ROTEIRO da Cidade
O livro segundo da Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso é, sem dúvida, o mais importante repositório sobre a História da Madeira na segunda metade do século. O texto foi escrito a partir de informações colhidas pelo autor na tradição oral e escrita. Neste último caso releva-se a encomenda feita ao cónego Jerónimo Dias Leite dos elementos disponíveis nos arquivos madeirenses de que resultou o "Descobrimento da Ilha de Madeira e Discurso da vida e feitos dos capitães da dita ilha". Jerónimo Dias Leite foi cónego da Sé do Funchal, desde 1573 e terá escrito em 1579 a referida relação a pedido de Gaspar Frutuoso. Este, residente e natural de S. Miguel, aproveitou-os na década de noventa para a escrita das suas Saudades da Terra no volume referente ao Arquipélago da Madeira. O livro é um verdadeiro repositório da situação e História da ilha em finais do século XVI.
FUNCHAL Da ponta do Garajau, que está ao Nascente, até uns ilhéus, que estão ao Ocidente, perto da terra, e a ponta da Cruz, que é quase uma légua e meia, faz a terra uma enseada muito grande e formosa, e do Corpo Santo a São Lázaro e as Fontes de João Dinis, que estão ao longo do mar, que é um quarto de légua, há pela costa calhau miúdo e areia, o qual é o porto da cidade, onde ancoram naus e navios, que ali carregam e descarregam, tão povoado e cursado sempre deles, com tanto tráfego de carregações e descarregas, que parece outra Lisboa. E deste quarto de légua de calhau miúdo e areia pela costa é a compridão da grande e nobre cidade do Funchal. Ali situada em lugar baixo, em uma terra chã, que do mar se mostra aos olhos mui soberba e populosa tão bem assombrada nos edifícios como nos moradores, não somente dela, mas também de toda a ilha. Está assentada entre duas frescas 1 ribeiras, a de Nossa Senhora do Calhau , a leste dos muros com esta igreja, que é freguesia fora deles, e a ribeira de São Pedro, ou de São João, ermidas que estão para o poente, porque ambas elas estão ali, no cabo da cidade, ficando a ribeira fora dos muros entre elas, e a igreja de São Pedro dos muros para dentro aquém da ribeira, e São João e fora deles, da banda de oeste; (...) Esta cidade amurada, da ribeira de Nossa Senhora do Calhau, junto da qual está uma fortaleza nova, até à fortaleza velha, onde tem o capitão sua morada, donde defende o mais da cidade que fica fora do muro, da banda de oeste até São Lázaro, e, pela ribeira de Nossa Senhora do Calhau, vai o muro em 1
. Hoje de João Gomes.
compridão perto de meia légua pela terra dentro, a entestar com rochas mais ásperas, fortes e defensáveis, o qual, fabricado com cubelos e seteiras, da banda da ribeira tem três portas, em que estão suas vigias e guardas, pelas quais se serve a cidade, que fica da banda de oeste deste muro para dentro e para fora. E no muro da banda do mar tem uma porta de serventia, junto de Nossa Senhora do Calhau, e outra, mais no meio da cidade, junto dos açougues, e outra, que é a mais principal, aos varadouros, defronte da rua dos Mercadores. Meio tiro de besta desta porta principal está a casa da Alfândega. Mais próspera e de melhores oficinas que a da cidade de Lisboa, bem amurada de cantaria e fechada pela terra e pelo mar, que está junto dela e nela bate muitas vezes, quando há aí maresias. Adiante logo da Alfândega um tiro de besta está a Fortaleza Velha, que é a principal, situada sobre uma rocha, e tem pela banda do mar seis grandes e formosos canos de água, que dela sai e nela nasce, na mesma rocha sobre que é fundada, e de nenhuma maneira se pode tomar nem tolher, pela banda da terra, de nenhuns inimigos; a qual fortaleza tem, pela parte do mar, dois cubelos, como torres mui fortes, que guardam o mesmo mar e a artilharia, de que estão bem providos, e, pela banda da terra, outros dois, que guardam toda a cidade por cima, por estarem mais altos que ela, em a qual parte tem também um muro muito alto e forte, com uma fortíssima porta de alçapão; e, assim como tem dentro água, não lhe faltam atafonas, fornos e celeiros para recolher os mantimentos, e ricos aposentos, onde o capitão pousa, adornados com seu jardim e frescura. A primeira rua 2 , das mais principais dos muros para dentro, é a dos mercadores e fanqueiras, ingleses e flamengos e outros forasteiros, e de homens ricos e de grosso trato, que vai de Nossa Senhora do Calhau até à fortaleza, e no começo dela, junto de Nossa Senhora do Calhau, está uma não muito grande, mas formosa e cercada praça, de boas casas sobradadas, algumas de dois sobrados, com um rico pelourinho 3 de jaspe, do qual uma grande e larga rua, que se chama a Direita e é a maior da cidade, vai ter ao pinheiro, que é uma árvore que está no cabo dela, a mais grande e formosa que há na mesma cidade. E nesta rua tem o ilustríssimo Bispo Dom Hierónimo Barreto seus aposentos muito ricos, com seus frescos jardins de trás, que entestam com a ribeira de Santa Luzia; e logo mais acima, indo pela mesma rua, está a casa e igreja, da invocação de São Bartolomeu, dos padres da Companhia de Jesus, de muita virtude, exemplo e doutrina, sofredores de muito trabalho por salvar as almas, de que direi adiante; (...) Desta rua dos Mercadores, além da rua Direita, sai outra, não tão comprida, de outros de menos trato, como é fruta, pano de linho e coisas de fancaria, que vêm de fora, no cabo da qual está um poço, pelo que se chama rua do Poço Novo, logo além está outra, que sai desta primeira dos Mercadores e se chama de João Esmeraldo, por ele ter ali seu aposento, antigo, mui rico, com casas de dois sobrados e piares de mármores nas janelas, e em cima seus eirados com muitas frescuras; e na mesma rua estão ricas casas e aposentos, onde mora o nobre Pero de Valdavesso e Francisco de Salamanca, e outras 2
. Hoje equivale à rua da Alfândega.
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. Demolido em 1835, foi restabelecido em 1990
nobres pessoas. Outra sai desta primeira, chamada rua do Sabão, que serve de lojas e granéis de trigo, onde mora um Tristão Gomes, que chamam o Peru 4 , o qual tem umas ricas casas de dois sobrados, com poço dentro e portas de serventia, com muitos abrolhos de ferro da banda de fora, e defronte dele, algum tanto mais acima, estão uns poços muito grandes, em que, o mais do tempo, habitam mercadores muito grossos, ingleses. (...) E desta rua saem serventias para a Sé, que é uma igreja muito populosa, bem assombrada e fresca, e tem uma formosa torre, muito alta, de cantaria, com um formoso coruchéu de azulejos, que, quando lhe dá o raio do Sol, parecem prata e ouro, em cima do qual está um sino de relógio, tão grande, que levará em sua concavidade trinta alqueires de trigo, de tão soberbo e grande tom, que se ouve de duas léguas, onde acode a gente a qualquer rebate de guerra, quando se ele tange; e, mais abaixo, na torre, estão três janelas, onde estão quinze sinos. O corpo da igreja, que está sujeita à torre, é grande, com seu adro, também espaçoso, e cercado, em partes, de muro, e com dez degraus, porque sobem a ele, fora do qual tem um campo tão grande, que correm nele touros e cavalos, jogam as canas e fazem outras festas. Está esta igreja (que é da invocação de Nossa Senhora da Estrela) arrumada de Leste a Oeste, com a porta principal para o Poente e as duas portas travessas de Norte a Sul; estão guarnecidos os altares (que são nove) de ouro e azul, com três ricas capelas, afora a principal, onde tem o coro, do arco para dentro, com seus assentos custosos e bem lavrados de rica marcenaria, e no cruzeiro se diz a Epístola e Evangelho em seus púlpitos.
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. Hoje dos Ferreiros. É o troço entre os Largos do Chafariz e do Colégio.
4.CADAMOSTO
Alvise de Ca Da Mosto, aportuguesado para Luís de Cadamosto, foi um navegador Veneziano, que terá vivido entre 1432 e 1448. Em 22 de Março de 1455 integrou uma expedição sob o comando de Vicente Dias. E foi no decurso desta viagem que o navegador passou pelas ilhas do Porto Santo, a 25 de Março, e Madeira, a 28 de Março. As notas que escreveu sobre o arquipélago madeirense são resultado desta viagem. O testemunho é de grande importância, no sentido de que é o primeiro relato presencial de um navegador estrangeiro que fica a testemunhar o progresso do arquipélago, em pouco mais de trinta e cinco anos de ocupação.
