Luciana Rodrigues Alves Usp

  • October 2019
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A CRÍTICA AO MITO EM KAFKA A PARTIR DA QUESTÃO DA JUSTIÇA: uma leitura segundo Walter Benjamin e T. W. Adorno. Luciana Rodrigues Alves* [email protected]

Este artigo consiste numa interpretação de dois contos de Kafka, precisamente “O veredicto”1 e “Na colônia penal”2, escolhidos em virtude da maneira privilegiada como tecem considerações a respeito da relação entre a justiça, o direito e o poder patriarcal. Nosso intuito através desta interpretação foi o de mostrar como Kafka parte da crítica à justiça e ao direito – questões que talvez possamos colocar, a partir da perspectiva da totalidade, como fenômenos – para chegar à análise da essência, isto é, o mito como o responsável pela perpetuação da injustiça. Deste modo, podemos nos arriscar inclusive a afirmar que Kafka esboçou em sua literatura uma teoria sobre a relação intrincada entre mito e esclarecimento, mas lhe deu forma e tratamento diferenciados do que se faz habitualmente em filosofia. Neste artigo, pretendemos dar pistas sobre o pensamento presente na literatura kafkiana contando sobretudo com o apoio dos textos de Walter Benjamin e de T. W. Adorno sobre o tema. “Seja justo”3. Esta é a lei que consta das folhas ornamentadas do oficial da colônia penal e que deve ser inscrita na pele do infrator. Este

é

o

mandamento

que

primordialmente

se

impõe

aos

Doutoranda USP, bolsista FAPESP. Título do projeto de doutorado: A crítica em T. W. Adorno. Telefones: (19) 3241-9173 ou (19) 9611-2478. End: Rua Cônego Nery, 140, 44, Guanabara. Campinas-SP. CEP: 13076-080. *

KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. 1

KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. 2

KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 61. 3

1

personagens de Kafka, incessantemente acompanhado da consciência amarga da impossibilidade de satisfazê-lo. O tema da justiça é um dos alicerces da obra kafkiana e é a partir dele que pretendo tentar contribuir com uma interpretação que segue tateando cautelosa o interior de suas narrativas. A estrutura tribunalesca caracteriza inúmeros de seus escritos, desde “O veredicto”, em que o pai moribundo subitamente se levanta com toda a força ancestral dos patriarcas e condena o filho à morte até a “Carta ao pai”4, que foi originariamente escrita como um documento de ordem pessoal, sem um objetivo literário explícito. Kafka, todavia, era mestre em transformar vida em literatura e uma carta assim densa, em que o escritor pretendia um ajuste de contas com o pai, não escapou ao espírito de sua letra. A dinâmica da carta se dá como se Kafka estivesse primeiramente apresentando sua defesa – ele é o réu deste processo, magro como o condenado da colônia penal, desaprendeu a falar5 como ocorreu a Gregor Samsa depois da metamorfose. Inúmeros são os atributos e gestos com os quais Kafka refere-se a si mesmo que nos permitem identificá-lo a suas personagens, em especial àquelas destinadas à morte e ao fracasso. Em grande medida, os temas nucleares de sua literatura estão presentes também nesta carta, o que nos leva a supor que nela há um impulso literário insuspeitado para o próprio autor. Precisamente ao final, depois de apresentadas as provas da defesa, Hermann Kafka dá o seu veredicto ao filho Franz. Ao desempenhar simultaneamente os papéis de juiz e promotor, o patriarca dos Kafka bem como o pai de “O veredicto”, não conhece misericórdia. A crítica a este poder desmedido é subjacente à obra kafkiana e se configura KAFKA, F. “Carta ao pai”. In: Obras Completas, vol 2, São Paulo, Companhia das Letras, 1997. 5 KAFKA, F. “Carta ao pai”. In: Obras Completas, vol 2, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg 21. 4

