“se o objeto da idéia que constitui a mente humana é um corpo, nada poderá acontecer nesse corpo que não seja percebido pela mente” (ESPINOSA, séc. XVII)
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
9
1. O MODELO DE REGULAÇÃO AUTONÔMICA OU MODELO DE ESTRESSE-HOMEOSTASE 10 1.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS: A DOUTRINA HUMORAL
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1.2. O CONCEITO DE MEIO INTERNO: LIBERDADE EM UMA ESTUFA
13
1.3. O CONCEITO DE HOMEOSTASE: ESTABILIDADE PELA VARIAÇÃO 14 1.3.1. Integração entre os sistemas extero e interofectivos
17
1.4. O MODELO DE REGULAÇÃO AUTONÔMICA: REPOUSO E MOVIMENTO 1.5. TEORIA DA EMERGÊNCIA DE CANNON: A RESPOSTA DE LUTA OU FUGA Bookmark not defined.1 1.6. A TEORIA DO ESTRESSE DE SELYE: RESISTÊNCIA E EXAUSTÃO defined.6
19
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1.6.1. Alterações do sistema imune causadas pelo estresse
32
1.6.2. Estresse crônico e outras doenças
35
1.7. PANORAMA DA REGULAÇÃO AUTONÔMICA
36
2. CRÍTICAS AO MODELO DE REGULAÇÃO AUTONÔMICA DO ESTRESSE-HOMEOSTASE
40
2.1. ALGUMAS CRÍTICAS AO MODELO DO ESTRESSE DE SELYE
43
2.2. O PAPEL DAS AMÍGDALAS CEREBRAIS NA RESPOSTA DE ESTRESSE
45
2.2.1. Críticas ao mecanismo de termostato
45
2.2.2. O papel das amígdalas cerebrais
48
2.2.3. O condicionamento aversivo: papel da aprendizagem na homeostase Error! Bookmark not defined.9 2.2.5. Retorno ao conceito de termostato: proposta de modificação 3. O PARADIGMA DA ALOSTASE 3.1. ALOSTASE E SISTEMA IMUNOLÓGICO CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS
52 50 56
626 67
6
RESUMO
A associação entre equilíbrio e saúde é bastante antiga na História. Durante os séculos, muitos foram os modelos propostos para explicar os processos de regulação e balanço que mantêm os corpos estáveis em meio às constantes mudanças que caracterizam a vida. O presente trabalho, que consiste em uma revisão não sistemática da literatura, tem por objetivo expor algumas das teorias que embasaram duas maneiras de ver a regulação psíquica e somática dos processos vitais no ser humano: a forma da regulação autonômica e a forma da regulação cerebral. Esta exposição visa destacar o papel da psicologia na saúde, acentuando a relação entre o corpo e a mente e a influência mútua de seus processos. A base teórica deste trabalho encontra-se no desenvolvimento da fisiologia experimental e dos conceitos de estresse e homeostase, bem como nas críticas de autores posteriores a estes sistemas, que culminam no esclarecimento do papel dos processos corticais superiores na regulação do corpo e da mente. Por fim, considera-se o conceito de homeostase sociocultural e de regulação emocional como alternativas para os estudos sobre o modelo de regulação cerebral.
Palavras-chave: Equilíbrio; Saúde; Regulação; Psicologia Homeostase; Homeostase Sociocultural; Regulação Emocional.
na
Saúde;
Estresse;
7
ABSTRACT
Associations between balance and health are quite ancient in history. Over the centuries, many have been the models proposed to explain the processes of regulation and balance that keep bodies stable amid the constant changes that characterize life. The present work, which consists of a non-systematic literature review, aims to expose some of the theories that support two ways of seeing the psychic and somatic regulation of the vital processes in the human being: the form of the autonomic regulation and the form of the cerebral regulation. This aims to highlight the role of psychology in health, instead of thinking only about its role in purely mental disorders, accentuating the relationship between body and mind and the mutual influence of their processes. The theoretical basis of this work lies in the development of experimental physiology and in the concepts of stress and homeostasis, as well as in the criticism of later authors, which culminates in the discovery of the role of higher cortical regulation processes of body and mind. Finally, we consider the concept of sociocultural homeostasis and emotional regulation as alternatives for studies on the model of brain regulation.
Keywords: Balance; Health; Regulation; Health Psychology; Stress; Homeostasis; Sociocultural Homeostasis; Emotion Regulation.
INTRODUÇÃO 8
O presente trabalho consiste em uma revisão bibliográfica não sistemática da literatura sobre duas formas de regulação do equilíbrio do organismo: a regulação autonômica e a regulação cerebral. Com esta pesquisa objetiva-se expor de forma comparativa essas duas formas de equilíbrio, com vistas a distinguir o papel da psicologia na área da saúde e especificar algumas teorias que possibilitam pensar, para além de puros mecanismos, o papel da subjetividade na organização fisiológica. Este trabalho foi idealizado durante um período de estágio na emergência de um serviço de psiquiatria no Rio de Janeiro (Instituto Municipal Philippe Pinel - IMPPRJ). Nesse ínterim, na convivência em um ambiente multiprofissional, que contava com representantes da medicina, do serviço social, da enfermagem, da psicologia, bem como técnicos e outros colaboradores, pode-se detectar a necessidade de um campo de discussões comum entre as diferentes áreas do saber. Este escrito, portanto, é fruto das ideias seminais nascidas nesses debates, aqui embasadas teoricamente. O texto divide-se em três partes, onde a primeira é uma exposição do modelo de regulação autonômica e neuroendócrina, a segunda uma exposição das críticas a este modelo e a terceira, a descrição de algumas proposições para a reformulação do mesmo. Enquanto o paradigma da regulação autonômica trabalha em termos de automatismos e mecanismos de retroalimentação negativo, as críticas a esse modelo propõem uma maior participação de áreas corticais superiores na regulação fisiológica do organismo. Com essa virada epistemológica, a psicologia deixa de ser o espaço do puramente estranho, do fora da regra, daquilo que sai de controle na fisiologia durante a ação de processos como as emoções. 1.
O
MODELO
DE
REGULAÇÃO
AUTONÔMICA
OU
MODELO
DE
ESTRESSE-HOMEOSTASE
A ideia de equilíbrio do corpo e da mente sempre esteve ligada ao conceito de saúde e vários exemplos oferece a História sobre as conotações e imagens 9
atribuídas a essa associação. De modelos focados no equilíbrio dos humores e das proporções até a visão fisiológica sobre os diferentes sistemas em interação no corpo humano, diversas estruturas foram pensadas para representar os fluxos e balanços de líquidos e nutrientes ou, como na atualidade pode-se atestar, de informações e comandos pelo organismo. Segundo Jackson (2013), a noção de corpos em equilíbrio é bastante antiga, mas a criação de uma ciência da estabilidade só teve lugar recentemente, no século XIX. Na fisiologia, as primeiras visões sobre o equilíbrio e a dinâmica dos processos em ação no corpo levaram em consideração aspectos neuroendócrinos, acentuando principalmente o papel do sistema nervoso autônomo e dos hormônios envolvidos nas respostas de adaptação às mudanças ambientais. Contudo, os conceitos de balanço e equilíbrio utilizados pelas ciências da saúde são, para este autor, componente de um campo intelectual muito maior, que determina o comportamento e o movimento dos sistemas fisiológicos, psicológicos, tecnológicos e sociais. Para Berntson e Cacioppo (2007), desde a criação do conceito de homeostase por Walter Cannon (1871-1945), o paradigma da integração entre o sistema nervoso autônomo e o sistema endócrino tornou-se uma força importante na psicofisiologia e na medicina comportamental. Os autores entendem que este objeto - a regulação autonômica e neuroendócrina - delimita um campo de estudos significativo,
que
ainda
mantém-se
dominante
na
literatura
fisiológica
contemporânea.
1.1.
ANTECEDENTES HISTÓRICOS: A DOUTRINA HUMORAL
No ocidente, as raízes do que atualmente é denominado ciências da saúde foram fincadas em um período bastante profícuo da história helênica, conhecido como antiguidade clássica. Nessa era, os gregos concebiam o mundo a partir da combinação de quatro elementos primordiais (fogo, terra, ar e água), cujas qualidades (quente, seco, frio e úmido) definiam as propriedades de todas as coisas existentes, animadas ou inanimadas (ADLER; FRIEDMAN, 2011).
10
Entre os séculos VI e V a.c., o filósofo Alcméon de Crótona (510 - 430 a.c.) definiu a saúde como um estado de isonomia entre as forças elementais em ação no corpo. Tal visão influenciou profundamente o trabalho de Hipócrates de Cós (460 377 a.c.), considerado o pai da medicina, que postulou a existência de quatro humores (bile amarela, bile negra, sangue e fleuma) em fluir contínuo no corpo, cujo equilíbrio definia a saúde e o desequilíbrio, a doença (JACKSON, 2013). Essa doutrina, que interpreta os processos saudáveis e mórbidos como resultado de misturas apropriadas ou inapropriadas entre os elementos constituintes do corpo foi chamada humoralismo (JULIÃO, 2014). A tradição humoral constitui uma das visões mais antigas sobre o equilíbrio e a regulação dos processos fisiológicos, e sua influência na formulação de outras teorias estende-se até a atualidade (JACKSON, 2013). A teoria hipocrática foi fundamental para a formação da ciência médica, à medida em que a mesma efetuou uma cisão epistemológica entre o misticismo e a medicina (ADLER; FRIEDMAN, 2011). No texto de Hipócrates (1868) intitulado “Sobre a Doença Sagrada”, vemos o primeiro dos médicos rejeitar a concepção de que alguma doença seja mais sagrada do que a outra, de maneira que são necessárias outras explicações, que não as religiosas, para dar conta da complexidade e variedade do fenômeno do adoecimento. Como alternativas etiológicas
para
as
patologias,
o
autor
propõe
fatores
hereditários,
anatomofisiológicos e ambientais, utilizados até os dias atuais. De acordo com Adolph (1961), Hipócrates criou uma doutrina baseada na concepção de que a natureza mesma seria a grande responsável por equilibrar as perturbações sofridas pelo corpo, processo no qual que o médico apenas seria um auxiliar no caminho da saúde. Em latim, essa ideologia ficou conhecida como vis medicatrix naturae, ou poder curativo da natureza. Tal conceituação baseia-se no fato que o corpo humano sente as mudanças ambientais e possui a capacidade de compensá-las automaticamente: Nesta estação (inverno), quando o frio toma o homem e causa nele alguma aflição, por essa mesma razão, rapidamente - e antes que qualquer coisa ocorra - , o calor aparece internamente do homem, sem necessidade de auxílio ou preparações; esse efeito é produzido tanto no homem saudável como no doente. Por exemplo, se um homem em boa saúde resfriar seu corpo no inverno, seja por um banho frio ou por outros meios, no mesmo grau em que ele se esfria, desde que ele não seja completamente
11
congelado, no mesmo tanto torna-se quente novamente (HIPÓCRATES, 1868, p. 46).
Por consistir em um movimento interno, o equilíbrio pressupõe um esforço do organismo. Segundo Loriaux, Chrousos e Gold (1988), Hipócrates foi o primeiro a intuir a existência de uma tal força de adaptação e auto-regulação a agir no corpo. Em Dubos (1987), vamos encontrar também que o conceito de adoecimento para Hipócrates não pressupunha somente sofrimento (páthos), mas um trabalho ativo (pónos) do corpo em prol de sua estabilidade. Essas primeiras representações, humoralistas, concebidas pelo pensamento humano na busca do entendimento da regulação de seu próprio organismo, são resumidas por Adolph (1961) da seguinte maneira: Alcméon propôs que a constância de um corpo é assegurada pela mistura de tendências opostas. A este seguiu Hipócrates, que definiu os organismos vivos como auto-regulados. Após ambos, Aristóteles e Galeno desvendaram o papel de algumas funções e órgãos do corpo na manutenção do equilíbrio, bem como dos processos de ingestão e excreção de elementos no balanço corporal. A importância dessas doutrinas estende-se até o dias atuais, tomando outros formatos conforme a área da ciência em que são aplicadas. Como ressaltam Adler e Friedman (2011), a ideia de que os excessos e déficits, equilíbrios e desequilíbrios, estão nas causas de algumas doenças encontra-se não só no humoralismo como também na relativamente recente teoria hormonal. A farmacologia, por exemplo, ainda utiliza como paradigma a percepção de que a depressão é um déficit no equilíbrio da serotonina, e as psicoses, como a esquizofrenia, são ainda tratadas como resultado de excessos de dopamina. A concepção de um corpo auto-regulado ganhou outras roupagens durante os séculos subsequentes, e outros conceitos foram formados para além do recurso a uma força natural de equilíbrio.
1.2. O CONCEITO DE MEIO INTERNO: LIBERDADE EM UMA ESTUFA
No século XIX, o fisiologista francês Claude Bernard (1813 - 1878) fundou uma ciência que ficou conhecida como fisiologia experimental. Nas bases dessa nova doutrina, Bernard assentou o conceito de meio interno (milieu interiéur). 12
No segundo capítulo de seu livro “Lições sobre os Fenômenos da Vida Comuns aos Animais e aos Vegetais”, Bernard (1885) define a vida como resultante de um conflito, aos modos de uma estreita relação de adaptação, entre as condições herdadas pelo organismo e as condições físico-químicas do ambiente. Com seus estudos práticos, o cientista pode postular que os animais superiores (vertebrados de sangue quente), relacionam-se com o ambiente de maneira diversa dos demais por possuírem um meio interno líquido (milieu interieur) a envolver seus tecidos e órgãos. Para o cientista, o meio interno desses animais mantém-se constante em seus parâmetros, qual uma atmosfera própria ou uma estufa, uma vez que seu organismo tem capacidade de equilibrar e compensar delicadamente as variações do ambiente externo, permitindo-lhes liberdade e independência. Para o autor, o sistema nervoso possui um destaque neste processo, considerado, "no organismo animal, (...) o grande harmonizador funcional" (Ibidem, p. 335) das atividades celulares. A simples constatação hipocrática da produção de calor interno a partir do poder de auto-regulação da natureza (cf. item 1.1) pôde ser explicada cientificamente por meio de um experimento engenhoso realizado por Bernard. Seccionando porções do sistema nervoso autônomo de animais, o cientista descobriu um mecanismo fisiológico regulador do fluxo do líquido sanguíneo no meio interno, cujo deslocamento explicava a verdadeira origem da capacidade adaptativa automática que havia sido apenas constatada por Hipócrates: O sistema nervoso (...) agindo no fenômeno químico de calorificação e, ao mesmo tempo, no calibre dos vasos sanguíneos, acelera ou lentifica o curso do sangue em um órgão, aumenta ou diminui sua quantidade e assim regula o resfriamento. Quando a temperatura tende a aumentar no organismo, o sistema nervoso ativa a circulação periférica e transporta o sangue à superfície do corpo. Quando, do contrário, a temperatura cai significativamente, o sistema nervoso diminui a circulação periférica e acumula o sangue nas partes profundas onde não está exposto ao resfriamento (BERNARD, 1876 apud COOPER, 2008, p. 421).
Da simples ideia da produção de calor, ou combustão interna, a fisiologia migra para o mecanismo que se tornaria seu paradigma áureo nos séculos subsequentes: o termostato. Para uma vida relativamente livre, afirma Bernard (1885), o animal deve manter constante, em seu meio interno, ao menos cinco parâmetros: a quantidade de água, de oxigênio, de calor, das substâncias químicas e das reservas de nutrientes. Tais variáveis são mantidas constantes por meio de 13
movimentos de aquisições e perdas, também controlados pelo sistema nervoso. Em uma palavra: "todos os mecanismos vitais, por mais vários que sejam, não têm nunca mais do que um objetivo, aquele de manter a unidade das condições da vida no meio interno" (Ibidem.p. 122).
