Mundo Novo - Scridb.docx

  • April 2020
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O (des)Mundo Novo “O mundo não vale o mundo, meu bem” (Cantiga de enganar - Drummond) Prof. Dr. Lucio Valentim1

RESUMO: Com base na leitura dos textos/filmes Metrópolis (1927), The Brave New World (1932), 1984 (1948), 2001: A Espace Odyssey (1968), A Clockwork Orange (1971) e Blade Runner (1982), este trabalho apresenta uma análise dos tempos modernos, da tecnociência, da violência e do apego a paixões efêmeras. ABSTRACT: Based on the reading of the texts/films Metrópolis (1927), The Brave New World (1932), 1984 (1948), 2001: A Espace Odyssey (1968), A Clockwork Orange (1971) e Blade Runner (1982), this work present an analysis of modern times, technocience, violence and the attachment to ephemeral passion. PLAVRAS-CHAVE: Tempos modernos, tecnociência, violência, distopias. KEYWORDS: Modern times, technocience, violence, dystopias.

O Novo Mundo – o (re)mundo?, o (des)mundo? – está aí e continua a forjar seus disfarces, de acordo com certas distopias que ele mesmo supôs. A realidade virtual dos clips, dos games, dos biochips, dos 3D, 7D, HD, full HD; a frivolidade ágil dos shoppings, dos fast-foods, dos self-services; a massificação dos serviços, a pseudocoletivização das gentes em redes – e dos costumes, enfim; a mercadoria, o stress, a competição urbana, o consumo, a confusa relação homem/ máquina/mercado, tudo isso tem colocado o cidadão contemporâneo – desde idade social muito precoce – frente a perspectivas sombrias e desfavoráveis. Dentro da vigência da segunda década do século XXI, e em plena escalada rumo à mágica Age of Aquarius, o paradoxo do homem com o mundo em processo de mecanização parece simplesmente agigantar-se, considerando-se, sobretudo, que todas as benesses acima descritas somadas resumem o fetiche de um locus que vende facilidades, mas que sonega seus ônus. E todo a trucagem parece se fundar na manutenção da ideia de que o valor simbólico da denominada mercadoria vale mais do que a própria

Doutor em Letras Vernáculas (UFRJ) e Pesquisador Visitante do Programa de Pós-doutorado em Cultura Contemporânea - PACC/UFRJ. Recentemente, publicou o texto “Poética e ritmo da Música Popular Brasileira”, na Espanha, Universidade da Coruña (Revista Agália, nº 110, ano 2014). Tendo participado do III Congresso Internacional de Linguística Histórica, em 2015, na Espanha, Universidade de Santiago de Compostela, publicou pelos Anais do evento o texto “O galego no léxico de Rosa: veredas” (Revista Gallaecia. Estudos de Linguística portuguesa e galega, pp. 747-763, ano 2017). Atualmente é professor Titular da Universidade Estácio de Sá. 1

