Marceli Andresa Becker Upf

  • October 2019
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A APROXIMAÇÃO ENTRE ARTE CONTEMPORÂNEA E FILOSOFIA: de como os objetos artísticos se relacionam com a realidade1 Marceli Andresa Becker* [email protected]

A arte, se não o mais espinhoso assunto de que tratam os filósofos, é certamente uma das pautas que figuram no topo de uma enorme lista de temas que se prestam ao trato filosófico. Responder por que esse fenômeno ocorre, segundo Arthur Danto2 em A Transfiguração do Lugar-Comum, texto em que nos embasamos para construir este trabalho, pode nos mostrar tanto aspectos que dizem respeito à filosofia quanto à arte. Uma

vez

que

a

idéia

de

uma

arte

contemporânea

encontra-se

profundamente vinculada à capacidade de o objeto artístico nos colocar perguntas sobre os limites de sua própria definição, postura tipicamente filosófica, não podemos mais entender arte dissociada de filosofia. O bônus é que, nesse caso, temos uma arte que pensa sobre si mesma e em cujo cerne encontram-se deflagradas questões que ela própria levanta a respeito de sua natureza. O ônus é que, segundo Danto, esse raciocínio nos leva a pensar que

as

fronteiras

entre

arte

e

filosofia

por

fim

terminaram

na

Texto elaborado para o VII Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosofia: Filosofia e Sociedade. Esse trabalho é fruto das discussões sobre filosofia da arte desenvolvidas pelas acadêmicas Aline Bouvié, do curso de Música da Universidade de Passo Fundo, Marceli Andresa Becker e Marciana Zambillo, dos quinto e terceiro níveis do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo, respectivamente, e pelo professor orientador Dr. Gerson Luís Trombetta através do projeto de pesquisa intitulado As Interconexões entre Conteúdo e Método: conseqüências para o ensino de filosofia. 1

* *

Acadêmica do quinto nível do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo e bolsista do grupo de pesquisa sobre filosofia da arte orientado pelo professor Dr. Gerson Luís Trombetta. Arthur Danto é professor emérito de Filosofia na Universidade de Columbia, escreveu vários livros sobre temas filosóficos, dentre os quais estão traduzidos para o português A Transfiguração do Lugar-Comum e Após o Fim da Arte, e desde 1984 escreve crítica de arte para o jornal The Nation. 2

contemporaneidade. À arte cabe, nessa perspectiva, existir enquanto e somente enquanto uma espécie de filosofia da arte. Mas, antes de verificarmos se o argumento tem procedência - e se de fato não existem mais os limites que até então separavam essas duas instâncias -, vejamos por quais processos ou movimentos internos a arte passou até estruturar-se como tal no cenário contemporâneo. Nosso trabalho divide-se em três grandes tópicos. Na primeira parte do artigo procuramos analisar por que e em que sentido podemos entender a arte clássica e a arte contemporânea como dois fenômenos que derivam de uma mesma raiz. Em seguida, do longa-metragem Blow-Up3 extraímos subsídios que corroboram nossa hipótese inicial sobre a relação de proximidade entre arte contemporânea e filosofia. E, por último, nas considerações finais, discutimos o caráter auto-reflexivo da arte. Da arte mimética à arte contemporânea Não falamos novidade quando afirmamos que o problema responsável por tirar o sono de muitos artistas e teóricos da arte contemporâneos se refere a uma provável ausência de critérios para compor ou analisar tal arte. Dizemos provável porque, se por um lado não podemos, pelo menos por enquanto, garantir que realmente não existem mais critérios suficientemente fortes para excluir do mundo da arte um objeto pertencente à realidade apenas porque pertence à realidade, por outro, a cena contemporânea nos leva a intuir que o trânsito da realidade para a arte encontra-se de tal forma livre e acessível que passamos a nos perguntar se essas duas instâncias já não convivem num mesmo espaço. A importância dessa colocação, entretanto, começa a fazer sentido única e somente se considerarmos a relação de oposição que existe entre arte e realidade. Longa-metragem dirigido por Michelangelo Antonioni, em 1966, baseado no conto As Babas do Diabo, do escritor argentino Julio Cortazar. 3