1.3. O CONCEITO DE HOMEOSTASE: ESTABILIDADE PELA VARIAÇÃO
Até o início do século XX, nenhum conceito era capaz de abarcar totalmente a ideia de regulação intuída pelos filósofos, construída pela doutrina humoralista dos primeiros médicos e experimentada pela fisiologia de Bernard. O conceito de um meio interno constante, cujas variações são detectadas e compensadas, tal qual um termostato, ofereceu uma boa base para o entendimento dos fatos vitais e da interação do homem com o ambiente, com maior cientificidade. Contudo, uma verdadeira fundamentação teórico-epistemológica dos fatos fisiológicos de equilíbrio só pôde ser alcançada a partir da criação de postulados bem definidos e universais, representados pelo desenvolvimento do conceito de homeostase por Walter B. Cannon. Walter Cannon (1871 - 1945) foi um fisiologista americano que, estimulado pela recente descoberta dos métodos de raio-x, iniciou uma profícua carreira acadêmica pelo estudo dos movimentos do sistema digestório. Todavia, pesquisador em uma época bastante tensa, marcada pela guerra, Cannon logo viu seus interesses sendo direcionados para o estudo dos efeitos das emoções na digestão e para o funcionamento do sistema nervoso autônomo, tendo sido um dos primeiros a desvendar a função da adrenalina no organismo (COOPER, 2008). Após a primeira fase de sua carreira, Cannon utiliza-se de suas descobertas laboratoriais e de seu trabalho de campo para contribuir com a robustez conceitual da teoria fisiológica. Aos fins da segunda década do século XX, Cannon lança os postulados de sua teoria do equilíbrio orgânico. Em seu texto, o autor evoca o conceito hipocrático da vis medicatrix naturae, constatando que o mesmo "implica na
14
existência de agências prontas a operar corretivamente quando o estado normal do organismo é perturbado" (CANNON, 1929b).
Mudanças no entorno excitam reações no sistema, (...) de tal maneira que perturbações são produzidas no mesmo. Essas perturbações são normalmente mantidas em limites estreitos, porque ajustes automáticos internos ao sistema são chamados à ação, e dessa forma, oscilações amplas são prevenidas e as condições internas mantêm-se constantes. (...) As reações fisiológicas coordenadas que mantêm boa parte dos estados estáveis no corpo são tão complexas (...) que foi sugerido que uma designação específica para esses estados fosse empregada: homeostase (ibidem, p. 400).
Objeção pode ser feita sobre o uso do termo stasis, como implicando algo fixo e imóvel, uma estagnação. Stasis significa, de qualquer forma, não somente isso, mas também uma condição; e é neste sentido que o termo é empregado. Homeo, a forma abreviada de homoio, é prefixada ao invés de homo, porque o primeiro denota parecido ou similar e admite alguma variação, enquanto o último, significando o mesmo, indica fixidez e rígida constância. Como no ramo da mecânica chamado estática, o conceito central é o de um estado estável produzido pela ação de forças (ibidem, p. 400).
Os sistemas homeostáticos funcionam com base na ação de dois tipos de agências: as que regulam a homeostase por fornecimento e aquelas que realizam a chamada homeostase por processamento. A homeostase por fornecimento transcorre via quatro movimentos: provisão (provision), estocagem (storage), liberação (overflow) e descarte (discharge). A característica desses fluxos é o ajuste compensatório entre a abundância ocasional (de nutrientes, sais, etc.) e a privação ou necessidade (CANNON, 1929b). A seu turno, a homeostase por processamento não ocorre como uma interação entre perdas e ganhos diretos, como é o caso dos nutrientes, que são ingeridos, digeridos, estocados, liberados ou descartados conforme a necessidade. Ao contrário, como no processo de controle da temperatura, etapas transcorrem na direção de permitir a perda natural de calor para o ambiente ou o isolamento do mesmo no organismo. A ação da homeostase por processamento não é direta na variável, como é o caso da quebra da glicose e disponibilização na corrente sanguínea, mas ocorre por meio de uma série de deslocamentos que objetivam equilibrar a oscilação (CANNON, 1929b). Os materiais em questão no equilíbrio orgânico são os nutrientes, a água, os sais minerais, os gases e as secreções internas. As variáveis de controle, por sua 15
vez, são a pressão osmótica, a temperatura e a acidez (CANNON, 1929b). Além disso, outras medidas são necessárias para manter essas concentrações, como a pressão arterial, a aceleração cardíaca e outras, que não funcionam por perdas ou aquisições diretas, mas podem ser consideradas secundárias. Como exemplo de funcionamento de um sistema homeostático, Cannon (1929b) cita a glicemia. Para este autor, a concentração de glicose no sangue, no estado normal, encontra-se na faixa de 70 e 130 mg/dL. Valores abaixo correspondem à chamada reação hipoglicêmica, e uma redução para além da faixa de 45 mg/dL leva ao coma e à morte. Por sua vez, concentrações superiores a esta faixa são consideradas como um estado hiperglicêmico, e resultam em sobrecarga renal. A homeostase é mais do que uma concepção única, e consiste na soma dos conceitos de limites estreitos (narrow limits), que definem a faixa de normalidade (normal range), e de oscilações, que são compensadas por ajustes automáticos (automatic adjustments), criando um estado estável (steady state) (CANNON, 1929b). Contudo, a associação entre essas ideias não deve ser confundida com o princípio de Le Chatelier, ou lei do equilíbrio físico-químico. Isto é, não é a falta de um produto no meio interno fisiológico que causa um deslocamento das reações orgânicas para que o mesmo seja produzido, tampouco é o excesso de um reagente que é compensado pela maior criação de um produto. De fato, todas as leis que regem os processos físico-químicos ocorrem nos sistemas fisiológicos, porém, as mesmas são ultrapassadas pela própria organização deste sistema, que possui órgãos muito específicos chamados a realizar as funções de equilíbrio (CANNON, 1929b). Para que se possa expôr com fidedignidade esse modelo de equilíbrio do organismo, é necessário que uma questão fundamental seja levada em conta. Estados de equilíbrio devem se manter estáveis, a não ser que que alguma perturbação ocorra. Com efeito, já aqui fora exposto que essas oscilações efetivamente advém, e são compensadas por uma variação interna. Todavia, nada ainda foi dito sobre a origem de tais perturbações.
1.3.1. Integração entre os sistemas extero e interofectivos
16
De forma a melhor embasar a teoria bernardiana, Cannon interpôs o conceito de homeostase entre dois sistemas que constituem uma versão afinada da dicotomia meio interno x meio externo de Bernard. Primeiramente, é preciso lembrar que, em seu livro, o criador da fisiologia experimental define a função de cada um dos sistemas do organismo da seguinte maneira: O aparelho respiratório provê o oxigênio, o aparelho digestivo introduz os alimentos necessários a cada um: o aparelho circulatório e os aparelhos secretórios, que asseguram a renovação do meio [interno] e a continuidade das trocas nutritivas. O sistema nervoso ele mesmo regula todas essas engrenagens e as harmoniza em prol da vida celular (BERNARD, 1885, p. 367). No homem, no maior grau de complexidade, a sensibilidade constitui a função do sistema nervoso, função que existe em vistas de harmonizar a vida celular (...) . O sistema nervoso, em uma palavra, responde a uma necessidade que possuem os elementos orgânicos de serem influenciados uns pelos outros, como os aparelhos respiratório e circulatório respondem à necessidade que sentem os elementos anatômicos de serem influenciados pelo oxigênio, etc. (BERNARD, 1885, p. 284)
A diferença trazida pela teoria de Cannon é a divisão do sistema nervoso em duas partes com mútua influência: o sistema cérebro-espinal e o sistema neurovegetativo. Enquanto as ações do primeiro são acessíveis pela consciência, dividindo-se
em
movimentos
neuromusculares
voluntários
e
movimentos
perceptivos, as do segundo têm por característica serem automáticas e involuntárias. É por meio do sistema cérebro-espinal que o ser humano pode tornar-se familiar com aquilo que lhe é externo, percebendo desde a estrela mais distante até aquilo que se encontra à sua frente. Ao mesmo tempo, por via de processos corticais superiores e de ações neuromusculares voluntárias, somos capazes de construir ferramentas que permitem mudar o ambiente ao redor. Por essas razões, Cannon (1929a) dá a este sistema o nome de sistema exterofectivo. As ações exterofectivas de alteração ativa no ambiente, bem como aquelas relacionadas à percepção de mudanças no entorno, criam no meio interno uma série de alterações em seus parâmetros. Uma pequena caminhada, por exemplo - por mais curta que seja sua distância - exige o gasto de nutrientes do meio fisiológico e causa um aumento considerável da temperatura corporal e da acidez. Caso não houvesse um sistema responsável pelas ações de equilíbrio compensatório
17
correspondentes, o organismo certamente seria levado à falha geral (CANNON, 1929a). O sistema responsável pelas ações compensatórias, dirigidas a equilibrar as oscilações do meio interno causadas pelos atos exterofectivos, é chamado sistema interofectivo, e compreende as duas divisões principais do sistema nervoso autônomo (SNA) : a vago-insular (sistema nervoso autônomo parassimpático SNAp) e a simpático-adrenal (sistema nervoso autônomo
simpático - SNAs)
(CANNON, 1929b). O funcionamento conjunto destas duas porções é a matéria principal do modelo de regulação autonômica de Cannon. Segundo o autor, certamente algumas funções orgânicas passam pelo córtex cerebral, tanto que pode-se modular a respiração voluntariamente. Todavia, como esta espécie de controle encontra-se centralizada, em sua maioria, no tronco encefálico, a maior parte das ações regulatórias não está sob controle voluntário e realiza-se de forma automática (CANNON, 1929b, p. 422). Tomando este paradigma como ponto de partida, exporse-á um breve resumo do funcionamento do sistema interofectivo.
1.4. O MODELO DE REGULAÇÃO AUTONÔMICA: REPOUSO E MOVIMENTO
O sistema nervoso autônomo (SNA) consiste em um segmento do sistema nervoso responsável pela maior parte das funções viscerais do organismo. Sob seu controle estão a motilidade e secreção gastrointestinais, os movimentos da bexiga, a sudorese, a temperatura corporal e outras atividades. As mudanças causadas por este sistema têm por características a rapidez e a intensidade, já que o mesmo possui o poder de alterar significativamente boa parte das funções orgânicas em questão de segundos. Os comandos que causam essas variações partem geralmente de centros medulares, do tronco encefálico, do hipotálamo e do córtex límbico, e são disparados de forma descendente - sob controle cortical - ou por via reflexa (HALL, 2016). Por definição, o SNA costuma ser dividido em sistema nervoso autônomo simpático (SNAs) - com origem na medula, entre a primeira vértebra torácica e a segunda vértebra lombar - e sistema nervoso autônomo parassimpático (SNAp), que dimana do sistema nervoso central (SNC) pelo terceiro, sétimo, nono e décimo pares 18
de nervos cranianos e também da medula, por um segmento localizado entre a primeira e a quarta vértebras espino-sacrais. Ambos os sistemas ligam-se aos órgãos alvo por meio de um feixe de fibras colinérgicas que terminam em um gânglio autonômico, de onde parte um segundo feixe de fibras, também colinérgicas, para o SNAp, e noradrenérgicas para o SNAs (HALL, 2016). Por razões evolutivas, a parcela simpática do SNA possui duas vias de ação, uma
direta,
formada
pelas
conexões
dos
neurônios
pós-ganglionares
(noradrenérgicos) nos órgãos alvo, e uma indireta, também chamada de via hormonal (HALL, 2016). Localizadas na medula das glândulas adrenais, um grupo de células derivadas da crista neural - sobre as quais termina um feixe de fibras préganglionares simpáticas - especializou-se como células secretoras de epinefrina. Essas estruturas, chamadas células de cromafina, comportam-se como um gânglio simpático distribuidor dos estímulos sinápticos para a corrente sanguínea - aos modos de uma descarga de epinefrina (adrenalina). Na sua forma humoral, a ativação simpática tem efeito em todos os órgãos do corpo, mesmo nos que não possuem inervação simpática direta (MESCHER, 2016). Por sugestão de Cannon (1929a), chamar-se-á, daqui para frente, a totalidade das vias autonômicas simpáticas, diretas e indiretas, de sistema simpático-adrenal (SSA). O equilíbrio homeostático é regulado pelo SNAp e pelo SSA por meio de mecanismos de controle antagonista. Em Silverthorn (2017) encontra-se um exemplo bastante esclarecedor desta interação. A autora supõe uma situação onde uma pessoa acaba de alimentar-se em um piquenique e encontra-se sonolenta. A mesma relaxa à sombra de uma árvore, quando, de repente, avista uma cobra aproximando-se. A personagem dá um pulo e sobe na mesa do parque, gritando por ajuda. O perigo passa, alguém mata a cobra, mas a pobre vítima, assustada, leva ainda alguns minutos para se acalmar. Com esta narrativa didática, a bióloga chama atenção para a oposição das funções do SNAp e do SSA: A cena do piquenique (...) ilustra os dois extremos nos quais as divisões simpática e parassimpática atuam. Se você está descansando tranquilamente após uma refeição, o parassimpático está no comando, assumindo o controle de atividades rotineiras, como a digestão. (...) Em contrapartida, o simpático está no comando durante situações estressantes, como o aparecimento da cobra, que é uma ameaça em potencial. (...) Na maior parte do tempo, o controle autonômico das funções corporais atua como uma “gangorra”, alternando “subidas e descidas” (aumento e redução de atividade) entre as divisões simpática e parassimpática. Dessa forma, as
19
duas divisões cooperam para manter a sintonia-fina de diversos processos fisiológicos (SILVERTHORN, 2017, p. 359-360).
Com este material teórico, é possível retomar alguns fatos sobre a regulação autonômica estudados por Cannon no início de sua carreira e retomados após a teoria da homeostase. Com a integração dessas novas informações, será possível compreender boa parte do modelo do estresse-homeostase, a ser tratado mais adiante.