Da Ilha do Porto Santo onde aportou Esta Ilha de Porto Santo é muito pequena, tem umas quinze milhas de circuito e foi descoberta há vinte e sete anos 5 pelas caravelas do sobredito senhor Infante, que a fez habitar por Portugueses. Nunca dantes fora habitada. É capitão dela um Bartolomeu Perestrelo, homem do dito senhor. Produz trigo e cevada para seu consumo; e abunda de carne de bois, porcos selvagens, e infinitos coelhos. Encontra-se aí também sangue de drago, que nasce em algumas árvores, isto é, goma que dão estas árvores em certo tempo do ano. Extrai-se desta maneira: dão-se uns golpes de cutelo no pé da árvore; e no ano seguinte, em certo tempo, os ditos cortes deitam goma, que cosem e purificam, e se faz o sangue. A dita árvore produz certo fruto que está maduro no mês de Março, e é muito bom para comer; assemelha-se às cerejas, mas é amarelo. Note-se que em volta desta ilha se acham grandes pescarias de dentais e doiradas velhas, e outros bons peixes. Esta ilha não tem porto, mas apenas uma boa enseada, ao abrigo de todos os ventos, excepto do les-sueste e su-sueste, pois com estes ventos não se estaria em segurança. Seja, porém, como for, tem bom ancoradoiro. Esta ilha é chamada Porto Santo, porque foi descoberta pelos portugueses no dia de Todos os 6 Santos , e nela há o melhor mel que suponho exista no mundo, e cera; mas não em grande quantidade. Do porto da Ilha da Madeira, e das coisas que ai se produzem. Depois, aos vinte e oito de Março, partimos da dita ilha e naquele mesmo dia chegámos a Machico, que é um dos portos da ilha da Madeira, distante da de Porto Santo quarenta milhas. Vêem-se com tempo claro uma da outra. Esta 5
. Se tivermos em conta que o navegador passou pela primeira vez na ilha em 1455 teremos o no número: em descobrimento em 1428 o que não corresponde à verdade. Deverá haver um erro vez do 2 deve-se ler três. 6
. É o único que estabelece a data exacta teve. Todavia a ser assim seria a ilha de cartografia do século XV é já representada o nome e o descobrimento deve resultar da ligação à lenda de S. Brandão.
para o descobrimento da ilha, baseado no nome que Todos os Santos e não Porto Santo. Acresce que na com este nome. Para outros autores a relação entre ocorrência de um naufrágio no seu encontro ou da
ilha da Madeira mandou-a o dito senhor habitar 7 pelos portugueses só de há vinte e quatro anos 8 para cá, e nunca foi dantes habitada. Fez capitães dela dois seus cavaleiros, um dos quais chamado Tristão Teixeira, que governa a metade da ilha da parte de Machico; e o outro, chamado João Gonçalves Zarco, a outra metade, da parte do Funchal. Chama-se a ilha da Madeira, que quer dizer ilha dos lenhos, porque quando primeiramente foi descoberta pelos do dito senhor, não havia palmo de terra que não estivesse cheio de grandíssimas árvores, e tiveram os primeiros que a quiseram habitar de lhes deitar fogo. Este foi lavrando pela ilha, durante muito tempo, e tão grande foi, que me disseram que ao sobredito João Gonçalves, que aí se encontrava, foi preciso ele e todos os outros com as mulheres e os filhos, fugir da sua fúria e acolher-se à água, no mar, onde estiveram mergulhados até à garganta dois dias e duas noites, sem comer nem beber, pois que de outra maneira teriam morrido 9 . Desta maneira varreram grande parte da dita madeira fazendo terra de lavoura. Esta ilha é habitada em quatro partes: a primeira chama-se Machico, a segunda, Santa Cruz, a terceira, Funchal, e a quarta Câmara de Lobos; e ainda que tenha outras povoações, estas são as principais. Poderá ter uns oitocentos homens, entre os quais cem de cavalo, tem cento e quarenta milhas de circuito, sem ter nenhum porto fechado, mas com ancoradoiros, e terras muito frutíferas e abundantes. E ainda que seja montuosa como a Sicília, contudo é muitissimo fértil, pois produz cada ano trinta mil estares10 venezianos de trigo, ora mais ora menos. As suas terras costumavam dar, a princípio, sessenta por um, o que presentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão deteriorando dia a dia. E o país é copioso de água de fontes muitissimo boas, e tem uns oito regatos muito grandes, que atravessam a dita ilha, e sobre os quais estão construídas umas oficinas de serrar que continuamente trabalham madeiras e tábuas de muitas maneiras, de que se provê Portugal inteiro e outros países. destas tábuas, menciono dois géneros: o primeiro é de cedro, que tem grande cheiro, e é parecido com o cipreste, e fazem-se belíssimas pranchas, largas e compridas, caixas e outros trabalhos; o segundo é de teixo, também muito bonito e de cor róseo-encamada. E por ser banhada por muitas águas, o dito senhor mandou pôr nesta ilha muitas canas de açúcar, que deram muito boa 11 prova. fazem-se açúcares para quatrocentos cântaros , de uma cosedura e de mistura, e, pelo que posso perceber, far-se-á deles maior quantidade com o tempo, por ser terra muito própria para isto, pelos seus ares quentes e temperados, pois que nunca faz frio, como em Chipre e na Sicília. Aí se fazem muitos doces brancos, perfeitissimos. 7
. Não foi o Infante quem deu o início ao povoamento, mas sim a coroa.