A objeção de Platão em torno da arte relaciona-se à possibilidade de sermos enganados pela falsa realidade que criam os objetos artísticos. Não é improvável que ele tenha expulsado os artistas da cidade ideal, na República, em protesto também aos sofistas, que engendram ilusões a partir de seus discursos. (Cf. X, 598d–608b). Mas por ora não nos interessam os embates entre Platão e sofistas. Aqui queremos deixar claro que a preocupação do filósofo

em relação

à

possibilidade de sermos

enganados pela

arte

necessariamente implica a idéia de que a arte se opõe à realidade. Ora, mais do que peça solta de um quebra-cabeça filosófico vigente em um passado distante, esse é o pressuposto sobre o qual repousam ainda a nossa e as mais diferentes concepções a respeito da arte. Ficamos sujeitos ao engano somente quando já está formada a noção de realidade e, conseqüentemente, daquilo que dela se diferencia. Apenas por esse viés é que podemos entender por que Platão precisa expulsar os artistas da cidade ideal. Um segundo passo do filósofo nesse sentido - e que repercutiu muito sobre todo o pensamento ocidental - é estruturar uma hierarquia segundo a qual as Formas são, respectivamente, mais reais e portanto melhores que o mundo sensível e as imagens. É claro que os problemas relacionados à arte tratados por Platão vinculam-se também a outros fatores. Precisamos ter em mente que, se é correto que ele rejeita a arte embasado na certeza de que nada nos impede de tomá-la como realidade, então também precisa ser correto pensarmos que ele se refere a objetos cujas propriedades se mesclem à realidade a ponto de nos fazerem perder de vista os critérios que distinguem arte de realidade. E os únicos objetos que se enquadram nessa categoria, em última instância, são as obras de arte miméticas. Uma análise do teatro trágico feita por Nietzsche pode nos ajudar a entender melhor esse problema deflagrado pelo diálogo platônico. Para Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, a arte do período de Platão integra um contexto em que a mimética, pelo menos no teatro trágico, já

havia passado por dois momentos de drástica transformação. Dionísio, o efetivo herói cênico e ponto central da visão, não está, segundo esse conhecimento e segundo a tradição, verdadeiramente presente, a princípio, no período mais antigo da tragédia, mas é apenas representado como estando presente: quer dizer, originalmente a tragédia é só “coro” e não “drama”. Mais tarde se faz a tentativa de mostrar como real e de apresentar em cena [darstellen], como visível aos olhos de cada um, a figura da visão junto com a moldura transfiguradora: com isso começa o “drama” no sentido mais estrito. Agora o coro ditirâmbico recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para que eles, quando o herói trágico aparecer

no palco, não vejam algum informe homem

mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios. (NIEZTSCHE, 1992, p. 62). Talvez o espectador contemporâneo tenha dificuldades de calcular o impacto que representou, nos primórdios da tragédia, a simples possibilidade de um público considerar a interpretação de um ator no papel de um deus tão legítima quanto a interpretação do deus em seu próprio papel. Não por menos. Somos coerentes quando pensamos que, por melhor que seja sua atuação, um ator não pode ser confundido com a personagem que interpreta em determinada ocasião. Apesar disso, ainda não sabemos que barreira nos impede de pensar que a imitação de um objeto não pode ser considerada o objeto que imita se com ele se parece em todos os aspectos. Recaímos, na verdade, no problema que perturbou Arthur Danto durante alguns anos: por que a caixa de sabão de Andy Warhol é considerada arte se um exemplar idêntico a ela, a caixa de sabão na prateleira do supermercado, não é? E não foi apenas Danto quem se debruçou sobre essas questões. No contexto dos gregos, por exemplo, a diferenciação entre o objeto e sua representação – imitação – parece ter sido garantida pela teoria platônica das Formas, que

estabeleceu uma dicotomia entre mundo sensível e mundo inteligível. Assim, a partir de um critério de verdade determinado através da teoria das Formas, Platão resolveu o problema da distinção entre mundo artístico e mundo real, que hoje, sob outro viés, é resgatado pela arte contemporânea. Ora, se levarmos em conta apenas os aspectos perceptíveis dos objetos para designá-los arte ou não, então, como conseqüência absurda, temos de admitir que todas as cópias idênticas das obras de arte são também arte. Nessa perspectiva, por exemplo, somos impelidos - quase obrigados - a considerar as caixas de sabão expostas no supermercado tão obras de arte quanto possivelmente considerarmos as caixas de Andy Warhol. O herói trágico, para tecer um último comentário a respeito da passagem selecionada,