1.5. TEORIA DA EMERGÊNCIA DE CANNON: A RESPOSTA DE LUTA OU FUGA
No item 1.3, viu-se que toda a atividade exterofectiva, mesmo uma pequena caminhada ou um momento de repouso, exige uma compensação correspondente por parte do sistema interofectivo. Um dos momentos onde a interação entre esses dois sistemas fica mais evidente é durante a excitação emocional. Em grego, emoção se escreve páthos. Segundo o dicionário grego-inglês (LIDDELL; SCOTT, 1940), páthos é um vocábulo que denota tudo aquilo que ocorre por incidente ou acidente, e descreve todas as coisas que se passam com uma pessoa ou coisa, no sentido de uma experiência passiva, seja esta boa ou má. De acordo com Julião (2014), páthos é tudo aquilo que age provocando uma modificação no estado normal de um indivíduo, uma força que pode empurrá-lo para fora de si mesmo em direção à perda de controle. No dicionário da língua portuguesa, por exemplo, encontramos a palavra patologia, derivada de páthos, como significadora de um "desvio em relação ao que é considerado normal (medicina: desvio em relação ao que é considerado normal do ponto de vista fisiológico e anatômico e que constitui uma doença)" (PRIBERAM, 2013). Em latim, uma palavra que traduz bem este vocábulo grego é affectio: “uma alteração no estado ou na condição do corpo ou da mente” (LEWIS; SHORT, 1879), que produz um affectus, ou “um estado do corpo, e especialmente da mente, produzido em alguém por alguma influência [afecção]” (Ibidem). De um ponto de vista conceitual, a diferença entre as vivências afetivas não é facilmente delimitável. Para o psiquiatra Karl Jaspers (1977, p. 134), “emoções são sucessos do sentimento, complexos momentâneos, de grande intensidade e com manifestações corporais concomitantes e consecutivas”. A concepção de emoção, 20
para Dalgalarrondo (2008) é a de uma reação afetiva aguda, momentânea, intensa, de curta duração, que um indivíduo produz perante certas excitações internas ou externas. Na visão do autor, as emoções são acompanhadas de reações somáticas neurovegetativas mais ou menos específicas, de maneira que podem ser definidas como experiências ao mesmo tempo psíquicas e somáticas. A partir da perspectiva evolucionista de Darwin, as emoções, antes interpretadas como descontroles ou simples movimentos do ser humano na busca do prazer e na evitação da dor, puderam ser apreciadas em termos de seu valor de adaptação ao ambiente. Manifestações bem conhecidas desde a antiguidade, como o rubor facial, a dilatação das pupilas, o arrepiar dos cabelos e a palpitação, vistas como meramente naturais, passaram a ganhar outro sentido após certas descobertas da biologia e da fisiologi (CANNON, 1915). Em 1915, antes de ter conceituado a ideia de homeostase, Walter Cannon publicou um livro intitulado “Mudanças Corporais na Dor, na Fome, no Medo e na Fúria: uma descrição das pesquisas recentes sobre a função da excitação emocional”. Nesta obra, o fisiologista desenvolve a primeira formulação teórica que marcaria o sucesso de sua carreira, ao desvelar o sentido adaptativo oculto das manifestações somato-psíquicas características dos estados emocionais (Ibidem). Antes de tudo, é importante lembrar que o vocábulo emoção deriva do verbo latino emovere, que significa mover para fora, demover, deslocar ou movimentar (LEWIS; SHORT, 1879). Em uma palavra, pode-se dizer que toda emoção é também uma motivação, ou seja, toda emoção tende a algum agir. Darwin já reconhecia que as emoções têm efeitos importantes na performance dos indivíduos em certas situações. A excitação emocional vivenciada na fúria, por exemplo, possui um efeito revigorante essencial para os momentos nos quais é necessário lutar ou fugir. Não é sem razão que antes de campeonatos ou combates a preparação do estado emocional seja de suma importância. Por meio de gritos de guerra e movimentos corporais efusivos, jogadores e combatentes repetem cenas que foram fundamentais para a vida dos povos que nos antecederam, e podem mesmo tolerar horas de esforço improváveis para as pessoas em situações comuns (CANNON, 1915, p. 216). Em sua obra, Cannon (1915, p. 217) se utiliza do conceito de reservas de poder, cuja autoria pertence a William James. Na visão deste último, todos os indivíduos possuem uma certa quantidade de energia guardada, disponível para 21
liberação assim que a ocasião se apresente. A ativação de respostas muito diversas, como o tremor, a emissão de notas bastante estranhas, na forma de gritos e gemidos, pelas cordas vocais, e os movimentos tensos dos músculos labiais nos momentos de excitação emocional são sinais de uma hipermobilização energética a transcorrer no sistema nervoso. Conforme narramos na cena do piquenique, perante certos estímulos, o organismo pode passar muito rapidamente do estado de repouso para um estado de atividade. Como e porque este movimento efusivo ocorre não é difícil de intuir. Afinal, perante um animal peçonhento, ancestrais tiveram razão em fugir com todas as suas forças, e é graças a este tipo de ato que estamos aqui. Todavia, o modelo de regulação autonômica pede que alguns fatos a mais sejam levados em consideração na análise deste cenário. A verdade é que, nesses momentos, não simplesmente levantamos e corremos, ou somente lutamos contra a ameaça que ali se encontram ou são apenas imaginadas. Com efeito, todo o corpo se altera nessas situações, e também o estado mental. Menos óbvios e visíveis do que o rubor da pele, a dilatação das pupilas, o suor frio e a aceleração cardíaca, a apreciação das mudanças viscerais mais profundas propicia um entendimento mais preciso do valor evolutivo desses estados de excitação emocional. À guisa de exemplo, Cannon (1929a) cita que cachorros colocados em uma esteira por duas horas têm seus níveis glicêmicos reduzidos de 90 mg/dL para até 66 mg/dL. Como reserva energética, os cães utilizam o glicogênio do fígado, e caso este órgão seja extirpado e os animais procedam a continuidade do experimento, em pouco tempo são observados os sinais de coma e convulsões hipoglicêmicas. Para que isto não ocorra, levando a uma situação de morte iminente, uma redução da glicemia para menos de 70 mg/dL ativa o sistema simpático-adrenal (SSA). A ativação do SSA causa a liberação de norepinefrina nos receptores dos órgãos-alvo, bem como a liberação de epinefrina (adrenalina) pela medula adrenal, em uma proporção de 80% em relação à norepinefrina convertida neste mesmo local. Os efeitos da epinefrina e da norepinefrina no organismo são praticamente os mesmos, com exceção do tempo de duração, já que a estimulação por via indireta ou hormonal não é revertida pelo mecanismo de recaptação sináptica, mas deve esperar a liberação por via urinária, que demora de 5 a 10 vezes mais tempo do que a primeira (2 a 4 minutos no total, aproximadamente). Mesmo que a ativação do 22
SSA esteja presente a todo o momento - com um nível de liberação basal de norepinefrina/epinefrina de aproximadamente 0,2/0,05 μg/kg/min, respectivamente- , em algumas situações emergenciais este sistema cria uma descarga em massa chamada de resposta de alarme ou resposta de luta ou fuga (HALL, 2016, p. 780781, 783). A resposta ou reação de luta ou fuga, assim chamada de forma alusiva à ação comportamental dos animais no enfrentamento de perigos, é o conceito central da teoria de emergência de Cannon, e seu ”significado indica as reações autonômicas que se expressam numa situação desafiadora” (SOUSA; SILVA; GALVÃO-COELHO, 2015 p. 3). O evento total da reação de alarme é definido por oito sintomas:
1. Aumento da pressão arterial. 2. Aumento do fluxo sanguíneo para os músculos periféricos e concomitante diminuição do mesmo para órgãos como o trato gastrointestinal e os rins, não necessários para a atividade motora enérgica. 3. Aumento das taxas de metabolismo celular pelo corpo. 4. Aumento da concentração de glicose. 5. Aumento da glicólise [quebra dos nutrientes em glicose] no fígado e nos músculos. 6. Aumento da força muscular. 7. Atividade mental aumentada. 8. Aumento da taxa de coagulação no sangue. (HALL, 2016, p. 784)
Perceber as modificações causadas no corpo pela excitação emocional deixa fácil concluir tratar-se de um movimento na direção não do repouso, mas da ação. “Em (...) três casos, de intensa alegria, intenso sofrimento e intenso desgosto, a influência da divisão cranial do sistema nervoso autônomo [SNA parassimpático] foi sujeitada, a digestão cessou” (CANNON, 1915, p. 279). Deste modo, como estados motivacionais, tais afecções possuem valor antecipatório, preparando o corpo para trabalhar no máximo de sua força:
Todas as respostas que ocorrem na dor e na excitação emocional foram portanto consideradas como antecipatórias dos atos instintivos que naturalmente seguem. Como vimos, essas respostas podem com bom senso ser interpretadas como preparatórias dos vigorosos esforços que podem ser demandados ao organismo (CANNON, 1915, p. 205)
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O que foi exposto até aqui resume as bases do modelo de regulação autonômica da homeostase. Viu-se que a ação do sistema exterofectivo ou cérebroespinal causa oscilações nos parâmetros do meio interno. Segundo este paradigma, tais variáveis internas são mantidas dentro de limites estreitos e um desvio desse alvo causa desgaste dos sistemas e uma tendência à falha geral - em caso de excesso. Essas variações são corrigidas e prevenidas por alterações no balanço do organismo, pela ação de controles antagonistas e cooperativos com objetivo compensatório. Como fora dito, tais alterações internas podem ocorrer via mecanismos de correção ou de antecipação, como é o caso das emoções. O padrão que segue todas estas modificações
é
o
do
termostato,
ou
seja,
um
aparelhamento que funciona no formato de feedback ou retroalimentação negativa, corrigindo a distância das variáveis para o ponto alvo. Após Cannon, muitas novas descobertas foram feitas sobre o modelo de regulação autonômica. Entre essas, pode-se mencionar avanços na compreensão da integração entre o sistema nervoso autônomo e outros sistemas, como o endócrino. De fato, a relevância da descoberta deste autor foi bastante importante para explicar muitos fenômenos psicofisiológicos observados na guerra. Como apontam Sterling e Eyer (1988), os estudos de Cannon enfatizaram estados de excitação intensos e agudos, de curta duração, que podem-se dizer característicos da frente de combate. Mais adiante, contudo, outros cientistas puderam explicar com maior exatidão o que ocorre em condições onde outra variável entra em ação: o tempo de duração do estímulo desafiador e a consequente resistência requerida pelo organismo.
1.6. A TEORIA DO ESTRESSE DE SELYE: RESISTÊNCIA E EXAUSTÃO
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Hans Selye (1907 - 1982) foi um endocrinologista húngaro-canadense que tornou-se bastante conhecido pela criação de uma importante ferramenta teórica para as ciências da saúde: o conceito de estresse. Espalhada pela mídia, a palavra estresse marcou os fins do século XX, e tornou-se praticamente sinônimo da vida atual. Com as modificações criadas no ambiente biopsicossocial a partir da revolução industrial, pouco sentido oferecem para imagens de ancestrais humanos lutando contra predadores pela sobrevivência. Todavia, como observa Jackson (2013, p. 3), ainda que fora de contexto, as respostas fisiológicas herdadas de continuam ativas até hoje. De acordo com o autor (op. cit.) é como se a adaptação e a seleção natural ainda não tivessem tido tempo de preparar uma geração que pudesse lidar bem com a velocidade das informações e das transações econômicas, assim como com a poluição ambiental e com a insegurança das relações sócioculturais (Ibidem). Os estudos sobre o estresse são de grande utilidade para a interpretação dos dados epidemiológicos da atualidade. Após a chamada transição do paradigma epidemiológico, as doenças crônicas - como a hipertensão, a diabetes e as doenças autoimunes - vieram ao centro do palco de investigação da medicina. Durante os séculos XVI e XVII, doenças crônicas estavam associadas apenas a pessoas relativamente à margem da sociedade, principalmente aquelas que viviam uma vida vista como imoral, baseada no destempero, no sedentarismo e na inclinação aos vícios. Segundo Susser e Susser (1996), na primeira metade do século XIX, o paradigma dominante na etiopatogenia era dado pela teoria do miasma, que culpava emanações do solo, da água e do ar como causadoras dos sofrimentos e doenças Na primeira metade do século XX, com a descoberta da microbiologia, o paradigma dominante passou a ser definido pela teoria do germe, com as doenças infectocontagiosas no foco dos estudos sobre saúde. Contudo, a partir da segunda metade do século XX, com a erradicação de boa parte das epidemias de origem microbiológica, as doenças crônicas tornaram-se as verdadeiras vilãs dos governos, dos planos de saúde e da qualidade de vida dos seres humanos em geral. Em 1983, as seis maiores causas de mortes nos Estados Unidos da América (EUA) eram a doença coronariana, o câncer, os problemas pulmonares, os acidentes, a cirrose e o suicídio, todas estas patologias direta ou indiretamente ligadas ao estresse. Além disso, a chamada epidemia de estresse é multifacetada, e 25
compreende também o estresse ocupacional, que incomoda as empresas cada vez mais com a queda na produtividade, o absenteísmo e os altos custos de seu tratamento (JACKSON, 2013, p. 3). Malgrado sua popularidade, o termo estresse não possui muita utilidade enquanto expressão idiomática. Para o desenvolvimento científico, é essencial que os termos não tenham somente força de denotação, mas que exprimam fenômenos passíveis de medição e estudo. Do ponto de vista meramente semântico, o estresse pode ser definido como:
uma sensação de estar pressionado, de perder o controle, culminando na angustiante vivência de não visualizar uma saída para a situação. Sensação de fim, de estar acuado, ao mesmo tempo fragilizado e sem esperança. Todas essas emoções são bem conhecidas para quem, por exemplo, passa pela perda de um amor ou de um emprego, pela realização de um concurso, pela doença de um ente querido ou por um acidente de trânsito. Por outro lado, momentos de crescimento pessoal - como o nascimento de um filho ou uma promoção - impõem novos papéis e também podem provocar estresse (ZIMPEL, 2005, p. 12).
À luz da ciência, o conceito de estresse oferece um panorama bem diferente da simples sensação. Ao contrário, sob a perspectiva da fisiologia e da endocrinologia, estresse descreve um conjunto de sintomas que interpõem-se em etapas caracterizadas pela ação de mecanismos bastante complexos. O aglomerado dessas alterações compõe a chamada síndrome de adaptação geral (SAG), que foi descoberta e conceituada por Hans Selye. É a essa engenharia fisiológica que se alude quando da utilização da palavra estresse em textos científicos. Em seu ofício no laboratório, Selye encontrou essa síndrome (SAG) de forma relativamente acidental. Enquanto trabalhava com diferentes extratos de ovários bovinos, na esperança de descobrir um novo hormônio, o endocrinologista descobriu que, não importando como fossem preparadas, todas as suas amostras causavam o mesmo conjunto de sintomas nos animais injetados, a saber: (1) um aumento no córtex das glândulas adrenais, (2) úlceras gastrointestinais, (3) involução do timo e dos órgãos linfáticos (SELYE, 1976). Baseado nessa descoberta, Selye construiu a hipótese de que esses sinais apontavam para uma hiperativação do sistema nervoso simpático causado não por uma nova substância, mas pela própria tentativa do 26
organismo de restabelecer a homeostase do meio interno após a entrada de um agente perturbador. Com uma égide de inventivos experimentos, Selye pode provar que, de fato, estressores físicos ou psíquicos agindo de forma prolongada sobre um organismo, desde choques inofensivos à provocação de estados de temor, com o tempo, causam a mesma síndrome de adaptação geral (SAG) (SCOTCH; LEVINE, 1970). A SAG é composta de três etapas, e inicia com a clássica reação de alarme de Cannon, na qual a ruptura (ou a ameaça de ruptura) do equilíbrio no meio interno convoca o SSA a liberar os produtos catecolaminérgicos, a epinefrina e a norepinefrina, no organismo. Em um segundo momento, na fase de resistência, um eixo formado pelo hipotálamo, a pituitária e a parte externa das glândulas adrenais (eixo-HPA) é chamado à liberar produtos glicocorticóides no sistema, momento no qual a eficiência física e cognitiva para o enfrentamento do desafio chega a seu ponto máximo. Caso haja falha do indivíduo para neutralizar o agente estressor, a resposta toma sua forma crônica, refletindo-se em alterações fisiológicas e comportamentais ao modo de uma sobrecarga energética e, por fim, na exaustão do organismo (SOUZA; SILVA; GALVÃO-COELHO). As doenças causadas neste último estágio, que corresponde à instauração de uma resposta cronificada, são chamadas doenças de adaptação (SELYE, 1976). Estressores crônicos, diferentes de outras demandas, usualmente atravessam a vida de uma pessoa, forçando-a a reestruturar sua identidade ou funções sociais. Outra característica dos estressores crônicos é sua estabilidade (...). Exemplos de estressores crônicos incluem sofrer de uma lesão traumática que leve à deficiência física, oferecer cuidados a uma esposa com demência severa, ou ser um refugiado forçado a sair de sua terra natal pela guerra. Estressores distais são experiências traumáticas que ocorreram em um passado distante e ainda têm potencial de continuar mudando as funções do sistema imune por causa das sequelas cognitivas e emocionais permanentes. Exemplos de estressores distais incluem ter sido sexualmente abusado quando criança, ter testemunhado a morte de um companheiro soldado durante o combate e ter sido prisioneiro de guerra (MILLER; SEGERSTROM, 2004, p. 1)
O que precisou ser acrescentado por Selye à teoria de Cannon, portanto, foi o fato de que a ação endócrina das glândulas adrenais não termina na simples liberação adrenérgica, mas prolonga-se numa segunda fase, de liberação de glicocorticóides, tão ou mais potente do que a primeira. Ocorre que, da instauração 27
de uma reação de alarme, um grupo de células localizadas no núcleo paraventricular do hipotálamo é estimulado a secretar uma substância chamada hormônio liberador de corticotrofina (CRH) no sistema de capilares da adenohipófise (pituitária é outro nome da glândula hipófise). Por sua vez, células dessa glândula secretam, na circulação sanguínea, o que é conhecido como hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) (HERMAN; CULLINAN, 1997). O ACTH, ao entrar em contato com células da zona fasciculada do córtex adrenal, promove a liberação de glicocorticóides, dos quais o principal é o cortisol (MESCHER, 2016). O cortisol permite a manutenção da função do corpo durante a resposta de estresse ao mobilizar a quebra de proteínas e lipídios na corrente sanguínea, o que a acaba evitando a queda na glicemia que poderia ser causada pelo fim das reservas mais disponíveis durante a ação muscular prolongada de luta ou fuga. Além disso, a liberação desta substância também tem outro valor antecipatório, por sua ação anti-inflamatória nas lesões que poderiam ser causadas durante o enfrentamento dos desafios ambientais (HALL, 2016).
