Lacan, J-o Seminário 20 - Mais Ainda - Encore [letra Freudiana].pdf

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Jacques Lacan

(1972-1973)

Tradução comparada e comentada em notas e anexos Edição não comercial destinada exclusivamente aos membros da Escola

Jacques Lacan

(1972-1973)

T@íbhoteta jf reullíana

Escola Letra Freudiana Tradução comparada e comentada em notas e anexos Edição não comercial destinada exclusivamente aos membros da Escola

Edição não comercial destinada exclusivamente aos membros da Escola LetraFreudiana

Encare (1972-1973) Tradução: Analucia Teixeira Ribeiro Interlocução: Eduardo A. Vidal Revisão: Isabela Bueno do Prado Trabalho coletivo: Alone Oliveira Gomes DeaneFiuza Denise Coutinho Elaine StarostaFoguel JacintaFerraz Maria Angelina Andrade Maria Cândida Tavares Maria CristinaFerraz Coelho Maria Lucia Andrade Suzana Rocha Nascimento Syra Tahin Lopes Vera Lucia Maturino de Souza

2010 Escola LetraFreudiana Rua Barão de Jaguaripe, 231- Ipanema Rio de Janeiro- RJ- 22421-000 Tel.: (21) 2522-3877 www.escolaletrafreudiana.com.br

Sumário

Ao leitor Lição 1

7

Anexo II A compacidade

11 25 27

Lição 2

35

Lição 3 Anexo II- A lógica de Port-Royal

67 83 87

Lição 4

91

Lição 5

107

Lição 6

123

Lição 7 Anexo I- Sobre a meiose Anexo II- Sobre a saída de Jacques Lacan de Sainte Anne Anexo III- Sobre o Amor cortês Anexo I V - Teresa D'Ávila

139 157 159 161 165

Lição 8

167

Lição 9

183

Lição 10

197

Lição 11

223

Lição 12

239

Anexo I - J. Bentham -

Anexo I Saussure -

Anexo I - Respostas de Jacques Lacan a questões de J.-A. Miller em 22 de outubro de 1973

259

Lição 13

265

Ao leitor

O que se lê é da ordem da letra. O seminário de Lacan aconteceu na dimen­ são da palavra, ante uma audiência atenta, e o que aqui se dá a ler é o escrito que se decantou da palavra ouvida. No Encare, Lacan produz algumas frases nodais que provêm do real da experiência analítica. O que Lacan articula nos seus ditos tem como suporte a lógica da sexuação, que se escreve em maternas entre o modal e o nodal, assegurando a transmissão da psicanálise. No final deste seminário inicia-se uma nova escrita da psicanálise, aquela que com o nó borromeano dá suporte aos modos de gozo que tangenciam os corpos falantes. O acesso, hoje, à palavra de Lacan, é mediado por operações de ordens diversas. Em primeiro lugar, a transcrição dos seminários em francês, a partir de notas manuscritas, estenografia e gravações em fitas de áudio, o que supõe a intervenção de várias pessoas nesse trabalho inicial de passagem da oralidade à escrita. Em seguida, o eventual estabelecimento do texto e sua publicação em versão oficial. Além disso, para o leitor brasileiro que não tiver o domínio da língua francesa, nos diferentes níveis que o discurso de Lacan recobre, uma tradução torna-se um meio de acesso indispensável. E uma tradução que se proponha a esclarecer, pelo menos em parte, por meio de notas e anexos, as passagens mais enigmáticas ou mesmo intraduzíveis. Foi o que motivou este trabalho, que se definiu por dois polos: de um lado, levando em conta todas as dificuldades enfrentadas inicialmente por aqueles que, num primeiro tempo, se esforçaram para transcrever o que ouviram e/ ou acreditaram ouvir de Lacan, o que supõe variantes de entendimento ou de pontuação, no resultado proposto, variantes nem sempre esclarecedoras. Do outro lado, levando em conta, em particular, o leitor membro ou participante desta Escola, que desejava (mesmo sabendo que isso esbarra no impossível) um acesso mais amplo, não apenas ao escrito oficial do seminário, mas ao que mais se aproximasse da palavra de Lacan naquele tempo perdido para sempre, com suas hesitações, pausas, repetições e até atos falhos. Era o que nos ofereciam as versões não oficiais, não estabelecidas. Aceitando tal desafio, nos propusemos a essa tarefa, que exigiu uma leitura comparada de três versões do Encare, além da escuta das gravações do seminá­ rio, como detalhado a seguir: 7

Encare

-A Versão 1: que se diz uma "tentativa de passagem à escrita" deste semi­ nário, realizada por: VRMNAGRLSOFAFBYPMB (sem data). " As fontes utiliza­ das foram as notas de CC, DA, EP, a estenotipia para as quatro primeiras aulas, a versão Gabbay e gravações em fitas cassetes." Esta versão, que chamamos de Versão 1, acompanhada de várias notas e anexos, aqui traduzidos, continha igualmente as intervenções de François Récanati e de Jean-Claude Milner, apre­ sentadas nas Lições 2 e 10. Embora tais intervenções tenham sido publicadas posteriormente, pelos autores, traduzimos aqui as transcrições desta Versão, pelos mesmos motivos aludidos acima. - A Versão 2: versão datada de 1973/1985, trazendo na introdução a seguinte nota manuscrita, assinada por G. Taillandier: "Este seminário foi esta­ belecido na época (1972-73) por S.D. e por mim, diretamente, a partir das grava­ ções das aulas. Tendo em vista a qualidade das fitas magnéticas e a novidade, nessa tarefa, de duas pessoas, não é de admirar que haja erros eventuais de transcrição ( ... ). Existem atualmente três versões deste seminário: M. Chollet (CHO), GT/SD e J. L. Esta última versão está, porém, incompleta e completada por fragmentos de CHO. As fitas ainda existem." - A versão publicada: LACAN. J. Le séminaire, livre XX, Encare. Paris: Édi­ tions du Seuil, 1975. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. - As gravações, quase todas completas e audíveis do seminário Encare - dis­ poníveis no site do psicanalista Patrick Valas: www.valas.fr - foram preciosas, na revisão final, para algumas decisões que permitiram optar por uma das ver­ sões escritas, confirmar ou esclarecer passagens mais enigmáticas, além de rever a pontuação e a ênfase das frases, num retorno à fonte oral da palavra de Lacan. Sempre que julgamos oportuno, assinalamos, em nota, na tradução, as variantes entre as versões citadas, e a opção por uma delas foi, de modo geral, confirmada pelo documento em áudio. O trabalho se desenvolveu da seguinte forma: Ao longo de mais de três anos, uma primeira proposta de tradução de cada lição era levada ao grupo de trabalho que a discutia em seminário, sob a orientação de Eduardo Vidal. Esta discussão dava lugar a sugestões, transmitidas à tradutora, seja para modifica­ ção de algum termo, seja para inclusão de notas ou de anexos. Isso levou a uma interlocução que muito enriqueceu o trabalho, permitindo que as sugestões fos­ sem analisadas e discutidas, sempre que possível, na primeira revisão. Uma revisão final, unificando terminologia, notas e normas de impressão, contou

8

Ao leitor

com a leitura atenta de Isabela Bueno do Prado, responsável pelas publicações da Escola. Esperamos contribuir com este trabalho, que só pôde ser possível como tra­ balho de Escola, para a leitura deste seminário, que é sem dúvida fundamental na teorização lacaniana da psicanálise. Fica, contudo, a ressalva de que, longe de pôr um ponto-final na leitura e na tradução deste seminário, deixamos aqui uma abertura e um convite para que se relance esse encare.

9

Lição 1

21 de novembro de 1972 (O seminário é precedido por um longo silencio). Aconteceu-me não publicar A ética da psicanálise. Naquele tempo, isso era, de minha parte, urna forma de polidez: "você primeiro, por favor, eu lhe imploro, eu lhe 'irnpioro',I passe você primeiro!" Com o tempo, adquiri o hábito de perceber que, afinal de contas, eu podia dizer um pouco mais sobre aquilo. E depois, percebi que o que constituía o meu caminhar era algo da ordem do "eu não quero saber nada disso". E provavelmente o que faz também, com o passar do tempo, com que eu esteja aqui ainda (encare)/ e que vocês também estejam aqui - eu me admiro sempre disso - ainda (encare)! Há alguma coisa, de uns tempos para cá, que me favorece, é que há tam­ bém em vocês, na grande massa daqueles que estão aqui presentes, um mesmo - aparentemente um mesmo - " eu não quero saber nada disso". Só que, tudo se resume nisso, será o mesmo? O "eu não quero saber nada disso", de um certo saber que lhes é transmitido por migalhas, será realmente disso que se trata? Eu não creio. E é até mesmo porque vocês me supõem partir de outro lugar, nesse " eu não quero saber nada disso", que essa suposição os liga a mim. De modo que, se é verdade que eu diga que, em relação a vocês, 1

2

Em francês, jogo de palavras entre j'vaus-en-prie, fórmula habitual para 'por favor', literal­ mente: 'eu lhe imploro' e a fórmula que Lacan introduz, por homofonia: j'vous-en-pire (prie, v. prier =rogar, implorar/pire =pior, remetendo ao seu seminário do ano anterior: . .. ou pire). Caberia, em português, jogar com: eu lhe imploroj'impioro'. (N.T.) Optamos por não traduzir, neste seminário, o título Encare e, no corpo do texto, colocá-lo entre parênteses cada vez que uma tradução se fizer necessária, para facilitar o entendimento da frase. O advérbio encare pode ter vários significados em francês, alguns dos quais aparecem prioritariamente no discurso de Lacan: 1. Com o sentido do português 'ainda': marcando a persistência de uma ação ou de um momento dado. Ex: Il est encare jeune (Ele ainda é jovem). Numa frase negativa, indicando que o que deve ocorrer não ocorreu até aquele momento. Ex: Naus n'avans encare rien décidé (Ainda não decidimos nada), ou a expressão pas encare, indi­ cando a persistência de uma ausência: Elle n'avait pas encare vingt ans (Ela ainda não tinha 20 anos); 2. Com o sentido de 'de novo', 'mais um', 'um outro', 'uma vez mais', 'ainda mais' ... , marcando uma ideia de repetição ou de suplemento ou acréscimo. Ex: Vaus vaus êtes encare trompé (Você se enganou de novo); Encare un verre? (Mais um copo?); Encare! Encare! (Mais! De novo!). O último sentido aparece em Lacan mais evidentemente relacionado ao gozo. (N.T.) 11

Encare

eu só posso estar aqui na posição de analisante do meu " eu não quero saber nada disso", até que vocês alcancem o mesmo, ainda falta um bocado. E é bem isso, é bem isso que faz com que só quando o de vocês lhes parecer suficiente, vocês possam, se estiverem, inversamente} entre meus analisantes, vocês pos­ sam, normalmente, se desligar de sua análise. Não há, ao contrário do que se diz, nenhum impasse de minha posição de analista com o que faço aqui, com relação a vocês.4 No ano passado, intitulei o que eu pensava poder lhes dizer " ... ou pior" (... ou pire), depois isso "oupiora" (ça s'oupire, com s apóstrofo).5 Isso não tem nada a ver com 'eu' nem com 'tu': eu não te "oupioro", nem tu me "oupioras". Nosso caminho, o do discurso analítico, não progride senão por esse estreito limite, por esse fio de navalha que faz com que em outros lugares isso só possa " oupio­ rar" (s'oupirer). E esse discurso que me sustenta, e para recomeçá-lo este ano, vou inicialmente supor vocês na cama ... uma cama de pleno uso, para dois. Preciso aqui desculpar-me junto a alguém que, tendo procurado indagar sobre o meu discurso, um jurista, para situá-lo, pensei que podia dizer-lhe para fazê-lo perceber qual é seu fundamento, ou seja, que a linguagem não é o ser falante - que eu não me achava deslocado por ter de falar numa Faculdade de Direito, aquela onde é sensível, sensível pelo que se chama a existência dos códigos, do código civil, do código penal e de muitos outros, que a linguagem se mantém ali, fica à parte, e o ser falante - o que chamamos de 'os homens' - tem de lidar com ela, tal corno ela se constituiu ao longo do ternpo.6 Então, começar supondo vocês na cama... é claro que eu preciso me desculpar junto a ele! Mas nem por isso vou deixar de falar disso hoje, e se posso desculpar-me 3

4

5

6

12

Depois de falar de sua posição de analisante 'aqui e agora', Lacan estaria falando da posição inversa em que se encontravam alguns de seus ouvintes, a de serem seus analisantes. [Nota encontrada na Versão 1, como as demais notas sem identificação ao longo deste trabalho. As outras notas estarão identificadas como a seguir: (N.T.)] A expressão 'com relação a vocês' está suprimida na versão publicada (op. cit., p. 9) e logo depois foi introduzida uma separação: Parte 1. (N.T.) Lacan joga com as homofonias de ou pire (ou pior), com ça s'oupíre, fórmula criada por ele, que pode ser lida: "isso oupiora", ou, se tirarmos o apóstrofe, ça soupire (isso suspira), ou ainda s'assoupir (adormecer). (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 10) omite a parte final desta frase, que consta também da Versão 2: "tem de lidar com ela, tal como ela se constituiu ao longo do tempo", substituindo-a por: "é uma coisa bem diferente". (N.T.)

Lição 1

-

21 de novembro de 1972

é para lembrar a ele que, no fundo de todos os direitos, há aquilo de que vou falar, ou seja, o gozo. O Direito fala disso, o Direito não ignora nem mesmo este ponto de partida, esse bom Direito Costumeiro, no qual se funda o uso do con­ cubinato, o que quer dizer deitar juntos. Evidentemente, vou partir de outra coisa, daquilo que, no Direito, permanece velado, a saber, o que se faz com isso:7 faz-se amor.8 Mas isso é porque eu parto do limite, de um limite do qual efetivamente se deve partir para ter seriedade, o que eu já comentei: poder estabelecer a série9 do que se aproxima disso.10 O usufruto,11 essa é realmente uma noção de Direito e que reúne numa só palavra o que eu já lembrei no seminário sobre A ética da psicanálise, de que falava há pouco, a saber, a diferença que há do outil,12 do útil ao gozo. O útil serve para quê? É o que nunca ficou bem definido por causa de um respeito, de um respeito prodigioso que, graças à linguagem, o ser falante tem pelo meio. O usufruto quer dizer que se pode gozar de seus meios, mas que não se deve desperdiçá-los. Quando se recebeu uma herança, tem-se o usufruto

Convém assinalar aqui uma diferença entre o texto do seminário publicado (op. cit., p. 10), onde se lê: ce qu 'on y Jait, cuja tradução é 'o que se faz aí', remetendo ao lugar, à 'cama', men­ cionada por Lacan um pouco antes, e as Versões 1 e 2, que trazem ambas: ce qu 'on en Jait, cuja tradução pode ser 'fazer disso' ou 'fazer com isso', como traduzimos acima. (N.T.) 8

9

Em francês: s'étreindre, que tem o sentido mais amplo de 'abraçar-se, estreitar-se', mas aqui, num eufemismo muito habitual na língua francesa, evoca especificamente o ato sexual, o que não é o caso do verbo ' abraçar', em português. (N.T.) Em todas as lições, de 22 de fevereiro de 1967 a 14 de junho de 1967 do seminário A lógica do fantasma, Lacan utilizou uma série (no caso a série infinita dita de Fibonacci) para tentar dar, como ele vai fazer aqui, " ... a topologia do que acontece relativamente ao gozo" (lição de 30 de maio de 1967).

10 A

versão publicada (op. cit., p. 10) introduz aqui a seguinte frase, que não consta das duas outras versões: "Esclarecerei aqui, com uma palavra, a relação entre o direito e o gozo." (N.T.)

11

12

Em francês: usufrui!, sinônimo de jouissance (gozo), na linguagem jurídica, vem do latim usu­ fructus: "Direito que se confere a alguém para, por certo tempo, retirar de coisa alheia todos os frutos e utilidades que lhe são próprios, desde que não lhe altere a substância ou o destino." Dicionário Aurélio do séc. XXI, versão eletrônica. (N.T.) Pela proximidade da pronúncia, em francês, entre outil (ferramenta, instrumento) e utile (útil). O Dictionnaire étymologique de la Zangue française de O. Bloch e W. Von Wartburg, p. 452, comenta que no século XVI ou til se escrevia muitas vezes util, por cruzamento com o adjetivo utile. A versão publicada (op. cít., p. 10) suprime a forma ou til. 13

Encare

dela, pode-se desfrutar dela com a condição de não usá-la demais. É aí que está a essência do direito, que é repartir, distribuir, retribuir o que é do gozo. Mas o que é o gozo? É precisamente o que, por enquanto, se reduz para nós a uma instância negativa. O gozo é o que não serve para nada, só que isso não explica muita coisa. Aqui eu aponto a reserva que esse campo do direito implica: direito ao gozo. O direito não é o dever. Nada força ninguém a gozar, exceto o supereu. O supereu é o imperativo do gozo: Goze! É o mandamento que parte de onde? É bem aí que se encontra o ponto axial que o discurso analítico interroga.13 Foi exatamente nessa via que eu tentei mostrar, numa certa época, na época do "você primeiro", que deixei passar, que se a análise nos permite avançar numa certa questão, é porque não podemos nos limitar àquilo de onde eu parti, certamente, com todo o respeito, ou seja, da Ética de Aristóteles,l4 para mostrar qual deslizamento se fizera com o tempo. Deslizamento que não é progresso, deslizamento que é contorno, deslizamento que, de uma consideração, no sen­ tido próprio do termo, de uma consideração do ser, que era a de Aristóteles, levou ao tempo do utilitarismo de Bentham/5 ao tempo da Teoria das fícções,l6 ao tempo daquilo que, da linguagem demonstrou o valor de utensílio, o valor de uso. O que nos deixa enfim voltar a nos interrogar sobre o que se refere a esse ser, a esse 'Bem Supremo', colocado ali como objeto de contemplação, e de onde se tinha acreditado poder edificar uma ética. 13

As duas últimas frases estão suprimidas na versão publicada (op. cit., p. 10). A Versão 2 traz aqui: "E o mandamento de onde parte tudo, é bem aí que se encontra... " (N.T.)

14

ARISTOTE, É tique à Nicomaque. Paris: Vrin, 1990. ARISTÓTELES, " Ética a Nicômaco" . In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 45.

15

Lacan cita Bentham no dia 9

de maio de 1950, numa comunicação para a XJII• Conferência dos psicanalistas de língua francesa, retomada nos Escritos: "Introdução teórica às funções da psi­ canálise em criminologia" . In: LACAN, J., Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 127. Lacan também faz referência a Bentham duas vezes, durante seu seminário sobre A ética da psicanálise, nos dias 18 de novembro de 1959 e 11 de maio de 1960 (LACAN, J., L'éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986. LACAN.J. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edi­ tor, 1988). Cf. SOUBBOTNIK, M. A. "Le tissu de la fiction: approche de Bentham". In: Revue du Littoral n° 36. Paris : EPEL, out. 1992, p. 65, Cf. Anexo I.

16

BENTHAM, J. De l'ontologie et autres textes sur les fictions. Paris: Seui!, 1997. Texto em inglês estabelecido por Philip Schofield, tradução francesa e comentário de Jean-Pierre Cléro e Chris­ tian Lava!. BENTHAM, J. "Théorie des fictions". In: Revue Discours psychanalytique. Paris: Association Iacanienne internationale, mars 1966.

14

Lição 1 -21 de novembro de 1972

Deixo-os então nessa cama, com suas inspirações. Eu vou sair e, uma vez mais, escreverei sobre a porta, para que na saída, talvez vocês possam se dar conta dos sonhos a que se entregaram, nessa cama, a seguinte frase17: "o gozo do Outro, do Outro com . . . " - parece-me que repito isso há tanto tempo que já deve bastar que eu pare por aqui, já enchi tanto seus ouvidos com essa mai­ úscula que vem depois, que agora ela aparece por toda parte, essa maiúscula, diante do Outro, mais ou menos oportunamente, aliás, isso se imprime a torto e a direito - "o gozo do Outro, do corpo do outro que O (aqui também com maiúscula) que O simboliza, não é o signo do amor" .18 Eu escrevo isso e não escrevo depois: acabou, nem amém, nem assim seja.19 Ele não é o signo, mas é contudo a única resposta. O complicado é que a res­ posta, ela já está dada no nível do amor, e o gozo, por esse motivo, permanece uma questão, questão no fato de que a resposta que ele possa constituir não é necessária inicialmente. Não é como o amor. O amor, sim, faz sinal, e como eu tenho dito já há muito tempo, é sempre recíproco. Se eu propus isso muito devagar, dizendo que os sentimentos são sempre recíprocos, era para que ... ah! para que isso me retornasse: - E então? E então? E o amor? E o amor, ele é sempre recíproco? - Mas é claro! Mas é claro!20 Foi mesmo por isso que se inventou o inconsciente, para se perceber que o desejo do homem é o desejo do Outro, e que o amor é uma paixão que pode ser a ignorância desse desejo, mas não lhe tira todo o seu alcance. Quando se olha mais de perto, veem-se as devastações que ele causa. Então, certamente, isso explica que o gozo do corpo do outro, esse gozo, não seja uma resposta necessária. Isso vai até mais longe: também não é uma 17

18

Na versão publicada (ap. cit., p. 11), a longa frase que se segue foi resumida: "O gozo do Outro, do Outro com O maiúsculo, do corpo do Outro que o simboliza, não é o signo do amor". (N.T.) Não há nenhum testemunho de que esta frase tenha sido escrita, nem na porta nem no quadro. Nós a consideramos, todavia, como um escrito e a transcrevemos entre aspas. Lacan volta cons­ tantemente a esta frase, nesta aula bem como nas seguintes. Decidimos escrever regularmente gozo do Outro com 'O' maiúsculo, já que Lacan é muito explícito nesse ponto, e gozo do corpo do outro com ' o' minúsculo, porque se trata desta vez do outro que O simboliza, precisamente esse grande Outro. A versão publicada (op. cit., p. 11) introduz aqui uma separação: Parte 2.

19

Neste ponto da versão publicada (op. cit., p. 11), as frases 2, 3 e 4 do parágrafo foram suprimi­ das, resumindo-se a: "O amor, é certo, faz sinal, e é sempre recíproco". (N.T.)

20

Lacan pronunciou com insistência: Mais z 'oui, mais z'oui. 15

Encare

resposta suficiente, porque o amor, ele sim, demanda o amor, e não cessa de demandá-lo e de demandá-lo sempre mais (encare). Encare, este é o nome pró­ prio dessa falha de onde, no Outro, parte a demanda de amor. Então, de onde parte aquilo que é capaz, é certo, mas de modo não necessá­ rio, não suficiente, de responder pelo gozo, gozo do corpo, do corpo do outro? E exatamente daquilo que, no ano passado, inspirado de certo modo pela capela de Sainte-Anne, que me dava nos nervos, eu me deixei levar e chamei de (a)mur.21 O (a)mur é o que aparece em signos bizarros no corpo e que vem de mais além, de fora, daquele lugar que acreditamos poder vislumbrar no micros­ cópio, sob a forma do gérmen, sobre o qual eu lhes assinalo que não se pode dizer que ali esteja a vida, já que isso também traz a morte, a morte do corpo, que isso o reproduz, que isso o repete, que é daí que vem o en-corpsf encore.22 E falso dizer: separação do soma e do gérmen, já que por abrigar esse gér­ men, o corpo traz rastros (traces). Há rastros no (a)mur. O ser do corpo é sexu­ ado, certamente, mas isso é secundário, como se diz. E como a experiência o demonstra, não é desses rastros que depende o gozo do corpo, enquanto ele simboliza o Outro. E isso que mostra a mais simples consideração das coisas. De que se trata então no amor? Como propõe a psicanálise, com uma audá­ cia tanto mais incrível que toda a sua experiência vai contra, o que ela demons­ tra é o contrário, o amor é fazer Um. É verdade que não se fala de outra coisa há muito tempo, do Um: a fusão, o Eros seriam tensão em direção ao Um.23 Há Um (Y a d' l 'Un)/4 foi com isso que sustentei meu discurso do ano pas­ sado, e certamente não foi para confluir nessa confusão original.. . a do desejo 21

Em português seria '(a) muro' em lugar de 'amor'. (N.T) Na lição de 6 de janeiro de 1972, do seminário O saber do psicanalista, que ele dava na capela de Sainte-Anne, Lacan fala aos muros: " ...já que eu pensava falar no Anfiteatro Magnan e estou falando (n)a Capela. Que história! Vocês ouviram? Vocês ouviram? Eu falo À CAPELA! Esta é a resposta, eu falo à Capela, isto é, AOS MUROS!" Mais adiante, ele utiliza o neologismo (a)mur que nós retomamos: "O amor, o bem que a mãe quer a seu filho, o '(a)muro', basta pôr entre parênteses o a para enconh·ar o que nós tocamos com a mão todos os dias. E que mesmo entre mãe e filho, a relação que a mãe tem com a castração, isso conta um bocado!"

22

Homofonia em francês entre en-corps (em corpo) e encare (Cf. nota 2). (N.T.)

23

A versão publicada (op. cit., p. 12) traz aqui: "O amor, será fazer um? O Eros será tensão para o Um?" (N.T.)

24

"Há Um" é uma tradução aproximada do conceito "Y a d' l'Un" . Como em português não existe o partitivo, qualquer tentativa de tradução do partitivo francês por "de, do", é completamente forçada e sem sentido em português. É como se disséssemos "Há' do' vinho no copo". (N.T.)

16

Lição 1 - 21 de novembro de 1972

que não nos conduz senão à visada da falha onde se demonstra que o Um só tem a ver com a essência do significante. Se eu interroguei Frege/5 inicialmente, foi para tentar demonstrar a hiância que há desse Um a alguma coisa que tem a ver com o ser e, por detrás do ser/6 com o gozo. O amor... posso lhes dar, de todo modo, um pequeno exemplo, o exemplo de um periquito que estava enamorado de Picasso. Pois bem, isso se via pela maneira como ele beliscava a gola de sua camisa e as abas de seu casaco. Esse periquito estava realmente enamorado daquilo que é essencial ao homem, ou seja, sua vestimenta. Esse periquito era como Descartes, para quem os homens eram roupas en proménade,27 se vocês me permitirem, certamente, isso promete a mênade/8 isto é, quando são tiradas. Mas isso é apenas um mito, um mito 2 5

26

27

28

A primeira referência a Frege estaria na lição de 20 de março de 1957 do seminário A relação de objeto. Encontra-se essa referência a Frege novamente na lição de 28 de fevereiro de 1962, do seminário sobre A identificação (inédito), referência que se limita a uma só frase: "Assim vocês não terão dificuldade - vocês encontrarão isso na leitura de Frege, ainda que Frege não entre por essa via, por falta de uma teoria suficiente do significante - em encontrar no texto de Frege, que os melhores analistas matemáticos da função da unidade, nomeadamente Jevons e Schrtider, enfatizaram, da mesma maneira que eu, a função do traço unário". Os pri­ meiros desenvolvimentos importantes dados à leitura de Frege aparecem em janeiro de 1965, no seminário Problemas cruciais da psicanálise (inédito), onde Lacan diz explicitamente (20 de janeiro de 1965) reservá- los "à parte fechada deste curso, que terá o nome de seminário". Foi nas aulas fechadas de 27 de janeiro de 1965 e de 24 de fevereiro de 1965 que Yves Duroux e depois Jacques-Alain Miller centralizaram, respectivamente, suas intervenções em Frege. Nós nos referimos pela maiúscula do Um (Un) e a minúscula do ser (être) ao resumo de . . . ou pire. LACAN. J. Scilicet 5. Paris: Seuil, 1975 (escrito anteriormente em ''L'étourdit", segundo DOR, J. Bibliographie des travaux de Jacques Lacan. Paris: Inter Editions, 1983, p. 77) . Encontra-se Ê tre, com maiúscula, em LACAN, J., "L'étourdit". In: Scilicet 4. Paris: Seuil, 1973. Termo inventado por Lacan Guntando promenade =passeio e ménade =mênade, bacante (N.T.)) cuja referência se encontra em: DESCARTES, Méditations métaphysiques (Segunda meditação, parágrafo 14). Paris: Gallimard, 1953, p. 281: "...se por acaso eu olhasse de uma janela homens passando na rua, à vista dos quais eu não deixo de dizer que vejo homens, do mesmo modo que digo que vejo cera, e no entanto, que vejo eu dessa janela senão chapéus e casacos ... " Mênade (ou bacante): figura da mitologia grega, companheira de Dioniso, geralmente con­ sagrada aos mistérios desse deus. Ninfa campestre, ama de leite, depois acompanhante de Dioniso. Representavam-se as mênades formando seu séquito, descabeladas, nuas ou vestidas de véus transparentes que mal dissimulavam sua nudez, e dando gritos. Elas despedaçaram Orfeu em seus ritos sanguinários. Quanto às mulheres adeptas desse culto, elas usavam entor­ pecentes e entravam num êxtase sagrado, que fazia com que se tornassem a presa de Dioniso. Dictionnaire Larousse. Paris: Larousse, 1963, tomo 7, p. 247 e P. GRIMAL, P. Dictionnaire de la mythologie grecque. Vendôme: P. U.F., 1951, p. 288.

17

Encare

que vem convergir com a cama de há pouco. Gozar de um corpo, quando não há mais roupas, é algo que deixa intacta a questão do que faz o Um, isto é, a da identificação. O periquito se identificava a Picasso, vestido. O mesmo acontece com tudo o que se refere ao amor. Dito de outra forma, o hábito ama o monge, pois é por aí que eles formam apenas Um. Em outras palavras, o que há sob o hábito e que nós chamamos de corpo talvez não seja, nesse caso, senão aquele resto que eu chamo de objeto a. O que faz a imagem se sustentar é um resto. E o que a análise demonstra é que o amor, em sua essên­ cia, é narcísico, e o blá-blá-blá sobre o objetai é algo, justamente, cuja substância ela sabe denunciar no que é resto no desejo, isto é, sua causa, e o que o sustenta, por sua insatisfação ou mesmo por sua impossibilidade. A impotência do amor, embora ele seja recíproco, está ligada a essa igno­ rância de ser o desejo de ser Um. Isso nos leva à impossibilidade de estabelecer a relação deles/ dois.29 Deles quem? Dos dois sexos.30 Seguramente, como eu disse, o que aparece nesses corpos, sob essas formas enigmáticas que são os caracteres sexuais, que não passam de secundários, sem dúvida faz o ser sexuado. Mas o ser é o gozo do corpo como tal, isto é, 31 como a coloquem-no como vocês quiserem - como a sexuado. Pois o que é dito gozo sexual é dominado, é marcado pela impossibilidade de estabelecer como tal, em nenhum lugar do enunciável, esse único Um que nos interessa, o Um da relação: relação sexuaP2 E o que o discurso analítico demonstra que, justamente no que diz res­ peito a um desses seres como sexuado, o homem, enquanto provido do órgão dito fálico - eu disse dito' -, o sexo corporal, o sexo da mulher - eu disse da' mulher - justamente, não há, não existe 'a' mulher. A mulher é 'não-toda', o sexo da mulher não lhe diz nada, a não ser por intermédio do gozo do corpo. -

I

29

Em francês há homofonia entre d'eux (deles) e deux (dois). (N.T.)

30

Neste ponto, a versão publicada (op. cit., p. 12) introduz uma separação: Parte 3. (N.T.)

1

31 A versão publicada (op. cit., p. 13) suprime a parte que se segue, resumindo-a: "isto é, como assexuado". (N.T.)

32 Em francês: I' Un de la relation: rapport sexuel. Cabe aqui um comentário sobre os termos relation e rapport, que traduzimos ambos por 'relação' e que em muitos casos são termos equivalentes em francês. Ex: pode-se dizer 'relations sexuelles' ou 'rapports sexuels', referindo-se ao coito ou cópula. O termo 'rapport', em matemática é, contudo, específico para indicar "razão, fração, quociente de duas grandezas da mesma espécie" . É nesse sentido que, embora haja 'relações sexuais', não há ' rapport' entre os dois sexos. Cf. Dicionário Le Petit Robert. (N.T.) 18

Lição 1

-

21 de novembro de 1972

O que o discurso analítico demonstra, permitam-me dizê-lo dessa forma, é que o falo é a objeção de consciência feita por um dos dois seres sexuados ao serviço a ser prestado ao Outro.33 E não me falem dos caracteres sexuais secundários da mulher porque, até segunda ordem, são os da mãe que primam nela. Nada distingue a mulher como ser sexuado, senão, justamente, o sexo. Que tudo gire em torno do gozo fálico, é exatamente isso que a experiência analítica testemunha, e testemunha nisso, que a mulher se define por uma posição que apontei como 'não toda' no que se refere ao gozo fálico. Vou um pouco mais longe: o gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não consegue, eu diria, gozar do corpo da mulher, precisamente porque aquilo de que ele goza é desse gozo, o do órgão.34 E é por isso que o supereu, tal como indiquei há pouco, com o 'Goze!', é correlato da castração, que é o signo de que se reveste a confissão de que o gozo do Outro, do corpo do outro,35 não se pro­ move senão pela infinitude, e vou dizer qual: a que é sustentada pelo paradoxo de Zênon, nem mais nem menos, ele mesmo.36 Aquiles e a tartaruga, esse é o esquema do gozar, de um lado do ser sexuado. Quando Aquiles deu aquele passo e transou com Briseida, tal como a tartaruga, ela também avançou um pouco, isso porque ela é 'não toda', 'não toda' dele. Falta um pouco. E foi preciso que Aquiles desse o segundo passo, como vocês sabem, e assim por diante. Foi dessa mesma forma que, em nossos dias, mas somente em nossos dias, chegou-se a definir o número, o verdadeiro, ou melhor dizendo, o reaP7 Por­ que o que Zênon não tinha visto é que a tartaruga também não está preservada dessa fatalidade de Aquiles, é que como o passo dela é cada vez menor, tam33

Parece-nos que aqui se poderia escrever 'outro', com minúscula, tendo em conta a apresenta­ ção um tanto fenomenológica que Lacan faz.

34

Vários ouvintes anotaram: orgasmo (pela proximidade de pronúncia entre organejorgasme). (N.T.)

35

Para a justificação de 'o' minúsculo em 'outro', cf. a nota 33, acima.

36

Aristóteles nos relata assim o segundo argumento de Zênon contra o movimento: "Ele con­ siste em dizer que o mais lento na corrida não pode ser alcançado pelo mais rápido, visto que o perseguidor deve atingir necessariamente o ponto de onde partiu o perseguido ... " (Physique, VI, ix, 23914).

37

Quanto aos números reais, cf. nota 48. 19

Encare

bém não chegará nunca ao limite. E é nisso que se define um número qualquer que ele seja, se ele é real. Um número tem um limite, e é nessa medida que ele é infinito. Aquiles, isso fica bem claro, só pode ultrapassar a tartaruga, ele não pode alcançá-la, ele só a alcança na infinitude. Fica assim dito o que se refere ao gozo, na medida em que ele é sexual. O gozo é marcado, de um lado, por esse buraco que não lhe assegura outra via senão a do gozo fálico. Será que do Outro38 lado, algo não poderia ser alcançado que nos dissesse como seria realizado aquilo que até aqui não passa de falha, de hiância no gozo? E aquilo que, coisa singular, pode ser sugerido por apreciações muito estranhas (étranges) . Étrange é uma palavra que pode ser decomposta em être ange, ser anjo; é exatamente algo contra o qual nos põe de sobreaviso a alter­ nativa de ser tão tolo quanto o periquito de há pouco. Contudo, olhemos mais de perto o que nos inspira a ideia de que, no gozo, no gozo dos corpos, o gozo sexual tenha esse privilégio de poder ser interrogado como sendo especificado, pelo menos, por um impasse. E nesse espaço, espaço do gozo, tomar algo de limitado, de fechado. É um lugar e falar disso é uma topologia.39 Aqui nos guia aquilo que - em algo que vocês verão publicado em destaque do meu discurso do ano passado - eu creio demonstrar: a estrita equivalência de topologia e estrutura.40 O que distingue o anonimato do que é chamado de gozo, ou seja, o que é ordenado pelo direito, uma geometria, justamente, a heterogeneidade do lugar, é que há um lugar do Outro. Desse lugar do Outro, de um sexo como Outro, como Outro absoluto, que nos permite propor o mais recente desenvolvimento dessa topologia, proporei aqui o termo compacidadeY Nada mais compacto do que uma falha, se estiver bem claro que, em algum lugar, está dado que a interseção de h1do o que aí se fecha sendo admitida como existente, num número finito de conjuntos, disso resulta, é uma hipótese, que a interseção existe num número infinito.42 Isso é

38

Para a justificação de maiúscula em Outro, cf. nota 50.

39

Se o termo 'topologia' indica um setor da matemática, a expressão 'uma topologia', aqui utilizada por Lacan, é comumente sinônimo de 'estrutura topológica'.

40

LACAN, J. "L' étourdit". In: Scilicet 4. Paris: Seuil, 1973.

41 Cf. Anexo 2 desta lição. 42

20

A versão publicada (op. cit., p. 14) traz uma versão diversa da frase acima: "Nada mais com­ pacto que uma falha, se estiver bem claro que, a interseção de tudo o que aí se fecha sendo

Lição 1 - 21 de novembro de 1972

a própria definição da compacidade.43 E essa interseção de que eu falo é a que propus, há pouco, como sendo aquilo que cobre, o que faz obstáculo à relação sexual suposta. Ou seja, o que me leva a enunciar que o avanço do discurso analítico está precisamente nisso: o que ele demonstra é que, como seu discurso só se sustenta pelo enunciado de que 'não há', de que é impossível estabelecer a relação sexuaL é por aí que ele determina também qual é realmente o estatuto de todos os outros discursos. Está aí nomeado o ponto que cobre a impossibilidade da relação sexual como tal. O gozo, enquanto sexual, é fálico, isto quer dizer que ele não se refere ao Outro como tal. Sigamos aí o complemento dessa hipótese de compacidade. Uma fórmula nos é dada pela topologia que qualifiquei de a mais recente, ou seja, de uma lógica construída precisamente sobre a interrogação do número e daquilo a que ele con­ duz, uma restauração44 de um lugar que não é o de um espaço homogêneo. O complemento dessa hipótese de compacidade é o seguinte: no mesmo espaço delimitado, fechado, suposto instituído, o equivalente do que eu disse, há pouco, da interseção passando do finito ao infinito45 é que supondo-se esse mesmo espaço delimitado, fechado, recoberto de conjuntos abertos, isto é, daquilo que se define como excluindo seu limite, do que se define como maior do que um ponto, menor do que um outro, mas em caso algum igual ao ponto de partida nem ao ponto de chegada, para lhes dar uma imagem rápida,46 o mesmo admitida como existente sobre um número infinito (sic) de conjuntos, disso resulta que a inter­ seção implica esse número infinito." (N.T.) 43

Com esta definição da compacidade em termos finitos, na qual a hipótese recai sobre uma família finita e a conclusão sobre uma família infinita, Lacan tenta dar uma topologia do gozo do lado fálico em termos bastante similares aos utilizados no seminário A lógica do fantasma, com a série de Fibonacci. Nos dois casos, a impossibilidade da relação sexual é a impossibi­ lidade de um ponto de obstáculo que o infinito não pode oferecer: aqui, sob a forma de uma conclusão que recai sobre o infinito e em A lógica do fantasma, com a série de Fibonacci, sob a forma da incomensurabilidade de "a" a 1 .

44 A versão publicada (op. cit. p. 14) traz aqui: "à l'instauration" ("à instauração d e u m lugar ..." ) . (N.T.) 45 A versão publicada (op. cit. p. 14) traz aqui: "s'étendant à l 'infini" ("estendendo-se ao infinito"). (N.T.) 46

Essa definição é não apenas uma maneira de "dar uma imagem rápida", mas as noções de "maior do que um ponto" e "menor do que um outro" não se sustentam sem se referir a uma reta orientada, o que não está indicado aqui. 21

Encare

espaço sendo, pois, suposto recoberto por espaços abertos, é equivalente dizer, isso se demonstra, que o conjunto desses espaços abertos se oferece sempre a um sub-recobrimento de espaços abertos, todos eles constituindo uma finitude, ou seja, que a sequência dos ditos elementos constitui uma sequência finita.47 Vocês podem notar que eu não disse que eles eram contáveis48 e, no entanto, é isso que o termo finito implica. Para serem contáveis, é preciso que se encontre aí uma ordem, e devemos marcar um tempo antes de supor que essa ordem seja encontrável. Mas o que quer dizer, em todo caso, a finitude demonstrável desses espaços abertos, capazes de recobrir esse espaço delimitado, fechado, no caso, do gozo sexual, o que o implica, em todo caso, é que os ditos espaços -e já que se trata do Outro lado, vamos colocá-los no feminino -podem ser tomados um por um, ou ainda, uma por uma.

Ora, é isso que se produz nesse espaço do gozo sexual que, por esse fato, revela-se compacto. Essas mulheres não-todas, da forma como se isolam em seu ser sexuado, o qual, portanto, não passa pelo corpo, mas pelo que resulta de uma exigência na palavra, de uma exigência lógica. E isso muito precisamente porque a lógica, a coerência inscrita no fato de que a linguagem ex-sista", de que ela esteja fora dos corpos que são agitados por ela, o Outro, o Outro com O maiúsculo, que agora se encarna, se podemos dizer, como ser sexuado, exige esse uma por uma" . 11

11

47

Lacan dá aqui uma definição da compacidade em termos de abertos que não é, stricto sensu, o complemento, ou complementar à primeira, em termos de fechados, mas que está muito exatamente contraposta a ela, cf. Anexo 2.

48 Lacan utiliza aqui o termo contável, onde mais comumente em matemática se usaria o termo enumerável. Não se deve entender aqui que não se possa contar ou enumerar os elementos de uma sequência finita. Os elementos de uma sequência finita são efetivamente contáveis ou enumeráveis, bem como os de uma sequência ir.finita, se ela for constituída de elementos discretos. O primeiro dos exemplos é a sequência finita e discreta constituída pelos números inteiros naturais N (-oo.. .-1.0,1,2,3 ...oo) que podem ser contados ou enumerados. Fala-se então de infinito enumerável. De um modo geral, qualifica-se de enumerável todo infinito em que se pode fazer cada um dos elementos corresponder a um número da sequência dos inteiros naturais (diz-se então que ele é equipotente a N). Mas o que não se pode contar ou enumerar são os elementos de um conjunto infinito e contínuo, tal como o dos números reais R, repre­ sentado por todos os pontos de um segmento de reta. Qualquer intervalo da reta numérica real R contém uma infinidade de pontos. Fala-se então de infinito não enumerável. Lacan não quer dizer, portanto, que os elementos de uma sequência finita não sejam contáveis ou enu­ meráveis. Ele salienta apenas indiretamente essa característica importante de uma sequência ser ou não enumerável conforme ela seja ou não equipotente a N (sequência infinita) ou a uma de suas partes (sequência finita). 22

Lição 1 - 21 de novembro de 19 72

E é bem aí que é estranho, que é fascinante, é o caso de dizê-lo - Outro fascinação, Outro fascínum49 - essa exigência do Um, corno já estranhamente o Parmênides podia nos fazer prever, é do Outro que ela sai: ali onde está o ser está a exigência da infinitude. Eu comentarei, voltarei a tratar do que se refere ao lugar do Outro. Mas desde já, para lhes dar urna imagem, e porque afinal de contas eu suponho que alguma coisa do que lhes proponho possa cansá-los, vou ilustrá-lo para vocês. Sabe-se muito bem o quanto os analistas se divertiram em torno desse Dom Juan, do qual fizeram tudo, inclusive, o que é o cúmulo, um homossexual! Será que ao centrá-lo no que acabo de lhes desenhar, nesse espaço do gozo sexual a ser recoberto, do Outro50 lado, por conjuntos abertos e terminando nessa finitude... eu marquei bem que não disse que era o número e, no entanto, é claro que isso ocorre, pois afinal podem ser contadas. O que é essencial no mito feminino de Dom Juan é exatamente isso, é que ele as tem urna por urna. E é isso que é o Outro sexo, o sexo masculino, no que se refere às mulheres. E exatamente nisso que a imagem de Dom Juan é capital, porque fica indicado que, afinal de contas, ele pode fazer urna lista delas e que, a partir dos nomes, pode-se contá-las. Se há mille e tre delas, é exatamente porque podem ser tornadas uma por uma, e aí está o essencial. Corno vocês podem ver, há aí algo bem diferente do Um da fusão univer­ sal. Se a mulher não fosse 'não toda', se em seu corpo ela não fosse 'não toda' corno ser sexuado, nada disso se sustentaria.51 O que isso quer dizer? Que eu pude52 lhes dar uma imagem dos fatos que são fatos de discurso - desse discurso que solicitamos que saia na análise, em nome 49

Fascinum é a palavra que designa o falo, na Roma antiga. Também quer dizer 'malefício', 'sor­ tilégio' . (N.T.)

