso, Calipo subia a ladeira que leva ao palácio, seguido de dois servos escribas, portando rolos de pergaminho com os trabalhos que terminara em casa. Calipo era um homem alto e seco, de olhar duro como o das aves de rapina. Usava barba cuidadosamente aparada, parecendo pintada com pincel. Caminhava com passos largos e deslizantes. Quando Euspesipo, em Atenas, perguntou a Platão se o conhecia, o filósofo respondeu: - Conheço-o. Por isso não quero conhecê-lo. Calipo foi pouco a pouco conquistando a confiança de Dion. Começou por alertar seu chefe para as dissensões surgidas em seu próprio campo e do perigo em que se encontrava por causa do descontentamento dos mercenários, cujas gratificações haviam sido cortadas como medida de economia. Pedia que confiasse a ele a missão de fingir-se (70) Carta de Platão a Dion de dissidente de Dion, com o objetivo de identificar conjurados para depor o governo. Os conspiradores só falariam de seus planos àqueles que fizessem renhida e aberta oposição ao regime.
Aprovado este projeto, Calipo passou a denunciar boatos e rumores levantado contra Dion, adquirindo assim autoridade e poder na cidade. Acobertado pelo acordo secreto que fizera, encorajava às vezes, às ocultas, os inimigos do governo.
As mulheres da família de Dion alimentavam suspeitas de Calipo. Aristômaca alertava o irmão sobre a personalidade dúbia do ateniense. Este a tranqüilizava, julgando que Calipo não fazia nada mais do que o que haviam combinado. - Não gosto de homem que anda sempre de olho nas coisas, como os invejosos e os ladrões - costumava dizer Aristômaca. Certo dia, a irmã de Dion pediu a Euspesipo que, sob qualquer pretexto, marcasse encontro com Calipo diante do templo de Perséfone. O sobrinho de Platão, que conhecia a ordem cotidiana na vida de Calipo, esperou-o defronte do templo na hora em que ele costumava deixar o palácio.
Já sobre a cidade desdobrava-se a noite, quando a figura alongado do ateniense, seguida do servo portando a tocha, apareceu no alto da colina. Passadas as saudações, Euspesipo, esticando a conversa, afastou-o alguns passos do servo, como se quisesse tratar de assunto confidencial. A lua derramava sua luz sobre o alvo pórtico do templo. Neste momento, Aristômaca e Arete emergiram das sombras oblíquas da colunata. As duas mulheres cumprimentaram o ateniense e, falando com humildade, disseram que haviam depositado no altar oferendas à deusa Perséfone, implorando, com rezas e incensos, que ela cobrisse Dion com a sua proteção. E pediram a Calipo que entrasse com elas no templo para, juntos, orarem pela proteção à cidade. Calipo, por um momento, pareceu indeciso. Mas querendo mostrar o respeito que tinha pela esposa e irmã de seu chefe, decidiu acompanhá-las.
Um braço de ferro preso na parede segurava a lamparina cuja chama oscilava. Na semiobscuridade, eram como três sombras que deslizavam no lajedo da câmera interna do templo.
Aristômaca, com palavras escolhida, falou dos boatos que circulavam sobre a lealdade do ateniense a Dion. Pediu que ele jurasse à deusa que não estava envolvido na conspiração contra o governo.
Fez-se um mortal silêncio. Com voz fraca, Calipo chamou o servo que ficara com Euspesipo na câmera externa e entregou-lhe os rolos de pergaminho que trazia. À luz da candeia, seu rosto mostrava uma cor terrosa. As vozes dos três ressoava como se falassem dentro de uma caverna de pedra.
Aristômaca, diante do altar da deusa, ditou o juramento sagrado que Calipo, com voz estranha e trêmula, repetia palavra por palavra, prometendo lealdade eterna a Dion e afirmando que lutaria pelas leis formuladas pelo governo como se lutasse pelas muralhas de sua cidade quando atacadas pelos bárbaros.