era

responsável

por

personificar

através

de

seus

atos

desmedidos e de seus sofrimentos a desmedida e o sofrimento de Dionísio. Nesse sentido, embora o deus e o herói não fossem uma só figura, podemos dizer que a história trágica, na medida em que era capaz de torná-los cúmplices, também era capaz de transformá-los em um só. A substituição do deus físico por uma personagem incumbida de representá-lo equivale - para direcionarmos as observações de Nietzsche ao que nos interessa - à substituição de uma realidade (Dionísio, o deus) por um objeto (herói trágico, o objeto artístico) encarregado de representá-la. Além disso, a menos que pensemos que Dionísio de fato existe, nesse caso específico a substituição de objetos significa antes uma substituição de crenças. O espectador da tragédia sujeita-se a abrir mão da crença de que Dionísio precisa aparecer ao público para abrir-se à possibilidade de aceitar como também real e legítima a aparição de alguém que, embora diferente do deus, atue como se fosse o deus. Para trazer o caso aos nossos dias, de forma análoga, podemos nos perguntar sobre o que afinal há nas caixas de sabão de Warhol que nos impede de confundi-las às caixas de sabão das prateleiras do supermercado senão o fato de sabermos - ou acreditarmos - que aquelas são obras de arte enquanto essas não passam de meros produtos do

comércio. Aqui, como podemos perceber, o critério de distinção entre arte e realidade depende da cognição: encontra-se antes no conhecimento que temos do objeto do que propriamente nos aspectos formal e material desse objeto. E, se pensarmos que muitos objetos artísticos contemporâneos são idênticos a objetos reais não porque são produzidos para imitar a realidade, mas sobretudo porque são extraídos da própria realidade como tais para que passem a representá-la artisticamente – como é o caso das caixas de sabão artísticas, que não são mais do que ex-caixas de sabão comerciais -, parecenos que levar em conta esse critério da cognição para atribuir credibilidade à realidade do mundo que uma imitação instaura é imprescindível quando estamos diante de obras de arte. As mudanças que ocorreram desde os objetos artísticos miméticos até as obras contemporâneas são parte da evolução interna da arte e podem nos ajudar a esclarecer alguns pontos que levantamos nesse texto sobre o tema. Basta pensarmos que o problema diagnosticado por Platão em relação aos equívocos que podemos cometer diante de uma possível ausência de fronteiras entre arte e realidade, ainda hoje, sob outro paradigma e num contexto já em muito diferenciado, preocupa filósofos da arte e artistas: como impedir, por exemplo, que da premissa segundo a qual parece não haver mais critérios suficientemente fortes para evitar que todas as coisas se tornem

arte

não

entendamos

que

todas

as

coisas

devam

ser

necessariamente obras de arte? (DANTO, 2005, 113). A esta altura novamente observamos que a dificuldade que se estabelece quando nos debruçamos sobre o fenômeno da arte e suas variáveis, mais cedo ou mais tarde, atravessa o tema da distinção entre arte e realidade. Assim, embora a crítica platônica acerca da arte esteja fundada em um sistema já superado - a teoria das Formas, pela qual a realidade é discriminada segundo uma hierarquia ascendente que vai do falso para o verdadeiro e na qual as imagens (arte mimética, reflexos, miragens) encontram-se no mais baixo degrau da escala -, a preocupação quanto ao

problema de não identificarmos mais os limites que separam arte de realidade é comum tanto a obras de arte miméticas quanto a obras de arte contemporâneas. Comum àquelas porque, se arte é cópia (mimese) de uma realidade, então é falsa em relação a essa realidade e pode nos levar a um conhecimento equivocado sobre ela; comum a essas porque, se na arte mimética os limites entre mundo real e mundo da arte já eram estreitos uma vez que o objeto mimético copiava - e portanto denotava - a realidade, na arte contemporânea a situação torna-se um pouco mais complexa: os objetos começam inclusive a incorporar elementos próprios da realidade. Mas por que objetos tão distintos como os que pertencem à arte contemporânea em relação aos que caracterizam a arte mimética são igualmente considerados arte? O que queremos dizer quando afirmamos que todos são dotados de propriedades artísticas? Que tipo de abertura está implícita no conceito de arte que nos permite posicionar tanto A Fonte, de Marcel Duchamp, quanto As Meninas, de Velásquez, no centro de um mesmo universo? A que espécie de progresso, se é que podemos entender assim, essas considerações prévias apontam a respeito do movimento interno da arte? Que conclusões podemos extrair do fenômeno por que passou a arte ao deixar de restringir-se a objetos miméticos para passar a constituir-se de objetos que representam a realidade e que se auto-representam das maneiras mais complexas possíveis? São inúmeras as inquietações e poucas as respostas de que por ora dispomos para solucioná-las. Mas, se é verdade que não há nada melhor do que primeiramente recorrer à arte para depois tentar