mercadoria. E esse raciocínio subjuga o homem não apenas em sua natureza psíquica, em sua relação dialética com a matéria das coisas, mas também – e sobretudo – em sua materialidade físico-biológica, na interação com seu próprio corpo. Lembremos, com uma pitada de Marx, que, para a lógica do mercado, o valor de troca de uma “comodidade” qualquer tende a atingir o paroxismo de suplantar – ainda que simbolicamente – o seu próprio valor de uso. E, no mundo do pós-tudo, esse aparente paradoxo faz transformar também, sub-repticiamente, todo direito em serviço – ou em produto –, e com ampla mediação dos media competentes. Nessa lógica, a mercadoria traduz e representa os contraditórios do contemporâneo. Ela “(...) é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia”. Uma visão escatológica bastante factível vem se construindo e confirmando: o que é, por direito, humano (não mais apenas a comida ou a água, mas, por conseguinte, os rins, o coração, a córnea, a luz do sol ou o ar), mediante o valor da troca, na galeria do mercado, tornar-se-á corriqueiramente produto, conferindo Poder a quem, na eventualidade do mercado, mais poder de compra tiver. Sob essa perspectiva, o simples ato da existência vai se tornando privilégio – ou comodidade – de poucos, pois o direito à vida – o bem maior – ligeiramente se transforma também em bem a ser consumido – como commodity – e privatizado, sob a tutela das Grandes Corporações. Em entrevista recente, Achille Mbembe (2016) afirma: Não há indícios de que o ano de 2017 vá ser muito diferente de 2016. Sob a ocupação de Israel por décadas, Gaza seguirá sendo a maior prisão a céu aberto da Terra. Nos EUA, a matança de negros pelas mãos da polícia continuará ininterruptamente e centenas de milhares mais se unirão aos que já estão alojados no complexo industrial-carcerário, que veio como consequência da escravidão das plantações e das leis de Jim Crow.A Europa continuará seu lento descenso rumo ao autoritarismo liberal, ao que o teórico cultural Stuart Hall chamou populismo autoritário. Apesar dos complexos acordos alcançados pelos foros internacionais, a destruição da Terra continuará e a guerra contra o terrorismo se converterá cada vez mais em uma guerra de extermínio entre várias formas de niilismo. As desigualdades seguirão crescendo no mundo todo. Contudo, longe de abastecer um ciclo renovado de lutas de classes, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia e outras paixões mortais.

Claro, há uma ordem a mover tão complexa engrenagem, e que não se organiza ou desenvolve ao acaso, no caos, mas, ao contrário, se vem forjando desde há séculos, e que agora aponta para seu momento mais rarefeito – e mais radical. Mbembe (2016), justificando sua sombria afirmativa, logo à frente arremata: Nada do que foi assinalado acima é acidental. Em todo caso, não deixa de ser um sintoma de mudanças estruturais, mudanças que se farão cada vez mais evidentes, à medida em que decole o novo século. O mundo tal como o conhecíamos desde o final da Segunda Guerra Mundial, com os longos anos da descolonização, a Guerra Fria e a derrocada do comunismo, esse mundo terminou. Conforme o filósofo camaronês, o confuso século XX idealizou o ambiente mórbido que vivenciaremos agora, ao longo do XXI – e que simplesmente acelera seu curso: Começou outro longo e mortífero jogo. O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo. No decurso do século que passou, à sua maneira, a indústria/mercado da cultura já vinha discutindo o tema e, se pudéssemos imaginar uma linhagem estética, na literatura e/ou no cinema, que cruzasse a época, elegeríamos para nosso propósito os seguintes cenários: Metropolis (1927), O Admirável Mundo Novo (1932), 1984 (1948), A Laranja Mecânica (1971), 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e Blade Runner (1982). Reificando a tese do mundo como mercado(ria), logo de início, é de se notar que no comando dos seis (des)mundos referidos predominarão sempre as Megacorporações e seus privilégios, tocando e monopolizando – política e tecnologicamente – as decisões do futuro humano. Todas as previsões distópicas aqui abordadas apontam realidades onde o capital e seus interesses magnatas se sobrepõem ao Estado, e este, acharcado e seduzido, não apenas torna privados bens públicos e serviços, como também submete à praça da compra e venda direitos primários, num desmonte sistemático de valores outrora inalienáveis – e secularmente adquiridos. E este é o link imediato que une as seis visões de (des)mundo “futuro” que aqui buscaremos tratar. Vejamos, numa distribuição propositalmente aleatória. 1.

