Larrauri, Maite - A Sexualidade Em Foucault.pdf

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A SEXUALIDADE SEGUNDO

MICHEL FOUCAULT

© Texto: Maite Larrauri, 2000 © Ilustrações: Max, 2000 © TÀNDEM EDICIONS Projeto da coleção e diagramação: Estúdio Paco Bascunán © desta edição: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda. Rua Frederico Bacchin Neto, 140 - cj. 6 - Parque dos Príncipes CEP: 05396-100 - São Paulo - SP - Brasil Direção geral Donaldo Buchweitz Coordenação editorial Jarbas C. Cerino Assistente editorial Elisângela da Silva Tradução Sérgio Rocha Brito Marques Preparação Vera Ayres Revisão Michele de Souza Lima e Sueli Brianezi Carvalho Diagramação Fernando Gouvea Dados

I n t e r n a c i o n a i s de Catalogação n a Publicação ( C I P ) (Câmara B r a s i l e i r a do L i v r o , SP, B r a s i l )

L a r r a u r i , MaiLe A s e x u a l i d a d e segundo M i c h e l F o u c a u l t / M a i t e L a r r a u r i ; [ilustrações] Max ; [tradução Sérgio Rocha B r i t o M a r q u e s ] . -- São P a u l o : C i r a n d a Cultural, 2009. (Coleção f i l o s o f i a p a r a l e i g o s ) Título o r i g i n a l : Foucault.

La s e x u a l i d a d según M i c h e l

ISBN 9 7 8 - 8 5 - 3 8 0 - 0 8 3 6 - 1 1. Adolescentes e filosofia 2 . Foucault, Michel, 1926-1984 3 . Sexualidade - Filosofia I . Max. I I . Título. I I I . Série.

CDD-108.35 índice p a r a catálogo sistemático: 1.

Filosofia para adolescentes

www.cirandaculturaLcom.br Edição 2011 Impresso na China Todos os direitos reservados.

108.35

A SEXUALIDADE

5Egunda

Michel Foucault

Maite Larrauri Max

umário

1. "Sob os paralelepípedos, a praia" 2. Nem palavras, nem coisas 3. Corpos e incorporais 4. Desprender-se de si mesmo 5. J á não somos gregos 6. Só para homens 7. O cuidado de si 8. Governo 9. A arte de viver 10. O que vamos jogar?

"7 ''^ 25 33 ^3 63 ^3 31 39

1. ''Sob o s paralelepípedos, a praia**

LZuando Michel Foucault morreu, corria o ano de 1984. Depressa demais. Faltavam alguns anos para a queda do muro de Berlim, outros tantos para o desaparecimento dos regimes socialistas e ainda mais para a globalização. Essa constatação é outra maneira de dizer que aqueles que leram seus livros ou assistiram às suas aulas lamentam sua ausência nesses momentos em que seria tão necessário contar com um pensamento forte e livre como o seu. Michel Foucault alcançou um sucesso inusitado em 1966, com a publicação de um livro intitulado As palavras e as coisas. Ele mesmo confessou ser o primeiro a se espantar, uma vez que, em dois meses, foram vendidos 20 mil exemplares de um livro que tinha sido criado para servir aos estudantes do primeiro ano do curso de qualquer especialidade vizinha às ciências sociais.

FILOSOFIA

PARA LEIGOS

FILOSOFIA

PARA LEIGOS

Certamente, nos anos 1960 e 1970, lia-se de outra

das posiçóes enfrentadas e de quem as representavam.

maneira, não por lazer ou por obrigação profissional ou

Michel Foucault chegou a sonhar em escrever anonima-

académica, mas lia-se como se come: por necessidade.

mente, criar uma editora na qual se pudesse publicar o

Era necessário entender a própria experiência, analisá-la

que se está criando, enquanto se está esboçando - lite-

e, quem sabe, mudá-la.

ralmente o que significa a palavra ensaio - e tudo isso omitindo o nome do autor, subtraindo, assim, a autorida-

Cada livro que ele publicava era como um tranco que sacudia tanto a direita como a esquerda, tanto o pen-

de ao texto para que o leitor atentasse apenas ao que lhe interessasse.

samento conservador como o radical. Parecia um furacão e todo mundo se perguntava - em revistas especializa-

O que está claro é que Michel Foucault esteve muito

das, mas também na imprensa diária e na televisão - o

presente em todos os acontecimentos que se produziram

que estava acontecendo. Se, além disso, considerarmos

durante os anos 1960 e 1970. A política parecia-lhe apai-

que Michel Foucault escreveu sobre a loucura, a prisão, a

xonante, em anos que, por um lado, a participação dos

medicina, a sexualidade, assuntos sobre os quais falamos

cidadãos na vida pública era grande e, por outro, envolvia

e a partir dos quais nos conhecemos, pode-se explicar a

um terreno amplo, no qual também cabiam as relaçóes

enorme repercussão que tinham todos os livros dele.

humanas e a experiência privada.

Lamentavelmente, também foram grandes as po-

Ao mesmo tempo, seu pensamento político não es-

lémicas sem sentido que se originaram em torno de seus

tava embasado no humanismo, uma das ideias básicas

livros. Elas atraíram outros tipos de leitores, que podería-

daqueles anos.O humanismo considera que existe uma

mos chamar de "leitores de contracapa", que entravam na

natureza humana boa e justa, que foi oprimida e desviada

discussão ignorando tudo do livro, mas sabendo muito

pelas relaçóes de poder. Em maio de 1968, os estudan-

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tes parisienses pichavam nos muros: "Sous les pavês, la plaga" ("Sob os paralelepípedos, a praia3 indicando assim a esperança de que, sob aquilo em que o capitalismo e o poder nos tinham transformado, jazia uma humanidade criativa, solidária, revolucionária, capaz de transformar esse mundo de exploração e injustiça em um paraíso sem relações de poder. Para os arredores da praia da promessa de um mundo melhor, baseada na crença dos valores humanos, confluíam pensadores cristãos, marxistas, anarquistas, socialistas. Foucault não foi o único, mas uma das principais vozes dissonantes. Fiel a Nietzsche, a quem considerava um sábio como poucos, Michel Foucault jamais acreditou que os lobos escondiam cordeiros e, por isso, afirmou categoricamente que as relações de poder não desapareceriam e que o horizonte da dissolução da luta de classes era um conto de fadas. Quando sua voz levantava-se contra o humanismo e aqueles que o ouviam ficavam desanimados, ele acres-

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muito mais otimista que à primeira vista podíamos pensar, posto que o término de qualquer revolta ou mobilização popular nunca conseguiu desanimá-lo. Ele sabia que, no dia seguinte, era preciso continuar, que talvez os que ontem lutavam por uma ideia justa amanhã se transformariam naqueles contra os quais seria necessário lutar. Sem a praia natural, sem um estado original ao qual voltar e a partir do qual edificar um futuro radiante, nós, os humanos, somos tão diferentes quanto as condições culturais e históricas nos fizeram. Tudo o que somos - nossos sentimeatos e nossas ideias, nossos modos de viver e amar, de trabaLhar e falar - é um produto da história. Essa deveria ser uma boa notícia, porque na inexistência de algo eterno ou natural tudo o que é história está sujeito à mudança- Como afirma Foucault: "Tudo o que fjoLçonstruído historicamente pode ser destruído politicamente". É certo que os mais contentes com essa afirmação serão sempre os avessos à história, com o que historicamente somos.

centava que não era preciso ficar triste, porque a luta não tinha chegado ao fim, já que a única verdadeira tristeza era não combater. Com o tempo, sua posição revelou-se

Caso se entenda por política tudo o que afeta p tecido da vida social, e caso se acredite que sempre existem

ao

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motivos para rebelar-se, então é essencial estar alerta. Para sabermos reconhecer qual questão vale a pena colocar no primeiro plano da reflexão e da intervenção, é necessário estarmos atentos ao intolerável. O que é^intolerável? Não poderá ser, a princípio, o que para muifòs ê intolerável, uma vez que uma das condições do intolerável é que, para a maioria, não seja intolerável, mas normal. Uma das coisas que caracterizava Michel Foucault era o fino ouvido que possuía, um ouvido que permitia perceber, por meio do que se dizia - nos meios de comunicação, nos livros de divulgação ou nas conversas das pessoas comuns quais eram as evidências, os lugares-comuns não questionados, sobre os quais eram construídos os discursos: essas certezas podiam conter algo de intolerável. Opondo-se ao que a história fazia, separando a loucura e a razão, a normalidade e a patologia, a delinquência e a legalidade, Foucault abalou as certezas com as quais aceitamos que existam os manicômios, os hospitais e as prisões, que desempenhem o papel que desempenham, que tenham a forma que têm.