entendê-la,

talvez

o

longa-metragem

Blow-Up,

dirigido

por

Michelangelo Antonioni, nos ajude a avançar nessa empreitada. Quando imitar é questionar a possibilidade de termos acesso à realidade: Blow-Up e os limites da objetividade

David Hemmings, no papel de Thomas, interpreta um fotógrafo que capta através de suas lentes a cena de um suposto assassinato enquanto fotografava um casal numa

praça

qualquer

de

Londres.

Determinado a desvendar o crime, ele amplia em duas ou três vezes a fotografia da cena no intuito de tornar o rosto do possível assassino, que se esconde atrás de um arbusto, cada vez mais nítido. Apesar do mistério que envolve cada tomada do filme, a cena final, que poderia nos oferecer uma solução para o enigma do assassinato, mostra-se um tanto quanto incomum: em vez de nos indicar de quem é o rosto que aparece na fotografia, ou, para considerar outra hipótese, de nos demonstrar que o caso foi apenas produto da imaginação de Thomas ao longo dos alternativos anos de psicodelia, ela nos apresenta um bando de mímicos que finge jogar tênis perto do local do suposto crime cujas circunstâncias Thomas pretende investigar. Sem sentido? Melhor analisarmos mais a fundo. Thomas, que naquele instante averiguava o local do possível assassinato, pára, começa a observar os mímicos e em determinado momento até junta a bolinha de tênis de mentira como se juntasse uma bolinha de tênis de verdade. Na seqüência, ele resolve jogá-la – ou, melhor, resolve fingir que a joga –, volta ao local em que supõe ter acontecido o assassinato e passa a refletir sobre qualquer coisa que foge à interpretação de um espectador mais desatento. A que conclusões, entretanto, pode chegar um espectador atento diante de um cenário como esse? Será que devemos nos sentir enganados porque a última parte de Blow-up, em vez de nos mostrar a quem corresponde o rosto da fotografia, coloca-nos diante de um

grupo

de

mímicos

que

parece

deslocado do restante do enredo? Diante dessas questões, antes de tudo,

devemos averiguar qual é o tema central de Blow-Up. Sabemos que o enredo, embora aparentemente narre apenas a história de um fotógrafo disposto a desvendar um assassinato, apresenta-nos cenas – como a dos mímicos e a do show de rock - que no mínimo indicam um outro caminho de interpretação pelo qual temos como nos guiar. Essas cenas são de tal maneira desconexas daquilo que primeiramente definimos como a temática principal do filme que, depois de assisti-las, passamos a cogitar a possibilidade de haver um outro sentido para a obra. Nesse momento é que nos interrogamos: a que, afinal, Blow-Up se refere? Nossa hipótese, após termos passado por esse trajeto inicial, é de que o tema do filme – ou, de acordo com Danto, o sobre-o-quê da obra (aboutness) – associa-se à relação existente entre arte e realidade, ou seja, ao problema que identificamos quando nos propomos a investigar por que e em que sentido a arte contemporânea aproxima-se da filosofia. Dissemos, portanto, que, apesar de relatar a história de um fotógrafo que investiga um suposto assassinato, Blow-Up em nenhum aspecto diz respeito a fotógrafos, a fotografias e/ou a assassinatos. Correto? Somente se incorrermos no equívoco de pensar que fotografia não é arte e que assassinatos não são eventos concernentes à realidade. Na verdade, de maneira indireta, o enredo indica as questões que tanto nos interessam na medida em que as lentes da fotografia, em tese, apreendem a realidade objetiva e uma vez que a falsa realidade em que se movimentam os mímicos pode representar a falsa realidade que a arte por sua vez instaura. A trama do fotógrafo impelido a estudar as circunstâncias de um suposto assassinato alude à nossa tentativa de apreender a realidade sob conceitos racionais muitas vezes sujeitos a falha. Os mímicos, de acordo com esse horizonte de interpretação, são justamente os responsáveis por colocar em xeque as certezas de Thomas a respeito da possibilidade de termos acesso à realidade, tal qual ela se apresenta, assegurados na certeza de que dispomos de um aparato