Figura 1 - A liberação neuroendócrina na resposta do estresse Fonte: adaptado de LEDOUX; RODRIGUES; SAPOLSKY, 2009, p. 296
A retroalimentação negativa que causará o decaimento da resposta de estresse é realizada pelo retorno dos glicocorticóides ao núcleo paraventricular do
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hipotálamo, causando a liberação de endocanabinóides que interrompem a ativação do eixo-HPA (HERMAN et al., 2016). Para além, a teoria do estresse, no cerne de sua definição, reinterpreta a relação entre os sistemas extero e interofectivos a partir de uma figuração bastante própria. O lexema estresse deriva do verbo latino stringere, com uma miríade de significados que vão desde afetar, comprimir e esfolar, até injuriar e desgastar (LEWIS; SHORT, 1879). De acordo com Zimpel (2005), o vocábulo stress faz parte da lei física de Hooke, de 1658, onde é definido como a magnitude de uma força externa a produzir uma deformação (strain) proporcional em um metal maleável. Segundo a mesma lei, a quantidade máxima de stress suportada por um material metálico antes de ficar permanentemente deformado é chamada limite elástico. Deste modo, mais do que somente colocar um ramo a mais na resposta de luta ou fuga, representado pela liberação de corticóides, a teoria seyliana contribui para explicar os efeitos a médio e longo prazo da pressão excessiva de um (exterofectivo) sobre o outro sistema (interofectivo). Por esta generalização das forças em ação na interação entre os dois sistemas, o estresse nomeia a unidade das demandas feitas ao organismo pelas oscilações do mesmo em relação ao ambiente: O estresse é a resposta não específica do corpo a qualquer demanda feita sobre ele, isto é, o ritmo sob o qual vivemos a cada momento. Todas as criaturas vivas estão constantemente sob estresse e qualquer coisa, prazerosa ou desprazerosa, que estimule a intensidade da vida, causa um aumento temporário no estresse, o desgaste exercido sobre o corpo. Um tapa dolorido e um beijo apaixonado podem ser igualmente estressantes. (SELYE, 1976, p. 137).
Tomando de maneira inespecífica a totalidade dos estressores, as verdadeiras variáveis da teoria de Selye são, em resumo, o tempo de exposição e a intensidade do estressor. É a interação entre estes dois termos que definem sua cronicidade, e determinam se o desgaste causado no corpo pela necessidade de alteração dos próprios parâmetros irá ou não ser causa de patologias. Como vimos, os glicocorticóides fazem parte da resposta do estresse, e são liberados por um eixo paralelo ao sistema simpático-adrenal, chamado eixo-HPA. Já foi dito que a liberação de cortisol é bastante útil durante a fase de resistência da SAG. Seu mecanismo de ação mobiliza as reservas de energia do organismo (proteínas e lipídios), aumenta o apetite e a atividade de locomoção e o comportamento de busca de alimentos. Além disso, a liberação de energia na corrente sanguínea, na forma de 29
glicose, causa um aumento da secreção de insulina, forçando o uso do açúcar pelos órgãos e músculos. Tudo isso é bastante importante quando precisamos correr alguns quilômetros a mais. Contudo, a ativação crônica dessa resposta pode levar a alguns quadros bastante graves. Em primeiro lugar, se a origem do estresse for puramente psíquica, a estimulação do apetite e da busca de alimentos não será útil, já que não haverá necessidade de fugir ou lutar. Além disso, o aumento da secreção de insulina faz com que os tecidos sejam forçados a absorver energia. Caso não haja o gasto da mesma no enfrentamento de desafios reais, é fácil intuir que a consequência será a obesidade e a diabetes.. Além disso, como uma fase de resistência, a resposta do eixo-HPA foi essencial para alguns animais durante períodos de seca, tempestades e outros estímulos. Nesses momentos, um efeito importante do cortisol foi a diminuição de atividades não necessárias para a sobrevivência imediata, como as atividades reprodutivas. Ademais, o cortisol causa um aumento na expressão de comportamentos de abrigamento, fazendo os animais procurarem refúgio e repouso, de forma a gastar menos energia. Em muitas espécies, o efeito dos glicocorticóides chega a provocar um estado de torpor. Em indivíduos jovens, por sua vez, a aplicação dessas substâncias está associada a um aumento de comportamentos que, na raça humana, considera-se desagradável, como o pedido constante de comida (MCEWEN; WINGFIELD, 2005). Por ser uma resposta inespecífica, o estresse também está ligado a outros tipos de estímulo menos familiares para a psicologia, como as infecções. Em verdade, os produtos catecolaminérgicos e os glicocorticóides podem ser agentes de modificações significativas no sistema imune.
1.6.1. Alterações do sistema imune causadas pelo estresse
A conceituação da palavra estresse, portanto, é utilizada para indicar o conjunto de alterações fisiológicas, comportamentais, com repercussões no sistema imune, que o organismo desenvolve diante de um desafio (agente estressor) de natureza física ou psicossocial (positivo ou negativo), que rompe a homeostase do organismo e exige assim um esforço de adaptação. (ZIMPEL, 2005 apud SOUSA; SILVA; GALVÃO-COELHO, 2015. p. 3)
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Os efeitos do estresse no organismo podem ser adaptativos a curto prazo e, em realidade, já vimos que a resposta de estresse possui a função evolutiva de aumentar mais ainda a capacidade do organismo em lidar com os desafios ambientais, melhorando o vigor e a disponibilidade de energia para a luta ou para fuga. A capacidade de criar respostas adaptativas em face de perigos e estressores - como predadores e fenômenos naturais - garantiu a sobrevivência das espécies existentes até hoje. Nos mamíferos, essas respostas incluem a reação de luta ou fuga, alterações que aumentam a circulação sanguínea e o consequente aumento da oxigenação, bem como um aumento do metabolismo da glicose, que garante a maior vigorosidade cardíaca e muscular. Além do risco oferecido pelas várias situações desafiadoras, lutar e correr das mesmas traz consigo o risco de ferimentos, que podem tornar-se via de entrada de agentes infecciosos. Mudanças induzidas pelo estresse no sistema imune, agindo na prevenção de maiores complicações que poderiam surgir em tais momentos foram, dessa maneira, selecionadas por sua adaptatividade. Na vida moderna, dificilmente encontramo-nos diretamente com predadores ou mudanças no ambiente que possam deixar-nos em total desamparo em ambientes inóspitos. De qualquer forma, as respostas fisiológicas humanas continuam a refletir o cenário ambiental habitado por ancestrais humanos.
Exames acadêmicos, demissões e problemas de
relacionamento interpessoal não necessitariam diretamente das mesmas alterações fisiológicas que um antepassado teve de desenvolver em uma floresta. Porém, por razões hereditárias, esses estímulos continuam a ter consequências somáticas que muitas vezes tomam forma crônica e grave (MILLER; SEGERSTROM, 2004). O sistema imune (SI), responsável direto por nossas defesas perante a entrada de substâncias e organismos estranhos (patógenos), divide-se em sistema imune inato e sistema imune adquirido. A imunidade inata é inespecífica, e compõese de barreiras físico-químicas, como a pele, o suor, a saliva e outras secreções, por células fagocitárias, capazes de isolar e destruir patógenos, e de outras estruturas. A imunidade adquirida, por sua vez, é específica e possui memória dos antígenos com os quais o corpo toma contato durante a vida, sendo composta por linfócitos e anticorpos (ABBAS; LICHTMAN; PILLAI, 2015). Além disso, o SI possui órgãos, como a medula-óssea, onde são produzidas as células leucocitárias (glóbulos
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brancos), o timo, onde alguns tipos de linfócitos amadurecem, os nodos e vasos do sistema linfáticos, o baço e o fígado (Ibidem). A conexão entre a resposta de estresse e o SI ocorre por meio de uma série de caminhos. Em primeiro lugar, de maneira descendente, as fibras do sistema nervoso simpático (SNAs) inervam diretamente os tecidos primários (medula óssea e timo) e secundários (baço e sistema linfático) do SI, linfócitos e outras células deste sistema que possuem receptores adrenérgicos. Em segundo lugar, o sistema simpático-adrenal e o eixo-HPA secretam epinefrina, norepinefrina e cortisol na corrente sanguínea, substâncias estas para as quais os leucócitos também possuem receptores (MILLER; SEGERSTROM, 2004.) De maneira geral, estressores agudos, tendem a intensificar a imunidade adquirida e, principalmente, a imunidade inata e os processos inflamatórios. Nesses momentos, as células do sistema imune são estimuladas a migrar para locais onde sua ação seja mais rápida e efetiva contra os invasores, o que já vimos ter razões evolutivas. Por sua vez, estressores crônicos, como o desemprego, tendem a diminuir a imunidade geral, tornando o organismo mais propenso a infecções e doenças. Por esta razão, as mudanças notadas por Selye em seus experimentos de fase de resistência, demonstraram uma involução dos órgãos do sistema imune, como o timo e o sistema linfático, causada por estressores mais prolongados: Estressores nos parâmetros temporais das situações de luta-ou-fuga vivenciadas pelos ancestrais evolucionários dos humanos [ou seja, estressores agudos - 1ª fase da SAG] eliciam mudanças potencialmente benéficas no sistema imune. Quanto mais um estressor desvia desses parâmetros, tornando-se mais cronificado, (...) mais os componentes do sistema imune são afetados de forma potencialmente prejudicial (MILLER; SEGERSTROM, 2004, p. 20)
As alterações prejudiciais causadas no sistema imune pela resposta crônica de estresse devem-se à ação do cortisol. O cortisol liberado durante a fase de resistência tem a capacidade de praticamente suprimir os processos inflamatórios, bem como a febre e a ação dos linfócitos, além de impedir o desenvolvimento de reações alérgicas que podem ter sido letais para os ancestres não selecionados durante a evolução. Contudo, a liberação crônica de cortisol causa a atrofia dos tecidos linfóides, diminuindo a produção de anticorpos e resultando numa queda 32
geral da imunidade. Esta queda pode, ocasionalmente, levar a infecções generalizadas e à morte por doenças que poderiam, de outra forma, não ser letais (HALL, 2016).
1.6.2. Estresse crônico e outras doenças
O modelo da imunossupressão, causada pelo estresse crônico, não explica, contudo, a forma como o estresse age em alguns fenômenos, como as doenças alérgicas, autoimunes, reumatológicas e cardiovasculares. Para tocar este ponto essencial para a apreciação das doenças crônicas, Ritchey, Miller e Cohen (2002) criaram o que ficou conhecido como modelo da resistência ao cortisol. Com a frequente liberação de glicocorticóides durante a resposta de estresse, o organismo torna-se habituado ao estímulo representado por estas substâncias. Como os mecanismos de homeostase funcionam por retroalimentação negativa, em um organismo saudável, o excesso de cortisol no corpo causa uma diminuição na produção do mesmo elemento pelo eixo-HPA. No teste de supressão de cortisol, uma substância análoga é administrada por via oral ao paciente. Na manhã seguinte, coleta-se o sangue e mede-se o nível sérico deste elemento. O resultado esperado em indivíduos saudáveis é a supressão do cortisol a valores inferiores a 1,8 μg/dL (EXPÓSITO et al., 2014). Em pacientes submetidos a tratamentos com esta substância, ou que, seja por tumores ou por estresse crônico, a produzem mais frequente e intensamente do que o normal, os receptores nas células do organismo tornam-se menos sensíveis ou até resistentes à mesma. Com isso, a mensagem para a interrupção da ativação do eixo-HPA - via feedback negativo - fica prejudicada, bem como tornam-se reduzidas as ações do cortisol no organismo. Este quadro leva a uma diminuição ou extinção da capacidade antinflamatória da substância, causando uma série de problemas, como alergias, doenças autoimunes, inflamação crônica pulmonar (doença pulmonar obstrutiva crônica) e doenças cardiovasculares, já que o cortisol é essencial para o funcionamento normal deste sistema (RODRIGUEZ, 2016, p. 184185). Segundo Rodrigues et al. (2016), além das doenças autoimunes, a resistência ao cortisol pode predispor o organismo ao câncer e a doenças cardiovasculares. No 33
tratamento oncológico, muitas vezes os glicocorticóides são utilizados como coadjuvantes, e a resistência a estas substâncias impossibilita o uso com este objetivo, além de reduzirem a ação dos linfócitos na identificação e destruição de células tumorais. Ademais, os glicocorticóides são essenciais para o funcionamento do sistema cardiovascular, mas seu excesso pode causar hipertensão, obesidade, aterosclerose e doenças do metabolismo (como diabetes), fatores que predispõe à doenças cardiovasculares. Portanto, a desregulação de seu mecanismo de retroalimentação negativa é uma causa importante de doenças crônicas gerais (RODRIGUEZ, 2016, p. 184-185). Para Keller et al. (2017), a desregulação do eixo-HPA e da produção de cortisol não está somente ligada a condições médicas gerais e a doenças crônicas que afetam o âmbito somático. Pelo contrário, a dificuldade na inibição da ativação do eixo-HPA está também implicada na patofisiologia da ansiedade, da depressão e do funcionamento cognitivo. Segundo esses autores, 40 a 60% dos pacientes com depressão apresentam uma produção excessiva de cortisol (hipercortisolemia), e outras perturbações do eixo-HPA e esta ocorrência está associada a comorbidades como diabetes do tipo II e outras síndromes metabólicas. Além disso, essas estatísticas são maiores para pacientes que apresentam sintomas psicóticos concomitantes.