Terminado o juramento, Aristômaca e Arete beijaram duas vezes a face do perjuro e se retiraram do templo. O manto escuro da noite cobria a cidade. Calipo despediu-se de Euspesipo e desceu a ladeira com passos lentos e largos, seguido do escravo portando a tocha. Sua sombra, longa e curvada, rastejava a seu lado no caminho.
O juramento deixou Calipo dominado pelo mais abjeto tormento. Aquela mulher fora enviada pelo irmão. Até que ponto Dion e seus amigos estavam a par da verdadeira conjura e não daquela, falsa, que ele alardeava para cumprir o compromisso que assumira? O tempo de espera se esgotava. Há muito deveria ter revelado os nomes dos verdadeiros conspiradores. Naquela altura, Dion já deveria ter concluído que ele, Calipo, urdira uma farsa e, por isso, mandara a irmã para provocá-lo.
Calipo não dormiu naquela noite dominado pela angústia. A conjura devia ser executada com a maior brevidade possível. Assim que raiou o dia, os conspiradores reuniram-se a bordo da trirreme de Filostrato, irmão de Calipo. Licon Siracusano propôs que o golpe de estado, com o assassinato de Dion, fosse desfechado imediatamente. Os cidadãos da ilha de Jacinto, aliados de Dionísio, concordaram. Calipo sabia que se recuasse seria assassinado pelos conjurados. Se fracassasse, pelos amigos de Dion.
O mar agitado parecia desconjuntar a embarcação que balouçava e rangia. Licon Siracusano, um gigante ruivo e barbudo, vendo o silêncio prolongar-se mais do que permitiam as circunstâncias, levantou-se bruscamente e, sacando o punhal do cinto de couro, exclamou com voz áspera:
- O tempo escasseia. Esse punhal será cravado hoje na garganta de Dion ou no peito daquele que recuar! E a barba avermelhada tremia-lhe no queixo. Calipo, dissimulando sua indecisão, ordenou ao irmão que, ao cair da noite, manobrasse a nave dentro do porto, como se estivesse exercitando os remadores. A operação, na realidade, visava manter a embarcação em estado de prontidão para dar fuga aos conspiradores caso a sorte fosse adversa. (71) e ordenou: - Todos na fonte próxima à casa de Dion, ao nascer da lua! Como sombras, o grupo se desfez, misturando-se aos marinheiros e pescadores. A sorte estava lançada. A roda do tempo girava, conforme a vontade dos deuses.
Como se a natureza pressagiasse funestos acontecimentos, a lua naquela noite nasceu sangrenta. Vultos e sombras começaram a se movimentar na fonte de pedra, onde uma cabeça de leão jorrava água pela goela. Neste local, além das moradias dos cidadãos ricos, havia outras mais modestas. No início da ladeira que leva ao templo e ao fortim, Dion construíra sua casa, um vasto edifício com suntuosas salas de recepção, dezenas de quartos e vários alojamentos para os escravos, vigias e seus familiares. As portas do casarão estavam abertas para os visitantes e convidados, visto que Dion possuía temperamento acolhedor. Com exceção daqueles que privavam de sua intimidade, todos eram revistados pela guarda. Entre os conjurados, quatro rapazes da ilha de Jacinto, fortes e audaciosos, foram escolhidos para entrar primeiro e sem armas, sob pretexto de visitar Dion. Calipo já se encontrava no gabinete de trabalho no sobrado com seu senhor. Outros conspiradores cercaram a casa, como se ali estivessem esperando amigos.
Naquele momento, Dion, reclinado em um coxim, lia documentos que Calipo lhe entregara. Depois das saudações e amabilidades, os rapazes jacintos arrojaram-se sobre ele. Apanhado de surpresa, Dion lutava aos berros, proferindo insultos. Calipo correu à janela e gritou por Licon Siracusano. O gigante ruivo, da rua, atirou-lhe a espada que (71) Cornélio Nepote
brilhou no ar como um relâmpago. Os gritos alarmaram toda a casa, que foi invadida pelos conjurados que estavam do lado de fora. Os vigias foram assassinados sem que
pudessem socorrer seu senhor. As mulheres, apavoradas, correram para o jardim murado nos fundos da habitação e se esconderam nos quartos dos escravos. Dion lutava com fúria contra seus agressores. Com a espada entregue por Calipo, os rapazes de Jacinto degolaram Dion. (72)
A confusão e o pavor dominaram a casa e as moradias vizinhas. A notícia do bárbaro assassinato propalou-se com rapidez. Os partidos desavindos trucidavam-se nas ruas. Uma multidão invadiu a casa de Dion. Culpados e inocentes foram mortos ao acaso.
