Monografia [final].pdf

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

LUAN LUCAS ARAÚJO MORAIS

“JUSTAS DA CORTE”: O AMOR CORTÊS E AS REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DO MASCULINO E DO FEMININO NA CULTURA ESCRITA DAS CORTES EM FRANÇA (SÉCULOS XII-XIII)

FORTALEZA - CEARÁ 2017

LUAN LUCAS ARAÚJO MORAIS

“JUSTAS DA CORTE”: O AMOR CORTÊS E AS REPRSENTAÇÕES LITERÁRIAS DO MASCULINO E DO FEMININO NA CULTURA ESCRITA DA CORTE EM FRANÇA (SÉCULOS XII-XIII)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Licenciatura Plena em História do Centro de Humanidades da Universidade

Estadual

do

Ceará,

como

requisito parcial à obtenção do grau de licenciado em História. Orientador: Dr. Gleudson Passos Cardoso

FORTALEZA – CEARÁ 2017

LUAN LUCAS ARAÚJO MORAIS

“JUSTAS DA CORTE”: O AMOR CORTÊS E AS REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DO MASCULINO E DO FEMININO NA CULTURA ESCRITA DAS CORTES EM FRANÇA (SÉCULOS XII-XIII)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Licenciatura Plena em História do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do grau de licenciado em História.

Aprovado em: 30 de janeiro de 2017

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________ Prof.º Dr. Gleudson Passos Cardoso (Orientador) Universidade Estadual do Ceará – UECE

_____________________________________________________ Prof.º Dr. Antônio de Pádua Santiago de Freitas Universidade Estadual do Ceará – UECE

____________________________________________________ Prof.º Ms. José Lucas Cordeiro Fernandes Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos - NEVE

Às damas de minha vida: Elieudes e Lauryane. E à eterna musa, Clio.

AGRADECIMENTOS

À minha família, especialmente aqui representada pelas mulheres mais fortes que já conheci: minha mãe, Elieudes; minha tia, Elianeudes e minha avó, Elionora. Saibam que são ternamente amadas e que devo a vocês toda minha educação, respeito, responsabilidade e amor por tudo que me ensinaram e que ainda me ensinam. À minha mãe, Elieudes, a quem devo a vida, o cuidado e todo o apoio incondicional necessário para concluir essa etapa de minha vida. Obrigado por nunca desistir, por sempre acreditar e ter fé em mim e na minha escolha durante toda a caminhada até aqui. Com amor, sempre. Ao primo/irmão, Felipe Leite, cuja convivência desde tenra idade me concedeu as maiores e melhores aventuras que a vida pode proporcionar. Obrigado por me mostrar o verdadeiro significado de família, de parceria e amizade. Ao meu pai, Jocélio Morais, pelo valioso incentivo, pelas perguntas sempre bem-vindas, e pelo amor compartilhado durante toda a vida. Aos amigos, aos irmãos, aos companheiros de jornada, aos Dientlimãs, que tornaram tudo incrivelmente mais divertido e prazeroso, que dividiram angústias, ofereceram respostas e realizaram, também, este trabalho. A cada um de vocês: Davi, Isaac, Paulo Henrique, Haroldo, Marcelo, Narcisio. A academia não me proporcionou apenas “pares”, mas amigos para toda vida. Espero encontrar vocês onde quer estejam e onde quer que eu vá. Aos demais companheiros de curso e aos amigos da vida presentes nos melhores e também nos piores momentos, sempre oferecendo palavras de incentivo e fazendo o que sabem fazer de melhor, serem vocês mesmos, o melhor apoio: Maiara, Evanes, Luana, Eva, Larissa Belizário, William, João Paulo, Ranieri, Leo, Felipe Menezes, Fávilo e Vitor. Aos “Moys”: Ricardo, Ícaro, Yuri, Fernando, Horley, Victor, Lyon, Gabriel (Bielzin), Gabriel (o Bode), Breno e Matheus. Também à Thais Lopes, amiga de sempre, pelo carinho, força e confiança desde os tempos de colégio. A todos, enfim, que tornaram isso possível. À maior inspiração deste trabalho, ao amor da minha vida, à Ninda, Lauryane Mayra. Por me mostrar a capacidade de amar, por cuidar tão bem de mim, e por saber falar o que melhorar, à sua melhor maneira. Obrigado pelas manhãs, tardes, noites e madrugadas sabendo ouvir, sabendo sugerir e tendo toda a paciência possível mesmo nos momentos mais difíceis. De fato,

“as coisas lindas são mais lindas quando você está”. Nada disso teria sido possível sem você. Amo-te! Ao irmão de armas e de ofício, Lucas Fernandes, pelo incansável suporte, pelas indicações de leitura, pelas conversas, revisões e pela oportunidade de realizar trabalhos que ainda irão surgir no futuro. A vida me deu um amigo inestimável e um historiador exemplar. Àqueles que me inspiraram a seguir a profissão e a enveredar pelos caminhos da História. Meu muito obrigado a Thiago Cavalcanti e José Ramilson. Aos mestres, com carinho. Ao professor Dr. Antônio de Pádua, pelo aceite do convite para compor a banca de minha defesa. Ao meu orientador, professor Dr. Gleudson Passos, por acreditar na viabilidade da pesquisa desde o início da graduação, sempre se mostrando disposto a ajudar e fomentar o desenvolvimento deste trabalho, sabendo respeitar e, principalmente, aconselhar sobre os caminhos a serem seguidos. Camarada, obrigado! A realidade da medievalítisca cearense persiste. Finalmente, obrigado à UECE. Pelos anos maravilhosos e pela eterna relação de amor/ódio, entendendo que nem sempre temos o que queremos na hora em que desejamos. De todo modo, só me resta agradecer pela acolhida carinhosa e pela convivência durante todo esse tempo.

“Entendo que é possível olhar nos olhos de alguém e de súbito saber que a vida será impossível sem eles. Saber que a voz da pessoa pode fazer seu coração falhar, e que a companhia dessa pessoa é tudo que sua felicidade pode desejar, e que a ausência dela deixará sua alma solitária, desolada e perdida. ” (Derfel Cadarn)

RESUMO Esta pesquisa busca compreender a influência do Amor Cortês na construção de uma cultura escrita medieval de modo a demarcar posturas sociais aos homens e mulheres no espaço das cortes nobiliárquicas na França dos séculos XII e XIII. Essa literatura cortesã, advinda dos ambientes palacianos no século XII, e postergada no XIII, foi representada por uma gama variada de obras (escritas ou não) acerca dos valores, práticas e pressupostos da cultura cortês. Das trovas medievais cantadas pelos jograis, passando às canções de gesta e finalmente culminando naquele que seria o gênero mais popular e que melhor traduziria os anseios de seu público-alvo: o roman [romance] medieval. Por se tratar de uma narrativa descritiva, rica em digressões dos mais variados aspectos da vida cotidiana do medievo, observamos nos romans a necessidade que os seus autores viam em melhor descrever sobre as próprias experiências, seus desejos e fantasias imbricados no imaginário e nas imagens que os medievais possuíam sobre si mesmos. Desse modo, tal pesquisa busca apreender as relações entre as forças sociais e o imaginário medieval presentes nas cortes aristocráticas e compreender como as representações literárias das damas e cavaleiros nas obras cujo tema narrativo era o Amor Cortês foram relevantes para configurar posturas e padrões entre homens e mulheres, além analisar a finalidade dessa literatura medieval como vetor de propagação dos ideais corteses na sociedade feudal e sua respectiva repercussão em um cenário além dos ambientes palacianos. Palavras-chave: Cultura escrita. Literatura medieval. Amor cortês. Representações.

ABSTRACT This research seeks to understand the influence of the Courtly Love in the construction of a medieval written culture in order to demarcate social postures to the men and women in the French noble courts of the 12th and 13th centuries. This courtly literature, from the aristocratical environments in the 12th century, and postponed in the 13th century, was represented by a wide variety of works (written or not) about the values, practices and assumptions of the courtly culture. The medieval ballads sung by Jesters, passing to gesta songs and finally culminating in what would be the most popular genre and what better translate the desires of their target audience: the roman [novel]. Because it is a descriptive narrative, rich in digressions of various aspects of the everyday life of the Middle Ages, we visualize in the romans the need that their authors saw at best describe about the experiences, their desires and fantasies in the imaginary and interwoven in the medieval images had about themselves. Thus, this work aims to capture the relationships between the social forces and the medieval imaginary present in aristocratic courts and understand how the literary representations of the dames and knights in the works whose narrative theme was the Courtly Love were relevant to configure postures and patterns between men and women, as well as analyze the purpose of this medieval literature as a vector for the propagation of the courteous ideals in feudal society and its repercussions in a setting aside of the noble environments. Keywords: Written culture. Medieval literature. Courtly love. Representations.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Mapa francês das langue d’oc e das langue d’oil ............................................... 20 Figura 2 – Mapa francês detalhado dos dialetos falados no langue d’oc e no langue d’oil..27 Figura 3 – Trecho do Lai du Chèvefreuille, no detalhe de um manuscrito do século XIII...31 Figura 4 – Trecho de Cligès em verso, no detalhe do Manuscrito Guiot (séc. XIII)..........37 Figura 5 – Mapa político francês do século XII .................................................................. 74 Figura 6 – Miniatura em detalhe do Roman de la Rose, presente no Manuscrito Harvey (séc. XV), representando o início do Roman ..................................................... 78 Figura 7 – Miniatura em detalhe do detalhe do Roman de la Rose, presente no Manuscrito Harvey (séc. XV), retratando o Jardim do Amor ........................................... 81 Figura 8 – Miniatura em detalhe do Roman de la Rose (Manuscrito Ludwig, séc. XV) representando a Pobreza .................................................................................... 85 Figura 9 – Miniatura em detalhe do detalhe do Roman de la Rose, presente no Manuscrito Harvey (séc. XV), representado o amante e a Razão .................................... 89

SUMÁRIO

1

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 12

2

PARA UMA LITERATURA DO “DIVERTIMENTO”.......................................... 19

2.1

CONSIDERAÇÕES SOBRE A “LITERATURA” E A CULTURA ESCRITA NO MEDIEVO .................................................................................................................... 21

2.2

A “LINGUAGEM DAS CORTES”: O CASO DO ROMAN MEDIEVAL ................. 28

3

NASCIDOS SOB O SIGNO DA PAIXÃO: OS AMANTES NA LITERATURA CORTÊS ...................................................................................................................... 39

3.1

A “ARTE DE AMAR” NO IMAGINÁRIO DA NOBILIS FEUDAL ......................... 42

3.2

IDEALIZAÇÃO DA CORTESIA: TRISTÃO E ISOLDA; SOREDAMORS E ALEXANDRE .............................................................................................................. 50

3.3

SACRALIDADE VS PAIXÃO: DUALIDADES DA CAVALARIA FEUDAL ......... 63

4

NOS SALÕES DA CORTESIA: RECEPÇÃO E REPRODUÇÃO DO AMOR CORTÊS NA SOCIEDADE FEUDAL ..................................................................... 71

4.1

O CENÁRIO CORTÊS NO SÉCULO XIII .................................................................. 73

4.2

ADENTRANDO NO JARDIM DO AMOR: O SONHO ALEGÓRICO DA CORTESIA NO ROMAN DE LA ROSE ......................................................................................... 75

4.3

VENDO ALÉM DOS MUROS: DIGRESSÕES E CONSIDERAÇÕES SOBRE A CULTURA ROMANESCA NO ROMAN DE LA ROSE ........................................... 83

5

CONCLUSÃO.............................................................................................................. 92 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 95

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1 INTRODUÇÃO O “pensar” Idade Média no circuito acadêmico tradicional ainda levanta toda uma gama de debates, ponderações, questionamentos e direcionamentos possíveis envolvendo tal temática nas produções historiográficas brasileiras, perpassando por entre os trabalhos de conclusão de curso até teses de doutoramento. Os percalços encontrados pela escolha de um tema que contemple tal recorte temporal histórico encontram-se muitas vezes nas críticas destinadas a uma suposta impossibilidade de se pesquisar e desenvolver um trabalho coeso que estude o período medieval com os evidentes limites (espaciais e temporais) que possuímos. Entretanto, o mesmo “pensar” sobre a Idade Média já mencionado e o interesse pessoal do pesquisador em desenvolver projetos, estudos e pesquisas na área também não deveriam constar como ponto essencial do trabalho antes de tudo? Tendo como base experiências pessoais, felizmente, alguns desses obstáculos puderam ser perpassados ainda na graduação, mediante o ingresso e participação produtiva no ARCHEA – Grupo de Pesquisa em Cultura Escrita e Oralidade na Antiguidade e no Medievo, vinculado ao Mestrado Acadêmico em História e Culturas da Universidade Estadual do Ceará (MAHIS/UECE). Desde o início um claro objetivo nos foi capitaneado pelos coordenadores: a clara oportunidade de se fazer de um tema cujo interesse pessoal dos pesquisadores se aliasse com as novas abordagens e perspectivas quando da construção de um campo historiográfico em História Antiga e História Medieval no Ceará e no Nordeste. Feito que direcionaria os olhares acadêmicos além do eixo tradicional sul/sudeste para os estudos que aqui estão em desenvolvimento. Beneficiados com o advento do ARCHEA, buscamos alocar um particular envolvimento com os variados assuntos envolvendo o período em questão, junto a um aprofundamento maior e melhor embasado teórica e metodologicamente para produzirmos algo a contribuir e auxiliar na construção desse campo historiográfico, aqui tratando-se especificamente do cenário medieval. Desse modo, aliamos a justificativa do presente trabalho perpassando pelo desejo pessoal, antes de mais nada, do pesquisador em engajar-se com algo de sua preferência, aliado aos desafios acadêmicos de incrementar os índices de produção sobre estudos em História Medieval mediante as ferramentas aqui utilizadas como o campo temático da História Cultural e o referencial teórico envolvendo o uso da narrativa literária como fonte, junto do aporte metodológico sobre a produção de uma cultura escrita na temporalidade estudada, vinculada

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ao imaginário e as representações de um universo feudal em que podem ser compreendidas como sendo “[...] legitimações, visões ou exclusões de uma determinada camada ou sujeito social sobre os artefatos culturais produzidos [...]” (PESAVENTO, 2005, p. 48). Segundo Peter Burke (2008, p. 9) “[...] Uma solução para o problema da definição de história cultural poderia ser deslocar a atenção dos objetos para os métodos de estudo [...]”, solução que por ventura, nos apropriamos em parte para efeito de análise durante a pesquisa. Ao focarmos nas manifestações, produções, circulação e recepção dos objetos culturais na sociedade medieval, aqui representados pela literatura de cunho cortês circulante à época, levamos em consideração, por um outro lado, qual metodologia e base teórica seriam adequadas a se fazerem presente no escopo do trabalho. Os aportes escolhidos, os métodos e as possíveis “soluções” – e suas hipóteses em aberto – estariam ancorados segundo o pressuposto de que aos estudos condizentes com a História Cultural compete “[...] uma preocupação com o simbólico e suas interpretações. Símbolos, conscientes ou não, podem ser encontrados em todos os lugares, da arte ou vida cotidiana, mas a abordagem do passado em termos de simbolismo é apenas uma entre outras [...]” (BURKE, 2008, p. 10). Ademais, cientes das advertências e impossibilidades em relação à tentativas de reconstrução fiel do “real”, partimos em consonância com mais uma atribuição ao uso da História Cultural enquanto campo de pesquisa, a existência e a produção de “regimes de verdade”, desviando-nos da chamada “tentação” que se apresenta ao historiador de considerar os registros materiais e imateriais de qualquer temporalidade enquanto reflexos vívidos, imutáveis e sem qualquer tipo de problemática em seu interior (BURKE, 2008). Dessa forma, torna-se oportuno que o próprio conceito de cultura escrita possa vir a realizar tal objetivo, quando entendemos que dentro do escopo cultural do imaginário, da representação, ela pode ser entendida como integrante “[...] do lugar - simbólico e material – que a escritura ocupa/em para determinado grupo social, comunidade ou sociedade [...]”, [...]”, onde os objetos dessa escrita, durante seu processo de publicação e circulação, retornam de maneira metafórica ou realista às próprias obras (CHARTIER, 2007, p. 19-20), sendo que as representações literárias aqui estudadas atuam de modo integral como forma do procedimento de proliferação da escrita em sociedades para não sucumbir perante à perda da materialidade dos registros e discursos produzidos (CHARTIER, 2007). Sobre essa cultura, é válido que ressaltemos ainda sobre sua força na atmosfera mental e suas relações com o imaginário do período, além de sua circulação nos variados

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lugares sociais do mundo feudal. Podemos inferir que havia um tipo de manifestação cultural, uma determinada “energia” que condizia com um conjunto de experiência sensoriais em que os literatos e seu público-alvo estavam subordinados. Os primeiros, ao escrever, relatar, apresentar e produzir suas obras e os últimos ao consumir, sejam letrados ou não, o conteúdo ali presente. Tal energia seria, portanto, uma energia social em que os objetos, as expressões e as práticas culturais exercidas na sociedade feudal francesa dos séculos XII e XIII seria “[...] manifestada na capacidade de [...] produzir, moldar e organizar experiências coletivas físicas e mentais [...]” (GREENBLATT, 1988, p. 6), que logicamente, acabam por dotar as fontes utilizadas neste trabalho de um significado e de uma carga simbólicos enquanto representações referentes à realidade social daquela época. Se a energia social, junto das representações, faz parte de um campo maior que é senão o imaginário social do medievo, adotaremos o próprio conceito de imaginário, aqui traduzido como sendo “[...] sistema de ideias construídas pela representação das sociedades [...]” (PESAVENTO, 2005, p. 48), ou seja, uma representação coletiva, que quando codificada pelo “filtro” que perpassa as emoções básicas, os automatismos e as heranças culturais enraizadas, torna-se elemento desse mesmo imaginário, o qual apontamos como sendo o filtro mencionado ao dotar tais objetos de uma historicidade latente (FRANCO JÚNIOR, 2010). Isso posto, nos cabe então uma apresentação sobre o tema propriamente dito, no caso o Amor Cortês suas variadas representações na literatura do período. Ensejamos elucidálo aos olhos de uma percepção de mudança comportamental vivenciada por homens e mulheres no medievo, denotando a inserção histórica do Amor Cortês como objeto passível de discussão, tratando sobre direcionar e problematizar o mesmo com a perspectiva de desvendar o meio de circulação de uma cultura escrita elaborada no medievo ocidental, visando refletir sobre o imaginário social dos letrados que assinavam sua autoria, bem como manusear adequadamente uma bibliografia especializada e identificar documentos históricos/fontes de pesquisas relacionadas ao campo da cultura escrita em períodos mais remotos da história. A partir do período que os historiadores denominam de Idade Média Central (séculos X-XIII), o ocidente medieval passa por um conjunto de transformações culturais e sociais que permitiram o surgimento de um panorama favorável para um processo gradual de remodelação dos costumes e comportamentos dos homens e mulheres nobres no período. Ademais, a retomada de uma produção cultural escrita, sobretudo no século XI, é ampliada de maneira a se fazerem surgir os primeiros escritos sobre a temática cortesã para o amor, dos

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quais destacamos neste trabalho, principalmente, o roman medieval devido à sua narrativa descritiva e rica em digressões dos mais variados aspectos da vida cotidiana no medievo. Tais mudanças, alocadas na perspectiva de um refinamento dos costumes e na gênese de um “processo civilizador” (ELIAS, 2011), entendendo que a dinâmica apresentada pela mudança nos comportamentos masculinos e femininos ligados à nobreza durante a época feudal pautaram-se na compreensão que um maior controle dos impulsos corporais e um distanciamento das práticas “vulgares” vinculadas aos demais grupos sociais distintos da aristocracia, agiria na demarcação e na afirmação de superioridade e de destacamento da nobreza enquanto estrato social diferenciado, seja por suas características familiares ou econômicas ou políticas, mas principalmente, por seus aspectos comportamentais: A manifestação de sentimentos na sociedade medieval é, de maneira geral, mais espontânea e solta do que no período seguinte. Mas não é livre ou sem modelagem social em qualquer sentido absoluto. O homem sem restrições é um fantasma. Reconhecidamente, a natureza, a força, o detalhamento de proibições, controles e dependências mudam de centenas de maneiras e, com elas, a tensão e o equilíbrio das emoções, e de idêntica maneira, o grau e tipo de satisfação que o indivíduo procura e consegue. (ELIAS, 2011, p. 202)

Para retratar tais mudanças, optamos por utilizar os exemplos oferecidos pela narrativa romanesca, presentes nas traduções do francês para o inglês dos seguintes romans selecionados: O Romance de Tristão e Isolda [L’histoire de Tristan et Iseult]; O Romance da Rosa [Le Roman de la Rose], além de romances selecionados da coletânea Arthurian Romances, de autoria de Chrétien de Troyes e A Demanda do Santo Graal [La Queste del Saint Grail]. Ademais, tratados filosóficos como o de André Capelão sobre o Amor Cortês [Tractatus de Amore] e o de São Bernardo de Claraval [De Laude Novae Militiae ad Milites Temple Liber] sobre os modelos da nova cavalaria serão incorporados ao projeto juntamente com fontes iconográficas da época, onde as relações de imaginário e representação social ficarão mais claras com essa interligação entre documento escrito e imagético1. Pertencentes ao recorte temporal estipulado para a pesquisa, ou seja, os séculos XII e XIII, tais obras ajudaram na compreensão das nuances variadas que o medievo ocidental atravessou culturalmente.

Os signos do imaginário e sua linguagem específica – as imagens - são uma “construção mental, realizada a partir de estímulos dos sentidos (seres, objetos, locais, sensações) ou do aparelho visível/psíquico (visões, sonhos, memória) que implica certa relação com o mundo e certa leitura do mesmo, materializadas na palavra e/ou na escrita [grifo nosso]”. 1 Cf. FRANCO JÚNIOR, Hilário. O fogo de Prometeu e o escudo de Perseu: reflexões sobre mentalidade e imaginário. In:______. Os três dedos de Adão: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Editora da USP, 2010, p. 85-86. 1

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O “fino amor” descrito em tais textos é visualizado como sendo o ideal cortesão para o ato de “amar”, em que a retórica, os símbolos e os gestos em torno da sensibilidade, docilidade, elegância e refinamento destacavam-se como parte da etiqueta e do código de vida da aristocracia francesa no recorte temporal exposto. Traços que podem ser bem exemplificados com uma breve passagem do Tractatus de Amore (século XII), uma das fontes utilizadas no trabalho, quando o autor descreve sobre os benefícios do amor para o caráter: [...] o amor faz um homem grosseiro e sem educação brilhar de elegância; até a um homem de baixíssimo nascimento ele pode conferir nobreza de caráter; enche o orgulhoso de humildade, e graças a ele o amante acostuma-se a prestar com prazer serviços aos outros. Que coisa extraordinária o amor: permite que tantas virtudes brilhem no homem e confere tantas qualidades a todos os seres, quaisquer que sejam. (CAPELÃO, 2000, p. 12-13)

Na França de finais do século XI e início do XII, este ideal cortesão presente na literatura da época surge como fruto das experiências sociais e políticas derivadas diretamente das práticas exercidas por seus idealizadores: os príncipes e senhores feudais. Com isso, pequenas cortes foram se afirmando em tal cenário devido ao seu poderio militar, riqueza e sobretudo por sua capacidade de abrigar um número notável de poetas e letrados que cantavam, escreviam e narravam as conquistas de seus senhores, sendo as mesmas o cenário principal das primeiras narrativas sobre o Amor Cortês. A construção desse “fino amor”, do trato cortês e suas mais variadas manifestações literárias fizeram-se presentes no contexto de autoafirmação dessa nobreza ascendente e também de uma preocupação com a divulgação dos ideais de conduta vinculados a esse estrato social: Para o público da corte absoluta, grande parte do que realmente existe no campo, na “natureza”, não mais se retrata. A colina e mostrada, mas não a força nela plantada, nem o cadáver pendurado. O campo é mostrado, mas não mais o camponês esfarrapado tocando penosamente seus cavalos. Tudo o que é “comum” e “vulgar”, da mesma forma que desaparece da linguagem de corte, desaparece também dos quadros e desenhos destinados à aristocracia de corte. [...] Os sentimentos da classe alta ainda não exigem que todo o vulgar seja eliminado da vida e, por conseguinte, dos desenhos. É gratificante para os nobres saber que são diferentes dos demais. A vista ao contraste aguça a alegria de viver e cabe recordar que, em uma forma mais moderada, algo do prazer proporcionado por esses contrastes ainda se encontra, por exemplo, em Shakespeare. (ELIAS, 2011, p. 195-198)

Por isso dispusemo-nos a utilizar a narrativa literária como fonte histórica para o estudo da temática, visto que em História, o documento escrito possui como premissa objetiva uma compreensão da história como uma narrativa que constrói uma representação sobre o passado, e que se desdobra nos estudos da produção e da recepção de textos. Tal pressuposto, inserido no campo teórico da História Cultural, busca observar nas obras literárias e na cultura escrita propriamente dita, “mecanismos de produção de objetos culturais” que permitem ao historiador uma maior percepção acerca do substrato social do qual os textos eram frutos.

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A escolha por utilizar tal recurso para análise da temática cortês do amor possui seu valor ao demonstrar a sociedade feudal de modo único e original, destacando muitas vezes um reflexo das atitudes cotidianas na elaboração dos textos divulgados. História e literatura possuem próximos de si o recurso estrutural da narrativa, obedecendo, logicamente, suas especificidades, sendo que esta última, por sua vez, constrói em seu texto um imaginário e realidade únicos, elaborando assim um discurso idealizado sem necessariamente se ater às diretrizes do real, instituindo sua própria “verdade” dos fatos. Tal “linguagem das cortes” apresentada de maneira rica nos romans possibilitarão a problematização da variedade dos “jogos” amorosos da corte disputados entre os amantes. Daqui retiramos o título de nosso trabalho, visto que tais “disputas” entre os cavaleiros e suas consortes seriam a metáfora cortesã para os torneios de justas muito comumente disputados pela cavalaria feudal. Nossa problemática envolve o intuito de perceber se os ideais de cortesia e os valores cavaleirescos representados nesses escritos demonstravam as variantes de comportamento existentes no espaço das cortes francesas, perpassando no questionamento de como os medievais sentiam e associavam as figuras literárias como um modelo a ser seguido, além de questionar quais as relações deste amor com o ethos cavaleiresco estabelecido. Portanto, perceber na fonte literária medieval as nuances que marcaram o cotidiano dos homens e mulheres desse período é o que torna viável a proposta aqui pretendida, que munida dos aportes teóricos sobre o imaginário medieval e o estudo das representações literárias fornecerá um quadro mais claro acerca daquilo que entretinha, disciplinava e por quê não, “fazia amar” aos medievais. Deste modo, após as linhas iniciais sobre o trabalho em questão, cabe uma posterior estruturação sobre o desenvolvimento e de como as temáticas anteriormente citadas serão elencadas no corpo textual. O primeiro ponto a ser trabalhado no pós-introdução seria a compreensão e o balanço histórico sobre uma compreensão do que seria a “literatura” no medievo, suas formas de expressão inicialmente orais, o amálgama com o elemento da cultura escrita e análise estrutural do gênero do roman dentro do universo literário construído nos séculos XII e XIII na região da França. Assim, o primeiro capítulo de nome PARA UMA LITERATURA DO “DIVERTIMENTO” discute como deu-se o processo de construção desse gênero específico e suas representações acerca do Amor Cortês na cultura literária medieval.

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Trabalhada essa primeira questão, no segundo capítulo intitulado NASCIDOS SOB O SIGNO DA PAIXÃO: OS AMANTES NA LITERATURA CORTÊS, partimos para uma análise mais a fundo sobre o imaginário e a mentalidade da aristocracia feudal acerca de seus modelos inspiradores contidos na literatura cortesã, estabelecendo uma discussão com base nas concepções sobre o imaginário acerca das figuras literárias existentes nas obras cortesãs, sobre as representações das damas e dos cavaleiros que povoavam as linhas narrativas de tal literatura e sobre a energia social existente no processo de produção, recepção e circulação de tais escritos, trazendo à tona como os homens e mulheres nobres viam seus anseios, desejos e medos representados por um corpo de heróis e heroínas dispostos ao entregar suas vidas em virtude dessa “arte da conquista”, além de discutirmos sobre o braço masculino e viril dessa literatura: a cavalaria e suas variadas formas de apresentações nos escritos corteses. O último ponto deste trabalho seria o foco transitório da passagem do século XII para o XIII e suas respectivas alterações, continuidades e a maior circulação social na escrita dos escritos sobre o Amor Cortês, no objetivo abordar o quadro social e cultural do século XIII, onde os ideais corteses tiveram um espaço mais livre de criação e divulgação, ultrapassando os muros dos castelos senhoriais e chegando aos demais estratos sociais do medievo. Aqui o objetivo é discutir como e por quê motivo a literatura de cunho cortês expandiu seu públicoalvo, de modo a exercer influência sobre outros setores que não a nobreza. A esta altura, os romans apresentam em suas linhas narrativas variadas formas de contar as aventuras dos casais enamorados, passando também a descrever aspectos mais profundos do cotidiano medieval, como o sistema político, jurídico e até mesmo o funcionamento das alianças estabelecidas nas cortes feudais por intermédio do matrimônio. Sendo assim, este terceiro e último capítulo NOS SALÕES DA CORTESIA: RECEPÇÃO E REPRODUÇÃO DO FINO AMOR NA SOCIEDADE FEUDAL, trata de tais temas e de sua relação com o meio social de reprodução destas obras, buscando sempre uma interpolação sobre os aspectos trabalhados nos capítulos anteriores de maneira a situar de modo coeso e seguro as temáticas envolvendo toda a pesquisa, expondo a problemática e posterior reflexão do trabalho. Compreender as alterações que modificam determinada realidade social é um dos pressupostos da ciência histórica. Jacques Le Goff (2012a, p. 49) afirmou acuradamente que “[...] não há história imóvel e que a história também não é a pura mudança, mas o estudo das mudanças significativas [...]”. Com isso, nosso objetivo essencial ao longo do trabalho foi deixar claro como as possibilidades de pesquisa no campo da história medieval são possíveis

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de modo a tornar o estudo das mudanças no comportamento entre os homens e mulheres nobres no medievo algo significativo, imbuídos de uma relevância acadêmica para poder desvendarmos aspectos sociais e culturais da vida cotidiana durante a Idade Média ocidental algo mais palpável e não tão distante de nossa própria realidade. 2 PARA UMA LITERATURA DO “DIVERTIMENTO” Ao nos debruçarmos sobre a chamada produção literária no medievo e suas subsequentes obras, primeiramente devemos voltar nossos olhares às raízes dessa “literatura” insurgente no período em questão. De fato, a própria noção de “literatura”, tal como a concebemos hoje, era desconhecida dos medievais pelo fato que para estes o termo em latim litteratura possuía “[...] o mesmo sentido que grammatica e designa, como esta palavra, ou a gramática propriamente dita ou a leitura comentada dos autores e o conhecimento que proporciona, mas não as obras em si [...]” (ZINK, 2006, p. 79). Paul Zumthor em seus estudos sobre a temática, aponta que mesmo os medievalistas de início do século XX tendiam a ignorar ou até mesmo desconsiderar de modo peremptório as contribuições das narrativas literárias para o estudo do mundo feudal dos séculos XII e XIII, principalmente porque: O termo literatura marcava como uma fronteira o limite do admissível. Uma terra de ninguém isolava aquilo que, sob o nome folclore, se deixava às outras disciplinas. No início de nosso século, a "literatura" adotava assim, em escala mundial, de maneira exclusiva, os fatos e os textos homólogos aos que produzia a prática dominante da Europa ocidental: estes os únicos concernentes à consciência crítica, tendo-se lhes creditado caracteres que, segundo a opinião unânime, provinham de sua competência. Em alguma medida, o conjunto de pressupostos que administravam essa atitude de espírito originava-se do centralismo político que, havia longo tempo, fora instaurado pela maioria dos Estados europeus. Estava de acordo com as tendências mistificadoras, até alegorizastes, que aí presidiam à elaboração das “histórias nacionais”: exaltação do herói que personificasse o superego coletivo; a confecção de um Livro de Imagens no qual fundar um sentido que justificasse o fato presente: as palavras de Joana d'Arc, a cruzada de Barba-roxa ou a fogueira de Jan Huss [...]. (ZUMTHOR, 1993, p. 8)

Ademais, a produção literária nas línguas vernáculas é característica de finais do século XI e quase que impreterivelmente, do século XII. A título de exemplificação temos a atual França e suas proximidades, que durante o medievo apresentou uma divisão quanto às variantes empregadas na escrita de suas obras: as langues d’oil e as langue d’oc - formas de se dizer o “sim” em francês, como visto no mapa a seguir:

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Figura 1 – Mapa linguístico francês referente às divisões entre as langue d’oil e langue d’oc

Fonte: Acesso em: 01 fev, 2017.

