O Comum

  • Uploaded by: Sérgio Pina
  • 0
  • 0
  • May 2020
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View O Comum as PDF for free.

More details

  • Words: 44,558
  • Pages: 183
O COMUM

O COMUM �lexandr� de �lmeid�

EDIÇÕES ECOPY PORTO | 

F  A T C C D L

Alexandre de Almeida O Comum Paulo Ribeiro On Demand 51 268452/07

ISBN

978-989-8080-40-0

L

Porto

D



E 

C  

Rua de J. J. Ribeiro Teles, , 1º, Sala J - E [email protected] Biblioteca Nacional de Portugal ALMEIDA, Alexandre de, 1983O comum. – (On demand ; 51) ISBN 978-989-8080-40-0 CDU 821.134.3-31”20”



Índice



Introdução ...................................................9 Capítulo 1 ................................................. 11 — Amizade .............................................. 11 Capítulo 2 ................................................ 29 — Pernet Triste ........................................ 29 Capítulo 3 ................................................. 43 — Três Irmãos Pobres ............................... 43 Capítulo 4 ................................................. 63 — Clarisse ............................................... 63 Capítulo 5 ................................................. 93 — Rosário ................................................ 93 Capítulo 6 ............................................... 113 — Um Passado Miserável ........................ 113 Capítulo 7 ............................................... 161 — O Serão ............................................. 161 Capítulo 8 ............................................... 179 — A Felicidade Por Fim .......................... 179

 

Introdução Olhamos para o sol; mesmo que ele nos cegue não podemos evitá-lo. Sentimos o seu calor, a beleza que nos arrebata, que faz com que queiramos voar, tocá-lo, senti-lo, por mais absurdo que isso possa parecer. É neste estado de êxtase, quase permitindo tocar o céu, que nos vem à memória, muito de repente, inesperado, alguém capaz de nos encher o corpo e a alma de serenidade e calor, alguém que amamos, aquele ser tão especial, capaz de nos arrancar o sentimento mais puro, profundo e pacífico que, afinal, desconhecíamos ter. Pensamos e não compreendemos, por mais que se queira, o porquê. Porque somos capaz de sentir e ver o sol, o seu calor que nos aquece, estando ele a milhões de quilómetros, quase alcançando o infinito perante a impossibilidade de ser tocado por mão humana. Então torna-se confuso e por vezes desesperante quando simplesmente não somos capaz de sentir o corpo, cheirar o perfume, ver os olhos e nem tocar a face da pessoa que mais amamos estando ela apenas a poucas centenas de metros; distâncias intoleráveis muitas vezes multiplicadas por invejas sem sentido e ódios tempes-



  

tuosos de humanos que por vezes nem merecem o título de “pessoa”. Sentimentos tão complexos e, por vezes, incompreensíveis, em seres tão simples. Sentimentos como o amor, tão incontroláveis por ser a mando do coração e não do raciocínio lógico; mas olhando mais atentamente, isso é comum; sofrer por esses sentimentos, isso é comum; lutar por eles, isso é comum; morrer-se por eles, isso é comum. Para infelicidade de inúmeros amantes de paixões fogosas e amores verdadeiros, o destino reserva, por vezes, uma realidade bem mais cruel que condiciona a liberdade de se amarem. Porém o amor e a relação perfeita existe: sempre que o sol se põe e a lua nasce, por um breve instante eles tocam-se, mesmo sendo um momento breve e fugaz; esse momento é sublime e eterno. Comum, também, é a existência de obstáculos, sejam pessoas ou medos, físicos ou mentais, que teimam em interpor-se entre um amor perfeito e divinal. Essas pessoas nojentas não têm a mínima consciência do que é amar ou ser amado; só entendem o ódio, jamais serão livres ou felizes. Mas o amor trata-se, muitas vezes, de sofrimento e dor, de muitas noites sem dormir, outras tantas a chorar, mergulhado apenas em pensamentos, na tristeza. Quando, no fim, tudo for ultrapassado, esse amor chegara finalmente a um lugar etéreo que chamará seu, resplandecendo de perfeição… talvez!



 

Capítulo 1

— Amizade — — Pedro, está tudo pronto para o serão da noite de hoje? — Perguntou com serenidade a seu mordomo, sabendo que ele levaria o seu trabalho e suas ordens a bom porto. — Não irei tolerar qualquer tipo de falha da sua parte. Ouviu bem? O senhor Pernet tinha um gozo secreto em provocar Pedro pela simples razão de ele ser tão eficiente e meticuloso no seu trabalho de mordomia. Gostava de testar a sua paciência; no entanto, o mordomo respondia-lhe sempre com um sorriso, dando a entender que conhecia bem as intenções do seu patrão. A pergunta era, de facto, retórica, pois Pernet confiava totalmente na sua competência. — Sim, senhor Pernet, encontra-se tudo conforme ordens e indicações do senhor. — Respondeu Pedro com o sorriso que Pernet bem conhecia e com um olhar de satisfação que lhe percorria as rugas do rosto, bem barbeado, até aos finos fios de cabelo branco penteado para trás e seguro com pouco gel.



  

— Ordenei a Isabel que preparasse a mesa para doze pessoas, com os talheres de prata, os copos de cristal e os pratos com borda de ouro, tudo disposto sobre a toalha de mesa bordada de linho branco. Isabel era a criada e cozinheira de Pernet. Mulher simpática de sorrisos calorosos e acolhedores; os olhos cor de âmbar pareciam dotados de vida própria com movimentos de chamas bem alimentadas quando neles incidiam qualquer tipo de luz, fosse de vela, sol, ou mesmo de luar. Um caracol de cabelo — Espreitando pelo barrete da sua farda preta com avental branco rendado no rebordo — que lhe percorria a testa, passando ao lado da sua vista direita, tocava ténue nos lábios finos de contornos graciosos, finalmente terminando sublime ao fundo do queixo pequeno e arredondado; era cor de fogo, um ruivo intenso que prendia e enchia de luz o olhar de qualquer ser sensível; era causador de invejas a essas senhoras de posses que gastam fortunas com a sua aparência o que nem por isso as torna mais formosas. De facto, Isabel tinha uma pele bonita, sedosa e com brilho certo, ligeiramente corada nas maçãs do rosto cuja fina pele cobria os ossos salientes. É certo que a sua nunca vira qualquer tipo de cosméticos, nem mesmo cremes para cuidado da pele. A beleza dos seus gentis trinta e oito anos de vida deve-se apenas à natureza do que ela é. Bela e simples, dir-se-ia que aparentava, no máximo, trinta anos. Aquela mulher de corpo raro e de proporções certas incendiava a alma de qualquer homem que a visse, levando-os, por vezes, à gaguez. — E a biblioteca? Está já preparada? Tem em atenção que iremos receber, como convidados, professores universi-



 

tários, intelectuais e membros da alta sociedade. Tudo tem que estar perfeito para este serão. — Perguntou Pernet, sabendo que, certamente, Pedro já teria tudo preparado; ele apenas testou de novo a sua paciência. — Sim, senhor, a biblioteca encontra-se pronta. O sofá disposto como foi ordenado, a lareira já arde intensa com vida própria. Uma fornalha de amores ardentes inextinguíveis que se consomem com real paixão! Aquele homem tinha um não sei quê de poético que muito agradava e inspirava a alma de Pernet. — Obrigado, Pedro. — Não se preocupe senhor. O serão irá ser um tremendo sucesso. — Assegurou Pedro com certo brilho no olhar. — Bem sei, meu amigo, sei-o porque és tu que me estás a organizar tudo. De facto, a confiança que Pernet tinha pelo seu mordomo, mas acima de tudo bom amigo, atingia um patamar elevado, chegando mesmo à totalidade num piscar de olhos. O patrão afeiçoou-se muito a Pedro, que esteve sempre do seu lado, quer fosse nos bons ou nos maus momentos de existência. Tornaram-se muito amigos. Ambos sabiam no coração que o outro estaria sempre presente e preparado para ajudar a sarar feridas que tanto magoam na alma, a levantar o outro sempre que um deles caía. Disposto a entrar naquela gruta escura, fria e húmida, que é a solidão, resgatar a alma das trevas nas alturas em que ela se fecha numa redoma de vidro inquebrável sem ajuda exterior, o outro a destruiria com a simples coragem e vontade de ajudar um



  

amigo que cai ao fosso. A amizade sincera, o apoio incondicional e a compreensão, por vezes, é o suficiente para salvar um amigo e ajudá-lo a escalar as paredes frias do fosso em que se encontra perdido. Quando um precisava de apoio, o outro estaria sempre presente, disposto a ouvir os queixumes e mozambices que os poderiam atormentar, procurando sempre dar os melhores conselhos e apoiarem-se o mais eficazmente que sabiam. Acaso acontecesse encontrarem-se ambos num infinito fosso de tristeza, arranjavam forças um no outro e lá conseguiam subir de novo, a custo é certo, mas subiam. Cair no fosso é tão mais fácil, mas a capacidade e força para sair é o que nos torna especiais e únicos, é a vontade intrinsecamente humana de viver. Infelizmente, nem todos possuem ou encontram no âmago esse fervor pela vida. Não é fácil a luta contra demónios que nos atormentam e rasgam a carne, arrancando-a dos ossos, mas não é uma luta invencível; pode-se vencer, basta ter o desejo e um pouco de ajuda. Há quatro anos que Pernet e Pedro se conheciam. Gradualmente, a relação de patrão e empregado foi-se transformando numa amizade incrível. Eles desabafavam tudo um ao outro, falavam dos passados distantes e de experiências de vida, por vezes, muito duras. Daquele modo foram-se tornando unidos, inseparáveis, os melhores amigos que a vida e o destino conseguiu juntar. Durante aquelas conversas, foram-se conhecendo cada vez mais e melhor, ambos sabiam; mais do que isso, tinham a certeza de o quão verdadeiro o outro era e que, sem dúvida, podiam confiar. Daí tiraram a conclusão que um estaria



 

sempre presente para o outro quando fosse necessária a ajuda e o apoio de um bom amigo, sempre na certeza de que as falhas de amizade seriam raras — na verdade, eram mais que raras, eram inexistentes. Viam o quão parecidos eles realmente eram. Mesmo separados por décadas de vida e experiência, partilhavam os mesmos ideais e as mesmas ideias. Nunca a riqueza de Pernet foi objecção à amizade que os unia. Duas grandes mentes pensam de maneira semelhante. Jamais, mas jamais, eles se abandonariam nos tempos mais difíceis; sempre que um chamasse, o outro estaria lá, disposto a enfrentar qualquer dificuldade, porcaria ou consequência que a vida — na sua maior crueldade — lhes pudesse atirar à cara. A união faz a força: eles juntos eram uma força inabalável. É basicamente nisto que se define uma relação verdadeira e inegável de amizade, é no facto de sabermos que podemos contar com um amigo. Isso deixa qualquer pessoa tranquila, por que não, mais segura de si própria. — Muito me elogia o senhor. Porém, faço apenas o meu trabalho, não susceptível nem merecedor de tais elogios por parte do senhor. São compromissos e obrigações que de bom grado aceitei ao assinar o contrato proposto pelo senhor. — Disse Pedro, prostrado ao lado direito de Pernet que se encontrava sentado frente à secretária de cerejeira do escritório. — Que besteiras me dizes, Pedro. Um contrato não passa de um pedaço de papel redigido por Alvim, meu advogado; bem sabes. Para mim, tem a mesma importância



  

que a cinza de um cigarro pousada no fundo de um cinzeiro de vidro. — Assegurou, não entendendo o porquê das palavras do mordomo. — Quantas vezes te disse já que não és apenas mordomo? Quantas vezes te disse já para não me tratares por senhor mas sim por Xavier? Há quantos anos nos conhecemos? Diz-me, Pedro! — Há já quatro anos, senhor. — Senhor, não: Xavier! — Peço desculpa: Xavier. — Assim já nos entendemos! Pedro, tudo o que fazes merece elogios. Dou-tos como amigo, não como patrão. — Mesmo nestes quatro anos creio que ainda não me acostumei a isso. A separar amizade de trabalho. Foram muitos mais os anos a trabalhar para gente tão diferente de ti. — Não, Pedro, já trabalhas para mim há muito. Somos amigos há muito. Deves juntar amizade ao trabalho, não separar! Não somos amigos apenas quando um de nós precisa, mas sim a todos os minutos do dia. — A culpa reside em ter sido mordomo toda a vida, não estou habituado de outra maneira. Nunca um patrão me permitiu tais liberdades, nunca nenhum foi meu amigo como é o senhor. — Confessou, mostrando alguma emoção e com certa humidade nos olhos. — Pedro! — Disse, abrindo mais os olhos. O mordomo entendeu. — Amigo como tu és, Xavier. — Corrigiu. — Amigos como nós somos. Apenas é mister tratares-me por senhor em frente a convidados. Às vezes as pessoas não têm capacidades sentimentais para entender que empregado e patrão possam ser amigos.



 

— Que se há-de fazer, Xavier… É a sociedade em que vivemos. — Pois é, Pedro! Bastava às pessoas terem um pouco de consciência e as coisas podiam ser diferentes e melhores. Após uma breve pausa em que pôs as mãos sobre os olhos, esfregou levemente retirando-as de seguida, continuou, dizendo: — Mas não pensemos nisso agora. Para que horas está marcado o jantar? — Para as vinte e trinta, sensivelmente a uma hora de distância. — Respondeu, olhando para o relógio que Pernet lhe oferecera num Natal. Xavier deu um trago no seu James Martin, trinta anos, e pousou-o novamente no lenço branco que se encontrava sobre a secretária, de modo a não manchá-la. Duas pedras de gelo acompanhavam o néctar, tornando-o fresco no copo de cristal que reluzia, iluminado pelo candelabro de madeira e vidro que se encontrava directamente em cima da mesa de cerejeira. Apesar de saber que o gelo altera o sabor do whisky, só assim o conseguia tragar. Pedro trouxera-lho minutos antes, ao entrar no escritório a pedido de Pernet. O escritório era para ele um local de refúgio, um paraíso de madeira e livros que se estendiam do chão ao tecto; onde ele tinha por costume ir sempre que se achava mais pachorrento ou em baixo. Por vezes, era também uma prisão, quando ele estava embrenhado no seu trabalho: a gestão dos seus vários hotéis espalhados pelo país. Uma cópia da obra de Victor Hugo, Les Misérables, grande clássico da literatura francesa, encontrava-se aberta



  

sobre a secretária onde se lia a seguinte passagem sublinhada pela caneta de Pernet: “O que se via era o escuro, o vácuo, as trevas, uma neblina de Inverno, envolta com o vapor de um túmulo, uma espécie de paz que assustava, um silêncio de que não se recolhia coisa alguma, nem mesmo alguns suspiros, uma sombra em que não se distinguia nada, nem mesmo alguns fantasmas.” Sempre, ao ler esta passagem, ele ficava triste, pois vinha-lhe à memória uma vida passada, uma existência de sofrimento, dor e morte, fantasmas invisíveis de um passado recente, escuro, frio e sombrio, numa altura em que se encontrava enevoado de espírito e incapaz de pensar logicamente; um momento interminável de uma vida que ele tenta mas não consegue esquecer. As paredes, outrora brancas, do escritório encontravam-se forradas de estantes de cerejeira, do chão ao tecto, repletas de livros, desde poesia, romances, passando por ficções e várias enciclopédias, atlas e alguns manuscritos do próprio Pernet. Amante da poesia, havia dias em que passava horas a pôr no papel aquilo que lhe preenchia a mente e lhe ocupava o coração; escrevia sempre no escritório. Um telefone antigo de disco, preto, adornava a secretária escura, bem como um candeeiro com pé de madeira e abajur de um bege salpicado de pintas castanhas, folhas soltas e documentos que clamavam a atenção e requeriam a assinatura dele estavam imaculadamente organizados em montes e por prioridades, à espera de serem lidos. Secretária essa que se prostrava bem no centro daquele esplendoro-



 

so paraíso privado de papel e madeira. O cheiro de ambos, combinado com o aroma do tabaco de enrolar de Pernet, um Unitas Exellent com travo a manga, enchiam o ar de odores agradáveis que evocavam sensações prazerosas ao inalar a névoa que por vezes se acumulava lá dentro, fazendo por vezes arder os olhos. Pernet adorava o seu tabaco de enrolar. Fazia os cigarros sem recorrer a máquinas. Dava-lhe prazer enrolá-los à mão; para ele ficavam com outro sabor, mais agradável. Adorava o seu refúgio, ver-se rodeado de obras-primas e muitas primeiras edições, adorava lá fumar, beber o seu whisky e ter as suas conversas com Pedro. Sentia-se intocável naquela redoma de livros, protegido da ignorância de gente que se julga superior, mas que de superior só têm a estupidez e as manias, injustificadas, de grandeza. A verdadeira grandeza reside na simplicidade e na modéstia de ser e de estar na vida, coerente do princípio ao fim. Pernet, sentado no seu cadeirão de madeira forrado a veludo vermelho, fez sinal a Pedro para que este se sentasse e disse: — Bem sabes, meu amigo, como este jantar é importante para mim. Dá-me a oportunidade de esclarecer alguns assuntos que têm sido debatidos sobre mim. Enrolou um cigarro, de suave travo a manga, e acendeu-o com o seu zippo de prata que ostentava um  gravado que entretanto tirara do bolso esquerdo das calças de linho azul. Deu uma puxada, expirou uma ligeira nuvem de fumo e deixou-o a descansar apoiado no cinzeiro redondo de vidro. A camisa que trajava era de pureza branca, a gravata azul.



  

Entretanto, Pedro já se havia sentado na cadeira simples de madeira frente a Pernet, do outro lado da secretária, ficando a porta maciça a poucos metros do seu ombro direito. — Bem sei, Xavier. Concordo que é chegada a altura de esclarecer a sua posição e maneira de estar perante essa gente, suposta, da alta-sociedade. Pouco me têm agradado as palavras ditas sobre ti por pessoas que, nem de vista, te conhecem, mas se acham no direito de julgar. Pernet não era bem visto por grande parte da alta sociedade portuguesa. Era tido na conta de revolucionário e rebelde, que não seguia a fina e rigorosa etiqueta que aquela classe lhe exigia. Não tinha por hábito vestir-se de marcas e tinha uma maneira de pensar e de estar que entrava em conflito com os ideais de aparência da alta. Ele fazia simplesmente o que o levava a sentir-se bem, fosse a indumentária que trajasse ou a maneira de falar; não o fazia para agradar a ninguém. A alta exigia-lhe uma postura de acordo com o seu estatuto social; aquilo pouco ou nada lhe interessava. Talvez eles tivessem medo que ele denegrisse a imagem que os caracteriza. Muitos nem sequer queriam ouvir o seu nome, por não ter nascido em berço de ouro; mas também não o criticavam nem julgavam. Subiu na vida às custas do seu próprio sofrimento, de “vagabundo” passou a magnata da hotelaria. Isso provocava inveja e consequente desprezo por certos membros da alta. Os que o aceitavam exigiam-lhe mudança, mas é inconcebível mudar o que já de si é bom, mudar para o que não se é não tem sentido. Pernet era grande filantropo. Doava milhares de euros todos os anos por várias instituições, fundações e a quem quer que ele achasse merecedor. Era algo incompreendido



 

neste ponto por alguns da sociedade que diziam ser um desperdício desnecessário de dinheiro gastá-lo em desconhecidos e em coisas que não são para proveito próprio ou reconhecimento público. Ele desprezava aquela maneira de pensar; é nojenta e inacreditável a incompreensão deles do porquê. Não entendem que ajudar o próximo, ou quem mais precisa, é ainda mais valioso que qualquer posse física de um objecto fútil e muitas vezes desnecessário, só para se gabarem que o têm e exibi-lo perante o resto da sociedade. Aquele jantar era bem necessário a Pernet. Tinha que “fazer as pazes” com a alta, pois esta estava a publicar artigos e a dizer todo o tipo de boatos barbáricos a respeito da sua vida. Chegaram mesmo ao cúmulo de insinuarem que o império dele foi alcançado ilegalmente. Acusações graves por parte de quem nunca lhe ouvira a voz ou vira a cara. O jantar era a oportunidade dele de pôr os pontos nos is, esclarecer e averiguar o porquê do que tem sido dito e escrito, de expressar e explicar a sua postura perante a vida; o não sujeitar-se às exigências ridículas que lhe eram impostas. No entanto, se realmente necessário, cumpriria algumas delas, as que ele achasse condignas da sua existência, tudo para que não lhe roubem o que de si ele de bom grado dava. A razão principal daquele jantar é mostrar que ele não é um inimigo, mas que apenas pensa e age de modo diferente dos restantes. Era perigoso para ele ter inimigos naquele meio; desprezava-os, mas eram-lhe necessários para preservar tudo o que de bom ele fazia com os mais indigentes, para manter viva a chama que lhe incendiava a alma sempre



  

que via o sorriso sincero de contentamento de uma pobre criança a quem ele desse um pouco do que era seu. O pouco para uns pode ser muito e um momento de felicidade para os outros. Pernet sentia-se feliz ao dar, mas nada lhe sossegava mais a alma do que aquilo que recebia em troca: o sorriso de alguém. Era por aquilo que ele lutava, foi para aquilo que ele construiu o seu império, a simples bondade e vontade de um homem bom querer tornar a vida mais suportável para alguns. O seu coração era bom, a sua alma sofrida, mas carregada de compaixão; só era feliz quando via a felicidade nos outros. Os ricos, quanto mais têm, mais querem. Pernet, quanto mais tinha, mais queria dar; era para isso que ele vivia, só assim se sentia verdadeiramente vivo. Era muito rico por certo, possuidor de coisas caras, casas, inúmeros automóveis, vivia bem, muito bem, mas, no entanto, dava mais do que retinha para si; deste modo, vivia ainda melhor, com um pouco de felicidade e sossego de espírito. Ele não compreendia a alta sociedade e pouco lhe interessava o que sobre ele era dito, mas não podia tolerar nem permitir que eles destruíssem todo o bem que ele faz. Era perigoso não se relacionar; por isso, era imperativo que ele se integrasse, mesmo não sendo seu desejo ou prerrogativa. Infelizmente, era mister poder mover-se livremente num meio que desprezava. Odiava-os por terem tanto e não partilharem nada. — Sim, Pedro, eles julgam-me sem ter esse direito, sem perceberem a essência do que eu sou. Também eu não me acho no direito de julgar quem quer que seja, mas não



 

sou obrigado a tolerar as suas acções ou atitudes. Enoja-me a visão deles sobre os mais indigentes a que eles, com desprezo, chamam de “ralé”. O que não entendem é que essa “ralé” torna possível o estatuto deles. Deviam ter mais respeito por aqueles que espezinham enquanto exibem sorrisos falsos nos lábios grosseiros. Nojentos! Tenho que os gramar, não por mim, mas por aqueles que tento ajudar. Só eles me interessam, só eles me percebem. — Discursou Pernet com um ligeiro cerrar de olhos que exprimiam um leve ódio. Deu um travo no cigarro por si enrolado, soltou o fumo que cheirava a manga exótica e pousou-o novamente no cinzeiro. — Sinto o mesmo que tu, Xavier, mas não há como mudá-los. São e serão sempre uns parasitas que se agarram e alimentam da boa vontade e ingenuidade dos mais simples e modestos. Mas tens que te dar bem com eles, salvaguardar o bom que és e bem que tens feito. — Aconselhou Pedro, fitando os olhos de Pernet com inegável compreensão. — Odeio-os, Pedro! Não suporto os seus sorrisos falsos cheios de segundas intenções. Pernet pegou o cigarro do cinzeiro e deu uma grande puxada, queimando intensamente tabaco e papel, a ponta fervendo de raiva; porém, a sua raiva era ainda maior. — Apenas me sossega o espírito saber que nem todos eles são assim, que ainda os há que são bons e sinceros, que ainda existem os que realmente se preocupam com as pessoas e que, como eu, dão a ajuda que podem sem procurar nada em troca. Esses, sim, são os que deviam ser considerados como alta sociedade. Título merecido por actos generosos e não pela extensão das contas bancárias. — Disse,



  

enquanto expelia fumo saboroso, segurando o cigarro entre os dedos. — Também os há que nem têm onde cair mortos; no entanto, são tão convencidos! Dá-me vontade de rir quando os vejo e sei que é tudo aparência, que na realidade são uns pobretanas. — Explicou Pedro, ajeitando-se melhor na cadeira. — Bem verdade, meu amigo. A mim também dá vontade, é deveras ridículo. Ambos se riram ao lembrarem-se de alguns personagens que assim eram, só aparência. Ouviram bater levemente na porta do escritório. — Entre, Isabel. — Autorizou Pernet, ainda a sorrir. — Peço desculpa por interromper. — Disse ela no seu jeito meigo e envergonhado, após ter aberto a porta. — Não tem qualquer importância. Esteja à-vontade! — Sossegou. Isabel só ali trabalhava há cerca de seis meses e ainda não se sentia muito à-vontade. Pernet apagou o cigarro pressionando-o contra o fundo do cinzeiro. — Queria só perguntar uma coisa ao Pedro. — Disse num tom quase imperceptível. — Sim, diz lá então Isabel… De que precisas? — Perguntou Pedro, dirigindo para ela o seu olhar. Isabel manteve-se imóvel junto da entrada e disse: — Queria saber que guardanapos ponho: os de pano ou os de papel? — Talvez seja melhor os de pano. Dobra-os em forma triangular. — Aconselhou com um sorriso acolhedor. — Está bem. Com licença.



 

Isabel saiu e fechou a porta levemente, sem fazer barulho. — Diz-me, Pedro. Que horas são? — Neste momento, são oito menos um quarto, Xavier. — Disse após consultar o seu relógio de pulso, coisa que Pernet raramente usava. — Estou-te muito agradecido, Pedro. — Porquê, Xavier? — Perguntou indignado. — Por teres tornado possível a realização deste serão. — Explicou. — Ora, é o meu trabalho. — Respondeu a sorrir. — Eu sei, mas agradeço-te igual. De facto, os elogios feitos por ele a Pedro eram merecidos. Pedro era um homem alto e magro, muito composto e charmoso, apesar das finas rugas do cabelo branco próprio de um homem com cinquenta e oito anos de vida. As expressões dos seus olhos castanhos eram sérias; era possível ver-se neles a honestidade de alguém digno de valor; reluziam mesmo a sabedoria de pessoa experiente. Filosóficos na sua maneira de pensar, os seus ideais iam ao encontro dos de Pernet. Ele odiava a pretensão da classe alta. Melhor que ninguém, ele conhecia bem as intrigas tantas vezes criadas no seio da alta-roda. Com dezoito anos, já trabalhava em casas de famílias ricas. Foi criado e mordomo de famílias na França, Suiça e na Inglaterra. Aos seus olhos, eram todos iguais. Por vezes, tratavam-no como se nem gente fosse. Conhecia de perto a crueldade de que alguns eram capazes, tendo mesmo o desplante de destruir outras famílias e levá-las, por vezes, à ruína não só financeira mas também emocional.



  

Pessoas que só olham o dinheiro, esquecendo que o resto do mundo existe; cruéis e frias, não conhecem o que é a humanidade. Olham de cima para os outros como se eles fossem inferiores, uns vermes a pisar. Farto daquela gente insensível, ele regressou para Portugal. Não procurava emprego como mordomo, mas ele fora-o toda a vida; teve conhecimento de que um sujeito procurava mordomo: tentou a sua sorte, até porque não conseguiria outro tipo de emprego; ninguém quer dar trabalho a um velho. Quatro anos depois ainda trabalhava para aquela pessoa simpática que lhe dera emprego. Ele viu que Pernet era diferente dos outros para os quais já trabalhara. Pedro andava sempre vestido com um fato preto, camisa branca e lenço vermelho enrolado ao pescoço. Pernet disse-lhe que podia vestir-se como se sentisse mais confortável, mas ele sentia-se bem e à-vontade com o fato que sempre usara, consequência de o ter envergado praticamente toda a vida. Habituara-se a ele. Encontrou no novo patrão mais que um mero patrão, encontrou um amigo. Pedro sempre fora competente e eficiente no seu trabalho; fazia-o com gosto. Um empregado fiel e um homem íntegro. Fora Pedro quem organizou aquela noite. Enviou os convites, escolheu a ementa e preparou a casa para receber os convidados. Concordou com Pernet que a necessidade exigia que aquele jantar fosse feito para esclarecer certos assuntos que implicavam o seu amigo; o que considerava injusto. Enfim, Pedro era um homem de bem, iria apoiar o seu amigo quaisquer que fossem as consequências.



 

— Bem, Xavier, vou ver se o fogo ainda arde. — Disse, levantando-se da cadeira em que se encontrava, dirigindo-se à porta. — Ainda não sei como a Clarisse me convenceu a realizar o jantar. Pouco me interessa o que dizem de mim. É frustrante, porque é necessário, mas não devia; eu deveria ser aceite como sou. — Infelizmente, não é essa a verdade. — Pois não. — Reconheceu Pernet com um olhar de tristeza. — O mal é uma virtude dos mais poderosos! O jantar ajudará a evitá-los. — Bem sei. — Suspirou. — Estás, então, contente por teres aceite o conselho da menina Clarisse? — Veremos, Pedro. Veremos! Pedro abriu a porta do escritório e saiu, dirigindo-se à biblioteca.



 

Capítulo 2

— Pernet Triste — Duas semanas antes, mais dia, menos dia, Pernet estava no seu refúgio a ler calmamente a sua cópia de Les Miserables, um copo de whisky e o tabaco de enrolar sobre a secretária. Embriagado com os seus próprios pensamentos e memórias tristes de um passado cruel que em nada conseguia evitar na mente, entregou-se à tristeza, sentindo-se um inútil sem razão para viver. O silêncio ensurdecedor que se ouvia no escritório foi interrompido pelo bater na porta. Pernet saiu do seu estado de pasmo ao ouvir as pancadas secas que ecoavam pelas prateleiras de livros. Parou a leitura e, olhando para a porta, disse: — Podes entrar, Pedro. — Acabei de falar com a menina Clarisse ao telefone. Não ouviu este tocar? — Perguntou, enquanto entrava naquela divisão, ficando de pé frente ao Xavier, do outro lado da mesa. — Não, Pedro, creio que não ouvi. Oh, Pedro, estou naqueles dias...



  

— O que tens, Xavier? Em que pensas tu? — Perguntou com ar extremamente preocupado. — Oh, Pedro, nem eu sei. Estava a tentar ler mas não conseguia encontrar sentido para as palavras. Tinha a mente muito ocupada. — Com o quê? — Ai está, Pedro, nem eu sei. Estava a pensar em tanta coisa ao mesmo tempo que cheguei ao ponto de não conseguir pensar em nada. Não fui capaz de me isolar num só pensamento ou memória, já nem sei bem qual dos dois era. As revoluções de tudo o que tenho aprisionado na cabeça são confusas e dispersas. Penso em nada e em tudo ao mesmo tempo. O meu crânio parece prestes a explodir. Oh, Pedro, nestas alturas não consigo perceber qual o sentido da minha vida, falta-me a vontade por ser incapaz de me entender. Só existe em mim a vontade de desistir. É tão mais fácil. — És incapaz de pensar ou entender os porquês do teu passado. O problema é que ele ainda existe camuflado no teu ser; as sensações que sentiste na altura ainda te correm nas veias, ainda as sentes debaixo da tua pele! Podes não ser capaz de recordar esses momentos; a tua mente fechou-se algures, mas o teu corpo ainda as sente. Quando falas em desistir, a que te referes ao certo? — Perguntou, enquanto puxava pela cadeira sentando-se de seguida e fitando os olhos tristes de Pernet. — Sabes bem do que falo! Da morte! Pedro já fazia ideia que fosse isso; receava-o pois conseguia ver nos olhos do amigo que ele falava a sério. — Vê bem, Xavier. Tu tens mais razões para viver do que morrer. Não podes desistir, não podes abandonar aqueles a que tão bem fazes. Não tem sentido!