50

Outro com O maiúsculo em "Outro lado", para marcar bem que é do lado do gozo do Outro, considerado como um espaço compacto, onde se desdobram recobrimentos abertos ao infinito dos quais se pode extrair, precisamente porque esse espaço é compacto, um sub-recobrimento finito (portanto, extrair "uma por uma" do infinito). O gozo do Outro lado é oposto aqui ao gozo fálico, ele também considerado um espaço compacto, mas onde se desdobra, desta vez, uma subfamília finita de espaços fechados, cuja interseção é não vazia, o que permite concluir, sempre porque o espaço é compacto, que todas as famílias - inclusive, pois, as famílias infini­ tas - têm elas próprias uma interseção não vazia (e, portanto, tirar uma conclusão sobre algo de infinito, onde a hipótese incide sobre o finito) .

51 A versão 52

publicada (op. cit., p. 16) introduz aqui uma separação: Parte 4.

Havia uma divergência no entendimento desta frase. A Versão 1 introduz aqui um subjuntivo 'que eu tenha podido', que dificultava a compreensão. (N.T.) 23

Encare

do quê? da falha de tudo o que se refere aos outros discursos - o aparecimento de algo onde o sujeito se manifesta em sua hiância, naquilo que causa seu desejo. Se não houvesse isso, eu não poderia fazer a articulação, a costura, a junção com algo que nos vem de outro lugar bem diferente: uma topologia da qual, porém, podemos dizer que ela não provém do mesmo lugar, mas de um outro discurso, de um discurso tão mais puro, tão mais manifesto no fato de que ele não é gênese senão de discurso. E que isso converge com uma experiência a tal ponto que isso nos permite articulá-la. Não haveria nisso algo de fato também para nos fazer voltar e justificar, ao mesmo tempo, aquilo que, no que eu pro­ ponho, se sustenta, se s'ouplre53 por não recorrer jamais a nenhuma substância, por não se referir jamais a nenhum ser, por estar em ruptura, por esse fato, com o que quer que se enuncie como filosofia? Será que isso não é justificado? Eu o sugiro - só mais tarde avançarei nessa questão - eu o sugiro, porque tudo o que se articulou sobre o ser, tudo o que o faz se recusar ao predicado e dizer, por exemplo, o homem é", sem dizer o quê, por aí nos é dada a indicação de que tudo o que é do ser está estreitamente ligado, precisamente, a essa secção do predicado e indica que nada em suma pode ser dito senão por esses desvios em impasse, por essas demonstrações de impossibilidade lógica, por onde nenhum predicado basta. E o que se refere ao ser, a um ser que se colocaria como absoluto nunca é senão a fratura, a quebra, a interrupção da fórmula ser sexuado", na medida em que o ser sexuado está implicado no gozo. 11

11

53

24

Cf. nota 5. (N.T.)

Anexo I

-

]. Bentham

Lição 1

21 de novembro de 1972

Jeremy Bentham nasceu em 1 748 numa periferia de Londres. Ele se tomou advogado em 1763, mas nunca exerceu e, além de seu interesse pelas ciências, pela química e a botânica, dedicou-se à redação de numerosas obras relativas às leis, na esperança de introduzir um rigor quanto à formulação, rigor ainda ausente da legislação inglesa. A Teoria das ficções obra publicada pela primeira vez em Londres, em 1932, é constituída por um conjunto de textos relativos à linguagem. Os parágrafos abaixo são tirados da Introdução da referida obra: O objetivo de Bentham, por suas observações linguísticas, foi compreender e mos­ trar em que as palavras, necessárias a todas as ciências, não são inocentes, e ele esperou, através de análises lógicas, chegar a fazer com que seu emprego, judi­ cioso e não ambíguo, seja possíveP São palavras como qualidades, quantidade, movimento, relação, liberdade etc .. Trata-se, portanto, de ficções enquanto representadas por palavras e não existindo senão através das palavras que as designam ou as representam. Nesse sentido, pode-se dizer que se trata de ficções, não ligadas à imaginação nem criadas por ela, mas criadas pela linguagem e somente pela linguagem?

1

2

BENTHAM, J. I11éorie desfictions. Paris: Association lacanienne internationale, Revue Discours psychanalytique, mars 1966, p. 23. Idem, p. 24. 25

Anexo II

-

A compacidade

Lição 1

21 de novembro de 1972 Resumo do texto redigido conforme as explicações de Jean-Michel Vappereau

A topologia é a parte da matemática que estuda a noção, a priori intuitiva, de continuidade e de limite. Pode ser dividida em topologia geral, topologia algébrica e topologia diferencial. A compacidade, à qual Lacan se refere nesta lição do seminário Encare, é uma noção de topologia geral que estuda principalmente, no prolongamento das noções de limite e continuidade, os espaços compactos e os espaços conexos. A compacidade pode ser definida de diversas maneiras, cuja equivalência pode ser demonstrada. Lacan se refere aqui à definição mais usual, que se for­ mula em termos de espaços abertos, bem como a uma definição em termos de espaços fechados, que ele apresenta como complementar da primeira. Intuitivamente, pode-se dizer que um espaço é aberto ou fechado conforme ele contenha ou não seus limites. Assim, na reta real R, o espaço fechado [ O, 1 ] compreende os pontos O e 1, enquanto o espaço aberto ] O, 1 [ não os compreende. Acrescentemos que, num espaço de referência dado, o complementar de um espaço aberto é um espaço fechado. No espaço E, o complementar do espaço A é �conjunto dos elementos de E que não pertencem a A. Uma de suas notações é A (não-A). Uma representação habitual de um conjunto e seu complementar é o diagrama de Carroll:

27

Encare

Um exemplo: na reta R, sobre o intervalo semiaberto ] 3, 8 ] o complemen­ tar do espaço aberto ] 3, 6 [ é o espaço fechado [ 6, 8 ] . I. Definição dita A : Em termos d e 'abertos', diz-se que um espaço topoló­ gico é compacto se de todos os recobrimentos abertos deste (inclusive, portanto, os recobrimentos infinitos), pode-se extrair um sub-recobrimento finito. Lacan dá essa definição por extenso: "o conjunto desses espaços abertos se oferece sempre a um sub-recobrimento de espaços abertos, todos eles consti­ tuindo uma finitude, ou seja, que a sequência dos ditos elementos constitui uma sequência finita."1 Deve-se entender recobrimento em seu sentido comum, por exemplo, como se diz que as telhas recobrem um telhado: se duas delas não se encaixarem corre­ tamente, o telhado não estará recoberto. Essas telhas dão a imagem de um reco­ brimento do plano R.2 No espaço euclidiano R3 o recobrimento poderá ser feito por esferas. Num espaço superior a 3, fala-se de recobrimento por hiperesferas. Nós nos situaremos simplesmente, como Lacan o faz implicitamente nessa lição/ no âmbito da topologia da reta numérica real R, assim chamada porque a cada ponto da reta corresponde um número real único. Sobre essa reta, o recobrimento do intervalo fechado [ O, 1 ] poderá ser feito, por exemplo, pelos intervalos seguintes: 1) Uma sequência infinita do tipo ] 1ln, 1 ], onde n é um número inteiro natural N, superior a 1 .

l 1 I 2, 1 l ; l 1 I 3, 1 l ; ] 1 I 4, 1 l ; . . . . .... ; ] 1 I n, 1 l 2) Um intervalo [ O, L: [ onde L: é um número compreendido entre O e 1. Mais brevemente, esse recobrimento pode ser escrito assim: G

=

{ ] 11n, 1 ] , [ O, L: [ : onde O < L: < 1 e n E: N, com n > 1}

e ter a seguinte imagem: 1 2

28

Cf. Lição 1, p. 22. (N.T.) Cf. Lição 1, p. 19, a passagem em que Lacan se refere ao exemplo de Zênon, Aquiles e a tarta­ ruga, que se situa sobre uma reta. (N.T.)

Lição 1

o

-

21 de novembro de 1972 - Anexo II

1 15 J r4

I 3

1 12

onde se vê que o recobrimento do espaço [ O, 1 ] é efetivo desde que 1/n < L:. O leitor atento terá notado que a definição da compacidade fala de recobrir um espaço fechado com espaços abertos. Ora, se o espaço a ser recoberto [ O, 1] se mostra como fechado, o que dizer dos espaços recobridores ] 1 f n, 1 ] e [ O, L: [ que são abertos de um lado e fechados do outro? É preciso aqui pedir a esse leitor que ponha de lado a representação intuitiva que ele tem dos abertos e fechados, que se apoia na escrita com colchetes ( [ ] ; ] [ ), para fazer um uso dos termos abertos e fechados conforme a definição de uma topologia (sinônimo de "uma estrutura topológica"). Dizíamos que o recobrimento do espaço [ O, 1 ] era feito pelo conjunto dos abertos notados: G

=

{ ] 1/n, 1 ] , [ O, L: [ : onde O < L: < 1 e n E N, com n > 1}

Esse recobrimento é infinito, já que a sequência ] 1/n, 1 ] é infinita. Quando n tende para o infinito, 1/n tende para O, sem jamais o alcançar e o recobrimento só é possível juntando a essa sequência infinita o espaço [ O, L: [. Desse recobrimento infinito G vê-se que se pode extrair um sub-recobri­ mento finito, desde que 1/n < .L:. Por menor que seja L: sempre haverá 1/n menor. Se, por exemplo, .L: = 1/10 000 poderemos extrair do recobrimento infinito G o sub-recobrimento finito G': G' = { ] 1/2, 1 ] , ......., ] 1/10 001, 1 ] I [ o, 1/10 000 [ } Acabamos, pois, de demonstrar que sobre o intervalo fechado [ O, 1 ] podía­ mos extrair um sub-recobrimento finito de um recobrimento infinito. Se puder­ mos proceder a essa extração a partir de qualquer recobrimento infinito, teremos

29

Encare

demonstrado que o intervalo [ O, 1 ] é 'compacto'. Demonstra-se, efetivamente, (teorema de Heine-Borel) que sobre qualquer intervalo fechado e limitado da topologia usual de R pode-se sempre extrair um sub-recobrimento finito de um recobrimento infinito. Todo intervalo fechado e limitado é, pois, 'compacto'. A fim de precisar melhor essa noção de compacidade, consideremos o exemplo contrário de um espaço não compacto: o espaço aberto ] O, 1 [. Cons­ tata-se que este pode muito bem ser objeto de um recobrimento infinito, pela sequência dos intervalos abertos ] 1/n, 1 [. Mas vê-se também que, desse reco­ brimento infinito, não se poderá jamais extrair sub-recobrimento finito. Todo o problema reside no fato de que todos os pontos L compreendidos entre O e 1 não podem ser recobertos de uma maneira finita. De fato, sempre se poderá, no pre­ sente caso, produzir um ponto L menor que o ponto 1/n, por não dispor, como anteriormente (caso do fechado [ O, 1 ]) do ponto O, limite da sequência 1/n. Como não se pode proceder à extração de um sub-recobrimento finito, a partir de um recobrimento infinito, pode-se, assim, concluir que o espaço aberto ] O, 1 [ não é compacto. Percebe-se, com este exemplo de um intervalo não compacto, como as noções de limite e de compacidade são muito próximas. Ir no sentido da com­ pactificação de um intervalo, no qual uma sequência converge para um ponto­ limite x que lhe é exterior, consiste em juntar a ele esse ponto-limite x. 11. Definição dita F: Pode-se também definir a compacidade em termos de

fechados. De 'toda' família de fechados (inclusive as famílias infinitas) de um espaço considerado X cuja interseção é vazia, pode-se extrair uma subfamília finita, cuja interseção é vazia. Esta definição é equivalente àquela em termos abertos, ela lhe é comple­ mentar. Retomemos o exemplo que usamos antes sobre o espaço [ O, 1 ] para ilustrar a noção de compacidade, mas daremos a ele uma formulação em termos de fechados. Temos então dois tipos de intervalos fechados, complementares dos intervalos abertos utilizados anteriormente. Os intervalos abertos eram: [ O, L [ e ] 1/ n, 1 ] Seus complementares serão:

30

Lição 1 - 2 1 de novembro de 1972 - Anexo II

[ 2:, 1 ] e [ O, 1/n ] O conjunto desses fechados pode ser notado: GF

=

{ [ O, 1/ n ], [ L, 1 ] onde O < L < 1 e n E: N }

e ser desenhado assim:

-

I - I - I -1 o

1 5

1 1-t

--

1 3

J

------

I- I-

I 2

Em termos de abertos, tratava-se de verificar que o espaço [ O, 1 ] estivesse bem recoberto pelo conjunto G dos espaços abertos. Em ternos de fechados, trata-se, ao contrário, de verificar que o conjunto GF dos espaços fechados não faz esse recobrimento, isto é, que a interseção de todos esses espaços é vazia. Nessa aula, Lacan começa dando uma definição em termos de fechados, que ele apresenta, um pouco depois, como complementar daquela em termos de abertos3 como a seguir: Nada mais compacto do que uma falha, se está bem claro que, em algum lugar, está dado que a interseção de tudo o que aí se fecha sendo admitida como exis­ tente, num número finito de conjuntos, disso resulta, é uma lúpótese, que a inter­ seção existe num número infinito. Isso é a própria definição da compacidade.4

Uma leitura atenta dessa definição um pouco obscura mostra que, embora se trate de uma definição em termos de fechados ( . . . a interseção de tudo o que aí se fecha"), não se trata da complementar da definição em termos de abertos. Trata-se de uma outra definição em termos de fechados. "

3

4

Cf. Lição 1: "O complemento dessa hipótese de compacidade é o seguinte: ... ", p. 21. (N.T.) Cf. Lição 1, p. 20. (N.T.) 31

Encare III. Definição dita F': Se a interseção de toda subfamília finita de uma famí­

lia de um espaço X é não vazia, então toda família (inclusive, portanto, as famí­ lías infinitas) é, ela mesma, não vazia. Nós chamamos de: A - a definição em termos de abertos F - a definição em termos de fechados F' - a definição em termos de fechados que acabamos de dar. Essas três definições equivalentes são articuladas umas às outras pelos seguintes laços lógicos: complementares contrapostas A < -------------------- > F <-------------------- >F' A contraposição é um termo de lógica. Ex.: o enunciado contraposto de "se n é múltiplo de 6 então n é par" é o enunciado "se n é ímpar, então n não é múltiplo de 6" . Sustentamos que Lacan nos dá F' porque: - Falar da "interseção de tudo o que aí se fecha ... " evoca uma sequência que se acumula em um ponto para fazer interseção e que, portanto, implicitamente trata- se de uma interseção não vazia, o que corresponde à definição F', e é o oposto da definição F, onde se trata apenas de interseção vazia. - Por outro lado, a apresentação que Lacan faz, por duas vezes, da interse­ ção como passando do finito ao infinito é coerente com a definição F'. Na F, a hipótese (ou a premissa) é sobre um número infinito de fechados, e a conclusão sobre a extração de uma subfamília finita, enquanto em F', temos realmente essa passagem do finito ao infinito, a hipótese refere-se efetivamente a uma subfamília finita e a conclusão, a uma família infinita. Se Lacan dá F' como primeira definição da compacidade, é provavelmente pelo caráter sedutor que há em se tirar conclusões sobre o infinito a partir do finito. Parte-se, efetivamente, de um conjunto finito, que se pode então contor­ nar, para tirar daí conclusões sobre um conjunto infinito.

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Lição 1

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21 de novembro de 1972 - Anexo II

Entretanto, o ponto forte dessa lição do seminário articula-se em torno da possibilidade de poder extrair finito a partir do que se apresenta como infinito. O gozo do Outro lado, para retomar os termos de Lacan, isto é, o gozo que não está do lado fálico, é tomado como um espaço sobre o qual se desdobra uma sequência infinita, mas do qual se pode - porque esse espaço é limitado, fechado e, portanto, compacto - extrair algo de finito, um por um, ou melhor, já que se trata do gozo do Outro lado, uma por uma. Se esse espaço fosse aberto e, portanto, não compacto, não se poderia tirar um do infinito, e é o que acon­ tece do lado do ser, como diz Lacan: ali onde está o ser está a exigência da infinitu de." 5 Vale notar que a transcrição de J.-A. Miller torna ilegível essa questão da compacidade, ponto culminante dessa primeira aula, principalmente porque a oposição finito/infinito da definição em termos de fechados foi completamente suprimida. Uma primeira vez, está dito ali que "a interseção de tudo o que aí se fecha sendo admitida como existente sobre um número infinito (sic) de con­ juntos, disso resulta que a interseção implica esse número infinito (sic). Isso é a definição mesma da compacidade/F .6 Essa transcrição deve ser comparada com a que reproduzimos aqui (p. 29). Uma segunda vez, algumas linhas abaixo, no fim da mesma página, a versão publicada menciona a interseção se estendendo ao infinito"/ em lugar de " ... a interseção passando do finito ao infinito".8 Assim, o leitor não tem quase nenhuma chance de abordar corretamente uma questão que não se pode dizer que seja fácil. Aos que quiserem se aprofundar no assunto, aconselhamos um livro de topologia geral: Topologie, cours et problemes, Seymour Lipschutz, Série Schaum, Ed. Me Graw Hill. Aconselhamos também a obra a ser publicada de Jean-Mi­ chel Vappereau , sobre a topologia do sujeito (Ed. La Topologie en extension) . IF

IF . . •

5 6 7 8

Cf. Lição 1, p. 23. (N.T.) LACAN, J. Le séminai.xe, livre XX, Encare. Paris: Seuil, 1975, p. 14. Ibidem. Cf. Lição 1, p. 21. (N.T.) 33

Lição 2

12 de dezembro de 1972 Exposição de François Récanati sobre a lógica de Port-Roy aF

Introdução de J. Lacan

Lacan, ao que parece, em seu primeiro seminário deste ano, teria falado, tentem adivinhar: do amor, nada mais, nada menos! A notícia se espalhou. Ela me retornou, não de muito longe, é claro, de uma cidadezinha da Europa/ onde fora enviada a mensagem. Como foi em meu divã que ela me retornou, não posso crer que a pessoa que a relatou tivesse realmente acreditado nisso, pois ela bem sabe que o que eu digo do amor é, certamente, que não se pode falar dele. Parlez-moi d'amou r . isso são cançonetas. Falei da carta de amor, da declaração de amor, não é a mesma coisa que falar de amor. Enfim, penso que está claro, mesmo que vocês não o tenham formulado, que nesse primeiro seminário falei da tolice,3 daquela que condiciona o que dei como título, este ano, ao meu seminário, e que se diz Encare. Vejam que risco! Eu lhes digo isso unicamente para dizer-lhes o que constitui aqui o peso de minha presença: é que vocês gozam com isso. Minha presença sozinha, pelo menos eu ouso acreditar nisso, minha presença sozinha em meu discurso, minha pre­ sença sozinha é minha tolice. Eu deveria saber que tenho coisa melhor a fazer . .

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2 3

Esta intervenção de François Récanati, aqui traduzida a partir das versões que nos servem de base, foi publicada, com algumas modificações, com o título "Prédication et ordination" . In: Scilicet 5. Paris: Seuil, 1975, p. 61. Trata-se de Amsterdã. Em francês: bêtise, palavra que significa 'tolice', 'bobagem', 'asneira', 'besteira', com o sen­ tido de algo não muito inteligente, mas, às vezes, motivado por distração, desatenção. Daí as traduções possíveis para bête (adjetivo) e bêtement (advérbio). Nossa escolha aqui por 'tolice', 'tolo', 'tolamente' obedeceu a critérios de sentido e registro, fugindo do imediatismo da tra­ dução por 'besteira', que a nosso ver vulgariza o termo. Além disso, a palavra bête, como substantivo, não significa 'besta', mas 'animal', qualquer animal, com exceção do homem. Cf. Dicionário Le Nouveau Petit Robert. Paris: Le Robert, 1993. (N.T.) 35

Encare

do que estar aqui. É por isso mesmo que posso ter vontade, simplesmente, de que ela não lhes seja assegurada em toda e qualquer circunstância. Entretanto, é claro que não posso me colocar numa posição de recuo, de dizer ainda (encare) e que isso dure é uma tolice, já que eu mesmo colaboro com isso. Evidentemente, não posso me colocar senão no campo desse encare. E talvez, remontando de certo discurso, que é o discurso analítico, até o que faz o condicionamento desse discurso, ou seja, essa verdade - a única que possa ser incontestável pelo que ela não é - que não há relação sexual, isso não permite de modo algum julgar o que é ou não é tolice. E, no entanto, não pode ocorrer, tendo em vista a experiência, que a respeito do discurso analítico algo não seja interrogado, ou seja, se ele não se mantém essencialmente por ser sustentado por essa dimensão da tolice. E por que não se perguntar, afinal, qual é o estatuto dessa dimensão, contudo, bem presente? Pois, afinal, não foi preciso o discurso analítico - aí está a diferença - para que, como verdade, fosse anunciado que não há relação sexual. Não pensem que eu hesite em me comprometer. Não é de hoje que eu falo de São Paulo, eu já o fiz. Não é isso que me dá medo, nem mesmo de me com­ prometer com pessoas cuja posição e cuja descendência não são, propriamente falando, o que eu frequento. Contudo, que os homens de um lado, as mulheres do outro, isso tenha sido a consequência da mensagem, foi algo que, ao longo dos anos, teve algumas repercussões. Isso não impediu o mundo de se repro­ duzir à medida de vocês. A tolice resiste, em todo caso. Não é exatamente assim que se estabelece o discurso analítico, o que lhes formulei com o pequeno a e com o 5 que fica embaixo, e com o que isso inter­ 2 roga, do lado do sujeito. Para produzir o quê? É bem evidente que isso se instala na tolice, por que não? E que isso não tem essa distância, que eu também não tomei. Dizer que se isso continua é tolice, em nome de que eu o diria? Como sair da tolice? Não deixa de ser verdade que há alguma coisa, há um estatuto a ser dado, no que se refere a esse novo discurso. Com sua abordagem da tolice, alguma coisa se renova. Certamente, ele vai mais perto, pois nos outros, é exatamente disso que se foge. O discurso sempre visa a menor tolice, o que se chama de tolice sublime, pois sublime quer dizer isso: é o ponto mais elevado do que está embaixo.4 4 Sublime: adj. e subst. masc. empréstimo, por via erudita (por volta de 1400), do latim clássico sublimis: 'suspenso no ar', 'alto', 'elevado', e no sentido figurado 'elevado', 'grande', especial36

Lição 2 - 12 de dezembro de 1972

Onde está, no discurso analítico, o sublime da tolice? É por isso que estou, ao mesmo tempo, legitimado a deixar em repouso minha participação na tolice, na medida em que aqui ela nos engloba e a invocar quem poderá, sobre esse ponto, me trazer a réplica daquilo que, provavelmente, em outros campos . . . Mas não, é claro, já que se trata d e alguém que me escuta aqui, e que por isso está suficientemente introduzido ao discurso analítico. Como? Foi aqui, que já no final do ano passado, tive a felicidade de reco­ lher de uma boca que por acaso é a mesma,5 e é aqui que, desde o início do ano, peço que alguém me traga, aceitando correr o risco, a réplica daquilo que, num discurso nomeadamente o filosófico, resolve, obliqua, faz o seu caminho, abre-o com um certo estatuto em relação à menor tolice. Passo a palavra a François Récanati, que vocês já conhecem. François Récanati:

Agradeço ao D. Lacan, por me dar a palavra uma segunda vez, pois isso vai me introduzir diretamente no que vou dizer, no sentido de que não deixa de ter relação com a repetição. Mas, por outro lado, gostaria também de prevenir que essa repetição é uma repetição infinita, mas o que vou dizer também não será finito, no sentido de que não terei tempo de chegar ao fim do que preparei. Isso quer dizer que, de certa forma, é no fechamento do círculo que deveria tomar sentido o que, como preliminar, vai me trazer aqui. Então, por causa do tempo, e a menos que retome isso numa outra ocasião, vou ser obrigado a me ater aos preliminares, isto é, a não entrar ainda propriamente em cheio nessa tolice de que falou o Dr. Lacan. Vocês se lembram de que, na última vez, o que eu havia tentado lhes mos­ trar é que a repetição só se produz no terceiro tempo, que é o tempo do interpre­ tante. Isso quer dizer que a repetição é a repetição de uma operação, no sentido mente em retórica; no latim medieval o termo passa para o vocabulário dos alquimistas no sentido de 'elevado pelo calor à decantação de suas partes voláteis'. O adjetivo é formado de sub-, marcando o movimento de baixo para cima, e de limis ou limus, adj. 'oblíquo' falando do olho e do olhar, palavra sem etimologia clara. Dictionnaire historique de la languefrançaise. Paris: Le Robert, 1992, Tome 2, p. 2031. 5

Intervenção de François Récanati, anterior a esta, basicamente sobre a semiótica de Peirce, feita no dia 14 de junho de 1972, publicada com o título: "Intervention au séminaire du doe­ tem Lacan" . In: Scilicet 4. Paris: Seuil, Le champ freudien, 1973, p. 55 a 73. 37

Encare

de que, para que haja termo a ser repetido, é preciso haver uma operação que produza o termo. Ou seja, o que deve ser repetido, é preciso que seja inscrito e a própria inscrição desse objeto só pode ser feita ao cabo de algo da ordem de uma repetição. Existe aí algo que se assemelha a um círculo lógico, e que é, na verdade, um pouco diferente, é antes algo da ordem de uma espiral, no sentido de que o termo de chegada e o termo de partida, não se pode dizer que sejam a mesma coisa; o que é dado é que o termo de chegada é o mesmo que o termo de partida, mas o próprio termo de partida já não é mais o mesmo; ele se toma o mesmo, mas só a posteríorí. Há, pois, duas repetições a serem consideradas, dissimétricas, a primeira que é o processo pelo qual se dá esse objeto que deve se repetir, o que podemos chamar, de certa forma, de identificação do objeto, no sentido de que se trata do declínio de sua identidade. E vê-se muito bem o que isso quer dizer: quando se declina essa identidade do objeto, essa identidade declina imediatamente. E a tautologia inicial ' a é a' da qual Wittgenstein diz que é um forçamento despro­ vido de sentido é, propriamente, o que institui o sentido, pois algo ocorre ali dentro, ou seja, no ' a é a', a se apresenta inicialmente como o suporte indiferen­ ciado inteiramente potencial de tudo o que pode lhe acontecer como determi­ nação. Mas a partir do momento em que lhe é dada uma determinação efetiva, e que se trata de existencia e não de qualquer uma de todas as suas determi­ nações possíveis, então ocorre precisamente uma espécie de transmissão de poder: o que devia ter a função de suporte, no caso esse a indeterminado, esse a potencial é, de certa forma, marcado pelo fato de que subitamente há ser que se intercala entre ele e ele mesmo, o que quer dizer que ele mesmo se repete e se repete sob a forma de um predicado. Ou seja, há uma espécie de diminuição e essa diminuição é simbolizada por isso: que no ' a é a ', o a que tinha a função de suporte subitamente se vê ele mesmo sustentado por algo da ordem do ser que o sustenta, que o ultrapassa, que o engloba, e ele mesmo, nessa relação, não é senão o que predica a predicação, na medida em que a predicação é o que o ser sustenta.6 Vou voltar a este ponto . . . Jacques Lacan: - Aliás, todos sabem que ' guerra é guerra' não é uma tauto­ logia, como também não o é: 'dinheiro é dinheiro' ! 6

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Em lugar de c'est ce 'que' supporte l'être, o que foi traduzido acima, a Versão 2 traz c'est ce 'qui' supporte l'être, o que daria um sentido inteiramente oposto: 'É o que sustenta o ser'. (N.T.)

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François Récanati: - Exatamente. Vou voltar a este ponto, porque é este o nervo de toda a questão, e eu gostaria de falar - é isso que eu temo não ter tempo de fazer - da lógica de Port-RoyaF porque é justamente uma teoria da substância, e foi dito da última vez que aqui não nos referimos a nenhuma substância. Mas falarei disso daqui a pouco. E preciso que se saiba, simples­ mente, que a repetição efetivamente, a primeira, repete a indeterminação inicial desse objeto que se dá como potencial, mas que repetindo essa indeterminação, a indeterminação se acha subitamente determinada de certo modo. Isso quer dizer que se pode perfeitamente estabelecer que a repetição do vazio ou a repe­ tição do impossível, enfim, que esse tipo de repetição de algo que não é dado e que, portanto, é preciso produzir no tempo em que se gostaria de repeti-lo, pode-se perfeitamente estabelecer que é o impossível, e é o que quase todo o mundo diz, mas basta que seja impossível, para que haja aí algo de assegurado e que essa segurança permita, justamente, uma repetição, aliás, uma segunda repetição. Em vez de me estender sobre isso, cito esta frase de Kierkegaard: "A única coisa que se repete é a impossibilidade da repetição." Isso mostra bem do que se trata e faz a junção com o que eu disse no ano passado da tríade que sustenta toda repetição, a tríade: objeto representamen interpretante.8 Isso quer dizer que entre o objeto e o representamen, muda-se de espaço, ou pelo menos há algo como um buraco que faz justamente o objeto e o representamen inabordáveis nessa relação. Mas esse buraco, na medida em que ele insiste, permite fundar uma verdadeira repetição no sentido de que, na vez seguinte, algo vai encarnar esse buraco que será o interpretante e que poderá, de certa forma, repetir de dois modos o que ocorria entre o objeto e o representamen: de um lado, inscrevê-lo, dizendo: "havia buraco" e permitindo que essa impossibilidade ou esse buraco se repita. Mas, por outro lado, ele vai não apenas significá-lo, mas repeti-lo, por­ que entre a impossibilidade inicial que passava entre o objeto e o representamen e seu significante, que é o interpretante, há a mesma relação impossível que havia -

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A lógica de Port-Royal foi publicada pela primeira vez em Paris, sem nome de autor, em 1662. Ela está descrita na obra: ARNAULD, A. e NICOLE, P. La Logique ou l'art de penser. Paris: Galli­ mard (coleção TEL, n° 211), 1992. Cf. Charles S. Peirce (1839-1914): o signo, segundo Peirce, é composto de três partes: o repre­ sentamen (uma representação), o objeto e o interpretante. Ex: a imagem (representamen) de uma placa "PARE" (objeto) provoca a mudança no comportamento do motorista (interpretante), que aciona o freio do veículo. (N.T.) 39

Encare

justamente entre o objeto e o representamen. Isso quer dizer que será preciso um segundo interpretante para se encarregar da repetição dessa impossibilidade. No interpretante há algo como a efetuação de uma impossibilidade, até então potencial, e a impossibilidade inscrita pelo interpretante é, digamos, o primeiro termo dessa existencia de que o zero potencial era portador, no sen­ tido de que, de algum modo, o todo conduz ao 'existe'. E também voltarei a tratar deste ponto. O que é importante é que a impossibilidade da relação objetoj representa­ men se dá como tal para o interpretante. O interpretante diz: "Isso, é impossí­ vel", mas na medida em que ela se dá para o interpretante como tal, a partir do momento em que o próprio interpretante se dá para outro interpretante, é aí que essa impossibilidade é verdadeiramente um termo, termo fundador de uma série. Ou seja, isso permite ao novo interpretante assegurar algo de sólido, como se essa solidez fosse o interpretante primeiro que a tivesse fundado, a partir de algo originariamente fluido. O que escapava na relação objeto/ representamen vem se aprisionar no inter­ pretante. Mas vemos bem, e eu já havia dito que o que se aprisiona no interpre­ tante e o que escapava na relação objeto/ representamen não eram exatamente a mesma coisa, pois, precisamente, o que escapava na relação objetojrepresenta­ men continua a escapar na relação entre essa relação e o interpretante. Ou seja, de todo modo, há a mesma distância, a mesma inadequação. E é exatamente a impossibilidade da repetição, sobre a qual vou agora insistir um pouco, que pro­ duz o que ocorre e que se pode constatar, isto é, a repetição da impossibilidade. O que institui a defasagem - essa defasagem de onde nasce a repetição - é a impossibilidade de alguma coisa ser esse algo e, ao mesmo tempo, inscrevê-lo. Isso quer dizer que a existência de alguma coisa só se inscreve para outra coisa e, consequentemente, só se inscreve quando é outra coisa que é dada. E se é que se trata de existência pontual, a existência de alguma coisa só se inscreve justamente no momento em que ela declina, pois é de uma outra existência que se trata. Essa disjunção é mais ou menos o que ocorre entre o ser e o ser predicado, e espero ter tempo de chegar à lógica de Port-Royal, que era teoricamente o núcleo de minha exposição, mas não tenho certeza. Vocês se lembram que, na última vez, Lacan caracterizou o ser como sendo secção de predicado. E é propriamente disso que se trata. E vou logo lhes dar

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Lição 2 - 12 de dezembro de 1972

algumas reflexões, nem que seja apenas sobre esta fórmula: 'secção de predi­ cado' que faz sentir imediatamente a recorrência em que se constrói o que jus­ tamente é suposto sustentar todo predicado, ou seja, o ser. O que sustenta os predicados antes da predicação, se dá após os predicados. E, de certo modo, se há secção de predicado para encontrar o ser, isso quer dizer que o que sustenta os predicados é o que não está nos predicados. E justamente o que está ausente dos predicados, o que está ausente na predicação. E, pois, a ausência de ser, de certa maneira, que traz os predicados, o que implica também, e de modo um pouco indireto, que os próprios predicados só são predicados dessa ausência. Que o predicado possa ser cortado, é como se já houvesse, de certa forma, uma partição elementar, como se fosse dada uma linha pontilhada, uma fron­ teira e bastasse recortar, como em certas embalagens. Jacques Lacan: - Articule bem a noção de secção de predicado, pois foi o que você juntou ao que eu deixei e eu justamente quase tropecei nisso. François Récanati: - A secção de predicado é, propriamente, o núcleo de minha exposição. Pode-se imaginar isso como uma vibração, ou seja, é a partir de uma espécie de halo que vou tentar circunscrever esse núcleo que vai apare­ cer em todos os exemplos que darei. Secção de predicado é, pois, como se isso pudesse ser cortado. Não insisto nisso, a não ser que é evidente que não é por ter cortado o corte que se vá encon­ trar o insecável e que a fronteira, uma vez que se entalhou ali, ela insista, tanto mais que ela se manifesta como buraco. Digamos que a secção, para tomar os sentidos que vêm, é também fazer dois do que era um, e se assinalo esse sentido, que não é o habitual aqui, é por­ que é o que Groddeck dá a um de seus conceitos, que se chama justamente a "sexão", ou seja, de certo modo, isso tem a ver com o sexo. E, para Groddeck, é 1 1 m <J maneira de fazer referência a Platão - e quando digo Platão, não se trata do Parmênides, mas do Banquete. Vocês se lembram que, no discurso de Aristó­ fanes, levanta-se o problema desse mito do andrógino originário, que teria sido cortado em dois. Seria isso, a "sexão", com x. Ora, eu queria insistir sobre algo que se nota muito bem no Banquete, não especificamente no discurso de Aristófanes, mas um pouco em todos os discur­ sos, mesmo naqueles que são supostamente contraditórios, e vou tomar apenas dois exemplos: o discurso de Diotima e o de Aristófanes. E o Banquete tem como tema o amor. O amor, diz Diotima, é aquilo que, em toda parte onde há dois, faz

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ofício de fronteira, de meio, de intermediário, isto é, de interpretante. Quando digo 'interpretante', é porque se pode muito bem traduzir assim a palavra que Platão emprega, uma palavra derivada de: J.IaVnxi] (mantiké), que quer dizer 'interpretação' e Platão diz que essa palavra vem de JlaVlX� (maniké), que quer dizer ' delírio'. E o que faz as vezes de interpretante. Mas o único interesse dessa fórmula - pois, afinal de contas, ninguém na assembleia do Banquete a contesta - é o que permite deduzir o seguinte: que o amor em caso algum poderia ser belo, porque o que se coloca como objeto do amor, o que, como série, cai sob o golpe do amor, o amor sendo como uma marca que faz desfiladeiro, que instaura uma espécie de corredor, onde uma série de objetos vai passar, os objetos que ele marcou, o amor não pode ser belo porque seus objetos são belos, e está dito que em caso algum, o que é o agente de uma série, a instância mesma da série ou o termo último da série, o que fecha uma série pode ter as mesmas características dos objetos que estão nessa seriação. Ou seja, os objetos do amor são belos, por­ tanto, o amor não pode ser belo. Aí está propriamente falando, uma caracterís­ tica dessa instância de seriação, uma característica do interpretante que ninguém questiona, dentre os polemistas presentes à assembleia do Banquete. E pode-se ver muito facilmente a relação que isso tem com Aristófanes, mesmo que pareça mais longínquo. E que quando ele diz que, na origem, os homens tinham quatro pernas, quatro braços, dois rostos e dois sexos, eles se tornavam um pouco arrogantes demais, porque na verdade não tinham mais desejo - não lhes faltava muita coisa - então Zeus decidiu cortá-los em dois, para que se tornassem humildes. Mas o que Zeus disse é que um corte não conta se não houver efeitos de corte, isto quer dizer que se o corte é pontual e depois tudo continua como antes, não adianta nada. Então, o que ele quis foi que isso permanecesse, que houvesse um efeito e, para tanto, virou os rostos, que estavam então nas costas, como os sexos (e o lado direito do corte era pro­ priamente o ventre, pois ali estava o umbigo, que é o sinal do corte) . Ele decidiu virar os rostos do lado do umbigo, para que os homens se lembrassem desse corte; e depois, já que tinha começado, virou também os sexos, para que pudes­ sem tentar se recolar e que isso os ocupasse. Mas, o importante, e a razão pela qual eu desemolei tudo isso com relação ao discurso de Diotima, é que o resultado de toda essa operação, que pode parecer irrisório, é simplesmente que o homem, tendo o rosto virado, não pode mais olhar atrás de si, só pode ver adiante, ele vê somente o que o precede. Será que percebemos bem que é precisamente isso que diz Diotima, ou seja, que isso 42

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é o fim de tudo, isto é, o fim do todo, na medida em que a toda série faltará o termo último da seriação, o ponto de vista, aquilo a partir do qual a série se constrói? Jacques Lacan: - E exatamente o que eu dizia há pouco: que ele não vê o encare.

