O Lugar de Hamlet Do controlo e da comunicação no homem e nas personagens
Why, what should be the fear? I do not set my life in a pin's fee; And for my soul, what can it do to that, Being a thing immortal as itself? It waves me forth again: I'll follow it. William Shakespeare, Hamlet
Comecemos pelo princípio. I can take any empty space and call it a bare stage. A man walks across this empty space whilst someone else is watching him, and this is all that is needed for an act of theatre to be engaged.1 A frase de Peter Brook reduz o teatro a uma descrição minimalista em que entram em consideração apenas duas coisas: a presença do humano e um espaço para a acção. Brook divide igualmente esse lugar do humano em duas áreas bem definidas, uma reservada ao desempenho teatral propriamente dito e outra para a presença do público, configuração aliás sucessivamente trabalhada pela arquitectura real ou simbólica dos espaços do drama, dos espaços rituais ao teatro de rua ao Globe de Shakespeare, etc.. É aliás esta configuração em presença um dos factores que distingue as chamadas artes do espectáculo, como a dança ou o teatro do audiovisual, cinema e televisão que mediaram esta presença por via da tecnologia. Este duplo ponto de partida, da presença do humano e dos lugares da acção parecem ser pontos de partida teóricos ideais para abordar uma das facetas menos
exploradas da actual explosão da Internet, aquilo a que nos Estados Unidas se chamou Comunicação Mediada por Computador (CMC). Trata-se do conjunto de aplicações em expansão crescente que, mais do que fazer uso da Internet como sistema de publicação ou troca de informação, lhe dão o que era uma das suas mais importantes vertentes iniciais, o estabelecimento de comunidades virtuais de indivíduos, não limitadas pela distância física que os separasse. Aqui voltam-se a colocar as questões que a tecnologia teria afastado, do lugar e da presença, do espaço e do humano. A natureza não-física das relações estabelecidas por via da Internet, criou uma identificação rápida com algumas descrições de realidades virtuais abrangendo todo o planeta como uma espécie de película simbolicamente construída acessível por meio de um qualquer dispositivo tecnológico, surgidas na literatura de ficção científica dos anos 80. É o caso do Metaverse que Neal Stephenson descreve no seu romance Snow Crash2. O exemplo mais famoso, contudo, é o ciberespaço, termo que surge pela primeira vez na prosa de William Gibson, escritor de ficção científica canadiano, no conto “Burning Chrome”3 mas vulgariza-se com o seu romance “Neuromancer”4. Cyberspace. A consensual hallucination experienced daily by billions of legitimate operators, in every nation, by children being taught mathematical concepts... A graphic representation of data abstracted from the banks of every computer in the human system. Unthinkable complexity. Lines of light ranged in the nonspace of the mind, clusters and constellations of data. Like city lights, receding...5 Citação abundante nos estudos americanos críticos de tecnologia dos finais dos anos 80, princípio dos 90, serve-nos aqui apenas de referência. O prefixo “ciber” entrou no vocabulário científico pela prosa de Norbert Wiener6 logo após a segunda guerra mundial. Iniciava-se uma revolução que o faria emergir do mundo secreto da ciência da informação para o universo pop da ficção científica pela mão de Gibson. Os seus mundos, contudo, dominados por uma visão nocturna e pessimista de uma sociedade futura integralmente mobilizada pela técnica, foram substituídos. Hoje, o termo ciberespaço parece designar o ponto de fuga ideal da evolução tecnológica conducente à convergência entre as tecnologias da interface homem-máquina ligadas à realidade
