Meinong, Teoria Do Objeto.docx

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O PROBLEMA DO CARÁTER ONTO-LÓGICO DAS EXPRESSÕES REFERENCIAIS PARTE 1: A TEORIA DO OBJETO DE A. MEINONG O objetivo deste texto é apresentar a teoria do objeto (Gegenstandstheorie) desenvolvida por A. Meinong. O historiador austríaco, que se torna discípulo de F. Brentano, no final do século XIX é defensor do psicologismo, porém, no começo do XX abandona esta posição para adotar um realismo extremo que, surpreendentemente, conserva o caráter empírico do objeto. Meinong tem por objetivo explicar racionalmente um enunciado aparentemente paradoxal: “Há objetos a propósito dos quais se pode afirmar que não há tais objetos” (“The theory of objects”, § 3). As origens desta formulação encontram-se em Brentano que desperta o interesse de Meinong pela questão da psicologia empírica. Brentano considera a intencionalidade como a principal característica dos atos e estados mentais: toda representação é representação-de-algo. Todo ato mental, portanto, tem algo como objeto. Aqui o objeto não é considerado enquanto tal, mas enquanto objeto intencional, ou seja, em seu ser representação (caráter formal): o representar algo constitui este algo representado enquanto representado. Tome-se como exemplo a proposição “Cisnes negros não existem”. O objeto desta proposição (“cisnes negros”) é determinado quanto ao ser em todos os seus aspectos, é, portanto, um objeto completo, e o que faz a proposição é negar sua existência enquanto tal, não enquanto representação. Cisnes negros não existem, porém subsistem, são entidades abstratas. Portanto, a teoria de Brentano se aplica a todos os casos em que se trata de objetos enquanto representações, que podem tanto existir e subsistir, quanto apenas subsistir. Por outro lado, chegamos a uma insuperável dificuldade quando se trata de objetos que não têm ser, ou seja, que não existem nem subsistem. Tome-se como exemplo a proposição “O quadrado redondo não é redondo”. O objeto desta proposição não existe nem subsiste, é contraditório. Todo ato mental é, como tal, direcionado a objetos. Mas, neste caso, não existe um objeto do ato, isto é, o conteúdo representacional do ato é a representação de um objeto inexistente. Para resolver esta dificuldade Meinong acrescenta à distinção entre ato mental e objeto intencional a noção de conteúdo intencional. Assim, dentre os três componentes da experiência (Erlebniss): (i) o ato; (ii) o conteúdo e (iii) o objeto, apenas os dois primeiros são condições necessárias, enquanto o último pode ou não existir. Por exemplo, na enunciação da proposição “O quadrado redondo não é redondo” não há nenhum objeto real, mas ainda assim, há conteúdo: “Este existe e é, portanto, real e presente, naturalmente é também mental, mesmo que, por assim dizer, o objeto representado possa ser não-existente, não-real, não-presente, não-mental” (“On objects of higher order and their relationship”, §2). Em suma, há os objetos que existem e subsistem (reais); os que apenas subsistem (ideais); e os que não podem nem existir nem subsistir, porque são impossíveis, por exemplo, como é o caso do quadrado redondo. Para Meinong a noção de objeto é, dentre todas, a mais geral: não é possível dar uma definição de objeto, tudo é objeto. A questão do objeto ultrapassa o questionamento metafísico. O objeto da metafísica é a totalidade dos existentes. Assim, a metafísica sempre interpreta previamente todo objeto a partir de determinações ontológicas. No entanto, há objetos que são completamente ausentes de tais determinações e, apesar disso, são objetos de atos mentais. “A Metafísica lida, sem dúvida, com a totalidade do que existe. Mas, a totalidade do que existe, incluindo aí o que existiu e o que existirá, é infinitamente pequena em relação a totalidade dos objetos de conhecimento” (“The theory of objects”, § 2). Objetos não-existentes escapam ao âmbito da metafísica. A tarefa da teoria do objeto é dar conta de sua possibilidade tanto quanto da possibilidade dos objetos existentes. É importante notar que não se tem em vista o caráter ontológico dos objetos existentes, que é o tema da metafísica, nem o caráter ontológico dos objetos não-existentes que é indeterminável. Ambos 1

