Licitacoes Na Celebracao De Contratos Internacionais

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APONTAMENTOS

SOBRE

OS

CONTRATOS

ADMINISTRATIVOS

INTERNACIONAIS E AS LICITAÇÕES INTERNACIONAIS NO CONTEXTO DO DIREITO BRASILEIRO

Rogério Roberto Gonçalves de Abreu1

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO – 2 NOÇÕES SOBRE CONTRATOS INTERNACIONAIS: 2.1 Notas introdutórias; 2.2 Conceito e caracterização dos contratos internacionais; 2.3 A formação dos contratos internacionais; 2.4 O problema do direito aplicável aos contratos internacionais; 2.5 Notas finais – 3 LICITAÇÕES; 3.1 Notas introdutórias; 3.2 Conceito; 3.3 Princípios e normas aplicáveis; 3.4 Disciplina da obrigatoriedade da licitação; 3.5 Hipóteses legais de não obrigatoriedade da licitação: 3.5.1 Licitação dispensável; 3.5.2 Licitação inexigível; 3.5.3 Licitação dispensada; 3.5.4 Licitação vedada; 3.6 Modalidades de licitação; 3.7 Contratação – 4 LICITAÇÕES NA CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS INTERNACIONAIS: 4.1 Contratos internacionais com o Estado brasileiro: notas introdutórias; 4.2 Contratos internacionais da Administração Pública e licitações internacionais; 4.3 O direito aplicável aos contratos celebrados pela Administração Pública; 4.4 Licitações internacionais – 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS – 6 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.

1 INTRODUÇÃO

A Administração Pública é constitucionalmente responsável pela obtenção de recursos financeiros no seio da sociedade e sua aplicação nos meios materiais que possam implementar a satisfação das necessidades dessa mesma sociedade. Como gestor do interesse público, deve a Administração celebrar contratos para a obtenção dos bens e serviços que lhe propiciarão o cumprimento de seu papel. Por vezes esses bens e serviços estritamente necessários não se encontram no mercado nacional. Surge a necessidade de buscá-los junto a fornecedores 1

Mestre em direito econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em direito fiscal e tributário pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Juiz federal substituto na Paraíba. Professor de direito penal do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).

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sediados no território de outros países e, portanto, submetidos, em suas relações jurídicas cotidianas, a ordenamentos jurídicos diversos. Sendo necessária a contratação para a implementação daqueles objetivos do Estado, não pode este se furtar à realização dos negócios jurídicos pertinentes. Nesse contexto, surge a necessidade de examinar o contrato como fenômeno de grande utilização e repercussão no plano internacional. Se as relações decorrentes de sua celebração não encontram maiores dificuldades quando todas as variáveis aplicáveis são regidas por um só ordenamento jurídico, com a mudança de perspectiva novos desafios surgem automaticamente. Sendo o contrato administrativo expressão do poder do Estado, como compatibilizá-lo com a necessidade de vincular agentes estranhos ao ordenamento jurídico brasileiro? Tal questão admite vários pontos de vista, mas a preocupação do presente trabalho é examinar o problema sob um aspecto prático e assim procurar resolvê-lo. Não sendo possível à Administração Pública escolher livremente aquele com quem irá contratar – já que a ela não se aplica os princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual como ocorre com os sujeitos privados –, surge a necessidade de estudar a licitação pública no contexto da celebração de um contrato internacional. Contrato administrativo internacional e licitação internacional são conceitos que se imbricam e demandam especial atenção. A licitação internacional, de sua parte, ocupa a última e mais importante parte do presente trabalho, juntamente com o estudo dos contratos internacionais da Administração Pública. Sem aprofundamentos (que podem ser obtidos a partir da consulta a obras de maior densidade na temática das licitações internacionais e dos contratos internacionais), procurar-se-á conferir, quanto possível, uma visão crítica sobre as normas que disciplinam esses temas jurídicos no direito positivo atual. Todos esses temas hão de ser abordados no presente trabalho, que se pretende apenas um ponto de partida para pesquisas mais profundas sobre o tema.

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2 NOÇÕES SOBRE CONTRATOS INTERNACIONAIS

2.1 Notas introdutórias

A intensificação do comércio entre nacionais sediados em países diversos tem incrementado vertiginosamente a importância dos contratos. Na busca pelos bens e serviços que lhes satisfaçam as necessidades, sempre crescentes, os sujeitos do comércio internacional depositam nos contratos a regulamentação de seus respectivos interesses jurídicos. Pode-se conceituar contrato como sendo um acordo lícito de duas ou mais vontades para a regulamentação de interesses privados, tendo por objetivo a aquisição, modificação ou extinção de relações jurídicas. Celebrados sob o pálio de determinado ordenamento jurídico, os contratos regem-se pela disciplina normativa que ditos ordenamentos assim predispuserem. Dessa forma, a licitude dos contratos celebrados exclusivamente nos limites jurídicos de determinada legislação depende da conformação da manifestação da vontade às normas existentes. O quadro não se mostra tão simples, por exemplo, quando pessoas domiciliadas em países diversos almejam o disciplinamento de determinada relação jurídica através da celebração de um contrato. O primeiro problema que aparece é a necessidade de enquadrar-se dito contrato como nacional ou internacional. Para os contratos ditos nacionais, vale todo o arcabouço normativo e principiológico existente naquele Estado, aplicável aos negócios jurídicos realizados em suas fronteiras. Classificado que seja o contrato como internacional – e sendo assim superado o problema da caracterização –, deverá descobrir-se qual o direito positivo a ele aplicável, e mesmo se algum direito positivo, integral ou parcialmente, haverá de lhe ser aplicável. Essa afirmação ganha sentido quando colocada ao lado do seguinte questionamento: poderiam as partes simplesmente fugir à aplicação de qualquer ordenamento jurídico, estipulando suas próprias regras?

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Tudo isso gira em torno da necessidade de se conhecer com a máxima precisão os limites da autonomia da vontade. Partindo-se do pressuposto de que não será, nem poderá ser, absoluta e irrestrita, ainda assim assume grande relevo a descoberta de seus limites para apurar-se quais regras podem ser criadas e (o mais importante) quais podem ser afastadas por livre vontade das partes. Em busca de melhores lineamentos para o estudo das licitações internacionais, pretende-se cuidar, no presente tópico, de questões relacionadas aos contratos internacionais e, se possível, responder a algumas das mais interessantes provocações acima apresentadas, sempre sem a intenção de exaurir e concluir o tema.

2.2 Conceito e caracterização dos contratos internacionais

Um dos problemas hoje enfrentados no estudo dos contratos está em sua classificação como contrato internacional. Uma constatação preliminar que se deve apresentar é que os contratos internacionais aumentam em freqüência e importância na mesma medida em que o próprio comércio exterior se torna mais ágil, fácil e seguro. A modernização dos transportes, a difusão da cultura, o aumento vertiginoso da tecnologia da informação e a internet contribuem para o patente incremento das relações internacionais de natureza comercial. Para a caracterização dos contratos internacionais, por uma questão de método, deve-se eleger um ponto de partida. Sendo assim, as variáveis possíveis deverão ser buscadas nos elementos do próprio contrato examinado a fim de apurar-se se de um contrato nacional ou internacional se trata. Constituindo-se de elementos objetivos, subjetivos e formais, é principalmente nos dois primeiros que se devem procurar os critérios mais adequados ao exame que se propõe. Constituem os elementos subjetivos básicos dos contratos as respectivas partes contratantes. Surge a pergunta: de acordo com esse critério, quando poderá ser internacional o contrato? Eis algumas proposições: a) quando as partes forem

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nacionais de Estados diversos; b) quando as partes forem residentes em Estados diversos; c) quando as partes forem domiciliadas em Estados diversos. Quanto ao elemento objetivo dos contratos, tem-se que seu objeto material pode ser classificado de diversas maneiras. Em princípio, sendo o contrato uma forma criadora de vínculos obrigacionais, seu objeto poderá ser classificado de acordo com a obrigação imposta às partes: obrigação de dar, fazer e não fazer. O objeto em si, na prática, poderá ser representado por bens (materiais e imateriais) e serviços. Tais objetos ganham importância para a natureza internacional dos contratos quando, de acordo com a avença, tiverem que ser transportados de um Estado para outro. Na

verdade,

partindo-se

dos

dados

acima,

pode-se

caracterizar

determinado contrato como internacional na medida em que apareçam dois ou mais ordenamentos jurídicos nacionais como aplicáveis ao disciplinamento de um ou mais elementos de constituição do vínculo contratual. Por outras palavras, desde que mais de um ordenamento estatal seja aplicável ao contrato, este poderá ser classificado como contrato internacional. Tal situação pode ocorrer, por exemplo, quando pessoas domiciliadas em Estados diversos pretendem realizar determinado contrato de compra e venda de bens situados em um Estado, para entrega em outro Estado. Segundo o direito positivo brasileiro, a capacidade para a prática dos atos da vida civil, inclusive os contratos, rege-se pela lei do país em que for domiciliada a pessoa do contratante2. Sendo assim, imaginando-se determinada pessoa que aos vinte anos de idade seja civilmente incapaz segundo a lei de seu domicílio, ainda que segundo a lei brasileira fosse capaz, não poderia celebrar validamente um contrato regido pelo direito positivo brasileiro. Da mesma forma, se o ordenamento jurídico do domicílio do contratante contiver previsão de sua capacidade civil aos 16 anos de idade, esta deverá ser respeitada, ainda que, nos termos da lei brasileira, fosse necessária a assistência (forma de suprimento da incapacidade relativa) pelo respectivo responsável. 2

Decreto-Lei n. 4657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil), art. 7º, caput.