virtual e as redes informáticas globais do tipo da Internet. É aliás frequente ver o termo substituir-se ao nome Internet ou à expressão realidade virtual. Seja como for, é este espaço não existente, construído tecnologicamente, sem propriedades físicas mas carregado de significados construídos, que serve de palco à CMC. Gibson queria falar da presença totalitária do campo dos media electrónicos nas nossas vidas, queria falar da possibilidade de uma matriz que unisse todos os videojogos, então a vulgarizar-se, um espaço de controlo tecnológico. A sua descrição estava fortemente investida de um sentido disfórico, com uma visão de um pósapocalipse tecnológico. A palavra, contudo, é hoje pertença do senso comum significando esse palco imaterial7 das relações estabelecidas por via das CMC, permitindo a construção de qualquer discurso ideológico sobre ela8. É esse sentido da palavra que, pela sua generalidade, aparece hoje mais rico de visões e interpretações. O facto de a própria forma como esse ciberespaço sensorialmente se nos apresenta ser diversa e em rápida mudança, mais contribui para esta imaterialidade do próprio conceito. John Perry Barlow chega a dizer que numa conversa telefónica estamos já no ciberespaço. William Mitchell desenvolve uma arquitectura deste novo ciberespaço9. A opção corrente da World Wide Web, aponta, curiosamente para um trabalho de animação e cruzamento com o audiovisual das formas tradicionais nos meios impressos, isto é, a visão do multimedia como híbrido mediático. Existem ainda, evidentemente, os trabalhos no domínio da realidade virtual, destacando-se o VRML (Virtual Reality Modeling Language) de Mark Pesce ou o sofisticado espaço virtual de CMC, o Alphaworld de Bruce Damer, como próxima etapa da WWW, ou The Cave de Carolina Cruz-Neira, criando na verdade um pequeno palco rodeado de ecrãs retroprojectados onde as imagens virtuais surgem, permitindo uma partilha em presença dessa realidade construída10. Estes dois últimos exemplos apontam para um modelo em rede,
distribuindo
o
processamento,
tentando
criar
experiências
partilhadas,
directamente na linha da escrita de Gibson. Não podemos ainda esquecer o trabalho da chamada arte tecnológica na construção deste novo palco, destacando-se por exemplo o caso de Gary Hill com a sua instalação Tall Ships. Mais adiante falaremos ainda de outros exemplos de implementação visual de um ciberespaço, mas por agora torna-se
evidente que existe um conjunto de características que descrevem a representação sensorial dessa imaterialidade. Aquilo que define fundamentalmente o ciberespaço não é o facto de se reger pelas mesmas leis que definem o nosso espaço, mas sim o de apenas poder existir dependendo de um conjunto de exigências funcionais e simbólicas que garantam a sua inteligibilidade e a possibilidade sequer de ser utilizado. Tudo no ciberespaço está investido de sentido ou de utilidade. É essa uma das características que o faz essencialmente interactivo. As questões que pertencem tradicionalmente ao campo do design industrial na relação forma-função estão aliás omnipresentes. Aqui estamos, contudo, a falar de um conjunto de objectos, cenários ou mesmo, como dizia Peter Brook, um espaço vazio. Estamos a falar de um lugar que pode nascer apenas na acção e no discurso, posterior portanto à própria geração de sentido. As questões da funcionalidade não precedem por isso, necessariamente, as do sentido. A diminuição das limitações tecnológicas correntes parece estar a fazer equilibrar os termos desta equação, do computador ferramenta ao computador contexto simbólico para a acção. O ciberespaço, espaço de presença do humano, das suas acções e das suas palavras, pelo menos, como o espaço teatral, é construído na sua totalidade, nada tem de naturalidade, existe apenas em função das personagens e da sua acção, quer como processo de construção, quer como processo de utilização, investido por isso permanentemente de sentidos múltiplos. Não querendo entrar no caminho que poderia fazer desta visão um pesadelo de hipersignificação e controlo, diremos apenas que o ciberespaço é um palco, com a sua maquinaria de cena específica, com os seus cenários, adereços, entradas, saídas, jogos de luz específicos. A questão que se coloca imediatamente depois de definirmos o ciberespaço como um palco é, evidentemente, a da presença. O computador e o ecrã são formas temporárias de mediar essa presença que estão em mutação acelerada. O ecrã, elemento fundamental da interface no computador, está em desconstrução. O tubo de raios catódicos de proporção 4/3 que serviu de modelo à televisão e aos computadores parece estar a mudar de estatuto. Por via da video art como forma de trabalhar a especificidade do suporte vídeo, por via do cinema e dos seus exercícios plásticos de extremo rigor formal, por via da publicidade e dos telediscos,