As langue d’oil, ou francês arcaico, tinham suas raízes na parte setentrional do território francês, sendo comuns nas cidades de Lille, Rouen e Caen, e eram utilizadas sobretudo em obras com um cunho religioso em suas narrativas, enquanto as langue d’oc - representantes da língua occitânica-provençal – possuíam suas bases no território sul da França e eram empregadas em obras de caráter lírico, poético e cortês, como será exposto posteriormente neste trabalho. Desse modo, uma incursão pela literatura do período necessita sobretudo do resgate das forças históricas que propiciaram o cenário fortuito para este desenvolvimento à época, pelo simples fato de que empreender o estudo das formas literárias no medievo é também enveredarse nos meandros da cultura literária medieval, pois esta transcendeu a ordem do período como sendo “[...] fruto de uma coletividade que ultrapassa as fronteiras nacionais [...]” (SPINA, 1997, p. 12), sendo, portanto, uma representação coletiva, parte de um imaginário filiado a construção de “artefatos culturais escritos” (CHARTIER, 1990, p. 32-33). Sobre os respectivos espaços de existência propagação dessa cultura literária, podemos destacar que o desenvolver de um “círculo” cultural envolvendo a escrita no medievo ocidental também foi possível, dentre os aspectos já mencionados, graças ao reflorescer do cenário urbano medieval.2

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A revitalização dos centros urbanos trouxe de volta a valorização da cultura local, assim como um maior destaque para a literatura, nas cortes citadinas que tinham além da nobreza que vinha do campo, a emergente burguesia

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2.1

CONSIDERAÇÕES SOBRE A “LITERATURA” E A CULTURA ESCRITA NO

MEDIEVO Ainda tratando do quadro francês, o panorama tornou-se fortuito devido a um conjunto de fatores internos e externos que impulsionaram as práticas culturais ligadas à sedimentação e posterior transmissão do saber literário: o arrefecimento das incursões “bárbaras”, a revitalização dos centros urbanos comerciais, o crescimento demográfico na virada do século XI para o XII, o fim das epidemias de peste e fome (BASCHET, 2010). Muito embora nosso foco seja a análise do escrito, em sua grande maioria o conjunto de obras literárias circulantes no medievo tinha como pedra angular uma cultura estritamente oral de transmissão. Entretanto, ao analisarmos o elemento da letra e consequentemente da escritura, levamos em consideração que tal tradição não impediu que a Idade Média ocidental “[...] fosse – também – uma idade da escritura [...]” (ZINK, 2006, p. 80-81), o que nos traz a uma problematização sobre as trocas do elemento oral com as práticas de tessitura documental empregadas no período. Delimitar um único sentido para o que seria a escritura no período medieval não atende às variantes empregadas no medievo, visto que esta: [...] poderia referir-se a técnicas, atitudes e condutas diversas, conforme os tempos, os tempos e os contextos eventuais. [...] Entre a mensagem a transmitir e seu receptor, a produção do manuscrito introduz (tanto na transcrição do texto como tal quanto na operação psicofisiológica do escriba) filtros que impressa em princípio eliminará, mas que, em contrapartida são estreitamente análogos aos ruídos que parasitam a comunicação oral. (ZUMTHOR, 1993, p. 99)

Tal premissa adentra ainda mais na discussão sobre o termo literatura e seus derivados, visto que grande parcela da população medieval não era alfabetizada. O medievo possuiu, dentre uma miríade de especificidades, a capacidade de aglutinar e sintetizar diferentes aspectos culturais e sociais. Se de um lado temos na literatura uma forma de expressão da realidade vivenciada por homens e mulheres no período, ou uma “arte”3, isso servia de mote

comercial abundante e de grande importância para a economia dessas localidades. A cidade medieval também tinha uma nobreza oriunda da urbe que estimula tal produção escrita, pelo menos nos séculos XII e XIII. C. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Trad.: Marcos de Castro, 5ª ed., Rio de janeiro: José Olympio, 2012b, p. 34-37 e DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Trad.: Jônatas Batista Neto, São Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p. 170-171. 3 Umberto Eco nos oferece uma perspectiva geral do que seria a noção de ars (“arte”) no medievo ocidental onde o cerne da questão está presente no que ele denomina de um “conhecimento de regras objetivas”, que por sua vez são ancoradas em dois pressupostos básicos para a produção e divulgação desse saber: o elemento cognoscitivo e o produtivo, ou dito de outra forma, um saber teórico e prático para se produzir determinadas coisas. Ademais, pontua que a “arte inscreve-se no domínio de fazer”, atuando de forma específica no seio da sociedade por suas formas expressivas de manifestação, sendo a arte literária uma delas. Eco ainda defende que a arte, em certa medida, imita a natureza, porém “[...] na imitação da arte existe invenção, reelaboração. A arte une as coisas desagregadas e separa as unidades, prolonga a obra da natureza, faz como a natureza produz e dá continuidade ao seu nisus [construção; geração] criativo. [...] ” C. ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval. Trad.; Mário Sabino. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 202-204.

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para diferenciar socialmente os estratos existentes na própria sociedade: os litterati (letrados) e os illiterati (não-letrados): Os primeiros [litterati] têm uma posição proeminente no plano cultural, mesmo quando, no fim da Idade Média, já não possuem o monopólio da cultura escrita, na medida em que se desenvolveu uma literatura em língua vernácula [...]. E numa sociedade em que a oralidade é a regra, estes letrados exercem igualmente o que Jacques Le Goff chama o “domínio da palavra”. O poder cultural dominante dos letrados exerce-se pois ao mesmo tempo, no decurso da Idade Média, no plano da oralidade e no da escrita. (SOT; GUERREAU; BOUDET, 1998, p. 263, grifo nosso)

Em uma perspectiva histórica, temos à vista uma dicotomia aparente: como uma literatura de cunho eminentemente oral em sua gênese tornou-se ao longo dos séculos instrumento de memória documental, compilada e escrita para servir de testemunho às futuras gerações? Tratando-se dos textos medievais cabe ressaltar que as trocas empreendidas entre os elementos escritos e orais denotavam uma determinada sincronia quando das suas narrativas, como Michel Zink (2006, p. 80-81) pontua ao dizer que “[...] A obra medieval, até o século XIV, só existe plenamente sustentada pela voz [...], pela recitação ou pela leitura em voz alta [...] ”, além de apontar que “[...] Em um certo sentido, o sinal escrito é pouco mais que auxílio para memória e apoio [...]”. Ora, a própria oralidade desses relatos históricos, das poesias, canções e epopeias cantadas no medievo possuíam aspectos tão significativos que este aos poucos foram incorporando-se na transmutação gradual que levou o uso da voz, ou vocalidade4 ao texto escrito. Sobre sua forma de propagação, faz-se necessário perceber que: [...] no interior de uma sociedade que conhece a escritura, todo texto poético, na medida em que visa a ser transmitido a um público, é forçosamente submetido à condição seguinte: cada uma das cinco operações que constituem sua história (a produção, a comunicação, a recepção, a conservação e a repetição) realiza-se seja por via sensorial, oral-auditiva, seja por uma inscrição oferecida à percepção visual, seja – mais raramente – por esses dois procedimentos conjuntamente. O número de combinações possíveis se eleva, e a problemática então se diversifica. Quando a comunicação e a recepção (assim como, de maneira excepcional, a produção) coincidem no tempo, temos uma situação de performance. (ZUMTHOR, 1993, p. 19, grifo nosso).

Outrossim, tais mecanismos de propagação dessa “literatura” aqui apresentada condensam-se cada vez mais com a já mencionada preocupação que os intelectuais5 medievais 4

Sobre o termo, Paul Zumthor (1993, p. 20-21) destaca que o diferencial do texto pronunciado ao escrito encontrase na sensibilidade e funcionalidade do primeiro frente ao segundo. O medievalista francês aponta que no texto vocalizado “[...] atuam pulsões das quais provém para ouvinte uma mensagem específica [...] no momento em que ela [a voz] o enuncia, transforma em ‘ícone’ o signo simbólico libertado pela linguagem. ”. Seguindo tal linha de pensamento, Zumthor finaliza sua acepção conceitual do termo vocalidade como este sendo intrinsicamente histórico, visto que “vocalidade é a historicidade de uma vez”, ou seja, sua utilização. Grifos do autor. 5 O termo “intelectual” aqui evocado surge como instrumento teórico de aproximação do conceito para intelectualidade na Idade Média. Jacques Le Goff esboça em um ensaio sobre o tema uma delimitação existente e proposital entre o indivíduo (intelectual) e a instituição onde o conhecimento “científico” era veiculado: as universidades. Para o autor, o “intelectual” do medievo era, em síntese, aquele “[...] cujo ofício era pensar e transmitir seu pensamento a partir do ensino [...]”. Ademais, um outro fator a ter destaque é o espaço de atuação

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possuíam de não deixar vestígios importantes cair num desvanecimento cultural daquilo retratado por essas histórias. Grande parcela dos textos circulados no período obviamente foram produzidos e sobreviveram à posteridade por motivos diversos, como o armazenamento em condições favoráveis nos grandes castelos e mosteiros, pelas cópias destinadas à divulgação deste ou daquele material no seio da sociedade feudal e também pelo esforço conjunto de preservar tais objetos culturais para que de certo modo sua história fosse perpetrada e contada em futuro próximo. Não por acaso, esse “contar” insere-se na lógica de que o historiador do medievo, ao abordar os aspectos envolvendo a literatura no período, deve sobretudo situar e reconstruir o texto medieval em um quadro onde este necessitava ser mais ouvido do que lido, já que por sua vez este mesmo documento poderia ser narrado ou recriado meio que por improviso e ao mesmo tempo, apreciado e registrado ou na memória ou no papel (MEDEIROS, 2008). Do outro lado do prisma de análise, a própria existência e domínio da escrita pelos litterati não prendeu os textos já compilados, sejam de caráter dito “científico” ou mesmo as canções e poesias anteriormente cantadas, em níveis determinados do mundo letrado. Vestígios históricos como o são, todos eles faziam parte de um contexto maior, ordenado pelo ensejo da escritura e da construção de uma memória social. Como visto, o elemento da escritura era tido como instrumento de suporte e vinculado sempre ao mecanismo de memorização em relação à tradição oral/vocal. Quando falamos em “construção de uma memória social”, objetivamos justamente tornar inteligíveis as experiências dos autores/intérpretes e de seus leitores/receptores inseridas neste ambiente oral/escrito, dado que as memórias pertencentes à cada grupo tornam-se parte desse processo de amálgama, conservando, porém, o componente essencial da individualidade que os faz distintos, mas complementares entre si. Seguindo o raciocínio de James Fentress e Chris Wickham (1992) sobre este aparato teórico, temos que o fenômeno da memória em si possui um nível de complexidade que abrange das dimensões privadas ao universo coletivo, reconhecendo a influência mais direta

desses indivíduos, tendo nos centros urbanos na virada do século XI para o XII o principal campo de debate e ação efetiva dos intelectuais. O historiador francês também delega que o século XIII teria sido o apogeu para esses “mestres do ofício” filosófico e pedagógico no que tange à uma maior massificação da produção intelectual teórico-filosófica acerca das estruturas da civilização ocidental no medievo, Cf. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Trad.: Marcos de Castro, 5ª ed., Rio de janeiro: José Olympio, 2012b, p. 36-45. Para uma outra análise e maior discussão acerca do uso da terminologia “intelectual” no período, ver: REVER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Trad. Carlota Boto. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

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dessa mesma memória no âmbito mais público e vinculado, novamente, ao social. Maurice Halbwachs (2006, p. 69) já teceu comentários acerca da importância e atuação da memória em tais escalas, postulando que a existência de uma “memória coletiva” se sobrepõe de certo modo ao prisma individual, pois “[...] a representação das coisas evocada pela memória individual não é mais que uma forma de tomarmos consciência da representação coletiva relacionada às mesmas coisas [...]”, denotando, segundo o mesmo, a existência de “quadros sociais de memória” que atuam em conjunto com elemento individual das sociedades, porém, subordinados ao coletivo: [...] diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupa e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. (HALBWACHS, 2006, p. 69, grifo nosso)

De fato, as recordações, as lembranças e os mencionados pontos de vista muito têm do elemento social, mas atuam em conjunto, e não seguindo determinada ordem préestabelecida onde um ponto está acima dos demais. Fentress e Wickham reconhecem que a memória em si mesma é pura e subjetiva, mas que é complementada com os instrumentos sociais da linguagem, do ensino, e da observação partilhada entre os atuantes. Por isso, utilizando-se do precedente aberto por Halbwachs, contribuem para o conceito de memória com a troca do termo “coletiva” pelo “social”, haja vista que dotada dos elementos opostos – mas aqui complementares – do individual/coletivo, a “memória social” pode, independentemente daquilo que tomamos por critérios do que seja real/fictício, compreender a identidade de um grupo ou de vários: [...] quando recordamos, elaboramos uma representação de nós próprios para nós próprios e para aqueles que nos rodeiam. Na medida em que a nossa ‘natureza’ - o que realmente somos – se pode revelar de um modo articulado, somos aquilo de que nos lembramos [...] (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p. 10).

Evocamos a subjetividade, a coletividade e o quadro sociocultural do universo literário da Idade Média ocidental, e assim sendo, o conceito de memória social se adequa melhor a nossa proposta de análise dos escritos medievais, pois leva em consideração seu contexto de produção, de circulação e recepção, além de estar em sintonia com a própria narrativa construída pelos agentes históricos que possibilitaram a existência das diversas formas de compreensão que este universo possuía em seu interior. Surge então, no limiar do mundo letrado do medievo, o “despertar” de uma cultura escrita específica, calcada na realidade indesejável que muitas das sociedades europeias detinham - e a medieval não foge à essa lógica - de uma história presente sem um vestígio

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escrito que a legitimasse. Desse modo, passou a fixar-se por meio da escrita traços essenciais do passado e presente, além, principalmente, de registrar todos os textos que não deveriam desaparecer (MEDEIROS, 2008). Assim, já naquela época o desenvolver maior dessa cultura escrita teve um papel crucial na atmosfera mental da sociedade feudal: ela era responsável por evitar a fatalidade da perda e do esquecimento. Inserida em tal dinâmica, temos que essa cultura escrita pode ser referida quando identificamos sua relação com o “[...] lugar - simbólico e material – que a escritura ocupa/em para determinado grupo social, comunidade ou sociedade [...]”, onde os objetos culturais produzidos por essa escrita, durante seu processo de publicação e circulação, retornam de maneira metafórica ou realista às próprias obras (CHARTIER, 2007, p. 19-20). Observamos que as imbricações da cultura escrita enquanto ferramenta teórica para o estudo das obras literárias pode ser complementada levando em consideração que por ligaremse ao aparato social de determinada temporalidade, onde acabamos por defini-la como ferramenta que produz um conjunto de relações múltiplas entre os autores e seus ouvintes/leitores, em que pese que os elementos culturais escritos acabem por representar dinâmicas e especificidades de uma sociedade cuja força do elemento escrito seja referência conjuntural a ser considerada como metodologia de análise dessas realidades sociais. Apesar desse desejo, nem toda sorte daquilo que era registrado de modo escrito foi eternizado: alguns textos foram traçados em suportes que permitiam “[...] escrever, apagar e depois escrever de novo [...]” (CHARTIER, 2007, p. 10)6. Diante dessa realidade como elencar aquilo que é essencial em termos do que a sociedade medieval ocidental construiu referente ao que chamamos de “cultura literária”? Já foi observado que mesmo a gênese dessa literatura medieval sendo ancorada fortemente nos elementos orais, isso não impede de considerarmos a Idade Média ocidental com uma “idade do escrito”, de todo modo. Em termos de eleger aquilo que fato seria realmente considerado como parte integrante de um sistema maior de manifestações culturais, alguns elementos não devem passar desapercebidos aos olhos dos medievalistas da atualidade, sobretudo no que tange à uma certa representatividade de alguns gêneros literários surgidos no medievo - como veremos no caso específico do roman medieval, mais adiante. Portanto, antes de se buscar uma certa hierarquia

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Artifício comum no mundo medieval, sobretudo quando da elaboração de hagiografias (obras sobre a vida dos santos), tratados oficiais sobre genealogias históricas de reis e grandes dinastias, além de documentos eclesiásticos à guisa de impor direcionamentos à cristandade medieval (bulas, cartas, epístolas).

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quantos aos diversos estilos literários, deve-se atentar antes para uma ideia de identidade vinculada à uma autoridade de buscar nos próprios autores dos textos sua expressão determinante: [...] a autoridade de uma “fonte” escrita conservada ou perdida, a autoridade moral de um grande personagem ou de um narrador, os desígnios de escrita de um clérigo lutando com sua folha branca, as intenções de duplo registro de um recitante às voltas com os ouvintes. [...] mas nunca sabemos quantos, nem quais, desses níveis afloram verdadeiramente no texto. (BATANY, 2006, p. 383)

Para além dessas considerações, ao falar-se de literatura e de cultura literária no medievo, torna-se quase que indispensável nos desprendermos de uma noção estrutural vinculada as representações descritas nos textos mencionados. Devido às variedades de produção, transmissão e recepção, os textos provenientes dessa cultura escrita ligam-se a elementos precisos dos mais variados estratos sociais que os consomem, pois: Conduzir a história da cultura escrita escolhendo como pedra angular a história das representações, é, logo, aliar a potência dos textos escritos através dos quais elas serão lidas ou ouvidas, com as categorias mentais, socialmente diferenciadas, impostas por elas e que são as matrizes de classificações e julgamentos. (CHARTIER, 2011, p. 281)

Sobre seus respectivos espaços de propagação, o desenvolver de um “círculo” cultural envolvendo a escrita no território francês foi possível, dentre os aspectos já mencionados, também, graças ao reflorescer do cenário urbano medieval. A revitalizações dos centros urbanos trouxe de volta a valorização da cultura local, assim como um maior destaque para a literatura, nas cortes citadinas que tinham além da nobreza que vinha do campo, a emergente burguesia comercial que era abundante e de grande importância para a economia dessas localidades. A cidade medieval também tinha uma nobreza oriunda da urbe, pelo menos nos séculos XII e XIII (LE GOFF, 2012b; DUBY, 2011). Como apontado anteriormente, a linguagem variante utilizada na confecção das obras desempenhou um papel de diferenciação quanto a temática destas, vide a figura 2. Ao Norte de domínio do francês arcaico (langues d’oil), o elemento épico literário foi mais presente, onde canções de gesta, epopeias e baladas de guerra foram compostas nas cortes senhoriais dessas localidades, atentando-se ao fato de que o elemento cristão presente nas obras atuava como fator de aproximação entre os autores/intérpretes e seus respectivos receptores, dotando as narrativas de elementos do imaginário cristão existentes na sociedade. No Sul (langues d’oc) provençal a lírica foi mais forte, mais livre e com maior independência da Igreja, possibilitando o surgimento de uma literatura até certo ponto “livre” dos grilhões da Igreja cristã, onde sua maior inspiração adivinha dos ideais de cortesia, e da temática sensual e aristocrática presentes nos ambientes palacianos daquela região.

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Figura 2 – Detalhamento das línguas e dialetos falados na França segundo suas localizações geográficas entre langues d’oc (Sul) – occitano, provençal, basco, catalão - e langues d’oil (Norte) – bretão, flamengo, alsácio, frâncio.

Fonte: Acesso em: 01 fev. 2017.

As langue d’oc foram línguas essencialmente poéticas, de caráter mais secular, e por sua vez utilizadas com maior frequência nos escritos corteses dos séculos XII e XIII. Interessante destacar que uma produção literária dedicada ao tema cortesão do amor tinha suas próprias especificidades de acordo com as variantes geográficas existentes no período, denotando que a produção de uma cultura escrita cortês era fruto de tais agentes históricos específicos (SPINA, 1997; SARAIVA, 2010). Analisando tais especificidades, sobretudo os caracteres referentes à espacialidade e disposição da linguagem utilizada nas obras, optamos por deter nossa atenção especificamente à literatura e à cultura literária propagada no sul da França. Fruto de um processo histórico de ocupação diferenciado, as regiões do sul francês tiveram uma maior autonomia e investimento no desabrochar das letras e das obras condizentes com temas mais sensíveis voltados para vida cotidiana nos ambientes palacianos. Dessa forma, para melhor representar tal ideário de sociabilidade, um novo modelo de texto escrito foi criado para expressar de melhor maneira os anseios da aristocracia feudal, seus valores, códigos e posturas: o roman medieval.

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2.2

A “LINGUAGEM DAS CORTES”: O CASO DO ROMAN MEDIEVAL Em um universo literário ainda com fortes resquícios oriundos de uma tradição oral,

o gênero literário do romance surge como um meio de ampliar ainda mais o alcance do mecanismo da escrita na vida cotidiana do medievo. Fato observado nos próprios questionamentos surgidos quando da menor menção do termo, tornou-se coerente ao menos designá-lo como sendo o modelo apontado para “[...] designar as formas poéticas narrativas mais novas que apareceram, no correr da segunda metade do século XII na França [...]” (ZUMTHOR, 1993, p. 266). Sobre sua terminologia e significado no contexto ao qual se encontra, tal gênero pertence e é escrito dentro do quadro linguístico vernacular do francês medieval, abrangendo seus variantes, dialetos e formas de expressão que se sairiam mais próximas de seus consumidores do que o tradicional latim, a língua do clero e dos principais escritos circulantes até o momento. Como fruto desse ambiente sociocultural de inúmeras formas de pensar e agir, o roman medieval de início do século XII obedece à conjuntura do período, marcada pelo gradual desenvolver das narrativas escritas nos centros urbanos e nas cortes nobiliárquicas, além de demarcar o maior destaque a partir de então de uma literatura do escrito e sua relação específica com seus autores, intérpretes e receptores: [...] o valor eminente que ele atribuía a escritura, de fato, modificava suas relações, não somente com seu texto, mas também com o ouvinte. [...] O “romance” procede a uma iniciação crítica de seu ouvinte, ele o envolve (de maneira menos ou mais hábil) numa busca de sentido, uma investigação, certamente limitada pelas injunções simbólicas que pesavam sobre a cultura de então, irrealizável, no entanto, sem a intervenção do escrito. [...] Uma reflexão sobre a escritura (independente da tradição retórica) esboça-se assim, em língua vulgar, a propósito de narrativas de ficção, excluindo todos os outros textos. (ZUMTHOR, 1993, p. 267-268)

Desse modo, acreditamos que o roman seria um tipo de narrativa literária que permitiu uma capacidade de abstração e reflexão de si mesmo sobre aquilo que se predispôs a contar em suas linhas estruturais, fato corroborado pela preferência estilística da utilização de uma narrativa em prosa, em detrimento do uso do verso. Ainda que tal substituição, como todas as outras até aqui já mencionadas, tenha se dado de maneira gradual, observamos que o texto em prosa atende ao recurso de narrar uma história de modo mais racional, possibilitando aos interlocutores uma, intencional ou não, análise crítica daquilo que estava sendo exposto. Paul Zumthor (1993, p. 270) comenta que o verso “[...] escapa ao controle racional; o que ele enuncia é recebido pelo ouvinte como verdadeiro, sem nenhum outro critério [...]”, o que por sua vez reverbera numa dualidade exposta por Zumthor quanto à sensibilidade emocional que os

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romances em prosa e as obras em verso transmitiam, e suas relações com a necessidade de uma delimitação daquilo que percebiam como “real”: Muitas vezes já foi comentado: o “romance” em verso é feliz, aberto, otimista; o “romance” em prosa tende a acabar em tragédia. O primeiro foi aproximado, por este traço, aos velhos contos folclóricos. Não é esse um dos efeitos da presença comum dos corpos na performance – efeitos muito atenuados, se não suspensos -, na leitura em voz alta, expressiva mesmo, de longos textos em prosa? Na época em que se constituem os primeiros [romances em verso], aparecem também as primeiras memórias ditadas e anotadas em prosa [...]; em breve o eu, quando surge no texto poético, perde sua universalidade, vai fissurar-se em contato com um sujeito individual, vai deixar filtrar alguma confissão. Como nós talvez, [...] nossos predecessores do século XII, atentos aos sinais de decrepitude que seu mundo mostrava, experimentaram a necessidade de um discurso “verdadeiro” (eles não podiam pensar, como nós, “científico”) sobre sua história, para assegurar-lhes, ao menos em esperança, os fundamentos. (ZUMTHOR, 1993, p. 270, grifo nosso)

Para tanto, tomemos o exemplo da narrativa romanesca em duas obras para melhor elucidar o que foi exposto acima. Elegemos aqui duas fontes: a primeira, um dos lais7 escritos por Maria de França8 no século XII e a segunda, o Roman de la Rose9 [Romance da Rosa], de autoria de Jean de Meun e Guillaume de Lorris, do século XIII. No primeiro caso, a da obra em verso, apresentamos o Lai du Chèvefreuille [Lai da Madressilva ou do Freixo], que trata além de outros assuntos, de uma passagem do conto de Tristão e Isolda, onde Maria de França nos transporta diretamente ao momento em que Tristão é expulso do reino onde vive devido a acusação de adultério e felonia contra o rei Marc, seu tio e suserano. Tal acusação é feita pelos 7

O lai é um gênero literário narrativo que designava pequenos contos e narrativas compostos com o objetivo de perpetuar a memória de uma aventura cavaleiresca, de um acontecimento importante e também de preservar a tradição oral na qual a literatura medieval tem sua gênese. O lai é caracterizado por seu formato em versos octossilábicos, e sua história a ser narrada em formato seminarrativo e semilírico, intercalando o canto dos acontecimentos com as passagens narrativas desacompanhadas de música. Em suas exposições, eram sempre acompanhados de jograis munidos de harpas, flautas e outros instrumentos de modo que a leitura dos versos obedecesse ao objetivo de performance que o gênero exigia. Ver: CARVALHO, Lígia Cristina. O Amor Cortês e os Lais de Maria de França: um olhar historiográfico. Lisboa: Novas Edições Acadêmicas, 2016. A versão do lai aqui utilizada trata-se da versão em francês arcaico a partir da obra MARIE DE FRANCE. The Lais of Marie de France. Translated with a introduction by Glyn S. Burgess and Keith Busby. 2nd ed. London: Penguin Books, 2003. 8 Pouco se conhece acerca da biografia de Maria de França, além do fato desta ser uma autora francesa que viveu boa parte de sua vida (segundo as notas e os anos de publicação que a mesma escrevia em suas obras) na Inglaterra em finais do século XII. Seu nome verdadeiro nos é desconhecido, visto que o epíteto “Maria de França” foi dado somente devido ao fato de que a poetisa assinou o final de um de seus escritos (a fábula de “Ysopet”) da seguinte maneira: “Al finement de cest escrit, qu’en romanz ai traitié e dit, me numerai pur remembrance: Marie ai nun, si sui de France.” [Ao final deste escrito, que em romance foi tratado e dito, me apresento como lembrança: Maria é meu nome, eu sou de França. Tradução nossa]. Dentre suas obras mais conhecidas e que sobreviveram até os dias atuais estão os 12 lais bretões, as Fables (conjunto de fábulas esópicas traduzidas e adaptadas para o francês arcaico), além de um escrito sobre a vida de São Patrício [Tractatus de Purgatorio sancti Patricii, cujo tema em francês é L'Espurgatoire saint Patrice]. C. BURGESS, G.S.; BUSBY, Keith. Introduction. In: MARIE DE FRANCE. The Lais of Marie de France. Translated with an introduction by Glyn S. Burgess and Keith Busby. 2nd ed. London: Penguin Books, 2003, p. 7-38. 9 O Roman de la Rose [Romance da Rosa] é um poema em verso originário do século XIII e que está dividido em duas partes de diferente autoria, escritas entre 1230 e 1285, com posterior prosificação em finais do século XIII com datas aproximadas entre 1295-1297. Ver: LORRIS, Guillaume; MEUN, Jean. O Romance da Rosa. Trad.: Lucília Maria de Deus Mateus Rodrigues. Lisboa: Publicações Europa-América, 2001.