1.7. PANORAMA DA REGULAÇÃO AUTONÔMICA
No presente capítulo, viu-se uma descrição resumida sobre o histórico das teorias fisiológicas da estabilidade, passando pelo conceito bernardiano de meio interno e pelos conceitos cannonianos de homeostase e resposta de luta ou fuga. Após essa exposição introdutória, fizemos um apanhado geral da organização do sistema neurovegetativo, descrevendo a regulação autonômica como compensatória das mudanças criadas pelo do sistema exterofectivo. Além disso, sobre este modelo de regulação, dissemos que o sistema interofectivo funciona como uma gangorra entre repouso e digestão - geridos pela ativação parassimpática- e movimento e enfrentamento - coordenados pela ação do sistema simpático adrenal. Ademais, viuse também que os sistemas homeostáticos de equilíbrio baseiam-se na correção das oscilações conforme um modelo conhecido como termostato. 34
Ao tocar da teoria de emergência de Cannon, que justifica o papel evolutivo da excitação emocional como uma alteração homeostática antecipatória, foi possível perceber o valor motivacional e adaptativo dos estados afetivos, que mobilizam energia e nutrientes para o enfrentamento dos desafios ambientais. Nesse ponto, pode-se expor o papel da liberação dos hormônios adrenais na aceleração do metabolismo e preparação do corpo para o esforço. Numa segunda etapa, reviu-se a teoria do estresse, tal qual pensada por Hans Selye, e adicionou-se duas fases que ocorrem em sequência à reação simpática de alarme: a fase de resistência e a fase de exaustão, que compõem a síndrome de adaptação geral. Sobre isso, falamos sobre o papel do cortisol liberado pelo eixo-HPA no metabolismo e na conservação do equilíbrio corporal durante o esforço e terminou-se por explicar a forma como esta substância age no sistema imune e como a resistência à mesma pode causar uma série de doenças ligada ao estresse. Segundo este paradigma, vimos que a modernidade trouxe consigo alterações ambientais importante, a afetar a fisiologia do corpo, e citamos as doenças crônicas como uma preocupação importante a ser tida em conta na vida contemporânea. Em suma, os sistemas homeostáticos funcionam pela organização de mecanismos de retroalimentação negativa. Essa maquinaria permite que certos parâmetros do organismo mantenham-se em uma faixa de constância definida por valores máximos e mínimos, o chamado limite estreito. A função de todos os sistemas do organismo nesse processamento é manter a relativa estabilidade dessas variáveis. Tanto a resposta de luta ou fuga como a resposta de estresse têm por objetivo evitar a falha do organismo que poderia ser ocasionada pela queda ou aumento excessivos do valor dos parâmetros orgânicos. Além disso, vimos que, nesses modelos, o sistema nervoso autônomo age como um braço direito do sistema cérebro-espinal e que enquanto um está dirigido para o interior, o outro dirige-se para o ambiente. Sobre o estresse, que é uma força de pressão sobre o sistema interofectivo, dissemos que duas variáveis concorrem para definir as consequências de normalidade ou patologia: o tempo e a intensidade do estímulo estressor. Ademais, vimos que o estresse é uma resposta inespecífica que, como tal, não leva em
35
consideração a qualidade do estressor, mas tão somente a quantidade de força que o mesmo exerce no organismo e sua duração. Segundo
Jackson (2013, p. 13), a teoria da homeostase
e seu
prolongamento, a teoria do estresse, por mais que tratem do tema da estabilidade, não permaneceram, de forma alguma, estáticas ou livres de crítica. A maioria das opiniões contrárias a este paradigma teórico, segundo o autor, focaram em desenvolver uma apreciação mais dinâmica dos processos de equilíbrio. Aos fins do século XX, por razões históricas, o interesse dos cientistas deslocou-se da manutenção de estados estáveis e de valores de ajuste para a acentuação da fluidez e da flexibilidade dos parâmetros do organismo no enfrentamento dos desafios ambientais. Além disso, a proclamação da década de 90 como a década do cérebro, estimulou a exploração das funções do sistema nervoso central no equilíbrio sistêmico. O panorama dessas novas descobertas e de uma possível mudança de paradigma representado pelas mesmas é o assunto do próximo capítulo.
2. CRÍTICAS AO MODELO DE REGULAÇÃO AUTONÔMICA DO ESTRESSEHOMEOSTASE
O presente capítulo consiste em uma exposição das críticas ao modelo de regulação autonômica e neuroendócrina da homeostase, inaugurado por Claude Bernard, instituído por Walter Cannon e continuado na teoria do estresse de Hans Selye. Via de regra, essas críticas concentram-se em dois aspectos. Por um lado, os paradigmas posteriores problematizaram certos tópicos relativos à ideia de constância, representada pelo modelo do termostato. Por outro, os autores que comentaram essas teorias procuraram revelar outra face dos mecanismos de regulação, regida não pelo sistema nervoso autônomo, mas sim pelo cérebro. Em resumo, dinamismo e cerebralidade são as palavras-chaves a serem explicadas nas próximas páginas. Segundo Damasio e Damasio (2016), um dos problemas em extrapolar o conceito
de
regulação
autonômica
para
a
análise
da
fisiologia
e
dos
comportamentos humanos, é que esta oferece “uma versão incompleta da realidade” 36
(p. 126). Em seu artigo sobre a homeostase, Cannon (1929b) assume ter feito uma escolha que diminuiu a importância dos processos cerebrais superiores em prol dos processos vegetativos. Essa opção, mesmo que seja um recorte compreensível, até pela falta de conhecimento que a época oferecia sobre o funcionamento do cérebro, não é epistemologicamente fácil de empreender, tampouco é sem consequências. Para fazer esse recorte, Cannon (Ibidem) primeiramente precisou dividir o sistema nervoso em duas partes, com base na antiga distinção entre atos voluntários e involuntários. De forma a distanciar-se dos conceitos da psicologia, mantendo-se na fisiologia pura, o autor inventou duas palavras em substituição a esses termos relativos à participação consciente da vontade. Nessa construção, ao sistema cérebro-espinal (correspondente ao sistema nervoso central - SNC) o cientista deu o nome de exterofectivo, pois o mesmo é responsável tanto pela percepção do exterior como pela ação muscular direcionada modificação do espaço externo. Por sua vez, Cannon (1929b, p. 284) chamou interofectivo ao sistema nervoso autônomo (SNA), já que sua ação dirige-se ao próprio meio interno. Ao final, o modelo criado por Cannon pode ser resumido da seguinte forma: tal qual o fiel escudeiro dos contos de cavalaria, o sistema interofectivo acompanha o sistema exterofectivo em suas empreitadas pelo mundo. Quando seu mestre necessita de uma lança para lutar, antes mesmo que ele peça, o SNA já está equipando seu cavalo com suas melhores armas. Da mesma maneira, quando o mestre sente sede, antes que tenha de sair para procurar água, o fiel valete já fez todos os arranjos para que este líquido não lhe faltasse. Em suma, para Cannon, é o sistema interofectivo e não o sistema exterofectivo o grande responsável pelo equilíbrio do corpo. O segundo só pode agir, pois o primeiro está a todo momento ocupado em fazer de tudo para que essa ação seja realizada. Além disso, na maioria das vezes, o sistema exterofectivo nem precisa tomar consciência das benesses orquestradas por seu generoso acompanhante, das quais apenas desfruta e ainda ganha as glórias ao final: Os reguladores homeostáticos agem automaticamente. Ainda que os músculos do esqueleto e do diafragma estejam, por certo, sob controle do córtex cerebral, suas funções na regulação da temperatura (tremor) e na neutralidade (aceleração da respiração) são arranjadas numa parte mais inferior, no tronco encefálico. Em sua maior parte, os reguladores não estão sob controle voluntário. Comumente, o sistema nervoso autônomo, ou este sistema em cooperação com os órgãos endócrinos, é chamado à ação (CANNON, 1929b, p. 422).
37
Mesmo que pareça pueril, falar da regulação autonômica de maneira analógica, como fizemos acima, utilizando comparações simplificadas, foi um recurso didático utilizado pelo próprio fundador da fisiologia experimental. Em seu livro, quando Claude Bernard (1885) explica o conceito de meio interno, ele mesmo demanda a seus leitores que imaginem os animais vertebrados de sangue quente como seres vivos que carregam consigo sua própria estufa. Uma das interpretações possíveis a essa analogia pode ser obtida ao lembrarmos que as plantas, por exemplo, muitas vezes morrem no inverno pelo frio excessivo, o qual não podem combater sozinhas já que não possuem um mecanismo homeostático de controle da temperatura. A estufa, nesse contexto, é um mecanismo artificial utilizado como uma forma externa de controle da temperatura (e de outras variáveis), independente, portanto, da ação do vegetal, que tem por objetivo preservar este último. Ao unir as duas analogias, a do escudeiro, que associamos a Cannon e a da estufa, de Bernard, pode-se encarar o sistema interofectivo como um aparelho herdado, que funciona tal qual um uniforme de astronauta, permitindo-nos realizar modificações no ambiente com relativa autonomia, sem ter que nos preocupar com as oscilações presentes no mundo externo ou ficar, como as plantas, parados no mesmo lugar. Algo nem sempre citado nos textos sobre o assunto, mas que é destacado por alguns autores, é a semelhança das teorias do estresse e da homeostase com o modelo do liberalismo econômico. De fato, Jackson nos lembra (2013, p. 12) que Walter Cannon e Hans Selye não restringiram as consequências de suas teorias somente à apreciação de sistemas biológicos. Pelo contrário, esse pesquisador destaca que ambos os autores acreditavam que “o entendimento da maneira pela qual as células e órgãos comunicam-se e cooperam entre si poderia ajudar a sociedade a coordenar e estabilizar o corpo político” (Ibidem, p.12). Para Arminjon (2014), o paradigma fundado por Cannon está a meio caminho entre a ideia de solidariedade orgânica de Durkheim (que propõe que a sociedade moderna funciona tal como os órgãos, que são especializados e auxiliam-se mutuamente equilibrando o corpo social) e a defesa do estado mínimo, ou seja, uma organização onde o controle descendente é superado pela regulação automática do equilíbrio social.
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Do ponto de vista de Damasio e Damasio (2016, p. 126), a ideia de uma homeostase automática, por pouco não independente do SNC, desconsidera uma dualidade essencial entre dois tipos de controle que funcionam ao mesmo tempo no organismo. Segundo os autores, nos humanos com certeza, e em alguns vertebrados com alguma probabilidade, existe um mecanismo suplementar de controle que envolve a variedade mais simples de sentimentos: as sensações (feelings). Como descrito pelos teóricos (Ibidem), o fenômeno da sensação é uma inovação evolutiva que traz como vantagem a possibilidade de tornar “o proprietário do respectivo organismo em um potencial agente de sua própria regulação”. Vistas por um panorama conceitual, as sensações encarnam também uma dualidade própria.
Por
um
lado,
as
sensações
sinalizam
operações
fisiológicas
correspondentes, como a regulação automática de variáveis (ex.: a aceleração cardíaca e respiratória), que possuem por si mesmas razões evolutivas. Ao mesmo tempo, as sensações do corpo refletem-se em uma face mental, e são interpretadas pela consciência como indicadoras de uma certa intensidade (sensações fortes ou fracas) e, mais importante, de uma valência positiva ou negativa, de prazer ou desprazer. A existência de uma interface mental para as sensações inaugura uma série de novas possibilidades e aumenta consideravelmente o repertório dos organismos. O fato das alterações fisiológicas que sobrevêm na interação dos indivíduos com o ambiente poderem ser interpretadas como prazerosas ou desprazerosas funda, por si só, novas formas de aprendizagem. Porém, se as valências associadas às sensações podem traduzir-se em comandos como “faça mais disso”, “faça mais disso agora” ou “não faça isso de maneira nenhuma”, a existência de uma consciência a interpretar essas ordens cria algo ao mesmo tempo vantajoso e desvantajoso: a possibilidade de escolha (DAMASIO; DAMASIO, 2016). Quando se fala em escolha, porém, não se está aludindo a algo de toda forma livre. Na verdade, quando as sensações adentram o cérebro, as mesmas ficam atadas a uma teia formada por impulsos (drives), motivações e emoções, integrantes da complexa maquinaria do afeto. Esse aparelhamento, por mais que tenha suas fundações construídas durante a longa cronologia da evolução das espécies, e que seja criado por variações e seleções genéticas ao mesmo tempo diferentes e iguais em cada indivíduo humano, é também moldado por experiências 39
individuais de aprendizado e formação de crenças e, principalmente, pelas circunstâncias socioculturais, indissociáveis de todos os fatores anteriores (DAMASIO; DAMASIO, 2016, p. 127). Tendo chegado a esse ponto da discussão, pode-se começar a expor algumas críticas feitas ao paradigma do estresse e ao paradigma da homeostase. Como a enumeração fiel de todas as alterações, adendos e recortes propostos para estes modelos por autores posteriores é inviável para ser feita no presente trabalho, nos contentaremos em demonstrar aquelas que foram avaliadas como mais importantes, por apresentarem modificações significativas e compreensíveis.
2.1. ALGUMAS CRÍTICAS AO MODELO DO ESTRESSE DE SELYE
Uma das peculiaridades mais importantes das teorias de Selye, já comentada no primeiro capítulo, é que a inespecificidade atribuída à resposta de estresse. Assim diz o autor: Estresse é a resposta não específica do corpo a qualquer demanda sobre ele feita (…). Todos os seres vivos estão constantemente sob estresse e qualquer coisa, prazerosa ou desprazerosa, que aumente a intensidade da vida, causa um aumento temporário no estresse, o desgaste exercido sobre o corpo. Uma dolorosa bofetada e um beijo apaixonado podem ser igualmente estressantes (SELYE, 1976, p. 137). Se o estressor é tão severo que a exposição contínua torna-se incompatível com a vida, o animal morre em algumas horas ou dias durante a reação de alarme. Se este sobrevive, a resposta inicial é necessariamente seguida por um estágio de resistência durante o qual a maioria dos sintomas iniciais diminuem ou desaparecem. Após uma exposição ainda mais prolongada ao estressor, essa adaptação adquirida é perdida e o animal entra em uma terceira fase, o estado de exaustão,já que a energia de adaptação ou a adaptabilidade de um organismo é finita (SELYE, 1976, p. 139).
Para introduzir as críticas ao modelo de Selye, começaremos por inferir algumas consequências dessas duas citações. A primeira conclusão a ser tomada é que, para o autor, a valência do estímulo é desimportante para a análise da resposta do estresse, já que tanto estímulos prazerosos como desprazerosos criam os mesmos efeitos. O segunda inferência a ser feita é que o contexto, a aprendizagem e a qualidade do estímulo também não são levados em consideração pelo autor. Por fim, na segunda citação chegamos à conclusão que as únicas variáveis que 40
importam para Selye são a intensidade e a duração do estímulo. Assim, podemos dizer que o aspecto quantitativo da intensidade (o quão intenso é o estímulo) e tempo de duração do estímulo, somados à energia de adaptabilidade que organismo tem disponível, são os três termos da equação do estresse. Na década de 70, um artigo lançado por Weiss (1972) questionou alguns aspectos dessas assertivas. Neste escrito, o autor avaliou a evolução de úlceras gástricas causadas por estresse em pares de ratos submetidos a choques elétricos , estes últimos acompanhados por um sinal sonoro. Weiss relata que as úlceras foram mais severas naqueles animais para os quais a descarga elétrica e o estímulo sonoro eram disparados em uma distância temporal aleatória do que para aqueles cujo estímulo aversivo (choque) era disparado 10 segundos após o sinal. Além disso, as úlceras foram menos graves naqueles animais que podiam escapar do choque ao pular em uma plataforma do que naqueles para os quais o choque era inescapável. A conclusão do experimento foi que duas variáveis, a previsibilidade e a escapabilidade da situação estressora são claramente importantes na predição dos efeitos do estresse no organismo. Apesar de engenhoso, esse experimento apenas prenuncia as críticas necessárias a serem feitas sobre a teoria do estresse. Para que seja possível expor estas últimas, é necessário, porém, levar em consideração um aspecto não avaliado por Selye. Dos artigos de Cannon e Selye aos quais obteve-se acesso durante a elaboração do presente trabalho, nenhum cita o papel de estruturas corticais superiores na resposta do estresse. Isso já era esperado, pois, como viu-se em Damasio e Damasio (2016), o paradigma do estresse-homeostase é um modelo de regulação autonômica, que revela só metade, ou menos, dos processos em jogo na regulação do equilíbrio do organismo. Antes, portanto, de continuar a falar sobre este assunto, é necessário que façamos um breve apanhado de algumas informações sobre a forma como os processos cerebrais superiores interferem na homeostase.