ma de rádio, no qual uma jornalista interrogava um ouvinte sobre a sua vida. O entrevistado reconhecia que era infeliz e aí a jornalista perguntava-lhe sobre suas relaçóes sexuais. A partir desse momento produzia-se um diálogo estranho, onde o ouvinte queria explicar o motivo de sua infelicidade - que tinha a ver com seus amigos, seu trabalho - e, de sua parte, a entrevistadora continuava insistindo em saber algo mais de sua vida sexual, como se não pudesse pensar a felicidade ou a infelicidade, sem levar em consideração o fato de essa pessoa fazer ou não amor, se suas relaçóes sexuais eram ou não satisfatórias, Michel Foucault diz que achou que estivesse ouvindo uma música, a música do presente. E quis saber se essa nossa certeza - a de que a felicidade e a satisfação sexual, tanto quanto a infelicidade e a insatisfação sexual, caminham juntas - era dessas certezas que escondem algo intolerável e, portanto, do tipo das que era necessário abalar. Assim nasceu a pesquisa que o levou a escrever os três tomos de sua História da sexualidade.

Foucault conta que começou seu projeto de escrever sobre a sexualidade no dia em que ouviu um progra12

PARA LEIGOS

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376 591 922 18

•n(t«..^o

A curiosidade é um vício que foi estigmatizado pelo cristianismo, mas também pela própriafilosofiae até por uma certa concepção de ciência. Curiosidade, futilidade. Assim mesmo, gosto da palavra; lembra-me algo diferente: evoca a'preocupação;evoca o cuidado com que se apropriar do que existe e do que poderia existir; um sentido aguçado da realidade, mas que, diante dela, jamais se paralisa; uma prontidão em descobrir estranho e singular aquilo que nos rodeia; um certo empenho em nos desfazermos do que nos é familiar e olhar as coisas de outra maneira; um ardor em apreender o que acontece e o que passa; uma desenvoltura quanto às hierarquias tradicionais em relação ao que é importante e essencial.'' > fy'íC) \

«•«o F

MARIA TERLZA CAPOLVILA RinZ f«wci
E a t r o l l a 7,

Palna da K a l l o r c a

EtUKtocivir a o l t a l r a praft««dk> aatudanta (Cldnciaa Biológicas) hoMkiM

Tolaibol. wlaica, i a f o r a á t i c a ,

signo sagitArio

aeologia

y

A historicidade dos humanos, a afirmação de que não existe a natureza humana, mas que somos produtos históricos, é muito mais complexa do que pode parecer à primeira vista. O título do livro As palavras e as coisas encerra uma chave para entender o pensamento de Michel Foucault. Porque se trata, na verdade, de um título irónico: os seres humanos não são nem palavras, nem coisas. Não serem palavras significa que a experiência humana não é uma interpretação da realidade, uma forma de pensar. Não serem coisas significa que a experiência humana não é algo natural. Também se pode entender em um sentido afirmativo que os seres humanos estão entre as palavras e as coisas, que têm um pouco de cada uma delas. As palavras, as linguagens variam, ligam-se às diferentes culturas, apreendem o mundo e as coisas a partir de diferentes 17

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1-4

pontos de vista. As coisas são reais, têm uma consistência que as faz independentes das interpretações com que as captamos. Pois então: nós, os humanos, somos mais consistentes que as palavras e rnais evanescentes que as coisas naturais. Pensemos, por exemplo, na loucura. Quando comparamos a experiência da loucura em outras culturas com a nossa, encontramos grandes diferenças. A mania dos gregos estava associada à paixão, à poesia e às práticas religiosas: estamos distantes da prisão em manicômios e do discurso da psiquiatria. As figuras do apaixonado, do poeta e da sacerdotisa estão rodeadas de prestígio social: são loucos porque foram escolhidos por um deus que os perturbou, sua loucura é paixão, inspiração, delírio profético. Nada, absolutamente nada a ver com a posição ocupada pelo doente psiquiátrico dos dias de hoje. Quando nos defrontamos com esses fatos, nossa resposta costuma ser que sempre existiram loucos, mas as sociedades atribuíram-lhes papéis sociais diversos: na Grécia, o papel de um louco tinha sua importância e, em contrapartida, em nossas sociedades temos relegado os 18

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loucos à posição de pobres coitados. Assim, a loucura é uma coisa e a mania dos gregos e a loucura psiquiátrica da modernidade são palavras, quer dizer, interpretações da mesma coisa, a loucura. Q que pode mudar, segundo esse modo de pensar, não é a loucura, que sempre existiu, mas a interpretação da loucura, que é um fato humano: continuidade, portanto, da existência da loucura e descontinuidade dos discursos sobre a loucura. Observe-se que dessa maneira de pensar pode nascer um discurso radical que considera o infortúnio da loucura como o resultado de uma forma de ver as coisas, de uma ideologia. E parecerá, consequentemente, que basta mudar a ideologia para que esse infortúnio desapareça. Que basta fechar os manicômios para que deixem de existir loucos, ou que basta saber que os loucos, em outros tempos, eram figuras de prestígio para transformar a

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experiência da loucura.

Foucault não propõe nada disso.^A loucura - ele nos diz - está efetivamente ligada aos discursos que a referem, interpretam, dão-lhe um sentido, e também às ações 19

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graças às quais ela é localizada, isolada, convertida em patologia. Mas o resultado é uma realidade palpável, consistente. Com efeito, não uma realidade independente do que dizemos e fazemos com ela, mas uma realidade quej se mantém, apesar da boa vontade daqueles que desejaram fazê-la desaparecer. Quer dizer que a experiência atual da loucura não pode ser transformada? Muito pelo contrário. Por um lado, Foucault considera que não tem sentido dizer que sempre existiu a loucura porque não há elementos de continuidade entre a experiência dos gregos e a nossa. Mas, por outro, afirma que a existência da loucura depende de formas de falar e de fazer que são mais resistentes à mudança que as ideias que nós possamos abrigar em nossas cabeças. A experiência humana é a que é porque depende das maneiras de falar e de fazer, mas mudá-las não depende tão somente da vontade.

dizer o correlato, a existênc^

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material, resistente e real

dos loucos. Se as práticas mudam, desaparece o correlato, mas as práticas têm de mudar para uma sociedade como um todo: são grupos de pessoas que abandonam umas formas de falar e de agir e adotam outras. Quando isso acontece, uma experiência humana muda de sentido, modificam-se os limiares de sensibilidade, alguns aspectos ficam invisíveis e desaparecem, e outros, ao contrário, recebem toda a atenção e emergem. Porque não somos gregos, porque ninguém mais fala ou age como os gregos, também não temos a experiência da loucura que eles tiveram. Quando nos referimos aos humanos, as palavras que designam as coisas e as coisas às quais as palavras se referem conservam-se em um mesmo plano: elas são uma maneira de ver e o que se vê, são uma grade de classifica-

Chamaremos as maneiras de falar e de agir d^^ "praticas", como faz Foucault. E, assim, poderemos afirmar que a loucura, segundo Foucault, é o resultado de práticas historicamente determinadas. "Resultado do práticas? quer

ção e o que aparece classificado. A psiquiatria e o louco, o olhar médico e o doente, o direito penal e a delinquência: nenhuma das partes é mais consistente que a outra, ambas existem conjuntamente e desaparecerão ao mesmo tempo.