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barões da corte de Marc, que devido à grande proteção e fama de Tristão gozava, incitam os rumores de uma relação proibida entre Tristão e a esposa do rei, Isolda. Como trata-se de um gênero precisamente conciso, o lai nos leva a um lugar dentro da narrativa que rapidamente constrói sua pretensão e alcança o objetivo de tomar a atenção de quem testemunha sua performance: [...] Muitos me contaram E eu mesma encontrei-a escrita já escrita A história de Tristão e da rainha, Do seu amor foi tão fino Que para eles foi a causa de tanto sofrimento, E do qual morreram no mesmo dia. O rei Marc estava cheio de raiva, E de indignação contra Tristão, seu sobrinho. De sua terra ele o baniu, Por causa de seu amor pela rainha Tristão foi para a sua terra, Ao sul de Gales, onde havia nascido. Lá permaneceu por todo um ano, E não podia regressar; Logo abandonou-se à morte e à destruição. Não vos espanteis, Pois quem ama lealmente Entrega-se à dor e à ansiedade quando não satisfaz seus desejos [...] (MARIE DE FRANCE, 2003, p. 161, tradução nossa).10

Visualizamos no trecho acima a maneira como a sucessão rápida dos fatos ocorre de modo que as informações fornecidas aos ouvintes e leitores do lai facilitam a imersão destes ao imaginário construído pela narrativa, onde a escrita em verso favorece uma maior aceitação e compreensão imediata do que está sendo exposto – tanto de maneira escrita, quanto auditiva – pelas palavras em questão. A noção daquilo que Paul Zumthor denominara de um enunciado

“[...] Plusurs le m’unt cunté e dit, E jeo l’ai trové en escrit De Tristram e de la reine, De lur amur que tant fu fine Dunt il eurent meint dolur, Puis mururent en un jur. Li reis Mark esteit curucié, Vers Tristram sun nevuz irié. De sa tere le cungea Pur la reine qu’il ama. En sa cuntree en est alez, En Suthwales u il fu nez. Un an demurat tut entier, Ne pot ariere repeirier. Mes puis se mist en abandon De mort e destructiun. Ne vus esmerveilliez neent, Kar cil ki eime lealment Mut est dolenz e trespensez Quant il nen ad ses volentez […].” 10

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desprovido de racionalidade como supracitado e tomado como “verdade” narrativa, fica mais compreensível à medida que os versos se sucedem, dotando o acontecimento narrado de uma dinamicidade perceptível. Figura 3 – Detalhe do início do Lai du Chèvefreuille (c. 1170), em um manuscrito iluminado parisiense anônimo do final do século XIII (MS BnF, 1104 f. 32)

Fonte: http://expositions.bnf.fr/arthur/it/42/07.htm. Acesso em: 01 fev, 2017.

Por sua vez, a fonte literária em forma de prosa oferece um tipo de dinamicidade diferente. Ainda que antípoda à forma em verso, o romance em prosa destina-se mais cuidadosamente aquele que possui o domínio das letras – ainda que não desconsidere por completo o elemento oral -, que analise em suas linhas e no seu modelo de escrita, os fundamentos históricos, estilísticos e racionais que Zumthor mencionou anteriormente. A passagem que destacamos do Roman de la Rose fornece a estes indivíduos uma visão mais ampliada do momento narrativo em destaque, onde o deus Amor ensina ao seu recém-admitido vassalo as condições, provações e consequências que estar a seu serviço acarretam aqueles escolhidos: [...] Aquele que desejar fazer do Amor o seu amo deverá mostrar-se cortês e desprovido de orgulho, elegante e de coração alegre, bem assim como estimado pela sua generosidade. E agora vou indicar a penitência que deverás cumprir: de noite e dia, sem desfalecimentos, deverás manter os teus pensamentos fixos no amor. Pensa sempre nele, não cesses de o fazer e recorda aquela hora doce cuja felicidade permanece contigo. Para que possas ser um amante de verdade, é o meu desejo e a minha ordem que todo o teu coração se fixe num ponto e que não se deixe dividir,

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antes permanecendo uno e indivisível, sem enganos, uma vez que não gosto de partilhas. [...] Depois de, tal como te recomendei, teres dado o teu coração, acontecerte-ão coisas que costumam ser duras e dolorosas aos olhos dos amantes. Muitas vezes, quando te lembrares do teu amor, serás obrigado a abandonar a companhia de outros, não vão eles reparar na dor que te atormenta. Acabarás por te recolher em ti mesmo longe dos demais, e depois irás suspirar, lamentar, tremer e sofrer muitas outras dores. (LORRIS; MEUNG, 2001, p. 40-41)

Comparando o trecho em prosa do roman acima com os versos do lai anterior, observamos uma descrição mais latente da ação dos personagens, dos objetos e de suas casualidades no decorrer da narrativa. A dinâmica da prosificação do roman está justamente na capacidade de trazer para sua conjuntura possibilidades de interpretação mais crítica e racional, mediante a exposição de uma série de eventos que são interligados pelo modo como a história é transmitida. Portanto, a capacidade reflexiva que o roman em prosa possui em suas linhas fornece um campo de análise ao historiador sobre as ferramentas textuais, históricas e mentais que deram vazão ao universo compartilhado de experiências individuais e coletivas daqueles em contato com tal tipo de gênero literário. Para além dos aspectos textuais e estilísticos em sua composição, o roman jogava com a representação do real e com elementos da ficção, contando com a presença de componentes do chamado “maravilhoso medieval” (dragões, feiticeiras, encantamentos, etc.) que davam vida às grandes façanhas, às aventuras dos cavaleiros, e os contos de amor permeados de angústia, ódio incontrolável, dor e paixões desenfreadas. Tal “maravilhoso medieval” é senão definindo por sua “[...] raridade e pelo espanto que suscita [...]” (LE GOFF, 1994, p. 106), visto que a presença do sobrenatural e do extraordinário sempre fascinou o homem medieval de tal modo que quando irrompe nos séculos XII e XIII, pode ser vista como sendo oriunda de diversas culturas antigas: O sobrenatural, o miraculoso, que constituem o que é o princípio do cristianismo, parecem-me diferentes, por natureza e função, embora tenham marcado com seu selo do “maravilhoso cristão”. O maravilhoso da época cristã parece-me, pois, substancialmente encerrado dentro destas heranças anteriores, de que encontramos alguns elementos “maravilhosos” nas crenças, nos textos, na hagiografia. Na literatura encontra-se quase sempre um maravilhoso cuja raízes são pré-cristãs. (LE GOFF, 1994, p. 225)

No conto de Tristão e Isolda, ou Roman de Tristan et Iseult,11 os elementos celtas se fundem ao imaginário cristão condensando nas formas de contar o processo de encantamento

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O conto de Tristão e Isolda deve suas origens às lendas celtas transmitidas por meio da tradição oral do noroeste da Europa. Diferentes versões narram a história dos dois amantes, e a partir do século XI temos as primeiras versões literárias do conto escritas por poetas normandos. No século XII temos a prosificação do poema de Tristão e Isolda. Diversos autores criaram suas próprias variantes para o conto dos dois amantes, tendo as versões de Béroul (escrita entre 1160-1190) e de Thomas um maior destaque por suas respectivas manutenções dos elementos celtas originais da narrativa. Segundo Wisnik (2009, p. 257), cinco são as versões escritas do século XII: Béroul,

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passional entre os dois amantes. O “filtro” elaborado pela mãe de Isolda e que faz o jovem casal enamorar-se tem suas raízes na relação restrita que os celtas possuíam com a terra e seu conhecimento dos elementos mágicos utilizados para resolverem os mais diversos dilemas em seu cotidiano: Quando estava próximo o tempo de entregar Isolda ao cavaleiro das Cornualhas [Tristão], sua mãe colheu ervas, flores e raízes, misturou-as com vinho e fez uma beragem poderosa. Tendo-a preparado por ciência e magia, verteu em uma jarra e disse secretamente a Brangien [...]: “Pega então esta jarra de vinho e não esqueças as minhas palavras. Esconde-a de tal maneira que nenhum olho a veja e nenhum lábio dela se aproxime. Mas, quando chegarem a noite de núpcias e o instante em que se deixam os esposos, verterás este vinho com ervas em uma taça e dá-la-ás para que esvaziem juntos, o rei Mark e a rainha Isolda. Toma todo o cuidado, minha filha, para que somente eles possam provar desta bebida. Pois a virtude dela é a seguinte: os que beberem juntos amar-se-ão com todos os seus sentidos e com todo o seu pensamento, para sempre, na vida e na morte. (BÉDIER, 2012, p. 29, grifo nosso)

Dotado de características estruturais especificas, o roman traz consigo toda uma carga dos elementos constituintes da vida cotidiana naquele período. Geralmente dotados de uma narrativa permeada de constantes digressões, as instituições, a ordem, os sistemas sociais dentre outros são descritos nas páginas que contam uma narrativa determinada. Traz também os elementos conjugados que sobreviveram ao amálgama dos componentes escritos e orais mencionados no tópico anterior, dotando-o de valores e acepções mais completas no que se refere ao maior desenvolvimento da cultura literária medieval. Seu próprio processo de formação pode ser descrito por medievalistas e linguistas como sendo o ápice final do conjunto das tradições vocais e escritas do ocidente medieval: O “romance” surgiu, com efeito, por volta de 1160-70, na junção da oralidade e da escritura. Logo de saída colocado por escrito, transmissível apenas pela leitura (com a intenção, é verdade, de atingir ouvintes), o “romance” recusa a oralidade das tradições antigas, que terminarão, a partir do século XV, marginalizando-se em "cultura popular". Formalizado em língua vulgar, mas por causa de altas exigências narrativas ou retóricas, o romance não recusa menos, de fato, a supremacia do latim, suporte e instrumento do poder do clero. Contrariamente aos contos de que se nutre o povo em geral, ele requer vastas dimensões: longas durações de leitura e de audição, em que os encadeamentos da narrativa, por mais embrulhados que por vezes pareçam, são projetados para um adiante nunca fechado, exclusivo de toda circularidade. O discurso acha assim, em seu nível próprio, garantindo conotações mais ricas, o traço de incompletude e de indefinição das palavras comuns, as que no fio dos dias dizem a vida. (ZUMTHOR, 1993, p. 266)

Thomas, Eilhart, La Folie Tristan e roman escrito em prosa. A versão em prosa do poema L’ histoire de Tristan et Iseult [A história de Tristão & Isolda] aqui utilizado é aquele cuja forma mais definitiva se deu pelas mãos do poeta normando Béroul, escrito entre 1160 e 1190 em francês antigo cuja adaptação ao francês moderno foi empreendida por Joseph Bédier, historiador literário e erudito da literatura medieval no século XIX. C. BÉDIER, Joseph. O Romance de Tristão e Isolda. 5ª ed. Trad.: Luis Claudio de Castro. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 52.

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Tendo isso em vista, não demorou para que a crescente influência dos romans crescesse dentro da sociedade feudal, mais determinadamente nos ambientes nobres. As cortes medievais guardavam em seus muros verdadeiras oficinas literárias que punham à prova muito da capacidade criativa existente dentro do universo artístico feudal. E é nesse cenário profícuo de produção que os escritos destinados ao público nobre, aqueles dotados de uma carga maior de sensibilidade narrativa, surgiram e tiveram seu apogeu nos limiares do século XII e XIII. O romance cortês apresentava-se aos homens e mulheres nobres do período como sendo o baluarte que levava em sua estrutura o ethos aristocrático da nobreza feudal, o que nos leva a observar que como fonte escrita o roman insere na concepção teórica de que tratando-se de objeto da História, como documento escrito, este possui como premissa objetiva uma “[...] compreensão da História como uma narrativa que constrói uma representação sobre o passado, e que se desdobra nos estudos da produção e da recepção de textos [...]” (PESAVENTO, 2005, p. 69), que como exposto, apresenta uma representação da realidade específica dos elementos sociais do mundo feudal, tendo como base de produção seu ambiente de circulação, consumo e recepção. Devido à pluralidade dos autores que os produziam, existiam determinadas características que aos poucos foram tornando-se padrão de modo a facilitar o entendimento e a própria organização produtiva dos romans medievais. Os modos de divulgação deveriam seguir regras condizentes ao público-alvo específico, visto que mesmo nos ambientes nobres, alguns membros da realeza ainda insistiam na transmissão das narrativas de forma oral, implicando toda uma carga de performance e teatralidade nos contos descritos. O elemento escrito ali estava presente, mas somente a leitura em voz alta daria ao público consumidor uma compreensão mais inteligível daquilo existente dentro dos longos pergaminhos e códices compilados: O “romance” desmarca tudo o que, por notoriedade pública, funda-se somente na tradição oral. De fato, ele se liga estreitamente a esta, que permanece uma de suas fontes de inspiração. [...] Qualquer que tenha sido a tomada de posição pessoal de cada autor, o valor eminente que ele atribuía à escritura de fato modificava suas relações, não somente com seu texto mas também com o ouvinte. [...] O ‘romance’ procede a uma iniciação crítica de seu ouvinte, ele o envolve (de maneira menos ou mais hábil) numa busca de sentido, uma investigação, certamente limitada pelas injunções simbólicas que pesavam sobre a cultura de então, irrealizável, no entanto, sem a intervenção do escrito. (ZUMTHOR, 1993, p. 267)

Toda uma preocupação em torno dos modos de se transmitir as narrativas romanescas girava em torno da noção que os autores deveriam ter em dotarem suas histórias de casos entediantes, ou demasiados longos. O cerne estava na constante evolução da trama, sem

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espaço para pausas narrativas ou sequências sem “ação”. A leitura do texto escrito dependia da sua forma de produção e desenvolvimento, mas também a reprodução desses escritos dependia de uma concentração, como pontua Paul Zumthor (2007, p. 12): [...] na natureza, no sentido próprio e nos efeitos da voz humana, independentemente dos condicionamentos culturais particulares... para voltar em seguida a eles e rehistoricizar, reespacializar, se assim posso dizer, as modalidades diversas de sua manifestação [...].

O que de acordo com premissa estabelecida na tessitura do documento acabaria dotando as histórias narradas de uma dinamicidade essencial. As formas de composição da estrutura narrativa literária de um romance cortês seguem suas próprias direções. Cabe ao nosso interesse aqui neste trabalho somente o ciclo referente às novelas de cavalaria inspiradas nas narrativas orais celtas advindas da Bretanha, ou o chamado ciclo bretão-arturiano. Tais contos inicialmente elaborados em forma de poesia começam um processo gradual de prosificação já em finais do século XI, de modo a conferir aos relatos orais um trato mais adequado quando estes forem escritos. Ademais, os temais iniciais dessas narrativas consistiam basicamente na descrição das aventuras do Rei Artur e de seus cavaleiros em busca de objetos místicos e também por retratar o cotidiano e vicissitudes da cavalaria medieval incipiente. Em um modo de tentar expor as condicionantes da vida aristocrática em suas narrativas, os romans concentraram atenção e esforço numa linha estrutural predominantemente calcada nas relações entre as damas e cavaleiros nobres do período. Desta forma, o romance cortês propriamente dito possuía quase que invariavelmente um quadro histórico que permitiu aos seus autores e receptores de moldarem experiências mentais coletivas numa forma de representar as ideias do Amor Cortês em voga nos ambientes palacianos do medievo. Tratandose sobretudo de um objeto literário, e consequentemente histórico, observa-se que “[...] esta literatura foi aceita, [...] mas houve aceitação e, consequentemente, jogo de reflexos, dupla refração [...]” (DUBY, 2011, p. 68), que constava na relação direta já mencionada que as obras envoltas sob esta carga cortês deveriam ter com a situação real que preocupava as pessoas para as quais elas eram produzidas. Visto como vestígios e testemunhos históricos fundamentais de seu tempo, cabe ao historiador traçar um cenário investigativo que propicie a reflexão conjunta entre as formas de conduta que foram afetadas pela circulação de tais obras nas cortes aristocráticas feudais. O “quadro” modelo dos romances corteses poderia ser descrito como sendo centrado na figura de um jovem amante em uma busca quase que impossível pelo amor de sua dama. Ao jovem cavaleiro, inúmeros obstáculos sãos postos em sua jornada pela predileção

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amorosa, e não faltam exemplos de coragem, destreza e bravura que permitam que este alcance o objetivo final que é estar ao lado de sua amada. Embora sigam traços estritamente masculinos em suas linhas, os romances também atuavam como uma forma de literatura “pedagógica”, onde o desenvolvimento dos personagens servia como molde e incentivo para a nobreza copiar e reproduzir os comportamentos descritos como um meio de civilizar-se ainda mais. Tratavase, nas palavras de Georges Duby (2011, p. 70-71) de um “jogo de homens”, porém voltado às mais diversas expressões do que seria o ethos aristocrático daquele período: Prova, pedagogia, e todas as expressões literárias do amor cortês devem ser colocadas na corrente do vigorosíssimo impulso de progresso cuja intensidade culminou durante a segunda metade do século XII. Elas são ao mesmo tempo o instrumento e o produto desse crescimento que liberava rapidamente a sociedade feudal da selvageria, que a civilizava. A proposta [dos romans], a aceitação de uma nova forma de relações entre os dois sexos só se compreende tomando por referência outras manifestações desse fluxo. [...] Houve, de fato, promoção da condição feminina mas, ao mesmo tempo, igualmente viva, uma promoção da condição masculina, de maneira que a distância permaneceu a mesma [...].

A observação de tais fenômenos torna-se bastante clara quando mergulhamos no universo dos romans da época. Sobre a delicadeza e apreço pela beleza e sensibilidade nas relações entre damas e cavaleiros, o Roman de la Rose, produzido no século XIII nos traz um retrato desta possibilidade quando narra o encontro do protagonista com a alegoria feminina da Beleza: Possuía todas as boas qualidades pois não era nem escura nem morena, antes tão resplandecente quanto a lua, que faz com que todas as estrelas se assemelhem a pequenas velas. A pele tinha a frescura do orvalho, e ela era tão modesta quanto uma noiva, tão branca quanto um lírio, com um rosto macio e delicado. [...] Juro por Deus que meu coração se enche de grande doçura sempre que recordo as formas perfeitas de cada um dos seus membros, tudo porque não havia no mundo mulher mais bela. Resumindo, era jovem e loura, simpática e agradável, delicada e elegante, de formas esguias e modos animados e atraentes. (LORRIS; MEUN, 2001, p. 22)

Tais atributos eram encarados como representação de elegância e boa aparência. Se as damas medievais tomassem como molde os modelos apresentados nos romans, isto traria sentido à tentativa de seus autores em transformar objetos de atenção literária em formas concretas de atitude e comportamento. Havia também, no centro destas narrativas, um esforço por analisar os sentimentos individuais, convidando os leitores a meditarem sobre o eu, isto porque, na Idade Média Central, o homem tornou-se mais livre, houve um movimento cada vez maior de emancipação do indivíduo, uma maior preocupação com suas emoções humanas (CARVALHO, 2009). Nesse contexto histórico característico do século XII, os romans também trouxeram às suas páginas elementos representativos da cavalaria feudal, que mais adiante, veremos como

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e porque seus esforços por transmitir um novo código de conduta foram essenciais para a ascensão e manutenção definitiva desse estrato social na ordem feudal do período. Ainda sobre as obras cortesãs, alguns autores destacam-se no período, tendo algumas de suas criações sobrevivido e chegado até os dias atuais por meio de compilações e manuscritos copiados dos originais. Dentre muitos, destacam-se as obras do poeta francês Chrétien de Troyes (1135?-1183)12, que tendo como patrono literário Maria de Champagne, filha de Eleonora, e também sendo protegido por vários senhores da corte de Henrique Plantageneta e pelos condes de Flandres, transformou toda a lenda arturiana e a chamada “Matéria da Bretanha” em série de romans corteses, ocupando-se dos personagens mais romanescos da Távola Redonda, como o próprio rei Artur, Lancelot, Guinevere, criando também a principal versão da história de Perceval e da demanda do Santo Graal. Figura 4 – Detalhe de um manuscrito iluminado do século XIII mostrando o início do roman Cligès em verso. O Manuscrito Guiot (c.1201-1300), encontra-se digitalizado e em domínio público no site da Bibliothèque Nationale de France (MS Bibl. Nat. F. fr. 794, 54r)

Fonte: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b84272526/f121.item.r=clig%C3%A8s . Acesso em: 01 de fev, 2017

Chrétien inclusive, descreve em de seus romans a figura ideal do jovem cavaleiro, elaborando mais ainda os modelos de valor, ética e comportamento distintos da nobreza. Este 12

Para uma coletânea em português de suas obras ver TROYES, Chrétien. Romances da távola redonda. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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descreve um dos cavaleiros de Artur, Cligès, como sendo representante dos atributos e qualidades que a nova moral comportamental dos romans tendiam a propagar: Para descrever a beleza de Cligès eu gostaria de pintar um retrato verbal, que não será muito longo. Ele estava na flor de sua juventude, já que estava próximo dos quinze anos de idade [...]. Seu cabelo se assemelhava ao ouro puro e seu rosto à rosa matinal. Seu nariz era bem feito e sua boca bela, e ele fora constituído de acordo com o melhor padrão da Natureza, que nele reuniu tudo o que parcelara em outros. Esta foi tão generosa com ele que dotou-o de todos os dons e deu-lhe de tudo o que podia. Assim era Cligès, que combinava bom senso e beleza, generosidade e força. [...] ele sabia mais sobre esgrima e arquearia do que o sobrinho do rei Mark, Tristão, e muito mais sobre aves e mais sobre cães de caça. Em Cligès não havia nada que faltasse. (TROYES, 2004, p. 156, tradução nossa)13

As características dessa dita “estilização” do roman, tornaram-se recorrentes pelo fato de que a literatura era o principal veículo de propagação do ethos aristocrático descrito nas páginas dos romances. Sob uma ótica de sensibilidade, e até mesmo valorização da vida palaciana, a arte literária buscou empreender nas obras de cunho cortês elementos que de certa maneira “embelezavam a vida” e que “[...] se concentravam na apresentação colorida das formas do amor [...]” (HUIZINGA, 2011, p. 179). Buscar na literatura cortês do período, sobretudo nos romans, um novo conjunto de práticas e valores nobres, ligados à beleza, docilidade, elegância e cortesia, levou as damas e os cavaleiros medievais a desligarem-se um pouco da influência da Igreja buscando uma maior autonomia dentro de suas propriedades, evitando por muitas vezes o rigoroso crivo eclesiástico que via nas obras sobre o Amor Cortês verdadeiras odes ao mundanismo, concupiscência e até mesmo heresia. Muito já foi discutido acerca dos valores representados nas obras romanescas. Atendendo às demandas de seus mecenas, os autores dotaram suas narrativas de uma carga dramática mais intensa, sempre alinhado o pensamento sobre a realidade da representação vivenciada, mas também do “maravilhoso” medieval contido no imaginário coletivo. Não poderia ser de outra forma, visto que tendo sido escrita e direcionada para um público específico, toda essa literatura deveria condizer com os aspectos que mais chamassem a atenção advindos das práticas e pressupostos da insurgente cultura cortês. Realidades e objetos históricos frutos de seu contexto natural, tudo foi colocado à prova nas mais diversas estilizações e representações sobre os sexos nas obras romanescas em finais do século XII.

“In order to describe Cligés’s beauty I would like to paint a verbal portrait, which will be not long. He was in his flower, for he was nearly fifteen years of age; […]. His hair resembled pure gold and his face the morning rose. His nose was well-made and his mouth fair, and he was built according to Nature’s finest pattern, for in him she brought together what she only parceled out piecemeal to others. Nature was so generous with him that she gathered all her gifts in him and gave him all she could. This was Cligés, who combined good sense and beauty, generosity and strength. […] he knew more about fencing and archery than did King Mark’s nephew Tristan, and more about birds and more about hounds. In Cligés was not lacking.” 13

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Modelos femininos e masculinos saltavam aos olhos dos leitores e ouvintes como sendo figuras fictícias, porém ancoradas em um retrato social daquilo que eles queriam ver, sentir e fazer. É chegado o momento capital dos amantes nessa literatura cortesã, onde as mais variadas formas de se amar, pensar e sobretudo, reproduzir invadem de vez as cortes feudais. Como forma de melhor analisar tal fenômeno, o capítulo a seguir envereda pela discussão específica destes modelos comportamentais, examinando o impacto social dentro da cultura literária da sociedade feudal até então. Destaque para que a virada do século XII para o XIII nos traz, que é quando os romans enfim adquirem uma maior elaboração criativa e sua circulação excede os muros dos castelos senhoriais chegando, enfim, à uma parcela maior da sociedade feudal.

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NASCIDOS SOB O SIGNO DA PAIXÃO: OS AMANTES NA LITERATURA CORTÊS Em meados do século XII (1135-1160), o cenário ideal para a divulgação dos

pressupostos da cultura cortês teve na França seu principal foco de desenvolvimento. O “amor” na literatura cortesã francesa surge como fruto das experiências sociais e políticas derivadas diretamente das práticas exercidas por seus idealizadores: os príncipes e senhores feudais. A construção do “fino amor”, do trato cortês e suas mais variadas manifestações literárias fizeramse presentes no contexto de autoafirmação de uma nobreza ascendente e também de uma preocupação com a divulgação dos ideais de conduta desse grupo: A mais influente das sociedades de corte desenvolveu-se, como sabemos, na França. A partir de Paris, os mesmos códigos de conduta, maneiras, gosto e linguagem difundiram-se, em variados períodos, por todas as cortes europeias. Mas isso não aconteceu apenas porque a França fosse o país mais poderoso da época. [...] A aristocracia absolutista de corte dos demais países inspirou-se na nação mais rica, mais poderosa e mais centralizada da época [séculos XII-XIII], e adotou aquilo que se adequava às suas próprias necessidades sociais: maneiras e linguagem refinadas que a distinguiam das camadas inferiores da sociedade. [...] O que começa a distinguir-se aos poucos, nos fins da Idade Média, não é apenas uma sociedade de corte aqui e outra ali. É uma aristocracia de corte que abraça toda a Europa ocidental, com seu centro em Paris, dependências em todas as demais cortes e afloramentos em todos os outros círculos que alegavam pertencer à “Sociedade”, notadamente o estrato superior da burguesia e até, em certa medida, em camadas da classe média. (ELIAS, 1993, p. 1718, grifo nosso)

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Pesava-se o fato da nobreza buscar uma maior afirmação como grupo social privilegiado existente no sistema feudal, haja vista que o estatuto jurídico da nobilis14, após séculos de jugo régio por parte dos carolíngios (séculos VIII-X), tendeu a fechar-se sobre si mesmo como estatuto definido. Tal fato não seria suficiente para confirmar sua superioridade social. Era preciso se impor também por meio da criação de um estilo de vida, de um código de conduta e de práticas que retratassem as qualidades inerentes a esse grupo (BLOCH, 2010, p. 336-345). Dessa forma, os escritos corteses, as canções, os romances e os poemas épicos imbuíram-se de uma carga mais fina e polida no que tange à vida cotidiana das cortes medievais. As cortes feudais nas regiões sudoeste, noroeste e sul do atual território francês, respectivamente o ducado da Aquitânia, a Normandia e a região conhecida como Occitânia, concentraram em seus muros todo um aparato estrutural propício à criação de uma literatura mais sensível e cortesã destinada ao apaziguamento das tensões envolvendo a cavalaria incipiente e seu trato às damas medievais, por serem historicamente localidades onde a poesia provençal (Aquitânia e Occitânia) teve seu alvorecer com Guilherme IX, na virada do século XI para o XII (DUBY, 2013, SARAIVA, 2010). Ademais, tal quadro justificava-se ainda devido à política sobre os casamentos e na manutenção da linhagem das casas nobres nas províncias francesas de maior prestígio. Usualmente costumava-se casar apenas um dos filhos – geralmente o primogênito – por ocasião de prevenir a dissociação e o fracionamento dos patrimônios familiares. Desta forma, somente o filho mais velho tinha direito à uma esposa legítima, deixando grande parte do corpus masculino sem condição semelhante: [...] Eis o quadro: um homem, um “jovem”, no duplo sentido dessa palavra, no sentido técnico que tinha na época – isto é, um homem sem esposa legítima -, e, depois, no sentido concreto, um homem efetivamente jovem, cuja educação não havia sido concluída. Esse homem assedia, com intenção de tomá-la, uma dama [...] O amor delicado é um jogo. Educativo. É o correspondente exato do torneio [...] o homem bem-nascido arrisca sua vida nesse jogo, põe em aventura seu corpo [...] o jovem arrisca a vida na intenção de completar-se, de aumentar seu valor, mas também de tomar, de conquistar seu prazer, capturar o adversário após lhe ter rompido as defesas, após o ter desmontado, derrubado, revirado (DUBY, 2011, p. 69-70).

De modo a controlar o ímpeto viril masculino, os nobres franceses optaram por reunir em suas cortes boa parte da cavalaria feudal ascendente com o objetivo de domesticá-la por intermédio de uma literatura produzida por poetas e intérpretes profissionais que visasse Latim para “nobre”, mas que a partir do século IX adquiriu um caráter de distinção política e social que serviu para destacar, sobretudo, “[...] o número de homens que não eram servis pelo nascimento, nem atingidos pelos laços da humilde dependência, as famílias mais poderosas, as mais antigas e as que gozavam de maior prestígio. [...]” (BLOCH, 2010, p. 340). 14

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um trato mais adequado e cortês em relação ao sexo feminino, formando, enfim, um ambiente, uma “sociedade de corte” que concentrara em seu interior uma roupagem e uma linguagem específica em se tratando das formas de agir, que Norbert Elias (1993, p. 17, grifo nosso) define como sendo o lugar social que assumiu: [...] um novo aspecto e uma importância na sociedade ocidental, em um movimento que se espalhou lentamente pela Europa, para refluir novamente, mais cedo aqui, mais tarde ali, durante a época que denominamos “Renascença”. Nos movimentos desse período, as cortes foram se tornando o modelo concreto e os centros formadores do estilo [civilizado, cortês]. [...] Somente se tornou possível porque, em uma transformação geral da sociedade europeia, formações sociais semelhantes, caracterizadas por formas análogas de relações humanas, surgiram por toda parte. Na França ela via, plenamente desenvolvido, algo que nascera de uma situação social semelhante e que se ajustava a seus próprios ideais: pessoas que podiam exibir seu status, enquanto observavam também as sutilezas do intercâmbio social, definindo sua relação exata com todos acima e abaixo através da maneira de cumprimentar e de escolher as palavras – pessoas de “distinção”, que dominavam a “civilidade”.

Ainda incialmente alheios com a “arte de amar”, os jovens rapazes passariam por um processo de refinamento nas suas ações perante o sexo feminino, sendo familiarizados continuadamente com o universo que a cultura cortesã propiciava pelas mãos, vozes e sobretudo pelos escritos de seus idealizadores. Duby (2013, p. 76-77) aponta que esse tipo de produção literária: [...] transmitia uma moral, a moral que pretendiam propagar os príncipes mecenas, os quais, para essa finalidade, sustentavam em sua casa os poetas e montavam os poemas como espetáculo. [...] Pois esses romances são espelhos em que se refletem as atitudes de seus ouvintes. Eles a refletem bastante fielmente porque, como as vidas de santos, tinham por missão, distraí-los, ensiná-los a se conduzir bem; [...] Os apaixonados e apaixonadas por essa literatura tendiam a copiar suas maneiras de pensar, agir e sentir.