técnico

eficiente

para

tal

tarefa

(máquinas

fotográficas,

computadores, microscópios e outras tecnologias). O mundo da arte, instaurado e representado pelos mímicos em Blow-Up, é de tal natureza que pode questionar os limites de nossa racionalidade diante da realidade, como ocorreu a Thomas, sem, entretanto, precisar derrubar-se a si mesmo. Isso porque a arte, sobretudo a arte contemporânea, diferentemente das outras formas de conhecimento, não se estrutura a partir de um sistema conceitual preciso e dotado de parâmetros nítidos. O mundo artístico constitui possivelmente uma das únicas dimensões do conhecimento que se encontra a todo instante sujeito a uma revolução de base. (DANTO, 2005, p. 109-110, 112). Essa frase, em outras palavras, quer dizer que, se tentarmos, como acontece nas demais ciências, estabelecer um estatuto conceitual rígido e estável sobre seus objetos, corremos o sério risco de deixar à margem muitas de suas características mais fundamentais. O caráter impreciso da definição de arte é o que, por mais paradoxal que possa parecer, define a sua natureza. A arte caracteriza-se como tal por levar a sério - e nesse caso distinguir-se da realidade - a fantasia que ela própria instaura. O mundo da realidade não leva a fantasia a sério. Thomas decide ampliar a foto porque supõe tratar-se de um assassinato real, e portanto em nenhum sentido fantasioso, captado pelas lentes de sua câmera. O grupo de mímicos, em contraposição ao mundo da realidade, é que lhe anuncia a possibilidade de haver um ângulo cujas perspectivas jamais serão objetivadas através das lentes de sua câmera. Porque quem finge jogar tênis faz mais do que apenas fingir jogar tênis: instaura um mundo que, por ser fantasioso, opõe-se ao que imaginamos não ser fantasioso, ou seja, à realidade. Não por outra razão Danto disse que nos equivocamos ao tentar definir a arte como “todo o objeto que possui forma significativa”. (DANTO, 2005, p. 112-113). O erro, nesse sentido, está em pensarmos que a concepção de arte reduz-se apenas ao que significa o objeto artístico. Ora, se pensamos assim, desconsideramos uma das características mais peculiares ao objeto artístico, a saber, seu

caráter relacional. Danto apontava justamente para esse horizonte duplo constituído por arte de um lado e realidade de outro – quando disse que os objetos artísticos são predicados relacionais específicos e, como tais, precisam ser tomados também – embora não apenas - segundo essa perspectiva. (DANTO, 2005, p. 114). O estatuto artístico de um objeto está profundamente associado ao quê da realidade esse objeto se refere (aboutness). Na arte mimética, por exemplo, em que o termo representação (imitação) era lido como sinônimo de similitude, essa relação entre arte e realidade acontecia de forma bem mais nítida. É porque pensava que as representações dos objetos devem ser semelhantes aos objetos representados que Sócrates recorre a um espelho para explicar que a arte, em sua natureza, constrói-se enquanto reflexo de uma realidade sensível. (DANTO, 2005, p. 42). A crítica ao modelo socrático de se pensar a arte também se encontra em Blow-Up. Não por menos são mímicos, e não quaisquer outras pessoas ou circunstâncias, que indicam o erro em que Thomas incorre ao tentar objetivar a realidade através de sua câmera fotográfica. O grupo de artistas nos mostra que, ao contrário do que imaginava Sócrates, fingir jogar tênis não é menos verdadeiro do que jogar tênis de fato. Nessa perspectiva, a menos que atribuamos mais verdade ao mundo sensível do que às imagens, como fez Platão na teoria das Formas, da premissa segundo a qual a arte imita a realidade não podemos deduzir que o universo estruturado pela arte é menos verdadeiro do que o universo concernente à realidade. A relação, em última análise, não ocorre porque a arte se encontra submetida à realidade, mas na medida em que a partir da realidade a arte pode estruturar seu universo próprio e igualmente real. Antonioni parece estar consciente da capacidade que a arte tem de estruturar mundos tão legítimos quanto o real. O grupo de mímicos, ao fingir jogar como se diante de seus olhos houvesse mesmo uma bolinha de tênis, obriga Thomas a aceitar a hipótese de que nada impede que as lentes de sua máquina fotográfica capturem uma cena qualquer que diante de seus olhos