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"A ordem é, ao mesmo tempo, o que se oferece nas coisas, como sua lei interior, a rede secreta segundo a qual, de alguma maneira, elas se entreolham, e o que não existe senão por meio do crivo de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem." Ií

A experiência da sexualidade também é um resultado da história, de práticas históricas. Pois bem, nossa tendência natural é entender esta afirmação da seguinte forma: a sexualidade existe e sempre existiu, é uma invariante histórica; a despeito disso, o que vieram se alterando ao longo da história foram os diversos pontos de vista, as diferentes maneiras de tratar e de viver a sexualidade. Pensando nesses termos, uma história da sexualidade teria de contar uma dessas duas coisas, ou as duas de uma vez: por um lado, a história dos diversos comportamentos sexuais e sua evolução histórica; por outro, o conjunto de ideias religiosas, científicas ou filosóficas que foram produzidas, tendo a sexualidade como objeto de reflexão. E assim, por exemplo, nos permitiríamos afirmaçóes do se25

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A

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guinte teor: a Grécia era uma sociedade permissiva; a homossexualidade não era mal vista; políticos, guerreiros, cientistas ou filósofos eram homossexuais e não escondiam isso; Aquiles e Pátroclo, heróis da guerra de Tróia, eram homossexuais; Platão fala da homossexualidade de maneira natural e até ele mesmo era homossexual. O ponto de vista de Foucault é muito diferente. Ele aplica aqui seus próprios pressupostos sobre a expe-

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:

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igualmente resultado das regras e dos imperativos que os poderes estabelecem (poder religioso, poder judicial, poder pedagógico, poder médico); e, finalmente, também resultado do sentido e do valor que cada qual dá à sua conduta, a série de deveres que adota, os prazeres que conhece ou aos quais almeja, seus sentimentos, seus sonhos. Assim, portanto, a série das práticas humanas que materializam a sexualidade são os saberes, os poderes e o modo como uma pessoa relaciona-se consigo mesma, j

riência humana para sustentar que a sexualidadé de que falamos hoje, em que pese sua aparente consistência, é

A sexualidade n^terianzã-sé nos corpios/não existe

uma invenção moderna da qual não podemos narrar a

de modo natural, não é algo com que se nasce, portan-

evolução, porque só existe no marco histórico que a pro- (

to, não pertence ao corpo, se o consideramos como algo

duziu; apesar disso, possui uma materialidade e è o refe-

dado com o nascimento. A sexualidade não é o sexo (ho-

rencial real de tudo o que dizemos e fazemos no terreno

mem/mulher), mas unn modo de ser que se incorpora ao

da sexualidade. Ou seja, é mais que uma palavra e menos

nosso corpo sexuado, à medida que adotamos modos de

que uma coisa.

viver, de falar, de agir com os outros e com nós mesmos que caracterizam nossa cultura. ,

O que hoje para nós é sexualidade, o que entendemos quando falamos dela ou quando a vivenciamos, é o

Como modo de ser, a sexualidade se incorpora ao

resultado, por um lado, do que os discursos cultos (mé-

corpo, formando um todo com ele. Foucault emprega o

dicos, psicológicos, psicanalíticos) dizem; por outro lado,

conceito de "incorporai" para nomear essa materialidade

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incorporada a unn corpo por meio das práticas. O incorporai é inteiramente histórico e não sobrevive às práticas que o produzem. Mudar o incorporai é possível desde que se entenda que, para isso, é preciso mudar as práticas de uma cultura. Hoje em dia, existem homossexuais e heterossexuais. Utilizamos esse regime de visibilidade e de classificação. Disso falam nossos saberes, a isso se referem nossas normas e com isso interrogamos nosso desejo. Podemos responder à pergunta: "Você é homossexual ou heterossexual?" Pois bem, Foucault sustenta que a homossexualidade e a heterossexualidade são incorporais, não são parte da natureza humana, são modos de ser que pertencem à nossa cultura atual, que não nos permitem nem analisar, nem julgar outras culturas.

''Mostrar que falar é fazer algo — alguma coisa diferente de expressar o que se pensa, traduzir o que se sabe, diferente também de pôr em jogo as estruturas da língua,,,; mostrar que uma mudança na ordem do discurso supôe transformações no interior de uma prática,.

A afirmação de que nós, humanos, somos produtos históricos surte um efeito tranquilizador em muitas pessoas. Tem um ar de determinismo, o que nos tira um peso das costas. Estamos sempre prontos a considerar que as práticas de uma cultura nos sujeitam e nos obrigam a realizar atos involuntariamente: os significados de uma língua preexistem a nós, os modos de viver e de relacionar-se também. O indivíduo que se torna sujeito de fala e de ação demonstra sua competência como sujeito e seu pertencimento a uma cultura justamente porque está bem sujeitado por essas práticas. É um sujeito passivo que trabalhará, falará e amará como sua cultura determinar que se realizem essas ações. Na verdade - nos diz Foucault - somos muito mais livres do que pensamos. A conduta dos humanos não só 33

t FILOSOFIA PARA LEIGOS

Nossa liberda^íe não é lançar-se à toa, não é uma tábula rasa àlpá^r^^^^^^ qual podemos escolher como somos e o que somos, mas um jogo com o exterior, isto é, conn(^ -.-^

-

JY I

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í

é sujeitada pelas práticas exteriores a eles mesmos, como também existe um momento, por assim dizer, em que tais práticas devem ser interiorizadas. Esse momento, esse ponto em que um sujeito diz sim ou não a um modo de fazer, incorporando ou não um modo de ser, é o que nosi constitui como sujeitos ativos, sujeitos livres.

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a série de práticas culturais existentes. Gilles Deleuze, referin^o-se a essa liberdade de que fala Foucault, deu-lhe o nome de " d o b r a u m a dobra é um "dentro" feito de um "fora". Dobramos o exterior quando, na relação que mantemos com nós mesmos, aceitamos ou recusamos, associamos, escolhemos, combinamos modos de ação que pertencem a nosso solo cultural ou que, em tempos de aldeia global, fomos encontrar em outros solos culturais. Com tudo isso, conduzimos nossa conduta e somos artífices dessa condução.

Todos nós temos esse grau de liberdade, essa ação na aceitação ou na recusa. Da desobediência ou recusa 34

podem surgir condutas negativas previstas, mas também singularidade, originalidade e novidade. Existe criação no universo humano e não apenas pelo lado da obra perene, mas também do lado da própria vida. (Ainda que Foucault não tenha feito uma reflexão sobre a revolução feminina no século XX, não pode escapar a ninguém que se trata de um magnífico exemplo de liberdade: as mulheres começaram a desobedecer as práticas que as constituíam como tais, naquele ponto em que cada um tem de decidir se incorpora ou não um modo de ser e, a partir desse momento, houve recusa e novidade em medidas ainda hoje difíceis de avaliar, mas que demonstram que as mulheres dobraram o "fora" de uma maneira não prevista.) A desobediência e a recus> nascem de uma certa percepção do intolerável. Foucault escreveu alguns de / seus livros esperando que seu próprio ponto de vista sobre o que era intolerável servisse para que outras pessoas também removessem o solo das certezas e começassem, com suas ações, a notar que algumas coisas vividas de maneira natural eram, na realidade, incorporais históricos que podiam ser mudados. 35

FILOSOFIA PARA L E l f OS

I

U

\A PARA L E I G O S

Na experiência sexual de hoje, parece intolerável a

Dessa forma, o imperativo "conhece-te a ti mesmo",

Foucault o seguinte: por um lado, que a identificação da

que ao tempo dos gregos era uma distinção ética que

própria sexualidade tenha se tornado algo central para a

apenas uns poucos praticavam, converteu-se em uma

definição do que somos; por outro, que nossa cultura nos

norma para a sociedade como um todo, e para cada um

pressione para que nos interroguemos sobre a natureza

dos indivíduos que a compõe.

de nosso desejo sexual. Ambos os objetivos recebem o apoio das ciências humanas.