No livro de Huxley, cujo tempo da narração é o ano 1932, por exemplo, deparamo-nos com uma sociedade dominada pela manipulação genética, onde o processo de reprodução artificial, de antemão, fabrica castas em grandes laboratórios para o domínio de outras classes, inferiormente idiotizadas – quer pela tecnologia genética quer pela midiática –, a fim de cumprirem o papel social e vitalício da submissão. Igualmente submetidas às benesses mercadológicas do mundo artificial, ambas as classes/castas, andróginas e semi-humanas, se conformam e amoldam ao ethos imposto, num (des)mundo asséptico e sem tensão aparente entre seus extremos. Aqui, o instrumento de repressão à súbita – e improvável – insatisfação social, ao tédio e ao sentimento de artificialidade do amor e das relações é a droga sintética patrocinada e administrada pelas Corporações de Estado, com o intuito de interferir na personalidade dos grupos, aplacando-lhes dores de toda natureza, acomodando todos, cívica e permanentemente, às admiráveis novidades do (des)mundo novo. Droga típica de uma sociedade despersonalizada e organizada sob pressupostos de ordem e limpeza – sobretudo étnicas –, o Soma é o aditivo perfeito para que a engrenagem da geringonça permaneça, mecânica e roboticamente, cumprindo sua função. O futuro huxeyliano, desta forma, revelou uma sociedade sofisticada, e acomodada à realidade da eugenia tecnológica, na qual a tecnociência se depararia com um de seus vários paroxismos – quando o jogo é submeter tudo que é demasiadamente humano ao jugo corporativo: o projeto simbiótico que descamba na clonagem humana e toda sorte de manipulação genética que dela deriva. Acerca do fenômeno da mercadotecnia, o Director del Programa McLuhan de Cultura y Tecnología, Derrick de Kerckhove (1995, p. 31) apontara que:“ ( . . . ) McLuhan vio en este fenómeno un patrón puramente psicológico de identificación narcisista con el poder de nuestros juguetes.” E, como legítimo extensor das especulações macluhanianas, Kerckhove (1995, p.31) pondera, na sequência: Considero esto como una prueba de que estamos realmente convirtiéndonos em cyborgs, y que, así como cada tecnología extiende una de nuestras facultades y trasciende nuestras limitaciones físicas tendemos a adquirir las mejores extensiones de nuestro próprio cuerpo. Conquanto nosso tempo pareça não ter plenamente atingido, ainda, os níveis da manufatura de gens com aspirações à dominação de castas – pelo menos não nas proporções de exigências do Grande mercado –, drogas sintéticas proliferam nas ruas, assim como outras, cibernéticas, veiculam-se e circulam em redes livremente nas casas.

Nessa mesma dimensão, à revelia de tudo, moléstias sociais, físicas, econômicas e psíquicas se multiplicam, fora e dentro do ciberespaço – epidemicamente. Todavia, com o tempo da narrativa em aberto, o (des)mundo de Huxley – para todos os efeitos – ainda não nos chegou de cheio. 2. Em Orwell o Estado está representado na Corporação codinominada Grande Irmão (Big Brother), que através de sistemas eficientes, onipotentes, onipresentes e oniscientes de manipulação eletrônica, policia as identidades individuais, penetrando e perpetrando desejos, sob o olhar eletrônico de teletelas espalhadas por casas, praças e ruas – e das concomitantes Polícias do Pensamento. Fortemente militarizado, o Estado funciona neste contexto como substituto da própria consciência dos seus cidadãos – e sempre punitiva. O (des)mundo futuro de Orwell previra, então, a sua maneira, uma forma de organização reativa às dicotomias advindas dos conflitos e destroços da primeira metade do século; uma ordem social centralizadora e poderosa, que uniformizasse indivíduos por intermédio da propagação/programação tecnoideológica. Tal sociedade, antevista em 1984, meio yuppie e decadente, dominada pela burocracia da máquina, tem experimentado em nosso tempo seus raros dias de apogeu. No que concerne ao controle do imaginário, p. ex., as máquinas de mão aí estão, móveis e repletas de aplicativos que, voluntariamente acionados, capturam em rede global gamas de informações pertinentes aos indivíduos, seduzindo desejos usuários, fazendoos e mantendo-os farta e eletronicamente cativos, quer seja na esfera pública – quer na privada. O conceito de persona digital, espécie de alter ego eletrônico, se aplica a este momento mecânico de exposição virtual em rede, no qual a tese de Mc Luhan drasticamente se confirma – e se expande. Aliás, o que reiteradamente se reafirma neste contexto é a ideia da mídia eletrônico-digital enquanto extensão do corpo e da personalidade: o tecno-fetichismo. Kerckhove (1995, p. 30) explica: (...)cuando las tecnologías de consumo finalmente se introducen em nuestras vidas, pueden generar una especie de fetichismo obsesivo en sus usuarios, algo que McLuhan llamó una vez la narcosis de Narciso. 1984 prefigura o apogeu das máquinas de controle, encampando o discurso vigente que barganha liberdades individuais por um punhado de segurança – sendo esta