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Já no que atine ao objeto do contrato firmado, devendo ser remetido de um Estado para outro em cumprimento à obrigação pactuada, sobre esta deverão incidir (especificamente em sua execução) pelo menos os ordenamentos jurídicos dos países de origem e destino desses bens. É curioso, mas pode-se notar claramente que a caracterização do contrato internacional passa necessariamente pela averiguação da aplicação de normas previstas no direito interno de cada país. Sendo assim, seu enquadramento se converte em matéria afeta ao direito positivo interno que, como é óbvio, não precisa adotar critérios uniformes aos dos demais países. Por isso mesmo haverá situações em que o contrato seja considerado internacional para um contratante e nacional para o outro, segundo as leis de seus respectivos ordenamentos jurídicos internos. Na obra Direito do Comércio Internacional: aspectos fundamentais, coordenada por Antônio Carlos Rodrigues do Amaral, vê-se que:

Por mais paradoxal que possa parecer, como a caracterização de um contrato internacional é feita a partir de uma perspectiva interna, cada país adota seus próprios critérios de interpretação, sendo assim, o que num país pode ser um contrato internacional, pode não o ser em outro país.3

Na mesma linha do que se vem de expor, apresenta a citada obra uma simples e eficiente definição do que sejam contratos internacionais:

É no contexto desta busca por critérios mais maleáveis que se desenvolveu uma visão estritamente jurídica, a qual, por sua flexibilidade, ainda é usada nos dias de hoje. Define-se, assim, contrato internacional como aquele acordo de vontades que está potencialmente sujeito a dois ou mais sistemas jurídicos.4

3

AMARAL, Antônio Carlos Rodrigues do (Coord.). Direito do comércio internacional: aspectos fundamentais. São Paulo: Aduaneiras, 2004. 395p. p.217. 4 Ibidem. p.218.

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O contrato pode se sujeitar às normas de ordenamentos jurídicos distintos desde que elementos seus sejam regidos por normas contidas no direito positivo de mais de um país. Tais elementos se apresentariam como critérios relevantes para a definição da natureza internacional do contrato em que se inserem, diversamente de outros elementos, não regidos por qualquer ordenamento ou regidos todos pelo direito de um só Estado. Daí que o domicílio das partes, apresentado acima como critério para averiguação da capacidade civil dos contratantes, assume a feição de um importante dado a ser considerado. Em contrário, a residência dos contraentes não possui, a princípio, qualquer valor jurídico, vez que o ordenamento jurídico brasileiro a ele não confere qualquer importância (ressalve-se a possibilidade de a lei nacional do contratante estrangeiro qualificar a residência como critério jurídico relevante). O contrato será internacional, portanto, se os elementos essenciais integrantes da avença forem regidos pelo ordenamento jurídico de mais de um Estado, de modo que não se possa aplicar, na disciplina do contrato, o ordenamento jurídico de apenas um Estado. A caracterização do contrato como internacional conduz, em seguida, à questão de saber qual ordenamento jurídico haverá de reger as relações ali pactuadas. Antes, porém, de enfrentar esse palpitante tema, é necessário tecer alguns comentários sobre a formação dos contratos e o papel desempenhado pelo princípio da autonomia da vontade. Este será o assunto do tópico seguinte.

2.3 A formação dos contratos internacionais

Na disciplina da formação dos contratos, o princípio da autonomia da vontade sempre desempenhou um papel dos mais relevantes. É por força desse princípio que as partes contratantes detêm a liberdade contratual em seus mais amplos termos: liberdade de contratar, liberdade de não contratar, liberdade de escolher aquilo que se quer contratar. Baseado nas regras principiológicas e

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jurídico-positivas que garantem o direito à liberdade, o princípio em questão encontra seus limites apenas nas regras que, por disciplinarem questões de interesse público, são havidas como cogentes e, portanto, inderrogáveis pela vontade das partes. As demais, regras dispositivas por excelência, aplicam-se apenas no silêncio do contrato. O contrato tem a importante função de estabelecer os vínculos jurídicos que garantam o cumprimento das obrigações pactuadas, servindo às partes como instrumento para o regramento de seus próprios interesses. Como se falou acima, tratando-se de contrato internacional, podem as partes ser domiciliadas em Estados diferentes, cada qual com seu ordenamento jurídico aplicável aos contratos em sua formação. Dentre as regras de direito positivo aplicáveis aos contratos encontram-se aquelas que tratam de sua constituição. Considerando-se a contratação entre ausentes – como sendo aquela em que as partes não se encontram no mesmo município –, quando se considera efetivamente perfectibilizada a avença? No caso do direito brasileiro, segundo o art. 434 do Código Civil, os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde o momento em que a aceitação é expedida. Poderia o legislador ter adotado orientação diversa, escolhendo o momento da recepção da aceitação ou de seu conhecimento pelo proponente. Disso resulta que o momento de formação dos contratos internacionais assume a feição de um sério problema quando as normas internas possuírem disciplina diversa acerca do momento de consolidação do contrato. Imaginando-se que o ordenamento jurídico do proponente considere concluída a avença no momento da expedição da aceitação e o ordenamento do aceitante assim considere no momento da recepção da aceitação, ter-se-á que entre a emissão e a recepção da mensagem de aceitação o contrato será existente para o primeiro contratante e inexistente para o segundo. Dessa situação podem surgir inúmeras controvérsias jurídicas. Uma solução bastante conformadora seria a enunciação expressa, no próprio contrato (precisamente na proposta encaminhada ao aceitante para exame), do direito aplicável à disciplina do objeto contratual, inclusive no que diz respeito ao

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momento de formação do vínculo contratual. A gênese contratual, portanto, viria a se reger pelo direito apontado no próprio instrumento contratual. Quando o instrumento do contrato não dispuser sobre o direito nacional aplicável, a questão se complica seriamente e sua solução dependerá, no final, da resolução de um importante problema: descobrir-se qual será, segundo os possíveis elementos de conexão aplicáveis ao caso concreto, o ordenamento jurídico que deverá reger o contrato em sua formação e execução. Nem sempre fácil, a solução não pode ser dada aprioristicamente e, dada sua particular importância, consiste o objeto a ser discutido no próximo tópico. Outra questão sobre a formação dos contratos internacionais é que, por vezes, sua constituição dependerá de um ato de aprovação governamental. É o que ocorre no Brasil para o caso dos contratos de transferência de tecnologia, que devem ser previamente registrados no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPE) como condição de eficácia e autorização de remessa ao exterior dos valores referentes ao respectivo pagamento, feito por contratante domiciliado no Brasil5. Por fim, é de se registrar que, uma vez ultimados os termos contratuais, passa a viger de forma plena (salvo a existência de termos ou condições suspensivas), disciplinando as relações ali constantes no trato jurídico das partes. Algumas vezes a negativa arbitrária em aperfeiçoar o contrato quando vencida a fase de negociações pode levar o faltoso a ser responsabilizado por danos précontratuais, especialmente quando se comprovar a realização de despesas acessórias à formação do vínculo contratual então frustrado.

2.4 O problema do direito aplicável aos contratos internacionais

Retomando a questão do direito aplicável aos contratos internacionais, a primeira questão que se deve enfrentar diz respeito à possibilidade ou não de os 5

MAGALHÃES, José Carlos de. Direito econômico internacional: tendências e perspectivas. Curitiba: Juruá, 2005.

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contratantes elegerem, de acordo com o princípio da autonomia da vontade, o sistema jurídico normativo de sua preferência para a regência integral dos ditames da avença. Em termos mais simples, trata-se de responder a seguinte pergunta: podem os contratantes definir qual sistema jurídico nacional se aplicará ao contrato, com prejuízo de todos os demais? Há doutrinadores que defendem a tese de não ser possível tal deliberação. Constituindo-se a obrigação em determinado lugar, seria aplicável a lei do lugar da constituição (para uns) ou da execução (para outros). O problema do direito aplicável ao contrato internacional não poderia ser resolvido pela iniciativa das partes por se tratar de questão de ordem pública e, assim, vedada à livre e discricionária disposição dos contratantes. Essa solução, contudo, não atende às necessidades das contratações internacionais. Casos haverá em que os contratantes não terão qualquer ligação efetiva e relevante com o local da contratação e, desse modo, a aplicação do direito ali vigente viria turbar o real sentido dos contratos: a viabilização do comércio jurídico e da circulação voluntária de riquezas. Desse modo, é visivelmente conveniente à sistemática dos contratos internacionais e à sua difusão como instrumento a serviço do incremento das relações comerciais que as partes possam voluntariamente eleger o direito que esperam ver aplicado à disciplina do contrato celebrado. Não é que a autonomia da vontade seja, no caso, absoluta. Já se tornou lugar comum dizer que, no mundo jurídico, não existem regras, princípios, direitos e deveres de caráter absoluto. A idéia é demonstrar que a eleição do ordenamento jurídico aplicável, dadas as peculiaridades do contrato, encontra-se em plena sintonia, não apenas com a autonomia da vontade, mas com seus respectivos limites. Por esse motivo, é de se admitir, em regra, cláusula contratual que indique o direito positivo aplicável na solução das controvérsias relacionadas ao contrato, seja em sua formação, seja em sua execução, respeitadas sempre as normas de ordem pública relativas aos Estados cujos ordenamentos jurídicos se aplicarem, de alguma forma, ao contrato.