A prática da confissão, introduzida pelo cristianismo a partir dos primeiros séculos de nossa era, transformou-se,

Assim, de um lado, as ciências humanas procedem

após algumas modificações, em uma técnica fundamental

a uma totalização da população: as técnicas de classifi-

para a individuação e totalização que o exercício do poder

cação e as estatísticas tendem a um conhecimento dos

em nossa sociedade requer. O conhecimento detalhado da

comportamentos humanos de modo global, a partir de

população é uma necessidade do mercado, da política, da

traços que podem interessar tanto aos fins altruístas da

educação, da administração.

investigação, como ao uso que o poder policial, administrativo e judicial tem desses estudos (de tal forma que,

Pode-se entender que o imperativo foucaultiano,

ao final, é difícil acreditar nos fins altruístas das ciências

diante do intolerável desse processo de questionamen-

humanas). Mas, de outro lado, a totalização só é possível

to, conhecimento e classificação, seja "desprende-te de

por meio de uma individualização cada vez mais apurada,

ti mesmo". Desprender-se de si mesmo é desobedecer

posto que o conhecimento das particularidades do indi-

e recusar o constrangimento de adotar uma identidade

víduo são elementos que podem ajudar na sua classifica-

sexual segundo os incorporais que nossa sociedade nos

ção. Assim, por exemplo, a psicologia serve à sociologia,

spresenta como elementos da natureza humana; é tam-

que, por sua vez, serve ao direito penal.

bém uma revolta contra as doutrinas psi- (psicologia, psi-

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FILOSOFIA PARA L E I G O S

canálise, psiquiatria) e sua insistência em vasculhar em si mesmos os traços que permitem o reconhecimento em algum dos modelos sexuais que servem para a identificação do próprio desejo sexual; e é também deixar a porta aberta a novas práticas para inventar-se a si mesmo.

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''Sem dúvidãy o objetivo principal hoje não é descobrir, mas recusar o que somos. É preciso imaginar e construir o que poderíamos ser para nos desembaraçarmos dessa espécie de "duplo constrangimento''político que são a individualização e a totalização simultâneas das estruturas de poder modernas. Seria possível dizer, para concluir, que o problema ao mesmo tempo político, ético, social e filosófico que se nos apresenta hoje não éprocurar libertar o indivíduo do Estado e de suas instituições, mas libertarmos a nós mesmos do Estado e do tipo de individualização que a ele está vinculada. É necessário promover novas formas de subjetividade repelindo o tipo de individualidade que nos foi imposto durante séculos." .



Uma vez que a existência atemporal de uma coisa contribui para fazê-la evidente, a maneira preferida por Foucault para conseguir que uma evidência deixe de sê-lo consiste em colocá-la diante de um momento histórico em^ que essa coisa não ocorre. Trata-se de contrapor a continuidade com que pensamos a experiência humana à descontinuidade ou ruptura de um tempo em que a experiência era outra. O objetivo é que comecemos a nos distanciar da naturalidade com que vivemos nossa própria experiência. As rupturas da história ajudam-nos a nos desprender de nossas identidades: estabelecem que somos diferentes, que somos diferença. Foucault é um misto de historiador e filósofo. Em seus livros sempre está presente o intento filosófico: fazer com que o que somos atualmente encontre seus limi43

FILOSOFIA PARA L E I G O S

FILOSOFIA PARA L E I G O S

tes. Para conseguir isso, ele segue o rastro da história em

cua em nossa própria história até encontrar um momento

detalhes. Critica as formas de fazer história a que fomos

privilegiado que nos pertence e no qual parcialmente nos

acostumados pelos discursos dominantes (hoje em dia

reconhecemos, mas tão diferente em relação ao nosso

reforçados pela popularidade de alguns relatos escritos

presente que nos surpreendemos: é uma experiência his-

ou cinematográficos), que nos apresentam os feitos his-

tórica que é nossa, mas, ao mesmo tempo, deixou de ser

tóricos como provas da unidade da experiência humana:

nossa.

e, assim, um imperador romano, um revolucionário escocês, uma freira medieval, uma rainha renascentista parecem ter os mesmos sentimentos, aspirações, virtudes e vícios que, desde sempre, homens e mulheres tiveram. Na verdade, a experiência humana que nos é mostrada a partir desses relatos, e que pretende ser única, não é outra coisa senão a experiência atual sobreposta como dispositivo de visibilidade, por meio do qual "compreendemos" os seres humanos de todos os tempos, porque aqui "compreender" quer dizer aproximar e reduzir. Foucault esforça-se por fazer aparecer os elemen-

É o que ocorre quando se trata de demonstrar que a sexualidade é uma experiência de nosso presente, cgrn raízes no cristianismo, mas inexistente na antiguidade pagã. À primeira vista, no entanto, uma comparação entre nossa sexualidade e o que percebemos na vida dos antigos parece precipitar semelhanças notáveis. Se observarmos os códigos sexuais dos antigos gregos e romanos, por um lado, e, por outro, os nossos, ou se nos ativermos à preocupação moral que tanto uns como outros manifestamos em torno das práticas sexuais, tudo parece indicar que nos movemos sobre um terreno comum.

tos históricos em sua estranheza e diversidade, não os reduzindo ao já conhecido. É certo que poderia buscar a nosso solo. No entanto, não é isso o que ele faz. Ele re-

Todas essas características são realmente elementos de continuidade, mas - Foucault nos diz - não é aí que está o mais importante. Porque, na experiência dos seres

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ruptura distanciando-se geográfica ou culturalmente de

FILOSOFIA PARA L E I G O S

FILOSOFIA PARA L E I G O S

, .

humanos, é fundamental o modo em que se constituem

significantes. Mas as coisas mudam muito se nos pergun-

como sujeitos da própria experiência. Se, ao descrever

tamos de que modo o sujeito vivência essa prescrição, se

uma sociedade, contamos apenas o que dizem seus có-

é fiel porque é capaz de resistir às tentações ou porque

digos normativos e se eles têm sido obedecidos ou não

deseja a intensidade e a qualidade de uma relação perma-

pelo comportamento real dos homens e das mulheres,

nente; se é porque se sabe membro de um grupo social

deixamos de fora um aspecto essencial: a forma como

que aceita esse preceito e o proclama aos quatro ventos

os indivíduos aceitam ou recusam o código, a maneira

ou porque busca dar à sua vida uma certa nobreza ou per-

como o vivenciam em relação a si mesmos, e, em pou-

feição; em resumo, se é fiel por obediência, por renún-

cas palavras, como levam a cabo seu próprio exercício

cia, ou por domínio de si mesmo. Conseguimos, assim,

de liberdade. E é justamente na relação consigo mesmo

um quadro complexo de personagens muito diferentes:

onde se produz a ruptura entre o nosso mundo e o mundo

temos a prova em nossa própria atitude diante deles, já

greco-romano.

que, mesmo quando todos seguem o mesmo preceito - a fidelidade conjugal - e fazem o mesmo - serem fiéis -, de

Foucault apresenta um exemplo para ressaltar a

modo algum parecem, para nós, igualmente simpáticos.

importância da relação consigo mesmo na descrição da experiência humana. Pensemos em um elemento do có-

Pois bem, o mundo greco-romano estabeleceu a re-

digo moral sexual, elemento de continuidade, uma vez

lação consigo mesmo como o centro da moral, não se

que - como diz o próprio Foucault - nós, humanos, temos

preocupou em reiterar o código ou sancionar os compor-

sido muito pouco inventivos tanto nas interdições quanto

tamentos, mas todas as suas reflexões vão desembocar

nos prazeres. Trata-se da fidelidade conjugal. Se só nos

no modo como o sujeito moral age sobre si mesmo. Por

fixamos no código e nos comportamentos derivados do

outro lado, é certo que o mundo antigo expressou uma

código, as diferenças entre diferentes sociedades são in-

preocupação moral com as práticas sexuais (às quais os

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47

FILOSOFIA RARA L E I G O S

FILOSOFIA PARA L E I G O S

gregos chamavam afrodisias, "coisas relativas a Afrodi-

Foucault gosta de contar o escândalo que foi para

te"). Mas essa preocupação é parte de um terreno mais

Platão a sua chegada à Sicília. Tratava-se de uma terra

amplo, no qual têm lugar também os modos de compor-

sobre a qual um pensador eminente tinha feito o seguinte

tar-se ã mesa, com relação à comida e ã bebida.

comentário: "Os habitantes desta cidade - diz Empédocles, referindo-se à cidade siciliana de Agrigento - aban-