2

como um desdobramento do tema da justiça. Sobre isto escreve Kafka: Seja como for, você é desde sempre um tema central tanto das nossas conversas como dos nossos pensamentos, mas na realidade não nos reunimos para maquinar coisas contra a sua pessoa, e sim para analisar juntos, de longe e de perto, com todo empenho, brincadeira, seriedade, amor, obstinação, ira, aversão, resignação, consciência de culpa, com todas as energias da cabeça e do coração, esse processo terrível que paira entre nós e você, em todos os pormenores, por todos os lados, sob todos os pretextos – processo em que você afirma constantemente ser juiz, embora seja, ao menos no principal, (aqui deixo aberta a porta para todos os equívocos, que naturalmente podem suceder ), uma parte tão ofuscada e fraca como nós.6

Esta

é

uma

passagem

lapidar

porque

foi

cunhada

num

entrecruzamento entre os temas da justiça e do poder patriarcal, além da vida e da obra de Kafka. A hipótese de leitura que aqui apresento está justamente baseada nisto e consiste na consideração de que a força ancestral dos patriarcas é a fonte do direito em seus primórdios e se constitui enquanto uma força mítica que se reproduz em seu interior 7. Esses patriarcas foram os primeiros juízes e sua legitimidade para julgar era advinda do modelo divino em que Deus decide sobre a vida e a morte de seus filhos. A partir desta relação entre pai e filho, homens e mulheres, o direito se constituiu. Isto significa que o direito nasceu exatamente da dominação e não da liberdade. Deste modo, o direito reproduz a desigualdade e a injustiça que o constituíram, independentemente deste ser escrito ou não. Walter Benjamim nos ajuda a esclarecer a questão: KAFKA, F. “Carta ao pai”. In: Obras Completas, vol 2, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg 41, 42. 6

ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, pg 19 -52. 7

3

No mundo primitivo, as leis e normas são não-escritas. O homem pode transgredi-las sem o saber. (...) O mesmo ocorre com a instância que remete K. a sua jurisdição. Ela remete a uma época anterior à lei das doze tábuas, a um mundo primitivo, contra o qual a instituição do direito escrito representou uma das primeiras vitórias. É certo que na obra de Kafka o direito escrito existe nos códigos, mas eles são secretos, e através deles a pré-história exerce seu domínio ainda mais ilimitadamente.8

A crítica ao direito e à (in)justiça são os modos privilegiados pelos quais Kafka critica o mito. Seguindo a leitura de Benjamin, este pode ser criticado porque a razão e a astúcia introduziram estratagemas no mito abrindo a possibilidade de que este seja vencido. Podemos ainda afirmar que o elemento que Kafka mobiliza contra o direito – e conseqüentemente contra o mito - em nome da justiça é o comportamento ascético do estudo. Este conduz ao passado e converte a existência em escrita. O estudo visa a recuperar fragmentos da própria existência, compreeender a si mesmo sem a colocação de metas a serem atingidas no futuro que poderiam prejudicar a realização dos desejos, como o que ocorre na parábola kafkiana da viagem à aldeia. Respeitando a intenção de investigar a relação entre o poder patriarcal e o direito, proponho-me a analisar as novelas “O veredicto”

e “Na colônia penal” sem deixar de fazer breves

apontamentos sobre o romance “O Processo”9. Em cada uma destas narrativas um aspecto particular do tema da justiça será analisado. No caso da primeira novela citada, o fio condutor da interpretação é o poder despótico dos patriarcas. Na segunda, de que modo “forças BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.” In: Obras Escolhidas, Magia e técnica, arte e política, vol 1, Brasília, Ed. Brasiliense, 1985, pg 140. 8

KAFKA, F. “O Processo”. In: Obras Completas, vol 3, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. 9

4

arcaicas”10 – como o próprio poder patriarcal - se mantêm em diferentes procedimentos judiciais, inclusive nos ditos esclarecidos. O romance acima referido tem uma incrível profusão de temas relacionados à justiça que, em face dos limites deste trabalho, não poderei abordar. Sobre o “O veredicto” O título desta narrativa - “Das Urteil” -