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. Vinte quatro anos, quer dizer que o povoamento se iniciou em 1431, o que não corresponde à verdade. 9
. A ideia de um incêndio duradouro, chegando a manter-se aceso 7 anos é hoje considerada uma figura de estilo.
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. Trinta mil estares equivale a três mil moios. . Quatrocentos cântaros equivalem a 6 mil arrobas.
Produz cera e mel, mas não em grande quantidade, tem vinhos bons, mesmo muitissimo bons, se se considerar que a ilha é habitada há pouco tempo. São em tanta quantidade, que chegam para os da ilha e se exportam muitos deles. Entre as videiras, o dito senhor mandou pôr plantas ou moitas de malvasias, que mandou vir de Cândia, e que provaram muito bem, e por ser o país tão gordo e bom, as videiras quási produzem mais uvas do que folhas e os cachos são muito grandes, de dois e três, e atrevo-me até a dizer, de quatro palmos, o que é a coisa mais bela de ver no mundo. Há também uvas pretas de parreira, sem grainha, perfeitas. fazem-se na dita ilha arcos belíssimos, e muito bons, de teixo, e enviam-se para o Ocidente; e também hastes muito boas para bestas. Acham-se nela pavões bravos, alguns dos quais brancos, e perdizes; e não há outra caça, a não ser codornizes, e abundância de porcos bravos nos montes. E digo, por ter ouvido a alguns da ilha, dignos de crédito, que no princípio havia grande quantidade de pombos, e ainda há, os quais se caçavam com um certo laço que lhes deitavam com uma cana, que apanhava o pombo pelo pescoço e o puxava abaixo da árvore. Como o pombo não conhecia o homem, não se espantava; e pode-se acreditar, pois que numa outra ilha descoberta há pouco ouvi que se fez o mesmo. A dita ilha é abundante de carnes, e há nela muitos homens ricos, em relação ao país, pois que ela é toda um jardim e tudo o que nela se aproveita é ouro. Há nesta ilha conventos de frades menores da observância12 , que são homens de santa vida. E ouvi dizer por pessoas de bem e dignas de crédito terem visto nesta ilha, por causa da temperança do ar, agraço e uvas maduras na semana santa, ou por toda a oitava da Páscoa.
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. Deverá referir-se aos cenóbios de São João da Ribeira (no Funchal) e de São Bernardino (Câmara de Lobos).
5.ZURARA Gomes Eanes de Zurara(1410?-1474?) foi guarda-mor do Tombo e cronista de D. Afonso V. Das suas crónicas merece a nossa atenção aquele que ficou com o título de "Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné", onde se fundem os feitos do Infante D. Henrique com os da Guiné. O texto terá sido escrito na primeira metade do séc. XV sendo, por isso mesmo, a primeira fonte oficial que refere o povoamento da Madeira. A forma lacónica como o cronista o faz deu azo a alguma polémica.