 

— Ajudar os outros é o que ainda me mantém vivo. Mas, Pedro, a falta de vontade às vezes é maior e eu não tenho força suficiente para evitá-lo. — Oh meu amigo! Diz-me que posso eu fazer para te ajudar! — Suplicou com uma lágrima sincera a querer soltar-se e gritar. — Nada, Pedro. Nem tu nem ninguém. Tem que ser por mim, sozinho. Apenas preciso que me ouças, meu amigo. — Estarei sempre aqui para te ouvir! Sabes disso, não sabes? — Sei, claro que sei. É em momentos como este que a morte faz sentido e que se alcança o odor apelativo dessa última instância, momentos em que a vontade de desistir se torna mais saborosa que o desafio constante de lutar pela vida. Lutar! Palavra insistente que existe ao virar de cada esquina e que às vezes choca contra nós sem que nos apercebamos, mas que eu não consigo ouvir. A questão eterna ainda permanece fervendo em mim! Para que raio continuo a lutar? Será que ainda vale a pena? A vontade pura de lutar só faz sentido a quem ainda possui esse desejo, mesmo a esses acredito que a força, a vontade de lutar e viver vai diminuindo e dissolvendo-se lentamente até ao nada. Em momentos como este, em que me vejo obrigado a questionar-me se valerá a pena ou se desistir é a saída mais fácil e talvez mais eficaz. — Bem, Xavier, realmente é o método mais fácil. Mas diz-me, é mais eficaz para quem? Não é para aqueles que ajudas e dependem de ti. Criaste tudo o que tens com o objectivo de ajudar. Agora queres abrir mão de tudo isso e desistir de quem és e do que fazes! Não creio que seja justo,



  

nem para ti, nem para as pessoas e crianças que já ajudaste. Não consigo perceber como és capaz de conseguires sequer conceber essa ideia. — Está seguro em mim, uma existência saturante de vícios, ócio e fraqueza de espírito que apenas me conduzem a um último reduto, ao desespero e ao cansaço, à falta total de vontade. — O que queres dizer com isso? — Perguntou, semicerrando os olhos, com ar incrédulo. — Quantas vezes já tu me vieste aqui buscar, tombado sobre a mesa, embriagado com whisky e me levaste para o quarto às tuas costas? — Já bastantes, Xavier, é verdade. — Estou sempre aqui fechado, sei que não me faz bem algum, mas aqui sinto-me seguro; o silêncio me acompanha. — Não percebo por que passas a maior parte do teu tempo aqui fechado, em silêncio, sozinho. Às vezes, nem Pernet sabia bem por quê. Alguma coisa que ele não sabia explicar o levava a isolar-se, sem desejo de ver vivalma, sem vontade alguma. Por vezes, fazia um enorme esforço para chorar, porém nunca conseguia, não era capaz de pôr o seu desabafo em lágrimas. Não se sentia humano, por não o conseguir. — Oh, Pedro, há muito que não choro. Deus bem sabe que tento, não sei se estou mais forte ou, pelo contrário, mais fraco, mais ausente, olvidado por sentimentos interiores! Esqueci já o sabor de uma lágrima que tanto anseio. Procuro no silêncio respostas a questões inexistentes, nem sequer a mim, que as procuro, fazem sentido algum. Vivo



 

assombrado por pensamentos que vêm e vão, pensamentos cujo significado não entendo, mas que me conduzem a um mundo de dúvidas cada vez maior e assustador. É este desespero que me frita a mente e me mergulha na incerteza do que realmente sou. A ausência de sossego para o meu espírito inquieto transforma-me num revoltado contra mim mesmo, alguém que eu não quero ser. Às vezes, sou capaz de distinguir melhor as coisas com os olhos fechados, porque só vejo o que quero ver, do que com eles bem abertos, já que sou obrigado a ver o que não quero. Pedro ouvia o seu amigo atentamente, assustado com a convicção exprimida por Pernet, temendo pela sua própria sanidade. — Xavier, o que te posso dizer é que não podes desistir, não deves. Tens que lutar, por ti, por tudo o que construíste em teu redor, por aqueles que ajudas, que te respeitam e admiram pela pessoa bondosa que és. Desistir agora é deitar por terra todas as coisas que já fizeste. Por favor, pensa! — Pediu Pedro com voz trémula de desassossego. — As coisas que fazemos não têm qualquer impacto no universo, já que ele, no fim, voltará a ser o que era no princípio: nada! — Sim, Xavier, concordo contigo, mas vê bem: o que faz diferença e tem impacto é o que se faz no entretanto. É isso, meu amigo, que te torna na pessoa maravilhosa e grandiosa que és. É pelo que fazes no momento, não pelo passado ou o que vieres a fazer no futuro, mas sim pelo agora. Enquanto Pedro falava pausadamente, já com uma calma sedutora na voz, Pernet enrolou mais um cigarro e acendeu-o com o zippo que repousava sobre a mesa.



  

Pernet estava mal, com mau aspecto, barba por fazer, olhos vermelhos de cansaço por ter passado a noite em branco, fechado no seu recanto solitário. O cinzeiro repleto de beatas e uma garrafa solitária de James Martin quase vazia. Passara ali toda a noite sem conseguir pregar olho, simplesmente a olhar o vazio, fumando, bebendo e tentando pensar. Em vão, apenas se sentia mais cansado e confuso. É triste ver alguém nesse estado, sem vontade de se mover, sem forças para nada, entregue apenas a vícios que não consegue controlar nem evitar os impulsos que o deterioram. — Oh, Pedro, não sei como fugir a este estado de espírito! — Suspirou Pernet. — Creio que não há como evitar, mas é necessário lutar conta isso. — Sim, Pedro, lutar! Só é possível para quem ainda tem força e vontade para isso. — E tu, já não tens? — Perguntou com ar meio zangado, meio incrédulo. — Diz-me, Pedro, achas cobardia o suicídio? — Inquiriu, fugindo à pergunta, pois nem ele próprio sabia a resposta. — Não, Xavier, apenas julgo que é necessário mais coragem para viver do que morrer. Pernet entendeu bem a intenção da resposta proferida pelo amigo. Incitava-o a ter coragem e a ser forte, a lutar de modo a manter tudo o que tinha. Ele já lutara tanto ao longo da sua vida; de quando em quando simplesmente faltava-lhe a vontade e a força para continuar. — Oh, Pedro, às vezes é-me tão difícil, quando tudo o que vejo é sempre tão negro. Dizem que o mundo é o equilí-



 

brio entre o bem e o mal, o positivo e o negativo; então onde está o balanço quando tudo o que consigo ver é apenas o negro e o negativo? É uma luta constante e esgotante tentar encontrar uma resposta que me satisfaça. O meu céu é tão negro de dia como é de noite. Estou numa luta interior pela minha própria sobrevivência; a minha mente destruída, muitas vezes ausente e ébria, insiste em dizer para desistir enquanto que o meu corpo tenta desesperadamente resistir a pensamentos tenebrosos, obscuros e cegos. Então, pergunto a mim mesmo o que será mais forte: o corpo ou a mente? Mas, então, não é a mente que controla o corpo? Ele só faz o que o cérebro ordena ou terá vontade própria? Que confusão! Nesse sentido será que a mente está a lutar contra ela própria, tentando agarrar-se a algo que a force manter-se viva? Uma parte, a maior, diz que o melhor a fazer é mesmo esquecer a vida e ir ao encontro da saída mais fácil. Outra parte, ínfima, grita: “aguenta”. Porém, não explica as razões pelas quais aguentar. Fico a pensar que a mente luta, de facto, contra si própria e que a ínfima parte, com a mais pequena e simples vontade de lutar, se sobrepõe à falta de vontade de viver. Mas não é do interesse da mente sobreviver? Eu acredito que sim! Então por que razão me diz ela para desistir!? Sou incapaz de entender! A minha mente insiste, mas o meu corpo resiste. — Dizes, então, que estás numa luta interior pela tua própria sobrevivência. Que uma pequena parte te mantém vivo, porque te agarras a algo, ainda que a razão seja inconsciente para ti. É isso? — Perguntou Pedro, após um breve silêncio, com olhar de quem compreendeu as palavras que foram ditas. — Creio que será isso.



  

— Sabes qual é a coisa a que te agarras? — Não, Pedro, não consigo encontrá-la! — Penso que sei. — Se sabes, por favor, diz-me. — Creio que te agarras à esperança que tudo melhore, que te agarras àqueles a quem ajudas. Eles são a razão pela qual lutas. — Disse com verdadeira sinceridade, espelhada nos olhos vítreos. — Sim, creio que será essa a razão mais lógica. Seguiu-se uma longa pausa em que Pernet fumava, de olhos fechados, tentando encontrar algum sentido num pensamento que lhe ocorreu naquele momento. Pedro limitou-se a fitá-lo, compreensiva e pacientemente, aguardando que o amigo falasse. O silêncio inquietante foi interrompido por Pernet quando disse: — Agora apercebo-me de que a parte ínfima que diz para lutar é a que obriga o corpo a resistir, mas a outra teima em bombardear-me com pensamentos que dizem “luar para quê?”; então a batalha recomeça. É um ciclo vicioso de que não me consigo livrar. Ainda me pergunto quem vencerá: o positivo — uma diminuta parte, o corpo — Ou o negativo — O que os meus olhos apenas conseguem alcançar neste momento, num esforço constante e diário pela sanidade? Por enquanto eu resisto, mas sem a certeza de quanto tempo mais. — Tu agora estás no fundo e não sabes se consegues aguentar. Mas não te esqueças que já uma vez saíste dessa tristeza que te domina. Eu sei que conseguirás fazê-lo novamente. — Sossegou Pedro com estas palavras verdadeiramente esperançadas. — Espero, sinceramente, conseguir.



 

— Vais conseguir, tenho fé em ti. Eu sei que não é fácil, mas também conheço a força que tens, que te move. Acredito em ti, sei do que és capaz. — És um grande amigo, Pedro. Agradeço a confiança que depositas em mim, mesmo quando eu não a tenho. Pernet deu um último travo no cigarro e extinguiu-o no cinzeiro que abarrotava de cinza. O seu olhar comovido revelava a amizade que sentia pelo mordomo. — Sabes, Xavier, consigo compreender, de certa maneira, o que sentes. Espero que o que te quero dizer agora possa despertar em ti uma maneira diferente de ver as coisas. Tudo o que quero é ajudar-te, meu amigo. — E ajudas! — Assegurou Pernet. — Estás disposto a ouvir os conselhos de um velho? — Perguntou, franzindo ainda mais as rugas da testa, olhando para ele com esperança da sua resposta. — Não és um velho e, sim, claro que sim, és meu amigo. Ouvir-te-ei, digas tu o que disseres. — Retorquiu. A resposta muito agradou ao Pedro, era a que ele ansiava. Pernet enrolou mais um cigarro, meteu-o à boca e acendeu-o enquanto Pedro principiava a falar, dizendo com honestidade e solene: — Quando te sentes só, mesmo que te encontres rodeado de amigos, não consegues evitar não sorrir mesmo que eles tentem roubar um da tua face triste, assombrada por pensamentos indesejados. Apesar de todos os amigos, grandes amigos que possas ter, não és capaz de evitar sentir-te só, porque não pertences a lugar algum, porque o mundo está a conspirar contra ti. Simplesmente, não tens paciência



  

para suportar a tua vida, queres desistir porque de algum modo te julgas um miserável. Não o és, de todo. Vê só a vida que tens, o bom que fazes e és. — Todo o bem que faço será esquecido com o passar do tempo! — Interrompeu Xavier, dando um pequeno golo do whisky. — Até pode ser verdade, até pode ser esquecido, mas, neste momento, é louvável. Pernet silenciou-se ao ver-se incapaz de encontrar algo que refutasse a afirmação do seu amigo. Deu mais um trago e pousou o copo sobre o lenço. O cigarro ainda ardia entre os dedos, dava uma passa de vez em vez, enquanto Pedro continuava: — Peço-te, por favor, que acredites em mim quando te digo que ainda vale a pena lutar pela vida; ela vale todo o sofrimento e dor que já experimentaste. Acredites ou não, vale a pena viver. E se tu, simplesmente, tentasses encontrar o melhor de todos os maus momentos pela qual já passaste? Vais conseguir perceber que, afinal de contas, ainda existem todas aquelas coisas maravilhosas neste mundo decadente que tu simplesmente negligenciaste! Pára e pensa por um bocado. Estar vivo ainda é grandioso. Todos os maus momentos que passamos ao longo da vida, devemos aproveitá-los para crescer como pessoa e são compensados pelos momentos bons que se passa ou que ainda estão para vir. Tenho consciência que possa não parecer fácil, mas não é, de todo, impossível; então, não vale a pena ficar num canto a chorar ou a lamentar-se. Por favor, pensa, simplesmente, em tudo o que te rodeia, em todas as coisas boas e magníficas; pensa no sol que te aquece, nos pássaros, em todas as



 

árvores verdes e lindas, resplandecentes de vida, dando-te o ar que respiras; o céu, as estrelas, a lua, o mar azul e tantas outras coisas mais que existem para que possamos viver. Pernet interrompeu-o. Escutava-o atentamente e suas palavras gentis estavam já a surtir efeito: — Tens razão, Pedro, mas às vezes, como tu dizes, é difícil pensar no bom quando tudo o que se vê é mau. Às vezes, sou atingido por uma evasão de sentidos. Minha consciência torna-se abstracta, focada no nada, pensar sem pensar, sentir sem sentir, tudo e nada ao mesmo tempo; nascer, viver, no fim, morrer. — Compreendo isso, Xavier, mas é o ciclo natural da vida a que fomos destinados. Estar vivo é tudo isto, bons e maus momentos, dor e alívio, mágoa e alegria, chorar e sorrir, vida e morte. Por isso não penses que o esforço é inútil; simplesmente assim é a vida: lutar diariamente pela sobrevivência. Isso, meu amigo, torna-a num desafio interessante. Ela poderia ser muito mais simples se deixássemos. Tenta e verás: é simplesmente único estar-se vivo. As palavras sábias de Pedro davam a entender o homem que ele era, culto, filosófico, com um grande fervor pela vida, capaz de identificar o bem que poderia existir no mal. Homem vivido, de grande experiência, sentia na alma as palavras que ele próprio dizia com emoção na voz e perspicácia nos olhos. — Agradeço, em muito, as tuas palavras, Pedro. Pode parecer que não, mas têm, na verdade, muito valor para mim. Agradeço a tua ajuda e amizade. Tornou-se tudo muito claro para mim; num sonho real eu percebi a razão e o porquê, eu estava embriagado em divagações irracionais e



  

inconstantes de reflexos negros. Então eu vi tudo, mas não recolhi nada e a confusão continua a mesma; ao menos já sei por que estou confuso e só a ti posso agradecer esta elucidação. — Confessou Pernet, apagando mais um cigarro no monte de cinza que se acumulara. Em verdade, as palavras de Pedro realmente ajudaram Pernet. Compreendeu a razão pela qual se sentia confuso; esta mantinha-se mas já a percebia. Foi um bom princípio. — Muito me agrada ter conseguido ajudar-te. — Disse Pedro com um sorriso. — Obrigado, Pedro! — Sempre que precisares estarei aqui. — Eu sei. Pedro levantou-se e dirigiu-se para a porta. Deteve-se por um instante em que se voltou para Pernet dizendo: — Ah, é verdade! Com toda esta conversa, já me ia esquecendo do que me trouxe aqui. — Diz, meu amigo. — Clarisse telefonou, pedindo que se encontrassem amanhã em casa dela por volta das três da tarde. Irás, Xavier? Disse que seria muito do teu interesse. — Sim, Pedro, eu vou. Mais uma vez, obrigado. Pedro saiu fechando a porta atrás de si. Pernet retomou a sua leitura já mais calmo e sereno após as palavras reconfortantes do seu amigo. Pouco depois foi jantar. Sentia-se sozinho, razão pela qual convidou Isabel e Pedro a fazerem-lhe companhia. Não queria estar sozinho. Tinha por hábito comer só, fechado no escritório. Naquela noite, porém, não o fez: sentia necessidade de alguma companhia.



 

Juntaram-se na cozinha, normalíssima, móveis de pinho colocados à altura dos olhos, com portas vidradas expondo copos variados, algumas jarras e canecas. Uma bancada de mármore azul cobria as paredes brancas do lado norte e este. Uma janela sobre a banca deixava sorrir o sol, que durante a tarde aquecia as plantas colocadas em recipientes de barro sobre o parapeito interior. Uma mesa de madeira rodeada por oito cadeiras, também de madeira, com assentos em vime entrançado, situava-se no centro. Sobre a mesa, uma toalha branca, muito simples, onde repousavam três pratos brancos, talheres e copos, colocados em fila, lado a lado. Pernet sentou-se no meio, Isabel à esquerda e Pedro à direita. Uma travessa branca colocada no centro da mesa exalava um cheiro agradável a legumes e especiarias. Isabel preparara como refeição uma massada de cherne; serviu-os e, por último, a si própria. Pernet levou uma garfada à boca e degustando disse: — Isabel, o jantar está óptimo, cheira maravilhosamente bem. Como sempre. — Gosta, menino Xavier? — Perguntou com um sorriso envergonhado. — Sim, está muito bom. — Muito bom mesmo. — Concordou Pedro após levar um pouco de comida à boca. — Como é que uma senhora como você ainda não é casada? — Indagou Pernet com um sorriso de malandrice. — Oh, menino, os homens não me acham graça! — Respondeu, envergonhada, corando ligeiramente. — O quê?! Isso não pode ser verdade! Uma bela senhora como você?



  

— Também não tenho tempo para essas coisas. — Confessou. — Saia mais vezes Isabel, sempre que quiser; dou-lhe autorização para isso. Precisa divertir-se e o Pedro poderia ir consigo. — Com todo o gosto! — Disse o mordomo. — Obrigado, menino. Você é muito bom e generoso comigo. — Disse, comovida. Pernet olhou para ela e sorriu. Durante o jantar, os temas de conversa foram banais, serviram para distrair Pernet um pouco da sua tristeza. Acabaram de jantar, Isabel pediu licença para se levantar, Pernet concedeu-lhe, ergueu-se e começou a recolher a louça para em seguida lavá-la. Ainda sentados à mesa, Pedro perguntou: — Como te sentes, Xavier? — Estou melhor, mais aliviado, graças a ti, amigo. — Ainda bem, Xavier, ainda bem. — Creio que hoje vou dormir bem. Estou cansado, vou-me deitar. — Vai lá, Xavier! Boa noite. — Para ti também, Pedro. Pernet levantou-se e saiu da cozinha, Pedro seguiu-lhe os passos com um olhar animador; depois levantou-se também e foi ajudar Isabel.



 

Capítulo 3

— Três Irmãos Pobres — Haviam de ser cerca das nove e meia quando Pernet acordou, na manhã seguinte. Arremessou os lençóis e o edredão que o cobriam, rolou para a direita, sentando-se e pousando os pés descalços sobre o tapete fofo e branco como neve meiga. Esfregou a cara e os olhos, passando em seguida os dedos por entre o curto cabelo castanho-claro. O seu quarto era um espanto, cheio de brancos e pretos. A cama era não sei de que madeira preta, com a base tipo caixa, bem como as mesas-de-cabeceira. Ambas tinham um candeeiro branco, com base arredondada e um simples abajour igualmente branco; o da direita tinha um relógio despertador negro com os dígitos de um azul néon sobre ela. Um guarda-fatos embutido na parede à direita da cama com amplas portas pretas. Por norma, ele dormia no lado direito da cama que, ao fundo, tinha uma cómoda preta; sobre ela repousava um pequeno televisor ; a poucos passos dela estava a porta de saída do quarto. Uma pequena mesa redonda encontrava-se no lado oposto à porta, no can-



  

to esquerdo ao fundo da cama; a cobri-la estava uma toalha redonda e branca que terminava ao encontrar-se com o chão de tacos de madeira pintados de preto. Uma cadeira com o assento forrado de tecido branco prostrava-se junto a ela. A alguns centímetros da mesa via-se a porta de acesso à casa de banho privativa. O sol espreitava brilhante mas timidamente por entre os frisos do estore verde entreaberto. Pernet levantou-se da cama trajando apenas uns boxers brancos. Dirigiu-se à casa de banho, abriu a porta, entrou e fechou-a novamente. Os mosaicos da parede eram pretos e brancos, dispostos num padrão axadrezado. O móvel que sustentava o lavatório de porcelana branca era preto, com as duas portas laterais e as três gavetas centrais pretas com pequenos puxadores brancos; sobre ele, um grande espelho desprovido de caixilho. Os restantes sanitários eram de porcelana branca, assentes sobre um chão de mosaico com padrões triangulares a preto e branco. Uma imponente e luxuosa banheira de hidromassagem manifestava gloriosamente a sua presença no centro daquela divisão. Pernet virou as torneiras da água quente e fria, ajustando a temperatura ao seu gosto; o duche jorrava água e vapor. Despiu os boxers, entrou e deixou a gostosa chuva molhar-lhe o corpo e aquecer-lhe o rosto. Desfez a sua barba de cinco dias não sem algum custo. Vestiu um fato de treino bege e calçou um par de ténis azuis sobre meias desportivas brancas. Penteou o cabelo e saiu do quarto. Desceu a escadaria de madeira nua dirigindo-se à cozinha. Pernet desconhecia a razão pela qual adorava o contraste entre o preto e o branco. Talvez se identificasse com



 

o seu espírito atormentado, um misto de paz e desassossego, luz e trevas. Deteve-se junto à porta vidrada da cozinha que se encontrava fechada. Ficou a ver Isabel debruçada sobre a banca, a lavar alguns legumes que Pedro comprara logo de manhã cedo. O sol iluminava-lhe as feições e incendiava-lhe a madeixa cor de fogo entrando alegre e sem vergonha pela janela aberta. Pernet abriu a porta sorrateiramente e aproximou-se de Isabel, que estava de costas voltada, sem que esta se apercebesse. Subitamente, deu-lhe um beijo na face direita e exclamou com voz alegre: — Bom dia, Isabel! A mulher, surpresa, estremeceu e soltou um gritinho assustado, depois corou. — Ai menino, que susto! — Desculpa, Isabel, estava na brincadeira. — Disse com um sorriso alegre. — Vejo que hoje está bem disposto! Está com bom aspecto. — Elogiou, enquanto tinha a mão direita pousada sobre o peito ofegante que ainda recuperava do pequeno susto. — Creio que sim, Isabel. Dormi bem, acordei sem pensar em nada, tenho a mente sossegada. — Folgo em sabê-lo, menino! Andava tão em baixo, com ar triste. Eu não gosto nada de vê-lo assim. — Pois sei, Isabel, mas hoje estou bem. Agradeço a tua preocupação. Diz-me: sabes do Pedro? — Perguntou. — Sei sim, menino. Está lá fora no quintal a limpar a piscina. — Vou lá ter com ele.



  

— Vai querer pequeno-almoço? — Ah, sim, Isabel. Prepara-me um leite com café e um par de torradas. Depois, serve-mo lá fora. Pode ser? — Sim, menino. Pernet dirigiu-se à porta de alumínio branco da cozinha que dava acesso ao quintal. Saiu e tornou a fechá-la. Isabel continuou o seu trabalho. Foi pelo caminho ladrilhado que lembrava uma serpente escondida entre a relva verde e fresca. Naquele imenso campo relvado, contavam-se dois pessegueiros, algumas macieiras, pereiras e laranjeiras espalhadas aqui e ali; alguns pares de roseiras de variadas cores e tamanhos; por fim, uma grandiosa e imponente cerejeira que parecia querer crescer até à eternidade, viva em todo o esplendor e fascínio da sua natureza. Pernet abriu a porta da cerca que isolava a luxuosa piscina azul do relvado. Da cerca metálica até ao rebordo de mármore branco da piscina existia um chão de cimento com dois metros em todo o seu redor. Pousados sobre ele, algumas espreguiçadeiras de plástico verde muito sólidas, ao vento. Pedro segurava nas mãos firmes uma longa vara de metal com uma rede fina na extremidade com a qual coava insectos e alguma folhagem morta e amarelada para fora da piscina, despejando os restos num saco de lixo preto. — Bom dia, Pedro! O mordomo voltou-se para ele com um sorriso, pousou a vara sobre o cimento nu e disse: — Bom dia, Xavier! Denoto boa disposição na tua voz. Estás com boa cara. Pareces mais radioso, com brilho nos olhos.



 

— Também me sinto dessa maneira. Devo-a à nossa conversa de ontem. Devo-o a ti! Vou tentar, como tu dizes, encontrar o bom que existe em mim e no que me rodeia. — Ainda bem! Muito me agrada saber ter-te sido útil dessa forma. — Disse com um sorriso satisfeito e sincero impregnado nos lábios, repuxando as rugas daquele rosto sábio. Estava um dia solarengo que convida a estar-se ao ar livre, nem muito calor nem muito frio; a temperatura atmosférica era a ideal, soprava uma ligeira brisa que acariciava meigamente o rosto. Pequenos aglomerados de nuvens brancas enfeitavam um belo céu azul. Os raios solares eram reflectidos enquanto bailavam em ligeiras ondas na água, já limpa, da piscina. Pequenos bandos de aves voeiravam alegres pelo céu, chilreavam, algumas pousavam em descanso nas árvores do quintal de Pernet. Cheirava ao esplendor da Primavera; odores frescos que incentivam paixões sem limites; as árvores, carregadas de folhagem verde e viva, ofereciam já o prazer dos seus frutos. Pernet fechou os olhos, abriu as narinas e inspirou a Primavera, aquele ar limpo e fresco que lhe acalmou um pouco o espírito inquieto. Sentiu-se ainda melhor, mais vivo e revigorado, mais sereno. — Fazes-me companhia ao pequeno-almoço? — Já tomei, Xavier. — Mesmo assim, agradava-me a tua companhia. — Pediu. — Então, aceito. — Assentiu Pedro sorridente. Creio que a natureza, o seu encanto, o dia caloroso que se fazia sentir muito contribuíram para a sua boa dis-



  

posição. Ele estava, de facto, radioso; o seu olhar brilhante de confiança; o seu ar seguro e sereno deixava transparecer alguma paz de espírito de que ele tanto necessitava. — Menino Xavier! — Gritou Isabel. — Sim, Isabel, diz. — O pequeno-almoço está pronto, menino. — Avisou. — Obrigado, Isabel, vou já. Depois, dirigiu a sua fala para o amigo. — Vens comigo, então. — Vou, sim. Saíram da área onde se encontravam e percorreram o caminho ladrilhado até chegarem junto à majestosa cerejeira. Era a árvore mais próxima da cozinha. Sentaram-se ambos num par de cadeiras de metal, trabalhadas com formas florais e pintadas de branco. A mesa redonda, igualmente pintada e trabalhada, era rodeada por quatro dessas cadeiras. Gozavam a sombra que a árvore oferecia. — Está um belíssimo dia hoje, Pedro! — Reparou, partilhando a sua visão com o amigo. — É verdade, Xavier, um dia perfeito para se tirar partido de tudo o que a natureza proporciona. — Concordou. Isabel, que, entretanto, tinha ido à cozinha buscar o pequeno-almoço do seu patrão, saiu trazendo consigo, sobre uma bandeja redonda de metal, uma caneca branca de leite com café e um prato com um par de torradas bem douradas. Aproximou-se deles e retirou-as da bandeja pousando-as sobre a mesa. — Aqui tem, menino. — Obrigado, Isabel. — Agradeceu, exprimindo um sorriso alegre.



 

Isabel iniciava o seu caminho de volta à cozinha quando, subitamente, sem que nada o fizesse prever, um objecto aterrou sobre a mesa de metal com um rugido violento, espalhando pelo ar leite e torradas, partindo tanto a caneca como o prato. Ambos deram um salto surpreso fora das cadeiras que tombaram sobre a relva, espantados e com o peito a palpitar. Pernet foi apanhado pelo leite que voou, manchando-lhe o fato de treino. Pedro teve mais sorte, apenas salpicos escoriam dos sapatos recentemente engraxados de preto. Cacos e pão humedecido com o leite davam uma decoração peculiar à mesa de metal. Isabel virou-se, soltando um ligeiro gemido assustado: — Ai, meu Deus! O que foi isso? — Perguntou, com as mãos sobre o peito. Viu os dois homens já de pé, o fato de treino manchado e a confusão que se encontrava sobre a mesa que escorria. Pernet olhou em seu redor, viu a bola de futebol que batera na mesa e que rolara alguns metros até parar ao embater na copa de um pessegueiro que ainda vibrava ligeiramente. — Não te preocupes. Foi só uma bola. — Disse, apontando para o objecto, sossegando o coração da pobre. — Ai menino, que susto! Já é o segundo de hoje. Valha-me Deus, quantos mais me esperam? — Desabafou ligeiramente ofegante. Pedro foi apanhar a bola estática; estava algo velha e gasta, mas ainda bem inchada de ar. Ouviu-se um bater ligeiro e envergonhado na porta de madeira, à direita da cozinha, a alguns passos de mesma, e que possibilitava a saída do quintal para um descampado triste e seco de terra



  

e pedra. O muro, que separava relva verde e fresca daquela desolação de terra morta, era de tijolo cimentado à chapada e pintado de branco (media cerca de um metro e noventa); rodeava por completo a grande casa de Pernet. Dirigiu-se à porta, seguindo sobre os ladrilhos que nela terminavam; correu o ferrolho e abriu-a. Do outro lado, prostrava-se um rapazinho envergonhado, com os olhos fitos no chão, as mãos atrás das costas, cruzadas. — Bom dia, senhor! Peço desculpa, mas acho que a nossa bola foi aí para dentro. Pode devolver-ma, por favor? — Disse o rapaz, timidamente. — Pois está cá dentro! Partiu-me louça e estragou-me a roupa! — Disse com voz séria e grave, porém condescendente, que tentava conter um sorriso. O menino ergueu os olhos, deparou-se com a roupa manchada de Xavier e adivinhou o que a sua bola provocara. — Oh! Senhor, peço que me desculpe. Foi sem querer! — Suplicou com ar transtornado e triste. — Pois foi. E, agora, quem vai pagar isto? — Oh, senhor, desculpe! Eu não tenho como lhe pagar. Desculpe! — Disse numa vozinha meiga e receosa. Pernet correu o seu olhar pelo menino. Tinha um aspecto extremamente pobre; a carinha suja de pó e terra, uma t-shirt verde já velha e gasta, cheia de pequenos buracos e rasgos; calças de bombazina beges, sujas e rotas pouco abaixo do joelho direito esfolado e com ligeiras pintas de sangue já coagulado e seco. Pernet espreitou o descampado e viu mais dois meninos, vestidos praticamente da mesma maneira, sujos e rotos. Eram os três muito parecidos, o mesmo corte de cabelo à tigela, negros de cor; os mesmos olhos



 

castanhos um pouco tristes. Esperavam pacientes mas nervosos o regresso do outro com a bola, de modo a voltarem para a brincadeira. — Quem são aqueles dois? — São os meus irmãos, senhor. — Respondeu após os olhar de relance. — O que aconteceu ao teu joelho? — Eu estava à baliza, senhor. Caí para agarrar a bola, senão era golo. — Respondeu, olhando para o joelho ligeiramente esfolado. Pernet espreitou novamente e viu a baliza improvisada com duas grandes pedras. Olhou para o pequeno com um sorriso nos lábios. — Já sei como podes pagar-me os estragos. — Como, senhor? — Perguntou muito tristinho com olhos de quem vai chorar. O sentido de responsabilidade e honestidade do rapaz levá-lo-ia a fazer o que fosse necessário para saldar a sua dívida. Admitiu a sua culpa apesar de ter sido um acidente. Porém a resposta não foi, de modo algum, a que o rapaz trémulo esperava. — Ora como! Vindo jogarem à bola aqui para dentro, no meu quintal. A relva é fofa e podes atirar-te ao chão à vontade, porque não te aleijas. — Explicou, olhando para o rapaz com um sorriso acolhedor e compaixão na alma. Os olhos do rapaz abriram-se mais e brilharam de alegria; ficou com a voz mais sossegada enquanto, comovido, dizia: — A sério, senhor? Eu e meus irmãos podemos brincar no seu quintal?



  

— Claro que sim! Chama-os lá. O pobre mas alegre rapaz fez sinal com a mão chamando os seus irmãos para junto dele. Estes vieram a correr e pararam junto ao irmão mais velho que lhes disse: — O senhor deixa-nos jogar no quintal dele. É relvado. — A sério?! Obrigado! — Agradeceram em uníssono, com os olhos brilhantes de contentamento. — Vá, entrem! — Disse, desviando-se da entrada para deixar para deixar os pequenos passar. Entraram correndo e pulando, cheios de alegria e vivacidade. O mais velho entrou juntamente com Pernet. Ao fechar a porta de madeira, o rapaz disse: — Mais uma vez peço-lhe desculpa e agradeço muito deixar-nos brincar na relva. — Não peças desculpa, não teve qualquer importância. Há males maiores! — Sossegou. — Obrigado! — Disse e correu para junto dos irmãos. Pedro devolveu-lhes a bola, agradeceram e começaram a jogar de novo, visivelmente mais contentes. Depois, Pedro juntou-se a Pernet que, entretanto, entrara na cozinha e falava com Isabel: — Podes preparar-me o pequeno-almoço novamente? Tenho fome. — Claro que sim! — Respondeu a mulher sorrindo. — Não te importas? — Por amor de Deus, menino, claro que não. — Obrigado, Isabel. Vou trocar de roupa e já venho. Isabel saiu da cozinha com um pano amarelo, uma vassoura pequena e um saco de lixo; foi limpar a confusão em cima de mesa de modo a deixá-la novamente pronta a usar.



 

As crianças jogavam alegremente com a bola no vasto quintal verde. — O senhor é muito bondoso. — Disse Pedro com um enorme sorriso. — Achas? — Perguntou Pernet, virando-se para ele, apercebendo-se do seu sorriso aprovador. — Tenho a certeza, Xavier. — Viste o sorriso com que eles ficaram? É isto que todas as crianças deveriam ter. O sorriso deles dá-me forças e ânimo para continuar a lutar. É por eles que eu ainda me esforço. — Confessou. — Eu sei, Xavier. — O mais pequeno sorriso neles chega para me fazer sentir melhor e mais feliz. — Eu sei. Sorriram um para o outro durante breves segundos. O ar satisfeito de Pernet agradava muito a Pedro, que se sentia feliz simplesmente por ver que o seu amigo também estava. — Venho já. Depois fazes-me companhia lá fora novamente? — Sim, claro. Pernet virou costas e dirigiu-se ao seu quarto. Chegado lá, tirou do guarda-fatos umas calças de ganga, uma t-shirt branca e um casaco, igualmente de ganga que, após despir o fato de treino sujo, vestiu. Regressou à cozinha onde Pedro o esperava. Juntos foram sentar-se novamente à sombra da cerejeira. Pouco depois, Isabel serviu-lhe o pequeno-almoço. — Obrigado, Isabel — Agradeceu. — De nada menino — Disse com um sorriso a bela criada.