Uma literatura refinadamente aristocrática em sua maioria. Destinada à nobreza que a patrocinava, e que se obstinava para vivê-la em sua plenitude. Os retratos masculinos e femininos presentes neste corpo textual nos darão uma imagem de como a sociedade medieval e seus literatos (as) buscavam nos tipos de comportamentos, nas relações de sensibilidade, estética e sociabilidade entre damas e cavaleiros da corte, representar por meio da literatura o convívio social entre esses agentes históricos. Pois como atesta Johan Huizinga (2011, p. 115116): [...] não é só na literatura e nas belas-artes que o anseio pelo amor encontra a sua forma, a sua estilização. A necessidade de dar estilo e formas nobres ao amor também encontra um amplo campo para se desenvolver nas próprias formas de vida: no dia a dia da corte, nos jogos de salão, nas brincadeiras e no esporte. Também aí o amor é constantemente sublimado e romantizado; nisso a vida imita a literatura, mas esta, em fim de contas, acaba aprendendo tudo da vida. A visão cavaleiresca do amor, no fundo, não surgiu na literatura, mas na vida. Nas verdadeiras condições de vida é que se achava o motivo do cavaleiro e de sua amada

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Portanto, nosso objetivo principal é demonstrar como o novo código de conduta, os hábitos e posturas comportamentais presentes nas relações entre damas e cavaleiros foi imbuindo-se gradativamente de um trato delicado, polido e cortês, como mencionado no capítulo anterior. Não obstante, seguimos em direção à análise destas características presentes nas figuras literárias representadas nas obras romanescas sobre o Amor Cortês e em como as damas e cavaleiros medievais apropriaram-se das práticas, condutas e regras transmitidas por intermédio dessa literatura específica. 3.1

A “ARTE DE AMAR” NO IMAGINÁRIO DA NOBILIS FEUDAL Uma das primeiras obras a se aventurar em tentar definir o que de fato era o Amor

Cortês foi o Tractatus de Amore [Tratado do Amor Cortês] publicado no século XII, de autoria de André Capelão, pois esta busca “[...] examinar em primeiro lugar o que é o amor, de onde vem seu nome, quais são seus efeitos, entre que pessoas pode existir, de que modo pode ser conquistado e mantido, que sinais indicam ser ele correspondido, o que um dos amantes deve fazer quando o outro é infiel [...]” (CAPELÃO, 2000, p. 3).15 O Tratado é dividido em três partes (livros) e visa de antemão explicitar as condicionantes para a existência, sentido e significados do amor (livro I), o que se fazer para manter o amor sem maiores obstáculos (livro II, “Como manter o amor”) e por fim, paradoxalmente, os infortúnios e dificuldades as quais os amantes estarão submetidos por se entregarem às suas paixões (livro III, “Da condenação do amor”). As regras, códigos e condutas presentes nas linhas do Tratado são formas específicas de expressão, manifestação e registro da cultura cortês presente no ambiente aristocrático das cortes medievais. Não obstante que ao próprio autor coube um patrocínio

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Finalizado e publicado no final do século XII (há controvérsias sobre a data exata da publicação, que oscila entre 1182-1186), o Tractatus de Amore, no original em latim, é um tratado filosófico sobre o amor escrito por André le Chapelain [André Capelão], clérigo francês estabelecido no condado de Champagne sob a tutela de Henrique I (1126-1181) à época. A obra de André consiste em um verdadeiro manual das práticas masculinas e femininas que são desempenhadas sobre o tema do amor, ensinando desde o modo de portar-se diante de um cortejo, à maneira correta de se iniciar um diálogo sobre o amor e até mesmo aconselhando como os amantes devem reagir perante os obstáculos que sua paixão por ventura venha desencadear. Pouco ou quase nada se sabe acerca da vida de André Capelão. O termo capelão sugere que o mesmo tenha sido um clérigo francês – o que denota certo domínio dos estudos clássicos citados ao longo de seu tratado e também a crítica quase que velada aos comportamentos femininos. C. BURIDANT, Claude. Introdução. In: CAPELÃO, André. Tratado do Amor Cortês. Introdução, tradução do latim e notas de Claude Buridant e tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. IX-LXXV.

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proferido da corte de Champagne e uma posterior dedicatória a um amigo conhecido apenas como Gautier.16 A “linguagem das cortes” apresentada no Tractatus e nos demais romans medievais nos dão de maneira mais coerente a problematização da variedade dos “jogos” amorosos disputados entre os amantes. Na obra de André, temos por exemplo os chamados “Julgamentos do Amor”, onde damas e cavaleiros travam verdadeiras “justas” amorosas para obter a aprovação e por consequência o afeto e reconhecimento do sentimento professado por intermédio de ações e palavras. Em um desses julgamentos um cavaleiro enamorado a uma dama, porém não correspondido, apressa-se excessivamente para oferecê-la os mais diversos favores como forma de angariar atenção de sua pretendida. Vendo-o em tal situação, a dama por fim se compadece do jovem amante e lhe propõe a seguinte opção: Sei que sofres há muito pelo meu amor, mas não poderás jamais obtê-lo sem que antes faças uma promessa solene: obedecer sempre a todas as minhas ordens. Se contrariares uma só delas, poderás ser totalmente privado de meu amor. (CAPELÃO, 2000, p. 233)

Nos pressupostos do Amor Cortês, cabe à dama o controle exato da situação amorosa na maioria dos casos. Nas relações amorosas da aristocracia feudal, a imagem feminina retratada nos textos de época remonta ainda a uma certa estilização e idealização das damas medievais, fato presente nas obras romanescas que as descrevem dentre outras formas, como sendo o fato preponderante para a formação dos juvenes medievais, pois “[...] A dama tinha assim a função de estimular o ardor dos jovens, de apreciar com ponderação, judiciosamente, as virtudes de cada um. [...] Ela coroava o melhor. O melhor era quem a tinha servido melhor. O amor cortês ensinava a servir e servir era o dever do bom vassalo [...]” (DUBY, 2011, p. 74). Entretanto, mesmo inserida nesse meio masculino de disputa e tendo apenas na literatura cortês sua principal forma de manifestação, não cabia à dama apenas o papel quase que imóvel de “prêmio” a ser conquistado pelos jovens cavaleiros. Aos autores dos romans não fugia a sensibilidade, até, de que sua literatura de divertimento também pretendia agradar ao público feminino nas cortes feudais, de modo que a figura da mulher nas obras corteses foi

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A dedicatória a Gautier é assinada por André de modo a perceber-se a afeição e aconselhamento do autor para com o amigo. Pelo teor e tom das linhas assinadas, supõe-se que Gautier seja um homem ainda jovem, ou como bem diz André “um novato em Amor: recentemente atingidos por um de seus dardos, que não sabes como segurar as bridas do teu cavalo e és incapaz de encontrar algum remédio para teu estado”. A identidade de Gautier permanece sem maiores esclarecimentos, supondo-se apenas que deva trata-se de um jovem nobre a quem André teve contato durante/após o período de composição de sua obra. C. CAPELÃO, André. Tratado do Amor Cortês. Introdução, tradução do latim e notas de Claude Buridant e tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 1.

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gradativamente adaptando-se e dotando-se de uma certa imponência nas personagens descritas nos textos da época, portanto: Não caímos por nossa vez no simplismo. A Idade Média exaltou cada vez mais Maria e consagrou-lhe imortais obras de arte; e, por outro lado, inventou o amor cortês que reabilitou a atração física, colocou a mulher sob um pedestal a ponto de fazer dela a suserana do homem apaixonado e o modelo de todas as perfeições. O culto mariano e a literatura dos trovadores tiveram prolongamentos importantes e talvez tenham contribuído a longo prazo para a promoção da mulher. Mas a longo prazo apenas. (DELUMEAU, 2009, p. 475)

Voltando para o julgamento do Tratado, e seguindo a lógica mencionada por Duby, o jovem cavaleiro cede ao pedido da dama, proclamando ainda “[...] Deus me livre de algum dia ser bastante insensato para desobedecer de algum modo às tuas ordens e aceito de bom grado esse pedido que muito me agrada. [...]” (CAPELÃO, 2000, p. 233). A resposta do jovem está ainda de acordo com as regras do Amor Cortês – que somam um total de 31 – descritas por André no Tratado, sendo que duas delas podem ser observadas na proposta da dama e na resposta do cavaleiro: “[...] Regra XXIV. Todo ato do amante tem como finalidade o pensamento da mulher amada. [...] Regra XXVII. O amante não sabe recusar nada à amante” (CAPELÃO, 2000, p. 262). Assentindo com a palavra dada pelo jovem cavaleiro, a dama o pede que não lhe faças mais declarações ou favores amorosos em público para tentar conquistar seu amor e predileção, fato ainda que doloroso para o jovem amante, assente de imediato. Porém, a promessa é posta em prova quando um grupo de cavaleiros conhecidos seus começa a destratar e proferir palavras enganosas sobre sua dama na presença de outras mulheres da corte, de modo a minar sua reputação diante do círculo da corte. De início o jovem cavaleiro contém-se lembrando da promessa que fez de não demonstrar seus sentimentos em público, mas ao modo que as calúnias foram aumentando, por fim este irrompe em defesa de sua amada, tecendo elogios e proferindo seus sentimentos para a dama ofendida. Ao saber do ocorrido, a dama de imediato suspende as relações com o cavaleiro, privando-o para sempre de seu amor devido à quebra da promessa feita entre os dois. O caso dos dois é levado à Maria I (1145-1198), condessa de Champagne, que no Tratado de André é posta como sendo a mediadora e juíza dos Julgamentos de Amor. A condessa, a par de toda a situação, decreta a seguinte sentença: [...] a dama foi severa demais em sua exigência pois não receara prender a uma decisão injusta aquele que se submetera inteiramente à sua vontade, depois de fazê-lo ter esperanças no seu amor vinculando-o por uma promessa. Nenhuma mulher honesta tem o direito de frustar essa esperança sem motivo, e o enamorado em questão não

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pecou em nada quando tentou repreender com palavras justas os detratores de sua dama [...]. (CAPELÃO, 2000, p. 234)

Para o amante a imagem e o sentimento pela dama o fazem engradecer, dotando-o de virtude, para além dos sentimentos que uma vida a sós pode proporcionar. A todo o instante busca pensar na imagem de sua amada, e quando a encontra nada supera o momento de estar lado a lado com quem o inspira sempre a buscar i melhor de si. Dessa forma, a dama, ou pelo menos a idealização desta, controla as ações e os passos futuros que seu consorte deve tomar. O que o amante faz tem como objetivo conseguir sua aprovação, seu respeito. E é apenas ele quem deve sofrer, provar, sentir e superar as adversidades que deverá encontrar antes de obter a predileção de sua amada (MACEDO, 2014). As obras sobre o Amor Cortês no medievo ocidental, como já mencionado, têm suas bases ancoradas em uma realidade social específica. A literatura cortesã aqui analisada age como um reflexo do convívio de homens e mulheres na corte medieval, imaginados e representados nos escritos dessa temporalidade. Para compreendermos melhor as formas que tais retratos sociais possuem e atuam nos textos, consideramos significativa a assertiva de Chartier (2011, p. 281) sobre as representações, posto que estas: [...] Possuem uma energia própria que convence que o mundo, ou o passado, é realmente o que elas dizem que é. Produzidas em suas diferenças pelas desigualdades que fraturam as sociedades, as representações, por sua vez, as produzem ou as reproduzem. Conduzir a história da cultura escrita escolhendo como pedra angular a história das representações, é, logo, aliar a potência dos textos escritos através dos quais elas serão lidas ou ouvidas, com as categorias mentais, socialmente diferenciadas, impostas por elas e que são as matrizes de classificações e julgamentos.

Tal conceito não se situa cristalizado e preso à noção de mero “reflexo frágil” do meio social do qual é fruto, pois para Chartier (2011, p. 283), “[...] é a partir da hipótese da ‘realidade de representação’, ou, dito de outra forma, da força social das percepções do mundo social [...]” que aquilo que é real é demonstrado. Ou seja, um testemunho ancorado na própria historicidade de sua produção e na intencionalidade de sua escrita e posterior reprodução, visto que: As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta

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impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações não e, portanto, afastarse do social — como julgou durante muito tempo uma história de vistas demasiado curtas —, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais. (CHARTIER, 1990, p. 17, grifo nosso)

À rigor, e fundamentalmente, quando representamos algo, ou alguém, sejam categorias sociais, culturais, simbólicas e/ou políticas, consideramos que ali temos a alocação de uma ferramenta teórica que significa o “[...] estar no lugar de, é a presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver a ausência. [...]”, onde a representação desses elementos seja percebida como sendo uma “[...] não cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele. [...]” (PESAVENTO, 2005, p. 40). Se na literatura sobre o Amor Cortês determinados tipos de comportamentos são descritos de modo prolífico pelos autores que as produziam, visualizamos aqui um retrato problematizado da época, um “regime narrativo ficcional”, mas que por intermédio da força de um discurso que deixou homens e mulheres nobres expostos às mais variadas aventuras e acontecimentos fantásticos, foi construído a partir da capacidade de mobilização e produção de reconhecimento e legitimidade de um quadro social específico, no caso, a sociedade de corte francesa (PESAVENTO, 2005). Alocada num pressuposto do campo teórico da História Cultural, tal afirmativa corrobora com os pressupostos do campo literário, cujo um dos objetivos principais é senão a aproximação e incorporação da produção de uma cultura presente na própria linguagem e nos discursos proferidos por seus produtores – intelectuais ou leigos – nos diversos substratos da vida social, além de buscar observar nos próprios textos literários e numa cultura escrita propriamente dita, “mecanismos de produção de objetos culturais”: A história cultural se propõe a observar no passado, entre os movimentos de conjunto de uma civilização, os mecanismos de produção de objetos culturais. [...] Entre os fatores da produção cultural (pondo de lado o que constitui sua matéria-prima), alinhase uma herança, um capital de formas no qual cada geração se nutre. O principal interesse da história literária, da história das artes e da história da filosofia é inventariar essas formas, mostrar como essa reserva se empobrece ou dilata, como ela se transforma [...]. (DUBY, 2011, p. 147, grifo do autor).

No capítulo anterior exemplificamos e situamos os caminhos que uma produção historiográfica que se utiliza de fontes literárias percorre, inclusive pontuando com atenção como o campo da cultura escrita fez-se presente no medievo por intermédio da análise dos romans. Agora, ainda sobre essa mesma produção cultural inserida no citado campo, é válido ressaltar sobre um dos aspectos essenciais sobre a produção e circulação das obras romanescas

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no seio da sociedade aristocrática francesa: a influência dos escritos e sua força no imaginário coletivo do período. Para tanto, torna-se necessário uma acepção conceitual que aponte os indícios norteadores na pesquisa sobre os lugares sociais e as variadas formas de expressão dos sentidos relatados nas obras sobre o Amor Cortês. Pode-se dizer que tais textos possuíam um tipo de “manifestação” mental, corporal e sinestésica quando produzidos, lidos e até mesmo relatados de forma oral aos que não tinham acesso às letras. Optamos por adotá-la aqui como sendo uma determinada energia social, uma trama envolvendo o meio de produção e a própria força histórica que os elementos textuais empunham. Tal “energia” presente no contexto cultural de produção e reprodução dos escritos corteses, pode ser identificada de variadas maneiras e ter suas demais expressões historicamente variantes de uma temporalidade para a outra, logo, como obter então de modo satisfatório vestígios indicativos de sua circulação nos mais diversos substratos da vida social humana? Stephen Greenblatt (1988, p. 9, tradução nossa) propõe que a circulação da energia social não obedece à lógica específica de um sistema simples, coerente e totalizante de expressões. Mas sim atuante por meios fragmentários, parciais e conflitantes entre si, onde alguns elementos foram cruzados e combinados, onde práticas consideradas privadas e particulares tomaram forma no corpo coletivo da sociedade: Qual é então a energia social que está circulando? Poder, carisma, excitação sexual, sonhos coletivos, deslumbramento, desejos, ansiedade, temor religioso, intensidades de um fluxo contínuo de experiências: de certo modo, a questão é absurda, pois tudo o que é produzido pela sociedade pode ser divulgado a menos que seja deliberadamente excluído de circulação. Sob tais circunstâncias, não pode haver um único método, uma única forma de análise exaustiva e definitiva da poética cultural. 17

Isso posto, Greenblatt (1988, p. 6, tradução nossa) ainda pontua que a energia social não pode ser mensurada ou identificada diretamente, mas sim apenas por seus efeitos, pois: [...] é manifestada na capacidade de certos traços verbais, aurais e visuais de produzir, moldar e organizar experiências coletivas físicas e mentais. Por isso, é associada a formas repetíveis de prazer e interesse, com a capacidade de despertar inquietação, dor, medo, o bater do coração, pena, riso, tensão, alívio, maravilha. Em seus modos estéticos, a energia social necessita possuir um mínimo de previsibilidade – suficiente para fazer viável simples repetições – e um mínimo de alcance: o suficiente para ir além de um único criador ou consumidor de uma comunidade, ainda que restrita. Ocasionalmente, e geralmente estamos interessados em tais ocasiões, a previsibilidade e alcance serão bem mais abrangentes: números maiores de homens e mulheres de classes sociais diferentes e de crenças distintas serão induzidos a explodir de tanto rir “What then is the social energy that is being circulated? Power, charisma, sexual excitement, collective dreams, wonder, desires, anxiety, religious awe, free-flowing intensities of experience: in a sense the question is absurd, for everything produced by the society can circulate unless is deliberately excluded from circulation. Under such circumstances, there can be no single method, no over picture, no exhaustive and definitive cultural poetics.” 17

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ou chorar, ou de experimentar uma complexa mistura de ansiedade e exaltação. Ademais, as formas estéticas da energia social são usualmente caracterizadas por um mínimo de adaptabilidade – o bastante para fazê-las sobreviverem, ao menos, às constantes mudanças nas circunstâncias sociais e nos valores culturais que fazem declarações comuns evanescerem. Enquanto a maioria das expressões coletivas são movidas de seu lugar original para um novo local ou temporalidade e estão mortas na chegada, a energia social codificada em certas obras de arte continua a gerar uma ilusão de vida por séculos.18

Presente e atuante, portanto, nas diversas esferas culturais do medievo, a energia social adequa-se também às perspectivas que cobrem o imaginário coletivo no ambiente no seio das cortes aristocráticas da sociedade feudal. Como parte integrante que foram o “espelho da realidade” social, a literatura cortês manifestava os anseios e interesses de um grupo social restrito, ainda que tendo a liberdade criativa obviamente de extrapolar as definições do cotidiano vivenciado rotineiramente. Johan Huizinga (2011, p. 197) afirma que “[...] é na literatura que podemos aprender sobre as formas do amor na época, mas precisamos tentar imaginar como elas funcionavam na própria vida [...]”, pois as ações praticadas pelas figuras literárias das damas e cavaleiros nos escritos medievais “pertenciam à vida real” e por consequência deveriam ser aplicadas “[...] à vida aristocrática, ou pelo menos, às conversas sobre esse cotidiano específico[...]” (HUIZINGA, 2011, p. 199). Se relacionarmos a energia social com o advento da cultura escrita literária em desenvolvimento no século XII, e as implicações dos textos cortesãos dentro das cortes francesas, podemos medir os impactos e as trocas culturais existentes quando das condições de tessitura dessas obras e a sua própria aceitação do público-alvo a quem se destinavam, estabelecendo, em certa medida, um tipo de “negociação” entre aquilo que se produzia e aquilo que se almejava consumir, baseada na sinalização de práticas, hábitos e costumes sociais comuns às damas e cavaleiros corteses: Se os traços textuais em que tomamos interesse e prazer não são fontes de autoridade numinosas [ou seja, inspirados por qualidades transcendentais e divinas], se eles são sinais de práticas sociais de contingente, as perguntas que fizemos não podem encontrar lugar central nas pesquisas devido à sua essência intraduzível. Em vez disso podemos perguntar como coletivo de crenças e experiências foram moldadas, “[...] it is manifested in the capacity of certain verbal, aural, and visual traces to produce, shape, and organize collective physical and mental experiences. Hence it is associated with repeatable forms of pleasure and interest, with the capacity to arouse disquiet, pain, fear, the beating of the heart, pity, laughter, tension, relief, wonder. In its aesthetic modes, social energy must have a minimal predictability - enough to make simple repetitions possible - and a minimal range: enough to reach out beyond a single creator or consumer to some community, however constricted. Occasionally, and we are generally interested in these occasions, the predictability and range will be far greater: large numbers of men and women of different social classes and divergent beliefs will be induced to explode with laughter or weep or experience a complex blend of anxiety and exaltation. Moreover, the aesthetic forms of social energy are usually characterized by a minimal adaptability - enough to enable them to survive at least some of the constant changes in social circumstance and cultural value that make ordinary utterances evanescent. Whereas most collective expressions moved from their original setting to a new place or time are dead on arrival, the social energy encoded in certain works of art continues to generate the illusion of life for centuries.” 18

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mudando de um meio para outro e concentrando-se na forma estética maleável para o consumo. Podemos examinar como os limites foram marcados entre práticas culturais, entendidas como formas de arte e outras, contíguas, como formas de expressão. Podemos tentar determinar como estas zonas especialmente demarcadas foram investidas com seu poder para conferir prazer ou excitar o interesse ou gerar ansiedade. A ideia não é retirar e descartar a impressão encantada de autonomia estética, mas a investigar as condições objetivas deste encantamento, para descobrir como os vestígios de circulação social são apagados. (GREENBLATT, 1988, p. 5, tradução nossa, grifo nosso)19

O imaginário dos medievais, seja dos autores letrados, seja do público-alvo de suas obras pertence ao escopo maior do que Hilário Franco Júnior (2010, p. 73) classifica como sendo “[...] um sistema de imagens que exerce função catártica e construtora de uma identidade coletiva ao aflorar e historicizar sentimentos profundos do substrato psicológico de longuíssima duração[...]”. O medievalista brasileiro extrapola o campo de interpretação sobre a noção de mentalidades, postergando que as definições propostas até então para a utilização desse conceito são insuficientes por tratar-se de uma estrutura psíquica que abrange a totalidade do pensamento humano. Para o autor, o que entendemos por mentalidades consiste naquilo que é constituído pelo conjunto de emoções básicas, de automatismos, de comportamentos espontâneos, de heranças culturais profundamente enraizadas, de sentimentos e formas de pensamento comuns a todos os indivíduos, independentemente de suas condições sociais. Ou seja, os arcaísmos presentes no cérebro humano (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 51-52). Essa é a razão que para o historiador salta aos olhos e o impossibilita metodologicamente de trabalhar com uma “história das mentalidades”, visto que o “mental”, o todo, é inacessível em sua plenitude, sobrando ao pesquisador apenas fragmentos de expressões culturais pré-determinadas. A saída encontrada para se aventurar no território do real/imaginário seria a utilização de um determinado “filtro”, a qual o autor aponta como sendo imaginário, por este ser “[...] o agente decodificador destes arcaísmos e também como representante dos mesmos, que como objetos de estudo são historicamente variáveis [...]” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 77). O imaginário seria tido como o caminho de acesso às mentalidades, ainda que de forma indireta e limitada. Como engrenagem do sistema decodificador das emoções humanas, 19

If the textual traces in which we take interest and pleasure are not sources of numinous authority, if they are signs of contingent social pratices, then the questions we ask of them cannot profitably center on a research for their unstranslatable essence. Instead we can ask how collective beliefs and experiences were shapped, moved from one medium to another concentrated in mageable aesthetic form, offered for consumption. We can examine how the boundaries were marked between cultural pratices understood to be art forms and other, contiguous, forms of expression. We can attempt to determinate how these specially demarcated zones were invested with their power to confer pleasure or excite interest or generate anxiety. The idea is not to strip away and discard the enchanted impression of aesthetic autonomy but to inquire into the objective conditions of this enchantment, to discover how the traces of social circulation are effaced.”

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o imaginário possui sua maneira particular de expressão pois seus signos e sua linguagem específica são uma “[...] construção mental, realizada a partir de estímulos dos sentidos (seres, objetos, locais, sensações) ou do aparelho visível/psíquico (visões, sonhos, memória) que implica certa relação com o mundo e certa leitura do mesmo, materializadas na palavra e/ou na escrita [...]” (FRANCO JÚNIOR, Hilário, 2010, p. 85-86, grifo nosso), o que acaba por fornecer a prerrogativa de elencarmos o roman enquanto fonte de análise desse trabalho. O uso da narrativa literária e suas imbricações com o imaginário coletivo do medievo no oferece a oportunidade de medirmos o alcance que os escritos corteses tiveram no período, pois dentro da linha de raciocínio seguida até aqui, essa literatura, presente em um quadro maior de explanação que seria o imaginário, representa por meio de sua própria estrutura conjuntural, regimes de representação e verossimilhança com o real, já que enquanto documento essas obras “[...] não podem dar-lhes [aos historiadores] sobre aquilo para o que não foram feitas: elas são em si próprias uma realidade histórica. Medíocres ou geniais [...], não obedecem a motivações, regras ou finalidades iguais às dos documentos de arquivo que o historiador está habituado a trabalhar [...]” (LE GOFF, 1994, p. 6), ao mesmo tempo que direciona e aponta os caminhos existentes para um novo olhar e uma nova abordagem sobre os retratos sociais ali descrito e é senão dentro do imaginário construído sobre o Amor Cortês que os romans idealizam e constroem suas figuras de heroísmo cavaleiresco e de virtude feminina. 3.2

IDEALIZAÇÃO DA CORTESIA: TRISTÃO E ISOLDA; SOREDAMORS E

ALEXANDRE Georges Duby (2013, p. 11) comenta que a literatura dos séculos XII-XIII “[...] procurava impor um conjunto de imagens exemplares[...]” e que além disso “[...] representa o que a sociedade quer e deve ser [...]”. Mesmo que essa literatura não represente um retrato fidedigno dos aspectos amorosos no cotidiano das cortes principescas, os romans atuam diretamente como sendo os baluartes de um “triunfo” literário das figuras representadas em suas narrativas, e é na decorrência de tal fenômeno que tais histórias fizeram homens e mulheres desprenderem-se um pouco da rígida ordem social existem no período. Em sua construção, buscavam um divertimento, um alento, formas de fazerem seu público gozar de seus desejos secretos e seus sonhos de amor. Mesmo que diversas vezes tais sonhos fossem proibidos, inalcançáveis e subsequentemente trouxessem sofrimento, quem sabe não valeria à pena o risco e a emoção de se entregarem às suas paixões amorosas.

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A justa amorosa de Tristão e Isolda, um dos mais conhecidos romances do período medieval, ainda ecoa atualmente como um dos exemplos de narrativa literária que aborda tal temática em sua estrutura narrativa.20 Nos séculos XI e XII, variadas versões do romance de Tristão e Isolda foram produzidas com o intuito de expandir os conceitos, posturas e comportamentos sociais ligados ao modelo de “amar” praticado nas cortes principescas pelas damas medievais e seus consortes.21 O conto de Tristão e Isolda é um conto sobre “[...] paixão e morte, amor, casamento e adultério; amizade, sexo e desejo [...]” (WISNIK, 2009, p. 221), onde a jornada dos dois é contada sob a ótica de um narrador-observador que tudo presencia e descreve em seu texto Desde o início, a história dos jovens amantes é permeada por obstáculos que os impedem de obter a plena felicidade. Primeiramente porque Isolda é rainha e esposa do tio de Tristão, o rei Mark da Cornualha. Ademais, Tristão estava ligado ao tio por laços consanguíneos, mas também de vassalagem, logo, um romance com Isolda trairia duplamente seu tio e suserano. É característico dos romances corteses uma sorte de desafios, testes, contratempos e provações aos quais os amantes são submetidos como meio de provar seu sentimento um pelo outro, com o objetivo de elevarem seu espírito e serem dignos de tal conduta. Não por acaso, outra das regras do Amor, a regra XX, presente no Tractatus de Amore sugere que “o enamorado sempre tem medo” (CAPELÃO, 2000, p. 261). Desse modo, o casal teme ser descoberto, teme as retaliações e as consequências que por ventura chegarão caso tudo seja posto à prova: Isolda tem seus vivos, seus belos amores, e Tristão junto dela, à vontade, de dia e de noite; pois, assim como é costume entre os grandes senhores, ele dorme no aposento real, entre os íntimos e os fiéis. Isolda, no entanto, treme. Por que tremer? Não mantém ela secretos seus amores? Quem suspeitaria de Tristão? Quem, pois, suspeitaria de um filho? Quem a vê? Quem a espia? Qual a testemunha? (BÉDIER, 2012, p. 34.)