já tem muito a nos dizer

sobre o que se seguirá. “Urteil” pode significar, por um lado, veredicto, sentença ou, por outro lado, processo, julgamento. Isso de deve à riqueza peculiar da língua alemã que possui um vocabulário latino e outro mais propriamente germânico. “Urteil” também pode significar juízo, seu sentido habitual na filosofia. Poderíamos remeter estes sentidos à raiz da palavra, isto é, à “Teil’’ que significa parte, fração ou à “teilen” que significa dividir. Deste modo, poderíamos tentar colocar no centro da discussão a afinidade existente entre o ato de sentenciar e o de dividir - separar o bem do mal - e sua (im)possibilidade. Desde o Antigo Testamento esta tarefa foi confiada a Deus e depois, seguindo este modelo, aos patriarcas. Surge uma dúvida, todavia, acerca da capacidade ou não dos patriarcas de serem os representantes divinos na terra e, conseqüentemente, acerca da legitimidade de seus julgamentos. De acordo com a leitura que

proponho,

Kafka

estaria

justamente

mostrando

como

os

patriarcas, a despeito de seu inegável poder, são na realidade inábeis para uma tarefa desta magnitude pois são também frágeis, são também partes litigantes no processo. O protagonista desta narrativa é Georg Bendemann, um jovem comerciante que está prestes a se casar e que escreve uma carta a BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.” In: Obras Escolhidas, Magia e técnica, arte e política, vol 1, Brasília, Ed. Brasiliense, 1985, pg 154. 10

5

um amigo que se encontra no estrangeiro para lhe dar a notícia de seu noivado. Georg tem dúvidas sobre se deveria ou não contar isso ao amigo, já que alguém em suas condições poderia se ferir com tal informação. Assim o narrador descreve o amigo de Georg: Assim é que ele se desgastava inutilmente no estrangeiro: a exótica barba cheia ocultava mal o rosto tão conhecido desde os anos de infância e a cor amarela da pele parecia apontar para uma moléstia em evolução. Como ele contava, lá não mantinha nenhuma ligação autêntica com a colônia dos seus conterrâneos e quase nenhum contacto social com as famílias do lugar, de maneira que se encaminhava definitivamente para a vida de solteiro.11

Georg não sabia ao certo o que deveria escrever a um amigo assim, “que evidentemente havia saído dos trilhos e a quem se podia lastimar mas não prestar auxílio”.12 Atendendo aos pedidos da noiva, Frieda Brandenfeld, que argumentava sob seus beijos, o rapaz decidiu contar tudo a ele. Após a finalização da carta, Georg procura pelo pai em seu quarto, ao qual já não ia há meses. O narrador nos explica que eles se viam na loja, almoçavam juntos num restaurante e, à noite, sentavam-se na sala de estar comum cada qual com o seu jornal. A tentativa de estabelecer um diálogo com o pai exige que Georg atravesse um pequeno corredor escuro e que se depare com a escuridão de seu quarto, cuja janela dava para um muro alto. Apesar da velhice, das roupas de baixo sujas, da parca alimentação e da tristeza pela morte da mãe de Georg, a figura do pai ainda o faz pensar : “Meu pai continua sendo um gigante”13. A intenção do rapaz KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 10. 11

KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 10. 12

KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 15. 13

6

fora a de contar ao pai que havia anunciado seu noivado ao amigo de São Petesburgo. Ao ouvir isto, afirma o pai: Você veio a mim para se aconselhar comigo sobre este assunto. Isso o honra, sem dúvida. Mas não é nada, é pior do que nada, se você agora não me disser toda a verdade (...) Você realmente tem esse amigo em São Petesburgo?14

Georg fica embaraçado com a pergunta como se ela não fosse totalmente

descabida.

Na

tessitura

do

texto,

Kafka

monta

cuidadosamente uma série de ambigüidades que unem Georg a seu amigo. Podemos afirmar isto com base na advertência que já nos fizeram Benjamin15 primeiramente, e depois Adorno de que Kafka observou cuidadosamente o preceito de não construir imagens. Adorno afirma : “Às vezes as próprias palavras, sobretudo as metáforas, se libertam e ganham uma existência própria.”16 Adorno exemplifica isso através do modo particular como Kafka fez uso da expressão coloquial alemã “estar junto à bomba” que significa rigoroso cumprimento do dever. O funcionário Sortini do romance “O Castelo”17 aparece efetivamente junto a uma bomba. No caso específico desta narrativa, podemos propor uma interpretação neste sentido e sugerir que há uma identidade entre o amigo “que saiu dos trilhos” e Georg. Vejamos como esta se dá. A resposta de Georg à pergunta desconcertante do pai é a de que “mil amigos” não o substituiriam. Além disso, passa a cuidar dele, KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 16, 17. 14

BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.” In: Obras Escolhidas, Magia e técnica, arte e política, vol 1, Brasília, Ed. Brasiliense, 1985, pg 155. 15

ADORNO, T. W. “Anotações sobre Kafka” In: Prismas, São Paulo, Ática, 2001, pg 242. 16

KAFKA, F. “O castelo”. In: Obras Completas, vol 8, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. 17

7

sugere que ele se mude para o quarto da frente, repouse, siga as prescrições médicas, alimente-se melhor. Seu pai novamente o acusa: “_ Você não tem nenhum amigo em São Petesburgo. Você sempre foi um trapaceiro e não se conteve nem mesmo diante de mim.”18 O rapaz continua sua defesa neste processo simultaneamente aos cuidados com o velho e leva-o para a cama. “Mas mal o pai ficou na cama tudo pareceu estar bem”19 diz o narrador sobre como Georg sentia-se, desse modo, menos ameaçado com a presença do patriarca. Este é o momento crucial da inversão pois o pai moribundo se levanta subitamente munido de uma força ancestral. Poderíamos nos arriscar a propor uma interpretação segundo a qual o fato de ele estar

isolado

num

quarto

escuro,

lendo

jornais

antigos,

aparentemente derrotado e inesperadamente se levantar com todo o vigor represente o modo como Kafka vê as forças arcaicas que atravessam sua ficção. Elas estão momentaneamente esquecidas, mas podem se manifestar a qualquer momento e se fazer valer. Os conteúdos do mundo primitivo de onde essas forças emanam, podem significar também esperança e não apenas opressão. Sobre isto afirma Benjamin: Mas o esquecimento – e aqui atingimos um novo patamar na obra de Kafka – não é nunca um esquecimento individual. Tudo que é esquecido se mescla a conteúdos esquecidos do mundo primitivo, estabelece com ele vínculos numerosos, incertos, cambiantes, para formar criações sempre novas 20 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 18. 18

KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 19. 19

BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.” In: Obras Escolhidas, Magia e técnica, arte e política, vol 1, Brasília, Ed. Brasiliense, 1985, pg 156. 20

8

Após deitar-se diz o pai: “Estou bem coberto?”21. Com a resposta afirmativa do filho, “atirou fora a coberta com tamanha força que por um instante ela ficou completamente estirada no vôo e pôs-se em pé na cama, apoiando-se de leve só com uma mão no forro.”

22

O pai

acusa o rapaz de querer enterrá-lo porque tinha decidido casar-se. Georg fica atordoado e submete-se cada vez mais à autoridade deste. Sua tristeza é descrita pelo narrador como se o amigo “que subitamente o pai conhecia tão bem” estivesse perdido na vasta Rússia, sua

loja estivesse vazia

e saqueada, as

mercadorias

destroçadas. A sentença paterna continua e a questão central do processo deixa de ser a existência ou não do amigo, que agora o pai afirma conhecer e amar, mas sim o casamento de Georg, a vivência de sua sexualidade, que teria profanado a memória da mãe. A esta altura o pai se proclama o representante do amigo, alguém que teria lhe mandado cartas contando a situação de Georg a sua revelia, sobretudo em relação

ao

noivado.