se pareça mesmo com a cena de um crime ou ainda de qualquer outra coisa. Percebamos que a bolinha de tênis de mentira está para os mímicos do mesmo modo que o suposto assassino está para Thomas: apesar de movimentarem suas raquetes, não podemos dizer que os mímicos jogam tênis; apesar de todas as evidências na fotografia, não podemos afirmar que um dia houve algum assassino. Nesse sentido, ao simular uma realidade falsa como se fosse verdadeira, o grupo de mímicos sugere a Thomas que nada evita que ele faça o mesmo dentro de sua realidade. Afinal, assim como a performance dos imitadores nos leva a supor a existência de uma bolinha de tênis – ainda que de mentira -, as circunstâncias, o jogo de luz e de sombra e o ângulo da máquina fotográfica podem ser fatores que levem Thomas a supor a existência de um assassino. Por levantar problemas dessa espécie é que a arte, conforme dissemos no início desse texto, aproxima-se da filosofia; e, não obstante, por fazê-lo através de objetos que são também objetos artísticos, e não textos dotados de bases conceituais, é que ela se distancia da filosofia. Blow-Up, longametragem que questiona os limites entre arte e realidade através de um objeto artístico, o filme, é exemplo da situação que descrevemos. Talvez aqui esteja a especificidade da arte em relação a outras áreas do conhecimento: embora questione os seus próprios limites através de si mesma, a arte é a única que ao fazê-lo jamais se coloca em risco. Mesmo a filosofia, que adota o autoquestionamento como uma das posturas peculiares à sua área de abrangência, se comparada à arte apresenta limites bastante definidos. Não consideramos mais filosofia, por exemplo, todo aquele tipo de saber desprovido de uma ordem lógica. Embasados nesse critério diferenciamos, com maior ou menor dificuldade, textos literários de textos filosóficos. Mas o que dizer da arte, cujos limites não são necessariamente desenhados pela linha de uma ordem lógica estruturada? Como caracterizar A Fonte, de Marcel Duchamp, que, apesar de não responder aos critérios que levamos em conta quando pretendemos distinguir obras artísticas de outros objetos,

não coloca em risco o próprio mundo da arte? Aliás, bem pelo contrário, dispõe da capacidade de redirecioná-lo por completo? De que maneira podemos apreender conceitualmente o termo arte se os próprios objetos artísticos fazem-se arte enquanto objetos que questionam e sobretudo revisam os limites desse termo? Blow-Up nos choca por ser um dentre os objetos artísticos cujo conteúdo questiona os limites do próprio conceito de arte. Assistimos ao filme no intuito de descobrir o que ele é ou em que sentido figura na lista dos objetos considerados arte e percebemos que ele mesmo questiona quem é ou em que sentido figura na lista dos objetos considerados arte. O mais interessante é que, ao fazê-lo, ele não se autodestrói. Não ocorre de desligarmos o televisor ao percebermos que os mímicos de Blow-Up, quando questionam os critérios pelos quais Thomas diferencia fantasia de realidade, também colocam em xeque o critério em que nós, espectadores, embasamo-nos para considerar todas as coisas, sobretudo o filme, fantasia ou realidade. Não ocorre de desligarmos a TV ainda que não saibamos responder a essa pergunta e ainda que dessa resposta dependa a classificação que fazemos do próprio filme. Isso acontece apenas porque o objeto artístico pode exercer um papel duplo e - ao passo que à primeira vista tomamos as duas partes desse papel como autoexcludentes - aparentemente paradoxal: constrói-se enquanto arte ao mesmo tempo em que questiona a natureza da arte. Qualquer semelhança com a linguagem não é mera coincidência. O problema assemelha-se à dificuldade dos filósofos da linguagem quando percebem que o seu objeto de estudo (linguagem) constitui também o meio pelo qual eles podem estudá-lo. Assim como a linguagem, o objeto artístico, enquanto veículo semântico, é capaz de colocar perguntas sobre seus limites e sua natureza através de si mesmo. A obra de arte, tal como a linguagem, é autoreflexiva porque pode nos aparecer simultaneamente como objeto formal, aquele aspecto material a que devemos atribuir ou não o estatuto de arte, e como objeto semântico, aquela parcela da obra diante da qual deduzimos