A comida, a bebida e as afrodisias são objetos do pensamento moral na antiguidade, porém a preocupação moral não se concentra em separar o proibido do permitido, mas na melhor maneira de agir precisamente no núcleo do que o sujeito moral pode fazer no exercício de sua liberdade. Por isso, tendo em conta que os prazeres da mesa e de Afrodite estão ameaçados sempre pelo excesso, os moralistas da antiguidade recomendam a moderação: não se condena a ingestão de determinados alimentos ou bebidas, e muito menos praticar as afrodisias com uns e outros, mas se chama a atenção sobre o condenável que resulta do excesso nesses âmbitos. Apelam ã liberdade do sujeito, já que, sendo-lhe permitido comer como um porco,

donam-se aos prazeres como se fossem morrer amanhã e constroem casas como se fossem viver eternamente". Platão escreveu que, quando chegou a Siracusa, os homens da corte do tirano Dionísio I comiam a ponto de empanturrar-se até duas vezes por dia e nunca iam para a cama sozinhos. Com semelhante vida, tanto Dionísio I quanto os que o rodeavam deixavam claro seu diminuto domínio sobre si mesmos e, na lógica de Platão, quem não era capaz de conduzir sua própria vida seguindo um princípio de moderação, isto é, quem não pudesse governar a si mesmo, tampouco poderia ser um bom governante e governar os demais.

embriagar-se e levar uma vida de depravação sexual, mesmo assim pode escolher ter um domínio sobre si mesmo

Portanto, preocupação moral pelas afrodisias, sim,

que o conduza até um comportamento no qual resplande-

nnas em um contexto mais amplo, onde o que importa é

ça a harmonia e a beleza.

o modo de conduzir-se em todos os prazeres (os da coml48

49

FILOSOFIA PARA L E I G O S

da, os da bebida e os de Afrodite). Importa, assim, nâo o código do permitido e do proibido, mas o modo como o sujeito relaciona-se consigo mesmo no exercício de sua liberdade, como sujeito de prazeres.

50

''Deve-se desconfiar da tendência de levantar a questão da homossexualidade como se fosse um problema de 'Quem sou euê Qual é o segredo do meu desejoE Talvezfosse melhor perguntar-se: 'Quais relações se podem estabelecer, inventar, multiplicar ou modular por meio da homossexualidade?'. O problema não é descobrir a verdade da própria sexualidade em si, mas, antes, usá-la para chegar a relações múltiplas. Essa é a verdadeira razão pela qual a homossexualidade não é uma forma do desejo, mas algo desejável. Devemos nos empenhar em nos tornar homossexuais e não insistirmos em reconhecer que o somos. "

- p á r a

hsmi^^^^-'-:^^i^^^^^^^^K

Nas práticas sexuais, pode-se fazer uma distinção entre o ato, o desejo e o prazer. Na experiência dos gregos, os três formam um conjunto: a realização do ato sexual vem acompanhada de prazer e isso desperta o desejo. O desejo deseja o prazer, que se obtém corn o ato. Interessa a Foucault mostrar, para que se veja a diferença em relação à nossa sociedade atual, que em nenhum caso examina-se apenas o desejo ou suspeita-se de que possa estar oculto em algumas relações, independentemente do ato e do prazer: quando se ridicularizam os filósofos que aparentam amar nos rapazes apenas suas almas, não é porque se suspeite que tenham desejos inconscientes, nnas simplesmente porque, quando os estão ensinando, aproveitam qualquer ocasião para enfiar-lhes a mão sob suas túnicas. 55

FILOSOFIA PARA L E I G O S

FILOSOFIA PARA L E I G O S

Os gregos não concebiam a reflexão ética ao redor de atos, prazeres ou desejos, mas da dinâmica que une os três. Fazem, assim, uma discriminação dinâmica e não morfológica.

A língua grega tem dois vocábulos para designar os parceiros não permutáveis de uma relação sexual: o ^mante e o amado. De fato, estabelecer quem é quem se transforma em um assunto importante em algumas

Por um lado, essa discriminação dinâmica é, como já vimos, quantitativa. Quando se fala do comportamento de alguém, não se faz constar suas preferências sexuais (pelos rapazes ou pelas mulheres), mas se é uma pessoa dotada de moderação, temperança, ou, pelo contrário, se tende ao exagero e ao excesso. No entanto, é também uma dinâmica polarizada em dois extremos, em um papel ativo como sujeito e em um papel passivo como objeto. 0 ato sexuajy' para os gregos, não é senão uno e consiste na penetração. Em torno desse único ato sexual, existem duas posições possíveis: uma ativa e outra passiva. O privilégio ético e vital da atividade sobre a passividade é indiscutível, por isso o indivíduo que obtém prazer mediante sua atividade na penetração é o sujeito ativo, enquanto o que ocupa o posto passivo de ser penetrado não é mais que um objeto de prazer sexual. 56

ocasiões, como nos lembra Foucault, que é o que ocorre quando se trata de saber, por exemplo, quem é o amante e quem é o amado, no par Pátroclo e Aquiles: n'0 banquete, de Platão, responde-se a essa questão dizendo que, sem dúvida, Aquiles tem de ser o amado, porque sua barba ainda não cresceu. Não há reciprocidade, não pode existir reciprocidade: o sujeito livre toma o objeto de prazer, exerce sua masculinidade e superioridade sobre o outro, mas não pode, sem perder sua dignidade, ocupar o posto de ^ objeto sexual, ou ter prazer nesse posto. Os atores da prática das afrodisias não podem ser outros senão os homens adultos e livres, aos quais, por antonomásia, corresponde a atividade na vida social, na oconomia, na política; e os objetos de prazer sãg aÍ3 mu"^^res, os rapazes e os escravos. Tanto para a dinâmica prestígio da atividade quanto para o repúdio à passivi^^de, lhes é indiferente que o ato sexual do cidadão livre

FILOSOFIA PARA L E I G O S

FILOSOFIA PARA L E I G O S

seja levado a cabo com homens ou com mulheres. O ob-

Pois bem, se dizemos que a bissexualidade se ma-

jeto do desejo tem de ser desejável e desejável é o que él

nifesta no fato de que um grego podia amar, conforme a

belo. Õ que impele a desejar um homem ou uma mulher!

circunstância, um rapaz ou uma moça, que um homem

è o apetite que existe em todos os homens pelas pessoas que são bonitas, seja qual for o seu sexo. Isso quer dizer que os gregos eram bissexuais? A pergunta - diz Foucault - tem interesse dependendo do que queiramos dizer quando falamos de bissexualidade. Se pensamos a partir do regime de visibilidade do nosso presente, que considera que a sexualidade de cada qual

casado podia ter jovens amados e reconhecê-los publicamente, que muitos cidadãos adultos, em sua juventude, haviam tido uma inclinação para serem os amados de outros homens, então a afirmação de bissexualidade adquire sua importância porque contrasta fortemente com os discursos e com as práticas de hoje em dia e nos força a reconhecer que, entre a experiência dos gregos e a nossa, existe uma ruptura.

está inscrita na natureza de seu desejo e que é necessário completar um trabalho de decodificação e interpretação do desejo, então, provavelmente, entenderemos também que o bissexual é aquele que tem dois desejos diferenciados, um desejo dirigido às mulheres e outro, aos homens, e que ambos coexistem na mesma pessoa. Nesse caso, falar da bissexualidade dos gregos consiste em aceitar que se pode ser homossexual e heterossexual ao mesmo tempo. O descobrimento dessa bissexualidade careceria de interesse. V 58

/

59

''Quiçá chegará um dia em que a gente se espantará. Não se compreenderá que uma civilização tão voltada, por outro lado, ao desenvolvimento de imensos aparatos de produção e de destruição tenha encontrado tempo e paciência infinita para se interrogar com tanta ansiedade sobre o que acontece com o sexo; sorrirá, quiçá recordando que esses homens quefomos acreditavam que no sexo havia uma verdade ao menos tão preciosa quanto a que tinham pedido que a terra, as estrelas e as formas puras de seu pensamento lhes proporcionassem; surpreender-se-ã com o esforço que empregamos em fingir que arrebatávamos à noite uma sexualidade que tudo - nossos discursos, nossos hábitos, nossas instituições, nossos regulamentos, nossos saberes - produzia a plena luz e impelia com estrépito.

