OS DESAFIOS DE ENSINAR FILOSOFIA
Marcos Melamed Barqui∗
[email protected]
Quando nos propomos em falar de ensino de filosofia, esta mesma assertiva já propõe uma reflexão: é preciso “ensinar” filosofia? Se filosofia for apreciada como uma modalidade de atitudes: um conhecimento crítico, reflexivo e curioso, percebemos que isto já cria uma dificuldade, pois tudo está posto sob esse crivo da atitude trimodal. A filosofia, no contexto de seu ensino, não querendo esgotar, pressupõe vários conceitos: •
trazer problemas filosóficos já referidos ao aluno aplicados à nova realidade para, daí, tornar um problema filosófico o problema do aluno;
•
agir sobre a realidade com uma postura crítica, reflexiva e curiosa, já referida anteriormente;
•
tornar
as
perguntas
problemas;
estes
problemas,
para
se
caracterizar como filosóficos, parecem ter como características serem:
gerais
(não
particulares),
abertos
(não
esgotam
a
possibilidade de seguir sendo feitos, e, por isso, inconclusivos), universais (válidos para todos os integrantes da espécie humana) e perguntas que exijam respostas argumentadas, no sentido de indicar a realidade conceitual já aplicada; •
a filosofia pode ainda ser ensinada como a mãe de todas as ciências, tarefa radical e complexa de se destrinchar;
∗
Escola Municipal de Ensino Fundamental Maria Cordélia S. Marques – Secretaria Municipal de Educação de Esteio/RS.
•
a filosofia pode ainda se expressar como um exercício: exercício de pensar coerentemente, segundo as normas da lógica a fim de desenvolver e atingir a autonomia do pensamento;
•
a filosofia pode se dedicar a desenvolver conceitos, dentro da flexibilidade que estes permitam e de acordo com as “lentes”, leituras que o sujeito faça. A filosofia pode, enfim, se tornar prazer, prazer na busca do
conhecimento como resultado de estas e outras atividades que advém do exercício de filosofar enquanto se “ensina” filosofia. Dar um sentido ao ensino da filosofia e à filosofia enquanto disciplina que se ensina é muito mais difícil e complexo na prática do que descrever este processo. Pois, na prática, descobertas ocorrem e decepções, agora
vistas
apenas
como
mudanças
de
rumo,
ocorrem
freqüentemente e, às vezes, voltam ao rumo que o professor procurava como direção à alguma finalidade, seja do tipo processual como adquirir habilidades, já seja finalidade conteudista, como adquirir conhecimento.
Ética e cidadania
Parece que à filosofia cabe incluir em seu vasto currículo algo que a sociedade pede que seja de conhecimento de sua prole infantil, mas não exclusivamente: atitudes éticas e exercício da cidadania. Exercício da cidadania fazendo uso de competências éticas. Esse pedido da sociedade se faz necessário, haja vista a escalada da violência, à negação ou ignorância de valores éticos, destituídos de seu valor e ao clamor para uma sociedade então mais justa. A pergunta que cabe aqui é, se fazendo uso dos modelos convencionais de educação (sujeito aprende mediante transmissão direta o objeto a ser aprendido) poderá o aluno agir de modo mais
ético. Se ao se tratar dos valores como objeto, estes poderão se efetivar como atos dos cidadãos? Acredito que não. Não poderá se tratar de valores como objetos. Métodos não tradicionais de ensino poderão, ao meu ver, ser mais eficientes para tratar de ética, e, conseqüentemente, cidadania, em sala de aula. Não poderá se tratar, por
exemplo,
“solidariedade”
como
“platelmintos”
(categoria
zoológica invertebrada, vermes). A despeito da assimilação destes valores ser muito lenta, a qualidade do ensino será superior se se der um tratamento diferenciado aos valores, não como objetos, mas como práticas sociais de caráter cidadão. Muito mais efetivo, então, organizar uma doação, fazer a doação e conhecer para que e para quem se está doando do que transmitir “o que é solidariedade”.