A emoção da tragédia dominou o povo que, pouco antes acusava Dion de restabelecer a tirania. Agora, nas ruas, o exaltavam-no aos gritos, chamando-o de libertador da pátria e amigo do povo. Os mercenários que haviam recebido de Calipo vinte talentos pelo apoio militar àquele crime horrendo, restabeleceram a ordem pelas armas.
Calipo permitiu que fosse construído um túmulo suntuoso, fora das muralhas, para perpetuar a memória de Dion de Siracusa. Como aconteceu com o velho Dionísio, Dion também foi logo esquecido. Ele morrera com cerca de cinqüenta e cinco anos, depois de quatro de governo, quando voltou da Sicília para combater o segundo Dionísio. (73). Aristômaca e sua filha Arete, que estava grávida, foram encarceradas. Na prisão, Arete deu à luz a um menino que tomou o nome do pai. Icete de Siracusa, que fora amigo de Dion, protegeu as duas mulheres e as trouxe para sua casa, juntamente com o recém(72) Plutarco (73) Cornélio Nepote nascido, responsabilizando-se pela custódia e segurança da família. Por algum tempo, tratou-as com dignidade e decoro, mas a ambição de Aristômaca, que possuía natural aptidão para a política, foi fatal para seu protetor. A matriarca, logo se viu presa num jogo de estranhas alianças. Grupos políticos fechados começaram a realizar, às ocultas, uma campanha com o objetivo de nomear o filho de Dion, que tinha o nome do pai, príncipe herdeiro do trono de Siracusa, dentro de uma nova ordem de coisas, tendo Aristômaca como regente protetora, até que o príncipe atingisse a maioridade.
Estes fatos colocaram Icete de Siracusa numa posição suspeita ao governo de Calipo. O amigo de Dion passou a viver dias de desordenado mau humor, observando pela fresta da parede do seu quarto sombras e vultos dirigirem-se à noite à ala da casa onde viviam
as duas mulheres, lá se demorando num ambiente de moderada e secreta conversação. Outros vultos silenciosos na noite, reuniam-se lá embaixo, na fonte do leão de pedra que jorrava água pela goela, e pareciam observar a casa de Icete. Ele já não tinha mais dúvidas. Sua residência estava sendo vigiada pelos agentes do governo. O medo de tal forma desviou este homem da decência e da honra que o levou a praticar o mais abominável de todos os crimes, não somente contra a família do seu falecido amigo, como também contra a sagrada lei da hospitalidade que, desde os tempos mais antigos, obriga o dono da casa a proteger seus hóspedes com a própria vida. Icete de Siracusa contratou uma embarcação para levar as duas mulheres e o menino ao Peloponeso, sob pretexto de que assim agia para protegê-las e que, passada a tormenta política, elas voltariam. Ao piloto da nave, mediante infame paga, deu a ordem, como se agisse em nome do governo, de matá-las na viagem e atirar os corpos ao mar, e o do filho com elas. (74) (74) Plutarco. Creio ser oportuno lembrar a observação que fiz no início deste escrito: “Na política, os bons são virtuosos e os maus são cruéis, como se o mesmo terreno produzisse o saboroso mel e a mortífera cicuta. “ (75) Nas minhas viagens por cidades gregas e bárbaras, testemunhei que na prática da política os povos são iguais, embora se diferenciem pelo idioma e pelos costumes. E continuarão a ser sempre assim. Isso é tudo. Nada mais tenho a narrar. (75) Plutarco
FIM