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O segundo problema está na definição de qual deva ser o direito aplicável a determinado contrato quando as partes não elegerem qualquer ordenamento jurídico como base para a resolução das questões supervenientes. Assim, no silêncio do contrato quanto ao direito interno aplicável, qual deverá prevalecer? O art. 9.º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n. 4657/42) prescreve que, em caso de superposição de ordenamentos jurídicos aplicáveis na disciplina das obrigações, prevalece a lei do país em que se constituírem (caput), sendo que as obrigações decorrentes de contrato (no que lhes disser respeito) consideram-se constituídas no lugar em que residir o proponente (§ 2.º). Isso, como é óbvio, no silêncio do contrato. A doutrina majoritária considera aplicável a lei do lugar em que será executada a obrigação imposta pelo contrato. A solução, de fato, não é sem razão. Considerando-se que o poder judiciário do lugar em que deverá ser executada a obrigação poderá vir a ser chamado para compelir o devedor ao pagamento, certamente que seus órgãos, detentores do monopólio da coação, terão a primazia na decisão sobre a escolha da lei aplicável. Assim têm decidido diversos tribunais ingleses e americanos.6 Uma outra questão diz respeito à aplicação da chamada lex mercatoria aos contratos internacionais para os quais não haja a previsão de aplicação de um específico ordenamento jurídico, bem como nos casos em que as partes, deliberadamente, pretendam fugir a qualquer ordenamento jurídico específico. Antes de mais nada, é oportuno conceituar lex mercatoria. Esta seria um conjunto de princípios e regras nascidos na prática diuturna dos agentes do comércio exterior, de modo que se trata de um típico ordenamento costumeiro, não legislado. Trata-se de um conjunto de regras cuja eficácia é naturalmente reconhecida pelos atores participantes do cenário de que se compõe o comércio internacional. A doutrina aponta que a segunda situação não é admitida no cenário internacional, sendo forte a orientação jurisprudencial no sentido de que os contratos 6

MAGALHÃES, José Carlos de. Direito econômico internacional: tendências e perspectivas. Curitiba: Juruá, 2005. p.280.

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celebrados entre particulares devem se vincular, necessariamente, a um ordenamento jurídico nacional. Já no caso da primeira situação, embora exista discordância na doutrina, não parece que seja vedada aos agentes do comércio internacional a utilização de tais princípios, especialmente quando em supressão de lacunas do contrato e do direito interno aplicável, eleito ou não pelos contratantes. Uma última questão se refere à possibilidade de estabelecer, para cláusulas contratuais diferentes constantes de um mesmo contrato internacional, a aplicação de normas integrantes de ordenamentos jurídicos nacionais diversos. Haveria um fracionamento da disciplina contratual e a distribuição da regência a ordenamentos jurídicos distintos. O problema perde muito sua força quando se atenta para o fato de que, ressalvada a circunstância de determinada cláusula violar preceitos aplicáveis de ordem pública, quaisquer normas predispostas no contrato podem assumir a contextura de disposição contratual. Em outras palavras, podendo a parte dizer que determinado aspecto será regulado pela lei X do país Y, poderia também, simplesmente, transcrever a norma no contrato (convertendo-a em uma cláusula), evitando questionamentos sobre a superposição de ordens jurídicas. Ao fim e ao cabo, será suficiente aos contratantes elegerem um ordenamento jurídico para a disciplina básica do contrato e, quanto ao mais, dispor sobre as regras específicas que pretendem sejam aplicadas, desde, repita-se, que não violem normas de ordem pública de ordenamento jurídico com aplicação obrigatória.

2.5 Notas finais

O estudo dos contratos internacionais suscita grandes e acirradas controvérsias. Infelizmente, os limites de tempo e espaço do presente trabalho não permitem um aprofundamento na questão. Por enquanto, presume-se que os

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lineamentos básicos trazidos acima poderão viabilizar uma satisfatória compreensão do universo em que se insere o tema central do presente trabalho. Vistos os contratos internacionais em suas balizas genéricas, o próximo passo é estudar um pouco da disciplina jurídico-normativa aplicada às licitações públicas no direito brasileiro. Este é o assunto do capítulo adiante.

3 LICITAÇÕES

3.1 Notas introdutórias

Encarregado de promover o bem comum e satisfazer as necessidades públicas, o Estado se vê envolvido na tarefa de adquirir bens e serviços, celebrando contratos com particulares. A formalização de tais contratos, ao contrário do que ocorre na vida privada, não é deixada à livre disposição do administrador público. Condiciona-se à obediência de uma série de princípios e normas, inclusive de envergadura constitucional, tornando por vezes árduo e problemático o caminho até a realização dos acordos de vontades. Como parte da atividade administrativa de satisfação das necessidades públicas, a celebração dos contratos administrativos deve obedecer aos princípios constitucionais fundamentais aplicáveis à Administração Pública em suas três esferas de governo, bem como aos princípios constitucionais setoriais dispersos no texto constitucional. Esses princípios, particularmente examinados em tópico adiante, cristalizam os dois mais destacados objetivos que inspiram o procedimento preliminar de contratação com o poder público: a garantia de isonomia entre os interessados e a seleção da melhor proposta para a Administração (Lei n. 8.666/93, art. 3.º, caput). Esse

procedimento

prévio

de

seleção

da

melhor

proposta,

cuja

obrigatoriedade encontra raízes com fundo constitucional, é denominado, no direito

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positivo brasileiro, de licitação. Através dele, o órgão ou entidade integrante da Administração Pública abre a todos os interessados a chance de apresentar propostas relacionadas a um objeto contratual previamente definido, selecionando aquela que, atendendo a todas as exigências previstas na lei e no edital, represente a melhor proposta dentre as perfeitamente exeqüíveis. O presente tópico tem a finalidade de trazer algumas notas essenciais à compreensão do fenômeno da licitação pública, seu conceito, seus princípios e regras

aplicáveis

e

suas

modalidades

legalmente

previstas.

Um

maior

aprofundamento no tema demandaria tempo e espaço que os limites do presente trabalho não comportam.

3.2 Conceito

A licitação, em termos simples, é um processo administrativo de natureza formal, preliminar à celebração de um contrato pela Administração Pública com potenciais interessados, objetivando garantir a isonomia entre todos os proponentes e selecionar a melhor proposta para a Administração. Destaca-se no conceito de licitação a característica de representar um processo administrativo. A maioria dos autores conceitua a licitação partindo da idéia de procedimento administrativo. O procedimento administrativo, contudo, representa o rito de que se utiliza o processo como método estatal de exercício da função pública (no caso, executiva). Melhor falar, portanto, em processo administrativo, dando-se o devido relevo ao aspecto de servir a licitação como instrumento de atuação estatal, e não uma simples sucessão de atos vinculados objetivando a prática de um ato final. Nesse sentido, impossível concordar com Hely Lopes Meirelles quando, em seu Direito Administrativo Brasileiro, afirma:

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O processo, portanto, pode realizar-se por diferentes procedimentos, consoante a natureza da questão a decidir e os objetivos da decisão. Observamos, ainda, que não há processo sem procedimento, mas há procedimentos administrativos que não constituem processo, como, p. ex., os de licitações e concursos. O que caracteriza o processo é o ordenamento de atos para a solução de uma controvérsia; o que tipifica o procedimento de um processo é o modo específico do ordenamento desses atos (grifos no original)7.

Pensar o processo exclusivamente como método de resolução de controvérsias é negar sua utilização como forma de exercício da função administrativa. Significa reduzir, por outro lado, a eficácia do art. 5.º, LV, da Constituição Federal de 1988, quando dispõe que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” Basta atentar para a circunstância de que, se a licitação e o concurso público fossem mesmo simples procedimentos administrativos (e não processos), então aos licitantes e candidatos não se aplicaria a garantia do contraditório e da ampla defesa nos casos em que direitos seus fossem questionados. Também não encontraria aplicação a cláusula do devido processo legal (CF, art. 5.º, LIV). A objeção de que tais garantias constitucionais seriam aplicáveis a partir do momento em que surgisse a controvérsia leva ao absurdo de aceitar-se a tese de que o procedimento se converteria, ulterior e parcialmente, em processo quando algum ato do “procedimento” fosse questionado na licitação ou no concurso. Não explica, por outro lado, de onde surgiria o direito ao início da controvérsia, se não especificamente das garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. Deve-se afastar definitivamente a idéia de limitar o “processo” à função jurisdicional e o “procedimento” à função executiva. Na verdade, o processo – que se revela através de ritos processuais, ou seja, de procedimentos – é o instrumento constitucional de atuação do poder, seja no exercício da função executiva, legislativa ou judiciária. Daí a irrestrita abrangência das garantias do contraditório, da ampla 7

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2000. 766p. p. 628.