que algo no objeto mesmo questiona seus próprios parâmetros. Simultaneamente porque não existe, como costumamos imaginar, uma separação entre o que pergunta e o objeto sobre o qual se pergunta no caso da arte e da linguagem. As duas partes dessa dupla performance do objeto artístico não são auto-excludentes justamente porque a arte não se reduz à forma do objeto artístico nem ao seu conteúdo semântico. E é nessa possibilidade de não reduzir-se a um ou a outro aspecto – nessa abertura do conceito de arte - que se localiza a garantia de que as duas parcelas do duplo papel do objeto artístico não se auto-excluem. Por causa da auto-reflexibilidade da arte Danto afirmou que o objeto artístico contemporâneo aproxima-se da filosofia. No que diz respeito a essa aproximação, o longa-metragem Blow-Up, por abordar os limites entre fantasia e realidade, pode ser considerado, respectivamente, sob três aspectos: 1) como crítica à maneira pela qual nos relacionamos com a realidade - e por conseguinte como um tipo de saber que, da mesma maneira que a filosofia, pressupõe um conceito já formado de realidade -; 2) como sugestão de que a arte se instaura na medida em que, da mesma forma que a filosofia, questiona os limites dessa realidade; 3) como o indicativo de que, por sua auto-reflexibilidade - aspecto semelhante ao da filosofia, que tem em si mesma um objeto de estudo -, a arte está apta a colocar questões sobre si mesma e provocar uma revolução de base em seus critérios sem se autodestruir. Um último ponto a ser destacado a partir da performance dos mímicos está na crítica à idéia de que representação e similitude são sinônimos. Vimos que a associação equivocada desses dois conceitos nasceu entre os gregos, na arte mimética, e levou Platão a expulsar os artistas da cidade ideal. Assim, embora a arte contemporânea já nos

tenha

mostrado

que

um

objeto

pode

representar

outro

sem

necessariamente parecer-se com ele4 – que um objeto não precisa parecerHá obras de arte cujo tema refere-se à associação que costumamos fazer entre representação e similitude. O quadro La Trahison des Images, no qual um cachimbo está pintado sobre a inscrição “isto não é um cachimbo”, traduz essa tentativa de 4

se com aquilo a que se refere (aboutness) -, tendemos ainda a pensar que similitude é condição para representação. Apesar de a arte contemporânea ser responsável por inaugurar uma nova forma de vincular arte e filosofia, a aproximação dessas duas instâncias não é recente. Nietzsche, também n’O Nascimento da Tragédia, atribui a falência do espírito trágico na arte grega clássica à intervenção da razão socrática no texto de Eurípides. Talvez ele tenha antecipado uma crítica que Danto desenvolve mais tarde em relação à abordagem que os filósofos fazem da arte quando tentam limitá-la ao que prevêem seus sistemas e parâmetros conceituais. Mas as vantagens e desvantagens decorrentes da aproximação entre arte e filosofia já é tema para um outro texto. Referências bibliográficas BLOW-UP: depois daquele beijo. Direção: Michelangelo Antonioni. Los Angeles: Warner, 1966. 1 DVD. DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005. COELHO, Teixeira. A relação entre produção artística e reflexão teórica. Disponível em: < http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.event_pres/simp_sem /pad-ped0/documentacao-f/conf02/conf02_rel_imersivo>. GHIRALDELLI, Paulo Jr. Entrevista com Arthur Danto. Disponível em: < http://www.filosofia.pro.br/modules.php?name=News&file=article&sid=50>. NIEZTSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

desvincular o aspecto formal da obra a (a ilustração do cachimbo) do objeto real com o qual ele se assemelha (o cachimbo que podemos utilizar para fumar).

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