METAFÍSICA: Ciência primeira, por ter como objeto o objeto de todas as outras ciências, e como princípio um princípio que condiciona a validade de todos os outros - AXIOMA. O que implica dizer que narrativas materialistas e fisicalistas também possuem metafísica. Por essa pretensão de prioridade (que a define), a Metafísica pressupõe uma situação cultural determinada, em que o saber já se organizou e dividiu em diversas ciências, relativamente independentes e capazes de exigir a determinação de suas interrelações e sua integração com base num fundamento comum. Essa era precisamente a situação que se verificava em Atenas em meados do séc. IV a.C. graças a obra de Platão e de seus discípulos, que contribuíram poderosamente para o desenvolvimento da matemática, da física, da ética e da política. O próprio nome dessa ciência, que costuma ser atribuído ao lugar que coube ao textos relativos de Aristóteles na coletânea de Andronico de Rodes (séc. I a.C), mas que Jaeger atribui a um peripatético anterior a Andronico, presta-se a expressar bem a sua natureza, porquanto ela vai além da física, que é a primeira das ciências particulares, para chegar ao fundamento comum (Justificação epistemológica) em que todas se baseiam e determinar o lugar que cabe a cada uma na hierarquia do saber; isso explica, senão a origem, pelo menos o sucesso que esse nome teve. Platão apresentou a exigência da formação dessa ciência suprema depois de esclarecer a natureza das ciências particulares que constituem o currículo do filósofo: aritmética, geometria, astronomia e música: "Penso que, se o estudo de todas essas ciências que arrolamos for feito de tal modo que nos leve a entender seus pontos comuns e seu parentesco, percebendo-se as razões pelas quais estão intima- mente interligadas, o seu desenvolvimento nos levará ao objetivo que temos em mira e nosso trabalho não será debalde: caso contrário, será. Nessa ciência das ciências, Platão reconhecia a dialética (v.), cuja tarefa fundamental seria criticar e joeirar as hipóteses que cada ciência adota como fundamento, mas que "não ousam tocar porque não estão em condições de explicá-las". A semelhante filosofia Aristóteles dava o nome de "filosofia primeira" ou "ciência que estamos procurando" e apresentava seu projeto nos treze problemas enumerados no terceiro (B) livro da Metafísica. Esses problemas versam todos, direta ou indiretamente, sobre as relações entre as ciências e seus objetos ou princípios relativos: sobre a possibilidade de uma ciência que estude todas AS causas (996 a 18) ou todos os princípios primeiros (996 a 26) ou todas as substâncias (997 a 15) ou também as substâncias e seus atributos (997 a 25) e as substâncias não sensíveis (997 a 34) e sobre outros problemas (como os das partes que constituem todas as coisas, da possível diversidade de natureza entre os princípios, da unidade do ser, etc.), todos situados na zona de intersecção e de encontro das disciplinas científicas particulares e de interesse comum para elas. Portanto, a Metafísica, como foi entendida e projetada por Aristóteles, é a ciência primeira no sentido de fornecer a todas as outras o fundamento comum, ou seja, o objeto a que todas elas se referem e os princípios dos quais todas dependem. A Metafísica implica, assim, uma enciclopédia das ciências, um inventário completo e exaustivo de todas as ciências, em suas relações de coordenação e subordinação, nas tarefas e nos limites atribuídos a cada uma, de modo definitivo. A Metafísica apresentou-se ao longo da his- tória sob três formas fundamentais diferentes: 1 - Como Teologia; 2 - Como Ontologia;