  

Isabel voltou para a cozinha, já refeita do susto que apanhou, e continuou à banca lavando os legumes com o sol a aquecer-lhe o rosto. Pernet comeu as suas torradas e bebeu o leite com café enquanto Pedro lhe fazia companhia para depois lhe perguntar: — Sempre vais a casa da Clarisse? — Vou. — Julgo que fazes bem. A companhia da menina Clarisse será boa para si. — Talvez, Pedro. Tudo depende do que ela quiser conversar. — Verdade, mas far-te-á bem saíres um pouco de casa e apanhar outros ares. — Fazes-me um favor? — Perguntou. — Claro! — Respondeu, surpreendido com a mudança de assunto. — Podes chamar o rapaz mais velho? Quero conversar um pouco com ele. — Pediu. — Com certeza. — Assentiu, sorrindo. Pedro levantou-se, indo em direcção às crianças que brincavam, alheias à cruel vida que, por vezes, existe. Riam-se. Gritavam, brincavam como se não existisse mais nada, sem consciência da crueldade do mundo, protegidos com a inocência inerente da criancice. Crianças. Pequenos seres que animavam a vida solitária de Pernet; ele adorava-as, não encontrava nelas a maldade dos adultos. Quando era criança, ele queria ser homem; agora, que é homem, sonha em ser criança. Desejava ainda ter a liberdade de sonhar, a inocência de quem é inconsciente do que o mundo e a vida realmente são: uma luta diária, cheia de problemas, altos e baixos, por vezes difícil de suportar.



 

A sobrevivência da humanidade reside nas mãos dessas crianças; devem ser felizes enquanto jovens para que o futuro seja feito de felicidade, sorrisos e paz. Pedro chegou junto dos pequenos que pararam de brincar ao vê-lo. Dirigiu um olhar meigo ao rapaz que parecia ser o mais velho dos três e disse-lhe: — Olha, o senhor Pernet quer falar um pouquinho contigo. Pode ser? — Sim. — Respondeu o rapaz, acenando positivamente com a cabeça. — Podem continuar a brincar, ele vem já. — Disse para os restantes irmãos. Então eles continuaram a sua brincadeira. O rapaz acompanhou Pedro até à mesa onde Pernet se tinha mantido. — Quer falar comigo, senhor? — Perguntou o rapaz, de pé, com as mãozinhas cruzadas atrás das costas. — Sim, quero. Senta-te. — Vou ver se a Isabel precisa de ajuda. — Disse Pedro. Enquanto o rapaz se sentava, fez-se a caminho da cozinha. — Então, diz lá. Como te chamas e que idade tens? — Perguntou com um sorriso, entrançando os dedos, de cotovelos apoiados sobre a mesa. — Meu nome é Rodrigo, senhor. Tenho doze anos. — Respondeu, sentindo-se algo envergonhado, sentado muito direitinho na cadeira com as mãos sobre o colo. — Ah! Então e os teus irmãos? — O do meio tem dez anos e chama-se Henrique; o mais novo, que tem oito, é o Luís. — Explicou. — E gostas dos teus irmãos?



  

— Claro, senhor! Sou eu que tomo conta deles! — Disse o pequeno muito orgulhoso, exprimindo responsabilidade no olhar sereno. — Muito bem. E onde moras, Rodrigo? — Não muito longe, numa casinha já velhinha feita de pedra. — Gostas da tua casa? — Gosto, senhor, mas é pequena. Ás vezes faz tanto frio! À noite, na cama, fico com os pés gelados e custa-me adormecer, mesmo calçando dois pares de meias. A lareira na cozinha não chega para aquecer o resto da casa. As pedras estão sempre tão frias quando lhes toco! O coração de Pernet comoveu-se ao ver o olhar triste do Rodrigo enquanto falava com voz terna, porém trémula. Ele tinha que fazer algo; a sua generosidade o obrigava a tal. Uma ideia fulminou-lhe o espírito. — O teu pai trabalha? — Não, senhor, o meu pai já morreu. Trabalhava nas obras quando escorregou e caiu de um andaime, do terceiro andar. Partiu o pescoço — Explicou o rapaz. Lágrimas vieram-lhe aos olhos na recordação daquela morte e da falta que sentia do seu pai. Pernet convencia-se cada vez mais que iria fazer algo para ajudar aqueles três irmãos que tanto lhe tocaram na alma. — Lamento muito! E a tua mãe? — Trabalha. Numa fábrica de calçado nos arredores daqui. Ganha pouco mas trabalha muito. O dinheiro mal chega para comermos ou para os medicamentos do Luís. — O que tem ele?



 

— Asma, tem asma senhor, e os tratamentos são caros para nós. Sabe, senhor, às vezes vejo a minha mãe a chorar! Ela não diz, mas eu sei porquê. — Sabes? — É que ela gosta muito de nós. Ela queria poder dar-nos mais coisas, mas o dinheiro não chega. Então chora. — Como se chama a tua mãe? — É Rosário. Gosto muito dela, mas anda sempre tão triste. Eu tento animá-la, dou-lhe muitos beijinhos e ela sorri. Abraça-nos aos três e diz que nos ama muito. Depois chora. Pernet comoveu-se ainda mais ao aperceber-se de que aquela criança tão nova e inocente já sofria na pele e na alma a crueldade da vida. Era tão jovem e no entanto deveras homenzinho; a vida roubava-lhe a infância e obrigava-o a crescer demasiado rápido. A sua voz era tão triste e no entanto tão meiga e doce como se ele perdoasse a sujidade que a vida lhe atirava à cara limpando-a com lágrimas injustas e condescendentes, como se aceitasse a dor e sofrimento com naturalidade, como se fosse comum porém, os olhos carregados de coragem e força. Talvez pela sua tenra idade ele ainda não fosse capaz de questionar o porquê das coisas, mas Pernet sabia no âmago que esse dia, inevitavelmente, chegaria e, quando viesse, o rapaz seria ainda mais triste. Xavier queria evitá-lo, devolver-lhe a infância antes que ele a perdesse por completo, para sempre, e o tornasse num adulto revoltado, infeliz e incompleto. Tomou a fácil decisão de ajudar aquela família pobre. Devolver aos irmãos o brilho nos olhos que eles já perderam, mas possível de reencontrar.



  

A vida deveria ser benevolente com as crianças. Não é justo nem correcto que elas sofram quando deveriam rir e brincar em paz. — O que vão almoçar? — Perguntou, após soltar um sentido suspiro. — Vou aquecer uma açorda de peixe que a minha mãe deixou, feita ontem à noite. Não é do que mais gostamos, mas tem que ser. — Confessou o rapaz com a voz carregada de tristeza mas com muita ternura nos olhos vivos. — E a tua mãe? Almoça convosco? — Não, senhor. Come lá na fábrica. Costuma levar um pão com manteiga. — Esclareceu. — E não come mais nada? — Perguntou surpreso. — Não, mais nada — Gaiou tristemente, baixando o olhar que se fixou nas mãos sujas. — Rodrigo, queres cá almoçar com os teus irmãos? São quase horas do almoço. — Ofereceu com um sorriso. O rapaz levantou a cabeça, fitou os olhos do seu novo amigo e, numa explosão de alegria, disse: — A sério, senhor? Podemos cá almoçar?! Eu e os meus irmãos? — Claro que sim, os três. — Confirmou sorrindo. — Sim, gostaríamos muito. — Então, está bem. Isabel! — Chamou. Isabel saiu da cozinha sacudindo água das mãos e disse: — Sim, menino? — Põe mais três pratos na mesa aqui para os nossos amigos. Prepara uns bons bifes com batata frita. Hoje temos convidados especiais.



 

— Com certeza. Dito isto, regressou à cozinha onde pôs a mesa com os três lugares extra e começou a fazer o almoço. — Vai lá brincar e diz aos teus irmãos que cá almoçam. Depois, eu chamo quando for para comer. — Obrigado, senhor! Você é muito bom. Levantou-se e foi a correr para junto dos irmãos. Soube bem a Pernet ouvir aquelas palavras ditas por Rodrigo, por uma criança sofredora que ele ansiava apaziguar. Só quem sofre agradece com verdadeira sinceridade. Animou-lhe o espírito e sentiu-se invadido por um calor sereno e acolhedor. Olhava contente para as alegres crianças, a brincar com a bola; ele sorria, sentindo-se feliz. Os outros dois irmãos alegraram-se ao saber do convite para almoçar. Aguardavam ansiosamente, já tocados pela fome. Alguns minutos passados, Isabel espreitou pela porta aberta da cozinha e chamou: — Menino Xavier! Não obteve resposta, viu Pernet imóvel recostado na cadeira sólida. — Menino Xavier! — Repetiu com mais fôlego. — Sim, Isabel! Desculpa, estava distraído a ver os pequenos brincar. — Não tem mal nenhum, menino. O almoço já está pronto. — Declarou. — Obrigado, Isabel. Pernet ergueu-se majestoso da cadeira, com verdadeiro porte de rei. Chamou os irmãos: — Rodrigo, venham comer!



  

Os pequenos largaram a brincadeira e vieram a correr todos contentes. Entraram na cozinha com Xavier ao lado. Sentaram-se os três por ordem de idade num dos lados da mesa onde se encontravam os pratos já cheios de comida. Pernet, Isabel e Pedro sentaram-se defronte às crianças, do outro lado. — Não tenham vergonha! Comam. — Disse Pernet a sorrir. Precipitaram-se sobre os pratos, empalando as batatas com garfadas generosas e que devoravam sofregamente, cortavam grandes bocados de carne tenra que lhes enchia a boca esfomeada, quase sem respirar, entre garfadas. Isabel achou piada e perguntou: — Então, estão a gostar? — Oh sim, está muito bom. Isabel esboçou um sorriso orgulhoso após tão sincero elogio. — Ah! Lembrei-me! Desculpem, ainda não vos apresentei. Esta simpática senhora é a Isabel, este senhor chama-se Pedro. — Muito prazer em conhecê-los. — Disseram após engolir o que tinham na boca. Eram visivelmente muito bem-educados. — Estes três meninos são o Rodrigo, o Henrique e o Luís. — Apresentou, apontando conforme ia enunciando os nomes dos rapazes. — Muito gosto. — Responderam Pedro e Isabel juntos, com um sorriso de acolhimento. O almoço passou-se entre risos e brincadeiras. Para Xavier foi um dos melhores almoços da sua vida, um de negócios não se poderia comparar-lhe. Ver três crianças con-



 

tentes, tão cheias de alegria, encheu-lhe o coração e a alma de calor e o espírito de esperança e paz. O almoço acabou. Henrique e Luís correram para o quintal e brincavam de novo. Rodrigo quedou-se no seu lugar, fitou os olhos de Pernet durante alguns segundos e, por fim, disse, solene e verdadeiro: — Você tem uns olhos muito bons, cheios de generosidade e gentileza, mas também são tristes como os da minha mãezinha. Pernet ficou surpreendido com a perspicácia do rapaz e com capacidade que ele teve em ler-lhe os olhos; isso assustou-o ligeiramente, pois sabia ser verdade. — Consegues ver isso? — Consigo, senhor. Pernet espreitou lá para fora, onde os dois pequenos jogavam com a bola. — A vossa bola já está velha, pois é? — Sim, mas gostamos dela na mesma; é a única que temos. — Já venho, espera aqui um pouco. — Está bem, senhor. Xavier levantou-se e foi ao escritório. Demorou-se apenas breves minutos. Rodrigo esperava-o. Entretanto, Pedro ajudou Isabel a levantar a mesa e a lavar a louça. Pouco depois, Xavier voltou, trazendo consigo algo na mão direita. Sentou-se ao lado do rapaz e disse: — Olha, Rodrigo, dá isto à tua mãe. Diz-lhe que é para vos comprar uma bola nova e medicamentos para o Luís. — Oh, senhor… A sério? Não está a enganar-me? — Perguntou desconfiado de tanta bondade.



  

— Claro que não! Acreditas em mim? — O senhor é muito bom. Como um anjo. — Acreditas em anjos? — Sim, olham por mim e pelos meus irmãos. Pernet sorriu e entregou um envelope branco selado onde se lia “Rosário”. Rodrigo pegou no envelope aceitando-o com um radioso sorriso. — Não podes perdê-lo. É muito importante! — Não perco. — Olha, eu agora tenho que ir. Se quiseres podem cá ficar em minha casa a brincar. Depois, peçam à Isabel que vos prepare um bom lanche. E, se quiserem, podem voltar amanhã. São muito bem vindos. Agora somos amigos. Não te esqueças de dar isso à tua mãe. — Está bem, senhor. Eu não esqueço. Obrigado por tudo. — Vá, divirtam-se — Disse, levantando-se da cadeira. Rodrigo saiu para o quintal. — Já vais, Xavier? — Sim, vou, Pedro. — A casa da Clarisse? — Sim. — Faz bem. — Sorriu. — Então, já venho. — Sim, Xavier. Pedro ficara contente por ele ter aceite encontrar-se com Clarisse. Achava-a uma bela moça. Pernet abandonou a cozinha dirigindo-se à garagem.



 

Capítulo 4

— Clarisse — Pernet entrou na garagem pela porta maciça de madeira escura e tornou a fechá-la atrás de si, ecoando pela ampla área. Paredes brancas de cimento ostentavam posters de carros, de motas e barcos. Largos pilares aguentavam sem esforço o tecto alto de madeira carregado de focos de luz que ele acendera ao entrar. Elas tornavam visível a vasta colecção de maravilhas a motor que ele detinha. A luz brilhava, reflectida sobre o metal lavado e bem cuidado dos veículos. Percorrendo a vasta garagem encontravam-se três Lamborghinis: um Murcielago verde, um Contach preto de oitenta e oito e um Diablo roxo. Existiam lá outros mais como um Maseratti 3200 GT cinzento, um Viper GTS azul com duas listas brancas que o atravessavam do capô à mala, um raro Cheverolet Corvette rosa de cinquenta e sete, dois Ferrari, ambos vermelhos: um F50 e o outro 250 Testarossa de cinquenta e sete; e um Jaguar XKR preto. Tinha especial admiração por um carro amarelo, antigo: era um Alfa Romeu 2300 Spider do ano de trinta e dois.



  

Pernet gostava muito de máquinas velozes, era a única coisa em que ele despendia mais dinheiro. Porém, já tinha gasto mais em carros, carrinhas e ambulâncias que ele doara a instituições e aos bombeiros voluntários de todo o país. O automobilismo era a sua paixão. Retirou uma chave do pequeno expositor de vidro que se encontrava à sua direita e dirigiu-se ao Jaguar. Entrou, inseriu a chave na ignição e rodou-a; imediatamente o motor soltou um rugido de satisfação e largou algum fumo pelo escape. Carregou no botão do comando que trazia consigo e o grande portão verde de metal rolou nas calhas para a direita, deixando o sol inundar aquele espaço, dando o prazer da sua visita. Pisou ligeiramente o acelerador, o carro moveu-se e saiu, virando para a direita, rolando sobre uma estrada de gravilha que percorria toda a largura da fronte da casa e que avançava cerca de quatro metros, suficiente para dar espaço de manobra a qualquer carro. Virou novamente à direita;, poucos metros depois sem contornar a rotunda imposta por uma fonte de pedra e cimento. Um querubim em posição de quem está prestes a disparar a sua flecha, cuspindo um grosso fio de água pela boca; de cabeça erguida, enchia o anel de cimento com água cristalina, orgulhoso do seu lugar central na fonte. Pernet percorreu o resto da estrada dentro de um corredor de choupos-tremedores cuja folhagem verde se fechava sobre o caminho, assemelhando-se a um túnel onde finos raios de sol penetravam e iluminavam ligeiramente a gravilha, acentuando o pó que se erguia com a passagem dos



 

pneus ao afastar-se cada vez mais da casa. O resto do espaço aberto era completo com relva verdejante que terminava nos limites dos muros. Passou pelo alto portão de ferro que se encontrava sempre aberto de par em par, deixando para trás a sua grandiosa casa pintada de branco e de arquitectura moderna, que ele possuía em Gouveia, a poucos quilómetros da Serra da Estrela. Olhou para o relógio do carro. Ainda era cedo. Razão pela qual ele decidira ir pelo caminho mais longo, passando por Seia e Nelas, conhecida pelo seu vinho, aproveitando assim o belo dia que estava e que o convidava a ter pensamentos animadores. Aproveitar um pouco a paisagem e sentir-se mais ligado à natureza, pondo em prática os conselhos de Pedro; depois, chegaria finalmente a Viseu e, posteriormente, a Marzovelos, onde Clarisse habitava. Rapidamente chegaria ao seu destino; o potente Jaguar pô-lo-ia lá num instante. O “Palácio do Gelo” já se avistava à distância; decidira fazer uma breve paragem. Estacionou perto da entrada principal. Um grupo de rapazes que passava ficou a admirar a imponente máquina. Xavier passou as portas automáticas, subiu um lance de escadas-rolantes, depois outro. Entrou na tabacaria e comprou o seu tabaco de eleição, um Exellent de manga. Comprou também filtros e mortalhas. Pagou, desceu a escadaria de mármore e saiu. Entrou no carro e arrancou em direcção a Marzovelos, impaciente e ansioso por saber qual era o assunto importante que Clarisse lhe reservara. Pouco depois, Xavier parou o carro frente ao prédio onde Clarisse possuía o seu apartamento T3, algures nos



  

arredores do conhecido hotel Monte Belo. Saiu do Jaguar, subiu os breves degraus até à entrada principal do prédio e premiu o botão de chamada do apartamento da rapariga no vídeo-hall; este emitiu um ligeiro sinal sonoro. Segundos depois, ouviu uma voz suave, meiga, doce e carregada de ternura, como a de um anjo, fazendo o desgraçado respirar fundo ao ouvi-la dizer: — Olá, Xavier. Já te abro a porta. — Olá, Clarisse. — Retribuiu o cumprimento num tom de voz imensamente suave. Ouviu-se um ruído, após o qual a porta de alumínio pintado de branco se descolou do trinco magnético que a mantinha firmemente fechada. Ele entrou e os focos de luz do tecto de estuque branco acenderam-se automaticamente; o corredor foi inundado por uma música ambiente qualquer. Aproximou-se do elevador, premiu o botão de chamada, esperou breves segundos; a porta de metal cromada abriu-se, entrou e viu-se ao espelho que ocupava a parede traseira; estava com bom aspecto. Pressionou o botão para o andar da Clarisse, a porta fechou-se e o elevador deu um ligeiro solavanco ao iniciar a subida. Xavier estava nervoso e ansioso por ver a amiga. Já não se falavam nem viam há muito. As pernas tremiam-lhe ligeiramente, a respiração tornara-se mais rápida, o coração bombeava-lhe o sangue com mais vigor. Finalmente, com um solavanco desconfortável, o elevador parou e a porta abriu-se deixando entrar uma lufada de ar fresco que lhe arrefeceu um pouco o rosto quente e corado. Ele não sabia por que estaria assim, mas tudo se multiplicou ao vê-la, parada à entrada, encostada na porta aberta do apartamento.



 

Fitou-a nos belos e expressivos olhos verde-esmeralda, raros, únicos; ele nunca vira igual. Às vezes tinha a sensação de que o penetravam e lhe perscrutavam a alma, fazendo-o sentir-se ligeiramente incomodado, como se estivessem prestes a ler-lhe o coração e a desvendar-lhe um passado que ele tanto queria esquecer. O cabelo ondulado e comprido terminava serenamente a meio das costas; era negro com madeixas caju, bailava levemente em ondas ligeiras, provocadas por uma brisa que provinha não se sabe de onde, talvez soprada por boca divina, mas que lhe conferia um ar ligeiramente selvagem e no entanto harmonioso. A testa altiva, sinal de pessoa inteligente que ela, na verdade, era. Pele morena e sedosa cobria um corpo alto e magro, quase roçando a perfeição nas medidas. Um narizinho pequeno mas fofo, bem como os lábios rosados, não muito carnudos, mas apetitosos; exalavam uma respiração leve, calma e doce com um agradável odor a morango das pastilhas que tinha por costume mascar. Ela estava linda, ela era linda, transpirava beleza por todos os poros. Homem que cruzasse o olhar com ela não ficava indiferente. Clarisse captava pasmos de desejo por parte deles e de inveja pelo lado das senhoras que não se lhe comparavam em beleza e atitude por mais que se esforçassem ou maquilhassem. A beleza daquele anjo de carne era natural, moldada certamente por mão divina numa lucidez do que é belo, quase perfeito. Falava sempre com voz meiga, pelo menos para Pernet, num tom suave, doce e cativante que dava gosto ouvir e que tocava no âmago, nas profundezas das emoções de quem quer que fosse que a ouvisse, homem ou mulher. Inteligente, honesta, deveras natural e coerente



  

na forma de ser e de estar. Tudo nela era uma simplicidade atractiva. Graciosa nos seus movimentos leves e suaves, por vezes parecia não caminhar, mas sim, flutuar sobre o chão que se vergava a cada passo seu, sublime. Por vezes, dava a impressão de que a própria natureza se envergonhava por não ser tão bela e radiosa quanto ela; os pássaros pareciam interromper o voo, pousando em árvores apenas para a contemplarem e renderem-se à sua beleza, única. Vestia umas calças pretas, muito justas; calçava sapatilhas brancas que davam a perceber pés pequenos e ligeiros. Uma t-shirt branca, decotada em V insinuava um pouco dos generosos e salientes seios. A vestimenta contornava a sua silhueta provocante e quase perfeita. Tudo nela despertava o desejo, incendiava o espírito e o corpo até daquele que se julga mais resistente… Mas é impossível resistir ao divinal. Lembrava um anjo perfeito, ou talvez um demónio que nos engana, envenenando-nos com palavras doces que nos prendem a atenção e enfraquecem o corpo e alma. É certo que ela tinha muito de anjo e quase nada de demónio, a não ser a cobiça alheia que provocava sem intenção mas que a rodeava constantemente. Era um ser puro e verdadeiro que emanava luz harmoniosa cheia de paz e serenidade. Seu coração era um universo de bondade… como o de Pernet. Davam-se bem, as suas longas conversas nunca terminavam em discussão, todavia já não estavam juntos há alguns meses. Pernet apercebeu-se de que estava algo nervoso, mas conseguiu controlar-se. — Olá, Xavier, como estás? Pelo menos pareces bem, com bom aspecto. — Elogiou a rapariga com um sorriso acolhedor.



 

— Olá, Clarisse! Ando bem. Cumprimentaram-se com um par de suaves beijos nas faces, o que aqueceu a alma de ambos. — Já não te via há três meses! Que saudades! Como estás da tua tristeza? — Perguntou com ar de sincera preocupação e interesse. — Hoje ando bem. Amanhã não sei. É assim, vai e vem. Tu também estás com um óptimo aspecto, aliás, como sempre. — Respondeu, elogiando-a. — Oh! És tão querido! — Exclamou passando a mão ao de leve na face esquerda do rapaz. Uma carícia muito bem-vinda. Muito modesta que ela era, mesmo tendo consciência da bela mulher que era e das reacções e sensações que provocava nos outros. Com ele não era diferente. Sentiu com intensidade o leve toque da sua mão gentil e suave como seda, o seu coração pausou um ínfimo instante para depois bater ligeiramente mais forte, como se tocado por um anjo. Um arrepio quente e gostoso percorreu-lhe a espinha. — Entra, Xavier. Entraram lado a lado, ombro a ombro, Clarisse fechou a porta de madeira clara, muito simples, porém sólida. Quem entrasse, do lado direito, deparava com uma pequena mesa redonda sobre a qual assentava um telefone digital branco. Em frente, uma porta de madeira escura e vidrada que dava para um pequeno hall onde se encontravam os acessos aos quartos, à casa de banho e a um pequeno escritório. No canto esquerdo adjacente, um alto bengaleiro sustentava um comprido casaco de cabedal preto que ainda cheirava a novo.



  

Uma porta perpendicular à do hall ocultava atrás de si uma ampla cozinha ricamente mobilada. Perpendicular a esta, e ao lado esquerdo da entrada, achava-se a sala de estar. Um tapete preto e branco com padrões circulares estendia-se no centro, completando deste modo o hall quadrado da entrada. Entraram na sala, harmónica na sua simplicidade. Mobilada com pequenos móveis de cerejeira, como a mesa redonda envolta por seis pousios e que descansava sobre um tapete bege, de modo a não riscar o chão de tacos envernizados com o movimento inevitável das cadeiras forradas a linho branco. Ao lado, dois sofás bege em forma de L, de três lugares cada, fechavam-se sobre uma mesa de centro com os pés em madeira e o tampo de vidro ligeiramente azulado sobre um tapete fofo; a adorná-la, achava-se um tabuleiro de xadrez a três dimensões com as casas dispostas a alturas diferentes e as peças ordenadas correctamente. Defronte aos sofás reconhecia-se uma lareira de design moderno embutida na parede branca; sobre esta, um imenso ecrã de plasma. Focos de luz espreitavam desavergonhadamente de um tecto falso e iluminavam a sala com luz acolhedora. Uma varanda aberta deixava entrar uma brisa agradável e luminosidade natural, tornando a bela Clarisse ainda mais radiosa, ao definir-lhe os contornos das feições com mais esplendor, cheia de luz e sombras. Todo o apartamento irradiava uma beleza natural e a juventude da sua dona de vinte e dois anos. Clarisse convidou-o a sentar-se. Assim fez, escolhendo o sofá mais à direita, mais próximo da varanda. A rapariga sentou-se ao seu lado, de pernas sobre o sofá e ombro ferrado contra o encosto. Pernet ajeitou-se da mesma maneira, de modo a ficarem cara a cara.



 

— Pedro disse-me que querias falar-me sobre um assunto importante. — Sim, Xavier. Tenho uma proposta a fazer-te. Receio que seja necessário. — Ah sim! E qual é? — Perguntou curioso. — Creio que seja necessário realizares um jantar em tua casa. Convidando pessoas influentes da classe alta. — Explicou. — Oh, Clarisse! Sabes bem que não gosto desses jantares. São uma maçada, a maior parte deles servem apenas para coscuvilhices e falar mal dos que não estão presentes. São tão fúteis e quase sempre desnecessários, ideais para os exibicionistas, não para são convívios; e, na maior parte, por interesse. Detesto! — Eu também penso isso! A verdade é que este é necessário e temo que inevitável. — Concordou. — Mas por quê, Clarisse? Não vejo a importância de um jantar desses. Não tenho interesse nenhum em fazê-lo e não sou exibicionista. — Eu sei, Xavier, mas é preciso! Os meus pais foram a um jantar social. Só fui porque a minha mãe insistiu, disse que tinha saudades minhas. Se não fosse por ela, eu nem iria. Ainda não perdoei o meu pai e, acredita, custou-me tanto olhar para aquela cara. A moça provinha de uma família abastada. O seu pai era um médico proeminente e conhecido, fundador de uma cadeia de clínicas privadas bastante procuradas. A sua mãe era enfermeira no hospital São Teotónio, um dos melhores; era tida em muita consideração e era a mais simpática para com os doentes e especialmente as crianças. Um dia, ten-



  

do Clarisse acabado de tomar um duche, achava-se no seu quarto, em casa dos pais, enrolada numa toalha cor-de-rosa. Como era normal, tinha a porta fechada, mas não tinha por costume trancá-la. No exacto momento em que deixou cair ao chão a toalha que embrulhava o seu corpo nu, a porta abriu-se de súbito e o seu pai prostrava-se à entrada, olhando perverso para ela. — Pai! Sai daqui! — Gritou, tentando tapar-se o mais que as mãos permitiam. Ele não se moveu, ficando a regalá-la fixamente. — Sai daqui! — Berrou novamente. — Ora, qual é o problema? Sou o teu pai, sou médico. Já vi muitos corpos nus. — Não me interessa! Sai! — Gritou deveras incomodada com aquele abuso de violação à sua privacidade. — Sabes que tens um corpo bem feito e muito bom? — Perguntou com ar malicioso e perversão no olhar. Estas palavras ferveram-na. Precipitou-se sobre ele e empurrou-o para fora do quarto com algum esforço. Fechou a porta com um estrondo e, trancando-a à chave, gritou vivamente e irada: — És um porco! Não obteve qualquer réplica. Ficou furiosa com o velho. Já fora a segunda vez que ele invadia a sua privacidade e, da primeira, ela convenceu-se de que fora acidental, mas daquela reparou no olhar perverso do pai. Já fora há dois anos. Nunca o perdoou, não pelo que fez mas pelo que disse. Saiu de casa e comprou o apartamento com dinheiro que havia posto de parte para esse efeito; apenas não esperava que fosse tão cedo. Decidiu seguir os passos da mãe e estava já no



 

terceiro ano do curso de enfermagem no Instituto Jean Piaget. O pai dava-lhe uma mesada choruda, comprou-lhe um belo carro, talvez procurando pagar-se pelo seu acto; porém, não comprava o perdão nem recuperava o amor da filha por mais que investisse. Ele sempre fora um pai ausente, insensível e boémio, ao invés da mãe que era fortemente querida e atenciosa com a filha única; davam-se lindamente, a relação assemelhava-se mais à de irmãs do que mãe e filha. Clarisse continuou dizendo: — Nesse jantar, como tu dizes, as conversas eram superficiais e eu não estava a prestar muita atenção. Mas foi quando ouvi o teu nome que despertei. O que diziam não era agradável. — Oh, Clarisse. — Interrompeu — Bem sabes que pouco me importa o que dizem da minha pessoa. Eu sou quem sou! — Eu sei, mas o que foi dito nem foi a respeito da tua personalidade. — Então era em relação a quê? — Perguntou, franzindo ligeiramente a testa. — Foi dito que a instituição que criaste, “A Casa do Órfão”, foi erguida com a intenção de explorares as crianças, obrigando-as a fazer sandes para os teus hotéis. — Explicou. — Ora, Clarisse! É lógico que é mentira e bem ridícula. Até porque mantenho a instituição com dinheiro do meu bolso. — Eu sei disso, mas eles não. Dizem também que alguns dos teus hotéis são fachada para outro tipo de negócios menos próprios ou legais. — Acrescentou a rapariga.



  

— Que outro tipo de negócios? — Perguntou com ar sério e incrédulo. — Não sei. Isso não foi dito, apenas que é ilegal. — Explicou. — Só mentiras! — Exclamou, semicerrando os olhos. — Eu sei. Mas são acusações graves. Podem custar-te tudo aquilo por que lutas. Podes perder tudo devido a estes boatos, caso se espalhem mais e atinjam um nível perigoso sem retorno. Já vi isso acontecer a pessoas do meu conhecimento. Aqueles que ajudas correm o risco de ficarem sem nada outra vez. — Isto não pode ser verdade! Quem inventaria uma barbaridade destas? — É muito verdade e muito grave. Estou a tentar descobrir o responsável pelo lançamento dos boatos, mas não está a ser fácil. — Ora, Clarisse, as pessoas devem saber que se trata apenas de boatos. — Disse, confortando-se a si mesmo. — Não sei, Xavier. As pessoas acreditam mais rapidamente no mal do que no bem. — Mas têm conhecimento do bem que faço e do dinheiro que já doei. — É certo. Mas a acreditarem nestas mentiras isso não terá qualquer valor ou importância. Ver-te-iam como um hipócrita. — Explicou. — Meu Deus, então o jantar é mesmo imprescindível! — Disse, com as mãos a suarem-lhe. — Infelizmente, é! Pelas piores razões. Tens que desmentir esses boatos. Tens que proteger o que construíste. Estas mentiras podem destruir-te.