François Récanati: - O que acabo de isolar aí, a partir desses dois discur­ sos, vai ser encontrado de novo como dois pontos muito ligados, a respeito dos ordinais. O que faz o ordinal, como já lhes foi dito, é algo da ordem de um nome de nome. E vamos ver mais precisamente do que se trata, nesse sentido de que o ordinal é um nome, mas se é um nome, a função dessa palavra é nomear alguma coisa que, justamente, não é seu próprio nome. É, de certa forma, o nome segundo do que precede, do nome que precede e que, sendo ele mesmo nome, é realmente um nome, mas só serve para nomear algo que precede etc . . . Essa é a relação com Aristófanes. Não vou insistir nisso. Há um problema que vai se colocar logo e que procurarei abordar: é que o primeiro ordinal não é verdadeiramente um nome de nome, porque não há nome que o preceda, se é que ele é o primeiro. Foi por isso que escrevi, ao lado, o "nome do nome" porque isso é o primeiro ordinal. E eu diria mesmo: se é o que ocorre no início, é por causa disso que depois há nome de nome, porque, justamente, a partir do momento em que se dá um nome ao que não tem, é na identificação, justamente, algo como o declínio da identidade, no sentido de que se diz um pouco mais sobre isso, e esse mais que se diz, ele mesmo terá, não tanto de reabsorvê-lo, mas de identificá-lo, de dar-lhe um nome e, a partir daí, é a defasagem infinita. Nomear, em geral, é fazer uma avaliação do que precede, na série. Mas essa avaliação, na medida em que ela mesma funciona como nome, precede igual­ mente algo que está por vir; e se o considerarmos de modo absoluto, o que está sempre por vir será o que se poderia chamar de encare, que não precede nada que não seja ele mesmo, isto é, não tem nome, é inominável por esse motivo. Pode-se ver que, desse ponto de vista, o que eu chamo de encare é o índice do infinito. E, por outro lado, pode-se dizer que o infinito já está aí; ele é dado, desde o início, na homonímia do nam (nome) e do nan (não).9 Isso quer dizer que o nome é algo como a propagação do não mais radical que, antes de qualquer 9

Palavras perfeitamente homófonas, em francês. (N.T.) 43

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nominação, no instante de qualquer nominação, se dá como algo de infinito. Vê-se, pois, algo se destacar como dois marcos: o não, de um lado, e o encare, e a ordenação é o que passa entre os dois. Isso quer dizer que o que vai me inte­ ressar - e pode-se ver a relação disso com a secção do predicado, ou seja, com essa expressão e essa recorrência - é a relação entre os dois. O sistema da nominação, em geral, vocês podem ver mais ou menos como se pode apreendê-lo: é o revestimento de um impossível inicial, revestimento que, justamente, nessa relação com o impossível só se sustenta com o encare, como indício dessa transcendência do impossível com relação a qualquer reves­ timento. E se o impossível é o que diz não (o que não é evidente e eu lamento não ter tempo de desenvolver este ponto) será preciso entendê-lo mais ou menos como uma denegação (dénégatian) radical, na medida em que a dene­ gação é algo que já é infinito. Ou seja, como já é algo de infinito, a denegação não se importa, de certa forma, com o que acontece atrás dela, com o que ela sustenta, isto é, todo o jogo de predicação todo o jogo de objetivação predicativa que toma a denegação, por exemplo, para negá-la, dizendo não ou dizendo sim. Isso nunca dá sim. A denegação permanece intacta, com joguinhos que acon­ tecem, poderíamos dizer, em seu corpo. E então, para o infinito da denegação, isso não é nem mesmo cócegas. Então isso nos leva a pensar que - é um parêntese - mesmo que o que chamei de manipulação lógica sobre fundo de infinito se tornasse, por sua vez, infinito, isso não quer dizer que se vá curar o infinito com golpes de infinito e que, de repente, isso vá dar finito ou algo como sim. Ao contrário, isso vai pio­ rar, no sentido de que aquilo que, na nominação, pode se tornar infinito não é a mesma coisa que já está ali, como infinito, no que eu chamo de denegação inicial, pois o que na manipulação lógica vem como infinito é a nominação do infinito, e o que já está ali, como denegação infinita, é o que infinitiza toda e qualquer nominação. E o infinito da nominação. Isso faz com que a nominação do infinito seja uma nominação como as outras, ou seja, ela também estará sujeita a essa infinitização que já está ali, que parte de uma fonte que está no início. Isso quer dizer que não vai mudar nada e que se pode estabelecer alguma coisa como ômega (ú)), o menor ordinal infinito, e isso não vai parar por aí, isso continua no conjunto das partes de ômega (ú)), nos alephs (t'<) etc . . A partir d o momento e m que o infinito é dado nessa posição, é preciso que o próprio infinito seja infinito, ou seja, que continuem essas passagens de infi-

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nito a infinito etc., que se continue encare. Como se o que se quer alcançar nessa história fosse precisamente o próprio encare. O encare se dá uma espécie de limite da extensão desse não radical de que falei, e vou agora falar da relação entre o não radical e o encare, pois é nisso que vai me introduzir retroativamente o que volto a abordar, ou seja, a secção de predicado. A secção de predicado, vê-se isso imediatamente, é ao mesmo tempo o que há após qualquer predicação, isto é, quando se pode dizer "não há mais predi­ cados", e é também o que, antes de qualquer predicação, a sustenta. Mas o que é preciso entender é que esse antes e esse depois são a mesma coisa, ou seja, é o que constitui, é o que sustenta a predicação como revestimento de uma impos­ sibilidade, essa impossibilidade que é preciso entender como a impossibilidade mesma da predicação, isto é, a impossibilidade de fornecer todos os predicados, de colocá-los juntos, sem que ao menos um se destaque como representante na impossibilidade, na existência, a impossibilidade ou, se quisermos, o encare. Mais precisamente, quanto aos ordinais, o ordinal nomeia o nome daquele que o precede. Isso quer dizer duas coisas: que um ordinal não se nomeia a si mesmo, mas é nomeado por seu sucessor, e que a cada ordinal cabe a somação mecânica de todos os que o precedem. Já que um ordinal nomeia seu prece­ dente, seu precedente nomeia seu precedente etc., isso quer dizer que existe, vinculada a cada ordinal, a série de todos os ordinais que o precederam. Ora, esses dois pontos já implicam uma discordância essencial entre o nome e o nome de nome, e é o que chamarei de efeito de esmagamento (écrasement). O que vem identificar o O, por exemplo, numa definição do O, como o ele­ mento único do conjunto idêntico a O, ou, para o conjunto vazio, pode-se muito bem dizer: 'o que é elemento único do conjunto de suas partes', ou simples­ mente esse conjunto de suas partes do qual ele é o elemento que vem identifi­ cá-lo propriamente, isso se dá como predicado do O. Ora, vê-se bem que nesse predicado há algo a mais que é dado, a mais do que o conjunto vazio, a mais do que o O. E é tão tangível! A prova disso justamente é que, o O e o 1, o que em princípio é apenas a identificação do O, justamente, faz o 2. Vemos que mudamos de nível, que isso não tem relação nenhuma, não se situa no mesmo plano - há uma defasagem, passamos de um nível a um nível superior. Mas o que é notável é que esse O e esse 1 que não têm nada a ver, não se situam no mesmo nível, são colocados juntos como os elementos desse novo

45

Encare

conjunto constituído pelo ordinal 2. Zero e 1 fazem o 2, justamente no sentido de que o O e o 1 são, de certo modo, nivelados, colocados no mesmo plano, no 2. E quanto ao próprio 2, a operação vai se repetir, na passagem do 2 ao 3 etc. O representamen não tem aí relação possível com o objeto e é sempre esse cursus do interpretante que intervém, ou seja, isso é encarnado por algum a coisa e, na medida em que está encarnado, em que esse algo que escapou é fre­ ado, ele ressurge igualmente logo após essa encarnação. Pode-se tomar a fórmula de um ordinal para ver melhor o que está em questão. Jacques Lacan: - Credite isso a Cantor, de todo modo! François Récanati: - Eis a fórmula que se pode considerar como a fórmula do 4:

{ o

o

I

:

()

I

2 }

0, { 0 } , {0, {0} } : {0, { 0 } , {0, {0} } ] ; O

I

2

:

3

4

Nesta fórmula, o que acontece? Sabe-se que é o último termo desta série que conta. Vê-se que no 4, o que é repetido é o 3. E vê-se que o próprio 3 repete o 2, que repete o 1, que ele mesmo repete o O. Mas o que é importante é que o 4 não é apenas o colocar entre parênteses a nominação do 3, o qual põe entre parênteses e nomeia o 2 etc. Não é apenas a exposição, mesmo repetitiva, isto é, com parênteses a mais, do que já se dava no 3. É colocar num mesmo conjunto do 3 já como esmagamento, como 'con­ juntização' de termos heterogêneos, isto é, a mesma coisa que no 2, o fato de que haja O e 1 que estejam colocados absolutamente no mesmo plano. No 3, já é um esmagamento do O, do 1 e do 2, o que quer dizer que são colocados num mesmo conjunto. E o 4 é aqui precisamente relacionar, num mesmo conjunto, o 3 como esmagamento, como essa conjuntização forçada, com os elementos que o 3 esmagou, separados do 3, fora do 3. Isso quer dizer que é m_na repetição. Vê-se que a parte da direita e a parte da esquerda são a mesma coisa, só que do lado direito há parênteses a mais. É aqui (entre 2 e 3) que há uma espécie de barra de clivagem, o que me permite dizer que se pode ver nessa fórmula que se o 3 já é a designação do que se passou, de uma passagem-esmagamento entre o O e o 1, e do O e do 1 ao 2, se o 3 já é esse esmagamento, ou seja, uma maneira 46

Lição 2

-

12 de dezembro de 1972

de designar o que se passou por uma ruptura anterior, uma ruptura que é pre­ cisamente a passagem do O ao 1, uma ruptura, ou seja, um despedaçamento das partes do que já se dava como conjunto, vê-se que o que é designado na fórmula do 4 é precisamente essa designação mesma, na medida em que se podem ver expostos, num mesmo plano, de um lado, todas as partes do que forma o 3 e, do outro lado, o próprio 3. Isso quer dizer que o próprio esmagamento, o fato de pôr parênteses a mais não é suficiente como resultado para deixar pregnante essa passagem do O ao seu esmagamento no 1, do 1 ao seu esmagamento no 2, etc., o 2 ou o 1 como resultado que não exprime mais essa passagem. É preciso que, no conjunto constituído pelo 4, estejam presentes, ao mesmo tempo, os termos separados das diferentes passagens e a série das passagens­ esmagamentos, para que o 4, como nominação de todas essas passagens impos­ síveis mas efetivas, assuma em sua própria fórmula a história da progressão que se vê repetida aqui, ou seja, deixe em aberto o que se coloca como questão, como irresolução nesse movimento, isto é, a insistência nessa corrida daquilo que, através dos diferentes limites sucessivos que, de certa forma, se opõem à passagem do O ao 1, do 1 ao 2 etc., a insistência através desses limites sucessivos do que se dá como limite absoluto e que seria o encare. E se o 4, como esmagamento totalitário, isto é, como soma de tudo o que aconteceu antes dele, de todos os esmagamentos incapazes de se concluir, se o 4 deixa aberta essa questão, é realmente porque ele mesmo, enquanto esma­ gamento, respondendo a essa falha que pede um fechamento impossível, ele, por sua vez, só pode esmagar-se encare, isto é, reproduzir a falha, nomeada­ mente na nova fórmula que o inclui como elemento, isto é, o 5, e que para tanto confronta-o com todos os elementos que ele contém, postos ao seu lado, para fazer surgir, entre todos esses elementos e seu esmagamento no 1, a impossível identidade. Bastaria, pois, repetir aqui tudo o que há ali e recolocar os parênteses, para obter o 5. A impossível identidade é o que se repete a cada novo esmagamento, com esse detalhe, que na sequência, na confrontação, no interior do 4, do 3 consti­ tuído e de todos os seus elementos, já são os esmagamentos que se esmagam ainda um pouco, quando o paradigma do esmagamento, pode-se encontrá-lo no início, na passagem do O ao 1 e, esse esmagamento, é preciso compreendê-lo de modo inteiramente concreto, como o de Ícaro, ou seja, que há alguma coisa

47

Encare

que levanta voo e despenca miseravelmente, e não se arrebenta no buraco que devia ser sobrevoado e sim na falésia, do outro lado, de certa forma. Pode-se considerar que entre um ordinal e outro, ou melhor, entre o nada do conjunto vazio e sua inscrição no 1 , há algo como uma barreira, uma fron­ teira ou então um buraco. Mas esse buraco, não se pode alcançá-lo, exatamente no sentido de que - era o que lembrava Lacan, da última vez, como no caso de Aquiles - pode-se ultrapassá-lo, mas não se pode alcançá-lo. Se, uma vez dado um esmagamento, ele se repete, é justamente porque o que se estabelece como fronteira não foi alcançado; ela está sempre ali, essa fronteira, existente. Nunca se está no entre dois, no entre dois ordinais, mas sempre num ou no outro, um deles sendo o conjunto que assume mas não é contado, o outro, sendo o que toma o conjunto primeiro, mas também nunca é contado. Isso quer dizer que o limite de que falo, que se atomiza e se fragmenta numa série de fronteiras que nunca se pode alcançar e que então se reproduz, se coloca como limite absoluto é, portanto, o Todo, ou seja, esse algo que se sustenta sozinho, que não precisa de outra coisa e que é, para a filosofia, a subs­ tância, ou ainda a substância das substâncias, isto é, o ser. Esse limite insiste, como sempre, em outros lugares, e a passagem que o manifesta como buraco, entre alguma coisa e seu suporte, essa passagem não pode em momento algum ser percebida como entre dois. Vê-se isso na passa­ gem do finito ao infinito, por exemplo, pois, como eu disse, pode-se estabelecer o menor ordinal infinito. Entretanto, isso não se apresenta de modo harmo­ nioso, como precedido justamente pelo maior finito ou precedido por algo de finito, porque esse infinito, a partir de então, não seria senão finito + 1. Entre os dois, há verdadeiramente esse buraco que não pôde ser alcançado e que se repete desde então, na infinitização dos infinitos. Dito isso, essa insistência do limite na medida em que ele é excluído, na medida em que ele existe, mais exatamente, não exprime apenas que há um abismo entre O e 1, mas é antes seu esmagamento no 2 que implica um certo desconhecimento desse abismo, uma verdadeira recusa, algo que se asseme­ lha a um desmentido ou a uma denegação, ou seja, algo que participa desses processos inconscientes, que desafiam a lógica formal, de um certo modo, pois põem em ação o infinito e pôr em ação o infinito é verdadeiramente desarmar a maior parte dos procedimentos da lógica. Cito um exemplo que li num artigo recente sobre a matemática moderna, onde se dizia que, numa aula, quando se pede um exemplo de conjunto finito, 48

Lição 2 - 12 de dezembro de 1 9 72

nunca se responde com algo como os inteiros f/; nunca se responde numerica­ mente, mas sempre com um conjunto finito, um grande conjunto finito como os seixos da terra", ou algo assim. Isso mostra bem que, no que se refere justa­ mente ao número, há algo que faz crer que isso pode parar e, ao mesmo tempo, é muito exato, porque isso não para de parar. Mas se eu digo f/isso não para de parar", é isso mesmo, ou seja, isso nunca vai parar de parar. O limite de que faleL pode-se concebê-lo em analogia com a morte, com o silêncio, e lamento não ter muito tempo para desenvolver isso, mas em geral é nessa direção que converge o discurso, o que quer dizer que a repetição é o representamen da morte. E eu gostaria de mostrar, tomando um mínimo de exemplos que, no sonho, por exemplo, como já foi dito, há algo que se manifesta como equação do desejo O" . Mas essa equação do desejo, ela está a mais, está recuada. E aquele que interpreta o sonho que diz: esta é a equação do desejo, que se esforça para ser igual a zero" . O próprio sonho está no zero, ou seja, isso se equilibra. Ao mesmo tempo, equação do desejo O", evidentemente, isso não para por aí. Isso não pode parar por aí, porque o sonho, justamente, continua a pro­ duzir enunciados, continua a falar. E, certamente, gostaria bem de ser igual a zero, mas para isso seria preciso que se calasse, o que não é o caso. Ora, o O, se ele está inserido nessa equação, equação do desejo O", isso significa que ele é sustentado, que ele é designado pela equação que o produz como aquilo a que ela leva. Ora, o fato de que ele seja designado, sustentado, já é propriamente a trans­ formação desse O em 1 . O O, quando lhe colocamos chaves, torna-se 1 . Ora, é precisamente esta a tarefa da interpretação, tornar sensívet nesse O, o 1 de que ele é portador, pois na medida em que o O se manifesta, em que ele é designado, é então que o aparecimento do 1 se torna necessário. E pode-se entender assim que a interpretação seja como um vagão acrescentado a uma equação já dada: é que, precisamente, o próprio sonho é o termo último da série, por exemplo, o 1 . Mas enquanto estamos no 1 , o 1 é focalizado sobre esse O que ele inscreve e se ele próprio faz 1, é por outra coisa, isto é, pela vinda de outra coisa que chega com a interpretação. O que se dá como resistência à interpretação do sonho, numa análise, essa espécie de dificuldade de falar de um sonho, como se já fosse suficiente, como se já estivesse bem e não precisasse acrescentar nada, isso tem a ver com a barra resistente à significação, que em princípio deve separar o significante do significado. u

u

u

=

u

fi

=

u

=

49

Encare

Ao se deixar guiar, quando se trata de interpretação, por Peirce e não por Saussure (se houver uma oposição entre ambos), é preciso ter em mente que o significado de que se fala não é outra coisa senão significante, mas numa série, no sentido, precisamente, de que há funções nessa série, papéis que se permutam e que se pode dizer que há efetivamente um papel de significado, com relação a um papel de significante. Mas o significado é um significante mergulhado na interpretação, no sentido de Peirce, e se acha de certa forma esmagado, minimizado, diminuído, singularizado, no surgimento de um outro significante, que permite compreender, através desse confronto, o mesmo que se vê aqui, que estamos lidando com unidades de um outro conjunto, com ele­ mentos de um conjunto mais amplo. E esse esmagamento tem lugar sem que o que faz buraco entre os dois, no surgimento desse novo significante entre os dois significantes, seja produzido, propriamente falando, mas é na repeti­ ção desse fenômeno, em seu caráter infinito que se dá algo como o limite da interpretação. E o limite da interpretação ou da significação, para Peirce, é a hiância do potencial, isto é, algo que é preciso relacionar com o sujeito e, mesmo relacionando-o com alguma coisa, pode-se ver também se ele está em ligação com o que se chama de conjunto de todos os conjuntos. Porque o conjunto de todos os conjuntos é, talvez, precisamente, esse poten­ cial infinitamente silencioso de que fala Peirce e que se acha no início e no fim de toda série. Dizer que ele não existe, é também dizer que ele ex-siste como limite de qualquer inscrição e também como grão de areia na maquinária de qualquer equação que quer igualar-se a O, pois no tempo desse 'igual a 0', o O se produz como esse termo, e, a partir de então, ele pode ser confrontado a alguma outra coisa que se tomaria na equação que lhe deu origem, e que o singularizaria num outro conjunto mais geral, onde ele figurasse a título de um elemento. Se eu digo isso é porque ouvi, não faz muito tempo, um analista decla­ rar que, na maioria das vezes, os futuros analistas vêm procurá-lo, para uma entrevista preliminar, a partir do momento em que ocorreu alguma coisa, isto é, a partir do momento em que um grão de areia, uma coisinha de nada veio bloquear, veio tornar insustentável uma economia que até então era muito bem suportada. Ora, esse grão de areia não é outra coisa senão esse 1 de que falei, ou seja, ele se constitui pela consideração global dessa equação, dessa econo­ mia muito satisfatória em sua extrema singularidade, o que não é pouco, em oposição a alguma outra coisa que se pode tomar, eventualmente, dentro dessa

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Lição 2 - 12 de dezembro de 1972

equação e singularizar, o que quer dizer estabelecer corno atualmente em rela­ ção à equação inteira. Basta que um só traço da equação seja produzido isoladamente para que ele quebre o equilíbrio da própria equação - que era um equilíbrio de recolhi­ mento em si mesmo - e funcione corno grão de areia. Basta um ligeiro desliza­ mento (não posso aqui citar exemplos, e é pena, porque isso parece ser muito bom) uma mudança de nível inteiramente irrisória, um transporte do que se dá como equação para alguma outra coisa, onde houver outros elementos em jogo, para que essa equação satisfeita com ela mesma, esse conjunto fechado se torne subitamente outra coisa, isto é, para nos darmos conta de que ele pode também funcionar como um elemento de outro conjunto, como parte de outro conjunto que pode ser, precisamente, o conjunto de suas partes, como se vê aqui, ou seja, como um elemento de um conjunto onde o todo da equação precedente aparece ao lado de qualquer coisa, ao lado de qualquer traço e da mesma forma que o conjunto vazio, por exemplo. Não há todo que não possa ser rebaixado, fragmentado ao nível de singula­ ridade elementar, em alguma coisa que se dê como um conjunto maior, ou seja, o conjunto de suas partes. E essa singularidade, a partir do momento em que ela se dá, precisamente num instante de flutuação, traz também o esmagamento, o nivelamento num novo conjunto, que garante a essa nova singularidade um lugar próprio, uma função, algo como um emprego. A passagem de um conjunto ao conjunto de suas partes é, pois, a deban­ dada de todo todo. Mas essa debandada toma formas singulares, pois ela só ocorre, essa dispersão só se produz para formar um novo todo, para se esma­ gar outra vez imediatamente num novo todo, isto é, para que aquilo que se dispersa se reconsolide, mas de um modo que não volte ao ponto de partida e, seguindo uma progressão, se consolide em outra coisa que, dessa vez, forme um conjunto mais vasto.10 Talvez, em última análise, a vitória seja da dispersão, no sentido de que se a impossibilidade da repetição pode se repetir, a impossibilidade da totalização não pode, contudo, se totalizar, pois se tomarmos o conjunto de todos esses 'todos', cuja totalização é rompida por seu fracionamento no conjunto de suas partes, se verdadeiramente esse conjunto é constituído de todos esses 'todos' como de suas partes, então ele tem o mesmo destino, ou seja, ele mesmo pode 10 A Versão 1 traz aqui: un ensemble compact (um conjunto compacto) . (N.T.) 51

Encare

se fracionar, o que implica que esses 'todos' nunca poderão se totalizar. Senão isso seria outra coisa e não o conjunto de suas partes, outra coisa diferente do que se conhece de uma totalização ou de um esmagamento possíveis. Vê-se que as rupturas de conjunto conduzem à constituição de novos con­ juntos, ao esmagamento, e esses novos conjuntos tendem, também eles, a uma ruptura, o que permite dizer que, em última instância - e não insistirei nisso, embora seja importante - tudo é uma questão de ritmo. Num nível um tanto geral, só há sistema se há ruptura e lamento também não poder me estender um pouco sobre isso, mas esse foi um dos erros do linguicismo contemporâneo, o de postular algo como uma regulação intrassistemática num conjunto, sem estabelecê-la como função de algo que participa de uma ordem, como função de um limite excluído. Algo como a interpretação de Peirce foi percebido, em linguística, como apenas uma parte do que é, para Peirce, a interpretação, ou seja, a possibilidade, por exemplo, num sistema, de passar de um significante a outro, quando aquilo em que essa operação elementar se baseia é num trabalho semiótico mais essen­ cial - só faço mencioná-lo - que é, precisamente, para um mesmo significante ou para um mesmo conjunto de significantes, a passagem de um sistema a outro de tipo diferente. Existe aí algo como a torção, o esmagamento do significante e, no fundo, basta considerar o sonho para se perceber o que isso pode signifi­ car. Isso quer dizer que a sobredeterminação deve ser entendida não somente como sobredeterminação semântica num sistema, mas mais propriamente como sobredeterminação semiótica, como possibilidade de um mesmo significante passar de um sistema para outro, como esmagamento do significante. A observação de tal processo, ligado a outra coisa que é interessante, é encontrada em Bacon que, a partir de suas reflexões sobre a linguagem, fundou um processo de criptografia. Esse processo consiste em passar de uma letra interior a uma letra exterior e fazer o trajeto nos dois sentidos, ou seja, sal­ tar uma fronteira que essa passagem põe em destaque. Não vou insistir nessa mudança de sistema em Bacon, mas dou o exemplo dele para ver algo que é propriamente o que já insistia nesse exemplo dos ordinais. É algo que se encon­ tra em qualquer esquina, que é como a omissão de parênteses e permite justa­ mente a passagem da fronteira, algo que tem relação com a possibilidade de uma substituição de dois termos, o que quer dizer que, na substituição de dois termos, tudo é função dos parênteses. E se eu me permito ignorar os parênteses 52

Lição 2 - 12 de dezembro de 1972

ou mudar o lugar dos parênteses ou das chaves, então, tudo é possível. É, aliás, o que Frege censurava em Leibniz, o que ele o censurava por ter feito; e é o que se encontra em Bacon, em seu processo criptográfico, do qual lhes dou rapida­ mente um exemplo. A cada letra do alfabeto (o latino, nesse caso, de 24 letras) faz-se correspon­ der um grupo de cinco letras. E esse grupo é formado unicamente de 'a' e 'b', segundo urna das 32 combinações possíveis. Esse é o primeiro tempo: é urna interpretação simples. No segundo tempo, é a mensagem que vai ser transformada pela via dessa transposição; a mensagem que está unicamente em 'a' e em 'b' vai ser transfor­ mada de novo em alfabeto latino, segundo urna outra interpretação, segundo uma outra lei de transformação. A

B

c

D

E

F

(aaaaa)

(aaaab)

(aaaba)

(aaabb)

(aabaa)

(aabab)

A primeira operação é, portanto, esta. Agora, o fenômeno essencial da mudança de sistema - embora eu não aponte que seja precisamente uma mudança de sistema, mas o que faz com que haja interpretação de interpretação - é que uma vez que se tem uma mensagem formada unicamente em 'a' e em 'b', pela transcrição a partir de cada uma das letras no quadro, vai-se retranscre­ ver no alfabeto original latino, tomando não cada grupo de Sa ou de Sb, porque seria propriamente refazer esse recorte que se trata de mascarar. Vamos tomar cada 'a' e cada 'b', separadamente, e como são as únicas letras com as quais é formada a mensagem média, a mensagem fronteira, poderá corresponder, a cada um, um número enorme de letras do alfabeto latino. Se tomarmos um alfabeto latino complicado de maiúsculas e itálicas, cada letra aparecendo em maiúscula e maiúscula itálica, minúscula e minúscula itálica, teremos quatro vezes 24 letras, e o 'a' e o 'b' terão cada um a metade dessas letras como tra­ dução possível. Isso quer dizer que a única coisa que vai contar será a ordem das letras da mensagem, na medida em que o decodificador sabe que é preciso recortar a mensagem em porções de 5. Por exemplo, tornemos urna série ordenada de maneira muito simples de 'a' e de 'b', na ordem, e façamos depois o alfabeto corresponder a cada 'a' e a

53

Encare

cada 'b', o que faz com que a cada vez que tivermos um 'a', poderemos colocar o que quisermos que lhe corresponda, e a cada vez que tivermos um 'b', será a mesma coisa. O essencial será a posição dos itálicos e a ordem geral das letras. a

b

a

b

a

b

a

b

a

b

a

b

A

A

a

a

B

B

b

b

c

c

c

c

O que aconteceu entre os dois foi, justamente, que tiramos aqueles parên­ teses que reagrupavam os grupos de 5. Nós os fizemos cair e isso é o essencial. Dito isso, lamento não ter tempo de desenvolver este ponto. O que permite a ruptura e a fragmentação de que falei é, pois, a estrutura aberta da ordenação. Aliás, é isso que faz com que o termo, o agente da série - como eu dizia no início - esteja ausente da série que ele agencia, isto é, só esteja presente na vez seguinte. Disso, dessa ausência nasce a possibilidade da defasagem que é a reobjetivação da série inteira. É muito sensível, num relato de caso que, se o grão de areia de que falá­ vamos há pouco manifesta uma mudança de nível, é porque aquilo que era propriamente o agente totalizante da formação precedente, ou seja, o que cons­ tituía os últimos parênteses da formação que precedia o grão de areia torna-se um elemento, é contado na série para um novo agente totalizador. Isso quer dizer, é claro, que o ponto de fuga ou o ponto de queda de uma formação em geral, de uma formação inconsciente, por exemplo, esse ponto está ausente da formação no nível do designado, no nível do que ela designa, do que ela mani­ festa, do que ela encena. Isso quer dizer que se trata, a partir do designado, de fazer o caminho de volta, de pôr em evidência esses parênteses que, de certa forma, estão ali, mas estão ausentes. Tomem um único exemplo, que é o daquele sonho - onde isso fica real­ mente evidente -, sonho comentado por Freud, na época em que ele procurava por toda parte realizações de desejo e justamente havia uma paciente que lhe trouxe, de bandeja, um sonho onde não havia desejo aparente. Podia-se quebrar a cabeça, não se encontraria ali desejo, nem equação de desejo, nem realiza­ ção de desejo. Mas Freud, que entendeu muito bem o processo, lhe disse que, justamente, seu desejo era que não houvesse desejo no sonho, ou seja, que ele estivesse errado. O que mostra bem que o que está presente no sonho é o zero, 54

Lição 2

-

12 de dezembro de 1972

o não desejo, não equação etc .. Mas esse zero está cercado por parênteses, está inserido no conjunto mais geral, como uma parte desse conjunto que repre­ senta o desejo em sua generalidade. Isso quer dizer que ele está sustentado por um desejo, e o desejo, na medida em que ele tem aí a função de suporte, está ausente do designado. E cabe à interpretação fazer surgir esse 1 que estava em estado potencial nesse O. Há algo na ruptura que não quer concluir, o que chamei de desconheci­ mento, e conduz aos esmagamentos sucessivos. E o esmagamento não pode concluir, ele não pode ser completo. Mas o processo tende, já falei disso um pouco, em direção ao esmagamento. O esmagamento de tudo o que possa ocor­ rer, isto é, de todas as rupturas, um esmagamento completo que delimitasse e acabasse com a totalidade das rupturas possíveis. O conjunto de todos os conjuntos é o conjunto de tudo o que pode produzir, por ruptura, um novo conjunto; e se está dito que todo conjunto, por ruptura, dá origem a um novo conjunto, então o conjunto de todos os conjuntos define-se como impossívelY Ora, justamente, o que é impossível é cercar uma ruptura, encaixotá-la; pois a partir do momento em que de uma ruptura se produz um novo conjunto, é para empurrar, para deslocar a ruptura que do novo conjunto vai fazer ainda outro. A ruptura nunca está no conjunto, mesmo que o conjunto só se sustente por querer cercar a ruptura. E o conjunto de todos os conjuntos, aquele que englo­ baria a ruptura, é impossível. Após esses preliminares, pode-se dizer que o que acontece - já que volto ao meu ponto de partida que era a questão do 'a é a' - entre um sujeito e a opera­ ção que o objetiva define ou limita na predicação, tem relação com a categoria do que se sustenta a si mesmo. Ora, já que o que sustenta alguma coisa só é sustentado por outra coisa, como acabamos de ver, a categoria do que se sustenta a si mesmo parece ser impossível. Mas se é impossível, essa impossibilidade mesma pode ter efei­ tos sobre a predicação, que não é senão um cercamento sustentado pelo que quer ser cercado.12 E isso fica evidente quando se vê que alguma coisa sustenta 11 A

Versão 1 traz aqui: comme un possible (como um possível) e a Versão 2: comme impossible (como impossível), formas homófonas em francês, sendo a última a única 'possível', para o entendimento da frase. (N.T.)

12

Em francês: ce qui veut être encerclé. Cf: Scilicet 5, op. cit., p. 76. A Versão 2 traz aqui: ce qui vient d'être encerclé (o que acaba de ser cercado) . (N.T.) 55

Encare

seu predicado, mas o predicado, ao mesmo tempo, vai tentar cercar isso, tentar amarrar o que o sustenta. O que há de real nesses efeitos poderia aparecer em qualquer lugar. Teria sido mais atraente ver o que aparece disso, por exemplo, na obra de Proust, mas enfim, eu tomei a lógica de Port-Royal porque é precisamente uma teoria da substância, uma teoria do que se sustenta a si mesmo, e porque tal teoria só pode funcionar, eu penso, sobre o que acabamos de ver, mesmo que seja a fim de reproduzir incessantemente um desconhecimento. O que me levou à lógica de Port-Royal, onde se encontra um emaranhado de temas interessantes como o signo, a predicação, a substância do ser, foi o que foi dito de uma secção de predicado caracterizando o ser, pois na lógica de Port-Royal a predicação elementar 'o homem é' é considerada uma forma vazia de qualquer predicação, como se o predicado fosse, nesse caso, 'não predicado', impredicável. Há, na lógica de Port-Royal, uma série de objetos que se predicam justa­ mente por não se predicarem; e isso fazia parte ao mesmo tempo de suas preo­ cupações jansenistas, de um lado, e cartesianas, do outro. Desenvolvo um pouco essa questão do predicado e da substância para mos­ trar que se levarmos ao extremo esses conceitos que se encontram numa teoria da substância, obteremos algo que é mais ou menos o que eu disse antes. Um predicado é algo no conjunto que é sustentado por uma coisa, por uma substância, a substância sendo o que se sustenta a si mesmo. A substância é o que se concebe como subsistindo por si mesmo e como o sujeito de tudo o que se concebe aí" .13 O predicado é o que, sendo concebido na coisa e como não podendo sub­ sistir sem ela, a determina a ser de certo modo e a faz ser nomeada tal" .14 São duas definições que encontramos no início. Ora, a partir daí, há alguma coisa que vai falhar, haverá um obstáculo que vai ser produzido, de certa forma, pela linguagem corrente. Nessa lógica, está dito que um nome de substância é naturalmente um 'substantivo' ou ' absoluto', enquanto um nome de predicado é um ' adjetivo' ou 'conotativo'. O problema que se coloca é que há substantivos que não têm nada a ver com as substâncias, aparentemente, que não são coisas, substâncias como 11

11

13

ARNAULD, A. e NICOLE, P. La Logique ou l'art de penser, op. cit, p. 40.

14

Ibidem.

56

Lição 2 - 12 de dezembro de 1972

a terra, o sol, o fogo, o espírito, que são os exemplos de substancia dados pela lógica de Port-Royal. Isso quer dizer que, excetuando-se esses substantivos de que acabo de falar, há também os nomes que exprimem qualidades conotativas, ou seja, nomes que participam da predicação. Por exemplo, a 'redondeza' . Está dito, por um lado: A ideia que tenho da redondeza me representa apenas uma maneira de ser ou um modo que eu concebo que não pode subsistir naturalmente sem o corpo do qual é redondeza.15

E, logo em seguida, está dito: Os nomes que significam primeiramente e diretamente os modos, porque nisso eles têm alguma relação com as substâncias, são também chamados de substanti­ vos e absolutos, como dureza, calor, justiça, prudência.16

Em outras palavras, é a partir de um ponto de detalhe bastante irrisório que se pode conceber - e isso ocorre na lógica de Port-Royal - que o que foi modo no início, ou no discurso predicado, depois de tê-lo sido primeiramente e diretamente, basta um certo deslocamento para que isso se torne, por sua vez, substância, a substância sendo o que se sustenta a si mesmo. Ora, esse deslocamento será preciso tentar circunscrevê-lo, e vocês vão ver que isso tem relação com o conjunto das partes de um conjunto. E a passagem, por exemplo, no discurso, de um predicado 'redondo' ao substantivo 'redon­ deza'. Ora, participam da 'redondeza' todos os objetos que podem ser predica­ dos 'redondos' . Isso que dizer que a 'redondeza', empregando outra expressão, é a extensão do predicado 'redondo'. E a extensão do predicado não é um pre­ dicado, é uma substância. O que faz com que a partir de uma extensão de predicado se obtenha uma substância - e eu vou aprofundar isso - vocês podem ver que uma substância como terra, sol etc., ou seja, uma coleção de predicados, é um objeto ao qual se refere uma multiplicidade de predicações possíveis, enquanto uma extensão de predicado é propriamente um predicado que se sustenta porque pode ser refe­ rido a uma série de objetos possíveis, que estão assim na posição de predicados de predicado. Então, o que faz com que a partir de uma extensão de predicado se obtenha uma substância, isso tem algo a ver com o conjunto das partes de um 15 16

Ibidem. Idem, p. 41. 57

Encare

conjunto e nomeadamente está dito na lógica de Port-Royal que a abstração é o que consiste em considerar as partes independentemente do todo do qual fazem parte; e também está dito que é assim que se pode conceber o atributo, isto é, o pre­ dicado, independentemente da substância singular que o sustenta atualmente. Parte-se de um conjunto, de uma coisa, como conjunto de predicados, à qual pertencem, mas inessencialmente, portanto, esses predicados; separam-se as partes, os predicados da coisa e, a partir de então, de uma maneira de certa forma mágica, pode-se considerar uma nova substância que é aquilo pelo qual os predicados singulares podem ter relação com a unidade, independentemente de qualquer relação atual com uma substância singular. Há, pois, um processo que, a partir da fragmentação de uma unidade, con­ duz a outra unidade. E preciso entender que o que se dá no início como substância, isto é, como o objeto ao qual pode referir-se uma série de predicados possíveis, é a mesma coisa que o primeiro a' do a é a'; é algo de potencial, ou seja, isso se dá como o suporte de tudo o que pode acontecer como predicação, suporte potencial, isto é, que funciona no nível do tudo, no nível do qualquer coisa. Mas a partir do momento em que alguma coisa é dada, que existe predicado, o suporte potencial se desfaz, ou seja, a partir do momento em que uma palavra atual é dada, o suporte cessa de ser sujeito. Ele é referido ao seu predicado atual, como se ele mesmo não fosse mais do que um objeto pertinente para esse predicado, esse predicado se erigindo em extensão de predicado, isto é, em valor intrínseco. E é o predicado que se torna suporte, substância na extensão, havendo assim uma inversão de papéis. A extensão de predicado é um conjunto de objetos relacionados a um pre­ dicado; os objetos predicam o predicado, quando na substância potenciat todos os predicados possíveis eram relacionados ao objeto. Ora, o que ocorre entre esses dois tipos de substância, coleção potencial de predicados e extensão de predicados, é da ordem do que vimos a respeito dos ordinais e eu gostaria muito que isso aparecesse sozinho. A substância potencial é um conjunto de predicados e a extensão de predi­ cado é um conjunto de objetos. Tira-se da substância potencial um predicado que supostamente ela contém e coloca-se a substância e esse predicado atual em relação, um diante do outro, num novo conjunto como colocamos em rela­ ção o 3, como fechamento de partes que se encontram bem ao lado dele, tudo isso num mesmo conjunto. 1

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I

Lição 2 - 12 de dezembro de 1972

Esse predicado atual num novo conjunto, colocado ao lado da substância potencial, ou seja, a designação da designação que se efetuava no primeiro con­ junto, isto é, na primeira substância, é isso que dá a extensão de predicado. Agora, se os predicados abstratos da substância primeira conseguem, mesmo assim, fazer Um, é graças à singularidade dessa nova substância, que constitui uma extensão de predicado. Afastando um pouco mais a diferença que funda o Um, podemos nos interrogar, considerando as extensões indepen­ dentemente dos predicados: o que sustenta a extensão? Ou seja, se a extensão é o interpretante que sustenta os predicados, em sua relação atual com as subs­ tâncias potenciais, o que sustenta as extensões, qual é seu interpretante, em sua relação com essa mesma relação? Na medida em que, na passagem da coleção potencial de predicados à extensão de predicado, há uma inversão dos papéis, de um ponto de vista for­ mal, as duas substâncias são a mesma coisa: é que há alguma coisa que sustenta e alguma coisa que é sustentada, mesmo que um caso seja o contrário do outro. Mas se acrescentarmos a isso a dimensão propriamente histórica ou ordinal, a que tentei apontar no início, obteremos que, na constituição de um conjunto há algo como a substantificação de um predicado, que é correlativo da predicação de uma substância. E isso é, exatamente, o que reconhecemos como ruptura, esmagamento na 'inter-pretação'. Ora, é possível que o jogo da coleção - ou pode-se dizer compreensão - e da extensão, na lógica de Port-Royal, corresponda à dialética da ruptura e do esmagamento. E, se for o caso, evidentemente é num sentido muito particu­ lar que se deverá entender essa propriedade da substância de se sustentar a si mesma. Porque essa autonomia da substância é, então, inteiramente relativa, ou seja, ela está na relação diádica que a opõe ao que a predica, ao seu predi­ cado. Ou seja, um sustenta e o outro é sustentado, mas se substância se predica e predicado se substantifica, isso significa que é preciso considerar uma rela­ ção triádica, na qual se estabeleça algo como uma reciprocidade defasada, uma reciprocidade discordante. Se predicado se torna substância para sustentar, na extensão, objetos que, da primeira vez, sustentavam, na coleção, predicados, essa manobra pode muito bem continuar um pouco mais, de modo que a extensão, por sua vez, seja sus­ tentada por algo de que ela não seja senão o predicado. A relação substância­ predicado se apresenta como aquela do múltiplo ao singular, como eu disse, e é a mesma coisa num sentido e no outro. 59

Encare

Depois da coleção e da extensão, pode haver algo da ordem de uma coleção de extensões, ou seja, um conjunto cujos elementos sejam precisamente essas novas substâncias que são as extensões, mas dessubstantificadas, tomadas como predicados de uma substância superior que as sustenta. Ora, essa é propriamente a categoria dos conjuntos supremos, porque na lógica de Port-Royal, tudo tem um fim e aí tocamos em algo que tem a ver com o Ser. A extensão de predicado como substância é o que faz com que fiquem jun­ tos um sujeito e um predicado, numa relação atual. Se, na relação diádica, o sujeito sustenta o predicado, na relação triádica é a extensão de predicado que sustenta a relação diádica. A extensão como substância tem, pois, a função do interpretante, como eu já disse. Então, qual é esse novo interpretante - eu repito a questão - que sustenta a relação diádica, entre a primeira relação diádica e a extensão como interpre­ tante? Se é que o termo último de uma relação serial a representa inteira, menos ele mesmo - e vocês talvez tenham percebido que não paramos de trabalhar nessa hipótese - então, da mesma forma que o conjunto das relações objeto­ predicado, ou seja, a extensão faz as vezes e interpreta essas relações, é o con­ junto de todas as extensões que será o interpretante da extensão. Se repetirmos o processo, a extensão substancializada do predicado vai se dessubstancializar e ser relacionada, como predicado, ao que sustenta toda extensão, o Ser. O Ser é a única coisa que é dita se sustentar verdadeiramente a si mesma, ou seja, que não é o predicado de nada. Uma vez o ser produ­ zido como termo da série, pode-se voltar, pode-se regredir até substâncias tais como a superfície, o pensamento e fundamentá-las. É inclusive a partir do Ser que se vai entender de maneira mais aguda o que representa a predicação, pois, como vimos, pouco a pouco, é afinal sobre o Ser que se apoia a relação predicativa. O que é dito do Ser, na lógica de Port-Royal, é que ele faz parte dessas coisas que não podem, de modo algum, ser predicadas, pela razão evidente de que, se ele for predicável, esse predicado que lhe daremos, substantificando-o, será algo de mais vasto que o Ser, e o Ser será referido, ele mesmo, como predi­ cado dessa substância nova que será a extensão desse predicado. Ora, o ser não pode ser um predicado, portanto, o ser não tem predicado. Eu cito a lógica de Port-Royal a respeito do Ser e do pensamento:

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Não se deve pedir que expliquemos esses termos, pois eles fazem parte do número daqueles que são tão bem entendidos por todo mundo e os obscureceríamos, que­ rendo explicá-losP

É geralmente o que se diz, quando se trata dessas questões. Falar do Ser é reduzi-lo a um ser menor, da mesma forma que falar do pensamento, pois se o pensamento é o conjunto de tudo o que se pode pensar e de tudo o que se pode dizer disso, ele é forçosamente algo a mais do que tudo o que se possa dizer dele. Ao mesmo tempo, pelo fato de que o Ser não poderia ser predicado e, por esse outro, que o Ser é o suporte de toda predicação, há algo como uma disjunção entre esse ser que não sustenta nada, porque não pode ser separado de nada, e esse todo que só pode ser concebido sustentado pelo Ser. Mas isso só é disjunção se considerarmos, num primeiro tempo, o ser de um lado e os predicados do outro - veremos que essa concepção é falsa - e se o Ser é propria­ mente esse nada no discurso, ele é o conjunto de todo o discurso, ou seja, o que escapa ao discurso, o que o constitui. Desse ponto de vista, o que escapa ao discurso é o próprio discurso, pois só há discurso como ajuntamento, como esmagamento, a fim de recuperar o que precisamente lhe escapa. Assim, o Ser, certamente será preciso situá-lo tanto no início do discurso, no não radical, quanto no fim, no encare. Ora, a diferença que isolamos entre a substância potencial, como possibili­ dade de uma predicação e toda a predicação atual, que rebaixa a substância ao nível de predicado que se tornou substância, essa diferença nos permite com­ preender o que é o Ser. Não é pouca coisa que um conjunto como totalidade fechada, por exemplo, o 3, que vocês veem no quadro-negro, seja diferente do conjunto do que se pode recensear como partes desse conjunto. A substância como suporte, cole­ ção de predicados, compreende de modo potencial a série dos predicados que lhe pertencem, mas independentemente de qualquer atualização do predicado, pois a partir do momento em que se atualiza um predicado, em que existe um predicado, ao contrário, é da expulsão fora da substância de um predicado que se trata; é uma ruptura, a ruptura que, por desmembramento, põe a substância em relação com tudo o que ela sustenta.

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Idem, p. 38. 61

Encare

E aqui está o nó da questão, pois se há uma diferença entre, de um lado, relacionar, pelo modo predicativo atual, a substância com os predicados que a definem, e, do outro lado, a própria substância, enquanto suposta não ser nada além de sua relação com os predicados, o fato de sustentá-los, então será pre­ ciso concluir que a substância é outra coisa que não um suporte de predicado, outra coisa que não aquilo ao qual se referem os predicados. Contudo, não há outra coisa na substância além de predicados juntos, e isso está dito. E, no entanto, se pusermos a substância, como conjunto de predicados, em relação com esses predicados dos quais ela é o conjunto, encontramo-nos diante não de uma simples redundância, mas propriamente de uma diferença. E o que existe a mais na substância, o que faz essa diferença, o fato de que os predicados estejam juntos, não é apenas uma simples determinação suplemen­ tar de predicados, pois está dito na lógica de Port-Royal que a substância inteira consiste nessa diferença entre o fato de os predicados estarem juntos ou não. Se suprimirmos a possibilidade dessa diferença, não poderá mais haver subs­ tância, ou seja, restará um universo de predicados, universo indiferenciado, o que Peirce chama de "universo do talvez", que é também o nada absoluto, na medida em que é dito na lógica de Port-Royal que, sem a substância, os predi­ cados não se sustentam, não são mais nada. A substância é o que faz alguma coisa se sustentar, é o que permite relações, ou seja, é o que está a mais, quando os predicados estão juntos. Ora, ao mesmo tempo, não deixamos de constatar que esse 'a mais' está ligado ao fato de que um conjunto de predicados torna-se um termo singular, faz Um, e que esse termo singular não faz parte daquilo do qual ele é o con­ junto, no momento em que designa aquilo do qual ele é o conjunto. Assim, a substância é aquilo que, quando um conjunto é dado, o constitui e lhe falta, isso ao mesmo tempo. Dito de outra forma, o que falta num conjunto é o que o constitui: a substância. Agora, se olharmos o que falta explicitamente na lógica de Port-Royal - por­ que está dito que falta alguma coisa - perceberemos, infelizmente, ou não, que justamente não é a substância. O que falta, no conjunto, é aquilo que, quando não há outra coisa além do que falta, é equivalente a nada. Esta é uma definição como outra qualquer. . . E está dito na lógica de Port-Royal que se, desse todo formado pela substância e pelos predicados, for tirada a substância, então não restará nada, porque os predicados e os atributos só existem porque há substância.

