A EXPANSÃO E CONSOLIDAÇÃO DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NA AMÉRICA
Sezinando Luiz Menezes Lupercio Antonio Pereira Claudinei Magno Magre Mendes (Organizadores)
HISTÓRIA E CONHECIMENTO
Sezinando Luiz Menezes Lupercio Antonio Pereira Claudinei Magno M. Mendes (Organizadores)
A EXPANSÃO E CONSOLIDAÇÃO DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NA AMÉRICA
EDUEM 2011
Sumário
Apresentação >
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CAPÍTULO I: A produção do açúcar e a colonização do Nordeste
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CAPÍTULO II: A interiorização da colonização no século XVIII >
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CAPÍTULO III: As origens da escravidão na América Portuguesa
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CAPÍTULO IV: O marquês de Pombal e a Companhia de Jesus >
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CAPÍTULO V: Caio Prado Júnior e a interpretação da colonização do Brasil > > > >
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77
CAPÍTULO VI: A historiografia brasileira relativa à colonização: novas tendências > > > >
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4 APRESENTAÇÃO
A Expansão e consolidação da colonização portuguesa na América, que ora apresentamos, é uma continuidade do livro A expansão ultramarina e a colonização da América Portuguesa, utilizado como bibliografia básica na disciplina História do Brasil I. Da mesma forma que aquele, o presente trabalho é uma obra coletiva e seus quatro distintos autores abordam em seis capítulos alguns dos principais temas da História da América Portuguesa. No primeiro capitulo Claudinei M. M. Mendes analisa a organização e consolidação da colonização do nordeste do atual território brasileiro, enfatizando o papel da produção açucareira nesse processo, pois, como veremos adiante, foi em torno dessa atividade econômica que aquela região foi ocupada pelos europeus. O segundo capitulo analisa a expansão das fronteiras da América Portuguesa ocorrida, principalmente, no século XVIII.
Para tanto discorre sobre a ação dos
bandeirantes e sobre a importância da atividade mineradora no interior dos atuais estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, mostrando a importância da mineração para a urbanização e para a diversificação das atividades na América Portuguesa. O terceiro capítulo dedica-se a explicar as origens da escravidão, a relação de trabalho que predominou na colonização e que persistiu mesmo após a independência do Brasil. O capítulo quarto aborda a complexa questão do conflito que envolveu, de um lado, as forças sociais representadas pelo Marquês de Pombal e, de outro, a Companhia de Jesus, conflito esse que resultou na expulsão dos religiosos jesuítas de Portugal e de todos os seus domínios ultramarinos. Os dois últimos capítulos do livro realizam uma discussão historiográfica.
O
capitulo quinto centraliza a analise na obra de Caio Prado Junior e o sexto e último volta-se para uma discussão sobre algumas tendências contemporâneas da historiografia brasileira sobre a América Portuguesa. Como sabemos, a história, entendida como desenrolar dos acontecimentos, é imutável e pertence ao passado. No entanto, a historiografia, isto é, a leitura do passado realizada pelos historiadores, apresenta um grande dinamismo e produz, de forma sistemática, novas interpretações. Como afirma Claudinei Mendes, no capitulo quinto do presente livro, o fato de uma determinada interpretação ser hegemônica em um determinado momento não significa que ela seja melhor, que se aproxime mais da
5 verdade ou que seja a mais correta. Tal hegemonia “significa apenas que a maioria das pessoas se identifica com a mesma”. Na historiografia brasileira nenhum outro estudioso teve a aceitação alcançada por Caio Prado Junior. Este autor publicou seus livros mais influentes entre os anos 1930-1940 e ainda hoje se constitui em uma referencia para os estudiosos da história da América Portuguesa. Além de Caio Prado, outros pensadores, como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire também escreveram obras densas e influentes e mereceriam estar incluídos no presente livro, contudo por questões alheias a nossa vontade isso não foi possível. Sendo assim, tendo que fazer uma escolha, optamos por aquele que exerceu a maior influencia sobre a historiografia brasileira dos últimos setenta anos. Finalmente, o último capitulo, a historiografia brasileira relativa à colonização: uma nova tendência, busca, entre outras questões, mostrar analises contemporâneas que tentam romper com os parâmetros estabelecidos por Caio Prado Junior. Claro está que, embora o presente livro seja a principal referencia para os nossos estudos, ele não esgota, e nem poderia, os temas – que são quase infinitos – e as discussões sobre a história da América Portuguesa. Em certo sentido, o presente livro não se constitui em ponto de chegada, mas apenas um ponto de partida. Este volume e o volume anterior
já publicado, intitulado A expansão ultramarina e a
colonização da América Portuguesa, servirão de iniciação no estudo dos temas mais relevantes da história da América Portuguesa. Um aprofundamento desse estudo exigirá a leitura da bibliografia referenciada em cada um dos capítulos, bem como de outros títulos disponíveis no mercado editorial, nas bibliotecas e nos acervos digitalizados colocados à disposição do público na rede mundial de computadores. Uma boa leitura. Sezinando Luiz Menezes Lupércio Antonio Pereira Claudinei Magno Magre Mendes organizadores
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CAPITULO I: A PRODUÇÃO DO AÇÚCAR E A COLONIZAÇÃO DO NORDESTE
Claudinei Magno Magre Mendes
INTRODUÇÃO
Durante pouco mais de um século, de 1570 a 1680, verificou-se uma grande expansão da produção do açúcar no Brasil, principalmente no Nordeste. Mas, o processo de instalação dos engenhos de açúcar começou bem cedo. Supõe-se que, em 1502, Américo Vespúcio trouxe plantas de cana da Ilha da Madeira para o Brasil. Muito provavelmente, estas mudas foram trazidas para testes, a fim de saber se o solo brasileiro era propício à cana de açúcar. Também Antônio Pigafetta, escritor italiano e autor de um diário no qual narra a viagem de circunavegação Fernão de Magalhães, realizada entre 1519 e 1522, menciona a existência de cana de açúcar no Brasil, por ocasião da sua passagem por aqui em 1519. Há, também, referências ao açúcar pernambucano desembarcado em Lisboa no ano de 1526. Mas, oficialmente, pode-se afirmar que as primeiras mudas de cana-de-açúcar foram trazidas por Martim Afonso de Souza, em sua expedição iniciada em fins de 1530, que instalou o primeiro engenho em São Vicente, em 1532. Entretanto, foi somente após a criação das capitanias hereditárias que o estabelecimento de engenhos no Brasil começou a ser feito de maneira organizada. Muitas dificuldades se interpuseram à montagem dos engenhos nos primeiros tempos, principalmente os ataques dos índios, motivo pelo qual se criou, dando-lhe um regimento, o governo geral em 1548, que teve início em 1549. Não cabe aqui uma análise do regimento, mas, o governo geral foi criado justamente para apoiar os colonos em sua luta contra os índios, dividindo-os em tribos amigas e tribos hostis, e para protegê-los dos ataques dos corsários. Após a criação do governo geral, a instalação de engenhos ganhou um novo impulso. Em menos de 20 anos, as plantações de cana se espalharam de tal maneira pelo litoral brasileiro que, por volta de 1550, o Brasil já havia se tornado o maior produtor mundial de açúcar, condição que manteve até o século seguinte. As principais regiões açucareiras eram Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e São Vicente. Em algumas regiões, todavia, desde os primórdios da colonização sistemática, a fundação de engenhos alcançou relativo êxito, como na capitania de Pernambuco.
7 Por ocasião da morte de Duarte Coelho, seu donatário, em 1554, a capitania já contava com 5 engenhos. Foi mais ou menos a partir de 1570 que a produção açucareira conheceu um imenso surto. Ao que tudo indica, essa data constitui um marco importante no processo de estabelecimento dos engenhos no Brasil, assinalando um ponto de inflexão. Desde então, a expansão dos engenhos foi enorme, fazendo com que, entre 1580 e 1680, o Brasil fosse o maior produtor e exportador mundial de açúcar (SCHWARTZ, 1999, p. 339). Um dado curioso é que, por esta data, os ingleses não haviam ainda se lançado à colonização, isto é, ocupando e povoando por meio da organização da produção de riquezas. Antes, dedicavam-se à pirataria, pilhando principalmente os espanhóis (FERGUSON, 2010, p. 32), fato que Hakluyt deplorava muito ( A década de 70 assinala, igualmente, o momento em que a escravidão africana recebeu um grande incremento. Antes desta data já se nota a presença de escravos africanos no Brasil. No entanto, seu número é diminuto. Mas, gradativamente, a escravidão africana foi se impondo. Em 1533, Pero de Góis, capitão-mor da Costa do Brasil, solicitou ao rei D. João III a remessa de 17 negros para a sua capitania de São Tomé. Este é o mais antigo registro de envio de escravos africanos para o Brasil, o que não significa que não tivesse havido antes. Por meio de um alvará de 29 de março de 1559, D. Catarina da Áustria, regente de Portugal, autorizou cada senhor de engenho do Brasil, mediante certidão passada pelo governador geral, importar até 120 escravos. Por fim, ao que tudo indica, em 1567, o governador da capitania do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá, sistematizou o tráfico de escravos africanos para o Brasil. A partir de 1570, a escravidão africana começa, então, seu processo de consolidação. Como observou Furtado (1982, p. 42), “a mão de obra africana chegou para a expansão da empresa [açucareira], que já estava instalada”. De acordo com Mello (2003, p. 27), a transição do trabalho indígena para o africano se completou por volta de 1620. O autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil, de 1618, tratando das grandezas do Brasil, comentou no Brasil havia se “criado um novo Guiné”, pela grande quantidade de escravos que nele se achavam (MELLO, 1966, P. 44). O tráfico de escravos africanos começou a se expandir enormemente por volta de 1570 motivado, entre outras razões, pelo fato de a Coroa portuguesa, cada vez mais, dificultar a escravidão indígena. Em 1570, D. Sebastião proibiu a escravidão indígena, exceto em caso de “guerra justa”. Anos depois, em 1574, houve nova proibição da escravidão indígena. O século XVII assistiu (1609, 1626 e 1662) novas medidas contra a escravização dos índios. Assim, à medida que a escravidão indígena era dificultada, abria-se cada vez mais a porta para a escravidão africana.
8 Ainda na questão da substituição do índio pelo africano, há que se considerar um aspecto destacado por Gândavo. Em seu Tratado, provavelmente escrito pouco antes de 1570, este autor observou que os índios se levantavam e fugiam para as suas terras (GÂNDAVO, 1980, p. 42). Prosseguiu, observando que na colônia havia muitos escravos de Guiné. E acrescentou: “(...) estes são mais seguros que os índios da terra porque nunca fogem nem têm pera onde” (GÂNDAVO, 1980, p. 43). No entanto, tudo leva a crer que o principal motivo do enorme impulso recebido pelo tráfico de escravos nesse período foi a consolidação da economia açucareira. Trata-se, na verdade, de um processo de dupla mão: à medida que a economia açucareira se consolidava, ela estimulava o tráfico de escravos africanos; reversamente, com a escravidão africana, a economia açucareira dava os passos decisivos no seu processo de consolidação. O desdobramento disso tudo foi que, por essa época, o açúcar brasileiro suplantou e desbancou definitivamente do mercado europeu o açúcar da ilha da Madeira, maior produtor em 1500, mas em decadência desde finais da década de 30 do século XVI. Por meio de cronistas dos dois primeiros séculos de colonização podemos atestar a grande expansão dos engenhos no Brasil. Em 1570, Gândavo (1980, p. 2440) estimou em 60 o número de engenhos no Brasil, sendo que 55 deles encontravam-se no Nordeste. Ainda segundo este cronista, somente a capitania de Pernambuco, que se destacava no comércio mundial como um dos principais produtores de açúcar, contava com 23 engenhos. Padre Fernão Cardim (1980, p. 144 e 164), em sua narrativa epistolar de 1583, afirmou que, em sua época, os engenhos já eram em número de 115, sendo que 36 na Bahia e 66 em Pernambuco. Segundo o padre Anchieta (1988), em texto em que dava informações sobre o Brasil, datado de 1584, o Nordeste possuía 108 engenhos. Destes, aproximadamente 60 estariam localizados em Pernambuco. Assim, seguindo os cronistas, cujos dados nem sempre coincidem, em 1587, Pernambuco passou a ter 66 engenhos; em 1608, esta capitania já possuía 77 engenhos. No início do século XVII, Diogo de Campos Moreno computou em 170 a quantidade de engenhos existentes no Nordeste. Segundo frei Vicente do Salvador, que escreveu sua obra às vésperas da invasão holandesa, Pernambuco possuía 100 engenhos, para um total de 140 para o Nordeste. Juntando Bahia e Rio de Janeiro, o Brasil possuía, nessa época, cerca de 230 engenhos. De acordo com Schwartz (1999), de 1570 a 1637, o Brasil passou de 60 para 350 engenhos. Antonil, em Cultura e opulência do Brasil, livro publicado em 1711, afirmou que a Bahia contava, em seu tempo, 146 engenhos, Pernambuco tinha 246 e o Rio de Janeiro um total de
9 156 engenhos. Ao todo, em sua época, o Brasil possuía aproximadamente 548 engenhos (ANTONIL, 2007, p. 172-173). Também podemos verificar a expansão da produção do açúcar brasileiro durante este período por meio da sua quantidade. Segundo estimativas, o Brasil produzia anualmente, por volta de 1570, aproximadamente 6 mil toneladas de açúcar; quarenta anos depois, em 1610, a produção brasileira havia subido para cerca de 10.000 toneladas. Em 1637, esta produção havia alcançado 13.500 toneladas. Em 1710, o Brasil atingia a produção de 19.500 toneladas. Os cronistas não atestam a grande expansão da produção açucareira no Brasil, principalmente no Nordeste, apenas por meio dos dados que nos fornecem. Atestamna, igualmente, pela descrição da riqueza advinda deste crescimento. Em seu Tratado, Gândavo (1980, p. 44) afirmou que os moradores das capitanias do Nordeste tratavam-se muito bem e eram mais largos, isto é, viviam com mais desafogo, do que os habitantes do Reino. Em sua narrativa epistolar, de 1583, padre Cardim assim descrevia os senhores de Pernambuco: A gente da terra é honrada: há homens muito grossos de 40, 50, e 80 mil cruzados de seu: alguns devem muito pelas grandes perdas que têm com escravaria de Guiné, que lhes morrem muito, e pelas demasias e gastos grandes que têm em seu tratamento. Vestem-se, e as mulheres e filhos de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisto têm grandes excessos. As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas, nem freqüentam as missas, pregações, confissões, etc.: os homens são tão briosos que compram ginetes de 200 e 300 cruzados, e alguns têm três, quatro cavalos de preço. São mui dados a festas. Casando uma moça honrada com um vianês, que são os principais da terra, os parentes e amigos se vestiram uns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e outras sedas de várias cores, e os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos. Aquele dia correram touros, jogaram canas, pato, argolinha e vieram dar vista ao colégio para os ver o padre visitador; e por esta festa se pode julgar o que farão nas mais, que são comuns e ordinárias. São sobretudo dados a banquetes, em que de ordinário andam comendo um dia dez ou doze senhores de engenhos juntos, e revezando-se desta maneira gastam quanto têm, e de ordinário bebem cada ano 50 mil cruzados de vinhos de Portugal; e alguns anos beberam oitenta mil cruzados dados em rol. Enfim em Pernambuco se acha mais vaidade que em Lisboa (CARDIM, 1980, p. 164).
10 Ainda que se deva dar um desconto às descrições como esta, o fato é que os autores contemporâneos sempre insistiram na grande riqueza dos senhores do Brasil, como é o caso de Frei Manuel Calado. Em obra de 1648, este autor assim descreveu o Nordeste, principalmente Olinda, cabeça da grande capitania de Pernambuco: Era aquela república antes da chegada dos Holandeses a mais deliciosa, próspera, abundante, e não sei se me adiantarei muito se disser a mais rica de quantas ultramarinhas o Reino de Portugal tem debaixo de sua coroa, e cetro. O ouro, e a prata era sem número, e quase não se estimava: o açúcar tanto que não havia embarcações para o carregar, que com entrarem cada dia, e saírem de seu porto grandes frotas de naus, navios e caravelas; e se andarem as embarcações encontrando umas com outras, em tal maneira, que os Pilotos faziam mimos, e regalos aos senhores de engenhos, e lavradores, para que lhes dessem suas caixas, não se podia dar vazão ao muito que havia. As delícias de mantimentos, e licores, eram todos os que se produziam assim no Reino, como nas ilhas. O fausto, e aparato das casas era excessivo, porque por mui pobre, e miserável se tinha o que não tinha seu serviço de prata. Os navios que vinham de arribada, ou furtados aos direitos do Peru, ali descarregavam o melhor que traziam. As mulheres andavam tão louçãs, e tão custosas, que não se contentavam com os tafetás, chamalotes, veludos e outras sedas, senão que arrojavam as finas telas, e ricos brocados; e eram tantas as jóias com que se adornavam, que pareciam chovidas em suas cabeças, e gargantas as pérolas, rubis, esmeraldas e diamantes. Os homens não haviam adereços custosos de espadas, e adagas, nem vestidos de novas invenções, com que se não ornassem os banquetes cotidianos, as escaramuças, e jogos de canas, em cada festa se ornavam, tudo eram delícias, e não parecia esta terra senão um retrato do terreal paraíso (CALADO, 1987, p. 47-48)
Não é casual, portanto, que os holandeses tenham invadido a Bahia em 1624, expulsos no ano seguinte, e Pernambuco, em 1630, mantendo o Nordeste sob seu domínio até 1654, quando foram expulsos. Afinal, tratava-se de uma rica região, fato que atraiu os holandeses interessados na riqueza proporcionada pela produção e comércio do açúcar. Como muito bem observou Barléus (1974, p. XII), historiador da Holanda do século XVII, os holandeses sempre estiveram presentes em ínvias paragens levados pela avidez do ganho. A riqueza produzida pelas atividades econômicas na colônia, principalmente o açúcar, era tão grande que, em carta de 22 de abril de 1609, o governador D. Diogo de Meneses, respondendo à Coroa, que sempre inquiria sobre as minas de ouro e
11 prata, pôde afirmar que as verdadeiras minas do Brasil eram o açúcar e o pau-brasil, que proporcionavam grandes rendas à fazenda real (MENESES, p. 54). Por outro lado, o comércio proporcionado pela riqueza produzida no Brasil, especialmente, Pernambuco, era tão grande que o autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil caracterizou Olinda como “uma Lisboa pequena”, por seus inumeráveis mercadores com suas lojas abertas cheias de mercadorias de muito preço e de toda a sorte (MELLO, 1966, p. 26-27). A invasão holandesa do Nordeste brasileiro pode ser considerada uma espécie de marco na história da produção açucareira da colônia, pois, à época da expulsão dos holandeses, surgiram novas regiões produtoras de açúcar nas Antilhas, que passaram a concorrer com o Brasil no fornecimento desse produto no mercado europeu. Inglaterra, França e Holanda organizaram suas colônias produtoras de açúcar, concedendo-lhes, por meio do pacto colonial, o monopólio do abastecimento de seus mercados, alijando destes, ao menos parcialmente, o açúcar brasileiro. Até então, o Brasil havia desfrutado, praticamente, o monopólio da produção do açúcar. Assim, até mais ou menos 1680, o Brasil desfrutou de uma condição de quase monopólio na produção do açúcar, fato que estimulou sua grande expansão. Cabe, agora, analisar as razões dessa expansão durante este período e seus desdobramentos.
A EXPANSÃO AÇUCAREIRA NO BRASIL E SEUS DESDOBRAMENTOS
A expansão da produção açucareira pelo Nordeste brasileiro derivou do fato de o açúcar ser uma das atividades mais rentáveis, se não a mais lucrativa nessa época. A historiografia costuma colocar que a ocupação e povoamento do Brasil foram estimulados pela ameaça dos franceses, não apenas pelo contrabando do pau-brasil como pelo fato de a França questionar a decisão do papa de dividir as terras descobertas entre Portugal e Espanha. Evidentemente, a ameaça francesa existiu e, muito provavelmente, foi um fator importante na decisão de D. João III, rei de Portugal, de ocupar efetivamente as novas terras por meio das capitanias hereditárias. Entretanto, nenhum português se disporia a vir ao Brasil apenas para servir a Coroa portuguesa em seu intento de preservar as terras que lhe cabia na América. Outros interesses estimularam os particulares a virem para o Brasil, fosse como capitão de uma capitania, fosse como proprietário de uma sesmaria, na condição de senhor de engenho ou lavrador. O interesse pelo proveito ou ganho foi o estímulo que levou os portugueses a esta empreitada. Nos documentos da época, encontramos, com muita freqüência, fosse de maneira positiva, fosse de maneira
12 negativa, a afirmação de que os portugueses visavam o proveito, isto é, o lucro. Em uma carta endereçada ao rei D. João III, de 20 de dezembro de 1546, Duarte Coelho afirmava que os colonos que vinham a Pernambuco para fazerem engenhos não vinham “(...) como homens poderosos para resistir, mas para fazerem seus proveitos (...)” (MELLO e ALBUQUERQUE, 1967, p. 88). Também em uma carta, esta dirigida a Tomé de Sousa, em 1559, Nóbrega descreveu, de uma perspectiva negativa, o espírito que animava os colonos: “(...) porque esta gente do Brasil não tem mais conta que com seus Engenhos e ter fazenda [riqueza], aynda que seja com perdição das almas de todo o mundo” (LEITE, 1954, v. III, p. 98). Não apenas a ocupação inicial foi motivada pela busca pelo proveito. Da mesma forma, a expansão subseqüente dos engenhos teve como estímulo o interesse dos colonos em obter riqueza por meio da produção do açúcar. Gândavo (1980, p. 42), por exemplo, em seu Tratado, observou que a produção do açúcar era uma das maneiras de se conseguir proveito. A expansão da ocupação e povoamento do Nordeste não deve, no entanto, ser compreendida apenas como expansão da produção açucareira em larga escala. É verdade que esta produção constituiu o fundamento da ocupação. Como a caracterizou o autor dos Diálogos das grandezas do Brasil, muito provavelmente Ambrósio Fernandes Brandão, a lavoura de açúcar era “(...) o principal nervo e sustância da riqueza da terra (...)” Poderíamos mesmo dizer que era a viga mestra desse processo. Mas, a ocupação e o povoamento não foi um processo de instalação da grande propriedade monocultora – do latifúndio monocultor, como a historiografia costuma afirmar. Compreendem uma grande variedade de atividades, tanto no que diz respeito ao tamanho da propriedade como no que tange ao que era produzido. Mas, independentemente de um ou de outro, tratava-se de atividades igualmente lucrativas. Eram atividades diretamente necessárias à existência dos colonos e da produção açucareira, como a pecuária, a fabricação da farinha de mandioca, de carne seca, de pescado e assim por diante. Além dessas, temos outras ainda, as dedicadas à produção de bens necessários à produção e exportação do açúcar, como fôrmas, tijolos, lenhas, caixas para o acondicionamento do açúcar, além, é claro, da própria cana fornecida pelos lavradores. Como bem observou Furtado (1982, p. 54), a formação de um sistema econômico de alta produtividade e em rápida expansão na faixa litorânea do Nordeste brasileiro fez surgir um mercado capaz de justificar a existência de outras atividades econômicas. Prosseguindo, este autor observou que “(...) em razão de sua alta rentabilidade e elevado grau de especialização, a economia açucareira constituía um mercado de dimensões relativamente grandes” (FURTADO, 1982, p. 54).
13 Durante muito tempo, supôs-se que a economia colonial, caracterizada equivocadamente como essencialmente monocultural, era formada praticamente pela atividade de exportação. As demais atividades tinham uma existência precária e viviam, única e exclusivamente, em função da economia exportadora. Caio Prado, em seu livro Formação do Brasil contemporâneo, afirmou que o Brasil havia se constituído, enquanto colônia, para fornecer açúcar, tabaco e alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamantes; depois, algodão e, em seguida, café, para o comércio europeu. Acrescentou: “Nada mais que isto” (PRADO JR., 1981, p. 31-32). Adiante, retomando o que denominava caráter essencial da economia colonial, assim caracterizou a agricultura de subsistência, assim chamada “(...) por destinar-se ao consumo e à manutenção da própria colônia” (PRADO JR., 1981, p. 157). “Tudo o mais que nela existe, e que é aliás de pouca monta, será subsidiário e destinado unicamente a amparar e tornar possível a realização daquele fim essencial” (PRADO JR., 1981, p. 119). A caracterização de agricultura de subsistência feita por Caio Prado deixa de lado um aspecto essencial: o fato desta também ser uma produção de natureza mercantil. Omite-se, assim, um aspecto fundamental: ainda que estivessem baseadas em propriedades de diferentes tamanhos, bem como tivessem destinos distintos, tanto a agricultura de exportação como a de subsistência eram atividades com vistas à obtenção do proveito. Não importa, por conseguinte, se uma estava destinada ao mercado europeu e outra ao mercado interno. A questão residia no cabedal ou pecúlio que cada um dispunha. Aqueles que dispunham de um grande cabedal tornavam senhores de engenho ou possantes lavradores de cana. Por seu turno, os que possuíam uma quantidade menor de cabedal tornavam-se médios ou pequenos lavradores de cana, médios ou pequenos lavradores de mandioca e assim por diante. É o que destacou Gândavo, em seu Tratado, “Quantos moradores ha na terra têm roças de mantimentos e vendem muitas farinhas de pao [farinha de mandioca] huns aos outros, de que tambem tirão muito porveito [proveito]” (GÂNDAVO, 1980, p. 42. Grifos nossos). Os agricultores de meios de subsistência estavam motivados pelo lucro e, por conseguinte, interessados em ascender socialmente. Assim, em determinadas épocas, quando o preço do açúcar se elevava no mercado europeu, produtores de farinha de mandioca do Recôncavo baiano passavam a plantar cana, por ser um produto mais rentável. A Coroa teve que intervir, obrigando-os a continuar como produtores de mandioca sob a alegação que uma mudança desta natureza poderia comprometer o abastecimento da cidade de Salvador.
14 Por trás da oposição estabelecida pela historiografia brasileira entre agricultura de exportação e agricultura de subsistência encontramos a oposição entre grande e pequena propriedade. Com efeito, além da caracterização geral na qual a grande lavoura se distinguia por ser uma produção destinada à exportação e a agricultura de subsistência ser uma atividade voltada para atender o consumo e a manutenção da colônia, Caio Prado afirmou que a primeira assinalava-se pela produção em larga escala, disposta em grandes unidades produtoras que empregavam numerosa mão de obra, organizada de forma coletiva, ao passo que na segunda predominavam outros tipos de estrutura agrária. Segundo este autor, a agricultura de subsistência
É um setor subsidiário da economia colonial, depende exclusivamente do outro, que lhe infunde vida e forças. Daí aliás o seu baixo nível econômico, quase sempre vegetativo e de existência precária. Da produtividade escassa e sem vitalidade apreciável. Raramente encontramos lavouras desta natureza que se elevem acima de tal nível. Em geral, a sua mão-deobra não é constituída de escravos: é o próprio lavrador, modesto e mesquinho, que trabalha. Às vezes conta com o auxílio de um ou outro preto, ou mais comumente, de algum índio ou mestiço semi-servil. Excepcionais são neste setor as fazendas (PRADO JR., 1981, p. 159-
160). Denominando a agricultura de subsistência de “pobre agricultura de subsistência” (PRADO JR., 1981, p. 160), “atividade de segunda ordem” (PRADO JR., 1981, p.161), “mesquinha agricultura de subsistência” (PRADO JR., 1981, p. 161), “setor subsidiário” (PRADO JR., 1981, p. 159), Caio Prado assinalou que o sistema econômico do país, absorvido pela grande lavoura, votou a ela um papel secundário, caracterizada pela “insignificância” se comparada à agricultura de exportação (PRADO JR., 1981, p. 143). A historiografia brasileira estabeleceu, dessa maneira, uma rígida oposição entre a grande e a pequena propriedade como se fossem alternativas antagônicas, excludentes. Assim, para esses historiadores, de um modo geral, a adoção da grande propriedade teria eliminado a possibilidade ou dificultado a existência da pequena propriedade. Entretanto, uma análise mais acurada permite ver que o estabelecimento da grande propriedade e do grande cultivo, como o engenho, não apenas não excluiu a pequena propriedade como estimulou seu estabelecimento e foi garantia da sua permanência.
15 É verdade que a produção do açúcar encontrava-se no centro do sistema produtivo e comercial, como já afirmamos. A rigor, pode-se dizer que a grande propriedade e a produção em larga escala, das quais o açúcar era o seu exemplo maior, constituía o nervo da ocupação e povoamento do Brasil. Sob este aspecto, aparentemente, tratar-se-ia de uma monocultura. No entanto, isto se devia ao fato de os recursos econômicos (o cabedal, como então se dizia) estarem aplicados na atividade que era a mais rentável, a produção do açúcar. Era a atividade que produzia a maior riqueza possível. Mas, existiam outras atividades igualmente lucrativas, também em escala considerável, como o algodão e o tabaco. Entretanto, saliente-se, a grande propriedade e a produção em larga escala não eram exclusivas. Pesquisas realizadas recentemente indicam que a colônia possuía uma produção diversificada e bastante sólida, voltada, inclusive, para um mercado interno estável e não dependente do setor voltado para a exportação. Em suma, a grande propriedade e a produção em larga escala não impediram, mas, antes, estimularam o surgimento e garantiram a existência de propriedades de diferentes tamanhos, bem como de uma produção diversificada. Barickman (2003), em seu estudo sobre o Recôncavo baiano, entre os finais do século XVIII e meados do XIX, assinalou que, ao contrário do que tradicionalmente a historiografia tem afirmado, o uso generalizado do trabalho escravo não impediu o surgimento, nessa região, de um mercado urbano e rural bastante desenvolvido para víveres básicos. O autor vai além, destacando que a expansão da economia de exportação promoveu, exigindo mesmo, o crescimento de um mercado interno. Prosseguiu: As centenas de pequenos lavradores que abasteciam esse mercado utilizavam regularmente a mão-de-obra escrava para produzir excedentes substanciais de farinha de mandioca. Fora dos circuitos mais conhecidos do comércio internacional, esses lavradores desempenhavam um papel decisivo ao assegurar a reprodução diária de uma agricultura de exportação altamente especializada nos engenhos e fazendas de cana do Recôncavo. Estando já ligados a uma economia monetária e tendo acesso à mão-de-obra escrava, os pequenos lavradores do Recôncavo valeram-se das oportunidades geradas pelo crescimento da economia de exportação baiana entre 1780 e 1860. Mas, em vez de abandonarem a agricultura de abastecimento e de se transformarem em donos de plantations, diversificaram suas atividades agrícolas, conseguindo com isso aumentar a produção tanto de gêneros de exportação quanto de farinha para o mercado local. O aumento da oferta de farinha, por sua vez, possibilitou uma expansão maior e mais rápida da produção de açúcar nos engenhos da região na primeira metade do oitocentos (BARICKMAN, 2003, p. 30).