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Desde a Alta Idade Média (séculos V-X) a lenda dos jovens amantes é cantada aos quatro ventos pelos bardos e trovadores medievais. Por meio do testemunho oral, as origens celtas da lenda de Tristão e Isolda foram gradualmente se transmutando e se incorporando à sociedade cristã existente no ocidente medieval, visto que “Histórias de Tristão e do rei Marcos [ou Mark] já eram conhecidas desde o século VIII, mas é no século XII que a narrativa celta (trabalhada no imaginário cristão) cristaliza-se numa intricada rede de sentido cuja unidade enigmática e fascinante salta aos olhos apesar da multiplicidade das suas versões (...).” Cf. WISNIK, José Miguel. A paixão dionisíaca em Tristão e Isolda. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p. 221. 21 No século XII temos a prosificação do poema de Tristão e Isolda. Diversos autores criaram suas próprias verões para o conto dos dois amantes, tendo as versões de Béroul (escrita entre 1160-1190) e de Thomas um maior destaque por suas respectivas manutenções dos elementos celtas originais da narrativa. Segundo Wisnik (2009: 257), cinco são as versões escritas do século XII: Béroul, Thomas, Eilhart, La Folie Tristan e roman escrito em prosa. A versão aqui utilizada para análise será a forma condensada entres essas versões por meio estudo dos fragmentos textuais, empreendida pelo historiador e literato francês Joseph Bédier, cuja tradução para língua portuguesa se faz aqui utilizada. Cf. BÉDIER, Joseph. O Romance de Tristão e Isolda. 5. ed. Trad.: Luis Claudio de Castro. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

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O Amor Cortês exige que aqueles que estão sob seu domínio provem ser merecedores de possuí-lo. Em uma das passagens do romance, ao ser acusado de adultério com a rainha pelos barões de Mark, Tristão prontamente se defende e oferece sua vida pela da amada, colocando a segurança e o bem-estar de Isolda acima de seu próprio, um típico modelo de cortesia: a subordinação do amante (homem) à sua donzela: Belo tio, não é por mim que vos imploro. Que me importa morrer? Certamente não fosse o medo de vos encolerizar, eu venderia caro esta afronta aos covardes que, sem a vossa salvaguarda, não teriam a ousadia de tocar meu corpo com suas mãos; mas, por respeito e por amor a vós, entrego-me à vossa mercê: fazei de mim o que quiserdes. Eis-me aqui, senhor, mas tende piedade da rainha! [...] Piedade para rainha, pois se existir um homem em tua casa bastante audaz para sustentar essa mentira de que a amei com amor culpável, encontrar-me-á de pé diante dele em campo fechado. Sire, misericórdia para ela, em nome do Senhor Deus! (BÉDIER, 2012, p. 52)

Ao portar-se de tal modo diante das adversidades, Tristão pontua características específicas das figuras masculinas nas narrativas romanescas: educação, coragem, virtude, auto piedade e uma tendência a praticar atos extremos em prol da figura amada. De fato, a educação de Tristão como um nobre realça ainda mais o valor dado à etiqueta e à distinção que o estatuto da nobreza possuía no medievo. Em um episódio do conto, Tristão é desafiado por um harpista a cantar trovas de amor para entreter a corte do rei Mark, e o jovem assim o faz: Tristão pegou a harpa e cantou de maneira tão bela que os barões se enterneceram ao ouvi-lo. [...] Quando a trova foi encerrada, o rei ficou muito calado. – Filho – disse ele finalmente -, bendito seja o mestre que te ensinou e bendito sejas tu! Deus ama os bons cantores. A voz deles e a voz da sua harpa penetram no coração dos homens, despertam suas lembranças mais caras e fazem-nos esquecer muita tristeza e muito malefício. Para nossa alegria vieste a esta morada. Fica muito tempo perto de mim, amigo! – Com prazer, servi-vos-ei, sire – respondeu Tristão -, como vosso harpista, vosso caçador e vosso vassalo. (BÉDIER, 2012, p. 7)

Portanto, além de um nobre guerreiro e bem-educado, Tristão também sabia como utilizar as nobres artes do divertimento, as formas sutis e delicadas que a cultura cortesã possuía. Aqui estava um verdadeiro cavaleiro-menestrel.22 Os papeis atribuídos a Isolda durante o conto por sua vez, ressaltam que a figura feminina possuía vários vieses de orientação e representação nos escritos medievais. Dado um primeiro instante, ao lançarmos uma luz sobre aquilo que já foi escrito e reproduzido acerca das mulheres medievais, nota-se de imediato uma polarização vigente sobre uma figura feminina sacra – o ideal mariano de virtude – e a imagem de uma mulher portadora do pecado – ligada ao estigma de Eva. Estudos recentes sobre a temática feminina e tal polarização de perfis no medievo enveredaram por análises que gradativamente vão descontruindo tal narrativa 22

No medievo, menestrel era o poeta que tocava e cantava trovas sobre os contos de guerra, lugares e batalhas míticas e/ou reais.

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histórica. Ainda que a sociedade no medievo ocidental fosse marcada por vestígios eventualmente misóginos, a “recusa” ao feminino não é um elemento novo ou inaugurado na medievalidade, tendo suas bases e tradições ancoradas na filosofia da Antiguidade e nos estudos da Patrística sobre o papel da mulher na sociedade. O conhecimento que temos acerca da construção da imagem feminina antes do século XII deve-se muito aos autores como Aristóteles, São Jerônimo, Santo Agostinho de Hipona e São Tomás de Aquino, dentre outros. Mesmo que a Igreja cristã seja personagem inerente a tal processo, a mesma acaba por estimular uma maior importância à figura feminina quando impõe gradativamente o culto mariano como meio de dotar a mulher virtuosa de certa imponência e modelo a ser seguido, o que acaba por gerar um salto qualitativo, em certa medida, nos olhares lançados até então sobre o universo feminino (LE GOFF, 2013a). Entretanto, numa sociedade culturalmente variada como a feudal, o universo feminino não estava preso somente a essas duas características. O lugar social das mulheres no mundo medieval lhes era atribuído por diversos fatores como a idade, posição social, nível de instrução e pelas atividades que podiam exercer. Presentes na literatura produzida no período, outras representações femininas fugiam dessa classificação e se apresentavam como modelos de idealização e comportamento a serem seguidos. A figura de Isolda, nos oferece um olhar mais abrangente sobre os papéis desempenhados pelas mulheres no medievo ao ser retratada na narrativa do romance como sendo uma dama instruída, rainha e amante (DUBY; PERROT, 1993). Se Tristão destacava-se por suas virtudes cavaleirescas, Isolda de antemão teve destaque nas várias obras cujo seu nome foi ressaltado como sendo dona de uma beleza ímpar e singular, mas também pela profundidade que os autores buscaram ao descrever sua personalidade e condutas: Seja como for, não conheço nenhuma obra literária datada do século XII em que a mulher ocupe tanto lugar na intriga, em que a personagem feminina seja descrita com tanto discernimento, sutileza e, cumpre mesmo dizer, delicadeza, acariciada pelas palavras que o autor escolheu. [...] Isolda é bela. É a mais bela „daqui até as fronteiras da Espanha‟. Seu rosto irradia luz: claridade dos olhos, brilho dos cabelos dourados, frescor da pele. Do corpo, os poemas celebram a elegância, mas não o mostram. Pudicos, não descrevem os detalhes de seus encantos, jamais. (DUBY, 2013, p. 81)

A jovem rainha durante todo o curso do romance não se furta a viver as expectativas, paixões e frustrações que seu relacionamento com Tristão vêm a desencadear. Isolda representa o ideário feminino medieval em que a dama anseia por estar na presença de seu amado, em que elabora planos de encontro e lugares furtivos para a consumação do Amor

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entre os dois, além de suportar com dignidade e altivez os augúrios de tristeza e saudade que a acometem na ausência de Tristão. Isolda é rainha, vivendo e portando-se como tal, pois “[...] tem a ternura do rei Mark, os barões a veneram, o povo lhe quer bem [...]” (BÉDIER, 2012, p. 34). Na ausência de Mark, a rainha presidia as assembleias na corte e era responsável por proferir as sentenças e demais obrigações que a realeza possuía para com seus súditos. Em uma audiência dessas, após um longo período separada de Tristão por conta dos ardis envolvendo a impossibilidade da felicidade plena entre os dois, a rainha recebe um louco nos salões do palácio, louco este que era Tristão disfarçado, numa tentativa de fazer-se presente aos olhos de sua amada novamente. Após uma série de diálogos que provam sumariamente Isolda a reconhecer seu amado, por fim cabe a rainha declamar: Não digo que me arrependa de ter amado, ou de amar ainda, a Tristão; ainda e sempre; amor não olha razão nem direito. Então, amigo, fecha teus braços e abraça-me tão apertado que, nesse abraço, nossos dois corações se rompam e nossas almas se evolem! Leva-me ao país venturoso de que me falavas outrora, ao país de onde ninguém volta, onde músicos insignes cantam cânticos sem fim. Leva-me! (BÉDIER, 2012, p. 134)

Antes mesmo de ser rainha, Isolda possui noção exata de sua condição como mulher na corte do rei Mark. Uma vez quando acusada de cometer adultério com Tristão pelos barões da corte, rapidamente propõe ao rei um meio de provar sua inocência, mas também de afrontar a petulância dos homens invejosos de sua influência no reino. Os barões de Mark anunciaram ao rei: Rei, ouve nossa palavra. Tinhas condenado a rainha sem julgamento, e fora um crime abominável. Hoje a absolves sem julgamento: não é incidir no mesmo crime também? Ela nunca se justificou, e os barões do teu país reprovam a vós ambos. É melhor que lhe aconselhes que ela mesma peça o julgamento de Deus. Que lhe custará, sendo inocente, jurar pelos ossos dos santos que nunca pecou? Inocente, segurar um ferro em brasa? Assim o quer o costume, e por esta prova fácil estarão para sempre dissipadas as suspeitas antigas. (BÉDIER, 2012, p. 87)

Isolda então diz ao rei que aceita o julgamento da ordália de ferro, sob testemunho do Rei Arthur e toda sua corte de cavaleiros. No dia marcado para a prova, Isolda valendo-se de sua influência com a corte de Arthur, manda convocar Tristão para estar próximo ao local onde seria julgada, este que estava afastado da corte de Mark devido à inveja de alguns conselheiros reais, faz-se presente de modo seguro, ocultando sua identidade com um manto vestido por leprosos. Chegando ao local, Isolda reconhece o amado mesmo por entre o disfarce, e quando convoca a algum cavaleiro que a ajude a descer de sua montaria, rapidamente Tristão a toma nos braços e a leva para onde estão o rei e as testemunhas:

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A rainha, tendo suplicado a Deus, retirou as joias do pescoço e com as suas mãos deuas aos pobres mendigos. Desprendeu seu manto de púrpura e seu escapulário fino, e deu-os; deu seu chintz e seu casaco e seus sapatos enriquecidos de pedrarias. Conservou somente sobre o corpo uma túnica sem mangas e, com os braços e os pés descalços, colocou-se à frente dos dois reis. Em volta, os barões contemplavam-se em silêncio e choravam. Perto das relíquias ardia um braseiro. Trêmula, ela estendeu a mão direita na direção das ossadas dos santos e disse: - Rei de Logres e vós, rei das Cornualhas, e vós sires Gauvain e Ké e Girflet, e vós todos que sois minhas testemunhas, por estes corpos santos e por todos os corpos santos que estão neste mundo, juro que jamais homem algum nascido de mulher me teve em seus braços a não ser o rei Mark, meu senhor, e o pobre peregrino que, ainda há pouco, se deixou cair aos vossos olhos. Rei Mark, este juramento é adequado? – Sim, rainha, e que Deus manifeste seu verdadeiro julgamento! – Amém! – disse Isolda. Ela aproximouse do braseiro, pálida e cambaleando. Todos mantinham-se calados, o ferro estava em brasa. Então mergulhou seus braços nus na brasa, agarrando-a e depois, tendo-a rejeitado, estendeu seus braços em cruz, com as palmas das mãos abertas. E cada um viu que sua carne estava mais são do que ameixa tirada do pé de ameixeira. Então de todos os peitos um grande brado de louvação elevou-se para Deus. (BÉDIER, 2012, p. 92)

Isolda soube ser hábil, ser mulher e rainha ao mesmo tempo. Usou da verdade em seu julgamento, tinha a confiança do povo por ventura demonstrou que sabe construir estratégias para preservar sua vida e seu amor. Esse comportamento revela uma face muito especial da mulher/rainha, aquela que é astuta e que não se prende nem se rende às malhas da rede da submissão masculina. Durante o medievo muitos foram os autores responsáveis por dar vida às mais variadas histórias narradas nos romans medievais. Como já mencionado no capítulo I, dentre estes destacou-se a figura de Chrétien de Troyes (1135?-1183), poeta francês cuja atividade floresceu na segunda metade do século XII. Muito de sua biografia é desconhecida, visto que o mesmo não deixou sequer algumas pequenas pistas em suas obras que iluminassem um pouco mais sobre suas ocupações e atividades durante seu período de atividade. Chrétien foi tido como o “pai do romance”, e sobretudo responsável por nos delegar alguns dos maiores exemplares sobre o ciclo bretão-arturiano, que entre suas obras de destaque estão: Ivain, le Chevalier au Lion [Ivain, o cavaleiro do leão]; Lancelot, le Chevalier de la Charrete [Lancelote, o cavaleiro da charrete]; Érec et Énide [Erec e Enida]; Cligès; Perceval ou le Conte du Graal [Perceval ou o Conto do Graal]. E é em um dos romances citados acima que as figuras de Alexandre e Soredamors são apresentadas. Escrito por volta de 1175, Cligès tem como narrativa principal o conto de amor entre Cligès e sua dama Fenice, mas também nos mostra como Alexandre e Soredamors, pais de Cligès, vieram a se conhecer. Um dos únicos romances de Chrétien de Troyes a contar duas histórias de amor, Cligès distingue-se dos demais por justamente ditar os tons que cada relação possui, focando-se primeiramente na construção narrativa da história dos pais do

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protagonista para enfim demorar-se na figuração do mesmo e de sua própria aventura. O que ambas possuem em comum? A influência dos pressupostos do Amor Cortês, ainda que em casos distintos. No início do romance, somos apresentados primeiramente a Alexandre, um príncipe grego, cujo pai, também de nome Alexandre, era imperador de domínios que se estendiam da Grécia até Constantinopla (TROYES, 2004). Descrito como dono de coragem e valores inquestionáveis, Alexandre ouve histórias sobre a corte do rei Artur, e de imediato, como forma de provar-se, pede a seu pai que o deixe sair da corte imperial para seguir em direção à Britânia a fim de juntar-se ao famoso rei e seu séquito de guerreiros: Querido pai, no desejo de aprender sobre honra e galgar fama e glória, atrevo-me a pedir um favor de você, no qual desejo que me conceda. [...] Eu desejo ter uma abundância de ouro e prata e tais companheiros entre seus homens que eu possa escolher; pois anseio de deixar seu império e oferecer meus serviços ao rei que governa a Britânia, para que ele me faça um cavaleiro. Juro a você que nunca irei armar meu rosto ou por um elmo sobre minha cabeça enquanto viver, a menos que o próprio Rei Artur consagre sua espada sobre mim; se o mesmo se dignar a fazê-lo, pois não desejo ser condecorado por ninguém mais (TROYES, 2004, p. 124, tradução nossa).23

De modo a tornar-se mais convincente em seus argumentos de deixar a corte imperial, Alexandre fala a seu pai dos valores que os homens nobres devem possuir e daqueles dos quais devem abnegar-se, dando um vislumbre dos ideais cavaleirescos inerentes à figura masculina nas narrativas cortesãs: Nenhuma súplica ou bajulação pode impedir-me de ir para aquela terra distante ter com o rei e seus barões grandemente renomados por sua cortesia e bravura. Muitos homens bem-nascidos, por indolência, têm perdido a grande fama que poderiam ter obtido, se o tivessem viajado pelo mundo. Ociosidade e glória não combinam bem, parece-me; um homem nobre que senta e aguarda não conquista nada. O valor sobrecarrega um covarde, enquanto a covardice traz abaixo os bravos; assim eles estão em contrário e opostos. Aquele que passa a vida acumulando riqueza é escravo desta. Querido pai, enquanto eu for livre para buscar a glória, se digno o suficiente, gostaria de esforçar-me e trabalhar por isto. (TROYES, 2004, p. 125, tradução nossa).24

“Good father, in order to learn honour, and win fame and glory, I dare to ask a favour of you, which I wish you to grant me. […] I wish to have an abundance of your gold and silver, and such companions from among your men as I shall choose; for I wish to leave your empire and present my service to the king who rules Britain, so that he might make me a knight. I swear to you that I’ll never arm my face or put a helmet over my head as long as I live unless King Arthur girds the sword upon me, if he will deign to do so, for I do not wish to be knighted by anyone else.” 24 “No pleading or flattery can keep me from going to that distance land to see the king and his barons, who are so greatly renowed for courtesy and valour. Many high-born men through indolence have forfeited the great fame they might have had, had they set off through the world. Idleness and glory do not go well together, it seems to me; a noble man who sits and waits gains nothing. Valour burdens a coward, while cowardice weighs down the brave; thus they are contrary an opposed. He who spends all his time amassing wealth is a slave to it. Dear father, as long I am free to seek glory, if I am worthy enough I wish to strive and work for it.” 23

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Dessa forma, Alexandre convence o imperador e deixa a Grécia rumo à corte de Artur. Ao enfim chegar em terras britânicas, ele e seus homens apresentam-se diante do rei de modo a oferecer seus serviços e lealdade ao governante dos britânicos. Artur os recebe de bom grado na corte, aceitando seu juramento e os incorporando aos seus já renomados cavaleiros, sagrando Alexandre e seus seguidores como os novos membros de sua guarda pessoal. Incorporado e familiarizado com seu novo lar, Alexandre é querido e bem visto por todos, desde os barões e cavaleiros do rei, passando por serviçais e demais membros da corte real, onde não se demora muito para que uma figura em especial lhe chame a atenção. A esta altura do romance, somos introduzidos ao par de Alexandre, Soredamors, e é aqui onde a influência mais precisa do Amor Cortês se manifesta por meio da dama mencionada. Soredamors era uma das damas de companhia da rainha Guinevere, esposa de Artur, e acompanhando a mesma em umas das incursões do rei pelo território britânico, a jovem donzela é caracterizada por Chrétien como sendo alheia e até mesmo indiferente aos assuntos do Amor, o que acaba causando uma reviravolta no seu futuro modo de pensar, agir e sobretudo, sentir quando se depara com Alexandre: Ela nunca tinha ouvido falar de qualquer homem, não importa quão belo ou bravo ou forte ou nobre, que ela seria capaz de amar. No entanto, apesar de solteira, era tão formosa e atraente que deveria ter aprendido as lições do Amor, e ser feliz em ouvilas. Mas ela se recusou a lhes dar qualquer atenção. Agora, o Amor a causaria sofrimento e tentaria vingar-se por toda altivez e desprezo que ela sempre demonstrara perante ele. O Amor mirou bem quando atirou sua flecha no coração dela. Frequentemente empalidecia e era tomada por suores; apesar de si mesma, teria que amar (TROYES, 2004, p. 128, tradução nossa).25

Tocada em seu âmago pelo Amor, Soredamors enamora-se por Alexandre, e vai padecendo fisicamente por não poder professar ao amado seus sentimentos em dúvida de uma suposta reciprocidade do mesmo. No Tractatus de Amore alguns dos ensinamentos de André Capelão são bem específicos, como os que dizem respeito à força que o contato visual do objeto de desejo provoca nos amantes, visto que o sentimento insurgente é “[...] uma paixão natural que nasce da visão da beleza do outro sexo e da lembrança obsedante dessa beleza [...]” (CAPELÃO, 2000, p. 5). Soredamors em uma vã tentativa de resistir aos impulsos do Amor evita repousar seus olhares sobre Alexandre, no entanto “[...] o Amor aqueceu-na em um banho

“She had never heard tell of any man, however handsome or brave or might or noble, whom she would degn to love. Yet in spite of this maiden was so comely and attractive that she should learned Love’s lessons, had she been pleased to hear them. But she refused to pay them any mind. Now Love would cause her suffering and try to take revenge for the haughtiness and scorn she had always shows towards him. Love aimed well when he shot his arrow into her heart. Frequently she grew pale and often broke into a sweat; in spite of herself, she had to love.” 25

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que grandemente a queima e escalda [...]” (TROYES, 2004, p. 128, tradução nossa)26, causando à jovem dama um misto de emoções que dominam seus pensamentos e desejos, uma dicotomia nascente que perpassa todo o seu corpo e ser, pois “[...] em um momento ela regozija-se e no outro machuca-se; em um momento ela deseja, e no outro recusa-se [...] (TROYES, 2004, p. 128, tradução nossa).27 As tensões corporais sentidas por Soredamors refletem um aspecto característico do medievo, onde o embate entre corpo e mente são assuntos retratados de maneira significativa nos romances medievais. As obras imbuídas do ideal cortesão para o Amor tendem a refletir e expor de maneiras específicas os sentimentos, angústias, e desejos de seu público leitor, o que pode ser observado nos mais diversos obstáculos enfrentados pelos amantes em quase todas suas narrativas. Ademais, sobre o embate entre o pensar e o sentir retratado em figuras literárias como Soreadamors, temos aqui um espelho da realidade atravessada do século XII nas atitudes da dama, assegurando o que Jacques Le Goff e Nicolas Truong (2010) comentam sobre o medievo, onde o sofrimento físico e a autoexpiação se fazem presentes como forma de penitência pelos pecados cometidos contra a carne. Isto posto, Soredamors nega-se ao contato visual, corporal e verbal em relação ao amado, como maneira de penitência própria. Por mais puro que seja seu sentimento em relação a Alexandre, não deverá deixar-se enganar pelos anseios da carne: O que vejo me atormenta. Atormenta? Não, não, agrada-me! E se eu ver algo que me atormenta não poderia manter meus olhos cerrados? Teria pouca força de fato e nenhuma autoestima se não conseguir controlar meus olhos e fazê-los pousar em um outro lugar. Desse modo posso me proteger do Amor, que procura controlar-me. O que os olhos não veem nunca doerá no coração. Se eu não vê-lo, então ele nada será para mim. (TROYES, 2004, p. 129, tradução nossa).28

A essa altura da história, Soredamors inquieta-se cada vez mais pelo conjunto de sensações despertadas em si mesma por não saber a maneira certa de agir ou reagir em relação ao que sente por Alexandre. Aqui o Chrétien adentra na narrativa como o elemento observador do casal, pondo em questão o fato do desespero da jovem amante ser compreensível e angustiante pelo fato da mesma não ter conhecimento da reciprocidade existente: Deus! Se ao menos ela soubesse que Alexandre também estava pensando nela! O Amor deu porções iguais daquilo que devia lhes devia. Os tratava de maneira justa e “[...] Love has heated her a bath that greatly burns and scalds her […]”. “[...] in one moment she likes it, and the next it hurts; one moment she wants it, and the next she refuses […]”. 28 “What I see torments me. Torments? No it doesn’t, it pleases me! And if I should see something that torments me, could I not hold my eyes in check? I would have little strength indeed and no self-esteem if I could not control my eyes and make them look elsewhere. In this way I can protect myself from Love, who is seeking to control me. What the eyes do not see can never pain the heart. If I don’t see him, then he’ll be nothing to me.” 26 27

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razoável, visto que se amavam e desejavam um ao outro. Este amor seria certo e verdadeiro se cada um soubesse do desejo do outro. Mas ele não sabia o que ela desejava e ela não conhecia a causa da angústia dele. (TROYES, 2004, p. 129, tradução nossa)29

O jovem Alexandre por sua vez também compartilhava da angústia e do receio de não ser correspondido em seus sentimentos, e até mesmo no cumprimento de suas obrigações de cavaleiro destinava suas conquistas silenciosamente à Soredamors. Para tornar-se digno do amor de uma dama, o cavaleiro teria que constantemente provar seu valor fosse enfrentando batalhas gloriosas, superando obstáculos e armadilhas impostas por terceiros ou mesmo portarse de maneira gentil e educada, num simulacro do ideal cortês para o Amor pretendido. Sobre os mandamentos do Amor que Capelão escreve em seu Tratado, quais destacamos três que ilustram bem a postura de Alexandre: “[...] XIV. A conquista fácil torna o amor sem valor; a conquista difícil dá-lhe apreço. [...] XVIII. Só a virtude torna alguém digno de ser amado. [...] XXIV. Todo ato do amante tem como finalidade o pensamento da mulher amada [...]” (CAPELÃO, 2000, p. 261-262). Embora belo, valoroso e respeitado, Alexandre não possuía a coragem de externar seus sentimentos a ninguém, por isso sofria em silêncio, desejoso que de algum modo Soredamors clamasse por seus olhares muitas vezes desencontrados e reconhecesse ali a ternura, o cuidado e amor que o jovem nutria por ela. Ao contrário de sua amada, Alexandre sabia a causa e principalmente já era versado nos conhecimentos básicos sobre as questões e jogos do Amor, posto que em uma de suas autorreflexões considera-se doente por um mal causado de maneira incisiva: Para algumas doenças não existem curas e a minha situa-se tão profundamente no interior que nunca poderá ser curada. [...] Estou muito doente e não conheço a natureza do mal que põe para baixo e nem sei a fonte da minha dor. Eu não sei? Mas eu sei, ou penso que sei: este mal vem do Amor. Como é possível? Pode o Amor fazer mal? Não é ele gentil e bem-nascido? Pensei que só havia apenas o bem no Amor, mas encontrei no mesmo um grande traidor. Não conhecemos todos os jogos do Amor até tentarmos. Tolo é quem está ao seu lado, porque o ele está sempre tentando prejudicar os seus. (TROYES, 2004, p. 131)30

“God! If only she had known that Alexander was thinking about her too! Love gave them equal portions of what he owed them. He treated them reasonably and rightly, for each loved and desired the other. This love would have been true and right, if each had know the other’s desire; but he did not know what she wished, and she knew not the cause of his distress.” 30 “[...] For some illness there are no cures, and mine lies so deep within that it can never be cured. […] I am very ill and do not know the nature of the malady that has me down, nor do I know the source of my pain. I do not know? But I do, or think I do: this malady comes from Love. How can that be? Can Love do harm? Is he not gentle and high-born? I thought that there was only good in Love, but I’ve founded him to be a great traitor. You cannot know all Love’s games until you have tried them. One is a fool to side with him, because he is always trying to harm his own.” 29

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O jovem amante, agora já ciente da matriz de suas dores amorosas, aceita sua condição de servo do Amor e professa os atributos físicos de Soredamors, o que denota a presença de elementos intrínsecos aos ideais de cortesia: descrição de beleza física, de postura, de qualidades intelectuais, etc. Nos moldes do Amor Cortês, o cavaleiro sempre deve agir de tal modo com sua dama cortejada com o objetivo de demonstrar as características de virtude, honradez e educação já mencionadas. Assim, Alexandre prossegue com seus elogios: Nada é comparado com o brilho dos seus olhos, pois eles brilham como duas velas para que todos possam ver. E qual língua é qualificada o suficiente para descrever a simetria do seu nariz delicado e brilhante face, onde a rosa impregna o lírio e ligeiramente suaviza os seus brilhos para realçar seu rosto? Ou para descrever a boca sorridente que Deus moldou de tal forma que todos que veem pensam que ela está rindo? E os dentes naquela boca? Cada um é bem próximo do outro, de modo que parecem formar uma linha perfeita; e a natureza dá seu toque para adicionar um charme extra: qualquer um que vê seus lábios se separarem, diria que os dentes dela eram marfim ou prata. (TROYES, 2004, p. 133, tradução nossa)31

Posto acima as atitudes, sensações e pensamentos dos jovens amantes, é chegado o momento no romance em que ambos têm a oportunidade, enfim, de professor seus sentimentos. Alexandre como membro da guarda pessoal do rei é designado para acompanhar a rainha Guinevere em uma de suas de suas incursões pelo reino. Soredamors, como dama de companhia, acompanha sua senhora junto das outras aias. Durante o percurso da viagem e após a chegada de todos na região a ser visitada, a rainha não deixa de notar o sofrimento, os olhares ansiosos não correspondidos e os constantes desencontros impostos pelo destino aos jovens. Durante esse ínterim, o reino de Logres (região onde ficava a corte de Artur) é sitiada por barões inimigos desejosos de derrubar o governo do rei britânico. Artur rapidamente ordena a convocação de todos seus cavaleiros para proteger o reino e assim Alexandre parte para assegurar a segurança do rei. Depois da partida do jovem cavaleiro, Soredamors cai em apreensão pelo bem-estar de seu amado, sendo amparada e confortada a todo momento pela figura da rainha que tenta mantê-la tranquila diante da situação de perigo enfrentada por Alexandre. Artur e seus guerreiros conseguem sair vitoriosos contra o levante dos inimigos, com Alexandre tendo um papel decisivo no conflito ao elaborar uma estratégia que dividiu o exército inimigo e facilitou a captura de reféns para dar cabo à disputa. Como forma de tentar

“[...] Nothing is compared to the brightness of her eyes, for they shine like two candles for all to see. And whose tongue is skilled enough to describe the symmetry of her shapely nose and shining face, wherein the rose suffuses the lily and slightly softens its glows to enhance her face? Or to describe the smiling mouth, which God fashioned in such a way that all who see it think she’s laughing? And what of the teeth in that mouth? Each one is right against the next, so that they seem to form a perfect row; and Nature’s handiwork was added to give them extra charm: anyone seeing her lips parted, would say her teeth were ivory or silver.” 31

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recompensar dignamente os esforços e a bravura de Alexandre, o rei oferece ao mesmo a oportunidade de escolher seu prêmio. Em um primeiro momento, Alexandre pensa em Soredamors cogitando a possibilidade de pedir o consentimento e mão da mesma para o rei poder abençoar sua decisão. Porém, receoso de sofrer uma recusa por parte de sua amada e incerto dos sentimentos reais da mesma quanto a ele, prefere que o rei o recompense do modo que julgar melhor: Alexandre não ousou pedir o que realmente queria, pensando que se pedisse ao rei pela mão de sua amada ele a teria. Mas tinha tanto medo de desagradá-la (ela ficaria muito feliz) que preferiu sofrer sem ela do que tê-la contra sua vontade. (TROYES, 2004, p. 149-150, tradução nossa, grifo do autor)32

Ao saber do êxito de Alexandre na batalha, Soredamors acalma seu coração e sentese confortável enfim de ter certeza que o amado estava em segurança. Agora que seus sentimentos sobre o jovem já eram conhecidos pela rainha, a mesma pede permissão para fazer um presente para Alexandre com a condição de que este fosse entregue sob anonimato, pelo mesmo motivo que Alexandre recusou a proposta do rei de pedir o que desejasse: a incerteza de um sentimento recíproco. Guinevere então resolve armar um “embuste” para que Alexandre e Soredamors tenham finalmente a oportunidade de ficarem frente à frente, para que quem sabe assim, confessassem seus desejos um pelo outro. Primeiro, a rainha convoca todos os cavaleiros da guarda real para um jantar em agradecimento pela manutenção da segurança do reino e do rei. Após o banquete, Guinevere chama Alexandre para uma audiência particular ao mesmo tempo que convoca Soredamors para ajudá-la e servi-la ao final da mesma audiência. Encontrando-se finalmente no mesmo ambiente, os jovens não demoram a demonstrar a ansiedade causada pela presença do outro, nervosos para não causarem uma má impressão ou portarem-se de modo inadequado perante a rainha e eles próprios. Guinevere os pede, então, para que a escutem atentamente: A rainha, que não tinha dúvida que eles estavam apaixonados – ele por ela e ela por ele – falou primeiro. Tinha certeza, e não estava enganada, pois sabia que Soredamors não poderia ter um amor melhor que ele. Sentada entre os dois, então, ela começou o discurso mais adequado e oportuno. ‘Alexandre’, disse a rainha, ‘quando machuca e destrói seu seguidor, o Amor é pior que o ódio. Os amantes não percebem o que estão fazendo quando seus sentimentos um do outro. Não é fácil amar e se você não construir corajosamente uma forte fundação, não se pode esperar erguê-la com sucesso em cima disso. [...] Ambos comportaram-se muito tolamente em não revelar seus pensamentos, porque por ocultá-los vocês podem tornar-se a morte um do outro, além de assassinos do Amor. Agora peço-lhes para que não procurem dominar um ao outro, nem meramente satisfazer os seus desejos, mas que prefiram unir-se com honra em casamento. Dessa maneira, parece-me, que seu amor resistirá por muito tempo. “[...] Alexander did not dare request what he really desired, though he knew that if he asked him for his sweetheart’s hand he would have it. But he was so afraid of displeasing her (who would have been overjoyed) that he preferred to suffer without her than haver her against her will.” 32

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Declaro e garanto que, se estiverem dispostos, eu devo organizar o casamento. (TROYES, 2004, p. 151, tradução nossa)33

Alexandre, por sua vez, responde que já que seus sentimentos eram tão fortes a ponto de fazerem notar-se pela rainha, não haveria mais sentido de guarda-los para si. Então, declara suas intenções e desejos em relação à Soredamors, colocando um ponto final em relação às dores e males atravessado por todo o tempo que a amou silenciosamente. Já Soredamors consente com a proposta da rainha e de Alexandre, externando sua vontade ao amante: [...] Soredamors tremeu ao ouvir estas palavras e não recusou a oferta dele. Por meio de suas palavras e sua expressão, ela traiu o desejo em seu coração, para o qual se entregou tremendo, dizendo que sua vontade, seu coração e seu corpo eram inteiramente do controle da rainha, e que ela faria tudo o que esta desejasse. A rainha então abraçou os dois e deu-lhes um ao outro. (TROYES, 2004, p. 151, tradução nossa)34

O casal pôde enfim entregar-se ao sentimento mútuo, onde toda a construção, desenvolvimento e final afirmação do mesmo fez-se existente no fato de que foi necessária a participação de um terceiro personagem – a rainha Guinevere – para fazer com que os entreveros e desentendimentos fossem resolvidos com uma singela “confissão” e reconhecimento do Amor nutrido pelos amantes. A figura do terceiro elemento exterior ao casal nos romances corteses pode ser percebida tanto em casos benéficos, como no presente caso de Alexandre e Soredamors e a figura da rainha enquanto mediadora, mas também pode ser notada como sortilégio empregado para trazer danos e dificuldades ao casal, visto nos romances de Tristão e Isolda, Cligès e Fenice, dentre outros. O objetivo final, porém, é comum à todos: criar uma jornada e uma sucessão de eventos que ponham à prova a fidelidade, veracidade e compromisso que os amantes têm que obedecer para usufruir verdadeiramente o sentimento professo.