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defesa e do devido processo legal em suas vertentes substantiva e adjetiva, não importando se o processo é conduzido por órgão do poder (função) executivo, legislativo ou judiciário.

3.3 Princípios e normas aplicáveis

A Constituição Federal de 1988 traz, em seu art. 37, caput, as bases principiológicas da Administração Pública brasileira em todos os seus níveis estatais. Aplicam-se

à

Administração

os

princípios

da

legalidade,

impessoalidade,

moralidade, publicidade e eficiência, bem como os princípios e regras disseminados nos incisos e parágrafos do mesmo artigo e artigos seguintes. Cada órgão ou entidade que desempenhe a função administrativa, seja como titular ou executor, deve seguir fielmente os princípios fundamentais previstos no art. 37 da CF. Afora os princípios fundamentais, de aplicação genérica à Administração Pública, há princípios que disciplinam especificamente o processo de licitação. Alguns são tidos como expressos; outros, pela ausência de previsão e pela geral aceitação de sua aplicação, são denominados de princípios implícitos da licitação. A professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro8, citando vários autores, traz referências de um sem-número de princípios aplicáveis à licitação, dentre os quais: livre concorrência e igualdade entre os concorrentes (José Roberto Dromi); igualdade de todos frente à Administração e o estrito cumprimento do edital (Sayaguéz Laso); igualdade, publicidade e rigorosa observância das condições do edital (Adilson de Abreu Dallari). A esses, Celso Antônio Bandeira de Mello acrescenta os princípios da possibilidade do disputante fiscalizar o atendimento dos princípios anteriores. Na seara do direito positivo, deve-se buscar na Constituição Federal de 1988 a disciplina fundamental em matéria de licitação. Em seu art. 37, XXI, diz a CF/88:

8

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003. 728p. p. 302.

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XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

A lei a que se refere o dispositivo constitucional é a Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993 (e alterações posteriores), que “regulamenta o art. 37, XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências”, sucessora dos Decretos-Leis n. 200, de 25 de fevereiro de 1967, e n. 2.300, de 21 de novembro de 1986. Tratando-se de lei veiculadora de normas gerais, aplica-se à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. A Seção I do Capítulo I da Lei n. 8.666/93 intitula-se “Dos Princípios” e, em seu art. 3.º, aponta, como de obrigatória aplicação ao processo licitatório, os seguintes princípios: isonomia, legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, probidade administrativa, vinculação ao instrumento convocatório e julgamento objetivo. Finalizando o dispositivo com menção aberta aos princípios “que lhes são correlatos”, confere legitimidade de aplicação a todos os princípios implícitos e explícitos que sejam instrumentais à aplicação dos já arrolados, a exemplo da motivação, da razoabilidade e proporcionalidade, da segurança jurídica etc. Um aprofundamento sobre cada um dos princípios constitucionais e infraconstitucionais, explícitos ou implícitos, aplicáveis ao processo de licitação transborda os limites temáticos do presente trabalho e, sendo assim, é de se passar à disciplina jurídica da obrigatoriedade da licitação.

3.4 Disciplina da obrigatoriedade da licitação

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A própria Constituição Federal faz a exigência da adoção do processo licitatório para as contratações de obras, serviços, compras e alienações por quaisquer órgãos e entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital ou municipal, ressalvados os casos previstos na legislação. A eficácia da norma se estende a todos os órgãos e entidades que, no exercício da função administrativa, empreguem dinheiros, bens e rendas públicas. Confere-se, dessa forma, maior relevo ao critério funcional que ao critério orgânico da definição de Administração Pública. Em sede infraconstitucional, o art. 2.º da Lei n. 8.666/93 estabelece a obrigatoriedade da realização do processo de licitação para os objetos contratuais que relaciona, conceituando o termo jurídico “contrato” em seu parágrafo único como forma de evitar os inconvenientes da utilização de termos próprios a outras disciplinas jurídicas.9 Embora não seja tarefa do legislador a conceituação de institutos jurídicos, pode-se ver que a conceituação é ampla o suficiente para (em tese) abranger todas as possibilidades necessárias, sem perder de vista o objetivo de afastar ambigüidades. Em linhas gerais, pode-se dizer que a licitação é obrigatória sempre que a Administração pretender celebrar um contrato com particulares. Para efeito de obrigatoriedade, a Lei não distingue entre contratos administrativos e contratos privados da Administração. Todos são, via de regra, e ressalvados os casos expressos na legislação (adiante examinados), condicionados à realização prévia do processo seletivo de licitação pública. O voluntário afastamento, pela autoridade competente, do processo de licitação nos casos em que seria legalmente exigível é capitulado como crime na Lei

9

Art. 2.º. As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei. Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada.

18

n. 8.666/93 (art. 89, caput e parágrafo único) e como ato de improbidade administrativa na Lei n. 8.429, de 02 de junho de 1992.10

3.5 Hipóteses legais de não obrigatoriedade da licitação

A Constituição Federal fez expressa menção à previsão em lei de hipóteses para as quais não seria obrigatória a realização do processo de licitação como prévia condição à celebração de um contrato pela Administração Pública. Na linha da diretriz assim traçada, a Lei n. 8.666/93 fixou os casos em que o contrato seria celebrado independentemente da realização prévia do certame licitatório. Qual seria, contudo, o critério de eleição dessas hipóteses? Estariam completamente disponíveis ao arbítrio do legislador? Uma resposta afirmativa a tal questão entraria em manifesta contradição com todos os mais basilares princípios de razoabilidade aplicáveis em direito. De fato, mais do que escolher, deve o legislador apontar, como não obrigatórias, aquelas situações em que a licitação seria prejudicial aos objetivos que procura atingir. Há casos em que a realização de um longo e custoso processo seletivo viria eliminar qualquer vantagem que se pretendesse obter, traduzindo um dano ao erário. Nessas situações, a prática revela que seria muito mais rápido, barato e eficiente para a Administração fazer a contratação da obra, compra ou serviço sem qualquer licitação. Dessa forma, não pode o legislador excluir arbitrariamente hipóteses para as quais a licitação se mostra necessária. Deve apenas apontar – segundo critérios de razoabilidade e experiência – os casos em que seria manifestamente desnecessária e até prejudicial ao interesse público. A Lei n. 8.666/93 aponta, como hipóteses de licitação não obrigatória, a licitação dispensada, a licitação dispensável, a licitação inexigível e a licitação vedada. 10

“Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências”.

19

3.5.1 Licitação dispensável

A prática administrativa evidencia hipóteses em que, não obstante a viabilidade de um processo de licitação para a celebração de determinado contrato, torna-se desaconselhável sua realização por razões de economia, efetividade, celeridade etc. Por outras palavras, em dadas situações a licitação atuaria contra o interesse público. Seria um absurdo contra-senso imaginar-se que a garantia de isonomia deveria ser buscada a qualquer custo, mesmo quando o certame viesse indiscutivelmente a contrariar seu objetivo principal: servir à Administração como instrumento de implementação dos princípios constitucionais a ela associados. É importante destacar que as situações arroladas na lei como de licitação dispensável seriam teoricamente licitáveis. Dada a plena viabilidade de competição entre mais de um interessado, a realização do processo seria um fato possível. Em tais situações, contudo, chegou-se à conclusão de que, concretamente, a licitação viria a prejudicar o interesse público antes de protegê-lo. Por tal razão, a lei confere à autoridade administrativa competente a prerrogativa de afastar o processo de licitação, justificando seu ato e demonstrando o enquadramento da situação em uma das hipóteses legais. Tratando-se de disposição que prevê exceções à obrigação constitucional de realização da licitação, doutrina e jurisprudência majoritárias entendem que os casos contemplados na Lei n. 8.666/93, precisamente em seu art. 24, integram rol de enumeração exaustiva, não admitindo, em regra, analogia ampliativa. Os critérios utilizados pelo legislador para a fixação do rol de situações em que seria facultada a dispensa da licitação, segundo enumeração de José dos Santos Carvalho Filho11, seriam os seguintes: (a) valor, (b) situações excepcionais, (c) gêneros perecíveis, (d) obras de arte, (e) desinteresse na contratação, (f) entidades sem fins lucrativos, (g) disparidade de propostas, (h) intervenção no 11

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. 1008p.

20

domínio econômico, (i) complementação do objeto, (j) contrato com pessoas administrativas, (k) locação e compra de bens imóveis, (l) negócios internacionais, (m) pesquisa científica e tecnológica, (n) energia elétrica, (o) transferência de tecnologia, (p) consórcios públicos e convênios de cooperação, (q) navios, embarcações, aeronaves e tropas, (r) peças no período de garantia técnica e (s) materiais de uso militar. Tem-se um excelente exemplo de licitação dispensável na situação em que o valor do contrato está abaixo do limite previsto na lei. Ora, a realização de um processo licitatório demanda a publicação de editais, a realização de reuniões, abertura de prazos para recursos administrativos, além de diversos outros atos integrativos do procedimento. Se a Administração deseja fazer uma aquisição de bem com valor irrisório, sem a necessidade de outras aquisições, a realização de uma licitação apenas tornaria a aquisição mais cara e demorada. O interesse público nesse caso aconselha o administrador a dispensar a licitação e adquirir o produto diretamente de um fornecedor que pratique um preço compatível com a média do mercado, seguindo rigososamente as formalidades para tal previstas na lei.