Ensino da filosofia por conceitos
Vamos trabalhar, por exemplo, com nossos alunos na disciplina de filosofia os conceitos imbricados de identidade e diferença. Estes conceitos podem ser atribuídos a objetos e a sujeitos. Vamos imaginar que escolhemos trabalhar os conceitos nos sujeitos. Já não serão sujeitos, serão pessoas àquelas que desejamos incitar uma reflexão sobre estes conceitos: os nossos alunos são pessoas. E como pessoas, pertencentes a um contexto e possuidoras de uma história e culturas próprias. Como tais, podemos estabelecer como objetivo do nosso trabalho introduzir a definição de identidade pessoal de algum renomado filósofo e, a partir daí, seguir para a prática como vivência reflexionante, curiosa e crítica da identidade de cada um, do que se segue a diferença entre identidades pessoais. No anexo I, apresento a organização de uma atividade-vivência que procura esclarecer o óbvio não-pensado: o quanto a nossa identidade é forte (e em
construção) e mais forte fica quando pensada refletidamente. A partir daí, esta atividade também desvela como a mudança altera a nossa identidade sem cristalizá-la. Aí surge o conceito de essência ou substância, que também podem ser trabalhados filosoficamente. Este foi um exemplo de como alguns conceitos filosóficos podem ser trabalhados em sala de aula. Para além disso, permite que crianças ou alunos de qualquer idade brinquem de filósofos, sejam eles mesmos criaturas reflexionantes. Esta atividade tem como catalisador o fato de que a maioria gosta de escrever de si mesmo e também se descobrir como muda no decorrer do tempo e como o tempo o muda; como seres permeáveis que somos, mede influencias do meio que agem de forma qualitativa e constante. Outra variante é determinar a importância das identidades sociais, quais sejam, identidades sócio-econômicas, de classe, de raça, culturais, etc..., formadoras de entidades de classe, sociais, raciais, etc..., isto é, denotar como a partir das diferenças e identidades delimitam-se identidades que podem constituir entidades (passagem do abstrato para o concreto). A partir dessa reflexão, podem ser visitadas entidades (casas onde as identidades se encontram e diferenças se separam) e determinar, por pesquisa, como se constituíram; quais igualdades e diferenças as distinguem da sociedade-entorno em que estão
inseridas.
Estas
e
outras
leituras
podem
ser
feitas,
possibilidades em aberto podem ser descobertas ou criadas por você, leitor, para se trabalhar a partir desses conceitos. Os conceitos são fontes importantes para o preparo e execução de trabalhos de cunho filosóficos na área do ensino. Outra idéia interessante é formular seus próprios conceitos, uma atividade autenticamente filosófica, já que para se chegar ao resultado, debates filosóficos que intermediam as relações na sala de
aula se fazem necessários, além do que o resultado – o conceitodefinição final – carrega um sentido próprio do grupo que o formulou.
Ensino de filosofia por temas
Neste
caso
pode-se
cruzar
temas
transversais
relativos
à
cidadania (c. f. CNE 04/98 - CEB) como saúde, sexualidade, vida familiar e social, o meio ambiente e outros de interesse atual com temas por excelência filosóficos como, por exemplo, a liberdade. Perguntas que podem daí se seguir como, por exemplo, de um tema tão controverso mas presente como gravidez na adolescência e a liberdade do ser humano: até que ponto somos livres? Liberdade implica limites? Liberdade com e sem responsabilidade. Assim estaremos problematizando a filosofia e fazendo desse problema um problema que os alunos, envolvidos no enredo temático, precisam solucionar. Cruzando temas da atualidade com temas filosóficos fará que a filosofia eleve seu estatuto em sala de aula, se tornando uma necessidade, que faz parte da cotidianidade das pessoas envolvidas.
As dificuldades do ensino da filosofia na sociedade em que vivemos
Parece-nos que as maiores dificuldades enfrentadas hoje por um professor em sala de aula são: a falta de atenção continuada ao que está sendo dito, a concentração e à superficialidade que domina o nosso modo de ver o mundo. É sabido que a filosofia parte de problemáticas que parecem “óbvias” para o ser humano. Isto porque são muitas vezes perguntas caladas da nossa infância. Geralmente perguntas sem respostas
merecem ser caladas, não ditas, silenciadas: esta é uma atitude que nos foi “treinada” pelos adultos enquanto crianças. A primeira dificuldade: manter a atenção a estes questionamentos parece advir desse modelo, o qual parece não ter culpado, causante. Entretanto, esta postura já internalizada pelos nossos alunos parece ser a fonte de tal descontentamento com a nossa disciplina, que procura retomar “o já sabido” por eles, que, na verdade, é o “já silenciado” ou o “deixa assim”. Assim, a falta de atenção derivaria de tal inadequação das questões para o “já sabido” quando, do outro lado, a postura do professor é: “não sabemos, vamos procurar”. A exigência de um estado de concentração para estas “questões óbvias” se juntam à atenção necessária para lidar com essas mesmas questões.