“The queen, who had no doubt that they were in love – he with her and she with him – spoke first. She was certain she was not mistaken, and knew that Soredamors could not have a better sweetheart than him. Seated between the two of then, she began a most appropriate and opportune discourse. ‘Alexander’, said the queen, ‘when it hurts and destroys its follower, Love is worse than Hatred. Lovers do not realize what they are doing when they conceal their feelings from one another. It is not easy to love, and if you do not boldly build a strong foundation, you cannot hope to build successfully upon it. […] You are both behaving very foolishly in not revealing your thoughts, for by concealing them you will each be the death of the other, and murderers of Love. Now I urge you not to seek to dominate one another, nor merely to satisfy your desires, but rather join together honourably in marriage. In this way, it seems to me, your love will long endure. I declare and assure you that, if you are willing, I shall arrange the marriage.” 34 “[…] Soredamors trembled upon hearing these words and did not refuse his offer. Through her words and her expression she betrayed the desire in her heart, for she gave herself to him trembling, saying that her will, her heart, and her body were wholly the queen’s to command, and that she would do whatever she wished. The queen embraced them both and gave them to one another.” 33

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3.3

SACRALIDADE VS PAIXÃO: DUALIDADES DA CAVALARIA FEUDAL Não podemos dissociar tais representações deste Amor com o ethos cavaleiresco

em desenvolvimento na temporalidade descrita. Fruto de um contexto de constante disputas territoriais e pela demarcação de determinadas forças no alvorecer do processo de feudalização do Ocidente medieval, os prelúdios que fomentaram a ascensão e consolidação da ordem cavalheiresca na Idade Média seguiram a lógica senhorial de apaziguamento das tensões entre os feudos vizinhos e consequente fortalecimento de suas próprias células feudais no interior da Europa. Para tanto, era necessária uma instituição, um braço armado da aristocracia que representasse e defendesse os interesses senhoriais de modo a preservar toda a estrutura administrativa do período. Surgia então, o “embrião” para a ordem propriamente, e seu ideal representativo, o cavaleiro: [...] o que o termo de cavaleiro queria significar era, antes demais nada, ou uma situação de facto, ou um vínculo de direito, mas puramente pessoal. (...) O conjunto dos cavaleiros investidos constitui uma “ordem”: ordo. Palavras eruditas, palavras da Igreja, mas que encontramos, desde o princípio, nas bocas laicas. Elas não pretendiam, pelo menos aquando do seu primeiro emprego, sugerir uma assimilação pelas ordens sagradas. No vocabulário que os escritores cristãos tinham pedido emprestado à Antiguidade romana, uma ordo era uma divisão da sociedade temporal, assim como da eclesiástica. Mas uma divisão regular, nitidamente delimitada, conforme com o plano divino. Uma instituição, na verdade, e não apenas uma realidade completamente nua. [...] à medida que os meios cavaleirescos adquiriam uma consciência mais nítida do que os separava da massa “sem armas” e os elevava acima dela, fez-se sentir mais imperiosamente a necessidade de sancionar, por meio de um acto formal, a entrada na colectividade assim definida: quer o novo admitido fosse um rapazinho que, nascido entre os “nobres”, obtinha o direito de ser aceite na sociedade dos adultos; quer se tratasse, muito mais raramente, de algum afortunado recém-vindo, que parecia ter-se igualado aos membros das antigas linhagens, pelo poder recentemente adquirido, pela força, ou pela destreza (BLOCH, 2010, p. 371)

Nesse momento, a partir do século XII, a cavalaria ascende como possuidora dos baluartes morais e religiosos que guardará a ordem e a manutenção das estruturas do regime feudal. Destarte, modelos de cavaleiros começam a ser retratados nos escritos da época de modo a observarmos o surgimento de uma ambiguidade que caracterizou o estabelecimento de comportamentos distintos no seio da ordem.35 De um dos lados, o clero medieval, cujo pensamento era que o cotidiano da cavalaria estava impregnado pelo vício, pela luxúria e violência desmedidos, de modo que a

Jean Flori também pontua que tal processo culmina na delimitação específica do acesso à cavalaria aos “nãonobres” em finais do século XII. Como ordem social já estabelecida e dotada de seus códigos morais e de conduta, o braço armado da aristocracia feudal enfim impõe sua dominação na vida cotidiana da sociedade feudal, onde a prestação de vassalagem dos outros nobres e a cobrança de tributos da população campesina eram os dispositivos feudais de afirmação da autoridade nobre na esfera política feudal. C. FLORI, Jean. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005, p. 133-135. 35

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Igreja pregava que salvação da alma passaria pela resistência a todos estes pecados mundanos e às demais tentações que a vida aristocrática oferecia. Um cavaleiro perfeito deveria abster-se de tais práticas de modo a preservar em si os valores cristãos, como a penitência, o jejum, a castidade e sobretudo as orações, de modo a afastar de seu âmago os pecados da carne e imbuirse somente do Espírito Santo como sustentáculo. De modo a controlar o ímpeto violento e empreender uma purificação dos costumes mundanos praticados pelos membros dessa classe, o clero medieval põe-se à frente do quadro social do período e elenca uma série de medidas que tendem a fornecer entornos cada vez mais direcionados a uma cristianização e “domesticação” dessa cavalaria. Entram em cena o que Alain Demurger (2010) denomina de “movimentos paz”, deliberações do clero medieval com o intuito de estabelecer a ordem seguindo as determinações de Deus. Ainda no século X, no Concílio de Charroux (989)36 em virtude dos temores milenaristas, a Pax Dei37 [Paz de Deus] é estabelecida de modo a instituir pela primeira vez períodos de paz obrigatórios, condenando os ataques aos campesinos desarmados, as guerras privadas e o saque de propriedades eclesiásticas. Já no século XI, temos a promulgação de decretos papais sobre a Truce Dei38 [Trégua de Deus], no concílio de Clermont (1095)39. Por meio desses, ficava estabelecido a proibição de atos violentos entre cristãos durante períodos considerados sagrados para o Cristianismo, tais como o Advento, a Quaresma e a festa de Pentecostes, além de abrangerem a interdição de conflitos durante os dias que remetem à Paixão e a Ressureição de Cristo, de quinta a domingo.40

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Concílio convocado pelo bispado francês, na cidade de Poitou, cujo principal objetivo seria a imposição de sanções eclesiásticas à cavalaria feudal caso essa se juntasse aos ataques generalizados às populações pobres, salvaguardo, porém, o monopólio e uso de armas somente aos homens membros desse grupo social específico para o combate dos malfeitores. 37 A Paz de Deus foi a primeira resolução do Concílio de Charroux, obtendo êxitos apenas em âmbito local, devido à forte influência da Igreja cristão nas paróquias interioranas onde a autoridade real não possuía tanto poder de atuação. 38 A Trégua de Deus, por tratar-se de uma delimitação maior do que seria de fato a definição das ordens militares na Idade Média, ressoou mais significativamente no Ocidente medieval, delimitando melhor as proposições dos movimentos da Paz de Deus e estabelecendo uma espécie de “calendário de combate” para que a cavalaria feudal respeitasse os períodos de paz das festas cristãs. 39 Concílio convocado pelo papa Urbano II para que dentre outras deliberações, acabou por servir de ponto de partida para o movimento cruzadista europeu, conclamando que aqueles que fossem à Terra Santa para liberta-la do julgo pagão e para defender os peregrinos que para lá se dirigiam, seriam oferecidas indulgências plenárias em caso de retorno. 40 Paradoxalmente, ainda no Concílio de Clermont, Urbano II proclama e exorta os cristãos para o advento da I Cruzada (1096-1099). Seguindo o raciocínio de Dominique Barthelémy (2010, p. 325-326), o intuito da Igreja cristã nesse início do século XI seria promover a unidade da Cristandade em torno de si mesma - coibindo a violência mútua entre irmãos de fé - ao mesmo tempo que a moldava para combater os “inimigos” da fé cristã encarnados na figura dos muçulmanos que detinham o controle da Terra Santa no período.

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Tal raciocínio teve ainda como sustentação os processos de modificação no clero medieval, no final do século XI e início do XII conhecidos como reformas gregorianas (10491119). Dominique Barthelémy (2010, p. 290) afirma que esse processo se tratou de um amplo conjunto de reformas destinado a “[...] submeter mais o clero ao papado e os laicos ao clero, em vista de um aperfeiçoamento, de uma purificação dos costumes [...]”. Tal “purificação” seria notada no constante esforço clerical em cristianizar e submeter a incipiente nobreza cavaleiresca sob seus votos, regras e posturas cotidianas, a exemplo da Trégua de Deus que “[...] interrompe uma guerra feudal já moderada, no espírito de um esforço de abrandamento dos Cavaleiros, ao passo que a cruzada lhes propõe tornarem-se mais duros, em um tipo novo de guerra [...]” (BARTHELÉMY, 2010, p. 317). A preocupação da Igreja cristalizou-se não apenas nas próprias medidas já anunciadas e expostas acima, mas também no campo das letras. Não raro, os clérigos medievais impulsionaram uma sorte de cavaleiros a lutarem e protegerem a herança cristã da ameaça iminente de uma desvirtuação dos costumes, do surgimento das primeiras heresias e também do combate à própria parcela de cavaleiros que não seguiam o ideal cristão de pureza, de castidade e honradez nos seus combates. A concepção inicial dos “soldados de Cristo” já estava presente nas Sagradas Escrituras, quando São Paulo em Ef 6,11.13-17 escreve sobre as atribuições do verdadeiro cristão, um combatente devidamente armado pela fé e pela palavra de Deus: Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para poderdes ficar firmes contra as ciladas do Diabo. [...] vesti toda a armadura de Deus, a fim de que possais resistir firmemente no dia mau e, havendo batalhado até o final, permanecereis inabaláveis, sem retroceder. Estai, portanto, firmes, trazendo em volta da cintura a verdade e vestindo a couraça da justiça, calçando os vossos pés com a proteção do Evangelho da paz, embraçando sempre o escudo da fé com o qual podereis apagar todas as setas inflamadas do Maligno. Usai igualmente o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus. 41

Seguindo a linha teológica de Paulo, a figura de São Bernardo 42 sobressai-se entre muitas quando este escreve aos membros da “nova milícia de Cristo”, exaltando os valores e deveres desse “braço” cavaleiresco que irrompe no século XII:

Cf. EFÉSIOS. In: Novo Testamento – King James. Trad.: Comitê Internacional e Permanente de tradução e revisão da Bíblia King James Atualizada (KJA/Sociedade Bíblica Ibero-Americana). São Paulo: Abba Press, 2007, p. 456. 42 São Bernardo de Claraval (1090-1153) foi um abade francês da ordem cisterciense e um dos doutores da Igreja. Responsável pela reformulação da Ordem de Cister, ajudou na consolidação dos ideais monásticos e ascéticos no âmbito das ordens religiosas cristãs. O tratado aqui mencionado foi escrito no século XII (entre 1120 e 1136, não se sabe ao certo) por São Bernardo direcionado ao líder e cofundador da Ordem dos Cavaleiros Templários, Hugo de Payens, sobretudo para elevar o moral dos templários durante a Segunda Cruzada. Os templários questionavam se estaria correto que uma ordem religiosa se envolvesse em combate militar, contrariando assim os dogmas e 41

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Marchai confiantes, pois, cavaleiros, e combatam os inimigos da cruz de Cristo com um coração abrasado. Saibam que nem a morte e nem a vida podem separá-los do amor de Deus, que se faz presente em Jesus Cristo, e proclamem diante do perigo: ‘Quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor!’. Gloriosos ao retornar vitoriosos de tal batalha! Abençoados ao perecerem ali como mártires! Alegra-te, bravo combatente, se vives e conquistas no Senhor e exalta-te ainda mais se morres e te juntas a Ele. A vida, de fato, é algo fortuito e a vitória é gloriosa, mas uma morte sacra é mais valorosa que ambas. Porque bem-aventurados são aqueles que perecem no Senhor, mas mais ainda aqueles que sucumbem por Ele! (CLAIRVAUX, 2000, p. 25, tradução nossa)43

Além dos escritos eclesiásticos, aos poucos a literatura medieval foi incorporando elementos religiosos em seus romances, poemas e canções. Uma boa parcela dos romans medievais foi produzida e destacada para servir como suporte de divulgação dos ideais monásticos e virtuosos pregados pela Reforma Gregoriana, sobretudo pelo fato de que a própria literatura fornece modelos de representação do social em suas obras. Um dos romances cujo acepção e louvor a esse ideal premeditado pelo clero e por São Bernardo é a A Demanda do Santo Graal.44 Como muitas das novelas de cavalaria contemporâneas à sua época, sofreu um processo de cristianização na incorporação de seu texto, sobretudo para substituir os elementos culturais celtas presentes quando da elaboração original da obra, escrita em francês no século XIII, mas traduzida para o galego-português na metade da centúria seguinte.45 A narrativa da DSG nos apresenta o cavaleiro ideal, o eleito, aquele que possui em sua essência todos os valores descritos que enfim significam ser um soldado de Cristo e para Cristo. Galaaz reúne em sua figura os dois lados da cavalaria medieval no século XIII: o ideal monástico e regrado e a destreza em combate, a perícia em armas e a bravura necessárias para ser um cavaleiro. Durante toda a narrativa, os cavaleiros que partem na jornada de recuperação

pressupostos da religião cristã. São Bernardo divide o tratado em duas partes: na primeira compara os cavaleiros templários aos cavaleiros comuns, e critica estes por se deixarem levar pela vaidade, luxúria e violência gratuita, colocando assim os templários em um patamar superior de virtude. Na segunda parte, São Bernardo descreve os lugares sagrados da Terra Santa e exorta a nova cavalaria cristã a agir como os guardiões da herança sagrada do Cristianismo. 43 “[...] Go forth confidently then, you knights, and repel the foes of the cross of Christ with a stalwart heart. Know that neither death nor life can separate you from the love of God which is in Jesus Christ, and in every peril repeat, ‘Whether we live or whether we die, we are the Lord's.’ What a glory to return in victory from such a battle! How blessed to die there as a martyr! Rejoice, brave athlete, if you live and conquer in the Lord; but glory and exult even more if you die and join your Lord. Life indeed is a fruitful thing and victory is glorious, but a holy death is more important than either. If they are blessed who die in the Lord, how much more are they who die for the Lord!”. 44 A partir desse momento chamaremos apenas de DSG, de modo a dinamizar a leitura do texto. 45 Utilizaremos aqui uma versão modernizada em português do texto originário do século XV da Demanda, traduzida diretamente do francês, cuja organização e modernização do texto se dá pelo professor Heitor Megale (filólogo da Universidade de São Paulo e professor titular do departamento de letras português da mesma universidade). Tal versão foi elaborada de acordo com o texto de maior conservação da DSG (Demanda do Santo Graal), que se encontra atualmente na Biblioteca Nacional de Viena.

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do cálice buscam obter a perfeição espiritual, estágio somente alcançado por aquele que possuir em sua essência os valores castos, cristãos e ligados à humildade, bravura, e pureza de coração. Mesmo concebido como fruto de um adultério entre Lancelote e a rainha Helena de Corbenic, Galaaz tem sua figura exaltada desde o início da DSG, quando por exemplo, é sagrado cavaleiro pelas mãos de seu pai e de um ermitão do mosteiro onde passou boa parte de sua formação: Porque Deus te fez nascer em tal pecado como sabes, para mostrar seu grande poder e virtude, te outorgou, por sua piedade e pela boa vida que começaste desde a infância até aqui, poder e força e bondade de armas e bravura sobre todos os cavaleiros que, em qualquer época, trouxeram armas no reino de Logres; assim darás cabo a todas as outras maravilhas e aventuras que todos os outros falharam e falharão. (MEGALE, 2008, p. 17)

Fica claro na fala do monge que Galaaz está destinado a realizar grandes feitos e angariar novas conquistas para o reino, de modo que mesmo sendo gerado no pecado (adultério) pode muito bem redimir-se perante o empenho, devoção e manutenção dos ideais eclesiásticos que foram ensinados ao mesmo desde menino. Eis o novo soldado de Cristo: um mongeguerreiro. Aqui jaz o antagonismo da DSG com as outras novelas de cavalaria do século XII e até mesmo às suas contemporâneas, onde o ideal de cavaleiro perfeito modifica-se e cristalizase num conceito onde “[...] contrasta a cavalaria inspirada pelo amor divino [...] com aquela inspirada pelo amor mundano [...]” (RALLS, 2007, p. 154). O próprio São Bernardo já alertara anteriormente quanto ao ideário mundano ao qual julgava pertencer os cavaleiros passionais: Que seria, então, ó cavaleiros, este erro monstruoso e esta vontade insurgente que os impelem a lutar com tanta pompa e fervor, sem nenhum propósito exceto a morte e o pecado? Vocês cobrem seus cavalos com seda e emplumam suas armaduras com vários tipos de trapo que desconheço; pintam seus escudos e suas selas; adornam as rédeas e suas esporas com ouro, prata e pedras preciosas e, em seguida, com toda essa glória se apressam para sua ruína com uma fúria temível e loucura desmedida. São estes os equipamentos de um guerreiro ou não são eles, por sua vez, as bijuterias de uma mulher? Pensam vocês que as espadas de seus inimigos serão detidas por seu ouro, defletidas por suas joias e incapazes de penetrar suas sedas? [...] Então por que cegar-vos com trajes efeminados, embaraçar-se com longas túnicas, e envolver suas fracas e delicadas mãos em grandes véus? Acima de tudo, há uma terrível insegurança de consciência, mesmo com todo seu equipamento, uma vez que se atreveram a empreender tão perigoso assunto com razões menores e frívolas. (CLAIRVAUX, 2000, p. 47, tradução nossa).46

“What then, o knights, is this monstrous error and what this unbearable urge which bids you fight with such pomp and labor, and all to no purpose except death and sin? You cover your horses with silk, and plume your armor with I know not what sort of rags; you paint your shields and your saddles; you adorn your bits and spurs with gold and silver and precious stones, and then in all this glory you rush to your ruin with fearful wrath and fearless folly. Are these the trappings of a warrior or are they not rather the trinkets of a woman? Do you think the swords of your foes will be turned back by your gold, spare your jewels or be unable to pierce your silks? [...] 46

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O cotidiano da cavalaria medieval estava impregnado pelo vício, pela luxúria e violência desmedidos, de modo que a Igreja pregava que salvação da alma passaria pela resistência a todos estes pecados mundanos e às demais tentações que a vida aristocrática oferecia. O cavaleiro perfeito deveria abster-se de tais práticas de modo a preservar em si os valores cristãos, como a penitência, o jejum, a castidade e sobretudo as orações, de modo a afastar de seu âmago os pecados da carne e imbuir-se somente do Espírito Santo como sustentáculo. Não obstante, Galaaz teve de enfrentar durante toda sua jornada na DSG situações que tentaram afastá-lo de seus princípios cristãos. Uma dessas situações ocorre quando Galaaz e um outro companheiro da Távola Redonda, Boorz, encontram abrigo no castelo do rei Brutos, durante a querela pelo Graal. Quando bem recebidos e devidamente assentados para descansar após longa jornada, a filha do rei, de apenas quinze anos, enamora-se de Galaaz durante o jantar de confraternização entre os hóspedes e o anfitrião. Tomada por voraz paixão, a princesa resolve por entregar-se a Galaaz durante a noite após o banquete, convicta de que por ser “[...] a mais formosa donzela do reino de Logres [...]” (MEGALE, 2008, p. 111) o cavaleiro a tomaria em seu leito de bom grado. Ao deixar seus aposentos e dirigir-se aos de Galaaz, a princesa deita-se ao seu lado e põe a mão sobre seu corpo para acordá-lo, quando sente o tecido áspero da estamenha que Galaaz costuma usar por debaixo da armadura.47 Envolta em surpresa, a princesa percebe que aquele cavaleiro se distingue dos outros cavaleiros “andantes”, por levar consigo os ideais de ascetismo e pureza também nas suas vestes: [...] Não é ele cavaleiro dos andantes, que dizem que são enamorados, mas é daqueles cuja vida e alegria está sempre em penitência, pela qual lhes advém grande bem para o outro mundo, e perdoa Deus aqueles que erro tiverem feito contra ele. (...) E como quer que este cavaleiro seja alegre para parecer, grande é o sofrimento de sua carne e mostra bem que o seu coração pensa em coisa diferente do que minha carne mesquinha já pensava. Este é um dos verdadeiros cavaleiros da demanda do santo Graal e em má hora foi tão formoso para mim. (MEGALE, 2008, p. 115)

Then why do you blind yourselves with effeminate locks and trip yourselves up with long and full tunics, burying your tender, delicate hands in big cumbersome sleeves? Above all, there is that terrible insecurity of conscience, in spite of all your armor, since you have dared to undertake such a dangerous business on such slight and frivolous grounds.” 47 Estamenha é um tipo de hábito costumeiramente utilizado por frades e membros do baixo clero no medievo, é caracterizado por ser feito de lã, dando assim um aspecto áspero e rústico para quem o veste. A metáfora da estamenha de Galaaz é justamente dotar o cavaleiro de um ideal ascético e monástico, pois o mesmo adorna-se sem luxo, utilizando ao contrário, roupas de monge para demonstrar sua virtude e castidade.

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A conduta cavalheiresca de Galaaz também é observada quando este encontra-se em posição de combate. Após passar uma noite em um castelo de um antigo vassalo do rei Artur, Galaaz é desafiado pelos guerreiros do senhor para um duelo. Galaaz é então forçado a defender-se contra os ataques de modo a revelar sua habilidade em armas, quando ataca o grupo de cavaleiros: E Galaaz tornou a ele e o feriu tão bravamente que lhe rompeu a loriga e o escudo e meteu-lhe o ferro da lança pela costa esquerda, (...) depois disso derribou-o em terra, que o fez sair dentre os arções, e ficou todo quebrantado da queda. E quando os outros o viram cair em terra, deixaram-se correr a Galaaz e quebraram nele as lanças, mas da sela não o moveram e outro mal não lhe fizeram, porque era de ânimo forte e de maior força que outro qualquer; e deixou-se correr a um deles e feriu-o tão rijamente que o deitou em terra do cavalo ferido à maravilha, e a lança voou em pedaços; e depois meteu a mão à espada e quis ir contra aquele outro, mas ele, quando o viu vir e viu que tinha feito tais dois golpes, não o quis esperar e começou a fugir para o castelo. (MEGALE, 2008, p. 86)

Um último guerreiro investiu contra Galaaz, mas este “[...] alçou a espada, [...] e feriu-o tão violentamente que lhe fendeu o elmo e o escudo pelo meio, e Dalides, que o não pôde suportar, caiu em terra desmaiado e saiu-lhe o sangue pelas narinas e pela boca porque ficou quebrantado do golpe e da queda [...]” (MEGALE, 2008, p. 87). Questionado por seu escudeiro por quê não desferira logo o golpe fatal, Galaaz responde: “[...] Se Deus quiser, não porei mais a mão nele, porque matar tal cavaleiro seria a maior maldade do mundo. Mas vamonos daqui, porque eu não quisera fazer tanto quanto fiz [...]” (MEGALE, 2008, p. 87). A decisão de Galaaz converge com aquilo que São Bernardo exigia dos combatentes de Cristo. A nova cavalaria deveria distinguir-se dos outros por sua coragem, sim, mas também por sua moral e piedade em batalha. Por isso renegava os combatentes que se entregavam às pulsões violentas. O abade pregava ainda que a “milícia de Cristo” teria em suas linhas soldados justos, tementes a Deus e combatentes tranquilos, tal como Galaaz e suas ações em combate demonstram ao longo de toda a DSG. Se temos na figura de Galaaz os ideais prescritos pelo corpo clerical no medievo como meios de orientação à cavalaria, temos no outro lado da disputa o modelo cortês, o amante-herói, o cavaleiro que imbuído do ideal do Amor Cortês busca nas justas e na conquista de seu prêmio o afeto e predileção de sua dama proibida. Evocamos mais uma vez a figura de Tristão para abordar características dessa representação cavalheiresca na literatura do período. Um traço que o Amor Cortês suscitava era a fidelidade concreta do amante para com sua dama, característica marcante na relação entre Tristão e Isolda, visto que Capelão no Tractatus já comentava que:

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Há também uma outra coisa no amor que merece mais que um rápido louvor: de algum modo ele ornamenta o homem com a virtude da castidade, pois aquele que é iluminado pelos raios do amor a custo pode pensar em estar nos braços de outra mulher que não seja sua bem-amada, por mais bela que seja essa mulher. Isto porque quando o amante está pleno de amor, qualquer outra mulher lhe parece feia e desprovida de atributos. (CAPELÃO, 2000, p. 13)

Dentre as características que diferem Tristão de Galaaz, muitas podem ser descritas como frutos do surgimento de sua paixão por Isolda. André Capelão, em seu Tractatus de Amore (século XI) afirma que “quando vê que uma mulher é digna de ser amada e convém a seu gosto, o homem logo começa a desejá-la em seu coração; depois, quanto mais ele pensa nela, mais se abrasa de amor por ela, até que seu pensamento seja de todo invadido por esse amor” (CAPELÃO, 2000, p. 8). Tristão age dessa maneira em sua paixão. Busca de todas as formas “servir” sua rainha, acalmar seu próprio ser, por saber em seu íntimo que tal relação se trata de algo proibido, perigoso e até infiel para com tudo aquilo que ele próprio fora educado para não fazer. Tristão é fiel e devoto de corpo e alma à amada. Tal premissa nos remete à dualidade que atravessa o ocidente medieval: as tensões entre o espírito e a carne. Como Tristão poderia ter paz sobre seu espírito sabendo que seu desejo e sua paixão por Isolda o levava a sucumbir perante os pecados do corpo? Jacques Le Goff aponta que durante o medievo são até mais comuns “as tensões no interior do próprio corpo” visto que “[...] de um lado, o corpo é desprezado, condenado, humilhado. A salvação, na cristandade, passa por uma penitência corporal [...]” (LE GOFF; TRUONG, 2010, p. 11). Embora seu espírito esteja em constante tormento devido às circunstâncias que envolvem sua relação com Isolda, Tristão só encontra a paz e satisfação quando nos braços de sua amada, pois atende também a uma das já mencionadas regras do Amor Cortês: “[...] XXIV. Todo ato do amante tem como finalidade o pensamento da mulher amada [...]” (CAPELÃO, 2000, p. 262). Desse modo, como um cavaleiro dessa estirpe, Tristão põe seu corpo e espírito para obter a aprovação e o sentimento de Isolda, como demonstrado quando conta à amada alguns dos desafios que enfrentou por ela: [...] certo dia, duas andorinhas voaram até Tintagel para levar um dos teus cabelos de ouro. Acreditei que vinham anunciar-me paz e amor. Por isso vim à tua procura, atravessando o mar. Por isso enfrentei o monstro e seu veneno. Olha este cabelo costurado entre os fios de ouro do meu casaco; a cor dos fios de ouro estragou-se; mas o ouro do cabelo não desbotou. (BÉDIER, 2012, p. 25)

Distinguindo-se de Galaaz, Tristão se entrega à paixão que emana de seu ser, colocando sua segurança em perigo, mas nunca negando a raiz de seu sentimento e sendo por ele guiado constantemente em direção aos braços de Isolda. Como figura literária, Tristão nos

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apresenta o modelo contraposto, aquele que sucumbe às pulsões da carne, que norteia seu viver baseado no próprio convívio com a figura desejada e amada, exemplificando o Amor-Paixão, mesmo sabendo que tal relação com Isolda não logrará devido às artimanhas do destino e até mesmo que a própria estrutura do romance cortês possui de estabelecer por muitas vezes vínculos impossíveis para serem contemplados ainda em vida. Ainda assim, ambas as ações de Tristão e Isolda seguem o que já estava postulado no Tractatus De Amore, pois “[...] haverá algum outro bem sob o céu pelo qual um homem queira enfrentar tantos perigos quanto aqueles a que vemos sempre os amantes se expor de livre vontade? [...]” (CAPELÃO, 2000, p. 9). Ambos abraçam seu destino, padecem sobre as escaramuças que o próprio lhes impôs, mas ao final partem em paz, despertando um sentimento naqueles que ouviam ou liam sobre o conto trágico de amor entre os dois, de liberdade, desprendimento das convenções sociais e subsequentemente de oposição ao julgo da Igreja e seus modelos de comportamento já mencionados.