 

O coração batia-lhe forte e acelerado no peito com a surpresa daquela notícia inesperada e disse: — Mas eu não faço ideia de quem deva convidar! — Não te preocupes. Já elaborei uma lista com onze convidados. Entrega-a ao Pedro, diz-lhe que trate dos convites. Ele saberá o que fazer. — Aconselhou. Clarisse levantou-se, pegou numa folha dobrada que tinha em cima da mesa de jantar e entregou-lha, sentando-se novamente. — Obrigado. Também estás nesta lista? — Claro, não te ia deixar enfrentar as raposas sozinho! Estarei do teu lado. — Afirmou convictamente com os olhos a brilhar. — Oh, Clarisse, no que a humanidade se tornou. Mentiras e maldade sobrepõem-se à verdade e bondade. — Soluçou tristemente. — Por vezes as pessoas confundem ambas as coisas. Não deixam o coração entregar-se à bondade, porque o próprio mundo é um lugar cruel. — É então necessário este jantar. — Disse, já conformado com a ideia e alguma tristeza no olhar. — Sim, com urgência. — Para quando? — Digamos, de hoje a quinze. — E dá tempo para preparar tudo? — Dá. — Muito bem, assim seja. — Não te preocupes, vai correr tudo bem. Pernet desdobrou a lista e deu uma rápida vista de olhos. Dobrou-a novamente e enfiou-a no bolso interior do



  

casaco de ganga; retirando ao mesmo tempo o tabaco, os filtros e as mortalhas que trazia consigo. — Clarisse, importas-te que fume? — Não, claro que não! Aliás, enrola um também para mim. Vou buscar um cinzeiro. Clarisse levantou-se e foi à cozinha enquanto Pernet fazia os cigarros. Regressou pouco depois trazendo consigo um cinzeiro de vidro que reluzia e pousou-o sobre a mesa de centro. De seguida, tornou a sentar-se na mesma posição. Ambos levaram o cigarro à boca. Pernet retirou o zippo do bolso direito e acendeu-o; deu lume à Clarisse, depois aproximou o isqueiro ao seu, fechou-lhe a tampa, extinguindo a chama que exalava um odor a gasolina e pousou-o sobre a mesa com o X virado para cima. Um cheiro agradável a manga perfumou o ambiente com ligeiras nuvens do fumo emanado. — Isto não tem nada a ver com o tabaco dito normal. É mais suave, mais saboroso. — Disse, após dar um travo e soltado o fumo. — É por isso que gosto tanto dele. Não fumo outro tipo. — Explicou, agradado com o elogio feito ao seu tabaco. O aroma doce e calmante despertou-a ainda mais para os sentimentos que já existiam na sua alma. Fê-la sentir-se mais romântica, mais corajosa, e por que não, mais desinibida. Então, solenemente, disse aquilo que há muito queria dizer mas para o que sempre lhe faltou a coragem; enquanto olhava meigamente nos olhos do rapaz: — Já alguma vez colheste uma flor e, ao cheirá-la, dares por ti a pasmá-la e pensar que não existe nada mais simples e bonito? Chegas a tornar-te parte do universo dela e



 

esqueces, por momentos, a confusão que o mundo e a vida se tornaram. Fica tudo muito mais simples e claro. Às vezes, basta um abraço ou um simples beijo, dado pela pessoa certa, e o efeito é o mesmo, talvez ainda maior. — Não, creio que não! Mas vou experimentar com certeza. — Disse timidamente, após alguns segundos de silêncio, enquanto tentava perceber e articular uma resposta, surpreso com a inesperada pergunta. A bela rapariga sorriu face a esta resposta, pois viu que ele não percebera o que ela realmente queria dizer. Fora a primeira vez que o rapaz a ouvira falar de maneira tão poética com um não sei quê de filosófica. Ficou espantado e a verdade é que, ao princípio, não entendera o significado. — Xavier, conheces aquela sensação de formigueiro na barriga, a cabeça leve como se desprendesse do corpo, aquele aperto no coração que nos faz respirar mais profundamente e soltar leves suspiros, as pernas sem força e as mãos trémulas? Aquele nó na garganta que a deixa seca e nos impede de dizer o que nos vai na alma? Conheces, Xavier? — Perguntou ela, fitando-o com olhinhos meigos. — Sim, é o que se sente quando se está apaixonado por alguém. — Disse, reconhecendo a sensação mas sem entender o porquê da pergunta. — É o que eu sinto quando estás perto! Pernet ficara deveras surpreendido com esta confissão. A velocidade com que o seu coração batia aumentou, as mãos suavam-lhe, as pernas tremiam e a respiração ficou mais ofegante enquanto um pensamento lhe fulminou a mente, atravessando-lhe corpo e alma; então ele apercebeu-se duma verdade inquestionável e inequívoca… Ele sentia o mesmo!



  

Não sabia se o queria, mas tinha consciência de que não podia; por vezes, a consciência também se engana. — Estás a querer dizer-me que te sentes apaixonada por mim? — Sim, Xavier, já to queria dizer há muito. — Confessou, suspirando. — Oh, Clarisse! Perdoa-me por te fazer sentir dessa maneira. Mas eu não me posso dar ao luxo de me apaixonar por ti ou de me aproximar. Tenho medo. — Disse com ar triste que lhe invadiu o olhar. — Mas tens medo de quê, Xavier? De amar? Ou de seres amado? — Não sei! — Soluçou. — Talvez um pouco dos dois. Eu nunca te conseguiria fazer feliz, não quando eu próprio não o sou. — Mas podias ser! Ao meu lado, eu faria tudo para te ver sorrir, para te ver alegre e feliz — Disse, tentando convencê-lo, enquanto o fitava com olhar sincero. — Tenho medo de me magoar, mas principalmente de te magoar a ti, porque eu estaria sempre com um pé atrás. — Explicou. — Não tens o direito de pensares que me vais magoar. Eu é que sei se estou pronta a ser magoada ou não, mas sei que nada do que te poderia dizer te fará pensares de outra maneira. — Esclareceu ela com voz meiga. Olhavam-se nos olhos, ambos visivelmente entristecidos. Então Pernet tentou explicar melhor as razões do seu medo. — Às vezes, quando me encontro deitado sobre a minha cama, as lágrimas querem correr mas sou incapaz de as soltar. Sou inundado por pensamentos dolorosos pois ve-



 

jo-me inábil de me esquivar a um passado que, teimosamente, me persegue a todo lado que vá e me impede de dormir. Então, por vezes, enrolo um charro e, por breves momentos fugazes e fugidios, sou capaz de esquecer tudo, mas apenas por breves minutos; adormeço para, no dia seguinte, passar por tudo novamente. Caminhar entre a dor e sofrimento, dia após dia; assombrado de noite por imagens, cheiros, sensações e memórias do passado em pesadelos que me atormentam e fazem acordar aos gritos completamente encharcado em suores frios e arrepios de medo. Tremo só no pensamento de que vou ter de dormir, por isso tento evitar sequer fechar os olhos. A verdade é que até tenho medo de adormecer! Perguntaste-me, numa altura, por que não falo do meu passado. Mas vê bem, falar ou desabafar não me vai fazer esquecer, bem pelo contrário, traz tudo novamente à memória; só o facto de perguntares obriga-me a pensar em tudo de novo. Disseste que era por não confiar em ti, mas vê, não é por falta de confiança, apenas não quero que imagines, que cries imagens do que eu já passei, nem quero que me vejas como um coitado ou tenhas pena de mim. São coisas que acontecem, estou ciente disso, fazem parte da vida que me foi destinada, mas não implica que consiga esquecer ou safar da memória os vestígios de um passado cruel que ainda me devora os sentidos de diversas maneiras. Nem a poeticidade que tanto me esforço por dar à vida me faz sorrir. Pernet apagou o cigarro, já no fim, o qual nem chegou a saborear; só o provou quando o acendeu. Clarisse já fumara e extinguira o dela enquanto o ouvia atentamente. — Oh, Xavier, se tu deixasses, eu ajudar-te-ia a esquecer esse passado.



  

— Não consigo! É-me muito intrínseco, é difícil esquecer ou deixar de sentir a dor. — Mas podes tentar! Fazes tanto pelos outros mas não fazes nada por ti. — Disse meigamente. — Sabes, às vezes dou comigo a pensar, quando olho para o céu e vejo grandes sombras majestosas, no que sentirão os pássaros. Será que conhecem o medo, a alegria, dor, tristeza, amor ou ódio, egoísmo, ambição ou mesmo paixão? Talvez tenham a sorte de serem desprovidos de tais sentimentos que nos destroem e nos dilaceram a carne como garras afiadas! Às vezes desejo poder ser tão livre, até conseguir voar ao lado do mais livre dos seres, tão livre que só teria o céu como limite e não estar sujeito a sentimentos cruéis e muito dolorosos. Será que ao menos sabem que existem? Ou serão eles de tal maneira livres que nem disso têm consciência? Sonho em voar alto e mergulhar em nuvens brancas e fofas como neve e sentir a doce brisa acariciar-me o rosto ao passar. Criar asas e voar em direcção ao interminável, sem preocupações, sem medos ou até sem pensar! — Disse com ar de quem sentia cada palavra a libertar-se da alma. — Esse tipo de liberdade é um mundo de ignorância e inconsciência de ti próprio. — Refutou a rapariga após ouvi-lo atentamente com o coração aos pulos. — Talvez! Mas seria feliz! — Explicou. — Então já sonhaste em voar? — Já, Clarisse! — E sabes o que significa? — Não, na verdade não faço ideia. — Pois eu faço! Penso nisso constantemente, mais vezes do que queria. Representa a liberdade, o poder e o



 

controlo absoluto sobre corpo e mente. Existem momentos nesses sonhos em que simplesmente não somos capazes de controlar o voo. É um sentimento intenso e sufocante de desespero. Então, iniciamos uma queda vertiginosa em direcção ao solo e à morte certa. Já alguma vez sentiste isso num dos teus sonhos, Xavier? — É verdade que já. — Confessou. — Isso exibe-nos a verdade terrível da nossa existência, revela-nos que somos incapazes de ser totalmente livres, que tristemente somos escravos do nosso corpo e mente, que nada podemos fazer para alterar essa assustadora verdade: nós não temos qualquer controlo sobre a nossa vida, somos limitados por ela, dirigidos ao sabor dos seus caprichos mais mesquinhos. Se, algum dia, num desses sonhos, formos capaz de controlar o voo, rompemos com todas as barreiras, sobrevoamos todos os obstáculos, quebramos todas as regras e rebentamos as algemas que nos escravizam. Seremos, então, capaz de voar livremente até às nuvens, onde permaneceremos deitados, simplesmente a pensar, talvez numa paixão, na vida e até mesmo na liberdade. Dessa nuvem branca em que repousamos, arrancamos um pedaço e dele moldamos uma almofada. No instante em que nela deitamos a cabeça somos invadidos por uma sensação pacífica e harmoniosa pois sabemos que não há nada a temer; somos desprovidos de quaisquer preocupações ou assombros e estamos finalmente em paz. Pensamos nessa paixão que faz o coração palpitar mais apressado, provocando aquela estranha sensação na barriga, aquele arrepio quente e formigueiro que nos percorre o corpo quando estamos apaixonados e nos faz suspirar demoradamente enquanto fechamos os



  

olhos e adormecemos sem medos, pois sabemos que, quando acordarmos, ainda seremos livres, que a paixão arrebatadora será ainda maior e mais poderosa. Teremos, enfim, coragem para falar a essa pessoa, tão especial, da nossa paixão, que acabará por se transformar em amor. Nessa altura, saberemos o que é ser realmente livre. Tudo o que fizeres estará bem, tudo o que disseres será bom e ninguém te julgará pelo que fizeste ou possas vir a fazer. És livre de fazeres as tuas próprias escolhas e julgar-te a ti mesmo; és livre de pensar, de sentir, de viver, de morrer e de amar. E, no dia seguinte, ao acordares na tua cama, acordarás feliz, já que, por um pequeno instante, mesmo sendo num sonho, foste verdadeiramente livre. Nós não controlamos a nossa vida. É impossível, só nos resta aceitá-la e fazer dela o melhor que podermos. Ser livre não se trata só de fazermos o que queremos, mas também do que podemos fazer pelos outros e, nesse aspecto, tu és livre. — Discursou Clarisse filosoficamente, com lágrimas a dançarem-lhe nos olhos verdes carregados de serenidade, ânsia e crença profunda nas suas palavras. De certa maneira, também confessou a paixão imensa que sentia, os seus sonhos e desejos de partilhar a vida com ele, mas este não percebeu a mensagem subtil, pois seu coração sofria de clausura inconsciente. — Oh, Clarisse! Eu desejo tanto essa liberdade de que falas. Apenas não a consigo encontrar em mim. — Confessou. — Claro que consegues! Eu sei que consegues! Só tens que a procurar com mais força. — Não consigo. Nunca desejaste uma coisa, acima de todas as outras, desejá-la tão desesperadamente que dás em doida? Não sentindo mais nada, ser completamente cega que



 

só vês e só pensas naquilo que desejas? Já alguma vez adormeceste a chorar — agora nem isso consigo — que acordas com o peito a palpitar com tanta força que chegas a pensar que vai explodir? Já desejaste alguma coisa como eu desejo a liberdade de espírito? Oh! E desejo-a tanto, mas não a encontro. — Disse suspirando em cima de algumas palavras, com os olhos fixos nos dela. — Já, Xavier! A ti! — Revelou segurando nas suas as mãos dele. — Oh, Clarisse, desculpa! — Suspirou. — Não peças desculpa. Não a tens, eu permiti apaixonar-me. Simplesmente agora já não consigo suportar o sol, nem a lua, nem as estrelas, nem as árvores, nem o frio ou o calor, ou mesmo a paz e o sorriso de uma criança, até o nascer de uma flor; não suporto a solidão, nem o azar ou a sorte! Não suporto a vida se tiver que a passar sem ti. É um vazio o que sinto quando não estás comigo. Apercebi-me disso nestes meses que passei sem te ver. — Manifestou, soltando lágrimas sinceras dos lindos olhos, agora algo tristes. — Oh, Clarisse, desculpa. Não estou preparado, não sei o que te diga! — Bradou sentindo uma enorme culpa apoderar-se do seu espírito entristecido. — Diz-me só uma coisa! — Suplicou apertando-lhe um pouco mais as mãos trémulas. — Sim, Clarisse. — Sentes alguma coisa, por mais pequena que seja, alguma coisa especial por mim? — Soluçou. — Sim, Clarisse, não consigo evitá-lo. — Revelou. Ficaram parados, pasmados no olhar um do outro por largos segundos que se aproximavam de uma eternidade in-



  

tocável. Clarisse não percebia se ele tinha sentimentos calorosos por ela que eram sublimemente correspondidos; qual era a razão que Pernet tinha para não se entregar nos seus braços carentes, desejosos de o agarrar. Ela estava mais que apaixonada, só ele poderia preencher o vazio que sentia. Xavier afirmou que não a queria magoar, mas foi inevitável pois todo o seu ser maravilhoso já gemia perante a impossibilidade insistente de Pernet de se entregar nos braços dela. Aquela confissão foi, para o pobre rapaz, verdadeiramente inesperada. Porém, ao ouvi-la, entendeu que sentia o mesmo, ficou chocado, surpreendido e assustado consigo próprio. No âmago a sua vontade era tomá-la nos braços e arrebatá-la contra o peito, abraçá-la com vontade infinita, porém o seu coração já sofrera muito. Os medos insistentes do passado propagavam-se no tempo em vácuo com ecos silenciosos até ao presente e impediam-no de se entregar e se deixar arrebatar por sentimentos gostosos de corpo e alma, em toda a sua plenitude e capacidade. O seu coração ferido, que teimava em não cicatrizar, era incapaz de se abrir aos amores e de arder em chamas de infinitas paixões. Pernet estava consciente do que sentia por ela mas não conseguia dar-se, era mais forte que o seu espírito deprimido, que a sua alma cheia de dor e mágoa, que o seu coração saturado de sofrimento e medos mais fortes que a sua mente sem vontade. Clarisse sentia-se como se vivesse em oceanos de paixão azul, cobertos de bruma negra de tempestades imprevisíveis, ondas de solidão aninhadas em margens areosas, arrastadas por sopros dementes vivendo em desafio, rolando no mesmo sentido… a busca por um lugar no peito de Per-



 

net, um lugar etéreo a que possa chamar seu. Ela desejava-o, queria habitar eternamente serena nesse local divino que via nele através dos seus olhos vítreos e tristes. O espírito e a alma do pobre rapaz vagueavam no céu, perdidos por entre nuvens sombrias onde desaparecera o seu anjo num suspiro silencioso! Se permitisse, encontrá-lo-ia de novo, escondido nos olhos meigos e inocentes da sua paixão, nos olhos verdes da Clarisse. O pasmo apaixonado com que se regalavam foi interrompido por um ruído. Era o vídeo-hall que tocava. Clarisse levantou-se do sofá com um pulo, largando de súbito as mãos suadas e trémulas do Xavier. Enxugou as pequenas lágrimas esfregando o rosto com as delicadas mãos, não deixando perceptível qualquer vestígio de que estivera a chorar. — Vou ver quem é. Dirigiu-se ao aparelho suspenso na parede, junto à porta de entrada. Ligou o ecrã vendo um cara conhecida a preto e branco. Pernet endireitou-se no sofá, apoiando os cotovelos sobre os joelhos; passou ao dedos por entre o cabelo, tentando perceber exactamente o que acabara de suceder, refazendo-se ligeiramente da confissão apaixonada da Clarisse que o deixara deveras confuso. Arrumou as suas coisas que pousara sobre a mesa de vidro, enfiando-as nos bolsos, de onde as tirara, depois de se erguer do confortável sofá, achando que talvez fosse altura de se retirar. — Ah, Ricardo, és tu. — Disse sem qualquer ânimo e com tom de voz que exprimia indiferença. — Sobe, vou abrir-te a porta.



  

Ricardo entrou no prédio e esperou o elevador; em chegando, saltou para o seu interior. Clarisse deixou a porta do apartamento aberta e voltou para a sala onde encontrou Xavier, já de pé. — Vais embora? — Perguntou tristemente. — Vou, Clarisse, penso que deva. Desculpa. Ricardo entrou de rompante amaldiçoando o seu próprio fado: — Raios partam a minha sorte! Demorei quarenta e cinco minutos só para atravessar a Avenida da Europa! Venho de Lamego onde fui visitar o meu primo. Um acidente defronte do tribunal novo dificultava a passagem. Quarenta e cinco minutos! Porra de sorte! Não houve feridos, por Deus, mas tanto tempo, que grande maçada. Ricardo entrava na sala quando viu Pernet junto de Clarisse. Dirigiu-se a ele apertando-lhe a mão, cumprimentando-o: — Olá, Xavier! Tu, por aqui? Então, meu amigo, como tens passado? Amigos?! Que gozo, não passava de um conhecido com que Pernet falara numa ocasião que já nem se lembrava. — Bem, obrigado. — Respondeu, como se ele tivesse algo a ver com isso. — E tu, Clarisse? Sempre linda! — Disse cumprimentando-a com dois beijos no rosto e um abraço desnecessário. — Vou andando. — Respondeu sem interesse e afastando-o. — Bom, Clarisse, vou indo. — Está bem. — Acedeu, não sem um breve suspiro desanimado.



 

— Então, adeus, Xavier. — Disse Ricardo como se o estivesse a mandar embora, dando-lhe a entender que estava a mais para seu gosto. — Pois, adeus. — Disse Xavier, percebendo o olhar impaciente de Ricardo para que ele se retirasse. Pernet saiu do apartamento. Clarisse acompanhou-o à porta, despediram-se e a pobre rapariga ficou a ver sua paixão dissolver-se num elevador frio, sem a certeza se o voltaria a ver antes do, ainda distante, jantar. Fechou a porta e voltou para a sala. Ricardo atirou-se brutamente para o sofá fazendo-o deslocar-se um pouco sobre o chão envernizado. — Tem cuidado! És tão bruto! Riscas-me o chão! — Protestou. Mal Pernet tinha saído e Ricardo já manifestava o seu desagrado pelo rapaz; tão simpático que foi à sua frente e agora satisfeito de o ver pelas costas. — Que fazia aquele gajo aqui? Convidaste-o? Para quê? — Perguntou em tom ríspido e chateado, franzindo a testa. — Ora, Ricardo, não tens nada a ver com isso. Não preciso de motivos para convidar um amigo a minha casa. Afinal, que tens contra ele? — Perguntou, mostrando-se indignada. — Nada de especial. Apenas não vou com a cara dele. Nem com gente se sabe vestir. — Eu achei que estava muito bem. — Refutou. — Pois, pois, claro que sim. Acreditas realmente que alguém do estatuto dele faz bem em andar vestido com gangas? Que falta de classe!



  

— Não sejas parvo! Qual é o problema? — Pronto, nenhum. Não te irrites — Disse, agitando os braços no ar. Ricardo era adepto fervoroso da etiqueta, aparência e rigores da alta sociedade. Frequentava muito acontecimentos da alta; era, por isso, bem conhecido entre eles. Provinha de uma família endinheirada; o seu pai era dono de pedreiras algures nos arredores de Castro Daire; uma já não dava pedra, as outras, quase esgotadas, não providenciavam pedra de boa qualidade. Estavam endividados até à nudez, mas nunca deixaram de ostentar uma vida rica perante a alta que desconhecia a quase falência dos seus negócios. Tudo naquela família vergonhosa era à base da aparência; não queriam admitir que estavam à beira da bancarrota, mantendo sempre a postura cruel e fria que os caracterizava. Ricardo trazia vestido um pólo verde-escuro que ostentava o crocodilo orgulhoso da Lacoste no peito; debaixo deste, uma camisa cinzento-escuro de Pierre Cardin. Umas calças pretas de vinco de um fato Armani; um par de sapatos Gucci calçavam-lhe os pés e uma gravata preta apertada à volta das carnes gordas do seu pescoço. Ele estava já há muito apaixonado pela bela jovem. Disse-lho uma vez, mas de uma maneira bruta e sem romantismo; nada convenceu Clarisse a dar-lhe sequer uma breve oportunidade. Ela não se sentia minimamente atraída por ele, quer fisicamente, quer emocionalmente. Ricardo era gordo e baixo, qualquer coisa que vestisse assentava-lhe ridiculamente sobre a sua pança balofa que caía em cima do cinto, com a fivela, por vezes, a ferrar-lhe nas gorduras deixando marcas vermelhas cravadas na carne. Muito bochechudo



 

e vermelho, os seus olhos castanhos eram pequenos e pareciam esforçar-se para não serem escondidos com a gordura; tinham um não sei quê de perverso, chegavam a emitir brilhos de pura maldade. As orelhas grandes e pontiagudas espreitavam por entre o cabelo preto encaracolado, cheio de gel rasca que o fazia parecer palha-de-aço e em que eram visíveis os resíduos secos do gel, pequenas bolas chegavam mesmo a soltar-se do cabelo, caso ele o agitasse com um pouco mais de violência. Lábios grosseiros, sempre vermelhos, pareciam pintados a batom. O nariz grande era, de facto, ridículo e algo hilariante; narinas amplas, cheias de pêlo, a espreitar, que vibravam com a sua respiração pesada e nauseabunda… Lembrava o focinho enlameado de um porco. Aparecia muitas vezes em casa da moça sem ser convidado; era incómodo quando Clarisse queria estar sozinha para estudar. Ele não tinha a consciência de quando estava a mais e que era um empecilho. Talvez por se ter a ele próprio em boa consideração, achava-se uma boa companhia e bom conversador. A verdade é que quem ouvisse os seus discursos aborrecidos rapidamente se fartava da sua voz esganiçada que acabava por ferir os tímpanos. Rondava sempre a casa da Clarisse como aquelas melgas chatas que nos zunem ao ouvido, irritantes e que, por mais que as enxotemos simplesmente não desaparecem. Era um chato, mas Clarisse tinha vergonha de o mandar embora, ou talvez tivesse medo de ferir os sentimentos daquele monstro de trinta e um anos, se é que os tinha. A Clarisse é que era muito paciente e generosa mas, por vezes, já não prestava atenção às suas conversas banais e de maldizer. Era uma verdadeira seca.



  

— Então, menina, que tens feito? — Perguntou com um sorriso amarelado. — Olha, desde que cá estiveste ontem não fiz grande coisa! Ela detestava quando ele a chamava de menina. — Como vão os estudos? — Perguntaste isso ontem! Vão bem, como já te tinha dito — Respondeu pouco interessada. — Que vais fazer agora? — Perguntou o chato com um sorriso. — Nada de especial — Confessou, já esperando um convite dele. Era tão previsível! — Então, queres vir comigo lanchar à Galeria? — Convidou. — Pago eu. Ela já estava à espera; não tinha coragem para recusar. Ele ainda levava a mal, razão pela qual aceitou, relutantemente, o convite. Clarisse estivera o tempo todo de pé. Ricardo levantou-se e, juntos, saíram pela porta e desceram no elevador. Poucos minutos depois entraram no café, após um curta caminhada. Algum tempo antes, Pernet entrara no seu Jaguar e arrancara. Desta vez decidiu ir pelo caminho mais rápido, atravessando Mangualde. Lembrava-se das palavras da Clarisse que se lhe cravaram na alma como a inscrição de um túmulo que demora séculos a desgastar-se. A alegria que sentiu ao acordar desvaneceu-se dando, de novo, lugar à tristeza. Sentia-se confuso, perdido em si próprio. Tentava não pensar nela mas não conseguia. Sentia raiva de si mesmo por não permitir deixar-se amar; ele tinha consciência



 

de que a culpa era dele, mas, no entanto, era algo inevitável para o seu coração. Chegou finalmente a casa, já o sol não se via; percorreu a estrada de gravilha até que entrou na garagem. Lá ficou, com os braços e cabeça sobre o volante, confuso, triste, preenchido de pensamentos inexplicáveis, inconstantes e, talvez, ilógicos.



 

Capítulo 5

— Rosário — Uma leve pancada na porta de madeira, quase podre, chamou a atenção dos três meninos que brincavam com carritos de lenho que o falecido pai lhes construíra. Eles adoravam aqueles brinquedos. Além de terem sido fabricados pela própria mão do pai amado, eram, na verdade, os únicos que possuíam. Três carritos de madeira, um para cada; a imaginação encarregava-se do resto. Brincavam sobre o chão de cimento nu e frio, sentados ou ajoelhados. Rodrigo largou o seu carrito e, num pulo, correu para a porta, abriu-a euforicamente dizendo com sincera alegria: — Mãe! Já chegaste! Rosário pegou no rapaz abraçando-o, dando beijinhos de saudade na face suja e fria com muita vontade e amor de mãe. — Sim, filhinho, cheguei! Tive saudades vossas. E vocês, meus queridos, tiveram da mãe? — Sim, mãe! Claro que tivemos! Pousou Rodrigo, entrando em casa. Fechou a porta que rangeu das dobradiças enferrujadas e gastas que tornavam a porta mais pesada.



  

— E vocês? Não dão um abraço à mãe? — Perguntou para os outros dois filhos, de braços bem abertos. — Claro que sim! — Responderam. Levantaram-se do cimento com um salto imperial e agarraram-se à cintura da mãe com força e vontade. Rosário fez festinhas no cabelo dos pequeninos que sorriam. A relação entre eles e a mãe era algo única, deveras comovente; meigos, carinhosos e atenciosos, amavam-na fortemente e ela correspondia aos seus afectos. A troca de carinhos entre eles era comum. As crianças sentiam-se felizes sempre que a mãe estava ao lado; o amor que eles lhe davam era mais que suficiente para que Rosário encontrasse forças para continuar a lutar e com vontade de viver, nem que fosse só para eles. Não suportava ver os seus meninos tristes, feria-lhe a alma. Fazia de tudo para que eles não se apercebessem das suas preocupações e tristezas mas, às vezes, eles davam conta, principalmente o Rodrigo, que era mais perspicaz. Então, ela tentava fazê-los rir e acabava por se rir também; esquecia-se, por momentos, das dificuldades que passavam. A alegria de um dava força aos outros, deixavam de se sentirem tão tristes. Aquela família sem pai esquecia as tristezas quando um deles sorrisse ou contasse uma história engraçada; isso bastava. Eram todos fortes, sorriam ante desgraças que se lhes pudessem abater, na crença profunda de que, um dia, tudo ficaria melhor. Amavam-se, era o suficiente para se manterem unidos e felizes. Nada era mais forte que aquele amor. Nem mesmo a pobreza que os rodeava lhes diminuía a riqueza de espírito ou a alegria de viver. Eram de facto, muito pobres. Moravam numa pequena e velha casa feita de pedra; mais se assemelhava a antigas



 

cavalariças. Era um autêntico cubo, com apenas quatro divisões. Uma divisão rectangular ocupava meia casa e servia de sala de jantar, de estar e de cozinha, muito vazia e gelada. Apenas lá existia uma mesa redonda, onde só cabiam quatro pessoas à sua volta, cheia de marcas de pequenas pancadas e lascas de madeira que de vez em vez se soltavam. Porém, era o suficiente para eles. Um já velho e desgastado fogão de quatro bicos sobre o forno que já não tinha porta, encontrava-se solitário, com o esmalte branco estalado, deixando perceptíveis pequenas manchas de ferrugem por entre fissuras esfaceladas. Ao seu lado, um modesto móvel rasteiro de madeira humedecida e mole em que duas portas já haviam apodrecido e caído; o espaço aberto deixado pela falta delas tornava visíveis as tubagens de cobre já calcinado. Servia de banca a uma pequena pia esmaltada a branco mas cujo fundo, com o uso, se desgastara e adquirira um tom amarelo-torrado. Existia também uma lareira de pedra feita a um canto; o calor que emanava não era o suficiente para aquecer as paredes frias de pedra que dividiam a casa. A outra metade era composta por dois pequenos quartos, que apenas encerravam em si as camas; muito frios. Num dormia a mãe, noutro os três irmãos, na mesma cama: assim sempre conseguiam aquecer-se um pouco nas noites frias de Inverno. Finalmente, a última divisão era um pequena casa de banho que só tinha uma sanita, um lavatório e um chuveiro. Era visível toda a tubagem, que as fendas nas ripas de madeira do tecto podre denunciavam. A humidade que nele se acumulava era igualmente visível, formando manchas negras que o apodreciam cada vez mais e que, por vezes, quando chovia mais pesadamente, pingava e deixava água correr



  

nas paredes nuas de pedra fria. Jantavam sempre à luz de vela, não tinham electricidade, por isso não possuíam electrodomésticos; sempre que tinham necessidade de conservar algo fresco pediam a uma vizinha simpática que os deixava depositar o que quer que fosse no seu frigorífico. Rosário era uma mulher muito trabalhadora, honesta, íntegra, tão simples que, por vezes, roçava a ingenuidade. O seu corpo franzino e frágil encerrava em si um espírito lutador, forte e confiante. O seu coração bombeava um amor verdadeiro pelos seus filhos que percorria todas as veias e artérias do seu corpo. Os olhos castanhos, sempre raiados de sangue, sobre umas olheiras profundas, diziam que ela dormia pouco e mal. A sua pele clara, quase roxa, maltratada pela vida, denunciava já rugas de cansaço acentuadas, tendo ela apenas trinta e cinco anos de vida. O cabelo castanho e curto era deveras seco e espigado, parecendo um tapete velho, desalinhado e desfiado. A pobre mulher era algo feia, mas não se importava, preferindo dar o seu pouco tempo livre aos filhos que ao seu aspecto. As suas mãos ósseas e calejadas, de tanto sapato coser à mão, tremiam muito; às vezes, deixava escorregar coisas por entre os dedos cansados, como se não tivessem força para as segurar e erguer. Porém, a sua força vinha do coração e do espírito, não do corpo. Uma grande mulher, um imenso coração, presos num corpo tísico. Têm sorte as crianças que vivem na ignorância, protegidas pelo escudo da inocência, pois não conhecem verdadeiramente a tristeza nem têm consciência da real crueldade da vida. Porém, não era o caso dos três pobres irmãos, muito menos do Rodrigo, pois era o mais consciente. Mas



 

ainda havia tempo para os resgatar de volta à inocência da meninice. Pernet certificar-se-ia disso. Rosário trazia vestida uma bata azul, que lhe chegava pelos joelhos, sobre uma camisola de lã com gola alta e umas calças de ganga desgastadas que lhe ficavam largas; calçava umas sapatilhas sujas e já rotas que mostravam as meias pretas de algodão grosso. — Vão lá brincar, meus queridos. Os três irmãos ajoelharam-se de novo e brincavam alegres, simulando o ronco dos motores com a própria voz. A mesa estava vazia, ela não viu nenhuns pratos sujos. Foi até ao fogão e levantou a tampa de um tacho de inox, espreitou lá para dentro. A açorda de peixe não fora tocada, estava toda como ela a deixara. — Então, meus queridos! Não almoçaram? Têm de comer, não podem ficar de barriguinha vazia o dia todo. — Disse com voz de preocupação, por pensar que os filhos não tinham almoçado. — Não almoçámos em casa. Mas almoçámos. — Respondeu o Henrique sem se distrair da sua brincadeira. — Então onde foi que comeram? — Perguntou, surpreendida com a resposta do irmão do meio. — Foi em casa daquele senhor rico. — Respondeu Rodrigo largando o seu carro e olhando para a mãe. — Ai, meu Deus, foram incomodar o senhor! — Não, mãe, juro! Foi ele que nos convidou. A sério que foi! — Disse com os olhos muito abertos, com receio de que a mãe não acreditasse. — Ah sim! Então porquê? — Perguntou com um sorrisinho de desconfiança condescendente.



  

— Não sei! Mas ele gostou muito de nós. É nosso amigo! Deixou-nos jogar à bola no quintal dele. É grande! E disse que podíamos lá voltar amanhã. Oh, mãe, podemos? Sim, tu deixas. — Suplicou meigamente o pobre rapaz. — Se ele vos convidou, então, deixo. — Oh, mãe, obrigado! Ele é muito simpático. — Concluiu com um sorriso rasgado de contentamento. — E comeram bem? — Sim, comemos. — Ainda bem, isso é que interessa! Bom, acho que já temos jantar. — Disse, voltando a pousar a tampa sobre o tacho, fechando-o. Rodrigo tornou a pegar na sua brincadeira, voltado as costas à mãe. Era, ao vê-los aos três juntos, a brincar que, por vezes, Rosário se apercebia e tomava consciência de uma verdade inequívoca: eles eram como as três cordas de uma trança: sozinhos corriam o risco de quebrar, porém juntos formavam uma resistência incomensurável. Ao olhar para Rodrigo, reparou que tinha um envelope branco a espreitar-lhe do bolso de trás das calças. — Que papel é esse que trazes no bolso? — Perguntou com real curiosidade. Rodrigo ergueu-se e retirou o envelope, que não dobrou, e entregou-o à mãe, dizendo: — Pois é! Já me ia esquecendo! Aquele senhor pediu para te dar isto, que é para nos comprares uma bola nova e para remédios do mano. Compras a bola, mãe? Sim, compras, por favor… Queríamos tanto! — Está bem, eu compro.



 

Abraçou a mãe agradecendo e regressou para junto dos irmãos. Rosário abriu o envelope selado e retirou dele uma folha de papel com as mesmas dimensões do envelope que o transportara. Ficou pasmada durante alguns segundos que lhe pareceram eternos ao ler o que nele estava escrito. Depois, deixou-se cair sobre uma cadeira quase podre que rangeu em protesto. — Ai, meu Deus, não pode ser verdade! — Disse, num longo suspiro, com a respiração ofegante e com suor a principiar a correr-lhe na testa. Rodrigo ergueu-se com um salto. Os outros dois pararam de brincar e ficaram a olhar, muito sérios e de olhos bem abertos, para a querida mãe. Preocupados com aquela reacção, esperavam que ela dissesse algo. — O que foi, mãe!? — Perguntou Rodrigo, sobressaltado com a voz de Rosário. — Ai, meu Deus! — Olhou para o filho com ar surpreendida. — Disseste que é para comprar uma bola e alguns remédios!? — Sim, foi o que o senhor Pernet disse. — Então isto não pode estar certo! Enganou-se de certeza, é a única explicação. — O que é mãe? — Perguntou impaciente. — Nós não podemos aceitar isto, é muito, enganou-se! — Então já não compras a bola? — Não sei, Rodrigo, mas tenho que devolver isto ao senhor. — Confessou. — E os remédios para o Luís? — Não sei, arranjaremos outra maneira.