2.2. O PAPEL DAS AMÍGDALAS CEREBRAIS NA RESPOSTA DE ESTRESSE
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O desencadeamento da resposta de estresse, pela estimulação do sistema simpático-adrenal (SSA) na reação de alarme e pela subsequente ativação do eixoHPA na fase de resistência é um bom exemplo de controle cortical da regulação do organismo. Não diretamente considerado pela teoria de Cannon e de Selye, o papel do funcionamento de estruturas córtico-límbicas e de avaliação dos perigos ambientais revela a existência de outras variáveis a agir na sobrevivência dos organismos durante a evolução.
2.2.1. Críticas ao mecanismo de termostato
Conquanto o equilíbrio homeostático seja baseado no que se costuma chamar de mecanismo do termostato, essa forma de ver a regulação do corpo parece, para alguns autores, insuficiente. Aparelhos que funcionam por esse mecanismo, como aparelhos de ar-condicionado e aquecedores, utilizados também em estufas, são baseados em um circuito relativamente simples.
Figura 2 - Funcionamento de um mecanismo de termorregulação Fonte: adaptado de STERLING, 2012, p. 6
Para manter uma variável dentro de limites estreitos, um sistema termorregulação é composto por um sensor de detecção de oscilações dotados de valores-alvo inscritos em sua configuração como uma norma. Quando essas variações alcançam um certo limiar (Σ), um componente efetor do sistema é convocado a corrigir negativamente o desvio da variável, causando uma modificação na direção contrária a este distanciamento do alvo (STERLING, 2012).
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Um bom exemplo de um sistema como este é encontrado nos aparelhos de controle de temperatura em ambientes fechados. Quando uma máquina de arcondicionado é programada para manter sua temperatura entre 20 e 24 ºC, um termostato fica permanentemente ativado para perceber oscilações que possam ultrapassar esta faixa de valores ideais. Caso a temperatura suba demais, o compressor é ativado para aumentar a liberação de calor para o fluido refrigerante. De modo contrário, caso esta variável caia demasiadamente, o mesmo compressor é desativado ou diminui sua frequência, de forma a manter o calor no ar ambiente. Mesmo que Claude Bernard entenda que a estufa é uma boa comparação para o equilíbrio do meio interno e que Cannon realmente utilize em seu paradigma o conceito de retroalimentação negativa, claramente este modelo é insuficiente para explicar mesmo o paradigma da regulação autonômica. À guisa de exemplo, podese utilizar o mecanismo de regulação da pressão arterial. O valor da pressão arterial, que costumamos aferir quando vamos ao médico, é resultado da interação entre a quantidade de sangue circulante no organismo a velocidade com que esse sangue passa, e e a constrição das paredes dos vasos. No corpo, esta variável é monitorada por sensores nervosos chamados barorreceptores (do grego báros, pressão), acoplados às paredes das artérias carótidas, que ficam na região do pescoço. Quando essas estruturas identificam uma queda na pressão sanguínea, impulsos são enviados até a medula e ao cérebro, principalmente a núcleos do bulbo raquidiano chamados de centros vasomotores. Essa informação, por sua vez, causa a diminuição dos impulsos desses centros para as fibras do sistema nervoso simpático, e isso causa uma diminuição na atividade de bombeamento do coração e um aumento na dilatação dos vasos sanguíneos (na verdade, uma diminuição da constrição simpática dos mesmos). De modo contrário, quando a pressão está abaixo do nível esperado pelos sistema, o mesmo caminho de informação causa um aumento nos impulsos dos centros vasomotores, aumentando a excitação simpática, a aceleração cardíaca e a constrição dos vasos (HALL, 2016). A partir do conhecimento deste mecanismo, fica claro que o paradigma da homeostase explica perfeitamente o controle da pressão arterial. Contudo, Cannon mesmo já havia previsto outra maneira pela qual esta variável poderia ser modificada, também em prol do equilíbrio do organismo. Vimos no primeiro capítulo (cf. item 1.5) que a percepção de desafios no ambiente pelo sistema exterofectivo 43
causa no sistema interofectivo o disparo de um ajuste antecipatório chamado resposta de luta ou fuga, que consiste na ativação em massa do sistema simpáticoadrenal. Vimos também que um dos efeitos dessa estimulação é o aumento da pressão arterial e da aceleração cardíaca. Como essas alterações não são ativadas a partir de uma anormalidade real, detectada por um sensor tal qual os barorreceptores, é possível perceber que esse ajuste antecipatório não pode ser explicado somente pelo paradigma do sistema de termorregulação. Longe disso, a ativação da resposta emocional de excitação é modulada por uma série de outros mecanismos, que envolvem a aprendizagem, o condicionamento e a regulação emocional.
2.2.2. O papel das amígdalas cerebrais
Quando percebemos um estímulo desafiador no ambiente que possa nos exigir um esforço de compensação, um fluxo de informações sensoriais e contextuais chega até o núcleo lateral de regiões temporo-límbicas chamadas de corpos amigdalóides ou amígdalas cerebrais e são distribuídos para outras áreas na forma de comandos (LEDOUX; RODRIGUES; SAPOLSKY, 2013, p. 292). Nesse caso, projeções que passam pelo núcleo basal da amígdala até a uma região chamada de células intercaladas, irão inibir o núcleo central amigdalar, fazendo disparar a liberação de norepinefrina no tronco encefálico e nas áreas frontais do cérebro. Esse mecanismo inicia a ativação do sistema simpático-adrenal (SSA), típica da primeira fase da SAG (reação de alarme). A ativação concomitante do sistema monoaminérgico também levará a um aumento da vigilância, deixando o indivíduo mais atento a outras pistas desafiadoras. Esse fenômeno é chamado arousal, ou excitação geral. Num segundo momento, a ativação da amígdala estimula o núcleo paraventricular do hipotálamo, acionando eixo-HPA, o que termina na liberação dos glicocorticóides, principalmente do cortisol. Estes produtos finais fazem decair a própria resposta de estresse pela inibição do mesmo eixo (cf. item 1.6) (Ibidem). 44
Figura 3 - Principais entradas e saídas de informação na amígdala Fonte: adaptado de LEDOUX; RODRIGUES; SAPOLSKY, 2009, p. 294
2.2.3. O condicionamento aversivo: papel da aprendizagem na homeostase
A evolução dotou cada espécie com um leque de mecanismos de defesa instintivos para ajudar os organismos a lidar com perigos ambientais e outros desafios à segurança e ao bem estar. Gambás disparam odores ofensivos, o peixe baiacu infla-se para parecer maior do que realmente é e baratas correm para fendas para se defender. Ainda que os humanos das sociedades modernas desfrutem do luxo de não terem que se preocupar em escapar de predadores (...), a emoção de medo e os comportamentos de defesa (...) ajudam a salvar-nos de perigos tanto em situações cotidianas como em condições raras, mas arriscadas. Nós procuramos abrigo, pressionamos os freios, corremos para as montanhas, ou gritamos por ajuda. A excitação ligada à ameaça (fear arousal) é uma das mais confiáveis rotas para a ativação da resposta do estresse, um conjunto de modificações autonômicas e periféricas que auxiliam na sobrevivência. (LEDOUX; RODRIGUES; SAPOLSKY, 2009, p. 291)
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Graças aos ancestrais, pode-se perceber alguns estímulos do ambiente como desafiadores e assim nos preparar-mos de antemão para lidar com os mesmos e aumentar as chances de sobrevivência. Por outro lado, somos ainda mais privilegiados pela faculdade da memória, que permite que aprendamos a conhecer novas situações que podem nos causar sensações desagradáveis ao indicarem algum tipo de perigo já vivenciado no curso da existência. Ademais, esta capacidade permite que aprendamos uns com os outros, principalmente com aqueles mais velhos que nós, a evitar situações também perigosas para a integridade. Em um experimento paradigmático, utilizando como “cobaia” um bebê chamado Albert, esses pesquisadores demonstraram que o pareamento de um estímulo neutro a um estímulo aversivo, tem o poder de criar uma memória que se reflete na eliciação da resposta de medo quando ocorre a reapresentação do primeiro estímulo (HARRIS, 1979). Vejamos como isso ocorre em termos fisiológicos.
2.2.4. Bases biológicas da extinção e memória do condicionamento aversivo
O condicionamento aversivo é um processo de aprendizagem clássico no qual um estímulo neutro, como um sinal sonoro, é pareado a um estímulo aversivo, por exemplo, um choque na cauda. Após uma série de repetições, o estímulo anteriormente neutro passa a, sozinho, eliciar a resposta de estresse. Nesse processo, a amígdala possui um papel central. Com o pareamento dos estímulos, o núcleo lateral dessa estrutura passa por um processo de plasticidade, e a aprendizagem aversiva fica gravada no corpo como uma memória. Além disso, por modificações na estrutura do hipocampo, pode-se avaliar também as pistas oferecidas pelo contexto ambiental, e inclusive lembrarmo-nos do que estávamos fazendo em situações de grande excitação emocional (LEDOUX; RODRIGUES; SAPOLSKY, 2009, p. 292). Quando a memória do condicionamento aversivo está consolidada, sua robustez é tão grande que não há possibilidade de apagá-la. Mesmo assim, pode-se extinguir a eliciação da resposta de estresse, desde que passemos por um novo processo de aprendizado que nos ensine a inibir essa reação. Ademais, a própria percepção de que pode-se controlar ou evitar um desafio de valor aversivo, traduz46
se na estimulação do córtex medial pré-frontal (mCPF), que, por sua vez, inibe em boa parte a resposta de estresse. Essa área, aliás, tem ação importante na inibição geral das emoções (LEDOUX; RODRIGUES; SAPOLSKY, 2009)
2.2.5. Retorno ao conceito de termostato: proposta de modificação
Como vimos no item 2.2.1, o modelo do termostato não explica toda a variedade de regulações da homeostase no organismo. Utilizando o exemplo da aprendizagem de estímulos aversivos, essenciais no disparo da resposta do estresse, foi possível perceber que o conhecimento prévio é um fator essencial no controle preditivo da homeostase. Como proposta de alteração deste sistema, Sterling propõe um outro modelo, que utilizaremos aqui de forma adaptada:
Figura 4 - crítica ao modelo do termostato Fonte: adaptado de STERLING, 2012, p. 9
No paradigma de Sterling (2012), o qual não será desenvolvido aqui com maior profundidade, ainda que se reconheça a existência de sensores do tipo termostato, estes não são encarados como o mecanismo principal da homeostase no organismo. O autor propõe, ao contrário, a criação de um outro conceito, o de alostase, para melhor explicar o papel do cérebro, em seus níveis corticais superiores, na regulação dos processos fisiológicos. Em grego, állos significa outro ou diferente. O que Sterling (Ibidem) sugere com este termo é que o cérebro, por si só, regula a ativação autonômica não com o objetivo de manter os parâmetros do corpo constantes, como queria Cannon, e sim para que haja uma melhor adaptação a cada situação diferente da vida 47
3. O PARADIGMA DA ALOSTASE
Das críticas sofridas pelo modelo do estresse-homeostase, a mais importante e paradigmática foi realizada em um estudo da década de 80, escrito por um epidemiologista, Joseph Eyer, e um neurobiólogo, Peter Sterling (JACKSON, 2013, p. 13). No artigo em questão, Eyer e Sterling (1988) propõem um debate sobre alguns fatores sociais que influenciam nas taxas de morbidade e mortalidade, bem como sobre a influência desses fatores nos parâmetros de funcionamento dos organismos. O paradigma da homeostase, ao insistir na constância, perde de vista justamente o fato que, se a todo o momento o sistema interofectivo deve seguir as alterações necessárias para a ação eficiente das faculdades exterofectivas, o organismo, nem que esteja parado, irá manter constantes seus parâmetros, já que cada nível de atividade, mesmo a mínima atividade intelectual, exige um certo nível de funcionamento meio interno que é contingente. Que essa atividade não chegue a níveis que impossibilitem a ação fisiológica não quer dizer em absoluto que a mesma se mantenha constante dentro da variação proposta pelos limites estreitos, ou ainda, que a atividade do organismo tenha vistas à manutenção desses limites e não justamente à realização das relações mais adaptativas possíveis entre o indivíduo e o ambiente. Assim, a questão central para o organismo não é só manterse dentro de limites de funcionamento necessários para não morrer, mas sim garantir o melhor nível de atividade possível para que se possa viver cada situação da forma mais adaptativa a partir dos próprios recursos (STERLING, 2012). Variáveis como a pressão arterial variam ricamente durante o dia e a noite. Na realidade, se comparados os gráficos desta variação entre um indivíduo saudável e um hipertenso, ver-se-á que no primeiro os parâmetros mudam conforme cada atividade, de maneira bastante rápida e distinta, enquanto que no gráfico do segundo,
as
modificações
não
são
bem
delineadas,
mas
confusas
e
descoordenadas. De fato, entre estados de excitação (arousal) e repouso, a pressão arterial é uma para cada contingência, mesmo que seja maior nos primeiros do que nos segundos. Junto a este parâmetro, não uma, mas todas as variáveis do organismo sofrem variação quando há uma transição comportamental. “Claramente,
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para adquirir estabilidade um organismo deve ocupar cada um desses estados e mover-se flexivelmente entre eles” (EYER; STERLING, 1988, p. 633). A ideia de que o organismo deve adquirir sua estabilidade por meio de alterações de seus próprios parâmetros, e não pela manutenção da constância destes últimos foi chamada alostase (do grego állos: diferente) (JACKSON, 2013). Na opinião de Day (2005, p. 1196),
quanto à relação entre dinamismo das
variáveis e constância de valores-de-ajuste, o paradigma da alostase não diverge fundamentalmente do paradigma homeostático de Cannon, do qual seria apenas uma reenunciação. O fato é que nem tanto a teoria em si, mas a interpretação dos dizeres de Cannon, talvez tenha conduzido a um modelo de saúde específico, se formos considerar a visão dos criadores da alostase. Conforme diz Safatle (2011), a ideia de valores-ideais cria uma visão de doença como um desvio do normal e não como uma experiência vivida de forma singular. Na clínica, valores acima ou abaixo da média são subtraídos da mesma gerando um subvalor que é interpretado como uma doença. No mesmo sentido, Eyer e Sterling (1988, p. 644) protestam em seu artigo não tanto contra a ideia de homeostase em si, mas contra seu uso pela farmacologia, sempre interessada em remediar o desvio de uma variável sem uma visão sistêmica da fisiologia, o que cria uma condição de polifarmácia e processos iatrogênicos em potencial, além de impedir o organismo a responder de outra maneira mais apropriada. Para Arminjon (2014), o que a teoria da alostase traz de mais inovador é a cerebralidade. Enquanto as demais teorias concentraram-se na regulação pelo sistema nervoso autônomo, a teoria da alostase oferece uma visão mais ampla pela inserção dos processos neurais superiores em seu escopo. Diferente da teoria de Cannon, onde o sistema interofectivo é um compensador das ações do sistema exterofectivo, no paradigma homeostático o cérebro sozinho centraliza e comanda todas as ações do corpo por meio das flutuações que engendra, superando inclusive os mecanismos puramente reflexos No sistema de retroalimentação negativa onde funda-se o paradigma homeostático, as variações se dão para reajustar os parâmetros a uma faixa de valores-alvo. No paradigma alostático o cérebro continuamente reavalia as necessidades e move os parâmetros para novos valores-alvo, o que leva a um uso mais eficaz dos recursos do organismo. Além disso, por ser um mecanismo com a capacidade de aprendizagem, a alostase pode prever erros e planejar ações comportamentais que 49
também possuem a capacidade de regular o organismo, por exemplo, levar água e comida para fazer uma trilha na floresta ou ligar para um amigo em um momento de angústia (EYER; STERLING, 1988). O paradigma do estresse baseia-se na não especificidade da resposta do corpo a qualquer desafio: O estresse é a resposta não específica do corpo a qualquer demanda feita sobre ele, isto é, o ritmo sob o qual vivemos a cada momento. Todas as criaturas vivas estão constantemente sob estresse e qualquer coisa, prazerosa ou desprazerosa, que estimule a intensidade da vida, causa um aumento temporário no estresse, o desgaste exercido sobre o corpo. Um tapa dolorido e um beijo apaixonado podem ser igualmente estressantes. (SELYE, 1976, p. 137).