3 - Como Gnosiologia. A caracterização hoje corrente de Metafísica como "ciência daquilo que está além da experiência" pode referir-se apenas à primeira dessas formas históricas, ou seja, à Metafísica teológica. Consiste em reconhecer como objeto da Metafísica o ser mais elevado e perfeito, do qual provêm todos os outros seres e coisas do mundo. O privilégio de prioridade atribuído à Metafísica decorre, neste caso, do caráter privilegiado do ser que é seu objeto: é o ser superior a todos e do qual todos os outros provêm. Na obra de Aristóteles esse conceito mescla- se com o outro, de Metafísica como ontologia, que é a ciência do ser enquanto ser. Isso é expresso da seguinte forma por Aristóteles: "Se há algo de eterno, imóvel e separado, o conhecimento disso deve pertencer a uma ciência teorética, porém certamente não à física (que se ocupa das coisas em movimento), nem à matemática, mas sim a uma ciência que está antes de ambas. SOMENTE A CIÊNCIA PRIMEIRA TEM POR OBJETO AS COISAS SEPARADAS E IMÓVEIS. Embora todas as causas primeiras sejam eternas, essas coisas são eternas de modo especial porque são as causas daquilo a que do divino, temos acesso. Consequentemente, há três ciências teoréticas: matemática, física e teologia Já que o divino está em todos os lugares, está especialmente na natureza mais elevada, e a ciência mais elevada deve ter por objeto o ser mais elevado. Se não existissem outras substâncias além das físicas, a física seria a ciência primeira; mas se há uma SUBSTÂNCIA IMÓVEL, esta será a substância primeira e sua filosofia, a ciência primeira e, enquanto primeira, também a mais universal porque será a teoria do ser enquanto ser e daquilo que o ser enquanto ser é ou implica" (Mel, VI, 1, 1026 a 10). Esta última frase permite ver como Aristóteles entrelaça o conceito de Metafísica como ontologia ao conceito de Metafísica como teologia. Este último, porém, é completamente diferente do outro. Com base nisso, o objeto da Metafísica é propriamente o divino, e a prioridade da Metafísica consiste na prioridade que o ser divino tem sobre todas as outras formas ou modos de ser. Desse ponto de vista, as ciências se hierarquizam segundo a excelência ou perfeição de seus respectivos objetos é medida confrontando-os com o ser divino. Esse fora o critério adotado por Platão na ordenação das ciências, privilegiando a ciência que tem por objeto "aquilo que é ótimo e excelente", ou seja, a própria perfeição, e hierarquizando todas as outras tomando essa como referência. Contudo, essa concepção relegava todas as ciências diferentes da Metafísica a um nível de irremediável inferioridade, e o objeto que alcançava não era justificar as outras ciências, fundamentando sua validade e enobrecendo sua investigação, mas desvalorizá-las com o confronto com a ciência primeira e com o caráter sublime de seu objeto. Provavelmente esse foi o motivo por que, a certa altura, Aristóteles começou a insistir no outro conceito da Metafísica como ontologia, mesmo sem nunca renegar ou abandonar o primeiro. Entretanto, a Metafísica teológica reaparece sempre que se estabelece a correspondência entre um ser primeiro e perfeito e uma ciência igualmente primeira e perfeita. É teológica,
portanto, a Metafísica de Plotino, que, às ciências que têm o SENSÍVEL por objeto, contrapõe as que têm por objeto o INTELIGÍVEL, ou seja, a realidade suprema: 'Entre as ciências que estão na alma racional, algumas têm por objeto as coisas sensíveis, se é que podem ser chamadas ciências, já que melhor lhes caberia o nome de opiniões; elas vêm depois das coisas e são imagens delas. As outras, as verdadeiras ciências, têm por objeto o inteligível, chegam à alma provindas do intelecto divino e nada têm de sensível". Essa BIPARTIÇÃO DA REALIDADE (transcendência e imanência) em um domínio superior e privilegiado e outro inferior e derivado é o pressuposto característico da Metafísica teológica, que pretende ter como objeto a realidade primária e privilegiada. É Metafísica teológica, portanto, a doutrina de Spinoza, porquanto seu objeto é a ordem necessária do mundo, vale dizer, Deus (Em Spinoza temos a ordem necessária – uma substância - e a ordem contingente). É também Metafísica teológica a filosofia de Hegel, que afirma ter Deus como objeto: "A filosofia tem objetos em comum com a religião porque o objeto de ambas é a Verdade, no sentido altíssimo da palavra, porquanto Deus e somente Deus é a Verdade". Portanto, diante da filosofia todas as outras ciências ficam em condição de inferioridade: seu objeto é o finito, o irreal, ao passo que o objeto da filosofia é Deus, o infinito (FINITO: IRREAL/ INFINITO: REAL). Hegel diz: "Ás ciências particulares, a