Para
entender
esse
fato,
parece-nos
imprescindível
recorrer ao que acontece com as crianças e adultos hoje em dia relativo à mídia e à informação. A informação nos é passada de modo rápido, superficial, pronto e o mais simplificada possível pela mídia. Entretanto, é útil notar que nem toda verdade é simples e que um trabalho sobre a informação às vezes se faz necessário. E, para que ocorra reflexão sobre aquilo dito, é necessária a concentração. Mais concretamente e sem querer desprestigiar professores de outras disciplinas e outros saberes e, de forma
alguma
desejando
generalizar,
se
pode
dizer
que
a
concentração não encontra espaço em outros momentos do ensino, e sim a automatização, a memorização e outras atividades não reflexionantes. Pelo menos, não o raciocínio abstrato, flexível e tolerante que se deseja para discutir temas filosóficos ou que se aproximem disso durante o período de filosofia como disciplina. Não estando habituados, não exercitando seu poder de concentração, desprezam essa habilidade, que fica relegada a um plano potencial em suas mentes.
A terceira característica inutilizada e assaz importante para revelar a complexidade dos temas filosóficos é o aprofundamento, o contínuo questionar sobre as respostas parciais oferecidas, pois ao homem lhe é impossível abarcar o todo, a não ser por partes. Este exercício de análise que precede a síntese deve ser complexificado a partir da pertinência, coerência, originalidade de mentes curiosas. De novo, essa superficialidade parece ter como origem o tipo de informação privilegiado pela mídia: superficial, anti-reflexivo e, aparentemente, “pronto” para ser “consumido”: sem possibilidade de transformação, diga-se de passagem. À superficialidade propomos construção. Essa construção do conhecimento, própria e legítima de cada um, se faz com
atenção,
análise,
questionamento,
reflexão
e
assimilação
complexa, sob o domínio da concentração filosófica, sempre curiosa e sentindo o prazer proporcionado pela busca do conhecimento filosófico.
Conclusão
Ensinar filosofia se constitui em uma tarefa árdua e prazerosa para os docentes. Deveria ser realizadora, para os docentes e para os discentes. A ampla gama de possibilidades que se abre ao nos referirmos ao método de ensino e ao seu conteúdo, cruzando-os com o seu contexto permite a cada educador o desenvolvimento de um estilo próprio, original, que mais se adeqüe e “funcione” em seu meio escolar.
ANEXO MATERIAL PARA AULA, a partir da 3ª série ensino fundamental PARTE 1 - QUEM SOU EU?
Eu sou Sofia Amundsen, tenho 11 anos e vou à escola. Moro em Esteio, na rua Machado de Assis, 190, numa casa. Minha casa é pintada de vermelho e tem um pátio nos fundos. Tenho um gatinho chamado Cherekan e minha mãe mora comigo. Meu pai trabalha fora, é capitão de um navio petroleiro. Ontem, na minha caixa de correio, apareceu uma carta com o meu nome num envelope bege. Perguntava apenas: quem é você? A mensagem
não
tinha
qualquer
forma
de
saudação,
nem
um
remetente, só estas três palavras escritas a mão, seguidas de um grande ponto de interrogação. Quem a teria colocado na caixa de correio, quem será que me escreveu? Quem sou eu? Será que sou apenas Sofia? E se tivesse outro nome?, Ane Dias, por exemplo. Será que só por isso seria também uma outra pessoa? De repente lembreime que no começo meu pai queria que me chamasse Cecília Amundsen. Eu tentei me imaginar estendendo a minha mão e me apresentando como Cecília. Não, não dava. Toda vez que pensava nisso imaginava sempre outra pessoa. Então, saltei do banquinho e fui para o banheiro com a carta misteriosa na mão. Parei diante do espelho e me olhei fixamente nos olhos. - Sou Sofia Amundsen – eu disse. Como resposta, a garota do espelho não teve a menor reação. Não importava o que eu, Sofia, fizesse, ela fazia a mesma coisa. Com um movimento rápido, tentei me antecipar à imagem do espelho; mas ela foi igualmente rápida. Quem é você? – perguntei.
Também desta vez não recebi nenhuma resposta; por um breve instante, porém, não tive certeza de ter sido eu ou minha imagem no espelho quem tinha feito a pergunta. Com meu dedo indicador, apertei o nariz da figura do espelho e disse: -
Você sou eu.
E como não recebi qualquer resposta, inverti a sentença e disse: -
Eu sou você. Adaptação de “O mundo de Sofia”
PARTE 2 QUEM SOU EU?