O ideal do domínio de si, a fim de manter uma boa dinâmica dos prazeres da mesa e das afrodisias,

concre-

tiza-se - no dizer de Foucault - no imperativo ético por excelência da antiguidade pagã:(ocupà-te de ti mesmoi De novo, Foucault procura surpreender-nos. Pertence à tradição da interpretação do npundo clássico sustentar que o imperativo ético dominante era a inscrição do templo de Delfos "conhece-te a ti mesmo"| Esse imperativo parece-nos fácil de compreender porque coincide com os objetivos da sociedade atual. Nós a tomamos como uma frase universal que abonaria a unicidade do pensamento humano: desde sempre, dizemos a nós mesmos, o homem soube que ele era a grande incógnita e, por isso, a filosofia inicia seu percurso histórico com essa máxima. 63

FILOSOFIA

FILOSOFfA

PARA LEIGOS

Na leitura dos textos clássicos de Platão, Epicuro, Diógenes Laércio, Xenofonte, Séneca, Epicteto, Plutarco e tantos outros, Foucault encontra todas as provas de que necessita para sustentar que a expressão grega epimeleia heautou-que se pode traduzir como "ocupa-te de ti mesmo", "cuida de ti mesmo", "preocupa-te contigo mesmo" - é o verdadeiro centro da reflexão ética dos gregos. Com isso, reforça sua tese de que a preocupação moral dos antigos não girava em torno do código, mas em torno da relação consigo mesmo. O cidadão adulto e livre, único possível sujeito de moralidade, deve conseguir ser moderado e ativo no uso dos prazeres que, por sua origem, posição social e sexo, lhe estão destinados. Para isso, deverá manter uma relação conflituosa consigo mesmo, deverá levar a cabo um combate do qual poderá sair vitorioso ou perdedor. Desde Sócrates, até as escolas helenísticas, nenhuma outra coisa foi proposta pelos filósofos na hora de indicar o melhor modo de viver que não fosse estabelecer os exercícios, os treinos que se devem realizar para conseguir sair vencedor dessa luta na qual uma pessoa se mede consigo mesma. 64

PARA LEIGOS

Se, no dizer de Platão, Sócrates foi o primeiro a enunciar que seus concidadãos fariam bem em não se ocupar tanto de suas riquezas e de suas posses e, em vez disso, dedicar tempo e atenção a alcançar uma boa vida, uma vida virtuosa, os discípulos de Sócrates não fazem senão desenvolver esse mesmo princípio, concretizando-o conforme o momento político, ou a saúde pessoal, nos diferentes exercícios. O resultado é que os modelos de vida que oferecem os epicuristas, os estóicos e os cínicos, partindo todos do mesmo fermento do epimeleia heautou, acabam por ser criações diferentes. A proposta epicuristsi é adequada a todos aqueles de spúde precária que têm de se preocupar em evitar a dor. O domínio de si tem aqui o nome de ataraxiapu jmperturbabilidadé, e é conseguido praticando um tipo de vida que seleciona alimentos, pessoas e atividades, a fim de ser minimamente perturbado. No início do canto II do De rerum natura, Lucrécio diz que é prazeroso observar a partir da terra (a vida aprazível e serena do sábio) os fortes ventos levantando ondas no mar (a vida cheia de atribulações e batalhas do homem comum), não porque o 65

FILOSOFIA

PARA LEIGOS '

FILOSOFIA

sábio se regozije em ver o sofrimento, mas porque é doce

PARA LEIGOS

A proposta cínica é a mais radical, porque os cínicos

considerar de quantos males se exime. A ideia de que o

consideram á vida inteira como úrifTexercTciõ^^^^^^

prazer é a ausência da dor nos mostra como devem se

Vivem como guerreiros, apenas para o fundamental, para

comportar os epicuristas diante dos prazeres: devem ser

serem livres e para conservar essa liberdade que faz de-

muito, muito poucos, e os poucos, não muito fortes. /

les donos absolutos de si mesmos. Foucault deleita-se em contar episódios da vida de Diógenes que teatralizam essa

^^roposta estóica .está pensada em ternpos poli-

opção ética. Diógenes está na rua onde vive, lavando uma

ticos duros e para indivíduos que não evitam o mundo,

alface na água de uma fonte antes de comê-la; aparece

mas que estão nele e por ele podem chegar a sofrer. Aqui,

Platão, que se aproxima e lhe diz: "Se você bajulasse Dio-

o domínio de si(é apatia ou impassíblTídaBê) Os exercí-

nísio-trata-se do tirano de Siracusa, que desejando ver-se

cios que o estoicismo propõe são os que nos preparam

rodeado e referendado por pensadores ilustres convidou

para situações de carência, para ter de passar fome, não

Diógenes para sua corte (o qual declinou do convite), bem

poder aproveitar os prazeres da vida. Séneca relata a seu

como Platão (que viajou para lá e tentou influir na vida

amigo Lucílio que, às vezes, quando saía para caminhar

da corte) -, não lavaria alfaces"; Diógenes responde-lhe:

e correr, ordenava a seus escravos que lhe preparassem

"E você, Platão, se lavasse alfaces, não bajularia Dionísio".

seus manjares preferidos e, assim que regressava a casa e encontrava a mesa posta, pedia a eles que comessem e bebessem tudo aquilo e se resignava com água e um pedaço de pão. Dessa forma, preparava-se para o pior, sabendo que nos tempos difíceis não esmoreceria, nem se dobraria, mas poderia seguir mantendo um pleno governo de si mesmo.

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V.

66 '

.„,..„„,

O domínio de si é, para os cínicos, adiafqria ou inçljferenç^. Por meio de uma vida de treinamjent^^ os cínicos tornam-se inalcançáveis, nada nem ninguérri pode e^^ São superiores e invencíveis, como demonstra o encontro de Diógenes com Alexandre Magno. Este último diz a Diógenes, a quem foi visitar, que lhe peça um desejo e este lhe será concedido; Diógenes lhe faz um sinal para que

FILOSOFIA

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saia da frente, porque está tapando o sol. Desse acontecido extrai-se a ideia de que o autêntico soberano não é Alexandre Magno com toda a sua grandeza, mas Diógenes, sentado no chão, apoiado em sua única propriedade, um tonel onde morava. Partindo de uma ética que não prescreve outra coisa senão o cuidado de si mesmo, as respostas que os diferentes pensadores ofereceram para a melhor maneira de conseguir moderação e atividade foram variadas e múltiplas. Não há um modelo único de ascese, não se pensa que seja conveniente a mesma coisa para todos os indivíduos. A boa e bela vida pode ser retirar-se com um grupo de amigos, ou exercitar-se na renúncia, ou viver dando atenção apenas à liberdade e despojando-se de tudo aquilo que seja uma sujeição: três modos de governar a si, nenhum dos quais é melhor que o outro, mesmo quando a escolha de cada um deles é o que os faz valiosos, porque demonstra que o sujeito faz uma opção e vive sua vida ocupando-se de si mesmo.

68

"A noção de homossexualidade é bem pouco adequada para envolver uma experiência, formas de valorização e um sistema de recorte tão diferentes do nosso. Os gregos não opunham, como duas escolhas excludentes, como dois tipos de comportamento radicalmente diferentes, o amor dirigido ao próprio sexo e o amor dirigido ao outro sexo. As linhas divisórias não seguiam essa fronteira. O que opunha um homem com temperança e dono de si mesmo a um que se deixava levar pelos prazeres era, do ponto de vista da moral, muito mais importante do que o que distinguia entre elas as categorias dos prazeres aos quais era possível dedicar-se livremente.

A concepção do domínio de si, do governo de si, é absolutamente masculina. Por um lado, consiste em uma relação conflituosa consigo mesmo, é uma história de vencedores e de vencidos.Por outro ladq,_essa relação tem como objetivos a ruod^ação-^aaBtivida ambas qualidades por definição masculinas. As mulheres são excessivas no uso dos prazeres. E, quando não o são, é porque estão sob um poder paternal ou marital que lhes coloca limites. Isso é de conhecimento até dos deuses e constitui um segredo íntimo das deusas: quando Tirésias mudou de sexo e, depois de ser mulher, voltou a ser homem como era inicialmente, declarou que o prazer sexual das mulheres, que ele tinha conhecido quando tinha sido uma delas, era nove vezes 73

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mais forte que o dos homens. A deusa Hera irritou-se tanto com Tirésias, por ele ter desvelado este segredo, que o tornou cego. Além do mais, na medida em que os gregos consideram que aquele que sabe pôr em prática um princípio o faz tanto em sua vida privada quanto em sua vida pública, é evidente para eles que a ausência de mulheres nos postos de governo responde à sua natureza, na qual justamente é impossível implantar qualquer princípio, a não ser exteriormente a elas mesmas. A relação consigo mesmo como base da moralidade, e esta, por sua vez, como prova de que se pode chegar a ser um bom governante, é impensável com mulheres como sujeitos.