3.5.2 Licitação inexigível

Examinando a licitação dispensável, destacou-se que a realização do processo, segundo o objeto do futuro contrato, seria de realização possível. Em outras palavras, deparando-se o gestor com hipótese de licitação dispensável, se ainda assim quiser proceder à licitação, não encontraria problemas de ordem fática ou lógica para levar adiante sua idéia. Nisso, a licitação dispensável difere totalmente da licitação inexigível. A licitação será inexigível se, por razões de inviabilidade de competição, sua realização for completamente impossível segundo critérios objetivos de seleção. Imagine-se uma licitação cujo objeto fosse a seleção de um famoso cantor ou grupo musical para cantar na abertura do “Maior São João do Mundo”, festa típica da cidade de Campina Grande/PB. Evidentemente, se o critério de seleção fosse o

21

“menor preço”, fatalmente nenhum cantor de renome nacional participaria do certame e o contrato então celebrado não atingiria seu objetivo. Na mesma linha, imagine-se que a Administração licitante resolva manter o critério do “menor preço”, mas decida incluir no edital que apenas cantores e grupos musicais de renome nacional poderão participar do certame. Surge o problema: quem poderá dizer se o concorrente tem ou não renome nacional? Seria esse critério essencialmente objetivo ou estaria vinculado a preferências pessoais das “autoridades competentes” para a indicação desse qualificativo restritivo? Em suma, seria possível realizar uma licitação com tal objeto sem depender de critérios subjetivos? Impossível. Da mesma forma, é impossível realizar um processo de licitação quando só existe um único fornecedor para determinado produto ou serviço. Se ainda assim houver de realizar a licitação, o administrador vai se deparar com um único candidato e, por mais que repita o processo, não logrará obter resultado diferente. Havendo contratante único para determinado objeto, impossível a realização de licitação. Não sendo possível prever todas as situações de inexigibilidade, o legislador optou por denominar de inexigível a licitação quando sua realização fosse impossível por inviabilidade de competição, exemplificando com a descrição de três situações particularmente freqüentes na prática administrativa: (a) fornecedor exclusivo, (b) atividades artísticas prestadas por profissional reconhecido por público ou crítica e (c) serviços técnicos especializados de natureza singular, contratados com profissionais de notória especialização (art. 25, caput, incisos e parágrafos, c/c art. 13, caput, incisos e parágrafos, ambos da Lei n. 8.666/93).

3.5.3 Licitação dispensada

A licitação dispensada se caracteriza pela autoria da efetiva dispensa de realização do processo licitatório. Enquanto na licitação dispensável a lei atribui à

22

autoridade administrativa competente a prerrogativa de dispensar a licitação, na licitação dispensada é a própria lei (melhor dizer, o próprio legislador) que afasta a realização do processo. Olhando-se a questão pelo prisma da autoria, pode-se afirmar que nas hipóteses de licitação dispensável a não realização do procedimento é obra de um ato de agente da Administração Pública, devidamente autorizado em lei. Já nos casos de licitação dispensada, a Administração Pública apenas reconhece que tal dispensa já foi feita pelo próprio legislador quando da elaboração da lei. A Lei n. 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos) traz os casos de licitação dispensada nas alíneas dos incisos I e II do art. 17, prevendo hipóteses em que os contratos de alienação de bens pela Administração Pública não dependem da realização de um processo de licitação. Tais contratos, embora dispensada a licitação, não prescindem de uma devida caracterização do interesse público que inspira o ato, sendo este previamente justificado e avaliado o bem. Em alguns casos (notadamente quando o bem alienado for imóvel), depende de expressa autorização legislativa.

3.5.4 Licitação vedada

A doutrina ainda menciona a licitação vedada, também conhecida como licitação proibida. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello12, a figura se continha expressamente no Decreto-lei n. 2.300/86, consistindo hoje na previsão que faz a atual Lei de Licitações e Contratos Administrativos em seu art. 24, IX, hipótese de licitação dispensada, portanto.

3.6 Modalidades de licitação

12

Ibidem. pp. 515-516.

23

O processo de licitação deverá se realizar de acordo com uma das modalidades previstas na Lei, não sendo permitido a quaisquer entes estatais utilizar modalidade diversa nem combinar duas ou mais das modalidades já existentes (art. 22, § 8.º), sendo nulo o procedimento se adotar a autoridade competente tal expediente. Em sua redação original, a Lei n. 8.666/93 previa as seguintes modalidades de licitação: concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão. Com a Lei n. 10.520, de 17 de julho de 2002, que convalidou a inconstitucional Medida Provisória n. 2.026-8/2000, juntou-se ao rol, em definitivo, o pregão. A concorrência é a modalidade de licitação que maiores garantias confere aos licitantes e à Administração. Caracteriza-se pela universalidade do acesso, podendo dela participar quaisquer interessados que, na fase de habilitação, comprovem o preenchimento dos requisitos contidos no edital. É a modalidade de licitação legalmente prevista para os contratos de obras, serviços e compras de valores mais elevados, bem como para alienação de bens e para contratos de concessão e permissão de serviços públicos. A tomada de preços difere da concorrência pelo fato de que a habilitação dos licitantes é anterior à abertura do procedimento. Enquanto que o procedimento da concorrência prevê uma fase de habilitação (documentos) e uma fase de classificação (propostas), na tomada de preços a habilitação é feita através da comprovação de um cadastro anterior. O deferimento de tal cadastro pressupõe o cumprimento das exigências mais importantes que seriam feitas na concorrência. Aqueles eventuais interessados que não forem cadastrados poderão apresentar os documentos necessários até o terceiro dia anterior à data de recebimento das propostas. O convite é a modalidade de licitação mais adequada para contratos de pequeno valor, cujo objeto não possa ser adquirido com dispensa de licitação. Seu procedimento é mais simples e o acesso, na prática, é reduzido. São convidados

24

três interessados cadastrados e o edital não é publicado em jornal de grande circulação, mas apenas no Diário Oficial respectivo. O concurso é a modalidade de licitação utilizada para a seleção de trabalhos técnicos, científicos e artísticos. Podem participar quaisquer interessados. A remuneração normalmente é definida na forma de um prêmio concedido ao licitante vencedor que, como determina a lei, deve ceder à Administração os direitos de utilização da obra produzida, mantendo os direitos pessoais inerentes à condição de autor (no que se inclui a paternidade da obra). O leilão é a modalidade de licitação adequada à seleção da melhor proposta nos contratos de alienação de bens moveis da Administração. Podem ser alienados através de leilão os bens móveis inservíveis ou os produtos legalmente apreendidos. Da mesma forma, podem ser leiloados bens imóveis adquiridos através de procedimentos judiciais e dação em pagamento. Finalmente, a mais nova modalidade de licitação: o pregão. Nos termos do que dispõe o art. 1.º, caput, da Lei n. 10.520/2002, o pregão é a modalidade de licitação adequada “para a aquisição de bens e serviços comuns”, considerando-se como tais, nos termos do respectivo parágrafo único, “aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado”.

3.7 Contratação

Para

finalizar

o

presente

tópico,

é

indispensável

tecer

algumas

considerações da atuação da Administração após a realização do processo de licitação. Com a superação de todas as etapas do procedimento e a consagração de uma proposta vencedora, surge a dúvida sobre a obrigatoriedade da celebração do

25

contrato administrativo idealizado no edital e aparentemente concretizado na proposta vencedora. Com sua clareza de sempre, Celso Antônio Bandeira de Mello refere que, se a licitação for concluída com êxito, a Administração estará, em princípio, obrigada a celebrar o contrato administrativo. Contudo, por razões de interesse público decorrentes de fatos supervenientes devidamente comprovados, nos termos do art. 49, caput, da Lei n. 8.666/93, poderá a autoridade competente revogar a licitação. Essa mesma autoridade poderá, comprovando a ocorrência de vícios insanáveis no decorrer do procedimento, decretar-lhe a nulidade, em todo caso assegurando aos interessados o contraditório e a ampla defesa.