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Nesse ponto, entramos realmente num corredor lógico do qual não pode­ mos sair, uma série de proposições que nos arrastam. A substância não é senão os predicados mais alguma coisa. Esse 'mais' se define como faltante. E os pre­ dicados são aquilo que sozinho não é nada, mas se produz quando a substância é dada; ou seja, os predicados não são nada sem alguma coisa, a substância, que não é senão a adição a esses predicados supostos contraditoriamente já dados, daquilo que de todo modo, na soma, faltará. A substância sustenta os predicados, mas também, de certo modo, os predi­ cados sustentam a substância, como esse 'ainda nada' do qual, por substantifica­ ção, vai nascer a singularidade de uma diferença. Os predicados são apenas O. A substância é o que se acrescenta ao O para fazer 1, mas nesse 1 constituído, só os predicados, isto é, o O aparece, pois o que faz 1, justamente, na inscrição do O, está ausente do que o 1 inscreve, isto é, do conteúdo, do designado do 1, ou seja, o O. Portanto, essas contradições que assinalei através de algumas fórmulas parecem poder se reordenar a partir da reintrodução do ponto de vista ordinal que precedeu, no início desse apanhado da lógica de Port-Royal, ou seja, a opo­ sição entre a coleção e a extensão. Isso se entende assim: a substância sustenta o predicado que, definido, incide sobre a substância. Vamos agora tomar todas as proposições contraditórias uma por uma e só aceitar uma por vez, é a melhor solução. Depois disso, tudo vai dar certo. A substância sendo o que falta, o predicado é um efeito de falta, o que incide sobre uma falta, o revestimento da falta. Mas, por outro lado, o predi­ cado não é nada sem a substância, e é impossível diferençar a substância do predicado atual, como manifestação da substância faltante. Todavia, já que está dito que o predicado não é nada sem a substância, e já que está dito que não há substância, que ela falta, então, como há predicado, somos forçados a deduzir que o predicado é a substância. Já que sem a substân­ cia, não há predicado, o predicado deveria não ser nada, no entanto, isso dá o 1, o que implica que esse 1 do predicado é, não o predicado, mas, propriamente falando, a substância. Ora, isso só se compreende a partir desse ponto de vista ordinal, que é a questão da substantificação do predicado. O predicado, que em princípio não é nada sem a substância, se ele se mani­ festa como alguma coisa, esse algo como diferente do nada do predicado é, for­ çosamente, a substância. Isso quer dizer que, na extensão do predicado, o pre-

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Encare

clicado é substantificado, isto é, o predicado, na extensão, vai fazer as vezes de substância de forma pontual, para alguma coisa que vai fazer as vezes de predi­ cado, ou seja, os objetos da extensão. E, ao mesmo tempo, agora há substância, mas ao mesmo tempo ela supostamente deve faltar. Assim que a segunda classe de predicados é produzida, a operação se repete, e o que, num primeiro tempo, fez as vezes da substância, vai faltar corno substância, já que, pela operação que já apontei, isso vai se aplicar corno predicado ao novo termo que aparece corno urna substância provisória. E isso, até o infinito. Isso quer dizer que, assim que urna substância é dada, ela se inscreve, atu­ alizando-se pelos predicados que se aplicam a ela, mas assim que os predica­ dos se atualizam, a substância se reporta a esses predicados, que adquirem um valor substancial que é a extensão, o que significa que é impossível à substância ser dada e inscrita no mesmo tempo, de urna só vez. A substância pode então muito bem ser definida corno o que falta e corno o que faz o conjunto. De um lado, um predicado se apoia no primeiro predi­ cado, que faz as vezes de substância, para defini-lo, identificá-lo, predicá-lo. E, do outro lado, o primeiro predicado-substância referido nessa relação ao segundo, que adquire urna extensão, desaparece enquanto substância, para se tornar apenas um elemento na extensão do predicado segundo e permitir o revezamento dessa função de substância. A substância é urna função que esse elemento transmitirá a um terceiro predicado, etc.. Vê-se que a primeira substância, aquela que se supõe estar no início, a subs­ tância potencial, é inteiramente mítica. O que conta é esse jogo de revezamento, é a relação atual de predicação que, tornada possível pela substância poten­ cial, a inscreve e a transforma em termo, em predicado numa relação, ficando entendido que o termo último da relação desempenha, por sua vez, o papel de substância, ou seja, falta na relação e só se inscreve ao se tornar outra coisa e não substância, isto é, predicado. As substâncias sucessivas são, pois, a série das encarnações transitórias do que falta e que sustenta toda pseudossubstância corno revestimento da falta: o Ser.18 O Ser é exatamente o que sustenta todo discurso, na medida em que o dis­ curso é o que se produz nas bordas do buraco que ele constitui. O Ser é, pois, ao mesmo tempo, aquilo que está antes do discurso, que carrega o discurso e que está depois, no fim de todo discurso, seu ponto de convergência, seu limite. 18

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Esta conclusão: "o Ser" só se encontra na Versão 2 e em Scilicet 5, op. cit., p. 86. (N.T.)

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Na lógica de Port-Royal - eu gostaria de situar as coisas - não é uma deter­ minada teoria do discurso que se pode encontrar, é o conh·ário. Mas na medida em que é o contrário, há algo dessa teoria que insiste no próprio âmago desse discurso, embora o projeto inicial de Port-Royal fosse construir uma metalin­ guagem e está dito nomeadamente, é ao contrário que algo insiste em Port­ Royal, contra sua vontade. Ou seja, isso toma efeitos a partir do seguinte: a partir do momento em que o Ser é apresentado como o que não pode ser predi­ cado, como conjunto de tudo o que pode ser atribuído/9 ele é dito ser mais do que tudo o que pode ser atribuído. Essa impredicação do Ser é apresentada numa fórmula já eloquente. Ali está dito o seguinte: "O Ser é impredicável", ora, justamente 'impredicável' tal­ vez este seja o primeiro predicado que, nessa tentativa de significar o impos­ sível, não faz senão repeti-lo pelo fato de expor sua própria vacuidade e que traça, assim, de um só golpe, o limite do que é possível e do que não é. Nesse sentido, o possível, o potencial é o que é impossível de se efetuar; é o que não pode se dar sem se transformar e mudar de função; enquanto o impossível é a única coisa que pode se realizar, deixando aberto o que funda essa impossibili­ dade, ou seja, essa hiância, pois o tipo de realização do impossível deixa aberta a impossibilidade, isso, por exemplo, que é a predicação do impredicável. Termino com algo que nos levaria um pouco mais longe, mas não tenho vontade de concluir, isto é, de fechar este discurso que era apenas um prelimi­ nar: a linguagem é o que representa o Ser para a palavra (parole)/0 o que quer dizer que a palavra está na posição do interpretante, entre a árvore e a casca, da mesma forma que o finito é o que se tece entre dois infinitos. Aplausos. Jacques Lacan: - Concluirei com estas palavras: com o tempo, isso acaba saindo! 19 20

A parte final desta frase só é encontrada na Versão 2. (N.T.) Optamos por traduzir pelo mesmo termo em português "palavra", o que em francês pode ser "mot" ou "parole", deixando eventualmente entre parênteses a referência em francês. Apenas a título de lembrete: "mot" é palavra no sentido de vocábulo, de "forma livre dotada de sentido, que entra diretamente na produção da frase" e "parole" é palavra no sentido da "faculdade de comunicar o pensamento por um sistema de sons articulados emitidos pelos órgãos da fonação". Contudo, "parole" é bem mais do que "fala", é o termo que corresponde a: "dar sua palavra" (donner sa parole), "palavra de honra" ("parole "d'honneur"), "um homem de palavra" (" un homme de parole") etc. Cf. Díctionnaíre le Petít Robert. Vale lembrar ainda o título do famoso livro de poemas Paroles de Jacques Prévert que não poderia ser traduzido por "falas". (N.T.) 65

Lição 3

19 de dezembro de 1972

Parece difícil não falar tolamente da linguagem. No entanto, Jakobson, já que você está aqui - vocês me permitirão tratá-lo com intimidade, pois já vive­ mos juntos um certo número de coisas -, no entanto, Jakobson, é o que você consegue fazer. Uma vez mais, nessas palestras que Jakobson nos deu,l pude admirá-lo o bastante para lhe prestar agora esta homenagem. Contudo, é preciso alimentar a tolice.2 Não que todos aqueles que alimen­ tamos sejam tolos - se posso dizer assim, com um termo ao qual teremos de voltar essencialmente este ano, isto é, porque esse termo sustenta a forma deles - mas antes porque está demonstrado que alimentar-se faz parte da tolice. Terei de relembrar, diante desta sala, onde estamos, em suma, no restaurante e onde se acredita, aliás ... onde a gente imagina que se alimenta porque não está no restaurante universitário? Mas essa dimensão imaginativa, é justamente nisso3 que nos alimentamos. O que eu evoco é o que . . . confio em vocês para se lembra­ rem do que ensina o discurso analítico: aquela antiga ligação com a nutriz,4 que além disso é mãe, como por acaso, tendo por detrás aquela história infernal do desejo da mãe e de tudo o que se segue. É bem disso que se trata no alimento, é mesmo uma espécie de tolice, mas que o mesmo discurso assenta, se posso dizer assim, em seu direito.5 Um dia eu percebi que era difícil - retomo aqui a mesma palavra de minha primeira frase - não entrar na linguística, a partir do momento em que o incons­ ciente fora descoberto. Então eu fiz algo que me parece, para dizer a verdade, a 1

2 3

4

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A versão publicada (op. cit., p. 19) acrescenta aqui: "nestes últimos dias, no College de France." (N.T.) Em francês: bêtise. Cf. nota 3 da Lição 2 para a justificação da tradução. (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 19) traz aqui 'disso' (de ça) e a Versão 2 também traz 'nisso' (en ça). (N.T.) Nourrice, no original, refere-se a quem amamenta, alimenta, podendo ser a própria mãe ou a ama de leite. Perde-se, na tradução, a assonância em francês entre nourrir (alimentar) f nour­ rice (a que alimenta). (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 19) introduz aqui urna separação: Parte 1. (N.T.) 67

Encare

única objeção que eu poderia formular ao que vocês possam ter ouvido, nestes últimos dias, da boca de Jakobson, a saber: que tudo o que é da linguagem teria a ver com a linguística, ou seja, em último termo, com o linguista. Não que eu não lhe dê razão, sem nenhuma dificuldade, quando se trata da poesia, a respeito da qual ele propôs este argumento.6 Mas se tomarmos tudo o que se segue da linguagem e, especificamente, do que dela resulta, nessa fundação do sujeito, tão renovada, tão subvertida, onde está o estatuto que assegura tudo o que da boca de Freud se afirmou como o inconsciente, então terei de for­ jar alguma outra palavra, para deixar a Jakobson seu domínio reservado e, se vocês quiserem, chamarei isso de "linguisteria" . Eu me lanço na "linguisteria", o que me deixa ter alguma parte com os lin­ guistas, não sem explicar que tantas vezes eu sofra, eu receba, afinal de contas alegremente, da parte de tantos linguistas, mais de uma censura. Certamente não de Jakobson, mas é porque ele me tem em boa conta, em outras palavras, ele me ama, é como eu exprimo isso na intimidade. Mas se vocês esperam o que eu poderia dizer do amor, isso só fará confirmar, em suma, certa disjunção que, por sorte, eu encontrei esta manhã, exatamente às oito e meia, quando come­ çava a tomar notas - é sempre a essa hora que o faço - sobre o que tenho a lhes dizer. Não que eu não tivesse pensado nisso há mais tempo, mas só foi redigido no final. E encontrei isso: "linguisteria". Isso comporta efeitos, especificamente no nível não do 'dito', porque afi­ nal há ditos que são comuns aos dois campos, é exatamente daí que tiro essa referência, é daí que posso dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem? Mas fica suficientemente claro que tendo estabelecido esse dizer, como outros que vieram depois ... Enfim, já é alguma coisa que um certo número se restrinja a este, ele é importante. Afinal, esse dizer não é do campo da linguís­ tica, isso é uma porta aberta para o que vocês verão comentado no texto que será publicado no próximo número de meu bem conhecido aperiódico e que tem por título "L' étourdit", escreve-se d-i-t. 8 Retomo então, partindo de uma frase que no ano passado eu escrevi no quadro várias vezes, sem nunca desenvolvê-la, porque achei que tinha coisa 6 7

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JAKOBSON, R. Essais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1973, p. 209. A versão publicada (op. cit., p. 20) omite as três últimas frases, desde "Mas se vocês espe­ ram. . . ". (N.T.) "L' étourdit". In: Scilicet 4. Paris: Seuil, Le champ freudien, 1973, p. 5.

Lição 3 - 19 de dezembro de 1972

melhor a fazer, isto é, ouvir alguém que, depois de ter tomado a palavra aqui, nomeadamente esse mesmo Récanati, que vocês ouviram de novo da última vez, e graças a isso posso ressaltar a legitimidade do título de seminário, graças a ele, pois, não dei sequência a isso: que "o dizer é justamente o que fica esque­ cido por trás do que é dito no que se ouve".9 Contudo, é pelas consequências do dito que se julga o dizer. Mas o que se faz do dito fica em aberto. Pode-se fazer uma porção de coisas, como se faz com os móveis, por exemplo, a partir do momento em que se enfrentou um cerco ou um bombardeio. Há um texto de Rimbaud que mencionei, creio eu, no ano passado. Não fui procurar onde ele se encontra, textualmente, porque eu estava com pressa esta manhã. Foi esta manhã que voltei a pensar nisso e creio mesmo que foi no ano passado . . . É o texto que se chama À une raison, escandido por esse refrão que termina cada verso: " ... un nouvel amour".10 E já que na última vez presume-se que eu tenha falado do amor, por que não retomá-lo nesse nível? Para aqueles que já sabem, que já ouviram alguma coisa sobre isso, eu o retomarei no nível desse texto e sempre sobre esse ponto, de marcar a distância da linguística à 9



Aqui Lacan diz exatamente: "le dire est justement ce qui reste oublié, derriere ce qui est dit, dans ce qu 'on entend", como foi traduzido acima. A frase aparece na obra publicada da seguinte forma: "Qu'on dise reste oublié derriere ce qui se dit dans ce qui s'entend" . In: "L' étourdit", op. cit., p. 5. Cf. RIMBAUD, A CEuvres completes. Paris: Gallimard, La Pléiade, 1972, p. 130. A une raison Un coup de ton doigt sur le tambour décharge tous les sons et commence la nouvelle harmonie. Un pas de toi c'est la levée des nouveaux hommes et leur en marche. Ta tête se détourne: le nouvel amour! Ta tête de retourne - le nouvel amour! "Change nos lots, crible les fléaux, à commencer par le temps", te chantent ces enfants; "É leve n 'importe ou la substance de nos fortunes et de nos vo;ux", on t'en prie. Arrivée de toujours, qui t'en iras partout. Pode-se notar que não se trata de um novo amor, mas de ' o novo amor'. E também a expressão não escande cada verso. (N.Versão 1) Tradução livre do poema de Rimbaud: "A uma razão" . Uma batida de teu dedo no tambor libera todos os sons e começa a nova harmonia. / Um passo teu é o alistamento dos novos homens, todos em marcha./ Tua cabeça se vira: o novo amor! Tua cabeça se volta - o novo amor!/ "Muda nossas sinas, avalia os flagelos, a começar pelo tempo", te cantam essas crian­ ças; / "Eleva não importa onde a substância de nossos destinos e de nossos votos", nós te pedimos. / Tu que sempre chegas e que te vais por toda parte. (N.T.) 69

Encare

"linguisteria" . O amor, para Rimbaud, nesse texto, é o signo/1 apontado como tal, de que se muda de razão, é por isso mesmo que ele se dirige a essa razão, A une raison. Houve uma mudança de discurso. Penso que, de todo modo - embora haja quem saia pelos corredores pedindo que alguém lhe explique de novo o que são os quatro discursos12 - assim, no cole­ tivo, posso me referir a isso: que eu articulei quatro deles e não preciso lhes refa­ zer essa lista. Quero assinalar a vocês que esses quatro discursos não devem ser tomados, em caso algum, como uma sequência de emergências históricas. Que um deles tenha vindo há mais tempo do que os outros, não é isso que importa. Dizendo que o amor é o signo de que se muda de discurso, eu digo pro­ priamente isso: o último a tomar esse desdobramento que me permitiu fazê-los quatro, eles só existem como quatro fundamentados nesse discurso psicanalí­ tico, que articulo de quatro lugares e, em cada um, por força de algum efeito de significante, estipulado como tal. Esse discurso psicanalítico, sempre há uma emergência dele a cada passagem de um discurso a outro. Isso vale a pena ser lembrado, não para fazer história, pois não se trata disso, em caso algum. Mas, por exemplo, se estivermos colocados numa condição histórica, se situarmos, se avançarmos - embora estejamos livres para considerar que a fundação da universidade, no tempo de Carlos Magno,13 era a passagem de um discurso do mestre ao limiar de outro discurso - simplesmente devemos lembrar que, ao aplicar essas categorias, que são estruturadas, elas mesmas, somente pela exis­ tência, que é um termo, mas não tem nada de terminal do discurso psicanalí1

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Em francês: signe, que pode ser traduzido por 'sinal', ou por 'signo', o que é o caso, por exem­ plo, do signo linguístico. A palavra signal, que se traduz sempre por 'sinal', refere-se mais a um gesto ou som convencional, para indicar o momento de agir (alarme, sinais sonoros, visuais etc.). (N.T.) Aqui estão eles, como na primeira lição do seminário 17, L'envers de la psychanalyse, de 26/11/1969: u

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Fundação da universidade no tempo de Carlos Magno! Lacan reduz a universidade a escola: Carlos Magno fundou, em 789, a escola medieval onde o clero ensinava inicialmente a leitura e a escrita. A primeira universidade foi fundada em Bolonha, em 1200. (N.Versão 1) A versão publicada (op. cit., p. 21) omite esta parte. (N.T.)

Lição 3 - 1 9 de dezembro de 1972

tico, seria necessário ter ouvidos atentos apenas à comprovação desta verdade: que há emergência do discurso analítico a cada passagem do que o discurso analítico permite apontar como franqueamento de um discurso a outro. Da última vez eu disse que o gozo do Outro ... - poupo a vocês a sequência, que vocês poderão retomar depois - não é o signo do amor. E aqui mesmo eu digo que o amor é um signo. O amor está no fato de que o que aparece não é nada além, não é nada mais do que o signo? É aqui que a lógica de Port-Royal, evocada outro dia/4 viria nos ajudar. O signo, propõe essa lógica - e sempre nos admiramos com esses dizeres que ganham peso, às vezes, muito tempo depois - o signo é o que não se define senão pela disjunção de duas substâncias que não teriam nenhuma parte comum, é o que em nossos dias chamamos de interseção. Isso vai nos levar a algumas respostas, daqui a pouco. O que não é o signo do amor - retomo o que enunciei da última vez a res­ peito do gozo do Outro, e que acabo de lembrar há pouco, comentando, sobre o corpo que O simboliza. O gozo do Outro - com O maiúsculo, como assinalei nessa ocasião - é propriamente o do Outro sexo, e eu comentava: do corpo que O simbolíza.15 Mudança de discurso - certamente, é aí que é surpreendente: o que eu articulo a partir do discurso psicanalítico, pois bem, isso se agita, se enoda, se atravessa ... 16 e ninguém acusa o golpe! Por mais que eu diga que essa noção de discurso deve ser tomada como laço social, como tal fundado na linguagem, e diferenciando suas funções a respeito desse uso da linguagem, e parecendo assim não deixar de ter relação com o que na linguística se especifica como gra­ mática ... nada parece modificar-se... Esse uso se instituindo, pelo menos ao que parece, ninguém levanta, ninguém formula a questão de saber o que é a noção de informação. Será que tomando a linguagem na "linguisteria" . . . a noção que parece pro­ movida como aparelho fácil, propício a fazer funcionar a linguagem na linguís­ tica de um modo não tolo, o que implicava códigos e mensagens, transmissão, 14

A versão publicada (ap. cit., p. 21) acrescenta aqui: "na exposição de François Récanati" (datada de 12 de dezembro de 1972). (N.T.)

15 A versão publicada (ap. cit., p. 21) traz minúscula em "que o simboliza", embora Lacan tenha explicitado na Lição 1: ("aqui também com maiúscula") cf. nota 17 dessa Lição. (N.T.) 16

Pode-se ler também: " ça naus . . . entre ça naue e ça naus. (N.T.)

ça

se traverse" ("isso nos . . . isso se atravessa"), pela homofonia

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Encare

sujeito e, portanto, também espaço, distância.. P Será que apesar do sucesso fulminante dessa função de informação, sucesso tal que se pode dizer que a ciência inteira vem a ser infiltrada por ela ... Estamos no nível da informação molecular, do gene e dos enrolamentos de nucleoproteínas em torno das hastes de DNA, elas próprias enroladas uma em torno da outra, e tudo isso ligado por laços hormonais, são mensagens que são enviadas, registradas O que dizer disso, já que da mesma forma o sucesso dessa fórmula tem sua origem incontes­ tável numa linguística que não é somente imanente, mas perfeitamente formu­ lada? Em resumo, a noção que chega a se estender até os próprios fundamentos do pensamento científico, ao se articular como neguentrópica ... 18 Será que não existe aí algo que pode nos fazer levantar essa questão: se é bem de outro lugar o que com minha "linguisteria" eu recolho e, legitimamente, quando me sirvo da função do significante.19 O que é o significante? O significante, tal como o herdei de uma tradição linguística20 que, é importante notar, não é especificamente saussuriana,Z1 ela remonta a bem antes, não fui eu quem o descobriu,Z2 isso remonta aos estoicos, de onde ela se reflete em Santo Agostinho23 e deve ser estruturada em termos topológicos. E no que se refere à linguagem, o significante é, em primeiro lugar, ...

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A versão publicada (op. cit., p. 21) omite este parágrafo. (N.T.) Capaz de gerar ordem, organizadora. (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 22) introduz aqui uma separação: Parte 2. (N.T.) A tradução acima corresponde à Versão 1. A Versão 2 traz aqui: Le signifiant, teZ que je Z'hérite d'une tradition . . . ("O significante, tal como o herdo de uma tradição ... "). A versão publicada (op. cit., p. 22) traz aqui: Le signifiant - teZ que Ze promeuvent Zes rites d'une tradition ... ("O significante - tal como o promovem os ritos de uma tradição... "). (N.T.) SAUSSURE, F. Cours de Zinguistique généraZe. Paris: Grande Bibliotheque Payot, Éditions Payot & Rivages, 1995. Cf. Anexo 1 a esta Lição 3.

22 É manifestamente a Jakobson - presente nesse dia - que Lacan se refere, este último tendo várias vezes ironizado sobre o fato de Saussure não reconhecer essa dívida para com os estoi­ cos. Cf. VITARD, M. "Parler aux murs. Remarques sur la matérialité du signe" . In: L'unebevue. Paris: E.P. E.L., 1994. 23

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Cf., entre outros, o seminário Les écrits techniques de Freud, lição de 23.6.54, onde Lacan comenta com o R.P. Beirnaert "Disputatio de Zocutionis significatione", de Sto. Agostinho, que constitui a primeira parte do De magistro. (Cf. LACAN, J. Le séminaire, livre I, Les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1975, p. 273) .

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o que tem efeito de significado e é importante não elidir que entre os dois escre­ ve-se uma barra, há algo como uma barra a ser ultrapassada. É claro que essa maneira de topologizar o que é da linguagem é ilustrada, certamente, da forma mais admirável, pela fonologia, no sentido de que ela encarna, com o fonema, o que é do significante. Mas o significante não pode, de modo algum, limitar-se a esse suporte fonemático. O que é um significante? É preciso que eu me detenha, ao colocar a questão sob esta forma. 'Um', colocado antes do termo, é usado como artigo indeter­ minado, ou seja, ele já supõe que o significante possa ser coletivizado, que se possa fazer dele uma coleção, isto é, falar dele como de algo que se totaliza. Já que o linguista, ao que me parece, certamente teria dificuldade em explicar isso, porque ele não tem predicado para fundar essa coleção, para fundá-la com um "o", como Jakobson o assinalou especificamente ontem, não é a palavra (le mot) que pode fundar esse significante, a palavra (le mot) não tem outro ponto onde fazer coleção além do dicionário, onde pode ser classificada. Para lhes dar a perceber que o significante, nesse caso - como muito apropriadamente assi­ nalava Jakobson, com sua reflexão semântica - para lhes dar a perceber isso,Z4 não falarei da famosa frase que, contudo, é também unidade significante, e que eventualmente tentaremos coletar em suas representações típicas, como se faz eventualmente para uma mesma língua. Falarei antes do provérbio pelo qual eu não diria que um pequeno artigo de Paulhan, que recentemente veio parar em minhas mãos, não me tenha feito interessar vivamente. Ainda mais que Paulhan parece ter notado que essa espécie de diálogo tão ambíguo, que é o do estrangeiro com certa área de competência linguística, como se diz; ele perce­ beu, em outros termos, que com os malgaxes o provérbio tinha um peso que lhe pareceu desempenhar um papel inteiramente específico. 25 Que ele o tenha descoberto nessa ocasião não me impedirá de ir mais longe, e de fazer notar que, nas margens da função proverbial, há coisas, no limite, que vão mostrar 24 Nas Versões 1 e 2, esta frase parece incompleta, as frases intercaladas que se seguem não dando sequência a esse 'que', retomado depois por 'isso'. A versão publicada (op. cit., p. 22) remete o início da frase ao que vem antes: "Para lhes dar a perceber isso ... " (que "não é a pala­ vra (le mot) que pode fundar o significante") . (N.T.) 25 PAULHAN J., "L' expérience du proverbe" . In: Commerce. Paris: Revue littéraire, 1925. Nesse texto, Jean Paulhan, que viveu muitos anos em Madagascar, e desde o primeiro dia com uma família malgaxe, fala de suas experiências com a língua desse país, na qual os provérbios têm um uso muito frequente e particular. (N.T.) 73

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como essa significância é algo que se abre em leque,Z6 se vocês me permitem esse termo, do provérbio à locução. O que vou lhes pedir é que procurem no dicionário a expressão à tire-lari­ got.27 Façam isso e vocês me dirão o que pensam a respeito! E depois, na inter­ pretação, na construção, na fabulação chegam a inventar, só para esse fim, um senhor que se chamaria Larigot e que, de tanto lhe puxarem ( tirer) a perna, acabaram criando à tire-larigot. O que isso quer dizer, à tire-larigot? Há muitas outras locuções tão extravagantes quanto esta, que não querem dizer nada mais do que isso: a subversão do desejo, é esse o sentido de à tire-la­ rigot, através do quê? Do tonel furado, com o quê? Com a própria significância. A tire-larigot, uma caneca de significância. Então o que é essa significância? No nível em que estamos, é o que tem efeito de significado.28 Mas não nos esqueçamos de que, no início, se ficamos tão presos ao elemento significante, ao fonema, era para bem marcar que essa distância, que foi erroneamente qualificada de fundamento da arbitrariedade, é como se exprime Saussure, provavelmente a contragosto. Ele estava lidando - como costuma acontecer - com imbecis, ele pensava outra coisa, bem mais próximo do texto do Crátilo/9 quando vemos o que ele tem em suas gavetas, histórias de anagramas.30 O que passa por arbitrário é que os efeitos de significado são bem mais difíceis de avaliar, é verdade que eles parecem não ter nada a ver com o que os causa. Mas se eles não têm nada a ver com o que os causa, é porque se espera que o que os causa tenha certa relação com o Real. Eu quero dizer com o Real sério. O que se chama de Real sério, é preciso, é claro, certo esforço para abor2b 27

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Em francês: qui s'éventaille, neologismo criado por Lacan a partir de éventail = leque. (N.T.) A expressão à tire-larigot significa: em grande quantidade, enormemente, à beça. Tirer per­ tence, nesse caso, ao vocabulário báquico e significa: fazer sair um líquido de seu recipiente, no caso, o vinho da garrafa. Larigot é um refrão popular de canções que acompanham a bebida (séc. XV) e assim se associou ao verbo beber (séc. XVI), mas é também uma flauta. Cf. REY, A. e CHANTREAU, S. Dictionnaire des expressions et locutions. Paris: Le Robert, 1989. A Versão 1 traz "efeito de significar", com nota dizendo que aqui optaram por esta forma infi­ nitiva (signifier) que é homófona da forma participial (signifié). A Versão 2 e a versão publicada (op. cit., p. 23) trazem: "efeito de significado", que optamos por manter aqui. (N.T.) PLATON, Cratyle. Paris: Garnier-Flammarion, 1967, p. 391 . STAROBINSKI, J. Les mots sous les mots. Les anagrammes de Ferdinand de Saussure. Paris: Galli­ mard, 1971.

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dá-lo. Para perceber que o sério não pode ser senão o serial é preciso ter acom­ panhado um pouco meus seminários. Enquanto isso, o que se quer dizer é que os referentes, as coisas para que serve esse significado, ao abordá-las, pois bem, justamente, elas permanecem aproximativas, permanecem macroscópicas, por exemplo. No entanto, não é isso que é importante, não é que isso seja imaginário, porque afinal já seria muito suficiente se o significante permitisse apontar a imagem de que precisa­ mos para ser felizes. Só que não é esse o caso. É que, nessa abordagem, o signifi­ cado tem uma propriedade . . . salvo introdução do serial, e mesmo do sério, mas isso só se obtém após um tempo muito longo de extração da linguagem, desse algo que está preso nela e do qual, no ponto em que estou de minha exposição, não temos senão uma ideia longínqua, mesmo que seja a respeito desse 'um' indeterminado e desse ' o'31 que não sabemos como fazer funcionar, com relação ao significante, para que ele o coletivize. Na verdade, é preciso inverter: em lugar de 'um' significante que se interroga, interrogar o significante 'Um', mas ainda não chegamos a esse ponto. No nível da distinção significante-significado, que caracteriza o signifi­ cado, quanto ao que está ali, contudo, como terceiro indispensável, ou seja, o referente é propriamente que o significado não atinge o alvo, que o colimador não funciona. O cúmulo dos cúmulos é que chegamos mesmo assim a nos ser­ vir disso, passando por outros truques! Enquanto isso, para caracterizar a função do significante, para coletivizá-lo de um modo que lembre uma predicação, temos algo que é aquilo de onde eu parti hoje, já que Récanati, sempre a partir da lógica de Port-Royal, lhes falou dos adjetivos substantivados: da 'redondeza' que se extrai do 'redondo', e por que não da 'justiça' que vem do 'justo', da 'prudência', e de algumas outras formas substantivas. De todo modo é isso que vai nos permitir apresentar nossa tolice, para concluir que talvez ela não seja, como se acredita, uma categoria semântica, mas um modo de coletivizar o significante, por que não? Por que não? O significante é tolo! Parece-me que isso é de natureza a produzir um sorriso, um sorriso tolo, naturalmente! Mas um sorriso tolo, como se sabe - basta ir ver nas catedrais 31 A Versão

1 e a versão publicada (op. cit., p. 23) trazem aqui: leurre (engodo) em lugar de le (o), sendo que as duas formas têm pronúncias semelhantes, e se prestam a confusão. Esta última forma está na Versão 2 e como mais acima já havia a mesma discussão que se segue em torno de 'o significante' j 'um significante', optamos por ela. (N.T.) 75

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um sorriso tolo é um sorriso de anjo. É mesmo essa a justificação, como vocês sabem, a única justificação da advertência de PascaP2 É sua única justificação. Se o anjo tem um sorriso tão tolo é porque ele nada no significante supremo e ficar um pouco no seco lhe faria bem, talvez ele não sorrisse mais. Não é que eu não acredite em anjos, todos sabem disso, eu acredito neles "inextraivelmente" até mesmo "inexteilhardamente".33 Simplesmente, não creio, em compensação, que eles tragam a menor mensagem e é justamente aí, no nível do significante, que eles são verdadeiramente significantes. Então, trata-se de saber onde isso nos leva e de nos perguntar por que enfa­ tizamos tanto essa função do significante. Trata-se de fundamentá-la, porque de todo modo, é o fundamento do simbólico - nós o sustentamos - quaisquer que sejam suas dimensões, que só o discurso analítico nos permite evocar ... Eu poderia ter abordado as coisas de outro modo, poderia ter-lhes dito como fazem para me pedir uma análise, por exemplo. Eu não gostaria de tocar nesse frescor, alguns se reconheceriam e Deus sabe o que pensariam, o que ima­ ginariam sobre o que eu penso. Talvez acreditassem que eu os acho tolos, o que é realmente a última ideia que poderia me vir em tal caso, não se trata de modo algum da tolice deste ou daquele. A questão é que o discurso analítico introduz um adjetivo substantivado: a tolice, na medida em que ela é uma dimensão, em exercício, do significante.34 Aqui, é preciso olhar mais de perto. Pois, afinal, quando se 'substantiva', é por supor uma substância, e substâncias, Deus meu, hoje em dia, não as temos aos montes. Temos a substância pensante e a substância extensa. Conviria talvez interrogar, a partir daí, onde poderia situar-se a dimensão substancial que, justa­ mente, a qualquer distância que ela esteja de nós - e até agora só nos fazendo sinal 32

PASCAL, B. Pensées. VI, 358. ''L'homme n'est ni ange ni bête et le malheur veut que qui veut faire l'ange fait la bête" ("O homem não é nem anjo nem animal e, por infelicidade, quem quer se fazer de anjo se faz de animal"). Aqui, bête é usado como substantivo e quer dizer 'animal' (qualquer um exceto o homem) . Como adjetivo, como em geral é usado por Lacan, as tradu­ ções possíveis para bête são: 'tolo', 'bobo', ' idiota' etc.. Assim, o exemplo acima não ilustra bem o uso que Lacan faz habitualmente de bête, a não ser que o tomemos no sentido do adjetivo. Cf. Dicionário Le Nouveau Petit Robert. Versão eletrônica. (N.T.)

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Invenções de Lacan, que provocam risos na plateia (inextrayablement/inexteilhardement), apa­ rentemente, a partir de 'extrair' e de Teilhard de Chardin (1881-1955), pensador católico, jesu­ íta, filósofo e cientista. (N.T.)

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A versão publicada (ap. cit., p. 24) introduz aqui uma separação: Parte 3. (N.T.)

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- o que seria aquilo ao qual poderíamos então fixar essa substância em exercício, essa dimensão que se deveria escrever: dit-mension,35 pela qual a função da lin­ guagem é, de início, o que vela, antes de qualquer uso melhor e mais rigoroso? De início, a substância pensante, podemos dizer, afinal, que a modificamos sensivelmente. Desde aquele eu penso", que se supondo a si mesmo daí dedu­ zia a existência, tivemos de dar um passo, e esse passo é, muito propriamente, o do inconsciente. Se hoje estou trilhando o caminho do inconsciente estruturado como uma linguagem, pois bem, é preciso que se saiba que isso muda total­ mente a função do sujeito como existente. O sujeito não é aquele que pensa, o sujeito é propriamente aquele que nós exortamos . . . a quê? Não, como lhe dize­ mos, para cativá-lo, a dizer tudo . 36 Eu sei que é tarde e não quero cansar aquele de quem me considero, nesta ocasião, o hóspede, ou seja, Jakobson. Sei que não conseguirei hoje ultrapassar um certo campo. Contudo, se falo do pas tout}7o que atormenta muita gente, se o coloquei no primeiro plano para ser o enfoque de meu discurso deste ano, esta é a ocasião de aplicá-lo: não se pode dizer tudo, mas que se possam dizer tolices, tudo está aí. E com isso que vamos fazer a análise e que entramos no novo sujeito, que é o do inconsciente. É justamente na medida em que ele aceita não mais pensar, o fulano, que se saberá talvez um pouco mais sobre ele e que se poderá tirar algumas conse­ quências dos ditos - dos ditos, justamente, que não se podem desdizer - esta é a regra do jogo. Daí surge um dizer que nem sempre chega a poder ex-sistir" ao dito, por causa justamente do que vem ao dito como consequência. E aí está a prova na qual, na análise de qualquer um, por mais tolo que ele seja, um certo Real pode ser alcançado. 11

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Em "L' étourdit", op. cit., texto contemporâneo deste seminário, Lacan escreve dit-mension seis vezes e dit-mention (menção do dito) uma vez. Parece-nos impossível decidir. (N. da Versão 1) Em francês, as duas grafias têm a mesma sonoridade, mas em dit-mension prevalece a noção de "dimensão do dito" e em dit-mention fica mais clara a leitura: "menção do dito". Mais adiante, na lição 9 p. 6, Lacan falará explicitamente de "residência do dito", o que permite também a leitura: "mansão do dito", a partir do latim mansio, ou do inglês mansion, pois o francês não tem essa referência. (N.T.)

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versão publicada (op. cit., p. 25) acrescenta aqui: "mais à dire des bêtises, tout est là" ("mas a dizer tolices, tudo está aí"), frase que aparece no parágrafo seguinte, nas Versões 1 e 2, com alguma modificação. (N.T.)

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Pas tout pode-se traduzir 'não-tudo' ou 'não-todo'. (N.T.) 77

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Estatuto do dizer: é preciso que eu deixe tudo isso de lado, por hoje. Mas ainda assim, eu posso lhes dizer que este ano, o que vai ser mais desagradável é que, de todo modo, vai ser preciso submeter a essa prova certo número de dizeres da tradição filosófica. O que eu lamento muito é que Parmênides . . .38 eu falo de Parmênides, do que ainda temos de seus dizeres, enfim, do que a tradição filosófica extrai dali, de onde parte, por exemplo, meu mestre Kojeve, enfim, é a pura posição do ser!39 Felizmente, Parmênides escreveu, ele escreveu, na realidade, poemas. Confirma-se ali, justamente, aquilo em que, ao que me parece, o testemunho do linguista ganha vantagem, justamente por empregar esses aparelhos que se assemelham muito ao que vou poder apontar, bem no final, ou seja, a arti­ culação matemática: a alternância após a sucessão, o enquadramento após a alternância. Enfim, é exatamente porque ele era poeta que Parmênides diz, em suma, o que tem a nos dizer da maneira menos tola. Mas, de outro modo, que o ser seja e o não-ser não seja, não sei o que isso representa para vocês, mas eu acho isso tolo. Não pensem que me divirto ao dizê-lo, é cansativo porque de todo modo, este ano, nós precisaremos do ser, de algo que graças a Deus eu já lhes adiantei: o significante 'Um', para o qual já lhes abri caminho suficientemente, ao que me parece, no ano passado, ao dizer: Há Um (Y a d' l'Un).40 É daí que parte a seriedade, por mais tolo que isso tam­ bém pareça. De todo modo, teremos, portanto, de buscar algumas referências e buscá-las, no mínimo, na tradição filosófica. O que nos interessa é em que ponto estamos, e em que ponto estamos com a substância pensante e seu complemento, a famosa substância extensa, da qual não nos livramos assim tão facilmente, já que aí está o espaço moderno. Subs­ tância de puro espaço, como se diz, pode-se dizer isso como se diz puro espí­ rito, e não se pode dizer que isso seja promissor. Esse puro espaço baseia-se na noção de partes, com a condição de acrescen­ tar aí que todas são externas a todas: partes extra partes. É com isso que temos de lidar. Com isso, chegaram a se sair bem, ou seja, a extrair daí algumas pequenas coisas, mas foi preciso dar um grande passo. 38 PARMÉNIDE, Les Pré-Socratiques. Paris: Gallimard, La Pléiade, 1988, p. 231. 39 A versão publicada (op. cit., p . 25) suprimiu a frase precedente. A Versão 2 traz nesta frase a seguinte diferença: "meu amigo Kojeve". (N.T.) 4° Cf. sobre a tradução de "Y a d' l'Un", a nota 24 da lição 1 .

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Para situar meu significante, antes de deixá-los, eu lhes proponho que pesem o que se inscrevia, na última vez, no início de minha primeira frase, que comporta o " gozar de um corpo", de um corpo que, "o Outro, O simboliza",41 e comporta talvez algo de natureza a determinar uma outra forma de substância: a substância gozante. Não estará aí o que supõe propriamente e justamente, sob tudo o que aqui significa a experiencia psicanalítica, substância do corpo, com a condição de que ela se defina somente pelo que se goza? Somente propriedade do corpo, vivo, sem dúvida, mas não sabemos o que é estar vivo, senão apenas nisso, que um corpo, isso se goza. E mais ainda, caímos imediatamente nisso, que ele só se goza por 'corporizá-lo' de modo significante. Isso quer dizer algo bem diferente da pars extra partem da substância extensa, como salienta admiravelmente essa espécie de kantiano - devo dizer que isso é um assunto já antigo que está em alguma parte de meus Escritos, 42 que se lê mais ou menos bem - essa espécie de kantiano que era Sade, ou seja, que só se pode gozar de uma parte do corpo do outro, como ele o exprime muitíssimo bem, pela simples razão de que nunca se viu um corpo se enrolar completamente, totalmente em torno do corpo do outro até incluí-lo, fagocitá-lo. E por isso mesmo que estamos reduzidos simplesmente a um pequeno abraço,43 assim, a pegar um antebraço ou qualquer outra parte ... Ui! E gozar tem essa propriedade fundamental que é em suma o corpo de um que goza de uma parte do corpo do outro,44 mas essa parte também goza, o que agrada ao outro mais ou menos, mas é um fato que ele não pode ficar indife­ rente a isso. E acontece mesmo de produzir-se algo que ultrapassa o que acabo de descrever, marcado por toda a ambiguidade significante, ou seja, o gozar do corpo é um genitivo que, conforme vocês o façam objetivo ou subjetivo, 41

Cf. Lição 1, p. 15: "o gozo do Outro, do corpo do outro que O simboliza, não é o signo do amor" . (N.T.)

42

LACAN, J. "Kant avec Sade". In: Écrits. Paris: Seuil, Le champ Freudien, 1966, p. 765.

43

Em francês: étreinte, que pode ser traduzida por 'abraço', 'aperto', na falta de um termo mais preciso. De modo geral, é um eufemismo para indicar o ato sexual, alusão que não está evi­ dente no português 'abraço', como já foi mencionado na nota 8 da Lição 1, referente ao verbo correspondente: s'étreindre. (N.T.)

44

A versão publicada (op. cit., p. 26) e a Versão 2. trazem aqui e mais adiante, na mesma frase: Outro, com maiúscula. (N.T.) 79

Encare

tem essa nota sadiana, que mencionei rapidamente, ou, ao contrário, extática, "subjestiva",45 que diz que, em suma, é o outro46 que goza. Certamente só existe aí um nível bem localizado .. E o mais elementar no que se refere ao gozo, ao gozo no sentido em que mencionei, na última vez, que ele não é um signo do amor. É o que precisa ser sustentado, e é claro que isso nos leva daí, do nível do gozo fálico, ao que chamo propriamente de gozo do Outro, na medida em que aqui ele é apenas simbolizado e é ainda outra coisa, ou seja, esse 'não todo' que terei de articular.47 Mas, nesta única articulação, o que quer dizer, o que é o significante? O significante - e para encerrar com isso, pelos motivos que tenho - por hoje, eu direi que o significante se situa no nível da substância gozante como estando, bem diferentemente de tudo o que eu vou evocar, em ressonância com a física, e não por acaso com a física aristotélica . . . Com a física aristotélica que, só por poder ser solicitada, como vou fazê-lo, nos mostra a que ponto, justamente, ela era uma física ilusória. O significante é a causa do gozo. Sem o significante, como até mesmo abor­ dar essa parte do corpo? Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa material? Assim, por mais vago e confuso que isso seja, é uma parte que, do corpo, é significada nessa abordagem.48 E depois de ter tomado assim o que chamarei de causa material - isso será retomado, comentado, mais tarde - irei diretamente à causa final, final em todos os sentidos do termo, propriamente nisso, que ela é seu termo. O signifi­ cante é o que diz "alto!" ao gozo. Depois daqueles que se enlaçam, se vocês me permitirem, depois daqueles que estão lassos,49 o outro polo do significante, o ponto de parada está lá também, na origem, que pode ser o vocativo da ordem de comando. .