16
Assim, com a colonização não se formou uma estrutura agrária baseada praticamente na grande propriedade rural, na qual a pequena propriedade, quando existia, tinha um caráter extremamente precário, sempre sofrendo a oposição da grande propriedade. O Brasil era formado por uma constelação de propriedades de diferentes tamanhos, com a grande propriedade em seu centro. Isto se encontra, inclusive, em sintonia com o que ocorria na Europa. Consideremos algumas questões. Havia, na própria Europa, como expressão do seu desenvolvimento econômico, um processo que tendia à constituição da grande exploração. Na Inglaterra, por exemplo, as grandes propriedades da nobreza que, durante séculos, encontravam-se fracionadas, nas mãos dos servos camponeses, estavam em um processo de reconstituição. As possessões dos camponeses estavam sendo reunidas, para formar os grandes arrendamentos, destinados à criação de carneiros e à plantação de cereais. Esse processo era estimulado pelo desenvolvimento da produção e do comércio, particularmente da lã e dos meios de subsistência, para atender as manufaturas e as cidades que estavam sendo criadas. A colonização, que se verifica no bojo desse amplo processo de constituição do mercado mundial, inicia justamente pela grande exploração, cuja base era a grande propriedade. Esta forma de propriedade e de produção era a que atendia às exigências de uma produção mercantil voltada para a obtenção do proveito. A Coroa portuguesa não pretendia, inclusive, com a colonização, organizar uma estrutura fundiária de apenas grandes propriedades. Em seu livro Um imenso Portugal, Mello (2008) assinala que, no início da ocupação e povoamento da América portuguesa, a intenção era um modelo que denomina “sistema madeirense”, isto é, da Ilha da Madeira. Entre nós, como na Madeira, o engenho constituiu de início o prolongamento da loja, do comércio e da vida urbana. Os primeiros engenhos foram edificados nos arredores de Olinda, como o engenho do Salvador do Mundo, levantado por Duarte Coelho, e o de Nossa Senhora da Ajuda, erguido pelo cunhado, Jerônimo de Albuquerque. O engenho era sobretudo a fábrica, isto é, o equipamento manufatureiro, de vez que as atividades agrícolas continuavam, como na Madeira, separadas das fabris, separação que ensejava a integração das etapas industrial e comercial, de vez que o senhor de engenho era frequentemente mercador olindense, situação bem diferente da que prevalecerá em Pernambuco post bellum [depois da guerra com os holandeses]. No começo do século XVII, os “partidos da fazenda”, isto é, a cana cultivada pelo senhor do engenho, proporcionavam somente 25% da matéria-prima moída, os demais 75% originando-se nos partidos de lavradores, seja a cana “obrigada”, cultivada nas terras
17 do engenho e, portanto, dependente da sua moenda, seja a cana “livre”, proveniente de terrenos pertencentes ao lavrador. É provável, aliás, que no século XVI o volume de matéria-prima fornecida pelos lavradores tenha sido bem superior a estes 75%, que já refletem as condições de desorganização rural produzidas pela ocupação holandesa
(MELLO, 2008, p. 74-75).
O relatório apresentado pelo holandês Adriaen van der Dussen, em 1640, acerca das capitanias conquistadas no Brasil é bastante interessante sob esse aspecto. Nele, Dussen arrola os engenhos da região ocupada pelos holandeses, relacionando, também, os lavradores que forneciam cana a eles, bem como sua quantidade. Vamos dar três exemplos, para mostrar que, nessa época, os engenhos (isto é, a grande propriedade) davam condições para a existência de lavradores de cana com diferentes tamanhos de propriedade. O Engenho Ipitanga, movido a água, localizado na capitania de Itamaracá, recebia 189 tarefas de cana por ano. Uma tarefa era a quantidade de cana que podia ser moída em um dia. Essas 189 tarefas eram fornecidas por 8 lavradores, sendo que um fornecia 80, outro fornecia 25, dois forneciam 20 cada um e outros dois 15 cada um. As demais tarefas eram fornecidas por outros dois lavradores, assim distribuídas: 12 e 7. Verifica-se, assim, que, entre os lavradores, encontramos desde um grande, com 80 tarefas, e outro pequeno, com apenas 7 (MELLO, 1981, p. 165). Os dados sobre o engenho de São Gonçalo, duplo, de boi, localizado na Paraíba, são mais interessantes. Eles incluem as tarefas do próprio engenho, 100 para um total de 260 tarefas. As demais estavam distribuídas entre cinco lavradores, com as seguintes quantidades: 50, 40, 35, 30 e 5. Assim, ao lado de um lavrador médio, com 50 tarefas, encontramos um pequeno, com apenas 5 tarefas (MELLO, 1981, p. 173-174). Por fim, o engenho Aiama da Riba, engenho de água, moía 56 tarefas de lavradores, todos com 15 ou menos tarefas. Seus nove lavradores estavam assim distribuídos: um com 15, um com 10, dois com 7, um com 6, um com 4, um com 3 e dois com 2 tarefas apenas. Como se pode verificar, gravitando em torno dos engenhos, encontramos lavradores de cana que lavravam distintos tamanhos de terra (MELLO, 1981, p. 156). Os
lavradores,
além
de
produzirem
distintas
quantidades
de
cana,
encontravam-se, também em distintas condições em relação ao senhor de engenho. De acordo com Schwartz (1999),
Desde as suas origens, a indústria açucareira do Brasil esteve na dependência de um segundo grupo de lavradores que não possuíam seus próprios engenhos, mas forneciam cana para os outros. Esses lavradores de cana constituíram uma camada
18 distinta na sociedade colonial, partícipes no setor do açúcar e orgulhosos de seu título de “lavradores de cana”, embora em freqüente disputa com os senhores de engenho. No século XVII havia talvez, em média, quatro a sete lavradores de cana para cada engenho, os quais forneciam cana sob vários acordos comerciais. Os mais privilegiados eram aqueles que possuíam títulos quitados e desembaraçados de sua própria terra e, assim, podiam negociar o melhor contrato de moagem. Na época de escassez de cana, esses lavradores eram muito adulados pelos senhores de engenho, que no intuito de garantir a oferta de cana se dispunham a lhes emprestar escravos ou bois ou a lhes fornecer lenha. Muitos produtores, porém, trabalharam “partidos da cana”, que é a terra “obrigada” tanto podiam ser meeiros que trabalhavam nas terras do engenho numa base de participação, quanto arrendatários, ou ainda aqueles que possuíam terra mas cuja colheita fora dada em garantia em troca de dinheiro ou de crédito. As disposições contratuais variavam de lugar para lugar e em diferentes épocas, mas a divisão-padrão era metade do açúcar branco e do mascavado para o engenho e metade para o lavrador, cabendo ao engenho todos os produtos secundários. Além disso, aqueles que tinham “cana obrigada” pagavam uma renda na forma de uma porcentagem de sua metade do açúcar. Essa também variava de um terço até um vigésimo, dependendo da época e do lugar, mas os senhores de engenho preferiam arrendar suas terras a lavradores de recursos consideráveis, que pudessem aceitar o compromisso de um terço. Os contratos feitos em geral por um período de nove ou dezoito anos, mas às vezes o compromisso de venda de uma parcela valia “enquanto durasse o mundo” (SCHWARTZ, 1999, p. 363).
Além dos produtores de diferentes tamanhos e condições que forneciam cana para os engenhos, encontramos outras atividades na colônia. Nos Diálogos das Grandezas do Brasil, obra de 1618, seu autor divide os moradores do Brasil em cinco condições de gente. Além da gente marítima, encarregada do transporte de mercadorias, de Portugal para o Brasil e vice-versa, e dos mercadores, Brandão menciona também os oficiais mecânicos, isto é, os artesãos, e os homens que serviam outros por soldada (soldo, salário), que se ocupavam do encaixotamento de açúcares, feitorizar canaviais e engenhos, criarem gados e assim por diante. Além dessas condições de gente, o autor dos Diálogos refere-se aos lavradores, uns mais ricos, e outros, “(...) cujas forças [cabedal] não abrangem a tanto, se ocupam em lavrar mantimentos e legumes” (MELLO, 1966, p. 10). Acrescenta o autor: “E todos [grandes e pequenos lavradores] assim uns como outros, fazem suas lavouras e granjearias com escravos de Guiné, que para esse efeito compram por subido preço” (MELLO, 1966, p. 10). Adiante, tratando das riquezas do Brasil, menciona os produtos pelos quais os moradores se faziam ricos: além do açúcar e do pau-brasil, relaciona os
19 algodões e madeiras, a lavoura de mantimentos e a criação de gado (MELLO, 1966, p. 74). A diversidade da produção deve-se, fundamentalmente, ao fato de os engenhos não serem auto-suficientes. Ao contrário, os engenhos, com sua extrema especialização, dedicados, fundamentalmente, à produção do açúcar, constituíram, além das cidades, um sólido mercado para diferentes produtos. Tratando da Bahia, em fins do século XVIII e início do XIX, Barickman refere-se às pequenas frotas de barcos vivandeiros que enchiam o porto de Salvador. Para ele, isto era uma prova de um florescente comércio de abastecimento. Prossegue o autor:
Para o mercado de Salvador fluía a produção de diversas áreas fornecedoras, próximas e distantes, para satisfazer uma demanda vigorosa de frutas e verduras, carne-seca, arroz, milho, peixe seco, feijão e, acima de tudo, farinha de mandioca, o principal componente do regime alimentar na época (BARICKMAN, 2003, p. 307).
Ao tratar do cabedal que o senhor de engenho deveria ter, Antonil arrola tanto as atividades necessárias à produção do açúcar e que eram desempenhadas, no mais das vezes, por homens brancos livres que recebiam soldo, como as mercadorias que deveria comprar. Dentre as primeiras cita os barqueiros, canoeiros, calafates, carapinas, carreiros, oleiros, vaqueiros, enfermeiros, pastores e pescadores, além, é claro, dos feitores, do mestre de açúcar e assim por diante. Quanto às segundas, cita os mantimentos e farda (vestimenta dos escravos), medicamentos, enfermaria, velame, cabos, cordas, breu, lenhas, enxadas, foices, machados, serras, madeira de lei, aço e ferro e muitas outras mercadorias, produzidas no Brasil e no exterior (ANTONIL, 2007, p. 80). Assim, como se pode deduzir, o engenho constituía o centro de uma extensa divisão do trabalho, que envolvia tanto o mercado interno como o mercado externo. Sua especialização tinha, pois, como contrapartida, sua inserção em um mercado que se tornava, cada vez mais, mundial. Não sem razão, em 1660, o juiz do povo assim descreveu o engenho:
Cousa é bem assentada e conhecida que, assim como o açúcar é o gênero em que principalmente se funda o comércio do Brasil com Portugal e de Portugal com as nações da Europa, assim os engenhos (que são as oficinas em que se lavra) são o ultimo termo em que universalmente param não só os negócios desse comércio,
20 mas ainda todos os mais que particularmente se fazem em todas as praças do Estado entre seus próprios habitadores. E a razão é porque
o
engenho
é
um
agregado
acidental,
que
existe
sucessivamente e se compõem de uma perpétua consumição de escravos, bois, cavalos, moendas, madeiras, taboados, caixões, barcas, telha, tijolo, formas, lenha, canas, ferro, aço, breu, cobre, enxárcia, breu, estopa, lona, fazendas de vestir e comer de todo o gênero, e finalmente de tudo o que se cultiva e cria no Brasil e se conduz de Portugal; por cuja causa se exercem neles quase todas as artes mecânicas que há em uma republica. E como todas estas partes daquele composto são tão diversas e corruptíveis, a uniam que as ata e conserva há o credito com que seu dono se empenha para edificar, e depois se vai empenhando para moer; renovando nele cada ano tudo o que no antecedente se consumiu, que tão vinculada anda a duração dos engenhos ao empenho de seus donos. E por esta causa sem os engenhos, nem os frutos naturais nem os gêneros ultramarinos nem os oficiais mecânicos foram necessários, nem o estado, estado: pois dos engenhos se tiram as rendas reais com que os ministros eclesiásticos e seculares conservam o lustre de sua estima e autoridade: neles ganham a vida todos aqueles de cujo serviço pende a sua fabrica: e acham avanço todos os mais que tem seus cabedais ou nas lavouras do Brasil ou na mercancia do Reino. E o que mais é até dos engenhos depende a mais essencial parte da conservação do mesmo reino no rendimento de suas alfândegas e da perpetuidade da companha geral nos direitos que se pagam ao comboio de suas armadas. Carta da Bahia, de 8 de setembro de 1660 para o Governador Geral (MAURO, 1961, p. 290-291. Grifos nossos).
Poderíamos multiplicar exemplos que indicam que a expansão da produção açucareira pelo Nordeste foi motivada pelos lucros que ela proporcionava e que não deu origem a um grande canavial. Acreditamos, no entanto, que o que foi assinalado até aqui oferece ao leitor uma imagem da sociedade colonial nordestina distinta daquela que a historiografia costumeiramente nos apresenta, com grande prejuízo não apenas para a compreensão do processo histórico brasileiro como para as perspectivas quanto ao presente. Com efeito, uma compreensão de que a colonização deu origem a uma sociedade, evidentemente com suas particularidades; mas uma
21 sociedade que, em que pesem suas diferenças, enormes, vale a pena ressaltar, ofereceu aos seus membros meios de existência, pode nos levar a mudar nosso conceito quanto ao passado e, por extensão, quanto ao nosso presente.
CONCLUSÃO
Procuramos, ao longo do capítulo, chamar a atenção para o fato que não é suficiente descrever o processo de expansão da produção açucareira pelo Nordeste brasileiro ao longo dos séculos XVI e XVII. É preciso chamar a atenção, igualmente, que esta expansão, assim como foi desde o começo da colonização sistemática, o estabelecimento dos engenhos formou uma rede de produção e comércio que envolveu não apenas diferentes produtos como diferentes formas de produção e distintos tamanhos de propriedade. Em suma, o estabelecimento de uma produção altamente especializada somente poderia se verificar em meio a uma divisão do trabalho bastante acentuada. Assim, para que existisse uma produção dessa natureza, como era a do açúcar, era preciso que o mercado se encontrasse em um determinado grau de desenvolvimento. Somente assim poderia haver uma atividade voltada única e exclusivamente para a produção de um único produto. Mas, por outro lado, o estabelecimento do engenho propiciou o surgimento e o desenvolvimento de uma rede de produção bastante extensa para provê-lo dos bens que eram necessários para a sua existência. Assim, pelas suas características, o engenho tinha que promover o surgimento de outras atividades produtivas. Assim, se o engenho era “monocultor”, a economia que ele criava e era o sustentáculo não poderia sê-lo.
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22 CARDIM, Fernão. Tratado da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1980. FERGUSON, Niall. Império. Como os britânicos fizeram o mundo moderno. São Paulo: Planeta, 2010. FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 18ª edição. São Paulo: Nacional, 1982. LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas no Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, 3 vs. MAURO, Frédèric. Le Brèsil aux XVIIe siècle. Separata de Brasília, Coimbra: v. XI, 1961. MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 16301654. 3ª edição. São Paulo: Editora 34, 2007. _______ Um imenso Portugal. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2008. _______ O negócio do Brasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 3ª edição revista. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003. MELLO, José Antonio Gonsalves de (org.). Fontes para a história do Brasil holandês. 1. A economia açucareira. Recife: Parque Histórico Nacional dos Guararapes; MEC/SPHAN/Fundação Pró-Memória, 1981. _______ Diálogos das grandezas do Brasil. Recife: Imprensa Universitária, 1966. MELLO, José Antonio Gonsalves de e ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier (orgs.). Cartas de Duarte Coleho a El Rei. Recife: Imprensa Universitária, 1967. MENESES, Diogo de. Correspondência do Governador D. Diogo de Meneses. 16081612. In: Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, volume LVII, 1935. PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 17ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1981. SCHWARTZ, Stuart. O Brasil colonial, c.1580-c.1750. As grandes lavouras e as periferias. BETHEL, Leslie (org.). História da América Latina: A America Latina Colonial. São Paulo: USP; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1999, v. II.
FONTES E REFERENCIAIS PARA APROFUNDAMENTO TEMÁTICO
23 EXTRATO DE DOCUMENTOS PARA LEITURA
Como o trato e negócio principal do Brasil é do açúcar, em nenhuma outra coisa se ocupam os engenhos e habilidades dos homens tanto como em inventar artifícios com que o façam, e por ventura por isso lhe chamam engenhos. Lembra-me haver lido em um livro antigo das propriedades das coisas que antigamente não se usava de outro artifício mais que picar ou golpear as canas com uma faca, e o licor que pelos golpes corria e se coalhava ao sol este era o açúcar, e tão pouco que só se dava por mezinha. Depois se inventaram muitos artifícios e engenhos pera se fazer em mor quantidade, dos quais todos se usou no Brasil, como foram os dos pilões, de mós e os de eixos, e estes últimos foram os mais usados, que eram dois eixos postos um sobre o outro, movidos com uma roda de água ou de bois, que andava com uma muito campeira chamada bolandeira, a qual ganhando vento movia e fazia andar outras quatro, e os eixos em que a cana se moía. E além desta máquina havia outra de duas ou três gangorras de paus compridos, mais grossos que tonéis, com que aquela cana, depois de moída nos eixos, se espremia (...). Ultimamente, governando esta terra D. Diogo de Menezes, veio a ela um clérigo espanhol das partes do Peru, o qual ensinou outro mais fácil e de menos fábrica e custo, que é o que hoje se usa, que é somente três paus postos por alto muito justos, dos quais o do meio com uma roda de água ou com uma almanjarra de bois ou cavalos se move e faz mover os outros. Passada a cana por ele duas vezes, larga todo o sumo sem ter necessidade de gangorras (...). Por serem estes engenhos dos três paus, a que chamam entrosas, de menos fábrica e custo, se desfizeram as outras máquinas e se fizeram todos desta invenção e outros muitos de novo (...). VICENTE DO SALVADOR, frei. História do Brasil. 1500-1627. 7ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1982, p. 301-302.
TRECHOS DE LEITURA PARA EXERCÍCIOS “O açúcar é um poderoso aditivo, naturalmente agradável ao paladar (não ao gosto cultivado) e reconfortante para a psique humana. Seu custo era muito elevado no começo e estava limitado a usos farmacêuticos; comprava-se no boticário e a maioria dos europeus usava as frutas e o mel com adoçantes. Mas não foi essa a primeira vez que uma substância medicinal acabou agradando tanto às pessoas saudáveis quanto às doentes. Graças à expansão do cultivo, o preço caiu a tal ponto que o açúcar passou a ser encontrado nos armazéns de secos e molhados. Começava então a ser usado como condimento em todos os gêneros de comidas; como no provérbio alemão,
24 não há alimento que possa ser estragado pelo açúcar (os alemães ainda cozinham assim). Também provou ser útil como conservante ou para camuflar o sabor num mundo de fácil deterioração dos produtos alimentícios. Nos séculos XV e XVI, o açúcar era um artigo de luxo: as donas de casa trancavam a sete chaves as fôrmas de açúcar para impedir que a criadagem lhes tivesse acesso; mas estava tornando-se uma necessidade que se propagava do topo para baixo da hierarquia social” (LANDES, David S. Riqueza e a pobreza das nações. Por que algumas são tão ricas e outras são tão pobres. 6ª edição. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 74).
Leia atentamente o excerto acima, de David Landes, e produza um texto relacionandoo ao conteúdo desenvolvido no capítulo.
25
CAPÍTULO II: A INTERIORIZAÇÃO DA COLONIZAÇÃO NO SÉCULO XVIII
Sezinando Luiz Menezes
A primeira metade do século XVIII é chamada pelos historiadores de época de ouro do Brasil. Isso decorre não apenas da descoberta e inicio da exploração aurifera, mas sobretudo em razão das grandes transformações vividas pela colônia portuguesa na América. De fato, o período é marcado por grandes transformações econômicas e sociais, por um grande crescimento populacional, pela expansão das fronteiras, pelo desenvolvimento de novas atividades econômicas e pelo surgimento de novos grupos sociais impulsionadas, principalmente, pela descoberta de ouro no centro oeste do atual território brasileiro. Ao longo dos primeiros cem anos de sua presença na América os portugueses foram, progressivamente, avançando sobre o continente e incorporando os territórios ao processo colonizador. Contudo, em razão das características da própria época, como, por exemplo, a velocidade do tempo, mais lento naqueles séculos; e dos interesses envolvidos na colonização, esse avanço limitou-se, não que isso fora pouco, a ocupação de extensas faixas litorâneas do atual território brasileiro. No entanto, isso não significou que os portugueses não tenham se interessado pelo interior do território. Ao contrário, deste do inicio da colonização foram realizadas as “entradas”, isto é, expedições que, a mando da Coroa e organizada pelos Capitães Donatários, se embrenhavam sertão adentro em busca do reconhecimento do território e de riquezas minerais. Se a incorporação do “sertão” à colonização não foi mais efetiva, isso decorreu muito mais de limites materiais e populacionais do que de um improvável desinteresse do colonizador. Nos primeiros dois séculos após a chegada dos europeus, o polo mais dinâmico da colonização foi a região litorânea do atual nordeste brasileiro, caracterizado, principalmente, mas não exclusivamente, pela produção de açúcar.1 Enquanto o nordeste se constituiu no cerne da colonização, na periferia da América Portuguesa se constituíram formas de produção da vida com características distintas. A região norte, por exemplo, formada pelo Grão-Pará e pelo Maranhão, apresentou grandes dificuldades para a colonização lusitana.
1
O mundo dos engenhos foi objeto de discussão em um capítulo anterior desse livro.
26 A partir da segunda metade do século XVII, após a expulsão dos holandeses, que durante aproximadamente vinte e cinco anos haviam dominado boa parte da região nordeste do atual território brasileiro, o crescimento da produção de açúcar e o desenvolvimento da pecuária conduziram os colonizadores para os sertões nordestinos. Toda a extensa região interior do atual nordeste do Brasil, que vai do leste do Maranhão até o norte da Bahia e parte dos territórios do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, foi incorporada à colonização lusitana sendo utilizada para a criação de gado. Nessa expansão, os colonizadores europeus avançaram sobre territórios habitados por povos indígenas.2 O choque entre colonizadores e os índios ficou conhecido como a “Guerra dos Bárbaros”, um conjunto de diversos conflitos que, entre 1650 e 1720 levou a destruição dos tapuias do sertão nordestino, e da ocupação daquela região por criadores de gado. Ainda no final do século XVII, os bandeirantes encontram ouro na região central do atual território brasileiro e deram inicio a ocupação europeia daquela região. Importante lembrar que esses territórios deveriam, segundo o tratado de Tordesilhas, pertencer a Espanha. De acordo com o Tratado de Tordesilhas, firmado, em 1494, entre Portugal e Espanha, grande parte das terras que hoje fazem parte do Brasil deveriam pertencer a Espanha. À Portugal caberia as terras situadas a leste de uma linha imaginária, que passaria a 370 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde. Contudo, em razão das imprecisões nos cálculos das longitudes efetuados na época, o meridiano nunca foi estabelecido com precisão. Além disso, a medida que os portugueses tentavam estabelecer o controle da região do Rio da Prata e que a colonização portuguesa avançava em direção ao interior do continente, a linha que delimitava os territórios espanhóis e portugueses foi sendo redefinida mais para o oeste (veja o mapa adiante). Nesse processo de interiorização da colonização portuguesa da América, os bandeirantes paulistas tiveram um papel de extrema importância.
2
A esse respeito ver Puntoni (2000).
27
Veja no mapa o limite de Tordesilhas segundo diferentes cartógrafos em diferentes períodos.
Os Bandeirantes e a expansão dos territórios portugueses na América
Em 25 de janeiro de 2011, dia em que se comemorava o aniversário da cidade de São Paulo, o Jornal Folha de São Paulo publicou o artigo Apesar da aura mítica, bandeirante era assassino do sertão. Seus autores iniciaram o artigo afirmando; “Ainda que estradas, avenidas e palácios levem seus nomes, os bandeirantes eram mais assassinos do que heróis”. A seguir, os autores do artigo citam trechos de cartas dos jesuítas, grandes adversários dos bandeirantes, para mostrar a violência, a bestialidade daqueles homens. Segundo os trechos das cartas citadas, “na longa caminhada até São Paulo”, (para onde os índios aprisionados pelos paulistas eram levados) os bandeirantes “chegam a cortar os braços de uns [índios] para com eles
28 açoitarem os outros”, além disso, “matam os velhos e crianças que não conseguem caminhar, dando de comida aos cachorros”. A intenção do artigo é clara. Seus autores buscam contrapor-se a uma versão historiográfica que, ao longo da primeira metade do século XX, mitificou os bandeirantes, transformando-os em heróis que simbolizam da saga dos paulistas que conquistaram os sertões, expandiram as fronteiras e construíram o Brasil. O artigo reproduz algo relativamente comum nas analises historiográficas. Para se criticar uma versão considerada indevida, unilateral, parcial ou equivocada, os historiadores, por vezes, também apresentam explicações indevidas, unilaterais, parciais ou equivocadas. Contudo, como uma imagem invertida em um espelho, tais versões apresentam posições diametralmente opostas as anteriores. Por um lado, conceber os bandeirantes como homens íntegros e virtuosos conquistadores do sertão bravio; heróis que beiram a perfeição é uma idealização inaceitável. Por outro, tê-los como sanguinários assassinos, também é um problema interpretativo. Nem uma coisa e nem outra. Os bandeirantes eram homens com vontades e desejos, amores e ódios, fraquezas e grandezas, erros e acertos. Capazes de gestos humanitários e de crueldades. Alguns provavelmente eram mais violentos e imorais, outros menos. Eram humanos, e como tal, sujeitos a “humanidade” típica dessa espécie. Por conseguinte, eram contraditórios, não eram lineares. Acima de tudo, eram homens de sua própria época, uma época muito distinta da nossa. Viviam e produziam uma determinada historicidade onde a violência era muito presente no dia a dia de homens e mulheres, pois o processo civilizador ainda não havia imposto o monopólio estatal da violência na região que viviam. Uma época em que a crença na interferência dos poderes sobrenaturais na vida terrena podia conduzir a atos de absoluta entrega e desprendimento – como no caso dos religiosos que se embrenhavam nos sertões para “salvar” os nativos. Mas, também, produzia atos de extrema violência, crueldade e intolerância, como nos casos dos condenados a morrer nas fogueiras inquisitoriais que arderam no reino português por mais de duzentos anos, ou dos próprios bandeirantes que dizimaram as missões dos jesuítas espanhóis na região entre os rios Paranapanema, Paraná e Tibagi, no interior do atual Estado do Paraná. Não é o caso de romantizar e idealizar os bandeirantes, como de resto a própria história. Sua crueldade e violência faziam parte de sua historicidade e são inegáveis. Contudo, são se trata de julga-los, mas sim de compreendê-los. Nesse sentido não somos adeptos de uma “história tribunal”, na qual o historiador, investido dos poderes de um juiz, volta-se para o passado para julgar os homens daquela época com juízos de valor e preceitos morais que pertencem a historicidade do historiador,
29 mas não fazem parte do mundo, da cultura, do homem daquele determinado passado. Afinal, o anacronismo é um “pecado” inaceitável em um trabalho historiográfico. Quais os anseios e desejos dos bandeirantes, como e porque agiam daquela determinada forma, o que os movia, como conseguiram sobreviver nos inóspitos sertões, são perguntas para as quais, nesse momento, devemos buscar respostas. Além disso: Se o intento é repensar este episódio evitando repetir o tema do culto aos ancestrais heroicos, é preciso [...] indagar também de que maneira os que vieram para São Vicente e São Paulo desenvolviam sua vida material e quais os limites e condições dados pelo cenário histórico em que se movimentavam. Os colonizadores dessa região estavam envolvidos basicamente na luta pela subsistência material, e a possibilidade de obterem maior ou menor sucesso era dada, por um lado, pela própria maneira como se implantou a colonização entre nós e, por outro, pelas características especificas da capitania de São Vicente e da cidade de São Paulo de Piratininga. (DAVIDOFF, 1986, p.9-10)
As bandeiras tinham como principal polo irradiador a vila de São Paulo de Piratininga, fundada por jesuítas que subiram a serra em busca da conversão do nativo ao cristianismo. No inicio de janeiro de 1554, os jesuítas subiram a Serra de Paranapiacaba e, após passar por Santo André da Borda do Campo, onde vivia João Ramalho, se dirigiram para a região do Vale do Anhangabaú, onde chegaram em 25 de janeiro, fundaram o Colégio e deram inicio a história da cidade de São Paulo. Desde o inicio da sua ocupação, a região da Vila de Piratininga, da mesma forma que o litoral da Capitania de São Vicente, assumiu características bastante distintas daquelas que predominavam no nordeste da América Portuguesa. Ao contrário do que ocorria em Pernambuco, a colonização da Capitania de São Vicente não apresentou um grande desenvolvimento. A escassez de recursos dos portugueses que se fixaram na região, a maior distância da Europa e as dificuldades de acesso, entre outros aspectos, não possibilitaram o desenvolvimento de uma produção mercantil. Ao contrário, as atividades econômicas se caracterizaram por uma agricultura de subsistência e pela autossuficiência. O trigo, o algodão, as “arvores de espinho” (limoeiros, laranjeiras, limeiras), a vinha e o marmeleiro, eram os principais produtos cultivados. Além desses, se cultivava ainda o cara e a mandioca e se praticava a pecuária. Ressalte-se que, como a produção era pequena, o excedente comercializável não era significativo. Em razão disso, os paulistas tinham pouco acesso aos produtos oriundos da Europa. Por sua vez, o pequeno poder de compra diminuía a frequência de mercadores à região.
Assim sendo, a vida dos moradores
da Vila de São Paulo, caracterizava-se pelo isolamento e pela pobreza. Situação esta que pode ser observada nos inventários e testamentos dos paulistas, do período de 1578 a 1700, publicados em 1920.
30 No inventário quinhentista de Grácia Rodrigues, esposa de Pero Leme, observa-se a extrema penúria revelada pelo arrolamento dos objetos domésticos: um colchão, um travesseiro, duas redes, uma caixa preta, um espelho, dois caldeirões, um castiçal, uma frigideira, dois ralos, um frasco de vidro e uma cadeira de espaldar, de que metade pertencia à sua filha,. Na segunda metade do século XVII deixaram de ser avaliados os bens de pouco valor e passou a ser assinalada a presença de novos implementos e mercadorias de luxo, o que poderia estar associado a uma circulação maior de riqueza devido à marcha do ciclo da mineração. Contudo, mesmo com essas alterações, persistia o quadro geral de escassez. Os sinais de riqueza considerável indicados nas avaliações totais de bens da segunda metade do século XVII são encontrados em apenas vinte dos quatrocentos inventários seiscentistas, não se podendo, portanto, generalizar conclusões sobre o incremento de alguns aspectos da vida material neste período. (DAVIDOFF, 1986, p.20)
A pauperidade paulista não deve, contudo, ser vista de forma absoluta pois, embora predominasse a produção para a subsistência, os moradores de Piratininga integravam-se ao mercado, fornecendo, entre outros produtos, marmeladas e, principalmente, o escravo índio. Este, inicialmente capturado nas imediações da Vila de Piratininga, posteriormente foi aprisionado cada vez mais para o interior do continente e se “constituiu „mercadoria‟ de exportação para outras capitanias” (ELLIS, 1989, p.278)3. Ao se voltar para o interior do continente, realizando incursões ao sertão, os paulistas tentavam romper com o isolamento e a pobreza. O sertão significava a possibilidade de obter “proveito”. Dessa forma: O bandeirante foi fruto social de uma região marginalizada, de escassos recursos materiais e de vida econômica restrita, e suas ações se orientaram ou no sentido de tirar o máximo proveito das brechas que a economia colonial eventualmente oferecia para a efetivação de lucros rápidos e passageiros em conjunturas favoráveis – como no caso da caça ao índio – ou no sentido de buscar alternativas econômicas fora dos quadros da agricultura voltada para o mercado externo, como ocorreu com a busca dos metais e das pedras preciosas. (DAVIDOFF, 1986, p.25-26)
Tal situação fez com que os moradores da vila de São Paulo desenvolvessem uma forma de vida independente e um certo desregramento. Os documentos oficiais da época mostram um pouco da forma independente e arredia que caracterizavam os paulistas. Estes são tidos, até o descobrimento das minas, como “maus vassalos”, que pretendiam “saber mais daquilo que convém aos Povos do que El Rei, que é o senhor deles”. As terras de São Paulo e São Vicente são chamadas de “terras pouco obedientes” e ainda: Em toda a sua correspondência [do governador Camara Coutinho] (e de outras autoridades reinóis por esse época), o que não faltam, aliás, são críticas acerbas aos 3
Ressalte-se que a escravidão indígena, veementemente combatida pelos jesuítas, tornou-se ilegal em 1570. A partir de então, sucessivas leis reafirmaram a proibição da escravidão e firmou-se no direito português o principio da “guerra justa” que estabelecia as condições sob as quais o nativo brasileiro poderia ser escravizado. Na prática a “guerra justa” abria uma brecha na legislação que tornava possível e legitimava a escravização do índio.