usando o rectângulo de imagem como espaço de sensualidade múltipla e não apenas visual, por via da realidade virtual, evidentemente fugindo aos limites do enquadramento, por via dos computadores e do paradigma de ambiente gráfico nascido nos anos setenta no Palo Alto Research Center da Xerox, baseado em janelas, ícones, ratos e ponteiros, ou seja, espaços múltiplos manipuláveis dentro do ecrã. A televisão instituiu-se como máquina perfeita e totalitária de programação do nosso olhar para uma empatia total com um ecrã electrónico, dispositivo final de uma sociedade do espectáculo mediada electronicamente. A actual estética vídeo, dominada pelo trabalho exagerado sobre as imperfeições do suporte, por uma recomposição permanente do plano enquanto espaço de visão em construção, em muito contribui para ir transformando o lugar do espectador11. A transformação do objecto televisor de lareira electrónica onde se reunia a família em janela personalizada sobre uma massa interminável de diversidade audiovisual anuncia igualmente o reposicionamento do ecrã como lugar de interacção e não só de recepção como parece ser evidente já no caso dos computadores. O próprio objecto televisor parece desaparece crescentemente atrás do poder omnipresente do ecrã, destacado pelas tendências do design industrial. Os computadores anunciam-se como algo de novo, uma janela para um espaço em tempo real, um espaço gerado e mantido num novo éter, o tal ciberespaço. Nesse espaço, já não nos limitamos a ver e ouvir. Do espectador ao interactor é criado um lugar de actuação. Da sociedade do espectáculo à sociedade interactiva, o ecrã desfaz-se, como anunciava Poltergeist ou Videodrome. Isto significa que o ecrã passa a funcionar como interface, como eixo de ligação entre a realidade homem e a realidade máquina. O ecrã não é já o ponto final de visibilidade de um processo de transmissão de uma mensagem, é uma prótese na nossa relação com esse contexto simbólico para a acção gerado artificialmente, não no sentido de extensão da nossa visão, mas sim no sentido de dispositivo tecnológico temporário, substituível, incomodativo e contudo essencial para estabelecer, neste momento, a presença do humano nesse lugar que é o ciberespaço. De qualquer forma o lugar é já um palco. E mesmo que o ecrã nos sirva ainda de janela portátil sobre esse palco, é transparente e do mesmo gesto anuncia a nossa
presença. E é fundamental perceber como essa presença se dá por via de um dos objectos mais simbólicos, mais ubíquos das nossa civilização, precisamente, o ecrã. Aliás, os exemplos de trabalho sobre a representação sensorial do ciberespaço referidos atrás são, quase na sua totalidade, de experimentação de ponta artística e tecnológica sem implementação industrial. Torna-se, por isso, talvez interessante pegar no caso da Internet, fenómeno em explosão, como forma corrente da representação do palco. Para não perdermos, contudo, o fio que nos conduz, a frase de Peter Brook, talvez seja mais interessante considerar as aplicações onde a intervenção do humano gera interacção recíproca. Na World Wide Web a sensação dominante é a de solidão, percursos individualizados de consulta de informação absolutamente separados e opacos para os restantes. Em outros casos passa-se precisamente o contrário e tudo depende da presença múltipla do humano. São novas formas de comunicação que retomam paradigmas anteriores como o telefone ou a banda do cidadão, sobretudo sob a forma de texto. Neste momento o texto perde o seu predomínio na CMC para ceder lugar a outras formas em que o audiovisual ganha lugar crescente. Exemplos claros disso são o surgimento de programas como o Internet Phone, o Pow Wow ou o CUSeeMe que introduzem novas dimensões na CMC. Outro exemplo, contudo, talvez mais importante, é a transformação dos tradicionais espaços de relação na Internet, o Internet Relay Chat (IRC), que permite conversar a dois ou em grupo, e os Multi User Domains (MUDs), espaços virtuais povoados integralmente descritos por texto. No IRC uma conversa acontece por escrito. Vejamos um exemplo muito curto de parte de uma conversa sobre cinema no canal #portugal12 da Undernet, uma das redes de IRC mais populares da Internet. * John_Doe pergunta quem sabe qual é a obra prima do cinema contemporâneo! * Case23 olha para JD interrogativamente Quem viu a ULTIMA ODISSEIA NO ESPACO??????? . EU * dj1 diz que viu top secret e aproveita mandar um abraço a tonto Alguém viu o último ano em Marienbad? * Jonas viu a ultima odisseia no espaco tres vezes e nao percebeu de nenhuma das vezes!