última o eufemismo novo para a técnica do controle eletrônico, midiático e virtual de corpos e mentes. Conforme Kerckhove (1995, p. 30) Lo tecnológico se ha producido siempre mediante una especie de emulación (=imitação) de una realidad fisiológica en nuestro cuerpo o nuestra mente. Al fin y al cabo, es de donde sacamos nuestros modelos, los modelos de procesamiento, los modelos de proyección, los modelos de acción e interacción, todos provienen del cuerpo. La tecnobiología de la electricidad se basa en estar a la vez dentro y fuera del cuerpo humano, por lo que existe una continuidade natural entre nuestro interior y nuestro exterior. Porém, a despeito de cativeiros voluntários, a ideia bélica propriamente dita de mundo jamais arrefeceu. E, muito embora a Megacorporação fictícia de 1984 tenha inspirado o MegaGrupo real (Endemol) que em rede global, há duas décadas, produz a bizarra mescla de show com realidade, a controlar e reproduzir imaginários nos cinco Continentes (Big Brother), o futuro previsto por Orwell – há mais de três décadas – já passou. 3. No que concerne à relação homem/máquina, criador/criatura, vale ressaltar, de 2001: Uma Odisseia no Espaço, o dado momento em que a supermáquina, Hall-9000, ambiciona controlar os humanos que a operam. Por trás da manipuladora – e manipulável – máquina, a Corporação, que tanto dá nome ao supercomputador quanto à Megaconstrutora da poderosa base espacial. A despeito da ousadia em idealizar que no ano de 2001 a odisseia humana se daria no espaço – o que efetivamente não ocorreu –, a viagem de Clarke e Kubrick serviu para ambientar o imaginário de gerações futuras no universo do mundo digital e informatizado por máquinas computadoras. E naquele (des)mundo, a trama da máquina é tentar controlar a tripulação através da mentira. O referido episódio reflete o conflito entre inteligência artificial e experiência humana, no exato instante em que a lógica artificial de ‘mentir’ da máquina se incompatibiliza com a lógica imponderável dos artifícios do homem-humano. Faltava-lhe – à máquina – o componente da experiência vivida que, do ponto de vista linguístico, se funda na memória. Se consideramos que a linguagem, em suas condições ideais, é aparato ainda exclusivo ao homem, pode-se concluir que, quando implantada artificialmente, tende a

não se equiparar com o humano dispositivo – a despeito do atual esforço dos Deep Learnings. Cuando se «digitaliza», la cultura pasa de una relación muscular y fisiológica de base corporal con la electricidad a una relación psicológica basada en la mente. Y ahora nos encontramos en plena tercera fase, la condición inalámbrica, donde todo el sistema electrónico sensorial, muscular y cognitivo regresa al cuerpo del usuario. Logo, se na máquina a memória é implante, retorna-se ao velho conflito/dilema que permeia a inteligência mecânica/artificial: pode a máquina pensar, e pensando ter emoções? Es como si, de repente, muchos componentes del sistema electrónico mundial fueran capaces de pensar antes de actuar. Pensar es una operación virtual, igual que imaginar, tal como descubrió Don Quijote muy a pesar suyo. De este modo, los seres humanos somos profundamente virtuales, mucho más que cualquier máquina que hayamos inventado Mas, e quando a máquina pensa que pode? Foi assim que em 2001 tudo emperrou – num enorme tilt. 4. É o que, em tese, vai se repetir também em Blade Ranner. A emoção mecânica e artificial será o fator que, impossibilitando os androides replicantes de mentir, os expõe e revela. Fruto também de conflito tecnossocial provocado por androides e ginoides que, após motim na Terra, são designados para tarefas subalternas, sexuais e perigosas em plataformas coloniais extraterrestres, a replicância é o grande mote em Blade Runner. Neste caótico (des)mundo repleto de (indi)gentes e suas (in)diferenças, o conflito se acirra quando os robôs cismam de cobrar por seu espaço no tempo. Por sua vez, a Tyrell Corporation, que patrocina e administra o caos provocado pelas máquinas, recruta a força bélica de superpoliciais (os Blade Runners) para a incansável tarefa de caçar os humanóides replicantes. Passa a vigorar ali o conhecido complexo de Frankstein, contexto onde é comum a criatura voltar-se contra o criador, quer na incipiente demonstração de sentimento, quer na posterior tentativa de inversão de valores, dentro do hierárquico escalonamento de poderes máquina x humano. Os replicantes, em Blade Runner, fazem prevalecer o étimo da contestação, revelando seu lado quase humano; isto é: mais do que simples réplica, a máquina reivindica, replica uma condição, uma chance dentro do universo dos homens.