31 excessos contínuos de vassalos tão indóceis. Em uma carta a Sua Majestade chega a apodar os paulistas de “ladrões destes sertões”. Em outra acusa-os de “vassalos rebeldes”, que nenhuma ordem do governo geral guardam, nem as leis de seus soberano, e ainda de “mais vassalos pelo nome que pela obediência”. (HOLANDA, 1993, p.262)
A pobreza, o desenraizamento, o conhecimento do sertão, as técnicas de sobrevivência aprendida com os índios, o arrojo e a independência haviam tornado os paulistas hábeis exploradores do sertão. Em carta de 14 de outubro de 1718, D.João V, rei de Portugal, chega a afirmar que os paulistas são “`os únicos que, com bom sucesso‟, sabem ir aos descobrimentos de minas de ouro‟” (HOLANDA, 1993, p.271) Assim, como já afirmamos, em sua busca por alternativas econômicas que possibilitassem a obtenção do “proveito” os paulistas embrenharam-se nas matas em busca de nativos para serem escravizados e de riquezas minerais. “„Buscar o remédio para a sua pobreza, „buscar seu remédio‟, „buscar sua vida‟, „o seu modo de lucrar‟ são expressões usuais nos testamentos dos bandeirantes do século XVII, designando suas incursões ao sertão” (HOLANDA, 1989, p.277). Essa busca por riquezas alargou as fronteiras da América portuguesa, principalmente a partir da descoberta de depósitos auríferos. Os bandos, organizados em bases militares, podendo ter de dez a centenas de homens, chamavam-se bandeiras. (...) Índios livres ou cativos eram largamente utilizados como batedores, guias, carregadores, coletores de alimentos ou guardacostas. Longe da vistosa imagem que encontramos nas gravuras, os bandeirantes vestiam-se com um chapelão de abas largas, camisa e ceroulas. „As bota, preferiam sandálias indígenas ou caminhar descalços. Coletes de couro acolchoados, capazes de protege-los das flechas mortíferas dos inimigos, eram a peça mais sofisticada da leve bagagem que portavam. O importante era carregar muitas armas, inclusive arcos e flechas, alem de grãos, que, junto com a mandioca, eram sistematicamente plantados nas trilhas abertas (PRIORE e VENANCIO, 2010, p.71). . Veja no mapa algumas das incursões realizadas pelos bandeirantes.
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Fonte: Atlas histórico Escolar: MEC-FENAME, 1980.
AS MINAS DE OURO
Desde a chegada da frota cabralina aos territórios americanos, a esperança de encontrar metais preciosos acompanhou os portugueses. Já na carta escrita por Caminha, aparece a informação de que “nela [na terra] até agora não podemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem o vimos” (CAMINHA, in: CASTRO, 1985, p.97). No entanto, na mesma carta, já se nutre a expectativa de encontrar ouro, pois ao narrar os contatos iniciais com os índios, Caminha afirma : Um deles [índios] viu umas contas de rosário, brancas: mostrou que as queria, pegouas, folgou muito com elas e colocou-as no pescoço. Depois tirou-as e com elas envolveu os braços e acenava para a terra e logo para as contas e para o colar do Capitão, como querendo dizer que dariam ouro por aquilo. Nós assim o traduzíamos porque era o nosso maior desejo [...] (CAMINHA, in; CASTRO, 1985, p.79).
O interesse em encontrar metais preciosos também pode ser observado nos forais e cartas de doação das Capitanias Hereditárias e no Regimento Geral de Tomé
33 de Sousa, o primeiro governador geral do Brasil. Nesses documentos, a Coroa portuguesa estabelecia os direitos e os deveres dos mandatários. Entre as obrigações dos donatários e do Governador Geral estava a de organizar expedições ao sertão com o intuito de encontrar metais preciosos. Além das expedições organizadas a mando do Rei, também os particulares, como os bandeirantes, realizavam suas empreitadas. Contudo, segundo Antonil, um jesuíta italiano que viveu no Brasil e nos primeiros anos do século XVIII escreveu um livro clássico, publicado em 1711, os bandeirantes não teriam tido muito interesse em procurar metais preciosos, pois se interessavam mais em “buscar índios nos matos”. (ANTONIL, 1982, p.163). De qualquer forma, em suas andanças pelo sertão, em busca do índio a ser escravizado, os paulistas nunca deixaram de procurar metais e pedras preciosas. Já no século XVI, foi encontrado ouro, em pequena quantidade, em diversos locais. A fundação de Paranaguá, por exemplo, na Baia do mesmo nome, no litoral paranaense, relaciona-se diretamente a mineração. Afeitos à andança no sertão, capazes de sobreviver em condições duríssimas, decifrando sinais no mato, no vôo das aves ou na poeira do chão – habilidades adquiridas na longa convivência com os indígenas, com os quais muitos deles eram aparentados -, os paulistas começaram a se emprenhar na busca de prata e pedras. Encontrar ouro seria uma decorrência quase imprevista dessas buscas. Em 1674, Fernão dias entrava para o sertão à procura de esmeraldas, marcando a história da América Portuguesa. Seu objetivo era a lendária serra de Sabarabussu, um dos raros mitos que os portugueses desenvolveram no império. A expedição durou sete anos; Fernão Dias nunca retornou, morrendo em 1681 nos campos dos Cataguazes – como na época se chamava boa parte da porção sul de Minas Gerais. Borba Gato, seu genro, entrara com ele e permanecera no sertão, continuando as buscas e furtando-se à justiça, pois fora acusado de envolvimento na morte de d. Rodrigo de Castel Blanco, enviado real para verificar se valia a pena continuar as pesquisas auríferas. Participou de diversas bandeiras (...) (SOUZA e BICALHO, 2000, p.23).
Contudo, foi somente nos últimos anos do século XVII que os paulistas encontraram ouro em maiores quantidades. Entre 1693 e 1695 foram encontradas varias faisqueiras em trechos dos rios das Mortes e das Velhas. Embora os paulistas tenham tentado manter sigilo sobre as descobertas, as noticias percorreram rapidamente a América portuguesa e chegaram a Europa. O brilho do ouro atrai para as minas moradores de outras regiões da América portuguesa. Segundo Antonil; A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo, e as correram todas, dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendendo e comprando o que se há mister não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar (ANTONIL, 1982, p.167).
34 Sendo assim, centenas de homens partem de suas vilas e deixam para trás pequenos comércios, lavouras e engenhos e se deslocam para a região mineira. No comercio, no artesanato e na produção agrícola, mulheres começavam a substituilos, tentando animar o resto de vida urbana que sobrara. Inúmeras delas ganhavam a vida e sustentavam famílias. Faziam de tudo, eram agricultoras, lavadeiras, costureiras, tintureiras, doceiras. Ate a prostituição ajudava na luta pela sobrevivência (PRIORE e VENANCIO, 2010, p.71).
Além dos deslocamentos internos, a mineração também faz aumentar imensamente a imigração dos reinóis, oriundos principalmente do Minho e Trás-osMontes, no norte de Portugal. Segundo Vitorino Magalhães Godinho, entre 1700 e 1760, cerca de 600 mil portugueses emigraram para o Brasil. Vejamos, mais uma vez como tal migração é narrada por um contemporâneo. Cada ano,vêm nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa (ANTONIL, 1982, p.167).
O incipiente poder das instituições da Coroa portuguesa na vila de São Paulo, o relativo isolamento e a vida no sertão haviam contribuído para que predominasse entre os paulistas, um grande sentimento de independência e autossuficiência. A chegada de forasteiros, atraídos pelo ouro, colocava em cheque o seu domínio na região mineira, pois os paulistas se julgavam com direitos exclusivos sobre os metais preciosos. Os conflitos foram inevitáveis. Paulistas e emboadas (os forasteiros) envolveram-se em lutas. Derrotados, os paulistas abandonam a regiões das Minas Gerais e partem em busca de novos eldorados (Romeiro, 2008). Contudo, o isolamento e a inexistência de um poder de Estado persistiram nos primeiros tempos da mineração. Até então a colonização portuguesa havia avançado em direção ao interior paulatinamente, a medida que as atividades agrícolas e manufatureiras se expandiam. A região das gerais encontrava-se isolada, era habitada por índios arredios e animais selvagens. Para se chegar às minas era necessário passar pela Mata Atlântica e pela Serra do Mar. Os caminhos tiveram que ser abertos em meio a escarpas e florestas e, de inicio, deveria ser realizado a pé. Assim, o grande número de migrantes não dispunha de nenhum sistema de abastecimento. A princípio, o conhecimento que os bandeirantes haviam aprendido com os índios sobre o sertão ajudou muito. Buscavase na natureza as fontes de alimentação. Os peixes, as aves, a caça e o mel
35 garantiam a subsistência4. No entanto, tais recursos tornaram-se insuficientes para abastecer o grande número de homens que era atraído para as minas. Tornou-se necessário a organização da produção agrícola e mais uma vez se recorre aos conhecimentos que os paulistas haviam aprendido com os índios, com a produção de milho e mandioca. Mesmo assim, as fomes dos primeiros tempos (sobretudo entre 1697 e 1701) foram terríveis, e o Eldorado que atraía as levas humanas – promessa de Paraíso Terrestre – alternou-se com verdadeiras descidas ao Inferno. Sob a designação de Minas dos Cataguazes, logo alterada para Minas Gerais, escondia-se uma extensão de terra muito superior à da própria metrópole. Os regatos auríferos podiam ser bem distantes uns dos outros, cerca de oito dias ou mais. Os portugueses, fascinados pelo chamariz do ouro, dificilmente chegariam conscientes do que os esperava. Primeiro, a escalada da serra do Mar, muralha então quase intransponível, e depois a da Mantiqueira, escarpadíssima, ambas cobertas por matas virgens. Até os primeiros anos do século XVIII, por causa dos desfiladeiros e precipícios, só era possível seguir a pé. Não havia como entrar com boiadas, com os inúmeros rios a atravessar em canoas pequenas, que não comportavam mais do que dez homens: o rio Paraíba, o Grande, o das Mortes, o das Velhas. (SOUZA e BICALHO, 2008, p.28)
As dificuldades de acesso e de abastecimento e a fantástica inflação nas minas fizeram com que a fome fosse a principal companheira nos primeiros tempos, segundo Antonil: Sendo a terra que dá ouro esterilíssima de tudo o que se há mister para a vida humana, e não menos estéril a maior parte dos caminhos das minas, não se pode crer o que padeceram ao princípio os mineiros por falta de mantimentos, achando-se não poucos mortos com uma espiga de milho na mão, sem terem outro sustento ANTONIL, 1982, p.169).
O jesuíta arrola os preços de algumas mercadorias vendidas na região mineira. Alguns desses produtos chegavam a custar cerca de cinco mil vezes os preços praticados no litoral (conf. Souza e Bicalho, 2008). Segundo Antonil, um boi, um cavalo sendeiro ou um barrilote de aguardente valiam cem oitavas5; o preço de uma vaca era cento e vinte oitavas, o mesmo preço de uma espingarda bem-feita e prateada. Os escravos atingiam preços elevadíssimos. “Um crioulo bom oficial” chegava a valer quinhentas oitavas.
“Uma negra ladina cozinheira” alcançava trezentas oitavas, e
quinhentas chegavam a valer “um crioulo bom oficial”. O maior preço de um escravo era, segundo Antonil, “seiscentas e mais oitavas” para “uma mulata de partes”, que realizasse os serviços domésticos. No entanto, isso não impediu que se acumulasse riquezas na extração do ouro, no comércio de escravos ou no transporte e venda dos produtos que começavam a
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A respeito do conhecimento adquirido pelos bandeirantes junto aos nativos para a sobrevivência nos sertões veja-se: HOLANDA, 2008. 5 Uma oitava corresponde a aproximadamente 3,586 gramas. Em nossos dias uma oitava de ouro vale, aproximadamente, R$ 140,00.
36 chegar a região. “Ao terminar a primeira década do novo século, algumas fortunas já haviam sido amealhadas nas Minas” (SOUZA e BICALHO, 2008, p.31). Um outro aspecto relevante da sociedade mineradora dos primeiros tempos era o desregramento e a violência. Embora tivesse como principal relação de trabalho a escravidão, tal qual a sociedade do litoral nordestino, a sociedade mineira tinha características distintas. A colonização do nordeste tinha o engenho como polo aglutinador da vida econômica, politica, social e cultural. Ou seja, a sociedade era caracterizadamente rural. Os centros urbanos eram o cerne do comércio e da administração. Mas não polarizavam a vida social, cultural e econômica. Nas minas, em razão das características próprias dessa atividade econômica, os aglomerados urbanos se desenvolveram mais rapidamente e, de forma distinta do nordeste, tornamse o eixo da vida. Contudo, as vilas surgiam espontaneamente, ao sabor do descobrimento, exploração e esgotamento do ouro. Não eram precedidas, e nem poderia, por um planejamento. Assim, por um lado, o isolamento, a ausência de um sistema de abastecimento e os elevados preços e, por consequência, a fome, e por outro, a inexistência quase completa das instituições da Coroa, do poder de policia, da justiça, da administração, enfim, do poder do Estado, fizeram com que a violência, o desregramento, o poder dos potentados, dos valentões, caracterizassem os primeiros tempos da presença europeia na região. A inexistência de um ordenamento, do poder do Estado nos primeiros tempos, é percebida por Antonil. Não houve até o presente coação ou governo algum bem ordenado, e apenas se guardam algumas leis que pertencem às datas e repartições dos ribeiros. No mais não há ministros nem justiças que tratem ou possam tratar do castigo dos crimes, que não são poucos, principalmente dos homicídios e furtos (ANTONIL, 1982, p.168).
A ausência do poder espiritual, da Igreja, agravava ainda mais a situação. Ainda segundo Antonil: Quanto ao espiritual, havendo até agora dúvidas entre os prelados acerca da jurisdição, os mandados de uma e outra parte, ou como curas, ou como visitadores, se acharam bastantemente embaraçados, e não pouco embaraçaram a outros, que não acabam de saber a que pastor pertencem aqueles novos rebanhos. E quando se averigúe o direito do provimento dos párocos, pouco hão de ser temidos e respeitados naquelas freguesias móveis de um lugar para outro, como os filhos de Israel no deserto (ANTONIL, 1982, p,168).
A Coroa e a administração das minas
De inicio, a descoberta de ouro foi cercada de duvidas e incertezas. Os temores superavam as esperanças. A Coroa temia o interesse que a descoberta iria despertar em outras nações da Europa, que poderiam assaltar os portos e navios do
37 Brasil. Temia-se ainda o efeito da descoberta sobre a economia brasileira como um todo. Afinal, Não se sabia ao certo a extensão dos achados auríferos, feitos até então nos leitos e tabuleiros dos rios, e, não nas minas de beta. Esse ralo ouro de aluvião compensaria dos esforços de colonização? E mesmo que fosse abundante e rico, o excesso da oferta faria irremediavelmente o preço do ouro despencar em Portugal e no Brasil, tornando o nobre metal tão vil que mal valeria o esforço de sua extração. Ademais, as verdadeiras riquezas da América – as duas colunas sobre as quais o Reino se apoiava – eram as lavouras do açúcar e do tabaco, que seriam fortemente ameaçadas pelo deslocamento em larga escala dos escravos para as minas de ouro nos sertões deixariam para trás um rastro de abandono, com engenhos desmantelados, lavouras perdidas e fábricas desamparadas. (ROMEIRO, 2008, p.36)
Superados os temores, a descoberta de ouro no interior do Brasil deu um novo alento ao combalido império colonial português. No entanto, para que a Coroa auferisse benefícios com a mineração no Brasil as instituições da monarquia portuguesa deveriam se fazer presentes nas minas. Assim, é justamente, mas não apenas, a descoberta e inicio da produção aurífera na América portuguesa que passou a exigir uma maior presença do Estado português e um aprimoramento da organização administrativa e política no Brasil (EGLESIAS, 1974). Esta necessidade pode ser observada em um parecer do Conde de Assumar sobre o projeto de capitação apresentado por Alexandre de Gusmão. No parecer o autor afirma que “cuidavaõ antigamente os mineiros que estavaõ tam bem cituados nas suas Montanhas, que naõ podia subir a ellas, nem o poder, nem a justiça real; deste erro já estaõ dezenganados e de dezobedientes, e revoltozos, se tornaraõ cordeiros” (ASSUMAR, 1953, p.503). Aliada a este fato, a crescente complexidade que a organização do Estado moderno adquire ao longo dos séculos XVI ao XVIII exige gastos cada vez mais vultosos. O Estado moderno necessita de recursos para a defesa e a guerra, para a burocracia estatal, para a diplomacia, para a justiça, para a polícia, para a manutenção de vias de transporte. Além disso, destacam-se ainda a necessidade de amparo aos orfãos, aos inválidos e aos pobres, etc. No caso específico de Portugal, deve ser mencionado também os gastos públicos com a manutenção da corte - Rei, Nobreza e criados - e os gastos com a Igreja, uma vez que, em Portugal, as despesas da Igreja eram responsabilidade do Estado. Finalmente, destacam-se ainda as despesas com a manutenção e administração do, ainda vasto, império colonial. Para fazer frente às crescentes despesas, o Estado português depende dos impostos cobrados tanto no Reino - onde somente o 3º estado é tributado - quanto no mundo colonial.
38 Na medida em que a expansão ultramarina adquire importância econômica, as atividades a ela relacionadas também vão gradativamente tornando-se mais importantes como fontes de tributação. Assim sendo, ao redor de 1520, “as receitas fiscais captadas no trato d'além-mar já ultrapassavam de um terço os tributos e taxas recolhidos na metrópole pelo Erário Régio” (ALENCASTRO). Entre os impostos usualmente cobrados pela Coroa, eram comuns os quintos e a capitação, as tarifas de importação e exportação e os impostos sobre a transmissão de propriedade (sisa), sendo que este último era cobrado sobre toda e qualquer transação, inclusive transações comerciais (HOLLANDA, 1993). Na colônia, além dos impostos sobre a transmissão de propriedade, importações e exportações, destacavam-se os dízimos - antigo tributo eclesiástico, cedido, nas conquistas portuguesas, à Ordem de Cristo (PRADO JUNIOR, 1987; SOUZA, 1982), ordem da qual o Rei de Portugal era Grão-mestre - e os quintos. Estes dois últimos eram tributos fixados diretamente sobre a produção - respectivamente 10% e 20% - e deveriam ser pagos in natura, forma de pagamento nem sempre respeitada pelos contratadores, que normalmente preferiam receber em moeda. Assim, o dízimo já era cobrado, por exemplo, sobre o açúcar e a pecuária. Além destes tributos seguiam-se os direitos de alfândega; as passagens dos rios e registros (alfândegas secas); as entradas (em Minas Gerais); imposições especiais sobre bestas que vinham do Sul e se cobravam em Sorocaba (São Paulo). Havia ainda os donativos, terças partes e novos direitos, que se pagavam pelas serventias dos ofícios de justiça (escrivães, meirinhos, solicitadores, etc); bem como emolumentos de provisões e patentes (nomeações para cargos públicos). Além destes tributos ordinários, [...] os subsídios extraordinários, que se estabeleciam de vez em quando para atender à emergência do Estado.(PRADO JUNIOR, 1987, p.321)
Normalmente, a arrecadação era realizada pelos contratadores, particulares a quem a coroa arrendava, mediante contrato, os direitos de arrecadação tributária por um determinado período de tempo. Além da arrecadação tributária, a maior presença das instituições monárquicas portuguesas na América também tinha por objetivo incrementar a produção aurífera, com a disseminação de técnicas mais produtivas. Neste sentido, em 1700, por exemplo, foram enviados para a América quatro mestres mineiros numa tentativa de estimular a produtividade da mineração a partir da introdução de novas técnicas . Um outro aspecto importante dos esforços da coroa foi a reforma na legislação sobre a mineração. A antiga legislação que remontava aos séculos XVI e XVII , não apenas se revelava arcaica para a nova realidade da produção aurífera brasileira, mas, sobretudo, era completamente ignorada na colônia.
39 Em resposta às novas demandas, a partir de 19 de abril de 1702, um novo Regimento passou a regulamentar a mineração no Brasil e, diferentemente do que fora até então praticado, a tributação sobre a produção aurífera passou a ser recolhida pela própria coroa. Desta forma, já em 1700, foram nomeados provedores especiais para cobrar o quinto do ouro que havia sido estabelecido pelo código de exploração mineira de 1557 e permanece em vigor até 1835 (HANSON, 1986, p.194). Contudo, o grande volume de ouro contrabandeado fez com que a coroa buscasse alternativas que inibissem os descaminhos. Em 1710, surgiram os primeiros projetos para a criação das casas de fundição, onde o ouro deveria ser quintado, e que, no entanto, não se tornaram, naquele momento, realidade. Em 1713, além do quinto, os mineradores foram obrigados a pagar, como tributo extraordinário, uma finta anual de trinta arrobas que foi reduzida, em 1718, para vinte e cinco arrobas. Como a questão da sonegação permanecesse preocupante, em 1725 a coroa acaba com a finta e institui, finalmente, as casas de fundição. A solução provocou reação contrária por parte dos mineiros e o Conde das Galveias, Governador das minas, pressionado, reduziu, pelo bando de 25 de maio de 1730, o quinto de 20% para 12% . O Rei, por seu lado, não aprovou tal medida e ordenou que o quinto fosse restabelecido, através da ordem Régia de 24 de abril de 1733. Com a elevação da taxa, provavelmente devido a um aumento dos descaminhos, a arrecadação diminuiu. Sob a taxa de 12%, a arrecadação havia atingido o seu ponto máximo, caindo, contudo, com o retorno da taxa de 20%. Era necessário, como afirmava, em seu parecer, em 1733, o Conde de Assumar, (...)advertir que o Estado prezente das Minas, necessita deste, ou de outro promptissimo remedio, porque na forma em~,q se achaõ, naõ pode ser mais deploravel para a fazenda de Sua Mag.de, nem mais perigoza p.ª os vassalos: a primeira padese pelas fraudes, e latrocinios, os segundos pelos sustos, e pelas pennas a que ficaõ expostos, de que foy, e serâ sempre origem a caza da fundiçaõ, e da moeda. (In; CORTESÃO, 1953, parte V, p.502).
Conforme pode se observar, por ser vital para a Coroa, a discussão sobre a melhor forma de tributar envolveu debates acalorados e se desenrolou por décadas até que se estabelecesse o quinto e a derrama que levou os minérios a revolta na segunda metade do século XVIII. Finalmente, um terceiro motivador da ação da Coroa em Minas Gerais que deve ser destacado é a necessidade de estabelecer uma ordem social. Desde os momentos iniciais do descobrimento das minas, os administradores portugueses tentavam estabelecer um ordenamento na região. Por exemplo, para tentar solucionar o problema da fome dos primeiros tempos, o D.João V, Rei de Portugal, ordena que
40 fossem concedidas a particulares, o máximo de terras possíveis, na região entre o Rio de Janeiro e a Serra dos Orgãos. Aqueles que recebessem tais terras teriam a obrigação “de pôr um curral de gado dentro de dois e até três anos no sitio que se lhes der, por se entender que com a fertilidade destas terras abundarão as capitanias em gado”. Com isso, a Coroa tinha a pretensão de minimizar os problemas de abastecimento na região, conter a inflação e atenuar a fome. Tal medida pode até não ter obtido os resultados esperados, mas mostra uma preocupação em buscar solucionar os problemas da região. Um outro problema que preocupava os governantes era a grande migração para a região. Buscando estancar a grande imigração para as minas, e os problemas dela decorrentes, entre 1702 e 1705, o Governador da Bahia, D. Rodrigo da Costa toma uma série de medidas que, embora infrutíferas, tentam conter tal migração. Os maiores
problemas,
contudo,
relacionavam-se
a
inexistência
das
instituições da monarquia na região mineira. Era necessário estabelecer o poder de policia, os princípios do direito, a construção de obras publicas, como estradas e infraestrutura urbana, etc. Para tanto a Coroa, passa exercer mais incisivamente, por meio de suas instituições, o poder nas Minas. Segundo Antonil, “para evitar a confusão, o tumulto e as mortes que haveria no descobrimento dos ribeiros de ouro”, o Rei estabeleceu normas para a repartição das datas6, isto é, para a divisão em lotes para ser distribuídos entre os mineiros, os territórios onde fosse encontrado ouro. Além disso; Teve El-Rei nas minas, por superintendente delas, ao desembargador José Vaz Pinto, o qual, depois de dous ou três ambos, tornou a recolher-se para o Rio de Janeiro com bastante cabedal, e dele, suponho, ficaria plenamente informado do que por lá vai, e que apontaria as desordens e o remédio delas, se fosse possível a execução. Assiste também nas minas um Procurador da Coroa, e um Guarda-mor, com seu estipêncido. Houve, até agora, Casa de quintar em Taubaté, na Vila de São Paulo, em Parati, e no rio de Janeiro, e em cada uma destas casas há um provedor, um escrivão e um fundidor, que, fundido o ouro em barretas, lhe põe o cunho real, sinal do quinto que se pagou a El-Rei desse ouro. Havendo Casas da Moeda e dos Quintos na Bahia, e no Rio de Janeiro (por serem estes os dous pólos aonde vai parar todo o ouro), teria sua majestade muito maior lucro do que até agora teve, e muito mais se nas Casas da Moeda, bem fornecidas dos aparelhos necessários, houvesse sempre dinheiro pronto para comprar o ouro que os minérios trazem e folgam de o vender sem detença (ANTONIL, 1982, p. 168).
Finalmente, Antonil afirma que “para que tudo tome melhor forma e governo” o Rei envia para as Minas “governador, ministros de Justiça” e “um terço de soldados”.
6
“As datas concedidas nas Minas eram áreas de 30x30 braças, correspondendo cada braça a 1,10m. Só eram concedidas a quem tivesse pelo menos doze escravos de trabalho para as lavras; concediam-se frações de 2,5 x 2,5 braças por escravo, a quem tivesse menor número de escravos. De outro lado não se concedia segunda data a quem não houvesse provado explorar a primeira e contar com mais escravos para outra.” (FENELON, 1986, p. 40)
41 Posteriormente, em 1719, foi enviada para Minas, uma
tropa de Dragões7. Pela
primeira vez haveria uma tropa regular portuguesa sediada na colônia. Entre as principais medidas tomadas pela Coroa destacam-se as tentativas de organizar a imigração, a proibição da entrada de membros do clero regular e de ourives na região, o estabelecimento de cotas para a entrada de escravos em Minas Gerais, a nomeação de ouvidores e a criação de juntas de julgamento e a criação de milícias. Contudo, o isolamento, as grandes distâncias, a corrupção, as dificuldades de acesso, entre outros fatores, não permitiam que as medidas estabelecidas se tornassem de fato, efetivas. De qualquer forma, a presença mais efetiva e uma maior intervenção do Estado português na colônia, visavam, fundamentalmente, aumentar a arrecadação tributária, incrementar a produção e organizar a vida social. A partir de então produz-se as condições para o desenvolvimento de uma civilização urbana no coração da América portuguesa. O desenvolvimento da vida urbana, por sua vez, produz novas necessidades, que, para serem supridas, exigiram novos profissionais como comerciantes, artesãos, carpinteiros, pedreiros, médicos, “tiradentes”, funcionários públicos, engenheiros, arquitetos, construtores, etc. Outro aspecto relevante relaciona-se ao desenvolvimento das letras, musica e das artes plásticas. Tudo isso fez com que a população mineira aumentasse em um ritmo extremamente rápido e, em 1776, atingisse aproximadamente 320.000 habitantes, sendo que cerca de 52% eram negros, 25% mulatos e 22% brancos. Concluindo, podemos afirmar que, ao contrário de outros períodos e regiões da América Portuguesa, a mineração constituiu um ciclo. No período inicial, até aproximadamente a segunda década do século XVIII, a região era caracterizada pela violência pela escassez e pela fome e pela insuficiência das instituições do Estado. A partir de então, a efetiva ação da Coroa, estabelece o poder do Estado. As atividades econômicas se diversificam, a sociedade acumula riquezas, que pode ser observada, por exemplo, na arquitetura barroca mineira, e a vida urbana se organiza. O apogeu da mineração ocorreu entre 1733 e 1748, a partir de então, a queda no rendimento da mineração e o arrocho fiscal instauram uma crise na região que, aliada ao desenvolvimento da própria sociedade e da disseminação de ideias iluministas, estimularão o surgimento de rebeliões contra o Antigo Regime nos trópicos.
7
Dragão era a designação do soldado das unidades militares dos exércitos europeus a partir do século XVII. Embora se locomovessem a cavalo, combatiam a pé, como a infantaria. Era uma espécie de infantaria montada.