exemplo da filosofia, têm como elementos conhecimento e pensamento, mas ocupam-se dos objetos finitos e do mundo dos fenômenos. O conjunto de conhecimentos relativos a essa matéria está, de per si, excluído da filosofia, com a qual não condizem nem esse conteúdo nem sua FORMA. É evidente que, não obstante os protestos antimetafísicos, explícitos a filosofia do espírito de Croce também é uma Metafísica teológica, pois tem por objeto a História eterna do Espírito Universal: realidade sublime, diante da qual os objetos de todas as outras ciências são rebaixados à posição de aparências particulares ou de acidentalidade empírica. Finalmente, é Metafísica teológica a filosofia de Bergson, que pretende "prescindir (dispensar) dos símbolos" e entrar diretamente em contato com uma realidade privilegiada, de natureza divina, que é a corrente da consciência, e que como tal se contrapõe à ciência, chamada de simples "auxiliar da ação". Todas as formas de espiritualismo ou consciencialismo tendem, mais ou menos claramente, para uma metafísica teológica dessa espécie. É doutrina que estuda os caracteres fundamentais do ser: Que todo ser tem e não pode deixar de ter. As principais proposições da Metafísica ontológica são as seguintes: 1- Existem determinações necessárias do ser, ou seja, determinações que nenhuma forma ou maneira de ser pode deixar de ter. 2- Tais determinações estão presentes em todas as formas e modos de ser particulares. 3- Existem ciências que têm por objeto um modo de ser particular, isolado em virtude de princípios cabíveis. 4- Deve existir uma ciência que tenha por objeto as determinações necessárias do ser, estas também reconhecíveis em virtude de um princípio cabível. 5- Essa ciência precede todas as outras. 6- Por isso, é ciência primeira, porquanto seu objeto está implícito nos objetos de todas as outras ciências e porquanto, consequentemente, seu princípio condiciona a validade de todos os outros princípios.
A Metafísica expressa nessas proposições via de regra implica: a) Determinada teoria da essência, mais precisamente da essência necessária. b) Determinada teoria do ser predicativo (característica inerente do ser), mais precisamente da inerência. c) Determinada teoria do ser existencial, mais precisamente da necessidade. As proposições acima expressam a forma mais madura que a Metafísica assumiu na obra de Aristóteles, como teoria da substância, entendendo-se por substância "aquilo que um ser não pode não ser", a essência necessária ou a necessidade de ser. Nesse sentido, o princípio da Metafísica é o de contradição, porque só ele permite delimitar e reconhecer o ser substancial. Aristóteles disse: “Quem nega esse princípio destrói completamente a substância e a essência necessária, pois é obrigado a dizer que tudo é acidental e que não há algo como ser homem ou ser animal. Se de fato há algo como ser homem, isto não será ser não-homem ou não ser homem, mas estas serão negações daquele. Um só é o significado do ser, e este é a substância dele. Indicar a substância de uma coisa nada mais é que indicar o ser próprio dela" (Met., IV, 4, 1007 a 21). Desse ponto de vista, a substância é objeto da Metafísica por constituir o princípio de explicação de todas as coisas existentes. Aristóteles diz: "A substância de cada coisa é a causa primeira do ser dessa coisa. Algumas coisas não são substâncias, mas as que são substâncias são naturais e postas pela natureza, estando, pois, claro que a substância é a própria natureza e que não é elemento, mas princípio". A substância nesse sentido não é uma realidade privilegiada ou sublime, que confira dignidade superior à ciência que a tem como objeto. Enquanto substâncias, Deus e o intelecto, ou mesmo Deus e um talo de capim (como se poderia dizer), têm o mesmo valor, e as ciências que os tomam como objeto têm a mesma dignidade. Em uma passagem famosa de Partes dos animais, Aristóteles reconheceu, explicitamente, a mesma dignidade em todas as ciências que tenham a substância como objeto: "As substâncias inferiores, por serem mais acessíveis ao conhecimento, acabam tendo vantagem no campo científico, e por estarem mais próximas de nós e