O

poder

do

pai

vai

gradativamente

se

intensificando até culminar no veredicto. O patriarca então confessa que havia esperado por anos o momento de sentenciar o filho e brada : “Por isso saiba agora: eu o condeno à morte por afogamento! ”23 Georg sai do quarto ao som do desabar do pai sobre a cama, como se suas últimas forças tivessem sido consumidas neste julgamento. Isso poderia ser visto como uma confirmação de que ser juiz neste processo em que ele, de fato, é parte foi extenuante. Por outro lado

KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 20. 21

KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 20. 22

KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 24. 23

9

fica também a impressão de que esta era a sua “missão”, seu papel obrigatório numa história que há séculos se repete. Georg passa correndo pela escadaria e quase atropela a criada que vendo-o naquele estado cobriu o rosto com o avental e exclamou assustada : “_ Jesus ! ”

24

Tudo se passa como se o rapaz estivesse

sedento por seu próprio sacríficio. “Já agarrava firme a amurada como um faminto à comida.”25 Salta sobre esta como o excelente atleta que tinha sido para orgulho dos pais e morre confirmando em voz baixa seu amor por eles, como se seu sacrifício fosse em seu nome. Ambos os patriarcas, Deus e o pai de Georg, pela sua honra, exigiram dos filhos a morte. O tema da repetição na ficção kafkiana pode ser acompanhado em inúmeras passagens, como por exemplo em “O Processo”26, quando os guardas corruptos que levaram as roupas de K. e comeram seu café-da-manhã foram por ele mesmo acusados e, em razão disso, torturados. K. tenta evitar que o espancador cumpra sua função, tenta suborná-lo, mas justamente este é incorruptível. Neste sentido, a corrupção muitas vezes é vista como uma esperança. Ao perceber que seus esforços eram em vão, K. foge do quartinho de despejo pois não agüenta a crueldade da cena. No dia seguinte abre novamente a porta e, para sua surpresa, tudo continua igual. Talvez isso possa indicar que, para Kafka, o que se desenrola diante de nossos olhos é a repetição do mito e não propriamente história. A partir desta afirmação poderíamos colocar a idéia de que o mito que Kafka critica parte do direito mas vai muito além dele. Sobre isto nos diz Adorno:

KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 24. 24

KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 25. 25

KAFKA, F. “O Processo”. In: Obras Completas, vol 3, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. 26

10

A sua obra também se relaciona hermeticamente com a história: um tabu pesa sobre este conceito. A noção do caráter invariante e natural do curso do mundo corresponde à eternidade do instante histórico; o instante, o absolutamente transitório, é uma parábola da eternidade do perecimento, da danação. O nome da história não deve ainda ser pronunciado, pois aquilo que seria história, o outro, ainda não se iniciou.27

No momento da morte de Georg o trânsito sobre a ponte era interminável e um ônibus provavelmente abafou o barulho de sua queda no rio de frente a sua casa. Este é, por sinal, o mesmo rio que o rapaz contempla da janela de seu quarto no começo da narrativa. Esta foi uma morte sem sepultura e “criminosa” no sentido de que o suicídio é proibido tanto para católicos quanto para judeus. O sacrifício prescrito pela tradição, encenado e reencenado por diversas gerações se configura como um “crime”. Creio que a crítica kafkiana ao mito pode ser neste final fortemente sentida. Sobre “Na colônia penal” A colônia penal é uma ilha na qual há um comandante, capitães, oficiais, suas senhoras e estivadores em meio a “gente pobre e humilde”28. A estrutura de poder instituída pelo novo comandante recebe a visita de um ilustre convidado, o explorador, que representa a “visão européia das coisas”29. Este é um momento de transição de um patriarca para outro e conseqüentemente de uma forma de poder para outra. Novas leis e procedimentos judiciais podem surgir. O antigo comandante não apenas faleceu mas teve também seu sistema jurídico-político superado. Uma prova disso é que seu túmulo ADORNO, T. W. “Anotações sobre Kafka” In: Prismas, São Paulo, Ática, 2001, pg 254. 27

KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 69. 28

KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 52. 29

11

fica num lugar escondido, embaixo de uma mesa na casa de chá pois não foi permitido seu sepultamento no cemitério. Isto é visto como uma desonra por seu maior adepto, o oficial. A controvérsia em torno da qual se move a história refere-se ao procedimento judicial da colônia penal, onde, segundo o explorador, “eram necessárias medidas excepcionais” e “se precisava proceder até o limite de modo militar”30. É interessante notarmos como Kafka criou uma atmosfera em que tudo tem caráter excepcional. Trata-se de um regime de exceção em um lugar isolado... Esta é a mesma técnica literária que Kafka utilizou para construir “O foguista”31 porque nesta narrativa ocorre um julgamento num navio, seu comandante concentra todas as figuras de poder, inclusive as de juiz e legislador, as pessoas não conhecem as leis que se modificam a cada novo país onde navio aporta, etc. Podemos intuir que o novo comandante desaprova o procedimento judicial instituído pelo antigo comandante, de acordo com o qual os condenados são executados através de um aparelho que inscreve em sua pele a lei infringida. Tal aparelho é composto por três partes, a cama, o desenhador e o rastelo, ao qual cabe a execução da sentença propriamente dita. Este aparelho tem uma organização complexa e promete a redenção. Tal organização merece ser analisada mais detalhadamente. O oficial a explica admirado ao explorador que se deixa encantar pelo aparelho a despeito de toda crueldade que ele possa representar. Isso indica uma afinidade entre a “visão européia” do explorador, que inclusive falava francês - referência clara ao Iluminismo - e o oficial e seu barbarismo. Creio que o que Kafka quer nos mostrar é que entre as luzes, não obstante os progressos que tenha de fato alcançado, há KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 39. 30

KAFKA, F. “O foguista”. In: Obras Completas, vol 7, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. 31

12

um elemento regressivo, não humanista, que se perpetua desde as épocas mais remotas e que se manifesta de modo privilegiado nos sistemas jurídico-políticos. A sugestão de leitura que faço neste trabalho é a de que esse núcleo de injustiça que se perpetua é uma “força arcaica” constitutiva do direito em seus primórdios. Trata-se da relação desigual entre pai e filho, que serve de modelo para todas as outras num sistema patriarcal. A posição do explorador é ambígua porque ele, no início, ouve de maneira desinteressada as explicações do oficial sobre o aparelho, mas aos poucos se vê conquistado por sua organização elaborada. Esta foi obra do antigo comandante, que além de exercer os papéis de poder era também engenheiro, químico etc. Esta é uma nova referência ao Iluminismo e a seu espírito enciclopedista. Há também a questão da autonomização do aparelho, cujo exemplo máximo é a execução do oficial, seu único operador, pois em princípio não haveria quem o acionasse. De qualquer modo agora não podia mais alcançar a manivela; nem o soldado nem o condenado iriam encontrá-la e o explorador estava decidido a não se mexer. Não foi necessário: mal tinham sido ajustadas as correias a máquina começou a trabalhar; a cama vibrava, as agulhas dançavam sobre a pele, o rastelo oscilava para cima e para baixo.32

No início da narrativa, quando o oficial está apresentando o aparelho

ao

explorador,

esta

questão

da

autonomização

da

organização do aparelho e até da própria colônia penal também pode ser vista. O oficial explica que a invenção do aparelho e a instalação da colônia penal são obra do antigo comandante. Quando ele morreu, seus adeptos já sabiam que a organização da colônia (e também do aparelho, num outro nível de entendimento) é tão fechada em si mesma que mesmo que seu sucessor tivesse planos novos, não

32

KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 65.

13

poderia mudar nada durante muitos anos. O novo comandante inclusive reconheceu isso. Com isso, podemos estabelecer uma relação de afinidade entre os procedimentos judiciais do antigo e do novo comandante, além da já citada afinidade do oficial com o explorador. Temos, portanto, três modelos de sistemas judiciais que remetem à autoridade do primeiro patriarca, o fundador. Lembremo-nos de que ao final, quando o explorador entra na casa de chá, tem que se ajoelhar para ler a profecia

inscrita

na

lápide

do

antigo

comandante.