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REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALENCASTRO, Luiz Felipe de. No labirinto das colônias. In: Folha de São Paulo: São Paulo, 17/05/98, caderno 5. ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo/Belo Horizonte: EDUSP-Itatiaia, 1982. ASSUMAR, Conde de. Parecer do Conde de Assumar, D. Pedro de Almeida sôbre o projeto de capitação, 21 de setembro de 1733. In: CORTESÃO, Jaime, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. parte V, 1953. CASTRO, Silvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: LP&M; 1985. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Parte I, Tomo I (1695-1735). Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores/Instituto Rio Branco.1952. DAVIDOFF, Carlos Henrique. Bandeirantismo: verso e reverso. São Paulo: Brasiliense, 1986. ELLIS, Miriam. “As bandeiras na expansão geográfica do Brasil. In: HOLLANDA, S.B. (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I A época colonial, 1. Volume Do descobrimento à expansão territorial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. FENELON, Dea Ribeiro. 50 textos de história do Brasil. São Paulo: Hucitec, 1986. GUSMÃO, Alexandre de. Projeto de capitação e maneio, proposto a D.João V por Alexandre de Gusmão, 1733. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Parte II, Tomo I (1695-1735). Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores/Instituto Rio Branco.1952. GUSMÃO, Alexandre de. Regimento dado por El Rei D. João V, mas escrito por Alexandre de Gusmão, ao novo Governador das Minas, Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, com referências muito particulares ao sistema de capitação a inaugurar naquela capitania. 30 de outubro de 1733. In: CORTESÃO, 1952. parte II, tomo I, GUSMÃO, Alexandre de. Resposta de Alexandre de Gusmão a vários pareceres e dúvidas sôbre o projeto da Capitação. (1733). In: CORTESÃO, 1952. Reparos sobre a disposição da Lei de 03 de dezembro de 1750, a respeito do novo método da cobrança do quinto do ouro nas Minas Gerais, pelo qual se aboliu o da capitação. In: CORTESÃO, 1952, parte II, tomo I. HANSON, Carl A. Economia e Sociedade no Portugal Barroco (1668-1703). Lisboa: Dom Quixote, 1986. HOLLANDA, Sérgio Buarque de (dir.). História geral da civilização brasileira. Tomo I vol. II. Rio de Janeiro: 7ª ed., Bertrand Brasil, 1993. HOLANDA, Sérgio Buarque de, Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. EGLÉSIAS, Francisco. Minas e a imposição do Estado no Brasil. In: Revista de História. São Paulo: 1974, nº 100, p.257-273. PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 20ª ed., São Paulo: Ed. brasiliense, 1987. PRIORI, Mary Del e VENANCIO, Renato. Uma breve historia do Brasil. RJ Planeta, 2010. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão do nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: FAPESP-HUCITEC-EDUSP; 2002. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas. Belo Horizonte: UFMG, 2008. SOUZA, Laura de Melo e BICALHO, Maria Fernanda Baptista. 1680-1720 O Império deste mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
43 www1.folha.uol.com.br/cotidiano/864375-apesar-da-aura-mitica-bandeirante-era... Acessado em 25/01/2011 ZAMELLA, Mafalda P. O abastecimento da capitania de Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1990.
FONTES E REFERENCIAIS PARA APROFUNDAMENTO TEÓRICO
Faça uma busca na Internet pelo livro Cultura e Opulência do Brasil. Escrito por Antonil e publicado em 1711. O livro encontra-se disponível em várias bibliotecas virtuais. Leia a “terceira parte: Cultura e Opulência do Brasil pelas minas de ouro” do livro. Analise as principais questões discutidas na “terceira parte”. Elabore um texto dissertando sobre as principais questões que a leitura e a analise suscitaram.
44 CAPÍTULO III – AS ORIGENS DA ESCRAVIDÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA
Lupércio Antonio Pereira
Para se entender historicamente a implantação da escravidão na América Portuguesa, preliminarmente é necessário chamar a atenção para o anacronismo que comumente se verifica na interpretação desse fenômeno histórico. Vivemos numa época histórica em que, pelo menos para os países de tradição liberal, a liberdade é concebida como um atributo inseparável da condição humana. Homem e liberdade são conceitos inseparáveis em nossa atual forma de pensar. Assim, para nós é natural que o indivíduo tenha plena liberdade para escolher sua religião; liberdade de expor livremente seus pensamentos e suas opiniões; liberdade de petição; liberdade de escolher seus dirigentes; liberdade de filiar-se a sindicatos e associações de classes para defesa de seus interesses; liberdade de emigrar para outro país; liberdade de recorrer ao judiciário toda vez que considerar seus direitos ofendidos por outros indivíduos, por empresas ou pelo Estado. Em suma, vivemos numa época histórica em que o normal é o indivíduo usufruir de uma gama de liberdades individuais inexistentes em qualquer outra etapa da história. Para o homem comum da nossa era, é normal que seja assim.
Esses direitos lhe parecem tão
naturais à condição humana, que lhe seria difícil imaginar não ter sido sempre assim na história. O mesmo se passa no universo do trabalho. Na era em que vivemos, todo indivíduo é livre tanto para escolher sua profissão, como para escolher seu patrão, da mesma forma em que é livre para empregar-se onde o salário e as condições de trabalho sejam melhores. Ele é livre, também, para ir trabalhar em qualquer cidade da nação onde possa encontrar emprego, da mesma forma em que é livre para romper o contrato de trabalho a qualquer momento, dependendo unicamente de sua vontade, de suas necessidades ou do surgimento de novas oportunidades de emprego que melhor atendam seu próprio interesse. É perfeitamente compreensível, portanto, que o homem comum do século XXI tenha rejeição e até repugnância por outras formas sociais e por outras instituições do passado que não tinham como base o indivíduo e a liberdade individual. É o que acontece com a escravidão. Na forma comum do homem atual pensar, a
45 escravidão só pode ser vista como uma aberração, uma coisa monstruosa, errada, desumana, cruel, impiedosa etc. É voz corrente em nossa época, também, a afirmação de que a escravidão era uma instituição disfuncional e antieconômica. Grifamos acima a expressão homem comum com um propósito bem definido. É para chamar a atenção para o fato de que não se pode exigir desse homem comum que conceba a escravidão de forma diferente. Com sua concepção de homem do século XXI, é previsível que veja o trabalho livre como natural e a escravidão como uma anomalia, uma excrescência, uma monstruosidade ou algo do gênero. Imbuído da moral da nossa época, o homem comum geralmente faz um julgamento da escravidão e sua sentença é que ela era um crime. Mas, o que é perfeitamente normal e legítimo para o homem comum – que faz julgamentos a partir dos critérios do senso comum − não o é para o historiador quando o assunto é a escravidão. Por que não? Em primeiro lugar, porque não se pode confundir senso comum com ciência. O olhar da ciência para os fenômenos humanos tem que ser diferenciado do olhar do senso comum. Senão não seria ciência. Normalmente as conclusões da ciência contrariam as do senso comum. Em segundo lugar, porque o historiador não é o juiz da história. Seu ofício não consiste em colocar as instituições do passado no banco dos réus e proceder a seu julgamento segundo os parâmetros legais e morais de nossa própria época. Esperase, ao contrário, que o historiador elimine os preconceitos sobre o objeto a ser estudado e procure compreendê-lo em sua historicidade, isto é, levando em consideração os valores contemporâneos do objeto estudado. Mas, poder-se-ia objetar, os homens não podem fazer julgamento das instituições humanas? É claro que podem. E o fazem constantemente para conserválas, para aperfeiçoá-las e até para extingui-las, como foi o caso da escravidão, da inquisição, das corporações de ofício e de tantas outras. Mas de que adianta fazer um julgamento de uma instituição já eliminada pela própria história? Portanto, é perfeitamente legítimo – e necessário − que façamos o exame e até o julgamento moral das questões atinentes à nossa própria época, porque temos como interferir na realidade em que vivemos, ainda que de forma limitada. Mas não fazemos isto como historiador, e sim na condição de cidadão ativo que vive o seu próprio tempo histórico. De nada adianta fazer um julgamento moral da escravidão porque ela em si não é mais uma questão da nossa época, a não ser como problema marginal e
46 bastante localizado de algumas sociedades contemporâneas que ainda apresentam bolsões de atraso e arcaísmo. Entretanto, algumas questões do passado podem ser objeto de disputas político-ideológicas porque têm alguma utilidade na legitimação de demandas ou reivindicações de grupos sociais organizados da sociedade atual. Neste caso, o passado é mero pretexto porque é o presente que está em discussão. Tal é o caso da escravidão que, às vezes, é o pano de fundo da discussão de demandas polêmicas como as cotas raciais para ingresso nas universidades e no serviço público, os direitos das comunidades quilombolas e até para uma já reivindicada indenização pecuniária para os descendentes de escravos. Portanto, a interpretação da escravidão é um verdadeiro campo minado e pode prestar-se a todo tipo de distorções e manipulações. Por isso, é preciso um mínimo de objetividade e de serenidade quando o objeto de estudo é a escravidão. É preciso ter consciência, também, que a explicação que formulamos ou que aceitamos sobre a escravidão tem conseqüências práticas para os dias de hoje e podem legitimar, ou não, uma política de estado que introduza em nosso direito o já ultrapassado conceito de raça, ou na adoção de políticas públicas que impliquem na distribuição de benefícios para uns e de encargos para outros. Tudo em nome de um suposto passivo histórico deixado pela escravidão, como se os indivíduos atuais fossem responsáveis por algo que aconteceu há séculos atrás. Nesse caso, o que está em jogo não é o passado, mas o presente. O passado não pode ser modificado, mas o presente sim. Feitas essas considerações de ordem metodológica, retomemos a questão da escravidão. O PARADIGMA ABOLICIONISTA No nosso entendimento, um dos maiores problemas na interpretação da escravidão colonial consiste em olhar para aquele fenômeno pelo mesmo ângulo dos abolicionistas do século XIX. As interpretações mais influentes sobre a escravidão partem daquilo que poderíamos chamar de paradigma abolicionista. Em que consiste, basicamente, esse paradigma? Justamente em considerar a escravidão uma instituição não natural, desumana e, por isso mesmo, não funcional. Para os abolicionistas, a escravidão era uma “organização anormal do estado social” (MALHEIRO, 1976: 32). E por que seria “anormal”? Porque a consideravam uma instituição incompatível com a natureza humana, sendo esta concebida como algo imutável na história. Independentemente das condições, os homens seriam
47 absolutamente os mesmos ao longo da história (as inclinações, aspirações, temores, ilusões e preferências seriam invariáveis no tempo). Sendo assim, a aspiração à liberdade e à igualdade seria uma constante em todas as fases da história. O corolário dessa concepção é a qualificação da escravidão como instituição irracional, socialmente desagregadora, corruptora dos costumes, politicamente perigosa, economicamente ineficiente e, portanto, contrária ao progresso (MALHEIRO, 1976: 32). Como as sociedades e instituições do passado nem sempre seguiram o roteiro traçado pelos abolicionistas, a história então não passaria de uma crônica de erros, deformações e violências contra a natureza humana. Outro problema derivado do paradigma abolicionista é a desumanização do escravo e dos demais agentes históricos envolvidos nessa relação. Vejamos, a título de exemplo, uma passagem do famoso Ensaio de Perdigão Malheiros, um dos grandes críticos da escravidão no século XIX: A raça reputada a mais nobre e superior abastardava-se, com dano para si, e sem vantagem para as outras... O escravo era apenas um instrumento de trabalho, uma máquina; não passível de qualquer educação intelectual e moral, sendo que mesmo da religiosa pouco se cuidava. Todos os direitos lhes eram negados. Todos os sentimentos, ainda os de família. Eram reduzidos à condição de coisa, como os irracionais, aos quais eram equiparados, salvas certas exceções. Eram até denominados, mesmo oficialmente, peças, fôlegos vivos, que se mandavam marcar com ferro quente ou por castigo, ou ainda por sinal como gado. Sem consideração alguma da sociedade, perde o escravo até a consciência da dignidade humana, e acaba por acreditar que ele não é realmente uma criatura igual aos demais homens livres, que é pouco mais do que um irracional. E procede em conformidade dessa errada crença, filha necessária da mesma escravidão. (MALHEIRO, 1976: 31, grifos do autor)
Para os seus críticos oitocentistas, a escravidão era uma instituição que, por sua monstruosidade imanente, só poderia ser mantida pela força e pela brutalidade do senhor contra o escravo. Nela, a humanidade do escravo não teria chance de aflorar porque este deveria ser submetido constantemente à vigilância, à violência e mantido na mais absoluta ignorância. Entretanto, a brutalidade exercida contra os escravos cobraria um alto preço da sociedade. Vale aqui, a título de exemplo, lembrar um trecho da famosa Representação sobre a escravatura, apresentada em 1823 à Assembléia Constituinte e Legislativa do Império do Brasil por José Bonifácio de Andrada e Silva. Nós, dizia ele, “tiranizamos os escravos, e os reduzimos a brutos animais, e eles nos inoculam toda a sua imoralidade, e todos os seus vícios”. (SILVA, s/d: 36).
48 Vemos em Cairu outra ilustração dessa concepção. Em seus Estudos do Bem Comum, Cairu refere-se ao “atual atraso de conhecimentos [no Brasil], que é proporcionalmente maior onde predomina cativeiro, e despotismo, que amortizam as faculdades mentais, e até enervam as forças dos corpos” (CAIRU,1975: 250). O mesmo conceito era expendido por Joaquim Nabuco em um texto redigido em 1870, no qual dava os primeiros e decididos passos no caminho que o levaria a ser o maior nome do abolicionismo brasileiro. Para Nabuco, a virtude seria impossível numa sociedade sustentada pelo trabalho escravo porque [a escravidão] é a escola do crime, envenena o coração do senhor e do escravo, muda a caridade em palavra vã, desnatura a lei do mérito: é a sentina de todos os vícios: assim veremos como a escravidão ataca a base da sociedade livre: os costumes (NABUCO, 1999: 5).
Em outro grande livro, O Abolicionismo (1881), expressão teórica maior do movimento abolicionista, Nabuco sustentava que a escravidão deixava os homens “embrutecidos e moralmente mutilados” (NABUCO, 1977: 60). Nabuco pensava assim porque, para ele, a escravidão operava uma “degradação sistemática da natureza humana” (idem: 55). Supõe-se, nesta concepção, que se o escravo alcançasse um mínimo de conhecimento e vislumbrasse a menor brecha na vigilância, fatalmente se revoltaria contra seu senhor. Sendo uma instituição contrária à natureza humana, a escravidão só poderia ser mantida com a violência. Vez ou outra a natureza reprimida explodiria em reações violentas do escravo contra seu senhor ou contra o feitor. Outras vezes, essa explosão virava-se contra a própria pessoa do escravo que, não suportando o cativeiro, praticava o suicídio: a escravidão é um estado violento de compressão da natureza humana no qual não pode deixar de haver, de vez em quando, uma forte explosão. Não temos estatísticas dos crimes agrários, mas pode-se dizer que a escravidão expõe o senhor ou os seus agentes, e tenta o escravo à prática de crimes de maior ou menor gravidade. Entretanto, o número de escravos que saem do cativeiro pelo suicídio deve aproximar-se do número dos que se vingam do destino da sua raça na pessoa que mais os atormenta, de ordinário o feitor. A vida do berço ao túmulo, literalmente, debaixo do chicote é uma constante provocação dirigida ao animal humano, e à qual cada um nós preferiria, mil vezes, a morte. Quem pode, assim, condenar o suicídio do escravo como covardia e deserção? (NABUCO, 1977: 72)
Havia algum problema nessa visão dos abolicionistas sobre a escravidão? Entendemos que não. Ao condenarem a escravidão, os abolicionistas estavam se posicionando sobre uma questão real de sua própria época. A escravidão não era uma questão do passado, mas do seu próprio tempo. A sociedade de então precisava
49 decidir se, havendo outras possibilidades de organização social, ainda assim manteria ou não aquela instituição. Portanto, os abolicionistas não estavam julgando o passado, mas fazendo um acerto de contas com o próprio presente e tentando modelar o futuro. Neste sentido, os abolicionistas tinham toda legitimidade em pintar a escravidão com as cores mais sombrias. Eles viviam uma fase crucial da transição para a modernidade.
Uma fase em que a história criara novas possibilidades de
desenvolvimento humano, tendo como base a liberdade dos indivíduos. E a realização dessas novas possibilidades esbarrava em tudo aquilo que até então organizara o mundo pré-moderno: a sociedade de ordens, o trabalho compulsório, o absolutismo monárquico, o mercantilismo, as corporações de ofício, os monopólios, a censura etc. Os abolicionistas estavam, portanto, envolvidos em uma luta política para destruir as instituições que atrapalhavam a construção da modernidade. E é da natureza da luta política a necessidade de desconstruir simbolicamente o adversário, demonizando-o. Mas não devemos confundir as necessidades e a lógica da política com os métodos de investigação da história. Neste sentido, não podemos olhar para a escravidão com o mesmo olhar de reprovação e de indignação dos abolicionistas, porque isso reduz nossa capacidade de compreensão daquele intrigante e complexo
fenômeno histórico. A indignação
quase sempre turva a nossa mente e, por isso, reduz nossa capacidade de compreensão da história. Assim, uma análise da escravidão que parta do princípio de que ela era uma instituição “errada” ou um crime é pouco promissora. Para o historiador do século XXI que queira compreender aquele fenômeno histórico, ela não pode ser vista como “certa” ou “errada”; antes, ela tem de ser vista como um fenômeno histórico que, por sua longa duração e grande abrangência, merece ser investigada com objetividade e com uma boa dose de distanciamento. A escravidão deve ser encarada como uma das tantas instituições sepultadas pelo passado, a maioria das quais pareceriam bizarras para o nosso gosto de homens do século XXI. Portanto, devemos de imediato recusar o conceito formulado pelos abolicionistas de que a escravidão era desumana. Por mais que isso possa escandalizar a consciência do homem comum do século XXI, é preciso estabelecer, desde logo, que não há nada mais humano do que a escravidão. Ela é humana porque não foi uma força extra-humana que a introduziu na vida social, mas foi inventada pelo próprio homem e o acompanhou ao longo de milênios. Um mundo sem escravidão é algo muito recente na história. Para ilustrar o
50 que acabamos de afirmar, vejamos alguns marcos cronológicos do processo que levou à liquidação da escravidão no mundo. O tráfico de escravos da África para a América só cessou por completo em meados do século XIX. Seu processo de liquidação foi gradual. Começou em 1807, quando a Inglaterra, a França e os Estados Unidos proibiram o tráfico de escravos africanos para seus domínios. No mundo ibero-americano, sua liquidação demorou um pouco mais. O Brasil, por exemplo, aboliu o tráfico em dois lances: tornou-o ilegal em 1831, mas tolerou-o até 1850. A trajetória de Cuba, outro grande centro importador de escravos africanos, foi semelhante. Cuba só aboliu por completo o tráfico africano em meados do século XIX. Quanto à abolição da escravidão propriamente dita, ela também ocorreu de forma gradual no mundo ocidental. A Inglaterra foi pioneira, declarando livres os escravos de suas colônias em 1833; a França aboliu a escravidão em suas colônias em 1848, depois da Revolução de fevereiro. Os Estados Unidos precisaram de uma sangrenta e longa guerra civil para firmar a abolição do trabalho escravo em todo o seu território. Brasil e Cuba só o fizeram no final da década de 1880. Portanto, faz pouco mais de um século que o mundo ocidental vive sem escravidão. O processo de liquidação do trabalho escravo na África e em algumas regiões do Oriente só ocorreu no início do século XX. Na escala histórica, um século é quase nada. Assim sendo, é pertinente formularmos a seguinte questão. Se a escravidão fosse exatamente aquilo que os abolicionistas pintaram − uma instituição artificial, irracional, disfuncional, antieconômica e rejeitada pela generalidade dos homens − como se explicaria sua grande irradiação territorial e sua longa permanência na história humana? Para responder a essa pergunta incômoda, precisamos partir da premissa de que os homens são seres históricos. Isto significa dizer que viveram no passado em condições muito diferentes das condições atuais. Suas necessidades eram outras; a maneira de atender essas necessidades era diversa; seus temores, suas ilusões e até mesmo suas ambições eram diferentes das nossas. Por conseguinte, não devemos atribuir aos homens do passado as crenças e valores de nossa própria época. Eles devem ser encarados como homens do passado, que viviam num universo mental diferente do nosso.
51 Se a escravidão nos parece hoje uma coisa absolutamente intolerável, o mesmo não acontecia em passado relativamente recente na escala histórica, conforme veremos a seguir.
O PENSAMENTO SOBRE A ESCRAVIDÃO NO INÍCIO DA MODERNIDADE EUROPÉIA É comum se dizer que o estabelecimento da escravidão na América constitui um paradoxo. O paradoxo residiria no fato de que a introdução da escravidão nas colônias européias do Novo Mundo se dava no exato momento em que ela estaria praticamente extinta na Europa. Para Caio Prado Júnior, por exemplo, a escravidão americana não representaria uma linha de continuidade da escravidão clássica, que ele reputa menos terrível que a moderna, mas teria ressurgido das cinzas da história. Para esse historiador, a escravidão moderna deriva ...de uma ordem de acontecimentos que se inaugura no século XV com os grandes descobrimentos ultramarinos, e pertence inteiramente a ela. Já notei acima, incidentemente, que o trabalho servil, tendo atingido no mundo antigo proporções consideráveis, declinara em seguida, atenuando-se neste seu derivado que foi o servo da gleba, para afinal se extinguir por completo em quase toda a civilização ocidental. Com o descobrimento da América, ele renasce das cinzas com um vigor extraordinário (PRADO JÚNIOR, 1971: 269)
Essa afirmação de Caio Prado Júnior precisa ser matizada. É certo que em algumas regiões européias (notadamente na França, Inglaterra, Países Baixos e Península Itálica) as sociedades locais já não dependiam maciçamente do trabalho compulsório no início da era moderna. De fato, naqueles países a própria servidão feudal já estava sendo substituída por outras relações de trabalho (assalariamento, arrendamento, meação, etc.), mas há que se reconhecer, também, que a escravidão não desaparecera por completo do horizonte mental e da própria prática daquelas sociedades. No plano do pensamento, por exemplo, a escravidão não desaparecera sequer da reflexão filosófica presente na literatura renascentista. Tomemos o caso de uma obra emblemática do humanismo renascentista, A Utopia (1516), de Tomas More (1478-1535). Nas obras que tratam da História das idéias, comumente A Utopia é considerada uma das obras mais representativas do chamado socialismo utópico. Tomas More é considerado um dos maiores pensadores do humanismo renascentista. Ele foi Grande Chanceler do rei Henrique VIII da Inglaterra, cargo
52 semelhante (mas não exatamente igual) ao de primeiro ministro na Inglaterra atual. No processo que levaria à ruptura entre a Inglaterra e o catolicismo romano, More permaneceu fiel ao catolicismo, entrando em choque frontal com Henrique VIII. Ele pagou com a vida essa fidelidade às suas convicções religiosas. Foi acusado de traição por Henrique VIII e, na seqüência, foi julgado, condenado à morte e decapitado em 1534. Por isso, virou um mártir católico, o que lhe valeu a canonização em 1935, cerca de quatro séculos após sua morte. Portanto, Tomas More ganhou um lugar na galeria dos santos da Igreja católica. Mas retornemos à questão da escravidão na sua obra A Utopia. O conteúdo mais conhecido dessa obra é a descrição de um mundo ideal encontrado no além-mar por um navegador português, no apogeu da era dos grandes descobrimentos marítimos. A obra descreve a ilha de Utopia como uma sociedade perfeita. Entre outras, a sociedade utopiana apresentaria as seguintes características: liberdade religiosa; posse coletiva dos bens; distribuição igualitária da riqueza; prêmio à meritocracia; eletividade dos dirigentes; proscrição da dissimulação, da corrupção e da mentira etc. E a escravidão, também fora proscrita? Surpreendentemente, não! Ela era parte integrante desse mundo ideal. Vejamos alguns excertos da obra que abonam essa nossa afirmação: Nem todos os prisioneiros de guerra são indistintamente entregues à escravidão; mas unicamente os indivíduos capturados de arma na mão. (...) Os filhos de escravos não são escravos. O escravo estrangeiro torna-se livre ao tocar na terra da Utopia. (MORE, 1972: 267)
Mas não só os estrangeiros que faziam guerra à Utopia eram escravizados: A servidão recai particularmente sobre cidadãos culpáveis de grandes crimes e sobre os condenados à morte pertencentes aos estrangeiros. Estes são muito numerosos na Utopia; os utopianos vão mesmo procurá-los no exterior onde os compram a vil preço; algumas vezes obtêm-nos até de graça. (idem, 267)
O adultério também era punido com “a mais dura escravidão” (idem, p.271). Qual a sorte dos escravos nessa sociedade tida como perfeita no século XVI? Segundo o narrador, Todos os escravos são submetidos a um trabalho contínuo, e trazem correntes. Os que são tratados, porém, com mais rigor, são indígenas, que são tidos como os mais miseráveis dos celerados, dignos de servir de exemplo aos outros por uma pior degradação. (idem, 267)
53 Aos escravos utopianos eram confiados os trabalhos tidos por eles como os mais vis e degradantes. Ser açougueiro, por exemplo: Fora das cidades, existem os matadouros onde se abatem os animais destinados ao consumo. Esses matadouros são mantidos sempre limpos graças a correntes de água que arrastam o sangue e as imundícies dos animais. É daí que é levada ao mercado a carne limpa e retalhada pelas mãos dos escravos: pois a lei proíbe aos cidadãos o ofício de carniceiro, temerosa que seu hábito de matança destrua pouco a pouco o sentimento de humanidade, o sentimento mais nobre do coração do homem. (MORE, 1972: 235/236)
Em caso de rebelião, os escravos eram reprimidos de forma implacável e feroz pelos utopianos: “quando os condenados escravos se revoltam, são mortos como animais ferozes e indomáveis que a cadeia e a prisão não puderam conter.” (MORE, 1972: 272). Vê-se, portanto, que no início do século XVI o ideal de uma sociedade classificada como perfeita, justa, sábia, humanista e igualitária ainda tinha a escravidão como um importante elemento de coesão social e indispensável para a execução de serviços que, embora reputados degradantes, eram necessários ao bom funcionamento da sociedade. Para os utopianos, a escravidão era um meio de defesa contra agressores externos e criminosos internos. Em vez de exterminá-los fisicamente, davam-lhe um fim utilitário. Transformavam-nos em escravos, pois consideravam que “um homem que trabalha...é mais útil que um cadáver”. Além disso, entendiam que a escravidão teria um efeito pedagógico, pois “o exemplo de um suplício perpétuo inspira um terror muito mais duradouro do que uma matança legal, que faz o culpado desaparecer num instante”. (MORE, 1972: 272). Como se vê, a Utopia era concebida no renascimento como o máximo de perfeição a que uma sociedade humana poderia chegar e nessa perfeição havia lugar para a escravidão. É pertinente lembrar também que, na Inglaterra do início da modernidade, a ficção literária transbordou para a realidade. O tratamento dispensado aos malfeitores na imaginária Utopia era o mesmo aplicado a essa espécie de súditos na Inglaterra da era Tudor.
É conhecido o rigor aplicado pelos ingleses contra os seus vadios e
delinqüentes na aurora dos tempos modernos: Um estatuto de seu primeiro ano de governo [Eduardo VI], 1547, estabelece que, se alguém se recusa a trabalhar, deverá ser condenado a se tornar escravo da pessoa que o denunciou como vadio. O dono deve alimentar seu escravo com pão e água, bebida fraca e refugos de carne, conforme
54 ache conveniente. Tem o direito de forçá-lo a qualquer trabalho, mesmo o mais repugnante, por meio de açoite e de correntes. Se o escravo se ausentar por 14 dias será condenado à escravidão por toda a vida e deverá ser marcado a ferro na testa ou na face com a letra S; caso fuja pela terceira vez, será executado como traidor do Estado. O dono pode vendê-lo, legá-lo, ou, como escravo, alugá-lo, como qualquer outro bem móvel ou gado. Se os escravos tentarem alguma coisa contra os senhores, devem ser da mesma forma executados. Os juízes de paz, quando informados, devem perseguir os marotos. Se se verificar que um vagabundo está vadiando há 3 dias, ele deve ser levado a sua terra natal, marcado com ferro em brasa no peito com a letra V e lá posto a ferro para trabalhar na rua ou ser utilizado em outros serviços. Se o vagabundo der um falso lugar de nascimento, como castigo deverá ser escravo vitalício dessa localidade, de seus habitantes ou da corporação, e marcado a ferro com um S. Todas as pessoas têm o direito de tomar os filhos dos vagabundos e mantê-los como aprendizes, os rapazes até 24 anos e as moças até 20. Se fugirem, eles devem, até essa idade, ser escravos dos mestres, que podem acorrentá-los, açoitá-los etc, conforme quiserem. Todo dono pode colocar um anel de ferro no pescoço, nos braços ou pernas de seu escravo para reconhecê-lo mais facilmente e estar mais seguro dele (MARX, vol.1, tomo 2: 275-276).
No século seguinte, a Inglaterra usará os chamados servos temporários como o braço auxiliar da colonização de suas possessões na América do Norte. Ociosos incorrigíveis e malfeitores condenados à morte ou a longas penas de prisão tinham suas penas comutadas por escravidão temporária nas colônias da Nova Inglaterra (FURTADO, 1967: 26). E aqui fez-se o caminho de volta entre a realidade e a ficção. Daniel Defoe (1660-1731), grande romancista inglês, tratou dessa questão em pelo menos dois de seus romances, Moll Flanders (1722) e Coronel Jack (1722), cujos principais protagonistas eram criminosos que acabaram deportados para a América como escravos temporários. Nesses dois romances, o desterro e a escravidão temporária na América funcionavam como eficaz instrumento de conversão de seus personagens, que, assim, abandonavam os vícios, a ociosidade e os crimes, abraçando, em contrapartida, o trabalho, a moralidade e a virtude. A América era vista, portanto, como a terra da redenção; mas, para alcançá-la, o pecador tinha de passar pela escravização. A ORIGEM DA ESCRAVIDÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA O estabelecimento da escravidão na America Portuguesa liga-se a duas ordens de fatores, ambos ligados às peculiaridades da história e da geografia de Portugal. A história de Portugal encontra-se com duas linhas de força que influenciaram bastante sua cultura.
55 Uma delas é a herança romana. Os portugueses herdaram de Roma sua língua e a tradição do direito. A escravidão teve papel importantíssimo na vida econômica e social da Roma antiga, sendo, por isso, objeto da atenção dos juristas romanos. Como país neolatino, Portugal sofreu a influência cultural das leis e dos códigos romanos, nos quais a escravidão era legitimada e minuciosamente regulamentada. Assim sendo, a escravidão era regulamentada e legitimada na legislação portuguesa, especialmente nas Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), nas chamadas Leis Extravagantes e em inúmeras Cartas Régias num período que se estende da Idade Média ao século XIX. Outra linha de força a atuar na história de Portugal é a herança árabe ou moura, como já vimos no capítulo I do livro A Expansão Ultramarina e a Colonização da América Portuguesa, desta coleção. Em função da dominação moura, os portugueses não perderam contato com os povos arabizados da margem africana do Mar Mediterrâneo, entre os quais a escravidão sempre esteve presente. Além disso, a guerra de reconquista cristã da Península Ibérica reforçou a tradição de transformar prisioneiros de guerra em escravos. E isto se dava tanto entre cristãos quanto entre os muçulmanos envolvidos nesse conflito. Por volta do século XI da era cristã, os árabes ou mouros estabelecidos na Península Ibérica mantinham um “fructuoso” tráfico de escravos entre a Europa do Norte, o Oriente, a África sudanesa e o Islão, segundo o historiador português Antonio Borges Coelho. Para Coelho, “este tráfico e os cativos da guerra santa alimentavam os haréns, as tropas do palácio, os campos, as oficinas, e proporcionavam às vezes opulentos resgates” (COELHO, 1986: 55). Após a conquista de Lisboa pelos cristãos, um bom cavalo árabe valia mais que um escravo mouro. Chegava-se a pagar 300 soldos por um bom cavalo, ao passo que se podia comprar um escravo mouro por apenas 40 soldos. (COELHO, 1986: 42). Após a expansão comercial e marítima do século XV, os portugueses entraram em contato com a chamada África Negra, cujos povos praticavam a escravidão desde tempos imemoriais. Segundo o historiador congolês Elikia M´Bokolo, “muito antes do tráfico europeu, os africanos tinham sido objeto de um comércio regular em duas vias de acesso – o Saara e o oceano Índico – que os punha em contato com o mundo exterior” (M´BOKOLO, 2009: 211)
56 Assim, antes mesmo de iniciar a colonização de suas possessões na América, os portugueses já tinham experiência com o trabalho escravo. Primeiro, a escravidão dos mouros na época da reconquista. Mais tarde, quando se lançaram às navegações marítimas, ensaiaram as primeiras experiências com o trabalho escravo africano na colonização das ilhas atlânticas (Madeira, Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe). Assim sendo, quando se inicia a colonização da América Portuguesa, a escravidão estava inscrita no rol das possibilidades históricas.
