O Jogo Dos Sete Erros

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  • Words: 2,010
  • Pages: 6
O Jogo dos Sete Erros 1. O que os pais pensam de errado sobre a influência da ficção na formação das crianças 1. Toda a ficção que não ofenda diretamente o sexto mandamento é inofensiva para crianças e jovens; 2. A ficção – sobretudo a infantil e juvenil – é feita apenas para divertir e não é portadora de idéias; 3. As idéias de um texto estão apenas naquilo que ele afirma ou nega explicitamente; 4. É aquilo que se ensina explicitamente que forma as mentalidades; 5. As más idéias que um texto possa ter não influenciam a mentalidade das crianças; 6. Os heróis da ficção não se transformam em modelos de vida para crianças e adolescente; 7. Portanto, o mau comportamento de meu filho e as suas más idéias não tem nada a ver com aquilo que eu pemiti e incentivei (comprando, alugando...) que ele lesse e assistisse.

2. Porque a ficção tem “autoridade” 1. A ficção se apresenta como uma espécie de “realidade”, à qual o leitor adere sem crítica e contra “fatos” não há argumentos; é fácil, aceitando as premissas, aceitar a conclusão; 2. A ficção não produz uma reação polêmica no leitor; não se sentindo atacado, ele não está pronto a se defender; apenas a fruir. 3. A ficção utiliza símbolos e os símbolos são muito abrangentes tempo, fluidos.

e, ao mesmo

4. A ficção cria com facilidade personagens cuja simpatia (que é fácil criar) gera uma identificação com o leitor, que passa a “torcer” pela personagem e a adotar seus pontos de vista. Todos os leitores de O Conde de Monte Cristo, por exemplo, torcem para que a vingança se concretize, ainda que sejam católicos e que saibam que a vingança é um pecado grave.

5. A ficção facilmente define – sem definir explicitamente – padrões universais, pois se aproxima do argumenta sobre futuro, o discurso de bem e de mal. gerar polêmica.

discurso epidítico1. Ao contrário do discurso jurídico – que o passado e do discurso legislativo, que argumenta sobre o epidítico, que louva e critica, cria, sem gerar polêmica, padrões A mesma coisa faz a ficção: cria padrões de bem e de mal, sem

1

Para Aristóteles os discursos (palavra que não é necessário tomar em sentido estrito, mas lato) são de três tipos: o jurídico, o legislativo e o epidítico. Este último seria o menos argumentativo. Perelmann (A Nova Retórica) discorda e parece-me que ele tem razão.

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3. Sete erros num exemplo: A Viagem ao Céu, de Monteiro Lobato 1. O mês de abril - Alteração de padrões morais, tudo contado com simpatia: preguiça, gula, inveja, soberba e o resto que vem de “gozar o prazer de viver”, sem pensar nada; Texto: “Era o mês de abril, o mês do dia de anos de Pedrinho e por todos considerado o melhor mês do ano. Por quê? Porque não é frio nem quente e não é mês das águas nem de seca – tudo na conta certa! E por causa disso inventaram lá no Sítio do Pica-pau Amarelo uma grande novidade: as férias-de-lagarto”. “Que história é essa? Uma história muito interessante, Já que o mês de abril é o mais agradável de todos, escolheram-no para o grande “repouso anual” – o mês inteiro sem fazer nada, parados, cochilando como um lagarto ao sol! Sem fazer nada é um modo de dizer, pois que eles ficavam fazendo uma coisa agradabilíssima: vivendo! Só isso. Gozando o prazer de viver...”

2. A fantasia alógica e irrefreada Seres fantasiosos não apenas usados como símbolos ou dentro de um esquema lógico (como acontece nas fábulas, por exemplo), mas na recriação de um modelo de mundo em que as regras são alógicas e se alteram continuamente. Não há regras lógicas nem morais. O caso do Visconde de Sabugosa é típico. Feito de um sabugo de milho, mas vivo, como é viva a boneca de pano, ele morre numa primeira aventura. A boneca guarda o sabugo, sem a cabeça e os membros, embolorado por ter caído na água, e pede à cozinheira que o refaça. Ela diz que aquele não presta mais e faz um novo com um novo sabugo, o milho era vermelho e, por ser ruivo, eles decidem que ele será o inglês Dr. Livingstone. Imediatamente ele fica vivo e fala inglês. Quando vão para a Lua, dão-lhe pó de pirlimpimpim para que ele vá ver “de fora” que lugar era aquele. Na hora de sair da lua, decidem não salvá-lo e fazer outro.