os tipos de objeto são considerados aqui em seu caráter gnosiológico, isto é, como termos de uma relação intencional que Meinong articula a partir de dois princípios básicos: (i) o princípio da independência do ser-tal (Sosein) com relação ao ser; (ii) o princípio de extra-ser (Ausßersein) do objeto puro. Como veremos, estes princípios permitem uma dupla ultrapassagem da ontologia tradicional (metafísica). Como em Brentano, os objetos devem ser apreendidos enquanto representações. Assim, a partir de uma categorização das vivências da consciência, Meinong obtém uma categorização dos objetos intencionais. Neste ponto se realiza a primeira ultrapassagem da teoria dos objetos em relação à ontologia tradicional: as vivências da consciência (objetos intencionais) são independentes do ser quanto ao ter propriedades (ser-tal). Naturalmente, a primeira dificuldade é posta pelas leis lógicas da não-contradição e do terceiro excluído. Meinong reinterpreta ambas as leis mostrando que objetos incompletos e impossíveis infringem as leis lógicas apenas quanto à negação interna, mas não quanto à negação externa, que é interpretada por Meinong com o princípio de indiferença da objetualidade do objeto com relação ao ser (extra-ser). A partir do princípio da indiferença fica clara a proveniência da independência do ser-tal com relação ao ser, manifesta na relação intencional: trata-se do caráter próprio dos objetos. Assim, Meinong realiza a segunda ultrapassagem da teoria dos objetos em relação à ontologia tradicional adicionando à tábua de categorias objetivas não-intencionais uma série de categorias de objetos que não têm ser. A primeira ultrapassagem é intencionalística e toma o empirismo como pressuposto metodológico para a segunda ultrapassagem que adiciona a categorização tradicional dos objetos uma série de categorias de objetos que não têm ser. O realismo ontológico, até Meinong, só foi capaz de reconhecer categorias de objetos que têm ser (reais ou ideais). Interpretando o mesmo fenômeno que servia de evidência ao psicologismo (as vivências da consciência), na dupla ultrapassagem da ontologia tradicional, Meinong consegue ultrapassar o próprio psicologismo. Vejamos em maior detalhe como se dão as duas ultrapassagens da ontologia tradicional na teoria de Meinong. * Para Meinong, tudo aquilo que pode ser pensado é objeto (Gegenstand). Assim, objeto é o termo mais amplo de todos, reunindo tudo que é representação como também tudo que é representado. Assim, neste ponto, pode-se compreender como objeto tudo o que é objeto intencional. As diferenças entre os objetos que podemos são interpretadas por Meinong como diferenças entre tipos experiências mentais (vivências da consciência). Os atos mentais elementares correspondem, portanto, aos objetos intencionais elementares. Meinong fornece a seguinte categorização das experiências mentais elementares e dos objetos que lhes correspondem.

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Os objetos mais elementares são, objecta, os objetos de representação. Todas as coisas, ou são objecta ou pressupõem objecta para o seu ser. Sendo o termo mais geral, objectum é indefinível. Seu sentido é apreensível apenas a partir de exemplos. A propriedade “vermelho”, estrela, cadeira, prazer e substância são exemplos de objecta. Todo objectum tem ser e, para Meinong, há três modos possíveis de ser: a existência, a subsistência e o extra-ser. Todo objetum tem pelo menos extra-ser, mesmo que não exista nem subsista. Também a noção de objetivo é indefinível. Exemplos de objetivos são as frases: “o ser vermelho” (das Rotsein), “o parricídio de Édipo”, “o triângulo é escaleno”. Objetivos são compostos de objecta ou de outros objetivos. Por exemplo, “três é um número primo e é maior que dois” é um objetivo composto de objecta: “três”, “número primo”, “maior que” e “dois”. Todo objetivo pode ser analisado, obtendo-se os objecta que o compõem. No entanto, um objetivo não é, como se pode observar pelo exemplo dado, meramente a soma dos objecta que o constituem. Meinong distingue dois tipos correlatos de experiência mental por meio dos quais um objetivo pode ser apreendido por um sujeito: o julgamento (Urteil) e a suposição (Annahme). Um julgamento apresenta um objetivo como um fato, envolvendo, portanto, convicção. O julgamento é o ato de assentir que algo é o caso, ou que tem tal propriedade, ou tal modo de ser. Já a suposição não envolve convicção, mas simplesmente “leva em consideração” o objetivo para o qual se direciona. O reino dos valores éticos e estéticos, Meinong divide em dois tipos de objetos: os dignitativos e os desiderativos. Os dignitativos guardam certa semelhança com os objecta: são também certas propriedades, como belo, bom e verdadeiro que, à diferença dos objecta, não são representados como ideias, mas como sentimentos. Tais sentimentos, no entanto, permanecem dependentes dos obcjeta ou dos objetivos nos quais estão fundados: é preciso, por exemplo, que a ária das Bachianas Brasileiras no 5 seja primeiro conhecida, para que se possa julgar que trata-se da música mais bela do mundo. Assim como os dignitativos podem ser comparados aos objecta, os desiderativos podem ser comparados aos objetivos: todo desiderativo pode ser analisado nos dignitativos que o constituem. Os desiderativos são obrigações de que algo seja algo, sendo expressos através de ordens ou de recomendações. Naturalmente, só é possível que hajam obrigações se houverem valores aos quais tais obrigações se referem. Exemplos de obrigações são que o alimento seja atrativo aos sentidos, ou que a ária das Bachianas Brasileiras no 5 seja tocada pela Orquestra Sinfônica da UFPB. A representação de valores e obrigações é denominada representação emocional, distinguindo da representação de objecta e objetivos, denominada representação intelectual. Na análise do domínio teórico fica claro que o objeto da ciência pode ser existente e subsistente, ou apenas subsistente, como no caso das matemáticas. E mesmo os juízos acerca de objetos existentes são sempre acompanhados por algo apenas subsistente. Meinong conclui que todo objetivo pode assumir as funções próprias da objetidade (Objektes) e tornar ele próprio objeto (Gegenstand) de sua apreciação, de modo que o ser-tal (ter propriedades) dos objetos é indiferente ao ser: os objetos podem ser existentes e subsistentes, ou apenas subsistentes. Os objetivos são, portanto, objetos de ordem superior, fundados nos objetos de ordem inferior, os objecta. Não é a existência dos objecta que confere sentido ao objetivo, antes é o próprio objetivo assume a objetividade e se apresenta como objeto. Por isto se esclarece porque Meinong diz que a relação entre os objecta e os objetivos devem ser compreendidas como relações entre o todo e a parte cum grano salis, porque o objetivo não é simplesmente o que resulta da soma dos objecta. Por isso dissemos acima que os objetivos não resultam simplesmente da junção de suas partes constituintes. A partir disso Meinong constata um pré-juízo a favor da efetividade (Wirklichkeit) por parte da ontologia tradicional, de modo que uma teoria do objeto deve levar em consideração 3