AUSÊNCIA DE UM PROJETO ESCRAVISTA NO INÍCIO DA COLONIZAÇÃO
Entretanto, na leitura de cronistas quinhentistas, não é possível afirmar que os portugueses desembarcaram aqui com uma idéia clara quanto à modalidade de trabalho que iriam empregar na colonização. Em outras palavras, não se pode afirmar que os portugueses já chegaram com um projeto escravista claramente definido, e muito menos com um projeto de escravidão africana. A leitura das Cartas de Duarte Coelho reforça essa hipótese. Nelas, nota-se um esforço inicial em utilizar o trabalho livre europeu e os indígenas, estes não como escravos, mas como trabalhadores livres. Duarte Coelho via com maus olhos a escravização dos indígenas, porque isso implicava em conflitos que ameaçavam a “paz e o sossego” tão necessários ao progresso da colonização. (DUARTE COELHO, 1967: 91) Só depois de muitos problemas enfrentados com a mão-de-obra até então utilizada − trabalhadores livres trazidos de Portugal e indígenas − é que Duarte Coelho se volta para a possibilidade de utilização de escravos africanos. Numa carta escrita ao Rei de Portugal, em 1542, Duarte Coelho expõe suas dificuldades e cobra uma definição sobre um pedido de licença, ainda não atendido, para importar escravos africanos: E porque para as cousas de tanta importância há necessidade de muitos grandes gastos e eu estou muito gastado e endividado, e não posso suportar tanta gente de soldo como até aqui suportei, há já três anos que pedi a Vossa Alteza me fizesse mercê de me dar licença e maneira de haver alguns escravos de Guiné por resgate, e o mês passado respondeume que até acabar o contrato que era feito nada se podia fazer, dando-seme a entender que, acabado, seria provido, pelo que já escrevi a Vossa Alteza sobre isto. Não sei se me fez esta mercê, porque os navios não são ainda chegados. Peço a Vossa Alteza que, se me não concedeu esta
57 licença, olhe quanto isto é do seu serviço, e quão pouco dano e estorvo faz dar-me licença para obter alguns escravos para o servir melhor.(DUARTE COELHO, 1967: 86)
No excerto acima, duas informações merecem ser destacadas e comentadas. A primeira - a forma de trabalho primeiramente ensaiada é livre, contratada “a soldo”. Na linguagem da época, estar a soldo de alguém significava prestar serviço em troca de pagamento. Portanto, a colonização não começa com trabalho escravo. A segunda - o pedido de licença para importar escravos indica que o comércio de escravos africanos não era livre e, naquele momento, ainda não havia um fluxo normal de escravos da costa da África para a America Portuguesa. A reiteração da solicitação mostra a dificuldade de importação de escravo africano, ao contrário do que comumente se imagina. Assim sendo, embora não fosse intenção inicial, a escravidão vai se impondo no processo de colonização da América Portuguesa. Mas a escravidão só se impôs porque a cultura da época era permeável a essa solução, conforme já expusemos na parte inicial deste capítulo. A solução escravista tinha amparo não só no fundo laico da herança cultural grego-romana e árabe presentes em Portugal, mas também no fundo religioso da tradição judaico-cristã. Numa carta escrita em 1549 e dirigida a seus superiores em Portugal, o padre jesuíta Manoel da Nóbrega candidamente revela o emprego do trabalho escravo nos primeiros colégios da Companhia de Jesus fundados na América Portuguesa: A mais custa é fazer a casa, por causa dos oficiais [pedreiros, carpinteiros etc] que hão de vir de lá, porque a mantença dos estudantes, ainda que sejam duzentos, é muito pouco, porque com o terem cinco escravos que plantem mantimentos e outros que pesquem com barcos e redes, com pouco se manterão. Os escravos são cá baratos, e os mesmos Paes hão de ser cá seus escravos. É grande obra esta e de pouco custo... (NÓBREGA,1988:84)
Num escrito de 1662, intitulado Resposta aos capítulos do procurador do Maranhão, outro expoente da Companhia de Jesus, o grande orador padre Antonio Vieira, explicava as razões pelas quais a escravidão africana, e não indígena, vai se impondo na América Portuguesa: A nona e última causa, que em parte vem a ser forçosa, é ser todo o serviço dos moradores daquele Estado [Maranhão] com índios naturais da terra, os quais por sua natural fraqueza e pelo ócio, descanso e liberdade em que se criam, não são capazes de aturar por muito tempo o trabalho em que os portugueses os fazem servir, principalmente os das canas, engenhos e tabacos, sendo muitos os que por essa causa continuamente
58 estão morrendo; e como na suas vidas consiste toda a riqueza e remédio daqueles moradores, é mui ordinário virem a sair em pouco tempo em grande pobreza os que se tinham por mais ricos e afazendados; porque a fazenda não consiste nas terras, que são comuns, senão nos frutos da indústria com que cada um as fabrica, e de que são os únicos instrumentos os braços índios. Esta mesma quebra e incerteza das fazendas se experimentou e padeceu em todas as partes do Brasil enquanto nos princípios de sua conquista se serviam somente com índios, até com este desengano se resolveram a fabricar suas fazendas com escravos mandados vir de Angola, que é gente por sua natureza serviçal, dura e capaz de todo trabalho, e que o atura, e vive por muitos anos, se a fome e o mau tratamento os não acaba. Nem o Estado do Maranhão, que é parte do mesmo Brasil, haverá remédio permanente de vida enquanto não entrarem na maior força do serviço escravos de Angola. (VIEIRA, APUD MALHEIRO, VOL. II, 1976: 28).
No início do século seguinte, em Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711), o padre jesuíta Antonil escreverá, sem nenhum constrangimento, que “os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles não é possível fazer, conservar e aumentar a fazenda, nem ter engenho corrente.” (ANTONIL, 1982: 89). Se os trechos selecionados dos escritos de Nóbrega, de Vieira e de Antonil soam demasiado utilitaristas, vejamos uma explicação mais propriamente teológica de outro jesuíta de renome. Referimo-nos ao padre Jorge Benci, autor de Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, uma das obras que tratam especificamente da escravidão na América Portuguesa à luz da doutrina cristã, tal como se a entendia na época. Qual a origem da escravidão? Segundo Benci, ela deriva do pecado original: Que sendo o gênero humano livre por natureza, e senhor não somente de si, senão também de todas as mais criaturas...chegasse grande parte dele a cair na servidão e cativeiro, ficando uns senhores e outros servos, foi sem dúvida um dos efeitos do pecado original de nossos primeiros pais Adão e Eva, donde se originaram todos os males. O pecado, pois foi o que abriu as portas por onde entrou o cativeiro no mundo; porque rebelando-se o homem contra seu Criador, se rebelaram nele e contra ele os seus mesmos apetites. Destes tiveram sua origem as dissensões e guerras de um povo contra outro povo, de uma nação contra outra nação, de um Reino contra outro Reino. E porque nas batalhas que contra si davam as gentes, se achou que era mais humano não haver tanta efusão de sangue introduziu o direito das mesmas gentes que se perdoasse a vida aos que não resistiam, e espontaneamente se entregavam aos vencedores; ficando estes com o domínio e senhorio perpétuo sobre os vencidos e os vencidos com perpétua sujeição e obrigação de servir aos vencedores (BENCI, 1977:48-49).
É também nos textos sagrados que Benci busca a explicação para o fato de que a escravidão recaía sobre os africanos. Pesaria sobre estes a maldição bíblica derramada sobre Cam e seus descendentes:
59 Debaixo do nome pão, que devem os senhores aos servos, se entende também o vestido; sendo que por boa razão parece que deviam andar todos despidos, visto que a servidão e cativeiro [dos pretos] teve a sua primeira origem do ludíbrio, que fez Cam, da desnudez de Noé seu pai. Sabido é, que dormindo este Patriarca com menos decência descoberto, vendo Cam, e escarnecendo desta desnudez, a foi publicar logo a seus irmãos; e em castigo deste abominável atrevimento foi amaldiçoado do Pai toda a sua descendência, que no sentir de muitos é a mesma geração dos pretos que nos servem; e aprovando Deus esta maldição, foi condenada à escravidão e cativeiros: Maledictus Chanaan; servus servorum erit fratribus suis... (Benci, 1977: 64-65).
Não só a escravidão, mas também a prática do castigo físico sobre o escravo era sancionado pelos ensinamentos da Igreja católica. O corretivo violento aplicado aos escravos faltosos era considerado uma das sete obras da misericórdia, conforme se pode verificar nessa passagem extraída de A Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos: Por isso dizia o Profeta Isaias, que usar de misericórdia com os maus era querer que não aprendam a ser bons. Pois se isto se verifica ainda nos livres e brancos, a quem o pejo, o timbre e o pundonor obriga a fugir dos malefícios: que será nos pretos e cativos, que nascendo naturalmente sem pejo e sem timbre algum, unicamente governam suas acções pelo temor? Logo merecendo o escravo o castigo, não deve deixar de lho dar o senhor; porque não é só crueldade castigar os servos, quando merecem por seus delitos ser castigados, mas antes é uma das sete obras da misericórdia, que manda castigar aos que erram (BENCI, 1977: 127-128. Grifos nossos).
Quais castigos e em que quantidade eles seriam lícitos segundo a ética cristã da virada do século XVII para o XVIII? Leiamos o que o misericordioso padre Benci tem a nos dizer sobre isso: Os açoites são medicina da culpa; e se os merecerem os escravos em maior número do que de ordinário se lhes devem dar, dêem-se-lhes por partes, isto é, trinta ou quarenta hoje, outros tantos daqui a dois dias, daqui a outros dois dias outros tantos, e assim dando-se-lhes por partes, e divididos, poderão receber todo aquele número, que se o recebessem por junto em um dia, chegariam a ponto ou de desfalecer dessangrados, ou de acabar a vida (BENCI, 1977: 164).
Pelo que expusemos até agora, verifica-se que tanto o pensamento laico quanto o pensamento religioso legitimavam a prática da escravidão na América entre os séculos XVI e XVIII. Por outro lado, para que a escravidão negra ganhasse corpo na América portuguesa, era necessário que os escravos africanos fossem baratos (FLORENTINO, 1997). Para ser baratos, tinham que ser produzidos em grandes quantidades pelas sociedades africanas, que tinham no escravo um dos seus principais – senão o principal − produtos de exportação.
60 Assim, a escravidão africana deve ser entendida como uma via de mão dupla ligando as colônias européias da América aos reinos e senhorios africanos interessados nesse comércio. De um lado havia nas Américas “economias gulosas e vorazes de homens” (M´BOKOLO, 2009: 276) e, de outro, vastos interesses africanos ligados ao comércio de homens. É o entrelaçamento desses interesses que permitiu a montagem de uma complexa rede comercial e de transporte envolvendo reinos africanos, reinos europeus, comerciantes e armadores europeus ou americanos, plantadores e proprietários de minas nas Américas. Sem o escravo barato fornecido por essa intricada teia de interesses, a escravidão africana não teria se viabilizado economicamente e não teria atingido a escala que atingiu na colonização do Novo Mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Editora Nacional, 1967. M‟BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casas das Áfricas, 2009. MALHEIRO, Perdigão. A escravidão no Brasil. Ensaio histórico, jurídico e social. Petrópolis, Editora Vozes; Brasília, INL, 1976. MARX, Karl. O capital. São Paulo, Abril Cultural, 1984. MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo, Abril Cultural, 1972. NABUCO, Joaquim. A escravidão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. _______________. O Abolicionismo. 4ª edição. Petrópolis, Vozes; Brasília, INL, 1977. NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, EDUSP, 1988. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 11ª edição. São Paulo, Editora Brasiliense, 1971.
FONTES E REFERENCIAIS PARA APROFUNDAMENTO TEMÁTICO. Aqui ainda a comparação com o que ocorreu no mundo antigo é ilustrativa. Neste último, a escravidão se forneceu de povos e raças que muitas vezes se equiparam a seus conquistadores, se não os superam. Contribuíram assim para estes com valores culturais de elevado teor. (...) O escravo não foi [em Roma] a simples máquina de trabalho bruto e inconsciente que é o seu sucessor americano. Na América, pelo contrário, a que assistimos? Ao recrutamento de povos bárbaros e semibárbaros, arrancados do seu habitat natural e incluídos, sem transição, numa civilização inteiramente estranha. E aí que os esperava? A escravidão no seu pior caráter, o homem reduzido à mais simples expressão, pouco senão nada mais que o irracional: “instrumento vivo de trabalho”, o chamará Perdigão Malheiro. Nada mais se queria dele, e não mais se pediu e obteve que sua força bruta, material. Esforço muscular primário, sob a direção e açoite do feitor. Da mulher, mais a passividade da fêmea na cópula. Num e noutro caso, o ato físico apenas, com exclusão de qualquer outro elemento ou concurso moral. A “animalidade” do homem, não a sua “humanidade”. A contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira, é além daquela energia motriz quase nula. Não que deixasse de concorrer, e muito, para a nossa “cultura”, no sentido amplo em que a antropologia emprega a expressão; mas é antes uma contribuição passiva, resultante do simples
62 fato da presença dele e da considerável difusão do seu sangue, que uma intervenção ativa e construtora. O cabedal de cultura que traz consigo da selva americana ou africana, e que não quero subestimar, é abafado, e se não aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material e moral a que se vê reduzido seu portador. (...) Age mais como elemento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se lhe sobrepõe. (PRADO JÚNIOR, 1971: 272) É a essa passividade aliás das culturas negras e indígenas no Brasil que se deve o vigor com que a do homem branco se impôs e predominou inconteste, embora fosse muito reduzido, relativamente às das outras raças, a sua contribuição demográfica. (idem, 273) Uma última circunstância diferencia e caracteriza a escravidão americana: é a diferença profunda de raças que separa os escravos de seus senhores. (idem, p. 273) Em suma, verifica-se por tudo que acabamos de ver que na escravidão, tal como se estabelece na América, em particular no Brasil, de que trato aqui, concorrem circunstâncias especiais que acentuam seus caracteres negativos, agravando os fatores moralmente corruptores e deprimentes que ela, por si só, já encerra. Incorporou à colônia, ainda em seus primeiros instantes, e em proporções esmagadoras, um contingente estranho e heterogêneo de raças que beiravam ainda o estado de barbárie, e que no contacto com a cultura superior de seus dominadores, se abastardaram por completo. (idem, p. 275) As raças escravizadas e assim incluídas na sociedade colonial, mal preparadas e adaptadas, vão formar nela um corpo estranho e incômodo (idem, p.276).
Leia atentamente os excertos acima e elabore um texto esclarecendo se a análise de Caio Prado Júnior sobre a escravidão está impregnada ou não do paradigma abolicionista a que nos referimos na parte inicial deste capítulo. A argumentação deverá ser comprovada por trechos da citação acima ou do próprio livro de onde os excertos foram extraídos, sem prejuízo, obviamente, de citações de outras obras ou de outras fontes documentais que possam enriquecer a análise.
63 CAPÍTULO IV – O MARQUÊS DE POMBAL E A COMPANHIA DE JESUS
Célio Juvenal Costa
O objetivo deste capítulo é apresentar, em linhas gerais, a política do Marquês de Pombal em relação aos jesuítas, que gerou um dos momentos considerados relevantes para a história em Portugal e em seus domínios. Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido muito mais como Marquês de Pombal, nasceu em Lisboa no ano de 1699 e morreu em Pombal no ano de 1782. Foi Primeiro-Ministro português no reinado de D. José I, de 1750 a 1777. Conhecido como um déspota esclarecido, foi quem de fato governou Portugal, com mãos de ferro e com espírito nacionalista e um tanto iluminista. Teve papel decisivo no episódio trágico da história lusitana, o grande terremoto de 1755, que destruíra grande parte de Lisboa, e cuja reconstrução foi arquiteta e dirigida por ele. Com relação ao terremoto é atribuída a ele a frase: “E agora? Enterram-se os mortos e cuidam-se dos vivos”. Na chamada era pombalina, os padres da Companhia de Jesus já eram alvo de inúmeras críticas tanto da sociedade civil como de outras ordens religiosas. Ainda circulava, à época, um livrinho intitulado Monita Secreta, cujo subtítulo era “instituições secretas dos jesuítas”, que se tratava de um verdadeiro manual de como os jesuítas deveriam agir para obter riqueza material e projeção política. Tal escrito, que teria aparecido ainda no século XVII, em Varsóvia, teve sua autoria negada pelos padres da Companhia de Jesus, que se diziam alvo da inveja alheia dado sua seriedade e crescimento notável que teve já nos primeiros decênios de sua existência. No segundo artigo do capítulo cinco da Monita se lê que os jesuítas deveriam se sobrepor aos outros religiosos: “Convém buscar e pôr em relevo os defeitos dos outros religiosos e depois de tê-los descoberto e publicado com prudência e como que deplorando-os, aos nossos fiéis amigos, cumpre demonstrar que eles são infelizes no desempenho das funções que nos são comuns”. Já, no primeiro artigo do capítulo doze prescreve-se que os grandes captadores de dinheiro e fama da Companhia deveriam ocupar os cargos superiores: “Os bons trabalhadores devem ocupar o melhor posto, e são eles: os que aumentam tanto o bem temporal como o espiritual da Sociedade [de Jesus = Jesuítas], e quase sempre são os confessores de príncipes, de grandes, de viúvas e devotos ricos, pregadores, confessores e os sabedores destes segredos”.
64 Os dois exemplos retirados da Monita expressam, na verdade, um clima de antijesuitismo presente na Europa em geral já no século XVII e que recrudesceu em Portugal no período pombalino. Apesar de a autoria daquele escrito, segundo vários estudiosos, realmente não poder ser atribuída aos jesuítas (teria sido escrito por um ex-jesuíta polonês, que havia sido expulso da Companhia), o que se percebe é que a as críticas de outras ordens religiosas e de setores influentes na sociedade civil eram constantes, especialmente se levarmos em conta que os jesuítas se tornaram a maior e mais influente ordem religiosa em Portugal.
O MARQUÊS DE POMBAL
A época do reinado de D. José I ficou conhecida na história de Portugal como a Era Pombalina, sendo mais fácil lembrar do primeiro-ministro do que do próprio nome do rei. Isso se deu graças a uma administração forte e muito personalista, bastante diversificada em suas atividades e políticas, extremamente polêmica e alvo de um julgamento futuro eivado de paixões. Jorge Borges de Macedo, historiador português do século XX, divide em três as correntes interpretativas produzidas pela historiografia portuguesa relacionadas ao desempenho político do Marquês de Pombal: Uma primeira corrente tem considerado a ação de Pombal como catastrófica para o País, que precisa de ser defendida contra governantes de sua natureza ou ideologia. Outra toma-o como precursor do laicismo anticlerical; ele teria, por essa via, posto o “dedo na ferida” quanto às causas da decadência de Portugal. Portanto, para remover essa decadência, era preciso “continua-lo”. Problemas práticos, julgam os autores. Uma terceira corrente (...) entendia que Carvalho e Melo deve ser “julgado” quanto aos meios de governo que praticou e ao conteúdo da sua actividade, no que se refere à ligação desta com a Moral. (apud FRANCO, p. 02)
Para Franco, o pombalismo se insere, na história portuguesa, como o mito do Marquês de Pombal, tão importante para a compreensão de Portugal como os mitos dos Judeus, dos Jesuítas, das origens sacrais da nacionalidade, do Quinto Império e do Rei Encoberto. Por mito entenda-se, em Franco, os elementos que construíram a identidade lusitana, que explicam a sua história, mas que oferecem mais divergência do que confluência quando analisados em suas dimensões histórica, política, econômica e cultural. No que diz respeito à administração e personalidade de Pombal, a avaliação de autores como Kenneth Maxwell e Charles Boxer apontam o caminho que foge da
65 linearidade de considerá-lo somente um representante legítimo do Antigo Regime ou de um aliado do Iluminismo. Pombal teria sido uma mistura de ambos e, portanto, difícil de ser rotulado. Boxer chega a afirmar que se tratou de um “misto de médico e de monstro, que afetou seu país tão profundamente, para o bem e para o mal” (p. 190). O mesmo autor, Boxer, apresenta um relato contemporâneo sobre a atuação de Pombal: Talvez o resumo mais justo feito até hoje tenha sido o expresso pelo erudito cônego Antônio Ribeiro dos Santos (1745-1818), cuja opinião foi apoiada por vários contemporâneos que se encontravam em boa posição para julgar: “O ministro tentou seguir uma política impossível: ele quis civilizar uma nação e, ao mesmo tempo, escraviza-la; quis espalhar a luz das ciências filosóficas e, ao mesmo tempo, elevar o poder real até o despotismo; promoveu enormemente o estudo do Direito Natural, do Direito das Nações e do Direito Internacional Universal, fundando cadeiras para essas matérias na universidade. Mas não compreendeu que desse modo estava instruindo o povo e levando-o a compreender que o poder soberano era instituído unicamente para o bem comum da nação e não para o benefício do governante, e que tinha limites e fronteiras que não podia ultrapassar”. (p. 204).
Dentre as ações consideradas como de incremento ao desenvolvimento econômico de Portugal realizadas por Pombal, encontram-se a criação de companhias comerciais que, estabelecendo o monopólio do comércio de alguns produtos, como o algodão, por exemplo, trouxeram riqueza e desenvolvimento para regiões do Brasil, particularmente para o Maranhão e Pará. A política econômica pombalina era francamente protecionista, tendo enfrentado, por algumas ocasiões, os comerciantes ingleses na defesa dos interesses nacionais, como foi o caso da criação da Companhia dos Vinhos do Douro, que monopolizou a comercialização dos vinhos daquela região portuguesa. No campo social, Pombal teve atuação destacada ao revitalizar, como vimos na citação acima, a Universidade de Coimbra, procurando inseri-la nas ciências mais modernas de então, reformando seus estatutos, contratando novos professores, criando novas cadeiras. O primeiro-ministro defendia a ideia de que a universidade deveria criar os quadros mais dinâmicos e avançados da sociedade, pessoas capazes de pensar e agir no sentido de inserir Portugal no quadro de desenvolvimento das principais nações europeias. A par das mudanças econômicas e estruturais, era necessário, também, a mudança na mentalidade dos portugueses. Nesse sentido, uma das criações mais interessantes de Pombal foi o Colégio dos Nobres, criado em 1761, destinado à formação dos jovens aristocratas portugueses. O objetivo de tal instituição era preparar os jovens aristocratas, que tivessem entre 7 e 13 anos, tornando-os úteis para atividades produtivas, procurando
66 ofertar uma formação profunda nas ciências e na literatura, além de permitir que tivessem acesso à Universidade de Coimbra. Merece destaque especial a inclusão das ciências exatas na formação dos jovens nobres, pois tratava-se de uma novidade curricular as cadeiras de Matemática e de Física, tidas como fundamentais para inspirar a nova mentalidade que, na visão de Pombal, Portugal necessitava. Outra ação importante do primeiro-ministro de D. José I foi a extinção, via decreto real, da diferenciação que se fazia, desde o início do século XVI, entre cristãos-velhos e cristãos-novos em Portugal. Tal diferenciação, como sabemos, teve início quando os judeus foram expulsos das terras lusitanas e os que ficaram tiveram que se converter, à força, ao cristianismo, sendo conhecidos, a partir de então, como novos cristãos para diferenciá-los dos antigos cristãos. Como também já é conhecido, os principais alvos da Inquisição dos tribunais portugueses foram os cristãos-novos acusados de judaizarem, ou seja, de voltarem às suas práticas judaicas e, portanto, renegarem o cristianismo. Bethencourt (2000) conseguiu levantar aproximadamente 45 mil processos que foram produzidos pela inquisição lusitana entre 1536 e 1767 (a inquisição só acabou em 1821 nas terras portuguesas), sendo que quase a totalidade foi dirigida contra os cristãos-novos. É importante lembrar, ainda, que a extinção da diferença entre os cristãos representava, na prática, a tentativa de por fim a uma discriminação que sempre colocava em xeque a “limpeza” do sangue dos cristãosnovos e, portanto, os habilitava a ocuparem quaisquer cargos no reino. O decreto pondo fim à diferenciação entre os cristãos só foi possível pelo fato de Pombal ter “estatizado” a Inquisição em Portugal, colocando os tribunais sob a direção real. As ações descritas até aqui, mais a implacável perseguição aos jesuítas (da qual trataremos mais adiante) aproximam Pombal do espírito iluminista presente na Europa naquele momento histórico. Como afirmam Seco e Amaral (2006, p. 5): Esse esclarecimento sobre as ações do Marquês de Pombal, por quem se introduziu o iluminismo no império português, é importante para compreender que diferentemente da maior parte dos governantes Iluministas, mais preocupados com a teoria do que com a prática, Pombal geralmente atingiu seus objetivos. E não menos pela reforma educacional, por meio da qual abriu as portas a um florescimento da ciência e da filosofia portuguesas em fins do século XVIII, mas pelas relações entre o Iluminismo e o exercício do poder do Estado.
Porém, o fato de ter governado Portugal com mãos de ferro fez com que a figura de Pombal passasse para a história portuguesa também como um ditador sem escrúpulos, fato que o distancia da mentalidade iluminista e faz dele a figura histórica portuguesa mais polêmica até o século XVIII.
67 Pombal estava imbuído da necessidade de fazer seu reino se desenvolver econômica e culturalmente e, para isso, não media esforços e não fazia muitas concessões. Durante seu governo, milhares de pessoas foram presas, sob o pretexto de serem contra o rei e seu governo e, portanto, contra o próprio reino. Boxer (2002, p. 202-203) resume o quadro das perseguições pombalinas: As prisões em Lisboa estavam cheias de desgraçados encerrados em masmorras contra os quais não havia nenhuma acusação específica e que nunca chegaram a ser julgados por nenhum tribunal. Como é natural, informantes, espiões e delatores prosperaram numa ditadura desse gênero, e não é mero lugar-comum classificar o período entre 1759 e 1777 como reinado de terror. As pessoas percebiam que não podiam fazer nenhuma observação crítica sobre Pombal nem sequer em conversas particulares, e não havia nenhuma espécie de oposição visível e organizada. Nunca se saberá o número exato de vítimas, mas cerca de oitocentas pessoas foram libertadas das prisões de Lisboa e das redondezas quando D. José morreu e Pombal caiu em fevereiro de 1777. Calcula-se que pelo menos o dobro tenha morrido durante o encarceramento; e, apesar de alguns felizardos terem sido libertados naqueles anos de ditadura, o número total de presos e encarcerados, por períodos mais ou menos longos, por ordem de Pombal, talvez tenha chegado a 4 mil.
É nesse contexto de uma personalidade que aliava o espírito reformista de cunho iluminista com uma condução ditatorial das rédeas do governo que se insere um dos momentos mais significativos e tensos da história portuguesa, que foi a luta pombalina contra a Companhia de Jesus.
OS JESUÍTAS EM PORTUGAL
Para entender a perseguição de Pombal aos jesuítas é preciso, em primeiro lugar, ter uma noção da importância daqueles padres na história e sociedade portuguesas e, para isso, retomemos alguns dados de sua presença até o momento pombalino. Os padres Simão Rodrigues e Francisco Xavier chegaram em Portugal no ano de 1540 com o propósito de serem enviados pelo rei para as missões religiosas no Oriente. Após passarem um ano em Lisboa, caindo nas graças da Coroa, os dois padres se dividem e um, Rodrigues, fica em Portugal e Xavier viaja para a Índia, onde chega em 1542, dando início ao trabalho missionário jesuítico sob a bandeira do Real Padroado Português. A estrutura hierárquica da Companhia de Jesus se dividia, basicamente, em Governo Geral, Províncias e Colégios, sendo que os cargos correspondentes eram o de Superior Geral, Superior Provincial e Reitor. A criação das províncias jesuíticas se
68 davam de acordo com o número de jesuítas presentes em determinada região, da quantidade de atividades desenvolvidas e do número de colégios, ou seja, uma província era criada quando a presença jesuítica era tamanha que já requeria tal organização. Essa explicação era necessária para ter-se em conta a importância do fato de que Portugal foi a primeira província jesuítica, criada em 1546, contando, já à época, com um superior provincial, colégios e missões. Durante os séculos XVI, XVII e XVIII foram criadas outras províncias jesuíticas em Portugal e seus domínios, como a de Goa, do Brasil, do Japão, do Maranhão etc. O número de jesuítas só cresceu em terras portuguesas até 1759: eram 400 em 1560, 620 em 1603, 662 em 1615, 639 em 1639, 770 em 1709, 861 em 1749. No ano de sua expulsão de Portugal, os jesuítas eram 1698, sendo que destes 909 atuavam nas possessões portuguesas no Oriente, África e América. Os jesuítas fundaram vários colégios em todo território português. No reino, por exemplo, fundaram colégios em Coimbra (1545), Porto e Braga (1560), Bragança (1561), Évora (1563, 1577 e 1583), Funchal e Angra (1570), Ponta Delgada (1591), Lisboa (1593 e 1677) Santarém (1621), Portimão (1660) e Gouveia (1739). Nos domínios portugueses, os jesuítas receberam, em 1548, a direção do Colégio de São Paulo em Goa, depois fundaram vários colégios, dentre eles, apenas para dar a dimensão dessa atividade, na Bahia (1553), em Baçaim (1560), no Rio de Janeiro (1567), em Pernambuco (1573), em Rachol (1574), em Damão (1581), em Taná (1599), em Cochim (1560), em Malaca (1576), em Macau (1594). Em meados dos século XVIII os colégios da Companhia de Jesus tinham, no reino, em torno de vinte mil alunos, numa população estimada em três milhões de habitantes. Com relação à importância das atividades missionárias da Companhia de Jesus a serviço do rei lusitano acompanhemos até onde eles chegaram. No Brasil, em 1549. No Oriente: em Goa, em 1542; no Japão, em 1549; em Macau, em 1565; no império Grão-Mongol, em 1579; na China, em 1583; em Pegu e Bengala, em 1598; na Conchinchina, em 1615; no Camboja, em 1616; no Tibete, em 1624; em Tonquim e Sião, em 1626; e em Laos, em 1642. E, na África: no Congo, em 1547; em Angola, em 1560; na Etiópia, em 1557; em Moçambique, em 1560; em Cabo Verde, Guiné e Serra Leoa, em 1604. Em 215 anos, os jesuítas realizaram 361 expedições missionárias ao longo do Império Português, sendo que somente no século XVII foram 190. A média anual da presença jesuítica nas missões foi de dezesseis missionários. Outro dado importante que remete à importância da presença jesuítica em Portugal é o fato de muitos deles terem atuado como confessores dos reis e príncipes, o que sempre elevou o seu status na corte. De D. João III (1521-1557) até D. João V (1707-1750), os jesuítas sempre estiveram muito próximos dos reis, o que, num
69 mundo cercado de intrigas que era a vida cortesã, os fez angariarem amigos e inimigos. Dentre os muitos inimigos que a Companhia de Jesus teve ao longo dos três primeiros séculos de sua existência em Portugal, o Marquês de Pombal foi o mais implacável a ponto de conseguir sua expulsão, primeiro dos territórios portugueses, em 1759 e, depois, de toda a cristandade, em 1773, por ordem do papa Clemente XIV.