45

A versão publicada (op. cit., p. 2ó) traz aqui 'subjetiva' e a versão G.T. traz 'sugestiva'. O neologismo aqui mencionado "subjestiva", seria a junção dos dois. (N.T.)

46

A versão publicada (op. cit., p. 2ó) traz aqui: o Outro, com maiúscula. (N.T.)

47

A versão publicada (op. cit., p. 26) introduz aqui uma separação: Parte 4. (N.T.)

48

A versão publicada (op. cit., p. 27) traz a palavra apport (aporte) em lugar de abord (aborda­ gem). (N.T.)

49

Em francês: Apres ceux qui s'enlacent, si vaus me permettez, hélas! et apres ceux qui sont las, holà! As interjeições hélas (infelizmente) e holà (alto lá) acompanham a sonoridade da frase. A Ver­ são 2 traz uma modificação no final: qui sont là (que estão aqui), que tem a mesma pronúncia de qui sont las (que estão lassos, cansados). (N.T.)

80

Lição 3 - 19 de dezembro de 1972

E a eficiência, da qual Aristóteles nos faz a terceira forma da causa, nada mais é, afinal, do que esse projeto com que se limita o gozo. Todo tipo de coisas que aparecem, sem dúvida, no reino animal, nos fazem paródia desse caminho do gozo no ser falante. Justamente, é entre os animais que se desenha algo que participa muito mais da função da mensagem: a abelha transportando o pólen da flor macho à flor fêmea é algo que se assemelha muito mais ao que ocorre na comunicação. E o abraço,50 o abraço confuso de onde o gozo tira sua causa, sua causa última que é formal, será que não é muito mais algo da ordem da gramática que a comanda? Não é sem razão que Pierre bat Paul51 está no princípio dos pri­ meiros exemplos da gramática, nem que Pierre et Paule52 por que não dizê-lo assim? - dão o exemplo da conjunção. Com a diferença de que é preciso se perguntar, depois, quem apoia (épaule) o outro. Já brinquei muito com isso. Pode-se até dizer que o verbo se define a partir disso, por ser um significante não tão tolo (pas si bête), é preciso escrever isso numa só palavra: passibête, 'não­ tão-tolo' quanto os outros, sem dúvida, ele que faz a passagem de um sujeito, justamente, à sua própria divisão no gozo, e ele o é ainda menos pois se torna signo, quando essa divisão ele a determina em disjunção. Eu brinquei um dia acerca de um lapso literal, calam i, como é chamado . . . Eu fiz toda urna das minhas conferências,53 do ano passado, sobre o lapso ortográ­ fico que eu havia feito numa carta: Tu ne sauras jamais combien je t'ai aimé... diri­ gido a urna mulher e terminado em -mé em lugar de -mée.54 Disseram-me então que, tornado corno lapso, isso queria talvez dizer que eu era homossexual. Mas o que articulei, no ano passado, foi que quando se ama, não se trata de sexo. Ficarei por aqui hoje, se vocês quiserem. Aplausos. -

50

Em francês: étreinte, d. nota 43, acima. (N.T.)

51

"Pedro bate em Paulo", exemplo tirado de regras de gramática que usam a aliteração. (N.T.)

52

Pierre et Pau/e (Pedro e Paula) têm homofonia com épaule (apoia, ajuda), mas o jogo de palavras se perde na tradução. (N.T.)

53

LACAN, J.

54

A frase traduzida: "Nunca saberás o quanto te amei" não explica o lapso mencionado, decor­ rente da regra de concordância específica do francês, que exige o acréscimo da marca do femi­ nino (e) naquele particípio: aimée, se a frase for endereçada a uma mulher. (N.T.)

Seminário ... ou pire, lição de 9.2.1972, inédito.

81

Anexo I

-

Saussure1

Lição 3

19 de dezembro de 1972 Parte I: Princípios gerais2

O capítulo I dos Princípios gerais, que abrem a Parte I do livro de Saussure, intitula-se inicialmente "Natureza do signo linguístico" e depois " A língua como sistema de signos" . Saussure introduz dois termos novos, "significante" e " sig­ nificado" . São os "organizadores", os "discriminadores" da substância comu­ nicada e da substância comunicante. Isso quer dizer que a introdução dos dois termos é uma consequência do princípio da arbitrariedade do signo linguístico. O signo linguístico une um 'conceito' e uma 'imagem acústica', termos que Saussure substitui, respectivamente, por 'significado' e 'significante'. O 'signo' faz referência a uma entidade menor do que a frase, provavelmente o vocábulo. O elemento linguístico consiste em dois termos: de um lado, um objeto, fora do sujeito (desenho da árvore), do outro lado, o nome, o outro termo vocal ou mental (arbor). - Primeiro princípio: a arbitrariedade do signo O significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhuma ligação natural na realidade. O vínculo que une o sig­ nificante ao significado é radicalmente arbitrário. Esse primeiro princípio é um princípio semiologicamente geral, válido para qualquer espécie de signo. 3 - Segundo princípio: caráter linear do significante

1

SAUSSURE,F. Cours de linguistique générale. Paris: É ditions Payot & Rivages, 1995, p. 97-103 e 155-169.

2

Idem, p. 97.

3

Idem, p. 100. 83

Encare

O significante, de natureza auditiva, representa uma extensão. Essa exten­ são é mensurável numa só dimensão: é uma linha. Esses elementos se apresen­ tam um após o outro e formam uma cadeia. A possibilidade de recortar as palavras nas frases é uma consequência desse princípio. O segundo princípio só diz respeito ao significante e é, pois, específico dos signos com significante acústico, isto é, dos signos da linguagem verbal. Saussure fala de um princípio que rege a estrutura dos significantes: não há significante onde não houver significado. 4 Parte II: Linguística sincrônica5

O capítulo IV da Linguística sincrônica diz respeito ao Valor Linguístico. Os dois elementos que entram em jogo no funcionamento da língua são as ideias e os sons. Essa combinação produz uma forma, não uma substância. A lín­ gua é comparável a uma folha de papel: o pensamento é a frente e o som o verso, não se pode recortar a frente sem recortar ao mesmo tempo o verso. Na língua, não se poderia isolar nem o som do pensamento nem o pensamento do som. O pensamento é linguisticamente amorfo fora da língua. A arbitrariedade radical vem primeiro, a relatividade dos valores significantes e significados é sua consequência. Já que para Saussure um significante só pode ter um significado, as 'sig­ nificações' de uma palavra são coisa diferente de seu significado. As 'sílabas' são, para Saussure, uma realidade 'fonológica', e não de língua, mas de palavra (pm-ole) . A significação é o equivalente da fonação, isto é, ela é a realização do significado de um signo feita no nível da palavra (parole), da execução. Ele distingue entre a referência concreta, por meio de um signo, a um objeto particular e a maneira pela qual o signo propõe à nossa representação subjetiva esse objeto ou outros possíveis. A distinção entre referência concreta e modo de fazê-la é dada por Saussure com significação (ou sentido) e significado. Frege, antes dele, já o havia visto, pois ele distingue Bedeutung e Sinn, retomando os problemas já colocados por Bolzano.

4

Idem, p. 103. Idem, p. 155.

84

Lição 3

-

1 9 de dezembro de 1972 - Anexo I

Afirmando que uma palavra significa alguma coisa, limitando-se à asso­ ciação da imagem acústica com um conceito, não se exprime de modo algum o fato linguístico em sua essência e em sua amplitude. A língua não é somente o conjunto das características diferenciais das entidades, mas ela é o conjunto de tudo o que é arbitrário, portanto, não somente dos complexos diferenciais, mas também no nível das classes dos fonemas, das classes de variantes. Arbitrário e diferencial são duas qualidades correlativas. - Os signos da escrita são arbitrários (não há nenhuma relação entre a letra "t" e o som que ela designa. - O valor das letras é puramente negativo e diferencial (há diferentes maneiras de escrever o "t" ) . - O meio d e produção d o signo é totalmente indiferente, pois ele não inte­ ressa ao sistema (escrever a caneta ou a lápis, letras em branco, preto . . . sem importância) . Na língua só há diferenças sem termos positivos. Embora o significado e o significante, tomados isoladamente, sejam puramente diferenciais e negativos, sua combinação é um fato positivo. O signo é uma realidade positiva, o que quer dizer que o signo é uma "entidade concreta" . Dois signos comportando cada qual um significado e um significante não são diferentes, eles são somente distintos. Entre eles só há oposição. Os caracteres da unidade se confundem com a própria unidade. E a dife­ rença que faz a característica, como faz o valor e a unidade. O que distingue um signo é o que o constitui. A língua é uma forma e não uma substância. Concluindo :

A particularidade do signo saussuriano, com respeito ao significante, é que ele deixa de lado o campo da referência (a realidade referencial) . O que ele faz funcionar no nível do significante e do significado é a noção de pura diferença funcional, sem substância. A substância nunca está em questão, é uma relação de oposição entre os termos que constitui cada nível. Para Benveniste, relação de necessidade e de contingência entre significante e significado e relação arbi­ trária (cultural) entre o signo e a realidade.

85

Encare

No nível do significante e do significado, em lugar de falar de elementos, fala-se de cadeias. O que se articula em torno da questão da metáfora e da metonímia. Quando Saussure situa o objeto da linguística, a questão da realidade não está incluída: elemento bi-polar. Em Pierce, o referencial é integrado: elemento tri-dimensional. O sentido não é de uma substância, mas de um jogo de oposição. Em Saussure, há exclusão do campo da realidade. Ele enfatiza a noção de sistema. Para entender o funcionamento do sistema, ele volta ao problema da natureza do signo. Signo não é sinônimo de palavra (mot). A noção de cadeia falada passa antes da noção da frase. As línguas não são sistemas puros de signos arbitrários. - Caráter linear do signo e da mensagem: as unidades constitutivas das línguas naturais (orais, fônicas) se desemolam no tempo. - Caráter "discreto" das unidades por meio das quais é construída a men­ sagem. As unidades linguísticas são diferenciais, elas se opõem umas às outras sem gradação. Um fonema será /p/ ou /não p/ mas jamais + ou - p. Um signo linguístico (arbitrário, linear, diferencial) é um objeto que une indissoluvelmente um significante, isto é, uma produção fônica, e um signi­ ficado, isto é, sinônimo de conceito ou sinônimo de coisa. É uma concepção diádica do signo.

86

Anexo II: A lógica de Port-Roy al Lição 3

19 de dezembro de 1972

Das ideias das coisas e das ideias dos signos1

Quando se considera um objeto em si mesmo e em seu próprio ser, sem estender as considerações ao que ele possa representar, a ideia que se tem dele é uma ideia de coisa, como a ideia da terra, do sol; mas quando se olha certo objeto apenas como representando outro, a ideia que se tem dele é uma ideia de signo e esse primeiro objeto se chama 'signo'. É assim que são olhados, habi­ tualmente, os mapas e os quadros. Assim, o signo encerra duas ideias: uma, da coisa que representa, a outra, da coisa representada, e sua natureza consiste em excitar a segunda pela primeira. Podem-se fazer diversas divisões dos signos; mas nos contentaremos aqui com três, que têm maior utilidade. Primeiramente, há signos certos, que se chamam em grego ""CEXfl�pta, como a respiração o é, da vida dos animais; outros são apenas prováveis e são cha­ mados em grego de OilflEta, como a palidez não é senão um signo provável de gravidez nas mulheres. A maioria dos julgamentos temerários vem do fato de serem confundidas, essas duas espécies de signos, e de se atribuir um efeito a certa causa, embora ele possa também nascer de outras causas, e assim ser apenas um signo prová­ vel dessa causa. Em segundo lugar, há signos unidos às coisas, como a expressão do rosto, signo dos movimentos da alma, está unida aos movimentos que ela significa; os sintomas, signos das doenças, estão unidos a essas doenças; e para me servir de exemplos maiores, como a arca, signo da Igreja, estava unida a Noé e seus filhos, que eram a verdadeira Igreja daqueles tempos; da mesma forma, nossos templos materiais, signos dos fiéis, estão muitas vezes unidos aos fiéis; como 1

ARNAULD, A

e

NICOLE P. La Logique ou l'art de penser. Paris: Gallimard, 1992, cap . IV. p. 46. 87

Encare

a pomba, figura do Espírito Santo, estava unida ao Espírito-Santo e também como a água do batismo, figura da regeneração espiritual, está ligada a essa regeneração. Há também signos separados das coisas, como os sacrifícios da antiga lei, sig­ nos de Jesus Cristo imolado, que estavam separados daquilo que representavam. Essa divisão dos signos permite estabelecer estas máximas: 1 . Que não se pode nunca concluir precisamente, nem pela presença do signo na presença da coisa significada, já que há signos de coisas ausentes, nem pela presença do signo na ausência da coisa significada, já que há signos de coi­ sas presentes. É, pois, pela natureza particular do signo que se deve julgar. 2. Que, embora uma coisa num estado não possa ser signo dela mesma nesse mesmo estado, pois todo signo demanda uma distinção entre a coisa representante e aquela que é representada, no entanto é bem possível que uma coisa num certo estado se represente num outro estado, como é bem possível que um homem em seu quarto se represente pregando; e assim, apenas a distin­ ção de estado basta entre a coisa figurante e a coisa figurada, isto é, uma mesma coisa pode ser figurante, num certo estado, e, num outro, coisa figurada. 3. Que é bem possível que uma mesma coisa esconda e descubra outra coisa ao mesmo tempo, e assim, aqueles que disseram que "nada aparece pelo que o esconde", propuseram uma máxima muito pouco sólida; pois a mesma coisa podendo ser, ao mesmo tempo, coisa e signo, pode esconder como coisa o que ela descobre como signo. Assim, a cinza quente esconde o fogo como coisa e o descobre como signo. Assim, as formas tomadas de empréstimo pelos anjos os cobriam como coisa e os descobriam como signos. Assim, os símbolos eucarísti­ cos escondem o corpo de Jesus Cristo como coisa, e o descobrem como símbolo. 4. Podemos concluir que a natureza do signo consistindo em excitar, nos sentidos, pela ideia da coisa figurante, a da coisa figurada, enquanto esse efeito subsistir, ou seja, enquanto essa dupla ideia for excitada, o signo subsiste, mesmo que essa coisa fosse destruída em sua própria natureza. Assim, não importa que as cores do arco-íris - que Deus tomou como signo de que ele não destruiria mais o gênero humano por um dilúvio - sejam reais e verdadeiras, contanto que nossos sentidos tenham sempre a mesma impressão, e se sirvam dessa impressão para conceber a promessa de Deus. Não importa, da mesma forma, que o pão da eucaristia subsista em sua própria natureza, contanto que ele excite sempre em nossos sentidos a imagem

88

Lição 3 - 19 de dezembro de 1972 - Anexo II

de um pão que nos sirva para conceber de que modo o corpo de Jesus Cristo é o alimento de nossas almas, e como os fiéis estão unidos entre eles. A terceira divisão dos signos é que há os naturais, que não dependem da fantasia dos homens, como uma imagem que aparece num espelho é um signo natural daquele que ela representa, e há outros, que o são por instituição e esta­ belecimento, seja por terem alguma relação longínqua com a coisa figurada, seja por não terem relação nenhuma. Assim, as palavras são signos de institui­ ção dos pensamentos, e os caracteres, das palavras. Explicaremos, tratando das proposições, urna verdade importante sobre essas espécies de signos, que é que se pode a partir deles, em certas ocasiões, afirmar as coisas significadas.

89

Lição 4

9 de janeiro de 1973

Bem, vou desejar-lhes um feliz Ano Novo. Ainda não está bem no horário de começar, vou me dispensar de comentários a respeito desses votos que, afi­ nal, podem ser considerados banais. E depois vou entrar bem suavemente no que lhes reservei para hoje. . . cor­ rendo riscos, como vocês vão ver, ou talvez não ver, quem sabe? Em todo caso, a mim, antes de começar, isso parece perigoso. Para pôr um título, assim, o que vou lhes dizer vai estar centrado - já que em suma trata-se ainda de algo que é o discurso analítico - trata-se da maneira pela qual, nesse discurso, temos de situar a função do escrito. Evidentemente, existe aí uma história, ou seja, um dia eu escrevi na página de uma coletânea que publiquei - o que chamei de poubellication1 - não encontrei nada melhor para escrever na capa dessa coletânea do que a palavra Escritos.2 Esses Escritos, é bastante sabido que eles não se leem facilmente. Posso fazer-lhes então uma pequena confidência autobiográfica: é que ao escrever Escritos, era precisamente isso que eu pensava - isso vai talvez até esse ponto ­ que eles não eram para ser lidos. Em todo caso, isso é um bom começo.3 É claro que a letra se lê, e isso parece mesmo ser feito assim, no prolongamento da palavra, ela se lê e literalmente. Mas justamente, talvez não seja de modo algum a mesma coisa ler uma letra ou ler. Para introduzir isso de um modo que dê uma imagem, não quero par­ tir imediatamente do discurso analítico. É bem evidente, no entanto, que no discurso analítico só se trata disso, do que se lê, do que se lê para além do que vocês incitaram o sujeito a dizer, e que, como assinalei naquela passagem, na última vez, não é tanto a dizer tudo, mas a dizer não importa o quê. E levei a coisa mais longe - não hesitar, pois essa é a regra, em dizer o que introduzi este ano como tendo uma dimensão essencial ao discurso analítico - dizer tolices. 1 2

3

De poubelle (lixeira)

+

publication (publicação). (N.T.)

LACAN, J. Écrits. Paris: Éditions du Seuil, 1966. f LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. A versão publicada (op. cit., p. 29) introduz aqui uma separação: Parte 1. (N.T.) 91

Encare

Naturalmente, isso supõe que desenvolvamos essa dimensão, o que não pode ser feito sem dizê-lo. O que é a dimensão da tolice? A tolice tem pelo menos esta, que se pode proferir, é que a tolice não vai longe. No discurso, no discurso corrente, seu tempo é curto. Isso é algo, é claro, em que eu me apoio, se posso assim dizer, quando faço essa coisa que nunca faço sem tremer de medo, ou seja, voltar ao que proferi anteriormente. Isso sempre me dá muito medo, o medo, justamente, de ter dito tolices, isto é, algo que, diante do que proponho agora, eu pudesse considerar que não se sustenta mais. Graças a alguém que retomou esse seminário anunciado,4 o primeiro da École Normale, e que vai ser publicado em breve, eu pude ter - o que não me é sempre reservado, pois, como lhes disse, eu próprio evito esse risco - pude ter o sentimento que encontro, às vezes, ao comprovar que o que eu disse naquele ano, por exem­ plo, não era tão tolo, pelo menos não o era tanto, pois me permitiu afirmar outras coisas que, ao que me parece, pois estou tratando disso agora, se sustentam. De todo modo, esse 'se reler' representa uma dimensão que deve ser situ­ ada propriamente naquilo que, do ponto de vista do discurso analítico, é a fun­ ção do que se lê. O discurso analítico tem, com relação a isso, um privilégio, ele parece difícil. E foi daí que eu parti, no que marcou uma data importante: uDo que eu ensino'? como eu me exprimi, que talvez não queira dizer exatamente o que parecia enunciar, ou seja, acentuar o 'eu', isto é, o que eu possa proferir, mas talvez também acentuar o 'do', ou seja, de onde isso vem, um ensinamento do qual eu sou o efeito. Desde então, eu enfatizei o que fundei com uma articulação precisa, aquela justamente que se escreve no quadro com quatro letras, duas barras e alguns traços, exatamente cinco, que ligam cada uma dessas letras, uma dessas barras, já que há quatro, poderia haver seis, mas uma dessas barras falta.6 O que desse modo se escreve e que eu chamo de discurso analítico, partiu de um lembrete iniciat de um lembrete primeiro, ou seja, que o discurso analítico é esse modo de relação nova que se fundou somente pelo que funciona como palavra (parole) e isso em algo que se pode definir como um campo: uFunção e campo", eu escrevi, 4

5 6

92

LACAN, J. Le séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1973. "De ce que j'enseigne", conferência para o grupo L' Évolution psychiatrique, em 23.1.1962. No final desta frase há uma ambiguidade entre os traços e as barras, Lacan utilizando o termo barra para o que ele acabava de chamar de traço. Consideramos que as barras separam as letras assim:

Lição 4 - 9 de janeiro de 1973

justamente, "da palavra e da linguagem", e terminei: "em psicanálise". 7 O que era designarB o que faz a originalidade de certo discurso, que não é homogêneo a um certo número de outros discursos que exercem o ofício, e que só por esse fato vamos distinguir por serem discursos oficiais. Trata-se, até certo ponto, de discernir qual é o ofício do discurso analítico e de torná-lo, também ele, senão oficial, pelo menos oficiante. É nesse discurso, tal corno ele é, em sua função e em seu ofício, que se trata de circunscrever - é o caminho que torno hoje - o que pode esse discurso revelar da situação muito particular do escrito, quanto ao que se refere à linguagem. É uma questão que está muito na ordem do dia, se posso me exprimir assim. Contudo, não é a esse extremo de atualidade que eu queria chegar imediatamente. Quero precisar particularmente qual pode ser, se ela é específica, qual pode ser a função do escrito no discurso analítico. Todos sabem que para poder explicar as funções desse discurso, eu pro­ duzi, eu propus o uso de certo número de letras, muito precisamente, reescre­ vendo-as no quadro:9 o pequeno a, que eu chamo de objeto, mas que mesmo assim não passa de uma letra, o A, o A maiúsculo que eu faço funcionar no que, da proposição, tomou apenas fórmula escrita, e produção lógico-matemática, ou matemático -lógica, como vocês quiserem enunciá-la. Esse A maiúsculo, não fiz dele uma coisa qualquer, designo com ele o que de início é um lugar, um local. Eu disse o lugar do Outro (Autre), como tal, designado por uma letra. a

g

e que os traços as ligam assim:

3 --

s

1 x S,1

S,

no discurso do analista, que é tratado nessa passagem. O traço que falta, nos seis possíveis, é o do andar inferior, conforme o que Lacan enunciou anteriormente (Cf. entre outras, a lição de 11.3.1970, do Avesso da psicanálise). (N. Versão 1) A versão publicada (op. cít., p. 30) corrige essa confusão: " ... que se escreve no quadro com quatro letras, duas barras e cinco traços, que ligam cada uma dessas letras duas a duas. Um desses traços - já que há quatro letras deveria haver seis traços - falta" . (N.T.) 7

8

9

LACAN, J. "Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse". In: Écrits, op. cit., p. 237. (N.T.) Na Versão 1, encontramos 'designado' e na Versão 2 e versão publicada (op. cit., p. 30) encon­ tramos 'designar', palavras homófonas em francês (désigné/désigner). Consideramos o infini­ tivo mais adequado à sequência da frase. (N.T.) Lacan escreve, efetivamente, no quadro. 93

Encare

Como uma letra pode servir para designar um lugar? É claro que existe aí algo de abusivo. E quando vocês abrem, por exemplo, a primeira página do que foi enfim reunido sob a forma de uma edição definitiva, sob o título de A teoria dos con­ juntos e sob a direção de autores fictícios, que se dão o nome de Nicolas Bourbaki,10 o que vocês veem é a introdução de certo número de signos lógicos. Esses signos lógicos designam precisamente, em particular um deles, a função "lugar" como tal. Esse signo lógico é designado, escrito, por um pequeno quadrado: o . Portanto, propriamente falando, eu não fiz um uso estrito da letra quando disse que o lugar do Outro (Autre) era simbolizado pela letra A. Em compensa­ ção, eu o marquei, duplicando-o com esse S, que aqui quer dizer significante, significante do Outro (A), na medida em que ele é barrado: S (A) . Com isso, eu articulei no escrito, na letra, algo que acrescenta uma dimensão a esse lugar do A maiúsculo, e muito precisamente mostrando que, como lugar, ele não se sustenta, que há nesse lugar, nesse lugar designado como do Outro, uma falha, um buraco, um lugar de perda. E é precisamente a partir do que vem funcionar, no plano do objeto pequeno a, em relação a essa perda, que se propõe algo de inteiramente essencial à função da linguagem. Eu usei também esta letra , estou falando do que introduzi, que funciona como letra, e que introduz, como tal, uma dimensão nova. Eu a utilizei, distin­ guindo-a da função apenas significante que se promove na teoria analítica, até então, com o termo falo. Eu propus esse como constituindo algo de original, algo que especifico aqui, hoje, por ser precisado, em seu relevo, pelo próprio ' escrito. E uma letra cuja função se distingue das outras, é aliás por isso mesmo que essas três letras são diferentes. Elas não têm a mesma função, como vocês já puderam perceber, pelo que enunciei inicialmente com o S (A) e com o pequeno ' ' a. E uma função diferente e, no entanto, continua sendo uma letra. E muito precisamente por mostrar a relação do que essas letras introduzem na função do significante, que se trata hoje de discernir o que podemos adiantar daí, reto­ mando o fio do discurso analítico.n 10

11

Em 1935, sete matemáticos: Hemi Carton, Claude Chevalley, Jean Delsarte, Szolem Mandel­ brojt, René de PosseL André Weil e Jean Dieudonné fundavam o grupo Bourbaki, nome de um general de Bonaparte. (N. Versão 1). As Versões 1 e 2 trazem: "auteurs fictifs qui se dénomment du nom de Nicolas Bourbaki". Na verdade, os autores não são fictícios e sim o nome de autor que eles deram ao seu grupo. (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 31) introduz aqui uma separação: Parte 2. (N.T.)

94

Lição 4

-

9 de janeiro de 1973

Eu proponho o seguinte: que vocês considerem o escrito como não sendo de modo algum do mesmo registro, da mesma cepa12 - se me permitem esse tipo de expressão que pode ter sua utilidade - do que aquilo que chamamos de significante. O significante é uma dimensão que foi introduzida a partir da linguística, isto é, de algo que, no campo em que se produz a palavra, não é evidente. Um discurso a sustenta, que é o discurso científico. Uma certa ordem de dissocia­ ção, de divisão é introduzida pela linguística e, graças a isso, funda-se a distin­ ção do que parece, contudo, evidente: é que quando se fala, isso significa, isso comporta o significado. Mais ainda, até certo ponto, isso só se sustenta pela função de significação. Introduzir, distinguir a dimensão do significante é algo que só se torna relevante, precisamente, por estabelecer que o significante como tal, muito pre­ cisamente o que vocês ouvem, eu diria, no sentido literalmente auditivo do termo, no momento em que aqui onde estou e de onde estou eu lhes falo, é estabelecer muito precisamente isso, mas por um ato original, que o que vocês ouvem não tem, com o que isso significa, nenhuma relação. E um ato que não se institui senão por um discurso dito discurso científico. Isso não é evidente. E é tão pouco evidente que o que vocês veem sair de um diálogo que não vem de um mau autor, já que é o Crátilo, do assim chamado Platão, isso é tão pouco evidente que todo esse discurso é feito do esforço de fazer justamente com que essa relação - essa relação que faz com que o que se enuncia é feito para signifi­ car, e que isso deve bem ter alguma relação - todo esse diálogo é uma tentativa, que podemos dizer, de onde estamos, ser desesperada, de fazer com que esse significante por si mesmo seja preswnido querer dizer alguma coisa. Essa ten­ tativa desesperada é, aliás, marcada pelo fracasso, pois é de outro discurso, mas de wn discurso que comporta sua dimensão original, discurso científico, que se promove, que se produz - e de um modo, se posso assim dizer, cuja história não é preciso buscar - que se produz pela própria instauração desse discurso, que o significante só se caracteriza por não ter nenhuma relação.B

12

1

1

Em francês, du même tabac, literalmente: do mesmo tabaco', metáfora que significa do mesmo gênero, da mesma cepa'. Preferimos cepa', para manter uma metáfora possível em português. (N.T.) 1

13 A versão publicada (op. cit., p. 32) traz aqui um complemento: "com o significado". (N.T.) 95

Encare

Esses termos que usamos são sempre, eles próprios, escorregadios. Mesmo um linguista tão pertinente quanto pôde ser Ferdinand de Saussure fala de ' arbi­ trário'. Mas isso é deslizamento, deslizamento para um outro discurso, o dis­ curso do decreto, ou melhor dizendo discurso do mestre, para chamá-lo por seu nome. A arbitrariedade não é o que convém. Mas, por outro lado, devemos sem­ pre ter cuidado quando desenvolvemos um discurso, se quisermos permanecer em seu próprio campo, e não produzir eternamente esses efeitos de recaída, se posso dizer assim, num outro discurso. Devemos tentar dar a cada discurso sua consistência e para manter sua consistência, só sair dele de caso pensado. Dizer que o significante é arbitrário não tem o mesmo alcance que dizer simplesmente que o significante não tem relação com seu efeito de significado. É assim que, a cada instante, e mais do que nunca no caso em que se trata de afirmar, como função, o que é um discurso, devemos pelo menos a cada vez, a cada instante, notar em que ponto deslizamos para outra referência. A palavra referência, no caso, só podendo situar-se a partir do que constitui, como laço, o discurso como taL Não há nada a que o significante como tal se refira a não ser a um discurso, a um modo de funcionamento da linguagem, a uma utilização da linguagem como laço. E ainda é necessário precisar, nesse caso, o que quer dizer esse laço. O laço, é claro - não podemos deixar de passar a isso imediatamente é um laço entre aqueles que falam. E vocês podem logo ver onde vamos chegar, ou seja, aqueles que falam, é claro, não são qualquer ser, são seres que estamos habituados a qualificar de vivos. E talvez seja muito difícil excluir daqueles que falam essa dimensão da vida, a menos que não nos apercebamos logo, o que é palpável, que no campo dos que falam, é muito difícil fazer entrar a função da vida sem fazer entrar, ao mesmo tempo, a função da morte. E daí resulta justa­ mente uma ambiguidade significante, que é inteiramente radical, do que pode ser proposto como sendo função de vida ou então de morte. E perfeitamente claro que nada conduz de modo direto a isso, que esse algo de onde somente a vida pode se definir, a saber, a reprodução de um corpo, essa função de reprodução não pode se intitular, ela mesma, nem especialmente da vida, nem especialmente da morte, pois, como tal, na medida em que essa reprodução é sexuada, ela comporta as duas: vida e morte. Mas, só por termos avançado nesse algo que já está na linha, na corrente do discurso analítico, demos esse salto, deslizamos para o que se chama concepção do mundo, que, no entanto, deve ser considerada por nós como o que há de

96

Lição 4 - 9 de janeiro de 1 973

mais cômico. Ou seja, devemos sempre ter muito cuidado, porque esse termo 'concepção do mundo' supõe, por si mesmo, um discurso bem diferente, ele faz parte do discurso da filosofia. E afinal, nada é menos seguro, se sairmos do dis­ curso filosófico, do que a existência, corno tal, de um mundo. E, muitas vezes, só há motivo para sorrir, quando se fala, por exemplo, do discurso analítico corno comportando algo que seja da ordem de tal concepção. Eu irei até mais longe, até certo ponto, merece também que se sorria ver tal termo proposto para designar, por exemplo, digamos, o que se chama marxismo. O marxismo não me parece, e a qualquer exame que seja, mesmo o mais aproximativo, poder passar por urna concepção do mundo. Ao contrário, é muito marcante, por todos os tipos de coordenadas, que o enunciado do que diz Marx - o que não se confunde obrigatoriamente com a concepção do mundo marxista - é, propriamente falando, outra coisa que chamarei mais for­ malmente de um evangelho, ou seja, de um anúncio. Um anúncio de que algo que se chama história instaura outra dimensão do discurso, em outras palavras, a possibilidade de subverter completamente a função do discurso corno tal, quero dizer, propriamente falando, do discurso filosófico, na medida em que sobre ele repousa urna concepção do mundo. A linguagem revela-se, portanto, muito mais vasta, corno campo, muito mais rica de recursos, do que ser simplesmente aquele onde possa se inscrever um dis­ curso que é aquele que, ao longo do tempo, se instaurou pelo discurso filosófico. Não é porque nos seja difícil não levá-lo de todo em conta, na medida em que desse discurso, discurso filosófico, alguns pontos de referência são enunciados e são difíceis de eliminar completamente de todo o uso da linguagem. Não é por causa disso que devemos a todo custo prescindir dele, com a condição de perce­ ber que não há nada mais fácil do que cair de novo no que chamei ironicamente, até mesmo com urna nota cômica, de 'concepção do mundo', mas que tem um nome mais moderado, bem mais preciso, que se chama a 'ontologia'. A ontolo­ gia é especialmente aquilo que, por um determinado uso da linguagem, enfati­ zou, produziu, de um modo acentuado, produziu, na linguagem, o uso do verbo copulativo/4 de um modo tal que ele foi, em suma, isolado corno significante. 14

Em francês: copule, "verbo de ligação ou copulativo que serve para estabelecer a união entre duas palavras ou expressões de caráter nominal. Não traz propriamente ideia nova ao sujeito, funcionando apenas como elo entre este e o seu predicativo". E o caso dos verbos: ser, estar, permanecer, ficar, continuar, tomar-se, parecer. Cf. CUNHA, C. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (N.T.) 97

Encare Deter-se no verbo ser, verbo que, no campo completo da diversidade das línguas, não é nem mesmo de um uso que se possa qualificar de universal, produzi-lo como tal, é algo que comporta uma acentuação, uma acentuação que é cheia de riscos. Para detectá-la, se podemos dizer, e mesmo até certo ponto exorcizá-la, bastaria talvez afirmar que quando se diz, do que quer que seja: "isto é o que é", nada obriga, de modo algum, a isolar esse verbo 'ser', a acen­ tuá-lo. Pronuncia-se 'é o que é' e isso poderia bem ser escrito 'éu-quié' e, com esse uso do verbo copulativo, não se perceberia nada. Não se perceberia nada se um discurso, que é o discurso do mestre (maftre) que aqui também pode ser escrito m'être/5 não acentuasse o verbo ser (être). Isso é algo que o próprio Aris­ tóteles olha duas vezes antes de prosseguir, pois no que se refere ao ser, que ele opõe ao ro ri E(JTl, à quididade, ao que isso é, ele chega a empregar o TÓ Ti � v avm, ou seja, o que se teria produzido se tivesse vindo a ser, em resumo, o que era para ser. E parece que aí se conserva o pedículo que nos permite situar de onde se produz esse discurso do ser: ele é, simplesmente, o do ser dominado, do ser às ordens de alguém, o que ia ser, se você tivesse ouvido o que eu lhe ordeno. Toda dimensão do ser se produz por algo que está na linha, na corrente do discurso do mestre, daquele que, proferindo o significante, espera dele o que é um de seus efeitos de laço, que certamente não se deve negligenciar, que é feito disso, que o significante comanda, o significante é, de início, e por sua dimen­ são, imperativo. Como, como retornar, a não ser de um discurso especial, ao que eu pode­ ria propor de uma realidade pré-discursiva? Aí está, bem entendido, o que é o sonho, o sonho fundador de toda ideia de conhecimento, mas é também o que deve ser considerado como mítico. Não há nenhuma realidade pré-discursiva, cada realidade se funda e se define por um discurso. E é bem nisso que importa percebermos do que é feito o discurso analítico, e não ignorarmos o que, sem dúvida, só tem aí um espaço limitado, ou seja, Deus meu, que aí se fala daquilo que o verbo 'foder'16 enuncia perfeitamente, aí se fala de 'foder' - o verbo, em inglês to fuck e aí se diz que isso não vai bem. E uma parte importante do que se confia no discurso analítico e convém salientar, muito precisamente, que não é privilégio dele. -

15 16

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Homofonia, em francês, entre maítre (mestre) et m'être (me ser). (N.T.) Em francês: foutre. Como verbo, tem praticamente os mesmos sentidos na linguagem chula e trivial que o português 'foder'. (N.T.)

Lição 4 - 9 de janeiro de 1973 É claro que, no que eu chamei há pouco de discurso, escrevendo-o quase numa só palavra, o disco-ursocorrente, disco também fora de campo, fora do jogo de qualquer discurso, ou seja, apenas disco, no disco que é afinal o ângulo sob o qual podemos considerar todo um campo da linguagem, aquele que efetiva­ mente dá sua substância, seu estofo para ser considerado disco, ou seja, isso gira e gira muito exatamente para nada. Esse disco é exatamente o que se acha no campo de onde os discursos se especificam, campo onde tudo isso se afunda, onde qualquer um é capaz, tão capaz quanto outro, de enunciar, mas por um cuidado com o que chamaremos com justiça de ' decência', o faz, Deus meu, o menos possível. O que faz o fundo da vida, com efeito, é que tudo o que se refere às relações homens e mulheres, o que chamamos de coletividade, não vai bem. Não vai bem e todo mundo fala disso, e uma grande parte de nossa atividade se passa a dizê-lo. Apesar disso, não existe aí nada de sério, a não ser o que se ordena de outro modo como discurso, até e inclusive isso, que precisamente essa relação, essa relação sexual, na medida em que ela não vai bem, mesmo assim ela vai, graças a um determinado número de convenções, de interdições, de inibições, de todo tipo de coisas que são o efeito da linguagem, que só podem ser consideradas a partir desse estofo e desse registroP e que reduzem muito precisamente isso, que de repente nos faz voltar, nos faz voltar como convém ao campo do dis­ curso. Não existe a menor realidade pré-discursiva, pela boa razão de que o que

faz a coletividade e que ao evocá-la, há pouco, chamei de homens, mulheres e crianças, isso não quer dizer exatamente nada como realidade pré-discursiva: os homens, as mulheres e as crianças não passam de significantes. Um homem não é nada além de um significante. Uma mulher procura um homem a título de significante. Um homem procura uma mulher - isso vai lhes parecer curioso - a título do que só se situa a partir do discurso, pois se o que afirmo é ver­ dadeiro, ou seja, que a mulher é 'não toda', há sempre alguma coisa nela que escapa ao discurso.18 Trata-se então de saber, em tudo isso, o que num discurso se produz pelo efeito do escrito. Como talvez vocês saibam - vocês o sabem, em todo caso, se leram o que escrevo - o significante e o significado, não é somente que a linguís­ tica os tenha distinguido. A coisa lhes parece talvez evidente, mas justamente 17

A versão publicada

(op. cit., p. 34) põe aqui um ponto-final e suprime o restante da frase. (N.T.)

18 A versão publicada (op.

cit., p. 34) introduz aqui uma separação: Parte 3. (N.T.) 99

Encare é por considerar que as coisas são evidentes que não se vê nada do que se tem, contudo, diante dos olhos, e diante dos olhos justamente no que se refere ao escrito.19 Se há alguma coisa que pode nos introduzir à dimensão do escrito, como tal, é perceber que, não mais do que o significado, o significante também não tem a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, a saber: do que se ouve de significado.20 Mas o significado, justamente, não é o que se ouve, o que se ouve é o significante. O significado é o efeito do significante. Existe algo que não é senão o efeito do discurso, efeito do discurso enquanto tal, isto é, de alguma coisa que funciona já como laço. Pois bem, é esse algo que, no plano de um escrito, efeito de discurso científico, do S feito para conotar o lugar do significante e do s com o qual se conota, como lugar, o significado, essa função de lugar só é criada pelo próprio discurso: cada qual em seu lugar, isso só funciona no discurso. Pois bem, entre os dois, existe a barra: f. Não parece ser nada de mais, quando vocês escrevem uma barra para explicar. Essa palavra 'explicar' tem toda a importância porque não há meio de entender uma barra, mesmo quando ela é reservada para significar a nega­ ção. É muito difícil compreender o que quer dizer a negação. Se olharmos mais de perto, perceberemos, em particular, que há uma variedade muito grande de negações e que é inteiramente impossível reunir todas as negações sob o mesmo conceito. A negação da existência não é de modo algum a mesma coisa que a negação da totalidade, para limitar-me ao uso que pude fazer da negação. Mas há uma coisa, em todo caso, que é ainda mais certa, é que o fato de acres­ centar a barra à notação S e s, que já se distinguem suficientemente, poderia se sustentar por ela ser apenas marcada pela distância do escrito. Acrescentar aí a barra tem algo de supérfluo, ou mesmo de fútil, e em todo caso, como tudo o que é do escrito só se sustenta por isso: é que justamente o escrito não é para ser compreendido. É por isso mesmo que vocês não são obrigados a compreender os meus. Se vocês não os compreendem, é bom sinal, tanto melhor, isso lhes dará a oportunidade de explicá-los. Pois bem, a barra é a mesma coisa. A barra é precisamente o ponto em que, em todo uso da linguagem, haverá a oportunidade para que se produza o 19 A versão

publicada (op. cit., p. 34) introduz aqui a seguinte frase: "A linguística não distinguiu somente um do outro, o significado e o significante" . (N.T.)

20

A versão publicada (op.

1 00

cit., p. 34) traz aqui: " do que se ouve do significante" . (N.T.)

-

Lição 4 9 de janeiro de 1973

escrito. Se no próprio Saussure, S está sobre a barra, em cima de s/1 foi graças a isso que, na "Instância da letra", que faz parte dos meus Escritos,Z2 eu pude lhes demonstrar, de um modo que se escreve, nada mais, que nada se sustenta dos efeitos ditos do inconsciente senão graças a essa barra - se não houvesse essa barra, nada disso poderia ser explicado. Há incons. . . 23 há significante, eu repito, há significante que passa sob a barra. Se não houvesse a barra, vocês não poderiam ver que há significante que se injeta no significado. Graças ao escrito, manifesta-se isso, que não é senão efeito de discurso, pois se não houvesse discurso analítico, vocês continuariam a falar exata­ mente como papagaios/4 ou seja, continuariam a dizer o que eu qualifico de disquourcourant,25 isto é, continuando o disco, o disco continuando algo que é o ponto mais importante que somente o discurso analítico revela, ou seja, o que só pode se articular graças a toda a construção do discurso analítico: é que muito precisamente, não há (relação sexual), eu volto a dizer isso, pois afinal de contas, é a fórmula que eu lhes repito, mas por repeti-la ainda é preciso que eu a explique, porque ela só se sustenta pelo escrito, precisamente, e pelo escrito por isso: porque a relação sexual não pode se escrever. É o que isso quer dizer ou, mais exatamente, que tudo o que está escrito está condicionado de tal modo que parte do fato de que será para sempre impossí­ vel escrever como tal a relação sexual e que a escrita como tal é possível, ou seja, que há um certo efeito do discurso e que se chama a escrita.26 21

Lacan imputa a Saussure a escrita de �-. Contudo, em SAUSSURE, F. Cours de linguistique gené­ rale. Paris: Payot, 1992, p. 158, há o seguinte desenho:

22

LACAN, J. "L'instance de la lettre dans l'inconscient, ou la raison depuis Freud" . In: Écrits, op. cit., p. 493.

23

Lacan faz esse lapso ... "Há inconsc ... " e se corrige: "há significante".

24

Em francês: comme des étourneaux, pássaro encontrado na Europa, que se caracteriza por imitar o canto de outros pássaros e até mesmo ruídos vários, como campainhas, etc., o que corres­ ponde aproximadamente ao nosso "falar como papagaio". (N.T.)

25

Disquourcourant (disco I discurso I corrente) . (N.T.)