  

— Oh, que pena! Não faz mal, mãezinha. — Disse tristemente mas conformado. O coração de Rosário batia forte no peito, surpreendida e incrédula com o papel que segurava entre os dedos finos com as mãos trémulas. Decidiu que iria a casa do senhor Pernet para lho devolver. — Meus filhos, tenho que ir falar com o senhor. Vocês ficam aqui a brincar que eu já venho — Disse, levantando-se da cadeira. — Está bem! Não te preocupes, mãe, ele é um homem bom. Mas não demores muito! — Pediu Rodrigo. Voltou a enfiar o papel dentro do envelope que pousou sobre a mesa enquanto despia a bata. Pegou nele novamente, segurando-o firmemente com os finos e gretados dedos. Dirigiu-se à porta que rangeu ao abrir. — Volto já. — Assegurou. Saiu e tornou a fechá-la. Rodrigo voltou para junto dos irmãos. — O que era? — Perguntou Henrique curioso. — Não sei! A mãe não disse. — Respondeu Rodrigo. Encolheram os ombros e retomaram a brincadeira, sem pensarem mais nisso, enquanto esperavam que Rosário regressasse para junto deles. A mulher passou o grande portão aberto, caminhou pela estrada de gravilha cujas pedras azuis roçavam a seus pés; ficou a admirar a imponente fonte durante os breves segundos que os seus olhos demoraram a distinguir a silhueta escura do querubim envolta pelo negro da noite. Subiu os três degraus de mármore azul que sentia frios sob os pés



 

mal aconchegados e que lhe fez um arrepio subir-lhe pela espinha. Parou, viu uma campainha e premiu o botão iluminado. Alguns segundos mais tarde, a porta maciça abriu-se. Um homem charmoso, de fato, sorriu-lhe e disse: — Boa noite, minha senhora. Em que posso ser-lhe útil? — Boa noite, o meu nome é Rosário. Creio que os meus filhos almoçaram aqui hoje. Queria saber se existe a possibilidade de falar com o senhor Pernet. — Disse com a voz um pouco trémula e com timidez nos olhos. — Sim, minha senhora, creio que o senhor está. Ouvi a garagem abrir faz cinco minutos. Não o vi subir, por isso, creio que ainda lá se encontre. Mas, diga-me, por gentileza, qual o assunto que deseja falar-lhe? — Com certeza! Queria agradecer-lhe a simpatia que teve para com os meus três meninos. — Explicou, mas não era só essa a razão da sua visita e Pedro bem lho viu nos olhos ansiosos. — Muito bem, minha senhora. Siga-me, vou levá-la ao escritório. Depois chamo o meu senhor. — Disse, sorridente. — Não incomodo? — Perguntou tímida. — Não. O senhor Pernet terá muito gosto em falar com a senhora. Então, siga-me, por favor. Rosário entrou e seguiu o mordomo. Ficou maravilhada com a grandeza do hall de entrada que terminava numa escadaria que, a meio, divergia em dois lances: um, para a direita, e outro, logicamente, para a esquerda. Pedro abriu a porta do escritório, convidou Rosário a sentar-se e disse:



  

— Aguarde um momento que o meu senhor vem já. Fique à-vontade. Ele saiu, deixando a porta aberta e fez-se à garagem. Rosário nunca vira tantos livros juntos. Certamente Pernet seria um homem de elevada cultura, pensou ela. Sentia-se nervosa com a expectativa de que iria falar com alguém que era o oposto da sua condição social. Ela era pobre e sem posses, o senhor era visivelmente rico. Tinha um não sei quê de medo a correr-lhe nas veias; era a primeira vez que falaria com alguém daquele estatuto e não queria passar vergonha devido a algo que pudesse dizer. Esperava uma pessoa rude e fria, mas enganara-se. Pedro entrou na garagem, acendendo as luzes. Viu o seu amigo deitado sobre o volante do Jaguar, o que fez o seu coração palpitar mais pesadamente. Aproximou-se do carro, preocupado, bateu no vidro do lado de Pernet, que, ao ouvir o barulho, ergueu a cabeça. Vendo Pedro, abriu a porta e saiu do veículo. — Estás bem, Xavier? — Perguntou, franzindo as rugas de preocupação. — Oh, Pedro, estou tão confuso! — Confessou ao amigo. — Tem alguma coisa a ver com a menina Clarisse? — Perguntou, sabendo no âmago que a resposta seria positiva. — Sim, tem! Era a resposta que Pedro temia ouvir. — Xavier, está cá a mãe dos pequenos. Deseja falar contigo. Levei-a ao escritório. Depois, se quiseres, podes dizer-me o que se passou na casa da Clarisse. — Disse ele, dispondo o seu ombro amigo.



 

— Sim, Pedro, agradecia-te muito que me ouvisses. Vou ver então o que a senhora quer. Ah!, é verdade, e as crianças? Divertiram-se? — Sim, Xavier, lancharam cá, ficaram muito contentes por cá passarem a tarde. — Assegurou com ar satisfeito. — Ainda bem, Pedro, fico contente em sabê-lo. Vamos lá então. Saíram juntos. Pernet apagou as luzes e fechou a porta. Pedro ficou-se pela cozinha na companhia da Isabel enquanto ele subiu a escadaria em direcção ao escritório onde a mulher o esperava pacientemente. Entrou, ela ficou surpreendida ao ver que era um moço tão jovem. Levantou-se quando Xavier esticou o braço para a cumprimentar. — Boa noite, Rosário. Como está? — Perguntou a sorrir. — Boa noite, senhor. Sabe o meu nome? — Perguntou envergonhada enquanto lhe apertava a mão, não se lembrando que o dera ao Pedro. — Sente-se, minha senhora. Sei, o Rodrigo disse-mo. É bom rapaz! Rosário sentou-se novamente e Pernet acomodou-se gentilmente no seu cadeirão. — É sim, senhor. — Concordou. — Estão, Rosário, a que devo este prazer? — Oh, senhor, o prazer é certamente meu. Quero agradecer-lhe a simpatia que teve para com os meus filhotes. — Agradeceu com ar tímido. — Ora, não foi nada, gostei muito deles e da companhia que me fizeram. Eu é que devo agradecer. — Confessou num sorriso.



  

— Sim, gostou? São bons rapazes, os meus meninos. — Disse, orgulhosa. — Não incomodaram? — De modo algum, Rosário! Foi bom para mim vê-los divertidos no quintal. Animaram-me. — Revelou sorrindo, ao lembrar-se de os ver brincar, tão alegres. — Mas agradeço-lhe igual. O senhor é muito bom. Ainda queria falar-lhe de outra coisa, senhor. Posso? — Perguntou timidamente. — Com certeza, Rosário! Então diga. Ela retirou o papel do interior do envelope que trazia nas mãos e envergonhadamente disse: — O senhor deu isto ao meu filho mais velho, ao Rodrigo, para eu lhes comprar uma bola nova e alguns medicamentos para o mais novo. Mas veja bem, senhor, é demais para isso, deve ter-se enganado. — Deixe ver, Rosário — Pediu esticando a mão. Ela entregou-lhe o papel, ele olhou-o e entregou-lho novamente. — Não, Rosário, não me enganei. Está correcto. — Assegurou. — Mas, senhor, eu não posso aceitar isto! É um cheque no valor de quinze mil euros, não posso mesmo aceitar, é muito. — Confessou a pobre já com o braço estendido para lho devolver. — Muito, Rosário?! Eu ainda penso que é pouco. A mulher deixou cair a mão que segurava o cheque sobre o colo e tentou falar: — Mas, senhor… Pernet interrompeu-a, perguntando: — A senhora ama os seus filhos?



 

— Claro, senhor! Mais que a minha vida! — Disse com verdadeira convicção. — Nesse caso, faria tudo para os ver felizes? — Claro, senhor! — Morreria por eles? — Sem hesitar, senhor! — Ainda bem, Rosário. Sendo assim, pode facilmente aceitar um cheque. — Explicou. — Tem razão, senhor, mas nada fiz para o merecer. — Tentou explicar. — Acredita mesmo que nada fez? — Perguntou, fitando-lhe os olhos raiados de sangue. — Não percebo, senhor! — Disse confusa. — Merece mais do que possa julgar. Olhe bem para os seus três meninos. Olhe para o Rodrigo, para o Henrique e para o Luízinho. Olhe-os bem e diga-me que nada fez para o merecer. A Rosário ainda merecia muito mais. — Explicou, fazendo-a aperceber-se dessa verdade maravilhosa. — Oh, senhor, as suas palavras são tão generosas. — Elogiou, começando a chorar. — Não chore! Devia estar feliz! — Eu choro de felicidade, senhor. Nunca ninguém se interessou por nós, por mim e por meus filhos. E o senhor faz isto! Pernet comoveu-se ainda mais ao ver a simplicidade, a modéstia e a honestidade daquela pobre alma. Decidiu que ainda haveria mais a fazer por eles. Adorou os pequenos e viu nos olhos cansados da mãe a tristeza desvanecer-se um pouco. Ele queria vê-la desaparecer por completo.



  

— A senhora trabalha na fábrica de calçado, não é verdade? — Perguntou. — Sim. Oh, senhor, é tão duro e cansativo, mas necessário para os meus meninos. — Soluçou. — Tenho um trabalho para si, se o quiser aceitar. — Ofereceu. — Oh, senhor, dá-me tanto dinheiro e ainda me oferece trabalho! Você é um anjo e eu acredito em anjos. Senhor, aceito o trabalho. — Aceita-o sem saber do que se trata? — Perguntou surpreendido. — Sim, porque trabalharia para um homem como o senhor, a fazer o quê pouco me importa. — Confessou. — Mas vou dizer-lhe, Rosário. Tenho uma casa à beira-mar na Quarteira, no Algarve. Já lá não vou há muito. Quero que a senhora vá para lá morar com os seus filhos e que me tome conta da casa. — Esclareceu. — A sério? Não está a enganar-me? Eu e os meus meninos? — Perguntou, abrindo muito os olhos com a surpresa da magnífica proposta. — Claro, Rosário. Pago-lhe bem. Todos os dia um de cada mês recebe um cheque de mil e quinhentos euros. — Mas, senhor! É muito dinheiro para tomar conta de uma casa. — Disse, surpreendida e com honestidade. — Rosário, não se fala mais nisso. Eu é que sei quanto me vale o seu trabalho. Direi a Pedro para vos levar amanhã bem cedinho, pode ser? — Oh, senhor, pode. Mas… E o meu patrão da fábrica? — Não se preocupe mais com isso, esqueça a fábrica. Eu falo com o seu patrão. — Sossegou.



 

Rosário levantou-se de um salto e dirigiu-se a Pernet que se ergueu. Ela abraçou-o com tamanha força e vontade enquanto chorava, gritando: — Obrigado, senhor! Muito obrigado! Você é um verdadeiro anjo! Só pode ser anjo! É o homem mais generoso do mundo! Não existe ninguém igual a si, é impossível! Oh! Obrigado! Mil vezes obrigado. — Pronto, Rosário, não me agradeça mais. Não sou um anjo, sou apenas um homem comum. — Não senhor, de comum pouco tem. Se todos os homens fossem comuns como o senhor diz que é, o mundo seria o paraíso. Diga-me, senhor, que posso eu fazer por si? — O melhor que pode fazer por mim, a única coisa que quero e peço em troca é que você cuide bem dos seus meninos e lhes dê uma vida digna, feliz e plena. — Explicou. — É também o que eu mais desejo: ver os meus rapazitos felizes. E o senhor tornou-o realidade, ofereceu-nos essa possibilidade. — Disse, soluçando. Os seus olhos brilhavam de novo, cheios de esperança. A tristeza que neles habitava dissolveu-se, tornaram-se mais vivos. Para isso bastou a bondade e o coração grande de um grande homem. — Vá lá, Rosário, vá ter com os seus meninos. Conte-lhes a novidade. Vão descansar, que amanhã levantam-se cedo. Pedro irá buscar-vos a casa. — Assegurou, sorrindo. — Sim, senhor! Então vou! Mais uma vez obrigado! O senhor viverá sempre no meu coração. Rosário soltou Pernet dos seus braços e correu pela porta aberta. Galgou a escadaria com pressa, cheia de ansiedade de contar a boa-nova aos filhos; abriu a porta e saiu



  

em direcção a casa, esquecendo-se de a fechar. Pedro viu-a sair deveras excitada, fechou a porta de entrada e subiu ao escritório para saber notícias do amigo. Xavier alegrara-se no pensamento de que tinha acabado de mudar para melhor a vida de quatro pessoas. Num simples gesto caridoso, devolveu a esperança e o brilho aos olhos de uma pobre desgraçada que sempre fora maltratada pela vida; porém, não mais. Sentia-se principalmente alegre com o que fez por três crianças que nada tinham, deu-lhes um pouco de conforto para que tivessem uma infância plena e cheia de azuis e verdes, paz e esperança. Pedro entrou no escritório e deparou-se com o seu amigo a sorrir, de costas aconchegadas no veludo vermelho do seu cadeirão. — Então, Xavier, estás a sorrir! O que fizeste por aquela pobre família? — Perguntou, reconhecendo aquele sorriso. Era o sorriso satisfeito de quem acabava de ajudar o próximo. Sentou-se na cadeira frente a Pernet, que lhe contou a conversa que tivera com a Rosário e a oportunidade que lhe proporcionou. — Assim sendo, não te importas de os levar ao Algarve amanhã? — Perguntou. — Claro que não! É com muito gosto que o faço. — Respondeu a sorrir. No dia seguinte, Pedro teria a honra privilegiada de levar aquela família rumo a um futuro prometedor, só possível graças à bondade de um grande homem: o seu bom amigo. Sentiu-se bem por ir levá-los a uma vida nova, mais serena.



 

— Então, como foi a conversa com Clarisse? O que te queria ela? — Perguntou ansioso. Pernet contou-lhe da sugestão dela, que era para o melhor, que era necessário e que ele aceitou. Pegou na lista que estava sobre a mesa e entregou-a ao Pedro, dizendo: — Esta é a lista. Tratas-me disso? Pedro agarrou na lista e deu-lhe uma vista de olhos. — Sim, trato. Conheço alguns destes nomes. Um é professor, um é juiz muito conhecido e influente. Algumas famílias ricas e um político. Este não sei quem é. — A sua expressão ficou séria ao ler o último nome da lista — Ricardo também vem!? Acho esse personagem abominável. Infelizmente, a sua influência social é alta. — Concordas, então, com o jantar? — Sim, Xavier, pelos piores motivos é imperativo. — Então tratas-me de tudo? — Sim, logo que regressar do Algarve. A expressão de Xavier tornou-se mais grave e triste; o sorriso com que Pedro o encontrou desvanecera-se. — Não foi só isso que conversámos! Pedro não pôde deixar de reparar na tristeza dos seus olhos e, preocupado, perguntou: — Então que mais, meu amigo? Pernet contou-lhe o resto da história. Porém, Pedro não se mostrou surpreendido, como se de algum modo já soubesse — na verdade não sabia, mas imaginava —, já se tinha apercebido da maneira como ela o contemplava; de olhos bem abertos para não deixar escapar nenhum pormenor e brilhantes de paixão. Desconfiava que ela sentia alguma coisa, porém nunca o revelou ao amigo.



  

— Oh! Pedro, não sei se ela é anjo que me aquece ou demónio que me ferve! Não sei se a amo, mas sei que a adoro! Sinto-me perdido em mim, algures entre pensamentos perturbadores do passado e sentimentos silenciosos dos quais não consigo recolher sensação alguma, por mais que me esforce para os sentir. Estou tão confuso que me pergunto onde está a Lua, que me prometeu luz durante a noite. Onde está o Sol que me prometeu aquecer durante o dia? Tudo o que desejo é sentir a sua na minha pele, ver o brilho e a cor dos olhos trespassantes que me seduzem a alma. Que pasmo é este que me impede de desviar o olhar quando a vejo? Onde está o sonho quando acordo? Onde está a vida que a morte me prometeu? Onde está ela, afinal? Toda a minha vida sonhei com alguém assim e, agora, nem sequer a consigo encontrar em mim! Num fôlego de desassossego, vejo-a acariciada por uma brisa que o bater de asas de um anjo criou. Oh, como o invejo, ele pode senti-la e levá-la ao paraíso! Eu, nem sequer a encontro no meu coração! — Disse. com profundo pesar. — Vais ter que encontrar essas respostas por ti mesmo. Quando isso acontecer, eu sei que vai acontecer, encontrar-te-ás a ti próprio e depois irás deixá-la entrar. Aí, vais conseguir encontrá-la, na tua própria alma. Xavier, em todas as trevas existe um raio de luz, em toda a luz existe uma névoa de trevas. Nada é perfeito, mas, para teres um pouco de felicidade, basta encontrares a luz de que precisas. Acredito que essa luz reside na Clarisse. Pernet ainda se lembrava do dia em que a conheceu, ou melhor, a viu pela primeira vez, ano e meio antes. Ele tinha ido a Viseu; foi dar um passeio no parque da cidade,



 

ver se conseguia pôr as ideias em ordem. Foi numa manhã de Inverno, envolta de um intenso nevoeiro, que ela invadiu os seus sonhos sem pedir licença. Viu-a, então, surgir dessa névoa misteriosa, como quem vê a maravilhosa aparição de um anjo, anjo que flutua, que caminha sem tocar o chão, que brilha com luz própria. O seu belo, longo e sedoso cabelo, castanho e ondulado, bailava ao capricho de uma leve brisa suave que parecia soprada por entre lábios divinos. O corpo dela, cheio de perfeição, movia-se com a suavidade com que uma garça voeira no céu azul, à medida que se aproximava mais e mais dele. Os seus olhos verde-esmeralda, angelicais, delicados como cristal fino, eram meigos e despertaram nele algo que só Deus poderia explicar. Fitou-a nos olhos e conseguiu ver-lhe a alma, cheia de alegrias, de inocência, de pureza, serenidade e meiguice, de perfeita harmonia, sem qualquer vestígio de malícia, enfim, um anjo. Sorria no mais caloroso sorrir da terra e do céu; os seus lábios gentis escondiam as pérolas mais luminosas e valiosas do mundo. Bastava um sorriso dela para deixar qualquer um numa loucura de paixão (ou luxúria), num pasmo de criança que se vê nos braços da sua mãe pela primeira vez e a contempla com carinho. Passou por ele com esse sorriso único, olhou-o com aqueles olhos misteriosos — dos quais ele desejou saber os segredos — e perturbadores, obrigando-o desejar perder-se neles. O corpo dela flutuava cada vez para mais longe. Aquele maldito nevoeiro reclamava-a para ele, roubava-a dos seu olhar e ela desapareceu mais veloz que aquela maravilhosa



  

aparição; evaporou repentinamente, dissolvida no meio da névoa. O corpo do rapaz estremeceu na lembrança de, talvez, nunca mais a vislumbrar. Sossegava seu espírito, mergulhado em vaga memória; queria apenas recordá-la. Realimentava sonhos entorpecidos, incapaz de a definir claramente, sabendo-a perdida entre a névoa. Viu-a uma vez, isso bastava-lhe. Que seriam dos seus sonhos sem ela? Um mês após a ter visto pela primeira vez conheceu-a num jantar de amigos, ficou ainda mais fascinado. Deram-se bem. Pedro fitava os olhos tristes do amigo, via nele a confusão instalada, dividido entre o passado e o presente, talvez até com medo do futuro. — Oh, Pedro, tenho todo este dinheiro e nenhuma paixão com quem o partilhar. Não porque não queira, mas porque não posso, não consigo; os medos do passado ainda me dominam e impedem.



 

Capítulo 6

— Um Passado Miserável — Com vinte e quatro anos, Xavier Pernet era já um dos homens mais ricos de Portugal, senão o mais rico. Dono de um vasto império hoteleiro, possuía-os de três, quatro e cinco estrelas, do norte ao sul do país. Era rico, deveras rico, vivia confortavelmente na sua luxuosa casa em Gouveia, perto da belíssima Serra da Estrela. No entanto, a maior parte da sua fortuna era investida em actos caridosos. Dava o mais que podia a instituições de caridade e solidariedade. Fundou, do seu bolso, uma obra a que chamou “Casa do Órfão”, sedeada na cidade de Castelo Branco. Quando abriu as portas procurou voluntários que cuidassem do prédio de seis andares que compunham a “Casa do Órfão”. Uns para cozinharem, outros para a limpeza e gestão e ainda mais para simplesmente darem companhia e carinho às cinquenta e seis crianças que a “casa” albergava, a serem para elas os pais que perderam ou que as abandonaram. Sim, quem é abandonado pelos pais também é órfão, assim pensava Pernet. Os voluntários que lá se aguentaram um mês foram



  

compensados com uma agradável surpresa. Devido à vontade que manifestaram em querer ajudar as crianças, Xavier decidiu retribuir-lhes a bondade. Os que ficaram, os verdadeiros homens e mulheres, a partir do primeiro mês, dava-lhes, de boa vontade, um salário duas vezes superior ao mínimo nacional e apenas prestavam voluntariado três dias por semana, quatro horas de cada vez; porém, a bondade não tem preço. A única coisa que Xavier Pernet pedia em troca era o sorriso das crianças: vê-las felizes e a brincar, alheias ainda ao mundo cruel que existia fora das paredes protectoras da “casa”. Desejava retardar ao máximo a, futura, dor das crianças inocentes que já haviam sofrido com a morte dos pais. Preocupava-se mais com elas do que consigo próprio, davam sentido à sua vida. Era rico, mas não necessariamente feliz. A única felicidade que conhecia era a que encontrava nos olhos brilhantes e vivos de contentamento dos pequenos, de cada vez que os ia visitar e ouvia deles um “obrigado” deveras sentido e sincero. Não o fazia por uma questão de aparência, mas sim porque o seu coração e espírito necessitavam de um pouco de paz; ele encontrava-a ao ajudá-las, nos seus sorrisos e na inocência do olhar. Para ele, a pouca felicidade que tinha era provocada pelos ecos dos risos que provinham dos seus meninos e meninas. Era necessário para a sua alma dar-lhes carinho e conforto; só assim conseguia sentir-se vivo. O espírito caridoso daquele verdadeiro homem manifestava-se na vontade sincera com que ajudava os seus pares; sem nunca pedir, ele dava. Aquilo era o mínimo das coisas boas que ele fazia. A sua filantropia estendia-se de norte a sul. Desejava abrir mais e mais “Casas do órfão”, queria chegar a todos. Por vezes, sentia-se



 

frustrado e desesperado por não o conseguir, porém não desistia, era a única coisa que lhe incutia vontade de viver: manter a sua promessa, honrar uma memória, homenagear o seu anjo, lembrar a sua irmã. Precisava mais das crianças do que, talvez, elas dele. Possivelmente sobreviveriam sem ele, mas sem elas ele não vivia. Procurava e encontrava nas crianças o sossego de espírito e alguma paz de alma que a vida teimosamente lhe continuava a negar. Todo o dinheiro que ele alguma vez pudesse vir a ter era insuficiente para lhe dar a paz que ele tanto ansiava e era ao dar que recebia um pouco do que procurava. Pernet era um belo homem, inevitavelmente cobiçado por mulheres. Umas desejavam-no pelo seu aspecto, outras mais interessadas pelo seu dinheiro e ainda outras por ambas as razões. O seu cabelo castanho-claro tinha, por vezes, quando nele incidia qualquer luz, uns traços dourados; penteado de forma elegante mas algo selvagem, com risco ao lado, era curto e liso. A sua testa altiva era reveladora de inteligência e sentimentalismo. Os olhos esverdeados eram verdadeiramente melancólicos. Os lábios finos e provocantes inflamavam desejo a mulheres que se perderiam num beijo seu pois pareciam doces, suaves e meigos. As mãos demoradas de dedos finos e alongados lembravam as de um artista, pintor ou pianista; tinham movimentos leves e ternos cujo simples toque era capaz de levar uma mulher ao êxtase, pareciam possuir o toque de Midas. Era alto e magro, com um corpo bem definido e tonificado, que lembrava o de um deus grego, capaz de rivalizar com Adónis e provavelmente de o envergonhar. O seu corpo era harmonioso, tão diferente e separado do seu espírito triste, destruído pela dor e sofri-



  

mento de um passado que em nada o poupou; tornando-o num homem inseguro, incapaz de se encontrar a si próprio, confuso; desprovido da capacidade de entender o sentido da vida, fechava-se em si mesmo, não se permitindo a sentimentos saborosos como o amor, a paixão ou alegria. Não tinha esperança de vir a encontrar a paz que ansiava, transformando-o num eterno descontente cheio de revolta contra o mundo em que habita, enclausurado em desespero e sofrimento que não conseguia evitar que lhe dominassem a alma saturada de medos. Achava-se um fraco, porém era mais forte do que alguma vez poderia imaginar; poucos corações suportariam um passado miserável e sofrido como fora o dele. Pernet era rico, porém acreditava ser um desgraçado. Todo o seu império, tudo o que tem, mereceu-o, pagou-o com o próprio sangue! O seu passado teimava em assombrar-lhe o presente, impedindo a felicidade de um futuro. A sua chegada à riqueza foi tudo menos feliz. Começou da maneira mais trágica e dolorosa possível: a morte de uma pessoa muito amada por ele! Aos dezasseis anos era um jovem adolescente normal como qualquer outro, alegre e brincalhão. Aos dezasseis a vida a que se habituara desmoronou-se, perdeu o seu anjo, a sua irmãzinha, a pequena Clara. Na altura ele vivia com os pais, numa casa modesta algures nos arredores da cidade. Não ganhavam mal, era suficiente para se sustentarem e terem algum conforto. Eram gente simples que levava uma vida normal. A sua mãe era uma senhora simpática, telefonista no hospital São. Teotónio. O seu pai era um homem algo rígido e severo mas que amava os filhos, amava o Xavier e a Clara, embora por vezes



 

não o soubesse demonstrar. Era servente na construção civil. A pequena Clara era tudo para o Xavier: a menina dos seus olhos, a sua irmãzinha querida, a sua alegria e razão de viver, o seu anjo. Ela tinha sete aninhos, era uma menina tão fofinha, com os seus expressivos olhos azuis e cristalinos, o seu cabelinho louro e fino, a carinha muito fofa e suave de tez branca e corada. Lembrava uma bonequinha frágil de porcelana. O seu corpinho pequeno e delicado necessitava da atenção que se dá a uma princesa. Toda ela era alegria e inocência. Por vezes tão sossegada que parecia nem ter vida, outras, pelo contrário, exprimia-se como um sopro inesgotável de energia e vivacidade, comum à curiosidade natural de uma criança tão jovem. Adorava o irmão mais velho; ele era o seu protector e por vezes fazia o papel de pai, mãe e irmão dedicado, tudo ao mesmo tempo. Davam-se com tal perfeição, apesar da diferença de idades. Raramente ou talvez nunca discutiam; de qualquer maneira, isso seria impensável para Xavier: não se levanta a voz a um ser tão frágil, tão inocente, tão cheia de meiguice. Xavier amava-a acima de tudo e de todos. Foi num dia quente de Agosto que ele a perdeu para sempre, que ele perdeu o seu anjo. Levou a sua irmãzinha ao parque da cidade, para que ela se pudesse divertir no parque infantil que lá existe e gozar da companhia de outras crianças da sua idade. Ele adorava vê-la rir-se enquanto brincava no baloiço que Xavier ia embalando. O parque Aquilino Ribeiro é um lugar verdadeiramente maravilhoso, um paraíso de verdes e castanhos e outras



  

cores resplandecentes de vida; cheio de carvalhos e tantas outras arvores que ofereciam a sua sombra aos namorados que lá se podem encontrar em manifestações de afecto e paixão, sentados nos bancos de jardim feitos de madeira e ferro que por lá se espalham. Um grande espaço verde e relvado fornece um óptimo local de repouso onde se pode lanchar e aproveitar as carícias do sol, olhando para um lago artificial, perto da velha capela. O parque fica à distância de uma estrada que a separa do edifício que se ergue à sua frente: a Escola Secundária Alves Martins, mais conhecida por liceu, e que conta a idade de cento e cinquenta anos. Os estudantes vão lá passar algum do seu tempo. Muitos têm que o atravessar de modo a alcançar a escola. Xavier não era excepção: conhecia bem aquele lugar e algumas das histórias que ele inspira, porém a sua foi, de longe, a mais trágica. Xavier observava o seu pequeno anjo a brincar alegremente com outras crianças de tenra idade, sempre sorridentes, decerto acompanhadas pelos pais que ali se encontravam e que aproveitavam o belo dia de sol para passear ou relaxar, dedicando algum do seu tempo aos filhos. As crianças brincavam, saltavam, sorriam, emitiam aqueles ligeiros gritinhos de alegria que contêm pingos leves de histerismo; os pais observavam-nos, babados. A pequena Clara deslizava pelo escorrega de metal o mais rápido que conseguia e Xavier recomendava-lhe, com natural preocupação: — Clarinha, não andes tão rápido! Ainda te aleijas! — Não te preocupes, mano! Já estou treinada! — Sossegou com aquela voz pura de anjo.



 

— Eu sei. Mas tem cuidado! — Está bem! Eu tenho — Assegurou com alegria no olhar. Uma senhora, já de considerável idade, passeava ali perto; tinha boa aparência, o cabelo branco e curto penteado elegantemente. Um rosto rugoso e deveras maquilhado de onde se impunham uns expressivos olhos claros e vítreos, um azul aquoso que quase se aproximava do branco, um olhar perturbador que parecia capaz de ler a alma de quem neles pasmava. Vestia um sobretudo preto com a grande gola feito do pêlo de algum animal sobre uma camisa branca com padrões rendados, uma saia preta cuja bainha dava pouco abaixo dos joelhos que se escondiam dentro de meias de lycra pretas. Estava aconchegada apesar do tempo quente que se fazia sentir. Movia-se vagarosamente apoiada numa bengala de madeira trabalhada a relevo com corpos esguios de animais. A pega curva parecia feita de marfim e ostentava a cabeça de uma águia; um pequeno taco de borracha na ponta que tocava o chão. Era segura com a trémula mão direita. Na esquerda transportava um saco de plástico branco. Nos dedos ósseos exibia alguns anéis de ouro; nas orelhas, brincos com uma pérola branca; um crucifi xo de ouro pendia de um fio de cabedal preto que quase lhe atrofiava a longas e severas rugas do pescoço. Ela passeava sorridente quando, nada o fazia prever, escorregou em algo e foi de encontro ao chão, de mãos e peito ferrados contra o pavimento, bem perto do recreio onde Clara brincava com as outras crianças. A bengala voou para um lado, o saco que carregava espalhou laranjas que iam rolando pelo chão numa aparente tentativa de fuga.



  

Toda a gente que assistiu àquele espectáculo de voo e aterragem desatou aos risinhos irritantes ou gargalhadas descontroladas de ligeira malícia e muita estupidez. Xavier tentava perceber a razão de tanto riso e comentário trocista; após olhar em volta viu a pobre desgraçada estendida no chão e não encontrou a piada, porém achou a revolta contra os que riam. Correu em seu auxílio, fê-lo enquanto os outros apenas riam com vontade não se mexendo para ir ver da velha. Chegou junto à senhora idosa e, agarrando-a pelo braço, ajudou-a a erguer-se. Enquanto ela sacudia alguma folhagem seca do casaco e esfregava as mãos esfoladas, Pernet foi reaver a bengala e devolveu-lha. — Obrigada, meu jovem! — Agradeceu com a voz trémula e transparente sem olhar para ele. Xavier pegou no saco e foi apanhar todas as laranjas que conseguiu encontrar e colocou-as de novo lá dentro. Aproximou-se da velha com a mão estendida e devolveu-lhe a fruta. — Tome. Não sei se estão todas. Só consegui encontrar estas. — Oh, obrigado, meu rapaz. És muito querido! — Agradeceu, elogiando-o com um acentuado sotaque francês. — Ora, de nada! — Assegurou com um sorriso meigo. A mulher ergueu os olhos que se fixaram nos de Xavier. A sua expressão agravou-se e ficou séria, abriu muito os olhos, como se assustada por algo. Ouvia-se o seu coração a palpitar mais pesadamente no momento breve de silêncio em que apenas se fitavam estranhamente.