MARQUÊS DE POMBAL E OS JESUÍTAS
Talvez a ação pombalina que causou mais polêmica foi o embate que ele teve com a Companhia de Jesus e o sucesso de seu empreendimento, que foi a expulsão daquela ordem religiosa. Para Boxer (2002, p. 199) A origem do ódio patológico de Pombal pelos jesuítas é incerta. Não há nenhuma indicação de que esse ódio existisse antes de 1750, e Pombal devia seus primeiros progressos em sua carreira, ao menos em parte, aos jesuítas. Contudo, dez anos mais tarde, a fobia se tornara uma obsessão maníaca da qual jamais se libertou. Seu meio-irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que governou o estado do Maranhão-Pará, lhe enviava um fluxo constante de denúncias dos missionários jesuítas na Amazônia, que, diz ele, continuamente zombavam da autoridade da Coroa. Tais afirmações repetidas enfaticamente, fossem verdadeiras, falsas, ou exageradas, devem ter reforçado as convicções antijesuíticas de Pombal, se é que não o inspiraram em sua origem.
O fato é que Pombal elegeu a Companhia de Jesus como um dos seus maiores inimigos e iniciou, ainda no começo de seu governo, uma vasta propaganda contra aqueles padres. O auge da política de difamação dos jesuítas foi a publicação da obra Deducção Chonologica e Analytica, de 1767-8, na qual, em cinco volumes, Pombal pretendeu desmoralizar completamente os padres da Companhia de Jesus, denunciando-os como os verdadeiros culpados pelo atraso econômico e intelectual de Portugal. A obra, escrita depois da expulsão dos jesuítas e que serviu como um dos instrumentos para a sua eliminação em toda a cristandade em 1773, teve ampla distribuição, com a ordem de obrigatoriedade de sua leitura, em todo território português. Ela é assim dividida: Na primeira parte desta obra prolixa e fastidiosa, o autor faz a história da acção nefasta da Companhia no plano político, isto é, no quadro das instituições político-sociais do Estado Português, distribuída em dois volumes. Na segunda parte, desenvolve a análise histórica da acção da Companhia de Jesus, no âmbito das estruturas da Igreja, num volume apenas. O quarto e o quinto volume são dedicados à apresentação das
70 ditas “provas” que são constituídas por cartas, ofícios, regimentos, etc., para dar fundamento documental a este requisitório. (FRANCO, p. 1)
A tese central defendida por Pombal na Deducção é a de que a ordem dos jesuítas foi a grande responsável pelo atraso lusitano a partir de 1540 em relação à outros reinos europeus. Até a chegada dos padres inacianos, Portugal vivia uma era de expansão, riquezas e glórias, marcadamente com o monopólio do comércio naval dos artigos do Oriente, o que trazia imenso prestígio internacional. Para Pombal, não foi mera coincidência que a segunda metade do século XVI marca o início da decadência lusitana, pois Portugal faria parte do plano jesuítico, idealizado por seu fundador, Inácio de Loiola, de instaurar (ou voltar, numa visão iluminista) o período de trevas, ignorância, superstição e submissão ao clero. O domínio que os jesuítas tinham da educação e das missões, os aldeamentos indígenas (as reduções, especialmente as do Guairá), a suposta imensa riqueza acumulada pelos jesuítas, com suas fazendas de gado, engenhos de açúcar e doações, a verdadeira rede internacional da Companhia, tudo isso compunha um quadro que Pombal registrava como fazendo parte de um plano que vinha sendo colocado em prática há mais de 200 anos e que era preciso arduamente combater. O principal obstáculo que os jesuítas representavam, segundo autores como Boxer, Franco e Maxwell, e por isso era preciso eliminá-los, era em relação ao poder supremo do rei, defendido (e executado às últimas consequências) por Pombal. Para o primeiro-ministro lusitano não poderia haver poderes paralelos ao do rei na sociedade, e muito menos, uma instituição como a ordem jesuítica que tinha sua maior autoridade fora de Portugal, em Roma. O ultramontanismo, isto é, o reconhecimento do poder papal acima dos poderes locais nas determinações eclesiásticas e de doutrina da fé, defendido obviamente pelos jesuítas (que era uma ordem religiosa ramificada no mundo todo mas com o núcleo decisório em Roma) era repudiado por Pombal, que via nele uma limitação da autonomia nacional e, por consequência, uma submissão do rei ao papa. É conveniente lembrar que os jesuítas faziam, além dos três votos tradicionais às ordens religiosas (obediência, castidade e pobreza), um quarto voto, de obediência ao papa no que dizia respeito ao trabalho missionário, tanto que eles só foram para Portugal, depois da autorização do papa Paulo III. A investida de Pombal contra os jesuítas representava, na realidade, um enfrentamento com toda a Igreja Católica Romana, pois ele queria subordiná-la, em quase todas as esferas, ao poder supremo do rei. Sem consultar Roma, informa Boxer (idem, p. 201 e 202), o primeiro-ministro “removia qualquer prelado que caísse no seu desagrado”, e, ainda, “chamava o rei, nos decretos oficiais, de grão-mestre da Ordem
71 de Cristo (e de Avis e de Santiago), embora, pela lei canônica, o monarca reinante fosse apenas „governador e administrador perpétuo‟”. Com relação aos jesuítas, Pombal os enxergava como um grupo extremamente organizado que tinha como plano a aniquilação da ordem social e do poder do Estado (e isso no mundo todo), objetivando, por consequência, instaurar seu poder por meio de uma obediência cega e opressora. O meio mais eficaz de dominar as pessoas era criando a dependência intelectual e religiosa, e isso é o que queria a Companhia de Jesus, segundo a avaliação pombalina. Na Deducção e em outros escritos antijesuíticos os jesuítas são adjetivados como nefastos, pérfidos, doentios, contagiosos, conspiradores, cobiçosos, intriguistas, hipócritas, sediciosos, simuladores, maquinadores, dentre outros; ao passo que as virtudes de honestidade, humanidade, bom senso, razão edificante, piedade, liberdade, respeito, perdão, reconciliação, bonomia, tolerância, generosidade etc., pertenciam à realeza. O fundamento deste manifesto maniqueísta defendido por Pombal é, segundo Franco (p. 2), relativo às antagônicas concepções acerca da origem e limites do poder real: No plano ideológico-político, os teólogos da Companhia eram críticos em relação à nova concepção reforçadora do poder absoluto do Estado encarnado na pessoa do rei, que concentrava todos os poderes. Os mentores e protagonistas do despotismo como era o caso do Marquês de Pombal na sua forma mais acabada, entendiam que o poder era dado diretamente por Deus ao rei, o qual tornava o príncipe como supremo senhor, omnipotente, absoluto e despótico, sendo tudo feito ad arbitrium Principis. Os Jesuítas introduziram um elemento mediador (e moderador) deste poder, pois defendiam que o poder vinha de Deus, mas era dado aos reis per populum (isto é, através do povo). Logo, o rei estaria ao serviço do povo e governava para promover a sua felicidade e merecer a sua confiança e outorgação. Quando tal exercício se tornasse despótico e derivasse na tirania, o soberano devia ser substituído. Ora, isto era inadmissível para um defensor do absolutismo real, lançando a suspeita sobre a Companhia na sua relação com o poder absoluto, tanto mais que alguns dos seus teólogos (v.g. Mariana) tinham defendido, na linha da teologia política de filiação tomista, que em casos extremos o rei tirano poderia ser licitamente deposto pelo processo do regicício.
Essa disputa teológico-jurídica deve ter inspirado Pombal a acusar os jesuítas como conspiradores do poder real de D. José I, tendo participado (ou ao menos inspirado e justificado) do plano para matá-lo. Na conspiração para assassinar o rei ocorrida em 1758, liderada pela família Távora, Pombal conseguiu provas da implicação dos jesuítas no plano, tendo mandado prender e executar membros da família Távora e o padre jesuíta Malagrida. Tal fato repercutiu no fortalecimento político do primeiro-ministro, que a partir de então recrudesceu seu despotismo e, talvez a principal consequência, no apoio real para emitir a Lei dada para a proscrição,
72 desnaturalização e expulsão dos regulares da Companhia de Jesus, nestes reinos e seus domínios, promulgada em 3 de setembro de 1759. Na lei que decretou a expulsão dos jesuítas, o primeiro motivo exposto para justificá-la refere-se à querela dos estados ibéricos com os jesuítas acerca do Tratado dos Limites, conhecido também como Trato de Madrid. Tal acordo entre Portugal e Espanha foi firmado em 13 de janeiro de 1750 para rever o antigo Tratado de Tordesilhas, de 1494, estabelecendo novos limites para os reinos ibéricos: Portugal cedeu a Colônia de Sacramento e renunciou às pretensões sobre o estuário do Prata; a Espanha cedeu os atuais estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, dentre outros. Os jesuítas (tanto portugueses como espanhóis) foram acusados de não colaborarem com o tratado e, como teriam que renunciar às extensas e populosas reduções, foram tratados como insurgentes. Vejamos o que está na lei que expulsou os jesuítas de Portugal: “Desde o tempo em que as operações que se praticavam para a execução do Tratado dos Limites das conquistas sobre as informações e provas mais puras e autênticas, e sobre a evidência dos factos mais notórios, não menos do que a três exércitos, procurei aplicar todos quantos meios a prudência e a moderação podiam sugerir para que o governo dos regulares da Companhia, denominada de Jesus, das províncias destes reinos e seus domínios, se apartasse do temerário e façanhoso projecto com que havia interpretado, e clandestinamente perseguido na usurpação de todo o Estado do Brasil, e com um tão artificioso e tão violento progresso que não sendo pronta e eficazmente atalhado se faria dentro do espaço de menos de dez anos inacessível e insuperável a todas as forças da Europa unidas”. (apud FRANCO, p. 3)
Dois pontos a destacar do trecho da lei. O primeiro refere-se à expressão da lei “o governo dos regulares da Companhia, denominada de Jesus”, que passou a frequentar as outras obras e libelos escritos contra os jesuítas: não aparece mais Companhia de Jesus, e sim, Companhia, dita de Jesus. O motivo da mudança deve-se à propaganda antijesuítica que os qualificava como agentes do diabo, como os precursores do Anticristo na terra. De agentes do bem, os jesuítas eram tidos como instrumentos do mal; de uma ordem cristã, passaram a ser vistos como anticristãos. O segundo ponto é a convicção (se real ou não, a historiografia não permite afirmar categoricamente) demonstrada por Pombal e endossada pelo rei de que as reduções indígenas representavam um verdadeiro Estado Jesuítico, que tinha como objetivo implantar uma nova sociedade no novo mundo, sem a tutela da Coroa lusitana, regida pelo obscurantismo religioso, preparando os índios como verdadeiros soldados. Talvez o “inacessível a todas as forças da Europa unidas” possa ser avaliado como puro exagero, mas o fato é de que as justificativas para o extermínio de
73 uma grande e poderosa instituição como a jesuítica, teria que ter grandes e poderosas justificativas. O fato é que, com relação à atuação dos jesuítas com os indígenas do Brasil, Pombal acusava os inacianos de colocar os índios contra o reino, na medida em que, segundo ele, os homens brancos eram apresentados aos índios como maus, como mais interessados no ouro do que qualquer coisa e, mais grave, prontos para atrocidades. Na toada dessa campanha difamatória contra os brancos europeus, os padres jesuítas, sempre segundo Pombal, impuseram a obrigatoriedade da língua tupiguarani, proibindo o aprendizado do português, isolando os indígenas do contato com o europeu por meio das reduções. Dois motivos, segundo Franco (idem, p.3), foram apontados pelo primeiroministro de D. José I para justificar a política jesuítica de isolamento dos índios no Brasil. O primeiro seria de ordem econômica: os jesuítas queriam esconder dos brancos toda a imensa riqueza que eles tinham. O segundo motivo seria a construção de um Estado jesuítico, rico e disciplinado, baseado na ignorância, autocrático, que substituiria a vassalagem dos índios brasileiros ao rei de Portugal pela obediência a eles mesmos. Para Pombal: O novo Estado erguido pela Companhia de Jesus seria o balão de ensaio e o ponto de partida para a implantação da nova ordem jesuítica universal, dominada pelo poder opressor ultramontano do seu Geral que vergaria pela lei terrível da obediência cega todos os povos, reinos e impérios do mundo.
Após a expulsão dos jesuítas, o Marquês de Pombal determinou que as reduções indígenas ficassem sob o governo da Coroa portuguesa, extinguiu a escravidão dos índios em todo território brasileiro e fomentou casamentos entre os brancos e os índios para que os últimos fossem integrados na ordem social lusitana. No campo educacional, no Brasil, com a supressão de todas as escolas e colégios jesuíticos, Pombal fez uma reforma, na qual a direção da educação passasse para as mãos do Estado. Criou, para isso, as aulas régias ou avulsas de Latim, Grego, Filosofia e Retórica, que teriam a finalidade de preencher o vácuo deixado com fim das escolas inacianas. Ainda com relação à reforma educacional, Pombal instituiu, também, a figura do Diretor Geral dos Estudos e o subsídio literário. O primeiro objetivou a tentativa de uniformização da educação no Brasil, bem como a fiscalização dos professores e do material didático utilizado, coibindo, com isso, choque de interesses. Já o subsídio literário era um imposto criado para garantir o salario dos professores, compra de livros, organização de material didático e ampliação dos estabelecimentos escolares.
74 De qualquer forma, o grande objetivo da reforma educacional pombalina era centralizar nas rédeas do Estado tanto o conteúdo, como os métodos, numa visão científica pautada nos ditames do iluminismo. Como ponderam Seco e Amaral (2006, p. 9): As aulas régias instituídas por Pombal para substituir o ensino religioso constituíram, dessa forma, a primeira experiência de ensino promovido pelo Estado na história brasileira. A educação a partir de então, passou a ser uma questão de Estado. Desnecessário frisar que este sistema de ensino cuidado pelo Estado servia a uns poucos, em sua maioria, filhos das insipientes elites coloniais.
Os grandes culpados pelo atraso econômico e intelectual do Brasil foram, segundo Pombal, os jesuítas, tanto que, no que diz respeito à educação, mesmo com as aulas régias, com o Diretor Geral e o imposto criados, algumas ordens religiosas (beneditinos, franciscanos e carmelitas) continuaram tendo suas escolas, sendo que teriam assumido, inclusive, a direção de instituições escolares que antes pertenciam à Companhia de Jesus.
CONCLUINDO
A importância tanto de Pombal como da Companhia de Jesus na história de Portugal é muito grande, e isso pode ser avaliado pelas páginas escritas por muitos intelectuais portugueses que de forma apaixonada defendem um ou outro como verdadeiros heróis lusos, criando, dessa forma, verdadeiros mitos. Com Pombal, foi criada uma doutrina antijesuítica que teve repercussões nos séculos XIX e XX, especialmente quando intelectuais portugueses, antenados com o liberalismo político, defendiam a necessidade da implantação de uma república em Portugal. Na visão deles (como Oliveira Martins e Alexandre Herculano, para citar apenas dois exemplos) o atraso lusitano em relação à outras nações europeias deveuse, basicamente, por dois motivos: a monarquia e a Igreja, especialmente a Companhia
de
Jesus,
que
sempre
foram
conservadores,
impedindo
o
desenvolvimento intelectual e material lusitanos. O antijesuitismo foi tão grande que a Companhia de Jesus teve uma vida muito conturbada em Portugal depois da morte de Pombal. Os jesuítas regressaram em 1829, depois da bula do papa Pio VII que os reestabelecia no seio da cristandade. No entanto, novamente são expulsos das terras portuguesas em 1834. Retornam em 1848 e ficam até 1910, quando são, de novo, expulsos como consequência da
75 implantação da República. Somente a partir de 1923 que os padres inacianos voltam para Portugal, reabrindo suas casas e colégios. Por outro lado, pela forma despótica como governou Portugal, a literatura portuguesa dos séculos XIX e XX também abriga uma corrente antipombalina, denunciando os desmandos e, principalmente, acusando Pombal de querer manter Portugal sob o jugo do poder absoluto da Coroa, impedindo, da mesma forma, a implementação de um Estado republicano. Finalmente, se quisermos conhecer a história portuguesa (e, por decorrência parte importante da história brasileira) no século XVIII, é inevitável aprofundar os estudos acerca do Marquês de Pombal, cujo governo foi tão complexo e multifacetado, como sua própria figura que longe está de ser unânime na história. Estudar o período pombalino requer, também, conhecer a Companhia de Jesus, pois não foi à toa que Pombal a elegeu como sua principal inimiga, dado este que, por si só, mostra também sua grandiosidade histórica.
Referências e bibliografia
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76 ATIVIDADE Elabore um pequeno texto dissertando sobre o tema proposto abaixo. O historiador K. Maxwell considera (em livro citado neste capitulo) o Marquês de Pombal um “paradoxo do iluminismo”.
O que possibilita que a administração
pombalina possa ser considerada um paradoxo do iluminismo?
77 CAPITULO V: CAIO PRADO E A INTERPRETAÇÃO DA COLONIZAÇÃO DO BRASIL
Claudinei Magno Magre Mendes
INTRODUÇÃO
Todo professor de História deve saber algo que é fundamental para o exercício da sua profissão: existem diferentes interpretações sobre um mesmo processo ou acontecimento. Os livros didáticos apresentam uma única interpretação dos fatos, aquela que, em um dado momento, é a hegemônica, ou seja, aquela que é a mais aceita. Mas isto não quer dizer que seja a interpretação correta. Significa apenas que a maioria das pessoas se identifica com a mesma. Mas, para a formação de um profissional da história, é importante conhecer as diferentes interpretações e saber expô-las aos seus alunos para que eles possam, percebendo as distintas maneiras de se ver a história, escolher aquela que melhor condiz com seus interesses e sua maneira de pensar. Exatamente por isso existe, na formação do historiador, uma disciplina denominada Historiografia, encarregada de estudar as diferentes maneiras de se conceber a história. O estudo das interpretações da história revela, em primeiro lugar, que em diferentes épocas se interpretou de modo distinto um determinado processo ou acontecimento histórico. Revela, em segundo lugar, que, numa mesma época, podem conviver diferentes maneiras de se interpretar esses processos e acontecimentos. É o que geralmente se verifica. Assim, o conhecimento histórico não é cumulativo, como se, a cada geração, houvesse um aperfeiçoamento e se conhecêssemos melhor a história do que nossos antepassados. Essas duas diferenças que se verificam nas interpretações se devem, primeiro, quando elas ocorrem ao longo do tempo, ao fato de cada época colocar questões próprias para a história. Para responder a essas questões de uma dada época concebe-se a história de um modo distinto. Segundo, quando em uma mesma época existem diferentes maneiras de conceber a história isso se deve ao fato de a sociedade encontrar-se constituída por grupos sociais com interesses diferenciados, o que leva a cada um deles considerar a história da sua perspectiva. Constata-se daí que não existe uma verdade em história, no sentido de que uma interpretação é correta e as demais são equivocadas. Por isso, as diferentes maneiras de se interpretar um processo ou um acontecimento devem, antes, constituir em ponto de partida para se entender as
78 razões que levaram a essa diversidade de modos de conceber a história. Assim, no que diz respeito à colonização do Brasil, encontramos diferentes maneiras de concebê-la ao longo da nossa história. Tivemos, igualmente, momentos em que se verificou um debate em torno da interpretação da colonização, nele intervindo autores com modos distintos modos de explicar o processo colonial. Uma concepção que marcou e marca ainda de modo decisivo os estudos históricos, principalmente, mas não unicamente, sobre a colonização é a interpretação elaborada por Caio Prado Júnior. Ele formulou uma interpretação que constitui uma das bases dos estudos atuais sobre a colonização e que é uma das mais divulgada entre as existentes. Daí um interesse especial pelo estudo do modo como esse autor interpretou a colonização brasileira.
1. CAIO PRADO JÚNIOR
Caio Prado Júnior nasceu em São Paulo, em 1907, e faleceu na mesma cidade Marxista, ingressou no PCB em 1931 e chegou à vice-presidê ncia da Aliança Nacional Libertadora em 1935.
em 1990. De rica família da burguesia cafeeira, teve uma educação esmerada, como a dos que pertenciam à sua classe. Estudou Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, mas pouco exerceu a profissão. Publicou, em 1933, Evolução política do Brasil, inaugurando uma trajetória que o levou a ser considerado o mais importante historiador brasileiro. Mas, foi em 1942, com Formação do Brasil contemporâneo, que deu início a uma interpretação da história do Brasil que, em suas linhas gerais, é considerada válida até os dias atuais. É verdade que, antes, em 1935, em uma série de artigos publicados na imprensa, acerca do programa da Aliança Libertadora Nacional, ele já havia esboçado a interpretação que veio a expor em Formação. Posteriormente, ao longo da sua trajetória política e intelectual, publicou outros livros, igualmente importantes, como História econômica do Brasil (1945), A Revolução Brasileira (1966) e História e Desenvolvimento (1972) sempre reafirmando a interpretação da história do Brasil formulada em 1942.
2. A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL DE CAIO PRADO
Costuma-se apresentar Caio Prado como uma espécie de historiador da colonização do Brasil, isto é, como o autor que lançou as bases para o entendimento do processo colonial brasileiro. Isso, no entanto, pode levar a um equívoco, pois, em seu livro Formação do Brasil contemporâneo, ainda que tenha por subtítulo “Colônia”, expôs uma interpretação da história do Brasil em seu conjunto, ou seja, não restringiu suas considerações ao período colonial. Com efeito, Formação não é somente uma
a ANL reunia sociaslist as, anarquist as e comunist as. Uma das principais correntes da ANL era o Partido Comunist a (onde teve por president e Luís Carlos Prestes)
79 história do nosso passado colonial, mas um ensaio interpretativo da história brasileira em sua totalidade. Entendemos por história brasileira em sua totalidade, no caso presente, a história que abarca desde o passado colonial até meados do século XX, quando foi publicada a obra Formação. Por esse motivo não se pode separar a maneira como encarou a colonização do modo como concebeu a história do Brasil. Na verdade, sua caracterização da colonização constitui o fundamento do seu modo de conceber o processo histórico brasileiro na sua totalidade. Consideremos, por conseguinte, seu entendimento de colonização articulado com sua concepção da história do Brasil. Em Formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado elegeu o período compreendido entre os fins do século XVIII e início do XIX como momento estratégico para se entender a história do Brasil. Para ele, tratar-se-ia, primeiramente, de uma época em que a obra colonizadora chegava ao seu término, nada mais podendo realizar. Constitui, por isso, uma espécie de balanço de praticamente três séculos de colonização. Mas, em segundo lugar, seria, ao mesmo tempo, o ponto de partida de um processo de transformação que, tendo se iniciado nessa época, se estenderia até o Brasil de seus dias. Daí o título do livro, indicando tratar-se de um estudo de como o Brasil de sua época (ou o Brasil contemporâneo) havia se formado. Para ele, o Brasil de meados do século XX poderia ser caracterizado pelo resultado da colonização mais as transformações que haviam se operado ao longo de cerca de cento e cinqüenta anos. Assim, de seu ponto de vista, era importante a caracterização da colonização, pois disso decorreria a explicação do que era o Brasil contemporâneo.
3. O SENTIDO DA HISTÓRIA
Para Caio Prado, a história possuiria um sentido. Afirmava que todo povo tinha, na sua evolução, vista à distância, certo “sentido”, que não seria perceptível nos pormenores de sua história, “(...) mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo”. Como o próprio autor definiu, tratar-se-ia de “(...) uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa, e dirigida sempre numa determinada orientação” (PRADO JR., 1981, p. 19). De acordo com ele, a análise histórica de um povo deveria buscar justamente esse sentido ou linha mestra, constituindo o objetivo último do historiador, pois seria esse sentido que definiria, no tempo e no espaço, as características particulares da parcela da humanidade que o pesquisador estaria interessado em conhecer.
80 Caio Prado pretendeu fazer isso, buscando, de um ângulo geral e amplo, explicar a evolução histórica do Brasil. Daí seu estudo sobre a colonização, ponto de partida da sua história.
4. O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO
Caio Prado buscou, então, entender o que denominou de sentido da colonização, ou seja, compreender o sentido que a colonização do Brasil conferiu à sua história. Para o autor, esse sentido foi dado pelo caráter que assumiu a colonização portuguesa nos trópicos. Esse caráter teria sido dado pelas condições gerais em que ela havia se processado. Assim, para ele, essa colonização era apenas um capítulo de um processo mais amplo que era a revolução comercial pela qual a Europa estava passando. A expansão marítima, os descobrimentos, a integração da África e da Ásia, a ocupação e povoamento da América seriam acontecimentos correlatos que integrariam as diversas regiões em uma nova ordem econômica e faziam parte desse processo. Como expressou o autor, todos esses acontecimentos foram apenas um capítulo da história do comércio europeu. Para compreender o sentido que foi dado à colonização brasileira, Caio Prado fez uma comparação entre a forma como teria se verificado a colonização inglesa da América do Norte e a portuguesa da região que veio a se tornar o Brasil. Vejamos, pois, como esse autor apresentou essa questão.
4.1. COLÔNIAS DE POVOAMENTO E COLÔNIAS DE EXPLORAÇÃO
De acordo com esse autor, existiriam diferenças essenciais entre a colonização inglesa e colonização portuguesa, nos seus motivos e nos seus resultados. Distinguindo duas áreas, a zona temperada, de um lado, e, de outro, a zona tropical e a subtropical, observou que a ocupação e o povoamento delas foram impulsionados por fatores distintos. A colonização inglesa teria sido motivada pelas guerras religiosas e pelas transformações ocorridas na agricultura inglesa. As guerras político-religiosas promoveram uma corrente emigratória para as regiões temperadas. Os que emigravam buscavam condições que lhes permitissem seguir suas convicções políticas e, principalmente, religiosas. Também as mudanças econômicas no campo, com a transformação das terras agrícolas em pastagens, promoveram um deslocamento da população do campo para as cidades. Parte dessa população acabou emigrando para a América, buscando refazer seu antigo modo de vida.
81 Assim, segundo Caio Prado, esses colonos vieram para a América com o objetivo de constituir uma sociedade parecida com a que viviam na Inglaterra. Além disso, como as áreas eram semelhantes no que tange ao clima, dedicaram-se à produção dos mesmos artigos, em pequenas e médias propriedades, não podendo, por isso, exportá-los em grande quantidade para a Inglaterra. Assim, em última análise, da perspectiva do autor, a colonização inglesa da América do Norte deu origem a um tipo de colônia, que denominou de povoamento, baseada, essencialmente, na produção voltada para o mercado interno. A zona tropical e a zona subtropical, por seu turno, atraíram outro tipo de colono. Essas regiões, justamente pelo fato de produzirem artigos que a Europa temperada não produzia ou produzia em pequenas quantidades, atraíram o empresário, o colono interessado em produzir em larga escala visando o mercado europeu. Isso teria dado à colonização portuguesa dos trópicos uma configuração distinta da inglesa produzida pelo seu caráter comercial. Baseada na grande propriedade, a agricultura tropical voltou-se para a produção de artigos com larga aceitação no mercado europeu e que fosse lucrativa. Daí seu caráter monocultural, já que se restringiria aos produtos que pudessem ser exportados para a Europa. Por fim, como os portugueses vieram como empresários e não como colonos tiveram que encontrar trabalhadores para as atividades produtivas. Primeiro, recorreu-se aos índios; posteriormente, aos africanos, mas sempre por meio da escravidão. Assim, para Caio Prado, a produção que se constituiu por meio dessa colonização teve as seguintes características: uma organização produtiva baseada na grande propriedade, que denominou de latifúndio, na monocultura e no trabalho escravo, com vistas à produção de alguns artigos destinados ao mercado europeu. Esse seria o sentido da colonização portuguesa nos trópicos: uma produção voltada para o mercado europeu ou externo. Nas palavras do autor:
Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção e consideração que não fossem o interesse daquele comércio que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país (PRADO JR., 1981, p. 31-32).
Ainda de acordo com Caio Prado, as colônias de exploração estavam divididas, internamente,
em
dois
setores.
Um,
a
agricultura
de
exportação,
voltada
essencialmente para o mercado externo, possuindo as características que definem esse tipo de colônia. Outro seria a agricultura de subsistência, destinada ao
82 abastecimento do mercado interno, geralmente realizada em pequenas e médias propriedades. A caracterização de colonização dos trópicos de Caio Prado, como foi frisado, constitui a base para sua interpretação da história do Brasil em seu conjunto. Vejamos, agora, como ele formulou sua concepção do processo histórico do Brasil.
5. O SENTIDO DA HISTÓRIA DO BRASIL
De acordo com este autor, tendo se originado como colônia de exploração, o Brasil teria uma evolução histórica bastante específica: o processo histórico brasileiro caracterizar-se-ia pela transformação da economia colonial em economia nacional. Constituindo-nos como uma colônia destinada ao atendimento das necessidades do mercado externo, a maneira de superar essa condição seria por meio da estruturação da economia brasileira numa forma que denominou nacional, ou seja, de uma produção voltada, fundamentalmente, ao mercado interno e destinada a atender as necessidades da população nela envolvida. Assim, de seu ponto de vista, a história brasileira teria como linha mestra ou sentido a transição de uma economia destinada à satisfação de necessidades estranhas a ela para outra cujo objetivo seria o atendimento das necessidades da população brasileira. Do ponto de vista do autor, esse processo de transformação da economia colonial em economia nacional ainda estaria em curso à época da publicação de Formação do Brasil contemporâneo e se estenderia pelas décadas seguintes, quando publicou outras obras reafirmando isso. Assim, de sua perspectiva, colocava-se, para os brasileiros interessados na superação do caráter colonial da economia, uma tarefa política: dar os últimos passos no sentido de promover a transição da economia colonial em economia nacional. Fundamentava essa afirmação justamente em sua interpretação da história brasileira, observando que, desde finais do século XVIII e início do XIX, desenrolavase um processo que, no Brasil do século XX, ainda estava em curso. Segundo o autor, desde essa época,
O Brasil começa[va] a se renovar, e o momento que constitui o nosso ponto de partida neste trabalho [finais do século XVIII e início do XIX] que o leitor terá talvez a paciência de acompanhar, é também o daquela renovação. Mas ponto de partida apenas, início de um longo processo histórico que se prolonga até os nossos dias e que ainda não está terminado. (...) Mas este novo processo histórico se dilata, se arrasta até hoje. E ainda não chegou a seu termo. É por isso que para compreender o Brasil contemporâneo precisamos ir tão longe (...) (PRADO JR., 1981, p. 10).