4 NOS SALÕES DA CORTESIA: RECEPÇÃO E REPRODUÇÃO DO AMOR CORTÊS NA SOCIEDADE FEUDAL Nos capítulos precedentes discutimos a análise estrutural e conjuntural dos elementos históricos que deram fomento à literatura cortesã no seio da sociedade aristocrática francesa, ancorada em processo de amálgama dos elementos orais de transmissão até sua sedimentação e estabelecimento de uma cultura escrita que deu formato às variadas nuances culturais que eram representadas nas obras literárias do século XII. Tais componentes – a dinâmica feudal (séculos X-XII); o aparato oral/escrito na produção de uma literatura cortês, a “domesticação” dos impulsos viris da cavalaria e as representações literárias da nobreza feudal – foram apresentados mediante o debate levantado em todo o decorrer do trabalho, com a crítica das fontes e suas manifestações da sociedade aristocrática por intermédio do imaginário social existente sobre as formas, as posturas e os códigos comportamentais de homens e mulheres nobres da França segundo o ideal do Amor Cortês, balizando a problemática discutida. Os romans, como mencionados no primeiro capítulo, apresentaram-se como ferramentas de expansão do elemento da escrita na sociedade medieval, sobretudo a partir da metade do século XII, onde passam a circular nos ambientes palacianos graças ao patronato dos senhores feudais em relação à artistas, intérpretes e literatos para produzirem obras de cunho enaltecedor, pedagógico e condizentes ao retrato polido, refinado e elegante em que damas e

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cavaleiros eram os personagens centrais dessas aventuras. Tendo em vista os seguintes aspectos, os romans elaborados a partir de 1191 - data aproximada da circulação do último romance (inacabado) de Chrétien de Troyes, Perceval ou le Conte du Graal [Percival e o Conto do Graal] acabam por seguir a influência desse autor e a destinar seus esforços para uma reconstrução dos romances arturianos de Chrétien de modo a acrescentar aspectos sociais de modo mais proeminente nas linhas de suas produções: Nos cinquenta anos de 1191 a 1240 o romance arturiano era a moda vigente na França e nenhum escritor podia escapar da influência de Chrétien. Alguns, [...] deliberadamente buscaram rivalizar com o mesmo, infrutiferamente em uma tentativa de superar o mestre. Outros – a maioria – lisonjearia sua memória por meio de imitações do seu trabalho. Entre os temas introduzidos pela primeira por Chrétien encontrados em mais de um romance que o sucederam estão o torneio em que o herói luta incógnito (Cligés), o concurso do pardal-falcão (Érec), o rapto (Lancelote, o cavaleiro da carroça), o temperamento desagradável de Sir Kay (Érec; Lancelote; Perceval e o Conto do Graal) e as cabeças de cavaleiros empaladas em estacas. (KIBLER, 2004, p. 21, tradução nossa, grifos do autor)48

Desse modo, na virada do século XII para o XIII temos um aprofundamento e maior desenvolvimento das temáticas arturianas advindas da escrita de Chrétien, mas do mesmo modo o irromper de um modelo de escrita que aglutinaria os fatores supracitados ao cotidiano e à vida feudal em sua essência dinâmica, onde os retratos aristocráticos se juntariam aos retratos “populares” que advinham do lado de fora dos muros senhoriais. A esta altura, os romans apresentam em suas linhas variadas formas de narrar as aventuras dos casais enamorados, passando também a descrever aspectos mais profundos do cotidiano medieval, como o sistema político, jurídico e até mesmo o funcionamento das alianças estabelecidas nas cortes feudais por intermédio do matrimônio. Sendo assim, este capítulo tratará de tais temas e de sua relação com o meio social de reprodução destas obras, onde abordaremos o limiar desse processo gradual de (re)modelação narrativa na estrutura dos romans, elegendo como símbolo desse desenvolvimento o Roman de la Rose [Romance da Rosa] e sua construção gradativa, a representação dos modelos aristocráticos e populares presente nas personagens literárias do mesmo, sua recepção para além das cortes nobiliárquicas e as implicações de sua circulação nos demais estratos sociais do medievo como parte do

“In the fifty years from 1191 to 1240 Arthurian romance was the prevailing vogue in France, and no writer could escape Chrétien’s influence. Some, […] deliberately set out to rival him, fruitlessly attempting to surpass the master. Others – the majority – flattered his memory by their imitations of his work. Among the motifs first introduced by Chrétien that are found in more than one romance after him are the tournament in which the hero fights incognito (Cligés), the sparrow-hawk contest (Erec), the abduction (The Knight of the Cart), Sir Kay’s disagreeable temperament (Erec, The Knight of the Cart, The Story of the Grail) and the heads of knights impaled in stakes (Erec).” 48

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processo de expansão da leitura e da familiarização do elemento da cultura escrita nessa temporalidade. 4.1

O CENÁRIO CORTÊS NO SÉCULO XIII Partindo da dinâmica apresentada no capítulo 1 sobre o florescer do feudalismo e

de suas implicações para os centros urbanos difusores de uma cultura escrita na Idade Média Central (séculos X-XIII), adequa-se ainda uma breve discussão historiográfica sobre tal recorte, em que elencamos a partir do Ano Mil a perspectiva de “mutação feudal” (DUBY, 2011) em contraparte a uma “mutação cavaleiresca” no medievo Ocidental, sobretudo na França (BARTHELÉMY, 2010). A partir dessa discussão, compreendemos como a cultura cortesã fixou-se em primeiro instante nas cortes palacianas da França meridional, dominadas a partir de 1154 em maioria pela dinastia dos Plantagenetas que como forma de auto afirmar seu prestígio enquanto senhores eminentemente distintos, acabaram por fomentar a produção de obras cujo teor condiziam com os pressupostos da cultura cortês aristocrática: No Sul, com efeito, as modas amorosas tinham nascido, nas cortes em que, por volta de 1100, o duque da Aquitânia [Guilherme IX (1071-1126), o trovador] reunia uma juventude menos violenta, e não no meio dos campos mas nas cidades, onde, como em Poitiers por exemplo, as formas urbanas implantadas por Roma sobreviviam melhor, onde chegavam também alguns ecos da alta cultura da Andaluzia muçulmana. O erotismo cortês permaneceu durante meio século uma particularidade da cultura meridional. Depois, quando o processo agrícola transferiu os centros de desenvolvimento para o norte do Loire, ela se difundiu aí. Princesas, com certeza, ajudaram em sua difusão, Leonor da Aquitânia [neta de Guilherme IX], quando ela desposou Henrique Plantageneta [1152], conde de Anjou, duque da Aquitânia, rei da Inglaterra, e depois suas filhas, casadas com grandes senhores feudais de “langue d’oui”. (DUBY, 2011, p. 86, grifos nossos)

Tal cenário era ainda justificado pela irrupção da cavalaria medieval comentada no capítulo anterior, mas que aqui adentra como sendo apenas uma parte da gama de processos envolvendo a remodelação das estruturas sociais vigentes – em que recentes debates pela historiografia medieval consideram mais fortuito analisar tal remodelamento a partir das ameaças externas impostas a este grupo - promovendo uma (re)leitura do período descrito a partir da ótica de uma demarcação de suas condições de existência, em que para alguns historiadores, torna-se indispensável para a análise da virada do século XII para o XIII graças à força cultural que o referido grupo provocou no seio social do medievo: [...] a França do século XII merece nossa atenção. É da França que parte o maior número de cruzados, Cavaleiros que acreditam lutar com valentia por uma causa justa, obtendo a estima dos próprios sarracenos, eclipsando as tropas a pé que os apoiam. [...] É o momento da ascensão da vida de corte junto à príncipes e barões, em que damas estão presentes, onde se ama escutando a narrativa do heroísmo de Rolando e as proezas de Lancelote. [...] as boas maneiras e os códigos de competição entre Cavaleiros são muito valorizados, o que estabelece um claro e novo aos ideais de

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dureza guerreira herdados da alta Idade Média germânica ou romano-bárbara. [...] Certamente é necessário atribuir a mutação Cavaleiresca do ano 1100 a outra coisa que não o surgimento da classe de Cavaleiros. Nós deveremos muito mais ligá-las de forma geral às ameaças que pesavam sobre essa classe, às concorrências que sofria, e ver aí eventualmente alguma coisa como uma aposta na demonstração de força e no esforço dessa classe para se justificar. (BARTHELÉMY, 2010, p. 15-18)

Figura 5 – Mapa do território francês no século XII divido a partir das principais cortes senhoriais do período, destacando os domínios da dinastia Plantageneta.

Fonte: Acesso em: 01 fev, 2017.

Desse modo, aos argumentos apresentados consideramos que tanto “[...] o que chamamos de feudalismo deixava os trabalhadores quase nus, a fim de que belos cavaleiros, de mãos brancas, pudessem deitar suas amigas sobre a romaria primaveril e fazer com elas, com certo refinamento, o amor [...]” (DUBY, 2011, p. 77) mas também o que tomamos por um “[...] grande fato cultural do século XII Francês não é tanto a invenção de uma Cavalaria romanesca, estilizando e idealizando aquela dos torneios e das cortes, quanto à proliferação de Cavaleiros imaginários [...]” (BARTHELÉMY, 2010, p. 460, grifos do autor). E é a partir de tais considerações que o século XIII acentua e dinamiza os processos de circulação dos ideais cavaleirescos e da cultura romanesca, tendo agora como principal palco de propagação as cortes da França setentrional, na região da Île-de-France, ou seja, a Paris capetíngia. Tal localidade, fiel às tradições carolíngias que ali estabeleceram sua corte real, tinham como elementos proeminentes uma valorização voltada ao aparato militar e à influência litúrgica em suas obras, devido à presença constante dos clérigos e da Igreja cristã em torno dos castelos senhoriais na região.

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Durante o reinado de Filipe II da França (1165-1223), compreendido entre 11801223, a nobreza capetíngia enfrentava dificuldades em relação ao enfraquecimento do poder real na região, haja vista que mesmo no Norte francês, territórios como o ducado Normandia, os condados de Anjou e Flandres – com os primeiros sendo de posse do rei Henrique II da Inglaterra - e a região da Bretanha competiam pelo poder administrativo da região, graças ao aparato militar, política e cultural que seus senhores dispunham em relação à corte parisiense. Embora isoladas não dispusessem de força suficiente para sobrepor-se ao rei, caso estabelecessem alianças entre si poderiam, de fato, ameaçar de modo mais contundente a dinastia capetíngia e o domínio senhorial do rei na região. Tendo em vista a situação delicada, Filipe II busca por sua vez endurecer o jugo sob seus vassalos, convocando alianças e envolvendo em disputas com os barões da França de modo a buscar apoio e implodir gradativamente o poderio dos duques e demais condes que visavam à conquista de Paris. Durante os anos de 1186-1188, Filipe II envolve-se no conflito contra as forças de Henrique II da Inglaterra, alcançando vitória e anexando de vez os territórios normandos, o condado de Anjou, de Flandres, a Bretanha e, por conseguinte, a região da Aquitânia ao sul, devido ao casamento de Henrique com Leonor. Aproveitando-se das oficinas de produção e da conjuntura cultural de tais localidades, Paris aos poucos incorpora os elementos até então exógenos em relação ao culto das justas amorosas, das aventuras heroicas da cavalaria e dos contos de amor envolvendo jovens damas e cavaleiros em busca da consumação de um amor por muitas vezes considerado proibido. Apropriam-se enfim, da “linguagem das cortes” do Sul, e acrescentam eles próprias novas variantes, situações, descrições e representações acerca do ambiente palaciano agora em pleno desenvolvimento. E é nesse contexto que surge um roman que condensa as características dos romances arturianos de Chrétien de Troyes, ao mesmo tempo em que dota de maior complexidade narrativa as condições de materialidade e do imaginário dos estratos sociais que não somente a aristocracia, visando uma ampliação quanto ao público-alvo previamente selecionado por seus criadores, que é o Roman de la Rose [O Romance da Rosa]. 4.2

ADENTRANDO NO JARDIM DO AMOR: O SONHO ALEGÓRICO DA CORTESIA

NO ROMAN DE LA ROSE O Roman de la Rose [Romance da Rosa] é um poema em verso originário do século XIII que está dividido em duas partes de diferente autoria. A primeira parte do Roman é escrita na década de 1230, quando Guillaume de Lorris poeta francês e cortesão do rei Luís IX da

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França, também conhecido como São Luís, elabora cerca de 4000 versos para seu poema, descrevendo que nele “[...] estará contida toda a arte do amor[...]” (LORRIS; MEUN, 2001, p. 9). A segunda parte do Roman é retomada e terminada por Jean de Meun poeta e literato francês que a escreve por volta de 1268-1285, dando sua contribuição para cerca de 17000 versos ao poema. As duas partes do poema diferem quanto à estrutura narrativa e também quanto às concepções de mundo dos autores. Se na primeira parte Lorris dedica seus versos a um sonho alegórico do Amor Cortês, de Meun em sua parte descreve minuciosamente quase todos os aspectos da vida medieval, passando desde as relações amorosas até mesmo ao sistema jurídico do medievo (NICOLS, 2006). Entretanto, ambas as partes focam sua ideia principal na narrativa cortesã e na descrição dos efeitos que o “fino amor” provoca naqueles que por ele são atingidos, que utilizando do recurso de “[...] um sonho alegórico sobre a vida nas cortes palacianas da França medieval do século XIII, relata as posturas, códigos e normas dos homens e mulheres nobres e sua relação com o chamado Amor Cortês [...]” (SPINA, 1997, p. 26-27). A narrativa mediada pelo sonho e pela utilização da alegoria enquanto figura narrativa de linguagem, acaba por fornecer ao Roman de la Rose uma gama de personagens a serem identificados mediantes aproximações e representações de imagens e símbolos integrantes do cotidiano feudal, como a Beleza, a Avareza, a Crueldade, a Inveja, o Divertimento, o Bom Aspecto, etc. Portanto, temos uma variedade existente na formulação de um discurso específico para retratar tais figuras, sendo esse “discurso alegórico” na perspectiva de Paul Zumhtor (1972, p. 27, tradução nossa) um “[...] discurso narrativo no qual o maior número, senão a totalidade dos agentes e pacientes, são produzidos por uma figura de personificação [...]”.49 Ao final do século, o poema original passa por processos de prosificação da narrativa, que empreendidas entre 1295-1297 acabam por acrescentar aspectos simbólicos e poéticos pertencentes à estrutura de um texto em prosa. Tais mudanças terminaram por tornar o Roman em uma obra cujo o alcance, problemática e representação da sociedade feudal fosse encarada como um espelho vívido da realidade vivenciada no período sob a forma de sonhos, aventuras, disputas e viagens dentro das situações enfrentadas pelos protagonistas que narravam suas histórias e encontros.

“[...] discours narratif dans lequel autant si pas tous les agents et les patients, sont produites par une figure de la personnification […].” 49

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Se a França do século XII, com suas “mutações”, permanências e rupturas, forneceu as bases para a expansão da cultura cortês, no século XIII, após o período de disputas envolvendo questões políticas e dinásticas, temos na Île-de-France o centro difusor que ditaria os rumos de uma nova produção escrita ligada à vida na corte e volta sobretudo para servir como intermédio de educação para as demais cortes senhoriais sob influência desse polo cultural. À cavalaria medieval, embora envolta nesse processo mutacional, não advoguemos demasiada concentração apenas nas questões que favoreceram seu surgimento, mas antes nas condições que este grupo se desenvolveu no período de vigência de tais ideias (FLORI, 2005; BARTHELÉMY, 2010). A educação voltada a este grupo seria fator considerável acerca das preocupações envolvendo o letramento cada vez maior de todo o grupo e seus correlatos, em um impulso localizado de distinção da cavalaria feudal em detrimento das camadas populares à época: Um número cada vez maior de cavaleiros pôde gabar-se de serem eles próprios “letrados”; suas esposas, suas filhas o foram mais cedo talvez, e mais. Palavras, tomadas dos dialetos falados cotidianamente mas pouco a pouco estilizadas, ajustadas a melodias e compondo, cada vez se distanciando mais da fala popular, a linguagem distinta da aristocracia, transformaram-se, propriamente falando, em literatura. Esta se inaugura, entre nós, por obras-primas, cânticos que haviam com justiça provocado a admiração, que haviam sido julgados dignos de serem transcritos em pergaminho, como só ocorria até então com as Escrituras, seus comentários e os clássicos da latinidade. Por meio dessa literatura, fortificou-se a ideologia cavalheiresca. Intelectuais – isto é, eclesiásticos – cooperaram para edificá-la. Mas eles viviam na casa de um príncipe, buscavam satisfazer suas preferências e era uma festa profana que enfeitavam. (DUBY, 2011, p. 80)

Predominante nessa cavalaria incipiente e letrada era se não a preponderância de uma juventude masculina representada por um grupo específico de juvenes, isto é, aqueles cavaleiros que desde tenra idade haviam se submetido à autoridade senhorial, completado seu treinamento, consagrados e recebido as insígnias e honras do grupo, mas que em decorrência da política matrimonial e familiar de repartição do patrimônio explicada no capítulo anterior, ainda não tinham meios de se estabelecer enquanto seniores por casamento e se instalarem em seus próprios senhorios. À essa juventude, o Roman de la Rose direciona-se também como uma forma de explorar o sentimento de liberdade, o desejo de competir em torneios – ainda que imaginários – e lutar ferozmente pelo prêmio a ser alcançado: a dama medieval. Logo em suas primeiras linhas, temos o protagonista anônimo do Roman se apresentando e esclarecendo que os sonhos advindos do desejo íntimo podem ser encarados como elemento simbólico suficientemente forte para dotar de significado determinadas ações: Há quem me diga que outra coisa não existe nos sonhos para além de mentiras e fábulas. Porém, é possível ter-se sonhos que de modo algum podem ser considerados

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enganadores, sendo que mais tarde, o seu sentido acaba por se esclarecer. [...] Pela parte que me toca, estou confiante no facto de um sonho poder significar aquilo que de bom ou mau pode acontecer às pessoas, uma vez que muitas das coisas que as pessoas sonham durante a noite, em segredo, acabam por, mais tarde, lhes surgir frente aos olhos. No meu vigésimo ano de vida [demonstrando a referida juventude do protagonista e a justificativa de suas futuras ações devido ao enunciado exposto pelos sonhos], nessa época em que o Amor reclama aos jovens mancebos o tributo que lhe é devido, deitei-me uma noite, como de costume, e não demorei muito a adormecer. Enquanto dormia, tive o mais belo e agradável dos sonhos, e não houve nada nesse sonho que não acabasse por se concretizar, exatamente como o sonho descrevera. Gostaria agora de contar esse sonho em verso, tudo para vos deliciar os corações, pois o Amor implora-me e ordena-me que assim o faça. [...] O tema é belo e original. Peço a Deus que aquela que me inspirou semelhante empreendimento o posso acolher com prazer. Ela é de tal forma preciosa e merecedora de ser amada, que deveria ser chamada de Rosa. (LORRIS; MEUN, 2001, p. 9, grifos nossos)

Não por acaso o jovem traz à tona o universo do onírico para dentro de seu relato, poia encontramos na literatura medieval apontamentos, questões e direcionamentos válidos a quem busca atingir o conteúdo latente dos sonhos narrados. Sobre tal aspecto, abre-se para o historiador todo um campo de discussão histórica que contribui de maneira eficiente em cima dos métodos analíticos de uma História Cultural considerada “tradicional”, além de estabelecer ligações com o fenômeno da tradição interpretativa que os sonhos possuíam na medievalidade (LE GOFF, 2013b). Figura 6 – Detalhe de uma miniatura do Roman de la Rose datada do final do século XV (aproximadamente 1495), de um manuscrito iluminado (Harley MS 4425, f. 7) de autoria anônima destinado ao conde Engelbert de Nassau (1451-1504) em Bruges. O manuscrito ilustra o início do romance, com o jovem protagonista deitado em sua cama, posteriormente vestido e já imerso em seu sonho alegórico, partindo em direção ao Jardim do Amor.

Fonte: http://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/ILLUMIN.ASP?Size=mid&IllID=28499. Acesso em: 01 fev, 2017.

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Ainda podemos destacar da fala do anterior, o comentário do jovem protagonista sobre sua idade. Quando menciona que possui 20 anos, logo podemos adequar tal afirmação quando da colocação de André Capelão em seu Tractatus de Amore acerca da idade ideal para que os desígnios sejam atendidos. Capelão nos diz que: A idade é um obstáculo porque, passados os sessenta anos para o homem e os cinquenta para a mulher, embora as relações amorosas ainda sejam possíveis, os prazeres que proporcionam não podem engendrar o amor: pois a partir dessa idade o calor do corpo começa a baixar, e o humor aquoso o invade com força, produzindo no homem distúrbios diversos, oprimindo-o com todas as espécies de males; então nada mais lhe resta senão o consolo de beber e comer. Assim também a jovem, antes da idade de doze anos, e o rapaz antes do catorze não podem entrar para o serviço do Amor; no entanto, digo e sustento com firmeza que antes dos dezoito anos nenhum homem pode ser amante verdadeiro, pois até essa idade o rubor do pudor o invade por ninharias, e esse pudor não só o impede de levar o amor a termo como também o destrói mesmo quando é consumado. (CAPELÃO, 2000, p. 14-15, grifo nosso)

Logo, fica clara a justificativa pelos impulsos da juventude cavaleira em torno do ambiente de corte em que vivem, levando em consideração toda a estrutura senhorial, sua própria educação, e também os manuais de comportamento circulados à época como meio de educar e “docilizar” o grupo em virtude de uma maior afirmação enquanto estrato social diferenciado. De tal modo desenvolveu-se o cenário das cortes francesas no século XIII, com a preponderância de uma escrita desvinculada agora do aparato litúrgico/clerical, situada ao Norte, com sede proeminente em Paris e voltada a estabelecer correlações de apropriação e representação do imaginário coletivo da época nos mais diversos estratos da vida social do mundo feudal. De acordo com o quadro anteriormente traçado, e à menção do Roman de la Rose como produto exato de tal realidade cultural, analisaremos sua estrutura narrativa, os temas contidos em seu interior e as possibilidades de interpretação e penetração dessa cultura literária do século XIII no seio da sociedade aristocrática, em um primeiro instante, perpassando por suas considerações sobre as camadas populares no território francês. O Roman nos conta: “[...] E lá estavam todos a dançar, aquelas pessoas e ainda outros indivíduos pertencentes à suas casas. Eram todos nobres, cultos, bem-educados. [...] Deus é testemunha do quanto a sua vida era agradável, e de quão tolo é um homem se não desejar para si próprio uma vida semelhante[...]” (LORRIS; MEUN, 2001, p. 26). Assim são descritos os hábitos daqueles que moram dentro do Jardim do Amor, lugar central na narrativa do Roman de la Rose, onde as horas passam mediantes à prática de atividades inerentemente ligadas à aristocracia, como a dança, a leitura, a falcoaria, competições de arco e flecha, dentre outras.

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No Jardim, jovens damas e cavaleiros são representados sempre como figuras bemapessoadas, dotadas de elegância, distinção e refinamento, não à toa que ao observamos suas descrições e suas figuras alegóricas, logo fica claro a razão para tal manifestação dos pressupostos corteses dentro desse ambiente: somos apresentados ao jovem Divertimento, “[...] bem-parecido, alto e de porte direito, [...] e os seus membros eram tão bem modelados, que muito se assemelhava a um quadro [...]”; à Riqueza, “[...] dama de grande dignidade, valor, e posição [...] já que o poder que ela tinha de ajudar ou prejudicar alguém era enorme. [...] Tanto os poderosos quantos os humildes honravam a Riqueza, e procuravam servi-la e descobrir a melhor maneira de conquistar suas graças [...]” e a Cortesia, que “[...] não era estúpida nem irascível, antes sensata e prudente, em nada dada aos excessos, mas expressando-se e respondendo de forma clara [...]. Desempenharia admiravelmente as funções de rainha ou de imperatriz em qualquer corte [...]” (LORRIS; MEUN, 2001, p. 20-26). Não obstante, visualizamos que a presença do feminino é deveras mais contundente devido ao espaço que as mulheres nobres foram gradativamente conquistando a partir do século XII dentro do seio nobiliárquico. Na figura de domina, o feminino para “senhor”, as damas representadas alegoricamente nas linhas do Roman de la Rose afirmam sua posição enquanto julgadoras dos jovens heróis enamorados e acabam por determinar se estes seriam ou não dignos de possuir seu amor enquanto “objeto” simbólico de aceitamento da cultura cortesã. A partir de agora, os valores da aristocracia feudal são personificados na sucessão de tarefas que o herói cortês do Roman tem que superar até de fato conseguir prostrar-se diante de sua amada Rosa para cortejá-la de modo adequado. Em relação ao cerne estrutural dos romances arturianos do século XII, o Roman de la Rose destaca-se por dar lugar não somente mais ao espectro das “ficções” do maravilhoso medieval, onde a literatura do século XIII pretende expor “[...] uma outra forma de verossimilhança, narrativas desta vez, cujas leis são coerentes [...]” (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 313), onde as escaramuças perpetradas por duendes e anões, os duelos disputados entre cavaleiros sem rosto e a caça à dragões que por ventura ameaçavam este ou aquele reino, dão lugar à descrição dos valores e do código de conduta da nobreza, cuja pretensão atende às expectativa esperadas de “[...] apresentar um espelho à sociedade mundana e a imagem que ela espera de si mesma [...], o simulacro de sociedade cujas cortes dão o espetáculo e que esconde dos olhares as asperezas, as tensões da vida [...]” (DUBY, 2011, p. 88). O cenário está posto. Os atores devidamente escolhidos. E as atitudes e reflexos da sociedade feudal têm na cultura literária e na difusão escrita de suas representações artísticas e

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simbólicas, a força motriz que gere o funcionamento das dinâmicas sociais, culturais e políticas que intervém de maneira direta ou indireta na estrutura e na ordem até então vigente. Se como “simulacro do real”, tais representações não detalhem ou demonstrem de maneira exata a realidade ou a “verdade” dos fatos ocorrido naquela época, cabe ao historiador a análise teórica de tais objetos como sendo forças e ferramentas históricas que acabam por moldar a realidade social a que pertencem e estabelecendo no processo uma gama de “regimes de verdade” acerca do que entendemos sobre a dicotomia do real/imaginário (CHARTIER, 1990; PESAVENTO, 2005) e suas acepções com base no uso da literatura como fonte de análise de tais estruturas. Figura 7 – Representação de uma dança no Jardim do Amor, em detalhe de uma miniatura do Roman de la Rose (Harley MS 4425, f. 14v), onde o próprio Deus do Amor pode ser visualizado no lado direito da imagem, com asas, e observando o herói – trajado de azul ao centro – tomar como par uma dama para dançar.

Fonte: http://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/ILLUMIN.ASP?Size=mid&IllID=28513. Acesso em 01 fev, 2017.

O Roman de la Rose ainda se distingue dos demais romances “tradicionais” por ter sido composto a quatro mãos, em um intervalo de tempo considerado significativo para a tessitura de uma obra literária, de 1230 a 1285, quando foi finalizada. Na primeira parte do Roman, escrita entre 1230 e 1235, temos a elaboração de um sonho alegórico para o amor pelos versos do poeta Guillaume de Lorris, cuja a primeira parte da obra é inteiramente dedicada à exaltação do corpo, dos atributos físicos, das “cores” existentes na vida palaciana e sobretudo na estilização de um modelo de escrita que gradualmente deixaria de lado os temas sobre o amor destinado a Deus e passaria a celebrar o amor mundano, físico.