26

Houve certa controvérsia quanto à tradução aqui adotada de écriture por 'escrita' e não 'escri­ tura'. Na verdade os dois termos são possíveis, como o indicam os dicionários Aurélio e Hou­ aiss, mas, pelo menos no Brasil, 'escritura' é utilizada quase sempre no sentido de 'escritura 101

Encare

Como vocês veem, a rigor, pode-se escrever x R y e dizer que x é o homem, y é a mulher e R é a relação sexual, por que não? Só que, é o que eu lhes dizia há pouco, isso é uma tolice. E uma tolice porque o que se sustenta sob a função de significante, de homem e de mulher, são apenas significantes, são apenas significantes inteiramente ligados a esse uso courcourant da linguagem. E se há um discurso que lhes demonstra isso, é que a mulher nunca será tomada - é isso que o discurso analítico põe em jogo - a não ser quod matrem, o que quer dizer que a mulher não entrará em função na relação sexual, a não ser enquanto mãe. Estas são verdades maciças e que, quando observamos mais de perto, bem entendido, levaremos isso longe, mas graças a quê? Graças à escrita que, aliás, não fará objeção a essa primeira aproximação, pois justamente é por aí que ela mostrará que é uma suplência desse 'não toda', sobre o qual repousa o quê? O gozo da mulher. Isso quer dizer que esse gozo, em que ela é 'não toda', isto é, que em algum lugar a faz ausente dela mesma, ausente enquanto sujeito, ela encontrará aí a rolha desse pequeno a que será seu filho. Mas, por outro lado, do lado do x, ou seja, do que seria o homem se essa relação pudesse ser escrita de um modo sustentável, sustentável num dis­ curso, vocês verão que o homem não passa de um significante, porque ali onde ele entra em jogo como significante, ele só entra quoad castrationem, isto é, na medida em que ele tem uma relação, uma relação qualquer, com o gozo fálico. De modo que é a partir do momento em que, de algum lugar, de um discurso que aborda essa questão seriamente, do discurso analítico, a partir do momento em que o que é condição do escrito é que ele seja sustentado por um discurso, tudo vai desmoronar e a relação sexual, vocês não poderão nunca escrevê-la. Naturalmente, na medida em que se trate de um verdadeiro escrito, isto é, do escrito como aquilo que, da linguagem, é condicionado por um discurso.27 A letra, radicalmente, é efeito de discurso. O que há de bom, se vocês me permitem, o que há de bom no que eu digo, é que é sempre a mesma coisa. Isso não quer dizer, é claro, que eu me repita, não é essa a questão. É que o que eu disse anteriormente/8 a primeira vez que falei da letra, se bem me lembro, era assim... eu disse isso não sei mais quando, não quero procurar agora, eu já lhes notarial' e de 'Sagrada Escritura' e a simples consonância com o francês écriture não nos pare­ ceu critério adequado. (N.T.) 27 A versão publicada (op. cit., p. 36) introduz aqui uma separação: Parte 4. (N.T.) 2B A versão publicada (op. cit., p. 36) acrescenta aqui: "toma sentido depois". (N.T.) 1 02

Lição 4 - 9 de janeiro de 1973

disse que tenho horror de me reler, mas isso deve fazer bem uns quinze anos, em algum lugar, em Sainte Anne. 29 Tentei assinalar essa pequena coisa que qualquer um sabe, quando lê um pouco, o que não acontece com todo o mundo, que um certo Sir Flinders Petrie30 havia observado, por exemplo, que as letras do alfabeto fenício se encontravam, bem antes do tempo da Fenícia, em pequenas cerâmicas egípcias, onde elas serviam de marcas de fábrica.31 O que quer dizer simples­ mente isso: que o mercado, que é tipicamente um efeito de discurso, foi ali que apareceu, em primeiro lugar, a letra, antes que qualquer um tivesse sonhado em usar letras para fazer o quê? Alguma coisa que não tem nada a ver, que não tem nada a ver com a conotação do significante, mas que o elabora, que o aperfeiçoa. Seria preciso, evidentemente, considerar as coisas no plano da história de cada língua, porque é claro que a letra chinesa, que nos assusta tanto que a chamamos - sabe Deus por quê - com um nome diferente, caractere, a letra chinesa, é manifesto que ela saiu do discurso chinês muito antigo, de um modo muito diferente do modo pelo qual saíram nossas letras. Ou seja, em suma, as letras que eu apresento aqui têm um valor diferente, porque elas saem do discurso analítico, são diferentes, como letras, do que pode sair como letra, por exemplo, da teoria dos conjuntos. Ou seja, é diferente o uso que se faz delas e que, no entanto, aí está o interesse, não deixa de ter relação, uma certa relação de convergência, sobre a qual certamente terei a ocasião, no que se seguirá, de fazer alguns desenvolvimentos: a letra enquanto efeito ... Qualquer efeito de discurso tem isso de bom, que ele faz letra.32 Então, Deus meu, para terminar, para terminar hoje o que não passa de um começo, que terei a ocasião de desenvolver, o que retomarei a propósito, 29

LACAN, J. "La lettre volée". In: Le séminaire, livre II, Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1978, p. 225.

30

PETRIE, F., T11e formation of lhe alphabet. London: Mac Millan and co, 1912.

31

"E disso, temos provas históricas, pois alguém que se chama Sir Flinders Petrie mostrou que, bem antes do nascimento dos caracteres hieróglifos, nas cerâmicas que nos restam da indústria dita pré-dinástica, encontramos como marcas, nas cerâmicas, mais ou menos todas as formas que foram utilizadas posteriormente, isto é, após uma longa evolução histórica, no alfabeto grego, etrusco, latino, fenício, tudo o que nos interessa, no mais alto grau, como característica de escrita" . LACAN, J., Seminário A identificação, lição de 20 de dezembro de 1961, inédito (estabelecimento crítico por M. Roussan).

32

Em francês: qu 'ilfait de la lettre. A versão publicada (op. cit., p. 37) traz aqui: " ... qu'il estfait de la lettre" ("que ele é feito da letra"). (N.T.) 1 03

Encare

por exemplo, distinguindo, discernindo para vocês, a diferença que há entre o uso da letra na álgebra e o uso da letra na teoria dos conjuntos, porque isso nos interessa diretamente. Mas por enquanto, quero simplesmente assinalar que, de todo modo, algo se produz, que é correlativo da emergência no mundo, é o caso de dizer, no mundo em decomposição, graças a Deus, não é? . . . no mundo, que vemos não se sustentar mais, pois mesmo no discurso científico é claro que não há... não há o menor mundo, a partir do momento em que vocês podem acrescentar aos átomos uma coisa que se chama quark e ... que vocês acham, além disso, que aí está o verdadeiro fio do discurso científico. Mesmo assim, é preciso se dar conta de que se trata de outra coisa, que se trata de ver de onde se parte. Pois bem, refiram-se mesmo assim, porque é uma boa leitura - vocês devem começar a ler um pouco, enfim, alguns autores, eu não direi do seu tempo, é claro, não lhes direi que leiam Philippe Sollers, ele é ilegível, é claro, como eu, mas vocês podem ler Joyce, por exemplo. Então vocês verão como isso começou a se produzir. Vocês verão que a linguagem se aper­ feiçoa e sabe brincar, sabe brincar com a escrita. Joyce, eu admito que ele não seja legível. E certamente não é traduzível em chinês! Só que Joyce, o que é? É exatamente o que eu lhes disse há pouco: é o signi­ ficante que vem se infiltrar no significado. Joyce é um longo texto escrito - leiam Fínnegan's Wake - 33 cujo sentido é proveniente disso: pelo fato de que os signi­ ficantes se encaixam, se compõem, se vocês quiserem - para dar uma imagem àqueles que não têm nem mesmo ideia do que é isso - penetram uns nos outros, é com isso que se produz algo que, como significado pode parecer enigmático, mas é realmente o que há de mais próximo daquilo que nós analistas, graças ao discurso analítico, sabemos ler, é o que há de mais próximo do lapso. E é a título de lapso que isso significa alguma coisa, ou seja, que isso pode ser lido de uma infinidade de modos diferentes. Mas é justamente por isso que isso se lê mal, ou se lê ao contrário, ou não se lê. Mas essa dimensão do ' se ler', não será suficiente para mostrar que estamos no registro do discurso analítico? E que aquilo de que se trata, no discurso analítico, é que é sempre ao que se enuncia como signifi­ cante que vocês dão uma outra leitura, que não o que ele significa? Mas é aí que começa a questão. Porque, vejamos, para me fazer entender, vou tomar uma referência no que vocês leem no grande livro do mundo. Por exemplo, vocês veem, assim, o voo de uma abelha: ela voa, ela vai buscar o 33

JOYCE, J. Finnegan's Wake. Paris: Gallimard, 1982.

1 04

Lição 4 - 9 de janeiro de 1973

néctar de flor em flor. O que vocês aprendem é que ela vai transportar, em suas patas, o pólen de uma flor para o pistilo e, ao mesmo tempo, para os óvulos de uma outra flor - é o que vocês leem no voo de uma abelha. Ou qualquer outra coisa que vocês veem, que sei eu? algo que vocês chamam de voo de pássaros que voam baixo, por exemplo. Chamam isso de voo, na realidade é um grupo e, num certo nível, vocês leem ali que vai haver um temporal. Mas será que eles leem? Será que a abelha lê que ela serve para a reprodução das plantas fanero­ gâmicas? Será que um pássaro lê o augúrio da fortuna, como se dizia outrora, ou seja, da tempestade?34 Toda a questão está aí. Afinal de contas, não está excluído que a andorinha leia a tempestade, mas também não se tem certeza disso. O que há em seu discurso analítico é que o sujeito, o sujeito do incons­ ciente, vocês o supõem, vocês supõem que ele saiba ler. Não é nada além disso, sua história do inconsciente. E que não somente vocês supõem que ele saiba ler, mas supõem que ele possa aprender a ler. Só que o que vocês lhe ensinam a ler não tem então absolutamente nada a ver, em caso algum, com o que vocês possam escrever dele. É isso.

34

No século XIII, 'fortuna' (jortune) tinha o sentido de 'má sorte', desgraça, e era utilizada no sentido especial de 'tempestade'. 1 05

Lição 5 16 de janeiro de 1973

O que mais posso ter a lhes dizer, ainda (encare)? Já faz tempo que isso dura e que não tem todos os efeitos que eu gostaria. Pois bem, justamente por isso, o que tenho a dizer não faz falta. No entanto, como não se poderia dizer tudo, e com razão, estou reduzido a esse caminho estreito que faz com que, a cada instante, eu tenha de cuidar para não escorregar de novo para o que já está feito, do que foi dito. É por isso que, hoje, vou tentar, uma vez mais, manter esse difícil trilhamento, já que, devido a esse título, temos ao mesmo tempo um horizonte estranho, por estar qualificado por esse Encore.1 É preciso que eu dê hoje a indicação de um certo número de pontos que serão, este ano, nossos pontos de orientação. Há algo que foi formulado na última vez: a função do escrito. E um dos nossos pontos este ano, um de nossos pontos-polos.2 Gostaria de lembrar-lhes, contudo, que na primeira vez que lhes falei, se não me engano, enunciei que o gozo, o gozo do Outro, que eu disse ser simbolizado pelo corpo, não é um signo do amor. Naturalmente, isso passa. Isso passa porque se sente que é do mesmo nível do que constituiu o dizer precedente,3 que isso não se abala. No entanto, existem aí termos que merecem ser comentados. O gozo é exa­ tamente o que eu tento tornar presente por esse dizer mesmo. Esse Outro, ele está mais do que nunca em questão e deve ser de novo martelado, repetido, para que tome seu pleno sentido, sua ressonância completa. Lugar, por um lado, mas por outro lado proposto como o termo que se sustenta - já que sou eu quem falo, que só posso falar de onde estou - identificado ao que qualifiquei, na última vez, de puro significante. O homem, uma mulher, como eu disse, não

1

2 3

A versão publicada (op. cit., p. 39) introduz aqui uma separação: Parte 1. (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 39) suprime as três primeiras frases deste parágrafo. (N.T.) Supomos que o dizer precedente à formulação: "o gozo do Outro, do corpo do Outro que O simboliza não é o signo do amor" é que "não há relação sexual". 107

Encare

são nada mais do que significantes, e é daí que eles adquirem, como tais, quero dizer, enquanto encarnação distinta do sexo, que eles adquirem sua função.4 O Outro, em minha linguagem, só pode ser, portanto, o Outro sexo. O que dizer desse Outro? O que dizer de sua posição diante daquilo em torno5 de que se realiza a relação sexual, ou seja, um gozo que o discurso analítico precipitou como essa função do falo, cujo enigma, em suma, permanece intacto, pois ele só se articula aí por fatos de ausência. Será que isso quer dizer, contudo - como se acreditou poder traduzir apressadamente - que se trata aí do significante do que falta no significante? Aí está algo em torno do qual este ano se deverá pôr um 'ponto termo',6 ou seja, do falo, dizer qual é, no discurso analítico, a função. Não chegaremos aí diretamente. Mas com o único fim de abrir caminho, direi que o que eu trouxe na última vez com sendo, como acentuando a função da barra, não deixa de ter relação com o falo. Resta-nos a segunda parte da frase, ligada à primeira por um 'não é' - 'não é o signo do amor', e é também para isso que aponta nosso horizonte. Temos de articular, este ano, aquilo de que se trata e que está bem aí, como pivô de tudo o que se instituiu pela experiência analítica: o amor. O amor, há muito tempo que só se fala disso. Será preciso acentuar que ele está no centro, no cerne, muito precisamente do discurso filosófico, e que certamente está aí o que nos deve pôr de sobreaviso? Se o discurso filosófico foi entrevisto como o que ele é, essa variante do dis­ curso do mestre, se na última vez pude dizer que o amor, na medida em que o que ele visa é o ser, ou seja, aquilo que, na linguagem, mais se esquiva, e sobre isso eu insisti: como o que ia ser, ou o que justamente por ser, causou surpresa... Se pude acrescentar que esse ser (être), devemos nos perguntar se ele não está bem perto desse être do significante m'etre (m apóstrofe e acento grave)/ se ele 4

5 6

7

Esta última frase tem três variantes, sendo a traduzida acima a da Versão 2 (confirmada pela audição da gravação): "c'est de là qu'ils prennent comme tels, je veux dire, en tant qu'incarnation distincte du sexe, qu 'ils prennent leurfonction"; a da Versão 1 traz: 'le dire' ('o dizer'), em lugar de 'je veux dire'. E a versão publicada (op. cit., p. 39) traz a frase: "c'est de là, du dire en tant qu 'in­ carnation distincte du sexe, qu'ils prennent leur fonction" ("é daí, do dizer enquanto encarnação distinta do sexo, que eles adquirem sua função"). (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 40) traz aqui: retour (retorno) em lugar de autour (em torno). (N.T.) Propomos três opções: 1. não pôr um termo aí, não há termo= manter a grafia 'ponto termo'; 2. pôr um ponto-final= ponto termo; 3. pôr um termo nesse ponto. Com esta especificação Lacan sugere a grafia m' etre homófona de maftre (mestre) . (N.T.)

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Lição 5

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não é o ser no comando, se não há aí o mais estranho dos engodos? Não será também para, com a palavra signo, nos fazer interrogar em que o signo se dis­ tingue do significante? Aí estão, pois, alguns pontos: um é o gozo, o segundo é o Outro, o terceiro, o signo e o quarto, o amor. Quando lemos ou relemos o que foi enunciado num tempo em que o dis­ curso do amor revelava-se ser o do ser, quando abrimos o livro de Richard de Saint Victor8 sobre a Trindade divina, é do ser que partimos. Do ser, na medida em que ele é concebido - perdoem-me esse deslizamento de escrito - como o êtrenel,9 o eterno para os surdos. E que, do ser, após essa elaboração, essa trajetó­ ria, contudo tão temperada em Aristóteles, e sob a influência provavelmente da irrupção do 'Eu sou o que sou', que é o enunciado da verdade judaica, quando tudo isso vem culminar nessa ideia até então circunscrita, aflorada, abordada, aproximativa do ser . . . vem culminar nesse violento arrancar-se da função do tempo, pelo enunciado do eterno, disso resultam estranhas consequêndas. Ou seja, a enunciação de que há o ser que, eterno, o é por si mesmo; de que há o ser que, eterno, não o é por si mesmo; de que há o ser que, eterno... que, não eterno, não tem esse ser frágil, de certa forma precário, ou mesmo inexistente, não o tem por si mesmo. Mas que para, no que parece se impor pelo fato das definições lógicas, se todavia a negação bastasse nessa ordem, com uma função unívoca, para assegurar a existência, que para nisso: que o que não é eterno não poderia em caso algum... pois das quatro subdivisões que se produzem dessa alternância da afirmação e da negação do eterno e do 'por si mesmo' ... haverá, diz ele, um ser que, não eterno, possa ser por si mesmo? E, certamente, isso parece, ao Richard de Saint-Victor em questão, que deve ser descartado. Não parece, contudo, que aí há precisamente aquilo de que se trata com respeito ao significante? Ou seja, que o significante, que nenhum significante se coloca, se produz como tal, como eterno. Aí está, sem dúvida o que, em vez de qualificá-lo de arbitrário, Saussure poderia ter tentado formular. O significante, 8

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Richard de Saint Victor, monge originário da Escócia ou da Irlanda, viveu na primeira metade do século XII e chegou a ser prior da Abadia de Saint-Victor, em Paris. Sua obra De Trinitate está no tomo 196 da Patrologia latina de Migne, citado por: DUMEIGE, G. Richard de Saint Victor et l'idée chrétienne de l'amour. Paris: P. U.F., 1952. Cf. também: SAINT VICTOR, R. De Trinitate. Paris: Vrin, 1958. De: être (ser)

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éternel (eterno). (N.T.) 109

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digamos, teria sido melhor situá-lo, em todo caso, na categoria do contingente, daquilo que seguramente não é eterno, do que repudia a categoria do eterno e, no entanto, singularmente, é por si mesmo. E assim que ele se propõe a nós: esse significante, que é por si mesmo, tem efeitos.1 0 E, no entanto, se há algo que possa ser afirmado, a partir daí, é sua 'participação' - para empregar uma abordagem platônica - é sua participação nesse nada, de onde efetivamente é a própria emergência da ideia criacionista que vem nos dizer que algo de inteiramente original foi feito ex nihilo, ou seja, do nada. Parece, sim, não lhes parece? Não há algo que lhes pareça (apparaisse) - se é que a preguiça (la paresse) de vocês pode ser despertada por alguma aparição - que o Gênese não nos conta, com efeito, nada além da criação de nada, com efeito - de quê? - de nada além de significantes? Assim que essa criação surge, ela se articula pela nominação11 daquilo que é. Não estaria aí a criação em sua essência? Será que a criação não é nada além do fato do que estava ali - como Aristóteles certamente não pôde deixar de enunciar - ou seja, que se algum dia houve alguma coisa, foi porque desde sempre estava ali, não é? Na ideia cria­ cionista, essencialmente, a criação é criação a partir de nada, do significante, de que se trata fundamentalmente, de que se trata de um modo que funda. Não consiste exatamente nisso o que encontramos naquilo que, por se refletir numa concepção do mundo, foi enunciado como revolução copernicana? 12 Há muito tempo ponho em dúvida o que Freud pensou poder afirmar sobre isso. Do que lhe ensinou o discurso da histérica, ou seja, dessa outra substância que consiste inteiramente no fato de que há significante e que é do efeito desse significante que se trata, nesse discurso da histérica que, ao recolher, ele soube fazer girar esse quarto de volta, que fez dele o discurso analítico. A própria noção de quarto de volta evoca a revolução, mas certamente não no sentido de que revolução é subversão. Muito pelo contrário, o que gira - é isso que se chama revolução - destina-se, por seu próprio enunciado, a evocar o retorno. Com toda a certeza, nós não chegamos ao final desse retorno, pois já é de modo bem penoso que esse quarto de volta se cumpre.

10 A versão publicada (op. cit., p. 41) suprime esta frase. (N.T.) 11

12

Figura pela qual se dá nome a uma coisa que não o tem. Cf. Novo Dicionário Aurélio eletrônico. (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 41) introduz aqui uma separação: Parte 2. (N.T.)

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Mas nunca é demais evocar que, se houve em algum lugar revolução, não foi certamente no nível de Copérnico. É inútil evocar termos que são apenas de erudição histórica, ou seja, que há muito tempo tinha sido formulada a hipótese de que o sol era talvez o centro em torno do qual isso girava. Mas o que importa? O que importava a esses matemáticos era certamente o ponto de partida, par­ tida de quê? - do que gira. O que nós sabemos, é claro, é que esse passeio eterno das estrelas da última das esferas, aquela à qual Aristóteles supõe ainda uma outra, que seria a do imóvel, causa primeira do movimento das que giram, se as estrelas giram, é seguramente porque a terra gira em torno de si mesma. E já é maravilhoso que, desse passeio, dessa revolução, desse giro eterno da esfera estelar, tenha havido homens para forjar essas outras esferas, onde fazer girar, com esse movimento oscilatório que é o do sistema ptolomaico, as esferas dos planetas; daqueles que, girando em torno do sol, acham-se, em relação à terra, nessa posição ambígua de vai-e-vem, dando voltas. A partir daí, ter cogitado o movimento das esferas, não foi um esforço extraordinário, pelo qual, afinal de contas, Copérnico não fazia senão assinalar que talvez esse movimento das esferas intermediárias pudesse exprimir-se de outro modo? Que a terra esti­ vesse ou não no centro, certamente não era o que lhe importava mais.13 A revolução copernicana não é, de modo algum, revolução, a não ser em função disso, que o centro de uma esfera pode ser suposto - num discurso que não é senão um discurso analógico - constituir o ponto mestre. O fato de mudar esse ponto mestre, seja ele a terra, ou o sol, não tem nada em si que subverta o que o significante 'centro' conserva por si mesmo. Esse significante conserva todo o seu peso, e é bastante claro que o homem - o que se designa com esse termo, que é o quê? o que faz significado -14 o homem, longe de ter-se abalado no que quer que fosse pelo fato de a terra não estar no centro, ele a substituiu muito bem pelo sol. O importante é que haja um centro e já que agora é evidente, é claro, que o sol também não é um centro, que ele fica passeando através de um espaço, cujo estatuto fica cada vez mais precário estabelecer, e que o que permanece bem no centro é simplesmente essa boa rotina que faz com que o significado con­ serve, afinal de contas, sempre o mesmo sentido; e que esse sentido, ele é dado 13

Cf. o artigo "Gravitation" sobre as concepções de Aristóteles, Copérnico, Kepler e Galileu na Encyclopédie Universalis. Paris: 1990, tomo 10, p. 775.

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A versão publicada (op. cit., p. 42) traz aqui: signifier (significar) . (N.T.) 111

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pelo sentimento que cada um tem de fazer parte de seu mundo, pelo menos, isto é, de sua pequena família e de tudo o que gira em torno; e que cada um, cada um de vocês, eu falo mesmo para os esquerdistas, vocês estão aí - mais do que imaginam, e numa medida que deveriam avaliar - ligados a um certo número de preconceitos que lhes servem de base e que limitam o alcance de suas insurreições ao termo mais curto, àquele muito precisamente no qual isso não lhes cause nenhum incômodo e, nomeadamente, não numa concepção do mundo que, quanto a ela, permanece sempre perfeitamente esférica. O signifi­ cado encontra seu centro onde quer que vocês o coloquem. Não é, até segunda ordem, o discurso analítico, tão difícil de sustentar em seu descentramento, e que ainda tem de fazer sua entrada na consciência comum, que pode de alguma maneira subverter o que quer que seja. Contudo, se permitirem que eu me sirva, mesmo assim, dessa referência dita copernicana, acentuarei o que ela tem de efetivo: que não é de modo algum de uma mudança de centro que se trata. Que isso gire, continua a ter todo o seu valor, por mais motivado, reduzido que seja, afinal de contas, a esse ponto de partida, que a terra gira e, por esse fato, parece-nos que é a esfera celeste que gira. Ela con­ tinua realmente a girar e isso tem todo tipo de efeitos, o que faz, de todo modo, com que seja por anos que vocês contem sua idade. A subversão, se ela existiu em algum lugar e num dado momento, não consistiu de modo algum em ter mudado o ponto de virada do que gira, foi em ter substituído o 'isso gira' por 'isso cai'. O ponto forte, como alguns tiveram a ideia de perceber, não foi nem Copér­ nico, um pouco mais Kepler, pelo fato de que, para ele, isso não gira do mesmo modo, gira em elipse. E já é o mais enérgico corretivo para essa função de cen­ tro, é ela que está em questão. O ponto em direção ao qual 'isso cai' é um ponto da elipse que se chama o 'foco'. E, no ponto simétrico, não há nada. Isso, segu­ ramente, é um corretivo inteiramente essencial para essa imagem do centro. Mas o 'isso cai' só adquire seu peso, se posso me exprimir assim, seu peso de subversão - e justamente porque não é só por mudar de centro que isso faz revolução já que, ao conservar o centro, a revolução continua indefinidamente, e justamente para voltar sempre sobre si mesma - é que o 'isso cai' leva a quê? Exatamente a isso e a nada mais: F G fator de mm' sobre r2 ou d2: a distân­ cia que separa as duas massas expressas por m e m'15 e que o que se exprime =

1"

Lacan fez a prova de aproximação no enunciado dessa fórmula: na verdade ele falou de " r o u d", não distinguindo, nesse ponto, distância e quadrado d a distância. Ele omitiu o - na

1 12

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assim, ou seja, uma força, na medida em que tudo o que é massa é suscetível, em relação a essa força, de ganhar uma certa aceleração, e está inteiramente nesse escrito, que se resume nessas cinco letras escritas na palma da mão, com um algarismo a mais como potência, potência ao quadrado da distância e inver­ samente proporcional ao quadrado da distância. É nisso, nesse efeito de escrito que consiste o que se atribui, pois, indevida­ mente, a Copérnico, alguma coisa que justamente nos arranca da função como tal, função imaginária; função imaginária e, contudo, fundada no real da revo­ lução. Isso sendo enunciado - lembrete, sem dúvida, mas também prelúdio - o que importa é salientar que o que é produzido, como tal, na articulação desse novo discurso, que emerge como sendo o discurso do analista, o discurso da análise,l6 é isso: é que o fundamento, o ponto de partida está no efeito, como tal, do que é do significante. Bem longe de ser admitido, de certa forma, pelo que foi vivido, bem longe de ser admitido como vindo do próprio fato que o sig­ nificante traz consigo seus efeitos de significado, a partir dos quais se edificou essa estruturação sobre a qual lhes enunciei há pouco, como lembrete, o quanto pareceu natural, durante tempos, que um mundo se constituísse tendo como correlato esse algo além, que era o próprio ser, o ser tomado como eterno ... a teologia! E que esse mundo ficasse sendo, de todo modo, uma concepção - é esta a palavra certa - um ponto de vista, um olhar, uma tomada imaginária, um mundo concebido como sendo o todo, o todo com o que ele comporta, qualquer que seja a abertura que se lhe dê, de limitado ... E que disso resultasse esse algo que de todo modo permanece estranho, ou seja, que alguém, um 'um', uma parte desse mundo, seja suposto, de início, poder tomar conhecimento dele, se encontre aí nesse estado que se pode chamar de "ex-sistência", pois, de outro modo, como ele suportaria poder tomar conhecimento17 se, de um certo modo, ele não fosse "ex-sistente" ?18 Foi exatamente aí que, desde sempre, se marcou

fórmula canônica, que se escreve: F 16

17

= -

G �f"

O que seria esse "discurso do analista, discurso da análise", redundância ou distinção? A versão publicada (op. cit., p. 43) traz aqui: " car comment pourrait-il être support du 'prendre connaissance' s'il n 'était pas existant?" ("pois como poderia ele ser suporte do 'tomar conheci­ mento', se ele não fosse existente?"). (N.T.)

18 A Versão 2 e a versão publicada (op. cit., p. 43) escrevem aqui existencejexistant. Traduzimos, a partir da Versão 1: ex-sistencejex-sistant. (N.T.) 113

Encare

a oscilação, o impasse, a vacilação que resultava dessa cosmologia, desse algo que consiste na admissão de um mundo. Será que não há no discurso analítico, tal como ele se instaura, pelo quarto de volta de que falei há pouco, será que não há nele algo que, por si só, nos intro­ duza a isso: que qualquer manutenção, qualquer subsistência, qualquer persis­ tência do mundo como tal - é muito precisamente a isso que introduz esse dis­ curso - ela, essa subsistência, essa persistência deve, como tal, ser abandonada? A linguagem é tal - a língua forjada do discurso filosófico - a linguagem é tal que a todo instante, como vocês veem, no momento em que proponho qual­ quer coisa que possa, desse discurso analítico se estabelecer, vocês podem notar que a única coisa que posso fazer, a todo instante, é escorregar de novo, para onde? Para esse mundo, para esse suposto de uma substância que, no entanto, acha-se impregnada da função do ser.19 E que, seguir o fio do discurso analítico, não tende a nada menos do que a romper de novo, a virar, a marcar com uma encurvação própria, e com uma encurvação que não poderia mesmo ser mantida como sendo a de linhas de força, o que produz como tal a falha, a descontinui­ dade, a ruptura que nos sugere ver, na língua, o que afinal de contas a rompe. 20 Tanto que nada parece constituir melhor o que pode ser o horizonte do discurso analítico do que esse emprego que é feito pela matemática, esse emprego que é feito da letra/1 como sendo, singularmente, o que de um lado revela, no dis­ curso, o que não por acaso é chamado de gramática, e só se revela da linguagem, no escrito. Mas se não é por acaso, também não é sem necessidade: se a gramá­ tica é aquilo que, na linguagem, só se revela pelo escrito, é que para além da linguagem, esse efeito que se produz por ser sustentado somente pela escrita - que é seguramente o ideal da matemática - é em torno disso que aquilo de que se trata na linguagem se revela. Ou seja, recusar-se de algum modo a referência ao escrito é também proibir-se o que, de todos os efeitos da linguagem, pode chegar a se articular, e a se articular nesse algo que não podemos fazer com que, da linguagem, ele não resulte, ou seja, um suposto aquém e além. 19

A versão

publicada (op. cit., p. 44) introduz aqui uma separação: Parte 3. (N.T.)

20 A

versão publicada (op. cit., p. 44) traz aqui: "Notre recours est, dans lalangue, ce qui la brise" ("Nosso recurso é, em "alíngua", o que a quebra"). Não há diferença de pronúncia entre: la languejlalangue. (N.T.)

21

Convém notar aqui algo que se perde na tradução: Lacan joga o tempo todo com o equívoco que assinala a passagem de l'être a lettre (do ser à letra), evocando o escrito, como o que é feito de letras, que o discurso analítico toma como suporte de sua leitura. (N.T.)

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Já basta que essas referências espaciais sejam evocadas para que, de certa forma, elas se imponham. Ao supor um aquém, nós sentimos bem que só existe aí uma referência intuitiva. E, no entanto, sabemos bem que a linguagem se distingue por isso, que em seu efeito de significado, justamente ela nunca está senão deslocada do significante.22 E o que é preciso e a que devemos nos acos­ tumar é a substituir essa imposição, que é aquela que a linguagem provoca, imposição do ser, pela compreensão radical, pela admissão de início que, do ser, nós não temos nada, nunca. 23 Mas escrevendo isso de outro modo, o "pare-ser", não o parecer/4 como sempre foi dito, o fenômeno, para além do qual haveria esse algo de que Deus é númeno/5 isso nos levou, com efeito, a todas as opacificações denominadas, justamente, de obscurantismo. Pois é no próprio paradoxo de tudo o que chega a ser formulado como efeito de escrito da linguagem, é no próprio ponto em que esses paradoxos brotam que o ser se apresenta, e nunca se apresenta senão como "pare-ser" . Seria preciso aprender, afinal, a conjugar, a "conjulgar"26 isso como se deve: "eu pare-sou; tu pare-és; ele pare-é; nós pare-somos . . . " e assim por diante. Pois bem, tudo isso nos introduz a esse enunciado que, como vocês podem bem admitir - se vocês enfatizarem essa nova ortografia, com todas as suas consequências, todas as suas consequências morfológicas, que é preciso saber <1ssumir, nessa nova conjugação que eu lhes proponho - é bem a partir daí que é preciso tomar o que está em jogo, no que se encontra também numa relação de "pare-ser", de estar deslocado, de ser para-27 no que se refere a essa relação 22

A versão publicada (op. cit., p. 44) traz aqui: "à côté du référent" ("deslocada do referente"). (N.T.)

23

A versão publicada (op. cit., p. 44) traz aqui: " ...n 'est-il pas vrai que le langage naus impose l'être et naus oblige, comme tel, à admettre que, de l'être, naus n 'avons jamais rien?" ("não é verdade que a linguagem nos impõe o ser e nos obriga, como tal, a admitir que, do ser, nós nunca temos nada?"). (N.T.)

24 Neste caso, o jogo de palavras de Lacan é traduzível, pois os pares: "pare-ser" /parecer ("par­ être"j paraítre), são perfeitamente homófonos nas duas línguas. (N.T.) 25 É uma homofonia endiabrada que nós mesmos transcrevemos assim: Dieu c'est noumen. Pode-se também escrever: "Dieu sait naus mene.. " ("Deus sabe nos leva. . . ") Nos leva onde? 26 Apenas a Versão 1 traz esse jogo de palavras: conjuguer (conjugar)/" conjuger" (" conjulgar"). .

(N.T.) 27 Par(a)-: do grego para ('proximidade', 'ao lado de', etc.). Cf.: Novo Dicionário Aurélio eletrônico. (N.T.) 115

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sexual, da qual está claro que, em tudo o que se aproxima dela, a linguagem só se manifesta em sua insuficiência. E bem em relação a esse "pare-ser" que o que faz suplência a essa relação, enquanto inexistente, é bem nessa relação ao "pare-ser" que devemos articular o que aí faz suplência, ou seja, precisamente, o amor. É propriamente fabuloso que a função do Outro, do Outro como lugar da verdade e, para dizer tudo, do único lugar, embora irredutível, que possamos dar ao termo do ser divino, de Deus, para chamá-lo pelo nome, Deus (Dieu) seja propriamente o lugar onde se produz, se me permitirem esse termo, o dieu, o dieure, o dire. 28 Por um nada, o dizer vai dar Deus . . . Enquanto se disser alguma coisa, a hipótese de Deus estará presente. E é justamente por tentar dizer alguma coisa que se define este fato que, em suma, só podem ser ver­ dadeiramente ateus os teólogos, ou seja, aqueles que falam de Deus. Não há nenhum outro meio de sê-lo, a não ser escondendo a cabeça entre os braços, em nome de não sei que medo, como se algum dia esse Deus tivesse efetivamente manifestado uma presença qualquer. Em compensação, é impossível dizer o que quer que seja sem, imediatamente, fazê-lo subsistir, nem que seja sob essa forma do Outro, do Outro, também dito: a verdade.29 E algo que é perfeitamente evidente no menor percurso dessa coisa que eu detesto, e que detesto pelas melhores razões, isto é, a História. A História sendo feita muito precisamente para nos dar a ideia de que ela tem um sentido qualquer, quando a primeira coisa que temos a fazer é começar do que temos diante de nós: um dizer que é o dizer de um outro, que nos conta suas tolices, seus embaraços, seus impedimentos, suas perturbações e que é aí que se trata de ler. Trata-se de ler o quê? Nada menos que os efeitos desses dizeres. E esses efeitos, vemos bem como isso tudo agita, perturba, atormenta os seres falantes. E, é claro, para que isso leve a alguma coisa, é preciso que isso sirva. E que isso sirva, Deus meu, para que se arranjem, se acomodem, para que mesmo claudi­ cando um pouco, não é? eles cheguem mesmo assim a dar uma sombra de vida a esse sentimento dito do amor. E preciso, é realmente preciso que isso dure ainda (encare), ou seja, que por intermédio desse sentimento algo se produza e, afinal de contas, como bem viram algumas pessoas que tomaram algumas precauções em relação a tudo 28

Distorção que permite a passagem de Dieu (Deus) a dire (dizer). (N.T.)

29

Versão 1: aussi dit la vérité como foi traduzido acima. Versão 2: ou se dit la vérité ("onde se diz a verdade"). A versão publicada (op. cit., p. 45) suprime este final. (N.T.)

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isso, assim, sob a cobertura da Igreja, que isso leve à reprodução. À reprodução de quê? A reprodução dos corpos. Mas será que não seria possível, não se sentiria, não seria palpável que a linguagem tem outros efeitos, além de levar as pessoas, pelo cabresto, a se reproduzirem ainda (encare)? Em corpo a corpo e em corpos (en corps/encore) assim encarnados?30 De todo modo, há algo que é um outro efeito da lingua­ gem, e que é, justamente, o escrito. 31 Há algo de suas características, se ouso exprimir-me assim, e digno de ser ressaltado, é que do escrito, desde que a linguagem existe, nós vimos algumas mutações. O que se escreve não é fácil de dizer. O que se escreve é a letra, e a letra, Deus meu, nem sempre foi fabricada do mesmo modo. Então, em cima disso, se faz história, a história da escrita, e quebra-se a cabeça imaginando para que poderiam servir as pictografias maias ou astecas e depois, um pouco mais tarde, os seixos de Mas d'Azil,32 enfim, o que seriam esses estranhos dados, o que jogariam com isso? Tudo isso, como é de hábito a função da História, seria preciso dizer, sobre­ tudo: não toquem no H,33 inicial de História, seria uma boa maneira de trazer as pessoas de volta à primeira das letras, aquela à qual eu me limito, pois fico sempre na letra A. Aliás, é perfeitamente claro que a Bíblia só começa na letra B, ela me deixou a letra A, hein? para que eu me encarregasse dela! Há muito com que se instruir, não procurando os seixos de Mas d' Azil, nem mesmo fazendo o que eu fiz assim, para meu bom público, numa certa época, público de analistas, durante um bom tempo.34 Explicava-lhes o traço unário, o entalhe, isso estava ao alcance do entendimento deles. Mas seria melhor olhar mais de perto o que fazem os matemáticos com as letras e espe­ cificamente desde que, desprezando um certo número de coisas, e da maneira mais fundamentada, eles começaram a perceber, sob o nome de teoria dos con30 Na tradução, perde-se a homofonia obtida aqui por Lacan, com as palavras: " ... encare? En corps à corps et en corps, comme ça, incarnes." (N.T.) 31 A versão publicada (op. cit., p. 45) introduz aqui uma separação: Parte 4. (N.T.) 32 Gruta descoberta na região do Ariege, sudoeste da França, onde foram encontrados vestígios pré-históricos e, particularmente, estranhos seixos coloridos. (N.T.) 33 Jogo de palavras intraduzível, pela homofonia entre: hache (machado) e H, (nome da letra H). (N.T.) 34 No tempo do seminário sobre A identificação (inédito), lições de dezembro de 1960. 117

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juntos, que se podia abordar o 'um' de uma outra maneira que não fosse intui­ tiva, fusional, amorosa, enfim. "Nós somos apenas um." Todos sabem, é claro, que nunca aconteceu, entre dois, que eles formassem apenas um, não é? Mas enfim, "nós somos apenas um", é daí que vem essa ideia do amor, é realmente a maneira mais grosseira de dar a esse termo, a esse termo que se esquiva, mani­ festamente, da relação sexual, seu significado.35 O começo da sabedoria deveria ser começar a perceber que, de todo modo, foi por aí que o velho Freud abriu caminhos. É muito bonito e impressionante, foi daí que eu parti, porque a mim também isso tocou um pouco, aliás, poderia ter tocado qualquer um, não é? Perceber que o fundamento do amor, se isso tem relação com o Um, tem muito exatamente como resultado nunca fazer ninguém sair de si mesmo. Se fosse só isso ... Foi tudo isso e nada mais do que isso, o que ele disse, não é? A partir do momento em que ele reintroduziu a função do amor narcísico, todo o mundo pôde perceber que o problema estava em como podia haver um amor por um outro. E fica bem claro que esse Um, que enche a boca de todo o mundo é, de início e, essencialmente, da natureza dessa miragem do Um que se acredita ser. Mas enfim, de todo modo, isso não quer dizer que todo o horizonte seja esse. E preciso saber que há tantos Uns quantos se quei­ ram. Quando digo que há tantos Uns quantos se queiram, não quero dizer que haja tantos indivíduos quantos se queiram, porque isso não quer dizer nada, é apenas contagem. Há tantos Uns, como Um, os Uns da primeira hipótese do Parmênides,36 esses Uns se caracterizam todos por não se parecerem em nada. O que faz a irrupção, a intrusão da teoria dos conjuntos, é justamente por estabelecer isso: falemos do Um, pois se trata de coisas que não têm, entre elas, estritamente, nenhuma relação. Ou seja, podemos pôr aí o que chamamos de objetos de pensamento ou objetos do mundo, tudo isso conta, cada um, por um e se reunirmos essas coisas absolutamente heteróclitas, nos daremos o direito de designar essa coleção (assemblage)37 por uma letra. É assim que se exprime, 35 A versão publicada (op. cit., p. 46) traz aqui: " Cest vraiment la façon la plus grossiere de donner au rapport sexuel, à ce terme qui se dérobe manifestement, son signifié" ("É realmente a maneira mais grosseira de dar à relação sexual, a esse termo que se esquiva manifestamente, seu signifi­ cado"). (N.T.) 36

PLATON, Parménide. Paris: Garnier-Flammarion, 1967.

37 A palavra assemblage significa: junção, reunião, coleção, montagem, e também "sequência finita de símbolos utilizada no cálculo dos predicados" (Cf. Dictíonnaíre Nouveau Petit Robert, 1 18

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no seu início, a teoria dos conjuntos, por exemplo, aquela que da última vez mencionei, referindo-me a Nicolas Bourbaki.38 Vocês deixaram passar isso: é que eu disse, como aliás está escrito, como se imprime e foi impresso, na dita teoria dos conjuntos, que a letra designa uma coleção. Justamente, embora os autores - pois, como vocês sabem, eles são múltiplos -, que acabaram dando seu consentimento para a edição definitiva da referida teoria, tenham o cuidado de dizer que as letras designam coleções, é aí que está a timidez e, ao mesmo tempo, o erro deles: a letra é a única coisa que faz coleção. A letra, as letras ' são', e não 'designam', essas coleções. Enquanto letras, elas são tomadas funcionando 'como' essas próprias coleções. Vocês veem que conservando ainda esse 'como', eu me atenho à ordem do que afirmo, quando digo que "o inconsciente é estruturado como uma lingua­ gem" . Esse 'como' é pensado muito precisamente - volto sempre a isso, para não dizer que o inconsciente é estruturado 'por' uma linguagem. Ele é estrutu­ rado 'como'. As coleções de que se trata na teoria dos conjuntos são 'como' uma letra. E é disso que se trata quando avançamos na proferição matemática. Qual é o papel que ela desempenha? Que suporte podemos ter aí para ler? Para ler, na medida em que há letras, para não ler senão as letras, para ler aquilo de que se trata, quando tomamos a linguagem como sendo o que funciona para suprir a ausência do que, justamente, é a única parte do Real que não pode vir a se formar de letras,39 ou seja, a relação sexual. É no próprio jogo, no próprio jogo do escrito matemático que temos de encontrar, se posso dizer, a ponta de orientação a que temos de nos dirigir para dessa prática, desse novo laço social que emerge e singularmente se estende, e que se chama o discurso analítico, tirarmos o que se pode tirar dele, quanto à própria função dessa linguagem, na qual confiamos, em suma, para que esse discurso tenha efeitos, sem dúvida, médios, mas suficientemente sustentáveis, para que esse discurso possa sustentar e completar os outros discursos. Veremos, eventualmente, pois já faz algum tempo, é claro que o discurso universitário (universitaire) se escreve de outro modo, que ele deve ser uni vers versão eletrônica) . Encontramos em vários autores a palavra 'coleção' referida conjuntos: "um conjunto é uma coleção de objetos". (N.T.) 38

à

Teoria dos

Cf. Lição 4, nota 10.