83 Assim, em sua exposição do processo histórico brasileiro, Caio Prado apresentou, em seu conjunto, o passado, o presente e o futuro do Brasil. Tendo se constituído como economia colonial, viveria no presente o processo de transição dessa economia para a economia nacional. O futuro imediato, dado por essa visão de conjunto, era a economia nacional. É preciso atentar para a caracterização de economia nacional do autor. Isso porque muitos estudiosos da sua obra interpretaram-na como se ele estivesse tratando da nação e não de uma forma de organização da produção. Ainda que o autor não tivesse tratado amplamente dessa questão o fato é que sempre que se referiu à economia nacional não deixou dúvidas que a entendia como uma forma que se opunha à economia colonial e que era a maneira como se verificaria a superação das características coloniais da economia brasileira. Assim, em seus estudos, sempre valeu das seguintes contraposições que, em última instância, diziam a mesma coisa:
- economia colonial/economia nacional; - produção voltada para o mercado externo/produção voltada para o mercado interno; - produção destinada ao atendimento de necessidades alheias/produção destinada ao atendimento das necessidades da população brasileira.
A questão que se coloca, por fim, é entender os motivos que levaram Caio Prado a elaborar essa interpretação da história do Brasil.
6. CONSIDERAÇÕES SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE CAIO PRADO
Os estudiosos da obra de Caio Prado explicam sua maneira de interpretar a história do Brasil pela sua posição política e pela doutrina que abraçou. Segundo a historiografia, tendo ingressado no Partido Comunista Brasileiro e abraçado a doutrina marxista em 1931, esse autor aplicou a metodologia de Marx no estudo da história do Brasil resultando em uma obra que teria apreendido suas linhas básicas. Esses estudiosos também costumam afirmar que ele se valeu do marxismo de maneira criativa, contrapondo-se ao uso mecanicista e esquemático que caracterizaria a análise da história do Brasil do Partido Comunista Brasileiro. Como destacaram seus estudiosos, esse autor, apesar de membro desse partido, sempre discordou das suas análises. Ainda que não seja possível ignorar as opções políticas e doutrinárias de Caio Prado para entender sua trajetória de vida e intelectual, isso é insuficiente para
84 compreender a maneira como entendeu a história do Brasil. Talvez o melhor modo para se compreender as razões que o levaram a conceber a história do Brasil dessa forma seja considerando suas conseqüências políticas. Com efeito, sua interpretação da história do Brasil tem alguns desdobramentos de ordem política que precisam ser salientados. Em primeiro lugar, ao afirmar, tomando por base sua caracterização de economia colonial, que o processo histórico brasileiro tinha como especificidade sua transição para uma economia nacional, Caio Prado apresentou uma alternativa à interpretação marxista clássica que colocava como tendência da história o socialismo. Assim, insistindo na especificidade da história do Brasil, afirmou que a tarefa política dos brasileiros de então era a instituição da economia nacional e não do socialismo. Em diversas oportunidades afirmou que o socialismo era prematuro para as condições históricas brasileiras. Assim, em última análise, apresentou uma linha de desenvolvimento que constituía uma alternativa ao ponto de vista do marxismo, afirmando que, no Brasil, a linha mestra do seu desenvolvimento era a transição da economia colonial para a economia nacional. Em segundo lugar, ao afirmar que a tendência histórica do Brasil era a constituição de uma economia nacional, Caio Prado contrapôs-se, também, àqueles autores que afirmavam que o Brasil se desenvolveria em moldes capitalistas. Discordava, assim, tanto do Partido Comunista Brasileiro, que advogava uma revolução democrático-burguesa que eliminaria os entraves ao desenvolvimento capitalista do Brasil, criando as condições para uma revolução de caráter socialista, como dos que defendiam, de diferentes maneiras, a necessidade de reformas no sentido de promover o desenvolvimento capitalista no Brasil, como atrair capitais estrangeiros, etc. Para esse autor, a situação em que se encontrava o mundo nas primeiras décadas do século XX, suas condições históricas gerais, impediria que o Brasil se tornasse uma nação capitalista, nos moldes das nações européias e dos Estados Unidos. Desse modo, para esse autor, nem o socialismo nem o capitalismo eram perspectivas viáveis para o Brasil nas circunstâncias históricas então existentes. O primeiro era prematuro; o segundo, extemporâneo. Para ele, o Brasil caminhava, de fato, para uma forma social que não era nem o socialismo, nem o capitalismo: a economia nacional (Vide MENDES, 2008). Como se pode verificar, a análise da história do Brasil de Caio Prado, fundamentando-se na sua caracterização de economia colonial, ou seja, uma produção voltada para o atendimento de necessidades alheias, concluía que ela se caracterizava por uma linha de desenvolvimento particular, cujo resultado ou forma de
85 superação seria o estabelecimento de uma produção destinada ao atendimento da população brasileira, que denominou de economia nacional. Na base dessa formulação encontramos sua concepção de colônia. Daí a razão para o fato de termos alertado, no início, que não se poderia considerar esse autor apenas como um historiador da colonização. Ao assim proceder se perdem de vista os desdobramentos políticos dessa interpretação da época colonial. Resta, por fim, compreender as razões que levaram Caio Prado a interpretar a história do Brasil da forma como o fez. Iniciamos o tópico destacando que a historiografia explica isso pelo fato dele aplicar de modo criativo o marxismo. Para nós, no entanto, a razão disso foi seu posicionamento político: tratava-se de um autor que não desejava nem o socialismo, nem o capitalismo, pelo menos na sua forma liberal. Combateu, por isso, essas duas perspectivas. Motivado por esse posicionamento, buscou formular uma interpretação da história do Brasil que embasasse sua posição política. Daí sua caracterização de colônia como produção para o mercado externo. Sua superação seria, então, o seu oposto ou contrário, ou seja, uma produção voltada para o mercado interno. Assim, em última instância, foi seu posicionamento diante das questões da sua época que o levou a encarar a história do Brasil da maneira como o fez.
CONCLUSÃO
Ao longo do texto procuramos fazer uma exposição sumária da interpretação da história do Brasil de Caio Prado chamando a atenção para as motivações de ordem política que o levaram a formular essa maneira de conceber o processo histórico brasileiro. Sob esse aspecto não estamos apoiando ou criticando a análise da história brasileira feita por ele, afirmando que a mesma é correta ou equivocada. Em nosso estudo procuramos apenas buscar as motivações que o levaram a adotar semelhante perspectiva. Para nós, a motivação primeira de sua obra, as razões que o levaram a estudar a história do Brasil, é de natureza política. Diante das questões de sua época, em que havia uma disputa entre capitalismo e socialismo, buscou um terceiro caminho, eqüidistante dessas duas opções políticas. Em um estudo curto não é possível, evidentemente, tratar dos desdobramentos políticos de semelhante posicionamento. Mas, é preciso destacar que ao fazer isso ele não estava sozinho, mas expressou um sentimento que pertencia à grande maioria da sociedade brasileira. Esse sentimento levou-nos a ver no Estado e não na própria sociedade a solução para os problemas que nos afligiam. Daí a desconfiança para com as formas liberais de existência, rejeitando o capitalismo não-intervencionista. Mas, como éramos
86 igualmente conservadores e conciliadores, rejeitamos também as soluções radicais, como o socialismo. Assim, talvez tenha sido Caio Prado o autor que melhor traduziu aquilo que se passava no íntimo da nossa sociedade. Daí seu grande sucesso, razão pela qual ser considerado o maior dos historiadores brasileiros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. História da Província Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1980. LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas no Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, 3 vs. MENDES, Claudinei Magno Magre. Política e história em Caio Prado Jr. São Luís/MA: UEMA, 2008. PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 17ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1981.
FONTES E REFERENCIAIS PARA APROFUNDAMENTO TEÓRICO
Caio Prado afirma que o objetivo último da colonização (seu sentido) é atender as necessidades do mercado externo (ou europeu). Alguns depoimentos dos primórdios da colonização, inclusive aqueles que criticavam os colonos, apontam que os mesmos estavam interessados em fazer proveito. Vejamos alguns exemplos. Em carta que dirigida a Tomé de Sousa, em 1559, O padre Manuel da Nóbrega escreveu, referindo-se aos colonos: “(...) porque esta gente do Brasil não tem mais conta que com seus Engenhos e ter fazenda [riqueza], aynda que seja com perdição das almas de todo o mundo” (LEITE, 1954, v. III, p. 98). Pero de Magalhães Gândavo, por volta de 1570, escreveu em seu Tratado da terra do Brasil: “Os moradores desta Costa do Brasil todos têm terras de Sesmarias dadas e repartidas pelos Capitães da terra, e a primeira cousa que pretendem alcançar são escravos para lhes fazerem e grangearem suas roças e fazendas, porque sem eles não se podem sustentar na terra (...). As fazendas de onde se consegue mais proveito são açúcares, algodão e pau-brasil (...)” (GÂNDAVO, 1980, p. 42). Faça um comentário comparando as idéias de Caio Prado Júnior sobre a colonização com as informações contidas nos excertos citados de Manoel da Nóbrega e de Gândavo.
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88 CAPITULO VI: A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA RELATIVA À COLONIZAÇÃO: UMA NOVA TENDÊNCIA
Claudinei Magno Magre Mendes
INTRODUÇÃO
Para compreendermos a nova tendência da historiografia brasileira relativa ao período colonial precisamos recuar um pouco e examinar o modo como se fazia História nas décadas anteriores a 1990. Isto porque esta nova tendência foi formulada, basicamente, em oposição ao modo como então se concebia a história e, por conseguinte, se interpretava a época colonial. Caio Prado Júnior (1907-1990) e Fernando Novais (1933) encontram-se no centro deste debate. Somente a partir deste confronto e do modo como se concebia a história do Brasil desde, mais ou menos, a década de 40 até, grosso modo, a de 80, é que poderemos compreender esta nova maneira de se interpretar a época colonial que teve início entre historiadores do Rio de Janeiro, motivo pelo qual, na falta de outro nome, denominamos de Escola do Rio. É verdade que suas bases já estavam sendo formuladas desde a década de 70, mas, efetivamente, foi somente nos anos 90 que ela tomou corpo. Desde as primeiras décadas do século XX e até, pelo menos, a década de 60, de um modo geral, os estudos sobre a época colonial tinham entre suas características não limitar a análise a este período histórico. Antes, sua principal característica era serem estudos que buscavam compreender a história do Brasil em seu conjunto. Mais do que isto, eram interpretações cujo objetivo maior era explicar o Brasil da época dos seus autores. Em suma, entendiam que o presente era explicado pelo passado. Por conseguinte, de acordo com estes autores, era preciso fazer a análise da época colonial para se compreender o Brasil da sua época. Alguns consideravam mesmo que era necessário ir além, abarcando a própria história de Portugal. Para estes autores, era o modo como havíamos nos constituído enquanto colônia que explicava nosso presente, principalmente os seus problemas. É verdade que cada um deles tinha um entendimento particular de colônia e colonização, interpretando o período colonial de uma determinada maneira. Mas, para todos eles, encontrava-se neste período a chave para explicar as vicissitudes do Brasil contemporâneo. Não é casual que seus livros tenham, geralmente, no título, algo que indicasse isto, como Formação, Raízes, etc. É o caso de Formação do Brasil contemporâneo (1942), de
89 Caio Prado Júnior, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda (19021982), e Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado (1920-2004). Antes dessas obras, em 1911, Oliveira Lima (1867-1928) já havia publicado Formação histórica da nacionalidade brasileira. Nelson Werneck Sodré (19111999), por sua vez, publicou, em 1944, Formação da sociedade brasileira e, em 1962, Formação histórica do Brasil. Quando estes vocábulos não aparecem no título, encontram-se, ao menos, no subtítulo. Assim, temos obras como: Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal (1933), de Gilberto Freyre (1907-1987) e Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro (1958), de Raymundo Faoro (1925-2003). Por fim, mesmo quando não estão no título ou subtítulo do livro, estes vocábulos aparecem nos títulos dos capítulos. Como exemplo, podemos citar Populações Meridionais do Brasil (1920), de Oliveira Vianna (1883-1951). Mas, mesmo quando estes não aparecem em nenhum destes lugares, o pressuposto é que no passado colonial se encontra a explicação para o Brasil no presente. Dentre essas obras, podemos citar História econômica do Brasil (1937), de Roberto Simonsen (1889-1948). Além dessa característica, havia outra que, de um modo geral, singularizava estes livros: menos do que histórias, eram ensaios, que pretendiam assinalar as características peculiares da história do Brasil e suas tendências com relação ao futuro. Existem diferenças marcantes entre a história e o ensaio histórico, embora ambos tratem do processo histórico de determinado país. Mas, o fato é que o tratam de maneiras distintas. A história pretende narrar ou descrever um determinado processo histórico verificado no passado baseando-se em documentos e textos. Pretende, em última instância, nos dizer como foi este passado. O ensaio, por seu turno, está organizado em torno de uma tese que o autor pretende demonstrar. Embora também se apóie em textos e documentos, não precisa citá-los ou fazer afirmações que somente possam ser comprovadas empiricamente. Ele é mais livre, comportando uma interpretação mais geral dos fatos, isto é, não se detém nas particularidades e nos episódios singulares. Assim, enquanto a história, de maneira geral, constitui uma interpretação do passado que se funda nos fatos e acontecimentos, o ensaio busca descrever as tendências gerais da história. Como assinalam muitos dos autores de um ensaio busca-se nele a linha mestra ou o fio condutor do processo histórico.
90 Desse modo, enquanto a história se preocupa mais com o passado, o ensaio, ainda que se ocupe do passado, tem os olhos postos no presente e no futuro. Na verdade, faz um enlace entre passado, presente e futuro. Este enlace constitui, na verdade, a principal característica da historiografia que abrange o período do século XX até, mais ou menos, a década de 60, ou seja, são textos que abarcavam o conjunto da história do Brasil, oferecendo uma interpretação geral dela. Em seu livro Formação da sociedade brasileira, Sodré deixa patente o que pretendia ao escrever um ensaio: Escrevendo esta Formação da Sociedade Brasileira não tive outra intenção que a de oferecer ao leitor comum, dentro das possibilidades de um levantamento tão sumário, uma visão de conjunto de como viveu nosso povo, até os dias que precederam a crise de 1929 (SODRÉ, 1944, p. 5).
Ainda que Sodré tenha se detido em 1929, não formulando uma interpretação da história do Brasil até a época da publicação do livro, nem apontando as tarefas políticas a serem realizadas para superar os problemas herdados do passado, uma e outras estão implícitas em sua obra. O ensaio, nos moldes dos relativos à história do Brasil, divide-se, geralmente, em três partes. A primeira parte compreende o estudo da colonização do Brasil, isto é, momento em que são lançados os fundamentos da história do Brasil. A maneira de caracterizar a colonização constitui a base sobre a qual se ergue a interpretação da história do Brasil em seu conjunto. Em outras palavras, é sua pedra de toque. A segunda parte trata do presente, da época do autor, explicado, fundamentalmente, pelo passado colonial. Os problemas do presente e que deveriam ser solucionados são considerados heranças do passado, isto é, apesar das mudanças verificadas, os problemas criados no passado ainda persistem. Por fim, a terceira parte trata do futuro, que se desenha a partir da solução dos problemas do presente. É verdade que, muitas vezes, ela se encontra subentendida. É o caso de Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado. Pelo título, percebese que seu objetivo era expor como o Brasil contemporâneo, ou seja, da época em que o livro foi publicado (1942), havia se constituído. Em função disso, estudou a colonização e o que ela produziu ao longo de três séculos. Assinalou que, depois, ao longo do período compreendido entre a Independência e a data da publicação do livro, o Brasil havia se modificado. Em virtude disso, definiu o Brasil contemporâneo dessa maneira: “O Brasil contemporâneo se define assim: o passado colonial que se
91 balanceia e encerra com o século XVIII, mais as transformações que se sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no atual” (PRADO JR., 1981, p. 10). Para Caio Prado, a colonização se caracterizava por ser uma produção voltada para o mercado externo. Segundo ele, esta característica ainda predominava em sua época, estando na base dos problemas que os brasileiros então enfrentavam. Esses problemas eram, portanto, aqueles que derivavam da maneira como a colonização do Brasil havia se processado, cujos caracteres ainda estavam presentes na economia brasileira do século XX. De seu ponto de vista, a grande questão era superar o caráter colonial da economia brasileira por meio do estabelecimento de uma economia nacional, processo que estaria em andamento. Por economia nacional, Caio Prado entende uma produção voltada para o mercado interno. O estabelecimento da economia nacional constituía, dessa maneira, uma tendência que vinha se desenvolvendo desde o início do século XIX, mas que somente em meados do XX se colocara como uma questão passível de solução. Estávamos, em sua opinião, em meados do século XX, atravessando a última etapa da transição da economia colonial para a economia nacional, processo que exigia uma intervenção política para se completar. Desse modo, a economia nacional seria o futuro do Brasil. Devemos, antes de tudo, atentar para um fato importante. Podemos supor que a forma como a colonização era compreendida determinava uma explicação do presente. Entretanto, ainda que nestes ensaios a questão apareça desta maneira, de fato, é o oposto que ocorre. Não é a interpretação do passado que condiciona o modo de conceber o presente. Antes, é o posicionamento político dos autores diante das questões da sua época, portanto, do presente, que os leva a conceber o passado, em nosso caso, a colonização, de determinada maneira. Com efeito, é a “solução” que os historiadores davam às questões do presente que os levava a considerar o passado de determinada maneira. Como bem observou o historiador francês François Guizot (2008, p. 56), o passado muda com o presente. Pretendia com isso afirmar que, de acordo com as questões do presente, o passado é encarado de determinada maneira. É o historiador, homem do seu tempo, com suas opções políticas, com sua visão de mundo, que, munido de questões colocadas por sua época, se volta para o passado e o analisa. Duas constatações devem ser feitas. Primeiro: alterando-se as questões do presente, surgindo outras, o modo de compreender o passado também se altera. Segundo: cada autor, colocando-se diante das questões do seu tempo de uma maneira determinada, considera, necessariamente, o passado de um modo próprio, em consonância com seu posicionamento político. Daí deriva o fato de, em uma
92 mesma época, se verificar várias concepções distintas do passado colonial. É que cada um dos historiadores tem uma compreensão distinta dos problemas do presente. Os autores do século XX até os anos 60, mais ou menos, com ênfase nos da primeira metade dessa centúria, que elaboraram verdadeiros ensaios, tinham em comum enfrentar uma questão fundamental da sua época: o socialismo como uma alternativa ao capitalismo e o marxismo como doutrina política. De forma explícita ou implícita, de maneira direta ou indireta, contra ou a favor, esses autores tiveram que lhe dar uma resposta. O ensaio, sob este aspecto, é uma forma bastante adequada para se fazer isto. Com efeito, diante da formulação que apontava o socialismo como o futuro da sociedade, isto é, como a forma de superação do capitalismo, os autores, contrários a ela, precisavam defender a tese de que a história do Brasil não caminhava em direção ao socialismo. Os autores fizeram isso de diferentes maneiras. Mas, qualquer que ela fosse, eles tinham que elaborar uma apreciação geral da história do Brasil, abarcando seu passado, presente e futuro, justamente com o objetivo de negar a tendência para o socialismo. Ou, ao menos, protelá-lo para um futuro distante, insistindo na necessidade de se atravessar algumas etapas intermediárias. O principal argumento desses autores eram as particularidades da história brasileira. Dito de outra maneira, eles afirmavam que as formulações que serviam para a Europa não eram adequadas ao Brasil justamente pelo fato deste possuir uma história que se diferenciava completamente da européia. O argumento é perfeitamente válido. No entanto, ele apenas servia para justificar uma interpretação da história que, sob o pretexto de fundar-se nas particularidades do país, introduzir uma visão reformista ou etapista da história. Afirmava-se, com isto, que o socialismo era algo a que se chegaria no futuro. Mas, antes,e era preciso percorrer algumas etapas ou proceder algumas reformas na sociedade. Consideremos alguns exemplos. Caio Prado Jr. já foi examinado neste livro como um autor que elaborou um ensaio justamente com o objetivo de oferecer uma interpretação da história brasileira que se contrapusesse à formulação de que o socialismo constituiria o futuro do país, ao menos o futuro imediato. Daí produzir uma interpretação da história do Brasil que postulava que o traço distintivo do processo histórico brasileiro era a constituição de uma economia nacional e não o estabelecimento de uma sociedade socialista. Economia
colonial/produção
voltada
para
o
mercado
externo
e
economia
nacional/produção voltada para o mercado interno eram os dois pólos entre os quais se moveria a história do Brasil. Como ele destacou, a transformação da economia colonial em economia nacional era o fio condutor ou a linha mestra da história do Brasil.
93 Outro exemplo é Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. São muitos os estudos sobre este autor e este capítulo não é o lugar para discuti-los. Assinalaremos apenas que Freyre defendia a ideia de que as relações entre senhores e escravos, que por suas características gerais eram extremamente duras, haviam sido atenuadas ou abrandadas no Brasil em função da família patriarcal e da experiência dos portugueses no trato com populações não-brancas desde as épocas da reconquista e expulsão dos mouros e da expansão marítima. A miscigenação teria sido uma conseqüência disso. Muitos autores criticaram Freyre, acusando-o de traçar um quadro idílico da escravidão brasileira. No entanto, não perceberam que seu intuito era bastante claro: pretendia, comparando a escravidão no Brasil e nos EUA e mostrando que no primeiro ela era mais branda do que no segundo, defender a tese que, entre nós, as lutas entre as raças e as classes constituíam um elemento exótico. Assim, enquanto nos EUA, pela forma como se verificara a escravidão, os conflitos sociais e raciais se justificavam, no Brasil não. Dito de outro modo, com a família patriarcal, a escravidão no Brasil não teria oposto as raças e as classes, mas, ao contrário, aproximara-as. Um dos autores de ensaio mais importante é Sérgio Buarque de Holanda com seu livro Raízes do Brasil. Nele, Holanda defende a idéia de que, com a colonização, instituições de Portugal se estabeleceram no Brasil. O processo de urbanização do país seria, a seu ver, a revolução que o Brasil estava atravessando no século XX e que, por conseguinte, superaria as instituições de origem ibérica que se encontravam estabelecidas no campo e obstaculizavam a modernização do país. A revolução não tinha, pois, caráter socialista. Por fim, fechando a parte relativa aos ensaios acerca da história do Brasil, temos Celso Furtado e sua Formação Econômica do Brasil (1982), publicada, pela primeira vez, em 1959. Como os autores anteriores foram tratados em outros capítulos, nos deteremos com mais vagar em Furtado, analisando sua obra, principalmente o modo como concebeu a colonização.
CELSO FURTADO, A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL E A QUESTÃO DA COLONIZAÇÃO Na introdução da obra Formação Econômica do Brasil, Furtado observa que pretendeu apenas fazer um esboço do processo histórico de formação da economia brasileira com vistas a destacar os problemas econômicos contemporâneos do Brasil (FURTADO, 1982, p. 1). Como se pode verificar, o autor pretendia, por meio de um
94 exame da história do Brasil, equacionar os problemas contemporâneos e lhes oferecer uma solução. Assinala, assim, que sua obra era um ensaio, alertando que se tratava somente de uma análise dos processos econômicos e não uma reconstituição dos eventos históricos que estariam por trás desses processos (FURTADO, 1982, p. 2), ou seja, não era, propriamente, um livro de história do Brasil. Furtado expõe o processo de ocupação e povoamento do Brasil, por meio da organização de uma empresa agrícola, seguindo bem de perto as formulações de Caio Prado. É verdade que, ao longo do trabalho, sem mencioná-las, ele critica algumas das teses deste autor. Furtado inicia com a observação de que a ocupação econômica das terras Américas constituiu um episódio da expansão comercial da Europa (FURTADO, 1982, p. 5). Prossegue afirmando que o início da ocupação econômica do território brasileiro tinha sido em boa medida uma conseqüência da pressão política exercida sobre Portugal e Espanha pelas demais nações européias (FURTADO, 1982, p. 6). Mas, na região que coube a Portugal com o Tratado de Tordesilhas não se havia encontrado metais preciosos e nem possuía qualquer produto que pudesse ser comerciado. Diante destas circunstâncias, Portugal teve que encontrar outra forma de utilização econômica das terras americanas que não a extração de metais preciosos. Somente assim seria possível, segundo o autor, cobrir os gastos de defesa dessas terras (FURTADO, 1982, p. 8). Ainda de acordo com Furtado, das medidas políticas que então foram tomadas resultou o início da exploração agrícola das terras brasileiras. Assim, como ele destacou, de simples empresa espoliativa e extrativa, a América passou a ser “(...) parte integrante da economia reprodutiva européia, cuja técnica e capitais nela se aplicam para criar de forma permanente um fluxo de bens destinados ao mercado europeu” (FURTADO, 1982, p. 8). Apesar do uso de uma linguagem econômica, não é difícil perceber que Furtado, seguindo Caio Prado, caracteriza a produção colonial como produção para o mercado externo. Não vamos seguir de maneira pormenorizada a análise que Furtado faz da economia colonial. Importa aqui, para os fins que temos em vista, destacar que ele fez uma apreciação da economia escravista indicando que seus lucros se davam, basicamente, na diferença entre o que exportava e o que importava. Como a renda se concentrava nas mãos dos empresários do açúcar, ou seja, dos senhores de engenho, fica a questão do destino da maior parte do lucro, já que, caso permanecesse nas mãos dos proprietários de terras e escravos, estes poderiam reaplicá-lo na produção, expandindo-a, o que não aconteceu. Para Furtado, a resposta estaria no fato de grande parte da renda criada na colônia ter se transferido para a metrópole.
95 Furtado dedica boa parte do seu estudo relativo ao período colonial à análise da economia açucareira após a invasão e expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro. Estes, de posse de conhecimentos de todos os aspectos técnicos e organizacionais da indústria açucareira, implantaram e desenvolveram na região do Caribe, aliados aos ingleses e franceses, uma indústria açucareira de grande escala concorrente da brasileira. Os produtores brasileiros perderam sua condição de quase monopólio no fornecimento de açúcar no mercado internacional. Os preços reduziramse à metade e persistiram neste patamar relativamente baixo durante todo o século XVIII (FURTADO, 1982, p. 17). Apesar da redução dos preços do açúcar, os empresários brasileiros fizeram o possível para manter um nível de produção relativamente elevado. A empresa açucareira, todavia, veria sua rentabilidade diminuir ainda mais com o surgimento da economia mineira, que fez os preços dos escravos e demais produtos se elevar. O sistema açucareiro entrou, então, em uma letargia secular. Todavia, ainda assim, sua estrutura foi preservada, mantendo-se intacta. Quando novas condições favoráveis surgiram, no começo do século XIX, a economia açucareira voltaria a funcionar com plena atividade (FURTADO, 1982, p. 53). Para Furtado, o Brasil somente começa a ingressar numa nova era com a economia cafeeira. Sua acumulação e demanda por manufaturados teria dado início à industrialização do Brasil. A abolição da escravatura e a utilização de mão-de-obra livre teriam contribuído para a formação de um mercado interno, até aquele momento de pouca expressão. As necessidades de consumo das fazendas eram, então, atendidas pelas atividades de subsistência localizadas nelas e pela importação. Com a mão de obra livre verifica-se uma monetarização das atividades econômicas, dando início ao mercado interno que, aos poucos, foi sendo atendido pela industrialização. Não vamos acompanhar sua análise desse processo. Cabe apenas indicar que, do seu ponto de vista, a condição primeira para se promover o desenvolvimento econômico do país seria a intervenção do Estado. Era necessário um Estado que orientasse, regulasse e, sobretudo, planejasse a economia. Bielschowsky, em obra relativa ao pensamento econômico brasileiro, assinalou algumas das linhas gerais que norteavam o pensamento de Furtado. Entre outras coisas, destacou que seu pensamento se pautava pela (...) defesa da liderança do Estado na promoção do desenvolvimento, através de investimentos em setores estratégicos e, sobretudo, do planejamento econômico. Furtado, assim como os demais economistas de sua linha de pensamento, não dispensava a contribuição do capital estrangeiro, desde que limitada a setores não estratégicos e submetida a controles. Sua conceituação da questão tem origem na idéia de que só
96 através da coordenação estatal seria possível internalizar os centros de decisão sobre os destinos da economia brasileira e romper com as relações de submissão ao comando tradicional dos países desenvolvidos; ou seja, só através de decidida ação estatal seria possível a emancipação econômica nacional (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 134).
A origem colonial da economia brasileira, o fato de o Brasil industrializar-se em meio a uma situação em que as grandes potências já se encontravam em um estágio avançado do capitalismo, fez com que Furtado afirmasse ser necessária uma teoria para promover o seu desenvolvimento, objeto das suas reflexões e obras. Para colocá-la em prática, havia a necessidade da intervenção do Estado. Sob certos aspectos, esta é a tese que defende ao longo dos seus textos.
A INTERPRETAÇÃO DA COLONIZAÇÃO DE FERNANDO A. NOVAIS Fernando A Novais (1933), autor de Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808) (1989), tese defendida em 1973 e publicada pela primeira vez em 1987, apresenta-se como uma espécie de discípulo de Caio Prado que teria aprofundado sua interpretação. É verdade que ele se vale, também, na construção de sua interpretação da colonização, de formulações de Celso Furtado. Mas, Caio Prado seria o autor de quem ele descenderia diretamente. Em diversas oportunidades, Novais (1933) tratou de sua relação com Caio Prado. Segundo ele, os limites da análise da colonização do Brasil deste autor estariam dados pelo fato de havê-la inserido na expansão comercial européia, considerando-a um capítulo da história do comércio europeu (PRADO JR., 1981, p. 22). Isto o teria levado a definir a colonização como a organização de uma produção destinada ao abastecimento do mercado europeu. Para Novais, este seria, no entanto, apenas o aspecto externo deste processo. De acordo com ele, a colonização somente poderia ser apreendida em toda a sua profundidade caso a inseríssemos em um contexto mais amplo do que a revolução comercial por que a Europa estava passando desde, ao menos, o século XIV. Este contexto seria a transição do feudalismo para o capitalismo. Em texto sobre Caio Prado (2005), publicado em 2000, Novais resume sua relação com a interpretação da colonização deste autor: E aqui vamos nos aproximando das possíveis limitações, que mesmo as obras mais penetrantes acabam por revelar. Se buscamos uma integração crítica das contribuições de Caio Prado Jr. que assimile suas análises procurando ao mesmo tempo avançar no conhecimento de nossa história, temos que nos debruçar sobre esse núcleo de seu estudo, questioná-lo, e tentar ir além. Nesse sentido, talvez se possa argüir que, no movimento de
97 inserção no conjunto, isto é, no esforço por apreender a categoria básica, sua análise se deteve ao meio do caminho. Trata-se de definir com precisão o que deve ser inserido, e em quê; e talvez o Brasil na expansão marítima européia seja um recorte que apanhe apenas algumas dimensões da realidade, não levando o olhar até a linha do horizonte; “Brasil”, é claro, não existia, senão como colônia, e é da colônia portuguesa que trata Caio Prado Jr.: a questão é saber se não seria preciso a consideração do conjunto do mundo colonial. Expansão comercial européia é, na realidade, a face mercantil de um processo mais profundo, a formação do capitalismo moderno; a questão é saber se não seria preciso procurar as articulações da exploração colonial com esse processo de transição feudal-capitalista. Desse modo, a análise, embora centrada numa região, seria sempre a análise do movimento em seu conjunto, buscando permanentemente articular o geral e o particular. A colonização não apareceria apenas na sua feição comercial, mas como um canal de acumulação primitiva de capital mercantil no centro do sistema. (...) Assim se reformularia e aprofundaria a visão de conjunto. Contudo, insistimos, esta é uma crítica que parte da análise de Caio Prado e a incorpora (NOVAIS, 2005, p, 288-289).