mais em conformidade com nossa natureza, a ciência delas acaba sendo equivalente à filosofia que tem por objeto as coisas divinas. (...) De fato, mesmo no caso das menos favorecidas do ponto de vista da aparência sensível, a natureza que as produziu proporciona alegrias indizíveis a quem sabe compreender suas causas e é filósofo por natureza". É óbvio que, desse ponto de vista, a prioridade da Metafísica não consiste na excelência de seu objeto (como no caso da Metafísica teológica), mas no fato de que a Metafísica, por ter a substância objeto específico, permite entender os objetos de todas as ciências tanto em seus caracteres comuns e fundamentais quanto em seus caracteres específicos: sem a substância e, p. ex., sem o ser ou a unidade que lhe pertencem, "todas as coisas seriam destruídas, já que cada coisa é e é uma" (Met., XI, 1, 1059 b 31). Em outras palavras: toda ciência, como tal, é o estudo da substância em qualquer de suas determinações; p. ex.: em movimento, a física; como quantidade, a matemática. A Metafísica é a teoria da substância enquanto tal. Desse ponto de vista, a prioridade da
Metafísica sobre as outras ciências é lógica, não de valor. Trata-se de uma prioridade lógica decorrente da prioridade ontológica de seu objeto específico. Consiste no fato de todas as outras ciências pressuporem a Metafísica do mesmo modo como todas as determinações da substância pressupõem a substância; ora, a reforma feita por S. Tomás na Metafísica aristotélica, no séc. XIII, visa a restringir a superioridade lógica da Metafísica. Segundo S. Tomás, a Metafísica como teoria da substância não inclui Deus entre seus objetos possíveis, PORQUANTO DEUS NÃO É SUBSTÂNCIA (S. Th., I, q. 1, a. 5, ad 1"). A identidade entre essência e existência em Deus DISTINGUE NITIDAMENTE O SER DE DEUS DO SER DAS CRIATURAS, nas quais essência e existência são separáveis (Ibid., I, q. 3, a. 4). Portanto, a determinação dos caracteres substanciais do ser em geral não diz respeito a Deus, mas apenas às coisas criadas ou finitas. Com isso, a Metafísica perde a prioridade em favor da teologia, considerada como ciência autônoma, originária, cujos princípios são ditados diretamente por Deus. "E assim a teologia nada recebe das outras ciências, como se estas fossem superiores a ela. mas delas tira proveito, em sendo elas inferiores, assim como as ciências arquitetônicas tiram proveito de outras que lhe propiciam os materiais e assim como a ciência civil tira proveito da militar". Com a negação do caráter analógico do ser, realizada por Duns Scot, volta-se a reconhecer a prioridade da Metafísica. Duns Scot define a Metafísica como "a ciência primeira do saber primeiro", isto é, do ser. Segundo ele, o ser que é objeto da Metafísica é o ser comum, comum a todas as criaturas e a Deus, embora não se trate de um gênero, que teria extensão restrita demais. A comunidade do ser compreende todo o domínio do inteligível: a ciência do ser, a Metafísica, é, portanto, a ciência primeira e mais extensa. A característica desse ponto de vista de Scot é fazer a distinção nítida entre a prioridade de valor, que pertence a teologia, e a prioridade lógica, que pertence à Metafísica. Essa distinção manteve-se ao longo da história ulterior da Metafísica ontológica. No séc. XVII, tal Metafísica começou a ser designada pelo nome de ONTOLOGIA, justificada da seguinte maneira: "Assim como se chama de teologia a ciência que trata de Deus, não parece impróprio que se chame de onto- sofia ou ontologia a ciência que verse sobre o ente em geral, e não sobre este ou aquele ente designado por um nome especial ou distinto dos outros por certa propriedade". Uma ontologia assim entendida, nitidamente distinta da teologia, não implicava nenhum antagonismo, franco ou disfarçado, contra os dados da experiência. Ao contrário, essa ontologia começa a ser considerada como a exposição organizada e sistemática dos caracteres fundamentais do ser que a experiência revela de modo repetido ou constante. Esse é o conceito de Wolff que conferiu a essa disciplina a força sistemática que lhe garantiu sucesso por algum tempo. Segundo Wolff o pensamento comum já possui