4 LICITAÇÕES NA CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS INTERNACIONAIS

4.1

Contratos

internacionais

com

o

Estado

brasileiro:

notas

introdutórias

Examinados os contratos internacionais em suas linhas gerais e as principais balizas normativas que disciplinam as licitações públicas no ordenamento jurídico brasileiro, resta depositar atenção na questão dos contratos internacionais celebrados pela República Federativa do Brasil, na especial condição de Administração Pública e, por esse motivo, defensor da supremacia e da indisponibilidade do interesse público. No desempenho do papel que lhe cabe como prestador de serviços públicos e agente ativo da satisfação das necessidades coletivas, a Administração Pública adquire bens e serviços produzidos ou prestados por fornecedores privados dedicados profissionalmente à exploração de atividade econômica organizada. Ordinariamente, a Administração não precisa ir muito longe para encontrar os

26

produtos e serviços de que precisa, bastando-lhe abrir um processo licitatório doméstico para que os interessados compareçam. Acontece que nem sempre os potenciais fornecedores mais capazes e habilitados estão disponíveis no mercado nacional. Algumas vezes sequer há fornecedores nacionais. Em casos assim, e principalmente quando a área de realização da contratação necessária demanda alta tecnologia e pesados investimentos, torna-se, no mínimo, conveniente e oportuno ampliar a esfera de competição e viabilizar a participação de interessados estrangeiros. A contratação, desse modo, pode se dar com pessoas jurídicas sediadas em outros países, regidas, portanto, por um ordenamento jurídico diverso do nacional. Se não pode haver dúvida quanto à plena aplicabilidade das normas legais aos contratos celebrados pela Administração Pública com seus nacionais, esse tema já não se mostra tão pacífico quando o contrato contempla do outro lado uma pessoa jurídica sediada em outra nação. Em algumas ocasiões, a contratação envolve o emprego de recursos financeiros obtidos no exterior, através de entidades de fomento, traduzindo verdadeiro financiamento externo ou mesmo doação internacional. Não é incomum que algumas das entidades internacionais em questão, responsáveis pela remessa de recursos financeiros, disponham de regras próprias para a seleção de propostas com vistas à escolha de um contratante. Nesse caso, o financiamento será condicionado à aplicação das regras elaboradas pela entidade financiadora para a seleção do contrato. Tais regras, de sua parte, podem eventualmente entrar em conflito com disposições da Constituição Federal ou da legislação infraconstitucional brasileira. Querendo fazer uso dos recursos doados ou transferidos em vista do financiamento concedido, seria possível ao governo brasileiro conciliar a exigência de aplicação das regras excepcionais da entidade doadora/financiadora com a supremacia normativa da Constituição? Seria possível superar as incongruências entre as referidas regras, de um lado, e as normas gerais de caráter nacional sobre licitações e contratos do direito brasileiro?

27

Esses temas haverão de ser abordados no tópico que se inicia.

4.2 Contratos internacionais da Administração Pública e licitações internacionais

É interessante não perder de vista que as licitações internacionais não se vinculam

necessariamente

aos

contratos

internacionais

celebrados

pela

Administração Pública. Embora isso não pareça claro à primeira vista, nem sempre uma licitação internacional resultará na celebração de um contrato internacional pela entidade responsável pela licitação. As necessidades enfrentadas pela Administração Pública às vezes exigem a celebração de contratos com pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras. Afinal, em determinadas situações será necessário adquirir um produto não fabricado em território nacional. Outras vezes, a necessidade de escolher uma proposta que alie qualidade e preço recomendará uma ampliação da concorrência entre licitantes interessados, viabilizando-se assim a participação de empresas não nacionais. Desse modo, pode-se facilmente imaginar uma hipótese em que, não obstante a existência de licitantes nacionais, seja comprovadamente conveniente à Administração promover uma ampliação da competição através da viabilização do acesso a licitantes internacionais. Haverá, assim, empresas nacionais e estrangeiras competindo em igualdade de condições à celebração do mesmo contrato, de modo que qualquer delas poderá, ao final, conforme os critérios do certame e as propostas apresentadas, celebrar o contrato. Planejando e executando a realização de uma licitação que viabilize a competição entre licitantes nacionais e estrangeiros, terá a Administração Pública realizado uma autêntica licitação internacional (desde, é claro, que siga as diretrizes da política monetária e do comércio exterior, bem como atenda às exigências dos órgãos competentes, como determina o caput do art. 42 da Lei n. 8.666/93).

28

Nesse sentido é a lição de Rangel Garcia Barbosa:

O Artigo 42 da Lei 8.666/93 é o principal instrumento na regulação de contratos públicos estabelecidos com empresas internacionais. No seu caput, se encontra a principal previsão deste artigo, a necessidade de harmonização das condições ofertadas pela Administração Pública com as práticas do mercado internacional, fazendo ouvidos "às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes".13

Uma vez que a caracterização do contrato como internacional depende do domicílio das partes, da situação do objeto contratual e, principalmente, da possibilidade de que mais de um ordenamento jurídico deve ser aplicado na respectiva execução, tem-se que, se a licitação internacional for vencida por um licitante nacional, estando o objeto pactuado (a mercadoria a ser entregue, por exemplo) em território nacional, o contrato – embora fruto de uma licitação internacional – será qualificado como nacional. Sendo celebrado, de outro modo, com licitante domiciliado no estrangeiro, de modo a ser de alguma forma e em algum momento aplicável o respectivo ordenamento jurídico à disciplina do contrato assim firmado, ter-se-á um contrato internacional.

4.3 O direito aplicável aos contratos celebrados pela Administração Pública

A Administração Pública celebra contratos regidos fundamentalmente pelo direito público e contratos regidos pelo direito privado. Estes são ditos “contratos privados da Administração”. Aqueles, para os quais são aplicáveis as regras 13

BARBOSA, Rangel Garcia. As licitações internacionais brasileiras e a OMC . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 476, 26 out. 2004. Disponível em: . Acesso em: 07 ago. 2006.

29

cogentes de direito público e em que aparece a Administração como ente dotado de supremacia na defesa dos interesses públicos primários indisponíveis, são chamados de “contratos administrativos”. Na

defesa

Administração

os

dos

interesses

princípios

da

públicos

“supremacia

primários, do

vigorando

interesse

público”

para

a

e

da

“indisponibilidade do interesse público”, a Administração atua segundo prerrogativas e sujeições que lhe são impostas pelo conjunto das regras de direito público que, com base constitucional, disciplinam a contratação de obras, serviços, compras e alienações dos poderes públicos (CF, art. 37, XXI). Não é demais lembrar que a regra constitucional – para muitos, um verdadeiro princípio constitucional autônomo: o princípio da obrigatoriedade de licitação – é minudenciada através das normas gerais contidas na Lei n. 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública). Através dessa lei a União estabeleceu regras gerais em matéria de licitações e contratos a serem respeitadas por todas as entidades e órgãos públicos das três esferas estatais (federal, estadual e municipal). Quando o governo brasileiro celebra um contrato administrativo com um de seus nacionais, não existe a menor dúvida sobre a legislação aplicável ao caso ou mesmo sobre as cláusulas de obrigatória figuração no instrumento contratual. Mas o que se pode dizer de um contrato administrativo a ser celebrado com pessoa jurídica sediada e domiciliada no exterior? Estaria ela vinculada às normas jurídicas do país contratante ou seu estatuto pessoal lhe poderia conferir alguma proteção? Uma sistemática interpretação pode ajudar na resposta a essa questão. O art. 1.º, caput, da Lei n. 8.666/93, afirma estabelecer (a lei) normas gerais sobre licitações e contratos, aplicáveis a toda Administração Pública. O art. 54, caput, determina que os contratos administrativos se regulam pelas respectivas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se supletivamente os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado. O art. 55 traz um rol de cláusulas obrigatórias nos contratos administrativos. Dentre tantas, merecem especial atenção os incisos IX (o reconhecimento dos direitos da Administração, em caso de rescisão administrativa prevista no art. 77) e XII (a

30

legislação aplicável à execução do contrato). O § 2.º do mesmo artigo determina que, nos contratos celebrados inclusive com pessoas domiciliadas no estrangeiro, “deverá constar necessariamente cláusula que declare competente o foro da sede da

Administração

para

dirimir

qualquer

questão

contratual”,

ressalvando

expressamente as hipóteses do art. 32, § 6.º (v.g., as licitações internacionais para aquisição de bens e serviços com pagamento a ser efetuado com o produto de financiamento concedido por organismo financeiros internacional de que o Brasil faça parte). O que se vê é que a Administração, em regra, não pode se despir das prerrogativas

e

sujeições

que

acompanham

sua

atividade.

Os

contratos

administrativos representam uma expressão viva da supremacia estatal e, desse modo, não se descaracterizam diante de eventual contratante estrangeiro. Da mesma forma que ocorre nos casos de contratos celebrados com empresas brasileiras, aos contratos administrativos celebrados entre qualquer entidade nacional e uma empresa domiciliada no exterior aplica-se o direito brasileiro, podendo se fazer constar cláusula sobre “legislação aplicável” apenas quanto à respectiva execução, e mesmo assim se e quando tal medida for absolutamente necessária ao cumprimento do objeto contratual. José Carlos de Magalhães afirma que:

Se, nas relações entre Estados, é o tratado que estabelece normas de conduta recíproca, nas que regem o relacionamento entre o Estado e a empresa privada o instrumento que desempenha essa função é o contrato. O tratado observa normas de direito internacional geral e é um instrumento de direito internacional que regula o comportamento de partes juridicamente iguais, embora possam ser – e normalmente são – desiguais em outros aspectos, sobretudo o econômico e o militar. Já no contrato entre o Estado e a empresa privada, as normas a serem observadas são as do direito interno do país contratante, disso resultando uma assimetria que não existe entre contratantes privados, ainda que submetidos a ordens jurídicas nacionais diversas. Nesse último caso, ambos os contratantes estão subordinados à lei nacional de seus países e à do contrato, que abrange todas as partes privadas em uma determinada relação jurídica. Isto não ocorre nos contratos entre Estado e empresa privada estrangeira, em que prevalecem as normas do

31

próprio Estado-parte, teoricamente capaz de alterar suas leis e, assim, interferir com a economia do contrato de que participa14.