* Spookie_ pede um pouco de atencao ao pessoal Glamour!!!!! Eh um dos meus filmes favoritos!!!!!! * John_Doe diz q é o PULP FICTION! diz, spookie * UH viu todos os top secret bem como todos os police squad
A conversa é absolutamente informal, gerando contextos variados, e apesar de usar apenas texto, consegue transmitir um leque interessante de expressividades e sinais para-linguísticos, enriquecendo a comunicação. Todos os nomes são, evidentemente, inventados e não tornam de todo evidente, por exemplo, que Jonas é uma mulher, UH um homem, Spookie, um pai de filhos e Glamour um casal de amigos. No IRC não existem quaisquer elementos de descrição espacial, embora seja frequente ver acções usando objectos descritas. Num MUD, todos os lugares, objectos e acções são descritos em texto. O espaço encontra-se significativamente mais desenvolvido e preenchido de objectos úteis ou decorativos. Vejamos um exemplo do MUD do Media Lab do MIT: purple-crayon.media.mit.edu You are almost to MediaMOO, inside a fiber optic cable. Type OUT to get to the Media Lab or COMMON to get to Curtis Common. Obvious exits: out to The E&L Garden, common to Curtis Common, salon to The NI Salon, and down to media.mit.edu > out The E&L Garden The Epistemology and Learning Group garden is a happy jumble of little and big computers, papers, coffee cups, and stray pieces of LEGO. Obvious exits: library to Library Foyer, atrium to Third Floor Atrium Landing, and common to Curtis Common You see a newspaper, a Warhol print, Sun SPARCstattion IPC, Projects chalkboard, Research Directory, Constructionist Flag, and Train Transfer here. > atrium You step out into the hallway. Third Floor Atrium Landing The hallway here opens up into a four-story atrium. You are on the third floor. Over the railing and across the atrium, you see a mural of grey squares with colored lines between them. > up
You rise gracefully up into the air. Hovering in the atrium You stand in open air. From here you have a fine view of the entire wall mural. Looking down you see the ground floor lobby, and behind you is the railing of the balcony on the third floor. High above you is the glass roof of the building. Blimp is here. > Say Hi You say, "Hi"
Ao contrário do IRC, os MUDs centram-se sobre o lugar e, originalmente, a interacção dava-se no contexto de um jogo, não, como neste caso, pela simples simulação de um espaço. Os MUDs permitem igualmente a existência de uma autodescrição mais ou menos complexa completamente independente da realidade. No MediaMOO, por exemplo, costuma circular um professor que aparece ao nosso olhar como um pelicano cor-de-rosa descendo graciosamente dos ares. Ele próprio programou a sua persona online para assim aparecer. A modificação acima referida implicando uma passagem de sistemas como este, dominados pelo texto, para sistemas audiovisuais tem como consequência fundamental a modificação dos graus de realismo envolvidos. Quando falamos de realismo, não quer dizer que o tal professor deixe de nos aparecer como um pelicano, o pelicano é que deixa a representação textual para nos aparecer sob a sua forma visual. Ao falarmos de persona online estamos claramente a trilhar fronteiras com a teoria do drama. Por muito idêntica que seja a presença que temos online ao que é a nossa personalidade real, a natureza tecnologicamente construída do palco e da forma como nele nos apresentamos cria o hiato suficiente para que possamos falar de personas. Aqui não estamos puramente no campo de questões sociológicas de apresentação do eu na vida social, mas sim algo mais complexo, algo que implica uma prótese tecnológica dessa apresentação. Essa prótese modifica os processos de construção do eu online, aparentando-os em qualquer caso mais com a construção de personagens do que com a simples apresentação. Chamemos-lhe improvisação de personagens na intimidade electrónica. Um espaço sem distância, gerado apenas pelo discurso e pela acção, é da dimensão exacta do humano nos limites impostos pela tecnologia. Isto é especialmente