Novais expôs em diversas oportunidades sua concepção de colonização da era moderna. Uma das primeiras exposições foi em artigo intitulado “O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial” (NOVAIS, 1969), publicado pela primeira vez em 1968. A exposição mais desenvolvida encontra-se em Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (NOVAIS, 1989). De acordo com Novais, as colônias não tinham por objetivo simplesmente produzir para abastecer o mercado europeu. Este seria o aspecto aparente do processo colonial, o único captado por Caio Prado. Em virtude de compreender a colonização no interior de um processo mais amplo, o da transição do feudalismo para o capitalismo, Novais afirmou que as colônias tiveram um papel fundamental na constituição do capitalismo. Para Novais, para levar adiante a transição do feudalismo ao capitalismo foram necessários apoios externos, no caso, as colônias, que teriam funcionado como retaguardas econômicas destinadas a promover a acumulação primitiva do capital nas metrópoles. Assim, durante o Antigo Regime, fase intermediária entre a desagregação do feudalismo e a constituição do capitalismo, a burguesia comercial encontrava obstáculos de toda ordem para manter o ritmo de expansão das atividades. Derivaria disto, no plano econômico, a necessidade de apoios externos, as economias coloniais, para fomentar a acumulação de capital (NOVAIS, 1989, p. 66-67). Assim, a ultrapassagem do último e decisivo passo na instauração da ordem capitalista pressupunha uma ampla acumulação de capital nas mãos da camada empresária e uma expansão crescente do mercado consumidor de produtos manufaturados. Uma e outra foram obtidas por meio do sistema colonial. Desse modo, o sentido profundo da colonização não seria apenas, como pretendia Caio Prado, produzir para atender as
98 necessidades do mercado europeu. Antes, tratava-se de elemento constitutivo no processo de formação do capitalismo moderno (NOVAIS, 1989, p. 70). Para promover a acumulação primitiva de capital nas metrópoles estas contavam com o exclusivo metropolitano, ou seja, as colônias somente poderiam comerciar com suas metrópoles. Estas possuíam o monopólio para fazer o comércio com suas colônias, o exclusivo de comércio. O monopólio colonial constituía-se, por conseguinte, no mecanismo por excelência do sistema colonial, por meio do qual se operava a transferência da riqueza produzida na colônia para a metrópole. Assim, na medida em que as metrópoles detinham a exclusividade da compra dos produtos coloniais, os mercadores da mãe-pátria procuravam rebaixar o preço destes produtos ao ponto mais baixo possível, até o nível abaixo do qual seria impossível a continuação do processo produtivo. Por outro lado, quando se tratava da venda de produtos para as colônias, os mercadores tendiam a vendê-los o mais caro possível (NOVAIS, 1989, p. 91). Dessa maneira, este era o principal mecanismo por meio do qual os mercadores das metrópoles apropriavam-se dos lucros excedentes gerados nas economias coloniais. Verificava-se, assim, nas metrópoles, um acúmulo de riqueza, que era uma pré-condição para constituição do capitalismo. (NOVAIS, 1989, p. 92). No exame do modo como Novais concebe a colonização e, principalmente, na análise da sua relação com Caio Prado, precisamos fazer algumas considerações. A relação entre estes dois autores, em que Novais aparece como um discípulo que teria aprofundado a análise de Caio Prado, inserindo a colonização em um contexto mais amplo, constitui o modo como o primeiro se coloca nesta relação. Em outras palavras, trata-se de uma interpretação de Novais, comumente aceita, é verdade, pelos historiadores, mas se trata da maneira como Novais apresenta sua relação com Caio Prado. Resta saber se podemos considerar Caio Prado um autor que ficou no meio do caminho na análise da colonização, apreendendo apenas seus aspectos superficiais. Como foi visto, a interpretação da história do Brasil de Caio Prado abarca-a em sua totalidade. A maneira como concebe a colonização não pode ser desvinculada e, portanto, compreendida, sem levar em conta esta totalidade. Novais separou o modo como Caio Prado concebia a colonização da sua concepção global da história do Brasil. Em suma, transformou Caio Prado ensaísta em Caio Prado historiador da colonização. A formulação de Novais não apenas prejudica a compreensão de Caio Prado como um autor que tinha uma interpretação que abarcava o conjunto da história do Brasil como, ao defender a idéia de que este teria ficado a meio caminho na análise do
99 fenômeno colonial, coloca a necessidade de se aprofundar sua interpretação da colonização. É preciso, portanto, distinguir as duas interpretações, tratando-as como formulações independentes e com vida própria. Somente desta maneira poderemos apreender a concepção de colonização de cada um deles.
CIRO CARDOSO E A CRÍTICA À HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA
Ciro Flamarion Santana Cardoso (1942) é um dos mais expressivos críticos de Caio Prado e Fernando Novais. Em seus textos, critica ambos, especialmente o primeiro, afirmando que este teria dado um peso excessivo às relações entre metrópole e colônia, ao comércio exterior, em detrimento da análise das estruturas internas da colônia. De acordo com Cardoso, o fato de as colônias serem encaradas como se produzissem em função da economia européia, a qual lhes conferia sentido, prejudicava visivelmente a análise das estruturas internas. Em resposta à concepção de Caio Prado, que qualificou de obcecada pela plantation monocultora e exportadora, Cardoso ressalta a consistência interna e a relativa autonomia estrutural das sociedades coloniais. Antes de prosseguirmos, é preciso observar que existe um grande problema nas críticas que são feitas a Caio Prado e Fernando Novais, provenientes da aceitação da maneira como o segundo se colocou diante do primeiro. Com efeito, costuma-se tratá-los como se possuíssem a mesma formulação, o que, evidentemente, conduz a um equívoco. Como adiantamos, é preciso separar os dois autores e fazer, a cada um deles, a crítica apropriada. Caso contrário, comete-se o equívoco de se atribuir aos dois autores o que pertence, de fato, a um deles apenas. É comum, por exemplo, atribuir-se a Caio Prado a afirmação de que as colônias eram instrumento de acumulação primitiva de capital nas metrópoles, o que é específico de Novais. Ainda que não tenha feito afirmação desta natureza, Cardoso é um exemplo bastante expressivo da crítica que os trata de maneira conjunta. Entretanto, por mais incisivas que tenham sido as críticas de Cardoso, o fato é que, em última instância, elas não constituem uma completa negação da interpretação de colônia de Caio Prado. Ao contrário, ele se baseou nela em suas linhas gerais. Matizou-a, é verdade, mas não a desconsiderou nem a negou, ou seja, não formulou uma nova interpretação do sistema colonial que se contrapusesse à de Caio Prado. Para comprovar-se isso, basta verificar duas de suas obras, O trabalho na América Latina Colonial (1985) e Escravo ou camponês (1987). Na primeira, após ter tratado
100 da colonização na América como um processo que ocorreu no bojo das expansões marítima e comercial européias, inclusive citando Caio Prado, Cardoso define as economias coloniais fundamentalmente como zonas periféricas e dependentes, voltadas para o mercado mundial (1985, p. 19, 22 e 52). Na segunda, caracteriza as colônias como “(...) bem integradas ao mercado mundial como exportadoras de produtos primários” (1987, p. 59). Nessa maneira de ver está mantido o fundamento da interpretação de Caio Prado, isto é, a caracterização de colônia como produção voltada para o mercado externo. Entretanto, ainda que não tenha feito uma crítica radical a Caio Prado, nem formulado uma nova interpretação da colonização, rompendo este autor, Cardoso abriu caminho para novos estudos históricos que possibilitaram uma maneira distinta de encarar a história do Brasil. Na verdade, sua crítica estimulou estudos que, partindo de uma perspectiva distinta do quadro geral estabelecido por Caio Prado ou por Fernando Novais, baseando-se em uma farta documentação, buscaram descrever o quadro econômico e social da colônia, enfatizando as estruturas internas. Assim, dispostos a ir além da visão de Caio Prado, que afirmava que a sociedade brasileira era composta, essencialmente, pelos grandes proprietários e pelos escravos e que o restante da população formava uma massa amorfa e marginal, esta historiografia revelou que a economia brasileira era constituída por uma gama bastante variada de produtores. Desde os grandes aos pequenos proprietários, desde os grandes produtores vinculados ao mercado europeu até os pequenos produtores ligados ao mercado interno, desde os grandes proprietários de escravos aos médios, pequenos e até mesmo aos produtores que trabalhavam eles próprios, pois, não possuíam escravos, enfim, a existência destes revela uma enorme rede de produção e comércio em muitas partes do Brasil. Revelam, assim, uma sociedade e uma economia que, até então, pouco se suspeitava da sua existência. As críticas de Ciro Cardoso deram, portanto, ensejo a novos autores que, partindo delas, fizeram estudos sobre o Brasil colonial, principalmente, sobre o Rio de Janeiro de fins do século XVIII e início do XIX. Para seus autores, em virtude das suas conclusões, determinadas teses defendidas por Novais foram colocadas por terra. Em virtude do espaço disponível, trataremos apenas alguns autores.
OS DESDOBRAMENTOS DA CRÍTICA DE CIRO CARDOSO: UMA NOVA TENDÊNCIA HISTORIOGRÁFICA
101 A
nova
tendência
historiográfica
da
época
colonial,
que
partiu,
fundamentalmente, das críticas de Ciro Cardoso, pode ser dividida em dois momentos. O primeiro se caracteriza pelo surgimento de obras que tinham como objetivo primeiro contestar as formulações de Caio Prado e Fernando Novais. Dentre as obras deste primeiro momento destacam-se Homens de grossa aventura, de João Luis Fragoso, tese defendida em 1990 e publicada, em sua primeira versão, em 1991. Posteriormente, este autor publicou uma segunda edição, revista, em 1998; Em costas negras, de Manolo Florentino, tese defendida também em 1991 e publicada, em sua primeira versão, em 1995. Sua edição definitiva é de 1997. Ambos foram orientados por Ciro Cardoso. Além delas, temos o interessante estudo de B. J. Barickman, historiador americano, Um contraponto baiano, publicado em 2003, baseado em sua tese de doutorado defendida em 1990. Dentre as características marcantes deste momento da nova tendência historiográfica temos, em primeiro lugar, o exame do que se passava no interior da colônia, ou seja, a análise das estruturas internas da colônia, como havia proposto Ciro Cardoso. Estes exames chegaram a algumas conclusões, quais sejam:
1. Havia uma acumulação interna de capital, contrariando a tese de Fernando Novais, que afirmava que, por meio do exclusivo, a maior parte da riqueza produzida pela colônia era transferida para a metrópole. 2. A partir de determinado momento, o controle do tráfico de escravos passou a ser feito a partir da colônia, também contrariando tese de Fernando Novais, que afirmava que o tráfico era controlado a partir da metrópole. Aqui cabe ressaltar que o estudo abarcava a África, o Atlântico Sul, mas o foco era chamar a atenção para o grupo de comerciantes do Rio de Janeiro que, em finais do século XVIII e início do XIX, controlavam o tráfico de escravos a partir desta capitania, conseguindo, por conseguinte acumular capitais que eram empregados em outras atividades. 3. Havia um mercado interno de grande dimensão e uma rede de comércio bastante intensa, que alcançava o sertão, o sul do Brasil e mesmo a região do rio da Prata. O estudo de Barickman mostra que, no Recôncavo baiano, existia um grande número de produtores que abasteciam Salvador e os engenhos, promovendo um intenso comércio.
O segundo momento da nova tendência historiográfica caracteriza-se pelo alargamento do campo de estudo da época colonial. As pesquisas não se voltaram apenas para o interior da colônia, como até então fora feito, mas procuraram compreender a economia brasileira em um contexto mais amplo. Para tanto, dois
102 novos conceitos foram incorporados à análise histórica: Império português e Antigo Regime. Com a adoção do conceito de Império português, o universo da análise foi ampliado, compreendendo o Reino, a África, o Brasil e a Ásia. Várias obras, coletivas, expressam este novo momento, como Nas rotas do Império (2006), Conquistadores e negociantes (2007) e Nas tramas da rede (2010). Mas, o livro que melhor traduz este novo momento é O Antigo Regime nos trópicos, publicado em 2001, razão pela qual nos deteremos nele. Na Introdução, os organizadores deste livro explicam em que consiste a nova perspectiva historiográfica: Mais especificamente, seus autores discutem e analisam o “Brasil-Colônia” enquanto parte constitutiva do império ultramarino português. Propõem-se, ainda, a compreender a sociedade colonial e escravista na América enquanto uma sociedade marcada por regras econômicas, políticas e simbólicas de Antigo Regime (FRAGOSO, BICALHO E GOUVÊA, 2001,
p. 21).
Assim, o campo de estudo não é mais nem a relação entre Metrópole e Colônia, nem apenas o interior da Colônia, suas estruturas internas, mas o Império português, no qual aquela relação se acha compreendida. Ainda acerca do conceito de Império português, os organizadores do livro Nas rotas do Império assim comentam seu uso:
A utilização sistemática do conceito de império, em substituição a uma visão centrada unicamente na relação metrópole-colônia, pode ser considerada uma das principais transformações da historiografia brasileira nos últimos anos. Não se trata, é claro, do simples reconhecimento da existência de um império português, mas sim de sua incorporação efetiva como um dos mecanismos
explicativos
da
realidade
colonial
(FRAGOSO,
FLORENTINO, JUCÁ e CAMPOS, 2006, p. 9). O conceito Antigo Regime, utilizado pela nova tendência historiográfica, tem o intuito, entre outras coisas, de chamar a atenção para o fato de que as relações que se verificavam no Império português não constituírem simplesmente relações de natureza puramente econômica. Ao contrário, estavam “atravessadas” pela política. O elemento político era determinante nessa relação e a economia era subordinada a ele.
103 Do ponto de vista de seus autores, isto caracterizava, fundamentalmente, uma sociedade do Antigo Regime. Na Introdução de Conquistadores e Negociantes, intitulada “Cenas do Antigo Regime nos trópicos”, escrita pelos seus organizadores, lemos: Nosso interesse será analisar, inicialmente, a nobreza principal da terra e os negociantes de grosso trato. O primeiro segmento é entendido como o punhado de famílias que comandaram a conquista da América para a monarquia portuguesa e, entre outros agentes, foram os responsáveis pela organização da base produtiva (cana-de-açúcar, pecuária, lavras de ouro etc.) e do governo econômico da res publica. O segundo grupo compreende especialmente os empresários da mercancia estabelecidos na América, que combinavam a ascendência sobre rotas que podiam se estender do Mato Grosso ao Estado da Índia, com pretensões de hegemonia política sobre a sociedade. Esses sujeitos estavam envolvidos em ações que resultaram na geração de estratificações sociais e em acumulações de riqueza. Mais ainda, estavam envolvidos em um mercado que, por ser pré-industrial, não era regulado apenas pela oferta e procura, mas que se via continuamente influenciado por relações como as de parentesco e de matiz político. Assim, as trajetórias dos fidalgos da terra e dos negociantes são apenas o ponto de partida para o estudo de outros personagens atuantes na economia da chamada sociedade colonial (FRAGOSO, FLORENTINO, JUCÁ e
CAMPOS, 2007, p. 19-20. Grifos nossos). Para os autores da nova tendência historiográfica, o fato de se tratar de uma sociedade de Antigo Regime significa que a economia encontra-se a serviço da política. Em seu modo de ver, isto significa que o papel da economia é reiterar a hierarquia social. Ainda na Introdução de O Antigo Regime nos trópicos, seus organizadores assim explicam como vêem a relação entre política e economia numa sociedade de Antigo Regime: Cabe sublinhar que tais múltiplas ligações entre as diferentes partes submetidas à Coroa portuguesa não se esgotavam no comércio. Na verdade, a existência de um mercado imperial foi fundamental para a manutenção de estruturas sociais e econômicas tão distantes – e distintas -, como a ordem estamental e aristocrática no reino, o escravismo-colonial na América e as sociedades africanas fundadas no tráfico de cativos. Em suma, o Império não era tão-somente uma colcha de retalhos comerciais; ele dava vida, em graus distintos, às diversas sociedades que o constituíam. Essas conexões comerciais eram, sem dúvida, atravessadas pela política. Os negócios e mercados imperiais eram submetidos às regras do Antigo Regime; leia-se, entre outras coisas, ao complexo sistema de doações e de mercês régias. A expansão e a conquista de novos territórios permitiram à coroa portuguesa atribuir ofícios e cargos civis e militares, conceder privilégios comerciais a indivíduos e grupos, dispor de novos rendimentos com base nos quais se distribuíam pensões. Tais concessões eram o desdobramento de uma cadeia de poder e de redes de hierarquia que se estendiam desde o reino, propiciando a expansão dos interesses metropolitanos, estabelecendo vínculos estratégicos com os colonos
(FRAGOSO, BICALHO e GOUVÊA, 2001, p. 23).
104 Iniciamos o capítulo chamando a atenção para o fato de que, em sua grande maioria, os trabalhos da primeira metade do século XX sobre a história do Brasil possuíam a forma de ensaio. Igualmente destacamos que este formato não era gratuito, mas decorria do debate político que então se travava e cujo centro era a questão do socialismo. Disto derivava que não se poderia, simplesmente, procurar descrever nosso passado, principalmente o colonial. Era preciso, igualmente, indicar que o processo histórico brasileiro, pelas suas peculiaridades, não caminhava em direção ao socialismo, mas para outro ponto, variando-se este em função de cada autor. Com o fim do socialismo e, principalmente, deixando este de se constituir uma alternativa histórica, tornou-se desnecessário que as obras de história tivessem o caráter de ensaio. É verdade que muitos estudiosos lamentam que a historiografia brasileira tenha perdido esta compreensão mais geral e abrangente da história. A historiografia, no entanto, apenas expressa o que se passa na história. A partir de então, a historiografia deixou de se preocupar com as questões relacionadas com o socialismo e com o marxismo e passou a ser feita a partir de novas questões. Evidentemente, antes mesmo da derrocada do socialismo, a historiografia já tomava novos rumos. Isto ocorre porque, antes mesmo de 1990, o socialismo já dava sinais de exaustão, com a perestroika, a glasnost e o fim da Guerra Fria, apenas para citar alguns momentos decisivos. A historiografia sofreu, a partir de então, uma mudança significativa. Com o fim da necessidade de estudos abrangentes, compreensivos, que abarcassem o conjunto da história; pelo fato de não existir mais a preocupação em responder à questão do caminho que a história estava tomando, os historiadores passaram a tratar de novas questões que, a partir de então, se colocavam. A historiografia passou, então, a repercutir essas novas questões e os problemas do presente. Os historiadores da nova corrente historiográfica que examinamos têm consciência de que houve uma ruptura com o caráter ensaístico. Em um livro paradidático, intitulado A economia colonial brasileira (1998), seus autores observam que os estudos mais contemporâneos tenderiam “(...) a romper com a tradição ensaística da historiografia nacional” (FRAGOSO, FLORENTINO e FARIA, 1998, p. 2). É verdade que explicam esta nova tendência pela disseminação dos cursos de pós-graduação, iniciada na década de 70, que teria gerado inúmeras pesquisas de base. Todavia, a nosso ver, a explicação maior para a tendência ao estudo do passado sem enlaçá-lo ao presente encontra-se no fato de se tomar a sociedade vigente como o horizonte dessas pesquisas. Não existe nem uma proposta para a sua
105 transformação, nem uma reação a esta proposta. Com o desaparecimento da questão da transformação da sociedade, a forma ensaística perde sua razão de ser. A historiografia perde o fio condutor que, até então, era o que lhe dava direção. Na verdade, são variadas as tendências da historiografia contemporânea, mas abordamos apenas a que interessa mais de perto os estudos coloniais, justamente a que se propõe uma nova interpretação da época colonial.
CONCLUSÃO
Como conclusão, vamos elencar as principais características da nova tendência historiográfica brasileira no que diz respeito aos estudos sobre a colonização. Evidentemente, como se trata de um processo que se encontra em curso, todo cuidado é pouco. Tendências que julgamos marcantes podem não se manterem, ficando a meio caminho. Outras, que ainda não são suficientemente claras, e que não percebemos, podem se tornar vigorosas a partir de dado momento. Enfim, ao se tratar de tendências corre-se o risco de errar. Por isso, esta é apenas uma tentativa de captar um processo que se desdobra diante de nossos olhos.
1. Talvez a principal característica das tendências da historiografia seja o abandono da visão de conjunto da história, em que passado, presente e futuro estejam interligados e a adoção de uma história que busca traçar um quadro de nosso passado. Aliás, seus autores insistem que sua história superou o caráter ensaístico que marcou a historiografia brasileira durante décadas.
2. A segunda característica é a preferência por estudos localizados, regionais ou setorizados, abandonando-se a prática de se tratar do Brasil como um todo. Os estudos são circunscritos no espaço e no tempo, ainda que afirmem tratar do Império português.
3. Aliada a esta tendência, temos o fato de que esta historiografia alia o estudo de caso, a biografia, a situação particular, com formulações de cunho geral. Alguns textos iniciam com uma questão particular, uma biografia, para, em seguida, alçar para uma formulação de caráter mais geral.
4. A quarta característica é o deslocamento da produção para o comércio. Com efeito, nessa tendência há, visivelmente, o abandono da análise da produção pelo comércio;
106 da escravidão para o tráfico de escravos. Privilegia-se a circulação dos homens e das mercadorias. Não é casual que, nos títulos dos trabalhos encontremos, com muita freqüência, termos como rotas, redes e tramas, por exemplo. Além destes conceitos, outros que aparecem são circuitos e eixos mercantis, dinâmica imperial, política e negócios, elites, acumulação [mercantil] e hierarquia.
5. A quinta característica é que se trata de análises que são feitas rentes aos documentos, assumindo, por isso mesmo, um caráter bastante descritivo. Há, mesmo, uma valorização dos documentos e da pesquisa em arquivos. Trata-se de uma história baseada em farta documentação com o intuito de contrapor-se aos ensaios, acusados de generalistas e de serem realizados, muitas vezes, sem base em uma documentação suficientemente ampla para fundamentar as formulações feitas.
6. Por fim, a sexta característica, uma decorrência da primeira, é a maneira de se criticar e explicar a historiografia vigente. De um modo geral, a crítica é antes de natureza quantitativa do que qualitativa. Assim, a análise da historiografia vigente seria “insuficiente”, a nova tendência utilizaria procedimentos metodológicos “mais eficazes” e assim por diante.
REFERÊNCIAS
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107 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo & FARIA, Sheila de Castro. A economia colonial brasileira (séculos XVI-XIX). 3ª edição. São Paulo: Atual, 1998. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; JUCÁ, Antônio Carlos; CAMPOS, Adriana (orgs.). Nas rotas do Império: Eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória: Edufes; Lisboa: IICT, 2006. FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de e SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (orgs.). Conquistadores e Negociantes. História de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes. Política e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 18ª edição. São Paulo: Nacional, 1982. GUIZOT, François. A história das origens do governo representativo na Europa. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (17771808). 5ª edição. São Paulo: Hucitec, 1989. _______ O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. 2ª edição. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1969. _______ Sobre Caio Prado. In: Aproximações: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005. PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. Colônia. 17ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1981. SODRÉ, Nelson Werneck. Formação da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.
EXTRATO DE DOCUMENTOS PARA LEITURA COMPLEMENTAR Tratando do livro O Antigo Regime nos trópicos, seus organizadores fazem, na verdade, um resumo da nova tendência historiográfica sobre a época colonial:
108 Ele [o livro O Antigo Regime nos trópicos] é fruto de uma perspectiva historiográfica inovadora que vem surgindo e se impondo em teses de doutorado e em dissertações de mestrado, e sendo cada vez mais discutida em seminários acadêmicos e na própria sala de aula dos institutos e departamentos de história de nossas universidades. Dito de outra forma, os diferentes capítulos do nosso livro buscam apresentar uma nova abordagem de antigos temas de história portuguesa e colonial. Mais especificamente, seus autores discutem e analisam o “Brasil-Colônia” enquanto parte constitutiva do império ultramarino português. Propõem-se, ainda, a compreender a sociedade colonial e escravista na América enquanto uma sociedade marcada por regras econômicas, políticas e simbólicas de Antigo Regime. Em realidade, trata-se de propor uma nova leitura historiográfica que não se limite a interpretar o “Brasil-Colônia” por meio de suas relações econômicas com a Europa do mercantilismo, seja sublinhando sua posição periférica – e com isto privilegiando os antagonismos colonos versus metrópole – seja enfatizando o caráter único, singular e irredutível da sociedade colonialescravista. Evidentemente que não trata de negar a importância fundamental dessas abordagens para o entendimento da história do Brasil. O que este livro propõe de diferente é uma rediscussão – a partir de novos parâmetros conceituais e de novas perspectivas teóricas – de algumas teses acerca das relações econômicas e das práticas políticas, religiosas e administrativas imperiais. Ele busca responder a algumas questões que vêm sendo colocadas pelas pesquisas e pela experiência docente de seus autores: como desfazer uma interpretação fundada na irredutível dualidade econômica entre a metrópole e a colônia? Como esquecer que, ao lado dos – e, às vezes, simultaneamente aos – conflitos entre colonos e Coroa, inúmeras foram as negociações que estabeleceram e ajudaram a dar vida e estabilidade ao Império? Como tecer um novo ponto de vista, ou um novo arcabouço teórico e conceitual que, ao dar conta da lógica do poder no Antigo Regime, possa explicitar práticas e instituições presentes na sociedade colonial? (...) Este livro foi, portanto, concebido a partir de renovadas – porque algumas andava esquecidas – experiências de pesquisa, e do investimento em novas perspectivas teórico-metodológicas. Aos poucos, a partir de nossos próprios trabalhos, começamos a sentir a materialidade econômica, política e geográfica deste Império. Descobrimos que, além de escravos da Guiné e de Benguela, chegaram ao Brasil antigos soldados do Estado da Índia e ex-negociantes de
109 Angola, fixando-se na terra, tornando-se colonos. Reconstituindo a trajetória de alguns desses homens percebemos, de forma cada vez mais nítida, que o comércio de panos indianos foi, por muito tempo, peça fundamental no tráfico atlântico de escravos e no desenvolvimento das manufaturas no Reino. Constatamos, enfim, que os negócios de tecidos provenientes de Goa foram vitais para a produção material das relações sociais do Brasil escravista, assim como da economia de Portugal setecentista. Negócios que ligavam a América portuguesa, Angola e os vários espaços geográficos que formavam o Estado da Índia. Cabe sublinhar que tais múltiplas ligações entre as diferentes partes submetidas à Coroa portuguesa não se esgotavam no comércio. Na verdade, a existência de um mercado imperial foi fundamental para a manutenção de estruturas sociais e econômicas tão distantes – e distintas -, como a ordem estamental e aristocrática no reino, o escravismo-colonial na América e as sociedades africanas fundadas no tráfico de cativos. Em suma, o Império não era tão-somente uma colcha de retalhos comerciais; ele dava vida, em graus distintos, às diversas sociedades que o constituíam. Essas conexões comerciais eram, sem dúvida, atravessadas pela política. Os negócios e mercados imperiais eram submetidos às regras do Antigo Regime; leia-se, entre outras coisas, ao complexo sistema de doações e de mercês régias. A expansão e a conquista de novos territórios permitiram à coroa portuguesa atribuir ofícios e cargos civis e militares, conceder privilégios comerciais a indivíduos e grupos, dispor de novos rendimentos com base nos quais se distribuíam pensões. Tais concessões eram o desdobramento de uma cadeia de poder e de redes de hierarquia que se estendiam desde o reino, propiciando a expansão dos interesses metropolitanos, estabelecendo vínculos estratégicos com os colonos. Apesar de todas as diferenças políticas, econômicas, sociais, religiosas e culturais entre Malaca, Goa, Macau, Luanda e Rio de Janeiro, as práticas e instituições disseminadas a partir do reino – e descritas acima – acabaram resultando na formação de sociedades reguladas pela economia e pela cultura política do Antigo Regime português. Isto nos leva à constatação da existência de alguns mecanismos de enriquecimento e de mobilidade social presentes nos diferentes quadrantes do Império. Os indivíduos que foram para o ultramar levaram consigo uma cultura e uma experiência de vida baseadas na percepção de que o mundo, a “ordem natural das coisas” era hierarquizado; de que as pessoas, por suas “qualidade”
110 naturais e sociais, ocupavam posições distintas e desiguais na sociedade. Na América, assim como em outras partes do Império, esta visão seria reforçada pela idéia de conquista, pelas lutas contra o gentio e pela escravidão. Conquistas e lutas que, feitas em nome del Rey, deveriam ser recompensadas com mercês – títulos, ofícios e terras. Nada mais sonhado pelos “conquistadores” – em sua maioria homens provenientes de uma pequena fidalguia ou mesmo da “ralé” – do que a possibilidade de alargamento de seu cabedal material, social, político e simbólico. Mais uma vez o Novo Mundo – assim como vários outros territórios e domínios ultramarinos de Portugal – representava para aqueles homens a possibilidade de mudar de “qualidade”, de ingressar na nobreza da terra e, por conseguinte, de “mandar” em outros homens – e mulheres. Neste quadro herdado do Velho Mundo, a escravidão africana só iria reforçar uma hierarquia social transplantada para o ultramar; multiplicando-a, dando-lhes novas cores e novos matizes (FRAGOSO, BICALHO e GOUVÊA, 2001, p. 21-24).
FONTES E REFERENCIAIS PARA APROFUNDAMENTO TEÓRICO
Considerando o que foi apresentado da nova tendência historiográfica acerca da época colonial, escreva um texto comentando o seguinte trecho contido no livro Nas rotas do Império: Eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português:
A utilização sistemática do conceito de império, em substituição a uma visão centrada unicamente na relação metrópole-colônia, pode ser considerada uma das principais transformações da historiografia brasileira nos últimos anos. Não se trata, é claro, do simples reconhecimento da existência de um império português, mas sim de sua incorporação efetiva como um dos mecanismos explicativos da realidade colonial. O próprio conceito, porém, transformou-se. Longe de ser visto como um todo homogêneo comandado por uma poderosa metrópole, o Império português é hoje percebido como um conjunto heterogêneo de possessões ultramarinas, cuja relação com a metrópole variava não só conforme as conjunturas, mas também de acordo com os variados processos históricos que constituíram essas mesmas possessões.
111 Tais transformações obrigam o pesquisador a uma apreensão mais complexa do que foi esse “mundo português”. Em primeiro lugar, obriga-o a rever a antiga “metrópole”, cuja imagem tradicional de uma monarquia centralizada e absolutista está sendo substituída pela de variadas relações entre o poder central e os diversos poderes locais – em favor de uma percepção do caráter corporativo do poder numa sociedade de Antigo Regime. Em segundo lugar, o conceito de império obriga-nos a voltar nossa atenção para as demais possessões ultramarinas que o constituíam, sem as quais sabemos hoje não ser possível conhecer de fato a sociedade colonial brasileira. Entram em cena aqui as Ilhas Atlânticas, o Estado da Índia e, sobretudo, a África – fundamental para uma sociedade escravocrata como a brasileira. Sabe-se que quase dez milhões de africanos desembarcaram nas Américas (FRAGOSO, FLORENTINO, JUCÁ e CAMPOS, 2006, p. 9-10).