 

Aquele olhar incomodou Xavier, nunca tinha visto olhos tão penetrantes como aqueles. Amedrontaram-no, perturbaram-no, provocaram suores frios e arrepios desconhecidos; o coração bateu mais forte e a sua respiração acelerou-se. Uma sensação desconfortável invadiu-lhe o corpo e o pensamento, não conseguindo fazer sentido dela. Os olhos da velha exprimiam um não sei quê de medonho, ao mesmo tempo triste e assustado. A velha quebrou o silêncio perguntando com sotaque francês: — Como te chamas, meu jovem? — Eu sou o Xavier Pernet! A senhora está bem? — Perguntou, num tom de voz trémula. As pessoas que lá se encontravam, bem como as que iam passando, ficaram a olhar para ambos, talvez pressentindo alguma coisa pesada no ar que respiravam e que se tornou mais grosso com um travo sufocante. Ficaram mais alguns segundos, imóveis, com o olhar fixo um no outro. Xavier parecia esperar por algo. Ela passou a bengala para a mão esquerda e ergueu a direita pousando-a ao de leve na face do jovem e disse, num tom triste, soturno e sombrio, com um ligeiro toque de reconforto no seu sotaque francês: — Meu pobre rapaz! Vejo nos teus olhos o que te espera. Vais ter que ser forte, vais ter que aguentar sempre mais um pouco. Nunca o faças, quando te surgir na alma, espera sempre pelo dia seguinte, não desistas da vida, mesmo quando pensares que ela desistiu de ti; serás recompensado. Oh, meu Deus! A culpa é minha! Aguenta, rapaz, e um dia serás feliz. Perdoa-me, Xavier! O teu destino começa agora!



  

Retirou suavemente a mão da cara dele, os olhos dela pareciam ter lágrimas prestes a correr. Afastou-se até se perder de vista. Xavier ainda ficou algum tempo estático no mesmo sítio, sem encontrar sentido algum para o que acabara de passar-se. O que queria ela dizer? Quem era aquela velha que tanto o perturbou? Eram as perguntas que lhe faiscavam os neurónios e que não tinham, ainda, resposta. O pasmo e espécie de transe em que ele se via, após ter ouvido um pedido de desculpas que não fazia sentido, foram interrompidos por sons perturbadores e aterradores. O chiar ensurdecedor de uns pneus que se imobilizaram, uma ruidosa pancada seca, um gritinho assustado e surpreendido, silêncio, depois muitos gritos de horror e, finalmente, novo silêncio. Xavier olhou à sua volta, confuso, olhou para os baloiços, para o escorrega. A Clara não se via, já não estava no parque. O seu coração acelerou-se ainda mais, parecia querer romper-lhe pelo tórax, a sua respiração ofegante e pesada parecendo que o ar se recusava a sair dos pulmões provocando um aperto ansioso e doloroso no peito. Foi invadido por um tremor que lhe percorreu o corpo dos pés à cabeça, uma tontura de confusão que o obrigou a fechar os olhos e levar as mãos à cabeça. Tudo isto lhe fulminou os sentidos num breve instante sem fim; depois apercebeu-se de que não via a sua irmãzinha em lugar algum. O seu corpo e espírito diziam-lhe que algo sucedera com a Clara. As pernas trémulas finalmente obedeceram-lhe e correu para fora do parque, passando pela grande fonte e galgando a escadaria de pedra. Um grupo de pessoas petrificadas en-



 

contravam-se aglomeradas e a fitarem seriamente o chão, uns com as mãos na boca, outras com elas na cabeça, algumas estavam mesmo a chorar perante aquela visão desoladora, junto à entrada principal do liceu. Xavier atravessou a estrada de paralelos, chegou junto da multidão imóvel e abriu caminho por entre elas com alguns empurrões. O seu cérebro demorou alguns segundos até assimilar o que via e considerar a imagem como real e transmitir os sentimentos ao coração. Xavier finalmente caiu em si, apercebeu-se da terrível verdade chocante. Clara jazia inanimada sobre a calçada salpicada de sangue, o seu corpo frágil já não se mexia, os seus olhos abertos já não brilhavam, o seu cabelo já não dançava. — É da família? — Perguntou alguém. — É a minha irmã! — Gritou. — Lamentamos muito, rapaz! Está morta! Xavier deixou-se cair de joelhos, sem força nas pernas, fulminado por aquela verdade. Pegou na menina com o seu vestidinho branco manchado de sangue, apertou-a contra o peito, chorando e gritando: — Não é verdade! Não pode estar morta! É a minha irmã, o meu anjo! Por favor, digam-me que é mentira! Que ela está a fingir! Que Deus não é assim tão cruel! — Lamento, ela… ela saltou para… não a vi… não consegui parar… eu… Oh, meu Deus, o que fui eu fazer? — Disse o condutor do carro que a atropelara, desatando a chorar, sentindo uma culpa enorme que o marcaria para o resto da vida. Não poderia ser evitado, foi assim, porque teve de ser, porque era o destino reservado ao Xavier. Ele não acreditava no destino, talvez por isso tenha sido tão cruel.



  

A bonequinha de porcelana era agora uma boneca de trapos, manchada de sangue, a roupinha rasgada, o cabelo sobre a face ensanguentada, mas um sorriso ainda existia nos lábios frios e sem cor. O corpinho frágil, partido, arranhado; os olhos sem brilho e sem vida; o frio das suas mãozinhas pequenas; tudo isso iria assombrar os pesadelos do rapaz; a imagem de um anjo caído, o seu anjo. A pequena foi a enterrar no cemitério da cidade. O dia estava enublado e ameaçava chover. Os pais do Xavier choravam e lamentavam a perda da filha enquanto o padre dizia palavras acerca da vida e do valor que a breve passagem da filha teve. A chuva caía levemente sobre as campas e pedras tumulares de mármore, pequenos pássaros voeiravam de volta para os seus ninhos em busca de abrigo e Xavier, que tristemente contemplava o céu, sentia o meigo bater das pingas frescas que lhe acariciavam o rosto pálido, à espera de um qualquer sinal de perdão. À espera que a morte viesse reclamar aquela vida que já não tinha sentido. As lágrimas jorravam dos olhos e corriam-lhe no rosto com vontade, lamentando-se, soluçando e gaiando pesadamente, sentindo que, juntamente com o seu anjo, ele também tinha morrido, já não queria viver mais, não merecia estar vivo. Eram os pensamentos que lhe cruzavam a alma pois acreditava que a culpa fora sua, só queria o perdão da irmã e dos pais — se alguma vez o perdoassem — para encontrar na morte a paz que jamais encontraria na vida. Então, foi inundado por um intenso sentimento de remorsos que lhe revolvia as entranhas; ele distraiu-se por um breve instante da irmã para ajudar uma velha desconhecida e por isso a Clara desaparecera



 

eternamente da sua vista, morta. Encontrava alguma tranquilidade, consciente de que a irmã teria querido que ele ajudasse a velha de qualquer maneira, pois foi a única das crianças presentes que não achou piada ao desajeitado tombo. Certa vez, em conversa com o irmão, ela revelou-lhe: — Sabes, mano, eu não tenho medo de morrer! — Ai não, Clara? Ainda bem! — Não tenho, porque sei que vou para o céu e vou brincar com os anjos pequenos. Sabes, eu era capaz de morrer por ti, depois tinha um lugar mais especial no céu. Há lugares assim para quem morre a ajudar alguém, eu sei. — Pois há, Clara, mas não vai ser preciso morrer por alguém de modo a ires para o céu. Tu já és um pequeno anjo, o teu lugar estará sempre à tua espera. Mas só daqui a muitos anos. Pernet não entendeu por que razão ela saíra do parque. Nunca tinha feito tal coisa; normalmente não se afastava muito do irmão. Com a morte da Clara, Xavier quase perdera a sanidade. Com ela morreu o seu coração, a sua alegria e vontade de viver, o seu espírito entorpeceu-se, já nada lhe fazia sentido. Como poderia Deus permitir tamanha crueldade? Não encontrou nele as forças nem a vontade de continuar os estudos. Abandonou a escola contra a vontade dos pais, mas já não aguentava, não conseguia pensar lucidamente, não valia a pena. Às vezes, estava nas aulas e desatava a chorar quando se lembra do seu anjo. Não conseguia estar fechado em nenhuma das salas, não suportava. Perdera a única pessoa que era tudo na sua vida, o mundo dele só era aturável porque ela existia nele; perdera o seu anjo, a sua



  

razão de sorrir e viver. O seu olhar, que antes era alegre, brilhante e cheio de vida, foi conquistado pela tristeza e falta de vontade; perdeu o brilho que, outrora, neles reluzia. Sabia que os pais o consideravam culpado pela morte da filha. Eles nunca lho disseram, mas via-o na forma com que, por vezes, o fitavam e na maneira fria como lhe falavam. Não perdera apenas a sua querida irmãzinha, perdera igualmente o amor dos pais. Para o seu coração já destrocado pela dor, a forma como os pais o tratavam feria-o um pouco mais. No entanto, nunca deixaram de o sustentar após abandonar a escola, mesmo sendo contra a vontade deles. Apesar de tudo, ainda era filho; podiam até culpá-lo pela morte da menina, mas isso não lhes dava o direito de o renegarem. Nos anos que se seguiram, o ambiente familiar desfez-se em gritos: os pais passavam a vida a discutir por razões tão estúpidas como ilógicas. Xavier raramente saía do quarto, quase sempre deitado sobre a cama a fitar, pasmado, o tecto; tentando impedir a imagem da irmã cheia de sangue que se lhe cravara no espírito; porém, era inevitável. Raramente ia ter com os amigos. Ainda não conseguira esquecer aquele dia. Estava fresco na sua memória e sentia tudo como se tivesse acontecido ontem. Nunca mais recuperaria; a saudade desesperada da sua irmãzinha era sufocante. Pensava constantemente no suicídio, consumido por um sentimento avassalador de culpa, mas ainda não o fizera para que o seu anjo não fosse esquecido, para que continuasse viva na sua memória. Pernet dava-se mal com os pais. Raramente falavam, mas ele amava-os na mesma. Afinal, sempre foram eles que lhe concederam o dom da vida.



 

Aos dezoito anos, outra desgraça abateu-se sobre ele, atirando-o impiedosamente para o fundo de um fosso sem fim. Xavier ouviu bater à porta do quarto haviam de ser cerca das oito e meia da manhã. Já estava acordado, tinha dormido pouco mais que duas horas, como era costume. Após a morte da irmã, tinha dificuldade em adormecer tranquilamente. — Pode entrar. — Disse com tom pouco convidativo e melancólico. A porta abriu-se e o pai espreitou lá para dentro, vendo o filho deitado e pasmado a olhar o tecto branco. Com voz severa e rude disse: — Eu e a tua mãe vamos até à praia da Barra. Se quiseres, também podes vir. — Não, não quero. Vou ficar aqui sossegado. — Como queiras. Sem mais palavra saiu, fechando a porta com um estrondo irritado, pouco animador. Os pais enfiaram-se no velho Ford Escort vermelho e arrancaram em direcção a Aveiro. Pernet detestava aqueles passeios familiares. Acabavam em discussão entre todos, fazendo com que ele se sentisse ainda mais miserável. A maior parte do tempo os pais ignoravam a sua presença, olhando-o como se fosse um fardo. Suportavam-no por uma qualquer obrigação. Odiava sentir-se daquela maneira, razão pela qual evitava aqueles passeios desanimadores. Para os pais era indiferente se ele fosse ou não. Aliás, sentiam-se melhor sem a presença dele, pois assim não tinham que recordar a falecida menina. Perderam a filha num acidente, mas perderam o filho porque



  

quiseram. Que falta de humanidade e de amor. Que estupidez! Deveriam ter sentido vergonha e pôr mãos na consciência, mas já não foram a tempo. Foi desígnio divino, castigo talvez. Xavier já se havia levantado, a meio da tarde e sem nada no estômago, os olhos raiados de sangue e pesadas olheiras negras provocadas por muitas noites sem dormir. Estava sentado no sofá a ver televisão, sentindo-se miserável por o seu anjo não estar sentado a seu lado. Olhava para as imagens mas não as via realmente, fechado em si próprio, com recordações da pequena. Sentia tanto a sua falta, a falta de um sorriso encorajador, da sua alegria contagiante, da sua vivacidade deslumbrante e das brincadeiras que partilhavam. A reflexão que o dominava foi interrompida pelo som da campainha. Era alguém que estava à porta. Levantou-se arrastando-se, foi abri-la, deparou-se com dois agentes da GNR barrigudos, um novo, outro já de meia-idade que disseram: — Boa tarde. O senhor é o Xavier Pernet? — Sou, sim! — Confirmou com ar espantado. — Isto é muito difícil para nós! Detestamos ser portadores de más notícias. — Disse o mais velho, fitando Xavier com compaixão. — Más notícias? — Perguntou o rapaz com um arrepio a subir-lhe a espinha. — Tenta manter-te calmo enquanto te conto isto, rapaz. — É importante que te mantenhas calmo e que ouças com muita atenção. — Disse o agente mais jovem. — Está bem! — Garantiu Xavier.



 

— Hoje, por volta das dez e um quarto, ocorreu um acidente na IP5 entre as saídas de Vouzela e São Pedro do Sul. Um camião carregado de móveis teve um furo num dos pneus dianteiros e o condutor perdeu o controlo do veículo, que veio a embater em vários automóveis que circulavam em sentido contrário. O Ford Escort vermelho registado em nome do teu pai foi um deles. Houve feridos… e outros. — Explicou o mais velho, com o bigode negro a agitar-se. — Ah, um acidente. Os meus pais tiveram um acidente. É isso? — Perguntou surpreendido. — Sim, Xavier. — Eles estão bem? — Perguntou sem ainda desconfiar da realidade. — Xavier, receio que não tenhas entendido. — Disse o mais novo. O agente mais velho gaiou profundamente e com um olhar triste de compaixão gaguejou: — Xavier… Os teus pais… A tua mãe e o teu pai… tiveram… eles… eles morreram, Xavier! O rapaz ficou a pasmar os dois agentes, surpreendido e chocado com a notícia. A tristeza, a dor e o sofrimento vieram bater-lhe à porta, multiplicando aquela que já sentia. Primeiro o seu anjo, agora os pais. Naquele momento, a sua vida alterou-se para sempre. Sentia-se culpado pela morte da irmã, agora sentia-se culpado de não ter feito um esforço para manter o resto daquela família unida. A morte roubou-lhe a possibilidade de dizer aos pais que os amava e isso persegui-lo-ia até ao fim da vida. O seu coração estalado acabava de partir. Perdera tudo: a alegria, o sorriso, a própria vontade de viver. Todos os que ele amava morreram



  

e acreditava ser o único culpado por essas mortes. A esperança abandonou-o. Não conseguia chorar a morte dos pais, embora o quisesse. Todas as suas lágrimas foram gastas com a Clara. Não encontrou em si a coragem de assistir ao enterro dos pais, a alguns metros da campa onde Clara jazia, no cemitério de Viseu. Xavier Pernet era um jovem que agora se encontrava sozinho no mundo, abandonado pela vida, sem rumo, sem esperança no futuro, um ser errante que vagueia perdido num céu negro sem estrelas que o guiem e que é visto como um pobre coitado de quem as pessoas apenas conseguem sentir pena. Rapidamente, o dinheiro que tinha posto de parte ao longo da infância e adolescência, oferecido pelos seus anos e que ganhou fazendo pequenos trabalhos, esgotou-se. Viu-se obrigado a vender a casa dos pais, mas que felizmente estava em seu nome, por um valor deveras baixo tal era a necessidade e o desespero. Com o lucro comprou um velho Renault 5 branco com traços de chapa enferrujada e que lhe servia de quarto. Costumava estacioná-lo no Fontelo e lá dormia, ou tentava, acompanhado pelo som dos pavões e de pássaros que chilreavam e faziam os seus ninhos nas árvores altas. Nas noites de Inverno custava tanto, era tão frio! Todo ele começou a deteriorar-se, o seu aspecto, a própria sanidade que o conduzia a um mundo crescente de incertezas, falta de fé e de crença num futuro benevolente; perdera a vontade de viver e a auto-estima. Deixou o cabelo crescer-lhe até aos ombros, desalinhado, sempre despenteado, muito seco e sujo; alguns



 

fios chegavam mesmo a partir-se, sendo atirados para longe com o vento. Os seus olhos sempre vermelhos e cansados, os lábios secos e gretados, as mãos e os dedos carregados de frieiras, barba que, por vezes, não via lâmina por um mês. Sempre que a achava mais pesada e incomodativa ia cortá-la à casa de banho de um qualquer posto de abastecimento. Depois, deixava-a crescer novamente. Um jovem bonito tinha agora o aspecto feio de um velho cansado. Viva assim uma existência errante, triste e miserável, sem sentido ou esperança. Sobrevivia ou talvez apenas se arrastasse pela lama que lhe fora atirada à cara por um destino cruel que lhe fora pouco benevolente. No entanto, e apesar de tudo, continuava vivo, agarrado a um qualquer fio invisível de uma força persistente que ninguém saberá qual é, nem mesmo ele. Às vezes, procurava conforto no fumo de um charro; de pouco lhe valia, pois não o encontrava, por mais que fumasse. Durante o dia ele tinha por hábito ir almoçar — a única refeição que tomava — ao Sports Bar, gastando o pouco dinheiro que ainda ia sobrando, mas tinha de comer. Habituara-se àquele bar, já o frequentava quando era aluno no liceu. Costumava lá ir com os amigos à hora do almoço para tomarem café e gozarem do convívio. No fim de um dia de aulas, lá se encontravam e tinham conversas normais de adolescentes, mas tudo isso mudara. O bar fica apenas a escassos metros do liceu, do outro lado da estrada, tocando a orla esquerda do parque da cidade, à esquerda de quem o via do liceu. Xavier entrou após as portas automáticas de vidro se abrirem de par em par. O lugar era todo dedicado aos des-



  

portos, como o próprio nome deixa antever. O chão era de um mosaico quadrado amarelo-torrado; sobre ele, várias mesas quadrangulares envoltas por quatro cadeiras de madeira. Os tampos eram de tábua, tinham vidros encaixilhados sobre elas e sob o qual se encontravam algumas imagens diversas alusivas ao desporto, desde o golf ao automobilismo. Existiam, também, algumas mesas redondas cercadas por seis cadeiras. Tantas televisões ali espalhadas nas paredes e nos pilares que se perdia a paciência para contá-las todas, tornando, assim, possível visioná-las de qualquer ponto onde se sentasse. Nas paredes, igualmente amarelas-torradas, estavam pendurados quadros com fotografias e recortes de antigos e já extintos jornais desportivos. Também se encontravam expositores de vidro com camisolas autografadas e com objectos antigos utilizados em certos desportos. Uma mota pendia do tecto, que era maioritariamente feito em blocos de cortiça pintados de branco e de onde espreitavam focos de luz que reluziam nos vidros das mesas o que, por vezes, ofuscava. Havia, também, uma mota pendurada sobre a entrada, do lado de fora. Podiam encontrar-se objectos desportivos, já antigos e ultrapassados, suspensos na parede, como esquis de ripa, chuteiras, sacos e luvas de boxe de couro castanho e desgastado, entre muitos outros. A parede do lado direito era feita de grandes placas de vidro que iam do chão ao tecto; dava vista para o parque. Entre os pilares que sustentavam o vidro, estava uma velha canoa de madeira e os seus dois remos, tangente ao tecto alto. A poucos passos da entrada e do lado esquerdo, uma escadaria dava para uma varanda superior, decorada de modo semelhante. Na parede paralela à escadaria contavam-se posters antigos dos



 

jogos olímpicos realizados em cidades diversas; sobre cada poster, um relógio de ponteiros, redondo e de fundo branco, cujos braços negros indicavam a hora do local a que o poster se referia. Mal Xavier passou a entrada, ouviu o que já se acostumara: — Olha, o vagabundo já chegou! — Disse a Vanessa, num cruel tom de desprezo, e depois riu-se. É claro que ouvir aquilo o deixava triste, porém tentava não dar muita importância. Xavier sentou-se só a uma mesa. Vanessa era a típica menina do papá, mimada até à exaustão, filha de pais endinheirados. O seu cabelo loiro, tão falso como ela, longo e liso e os seus olhos azuis faziam dela uma verdadeira convencida e achava-se superior aos outros. Era tão cheia de si, em dose exagerada. Tinha por costume sentar-se a uma mesa redonda, bem junta à entrada, com as suas três amigas. Não tinham nada de especial; sem personalidades próprias, deixavam-se influenciar pela manipulativa Vanessa. Ela era uma espécie de líder daquele grupo de quatro raparigas. Rondavam todas os dezasseis anos. Tinham por hábito e simples maldade troçar do pobre miserável. — Fogo, ele é tão feio! Mete medo! — Disse uma delas. — Parece um bicho-do-mato! — Observou outra. Uma mais tímida disse: — Oh, coitado. Não tem culpa de ser assim. Xavier ouvia-as, mas não ligava muito. Ele sabia bem quem e o que era: estava com um aspecto cansado e deslei-



  

xado, os olhos pesados e a barba de quinze dias; não estava com bom aspecto e sabia-o. Marisa foi atendê-lo: — Olá, Xavier. Então, vieste almoçar? — Olá! Sim. Olha, podias trazer-me um prego no prato. — Tudo bem. E um fino, não é? — Adiantou. — Sim, é isso. Marisa era empregada de mesa e trajava o uniforme do bar: camisola preta, calças pretas e um pequeno avental cor de laranja à volta da cintura. Ao longo do tempo travou uma ligeira amizade com a empregada de cabelo preto amarrado num rabo-de-cavalo e de olhos castanhos. Marisa afastou-se e efectuou o pedido à cozinha. Minutos depois, serviu-lhe o almoço. — Obrigado, Marisa. — De nada. — Disse com um sorriso simpático e foi atender gente que entrou e se sentou. — Olhem, o vagabundo tem dinheiro para comer! Andou a estacionar carros! Ou, se calhar, foge sem pagar! — Disse a cruel rapariga em voz alta para que toda a gente a pudesse ouvir. As outras riram-se. Não o deixaram comer sossegado, dirigindo-lhe aquelas piadas estúpidas: — E sabe usar faca e garfo! Muito bem, já está a aprender. Aquilo magoava-o, julgavam-no sem o conhecerem, alheias à cruel vida que se lhe impôs e que ele determinadamente suportava, mas continuou a comer sem se manifestar, sem descer ao nível delas e perder a sua dignidade. Acabou de almoçar e esperava a chegada da sua amiga para juntos tomarem café. As quatro raparigas murmura-



 

vam qualquer coisa e depois riam-se; ele não conseguia ouvir o que diziam, mas era, sem dúvida, sobre ele. Estava um dia quente. Xavier trazia vestida uma t-shirt verde-escuro, crivada de pequenos buracos, calças de bombazina pretas, já rafadas e rasgadas nos joelhos e a bainha desfiada que não escondia por completo os ténis azuis, que mais pareciam pretos, rotos e com a sola já quase toda gasta; entrava a humidade, não tinha meias. O seu aspecto era extremamente miserável e susceptível de dó. A porta de vidro abriu-se. Uma rapariga muito bonita entrou. Tinha cabelo preto, sedoso e longo, olhos grandes e castanhos, rosto moreno, lábios carnudos e sensuais. Vestia umas calças de ganga, uns ténis brancos e uma camisola de alças, preta, que ficava justo aos contornos acentuados do corpo magro e alto. A moça dirigiu-se à mesa de Xavier, puxou uma cadeira e sentou-se. Tinha a mesma idade do rapaz: vinte anos. — Olá, Xavier, estás bom? — Perguntou sorridente. — Olá, Mónica. Vou indo. Umas vezes bem, outras mal. Como sempre! — Respondeu, retribuindo o sorriso caloroso. Mónica era uma amiga dos tempos do liceu, a única com a qual manteve contacto, a única pessoa amiga que lhe restava. Ela era simpática e estava, quase sempre, a sorrir. Encontravam-se lá muitas vezes. — Então, já almoçaste? — Já. — Então vou pedir os cafés. Mónica chamou Marisa. Ela foi à mesa e disse: — Então, Mónica, tudo bem?



  

— Está tudo. Olha, traz dois cafés. — É para já. Virou costas e foi buscar os cafés. — Pareces mais animado hoje, não é? — Perguntou com ligeira preocupação. — Estou! Mas não sei porquê! — Soluçou. Marisa voltou, trazendo os cafés que fumegavam, pousando-os sobre o vidro. Ambos abriram o pacote de açúcar e despejaram-no na chávena, pegaram na colher e agitaram o café, dissolvendo por completo o açúcar. — Olha, vou-te cravar um cigarro. — Disse Xavier. — Estás à-vontade. Xavier retirou um cigarro do maço de Marlboro e acendeu-o com o isqueiro branco que Mónica pousara sobre a mesa; deu um travo, expeliu o fumo e bebeu o café. Mónica fez o mesmo. Xavier ficou alguns segundos a pasmar o fundo da chávena vazia sem saber porquê, não pensando em nada, com a mente vazia. O silêncio entre os dois era estranho e foi interrompido pela rapariga quando perguntou: — Posso dizer-te uma coisa? Xavier levantou a cabeça e olhou-a: — Claro que podes! — Acho que estás assim porque queres! Aquela afirmação foi uma surpresa. Era completamente inesperada e Xavier estacou longos segundos até raciocinar e entender o sentido das palavras. Finalmente conseguiu dizer: — O quê?! Achas que alguém quer viver assim? Julgas que estou triste porque quero? Que sou um miserável



 

porque quero? Não me foi dado a escolher. Ninguém me perguntou se era assim que eu queria viver. Fui forçado. A vida não sorri para mim. Não estou assim porque quero… Estás tão enganada. — Pára de sentires pena de ti próprio! O teu problema é que não tens força de vontade para lutares nem para viver. Vê lá se te esforças um bocadinho. Xavier ficou deveras surpreendido com a amiga; não conhecia aquela sua faceta. Normalmente, era tão compreensiva e doce. Ele não entendia o que se passava com ela. — Tu tens consciência do que estás a dizer? Não me parece que faças a mínima ideia do que isto é! Não podes pedir a alguém que esteja cheia de febre e a vomitar para que baixe a febre e pare de vomitar, não cabe na cabeça de ninguém. São coisas que não controlamos, tal como eu não consigo controlar o que sinto, o que penso, o que vejo, o que me vai na alma ou até a dor que me aperta o coração e me faz suspirar. É impossível controlar ou impedir estas coisas. Entendes o que quero dizer? — Anda lá, tu não tens é vontade de fazer coisa alguma. — Vontade?! Vou-te falar de força de vontade! Eu tenho mais do que tu pensas! Não imaginas o esforço que é apenas manter-me vivo e aguentar alguma sanidade, não pensar em coisas más. Chego à noite completamente esgotado e sem forças para mais nada. — Explicou, ligeiramente alterado. — Até parece que estares vivo é um sacrifício tão cansativo que não aguentas. — É! Mais do que possas imaginar! Às vezes, quando estou a conduzir, vejo o muro de uma casa que fica numa curva e penso: “Seria tão fácil enfaixar-me nele! Acabava tudo.”



  

Não imaginas o esforço e a força de vontade que preciso de ter para conseguir virar o volante e evitar esborrachar-me contra o muro! Espero, sinceramente, do fundo do que sou, que nunca venhas a sentir o que eu sinto. É muito doloroso. — Eles já morreram há muito tempo. Está na hora de os esquecer e seguir em frente. — Como te atreves a dizer uma coisa dessas?! Vê-se logo que nunca passaste pelo mesmo. Eu amava-os e preciso recordá-los! Que raio de amiga diz isso?! — Tu é que és um cobarde! — Gritou. — O quê?! É preciso muito mais coragem para viver e recordar do que para morrer! Não deves ter consciência do que estás a dizer. Não tens o direito de me julgar dessa maneira! E eu não consigo estar com alguém que julga conhecer-me, mas que não faz a mínima ideia de quem sou. — Explicou, subindo um pouco o tom de voz. Xavier levantou-se repentinamente e apagou furiosamente o cigarro no cinzeiro. — Onde vais, Xavier? — Perguntou ela, irritada. — Não me vires as costas. — O que é que isso interessa? Vou-me embora! Não te quero ouvir mais! — Gritou. Enquanto Xavier se dirigia à caixa para pagar, Vanessa disse num tom sarcástico: — Olha, coitado do vagabundo, está chateado e vai embora! Que pena! — Logo agora que não fazia cá falta nenhuma! Já viram! — Disse uma delas friamente. Xavier saiu, sentindo-se magoado e desesperado. Aquela não era a Mónica que ele conhecia. O pobre rapaz estava tão confuso, já não sabia o que pensar da amiga.



 

Mónica ficou estática ao vê-lo desaparecer por entre o arvoredo do parque. Continuou sentada ainda durante largos minutos, fumou um cigarro, depois enfiou o maço na carteira preta e levantou-se, foi à caixa. Xavier já tinha pago tudo. Dirigiu-se à saída mas deteve-se ao ouvir Vanessa: — Olha, desculpa lá, aquele gajo é teu namorado? — Não! — Respondeu secamente. — É que, às vezes, vejo-vos aí juntos e pensei. Mas ainda bem. Ele é tão feio! Olha, senta-te aqui ao pé de nós. — Convidou. Aceitou o convite, puxou de uma cadeira e sentou-se ao lado da Vanessa. — Ele era o rapaz mais giro que já conheci. Somos apenas amigos. — Explicou. — Eu estava a ouvir a conversa e, desculpa que te diga, mas um amigo não te ia falar assim. A víbora deitava as suas palavras envenenadas aos ouvidos da Mónica. — Oh, ele não tem culpa! Eu sei que fui dura com ele. Não devia ter dito o que disse. Mas só o queria ajudar. — Cá para mim, ele só gosta de ti quando lhe dás apoio. Agora que foste mais dura com ele, chateou-se. — Eu também lhe disse coisas que não devia. — Não vês que só se está a aproveitar de ti para descarregar a raiva que sente por ele próprio? — Não sei! — Disse confusa. — Olha, eu tenho a certeza. — Garantiu Vanessa com os olhos bem abertos. — Tentas ajudá-lo e ainda te trata mal. Grande amigo! — Disse uma delas.



  

— Ele não merece a tua amizade — Afirmou a víbora. — Não vale a pena manter uma amizade quando apenas um faz o esforço para não a perder. — Disse outra das amigas. Mónica ficou parada, com um ar pensativo e introspectivo e, por fim, tristemente, cedeu e concordou: — Pois é! Têm razão. Ele não merece que me preocupe com ele. Afinal, estou a perder o meu tempo, nunca há-de vir a ser alguém. Não quer saber. Não preciso dele para nada, ele é que precisa de mim. — É assim mesmo! Nunca passará de um miserável vagabundo. É feio e mal cuidado, ninguém o quer assim! Não vale nada! O melhor é mesmo esquecê-lo, fazer de contas que não existe, ignorá-lo antes que ele te arraste pelo chão e te torne numa triste miserável igual a ele. Desliga-te daquela aberração, antes que seja tarde! — Disse Vanessa, cuspindo o seu veneno por entre os dentes afiados. — Obrigado, vocês fizeram-me ver a realidade, abriram-me os olhos. A partir de agora vou ignorá-lo. Já não existe Xavier Pernet para mim. Mónica acabava de trair a confiança de um bom e verdadeiro amigo, apenas porque este se encontrava numa fase menos boa da vida; não estava mais para suportá-lo ou ajudá-lo. Simplesmente, fartou-se. Desistiu dele, da amizade que os unia. Ela o fez, não ele. Abandonou-o quando ele mais precisava do seu apoio e de uma palavra amiga; influenciada por palavras envenenadas e manipulativas de uma rapariga insensível e cruel, que goza com o azar dos outros porque nunca o teve. Era uma nojenta e Mónica aca-



 

bava de se juntar a elas. É verdade que tentou ajudá-lo, puxando por ele, mas não foi capaz de perceber que era a maneira errada de o fazer. Como é possível a existência de gentinha sem coração como o grupinho da detestável Vanessa? As cinco lá ficaram o resto da tarde, a falar mal de uma pobre alma perdida cuja existência era um universo de dor e sofrimento. Quem eram elas para o julgar? As nojentas! A noite arrefecera. Xavier estacionara o carro no Fontelo, escondido entre duas árvores, algures por detrás do jardim infantil Nossa Senhora de Fátima, o mais fora de vista possível. Tremia de frio, enrolado em posição fetal no banco de trás do velho carro; a manta de tecido fino com que tentava cobrir-se era insuficiente para aquecer o seu corpo gelado, já a ficar roxo e com as mãos tão geladas que já tinha dificuldade em movimentá-las; via o vapor da sua respiração a dançar-lhe diante dos olhos vermelhos. Lembrava-se da discussão com a Mónica, não tentava fazer sentido nas palavras que foram trocadas. Apenas se sentia arrependido da sua reacção tempestuosa. Então decidiu que no dia seguinte pediria desculpa à sua única amiga. Ela magoara-o muito, mas pediria desculpa, estava disposto a esquecer pois não queria perder aquela amizade por um acontecimento que ele até considerava trivial, mas pediria desculpa, perdoava e esquecia. Não conseguiu dormir nada a noite toda por causa do frio e a pensar no sucedido. Seriam já três horas da tarde do dia seguinte quando Xavier transpôs as portas do Sports Bar. Recebeu o habitual cumprimento da Vanessa:



  

— Olá, vagabundo! Não ligou a mínima importância. Estava mais preocupado em fazer as pazes com a sua amiga. Aquelas quatro víboras passavam lá a vida, sempre sentadas no mesmo lugar, à mesa redonda perto da entrada. Xavier sentou-se num lugar qualquer virado para a entrada, defronte ao ninho das cobras que, de vez em vez, olhavam para ele, murmuravam qualquer besteira e depois desatavam às gargalhadas. — Olá, Xavier. Vais querer alguma coisa? — Perguntou simpaticamente a Marisa. — Olá, traz-me só um café. — Pediu. Xavier não sentia fome, apenas um aperto de ânsia no estômago enquanto esperava ver a Mónica passar a entrada. Entretanto, o seu café chegou; bebeu-o e aguardou mais um pouco a chegada da amiga, cada vez mais ansioso. Dez minutos depois, Mónica transpôs a entrada. Xavier viu-a e olhou-a com um sorriso, contente por ela ter vindo, animado com a ideia de se desculpar com ela. Porém, o seu sorriso carinhoso depressa se dissolveu em tristeza. Mónica apenas olhou para ele de relance, ignorando-o; sentou-se à mesa com as suas novas amigas. Elas olharam para ele e, em voz alta, num tom sarcástico, Vanessa disse: — Olha! Coitadinho do vagabundo, ficou triste! A amiga já não gosta dele! Todas se riram às gargalhadas insensíveis que ecoaram pelo bar, quase cheio de gente. Vanessa fitou-o com um olhar perverso e um sorriso malicioso, como se tivesse acabado de conquistar alguma vitória. Dir-se-ia que fez tudo de propósito, desde o momento que convidou Mónica



 

a sentar-se ali, em que obteve o gozo máximo que ela pretendia. Xavier ergueu-se com um salto, deveras surpreendido e confuso com o que acabava de acontecer. Saiu a correr, esquecendo-se de pagar. Fora ali com o intuito de pedir perdão à amiga e esta, simplesmente, lhe virou a cara, como se não o conhecesse. Entrou no parque e deixou-se cair sobre o primeiro banco que encontrou, com os cotovelos apoiados sobre os joelhos e a cabeça enfiada entre as mãos. Ele não conseguia acreditar no que aconteceu, não percebia por que razão a amiga teve aquela atitude, mas culpava-se. Ficou desolado, desesperado, sem saber o que fazer. Agora não tinha ninguém na sua vida, perdeu o seu anjo, os pais e, agora, a única amiga que lhe restava. Ele acreditava ser o culpado do seu azar. Pobre rapaz! Minutos depois, um cigano de mau aspecto abordou-o: — Então, amigo? Estás em baixo? Queres comprar ganza? Eu tenho aqui, é da boa! Xavier levantou a cabeça e encarou o cigano que lhe tentava vender droga. — Não, hoje não quero comprar. Ainda tenho. Amanhã. — Então e uma arma? — Uma arma?! — Disse parecendo deveras interessado. — Sim, é um revolver, quase novo e está carregado. Vendo-te por quarenta euros. — Deixa ver! — Pediu. O cigano tirou a arma do bolso e mostrou-a ao Xavier. Ficou a examiná-la com os olhos bem abertos e um pensa-



  

mento disparou-lhe na mente, tocando-lhe a alma; pensou no suicídio. — É boa! — Garantiu o cigano. — Fico com ela. — Disse, sem pensar duas vezes. Levantou-se, deu o dinheiro e recebeu o pequeno revolver em troca. Enfiou-o no bolso que se avolumou. O cigano afastou-se, todo contente, sem dizer mais uma única palavra. Xavier voltou a sentar-se. Acariciava a arma com a mão no bolso, como se ela fosse a sua nova amiga. Apenas um pensamento lhe enchia a alma e o coração: o suicídio! Pouco faltava para a meia-noite e Xavier encontrava-se no Fontelo, ajoelhado frente ao lago dos patos. Rodava a arma nas mãos, fitando-a seriamente e com ar decidido. Um pato grasnou, Xavier olhou para ele; estava à sua frente, atrás da cerca. — Apesar de estares ai preso, és mais livre que eu; até tu tens uma vida melhor que a minha. Puxou a culatra do revólver atrás, olhou em volta, não viu ninguém; segurando-o na mão direita, pressionou o cano contra a cabeça, fechou os olhos. O seu dedo já fazia leve pressão sobre o gatilho quando, surpreendido por uma voz, se deteve. — O que pensas que estás a fazer? O coração do rapaz acelerou-se com a surpresa. Ele tinha a certeza de que não viu ninguém por perto. Segundos depois, e com a voz trémula, referiu o evidente: — Não vês?! Vou-me matar! — Disse, abrindo os olhos sem desviar a arma. — Se te matares, juro que nunca mais falo contigo. — Disse a voz calma.