Texto p. 52: “O pó de pirlimpimpim que o visconde cheirou – prosseguiu Pedrino – era muito pouco, não dava nem para levá-lo até a Terra. E como ele não caiu de novo sobre a Lua e não podia ter chagado à Terra, o certo é estar parado na zona em que a força de atração da Terra empata com a força de atração da Lua – e nesse caso não sobe nem desce, fica toda a vida girando em redor da Lua como um satélite. Acho que foi o que sucedeu – concluiu Pedrinho com a maior gravidade. __ Também acho – disse Emília. Pedrinho riu-se com ar desdenhoso.

2

__ A boba! “Também acho!”... eu acho com base, mas que base tem você para achar? __ Eu acho com base no meu desejo de achar __ respondeu Emília. __ Deseja, então, pestinha, que o visconde fique toda a vida como satélite da Lua? __ Desejo, sim. Ando me implicando com esse Dr. Libingstone. É sério demais. Não brinca. Não faz o que eu mando. Está mesmo bom para satélite da Lua. Quando voltarmos à Terra, vou pedir a Tia Nastácia para fazer um Visconde igualzinho ao antigo. Aquele é que era o “legímaco”. [...] Pedrinho e Narizinho também andavam a implicar-se com o Dr. Livingstone, de modo que deram razão à boneca e resolveram deixá-lo como satélite da Lua. Mas burro falante era preciso ser salvo.”

3. Os pastores – a Igreja quer manter o povo ignorante para explorá-lo Texto p. 20-21: “__ Os sábios, menina, são os puxa-filas da humanidade. A humanidade é um rebanho imenso de carneiros tangidos pelos pastores, os quais metem a chibata nos que não andam como eles, pastores, querem, e tosam-lhes a lã e tiram-lhes o leite, e os vão tocando para onde convém a eles, pastores. E isso é assim por causa da extrema ignorância ou estupidez dos carneiros. Mas entre os carneiros às vezes aparecem alguns de mais inteligência, os quis aprendem mil coisas, adivinham outras, e depois ensinam à carneirada o que aprenderam e desse modo vão botando um pouco de luz dentro da escuridão daquelas cabeças. São os sábios. __ E os pastores deixam, vovó, que esses sábios desencarneirem a carneirada estúpida? – Perguntou Pedrinho. __ Antigamente os pastores tudo faziam para manter a carneirada na doce paz da ignorância, e para isso perseguiam os sábios, matavam-nos, queimavamnos em fogueiras – um horror, meu filho! Um dos maiores sábios do mundo foi Galileu, o inventor da luneta astronômica, graças à qual afirmou que a Terra girava em redor do Sol. Pois os pastores da época obrigaram esse carneiro sábio a engolir a sua ciência. [...] E Giordano Bruno? Ah, este foi queimado vivo numa fogueira, no ano de 1600. Sabem por quê? Porque era um verdadeiro sábio e estava iluminando demais a escuridão dos carneiros. __ Queimado vivo! – repetiu Narizinho com cara de horror. – Eu nem consigo imaginar o que isso possa ser. Outro dia queimei o dedo na chapa do fogão e doeu tanto, tanto... Imagine-se agora uma fogueira queimando a gente inteira – a pele, os olhos, o nariz, as orelhas, as mãos, tudo, tudo... – e amenina tapou a cara como para não ver a cena. Dona Benta deu um suspiro.

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__ Pois, minha filha, contam-se por centenas de milhares os mártires da fogueira, e quase sempre por isso: enxergar mais que os outros e ensinar os ignorantes. Por felicidade minha, eu vivo neste nosso abençoado século; se eu vivesse na Idade Média, já estava assada numa boa fogueira e também vocês, pelo crime de terem aprendido comigo muita coisa.”