A posição de supremacia da Administração Pública no momento da formação dos contratos administrativos – especialmente no que se refere à composição das cláusulas de serviço – é cristalizada no contrato através das chamadas cláusulas exorbitantes, verdadeira nota característica do poder que detém a Administração no âmbito do vínculo contratual. É bastante comum a lição de que tais cláusulas seriam nulas na esfera privada e que apenas se legitimam nos contratos administrativos pelo fato de que, regidas pelo direito público, são fundamentais na manutenção da supremacia do interesse público representado na contratação. Como reação a essa posição sempre soberana do Estado frente aos contratados (inclusive estrangeiros), surgiu um movimento que pleiteava a “internacionalização” ou “deslocalização” dos contratos administrativos, através de que se procurava atrair sua regência para o âmbito das normas internacionais. Tomando-se particularmente o direito constitucional positivo brasileiro, uma tal medida seria inconciliável com a necessidade de garantia da supremacia e da indisponibilidade do interesse público e, portanto, violaria princípios implícitos de base constitucional. De fato, a presença de cláusulas exorbitantes do direito comum nos contratos administrativos atende a um postulado de legalidade como base para a atuação administrativa. O princípio segundo o qual a Administração Pública se vincula à lei em toda a sua atuação – em perfeita correlação aos já citados princípios da supremacia e da indisponibilidade – torna obrigatória a caracterização da Administração como entidade suprema no contexto da relação contratual. Aqui não se aplica a autonomia da vontade. Distanciar-se da legalidade seria invadir a perigosa

seara

da

disponibilidade,

no

que

resultaria

em

flagrante

inconstitucionalidade e, portanto, em nulidade contratual.

14

MAGALHÃES, José Carlos de. Direito econômico internacional: tendências e perspectivas. Curitiba: Juruá, 2005. p. 298.

32

Por todos esses motivos, não se pode compreender ou aceitar que a Administração simplesmente abra mão de suas prerrogativas ou fuja de suas sujeições, impostas que são por normas cogentes de direito público nacional. Isso seria

amplamente

possível

se,

contratando

com

empresas

estrangeiras,

simplesmente pudesse optar pelo afastamento da lei nacional com a correlata adoção da legislação estrangeira sobre contratos com a Administração. Embora seja quase suprema no contrato administrativo, a Administração é escrava da lei e da Constituição, de modo que não existe autonomia em sua vontade que a possa conduzir tão longe da legalidade. A única ressalva que a legislação sobre licitações e contratos administrativos “parece” fazer diz respeito aos contratos administrativos cujo objeto será custeado com recursos financeiros advindos de financiamento ou doação de organismos financeiros internacionais de que o Brasil faça parte, e desde que tais “derrogações” sejam apresentadas como condição para a concessão do financiamento. Mesmo assim, é de se destacar que eventual condição para a licitação não traduz, automaticamente, a existência de correlata condição para a formação do contrato administrativo. Tratando-se de exceção à regra geral (regra que tem fundamento constitucional, repita-se), deve comportar interpretação estrita e sempre plena consonância

com

os

princípios

constitucionais

fundamentais

aplicáveis

à

Administração Pública.

4.4 Licitações internacionais

Como já destacado, é muito importante distinguir com precisão os conceitos de licitação internacional e de contrato internacional da Administração Pública. Apenas repisando, viu-se que de uma licitação internacional poderá decorrer ou não a celebração de um contrato internacional, conforme o domicílio do licitante vencedor. Não menos importante será a exata compreensão do que seja uma licitação internacional.

33

Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que “licitação internacional é aquela aberta à participação de empresas estrangeiras que não estejam em „funcionamento no País‟”15. Esclarece o autor que “empresas estrangeiras em funcionamento no País” são aquelas que estejam autorizadas pelo governo federal, através de decreto, a funcionar em território nacional (nos termos do Decreto-lei n. 2627/40). Tais entidades deverão ter representação permanente no Brasil, com poderes para a resolução definitiva de questões e, inclusive, para o recebimento de citação16. A licitação internacional, desse modo, se caracterizaria pela abertura à participação de empresas que não estejam oficialmente em funcionamento no território nacional. A contrario sensu, licitações internas são aquelas cuja participação se restringe a empresas com funcionamento oficialmente autorizado no território nacional, sendo vedada a participação das demais. A exigência é amplamente justificável. Se determinado contratante não possui representação oficial permanente no Brasil, escritório com aptidão para resolver em definitivo os problema possivelmente decorrentes da relação contratual, ou mesmo uma pessoa habilitada para receber validamente citação judicial, os interesses contratuais (e mesmo administrativos) da entidade licitante/contratante seriam francamente ameaçados, de modo que, a bem da tranqüila execução contratual, apenas poderão participar das licitações internas licitantes nacionais e licitantes estrangeiros “em funcionamento regular e autorizado no território nacional”. Uma outra importante distinção que se deve fazer quando do estudo das licitações internacionais diz respeito à disciplina do procedimento de seleção das propostas. De fato, na maioria dos casos a Administração realiza licitação para a aquisição de bens ou serviços a serem custeados com recursos próprios, de modo que toda a licitação se regerá pelas normas previstas na Lei n. 8.666/93, com os temperamentos previstos no caput do art. 42 (ajustamento às diretrizes da política monetária e do comércio exterior). Entretanto, há situações em que a entidade licitante deverá fazer a aquisição dos bens ou serviços para pagamento com o produto de financiamento obtido com 15

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 534. 16 Ibidem.

34

organizações internacionais ou mesmo de doação de entidades internacionais que tenham regras próprias para a seleção de contratantes. Nesses casos, a aplicação das regras próprias das organizações financiadoras pode ser condição para a liberação dos recursos financeiros almejados pelo ente público. Se a Administração quiser se valer do financiamento, deverá se submeter, a princípio, às regras procedimentais ditadas pelo organismo concedente. A origem dos recursos financeiros, desse modo, se presta a condicionar o procedimento licitatório, sendo um importante fator de controvérsia. As principais regras de aplicação às licitações internacionais (genericamente consideradas) realizadas por entidades e órgãos públicos brasileiros encontram-se no caput e parágrafos do art. 42 da Lei n. 8.666/93 que, pela importância, merece integral transcrição:

Art. 42. Nas concorrências de âmbito internacional, o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes. § 1.º. Quando for permitido ao licitante estrangeiro cotar preço em moeda estrangeira, igualmente o poderá fazer o licitante brasileiro. § 2.º. O pagamento feito ao licitante brasileiro eventualmente contratado em virtude de licitação de que trata o parágrafo anterior será efetuado em moeda brasileira, à taxa de câmbio vigente no dia útil imediatamente anterior à data do efetivo pagamento (Redação dada pela Lei n. 8.883, de 8.6.94). § 3.º. As garantias de pagamento ao licitante brasileiro serão equivalentes àquelas oferecidas ao licitante estrangeiro. § 4.º. Para fins de julgamento da licitação, as propostas apresentadas por licitantes estrangeiros serão acrescidas dos gravames conseqüentes dos mesmos tributos que oneram exclusivamente os licitantes brasileiros quanto à operação final de venda. § 5.º. Para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e

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procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior (Redação dada pela Lei n. 8.883, de 8.6.94). § 6.º. As cotações de todos os licitantes serão para entrega no mesmo local de destino.

Examinando-se atentamente o art. 42 da Lei n. 8.666/93, pode-se ver claramente que o legislador, ao mesmo tempo em que procurou tecer regras especiais a serem aplicadas nas licitações internacionais (com participação de empresas que não estejam em funcionamento no país), implicitamente fixou, como direito cogentemente aplicável, o corpo de normas gerais constantes do direito positivo brasileiro, respeitadas, em qualquer caso, as diretrizes da política monetária e do comércio exterior. A lei nacional, portanto, terá aplicação obrigatória às licitações e contratos internacionais celebrados pelos órgãos e entidades públicas da República Federativa do Brasil em suas três esferas político-administrativas. Trata-se de uma imposição constitucional e legal contra que não se poderá falar em autonomia da vontade ou conveniência administrativa. Em sintonia com esse pensamento, pode-se apontar regra específica constante da Lei de Licitações sobre os requisitos para habilitação de licitantes. O art. 32 da referida lei trata da documentação a ser apresentada pelos concorrentes na fase de habilitação. Seu § 4.º é explícito no tratamento do assunto para as empresas estrangeiras sem funcionamento no país. A redação do dispositivo é a seguinte:

As empresas estrangeiras que não funcionem no País, tanto quanto possível, atenderão, nas licitações internacionais, às exigências dos parágrafos anteriores mediante documentos equivalentes, autenticados pelos respectivos consulados e traduzidos por tradutor

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juramentado, devendo ter representação legal no Brasil com poderes expressos para receber citação e responder administrativa e judicialmente.