 

Xavier virou o olhar em direcção à voz, à sua direita. Desviou o cano apontado à sua cabeça e baixou o braço. O homem que lhe falava era alto, tinha cabelo grisalho que lhe tocava os ombros. Vestia um fato de treino branco. Tinha um aspecto simpático, calmo, sereno e harmonioso. — Por que queres morrer? — Perguntou. — Já não quero viver! — Não queres viver porquê? — Porque já não vale a pena! Todos os que amei, perdi-os. Morreram ou abandonaram-me. E o pior é que sei ser minha a culpa. Estou sozinho, não tenho ninguém, é por isso. — Meu rapaz, tu não és responsável pela vida dos outros, muito menos pelas suas escolhas; essa responsabilidade cabe a alguém superior a ti. Não tens esse poder. Dizes que não vale a pena viver, mas querer morrer não faz sentido. — Eu já não consigo suportar a vida. Ela abandonou-me, não eu a ela! Eu não vivo, nem sequer sobrevivo, apenas me arrasto na lama. Sou como a merda que se ignora. E já chega de viver assim. — Concordo, já chega de viveres assim, mas, ouve-me bem e acredita, pois só conheço a verdade. Sobreviveste até agora, de um dia para outro, um dia de cada vez. Por ti próprio, por mais ninguém. Faz-te um favor e arrasta-te mais uma vez, arrasta-te até amanhã. Garanto-te que não viverás mais assim, não imaginas quem serás. Se, depois, ainda achares que não vale a pena… mata-te! Mas espera pelo amanhã. — Mas… Quem és tu? — Perguntou confuso. — Dá-me a arma! — Ordenou estendendo a mão.



  

Xavier ergueu-se, ficando cara a cara com o desconhecido. Sem saber porquê, fez o que ele pediu e entregou-lhe o revólver. O homem sorriu e disse: — Amanhã, Xavier. Amanhã! Depois, desapareceu por entre o mato, envolvido de escuridão. Xavier ficou lá mais alguns minutos, de pé, pasmado no nada, confuso e incrédulo com o que acontecera. Aquela pessoa estranha que surgiu da noite salvara-lhe a vida. Pouco depois, Xavier enfiou-se no banco de trás do carro, cobriu-se e tentou adormecer, mas a palavra “amanhã” ocupava-lhe o pensamento, bem como a incompreensão de como aquele desconhecido sabia o seu nome. Não encontrou respostas. Por fim, lá adormeceu. Eram cerca das dez e um quarto da manhã quando Xavier entrou no Sports Bar. Não era normal ir tão cedo, mas uma força desconhecida o levou a fazê-lo. Enquanto se sentava, de costas viradas para a entrada, Marisa aproximou-se e disse: — Bom dia, Xavier! Hoje vieste cedo. Queres pequeno-almoço? — Olá, Marisa. Não, traz-me só um café. — Pediu. Daquela vez não recebeu os habituais cumprimentos cruéis, pois Vanessa e as suas amigas não estavam lá; decerto estariam nas aulas. Marisa trouxe-lhe o café. Ele pediu-lhe um cigarro, ela deu lho, tomou o café e fumou o cigarro. Depois ficou pasmado a olhar para nada, simplesmente à espera, porém não sabia de quê. Só lá estavam mais dois grupinhos de amigos que conversavam e tomavam o pequeno-almoço, antes de irem para as aulas.



 

Um homem de fato entrou no bar, olhou em volta. Trazia uma pasta preta na mão. Viu Marisa e dirigiu-se a ela. — Bom dia. — Disse. — Sabe dizer-me onde o Xavier Pernet se encontra? — Bom dia. É aquele que está ali sozinho. — Disse, indicando o pobre rapaz. — Ah! Já o vi. Obrigado, menina. O homem dirigiu-se à mesa do Xavier, puxou uma cadeira e sentou-se, dizendo em alívio: — Até que enfim que te encontro! Já te procuro há mais de uma semana! — Quem é o senhor?! — Perguntou surpreendido. — Peço desculpa! Chamo-me Alvim, sou advogado. — Apresentou-se, esticando a mão e cumprimentando o jovem. Alvim era um homem com boa apresentação. O cabelo espesso e penteado com risco ao lado já começava a ficar grisalho junto às têmporas. Olhos escuros, mas honestos. Encorpado, de ombros largos, vestia um fato cinzento com camisa branca e gravata preta. Tinha um ar simpático e o seu sorriso galante inspirava confiança. — Advogado?! O que é que me quer? — Perguntou sem ter ideia do que o esperava. — Trago-lhe boas notícias! — Revelou o homem a sorrir. — Ai é?! Boas notícias? Isso ainda existe? — Perguntou num tom ligeiro de sarcasmo. Alvim sorriu. Pousou a pasta preta sobre a mesa e abrindo-a. Retirou dela uma folha de papel que fitou por alguns segundos. Xavier mirava-o, desconfiado. — O senhor conheceu a condessa Josephine DesChamp? — Perguntou, olhando seriamente para ele.



  

— Nunca ouvi falar! — Respondeu, confuso com a pergunta, semicerrando os olhos com ar indignado. — Pois parece que a senhora o conhecia a si. — Não estou a perceber! — A condessa DesChamp é francesa, veio para Portugal após a morte do marido, não tinha filhos. Eu sou o advogado dela. Morreu há quase duas semanas, mas sem deixar herdeiros à sua fortuna. Dias antes de falecer, como último pedido, encarregou-me de procurar o rapaz simpático que a ajudara a erguer-se quando sofreu uma queda no parque Aquilino Ribeiro, aqui ao lado, o único dos espectadores que não se riu a que a ajudou. Um rapaz que dava pelo nome de Xavier Pernet e cuja irmã morreu atropelada nesse mesmo dia, poucos minutos depois de ajudar a senhora. Você é o Xavier Pernet? Não estou enganado? — Não, não está, é tudo verdade — Disse tristemente. —. Mas não entendo por que razão mandou procurar-me. — Pelo simples facto de que ficou comovida. De certa forma, achou-se culpada pela morte da sua irmã. Se você não a tivesse ajudado talvez a pequena ainda estivesse viva. A culpa não lhe abandonava o coração, sabia que nada pode compensar a morte de alguém amado, ainda menos a de uma criança pequena. Achou mister à sua paz de alma ajudá-lo a si, dar-lhe um pequeno conforto, razão pela qual o seu nome é o único a constar no testamento que me confiou. — Explicou, comovido com as suas próprias palavras. — Testamento?! Mas que… Não estou a perceber. — Xavier, a condessa era muito rica. Deixou-lhe toda a sua fortuna, fê-lo em consciência, procurando alguma paz na morte. Xavier, você está rico!



 

— Estou o quê?! Mas… não… não pode ser verdade, é gozo! Você está a brincar comigo, está a ser cruel. Quem lhe pediu para fazer esta brincadeira? — Disse, confuso, deveras confuso. — Não estou, Xavier! É verdade, veja. — Garantiu entregando-lhe a folha que segurava nas mãos. Xavier agarrou o testamento e leu-o, espantado, incrédulo, com os olhos bem abertos. O coração palpitava-lhe forte no peito ao ver que, afinal, o que lhe disse Alvim era muito verdade. Ele gaiou levemente dizendo: — Meu Deus! O meu anjo tem o seu lugar especial no céu, de lá olha por mim! — Como disse? — Perguntou Alvim, não ouvindo as palavras do jovem. — Nada, nada! É difícil acreditar, no entanto vi o testamento. — Acredita, Xavier, é muito real. A vida de Pernet acabava de mudar radicalmente; de um pobre vagabundo roto passara a príncipe rico. Custou a refazer-se daquela inegável verdade. O seu corpo ainda tremia de surpresa e, estupefacção!, quando Alvim disse: — Vamos, Xavier, vamos sair daqui e fazer de ti um homem rico. Xavier devolveu o testamento ao advogado que o guardou novamente na pasta. Levantaram-se. O homem pagou o café do rapaz. Marisa ficou pasmada a vê-los sair juntos, alheia ao que acabava de acontecer ao miserável, que deixara de o ser em poucos minutos. Almoçaram no Solar Verde Gaio (onde o receberam bem, apesar do seu aspecto) e o resto da tarde foi passa-



  

da num barbeiro, onde Xavier recebeu um corte de cabelo fazendo-lhe uma hidratação para tirar aquele aspecto empastado; lá desfizeram a sua barba grossa de quinze dias, ficando com a pele macia e radiosa. Depois, visitaram várias lojas de roupa para homem e Alvim acabou por pagar um fato da sua escolha ao novo-rico. Nessa noite, Xavier dormiria no hotel Monte Belo. Alvim havia-lhe reservado um quarto. Depois teve que ir ao Porto tratar de outros assuntos. Combinou com Xavier encontrarem-se no hotel às seis da tarde do dia seguinte. Pela primeira vez em dois anos, o pobre rapaz dormiu numa cama confortável ao invés do banco de trás de um carro gelado. Deitou-se na cama, cobrindo-se até ao queixo com os lençóis brancos que exalavam um agradável odor fresco e de lavado. Ajeitou a fofa almofada e inspirou fundo o cheiro suave dos lençóis. Confortável, aconchegado e quente, adormeceu rápido e sem dificuldade. Uma vida nova, uma vida de sonho aguardava-o. Era cerca do meio-dia quando um belíssimo rapaz transpôs as portas de vidro do Sports Bar. Os olhares femininos colaram-se àquele deus grego que chegava do Olimpo para regalar as vistas das raparigas que viam nele feições extremamente agradáveis. Os olhares seguiram-no até se sentar só a uma mesa. Xavier estava com um aspecto deveras agradável e apresentável, bem diferente do dia anterior. O fato cinzento-claro que vestia sobre uma camisa branca, adornada na gola com uma gravata, igualmente cinzenta, davam-lhe um ar galanteador. Os olhos vermelhos e as olheiras roxas tornaram-se quase imperceptíveis após a noite bem dormida. O seu cabelo lavado e sedoso, a sua barba desfeita foram



 

o suficiente para lhe transformar o aspecto desleixado num outro completamente oposto, muito galante e atraente. Vanessa e as amigas estavam lá, sempre à mesma mesa redonda. Admiravam a sua beleza e a víbora disse: — Aquele gajo é todo bom! Nunca o tinha visto por aqui. — Podes crer, é lindo! — Disse uma. — E aquele corpo? Que sonho! — Disse outra. — Tenho de saber quem é! — Decidiu Vanessa. Rasgou uma folha do seu caderno de capa preta, pegou numa caneta e nele escreveu. Chamou a Marisa e, quando esta se aproximou, disse: — Olha, faz-me um favor: entrega isto àquele bonitão. Marisa pegou no papel e foi atender o belo desconhecido. — Boa tarde. Vai querer alguma coisa? — Olá, Marisa. Queria um prego no prato. E um fino. A rapariga pareceu surpreendida por ele saber o seu nome. Depois lembrou-se que o exibia num crachá que trazia ao peito e não fez caso. Xavier sorriu ao aperceber-se de que ela não o reconhecera. — Peço desculpa. Aquela rapariga loira pediu-me para lhe dar isto — Disse ela, apontando para Vanessa, e entregou-lhe a folha dobrada. — Obrigado. — Disse. E Marisa foi atender outros clientes. Era hora do almoço, havia muita gente no bar e Marisa via-se em dificuldade, mesmo estando lá outros dois empregados.



  

Xavier desdobrou o papel e leu-o: “Acho-te muito giro! Não te queres vir sentar ao pé de nós? Não mordemos! Como te chamas? Vá, vem lá, estamos muito interessadas em conhecer-te melhor. Olha que sou muito simpática.” Xavier olhou para elas e sorriu; ficaram todas contentes. Tirou uma caneta do bolso da camisa, virou a folha, escreveu qualquer coisa no verso e voltou a dobrá-la. Entretanto, Marisa trouxe-lhe o almoço e ele aproveitou para pedir: — Já agora, não te importas de devolver isto à Vanessa. — Não, não me importo — Disse, surpreendida por saber o nome da loira. Se calhar estava no bilhete, pensou ela. Pegou no papel e deu-o à Vanessa que sorriu ao recebê-lo. Mas o sorriso depressa se desvaneceu ao lê-lo: “Achas-me giro?! Antes chamavas-me feio. Tu és tudo menos simpática. Nunca quiseste saber se as tuas palavras me magoavam e agora queres conhecer-me?! És realmente cínica! Pensas que por vestir um fato, cortar e pentear o cabelo, desfazer a barba e tomar um banho faz de mim uma pessoa diferente? Não faz! Continuo a ser eu, o mesmo, sempre. Queres saber o meu nome?! Mas já sabes, foste tu quem mo deu! Para ti vou ser sempre aquele miserável com quem tu gozavas. Vou ser sempre o feio Vagabundo.” Vanessa amarrotou o papel e saiu do bar a correr, envergonhada, para espanto das amigas que não perceberam o porquê daquela reacção. Xavier almoçou serenamente. De vez em quando, olhares de luxúria chegavam até ele. Esperou ver Mónica,



 

mas ela não apareceu. Levantou-se e pediu a um grupo de amigas se lhe dispensavam uma folha. Uma rapariga simpática arrancou uma do caderno e deu-lha sorrindo, corando ligeiramente. Ele agradeceu e voltou ao seu lugar, estendeu a folha sobre a mesa, pegou na caneta e escreveu: “Éramos bons amigos, eras a minha única amiga e aconteceu o que mais temia: perdi-te. Ou, talvez, perdemo-nos, mas sei que a culpa foi minha. Apesar de tudo, o que passámos juntos, de todas as nossas conversas e todo o apoio que me deste, acabei por te afastar; é do que, neste momento, mais me arrependo e que me dá um aperto no coração. Apesar de teres traído a confiança que tinha em ti, vou recordar sempre a amizade que me deste. Nunca esquecerei o que fizeste por mim e, daqui a muitos anos, quando já for um velho e estiver numa cama prestes a morrer, um dos meus últimos pensamentos irá para a pessoa que, outrora, foi a minha melhor amiga.” Acabou de escrever, dobrou o papel, ergueu-se e foi pagar. Depois, fez um último pedido à simpática Marisa: — Faz-me um favor: juro que não te peço mais nenhum. Sabes quem é a Mónica? Costuma, agora, estar com a Vanessa. — Não tem problema. Sim, conheço a Mónica. — Quando a voltares a ver, dá-lhe isto, por favor. — Está bem! — Disse, agarrando o papel que Xavier lhe confiou. Ele já ia a meio da saída quando Marisa se lembrou de perguntar: — De quem lhe digo que é?



  

Sem se voltar, estando de costas voltadas para ela, apenas respondeu: — Do Xavier! Saiu e ela ficou pasmada, com ar surpreso, a vê-lo desaparecer pela rua São João de Deus. Nunca mais voltaria ao Sports Bar. Ainda faltavam um par de horas para o reencontro com Alvim no hotel. Parou numa florista onde comprou um ramo de margaridas. Pouco depois, entrava no cemitério de Viseu. Dirigiu-se à campa da Clara, frente à qual se pôs de cócoras, segurando o ramo entre as mãos. — Olá, meu anjo. Já não te via há muito tempo. Tenho muitas saudades tuas, da tua carinha alegre, do teu sorriso lindo que me tocava a alma e me dava vida. Olha para mim, de fato! Não está bonito o teu mano? Eu sei que me vês e ouves. Amo-te muito, minha linda, fazes-me tanta falta. Eu sei que velas por mim do teu, tão desejado, lugar especial no céu e que Deus te deu. Sabes, maninha, já não estou zangado com Ele! Sei que Ele te deixa ver-me, isso dá-me algum conforto. Oh, minha linda, porque tiveste de deixar-me sozinho? Viver não tem sentido sem ti! Sei que o teu coração é puro e bondoso, sei que ficavas muito triste e envergonhada de mim se o teu mano não tivesse ajudado aquela senhora levantar-se do chão. Ela deu-me muito dinheiro, mas acho que tu já sabes isso. Vou usá-lo para ajudar todas as pessoas que conseguir, as crianças em especial. Assim, o teu toque estará em todos os gestos bondosos que eu fizer; assim, sentir-te-ei viva na minha alma. Eu sei que é isso que tu queres, por isso vou fazê-lo por ti, meu anjo. Vai ser a minha razão de viver: ajudar os outros em tua honra, em nome da tua inocência, pureza e bondade



 

carinhosa. Vou fazê-lo, porque tu me deste essa oportunidade, salvaste-me, sei que salvaste! Foste tu quem mandou aquele homem na noite em que tudo ia acabando, disseste-lhe o meu nome. Foste tu, não foste? Sei que sim! Senti a tua generosidade nele. Oh!, meu anjo, vou sentir para sempre a tua falta, mas sei que olhas por mim e que vais estar comigo. Eu sei-o! Sinto-o no meu coração! Vou tentar ser o melhor homem que conseguir, fazer o melhor que puder. Sei que é esse o teu desejo e quero que te orgulhes de mim. Amo-te tanto, meu anjo! Não me leves a mal se nunca mais te vier visitar neste lugar desolador. É apenas porque quero pensar em ti como um anjo que olha por mim do céu e não recordar-te como corpo decomposto sob uma lápide de mármore. Eu sei que não levas a mal. Adeus, meu anjo, estarás sempre comigo. Xavier tirou duas margaridas do ramo e pousou as restantes ao fundo da campa do seu anjo. Ergueu-se, foi à campa do pai e lá deixou uma margarida. — Adeus, pai! Dirigiu-se à campa da mãe e lá deixou a outra flor. — Adeus, mãe! Estava na hora de se encontrar com Alvim no hotel. Saiu do cemitério e aquela terra nunca mais foi pisada por seus pés. Ainda com vinte anos, Xavier já morava na sua casa em Gouveia, já tinha Pedro como mordomo e amigo, já tinha feito muitas coisas boas e ajudado muita gente. Comprou um hotel, depois outro e mais outro. Fez-se ainda mais rico e assim ajudou muito mais gente. Ganhou o hábito de ir de Gouveia a Viseu, de modo a ir a um bar qualquer na zona da Sé; podia bem com a despesa, dinheiro já não era problema. Costumava sentar-se



  

sempre no mesmo lugar frente ao balcão de madeira. O seu aspecto galante não passava desapercebido aos olhares femininos que lhe devoravam o corpo bem feito. Frequentava aquele sítio, quase todas as noites. Inevitavelmente despertou o interesse de uma bela rapariga que também tinha por costume ir lá todas as noites com as amigas. Estava deveras interessada nele. Os seus olhos não se desviavam dele por mais que um minuto, com medo de o perder de vista. Costumava comentar com as amigas que o achava lindo, elas concordavam. Numa noite, após Xavier ter abandonado o bar, ela foi ao balcão e falou com a empregada que se encontrava atrás: — Sabes quem é aquele homenzarrão que costuma estar aqui sentado? — Não sei. — Respondeu a empregada loira e alta de olhos verdes. — Mas sabes o nome dele? — Insistiu. — Não faço a mínima ideia. Ele fala pouco. Tem uns olhos sempre tão tristes. E ele é tão bonito! Vem sempre sozinho, chega por volta das vinte e uma, bebe um ou dois finos, depois sai por volta da meia-noite. As únicas palavras que ouço dele é quando pede o fino e diz “obrigado”, numa voz tão triste. — Explicou, com as mãos apoiadas no balcão. — Então, não sabes nada dele? — Nada mesmo. — Hum! Um homem misterioso. Que bom! — Comentou, passando a língua pelos lábios secos. Depois, voltou para junto das amigas. — Descobriste alguma coisa, Márcia? — Perguntou uma delas, sorridente.



 

— Não, mas vou descobrir. Amanhã falo com ele. — Respondeu decidida. — Não te preocupes, tu consegues sempre aquilo que queres — Disse outra. A Márcia era, de facto, muito atraente. Vistosa, de cabelo liso e negro cujas pontas lhe focavam os ombros, olhos escuros e grandes que chamavam a atenção. Alta e magra, vestia sempre roupas que lhe contornavam o corpo curvo e que atraía olhares de desejo dos homens. Tinha um não sei quê de sedução natural que a tornava ainda mais provocante e sensual. Movia-se lentamente e ligeira, como um gato que se aproxima sorrateiramente da sua presa. Na noite seguinte, Márcia estava sentada a uma mesa com as amigas, quando viu Xavier entrar e sentar-se ao balcão. Ela não perdeu tempo, levantou-se, dizendo às amigas: — Eu já venho. Caminhou em direcção ao rapaz, puxou um banco alto e sentou-se ao seu lado, frente ao balcão. Olhou para ele com um sorriso, ele olhou-a surpreendido. — Desculpe, não costumo fazer isto, mas vejo-o aqui todos os dias… Tem sempre um ar tão triste. Eu sou a Márcia. — Eu sou o Xavier. — Apresentou-se, com um sorriso. Cumprimentaram-se com dois beijos no rosto. — Achas mesmo que tenho um ar triste? — Sim, existe alguma coisa que eu possa fazer para que te sintas melhor, Xavier? — Perguntou, fitando-o meigamente. — Existe… Podes fazer-me companhia — Revelou.



  

— Isso é fácil. — Assegurou a rapariga. Xavier sorriu e perguntou: — Também costumas cá vir todas as noites? — Sim, venho com as minhas amigas. Aliás, podias vir fazer-nos companhia. — Está bem. — Acedeu, sorrindo. Durante as semanas que se seguiram, ele passou a encontrar-se com Márcia e as amigas. Conversavam sobre tudo: a vida, o mundo, as coisas bonitas que existem, a amizade, a morte, enfim, sobre tudo. Márcia costumava fazer-lhe festinhas na cara e falar com ele meiga e suavemente. Ele sentia-se bem a seu lado e o inevitável acabou por acontecer: apaixonara-se por ela. Numa noite eterna, ele levou-a à sua casa em Gouveia. Foram em carros separados. Entraram pela garagem. Pedro já dormia. Foram para o seu quarto preto e branco. Beijavam-se, despiam-se lentamente, sentindo o suave toque do outro no corpo nu; uniram-se num amor terno e meigo, cheio de paixão. Ficaram abraçados sobre os lençóis macios, ela com a cabeça deitada sobre o peito nu der Xavier. — Oh!, Xavier, acho que te amo! Nunca conheci ninguém como tu, tão doce e meigo. Tu completas-me e sabe tão bem estar contigo. És tudo o que sempre sonhei para mim. És lindo, sabias? Quero ficar contigo para sempre, nunca te vou deixar. — Oh, Márcia, és tão querida comigo, penso que não te mereço. Amo-te. E beijou-a na testa. Na manhã seguinte, Márcia levantou-se. Xavier ainda dormia, vestiu-se e murmurou-lhe:



 

— Desculpa-me, Xavier, não merecias isto. És diferente dos outros. Saiu da casa e partiu para Viseu no seu carro, que ficara à porta. Xavier passou o dia inteiro a lembrar-se da noite anterior. Sentia-se apaixonado e feliz, ansioso para que a noite voltasse e fosse hora de ir ter com ela. A noite chegou por fim. Ansioso, Xavier abriu a porta do bar, esperando ver a sua paixão. Entrou, mas ficou pasmado a olhar incrédulo um quadro dantesco: Márcia estava sentada ao colo de outro rapaz, beijando-o sofregamente, segurando-lhe a cabeça entre as suas mãos perversas. O coração de Xavier quase parou ao deparar-se com aquela cena; não conseguia perceber se era real ou cruel imaginação. Caiu em si. Infelizmente, o que via era bem real. Márcia nem chegou a vê-lo. Tornou a sair, não soltando uma única lágrima, já não era capaz. A única coisa que sentiu foi desolação. Não esperava ver aquilo, ficou confuso, não conseguia entender. Ainda na noite anterior lhe fizera juras de amor e agora estava com outro; não compreendia as razões, mas rapidamente deixaram de lhe interessar. O inexplicável não tem explicação em si. Fora traído novamente por uma mulher e a única coisa que passou a considerar delas é que eram todas iguais: indignas de confiança. Naquele momento, o seu coração fechou-se; não deixaria entrar mulher alguma. Encerrou-se aos sentimentos da paixão e aos amores, não iria permitir-se magoar de novo por uma mulher. Os seus medos cresceram ainda mais: o medo de amar para depois perder encarcerou-lhe o espírito e a alma aos intensos sentimentos de prazer. Novamente sofria. Cada vez



  

mais se convencia de que perdia todos os que amava, fosse pela morte ou nojenta traição. Nunca mais acreditaria nas palavras carinhosas de uma mulher, nas promessas que elas lhe pudessem fazer, nem mesmo no amor. A tristeza dominava-o novamente e o medo de voltar a confiar. A partir daquela altura começou a enclausurar-se no seu escritório, horas, dias, sem contacto com o mundo exterior que o magoara. Pedro tentava animá-lo o melhor que podia; umas vezes conseguia, outras não. Umas vezes, Xavier até andava bem, mas a maior parte dos dias estava em baixo, desolado, fechado no seu refúgio, com álcool, tabaco e livros a fazerem-lhe companhia. Estava zangado com a vida, não compreendia a crueldade e o ódio que esta lhe tinha. Pernet era um homem despedaçado por um passado miserável. Era rico, mas, nem por isso, feliz. Pobre Pernet! Tanto dinheiro e nenhuma riqueza!



 

Capítulo 7

— O Serão — Faltava meia hora para o início do aguardado jantar quando um Audi A3 cinzento parou à porta da casa de Pernet e dele saiu uma jovem. Ouviu-se tocar à campainha e Pedro foi abrir a porta. — Ah! Boa noite, menina Clarisse. Como está? — Perguntou sorrindo. — Vou bem, Pedro, obrigado. — O senhor Pernet está no escritório. Pode subir menina. — Então vou lá ter com ele. Pedro sorriu, fechou a porta e Clarisse subiu a escadaria em direcção ao escritório. Pernet lia atentamente o seu Les Miserables quando se sobressaltou com um bater na porta. — Podes entrar — Disse. Clarisse entrou, no seu ar deslumbrante e radioso. Iluminou o escritório e os olhos de Pernet. Este levantou-se rapidamente e, cumprimentando-a com dois beijos no rosto, disse:



  

— Já chegaste? Que bom ver-te, Clarisse. Estás linda. — Obrigada, Xavier, desculpa vir mais cedo. Queria falar contigo. — Não faz mal nenhum! Até agradeço que sejas a primeira dos convidados que eu veja. Ela estava linda no seu vestido de noite branco e comprido de alças, muito decotado, coberto por um pequeno casaco de malha preto. O cabelo caía-lhe solto e livre sobre os ombros, os seus olhos faiscavam um brilho acolhedor e sedutor em que Pernet não deixou de reparar, sentindo um calor percorrer-lhe o corpo. — Tomei a liberdade de telefonar aos convidados para confirmar os que viriam. Espero que não te importes. — Explicou meigamente. — Claro que não! Até agradeço, não me tinha lembrado disso. — O senhor e a senhora Castro recusaram o convite. O presidente da câmara e a esposa já tinham um compromisso prévio e não podem vir. Os restantes vêm todos. — Ah! Obrigado, Clarisse, pela atenção. — Há ainda outra coisa que te queria dizer. — Sim? O quê? — O juiz Paulo Martins é muito meu amigo. Conhece-me desde criança, gosta muito de mim. Na semana passada, cruzei-me com ele e falei-lhe do teu caso. Ele achou tudo muito estranho, porque já alguém tinha falado com ele a teu respeito. Falando-lhe das desconfianças que tinha por ti, assegurou-lhe que conseguiria provas em relação a isso. Enviou-lhe uma carta, que eu li, e que compromete a pessoa que a enviou, pois o que li eram mentiras. Essa carta



 

está na minha posse. O juiz cedeu-ma por achar tudo muito estranho! — Explicou ela. — Não estou a entender, Clarisse! Tens uma carta comprometedora? — Sim, Xavier, já descobri o responsável pelos boatos. — Já?! Mas isso é óptimo! Quem é, Clarisse? Diz-me o nome desse canalha! — Calma, Xavier. Direi durante o serão, na presença do juiz e do jornalista Marco Pereira. Quero ver se ele tem coragem de negar. É perfeito! O Marco pode publicar um desmentido após ouvir por ele próprio que não passam de boatos e mentiras. — Muito bem, Clarisse. Esperarei! Apenas quero ver isto resolvido o mais rápido possível. — Não te preocupes! Não vai passar da noite de hoje. — Assegurou. — Oh, Clarisse, obrigado, obrigado por tudo! — Agradeceu, dando-lhe um beijo carinhoso na face. Clarisse sorriu ao recebê-lo, aqueceu-lhe a alma e o coração. O jantar começou. Já todos os convidados se encontravam sentados à mesa após terem sido feitas as apresentações entre eles e anfitrião. Na lista que Clarisse elaborara, os convidados eram todos personalidades conhecidas e influentes da sociedade. O juiz Paulo Martins, amigo da Clarisse; o jornalista e escritor Marco Pereira; o professor de história na Universidade de Aveiro e conhecido historiador João Nogueira; o casal Monte Branco, donos de uma companhia petrolífera, muito endinheirados, e claro, Ricardo.



  

Os homens estavam praticamente vestidos de maneira semelhante: de fato e gravata. A mesa estava elegantemente posta na sala de jantar. Era um vasto espaço de paredes brancas repletas de quadros que evocavam o espírito triste de Pernet. Focos de luz espreitavam do tecto de madeira e iluminavam os copos de cristal. Primeiro foi servida a sopa de cenoura por Isabel e Pedro. Depois, seguiu-se um requintado polvo assado. O jantar decorreu normalmente, com as habituais conversas fúteis e desinteressantes. Já tinham acabado de comer, quando a conversa levou um rumo inesperado: — O senhor é um homem religioso? — Perguntou a senhora Monte Branco a Pernet. Ela era muito composta. O seu cabelo escuro penteado elegantemente, o vestido vermelho que trajava assentava bem no seu corpo pouco interessante. — Bem. Creio que sim e que não, ao mesmo tempo. — Como assim? — Perguntou, confusa. — Tenho as minhas crenças religiosas, mas que não vão totalmente ao encontro da religião católica. Misturo as minhas crenças com os meus ideais filosóficos e de vida. — Explicou. — Ora, senhor Pernet, ou se é religioso ou se não é! Eu sou devota. — Confessou. — Diga-me uma coisa, senhora Monte Branco: você é a favor ou contra o aborto? — Sou a favor! A mulher tem o direito de fazer o que bem entender com o seu corpo. É uma liberdade básica.