Meu nome é [...] Sou: inteligente, lerdo, capaz, amigo, competente, simpático, líder, preguiçoso, solidário, indeciso, perseverante, indeciso, teimoso, brincalhão [...] O que pretendo mudar em mim? [...] O que quero manter em mim? [...] A minha comida preferida é: [...] Gosto de (colecionar figurinha, ver TV, brincar na rua, ir em festa de aniversário, brincar em casa, brincar com meu irmão, esportes, assistir jogos de futebol, ficar horas no telefone, dar presentes, receber presentes, desenhar, jogar jogos eletrônicos no computador, ler, ir ao cinema, viajar, ir à praia, brincar com meu cachorro ou gato, ir à praça, etc...). Gosto de estudar (português, química, física, matemática, etc...). Alguma particularidade? (escolher e trocar de roupa várias vezes antes de sair de casa, palitar os dentes após comer, tirar onda de todos,
ficar no telefone, trocar de celular, beber refri todos os dias, tocar algum instrumento musical, ler gibis, gostar de animais, conversar com meu vô/vó, etc...). Uma mensagem / desejo para o ano que vem: [...]
PARTE 3 – GUIA
As atividades consistirão em: 1. Fazer a leitura pelos alunos do texto adaptado “Quem sou eu?” (parte 1). 2. Questionamentos surgidos do texto devem ser abordados. 3. Explicar que a parte 2 deve ser respondida com muito esmero, pois os alunos guardarão numa caixa distribuída pelo professor todas as “Cartas”, que é o questionário da parte 2. Será a URNA DO TEMPO. Esta caixa será aberta dentro de um ano e se fará uma atividade sobre o que muda e o que permanece em nossa identidade.
Bibliografia ARANTES, Paulo. A filosofia e seu ensino. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996. (Série Eventos). BORNHEIM, Gerd A. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. 11ª ed. São Paulo, SP: Globo, 2003. CASTRO, Eder Alonso (Org.) & RAMOS-DE-OLIVEIRA, Paula (Org.). Educando para o pensar. São Paulo, SP: Thompson, 2002. CHAUÍ, Marilena. Primeira filosofia: lições introdutórias – sugestões para o ensino básico de filosofia. São Paulo, SP: Brasiliense, 1985. COLOMBO,
Olírio
Plínio.
Pistas
para
filosofar
antropologia. Porto Alegre, RS: Evangraf, 1995.
(I):
temas
de
DIRETRIZES Curriculares para o Ensino Fundamental – Parecer CNE/CEB 4/1998. GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia. São Paulo, SP: Cia. das Letras, 1995. GALLO, Sílvio (Coord.) & KOHAN, Walter Omar (org.). A filosofia no ensino médio. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000. GALLO, Sílvio (Co-autor). Ética e cidadania: caminhos da filosofia – elementos para o ensino de filosofia. 13ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2005. GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom: os princípios básicos para uma nova educação. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 1999. KOHAN, Walter Omar (Org.) & WUENSCH, Ana Miriam (Org.). Filosofia para crianças: a tentativa pioneira de Matthew Lipman. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000. MARIE-FRANCE, Daniel. A filosofia e as crianças. São Paulo, SP: Nova Alexandria, 2000. MORAIS, Régis de et al. Filosofia, educação e sociedade: ensaios filosóficos. Tradução de Constança Marcondes César. [S.l.]: Papirus, 1989. REZENDE, Antônio (Org.). Curso de filosofia: para professores e alunos dos cursos de segundo grau e de graduação. 11ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2002. RIBEIRO, Álvaro (Org.); LEAL, Bernardina (Org.); KOHAN, Walter Omar (Org.). Filosofia para crianças na prática escolar. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000. ______. Filosofia na escola pública. Petrópolis: Vozes, 2000. SARDI, Sérgio Augusto. Da dialética do admirar e do perguntar. Véritas (Porto Alegre), v. 42, n. 168, 1997, Porto Alegre, p. 931-936.
______. A vivência como princípio metodológico do filosofar com crianças. Caderno marista de educação, v. 1, n. 1, 2001, Porto Alegre, p. 19-36. SATIRO, Angélica. Pensando melhor: iniciação ao filosofar. 4ª ed. São Paulo, SP: Saraiva, 2005. SPLITTER, Laurance J.; SHARP, Ann M. Uma nova educação: a comunidade de investigação na sala de aula. Trad. de Laura Pinto Rebessi. São Paulo, SP: Nova Alexandria, 2001. TELES, Maria Luiza Silveira. Filosofia para crianças e adolescentes. Rio de Janeiro, RJ: Vozes, 1999.