Quando

o

explorador terminou de ler viu os homens ao seu redor rindo como se a profecia fosse ridícula e como se “o convidassem a ser da mesma opinião”33. Em face desta atitude, o explorador “agiu como se não o notasse”, o que nos deixa margem a pensar que ele teve uma atitude de reverência em relação ao antigo comandante. A mesma relação patriarcal estaria, portanto, no centro dos três procedimentos judiciais já citados. O mesmo núcleo mítico é o referencial de todas. Pensemos agora sobre a (im)possibilidade de redenção propiciada por ambas e sobre como Kafka denunciou a reposição da injustiça que ocorre em razão do mito. “Como captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto martirizado, como banhávamos as nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia ! Que tempos aqueles, meu camarada !”34

diz o oficial ao explorador em defesa do

sistema jurídico que se condensa no aparelho. O oficial foi nomeado juiz após a morte do antigo comandante porque esteve sempre ao lado dele quando ele era o juiz. O princípio segundo o qual ele toma decisões é o de que a culpa é sempre indubitável. Isto faz referência a uma culpa originária, como o pecado original, que torna as KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 69. 33

KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 50. 34

14

intimações e interrogatórios desnecessários. No caso do condenado por não ter respeitado o mandamento de honrar o superior, não houve, de fato, nem inquérito nem nenhuma espécie de apuração da denúncia. Após a acusação do capitão o oficial rapidamente julgou o caso e contou ao explorador que se tivesse intimado e interrogado o homem só teria surgido confusão. Isso porque ele teria mentido e se o oficial quisesse desmenti-lo, fatalmente substituiria uma mentira por outra. A dificuldade em encontrar a verdade é também um importante tema em Kafka e reaparece em outras narrativas como “A Toupeira Gigante”. Ao condenado foi imputada, portanto, a pena de ter a lei infringida inscrita em sua pele. Ele deveria entender o mandamento de honrar o superior com seu próprio corpo. Mas como o condenado fica tranqüilo na sexta hora! O entendimento ilumina até o mais estúpido. Começa em volta dos olhos. A partir daí se espalha. Uma visão que poderia seduzir alguém a se deitar junto embaixo do rastelo. Mais nada acontece, o homem simplesmente começa a decifrar a escrita, faz bico com a boca como se estivesse escutando. O senhor viu como não é fácil decifrar a escrita com os olhos; mas o nosso homem a decifra com os seus ferimentos. Seja como for exige muito trabalho; ele precisa de seis horas para completá-lo.35

Isto lembra-nos de que em “O processo”, o processo cola no corpo dos condenados e os embeleza do mesmo modo que a escrita ornamentada da sentença.

Com a inversão da história, o oficial, que era simultaneamente juiz e algoz, decide por sua auto-execução e livra o condenado. A intervenção do explorador que exteriorizava sua insatisfação com este procedimento judicial levou o oficial a isso. Isso nos faz pensar que Kafka optou por desorientar o leitor com uma “dança” entre as funções e papéis. Neste caso, é como se o procedimento judicial KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 44. 35

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esclarecido, cujo porta-voz é o explorador, tivesse sentenciado o oficial e seu aparelho como injustos. O oficial escolhe em sua carteira de couro a sentença desenhada pelo antigo comandante com a inscrição “Seja justo!”. Em seguida, colocaa no aparelho, ajusta as engrenagens e se deita. Condenado e soldado prendem-no às correias e a máquina começa a trabalhar sozinha. O oficial esperava, com isso, a sublime redenção que iluminava os condenados. Em seu caso, todavia, não foi possível pois as engrenagens do aparelho começaram a se soltar. O oficial foi executado antes que pudesse chegar a tão esperada sexta hora. Creio que, com esta passagem, Kafka retoma sua crítica ao mito da justiça ao mostrar como um procedimento judicial cruel – com afinidades com o esclarecido - não poderia salvar nem mesmo o seu maior adepto, sobretudo da acusação de ser injusto. Bibliografia KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. ________. “O foguista”. In: Obras Completas, vol 7, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. _______. “O Processo”. In: Obras Completas, vol 3, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. _______. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. _______. “Carta ao pai”. In: Obras Completas, vol 2, São Paulo, Companhia das Letras, 1997. _______. “O castelo”. In: Obras Completas, vol 8, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985. ADORNO, T. W. “Anotações sobre Kafka” In: Prismas, São Paulo, Ática, 2001.

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BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.” In: Obras Escolhidas, Magia e técnica, arte e política, vol 1, Brasília, Ed. Brasiliense, 1985.

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