Na segunda metade do século XX, a literatura que trata do estresse psicossocial pode demonstrar a relação existente entre os eventos da vida, o sofrimento psíquico e as doenças médicas gerais. Com o tempo ficou claro que as diferenças individuais nas respostas cognitivas e emocionais ao estressor e ao contexto mostraram-se fatores determinantes nas consequências (ex.: antecipação, avaliação, enfrentamento, aprendizado e outros tipos de processamento de informação) (GANZEL; MORRIS; WETHINGTON, 2011, p. 5).
O modelo alostático coloca o cérebro, e não mais o SNA, no centro da regulação do corpo. Com este novo paradigma, uma série de circuitos de informação ascendente (em direção ao cérebro) foram descobertos, o que permitiu demonstrar que o cérebro é afetado antes mesmo de qualquer outra resposta regulatória. Por sua plasticidade, qualquer informação levada até o cérebro sofre modificações a partir das expectativas e da valências ali organizadas. Com o surgimento deste modelo, até mesmo estressores não abertamente psicológicos, como exposição ao frio e lesões teciduais, puderam ser interpretados em termos das respostas do SNC (GANZEL; MORRIS; WETHINGTON, 2011). Segundo nos informa Day (2005, p. 1196), o conceito de alostase não recebeu grande atenção da literatura até 1993, quando dois neurocientistas, Bruce McEwen e Eliot Stellar, propuseram uma revisão do artigo de Eyer e Sterling. Nesta revisão, os cientistas propuseram acrescentar à teoria geral da alostase o conceito de carga alostática. Um exemplo que deixa claro esse conceito é o dos ursos. Ursos são animais que, durante a evolução, criaram estratégias para sobreviver ao desafio 50
de ficar longos períodos sem ingerir alimentos. Antes de certas estações do ano, esses animais entram em um estado de hiperfagia, na qual consomem mais alimentos do que o necessário para uso diário. Esta energia acumulada é gasta durante os períodos de escassez de alimentos, em um processo chamado hibernação. O custo, ou a carga, desse processo de modificação comportamental é pago pelos recursos que o ambiente oferece, pela capacidade do animal procurar alimento e pelo corpo, que deve se modificar para acumular reservas energéticas na forma de gordura. Contudo, caso o ambiente não ofereça comida o suficiente, em momentos onde a energia seria necessária, o custo recai para a adaptação, que fica prejudicada pela supressão dos processos reprodutivos. Por outro lado, caso estes animais mudem-se, por exemplo, para um zoológico onde a disponibilidade de alimentos é farta o ano todo, o corpo pode ter um problema no balanço energético na forma de obesidade e de pré-diabetes. Essas duas últimas situações são exemplos de sobrecarga alostática, ou seja, quando o custo que o corpo pode pagar com o capital das estratégias herdadas durante a evolução ou aprendidas ao longo da vida excede aquilo que é demandado pelas circunstâncias, tem-se uma sobrecarga (McEWEN; WINGFIELD, 2003). Acentuar o papel do SNC no panorama da regulação do organismo e do enfrentamento dos desafios ambientais traz algumas constatações interessantes, levantadas por McEwen e Wingfield (2003). Esses autores observam que algumas espécies aves jovens tratadas com corticóides aumentam significativamente o número de comportamentos de pedido de comida a seus companheiros. Isso é interessante, pois demonstra que o equilíbrio do organismo não se concentra somente numa suposta parte ou meio interno, mas desdobra-se também em outras ações que necessitam de outros corpos. Além disso, percebe-se que parte do custo da alteração que o organismo passa para adaptar-se, ou seja, parte da carga alostática, vem de um tipo do que pode-se chamar de capital, promovido pela neuroplasticidade. No caso da percepção de desafios (por exemplo, quando vemos uma barata), um fluxo de informações sensoriais e contextuais passa por via talâmica, via cortical até o núcleo lateral de uma região temporo-límbica chamada de corpo amigdalóide ou amígdala cerebral.
Se esta área tiver passado por um processo de
aprendizagem e consequente plasticidade que implique na interpretação do estímulo visuo-contextual como uma ameaça (no caso de pistas contextuais, isto inclui 51
participação do hipocampo em sua ligação com o núcleo lateral), projeções que passam pelo núcleo basal da amígdala e projetam-se para a região das células intercaladas irão inibir o núcleo central da amígdala, disparando a resposta de terror, que inclui estimulação do locus coeruleus (para a ativação do sistema simpáticoadrenal) e ativação do sistema monoaminérgico.
Ademais, projeções do núcleo
basal até o estriado orquestrarão comportamentos instrumentais de fuga. A ativação da amígdala também tem seus efeitos no sistema endócrino. Parte essencial da resposta do estresse, a sinalização da amígdala para o núcleo paraventricular do hipotálamo leva à liberação de CRH na adenohipófise, o que terminará na liberação dos glicocorticóides. Além dos efeitos corporais das catecolaminas e dos glicocorticóides, estas substâncias viajam pela circulação sanguínea (ou estimulam terminações vagal-aferentes, com o mesmo resultado) até o cérebro e afetam a amígdala e outras estruturas (LEDOUX; RODRIGUES; SAPOLSKY, 2009). Quando esses produtos são liberados no organismo pela ativação do circuito do medo (fear circuitry) e alcançam, por feedback, essas áreas, os glicocorticóides as catecolaminas estimulam receptores celulares no cérebro responsáveis por criar uma memória de longo prazo do acontecimento desagradável. O hipocampo, neste sentido, é o responsável, por exemplo, pela memória que a maioria das pessoas têm sobre onde estavam e o que estavam fazendo em momentos trágicos como o atentado das torres gêmeas. A vantagem evolutiva dessas memórias não é difícil de deduzir, ao menos se pensarmos em termos da história animal e da humanidade. (MCEWEN; WINGFIELD, 2003). Conforme estes sistemas são ativados com frequência, não somente a memória episódica mas também importantes aspectos da memória celular passam a integrar uma rede de previsão de novos acontecimentos desafiadores. Nesta perspectiva, os custos alostáticos da modificação do organismo para lidar com os estressores também recai sobre os neurônios de áreas centrais para o circuito do medo (fear circuitry), ao preço da alteração de sua configuração. Segundo LeDoux, Rodrigues e Sapolsky (2009, p. 300-302), situações de estresse agudo ou a administração de uma só dose de glicocorticóides aumentam a formação de espinhas dendríticas nos núcleos basal e lateral da amígdala. O estresse crônico, por sua vez, aumenta também a arborização dendrítica nessa mesma região. Animais estressados também apresentam um aumento na responsividade de neurônios dessa área, bem como uma redução no limiar de 52
excitação dessas estruturas. Como algumas áreas do córtex pré-frontal também são Como as respostas de medo também são reguladas de forma inibitória por projeções do córtex pré-frontal medial (mCPF) para os núcleos da amígdala, a pressão causada pelo estresse também tem como efeito alterações nesta área, tais como a atrofia e perda de espinhas dendríticas. De forma similar, os neurônios do hipocampo têm diminuição tanto da formação de espinhas como da arborização de seus dendritos. Como o cérebro integra uma série de informações do organismo, a regulação alostática, que fundamenta-se na atividade deste órgão, compõe-se de diversos efeitos e consequências em diversos sistemas do corpo. Situações de luta ou fuga de predadores foram comuns desde o início dos tempos, e a natureza selecionou não apenas os mais aptos no quesito força e rapidez, ou aqueles que conseguiam detectar com mais precisão as pistas ameaçadoras, mas também aqueles que podiam prevenir infecções e injúrias neste processo. Como é esperado, a resposta ao estresse, sendo uma herança desses ancestrais remotos, envolve, portanto participação de outros sistemas, como o sistema imune.
3.1. ALOSTASE E SISTEMA IMUNOLÓGICO
Na vida moderna, com a mudança absoluta no ambiente causada pela atividade humana, dificilmente temos que lutar com animais famintos ou predadores inclementes no dia-a-dia. De qualquer forma, as respostas fisiológicas continuam a refletir as demandas daqueles ambientes onde viveram os ancestres humanos. Situações de desafio para o ser humano atual, como provas e exames acadêmicos, mesmo que não impliquem em ferimentos que deixam os tecidos mais sujeitos a infecção, podem ter consequências no sistema imune por acessarem a mesma resposta de estresse gravada filogeneticamente. Segundo Miller e Segerstrom (2004), da década de 70 até a primeira década do século XXI, mais de 300 estudos foram feitos demonstrando que desafios psicológicos podem modificar vários atributos do sistema imune. O sistema imune (SI) possui a função fisiológica de defender a identidade das células do organismo, ou seja, diferenciar quais células ou moléculas efetivamente pertencem ou devem estar presentes nos tecidos do organismo. No geral, as funções do SI dividem-se em imunidade inata, que é inespecífica e consiste na 53
primeira linha de defesa do organismo, e imunidade adquirida, que consegue identificar e memorizar diferentes antígenos, de maneira especifica. O sistema imune inato (iSI) é composto por 1) barreiras físico-químicas, como a pele, a mucosa e substâncias antimicrobianas produzidas pelo próprio corpo, 2) células fagocitárias como os macrófagos, neutrófilos, células dendríticas, mastócitos e células assassinas naturais (natural killer cells - NK), 3) proteínas do sistema complemento e citocinas. Por sua vez, o sistema imune adquirido (aSI) divide-se em imunidade humoral (os linfócitos-B, que liberam anticorpos) e imunidade celular (os linfócitos-T auxiliares e o linfócitos-T citotóxicos). Outros componentes do sistema imune são a medula-óssea, onde são produzidas as células leucocitárias, o timo, onde os linfócitos-T amadurecem, o sistema linfático, com nodos e vasos, e o baço. O iSI é capaz de reconhecer 1) padrões moleculares associados a patógenos (pathogen-associated molecular patterns - PAMPs), tais como lipopolissacarídeos (LPS), que são substâncias presentes em micróbios e ausentes no corpo dos mamíferos e 2) padrões moleculares associados a danos (damage-associated molecular pattern - DAMPs), liberados quando as células do próprio corpo são lesionadas ou sofrem algum outro tipo de dano. Quando alguma barreira físico-química do organismo é rompida, dando lugar a entrada de patógenos e outras substâncias tóxicas, a primeira resposta gerada pelo corpo é a inflamação. Células residentes nos tecidos lesionados, tais como macrófagos, células dendríticas e mastócitos, criam uma série de modificações mediadas por moléculas sinalizadoras chamadas citocinas em resposta à detecção de PAMPs e DAMPs. Essas modificações incluem um aumento no fluxo sanguíneo devido à vasodilatação, uma maior permeabilidade dos capilares e vasos sanguíneos, bem como o recrutamento de células leucocitárias da corrente sanguínea, que passam para o tecido lesionado por causa do aumento da permeabilidade e da adesão. A maioria das citocinas são produzidas neste processo por células fagocitárias e mastócitos, e agem tanto nas células proximais (ação parácrina) como em tecidos distantes, por meio da circulação (ação endócrina). A função dessas moléculas é bastante complexa e inclui a ativação do processo inflamatório, bem como o recrutamento de neutrófilos, monócitos e células da imunidade adquirida. As principais citocinas envolvidas nesta resposta são a interleucina-1 e 6 (IL-1, IL-6) e o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α).