O § 6.º do mesmo artigo é quem traz a ressalva ao § 4.º, dizendo que este último não se aplicará nos casos de “licitações internacionais para a aquisição de bens e serviços para pagamento com o produto de financiamento concedido por organismo financeiros internacional de que o Brasil faça parte, ou por agência estrangeira de cooperação”, além das hipóteses em que os bens deverão ser adquiridos e entregues no exterior (o que não interessa). Em resumo, no que é importante, a ressalva diz respeito às hipóteses em que o pagamento pelo objeto do contrato será feito com recursos financeiros obtidos no exterior. Aqui, uma observação é indispensável: haveria alguma ressalva à aplicação do art. 32, § 4.º, ou mesmo do art. 42, caput e parágrafos (exceto o § 5.º), quando, devendo o objeto contratual ser entregue em território nacional, o pagamento houver de ser feito com recursos orçamentários próprios da entidade licitante? A resposta deve ser negativa. A conseqüência disso – uma especial conclusão exposta no presente trabalho – é que nos contratos administrativos e nas licitações internacionais realizadas pelos órgãos e entidades da Administração Pública brasileira, desde que empregados recursos próprios e que os bens sejam adquiridos e entregues em território nacional, devem ser regidos integralmente pelo direito nacional, resolvendose em prol deste a tormentosa questão do ordenamento jurídico aplicável à formação e à execução do contrato. Nesse caso, o procedimento da licitação internacional será, em essência, o mesmo realizado no caso das licitações internas, salientando-se que a especial preferência é para a adoção da modalidade de concorrência. A tomada de preços e o convite internacional são admissíveis quando, respeitados os limites do art. 23, I e II, o órgão ou entidade dispuser de cadastro internacional de fornecedores, no primeiro caso, e não houver fornecedor do bem ou serviço no país, no segundo (art. 23, § 3.º., da Lei n. 8.666/93).

37

As normas próprias dos organismos internacionais de financiamento ou cooperação (guidelines) restringem-se aos casos em que o objeto contratual deva ser custeado com recursos havidos através de financiamentos e doações assim concedidos, e desde que a utilização dessas regras seja condição para a concessão do financiamento. A Lei de Licitações é muito clara quando diz que, nas hipóteses acima, poderão ser admitidas condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, assim como normas e procedimentos das entidades concedentes, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a administração, “desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo” (art. 42, § 5.º). A

aplicação

de

normas

procedimentais

ditadas

por

organismos

internacionais às licitações brasileiras não parece traduzir qualquer violação à soberania nacional. Em primeiro lugar, existe base na Lei n. 8.666/93. Em segundo lugar, a aplicação é restrita às hipóteses em que o objeto do contrato a ser firmado deverá ser custeado com recursos da entidade financiadora ou doadora, que poderá ter interesse em saber como o dinheiro fornecido ou doado estará sendo aplicado. Em terceiro lugar, a aplicação das regras procedimentais, autorizadas por lei, não pode contrariar princípios constitucionais fundamentais aplicáveis à atividade administrativa. Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO INTERNACIONAL. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E DA ISONOMIA ENTRE OS CONCORRENTES. ART. 42, § 5º DA LEI N. 8.666/1993. 1. Em se tratando de concorrência pública internacional com recursos provenientes de agência estrangeira, a legislação pátria admite a inserção de exigências diversas daquelas previstas na Lei Geral das Licitações. Dessa forma, não constitui ilegalidade nem fere o princípio da isonomia entre os concorrentes a necessidade de comprovação de requisitos de capacitação técnica e financeira estabelecidos por instituição internacional como condição para a aprovação do financiamento. Inteligência do art. 423, § 5º, da Lei n. 8.666/1993.

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2. Recurso ordinário não-provido. (grifado).17

É interessante ressaltar que as guidelines não encontrarão aplicação na disciplina de licitações que objetivarem a celebração de contratos para a aquisição de bens ou serviços custeados por organismo internacional para futuro reembolso, ou com majoritária participação financeira do órgão ou entidade nacional licitante. Para a aplicação das guidelines, é indispensável que o “peso” do financiamento ou doação internacional seja de tamanha expressão que justifique o afastamento das regras legalmente previstas para o processo de licitação. Também nesse sentido se posicionou o STJ:

PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO ADMISSIBILIDADE - AÇÃO MOVIDA POR PESSOA JURÍDICA DOMICILIADA NO PAÍS CONTRA ORGANISMO INTERNACIONAL COMPETÊNCIA DO STJ PARA JULGAR AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO CONTRA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DA JUSTIÇA FEDERAL DE 1ª INSTÂNCIA PROJETO DE COOPERAÇÃO ENTRE O ESTADO DO PARANÁ E A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - LICITAÇÃO OBRIGATORIEDADE DE OBSERVÂNCIA DAS REGRAS DA LEI 8.666/93. 1. Compete ao STJ o exame do agravo de instrumento interposto contra decisão interlocutória proferida por Juiz Federal de primeira instância em ação movida por pessoa jurídica domiciliada no país contra organismo internacional, com fulcro nos arts. 105, II, "c", da CF/88; art. 539, parágrafo único, do CPC e art. 13, III, do RISTJ. 2. Demanda que envolve procedimento de concorrência pública realizado em razão de projeto de cooperação técnica entre o PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO- PNUD, integrante da ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS- ONU. 3. Afastada a argumentação de imunidade de jurisdição e de execução, prevista nas Seções 2 e 3 da Convenção de Londres de 1946, por não envolver o litígio discussão em torno dos bens e haveres da agravante ou sequer a possibilidade de resultar para estes bens e haveres de propriedade da ONU violação, confisco,

17

RMS 14.579/MG, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 20.09.2005, DJ 10.10.2005 p. 265.

39

expropriação ou coação executiva por parte da autoridade judiciária deste País. 4. Tratando-se de recursos provenientes de contrapartida estadual e de empréstimo pelo qual se compromete também o Estado do Paraná a restituir ao BID, em prazo determinado, mediante pagamento de juros, conclui-se que, senão em seu todo, a maior parte dos recursos é de responsabilidade do Estado Brasileiro, não havendo como negar aplicação dos princípios insertos no art. 37 da Carta Política de 1988 relativos à atuação da Administração Pública, ou tampouco de algumas das regras constantes da Lei de Licitações, Lei 8.666/93. 5. Efeito suspensivo e mérito do agravo de instrumento julgados simultaneamente e improvidos. (grifado).18

Desse modo, não se pode confundir financiamento/doação internacional com empréstimo internacional. Havendo uma significativa contrapartida do erário de entidade pública nacional para o custeio do objeto contratual, não terá aplicação o art. 42, § 5.º, da Lei n. 8.666/93, repudiando-se completamente as normas próprias do organismo internacional de financiamento ou cooperação. Serão integralmente aplicáveis as normas do direito positivo nacional, especialmente a Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o princípio, procurou-se deixar bem claro o presente trabalho não tinha a pretensão de representar uma referência conclusiva e exauriente na matéria. Ao fim de sua composição, contudo, parece possível extrair do texto duas conclusões, referenciadas sucintamente nos dois parágrafos seguintes. Se por um lado a doutrina sobre a identificação dos contratos internacionais pode ser aplicada sem problema aos contratos administrativos, por outro lado não se pode dizer o mesmo no que concerne ao regramento de sua formação e execução. 18

Ag 627.913/DF, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 07.10.2004, DJ 07.03.2005 p. 221.

40

Enquanto os contratos internacionais celebrados entre partes privadas são fortemente influenciados pelo princípio da autonomia da vontade (ainda mais em razão dos problemas levantados pela multiplicidade de ordenamentos jurídicos aplicáveis), os contratos administrativos internacionais continuam sofrendo a incidência do direito positivo nacional da entidade pública contratante, lembrando-se que, nessa situação, tem-se a Administração Pública contratando com um particular não domiciliado no Brasil. Da mesma forma, as licitações internacionais, como as internas, têm seu regramento definido pelas normas gerais sobre licitações e contratos administrativos previstas na Lei n. 8.666/93. Em situações excepcionais, notadamente marcadas pela circunstância de ser o objeto contratual custeado a partir de recursos obtidos à vista de doação ou financiamento por organismo internacional de cooperação, algumas normas legais poderão ceder lugar à aplicação de regras específicas da entidade financiadora. Desde que a aplicação de tais regras (guidelines) seja condição para a concessão do financiamento e sejam respeitados certos limites (a exemplo dos princípios fundamentais de base constitucional), não haverá ilegalidade ou inconstitucionalidade na adoção de uma disciplina diferente da prevista na Lei de Licitações. Não há como negar que a globalização econômica, impulsionada pela modernização dos meios de transporte e comunicação, tornou os contratos internacionais uma realidade cada vez mais presente na vida de todas as nações. O desenvolvimento dessa contratação internacional no âmbito da Administração Pública é uma necessidade premente, que demanda dos estudiosos nacionais a máxima atenção. Uma atenção que, até o momento, não parece ter sido suficientemente dedicada.

6 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

AMARAL, Antônio Carlos Rodrigues do (Coord.). Direito do comércio internacional: aspectos fundamentais. São Paulo: Aduaneiras, 2004.

41

BARBOSA, Rangel Garcia. As licitações internacionais brasileiras e a OMC. Jus Navigandi,

Teresina,

ano

8,

n.

476,

26

out.

2004.

Disponível

em:

. Acesso em: 07 ago. 2006. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de. Processo administrativo e controle da atividade regulatória. Belo Horizonte: Fórum, 2005. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003. MAGALHÃES, José Carlos de. Direito econômico internacional: tendências e perspectivas. Curitiba: Juruá, 2005. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2000. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. PEDRA, Anderson Sant'Ana. Licitação internacional: normas nacionais X normas estrangeiras. Uma visão constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 93, 4 out. 2003. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2006. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15. ed. rev. São Paulo: Malheiros, 1998.

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