Daí a eficácia do frugal teste a que eram submetidos os suspeitos, mediado por perguntas estritamente humanas relacionadas com emoções efetivamente vividas – e que exigiam respostas emocionais também experienciadas. Dentro de seu limitado acervo linguístico e de memória, o replicante não consegue resistir ao teste, uma vez que sua persona é simulacro de imagens artificialmente implantadas. Lembremos, por fim, da clássica cena onde o interrogador, em pleno interrogatório, decide testar o androide – botando a mãe no meio: Blade runner:“Teel me about your mother” Replicante:“I tell you about my mother”(...) A sequência todos sabemos. Muito embora o (des)mundo ali exposto esteja previsto ainda para o ano de 2019. 5. O texto de Burgess, por sua vez, apresenta-nos um tempo em que não há mais partidos, não há Estado, não há androides, ginoides nem ideologias (pelo menos dentro da base comportamental da geração que domina o universo nadsat), mas, em contrapartida, convive-se com os dejetos da hiper-informação, num (des)mundo em que as contradições da sociedade são sistematicamente consumidas e veiculadas em clips comerciais, fantasiando ícones artificiais que servem de alimento à tensa e desigual competição cotidiana. No rastro da etimologia da Laranja mecânica, o próprio dicionário nadsat nos aponta uma das possibilidades do trocadilho fonético que circunda o oxímoro: orange, orango(tan) clockwork, remetendo, portanto, à mescla homem-primata altamente desenvolvido – e mecânico. O que também faz remeter, pela contemporaneidade, à parte primeira de 2001. Quando a laranja é mecânica, a banalização da violência, da vida, da morte – e de tudo que convém à semântica (des)humana –, torna-se cinicamente comum. Entramos num universo destituído de valores, no qual uma camada média decadente, dominada pelo consumo e pela produção de serviços virtuais (o amor, inclusive), produz também em escala gerações desajustadas e gratuitamente perversas e pervertidas. Como no mundo de Huxley, em Burgess a droga é também livre e sistêmica, de modo que desde muito jovem se possa desenvolver uma espécie de sadismo, agressivo, desequilibrado e que por razões meramente mecânicas fizesse odiar todos os seres

viventes e os agredir – e matar. A desmemorização/desprogramação pela qual passa o personagem Alex o despersonaliza, em analogia com Blade Runner: o que antes era máquina insensível de matar, agora, (re)desprogramado, pensa que é um ser pensante – embora mera réplica de subjetividade manipulada, passivamente submetida à violência do outro. Concebido no limiar dos anos 70, o (des)mundo d’A Laranja Mecânica revela e antecipa uma observação, para a época ainda aparentemente hiperbolizada, daquelas primeiras tribos de (pós)adolescentes surgidas no rastro dos fenômenos contraculturais do tempo (do ideário hippie a toda cultura pop; da transição político-comportamental do pós-guerras à guerra fria em diante), e patologicamente afetadas pela tecnociência (informática, videoclipes, drogas sintéticas, mundo virtual etc): os ciberpunks, cuja máxima "High tech, Low life" – algo como: "Alta tecnologia e baixo nível de vida", ou, em outras palavras: tecnologia de informação aplicada à desordem social – era a pauta e que se expandiria no tempo.

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