E foi assim: que em casa do Infante havia dois escudeiros nobres, da criação daquele senhor, homens mancebos e para muito, os quais depois da vinda que o Infante fez do descerco de Ceuta, quando ao poderio daqueles reis mouros teve cercada juntamente, segundo já dissemos, requereram que os aviasse como pudessem fazer de suas honras, como homens que o muito desejavam, parecendo-lhes que seu tempo era mal despeso se não trabalhassem alguma cousa por seus corpos. E vendo o Infante suas boas vontades, lhes mandou aparelhar uma barca, em que fossem de armada contra os Mouros, encaminhando-os como fossem em busca da terra de Guiné, a qual ele já tinha em vontade de mandar buscar. E como Deus queria encaminhar tanto bem para este reino, e ainda para outras muitas partes, guiou-os assim que com tempo contrario chegassem à ilha que se agora chama do Porto Santo, que é junto com a ilha da Madeira, na qual pode haver sete leguas em roda. E estando assim ali por alguns dias, esguardaram bem a terra, e pareceulhes que seria grande proveito de se povoar. E tornando dali para o reino, falaram sobre isso ao Infante, contando-lhe a bondade da terra, e o desejo que tinham acerca de sua povoação, de que ao Infante muito prouve, ordenando logo como pudessem haver as cousas que lhe cumpriam para se tornarem à dita ilha. E andando assim em este trabalho de se encaminharem para partir, se ajuntou a sua companha Bertolameu Perestrelo, um fidalgo que era da casa do Infante D. João; os quais tendo todas suas cousas prestes, partiram viagem da dita ilha. E acertou-se que entre as coisas que levavam consigo para lançarem na dita ilha, assim era uma coelha, a qual foi dada ao Bertalomeu Perestrelo por um seu amigo, indo a coelha prenhe em uma gaiola; e acertou-se de parir no mar, e assim levaram tudo á ilha. E sendo eles alojados em suas cabanas para ordenarem suas casas, soltaram aquela coelha com seus filhos para fazer criação, os quais em mui breve tempo multiplicaram tanto, que lhe empacharam a terra, de guisa que não podiam semear nenhuma cousa que lha eles não estragassem. E é muito para maravilhar, porque acharam que no ano seguinte que ali chegaram, mataram deles muitos, não fazendo porém mingua, por cuja razão deixaram aquela ilha, e passaram-se á outra da Madeira, que será quarenta léguas em cerco, e doze do Porto-Santo, e ali ficaram os dois, scilicet: João Gonçalves, e Tristão; e Bertalomeu Perestrelo se tornou para o reino. Esta segunda ilha acharam boa, especialmente de mui nobres águas
corrediças, que levam para regar a qualquer parte que querem; e começaram ali de fazer suas sementeiras mui grandes, de que lhes vieram mui abastosas novidades. Daí viram a terra de bons ares e sadia, e de muitas aves, que no começo tomavam com as mãos, e assim outras muitas bondades que acharam na dita ilha. Fizeram assim tudo saber ao Infante, o qual se trabalhou logo de enviar lá outras gentes, e corregimento de igreja, com seus clérigos, de guisa que em mui breve tempo foi grande parte daquela terra aproveitada. E considerando o Infante como aqueles dois homens foram começo de sua povoação, deu-lhes a principal governança da ilha, scilicet, a João Gonçalves Zarco, que era um nobre homem, o qual fora cavaleiro no cerco de Tanger, em uma batalha que ali o Infante venceu, em uma quinta-feira, da qual a História do Reino mais compridamente faz menção. E já este João Gonçalves fora em outras muitas boas cousas, especialmente no descerco de Ceuta, no desbarato dos Mouros que se fez no dia da chegada, e a este deu o Infante a governança daquela ilha, donde se chama a parte do Funchal; e a outra parte, que se chama do Machico, deu a Tristão, o qual também fora cavaleiro em uma cavalgada que se fez em Ceuta, homem assaz ardido, mas não tão nobre de todas as outras cousas como João Gonçalves. E foi o começo da povoação desta ilha no ano do nascimento de Jesus Cristo de mil quatrocentos e vinte anos; a qual ao tempo da feitura desta história estava em razoada povoação, que havia em ela 150 moradores, afora outras gentes, que aí havia, assim como mercadores, e homens e mulheres solteiros, e mancebos e moços e moças, que já nasceram na dita ilha, e isso mesmo clerigos e frades, e outros que vão e vêem por suas mercadorias e cousas que daquela ilha não podem escusar, (...) E também fez o Infante D. Henrique tornar à ilha de Porto Santo Bertolameu Perestrelo, aquele que primeiramente fora com João Gonçalves e com Tristão, que a fosse povoar; pero com a multidão de coelhos, que quase são infindos, não se pode em ela fazer lavra, somente se criam ali muitos gados, e apanha13 se sangue de dragão que trazem a vender a este reino, e assim levam a outras muitas partes. E fez lançar gado em outra ilha, que está a sete léguas da ilha da Madeira, com intenção de a mandar povoar como as outras, a qual se chama a ilha Deserta.(...). E por acrescentamento da Ordem de Cristo, cujo governador o Infante era ao tempo da dita povoação, deu á dita Ordem todo o espiritual da ilha da Madeira e do Porto Santo, e todo o espiritual e temporal da outra ilha, de que fez comendador Gonçalo Velho, e mais da ilha de S. Miguel lhe deixou o dizimo e a metade dos açucares.
13
. Seiva do dragoeiro, usada na tinturaria e farmacopéia.