também o real não-efetivo (ideal). Uma tal teoria do objeto ultrapassa, portanto, o âmbito daquilo que sempre se designou por Metafísica. Em síntese, os objetos podem existir e subsistir ou apenas subsistir. Os objetivos apenas subsistem, por outro lado, apenas subsistem, ou seja, têm apenas ser ideal. Isto nos conduz à afirmação aparentemente paradoxal com a qual iniciamos nossa exposição: “Há objetos a propósito dos quais se pode afirmar que não há tais objetos”. A demonstração de que esta afirmação não é paradoxal conduz Meinong a um reexame das leis lógicas de não-contradição e terceiro excluído. * O princípio de independência, que foi primeiro formulado por Ernst Mally, estabelece que “o ser-tal de um objeto não é afetado por seu não-ser”, o que quer dizer que um objeto não depende de ser para ter propriedades. Este princípio é implicado (i) pelo princípio de caracterização, que postula que um objeto possui todas as propriedades que é caracterizado como tendo (o XY é X e Y, respectivamente) e (ii) pela negação da pressuposição ontológica, segundo a qual não é possível formular proposições verdadeiras acerca de objetos que não existem. O princípio da indiferença estabelece que por natureza o objeto é indiferente ao ser, não obstante em cada caso subsistir apenas um dentre os dois objetivos de ser do objeto (seu ser ou seu não-ser). Meinong afirma que os objetos puros estão situados para além da distinção entre ser e não-ser. Para manter a sua posição ele interpreta a negação em dois sentidos distintos: (i) em sentido ontológico (negação interna), quando dizemos “x tem não-ser”; (ii) em sentido lógico (negação externa), quando dizemos “x não tem ser”. Para manter a sua posição, Meinong aceita que as leis da não-contradição e do terceiro excluído se aplicam ao segundo sentido, a negação da sentença, e não ao primeiro, à negação ontológica. Quanto aos objetos completos, isto é, aos objetos determinados com respeito a todas as suas propriedades, é trivial afirmar que as suas propriedades são independentes de ser, porque, de qualquer modo, seu ser sempre se dá. No entanto, em relação aos objetos incompletos, ou seja, aos objetos que são determinados segundo algumas propriedades e segundo outras não, se faz necessário afirmá-lo. Tomemos como exemplo a ideia de triângulo. Esta ideia é determinada quanto à uma propriedade constitutiva, segundo a qual tem três ângulos, e quanto à uma propriedade consecutiva, segunda a qual tem três lados. Não obstante, a ideia de triângulo não é determinada quanto a outras propriedades, como ser ou não-ser escaleno, ser ou não ser verde, etc. Isso significa que, com relação ao triângulo poderíamos afirmar que ele não é escaleno, porque ele simplesmente não é determinado quanto a esta propriedade. No entanto, ao afirmar que o triângulo não é escaleno, não se poderia com isto implicar que ele é não-escaleno, porque a ideia de triângulo, indeterminada quanto à propriedade de ser ou não escaleno, pode muito bem vir a ser escaleno ou não. Assim, os objetos incompletos infringem a lei do terceiro excluído apenas com respeito a negação da sentença, uma vez que não é correto afirmar que o triângulo é e não é escaleno. Por outro lado, a proposição “o triângulo não é escaleno” não implica a negação ontológica “o triângulo é não-escaleno”, porque o triângulo pode ser tanto escaleno como não-escaleno. Meinong elabora, portanto, uma dupla interpretação da lei do terceiro excluído: (i) de acordo com a negação da sentença e (ii) de acordo com a negação ontológica: (i) (ii)