4. O pó de pirlimpimpim – existência de várias realidades paralelas e possibilidade de mover-se entre elas; o tédio da realidade como ela é. Texto p. 31: “Quero experimentar, sim – disse a negra. – O coronel chupa esse rapé com tanto gosto, que sempre tive desejo de ver se a marca é boa – e assim falando tomou o pó que o menino lhe apresentava [notem que o menino tinha mentido, para enganar a cozinheira, dizendo que o pó era rapé; nem por isso, ser mentiroso, deixa de ser o herói da história; no texto é simpático enganar os outros para obter vantagem] e sem desconfiança nenhuma aspirou-o. Assim que a negra fez isso, os outros fizeram o mesmo, inclusive o burro e... mais nada! Veio aquele fiunnn no ouvido, e depois a tonteira própria do pó de pirlimpimpim, e todos perderam a consciência. Estavam voando pelo espaço com a velocidade quase da luz.”

Texto p. 53: “__Para nós não há impossíveis – afirmou Pedrinho com orgulho. – Quem tem no bolso este pó mágico, zomba das leis da natureza.”

5. A chegada à lua – subjetivismo radical: o voto da maioria determina o lugar em que se está. Texto p. 33: “__ Achei um jeito de resolver o caso de saber que astro é este. Basta fazermos uma votação. Se a maioria votar que isto é a Lua, fica sendo a Lua. É assim que os homens lá na Terra decidem a escolha dos presidentes: pela contagem dos narizes. Não havendo outro meio de saírem daquela incerteza, fizeram a votação. Pedrinho foi tomando os votos. __ Você, Narizinho? __ Lua! __ E você, Emília? __ Luíssima!

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__ Eu, Pedrinho, também Lua. E você, Tia Nastácia?2 A negra, ainda tonta, olhou para o menino com expressão idiotizada e respondeu: __ Para mim, nós estamos na Terra mesmo; e tudo o que está acontecendo não passa de um sonho de fadas. __ Três narizes a favor da Lua e um a favor da Terra! – gritou Pedrinho. – A Lua ganhou! Estamos na Lua. Viva a Lua!... A negra sentiu um calafrio. Se a maioria tinha decidido que estavam na Lua, então estavam mesmo na Lua.”

6. Dona Benta, o modelo principal, não tem religião. A irreligião dela nunca é afirmada, pois certamente isso seria chocante em 1932. Mas ela nunca reza, nunca vai à Missa, nunca invoca Deus ou os santos. Não é possível citar um texto típico. Praticamente todas as vezes que ela aparece é elogiada. Jamais merece nenhuma crítica do narrador. Dou apenas um exemplo:

Texto p. 96 “Certa vez, lá no sítio, Dona Benta explicou aos meninos o que era “sistema planetário”. Parecia um bicho-de-sete-cabeças, mas a boa velha costumava explicar as coisas mais difíceis de um modo que até um gato entendia.”

7. A única pessoa que tem religião é Tia Nastácia, sempre apresentada como ignorantíssima e facílima de enganar. O problema dos textos é como acima. Todos ressaltam que ela é ignorantíssima mas boa. Além de católica, tem outra característica que o justifica para o racista Lobato: é negra. Sempre é chamada assim: “a negra”. Texto p. 47: “__ São Jorge, me perdoe – disse ela com voz atrapalhada. – Sou uma pobre negra que nunca fez outra coisa na vida senão trabalhar na cozinha para Dona Benta [...]. Por isso rogo a São Jorge que me perdoe se as minha humildes respostas não forem da competência e da fisolustria dum santo da corte celeste de tanta prepotência...”

Bibliografia: 2

Só de passagem, notem que na década de 1930, quando o livro foi escrito, todos os “mais velhos” eram “senhor” e “senhora”; Tia Nastácia é “você”.

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BÉNICHOU, Paul. Le sacre de l’écrivain. Paris: NFR/ Gallimard, 1996. HALSALL, Albert W. L’art de convaincre. Toronto: Editions Paratexte, 1988. LOBATO, Monteiro. Viagem ao céu. São Paulo: Editora Globo, 2007. 1ª. edição: 1932 SULEIMAN, Susan. L’autorité fictive. Paris: PUF, 1983

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