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Por isso tudo, pode-se entender que a relação sexual que preocupava verdadeiramente os gregos era a relação entre um cidadão adulto e um jovem. Não é uma questão de tolerância ou intolerância, porque se trata de uma prática livre, quer dizer, permitida pela lei. Mas é uma relação delicada, cujos perigos vão mais além dos vícios de excesso e passividade que ameaçam o sujeito do uso dos prazeres: existe um grande risco, não pelo lado do amante, mas pelo do amado. Com efeito, um cidadão adulto pode ter uma relação sexual com um jovem amado e conduzi-la de tal maneira que não se possa dizer que tal cidadão tenha perdido o governo de si mesmo e, portanto, poderá ser um mag-

A partir dessa perspectiva - Foucault nos faz notar, sublinhando assim o que nos diferencia dos gregos^ o indivíduo afeminado é o excessi\^, o que tem uma atitude passiva ante os prazeres, o que se deixa levar pelo exagero nos prazeres da mesa e nos de Afrodite, não aquele que tem relações sexuais com outros hornens. Também se considera afeminado^ r á p ^ ou interessado demais, que aceita uma ralaçjo com um cidadão adulto por prazer passivo ou por benefícios matéria

nífico governante dos demais, seja em sua casa ou na cidade. Mas o que acontece com a virtude do rapaz? O que acontece quando esse rapaz torna-se adulto e ocupa o posto que lhe corresponde na sociedade? A sua passividade, quando era um amado, mancha seu futuro político? O que está sob suspeita é o futuro do jovem amado como cidadão, uma vez que necessariamente ele tem de 75

FILOSOFIA

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FILOSOFIA

ser ativo e dono de si para poder chegar a ser governante. É a intrínseca relação, tão estranha para nossa própria experiência, entre a virtude da moderação nos prazeres e as qualidades do bom governante. Nós as dissociamos totalmente: consideramos que o bom comportamento à mesa não tem nada a ver com a moral sexual, e não nos parece que a falta de domínio de si nos prazeres seja indicativo de um mau governante. Os discursos morais dos gregos encaminham-se para mostrar sob quais circunstâncias e atendendo a quais requisitos o jovem pode aceitar ser o amado de um cidadão adulto. Vai-se discutir até que idade (quando começa a nascer a barba - diziam os gregos ~, a lâmina de barbear deve cortar o fio desses amores); se o amado deve aceitar ou não favores, presentes do amante (é importante que o amado saiba julgar o valor do amante não apenas pelos presentes); vai-se indagar acerca das pretensões do amante em relação ao amado (se deseja ter uma relação também pedagógica, iniciá-lo nas formas de vida que lhe serão úteis quando tiver acesso à cidadania, se é possível que o amor transforme-se em amizade).

^N

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Para um rapaz grego, que por sua origem e condição social está chamado a ser um cidadão livre, sujeito de ação em sua vida privada e em sua vida pública, não constitui uma desonra que muitos cidadãos adultos o persigam, apaixonados. Tampouco é uma desonra decidir entrar no jogo. Somente a prática dessa relação, o modo como se realiza, determina seu valor moral: se essa relação incentiva a passividade do jovem, se o jovem se presta a todos os caprichos do amante e deixa-se seduzir por qualquer um, trata-se de algo ruim e feio; ao contrário, se o jovem não se deixa dominar e assume essa relação como se fosse uma prova da qual deseja sair com um maior domínio sobre si mesmo, trata-se de algo virtuoso e belo. (Observe toda a dificuldade que existe no belo e bom uso desse prazer: praticamente se está a desaconselhar esse tipo de relação.) Em suma, nesse ponto, diante da nossa preocupação pela natureza de nosso desejo, que determina o âmbito do que chamamos "sexualidade", a preocupação dos gregos gira em torno do objeto do prazer, na medida em que esse objeto está destinado a transformar-se em sujeito de prazeres. 77

"Quem deve governar os outros é aquele que deve ser capaz de exercer uma autoridade perfeita sobre si mesmo: porque, por um lado, na posição que ocupa e com o poder que exerce, ser-lhe-ia fácil satisfazer todos os seus desejos e, portanto, entregar-se a eles, e, por outro, porque as desordens de sua conduta têm efeitos sobre todos e na vida coletiva da cidade. Para não ser excessivo e não fazer violência, para escapar ao binómio autoridade tirânica (sobre os outros) e alma tiranizada (pelos seus desejos), o exercício do poder político exige, como seu próprio princípio de regulação interna, o poder sobre si mesmo.

Q^puidado de sji as práticas pela^ quais o suj

li-

vre escolhe o modo de exercer um domínio sobre sí mesmo constituem uma estilização da existencià: Estilizar a existência é dar-lhe uma determinada forma, seguindo um gosto e uma eleição, no campo mesmo do permitido. Uma vez que a estilização é o Resultado de certos exercícios, pode-se entender que os gregos falem da arte de viver (em grego, arte se diz tekhné, de onde vem a palavra "técnica", portanto a arte de viver é uma técnica de vida). A arte de viver - nos diz Foucault - é própria do indivíduo virtuoso. A virtude é entendida, entre os gregos, como fazer o quanto melhor a atividade intrínseca que define cada um: o médico virtuoso é o que realiza a atividade intrínseca que define o que é um médico; o piloto virtuoso é o que se dedica à realização da atividade in81

FILOSOFIA

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FILOSOFIA

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trínseca ao piloto, que constitui aquele que realize bem

aponta Foucault - foram retomados e reinterpretados

as ações que resultam do fato de ser um humano: razão

pelo cristianismo com uma finalidade muito diferente.

é próprio dos humanos, assim, se um indivíduo leva uma vida conforme a razão, será virtuoso.

Com efeito, o critério de estilização da existência dos gregos, a ideia de que no interior mesmo de nossas vidas

Não há uma única maneira de ser virtuoso, como

pode-se continuar a conduzir nossas ações de modo que

também não existe uma única elegância. Todo indivíduo

consigamos o maior brilho e esplendor, a formulação de

que escolheu, no exercício de sua liberdade, conduzir-se

que é possível levar uma vida verdadeira, uma vida dife-

por meio de determinadas práticas, levar a cabo esta ou

rente e distinta da que leva a maioria, transforma-se, den-

aquela arte de viver, não se deixou levar pelos apetites,

tro do cristianismo, na promessa de uma verdadeira vida,

antes, colocou ordem em seus prazeres, selecionando

na outra vida para além da morte; e, com isso, é introdu-

quais, com quem e quando; pode-se dizer que é alguém

zida a condenação da vida terrena. Triste ironia da histó-

que coloca no posto de mando a parte de si mesmo que

ria, já que os gregos não apenas não negavam nenhum

deve mandar e, portanto, é virtuoso.

aspecto da vida, como também chegaram a formular uma concepção da vida como obra de arte que primeiro fasci-

Na medida em que o humano virtuoso é aquele que

nou Nietzsche e, nos passos dele, também Foucault.

aplica à sua vida o que verdadeiramente o constitui como humano, e conhece suas verdadeiras necessidades e a