54
O processo inflamatório agudo desenvolve-se entre minutos e horas, podendo durar vários dias, e os sinais que este processo produz são chamados sinais flogísticos, que são cinco: 1) o rubor e o 2) calor, causados pelo aumento da circulação no tecido, 3) o edema ou inchaço, causado pela saída de plasma para o tecido, 4) a dor, causada pela irritação das terminações nervosas do local e, por fim, 5) a perda de função, caso a inflamação ocasione o impedimento da função fisiológica do local lesionado. Esses fenômenos, somados ao aumento da produção de proteínas de fase aguda pelo fígado (como a proteína c-reativa - PCR), de leucócitos pela medula-óssea e à febre, produzida pela estimulação do hipotálamo, são chamados de resposta de fase aguda (acute-phase response - APR). Caso a inflamação dure muito tempo, tem-se a chamada inflamação crônica, que pode causar remodelamento dos tecidos. Consequências patológicas graves deste processo são a trombose, causada pelas modificações nos vasos sanguíneos, morte de células saudáveis e complicações da função cardíaca, além de fenômenos mentais, como o delirium. A células envolvidas na reação inicial de inflamação, como macrófagos e células dendríticas, agem como células apresentadoras de antígeno (CAA) nos componentes da imunidade adquirida. A vida de uma célula da imunidade adquirida ou linfócito começa na medula-óssea. No caso dos linfócitos-B, os mesmos amadurecem neste mesmo lugar, diferente dos linfócitos-T, que amadurecem no timo. As células linfocitárias saem da medula e do timo ainda inativas, e são levadas até os órgãos linfóides secundários onde são ativadas pelo contato com os antígenos apresentados pelas CAA. Este processo seleciona, por expansão clonal, os linfócitos-T e B que possuem sítios sensíveis a porções determinadas dos antígenos. No caso dos linfócitos-B, a apresentação dos antígenos gera a produção de anticorpos que englobam (opsonizam) as moléculas e células antigênicas, provocando sua neutralização e a ativação do sistema do complemento. No caso dos linfócitos-T auxiliares, os mesmos ligam-se aos fagócitos emitindo citocinas específicas que ordenam a destruição do antígeno em seu anterior. Já os linfócitos-T citotóxicos ligam-se a células já infectadas, causando sua morte. Quando as reações do sistema imune tornam-se excessivas ou inadequadas, o resultado são as chamadas doenças de hipersensibilidade, que incluem doenças autoimunes, alergias, e outros quadros clínicos. Algumas das doenças de hipersensibilidade mais conhecidas são o lúpus eritematoso, a artrite reumatóide, a 55
esclerose múltipla, a diabetes do tipo I e a síndrome do intestino irritável (ABBAS; LICHTMAN; PILLAI, 2015, passim). Até pouco tempo atrás, o sistema nervoso central (SNC) era visto como inacessível pelo SI devido à presença da barreira hematoencefálica. Porém, uma série de experimentos demonstrou que este privilégio não era, de forma alguma, absoluto. Na realidade, “o cérebro e o sistema imune formam uma rede de comunicação bidirecional na qual o sistema imune opera como um órgão de sentido difuso, informando o cérebro sobre eventos no corpo” (WATKINS; MAIER, 1998, p. 83). Três caminhos possuem destaque nesta comunicação 1) o sistema simpáticoadrenal (SSA), que inerva os órgãos do SI e também comunica-se com o mesmo por meio de receptores β-adrenérgicos presentes em todos os linfócitos, 2) o eixo-HPA, pela secreção de cortisol e outras substâncias com efeito no SI e 3) caminhos diversos do SI ao SNC mediados principalmente por citocinas (MILLER; SEGERSTROM, 2004, p. 3). Pensar a interação entre o SNC e o SI permitiu aos cientistas o entendimento dos resultados da resposta de estresse na predisposição a inflamações. Todavia, também muitos achados importantes para a própria clínica médica foram granjeados pelos avanços dessa ciência que foi chamada psiconeuroimunologia. Quando se está doente, independente da causa da patologia, alguns sinais são frequentemente observados. No estado de doença, fica-se menos atento, menos bem humorado, reduz-se a atividade geral, a exploração do ambiente, os comportamentos sexuais e a interação social. Até recentemente, esses sintomas eram entendidos como um cansaço generalizado criado pelo gasto energético no trabalho da doença pela supressão da causa mórbida. Atualmente sabe-se que a síndrome do comportamento associado à doença (sickness behavior syndrome - SBS) é na realidade um padrão filogenético observado em todos os vertebrados, e possui um importante valor evolutivo. Uma maneira interessante de observar como comportamento e fisiologia se unem nessas ocasiões é entender o mecanismo da febre. A febre que nós, animais de sangue quente, podemos produzir, é um mecanismo fisiológico que foi assimilado durante a seleção das espécies por seu poder de combater alguns patógenos, mas que possui seu correlato em um mecanismo comportamental observado nos animais de sangue frio. Estes últimos, quando estão infectados por algum antígeno, exercem comportamentos de abrigamento em ambientes mais quentes. Da mesma maneira, 56
como o custo metabólico da febre propriamente dita é muito alto, nós humanos costumamos procurar ficar debaixo de cobertas quando estamos doentes, o que é causado quando as citocinas estimulam o hipotálamo a regular diferentemente a sensação da temperatura, o que faz com que sintamos frio Outras estratégias utilizadas pelo organismo durante a doença são menos óbvias. Por exemplo, a anorexia e a adipsia (redução do apetite por comida e água). Contudo, esses comportamentos têm também sua função, já que a diminuição da fome e da sede reduz tanto o gasto de energia necessário para a procura de itens alimentícios como o tempo de exposição do indivíduo doente aos predadores. Dessa forma, a SBS é considerada não só uma reação fisiológica, mas um estado motivacional central (WATKINS; MAIER, 1998). Dissemos anteriormente que a maneira pela qual o SI estimula as mudanças no SNC observadas na SBS é a sinalização por citocinas. No caso da inflamação, vimos também que a maioria das citocinas envolvidas são a IL-1, a IL-6 e o TNF-α. Contudo, sobre esta questão temos um problema. Ocorre que, de fato, a introdução de citocinas no cérebro em experimentos causa todos os sintomas da SBS, já que áreas do SNC possuem uma boa quantidade de receptores dessas substâncias. Contudo, as citocinas são moléculas relativamente grandes e lipofóbicas, razão pela qual estas não conseguem passar por grande parte da barreira hematoencefálica (BHE). Assim, algumas hipóteses foram propostas para explicar a sinalização do SI para o SNS, incluindo a entrada das citocinas por regiões mais fracas da BHE e mecanismos de transporte ativo de substâncias que poderiam ocorrer nessas áreas. De qualquer forma, o mecanismo mais aceito para esta sinalização passa pela ativação de nervos periféricos que vão em direção ao cérebro, como o nervo vago, (cuja função é 70% sensitiva e 30% parassimpática eferente, aproximadamente) (WATKINS; MAIER, 1998, p. 88). A estimulação, pelas citocinas pró-inflamatórias, de estruturas do entorno dos terminais nervosos vagais, chamada paragânglia, leva uma mensagem aferente até o núcleo do trato solitário (NTS), no bulbo raquidiano, dando início a uma cascata de eventos. Projeções vindas dessa área e do núcleo parabraquial atingem o hipotálamo e a amígdala (DANTZER, 2001), causando uma série de reações que podem resultar em febre e outros fenômenos Estes mecanismos ficam evidentes quando a porção aferente do nervo vago é seccionada, já que os fenômenos observados pela infecção periférica em organismos com este circuito intacto, como 57
febre, aumento na responsividade à dor, mudanças no circuito adrenérgico do cérebro, aversões condicionadas a certos sabores, secreção de glicocorticóides, diminuição da interação social e da ingesta alimentar não ocorrem nestes animais (WATKINS; MAIER, 1998, p. 88). As conexões entre o SI e o SNC não reduzem-se a caminhos ascendentes. Pelo contrário, é possível perceber, como já dissemos, que a estimulação dos circuitos de estresse leva a alterações alostáticas psiconeuroimunes que evolutivamente tiveram grande papel nos momentos de luta e fuga. A montagem de de experimentos em laboratório permitiu demonstrar, por exemplo, que ratos submetidos a situações estressoras podem apresentar um quadro febril que dura até 45h depois da exposição. Da mesma forma, animais nessas condições apresentaram um aumento nas células leucocitárias e na produção de proteínas de fase aguda pelo fígado. Além disso, diversos estressores aumentam a concentração de citocinas pró-inflamatórias no sangue e estimulam os macrófagos a reagir de forma exagerada a PAMPs (WATKINS; MAIER, 1998). Em conclusão, a resposta de estresse parece ser um mecanismo bastante antigo que, em sua seleção, incluiu a hiperativação do sistema imune inato para a pronta-ação do mesmo contra os patógenos com os quais pode-se ter contato durante situações de luta ou fuga. Ao mesmo tempo, com base nos mesmos experimentos, percebeu-se que a imunidade adquirida sofre uma redução neste processo, diminuindo a resistência dos indivíduos a infecções virais e outras doenças. Assim, o que o estresse causa é um deslocamento da ênfase dos processos da imunidade adquirida para os processos da imunidade inata, que inclui a inflamação (WATKINS; MAIER, 1998, p. 99). A conceituação da palavra estresse, portanto, é utilizada para indicar o conjunto de alterações fisiológicas, comportamentais, com repercussões no sistema imune, que o organismo desenvolve diante de um desafio (agente estressor) de natureza física ou psicossocial (positivo ou negativo), que rompe a homeostase do organismo e exige assim um esforço de adaptação. (ZIMPEL, 2005 apud SOUSA; SILVA; GALVÃO-COELHO, 2015. p. 3)
Consoante à ideia de que o paradigma da alostase leva a compreensão dos mecanismos de equilíbrio do corpo para as áreas superiores do sistema nervoso (para o SNC, incluindo o cérebro) e que muitas funções fisiológicas e 58
comportamentais intercalam-se de forma a otimizar o custo das variações alostáticas, Sterling (2012) propõe uma maneira de centralizar e didatizar o processo de alostase baseando-se em um mecanismo ao qual deu o nome de stick-carrot (literamente chicote-cenoura). Segundo o autor, a amígdala é uma estrutura cerebral fundamental que integra uma série de processos de sinalização fisiológica, como a pressão arterial, o balanço energético e mineral, além de receber sinais aferentes de áreas viscerais e do tronco cerebral para modular o nível de excitação geral (arousal level). Esta estrutura está integrada e é regulada, como vimos, pelo hipocampo, essencial para a formação de memórias de longo prazo e da memória de pistas contextuais, pelo córtex pré-frontal, que permite o planejamento e a decisão sobre as ações. Esta organização, que poderia ser chamada córtico-amigdalar, corresponde, para o autor, ao stick, já que, como um chicote, tal área mantém o ser em movimento e alerta sobre os perigos que podem ser encontrados nos caminhos. Com a quantidade de vias possíveis a serem tomadas pelos comportamentos e pela fisiologia com vistas à melhor adaptação, todas as ações devem ser valoradas, sendo escolhidas as que forem consideradas mais reforçadoras. Nesse caso, o que está em funcionamento é o mecanismo carrot (cenoura), que calcula os custos alostáticos com base na previsão das recompensas. Esta segunda parte do mecanismo, segundo o autor, encontra-se em áreas dopaminérgicas que ligam o núcleo accumbens, no estriado ventral, e o córtex pré-prontal (CPF) (STERLING, 2012). Enquanto a estimulação elétrica dos corpos amigdalóides durante cirurgias causa sensações de medo difuso, com dilatação da pupila e aumento do ritmo cardíaco (MACHADO, 2005, p. 282), pulsos de dopamina liberados em áreas dos gânglios da base como o núcleo accumbens geram uma sensação de desejo, cujo significado fisiológico é a predição de recompensas. Em verdade, o cálculo entre estresse e recompensa é bastante complexo. Por exemplo, caso um animal esteja com muita fome, o mecanismo-stick irá forçar a queda do limiar do mecanismocarrot, aumentando o prazer previsto e realizado ao comer o alimento (STERLING, 2012). É o que conhecido no ditado popular como “a fome é o melhor tempero”. Não é difícil perceber que todas essas incursões teóricas levam a um só lugar: o papel da motivação e dos processos emocionais no equilíbrio e na regulação do organismo como um todo. No livro “Mudanças Corporais na Dor, na Fome, na Raiva e no Medo”, Cannon (1915) já atestara o valor das emoções no 59
equilíbrio do corpo, equilibrando funções de maneira antecipatória e preparando o corpo para cada ação. Como na palavra grega para emoção, páthos, tudo que ocorre com alguém, com seu corpo e com sua alma, é um movimento que exige o trabalho de auto-regulação, para a preservação das energeia, ou funções do organismo. Tudo leva a crer que o controle do processamento emocional, bem como da motivação, ocorra no SNC. Esse controle está distribuído por uma série de regiões cerebrais que trabalham juntas. Cognições, representações corporais, homeostase e comportamentos estão integradas numa mesma rede centraliza o cálculo dos perigos e do valor de recompensa, o que chamamos de motivação (GANZEL; WETHINGTON; MORRIS, 2010). Esses cálculos estão ocorrendo a cada momento no organismo, das mais variadas formas. Podemos percebê-los em condições bastante delicadas, que envolvem inclusive outros corpos que não apenas os do indivíduo. Por exemplo, em uma noite fria, ou após um dia estressante, pode-se pagar o custo da mudança climática e das demandas emocionais com um copo de conhaque, ou pode-se optar por colocar um casaco de veludo e deitar perto da lareira, outros, ainda escolhem estar perto de seus amados, abraçados durante toda a noite. Não é difícil perceber que o paradigma alostático pressupõe muito mais que um mecanismo puramente físico, ele convoca a fisiologia a pensar um grau de subjetividade e de estratégias de enfrentamento (coping) que fazem ver cada ser humano como único e responsável pela própria vida. Por sua centralidade no controle da alostase, as regiões relativas à emoção e ao planejamento são também as mais afetadas pelos custos do estresse físico, emocional e imunológico, com consequências que podem inclusive potencializar as consequências negativas da sobrecarga alostática no corpo como um todo (GANZEL; WETHINGTON; MORRIS, 2010, p. 135). O custo do equilíbrio alostático é cumulativo, e aparece na forma do automatismos fixos, formas estereotipadas reação ao ambiente causadas pela acomodação dos parâmetros do organismo a uma taxa de resposta fixa que lembra as formas anteriores mais bem sucedidas (ibid). Assim, pequenos estresses do diaa-dia contribuem aos poucos para causar, por exemplo, uma doença hipertensiva que acompanhará o indivíduo por toda a vida. É importante lembrar que, vista assim, uma patologia não é de forma alguma um problema, ao menos quando foi criada. Uma doença de adaptação como a hipertensão é, pelo contrário, a memória de uma 60
estratégia que certamente teve sucesso quando foi utilizada e que por isso se repetiu até a exaustão e reacomodação do sistema. O papel do tempo na alostase fica muito mais claro quando as acomodações que a mesma engendra ocorre em momentos sensíveis ou críticos para o desenvolvimento, como na infância e na adolescência. Ganzel e Morris (2011, p. 958) sugerem chamar esses períodos de janelas de plasticidade, quando o cérebro está mais sujeito a modificações (vide os períodos críticos para o desenvolvimento do CPF na adolescência) e janelas de vulnerabilidade, como é o caso da vida fetal. Recentemente, Miller e Nusslock (2016) propuseram um modelo hipotético bastante abrangente, ao qual chamaram de Hipótese da Rede Neuroimune (Neuroimmune Network Hypothesis - NNH). Esse modelo é bastante interessante na medida em que organiza achados de diferentes áreas sobre os efeitos do acúmulo de estressores durante períodos como a infância. Ainda que este modelo não explique a diferença no enfrentamento observada em cada indivíduo, tampouco a especificidade das situações estressoras, o mesmo ainda é aproveitável já que faz operar as questões fundamentais discutidas até aqui. A NNH trabalha com dois conceitos básicos: sensibilização e vulnerabilidade. Além disso, identifica três redes principais de comunicação entre o efeito dos estressores no corpo e os processos cerebrais: 1) a rede córtico-amigdalar, chamada rede de sensibilidade a ameaças, 2) a rede córtico-basal-gangliar, ou rede de sensibilidade a recompensas, e 3) a rede pré-frontal, ou rede de controle executivo. Na primeira parte de seu artigo, Miller e Nusslock (2016) demonstram que crianças que sofreram abusos ou maus-tratos na infância, bem como crianças vindas de famílias de classes baixas, apresentam um menor recrutamento de regiões pré-frontais dorso e ventrolaterais e de áreas do córtex cingulado anterior na regulação da amígdala, além de uma hiperresponsividade desta última, mesmo depois de adultas. Além disso, essas modificações, que reduzem o limiar de detecção de perigos, tem consequências no SSA e no HPA, dois sistemas intimamente relacionados ao SI. Ao mesmo tempo, pessoas que sofreram diversos estressores na infância apresentam maior reatividade inflamatória, maior quantidade de citocinas circulantes e outros marcadores inflamatórios e menor possibilidade de inibição da resposta inflamatória pelo cortisol. Como a ativação da detecção de ameaças estimula essas mesmas modificações no sistema imune e, como vimos, a 61
ativação do sistema imune causa uma estimulação no circuito de detecção de ameaças, tem-se uma interferência bidirecional entre os dois sistemas. Do ponto de vista da rede de sensibilidade a recompensas, é possível demonstrar que pessoas e animais que sofreram estresse precoce apresentam uma menor ativação deste circuito, o que contribui para a manifestação de comportamentos de risco, como consumo de drogas, álcool, açúcar, dentre outros, que procuram dar conta da diminuição no prazer observada. Da mesma forma, processos inflamatórios diminuem a qualidade reforçadora de estímulos como o sexo, e criam estados similares à depressão. Além disso, pessoas que recebem citocinas como tratamento de hepatite-C apresentam uma taxa de depressão entre 30 e 50%, e são tratadas com paroxetina (ibidem). Como o CPF é uma das últimas áreas neurais a ter seu desenvolvimento e maturação completos, esta área é uma das que mais sofrem com os efeitos inflamatórios ascendentes do SI para o SNC, bem como com a interferência entre a amígdala hiperativada e o SI e com a realização de comportamentos de risco como o fumo, a bebida e outros. Com isso, por ser uma instância reguladora da amígdala e fundamental no planejamento, o custo acumulado nessa área amplifica mais ainda as interferências neuroimunes e a resposta do estresse, demonstrando a necessidade de cuidar-se do bom desenvolvimento desta região a partir da promoção da saúde (ibidem)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O paradigma da regulação cerebral, ou ainda, a união entre o paradigma da regulação autonômica e o da regulação cerebral, revela a possibilidade de uma maior participação da psicologia nas ciências da saúde, a partir do conceito de uma reformulação do conceito de homeostase, que é a base da própria fisiologia médica. O curto espaço de uma monografia infelizmente não é suficiente para abarcar todas as peculiaridades de um tema tão complexo. Porém, espera-se poder continuar, mais à frente, o trabalho aqui iniciado, que deixa, portanto, espaço para novas linhas a serem postas no papel.
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