39 A versão publicada (op. cit. p. 47) traz aqui: de l'être (do ser), que é perfeitamente homófono de: de lettres (de letras), como trazem as Versões 1 e 2. (N.T.) 119

Encare

Cythere,40 pois deve difundir a educação sexual, veremos como isso vai ser feito e a que isso vai levar, mas, sobretudo, a isso não se deve fazer obstáculo. A própria ideia de que, do ponto em que o saber se coloca41 - muito exa­ tamente na situação autoritária do semblanf42 - que desse ponto alguma coisa possa se difundir, que tenha corno efeito melhorar, se podemos dizer, as rela­ ções dos sexos, é algo que seguramente é feito para fazer sorrir um analista. Mas, afinal de contas, quem sabe? Nós já dissemos que o sorriso do anjo é o mais tolo dos sorrisos, portanto, não se deve nunca se gabar disso. Mas, certamente, é claro que essa própria ideia, a demonstração, se posso assim dizer, no quadro-negro, de algo que se relacione com a educação sexual, certamente não é feita, do ponto de vista do discurso do analista, para parecer cheia de promessas de bons encontros, ou de felicidade, corno se diz. De todo modo, há algo em meus Escritos que mostra, se posso assim dizer, que minha boa orientação, pois é dela que tento convencer vocês, não data de ontem. Foi logo depois de urna guerra, quando evidentemente nada parecia prometer um futuro sorridente, que escrevi algo que se chama "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada" ,43 onde se pode ler muitíssimo bem, se isso for escrito, pois não depende só de ter bom ouvido, que a função da pressa (hâte) é a função desse pequeno a, desse pequeno h(â)té.44 Quero dizer que aquilo de que se trata, que mereceria ser olhado mais de perto, não é simplesmente algo que já está muito bem articulado, ou seja, urna pequena adivinhação ligada ao fato de que há, para três pessoas, três discos 40

A homofonia, em francês, permite ler universitaire como uni-vers-Cythere, algo como: "unidos em direção a Cítera", ilha grega do mar Egeu onde se encontra célebre templo de Afrodite, o que faz dela, na linguagem poética, a pátria dos amores. (N.T.)

41

Esta é a redação proposta pela Versão 2: "L'idée même que, du point oii le savoir se pose... " A Versão 1 propõe: "L 'idée même du point de savoir se pose. . . (" A própria ideia do ponto do saber se coloca... "), que não parece adequada ao resto da frase. A versão publicada (op. cit., p. 47) apresenta, com pequenas modificações, a redação da Versão 2. (N.T.) "

42

Optamos por não traduzir semblant, que é um conceito lacaniano, por nos parecerem redu­ cionistas as tentativas de tradução por 'aparência' ou 'semblante', termos que se encontram, contudo, nos dicionários. (N.T.)

43

LACAN, J. Écrits, op. cit., p. 197.

44

O objeto pequeno a, posto em destaque na palavra hâté ( lê-se: " a-t'') que significa 'apressado'. (N.T.)

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Lição 5- 16 de janeiro de 1973

brancos e dois pretos, um a menos, que as coisas se decidem de fato. E que nessa extrapolação subjetiva, que faz com que, aparentemente, o instante de ver, o instante de ver dois brancos, aquele que não sabe o que ele é, e sabe que os dois outros, em todo caso, podem cada um se ver como são, isto é, brancos, e, ao mesmo tempo, se por acaso eles se pensassem como pretos e aquele que pensa, de início, o fosse ele mesmo, saberia muito bem, com isso, que ele é branco.45 Há aí alguma coisa que eu salientei, o fato de que algo como uma intersubjetividade pode levar a uma saída salutar, mas que mereceria certa­ mente ser olhado mais de perto, muito precisamente no nível do que cada um dos sujeitos sustenta, não o fato de ser um entre outros, mas de ser, em relação aos dois outros, aquele que está em jogo no pensamento deles, ou seja, muito precisamente, cada um só intervém, nesse trio, justamente enquanto esse objeto pequeno a que ele é, aos olhos dos outros. É o que provavelmente terei a ocasião de acentuar no que lhes direi mais tarde. Em outras palavras, eles são três, mas, na realidade, são dois mais a, e é bem aí que esse 'dois mais a , no ponto do a, se reduz, não aos dois outros, mas a um 'um' mais a. Vocês sabem que, sobre isso, eu já usei essas funções para ten­ tar representar para vocês a inadequação da relação do 'um' ao outro, o que eu já fiz, dando a esse pequeno a, como suporte, o número irracional que é o cha­ mado número de ouro. E na medida em que, do pequeno a, os dois outros são tomados como 'um' mais a que funciona o que pode levar a uma saída apres­ sada. Essa função de identificação, que se produz numa articulação ternária, é a que está fundamentada nisso, que em nenhum caso podem ser considerados como suporte dois, como tais. Entre dois, quaisquer que eles sejam, há sempre o 'um' e o outro, o 'um' e o pequeno a. E o outro não poderia, em nenhum caso, ser tomado por um 'um' .46 E muito precisamente pelo fato de que, no escrito, entra em jogo alguma coisa de brutal que toma por 'um' todos os uns que qui­ ser, que os impasses que se revelam são, por si mesmos, para nós, um acesso possível a esse ser, uma redução possível da função desse ser, no amor. 45 A versão publicada (op. cit., p. 47) suprime toda a frase acima. (N.T.) 46

Lacan se refere aqui a um esquema que constitui o ponto de articulação de todas as aulas do seminário sobre A lógica do fantasma (inédito), a partir de 15.2.1967. Encontraremos comentá­ rios sobre isso. In: PORGE, E. Se compter trais. Le temps logique de Lacan. Toulouse: Eres, 1989, p. 115; e In: PELISSIER, Y. "La mesure de 'a' dans le séminaire La logique du fantasme" . In: La Lettre mensuelle de l'E.C.F .. Paris: nº 70, juin 1988. 12 1

Encare

É com isso que quero terminar, com esse termo pelo qual se diferencia o signo do significante. O significante, como eu disse, caracteriza-se por repre­ sentar um sujeito para outro significante. De que se trata no signo? Desde sem­ pre a teoria cósmica do conhecimento, a concepção do mundo se prevalece do famoso exemplo da fumaça, que não existe sem o fogo. E por que eu não diria aqui o que me parece? E que a fumaça pode também ser o signo do fumante, e não apenas ser também o signo do fumante, mas ela o é sempre por essência: não há fumaça senão como signo do fumante. Todos sabem que, se vocês virem uma fumaça no momento em que abordarem uma ilha deserta, vocês pensarão imediatamente que há todas as chances de haver ali alguém que saiba fazer fogo e, até segunda ordem, será um outro homem. Esse signo, na medida em que o signo não é o signo de alguma coisa, mas é o signo de um efeito, que é o que se supõe, enquanto tat de um funcionamento do significante. E o que Freud nos ensina, e é o ponto de partida, como tat do discurso analítico.47 Ou seja, que o sujeito não é nada mais - quer ele tenha ou não consciência de qual significante ele é o efeito - não é nada mais do que o que desliza numa cadeia de significantes. Não é nada além desse efeito, que é o efeito intermediário, intermediário entre o que caracteriza um significante e um outro significante: é ser, cada um, Um; ser, cada um, um elemento. Nós não conhecemos nada, não conhecemos outro suporte, em suma, pelo qual seja introduzido no mundo o Um, a não ser o significante enquanto tal, e na medida em que aprendemos a separá-lo de seus efeitos de significado. Portanto, o que no amor é visado é o sujeito, o sujeito como tal, na medida em que ele é suposto, a uma frase articulado,48 a algo que se ordena, que pode ordenar-se por uma vida inteira, mas o que visamos no amor é um sujeito e nada mais. Um sujeito, como tat não tem grande coisa a fazer com o gozo, mas, em compensação, na medida em que seu signo é algo suscetível de provocar o desejo, aí está a mola do amor e vai por aí o caminho que tentaremos continuar nas próximas vezes, para lhes mostrar onde se reúnem o amor e o gozo sexual. 47 A versão

publicada (op. cit., p. 48) traz aqui: " Cet effet est ce que Freud naus apprend, et qui est le départ du discours analytique, à savoír le sujet'' ("Esse efeito é o que Feud nos ensina, e que é o ponto de partida do discurso analítico, ou seja, o sujeito"). (N T ) .

.

48 A versão publicada (op. cit., p. 48) traz aqui: "en tant qu 'il est supposé à une phrase articulée" ("na medida em que ele é suposto a uma frase articulada") . Não há diferença de pronúncia nas duas formas. (N.T.) 122

Lição 6 13 de fevereiro de 1973

Todas as necessidades, todas as necessidades do ser falante são contamina­ das pelo fato de estarem implicadas 'numa outra satisfação' - sublinhem estas três palavras - para a qual elas podem faltar - as ditas necessidades, bem entendido. Corno isso pode acontecer? Esta primeira frase que, Deus meu, ao acordar esta manhã eu pus no papel, assim, para que vocês a escrevessem, esta pri­ meira frase traz a oposição das necessidades .I Se é que esse termo, cujo recurso é comum, corno vocês sabem, pode ser entendido tão facilmente, pois afinal ele só se entende ao faltar para o que acabo de mencionar corno essa 'outra satisfação'. A outra satisfação, vocês devem, contudo, entender isso, é exatamente o que se satisfaz no nível do inconsciente, e na medida em que algo ali se diz e não se diz, se é bem verdade que ele é estruturado corno urna linguagem. Eu retorno aqui, isto é, de certa distância daquilo a que me refiro há algum tempo, ou seja, o gozo, do qual depende essa outra satisfação, aquela que é sustentada pela linguagem. 2 Se, por acaso, no intervalo, no intervalo dos tempos do que enuncio aqui, lhes acontecer - enfim, isso poderia lhes acontecer, poderia até mesmo lhes ser indicado por ecos que vocês teriam daquilo que, tratando há tempos, há muito tempo, em 58-59, em A ética da psicanálise, eu designei. . . enfim, aquilo sobre o qual eu insisti, partindo de nada menos do que da É tica a Nicômaco, de Aristó­ teles. Isso pode ser lido, só há urna dificuldade para um certo número de vocês aqui, é que não pode ser lido em francês. É manifestamente intraduzível. Aconteceu-me de me assegurar disso, eu não o suspeitava até agora, quando mandei buscar um exemplar, enquanto estava na montanha, mandei buscar um exemplar que conseguiram me enviar. Não sei o que acontece na edição, mas os editores me exasperam! Isso não é razão para que eu faça pro­ paganda deles, falando justamente de corno me exasperam. Nesse caso, não era isso que me exasperava, era simplesmente urna tradução que, é claro, me havia 1 2

A versão publicada (op. cit., p. 49) traz aqui um acréscimo: "a essa outra satisfação". (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 49) marca aqui uma separação: Parte 1. (N.T.) 1 23

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servido, a mim corno a outros, porque não se deve acreditar que eu leia assim tão facilmente o grego e então, a tradução estando na frente, ela dá um pequeno suporte, não é? E claro!3 Enfim, resumindo, havia outrora na editora Garnier algo que me fez acreditar que existia urna tradução de alguém chamado Voil­ lequin, ou Voilquin, não sei corno se pronuncia isso. É um universitário, evi­ dentemente, não é culpa dele! Não é culpa dele se o grego não é traduzível em francês! De todo modo, corno havia somente essa tradução, de uns tempos para cá as coisas se condensaram de tal forma que só lhe fornecem, na editora Gar­ nier - que além do mais se uniu à Flarnrnarion - só lhe fornecem, na Garnier, o texto em francês. Então quando você lê aquilo, você não consegue entender. É, propriamente falando, ininteligível! "Toda arte e toda pesquisa . . . " - eu não sei, estou começando, hem - " . . . da mesma forma que toda ação e toda deliberação refletida ... " - que relação pode haver entre essas quatro coisas? - " . . . tendem, ao que parece, para algum bem. Por isso tiveram por vezes perfeitamente razão em definir o bem: aquilo para o qual se tende em qualquer circunstância. Todavia. . . " - isso vem agora sem nenhum propósito, não se falou disso ainda - " . . . parece que há uma diferença entre os fins" .4 Desafio qualquer um a conseguir se virar com esse texto sem abundantes comentários, que não podem deixar de fazer referência e - eu lhes garanto, sempre muito penosamente - sempre ao texto grego, para esclarecer essa massa espessa da qual, contudo, é impossível pensar que é assim, simplesmente por­ que são notas mal tornadas. E claro, porque ... vêm assim, com o tempo, vêm algumas luzinhas à mente dos comentadores, vem à sua mente que se eles são forçados a ter tanto trabalho, talvez haja urna razão para isso, enfim! Não é forçoso, de modo algum, que Aristóteles seja impensável. Eu voltarei a falar sobre isso . . . Quanto a mim, o que eu havia escrito,5 sob a forma datilografada, o que se achava escrito do que eu havia dito da ética, pareceu mais do que utilizável às 3 4 5

A versão publicada (op. cit., p. 49) suprime a passagem acima desde "Aconteceu-me... " (N.T.) ARISTOTE, Éthique de Nicomaque. Paris: Garnier-Flammarion, 1965, p. 21. A versão publicada (op. cit., p. 50) traz aqui: "Pour moi, ce qui se trouvait écrit, dactylographié, à partir de la sténographie... " ("o que se achava escrito, datilografado, a partir da estenografia... ") . A s duas outras versões trazem no inicio d a frase: "Moi, ce que j'avais écrit", mas não s e trata de um escrito de Lacan... É difícil decidir de quem é o lapso. (N.T.)

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próprias pessoas que justamente, naquele momento, se ocupavam em me fazer... em me designar à atenção da Internacional de Psicanálise (I.P.A.), com o resul­ tado que se conhece. Mas, ao mesmo tempo, enfim, teria sido ótimo se, mesmo assim, de tudo isso tivessem vindo à tona aquelas tantas reflexões sobre o que a psicanálise comporta de ética, isso teria sido, de certa forma, muito proveitoso! Eu teria afundado, pluft!6 E depois, A ética da psicanálise teria sobrenadado. Aí está um exemplo - é preciso sempre olhar as coisas mais de perto - um exemplo de que o cálculo não basta, porque eu impedi que essa É tica da psica­ nálise fosse publicada. Eu recusei, simplesmente, a partir de ideia de que, Deus meu, as pessoas que não me aceitam, eu não procuro convencê-las. Não se deve convencer. O próprio da psicanálise é não vencer, con 7 ou não! Mesmo assim, era um seminário nada mau . . . Afinal de contas, a coisa já havia sido escrita e pelos cuidados de alguém8 que não participava de modo algum desse cálculo que mencionei há pouco, e que havia feito aquilo espontaneamente, de boa-fé, de todo coração, e fez daquilo um escrito, um escrito dele. Aliás, ele não pen­ sava de modo algum em me usurpar, é claro. Ele o teria produzido tal qual, se eu tivesse querido ... Então, eu não quis. Mas isso não impede que de todos os meus seminários esse seja, talvez, o único que eu reescreveria eu mesmo, do qual eu faria um escrito. E preciso que eu faça um, por que não escolher esse? Bom, vocês estão vendo que o que eu tento, o que é preciso fazer, mesmo assim . . . digamos, não há razão para não se pôr à prova de ver algo assim, por exemplo, Freud, estabelecendo certos termos, como ele pôde, pensando que estava descobrindo ... como esse terreno, outros já o viam antes dele. É isso que eu digo, uma prova a mais, outra maneira de pôr à prova aquilo de que se trata. E que esse terreno só é pensável graças aos instrumentos com que se opera, e que os únicos instrumentos através dos quais podíamos ver esse testemu­ nho se veicular eram os escritos. E perfeitamente claro, e tornou-se sensível por uma prova muito simples, que mesmo lendo-a na tradução francesa, a É tica a Nicômaco, vocês não entenderão nada, é claro, não mais do que aquilo que eu digo, portanto, isso basta, assim mesmo. Vocês verão que Aristóteles não é mais 6

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8

Onomatopeia (em francês: plouf!) que evoca o ruído de uma queda na água. Cf. Le Petit Robert. (N.T.) Con, expressão de gíria, em francês, correspondendo a 'imbecil', 'idiota', que se presentifica na escansão de con-vaincre (con-vencer), con -vaincu (con-vencido). (N.T.) Formulamos a hipótese de que se trataria de Moustapha Safouan. 125

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compreensível do que o que eu lhes digo, e o é até menos, porque ele aborda mais coisas, e coisas que estão mais longe de nós. Mas é claro que essa 'outra satisfação' de que eu falava há pouco, pois bem, é exatamente aquela, identifi­ cável por surgir de quê? ... Pois bem, meus bons amigos, é impossível escapar disso - se vocês me puserem lá, contra a parede - dos universais: do Bem, do Verdadeiro, do Belo. O fato de haver essas três significações, especificações dá um aspecto paté­ tico à abordagem que fazem alguns textos, aqueles que provêm de um pensa­ mento autorizado, digo "autorizado", entre aspas, com o sentido que dou a esse termo: 'legado com um nome de autor' . Há certos textos que nos chegam, assim, do que eu olho duas vezes antes de chamar de uma cultura muito antiga, pois está claro que não se trata de cultura. A cultura enquanto distinta da socie­ dade, isso não existe. A cultura é justamente aquilo de antigo/ que só leva­ mos nas costas como uma praga, porque não sabemos o que fazer, senão nos livrarmos dela, mas eu lhes aconselho que a conservem, porque ela faz cócegas, e isso desperta. Isso despertará seus sentimentos, que tendem mais a se tor­ narem um pouco entorpecidos, sob a influência das circunstâncias ambientes, isto é, daquilo que os outros, que virão depois, chamarão de sua cultura - a de vocês. A cultura que, para eles, se terá tornado cultura - porque vocês, há muito tempo, já estarão lá debaixo - é tudo o que vocês sustentam como laço social/0 pois afinal de contas só há isso, esse laço social que eu designo com o termo 'discurso' . Porque não há outro meio de designá-lo, desde que se perce­ beu que o laço social só se instaura por se ancorar de uma certa maneira, pela qual a linguagem se imprime, se situa, se situa nessa massa que pulula,11 isto é, no ser falante. 9

A versão publicada (ap. cit., p. 51) traz: "La culture c'est justement que ça naus tient" ("A cultura é justamente que isso nos segura"), ao invés de: "La culture c'est justement ça, d'ancien, que naus ", como foi traduzido acima. (N.T.) ..

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A versão publicada (op. cit., p. 51) traz aqui: "Ce sera devenu pour eux de la culture, parce que depuis langtemps vaus serez là-dessous, et avec vaus tout ce que vaus suppartez de lien social" ("Para eles se terá tornado cultura, porque há muito tempo vocês estarão lá debaixo, e com vocês tudo o que vocês sustentam como laço social"). (N.T.) As Versões 1 e 2 trazem: "sur cette grouille", expressão incomum que tem, aparentemente, o sentido traduzido acima. A versão publicada (op. cit., p. 51) traz a forma: "sur ce qui grouille" ("no que pulula") . (N.T.)

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Não é de admirar que discursos anteriores - e depois haverá outros - não sejam mais pensáveis para nós, ou muito dificilmente. Bem, quero dizer que, afinal de contas, do mesmo modo que o discurso que tento trazer à luz não é imediatamente acessível ao seu entendimento, de onde estamos também não é muito fácil entender o discurso de Aristóteles. Mas será isso uma razão para que ele não seja pensável? E perfeitamente claro que ele o é. É simplesmente quando imaginamos que Aristóteles quer dizer alguma coisa, enfim, que nos preocupamos com o que ele envolve. Porque, afinal, o que ele envolve, o que ele pega em sua rede, o que ele retira, o que ele maneja, com o que ele lida, com quem ele luta, o que é que ele sustenta, o que ele suporta, o que ele trabalha, o que persegue? Mas evidentemente, afinal de contas, o que eu lia para vocês agora há pouco, as quatro primeiras linhas, vocês ouvem bem as palavras, vocês supõem que isso queira dizer alguma coisa, assim, alguma coisa, naturalmente vocês não sabem o quê, mas: "Toda arte, toda pesquisa, toda ação ... " tudo isso, o que quer dizer cada uma dessas palavras? De todo modo, foi porque ele colocou muitas em seguida e então isso nos chega impresso, depois de ter sido copiado, assim, durante muito tempo, que supomos que haja alguma coisa que se sus­ tente no meio de tudo isso, e é exatamente a partir do momento em que nos fazemos a pergunta, a única: onde é que isso os satisfazia, coisas desse tipo? Pouco importa qual tenha sido então seu uso, sabe-se que isso se veiculava, que havia volumes de Aristóteles. Isso nos desconcerta, mesmo assim, e muito pre­ cisamente neste ponto: ' onde é que isso os satisfazia?'. Isso só é traduzível deste modo: onde é que teria havido falta para um certo gozo? Dito de outra forma, por que, num texto como este, por que ele se atormentava assim? Vocês ouviram bem, falta, falha, algo que não funciona, algo que derrapa naquilo que manifestamente é visado, e depois começa assim, imediatamente: no início, o Bem e a Felicidade (Bonheur) : D U BI, D U BIEN, D U BENÊ T!12 A realidade é abordada com os aparelhos do gozo. Aqui está mais uma fórmula que lhes proponho, se é que estávamos bem centrados nisso: aparelho, não há outro senão a linguagem. E assim que, no ser falante, o gozo é apa12

Tradução aproximada: "B, BEM, BOBO!", variação em cima do famoso anúncio publicitário de uma bebida (Dubonnet), visível antigamente nos subterrâneos do metrô de Paris: D UBO­ D UBON-D UBONNET. Na modificação feita por Lacan, benêt significa: bobo, tolo, ingênuo. Neste ponto, a versão publicada (op. cit., p. 52) introduz aqui uma separação: Parte 2. (N.T.) 127

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relhado, e é isso que diz Freud, é claro, se corrigirmos esse enunciado, que é aquele ao qual chegarei daqui a pouco para fisgá-lo, ou seja, o do princípio do prazer. O que isso quer dizer, por que ele o disse assim? Ele o disse assim por­ que havia outros que tinham falado antes dele e porque era a maneira que lhe parecia mais audível. É muito fácil perceber isso, afinal de contas, e essa conjun­ ção de Aristóteles com Freud ajuda nessa percepção. Se eu for mais longe, até o ponto em que agora isso é possível, se o inconsciente é mesmo o que eu digo, estruturado como uma linguagem, a partir daí essa linguagem se esclarece, sem dúvida, por se colocar como aparelho do gozo. Mas, inversamente, o gozo tam­ bém, talvez em si mesmo ele também mostre que está em falta, que para que seja assim é preciso que algo claudique do seu lado. O que eu lhes disse? A realidade é abordada com isso, com os aparelhos do gozo. Pois bem, isso não quer dizer que o gozo seja anterior à realidade, este é também um ponto em que Freud se prestou a um mal-entendido, em algum lugar. E vocês o encontrarão no que está classificado em francês nos Essais de psychanalyse,B digo isso para que vocês possam encontrar, porque se eu lhes der simplesmente a indicação bibliográfica, não saberão nem mesmo onde está. Nesses Essais de psychanalyse, há algo que se assemelha, ' se assemelha' à ideia de um desenvolvimento, não é? Há um Lust-Ich antes de um Real-Ich.14 É um deslizamento, é uma volta ao caminho já traçado, esse caminho que chamo de desenvolvimento e que não é senão uma hipótese da mestria. Presume-se que o bebê . . . - enfim, ele não tem nada a ver com o Real-Ich, o pobrezinho, incapaz de ter a menor ideia do que seja o Real - isso está reservado às pessoas que conhecemos, a esses adultos, dos quais está expressamente dito, aliás, que eles nunca podem chegar a despertar. Ou seja, quando acontece, em seu sonho, algo 13 FREUD, S. Essais de psychanalyse. Paris: Petite bibliotheque Payot, 1981. Este livro reúne quatro textos de fundamental importância na obra de Freud: "Considerações atuais sobre a guerra e sobre a morte" (1915), "Além do princípio de prazer" (1920), "Psicologia das massas e análise do eu" (1921) e "O eu e o isso" (1923). (N.T.) 14

Cf. LACAN, J. Le séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973, p. 174, onde Lacan fala de outra forma do Real-Ich, citando Freud: "Que haja obje­ tos desde o tempo mais precoce da fase neonatal, não há dúvida alguma. Auterotisch não pode absolutamente ter o sentido de desinteresse com relação a eles. Se vocês lerem Freud nesse texto ("Pulsões e seus destinos", 1915), verão que o segundo tempo, o tempo econômico con­ siste justamente nisso, que o segundo Ich o segundo de direito, o segundo no tempo lógico - é o Lust-Ich que ele diz purfiziert. Lust-Ich purificado, que se instaura no campo exterior à calota, onde eu designo o primeiro Real-Ich da explicação de Freud." (N.T.) -

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que ameace passar ao Real, isso os assusta tanto, que logo eles despertam, isto é, continuam a sonhar! Basta ler, basta estar um pouco com eles, basta vê-los viver, basta tê-los em análise - isso mesmo! - para perceber então o que isso quer dizer, o desenvolvimento. Sim... quando se diz primário e secundário, para os processos, talvez haja aí uma maneira de dizer que cause ilusão. Em todo caso, digamos que não é por­ que um processo é dito primário - afinal podemos chamá-los como quisermos - que ele aparece primeiro. Quanto a mim, eu nunca olhei um bebê sem. . . tendo o sentimento de que não havia para ele mundo exterior. É inteiramente mani­ festo que ele só olha aquilo e que aquilo o excita manifestamente, e isso, Deus meu, na proporção exata em que ele ainda não fala. A partir do momento em que ele fala, pois bem, a partir desse momento, muito exatamente, não antes, eu compreendo que haja recalcamento. O processo é talvez primário, o do Lust-Ich, e por que não? Ele é evidentemente primário, desde que começamos a pensar, mas certamente ele não é o primeiro. Essa ideia do desenvolvimento que se confunde com o quê? Com o desen­ volvimento da mestria, como eu disse há pouco, é aí que é preciso, de todo modo, ter um pouquinho, enfim, um pouco de ouvido, como para a música: eu sou m'être,l5 eu progrido na m'êtrise, o desenvolvimento é quando a gente se torna cada vez mais m'être, eu sou m'être de mim, como do universo. É bem disso que eu falava há pouco, com o con-vaincu.16 O universo, a partir de certas pequenas luzes que eu tentei um pouco lhes dar, o universo é uma flor de retórica. Então, isso poderia talvez ajudar a entender, com esse eco literário, que o eu (moi) talvez seja também... flor de retórica, sem dúvida, que brota no vaso do princípio do prazer, do que Freud chama de Lustprinzip, e que eu defino como o que se satis­ faz com o blá-blá-blá. Porque é isso que eu digo, quando digo que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. E preciso que eu ponha os pingos nos ii. O universo, talvez agora vocês possam se dar conta, por causa do modo pelo qual acentuei o uso de certas palavras, sua aplicação diferente nos dois sexos, ou seja, o que acentuei como o 'todo/tudo' e o 'não todojtudo'F o uni15

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Por homofonia com maítre (mestre), Lacan cria o neologismo m'être (literalmente: "me ser") incluindo o 'ser' no 'mestre' e, seguindo o mesmo modelo: m 'êtrise, outra forma de escrever maítrise (mestria). (N.T.) "Con-vencido" . Cf. nota 7 desta lição. (N.T.) Pas tout, cuja tradução pode variar, conforme o sentido: 'não tudo'/'não todo'. (N.T.) 129

Encare

verso é onde dizer tudo tem êxito.18 Será que eu vou agora começar a fazer como William James?19 Tem êxito em quê? A resposta, graças ao ponto em que, com o tempo, acabei fazendo vocês chegarem, onde eu espero ter acabado fazendo vocês chegarem, tem êxito em fazer malograr a relação sexual, do modo masculino. Normalmente eu deveria recolher aqui algumas risadas, infelizmente, nada disso! As risadas deveriam querer dizer: Ah! Você afinal foi pego! Há duas manei­ ras de fazer malograr essa história, a relação sexual. É assim que se modula a música do epitalâmio. O epitalâmio, o dueto, porque é preciso distinguir o dueto do diálogo, a alternância, a carta de amor, isso não é a relação sexual, eles giram em torno do fato de que não há relação sexual. Que haja, pois, a maneira mascu­ lina de girar em torno e depois a outra, que eu não designo de outro modo, por­ que é isso que estou elaborando este ano, ou seja, como, do modo feminino, isso se elabora pelo 'não todo'. Só que como até agora isso não foi muito explorado, o 'não todo', é isso, evidentemente, que me dá um pouco de trabalho. Sobre isso, vou lhes contar uma muito boa, para distraí-los um pouco. E que no meio de meus esportes de inverno, eu achei que devia, para cumprir minha palavra, ir até Milão. Eu estava a uma hora em linha reta de Milão e, pela estrada de ferro, levava um dia inteiro para chegar lá. Resumindo, estive em Milão e como eu não posso nunca deixar ... - porque eu sou assim, vocês entendem, eu disse que refaria a É tica da psicanálise, mas é porque eu a reex­ traio - não posso deixar de ficar no ponto em que cheguei, de modo que dei esse título absolutamente louco a uma conferência aos milaneses, que nunca tinham ouvido falar disso: "A psicanálise em sua referência à relação sexual." Pois bem, eles são muito inteligentes. Entenderam tão bem que logo, naquela mesma noite, no jornal, estava escrito: "Para o Dr. Lacan, as mulheres, le donne, não existem!" E verdade, o que vocês querem? Se a relação sexual não existe, pois bem, não há mulheres, hem? Havia uma pessoa furiosa, era uma senhora do M.L.F. de lá. 20 E foi preciso até mesmo que eu explicasse, e tive o cuidado de 18 A versão publicada (op. 19

20

.

.

cit., p. 53) traz uma vírgula depois de dizer: . de dire, tout réussit. (N.T.)

Doutor em medicina, professor de filosofia em Havard, onde funda o laboratório de psicologia experimental, William James é, com Peirce, um dos fundadores do pragmatismo. Sua fórmula é a seguinte: "Minha teoria sustenta que as mudanças corporais acompanham imediatamente a percepção do fato excitante, e que o sentimento que temos dessas mudanças, à medida que elas se produzem, 'é' a emoção." MLF: Mouvement de Libération des Femmes (Movimento de Libertação das Mulheres). (N.T.)

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explicar. Em todo caso, havia uma que estava realmente ... Ah! e eu lhe disse: "Volte amanhã de manhã e eu lhe explicarei do que se trata, pois é justamente sobre isso que vou falar." Tento elaborar o que se refere a esse assunto da relação sexual a partir disso: se há um ponto de onde isso poderia se esclarecer, pois justamente há algo ali que não se junta, é justamente do lado das mulheres, na medida em que se trata da elaboração do 'não todo', trata-se de abrir caminho, o que é meu verdadeiro tema deste ano, por detrás desse Encare, que é, bem... um dos sentidos que eu tento, ainda, e depois outros. Isso quer dizer que é, talvez, por uma outra via, que eu conseguirei produzir alguma coisa que não seja exatamente o que até agora foi produzido sobre a sexualidade feminina. Porque, de todo modo, é bem interes­ sante e é até mesmo impressionante que ... se há algo que desse 'não todo' dê um testemunho notável, com uma dessas nuanças, uma dessas oscilações de signifi­ cação que se produzem, porque a língua deve nos habituar a isso, vocês veem que isso muda de sentido, o 'não todo/não tudo' (pas tout), quando eu lhes digo: "Nos­ sas colegas analistas, sobre a sexualidade feminina, elas não nos dizem tudo!"21 E mesmo muito impressionante, porque não se pode dizer que elas tenham feito avançar um pouco a questão.22 Falo da sexualidade feminina. Elas não têm mais razão do que as outras de não saberem um pouco sobre isso, deve haver uma razão mais interna, ligada justamente a essa estrutura do aparelho do gozo.23 Bem, então, voltando ao que eu levantava, há pouco, como objeção, para mim mesmo, sozinho, ou seja, que havia uma maneira de malograr24 mascu­ lina e depois uma outra: eu falo de malograr a relação sexual, que é sua única forma de realização se, como eu afirmo, não há relação sexual. Então, quando eu digo que dizer tudo tem êxito, hem? Isso não impede de dizer: 'não tudo' também tem êxito, com a condição de que seja da mesma maneira, isto é, que isso malogre. Não se trata de analisar como isso tem êxito; trata-se de repetir 21

Em francês: ... elles ne naus disent pas tout. (N.T.)

22 A

versão publicada (op. cit., p. 54) traz aqui: "Elles n'ont pas fait avancer d'un bout la question de la sexualité féminine" ("Elas não fizeram avançar em nada a questão da sexualidade femi­ nina") . (N.T.)

23 A versão 24

publicada (op. cit., p. 54) insere aqui uma separação: Parte 3. (N.T.)

Rater, que significa: 'malograr', 'fracassar', 'não dar certo', 'não conseguir', 'falhar', 'perder (o trem, um filme ... )' etc. O verbo 'ratear', em português, que vem do francês rater, é usado mais pre­ cisamente para falha intermitente de motor ou mecanismo e não nos parece convir aqui. (N.T.) 131

Encare

até cansar por que isso malogra: por que isso malogra, isso é objetivo. Já insisti nisso. É mesmo tão evidente que é objetivo, que é nisso que é preciso centrar, no discurso analítico, no que se refere ao objeto. É o objeto. É inútil procurar, como eu já disse, há muito tempo, o bom e o mau objeto e em que eles diferem. O objeto não é nem bom... Há o bom e há o mau, ora veja! Justamente, hoje eu tento partir daí, do que tem a ver com o bom, o bem e do que Freud enuncia. Mas o objeto é um fracassado, é da essência do objeto o malogro. Vocês notarão que falei da essência, hem? Exatamente como Aristóteles. E daí? Isso quer dizer que essas velhas palavras são perfeitamente utilizáveis. Enfim, num tempo em que eu estava menos imobilizado do que hoje, foi a isso que passei logo após Aristóteles. E disse que se alguma coisa tivesse arejado um pouco a atmosfera depois de toda aquela imobilização grega em torno do eude­ monismo, que quer dizer a felicidade, simplesmente, isso se traduz: se alguma coisa os tivesse tirado de lá, seria a descoberta do utilitarismo. Sobre os ouvintes que eu tinha então, isso não teve nenhum efeito, porque do utilitarismo eles nunca tinham ouvido falar, de modo que não podiam come­ ter erro e não podiam acreditar que fosse o recurso ao utilitário. Eu lhes expli­ quei o que era o utilitarismo no entender de Bentham, ou seja, bem diferente do que se acredita e que, para isso, era preciso ler a teoria: Theory offictions. 25 E que o utilitarismo não quer dizer nada, além disso: as velhas palavras - é disso que se trata - aquelas que já nos servem, pois bem, para que elas servem, é nisso que se deve pensar. Nada mais. E não se espantar com o resultado, quando se servir delas. Sabemos para que elas servem: para que haja o gozo necessário, se vocês me acompanham até agora, só que graças a algo que ... eu não posso estar sempre reevocando tudo ... eu enfatizei o equívoco entre faillir (faltar) e falloir (ser preciso),26 isso nos leva a que haja o gozo que é preciso (que falta), a ser traduzido: o gozo que não é preciso (que não falta). Sim, eu ensino aí algo de positivo, como se diz, com a ressalva de que isso se exprime por uma negação. E por que isso não seria tão positivo quanto outra 25

26

BENTHAM, J. De l'ontologie et autres textes sur les fictions, op. cit., lição de 21/11/ 72, p. 4 , e BENTHAM, J. The theory offictions. New York: C.K. Ogden, AmS Edition, 1978, reimpressão da edição de 1932. Ver Anexo 1 da Lição 1. Os dois verbos faillir (faltar) e falloir (ser preciso, ser necessário) se conjugam da mesma forma na terceira pessoa do presente: il faut falta/ é preciso, é necessário. No caso do verbo faillir, il faut é uma forma arcaica, raramente usada pelos autores, que preferem il faillit, mas é o que permite a Lacan jogar com esse equívoco. (N.T.) =

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coisa? O necessário, o que lhes proponho acentuar desse modo, o que "não cessa" de quê? Pois bem, justamente " de se escrever" . Essa é uma maneira muito boa de repartir pelo menos quatro categorias modais. Eu lhes explicarei isso em outra ocasião, mas já lhes dou um pouquinho mais desta vez. O que "não cessa de não se escrever" é uma categoria modal que não é justamente aquela que vocês teriam esperado para se opor ao necessário, que seria antes o contingente. Mas imaginem que o necessário está conjugado ao impossível, e esse "não cessa de não se escrever" é sua articulação. Mas deixemos isso . . . O necessário, na medida em que ele "não cessa de se escrever", é que, o que se produz é o gozo que não seria preciso/não faltaria.27 É esse o correlato de que não há relação sexual. E é o substancial da função fálica. Então agora eu retomo, no nível do texto. É o gozo que não seria precisof não faltaria que eu penso ter dito - condicional. O que nos sugere, por seu emprego, a prótase, a apódose.28 E o seguinte: se não houvesse isso, tudo estaria melhor - condicional na segunda parte. A implicação material é o que os estoi­ cos perceberam que era talvez o que havia de mais sólido na lógica. O gozo, portanto. Como vamos exprimir o que não seria preciso a esse respeito, senão assim: se houvesse outro, que não o gozo fálico - para que vocês não percam o fio, é horrível, mas se eu lhes falar assim, como tomei minhas notas esta manhã, vocês vão perder o fio - se houvesse outro, não seria preciso que fosse aquele. E muito bonito. E preciso usar, hem? E preciso usar, mas usar realmente, gastar até o fim coisas simples assim, velhas palavras. É isso o utilitarismo. E isso permitiu um grande passo para descolar das velhas histórias de universais, onde estávamos engajados desde Platão e Aristóteles, o que se arrastou durante toda a Idade Média, e ainda asfixiou Leibniz, a tal ponto de nos perguntarmos como ele foi tão inteligente. Sim, se houvesse outro, não seria necessário que fosse aquele. Escutem isso. O que isso designa: aquele? Designa o que na frase é outro? Ou aquele de onde partimos para designar esse outro como outro? Porque, enfim, se digo isso, que se sustenta no plano da implicação material, porque em suma a primeira parte 27

Para marcar o equívoco entre faillir e falloir, a Versão 2 traz aqui: "c'est la jouissance qu (i /il) ne faudrait pas." (N.T.)

28

Apódose: nome dado pelos retóricos à proposição principal, colocada após uma proposição condicional: a prótase. Ex: se vocês não viessem (prótase), eu ficaria zangado (apódose), como no exemplo que Lacan dá em seguida. 133

Encare

designa algo de falso:29 "se houvesse outro" - não há outro, que não o gozo fálico. Exceto aquele sobre o qual a mulher não diz uma palavra, talvez porque ela não o conheça, aquele que a faz 'não toda', em todo caso. Portanto, é falso, que haja outro. O que não impede que a sequência seja verdadeira. Ou seja, que "não seria necessário que fosse esse" . Vocês sabem que é perfeitamente correto, quando o verdadeiro se deduz do falso, isso é válido, dá certo, é a implicação. A única coisa que não se pode admitir é que do verdadeiro se deduza o falso. Ela é bem feita, a lógica! Que eles tenham percebido isso sozinhos, esses estoicos . . .30 havia Crisipo . . .31 E havia também um outro que não tinha a mesma opinião. Mas de todo modo, não se deve pensar que eram coisas que não tinham relação com o gozo. Basta reabi­ litar esses termos. Portanto, é falso (jaux) que haja um outro, o que não nos impedirá de jogar, uma vez mais, com o equívoco, a partir não de faillir, mas de faux, e de dizer qu 'il ne fauxdrait pas32 que fosse esse, supondo-se que haja um outro, mas justa­ mente não há. E, ao mesmo tempo, não é porque não há - e é disso que depende o "não seria necessário" - que a lâmina cortante deixa de cair sobré3 aquele que não é o outro, aquele de onde partimos. E preciso que aquele seja falta (jaute), entendam isso como culpa, e falta do outro, do que não existe. O que nos abre lateralmente, digo-lhes isso de passagem, este pequeno apanhado que tem todo o seu peso numa metafísica. Pode haver casos em que não sejamos apenas nós a buscar um truque para nos tranquilizar nessa man­ jedoura da metafísica, nós podemos também lhe dar alguma coisa. E embora o não ser não seja, de todo modo não se deve esquecer que, a todo instante, isso que eu disse, que o não ser não seja, isso é posto pela palavra na conta do ser, que tem a culpa, a culpa de que o não ser não seja. E, aliás, é bem verdade que é 29

Notar que Lacan joga com uma série de palavras homófonas: ele introduz o gozo com a pala­ vra défaut (falta, falha), lembra o equívoco com il fau t (falta/ é preciso) e agora faux (falso), o que infelizmente se perde na tradução. (N.T.)

30

A versão publicada (op. cit., p. 56) acrescenta aqui: " c'est fort!" ("foi inteligente!"). (N.T.)

31 Crisipo de Solis, filósofo grego (280-208 A.C.), um dos principais expoentes do estoicismo. (N.T.) 32

Equívoco produzido com a união de: faux (falso) + i! ne faudrait pas (não seria necessário). (N.T.)

33

A Versão 1, ao contrário das duas outras, traz aqui: " ... que le couperet n'en tombe pas moins síir. Eh bien celle-là qui n'est pas l'autre..." ( ...que a lâmina cortante recaia menos certeira. Pois bem, aquele, que não é o outro...") . A dúvida vem da homofonia entre síirjsur. .. (certeira/sobre... ). (N.T.) "

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Lição 6

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culpa dele, pois se o ser não existisse, estaríamos bem mais tranquilos com essa questão do não ser. E, portanto, é bem merecido censurá-lo por isso, ou seja, que ele esteja em falta. É também por isso que, se é bem verdade o que eu lhes digo, que eventu­ almente me exaspera, foi daí que parti, suponho que vocês não se lembrem, é que quando me esqueço de mim Ue m'oublie) ao ponto de . . p'oublier, ou seja, de toutblier34 - há um 'tudo' nisso -, pois bem, eu mereço ter de aguentar isso. Aguentar que seja de mim que falem, e não, não do meu livro. Exatamente como aconteceu - por toda parte é a mesma coisa - em Milão, onde talvez não fosse exatamente de mim que falassem quando diziam que para mim, as mulheres não existem, mas não era certamente daquilo que eu acabara de dizer. Voltemos, então, ao nosso Aristóteles, após esse esclarecimento que fize­ mos. Em suma, esse gozo, isto é, esse gozo que vem àquele que fala, e não sem razão, é porque ele é um pequeno prematuro, ele tem algo a ver com essa famosa relação sexual e terá logo a oportunidade de perceber que ela não existe. Portanto, é mais em segundo lugar do que em primeiro, e em Freud existe a marca disso, há rastros disso: se ele falou de Urverdriingung, de recalque pri­ mordial, foi justamente porque o verdadeiro, o certo, o recalque de todo dia, pois bem, justamente, ele não é primeiro, ele é segundo. Ele é recalcado, o referido gozo, porque não convém que seja dito, e pela razão justamente de que o dizer só pode ser isso: como gozo, ele não convém. Como eu já propus há pouco, por este viés: ele não é o que é preciso, ele é o que não é preciso. O recalque só se produz ao atestar em todos os dizeres, no menor dos dizeres, o que há de implicado nesse dizer que acabo de enunciar:35 que o gozo não convém, non decet. Não convém a quê? A relação sexual, nesse sentido: que porque ele fala, o dito gozo, ela, a relação sexual não existe. E por isso mesmo que o melhor que ele faz é calar-se, com o resultado de que isso torna a relação sexual, em sua própria ausência, ainda um pouco mais pesada, pesada como essa ausência. E por isso que, afinal de contas, ele não se cala e que o primeiro efeito do recalque é que ele (o gozo) fala de outra coisa. E é isso que .