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Não obstante, durante a primeira parte do Roman, a Igreja é completamente relegada à um segundo plano. Embora o protagonista do romance exalte a figura de Deus como seu guia espiritual, todas as demais menções seguiam um tom distinto de descrição em que o herói se apoiava muito mais no saber das universidades medievais, principalmente no saber escolástico em voga nos centros de ensino parisienses desde o início do século XII. A visão transmitida na primeira parte do romance, sob a ótica de Guillaume de Lorris, obedecia a lógica medieval que Umberto Eco (2010, p. 104) analisa como sendo fruto efetivo de “[...] um mundo povoado de significados, referências, suprassentidos, manifestações de Deus nas coisas, em uma natureza que falava continuamente em linguagem heráldica [...]”, o que na visão dos poetas que escreveram o romance acaba por consagrar um pensamento analítico de se observar “[...] o simbolismo medieval como um paralelo popular e fabular da fuga do real [...]” (ECO, 2010, p. 105). Não obstante que toda a descrição do Jardim do Amor, com seus rios de água límpida, frutos, animais e flores em destaques na paisagem que pareciam pertencer não ao plano terreno, mas puramente ao divino tal era sua beleza: [...] entrei no Jardim através da porta que a Preguiça abrira e, uma vez lá dentro, vi aumentar o prazer, a alegria e também a jovialidade que sentia. De facto, garanto-vos que acreditei estar num verdadeiro paraíso terrestre, já que o local era de tal forma delicioso, que se diria etéreo. Para ser franco, e, tal como na altura me pareceu, não existe paraíso onde se possa estar melhor que naquele jardim que tanto prazer me deu. Eram inúmeras as aves canoras ali reunidas: num ponto viam-se rouxinóis, num outro gaios e estorninhos, noutros, grandes bandos de carriças e rolas, pintassilgos e andorinhas, cotovias e chapins. [...] O Jardim fora feito de forma a constituir um quadrado perfeito, sendo sua largura igual ao seu comprimento [...] Lembro-me perfeitamente de que ali havia árvores que exibiam romãs, um fruto excelente para os que estão doentes, e abundantes árvores cujo fruto é a noz, entre elas a noz-moscada, fruto que não é doce nem amargo. [...] Eram várias as espécies de veados que viviam naquele jardim, e um número deveras elevado de esquilos entretinha-se a trepar às árvores. Também havia coelhos, sempre a correr para dentro e para fora das tocas, ocupados a jogar mais de quarenta jogos diferentes naquela erva fresca e verde. Aqui e ali viam-se nascentes de água clara, livres de insectos e de sapos, cercadas pelas sombras das árvores, mas o certo é que as posso enumerar. Uma série de pequenos cursos de água corria através de canais construídos pelo Divertimento, e a água produzia um som doce e agradável. Junto aos rios e nas margens das nascentes de águas límpidas, a erva fresca crescia em abundantes maciços, daí que qualquer um neles pudesse deitar, na companhia de sua amada, como se o estivesse a fazer numa cama de penas, e isto devido à abundância da erva. (LORRIS; MEUN, 2001, p. 1828, grifo nosso)

De tal fôlego descritivo das maravilhas do Jardim temos a percepção de que o discurso em voga na maior parte do Roman tende a remeter “[...] na visão simbólica, a natureza, até em seus aspectos mais temíveis, torna-se o alfabeto com o qual o criador nos fala da ordem do mundo, das coisas sobrenaturais dos passos a serem dados a nos orientar ordenadamente no mundo [...]” (ECO, 2010, p. 106). Desse modo, Lorris vale-se de ferramentas e instrumentos didáticos-textuais para que seu texto seja compreendido nos vários níveis da sociedade, em um

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esforço para deixar sua escrita acessível para todos, encarregando seus personagens de representar abstrações, de imitar as nuances do sentimento amoroso e representar o florescer da sensualidade juvenil, demonstrando por sua vez que o amálgama das culturas literárias do Sul e do Norte da França no século XIII pode ser expressa na construção narrativa do Roman de la Rose (BLOCH, 1995). 4.3

VENDO ALÉM DOS MUROS: DIGRESSÕES E CONSIDERAÇÕES SOBRE A

CULTURA ROMANESCA NO ROMAN DE LA ROSE A escolha do Jardim do Amor enquanto palco principal da sucessão de acontecimentos durante o Roman denota uma apropriação existente na concepção do imaginário social das ficções literárias. Em muitos romans, sobretudos os do século XIII, alguns espaços sociais evocados com frequência nessas obras possuem conotação prioritariamente simbólica acerca de seu papel tanto no desenvolver da história a ser contada, assim como na manifestação estilística de uma literatura que incluía em seu âmago tendências de aproximação com a realidade social vivida no período. O vergel – sinônimo para pomar ou jardim – é um destes espaços de sociabilidade mundana, onde nele temos em primeira instância “[...] o lugar ideal de reunião dos amantes, o local da sedução e do segredo: espaço circunscrito, teatro onde se expõem os encantos da mulher. [...] o pomar dos amantes é sobretudo um lugar protetor [...]” (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 324-325), que como demonstrado anteriormente também é espaço de convívio harmônico com toda a Natureza existente dentro de seu perímetro. Entre o Jardim e o mundo exterior existe um muro, tanto físico quanto metafórico, uma barreira cuja premissa é separar o que habita dentro do Jardim, - a Beleza, a Cortesia, a Generosidade, o Acolhimento Agradável, o Divertimento, a Alegria, a Riqueza, a Amizade e o Amor – daquilo que existe ao seu exterior, como a Inveja, a Pobreza, o Ódio, a Crueldade, a Cobiça, a Baixeza, a Tristeza, a Avareza e a Velhice. Temos que o assunto do Roman de la Rose é o assunto cortês, onde “[...] Toda a aparência de violência, os arroubos, as maldições, as bazófias, perturbariam a festa cortês [...]” (DUBY, 2011, p. 93), não tendo, obviamente, lugar dentro do jardim romanesco em que o cuidado com a aparência, com a discrição dos gestos e dos atributos físicos eram os valores enaltecidos. Neste contexto de afirmação da corte capetíngia na Île-de-France e na transformação de Paris em um centro cultural de excelência na produção intelectual e literária também sobre a temática do Amor, visualizamos um regime de verossimilhança entre os valores

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apresentados no Roman e aquilo que a sociedade estava propagando e consumindo ao mesmo tempo, pois: [...] o imaginário da cavalaria chega, na França, à sua mais perfeita expressão na narração de um sonho, que esse sonho é parisiense e de uma sociedade que se obriga à indiferença, que se acredita protegida contra todos os perigos pelos altos muros atrás dos quais fechou-se, que não quer ouvir falar de obrigações nem de dinheiro e espera abafar sob o murmúrio de uma conversa de bom tom e sob uma música doce os ruídos das altercações que, na realidade, a perturbam. Da época que vinha de transcorrer na qual, num mundo ainda camponês, o modo de produção definia rigorosamente o lugar de uma aristocracia segura de si e ninguém se arriscava a disputar com o senhor e com o cavaleiro o poder e a riqueza, o século XIII, no seu início, herda um sistema de educação e de valores. [...] O olhar lúcido de Guillaume de Lorris capta assim todo o seu valor. Montado como um espetáculo, o sonho social se reveste, sob esse olhar, do poder convincente da realidade. (DUBY, 2011, p. 95)

E o que os pressupostos do Amor Cortês advogam em relação aos valores que habitam fora do Jardim do Amor? No Tractatus de Amore Capelão recomenda que seja observada a devida diligência em relação à administração das posses e da riqueza como um todo, visto que em contrapartida: [...] quando um homem fica reduzido à pobreza e à necessidade, começa a andar de cabeça baixa e é abandonado pela alegria. E assim que se vai a alegria surge do outro lado a melancolia, e a cólera nele se instala: sua conduta em relação àquela que ama começa a mudar; ele passa a ser para ela motivo de horror, e assim é que os progressos do amor começam a declinar; pois o amor está sempre a crescer ou decrescer. Sei pelo ensinamento da experiência que sobrevindo a pobreza, começam a faltar os alimentos do amor, pois “a pobreza não tem com que nutrir o amor. (CAPELÃO, 2000, p. 10, grifo nosso)

Lorris, por sua vez, assim descreve a Pobreza e suas características: “[...] os pobres, sejam eles quem forem, são sempre humilhados e desprezados. Amaldiçoada seja a hora em que um pobre é concebido, pois nunca será bem alimentado, ou bem vestido, ou bem calçado, e também nunca será amado nem favorecido [...]” (LORRIS; MEUN, 2001, p. 15, grifo nosso). Também Capelão faz referência à avareza, exortando aqueles que o leem – ou ouvem – que “[...] Não vejas em minhas palavras, nenhuma incitação à avareza – está bem claro para todos os homens que a avareza não pode coabitar com o amor, mas quero mostrar-te que é preciso abandonar toda as maneiras a prodigalidade e abraçar a generosidade [...]” (CAPELÃO, 2001, p. 10). Ao passo que Lorris esforça-se por representar de modo vívido as condições nefastas que tal figura possui por estar do lado de fora do Jardim do Amor: A imagem era feia, suja e apresentava-se num estado miserável, magra, desmazelada, tão verde quanto um cebolinho. A sua palidez era tanta que se diria doente. O seu aspecto era o de uma criatura a morrer de fome, que de outra coisa não se alimentava senão de pão amassado com fel. Para além de magra, a criatura estava pobremente vestida. A sua túnica era velha e esfarrapada, como se tivesse estado no meio de cães. O tecido era pobre, gasto, e cobriam-no velhos remendos. [...] A Avareza segurava uma bolsa na mão, e era tanta a força com que a apertava, que demoraria muito tempo a tirar fosse o que fosse lá dentro. Ainda assim, não estava interessada em fazer algo

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assim. O seu único desejo era precisamente nada tirar dessa bolsa. (LORRIS; MEUN, 2001, p. 12)

Sendo assim, com tais figuras alegóricas dispostas em diálogo com os postulados da cultura cortesã advogada desde o século XII, encontramos em tais disposições retratos dos valores circulados na sociedade acerca de como os homens e mulheres do medievo enxergavam a si próprios, ou até mesmo aqueles que não pertenciam à determinado grupo social, devido ao conjunto de fatores, qualidades, defeitos ou atributos que podiam ou não, qualificar alguém de modo benevolente ou munido de desprezo. Pudemos inferir que a maneira que Guillaume de Lorris opta por escrever a primeira parte do Roman busca constantemente esse diálogo com o espelho do real por ele mesmo vivenciado, o que acaba por somar ao seu conhecimento intelectual um leque maior de opções a serem exposta e consideradas de uma maior aceitação e identificação para com o público receptor de sua obra. Por fim, temos nesta primeira parte do Roman de la Rose o relato do sonho de amor vivido pelo protagonista, em que a retórica simbólica dos lugares, dos fatos e dos atores desse “teatro das sensibilidades” fornecem aqueles que buscam por um texto destinado aos mais variados usos, onde “[...] o Roman de la Rose dera a toda cultura erótica uma forma tão colorida, tão hermética e tão rica, que era como um tesouro da liturgia, doutrina e lenda profanas [...]” (HUIZINGA, 2011, p. 183). Figura 8 – Representação da figura feminina da Pobreza, em detalhe de um manuscrito iluminado parisiense do século XV (1405) do Roman de la Rose, encontrado no MS Ludwig XV 7, f. 4, Paris.

Fonte: http://www.getty.edu/art/collection/objects/4997/unknown-maker-female-personifications-of-hypocrisyand-poverty-french-about-1405/?dz=0.5000,0.8514,0.48. Acesso em: 01 fev, 2017.

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Como uma obra dividida em duas partes, escrita e finalizada em um intervalo de quase quarenta anos – 1230 a 1268 – por sua própria lógica de elaboração que as partes finais do Roman diferem daquelas escritas na primeira metade do século XIII por Lorris. Quando Jean de Meun retoma o esforço narrativo para finalizar a obra, este acaba por dar início a um outro jogo linguístico, em que mexe com as ambiguidades implícitas no texto de Lorris, acrescentado outras de sua própria autoria, e desenvolvendo e aprofundando ainda mais a trama do herói que parte em busca de sua amada, a Rosa, mantida em cativeiro no castelo para além do Jardim do Amor. Dessa forma, de Meun opta por mergulhar nos temas mais esparsos até então superficialmente mencionados no texto de Lorris: a cavalaria, a violência, o uso de exemplos pedagógicos, o comentário delongado sobre determinada questão a ser ponderada – seja ela de natureza social, econômica ou cultural – e, por conseguinte, a representação maior de outros grupos sociais na narrativa romanesca, como comerciantes, artesãos, trabalhadores manuais, etc. Visando uma expansão maior do texto, e buscando uma tentativa de expandir ainda mais o público-alvo da obra, teremos no texto de Jean a sedimentação e a irrupção do Roman de la Rose para além do ambiente previamente aristocrático, enclausurado nos altos muros de seus castelos e fortalezas, fornecendo um pouco mais de luz e vivacidade à vida cotidiana dos demais homens e mulheres que viram-se representados neste segundo momento da obra. Durante o intervalo de quarenta anos que marcou a retomada do Roman de la Rosa pelas mãos de Jean de Meun, determinadas bases da sociedade medieval do Ocidente acabaram por transmutar-se gradativamente obedecendo o curso histórico peremptório a qualquer temporalidade. A cultura nobiliárquica da França, em síntese, estava dando sinais de envelhecimento, carente de uma renovação estilística que por ventura sustentasse sua posição hegemônica no imaginário social da época em questão. Em primeiro lugar, mudanças estruturais na economia vigente. Durante a época de Lorris, a expansão agrícola ditava os rumos da economia feudal e garantia rendimentos satisfatórios ao reino francês. Porém, com a expansão cada vez mais pujante de Paris e de outros centros urbanos na virada do século XII para o XIII, o panorama começa a mudar. A prosperidade econômica circunscrita com os êxitos da economia agrícola estava dando lugar a uma economia de mercado onde os mercadores e negociantes são os atores principais desse ato: [...] o deslocamento das forças do crescimento, dos campos para as rotas, feiras e mercados, bastou para mudar muitas coisas. A nova riqueza é instável, arriscada, inteiramente sujeita à Fortuna, entregue portanto ao acaso, nessa roda que sempre gira, elevando uns, abaixando outros. Ela se constrói explorando mais duramente os pobres.

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A miséria se vê melhor na cidade; ela toma conhecimento de si própria, ela incita à revolta. As primeiras greves da história vão estourar em 1280... Os muros do vergel fechado não são mais suficientemente altos. Aí se percebe o rumor do povo. [...] O rei desaparece por trás dos seus agentes, dos seus juízes, dos seus cobradores. (DUBY, 2011, p. 98)

À maneira que as bases sustentação dessa cultura foram se alterando, o público alvo do Roman também seguiu o curso da mudança. Ainda a nobreza o consome, e anseia por se ver representado nos fatos e personagens, mas Jean de Meun os une agora ao público que vem das Universidades medievais, da burguesia mercantil parisiense, dos mercadores, dos viajantes e da juventude “popular” que possui um nível de letramento e educação suficiente para apreciar as novas formas estéticas empreendidas por de Meun na segunda parte da obra. A narrativa, o sonho alegórico do jovem amante em busca de resgatar sua amada Rosa do seu claustro é posto como elemento coadjuvante da história. Digressões são cada vez mais comuns na obra, ao ponto que a lírica cortesão de Lorris dá espaço à sátira e a problematização de de Meun sobre os grupos sociais representados no romance. Em relação ao tom do discurso ou até mesmo sobre a ideologia propagada nesta segunda parte, temos uma construção pautada no conflito entre a cortesia e a vilania. Cortesia que para Lorris era baseada principalmente nos atributos físicos, nas qualidades de espírito e no refinamento das ações executadas por seus personagens, justificando a representação de figuras como a Beleza, o Amigo, o Acolhimento Agradável e o Bela Aparência. Jean por seu lado aposta no desenvolvimento maior das figuras vilanescas, enfatizando a oposição desta com aquelas já descritas por Lorris. Temos que em sua narrativa a Inveja, o Ciúmes, o Língua Viperina e a Vilania sejam cada vez mais presentes antagonizando com o jovem amante em busca de sua dama. Uma outra disposição da escrita de de Meun é que em comparação a Lorris os critérios para quem deseja usufruir e adentrar dentro do Jardim do Amor são distintos, onde para aquele o critério de “perfeição” a ser obedecido seria o culto ao amor delicado, a educação e a civilidade dos costumes, quando que para este a “carta de aceite” seria o conhecimento. Em suma, as diretrizes agora seriam dadas pela intelectualidade feudal em busca de fazer-se presente, também, na cultura literária do século XIII. Tal premissa é representada nas linhas do Roman pela personificação da Razão, cujos discursos proferidos servem de paralelo para as explicações conscientes dos fatos que acometem o herói do romance. Em dado momento da narrativa o jovem amante encontra-se aflito por ter sido separado da companhia do Acolhimento Agradável, este que por sua vez atua

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como uma espécie de guia do herói pelo castelo com o objetivo de encontrarem e libertarem a Rosa. Lamentando sua má sorte, e tomado das dores que o sentimento amoroso causa por conta da distância que o separa de sua amada Rosa, o mesmo inicia um monólogo aludindo aos conselhos da Razão sobre ter se envolvido demasiadamente nos caminhos do Amor: Duvido que estivesse na plena possa das minhas faculdades mentais, de facto, creio que só poderia estar completamente louco quando prestei homenagem ao Deus do Amor. [...] A Razão estava certa quando me repreendeu por me haver envolvido com o amor. Como resultado disto, sou obrigado a sofrer amargamente, e o certo é que penso estar desejoso de me arrepender. Arrepender! Mas por que razão é que devo fazer uma coisa destas? Passaria pela vergonha de ser considerado um traidor. De facto, e se tal acontecesse, por certo que o diabo me teria assediado, e eu trairia o meu senhor! (LORRIS; MEUN, 2001, p. 71)

É então que surge a Razão, disposta a ouvir as lamúrias do jovem amante e a explicar de modo racional do que se trata o amor, seus jogos, suas implicações e os males que acaba por trazer aqueles que a ele juram fidelidade, utilizando do uso de antíteses sentimentais para sustentar seu argumento: O amor é uma paz hostil e um ódio carinhoso, uma lealdade desleal e uma deslealdade leal. É um medo confiante e uma esperança desesperada, uma razão demente e uma loucura razoável. É o doce perigo do afogamento e um fardo pesado que com facilidade se maneja. [...] É a mais saudável das doenças e a mais doentia de todas as formas de saúde. É uma fome abundantemente satisfeita e uma abundância invejosa, uma sede que está sempre ébria, uma intoxicação morta de sede. Trata-se de um falso prazer, de uma alegria infeliz, um doce tormento e uma doçura desagradável, um sabor ao mesmo tempo amargo e agradável. É um pecado tocado pelo perdão e um perdão manchado pelo pecado, o mais agradável dos sofrimentos e uma crueldade repleta de graça. Trata-se de um jogo em permanente mudança, um estado que se mostra muito firme, mas também bastante permeável, uma força débil e uma fraqueza forte que tudo põe em movimento graças aos seus esforços, uma sensatez louca e uma loucura sensata, uma prosperidade triste e alegre. [...] Se queres realmente evitar que o Amor te fira e, ao mesmo tempo, curar-te dessa loucura, não poderás beber melhor remédio que a ideia de te escapares dele. Trata-se da única forma de alcançares a felicidade, pois, se o seguires, então ele seguir-te-á a ti, ao passo que, se dele fugires, então ele será obrigado a fugir também. (LORRIS; MEUN, 2001, p. 73-74)

Apelando para o conjunto de percepções sensitivas causadas pelo Amor no jovem herói, a Razão interpela junto a este para que o mesmo abandone o Amor, e salve-se da condição triste em se encontra, à maneira de colocar nos argumentos uma sobreposição daquilo que é racional em cima de algo que pertence ao campo do simbólico, do sentimental. Jean também procura explorar na escrita um desenvolvimento maior do que seria de fato o Amor segundo sua visão, o que nos remete a ideia de Octavio Paz em que “[...] é preciso distinguir entre o sentimento amoroso e a ideia do amor adotada por uma sociedade e uma época” [...]. Segundo Paz, o sentimento amoroso “[...] em sua forma mais simples e imediata não é senão a atração passional que sentimos por uma pessoa entre muitas” [...], característica que ele admite por universal, apoiado pelos inúmeros registros literários que possuem o amor como tema de

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análise. Mas a reflexão sobre o amor pode se converter em “[...] um modo de vida, uma arte de viver e morrer” [...], e então estamos diante “[...] de uma ética, uma estética e uma etiqueta: uma cortesia, para empregar o termo medieval [...]” (PAZ, 1994, p. 35-37, grifo nosso). Figura 9 – Representação do jovem amante e da Razão, quando esta presta seus conselhos acerca dos efeitos do amor na forma de sermão. Detalhe de uma miniatura do Roman de la Rose (Harley MS 4425, f. 32v)

Fonte: http://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/ILLUMIN.ASP?Size=mid&IllID=31917. Acesso em: 01 fev, 2017.

A personificação da Razão enquanto figura alegórica seria posteriormente retomada em outras obras no decorrer do século XIII, mas principalmente nos séculos seguintes, tendo na obra de Christine de Pizan (1363-1430)50, a Cidade das Damas (1405) um dos exemplos de como a Razão era apontada enquanto elemento provedor do discurso racional que traria uma

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Christine de Pizan nasceu em 1363, na Itália, mas viveu desde muito jovem na França quando seu pai, Thomas de Pizan, foi convidado a trabalhar como médico e astrólogo na corte do Rei Carlos V. Casou-se aos quinze anos, e teve três filhos. Em 1386 seu pai falece e três anos depois tem fim seu casamento, com o também falecimento de seu marido. Christine de Pizan da situação de filha e esposa transforma-se em viúva, mãe de três filhos e provedora do sustento do lar. Tal sustento viria de sua dedicação exclusiva às letras, onde, como destacam Georges Duby e Michelle Perrot Na história da literatura francesa, entre 1395 e 1405, Cristina de Pisano impõe-se como uma figura impressionante. O problema, em relação aos códigos literários, no próprio seio da tradição, foi o da criação de uma voz nova e singular. [...] Mas a sua identidade de mulher devia infalivelmente criar problemas, quando, oficialmente, e sem seu próprio nome, ela fala no quadro de um contexto social e cultural. Ela foi a primeira a afirmar a sua identidade de autora, a marcar solenemente a sua entrada no campo das letras. ” (DUBY; PERROT, 1993, p. 529).

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espécie de clarividência, principalmente, sobre a questão feminina no mundo medieval, ao que escreve por meio da alegoria da Razão: [...] se fosse um hábito mandar as meninas à escola e de ensiná-la as ciências, como fazem com os meninos, elas aprenderiam as sutilezas de todas as artes e de todas as ciências tão perfeitamente como eles [...]. Para ilustrar a tese de que a inteligência das mulheres é semelhante a dos homens, te citarei algumas mulheres de profundo saber e de grandes faculdades mentais [...]. Medeia, de quem se fala muitos escritos, foi tão sábia nas artes e ciência [...]. Era muito bela, alta e esbelta [...]. Conhecia propriedades das plantas e todos os sortilégios possíveis. [...] Proba, esposa de Adelfo. Era cristã e de grande inteligência. Amava tanto os estudos e se dedicou com tanto ardor que conseguiu aprender as setes artes liberais. [...] Minerva, era uma virgem originária da Grécia, que levava o apelido de Palas. Esta virgem era detentora de uma inteligência tão superior às demais mulheres de sua época que os ignorantes de então a consideravam uma deusa descida dos céus [...]. Graças a sua engenhosidade, ela inventou algumas letras [...]. Inventou também os números, a maneira de se utilizar [...]. Inventou artes e técnicas desconhecidas antes dela, em particular a arte da lã e da tecedura [...]. Descobriu a técnica e o modo de fabricar couraças e armaduras de ferro e de aço que os cavaleiros e soldados levavam nas batalhas para proteger o próprio corpo [...]. Chamaram-na também de deusa da sabedoria, tão grande era seu saber. (PIZAN, 2012, p. 115-127)

A representação da figura da intelectual – e aqui Christine assemelha-se com Jean - é um tema recorrente ao longo de toda sua obra, o desejo de Pizan era por intermédio de seu tratado moral redefinir a participação da mulher no âmbito literário e social, livrando-se da imagem construída anteriormente pelos homens. A autora chega inclusive a confrontar a representação feminina existente no Roman de la Rose, ao passo que diz que na primeira parte do Roman, escrita por Guillaume de Lorris, a mulher – personificada pela Rosa – não passa de “[...] objeto de desejo idealizado, meramente posta sob as condições do jugo masculino que intende libertá-la de sua prisão metafórica [...]” (PIZAN, 2012, p. 55). De fato, tais repercussões demonstram o impacto cultural que o Roman de la Rose exerceu na sociedade feudal, suscitando debates sobre as representações do cotidiano, das pessoas e das atividades exercidas por homens e mulheres – nobres ou não – durante o século XIII e posteriormente aos seguintes. Devidos aos processos históricos que demarcaram a produção literária no século XIII e suas especificações, temos que a influência dos saberes escolares, da revitalização dos centros urbanos e da expansão dos valores universitários, inferimos que sobretudo na segunda parte do Roman de la Rose, que a tradição e o uso estilizado das referências latinas e das obras de seus mais conhecidos autores – Ovídio, Cícero, Catão, Virgílio, etc – sofre alguns severos arranhões, mas permanece viva e monopolizando o essencial da atividade cultural e intelectual. Sobre esse assunto, Michel Zink diz que: O ensino nas escolas e universidades, a maior parte ou a quase totalidade do que se escreve no âmbito da teologia, da filosofia, das artes liberais, das artes técnicas, da medicina, do direito e, durante muito tempo, da história: tudo está em latim. O que é verdade no campo da ciência, também o é, embora as circunstâncias e as proporções

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sejam diferentes, no campo literário. A história das literaturas medievais é a história combinada da literatura latina e das literaturas em línguas vulgares. (ZINK, 2006, p. 82).

Com tal amálgama de culturas literárias, esse tipo de literatura tende a representar todo o contexto do qual ela se origina: o mundo latino – clássico e referenciado nas diversas citações - que de certa forma lhe ordena e o mundo “estranho” ao que pertence, o da ordem feudal e das estruturas urbanas remodeladas, de onde nascem novas condições inerentes à emergência das línguas vulgares e da cultura que lhes é própria (ZINK, 2006). Latina ou vernácula – sendo aqui no caso, o francês - essa literatura nascente toma por modelo os clássicos da retórica antiga, adaptando-as, e tomando a liberdade de inseri-los em uma lógica narrativa que garanta aos autores das obras romanescas todo o aparato cultural que almejam atingir com essas apropriações.

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5 CONCLUSÃO O vigor cultural demonstrado durante a Idade Média Central (séculos X-XIII), e sobretudo no século da narrativa romanesca, o XII, trouxe o tema do Amor Cortês ao limiar dos estudos medievais direcionados aos aspectos culturais considerados até então “mundanos” que a tradicional historiografia medieval relegava a um segundo plano sobre as principais reflexões do período. A literatura, ou melhor, a cultura literária produzida sob as temáticas cortesãs no Ocidente medieval, acabou por trazer à superfície um universo sobre histórias de heroísmo, drama, fantasia, redenção e principalmente, sobre o amor. Tal universo, que inicialmente se apresentava pelo recurso narrativo, pela presença e necessidade do relato vocal, acabou condensando os elementos de uma cultura de oralidade tradicional, com os usos e ferramentas de uma cultura escrita que preservasse as principais estruturas e objetivos daqueles relatos que ganhavam vida somente pelo uso da voz. A discussão em torno dessa literatura e da cultura escrita construída ao seu entorno como meio de circulação social do elemento da escritura, acabou por fornecer as bases necessárias para que determinado tipo de narrativa surgisse como forma de representar os desejos suplantados e existentes dentro do imaginário coletivo do Ocidente medieval. Enfim, surge o roman, que embora não fosse o pioneiro no tratamento dos temas sobre o Amor Cortês, irrompe na vanguarda de um curso literário agora disposto a delimitar, representar e exemplificar o que era, como podia nascer, como se manifestava e como circulava esse ideal para o Amor. Produto das forças históricas que moldaram o cenário político, econômico e cultural da Europa e, sobretudo da França, durante a época feudal esse gênero acabou por aglutinar as especificidades tanto de seus autores como também de seus receptores, aqueles que de início apenas ouviam, mas que agora poderiam ouvir e ler ao mesmo tempo. Jogando com tais premissas, os heróis e heroínas – além, claro, de seus algozes – representados nesse meio literário ajudam na construção histórica de si mesmos enquanto agentes de compreensão do real. As figuras imaginárias, os lugares, as aventuras e decisões tomadas servem como elementos de decodificação da fonte literária enquanto produtora narrativa de um “regime de verdade” e de construção social sobre as relações entre homens e mulheres sob a influência dos códigos de comportamento corteses. Embora inicialmente restritas aos ambientes palacianos e às cortes reais, os romans foram gradativamente expandindo seu campo de propagação, principalmente a partir do século XIII, onde passa-se a observar a presença de elementos notórios de uma cultura tida como

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“popular”, dotando-os de uma liberdade criativa bem maior, já que une os vestígios anteriores das narrativas criadas para a aristocracia, mas que ao mesmo tempo imbuíram-se de temas comuns a ambos os ambientes, como a questão do casamento, das intrigas sociais, da vida cotidiana, da vida econômica, etc. Entretanto, coube ressaltarmos que não se tratavam, obviamente, de espaços e condições de produção cultural homogêneos. O que está em jogo é justamente a fratura teórica que rompe com a noção de um “erudito” dominante em contraposição ao “popular”, visto que aspectos significantes das narrativas circundam o quadro maior que é o da cultura literária medieval e suas representações. A circularidade dos escritos, a carga simbólica manifestada pela energia social, as representações coletivas dos jovens amantes dentro do prisma do imagináro acabaram por apontar os horizontes teóricos em que os elementos inicialmente distintos (oral/escrito; culto/popular), porém complementares, são delimitados para criação de um universo em que tais noções sejam dispostas das acepções vulgares e ultrapassadas que outrora tomaram posição nos trabalhos historiográficos anteriores. Temos então, no século XII, os romans arturianos de Chrétien de Troyes e seus exemplos de cavalaria, de elegância, doçura e civilidade, com personagens femininas que até a presente época, destoavam dos retratos sociais comuns acerca da idealização e da imagem da mulher enquanto objeto imóvel, carente de tom e até mesmo, autonomia. É aqui que entra Isolda, rainha cuja inteligência e sagacidade destaca-se durante seu conto. É onde encontramos Soredamors, corajosa e forte ao seu modo, utilizando-se da razão para superar as adversidades e obstáculos que encontra durante sua jornada. Se o Amor Cortês em si atuou como uma esfera de influência para além da vida literária, e estipulava em seus pressupostos um “controle” e uma educação pedagógica redirecionada às relações existentes entre os homens e mulheres nobres, é então que vemos sua manifestação no braço viril do medievo, na cavalaria feudal, em que essa passa a adotar os preceitos dessa cultura cortesã em virtude do convívio com esses pressupostos nas cortes feudais de seus respectivos senhores. Os modelos de cortesia representados nas figuras literárias de Tristão e Alexandre, em primeiro momento, puderam demonstrar o alcance e o propósito de refletir os posicionamentos, os hábitos e a conduta que os cavaleiros detinham quando enamorados. Do outro lado, uma dicotomia surge quando postos frente à frente os cavaleiros da cultura cortês com aqueles que seguiam os preceitos e ordenações da Igreja cristã. O embate entre uma cavalaria “mundana” e uma cavalaria mais “sacra” fornece um retrato original e específico das

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próprias transformações que ocorreram a partir da segunda metade do século XII no Ocidente medieval, palco das disputas entre a sociedade leiga e a cultura clerical disposta a retomar sua rede de controle e influência sobre a aristocracia. As contradições existentes na construção de personagens como Galaaz e Tristão advogam um domínio das sensibilidades narrativas e estéticas que o historiador deve atentar para perceber as nuances entre o exemplo do cavaleiro cristão e o exemplo do cavaleiro cortês entregue às vicissitudes que a vida mundana lhe apregoava. Podemos admitir a possibilidade de que a virada do século XII para o XIII trouxe consigo uma transformação estrutural, estilística e conjuntural dentro da narrativa romanesca. O modo, a forma de narrar as histórias, havia mudado. O foco esteve senão, além da veiculação dos ideais corteses, na propagação das variantes sociais contraditórias, na representação dos elementos vinculados ao saber universitário e no uso dos valores comuns tanto à cultura nobiliárquica quanto à cultura “popular”. Desse modo, os escritos que vieram a partir dessa mudança de paradigma romperam, em certa medida, a barreira translúcida que separava os castelos e as cortes senhoriais do restante da sociedade, e é onde o Roman de la Rose adentra como o principal exemplo ainda no século XIII dessa transmutação gradual de valores. Escrito à quatro mãos, em um intervalo de quarenta anos, acaba por ser concluído em finais do século XIII, utilizando-se eminente dos recursos metafóricos e alegóricos para ilustrar essa gradual mudança de tom estrutural que o público receptor acabou encontrando quando tomou conhecimento do Roman. Dono de uma narrativa rica, repleta de digressões, comentários e referências à cultura clássica, o Roman de la Rose adentra no universo romanesco da literatura medieval como baluarte dos preceitos culturais específicos que o século XIII traz consigo. A cultura literária romanesca, então, formou-se a partir do amálgama da oralidade com o escrito, posteriormente passando a acompanhar as transformações sociais que permitiram um maior desenvolvimento do ideal cortesão para o Amor, seguindo as premissas do imaginário coletivo sobre o alcance da circulação desses “artefatos culturais” produzidos dentro desse quadro cultural sobre o florescer da cultura escrita. Ao escolhermos o presente tema para análise, almejamos uma contribuição que faz necessária sobre os estudos envolvendo a cultura medieval, além da perspectiva complementar e um "preencher" lacunas sobre o campo da medievalidade e da literatura medieval enquanto ferramenta e recurso necessário para compreendermos o quanto de algumas de nossas formas de pensar, fazer e sentir em relação ao amor e ao ato de “amar” são ecos de uma época ao mesmo tempo tão distante e tão presente e nosso cotidiano.

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