verdade no IRC e afins, onde apenas o discurso e a acção definem o espaço, bem mais elaborado nos MUDs. É, contudo, um equívoco pensar que os limites tecnológicos impostos a essa construção do espaço são mais ou menos importantes que os impostos na interacção em presença real pelas convenções sociais, pela proxémica ou pelas regras mais elementares da interacção como foram extensamente formalizadas pela pragmática comunicacional. O que é interessante é que, como no teatro, este espaço de comunicação é inteiramente ficcionado. A consciência dessa ficção, os limites à expressividade colocados pela tecnologia actual geram uma situação de comunicação em que tudo ganha, de repente, uma visibilidade exagerada. As emoções são mais fortes, as frases têm muitas vezes de ser repetidas para chamar a atenção, as relações queimam etapas, invertem-se, modificam-se, são, permanentemente, um work in progress com a mesma volatilidade do meio electrónico onde se dão. Muito mais dado ao engano, ao equívoco, à ironia, à falsidade, à ilusão, este espaço tem na verdade um tamanho nulo. Como não há qualquer forma normal de medir os graus de compromisso e verdade dos participantes na interacção, introduzem-se numerosos mecanismos de redundância verbal que substituem as formas não-verbais que rodeiam normalmente a comunicação humana. São, na verdade, didascálias. Pode ser que venham a desaparecer com a introdução das tecnologias do audiovisual na CMC, mas na verdade o mais provável é que evoluam também as ferramentas que permitem construir esse modo de apresentação perante o outro. Isto é, hoje as personagens são construídas com uma ferramenta específica e de fácil manipulação, o texto, amanhã o vídeo será provavelmente uma ferramenta igualmente convivial e bem mais poderosa de poder de sedução13. Sandy Stone, performer e hoje directora do Advanced Communication Technologies Lab da Universidade de Austin, fala hoje de uma compressão verbal do vasto leque de modos da nossa interacção, usando o exemplo dos telefones eróticos: “Because tokens in phone sex are presented in the verbal mode alone, the client employs cues provided by the verbal token to construct a multimodal object of desire with attributes of shape, tactility, scent – in other words, all the attributes of physical presence – from the client’s own experiential of phantasmatic cultural schema. This act is thoroughly individual and interpretive, so that out of a
highly compressed token of desire the client constitutes meaning that is dense, locally situated, and socially particular.”14 Este trabalho sobre a construção de personagens em interacção, este permanente ligar e desligar do que é o real e o que é o construído está em perfeita sintonia com o trabalho da construção da personagem no teatro. Mas é, a este primeiro nível, sobretudo um trabalho de experimentação, de procura de um modo de conforto online. É um trabalho de improvisação que inclui até um modo de espectador, em que o silêncio é, evidentemente, a marca principal15. Podemos mudar de personalidade quando queremos, basta sair, voltar a entrar com um nome diferente e fingir que se é outra coisa, por exemplo, mulher, ou homem. Sandy Stone fala de estatísticas que indicam que, num dado momento a percentagem de transexuais online chegava aos 15%. Não quer dizer que o fossem, evidentemente, apenas que se apresentavam como sendo do sexo oposto ao que na verdade pertenciam. À medida que a complexidade da personagem cresce iremos entrando num outro nível, o das personagens construídas usando a tecnologia. O cruzamento dos desenvolvimentos na área da inteligência artificial e os seus domínios mais modestos com os estudos sobre a interacção em linguagens naturais usando os computadores permitiram que a construção de personagens online se estendesse para além da utilização variavelmente criativa dos meios variavelmente tradicionais como o texto ou mesmo a imagem nos casos mais avançados. A concepção, programação e utilização de extensões automatizadas de uma personalidade vulgarizouse hoje, passados anos sobre as primeiras experiências de Weizenbaum E nos animais de estimação electrónicos, que tanto sucesso subitamente têm, podemos, evidentemente, encontrar uma primeira visão do que poderão ser companheiros artificiais completamente desenvolvidos. E resolvidos os problemas múltiplos do realismo de um rendering em tempo real e do processamento de mecanismos diversos de inteligência articifical, essas personagens, inteiramente construídas, inteiramente presentes, surgirão. Surgirão na duplicidade ambígua entre a barreira intransponível que a tecnologia desenha, como o palco era inacessível ao espectador, e a sensação de presença, a intimidade electrónica que desconcerta mesmo os mais cépticos, perante o brilho azulado de um ecrã.