∀𝐹∀𝑥(𝐹𝑥 ∨ ~𝐹𝑥): para toda propriedade F e para todo objeto x, ou é o caso que x é F, ou é o caso que x não é F. ∃𝐹∃𝑥 ∼ [𝐹𝑥 ∨ (∼ 𝐹)𝑥]: existe alguma propriedade F e existe algum objeto, tal que não é o caso que x é F ou x é não-F.

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Assim também quanto à lei de não-contradição, afirmar que os objetos impossíveis não têm ser não implica que eles têm não-ser. Este último é, por exemplo, o caso dos objetos contraditórios, cujo não-ser é explicitamente pressuposto, mas não é o caso de objetos como, por exemplo, o triângulo em si, que não é determinado com relação ao ser. Deste modo, dizer que o triângulo em si não tem ser não implica que ele tenha não-ser. A lei de não-contradição é, portanto, igualmente submetida a uma dupla interpretação: (iii) de acordo com a negação da sentença e (iv) de acordo com a negação ontológica: (iii) (iv)

∀𝐹∀𝑥~(𝐹𝑥 ∧ ~𝐹𝑥): para toda propriedade F e para todo objeto x, não é o caso que x é F e x não é F. ∃𝐹∃𝑥[𝐹𝑥 ∧ (∼ 𝐹)𝑥]: existe alguma propriedade F e existe algum objeto x, tal que é o caso que x é F e x é não-F.

A partir desta dupla interpretação da negação Meinong postula a indiferença do objeto com relação ao ser. A determinação mais geral dos objetos não é ser no sentido de algo factual, existente ou subsistente. A estes dois modos de ser, Meinong adiciona um terceiro, o extra-ser (Ausßersein), que corresponde à determinação mais geral dos objetos a ser levada em conta em uma tentativa de categorização. Assim como a determinação mais geral do ser-tal é ser um objeto, a determinação mais geral de ser é extra-ser. Com o conceito de extra-ser Meinong chama atenção para a precedência do objeto com relação a sua apreensão. É interessante notar que se trata justamente da determinação que fora excluída pelo psicologismo, para o qual todos os objetos são representação. Aqui se compreende, portanto, em que sentido a teoria do objeto é “realista”: o objeto é dado previamente (vorgegeben) à sua compreensão, e isso se deve ao caráter ontológico de extra-ser. Com isto não se quer dizer que o ser e o não-ser sejam contingentes à essência do objeto. Antes, o objectum precede a atribuição de ser e não-ser, realizada pelos objetivos. O objectum encontra-se, portanto, por seu caráter próprio, além do ser, ainda que apenas um dos objetivos (ser e não-ser) seja necessário. Então, é possível agora uma categorização de objetos levando em conta a determinação de ser mais geral (o extra-ser) para incluir também os objetos que não têm ser e que foram desconsiderados pela ontologia tradicional.

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REFERÊNCIAS: Marek, Johann, “Alexius Meinong”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2013 Edition), Edward N. Zalta (ed). Schubert Kalsi, Marie-Luise, 1978. Alexius Meinong on Objects of Higher Order and Husserl's Phenomenology, The Hague: Martinus Nijhoff. Meinong, “The Theory of Objects” in Roderick M. Chisholm (ed.), Realism and the Background of Phenomenology, Glencoe, IL: Free Press, 1960; reprint: Atascadero, CA: Ridgeview, 1981, 76–117. Routley, Richard [= Richard Sylvan], 1980. Exploring Meinong's Jungle and Beyond. An Investigation of Noneism and the Theory of Items, Canberra: Research School of Social Sciences, Australian National University.

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