Inspirado nos gregos, Nietzsche diz que devemos

verdadeira hierarquia das partes que regem o compor-

aprender com os artistas e ser mais sábios que eles. Ser

tamento humano, dir-se-á que ele leva uma vida direita,

artista de si mesmo é ser capaz de dar um estilo ao pró-

uma vida verdadeira, já que se trata da vida de um ver-

prio caráter, pondo em execução um plano, mediante

dadeiro humano. Entretanto, esses mesmos temas - nos

uma prática e um esforço diário. É preciso ter poder sobre

82

83

FILOSOFIA

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si mesmo para sujeitar-se à própria lei. Ser como jardineiros que, em um lugar, arrancam plantas que crescem espontaneamente e, em outro, plantam intencionalmente novas espécies que disfarçam o que não podem eliminar e realçam o que lhes parece belo. Estilizam desse modo a natureza, vencem-na, não a deixam em liberdade. Certamente, cada jardim é diferente dos outros e pode-se apreciar em cada um deles um único gosto, um estilo. Dessa maneira, tanto quanto um jardim pode ser uma obra de arte, apesar de estar constituído de materiais efémeros, também os humanos, mais mortais que um jardim, pelo próprio fato de serem mortais, podem deixar sua marca na memória daqueles que os conheceram e admiraram. A ideia de que a vida pode ser uma obra de arte - nos diz Foucault - deixa bem claro que o objetivo da moral grega era antes estético: trata-se de uma escolha pessoal> não se está dando um modelo de comportamento para o conjunto da população, mas esse tipo de moral está reservada só para uns poucos que desejam ter uma bela vida e poder deixar para os demais a lembrança dessa bela existência. 84

1. Você reparou nestes cinco losangos?

"Sobre a ideia da arte de viver, interessam-me várias coisas. De um lado, esta ideia, da qual hoje estamos muito distantes, e segundo a qual a obra que temos de fazer nao 2. Humm... Sim, e gosto apenas é, ou principalmente nao é, uma coisa (um objeto, muito dessa combinação. um texto, uma fortuna, uma invenção, uma instituição) que deixaríamos depois de nós mesmos, mas, simplesmente, nossa vida e nós mesmos. Para nós, só existe obra de arte onde algo escapa à mortalidade de seu criador. Para os antigos, ao contrário, a arte de viver aplicava-se a isso tão passageiro que é a vida daquele que a empreendia, sem prejuízo de, na melhor das hipóteses, deixar atrás de si o 3. O losango branco é o que dá dinamismo a todo o conjunto. rastro ou a marca de uma reputação. Que a vida, porque é mortal, tenha que ser uma obra de arte é um assunto digno 4. É, é... Mas você não acha tudo de nota."

V

um pouco simétrico demais?

o contraste entre nossa sociedade e a dos gregos não tem como objetivo sugerir que repitamos a experiência grega. Muitas das características do costume pagão dos prazeres parecem desprezíveis para Foucault. Para começar, a experiência grega é uma experiência só para homens e só eles podem ser sujeitos de prazeres e sujeitos éticos. Além do mais, esta misoginia está reforçada pela concepção de que a atividade e a moderação são virtudes exclusivamente masculinas. Isso significa que todas as mulheres excedem-se e são passivas, com exceção daquelas que foram bem conduzidas e governadas por um homem - pai ou marido - que conseguiu domar sua natureza. De outro lado, os gregos tiveram uma escassa imaginação e uma prática especialmente pobre ao conceber 89

FILOSOFIA

PARA LEIGOS

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a penetração como único ato sexual Outras sociedades

Além disso, a ideia da relação consigo mesmo como

^ - Foucault refere-se àsvsociedades orientais - souberam

base da moralidade pode resultar - ao menos é o que parece a Foucault - em uma alternativa [nteressante na atualidade, quando os códigos perderam a autoridade de que estavam investidos e nos perguntamos o que se pode fazer. É claro que a saída mais fácil é chamar uma reativação do código (e, de fato, a maioria das reflexões que se faz sobre a educação tem esse objetivo), mas, à margem do êxito que tal reativação possa conseguir nos comportamentos reais - é certo que já não somos gregos, mas também temos deixado de ser cristãos trata-se de uma solução repetitiva, que sente saudades daqueles tempos em que o medo e a vergonha conquistavam vidas obedientes. Se não desejamos a obediência, porque sabemos que isso não faz os humanos melhores, a perspectiva grega nos ajuda a pensar a moralidade como prática de li(Derdade (em vez de educar em valores, ensinar a partir da liberdade de criar valores). ,

elaborar uma arte erótica sobre a qual os gregos não conheceram absolutamente nada. A não reciprocidade nas relações sexuais, a polarização em forma de sujeito e objeto de prazer, tampouco parece uma proposta que possa entusiasmar muitos. Ora, levando em conta que não se trata de voltar a uma sociedade misógina e pouco imaginativa, é certo que a experiência grega permite-nos pensar sobre nós mesmos de outra maneira e, portanto, desprender-nos do compulsório incorporai da sexualidade. Não deixa de ser interessante o modo como os gregos integravam a reflexão moral em um contexto mais amplo, ao lado da preocupação pelo bom comportamento à mesa. Isso subtrai importância às relações sexuais e, ao mesmo tempo, confere importância a aspectos do comportamento que nós temos deixado de lado. 90

De outro lado, a consideração de que existem modos diferentes de ser sujeito de prazeres é a negação de um modelo único de existência: o indivíduo elege o modo de existência que mais lhe convém em virtude de uma 91

FILOSOFIA

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"

análise de suas forças, de sua saúde e das condições sociais e políticas em que vive. .

estava unido a uma fêmea fará amor com mulheres e a fêmea que estava unida a outra se comportará no amor como uma lésbica.

Abre-se a perspectiva de um mundo mais amplo e mais livre, quase uma nova terra por descobrir. E, por último, Foucault declarou em muitas ocasiões que a dúvida atual sobre a natureza do desejo - isso a que chamamos "sexualidade" - pressupõe justamente que existem desejos sexuais diferentes, conforme o objeto do desejo e, portanto, determinar quais são eles ajuda a conhecer os traços definidores dos indivíduos. Com certa ironia, Foucault novamente nos narra o mito dos humanos superiores, tal como Aristófanes contou n'0 banquete, de Platão: no princípio, os humanos eram seres completos, formados por duas cabeças, quatro pernas e quatro braços; uns eram macho-macho, outros, fêmea-fêmea e outros, macho-fêmea; os deuses zangaram-se com esses humanos por sua arrogância e os cortaram em dois, deixando cada metade como somos agora; desde aquele momento, todo mundo vai atrás da sua outra parte e, assim, quem provém de um ser primordial macho-macho buscará o amor entre os homens; o macho que originariamente 92

Os que escutavam Aristófanes em nenhum momento o levaram a sério: quem falava era o bufão da festa. Hoje em dia, quando a sociedade, a linguagem, a psicologia e os próprios humanos dizem que existem homossexuais e heterossexuais, falam sério. É importante saber que para os gregos não existe mais que um desejo - e não pçylto, rnas ha superfície do ato que lhe está associado-, o desejo da beleza, porque nossas almas têm naturalmente um apetite de beleza e perfeição e essas qualidades podem/ ser encontradas indistintamente em um corpo de homem ou em um corpo de mulher. A vantagem que hoje temos é que nos sentimos perfeitamente livres para adotar ou não os critérios que se originam da perspectiva grega. É uma proposta para todos e para nenhum em especial. O jogo está aberto: a vida de cada um é sua própria obra, e isso é verdade até para quem resolve que a vida não admite governo próprio e que a natureza ou a história já deram as cartas. 93

"A arte de viver consiste em matar a psicologia, criar consigo mesmo e com os demais individualidades, seres, relações, qualidades que nao tenham nome. Se nao se consegue fazer isso na própria vida, ela nao merece ser vivida. Não faço distinção entre as pessoas que fazem de sua existência uma obra e as que fazem uma obra em sua existência. Uma existência pode ser uma obra perfeita e sublime, e os gregos sabiam disso, enquanto nós o esquecemos por completo, sobretudo depois do Renascimento. "

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i Tanto quanto a pintura não está dirigida aos pintores nem a música aos peritos em música, a filosofia tampouco é para especialistas. A filosofia é para os leigos. A coleção Filosofia para leigos quer facilitar o acesso à filosofia de alguns autores, não pela explicação de suas vidas ou pelo resumo de suas teorias, mas oferecendo, para cada um deles, uma chave em que podem ser lidos.

A sexualidade não é uma constante histórica: interrogarmo-nos sobre a natureza de nosso desejo é uma invenção moderna.

C O M A NOVA O R T O G R A F I A DA L Í N G U A P O R T U G U E S A

ISBN 978-85-380-0836-1

788538

008361

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