 

— Então, veja bem. Sabe que a sua igreja condena o aborto e, no entanto, é a favor. Nesse prisma, você também conjuga a religião com os seus ideais. — Explicou. A senhora Monte Branco ficou alguns segundos em silêncio e com ar pensativo até que disse: — Parece-me que tem razão. Nunca tinha visto isso dessa forma. — Obrigado, senhor Pernet! — Disse o marido, agitando o bigode negro. — Há muito que tento explicar à minha mulher que a igreja não pode impor-nos a vida que ela considera digna; muitas vezes não o é, de todo. Quando eu era jovem, lembro-me de uma certa aula de catequese que o padre Aurélio nos deu. Apanhei-lhe tamanha raiva quando ele afirmou uma frase de que nunca me hei-de esquecer. Ele disse: “Se não vives para servir, não serves para viver.” É uma frase tão ilógica. Ninguém me diz o que posso ou não fazer, o que é ou não correcto; isso depende da maneira de pensar de cada um. Fazemos e seguimos as regras que nos parecem mais humanas. Para mais, eu só me sirvo a mim e até tenho vivido bem. Não concorda, senhor Pernet? — Totalmente. Nascemos livres. Não creio que a igreja nos possa ditar a forma como levamos a nossa vida. Tenta retirar-nos o que é nosso por direito: a liberdade de pensar e acreditar no que quisermos. É verdade que acredito em Deus, mas não na “igreja” que dizem ser construída em Seu nome. Dizem que matar é pecado e executaram milhões de inocentes durante a inquisição, simplesmente porque as suas ideias não eram as da igreja. Não tem lógica! É o que eu penso. — Que acha o senhor doutor juiz? — Perguntou a senhora Monte Branco.



  

— Por favor, tratem-me por Paulo. Não estamos no tribunal. Eu não sou um homem crente, por isso não tenho opinião formada acerca desse assunto; não me interessa. Mas é verdade que vivo segundo os meus próprios códigos morais e éticos. — Explicou. O Paulo era um homem culto. Via-se na sua face sóbria e enrugada; tinha uns olhos inteligentes e a fronte calva e grisalha. — Essas questões provocam-me dor de cabeça, não gosto de pensar nisso. — Disse o inoportuno Ricardo, fazendo uma careta de enjoado. De qualquer maneira, ele não possuía a capacidade de pensar nisso. — Eu julgo que essas crenças dependem somente do pensar de cada um, das experiências que já teve. Varia de indivíduo para indivíduo, não é algo exacto. — Opinou o jovem jornalista e escritor, ajeitando o curto cabelo loiro. — Tem muita razão! Por isso não me tenho no direito de criticar quem tenha crenças diferentes das minhas. Senhor Pernet? O nome Pernet é francês? — Perguntou a senhora Monte Branco, mudando o assunto da conversa, com um ar curioso. — Sinceramente, não faço ideia. Não sei de onde surgiu este nome de família. Os meus avós eram todos portugueses. — Responde. — Não se vê logo que é francês!? — Impôs o barrigudo Ricardo. — Por acaso, não é. Na verdade, é bem português. — Corrigiu o professor de história, compondo os óculos. João Nogueira era um homem deveras alto e encorpado; a sua voz ruça e grossa impunha respeito. Olhos pe-



 

quenos e sérios atrás de óculos grossos revelavam inteligência e sabedoria no brilho castanho que emanavam. Cabelo comprido e escuro que segurava atrás das orelhas grandes mostrava que era um homem preocupado com o aspecto. Pudera! Tinha que enfrentar um batalhão de estudantes todos os dias! Não lhes podia dar razões para fazerem troça da sua aparência. — Teria mais sorte se tivesse nascido na França! Este país está uma miséria. Ainda há quem pense que somos uma província de Espanha. Aqueles que conhecem a nossa existência como país, apenas o sabem pelos piores motivos. Somos conhecidos pelo nosso lugar de destaque em todas as listas negras da Europa! Estamos uma desgraça e não vejo sinais de melhoria. É uma tristeza! — Disse o senhor Monte Branco, agitando negativamente a cabeça. — Por favor, meus senhores, não falemos da política nem do estado do país. Não tornemos este serão aborrecido. — Aconselhou o juiz. — Já sei o que pode tornar este serão diferente de tantos outros. Que tal uma história de amor? — Sugeriu o historiador. — Pelo amor de Deus! Mas quem é que quer ouvir histórias lamechas! — Disse Ricardo, semicerrando os pequenos olhos de aborrecimento. — Eu gostaria! — Declarou Clarisse com os olhos a brilhar. — Acho uma ideia interessante. — Concordou a senhora Monte Branco. — Façamos a vontade às senhoras! Elas querem ouvir uma história. — Pediu o juiz.



  

— Muito bem. Para tal, creio que seria mais acolhedor ouvi-la na biblioteca. — Disse Pernet. — Sim! Óptima ideia! — Concordou a doce Clarisse, olhando para Pernet com ar apaixonado. — Nesse caso, sigam-me. — Pediu ele. — Vamos, vamos! — Disse a senhora Monte Branco. Os convidados levantaram-se da mesa. As senhoras estavam ansiosas por ouvir uma história de amor. Dirigiram-se para a biblioteca. Pernet abriu a porta e entrou, seguido pelos convidados que ficaram maravilhados com o tamanho do local. Se o escritório era para Pernet um paraíso de livros, a biblioteca era a gaveta que o guardava. As paredes de três metros de altura eram forradas de estantes de madeira carregadas de livros; as do topo só eram alcançáveis por meio de uma escada de madeira que estava abandonada a um canto. Acomodaram-se no grande sofá de couro castanho e que descrevia um semicírculo à frente da grande lareira de pedra. O fogo crepitava com chamas vivas que consumiam os tocos de carvalho com gulosa vontade. — Então? Quem vai contar a história? — Perguntou Clarisse ansiosa. — Creio que seja justo ser o professor. Afinal, foi ele quem deu a ideia. — Disse o jovem escritor. O professor ergueu-se e foi encostar-se à saliência de mármore da lareira. Depois disse: — Na altura em que eu dava aulas na escola secundária Emídio Navarro, eu e meus alunos propusemo-nos fazer a cronologia histórica da escola. Como tal, fui até ao sótão onde estão guardados os registos e deparei-me com



 

uma pequena caixa de madeira, não maior que uma de sapatos. Curioso como sou, abria-a. Lá dentro, encontrei um documento antigo que datava de há duzentos anos atrás. Estava escrito numa língua que me era estranha. Felizmente também lá estava uma tradução; não estava assinada, por isso não sei quem a efectuou. — Explicou, clareando a garganta. — E é bonita a história, senhor João? — Perguntou a senhora Monte Branco. — De facto, é. E tudo leva a crer que seja verídica. — Disse. — Então, conte, por favor. — Pediu Clarisse ansiosa. Olhavam todos para ele com ares ansiosos. Todos menos Ricardo, que achava aquela ideia ridícula. — Então, vou começar. No cimo da folha traduzida lia-se “Pequeno Tigre”. Creio que seja esse o título da história. Aconteceu num tempo longínquo; já não existia memória, apenas um registo. Passaram duzentos longos anos desde que foi escrita, resistindo numas frágeis folhas de papel. Numa pequena ilha, perdida e olvidada por Deus no meio de um imenso oceano desconhecido e sem nome, deambulava pelas margens areosas e douradas uma lindíssima e ainda jovem índia. Caminhava descalça sobre areia aquecida pelo sol, colhendo conchas coloridas, que hoje já não se encontram tão belas, com a intenção de fazer para si um simples, mas deslumbrante, colar. Nesta procura intensa, embrenhada nos seus pensamentos e apenas com o grito silencioso do morrer das ondas a fazerem-lhe companhia, ela despertou para um objecto que reluzia com o sol: era um pequeno cesto de vime. Encaminhou-se na sua direcção e a cada passo



  

que avançava ouvia mais claramente um gemer sereno. Prostrou-se junto do cesto, dominada por uma indecisão avassaladora, até que reuniu coragem e retirou a tampa. Os olhos dela ganharam novo brilho ao aperceber-se de que, no seu interior, embrulhado num pano branco, se encontrava uma criança, um bebé de pele branca e com breves meses de vida; dormia serenamente e gemia por causa de algum sonho. Certamente foi abandonado num gesto cruel por algum navio que ali passou. Oh!, é impossível explicar como aquela mulher ficou feliz! Sabia que não podia ter filhos e considerou o aparecimento daquele bebé como uma bênção, uma oferta dos deuses. Feliz, e sem pensar em consequências, pegou no cesto e levou-o com a criança coradinha de volta para o seu acampamento. Aquela decisão mudaria, para sempre, a vida dela e as do que a rodeavam, para melhor ou pior; mas, se ela nunca o tivesse feito, ficaria eternamente na dúvida do que poderia ter acontecido. A índia, jovem e linda, era a mulher do chefe tribal que, ao ver a cor da criança, se opôs prontamente à presença daquele ser e propôs mesmo o fim à sua vida. Foi convocado um concelho tribal e os seus constituintes, principalmente o chefe, acreditavam que a vinda daquela criança branca era uma maldição provocadora da, eventual, destruição da tribo. Consideravam que aquele ser frágil, tão pequeno, era um demónio branco. Apesar de tudo, das suas crenças e medos, o chefe aceitou a criança, pois acima de tudo adorava a índia, deixando-a ficar com o bebé visto não conseguir ter um por si. Apesar daquele gesto amável, talvez o único da sua existência, ele era um homem frio, brutal e cruel que todos temiam, mas que a índia conseguia controlar com a sua gentileza. Ironicamente, talvez até por ca-



 

pricho de um destino pouco benevolente, a índia viria a ter um bebé dois anos depois. Chovia intensamente na noite do nascimento dessa criança. Numa tenda perdida, entre tantas outras, encontrava-se o chefe, a bela índia e duas velhas que assistiram ao complicado e perigoso parto. Após uma luta titânica pela vida, uma linda menina nasceu, para gáudio da mão que a segurava apartada contra o peito que palpitava de exaustão. O chefe saiu para anunciar o nascimento e, por entre a fenda deixada nos panos da tenda, a índia viu um pequeno tigre que passeava à chuva e que a fitou nos olhos. A índia chamou para junto de si uma das velhas e murmurou-lhe que a bebé se chamaria “Tigrinha”. Tristemente, foi a sua última palavra; morreu lentamente, à medida que os olhos se fechavam, ainda abraçada à menina. O chefe voltou e, ao vê-la morta, não proferiu uma única palavra, nem uma pequena lágrima. A velha disse-lhe o nome escolhido pela mãe. Arrebatou a criança dos braços mortos daquela magnifica mulher, saiu e, com a menina à chuva, elevada acima da cabeça, proferiu o seu nome. Anos passaram-se, a princesa Tigrinha e o rapaz branco cresceram juntos, brincando, sorrindo e, às vezes, chorando. Inevitavelmente, quando ela tinha dezassete e ele dezanove anos, apaixonaram-se. Conscientes de que a sua relação jamais seria aceite, os seus encontros passionais só existiam às escondidas. Por um desígnio injusto da vida, eles foram vistos, sem se aperceberem, por uma criança inocente que por ali passou. Correu a contar ao chefe que logo enviou quem os encontrasse. Os dois amantes aperceberam-se da agitação que vinha ao seu encontro e conseguiram escapar sem serem novamente vistos. Viveram meses juntos, em paz, em sossego, na convicção de que esta-



  

riam seguros. Num dia cruel, estando eles sentados, abraçados, a verem uma lindíssima queda de água, foram avistados por um grupo de cruéis mercenários enviados pelo chefe. Aproximaram-se lentamente, mas o quebrar de um galho denunciou-os; os amantes tentaram fugir ao aperceberem-se deles. Correram e correram, mas, num compêndio de azares e má fortuna, a princesa ficou com o pé preso numa raiz. O pobre rapaz bem tentou soltá-la, mas em vão. Ela fitou-lhe os olhos e implorou-lhe que a abandonasse. Ele chorava de desespero e disse que jamais o faria. Ela respondeu-lhe que, se o apanhassem, ele seria certamente morto e que não fazia sentido morrer e deixá-la sozinha num meio que não a compreende. Contrariado e desesperado, acedeu ao seu pedido, deixando-lhe a promessa de que iria reavê-la. Apanharam-na! Reuniu-se o conselho tribal que a considera culpada de traição; não obstante ser filha do chefe, sofreria uma pena. O chefe olhou-a nos olhos, retirou uma faca que trazia à cintura, agarrou-lhe o pescoço. Quando ela se viu forçada a abrir a boca, alguém segurou-lhe a língua com uma tenaz dentada enquanto aquele nojento, que não merece o nome de pai, lhe cortou a língua num golpe. A pobre não soltou sequer um gemido, nem uma lágrima. Semanas passaram. Numa noite chuvosa, o rapaz branco, corajoso e imprudente, foi ao acampamento. Um pequeno tigre passou por ele; parecia ter lágrimas nos olhos tristes. O rapaz entrou na tenda onde dormia o chefe e a Tigrinha, deitou-se ao seu lado; nenhum dos dois acordou. Rompendo o silêncio da noite, a tribo foi desperta por um grito assustador que parecia o rugir de um animal, um grito de desespero e dor. O chefe reparou que lhe faltava a sua faca. A princesa fitou o pai com ódio, sen-



 

tiu o que tinha acontecido e lágrimas correram-lhe o rosto, pela triste face. O rapaz branco pensou que, se ela não podia falar, então, ele também não tinha esse direito. Num gesto consciente, cortou a sua própria língua com a mesma faca que silenciou Tigrinha. Mais tempo passou e, numa noite em que, novamente, chovia, a princesa abriu os olhos suavemente e no interior da tenda estava um pequeno tigre que a fitava com compaixão. O animal saiu e ela segui-o, sabendo para onde ele a guiava. Levou-a ao rapaz branco e desapareceu. À medida que os dois se aproximavam, apenas se olhavam com paixão; deram as mãos e caminharam para o precipício que dava para o mar. Não houve necessidade de palavras. Ambos sabiam o que tinha de ser feito. Olharam-se por breves segundos, deram um último beijo, num derradeiro fôlego lançaram-se para a morte, ou talvez para uma eternidade, juntos. Só Deus o sabe! A história acabou. Clarisse e a senhora Monte Branco tinham os olhos humedecidos, comovidos com o triste conto. Os homens estavam como que boquiabertos. O silêncio reinava na biblioteca, enquanto divagavam sobre o que acabaram de ouvir. O silêncio foi interrompido pelos aplausos de Clarisse. — É a história mais bonita e triste que já ouvi e que me há-de ficar para sempre na lembrança. — Bravo, João! Magnífica! — Elogiou o senhor Monte Branco, dando uns breves aplausos. — Não foi nada de especial! Já ouvi melhor. — Disse Ricardo com ar carrancudo, enterrado no sofá, quebrando o bom ambiente.



  

— Ora, Ricardo, que chato! Foi uma bela história e sabe-lo bem. Não sejas assim! — Disse a Clarisse ainda com uma pequena lágrima no canto do olho. — Nem eu me lembraria de história melhor ou mais emotiva. — Confessou o escritor. — Senhor João, eu gostaria de a publicar; algo assim merece ser lido. O que acha? — Ah! Sim, que bela ideia! — Concordou a senhora Monte Branco secando os olhos com um lenço branco que retirou da carteira de pele. — Pode ser. — Acedeu João. — O documento merece ser publicado. — Está resolvido! Para a semana, entro em contacto consigo e combinamos melhor. — Disse Marco, com um sorriso de satisfação. Pernet olhou para Clarisse. Esta fitou-o após secar os olhos com as mãos e acenou positivamente com a cabeça. Ele levantou-se e prostrou-se junto à lareira. — Meus senhores. Detesto ter que tornar a noite mais pesada após uma história destas, que o senhor Nogueira teve a gentileza de partilhar. Infelizmente é necessário. — Por quem sois, Xavier! — Disse o juiz. — Como devem saber, têm sido ditas coisas pouco elogiosas a meu respeito. Em nada correspondem à verdade, quero deixar isso bem claro! Não passam de boatos infundamentados com o único propósito de prejudicar a minha imagem. Não posso aceitar isso, não posso tolerar que tentem destruir o bem que faço. — Explicou ele com ar sério e grave, ao lado do João que o olhava compreensivo. — É verdade, Xavier. Ouvimos já esses rumores. Mas eu estou ciente da pessoa que o senhor é e conheço bem a



 

sua obra. Também já fui alvo de rumores, razão pela qual não dei muita importância ao que ouvi. Por mim, pode ficar sossegado. Quanto aos restantes, não sei. — Explicou o senhor Monte Branco, com olhar compadecido e voz sincera. — Quem quer fazer uma maldade dessas é verdadeiramente condenável! — Disse Ricardo com ar surpreendido, como se nunca tivesse ouvido os boatos. Ao ouvi-lo, Clarisse ergueu-se furiosa e, apontando para ele, gritou: — Ricardo, seu nojento! Como és capaz de estar aí sentado como se nada soubesses?! És um falso, um cínico, um hipócrita, não vales nada! Eu sei que foste tu quem começou os boatos! — Que dizes, Clarisse?! Não é verdade! — Disse Ricardo, começando a ficar vermelho e a esforçar um sorriso. Ficaram todos surpreendidos com aquela explosão de Clarisse. Todos os olhos se viraram para Ricardo, que se mantinha imóvel, enterrando-se no sofá que rangeu. — Seu mentiroso! Eu tenho provas de como foste tu! — Gritou, segura do que dizia. — Provas?! Como assim? — Perguntou com ar assustado e surpreso, abrindo muito os olhos. Clarisse agarrou a sua carteira do chão, abriu-a rapidamente e do seu interior retirou um envelope. Abriu-o, deixando-o cair ao chão. Desdobrou a folha que lá estava e, segurando-a entre as mãos trémulas, leu-a em voz alta: — “Caro Senhor Doutor Juiz Paulo Martins. Decerto está lembrado da nossa conversa acerca do Xavier Pernet e das minhas desconfianças em relação a ele. Pois bem, tive a oportunidade de comprovar com os meus próprios olhos



  

aquilo que já suspeitava. Estou na Póvoa de Varzim, hospedado no hotel do senhor Pernet. Receio que seja na verdade uma fachada para um negócio de prostituição. Nos dois dias em que já cá estou, passaram por mim vários homens de negócio com prostitutas de luxo ao braço. Certa vez, falei com uma delas; confessou-me que o dono do hotel — e note que ela referiu o nome de Pernet — permitia que elas lá fizessem o serviço. Ele, além de receber do homem o aluguer do quarto, tinha um acordo com aquelas mulheres: recebia ainda uma comissão delas, uma espécie de imposto de uso do quarto para aqueles fins. Achei por bem informá-lo da verdade acerca desse homem que é tido em tão boa conta. Escrevo-lhe na esperança de que sejam tomadas medidas e que esse homem, que se esconde atrás da filantropia, seja exposto e tenha o que merece. O país não pode tolerar falsos bem feitores.” Está escrito com a tua letra e com a tua assinatura. Atreves-te a negá-la? Atirou-lhe a carta à cara. Atrapalhado, Ricardo pegou nela e passou-lhe os olhos. Os convidados, bem como Xavier, mantiveram-se imóveis, espantados com a verdade que foi revelada. — Não, não nego. Escrevi-a eu. — Confessou com ar zangado. — Que vergonha, Ricardo! — Disse a senhora Monte Branco, com olhar reprovador. — Por que o fizeste, Ricardo, quando sabes que é mentira? Por quê?! — Perguntou Clarisse, indignada. — Porquê?! — Disse, levantando-se do sofá num salto irado. — Eu digo-vos porquê! Simplesmente odeio-o! Ele não passava de um merdas antes de ficar rico. A sua bonda-



 

de mete-me raiva e nojo! Eu, que nasci em berço de ouro, agora não tenho nada e esse gajo tem tanto dinheiro que se dá ao luxo de o doar. O que é que ele fez para ficar rico? Nada, absolutamente nada! Simplesmente teve a sorte de a irmã dele morrer. Ficou rico à sua custa e isso enoja-me! — Quem és tu para falar assim de mim? Eu daria tudo o que tenho para ter a minha irmã de volta, tê-la ao meu lado. Tu não me conheces! Não sou como tu, não me julgues. Não tens esse direito. Não vales nada! — Gritou Pernet a plenos pulmões, irritado por Ricardo ter dito o que disse sobre o seu anjo. Quem não compreende que um homem trocaria tudo por carinhos de saudade, não tem a capacidade nem a sensibilidade de alcançar o céu e atingir a iluminação. — Que coisa horrível para se dizer, Ricardo! Tu não és gente, não és um homem, és um monstro! — Gritou Clarisse, com lágrimas nos olhos. Irritado, Ricardo virou-se para ela e, semicerrando os olhos, gritou: — Tu também me saíste uma bela peça! Eu bem vejo como olhas para ele. Não entendo como podes estar apaixonada por essa coisa. Era a mim que devias amar! — A ti?! Nunca serás metade do homem que ele é! Não tens coração, seu monstro frio. — Gritou. — Porque dizes essas mentiras... — É verdade! Fui eu quem inventou essas coisas, fui eu que lancei o boato, porque nada me daria mais gozo do que ver esse filho da puta na merda de onde nunca deveria ter saído! Odeio-o com todas as minhas forças! — Gritou, muito vermelho de raiva.



  

— És um canalha! Não vales nada! — Gritou Clarisse, dando-lhe um estalo na bochecha gorda. Ricardo calou-se e ficou especado a olhar para ela. Não esperava aquela agressão. — Ricardo, seu pulha, o que fizeste é muito grave! É difamação, é crime! Para mais, mentiste a um juiz. Fica ciente de que os teus actos não passarão sem consequência. — Gritou o juiz, indignado com as acções do nojento. O serão ficou por ali, após o triste espectáculo que apanhou todos de surpresa. Naquela noite, foi descoberto o responsável pelos boatos e mentiras. Pernet podia agora ficar sossegado, pois a verdade foi revelada.



 

Capítulo 8

— A Felicidade Por Fim — Na manhã seguinte, Pernet partiu para o Porto. Tinha negócios que exigiam a sua presença. Ficaria lá uma semana, hospedado num quarto de luxo de um dos seus hotéis. Fez o que tinha a fazer e, na segunda noite, estando deitado sobre a cama e a fitar o tecto, vieram-lhe à lembrança os acontecimentos do triste serão. Finalmente, as suas preocupações em relação ao seu império foram dissolvidas. Sentia-se seguro e confiante. Lembrou-se em especial da triste história de Tigrinha que João Nogueira teve a sensibilidade de partilhar. Então, fulminado por um pensamento, chegou à conclusão de que os dois amantes, de modo a ficarem juntos em paz e poderem entregar-se livremente ao dom do amor e felicidade, tiveram de morrer; apercebeu-se de que ele também tinha o amor a sorrir-lhe dos lábios da bela Clarisse e que não necessitava de sacrifício algum para alcançar a felicidade. Para tal, bastava ele abrir, de novo, o seu coração e deixá-la entrar. Foi no seu quarto, num momento de maior lucidez e de compreensão de si próprio, que ele chegou à verdade.



  

Chegara a hora, o tempo de deixar o seu espírito, alma e coração voarem livremente, voarem como uma águia e ser livre; chegara o momento de ele ter a coragem de se atirar ao precipício em direcção à liberdade, como os dois amantes. Chegara a hora de ser livre. Pelo menos, uma vez na sua triste vida. Estava já farto de pensar nas coisas que o afundavam em muzambices e numa existência incompleta. Acabou. Era chegada a altura de deixar o passado para trás e libertar-se dos medos, de tornar a confiar em si próprio. Estava na altura de começar a viver. Teria ele força suficiente para o conseguir? Xavier acreditava que sim, que chegara o momento de abrir o coração e permitir-se a ser amado. Só assim ele também conseguiria amar. Num acesso de lucidez de espírito, levantou-se da cama, pegou na sua pasta preta e dela retirou um par de folhas de papel e uma caneta. Sentou-se a uma secretária e escreveu. Alguns dias após o serão, Clarisse abriu a sua caixa de correio e ficou admirada por encontrar uma carta enviada por Xavier Pernet. Não tinha a direcção do remetente, por isso, mesmo querendo, não lhe poderia responder. O seu coração palpitava ansioso ao entrar no apartamento. Sentando-se no sofá, abriu o envelope sem saber o que iria ler, com algum medo talvez. Inspirou fundo e começou a ler: “É aqui, sozinho, neste quarto de hotel, sem ter mais nada que fazer a não ser olhar o tecto e fumar, sem ter ninguém para conversar, que encontro mais tempo e calma para me concentrar nos meus pensamentos mais profundos e íntimos;



 

então, escrevo estas palavras consciente de uma verdade avassaladora e real que acaba de mudar, para melhor, a minha vida; o meu mundo tornou-se completo, mudou a minha maneira de pensar e a perspectiva com que vejo o mundo. Ultimamente sou capaz, e tenho vontade de, às vezes, quando vejo uma flor bela e solitária, de me deter para a cheirar; de ficar parado a olhar o céu azul do dia e a luz das estrelas à noite. Já não quero ser mais aquela pessoa triste e deprimida, fraca e sem vontade de lutar e, por vezes, até mesmo de viver; antes tinha medo da vida, agora tenho medo de não saber viver; talvez nem seja bem medo, é mais o querer aproveitá-la ao máximo e ainda estar a aprender como. (Acendi agora um cigarro). Já sou capaz de apreciar a beleza que existe no mundo e nas coisas; antes, a minha visão limitada só me permitia ver o lado mais obscuro e feio. Ao escrever esta carta, sinto-me feliz e completo, já não me vejo mais como o patinho feio. Estou feliz, quero fazer outras pessoas felizes; assim, sentir-me-ei ainda melhor e mais vivo. Acaba tudo de mudar, tão rápido que ainda me custa a crer e ainda não assimilei completamente. E é neste quarto de hotel, sozinho, que me apercebo da razão, enquanto fumo um cigarro, e a própria razão disso tem um nome tão simples e, no entanto, com muito significado; e esse nome é Clarisse. Sim, tu! Neste momento, quero mudar, quero ser uma pessoa melhor e feliz. E é ao aperceber-me de como estou apaixonado por ti que me sinto completo e que tudo tem um novo sentido. Quando pasmo em teu olhar, cresce em mim a vontade de renascer, de lutar, de viver. Amo-te cada vez mais e só desejo ficar do teu lado, disso tenho a certeza. Estou consciente de que me salvaste de mim próprio, da minha mente e pensamento. Agora vejo que sou incapaz de não confiar em ti; creio que seria capaz de



  

pôr minha vida nas tuas mãos. Nunca na minha vida pensei encontrar alguém como tu, que me completasse e me tratasse da maneira que tu fazes. Se isto é um sonho, eu não quero mais acordar, quero sentir-te e amar-te para o resto da vida. Fazes-me tão bem! Graças a ti, já não penso que as mulheres sejam todas iguais, porque tu és tão diferente! Às vezes, quando estou triste, ou naqueles dias em que nada me faz sentido, não perguntes o porquê. Às vezes nem eu sei. Tudo de que preciso para ficar melhor é de um abraço ou sorriso teu. Não gosto de impor os meus pensamentos aos outros, para não deixá-las igualmente tristes, não gosto que se preocupem comigo… Mas, que fazer? Sou assim! Amo-te tão profundamente, tão intensamente que, às vezes, desespero por não estar contigo. Estou grato pela sorte que tive em te conhecer. Acendi mais um cigarro, vou parar de escrever e vou ficar aqui deitado na cama a pensar em ti. Antes de adormecer, o meu último suspiro e o meu último pensamento vão para ti. Quando estiver a dormir, vou sonhar contigo, com a pessoa que me ensinou a viver, que me ensinou a amar, com a mulher que eu amo.” Quando acabou, apertou a carta contra o peito, desfeita em lágrimas gentis, comovida com as palavras que acabava de ler, sentindo ainda mais a paixão que por ele nutria, suspirando profundamente. Pernet chegou a sua casa em Gouveia, entrou na cozinha, com os olhos a brilharem vivamente. Isabel estava a preparar o almoço, Pedro encontrava-se sentado à mesa e, ao vê-lo, disse: — Então, Xavier? Bons olhos te vejam! Como correu a viagem?



 

— Olá, Pedro, Isabel. Correu bem, está tudo resolvido. — Disse. — Oh, menino, está com ar animado! — Reparou Isabel. — Estou sim. Sinto-me muito bem. — Xavier, a Clarisse telefonou ontem. Eu disse-lhe que voltarias hoje, lá pela manhã. Ela pediu, se possível, para te dizer que deseja encontrar-se contigo. — Sim, Pedro! — Disse ele com um sorriso rasgado e os olhos abertos cheios de expectativa. — Pediu que se encontrassem hoje à tarde, por volta das quinze horas, no parque da cidade, naquele banco junto ao bebedouro. Parecia ansiosa! Xavier sentiu um calor a percorrer-lhe o corpo. — Também estou ansioso por vê-la. — Confessou, com um brilho apaixonado no olhar. Pedro sorriu. Almoçou rapidamente e com sofreguidão. Depois, levantou-se num salto, dirigiu-se à garagem, entrou no Jaguar e arrancou em direcção a Viseu, ao encontro de Clarisse. Quando entrou no parque, viu Clarisse já sentada no banco, linda como sempre, com ar radioso intensificado pelo sol que lhe aquecia o rosto. Xavier sentiu o coração bater mais forte à medida que se aproximava dela. Clarisse sorriu. Xavier sentou-se ao seu lado e disse: — Olá, Clarisse. — Olá, Xavier. — Retribuiu. — Recebi a tua carta. Oh! Xavier, sentes mesmo aquilo que escreveste? — Sim, Clarisse, cada palavra. — Confessou olhando-a fixamente nos olhos verdes e brilhantes de paixão. — Oh, Xavier! Fico contente. — Suspirou.



  

— Na noite em que escrevi a carta sonhei contigo. Vi o teu corpo, espelhado na água de um mar azul, dançando ao ritmo da chegada das ondas à margem; estranhamente não possuíam o dom da rebentação. Aproximo-me de ti sem que te apercebas, abraço-te, enrolando os meus braços à tua cintura, beijo-te o pescoço carinhosamente, ficamos a observar a beleza daquele mar azul. Sussurras-me ao ouvido mas não ouço a tua voz, e queria tanto! Caminhamos sobre a areia aquecida pelo sol e o teu vestido branco serpenteia ao sabor da brisa, que traz consigo o inconfundível cheiro a água salgada. Há uma gruta perto, escavada entre as rochas que povoam aquela imensidão de areia. Entramos. Sentamo-nos sobre as pedras que lá existem e parecem bancos, feitos propositadamente para nós. Abraço-te e acaricio-te o cabelo, ficamos a ver o pôr-do-sol e ele desaparece tão lentamente, arrastando consigo o dourado que pintou sobre aquele mar azul. As ondas continuam sem rebentar, apenas se dissipam calmamente ao chegar à margem. À medida que o sol se esconde, por detrás daquele horizonte azul, tu adormeces pacificamente nos meus braços, a tua cabeça repousada sobre o meu ombro. Anoitece. Beijo-te a testa e fico a ver as estrelas. Desejo ficar assim contigo para sempre. Acordei e mesmo, sem te ter tocado, consegui sentir-te. Depois, desesperei ao ver que, realmente, não estavas do meu lado e que fora um sonho. Não quero voltar a sentir isso. — Oh! Xavier, eu vou estar sempre aqui. Eu amo-te! — Assegurou com uma lágrima a querer soltar-se. — Até há bem pouco tempo, eu nunca tinha sentido o que era o amor. Essa palavra estúpida não tinha qualquer valor para mim. Desde que perdi o meu anjo, eu tinha dei-



 

xado de acreditar no amor, mas é agora, ao sentir-te dentro de mim, que descobri sentimentos que se libertaram. Vejo-te cada vez que fecho os olhos, cada vez que adormeço e, quanto mais penso em ti, mais cresce em mim a certeza… Apercebi-me de que me ensinaste o que é o amor. Oh!, Clarisse, e eu amo-te tanto! Pequenos pássaros chilreavam de contentamento, voeirando de árvore em árvore, bailando embaladas por uma leve brisa. Ficaram a fitar-se nos olhos, em silêncio; nos dela, ele viu o sorriso meigo e inocente do seu anjo. Finalmente, correu-lhe pelo rosto a lágrima que tanto ansiava e teve um gosto maravilhoso. Lentamente, as suas cabeças aproximaram-se, os lábios roçaram levemente, depois a pressão aumentou e uniram-se num beijo meigo e apaixonado que lhes aqueceu a alma e o coração. De braços abertos, a felicidade esperava-os.





                 

                                                           

Versão em papel disponivel para compra clicando aqui ou visite o site (http://ecopy.macalfa.pt)

edições ecopy   

      

  

     











          




Related Documents

O Comum
May 2020 9
Senso Comum
May 2020 11
Bolo Comum Massa
November 2019 15
Proposta Bem Comum Final
November 2019 11

More Documents from ""