Corte na acção. Este texto é uma intersecção sincrónica num mar de linhas que o futuro desenha. O fim é o princípio é o fim. Quem se ligar hoje a um servidor de IRC ou a um MUD vai perceber isso. Como uma ecologia delicada, o palco modifica-se com a entrada de novos actores. As próximas representações são a não perder. Lisboa, 1997 Cf. BROOK, Peter; The Empty Space Cf. STEPHENSON, Neal; Snow Crash 3 Cf. GIBSON, William; Burning Chrome in “OMNI”, Nº 10, Vol. 4, Julho 1982, p. 72 4 Cf. GIBSON, William; Neuromancer, Ace Books, Nova Iorque, 1984 5 Op. cit. (p. 51) 6 Cf. WIENER, Norbert; Cybernetics, MIT Press, Cambridge, 1980 (original 1948) 7 A palavra imaterial não tem, aqui, como é frequente atribuir-lhe, um sentido desresponsabilizador na relação ao real. Esclareçase aliás que a relação deste mundo ao corpo, o estabelecimento de um contínuo indefinido entre o material e o imaterial, é uma das questões mais importantes na problemática do ciberespaço. 8 A mesma palavra, o mesmo conceito de ciberespaço, permite tão facilmente a hipercrítica de Baudrillard como a ideologia iluminista de Barlow, Godwin e restantes ciberfundamentalistas americanos, uma liberdade, igualdade, fraternidade electronicamente gerada e gerida. Veja-se aliás a Electronic Frontier Foundation, presente online em http://www.eff.org ou a muito maracadamente americana Cyberspace Declaration of Independence de Barlow em http://www.eff.org/pub/Publications/John_Perry_Barlow/barlow_0296.declaration 9 Cf. MITCHELL, William J.; City of Bits, integralmente disponível online em http://www-mitpress.mit.edu/City_of_Bits/ 10 Mais informação sobre o trabalho de Cruz-Neira, online em http://www.ee.iastate.edu/~cruz/ 11 Derrick de Kerckhove relata em The Skin of Culture uma experiência em que serviu de cobaia e lhe provou como o ecrã de televisão lhe falava com muito mais força subliminarmente ao corpo do que conscientemente ao pensamento. A constatação dessa empatia inconsciente e imediata é talvez um ponto de partida interessante para compreender as dificuldades de definição da chamada televisão interactiva, que aplicaria os pressupostos da interacção a esse meio de bombardeamento sensorial unívoco que é a TV. 12 Um canal é um espaço de conversa comum, geralmente subordinado a um tema e moderado por operadores. É também possível ter conversas a dois independentemente da presença ou não num canal. 13 A revolução do camcorder caseiro trouxe o poder do vídeo interactivo para nossas casas avant la letre. Hoje qualquer um filma qualquer coisa e o advento do digital nessa área tornará a manipulação ainda mais fácil, ainda mais poderosa. 14 Cf. STONE, Allucquére Rosanne; The War of Desire and Technology at the Close of the Mechanical Age, MIT Press, Cambridge, 1995. A homepage de Allucquére Stone está em http://www.actlab.utexas.edu/~sandy/ 15 A expressão Lurker, no jargão americano da Internet designa precisamente essa pessoa que vai espreitando, olhando, sem participar. Uma das primeiras experiências do MIT nos modos da ficção interactiva, aliás, trabalhava a passagem de lurker a actor como forma de medir a capacidade de envolver o tradicional espectador passivo e puxá-lo para a interactividade. Seria talvez igualmente curioso examinar online quais as formas e momentos em que nasce a interacção. 1 2