de forma confusa as noções que a ontologia expõe de forma distinta e sistemática, ou seja, existe uma "ontologia natural" constituída das "confusas noções ontológicas vulgares". Esta pode ser definida como "o conjunto de noções confusas, correspondentes aos termos abstratos com que expressamos os juízos gerais sobre o ser e adquiridas com o uso comum das faculdades da mente". Essa ontologia natural, que os escolásticos completaram sem tornar menos confusa, distingue-se da ontologia artificial ou científica, assim como a lógica se distingue dos procedimentos naturais do intelecto. Não é um simples dicionário filosófico, mas uma ciência demonstrativa, cujo objeto é constituído pelas determinações que pertencem a todos os entes, seja de modo absoluto, seja sob determinadas condições. Assim, graças a Wolff, introduzia-se no organismo tradicional da Metafísica ontológica uma exigência descritiva e empirista que tendia a eliminar o conflito entre apriorismo dedutivo da Metafísica e experiência. Com
base nessa mesma exigência. Wolff faz a distinção entre psicologia empírica, "na qual, a partir da experiência, estabelecem-se princípios que expliquem as causas do que pode acontecer na alma humana" , e psicologia reacional, que é a "ciência de todas as coisas possíveis na alma humana" (Ibid.. § 58). Por outro lado, Wolff fazia a distinção entre ontologia e as três disciplinas Metafísicas especiais: teologia, psicologia e física (da qual faz parte a cosmologia), cujos objetos respectivos seriam Deus, a alma humana e as coisas naturais (Ibid., §§ 55-59). A ontologia wolffiana possibilitava a interpretação empírica dessa ciência, razão pela qual ela foi algumas vezes defendida pelos próprios iluministas. DAlembert, por ex., dizia: "Visto que tanto os seres espirituais quanto os materiais têm propriedades gerais em comum, como existência, possibilidade, duração, é cer to que esse ramo da filosofia, no qual todos os outros ramos haurem em parte seus princípios, seja denominado ontologia, ou seja, ciência do ser ou Metafísica geral". Neste sentido, DAlembert defende uma nova Metafísica, "QUE SEJA CRIADA MAIS PARA NÓS. QUE FIQUE MAIS PRÓXIMA E PRESA Á TERRA, DE UMA METAFÍSICA CUJAS APLICAÇÕES SE ESTENDAM ÀS CIÊNCIAS NATURAIS E AOS DIVERSOS RAMOS DA MATEMÁTICA. DE FATO, EM SENTIDO ESTRITO NÃO HÁ CIÊNCIA QUE NÃO TENHA SUA METAFÍSICA, SE COM ISSO ENTENDERMOS OS PRINCÍPIOS GERAIS SOBRE OS QUAIS SE CONSTRÓI DETERMINADA DOUTRINA, QUE SÃO, POR ASSIM DIZER, OS GERMES DE TODAS AS VERDADES PARTICULARES" Com uma renúncia mais radical ao caráter sistemático da ciência, ainda hoje é defendida uma ontologia descritiva que, ao mesmo tempo em que se limite "a observar e a registrar os traços da existência", também leve em consideração o instrumento dessa observação: a reflexão humana e as condições que a solicitam. É expresso por Kant. Na verdade, a origem desse conceito deve ser identificada na noção de filosofia primeira de Bacon: "Uma ciência universal, que seja mãe de todas as outras e que, no progresso das doutrinas, constitua a parte comum do caminho, antes que as sondas se separem e se desunam." Segundo Bacon, tal ciência deveria ser "o receptáculo dos axiomas que não pertençam às ciências particulares, mas sejam comuns a numerosas ciências". Esse conceito de filosofia primeira tem uma história, que é a do conceito POSITIVISTA da filosofia, que tem em comum com o conceito kantiano de Metafísica a maior ênfase nos princípios do que nos objetos da ciência. Segundo Kant, Metafísica é o estudo da formas ou princípios cognitivos que, por serem constituintes da razão humana — aliás de toda razão finita em geral —, condicionam todo saber e toda ciência, e de cujo exame, portanto, é possível extrair os princípios gerais de cada ciência. Kant expunha esse conceito da Metafísica nas últimas páginas de Crítica da Razão Pura, mais precisamente no capítulo sobre a arquitetura. Kant diz que a Metafísica pode ser entendida de duas formas:
A) Como a segunda parte da "filosofia da razão pura", ou seja, como "sistema da razão pura (ciência), conhecimento filosófico total (seja verdadeiro, seja aparente) que deriva da razão pura em conexão sistemática" (e, nesse sentido, dela é alijada – aliviada - a parte preliminar ou propedêutica da filosofia da razão pura, que é a crítica), B) Ou então pode ser entendida como a filosofia total da razão pura, incluindo a crítica. É neste segundo sentido que Kant chamava a Metafísica de ontologia no documento de 1793, com o qual respondia ao tema proposto pela Academia de Berlim: "Quais são os progressos reais da Metafísica desde o tempo de Leibniz e Wolff". Ontologia, Metafísica e Crítica coincidem do seguinte ponto de vista: "A crítica e só a crítica" — dizia Kant em Prolegômenos— "contém o plano bem verificado e provado de uma Metafísica científica, bem como o material necessário a realizá-lo. Por qualquer outro caminho ou meio, ela é impossível". ASSIM, COMO METAFÍSICA "CIENTÍFICA" OU "CRÍTICA", A METAFÍSICA KANTIANA CONTRAPUNHA-SE À METAFÍSICA DOGMÁTICA TRADICIONAL, QUE KANT SUBMETIA À CRÍTICA NAS TRÊS PARTES DISTINGUIDAS POR WOLFF: TEOLOGIA, PSICOLOGIA E COSMOLOGIA. Mas nem na dialética transcendental, nem em outro lugar, Kant criticou a primeira parte fundamental da Metafísica wolfifiana, que é a ontologia. Na realidade, o conceito fundamental de ontologia continuava válido para Kant, com a correção do caráter crítico ou gnosiológico desta, ou seja, com a passagem do significado REALISTA para o significado SUBJETIVISTA da disciplina em questão. Segundo Kant, da Metafísica crítica ou ontológica fazem parte A METAFÍSICA DA NATUREZA E A METAFÍSICA DOS COSTUMES. A Metafísica da natureza compreende "todos os princípios racionais puros decorrentes de simples conceitos (portanto, com exclusão da matemática) da ciência teórica de todas as coisas". A Metafísica dos costumes compreende "os princípios que determinam a priori e tornam necessário o lazer ou o não fazer", sendo, portanto, a "moral pura" (Crít. R. Pura, Doutr. do método, cap. 3). A característica da Metafísica kantiana é sua pretensão de ser "uma ciência de conceitos puros", ou seja, uma ciência que abarque os conhecimentos que podem ser obtidos independentemente da experiência, com base nas estruturas racionais da mente humana. Desse ponto de vista, sua continuação histórica na filosofia contemporânea é a ontologia fenomenológica de Husserl. Diferentemente de Kant, Husserl não considera os princípios muito gerais que seriam constituintes da razão em geral, mas os princípios que constituem o FUNDAMENTO de determinados campos do saber, de uma ciência ou de um grupo de ciências, chamados, portanto, de materiais. Husserl diz: "Cada objeto empírico concreto insere-se com sua essência material em uma espécie material superior, em uma região de objetos empíricos. A essência regional corresponde uma ciência eidética (relativo a essência das coisas) regional ou, como podemos
dizer também, uma ontologia regional." Portanto, "toda ciência de dados de fato ou de experiência tem seus fundamentos teóricos essenciais em ontologias regionais. (...) Assim, p. ex., a todas as disciplinas naturalistas corresponde a ciência eidética da natureza física em geral (a ontologia da natureza), porquanto à natureza factícia corresponde um eidos puramente apreensível, a essência' da natureza em geral, juntamente com uma massa infinita de relações essenciais. A afirmação do caráter "material" (determinado ou específico) dos princípios ontológicos, que sempre se referem a determinado gênero de essências ou campo do saber, leva Husserl a estabelecer o caráter da ontologia. De seu ponto de vista, a ontologia geral ou formal nada mais é que a lógica pura, que é "a ciência eidética do objeto em geral". No entanto, N. Hartmann, que tem em comum com Husserl o pressuposto fenomenológico, retornou à ontologia . Para ele, o objeto da ontologia é o ENTE, não o SER, já que o ser é unicamente "aquilo que há de comum em cada ente". O ser e o ente distinguem-se como a verdade e o verdadeiro, a realidade e o real, e assim por diante: há muitas coisas verdadeiras, mas o ser da verdade é um só. Analogamente, o ser do ente é um só, ainda que o ente possa ser vário e as diferenciações do ser pertençam ao desenvolvimento da ontologia, e não a seu início, que versa sobre aquilo que é comum universal. A postura francamente realista da ontologia de Hartmann parece aproximá-la da tradicional, especialmente de Wolff mas na realidade o que para Hartmann constitui o objeto da ontologia é o modo como o ser é dado á experiência fenomenológica: de tal forma que sua ontologia é parte integrante da corrente fenomenológica. A essa mesma corrente pertence a ontologia de Heidegger, entendida só como a determinação do sentido do ser a partir do ser do ente que faz as perguntas e dá as respostas: o homem. Heidegger reafirma o caráter primário ou privilegiado da ontologia. "O problema do ser tende não só à determinação das condições apriori à possibilidade das ciências que estudam o ente enquanto ente, e que portanto, ao fazê-lo, sempre já se movem numa compreensão do ser, mas também à determinação das condições de possibilidade das ontologias que precedem e fundam as ciências ônticas [isto é, empíricas]". Todas as doutrinas às quais nos referimos até agora admitem o pressuposto em torno do qual a Metafísica tradicionalmente girou, situando, portanto, nos limites do conceito de Metafísica. Tal pressuposto é o caráter necessário e primário da Metafísica: É necessário por ter como objeto o objeto necessário de todas as outras ciências; é primário porque, como tal, é fundamento de todas as ciências. O que resta da Metafísica na filosofia contemporânea — e não resta como mera sobrevivência, mas como parte viva da investigação — não possui mais estes caracteres tradicionais. A Metafísica está de feto presente e atuante na filosofia contemporânea sob a forma de dois problemas conexos:
1) A questão do significado ou dos significados de existência NA LINGUAGEM das diversas ciências; 2) A questão das relações entre as diversas ciências e das investigações sobre objetos que incidem nos pontos de intersecção ou de encontro entre elas. 1- Com relação ao primeiro problema, fala- se hoje explicitamente de ontologia no sentido de compromisso em usar o verbo ser e seus sinônimos em determinado sentido. Quine, p. ex., diz: "Nossa aceitação de uma ontologia é semelhante, em princípio, à nossa aceitação de uma teoria científica, de um sistema de física: adotamos, no mínimo por sermos dotados de razão, o esquema conceitual mais simples no qual os fragmentos desorganizados da experiência bruta possam ser adaptados e distribuídos. Nossa ontologia estará determinada uma vez que tenhamos fixado o esquema conceitual total em que se adapte a ciência em seu sentido mais amplo; as considerações que determinam a construção racional de uma parte qualquer desse esquema conceitual (p. ex., a parte biológica ou física) não são diferentes, em termos de espécie, das considerações que determinam a construção racional de todo o esquema". Embora objetando ao uso da palavra "ontologia", que pareceria fazer referência a convicções metafísicas, quando na realidade se trata de uma decisão tão prática quanto "a escolha de um instrumento", Carnap confirmou substancialmente o ponto de vista de Quine; é nesse sentido que se tem frequentemente ontologia na lógica e na metodologia contemporânea. 2- Com relação ao segundo problema, a sucessora da Metafísica tradicional é a METODOLOGIA, que habitualmente discute os problemas das relações entre as ciências particulares e as questões decorrentes das interferências marginais entre as próprias ciências. Certamente a metodologia não herdou a pretensão de criar uma enciclopédia das ciências que defina, de uma vez por todas, as tarefas e as limitações de cada uma delas; por isso, não reivindica a dignidade de julgar as ciências e reinar sobre elas. Trata-se mais de organizar continuamente o universo conceitual do modo mais simples e cômodo: que favoreça a comunicação contínua entre as ciências sem atentar contra a indispensável autonomia de cada uma delas. Com este objetivo, cumpre problematizar cada fase da pesquisa científica, as relações entre as diversas disciplinas ou as diversas correntes de pesquisa, tanto em favor do desenvolvimento das disciplinas particulares, quando em favor do uso que delas o homem pode ou deve fazer, ou seja, da filosofia.