34 Jogo de palavras a partir de oublier (esquecer) : "p'oublier", em vez de publier (publicar) e " tout­ blier" (tudo esquecer). (N.T.) 35

Em lugar de je víens d'énoncer, como foi traduzido acima, a partir da Versão 2, que coincide com a versão publicada (op. cit., p. 57), a Versão 1 traz uma variante homófona: je viens dénon­ cer (eu venho denunciar). (N.T.) 135

Encare

produz a mola, como já indiquei com insistência, é isso que faz, da metáfora, a mola. Aí está. Vocês podem ver a relação de tudo isso com a utilidade, esse utilitário torna você capaz de servir para alguma coisa. E isso por não saber gozar de outra forma senão sendo gozado, ou enganado,36 pois é justamente o gozo que não seria preciso.37 Pois bem, é a partir daí, é a partir desse passo a passo, que me fez hoje escandir algo de essencial, que precisamos abordar - e eu lhes deixarei o tempo necessário, ao me despedir agora - que precisamos abordar essa luz que podem receber, um do outro, Aristóteles e Freud, interrogando como se poderia pre­ cisar, atravessando de um para o outro, aquilo que Aristóteles, no Livro VII da referida É tica a Nicômaco, questiona a respeito do prazer. Como o prazer, desse modo não duvidoso, o que lhe parece o mais seguro, referindo-se ao gozo, nem mais nem menos, ele pensa, sem dúvida alguma, que está aí algo que só pode se distinguir da necessidade, dessas necessidades de onde parti, em minha pri­ meira frase. Trata-se aí, diz ele, do que ele envolve da geração, isto é, do que se relaciona ao movimento. Para Aristóteles, o movimento, por causa do que ele pôs no centro de seu mundo - desse mundo que agora foi para sempre por água abaixo - o que ele pôs no centro, o motor imóvel, está na linha do que se segue imediatamente, ou seja, o movimento que esse motor imóvel sabe causar.38 É um pouco mais longe ainda, pelo que elas têm a ver com o que nasce e o que morre, com o que se engendra e se corrompe, que as necessidades, é claro, se situam. As necessidades se satisfazem pelo movimento. 36

Proximidade sonora, em francês, entre joui (gozado) e joué (enganado). (N.T.)

37 A versão publicada (op. cit., p. 57) introduz aqui uma separação: Parte 4. (N.T.)

38 "O argumento do movimento, segundo Aristóteles: É um fato, diz Aristóteles, que todos os seres aqui embaixo estão 'em movimento' contínuo, e é um 'princípio' que nada se move senão sob a ação de um motor, isto é, de uma causa já em ato. Ora, de duas coisas uma: ou esse motor passou, ele mesmo, da potência ao ato, ou ele era, por si mesmo, em ato; em outros termos, ou ele esteve 'em movimento' ou ele é 'imóvel'. Se ele esteve em movimento, isto é, se ele recebeu de um outro a perfeição que comunica, ele supõe, ele mesmo, um motor, isto é, uma causa já em ato, e a questão volta. Ora, avayK1J nryvaz, pois essa cadeia não pode se constituir indefinidamente, e chega-se necessariamente a um primeiro motor (npwrov Kwovv), a um motor imóvel (Kzvovv aKLvry rov), a um motor que dá o movimento sem ser movido, a um ser que é apenas em potência em relação a nada, ou seja, que é ato puro, a perfeição mesma e o princípio de toda perfeição: é Deus; portanto, Deus existe." LAHR, Pêre Ch. S. J Cours de Philosophie. Paris: Gabriel Beauchesne, 1929. ..

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Coisa estranha, como pode ser que sob a pena de Freud encontremos preci­ samente isso, na articulação do que se refere ao princípio do prazer? Que equí­ voco faz com que, em Freud, o princípio do prazer só se evoque pelo que vem de excitação e pelo que essa excitação provoca de movimento, para se furtar a ele? Que coisa estranha que seja isso que venha sob a pena de Freud, devendo ser traduzido por princípio do prazer, quando em Aristóteles, seguramente, há algo que só pode ser considerado como uma atenuação de sofrimento, mas certamente não como um prazer. Se Aristóteles chega a precisar, em algum lugar, o que se refere ao prazer, só poderia ser no que ele chama - e que só se pode traduzir como uma atividade - no que ele chama de energia: tvtpyna e, no caso, só há algumas escolhidas, que ele pode promover a essa função de esclarecer o que se refere ao prazer.39 Coisa muito estranha. Coisa muito estranha, os exemplos disso que ele dá e, é claro, não sem coerência. São eles: o 'ver' - é aí que reside, para ele, o prazer supremo, e ao mesmo tempo aquele que ele distingue do nível em que colocava a gênese - ytvwv; - a geração de alguma coisa, aquela que brota do cerne, do centro do puro prazer. Nenhum sofrimento precisa preceder o fato de vermos, para que ver seja um prazer. É engraçado que colocada nesse pé, nessa via, formulada assim a questão, ele tenha necessidade - consultem sempre o Livro VII - de propor o quê? O que o francês não pode traduzir de outra forma, por falta de uma palavra que seja equívoca, senão por odorer.40 Aqui Aristóteles coloca no mesmo plano, o que é estranho, a 'olfação' e a 'visão' . E ele tem um vivo sentimento da diversidade da coisa, e também de que o prazer, por mais oposto que pareça esse segundo sentido ao primeiro, o prazer se achava sustentado por ele. E ele acrescenta, em terceiro lugar, o 'ouvir'. Já que estamos perto dos quarenta e cinco minutos,41 posso bem dar-lhes um começo, não deixá-los adivinhar a observação de que, avançando nessa via . . . Mas vocês não reconhecem que nessa via, sobre a qual afinal d e contas é preciso que já tenhamos dado o passo que lhes disse há pouco, de ver que o gozo se refere centralmente àquele que não é preciso, não seria preciso para que hou­ vesse relação sexual, mas que permanece aí inteiramente agarrado, o que surge 39 A 40

versão publicada (op. cit., p. 58) omite a parte final desta frase. (N.T.)

Odorer (literalmente "odorar"), verbo criado por Lacan a partir de odeur (odor). (N.T.)

41 A versão publicada

(op. cit., p. 58) acrescenta aqui: 13:45 h. (N.T.) 137

Encare

do modo pelo qual Aristóteles o designa, mas ... o quê? É muito exatamente o que a experiência analítica nos permite assinalar corno sendo, de pelo menos um lado da identificação sexual, do lado homem, para nomeá-lo, o que se assi­ nala por ser o objeto, justamente. O objeto, que se coloca no lugar daquilo que, do Outro, não poderia ser percebido. E na medida em que o objeto a desempe­ nha em algum lugar e de um ponto de partida, de um só, o do homem, o papel do que vem no lugar do parceiro faltante, que se constitui aquilo que costuma­ mos ver surgir no lugar do Real, ou seja, o fantasma. Mas estou quase lamentando ter dito assim bastante sobre isso, o que sem­ pre quer dizer ter dito demais, pois se não se vê a diferença radical do que se produz do outro lado, ou seja, a partir . . . não posso dizer da mulher, pois justamente é o que da próxima vez tentarei enunciar, de urna maneira que se sustente - que se sustente e que seja bastante completa para que vocês possam suportar com isso o tempo que durará depois a retornada do terna, isto é, meio mês - que, do lado de lA. rnulher42 - mas marquem esse A com esse traço oblí­ quo, com o qual eu designo cada vez que tenho a oportunidade, aquilo que deve ser barrado - a partir de lA. mulher, é de outra coisa e não do objeto a que se trata - eu lhes enunciarei isso da próxima vez - no que vem fazer suplência a essa relação sexual que não existe.

42 Em francês: Lá femme. (N.T.) 138

Lição 7 20 de fevereiro de 1973

Posso lhes confessar que eu esperava que as férias ditas escolares tivessem tornado mais rarefeita sua assistência. Há muito tempo eu desejava lhes falar assim, passeando um pouco entre vocês, isso facilitaria certas coisas, creio eu. Mas enfim, já que essa satisfação me é recusada, volto ao ponto de onde come­ cei, na última vez, àquilo que chamei de 'uma outra satisfação', essa satisfação da palavra. Uma outra satisfação, aquela, repito - foi o início do que eu disse na última vez - aquela que corresponde ao gozo que deveria ser justo, justo para que isso ocorresse entre o que abreviarei chamando de o homem e a mulher, e que é o gozo fálico. Notem aqui a modificação introduzida por essa palavra: justo. Esse justo, esse justamente é um 'por pouco' (tout juste), bem-sucedido por pouco, o que eu penso lhes ser sensível como sendo justamente o avesso do malogrado. Isso tem êxito por muito pouco, e já chegamos ao ponto, pois na última vez, pelo menos é o que espero, a maioria de vocês estava presente e sabe que comecei com Aristóteles, por ver ali, em suma, justificado, o que Aristóteles nos traz da noção da justiça como o 'justo meio'. Talvez alguns de vocês tenham visto quando introduzi esse tout,l que está tou t juste, eu fiz ali uma espécie de contorno, que era para evitar a palavra no prosdiorismo/ que designa justamente esse tout, eventualmente o quelque, que 1

2

Lacan utiliza a palavra tout em suas variações gramaticais, eventualmente como pronome, substantivo ou adjetivo, quando o traduzimos por 'tudo' ou 'todo', e também como advérbio, o que é o caso de " tout juste", modificando um adjetivo e, nesse caso, tem o sentido de 'bem', 'muito', como em " tout jeune" (bem jovem), "tout pres" (bem perto, muito perto). (N.T.) Lacan introduz a palavra prosdiorismo na lição de 12.1.1972 do Seminário . . . ou pire, inédito. "Na linha da exploração lógica do reat o lógico começou pelas proposições. A lógica só come­ çou ao saber, na linguagem, isolar a função do que chamamos de prosdiorismos, que não são nada mais do que o 'um' (un), o 'algum' (quelque) e o 'todos' (tous) e a negação dessas propo­ sições. Como vocês sabem, Aristóteles define, para opô-las, as universais e as particulares, no interior de cada uma, afirmativas e negativas. O que quero marcar é a diferença que há desse uso dos prosdiorismos ao que, por necessidades lógicas, ou seja, por uma abordagem que não era outra senão a desse real que se chama número, ocorreu de completamente diferente." 139

Encare

não falta em nenhuma língua. Que seja o prosdiorismo o tout que, no caso, vem nos fazer deslizar da justiça de Aristóteles à justeza, ao êxito por pouco, é bem o que legitima termos inicialmente produzido essa entrada de Aristóteles, pelo fato de que isso não se compreende tão depressa assim. E, afinal de contas, se Aristóteles não se compreende tão facilmente por causa da distância que nos separa dele, está bem aí o que justificava, quanto a mim, eu lhes dizer que ler não é, de modo algum, algo que nos obrigue a compreender - é preciso lê-lo primeiro.3 E é exatamente o que faz com que hoje, enfim, de um modo que talvez pareça a alguns paradoxat eu lhes aconselhe a leitura de um livro sobre o quat o mínimo que se possa dizer é que ele me diz respeito. Esse livro se chama: Le titre de la lettre,4 e foi publicado pelas edições Galilée, coleção: A la Lettre.5 Eu não lhes falarei dos autores, que me parecem, nesse caso, desempenhar mais um papel pouco relevante, mas isso não diminui seu trabalho, pois direi que, quanto a mim, foi com a maior satisfação que o li. E essa é, em suma, a prova à qual eu desejava submeter este auditório, em vez de alardear a publicação desse ou daquele livro. Esse livro, que foi escrito, em suma, com a pior das intenções, como vocês poderão constatar nas trinta últimas páginas é, mesmo assim, um livro cuja difusão eu só poderia encorajar. Posso dizer que, de certo modo, tratando-se de ler, eu nunca fui tão bem lido, a tal ponto que, de um certo ângulo, eu poderia dizer: com tanto amor. Certamente, como fica claro pela queda do livro, é um amor do qual o mínimo que se possa dizer é que seu reverso habitual na teoria analítica não pode dei­ xar de ser evocado. Parece-me que seria excessivo dizer e, afinat talvez fosse mesmo excessivo colocar aí, de qualquer maneira, os sujeitos, isso seria talvez reconhecê-los demais como sujeitos, evocar seus sentimentos. É um modelo de boa leitura. A tal ponto que posso dizer que lamento nunca ter obtido daqueles que me são próximos, nada que, aos meus olhos, fosse equivalente. Os autores - já que de todo modo é preciso que os mencione - acreditaram que podiam se limitar e, Deus meu, por que não cumprimentá-los por isso, pois a condição de uma leitura é evidentemente que ela seja situada, que se 3 4

5

A versão publicada (op. cit., p. 62) introduz aqui uma separação: Parte 1. (N.T.) LACOUE-LABARTHE, P. , NANCY, J.-L. Le titre de la lettre. Une lecture de Lacan. Paris: Galilée, 1973 e 1990. Na verdade, a coleção se chama: La philosophie en effet.

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Lição 7 - 20 de fevereiro de 1 9 73

imponha limites a si mesma, e eles se dedicaram ao meu artigo, a esse artigo recolhido em meus Escritos, que se chama "A instância da letra" .6 Quero dizer que, para pontuar, por exemplo, o que me distingue do que pode ser compre­ endido de Saussure - não digo mais - o que me distingue dele, o que fez com que, como eles dizem, eu me tenha 'desviado' dele, realmente não se pode fazer nada melhor. A que isso leva, pouco a pouco? A esse impasse, que é exatamente o que eu designo quanto ao que há no discurso analítico, enquanto abordagem da verdade e de seus paradoxos. Está aí, sem dúvida, algo que afinal eu não sei o que - não tenho outro modo de sondá-lo - eu não sei o que escapa aos que se impuseram esse extraordinário trabalho. Tudo acontecendo, portanto, como se eles ficassem quites justamente do7 impasse onde todo o meu discurso é feito para levá-los, se declarando, ou me declarando - o que dá no mesmo, no ponto em que chegaram - confusos. Mas, justamente, é aí que acho perfeitamente indicado que vocês mesmos se defrontem, eu insisto, até com as conclusões que afinal de contas podem ser qualificadas, como vocês verão, de impertinentes. Até essas conclusões, o tra­ balho prossegue de um modo no qual só posso reconhecer um valor de esclare­ cimento, de luz, inteiramente impressionante. Se isso pudesse enfim, por acaso, esclarecer um pouco suas fileiras, devido àquilo por onde comecei, quanto a mim, eu só veria aí vantagem. Mas, afinal de contas, não estou tão certo, pois ... já que vocês são sempre tão numerosos aqui, por que não confiar que nada enfim os desanima, com certeza? Até essas trinta ou vinte últimas páginas, não as contei, porque na verdade foram essas, somente essas, que li em diagonal, as outras lhes serão de um conforto que, afinal de contas, posso lhes desejar.8 Sobre isso, o que tenho hoje a lhes dizer é exatamente o que anunciei na última vez, ou seja, levar mais longe o que se refere ao ponto em que terminei, isto é, a consequência do que julguei - não sem ter, é claro, percorrido um longo 6

LACAN, J. "L'instance de la lettre dans l'inconscient ou la raison depuis Freud" . In: Écrits. Paris: Le Seuil, 1966, p. 493.

7 A versão publicada (op. cit., p. 62) traz aqui esta forma ' do' que está de acordo com a constru­ ção do verbo em francês: être quitte de. As outras versões trazem 'ao', 'no', duas formas que não seguem a construção habitual do verbo e a frase fica sem sentido. Em português, também, "estar quite de... "= estar livre, desembaraçado de . . (N.T.) .

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A versão publicada (op. cit., p. 62) introduz aqui uma separação: Parte 2. (N.T.) 141

Encare

caminho9 - que devia enunciar sobre o que há entre os sexos - entre os sexos, no ser falante - que não faz relação. E como, em suma, é somente a partir daí que se pode enunciar o que faz suplência a essa relação. Já faz muito tempo que, sobre isso, eu escandi com um certo Há Um (Y a d' l'un),l0 o que constitui o primeiro passo nessa direção. Esse Há Um,U é o caso de dizê-lo, não é simples. É claro que, na psicanálise, ou mais exatamente, já que é preciso dizê-lo, no discurso de Freud, isso se anuncia com o Eros, o Eros definido como fusão daquilo que, do dois, faz um, e que a partir daí, Deus meu, pouco a pouco, supõe-se tender a fazer de uma multidão imensa apenas um. E com isso, como é claro que mesmo todos, como vocês são aqui, multidão, segu­ ramente não só não fazem apenas um, mas não têm nenhuma chance - nem que fosse comungando, como se diz, em minha palavra - de chegar a isso, como fica amplamente demonstrado todos os dias, foi preciso que Freud fizesse surgir esse outro fator, que deve fazer obstáculo a esse Eros universal, sob a forma do Tânatos, da redução ao pó. Isso, evidentemente, é coisa permitida metaforicamente a Freud, graças a essa feliz descoberta das duas unidades do gérmen, o óvulo e o espermato­ zoide, dos quais, grosseiramente se poderia dizer que é de sua fusão que se engendra o quê? Um novo ser. E também, limitando-se a dois elementos que se conjugam, só que fica bem claro que, olhando mais de perto, a coisa não vai sem uma meiose/2 sem uma subtração inteiramente manifesta, pelo menos para um dos dois, quero dizer, pouco antes do momento mesmo em que a conjunção se produz, a subtração de certos elementos que, é claro, não deixam de ter impor­ tância na operação final. Mas a metáfora biológica é certamente aqui, muito menos ainda do que em outros lugares, o que pode bastar para nos confortar. Se o inconsciente é mesmo o que eu digo, estruturado como uma lingua­ gem, é no nível da língua13 que precisamos interrogar esse Um, bem entendido, 9 10

11 12 13

A versao publicada (op. cit., p. 63) suprime essa frase intercalada. (N.T.) Lacan introduziu essa formulação na lição de 15 de março de 1972 do Seminário . . . ou pire, inédito. Cf. sobre a tradução de Y a d' l'Un, a nota 24 da Lição 1 . Cf. Anexo 1 desta lição, "Sobre a meiose" . As três Versões que nos servem de base, inclusive a versão publicada (op. cit., p. 63), trazem aqui: la langue. No entanto poderíamos escrever, como Lacan: lalangue ("alíngua"). Convém notar que há outras propostas para a tradução em português de lalangue, notadamente a de

1 42

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que ecoou ao longo dos séculos, numa ressonância infinita. Será preciso lem­ brar aqui os neoplatônicos e todos os que se seguiram? Talvez eu ainda tenha de mencionar, daqui a pouco, muito rapidamente, essa aventura, pois o que é preciso hoje é propriamente designar de onde a coisa, não somente pode, mas deve ser tomada de nosso discurso, desse discurso novo, dessa renovação que traz ao campo do Eros o que vem de nossa experiência. E preciso partir disso: esse Há Um deve ser tomado com a ênfase de que Há Um, e justamente, já que não há relação, Há Um e Um sozinho.14 É daí que se apreende o nervo do que concerne ao que afinal temos de chamar pelo nome com o qual a coisa ecoou ao longo dos séculos, ou seja, o amor. Na análise, só temos de lidar com isso. E não é por uma outra via que ela opera, via singular, pois só ela permitiu ressaltar aquilo que eu, que lhes falo, acreditei que devia sustentar, quero dizer essa transferência, e especificamente na medida em que ela não se distingue do amor, com a fórmula: o sujeito suposto saber. E então, penso que ao longo do que hoje vou ter de enunciar, não posso deixar de mar­ car a ressonância nova que pode adquirir para vocês, em tudo o que vai se seguir, esse termo: saber.l5 Talvez, mesmo no que, há pouco, vocês me viram flutuar, recuar, hesitar em fazer tomar um sentido ou o outro, o do amor ou o do que ainda é chamado de ódio ... Pensem que, em suma, se como vocês vão constatar naquilo em que os convido expressamente a tomar parte, ou seja, numa leitura cuja crítica é feita expressamente para, digamos, me desconsiderar, o que certamente não é algo diante do qual possa recuar alguém que só fale em suma da ' de-side­ ração'1b e que não vise nada além. . . (pensem) que, em suma, onde essa crítica

Haroldo de Campos ("lalíngua"), no artigo: "O Afreudisíaco Lacan. Na galáxia de lalíngua". In: Ideias de Lacan, (org. César Cesarotto). São Paulo: Iluminuras Ltda., 1995, p. 175. (N.T.) 14

lln tout seul, que poderia ser traduzido por 'Um só', 'apenas Um', 'Um inteiramente só' . A opção por 'Um sozinho', na falta de termo mais preciso, marca melhor, no português colo­ quial, a ideia do que não pode, de modo algum, fazer relação com o Outro, do que não faz relação. (N.T.)

b

A versão publicada (op. cit., p. 64) traz aqui um acréscimo: " Celui à qui je suppose le savoir, ;e l'aime" ("Aquele a quem suponho o saber, eu o amo"). (N.T.)

16

Em francês: dé-sidération, compreendendo: dé, como 'privação', mas também désir (desejo) e sidération (sideração), "estado de abatimento súbito das forças vitais" (Cf. Novo Dicionário Aurélio eletrônico) . (N.T.) 143

Encare

recai, ou mais exatamente parece, aos autores, sustentável, é justamente numa dessuposição de meu saberY E por que não? Por que não, se fica claro que deve ser essa a condição do que eu chamei de leitura? Que sei eu, afinal, que posso presumir do que sabia Aristóteles? Talvez o leia melhor, na medida em que esse saber eu lho suponha menos. Tal é a condi­ ção de se pôr estritamente à prova a leitura. E é dessa prova que, em suma, eu não me esquivo. É certamente difícil. . . Seria pouco conforme ao que de fato nos é dado ler pelo que existe da linguagem, ou seja, o que vem a se tramar como efeito de sua erosão (ravinement), vocês sabem que é assim que eu defino o escrito . . 18 Seria desdenhoso, ao que me parece, não atravessar, ao menos, ou fazer eco daquilo que, ao longo do tempo e de um pensamento que se chamou - devo dizer, impropriamente - filosófico, daquilo que, ao longo do tempo, se elaborou sobre o amor. Não vou fazer aqui uma revisão geral, mas penso que tendo em vista o tipo de cabeças, enfim, que vejo aqui florir, vocês devem ter ouvido falar que, do lado da filosofia, o amor de Deus, nesse caso, ocupou um certo lugar, e que existe aí um fato maciço que, pelo menos lateralmente, o discurso analítico não pode deixar de levar em conta. Assim, pessoas bem-intencionadas - isso é bem pior do que aquelas que o são mal - pessoas bem-intencionadas, quando, como foi dito em algum lugar desse livrinho, pelo que está lá escrito, eu fui " excluído de Sainte-Anne" - eu não fui 'excluído', eu me retirei, o que é bem diferente19 - mas Pnfim, o que importa? Não chegamos a esse ponto, sobretudo porque esses termos, 'excluído', 'excluir', em nossa topologia, têm toda sua importância. Pessoas bem-intencio­ nadas ficaram, em suma, surpresas de ouvir dizer - era apenas um eco - mas corno essas pessoas, Deus meu, é preciso dizê-lo, eram da pura tradição filo­ sófica - daquela que se prevalece disso, razão pela qual eu digo pura - não há nada de mais filosófico do que o materialismo, e o materialismo se crê obrigado, Deus sabe por quê - é o caso de dizê-lo - a se precaver contra esse Deus, sobre o .

17 A versão publicada (op. cit., p. 64) introduz aqui: " Si j'ai dit qu 'ils me haissent, c'est qu 'ils me dé-sup­ posent le savoir" ("Se eu disse que eles me odeiam, é porque eles me dessupõem o saber") . (N.T.) 18

Cf. LACAN. J. "Lituraterre". In: Autres écrits. Paris: SeuiL 2001, p. 17: ...l'écriture est dans le réel le ravinement du signifié" ("a escrita é, no real, a erosão do significado"). (N.T.) "

19 Cf. Anexo 2, desta lição. 1 44

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qual eu disse que ele dominou, na filosofia, todo o debate do amor ... O mínimo que se possa dizer é que houve certo mal-estar, tendo em vista a ponte, o tram­ polim, a manutenção para mim de urna audiência que me fora oferecida a par­ tir dessa intervenção calorosa: é que eu colocava entre o homem e a mulher um certo Outro, com O maiúsculo, e no dizer daqueles que se faziam veículos desinteressados desse eco, um certo Outro que parecia não ser nada menos do que o bom e velho Deus de sempre. Para mim, parece sensível que, quanto ao bom velho Deus, esse Outro, esse Outro proposto no tempo da "Instância da letra", esse Outro proposto então corno o lugar em que a palavra só pode se inscrever corno verdade, esse Outro era bem urna maneira, não posso nem mesmo dizer de laicizar, de exorcizar esse bom velho Deus. Mas o que importa, afinal, quem sabe? Há muitas pessoas que me cumprimentam por ter sabido afirrnar20 em não sei qual, se no último ou no penúltimo de meus seminários, enfim, que Deus não existia. Evidente­ mente, eles ouvem, ouvem, mas infelizmente eles compreendem e o que com­ preendem é um pouco precipitado. Pois hoje eu vou talvez lhes mostrar, ao contrário, em que, justamente, ele existe, esse bom velho Deus. O modo sob o qual ele existe não agradará talvez a todo o mundo e especialmente não aos teólogos, que são, como eu já disse há tempos, bem mais fortes do que eu em prescindir da existência dele. Infe­ lizmente, não estou inteiramente na mesma posição porque, justamente, tenho de lidar com o Outro. Esse Outro que, se há apenas Um sozinho, deve ter bem alguma relação com o que aparece, então, do outro sexo. Esse Outro, sou for­ çado a levá-lo em conta, e todos sabem que afinal não me recusei - naquele mesmo ano que eu evocava na última vez, o da É tica da psicanálise - a me referir ao amor cortês. O amor cortês, o que é isso ?21 Era essa espécie, essa maneira inteiramente refinada de suprir a ausência da relação sexual, fingindo que éramos nós que lhe opúnhamos obstáculo. Isso foi realmente a coisa mais formidável que jamais se tentou, mas corno denunciar essa finta? E claro que deixo de lado isso que, quanto aos materialistas, seria urna maneira magnífica, enfim - ao invés de ficar ali divagando sobre o paradoxo 20

21

A Versão 2 traz aqui outra leitura: em lugar de d'avoir su poser (por ter sabido afirmar), escreve d'avoir supposé (por ter suposto). São duas formas perfeitamente homófonas. (N.T.) Cf. Anexo 3, desta lição. 1 45

Encare

de que isso tenha surgido na época feudal - de ver, ao contrário, como isso se emaíza no discurso da fealidade/2 da fidelidade à pessoa e, para dizer tudo, ao último termo do que é sempre a pessoa, ou seja, o discurso do mestre. Seria a maneira mais esplêndida de ver o quanto isso era necessário ao homem, cuja dama estava inteiramente, no sentido mais servil, submetida, sujeitada, como era essa a única maneira de se sair com elegância com relação àquilo de que se trata e que é o fundamento, ou seja, a ausência de relação sexual. Mas enfim, terei de me haver - eu retomarei isso mais tarde, hoje é preciso que eu abra23 um certo terreno - terei de me haver com essa noção de obstá­ culo que, em Aristóteles - porque, apesar de tudo, prefiro Aristóteles a Jauffré Rudel/4 hem? - se chama justamente o obstáculo, tvmamc/enstasis. Meus leitores - cujo livro, eu repito, é preciso que vocês todos comprem daqui a pouco - encontraram até isto, ou seja, que a instância que eles interro­ gam com um cuidado, uma precaução ... Eu lhes digo, nunca vi um só de meus alunos fazer um trabalho semelhante, infelizmente! Ninguém jamais levará a sério o que escrevo! Salvo, é claro, aqueles sobre os quais eu disse há pouco, inci­ dentalmente, que eles me odeiam sob o pretexto de que me dessupõem o saber. O que importa! Sim, eles chegaram a descobrir o tvmamc;, o obstáculo lógico aristotélico, que eu tinha guardado para saborear no fim, para essa "Instância da letra". É verdade que eles não veem a relação que há, mas põem isso em nota. Mas eles estão tão habituados a trabalhar, sobretudo quando algo os anima: o desejo, por exemplo, de conseguir um mestrado, é o caso de dizê-lo, mais do que nunca. Pois bem, eles fizeram isso, a nota de não sei mais que página, à qual vocês poderão se referir, o que lhes permitirá estudar Aristóteles e vocês saberão tudo quando eu abordar, enfim, essa história do tvmamc/enstasis. - Bem, onde ele está? 22 De féal, termo corrente no séc. XII para designar aquele que era 'fiel' às regras do amor cortês. (N.T.) 23 Há uma hesitação nas diversas versões entre fende (fenda, abra), metáfora do arado que sulca a terra, e fonde (funde, estabeleça), cuja sonoridade é bem próxima. (N.T.) 24

Poeta provençal, príncipe de Blaye (1125-1148). Compositor de seis canções nas quais esse grande trovador cantava "o amor longínquo" . Ele entrou para a lenda por ter sido apaixo­ nado pela condessa de Trípoli, sem tê-la visto, "pelo bem que se dizia dela" . Ele embarcou para a Síria numa Cruzada. Tendo adoecido no mar, morreu ao desembarcar, nos braços da condessa, que entrou para o claustro no mesmo dia. L. Tieck conta essa história em Sternbald e E. Rostand, em La princesse lointaine.

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- Onde está o "ekstasis"?25 - Mas isso é mortal! E ainda por cima, não vou encontrar a página no momento em que vou ter de lê-la para o senhor! - Bem, espere! Aqui está: páginas 29 ... 28 e 29. Vocês podem ler em seguida o trecho da Retórica e os dois trechos das Tópicas que lhes permitirão compreen­ der imediatamente, saber claramente o que quero dizer quando eu reler Aris­ tóteles, e mais exatamente quando eu tentar reintegrar em Aristóteles minhas quatro fórmulas, vocês sabem 3x . x barrado, e a sequência . . . Sim. . . Enfim, por que o s materialistas, como s e diz, s e indignariam d e que, como sempre, eu ponha mesmo - e por que não? - Deus como terceiro no caso do amor humano? Suponho que mesmo os materialistas cheguem eventual­ mente a saber alguma coisa sobre o ménage à trais. Então, tentemos avançar, tentemos avançar sobre o que resulta desse passo a ser dado, em todo caso, nada prova que eu não saiba o que tenho a dizer ainda (encare) nesse níveL aqui, onde lhes falo. O mínimo que eu possa dizer é ser ao menos . . . enfim, poder ao menos supor tê-los feito admitir, pelo menos admitir que eu admito que, no que se refere ao ser ... a discrepância desse livro, discrepância aberta desde o início e que continuará até o fim, é me supor - e com isso se pode fazer tudo - é me supor uma ontologia, ou o que vem a ser a mesma coisa, um sistema. A hones­ tidade, de todo modo, faz com que, no diagrama circular onde, por assim dizer, se enoda o que proponho com a "Instância da letra", seja em linha pontilhada - e com razão, pois eles não pesam muito - que são postos, envolvendo todos os meus enunciados, os nomes dos principais filósofos em cuja ontologia geral eu inseriria meu pretenso sistema. Pois bem, para mim, digamos que não pode ser ambíguo que, ao menos pelo que articulei nestes últimos anos, esse ser, tal como ele se sustenta na tra­ dição filosófica, isto é, onde ele se assenta no próprio pensar, que supostamente é seu correlato, pois bem, que a isso muito precisamente eu oponha que, nesse mesmo caso, somos enganados pelo gozo, que o pensamento é gozo, que o que traz o discurso analítico é o que já estava esboçado na filosofia "do ser" (entre aspas), ou seja, que há gozo do ser.

25

Lacan pronuncia muito claramente "ekstasis", que não existe em grego, mas prepara o que ele dirá do êxtase. 147

Encare

Eu diria até mais, se lhes falei da É tica a Nicômaco, foi justamente porque o rastro disso estava ali, e o que buscava Aristóteles e que abriu caminho para tudo o que se seguiu depois dele foi: o que é esse gozo do ser, do qual Santo Tomás não terá depois nenhuma dificuldade para forjar essa teoria, como é chamada, como a chama o Abade Rousselot/6 de quem eu lhes falava na última vez: a "teoria física do amor". Ou seja, que afinal de contas, o primeiro ser do qual temos o sentimento é nosso ser, e tudo o que é para o bem de nosso ser será, por esse fato, gozo do Ser Supremo, isto é, de Deus. E que amando Deus, para dizer tudo, é a nós mesmos que amamos. E que nos amando primeiro a nós mesmos - "caridade bem ordenada . . . " 27 como se diz - prestamos a Deus a homenagem que convém. A isso, o que eu oponho como ser - se quiserem a qualquer preço que eu me sirva desse termo, do que dá testemunho ... do que é forçado a dar testemunho desde suas primeiras páginas de leitura, simplesmente leitura, esse pequeno volume - é o ser da significância. E o ser da significância, eu não vejo em que eu rebaixe os ideais - os ideais, eu disse - porque está inteiramente fora dos limites da épura do materialismo, inteiramente fora dos limites de sua épura, reconhecer que a razão desse ser da significância é o gozo, na medida em que ele é gozo do corpo. Só que um corpo, vocês compreendem, desde Demócrito, isso não parece suficientemente materialista, hem, é preciso encontrar os átomos e todo resto: a visão, a " adoração" e tudo o que se segue, tudo isso é absolutamente solidário, não é à toa que eventualmente, Aristóteles, mesmo que o faça de má vontade, cita Demócrito, apoia-se nele. O átomo é simplesmente um elemento de signifi­ cância volátil. E um mmxEiov/ stoi'cheion, simplesmente. Com a diferença que se tem as maiores dificuldades do mundo para entender, quando só se considera o que faz do elemento elemento, ou seja, que ele é único, quando seria preciso introduzir um pouco o Outro, isto é, a diferença. Bom! O gozo do corpo, se não há relação sexuaL seria preciso ver em que isso pode servir. 28

26

ROUSSELOT, P. Pour l'histoire du probleme de l'amou r au Moyen-Âge. Paris: Vrin, 1981. Cf. Anexo III, desta lição.

27 Provérbio francês: "Charité bien ordonnée commence par soi-même" ("Caridade bem ordenada começa por si mesmo"). (N.T.) 28 A versão publicada (op. cit., p. 67) introduz aqui uma separação: Parte 3. (N.T.) 148

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Parece-me já ter escandido - estou premido pelo tempo - parece-me já ter escandido que, para tomar as coisas do lado em que, logicamente: Quantifica­ dor t!x, isto é, todo x é função, função matemática de
A versão publicada (op. cit., p. 67) traz aqui uma escansão: con-victions, efeito que se perde na tra­ dução, mas em francês remete a con, termo chulo para o sexo da mulher, que também quer dizer 'imbecil', 'estúpido', na gíria francesa mais comum, termo mais forte em francês do que o portu­ guês 'babaca', que tem origem semelhante. As outras versões não assinalam essa escansão. (N.T.)

30 LACOUE-LABARTHE, P. , NANCY, ].-L. op. cit., p. 189. Os autores não dizem explicitamente que o que Lacan escreve não tem sentido algum, eles tentam separar nele texto e discurso e,

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Encare

isso que lhes peço que o leiam, ou quando eu escrevo isso: Vx .
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Sim. Se não há, pois, mulher senão excluída pela natureza das coisas, como IA. mulher, de todo modo, se ela está excluída pela natureza das coisas é justa­ mente por isso: por ser 'não toda', ela se afirma como IA. mulher. Porque com relação ao que eu designo como gozo, na função fálica, elas têm, se posso assim dizer, um gozo suplementar. Vocês notarão que eu disse suplementar, porque se tivesse dito complementar, onde estaríamos? Cairíamos de novo no todo. Sim, elas não se limitam, nenhuma se limita, por ser 'não toda', ao gozo de que se trata, e mesmo assim, Deus meu, de um modo geral, seria um erro não ver que, ao contrário do que se diz, são as mulheres que possuem os homens, não? Na linguagem popular - e é por isso que eu nunca falo, enfim, verdadeira­ mente, salvo de vez em quando, provavelmente, enfim, eu devo falar um pouco como todo mundo, mas enfim, em geral, eu digo coisas importantes . . . E quando digo que o homem do povo chama . . . - sim, eu conheço bem, eles não estão for­ çosamente aqui, mas eu conheço bastante - quando o homem do povo chama a mulher de 'a burguesa',31 é bem o que isso quer dizer: que quanto a estar aos pés de alguém, é ele quem está, não ela. O falo, portanto, 'seu homem', como ela diz, desde Rabelais, sabe-se que isso não lhe é indiferente. Mas toda a questão está aí. Ela tem diversos modos de abordar esse falo, e de ficar com ele, hem! E isso importa, porque não é por estar 'não toda' na função fálica, que ela não está ali de modo algum. Ela está ali, não de modo algum, só que existe algo a mais. Esse a mais, hem, prestem atenção, e cuidem para não escutar os ecos depressa demais, eu não posso designá-lo melhor, nem de outro modo, porque preciso terminar e andar depressa. Há um gozo - já que nos limitamos ao gozo, gozo do corpo - que é . . . se posso me exprimir assim, porque afinal, por que não fazer disso um título de livro? ... seria para o próximo da coleção Galilée: "Para além do falo" (Au-delà du pallus), seria bonito, hem! E depois, isso daria outra consistência ao M.L.FJ32 Um gozo para além do falo, hem? Se vocês ainda não perceberam que eu falo naturalmente aqui para alguns semblants de homens, enfim, que eu vejo aqui e lá, felizmente não conheço a maioria deles, assim não prejulgo nada, porque para os outros como . . . Sim. Há 31

Em francês, la bourgeoise é uma forma popularesca para ma femme (minha mulher). Em portu­ guês, a expressão equivalente seria 'a patroa', aquela que dá as ordens. (N.T.)

32

Mouvement de Liberation des Femmes (Movimento de Liberação das Mulheres) . (N.T.) 151

Encare

algo que talvez esses semblants de homens em questão tenham podido notar, assim, de vez em quando, enfim, entre duas portas, enfim há alguma coisa que os sacode (secoue) hem, ou que os socorre (secourt). E depois, quando vocês forem procurar a etimologia dessas duas palavras naquele famoso Bloch et Von Wartburg,33 com o qual eu me delicio, e garanto que cada um de vocês nem mesmo o tem em sua biblioteca, vocês verão que a relação que há entre secouer e secourif34 não são coisas que acontecem por acaso! Há um gozo - digamos a palavra - um gozo 'dela', dessa ela que não existe, que não significa nada. Há um gozo, há um gozo dela, do qual talvez ela mesma não saiba nada, a não ser que o experimenta, isso ela sabe. Ela sabe, é claro, quando isso acontece. E isso não acontece com todas elas. Mas enfim, sobre o tema da pretensa frigidez, afinal, é preciso levar em conta a moda também e as relações entre os homens e as mulheres, isso é muito importante. Pois, bem entendido, tudo isso, como no amor cortês e, infeliz­ mente, no discurso de Freud, está recoberto por considerações menores que exerceram suas devastações exatamente como o amor cortês; toda espécie de considerações menores sobre o gozo clitoridiano, sobre o gozo que chamamos, como podemos, de 'o outro', justamente aquele que eu estou tentando fazer vocês abordarem pela via da lógica, porque até segunda ordem, não há outra. Há uma coisa certa e que, de todo modo, deixa alguma chance ao que eu proponho - que, desse gozo, a mulher nada sabe - é que já faz tempo que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos - e eu falava, na última vez, das psicanalistas mulheres - que tentassem ao menos nos dizer algo, abordar isso. Pois bem, nada! Nem uma palavra! Nunca pudemos tirar nada delas. Então chamamos isso como podemos: gozo vaginal, o polo posterior do focinho do útero e outras bobagens, é caso de dizer. Mas afinal, se elas simplesmente o experimentassem e não soubesse nada a respeito, isso permitiria também lan­ çar muitas dúvidas do lado da famosa frigidez de que eu falava há pouco, não é? E que é também um tema literário, não é? Enfim, de todo modo valeria a pena nos determos aí, porque imaginem que já faz alguns dias que eu passo . . . enfim, são alguns dias! Mas só faço isso 33

BLOCH, 0., WARTBURG, W.Von. Díctionnaire éttpnologique de la langue française. Paris: PUF, 1975.



Secouer/secourír (sacudir/ socorrer) . A homofonia, que não ocorre em português, era notável, sobretudo no antigo francês, quando as duas formas eram secourre/secorre. (N.T.)

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desde que tinha vinte anos, enfim, explorar os filósofos sobre esse tema do amor. Naturalmente, eu não centrei isso imediatamente no tema do amor, isso veio numa época, justamente com o Abade Rousselot de quem eu lhes falava há pouco e depois toda a questão do amor físico e do amor extático, como eles dizem. Enfim, eu compreendo que Gilson35 não a tenha achado muito boa, essa oposição, ele achou que talvez Rousselot tivesse feito então uma descoberta que não era descoberta, isso fazia parte do problema, que o amor é tão extático em Aristóteles quanto em São Bernardo, com a condição de saber ler os capítulos sobre a qn.Àiajphilia, sobre a amizade. Vocês não podem saber, enfim, podem sim, vocês podem saber, isso depende, há alguns aqui que devem saber de todo modo que profusão de lite­ ratura se produziu em torno disso. Denis de Rougemont, como vocês podem ver, L'amour et l'occident,36 está no auge. E depois, e depois há um outro, que não é menos inteligente do que qualquer um e que se chama: Nygrens,37 é um protestante, sim, Eros et Ágapê! Enfim! É verdade, é verdade naturalmente que acabamos, no cristianismo, por inventar um Deus, que é ele quem goza! De todo modo há uma pequena ponte, uma ponte, hem, quando vocês leem certas pessoas sérias que, como por acaso, são mulheres ...Vou lhes dar, de todo modo, uma indicação que eu devo a uma pessoa muito gentil, que o tinha lido e que mo trouxe. Eu me atirei sobre ele! Eu me atirei! Ah! Eu preciso escrever, senão não adiantará nada, vocês não vão comprá-lo. Aliás, vocês terão menos facilidade de comprá-lo do que o livro que acaba de ser publicado sobre mim. Vocês terão mais dificuldade de encontrá-lo porque eu creio que está esgotado. Mas enfim, talvez consigam encontrá-lo. Tiveram muito trabalho para me tra­ zer esse Hadewijch d'Anvers.38 E uma Beguina, uma Beguina, ou seja, é como gentilmente se chama uma mística. Eu não emprego a palavra mística como o fazia Péguy!39 A mística não é tudo o que não é a política, a mística é algo de sério, hem! 35

GILSON, E. La Théologie mystique de Saint Bernard. Paris: Vrin, 1934. Cf. Anexo 5 desta Lição.

36

ROUGEMONT, D. de. L'Amour et l'Occident. Paris: Plon, 1991.

37

NYGRENS, A Éros et Agapê. Paris: Aubier, 1940.

38 D' ANVERS, H. Amour est tout. Paris: Téqui, 1984, e Écrits mystiques des béguines. Paris: Seuil, 1985. 39

Péguy, que tinha visto no " estabelecimento da República socialista universal", o "remédio para o mal universal", escreve em 1910, em Notre jeunesse: "O essencial é que... a mística não seja 153

Encare

Há algumas pessoas e, justamente, na maioria das vezes mulheres, ou então pessoas de talento, como São João da Cruz . . . sim, porque não se é obrigado, quando se é macho, a se colocar do lado V x .
Gian Lorenzo Bernini, " Êxtase de Santa Teresa", Capela Cornaro, transepto esquerdo da igreja de Santa Maria della Vittoria, Roma. Em Ravissements celestes, FMR n° 65. Ed. française, p. 26, Caterina Napoleone propõe uma outra interpretação dessa estátua: "Estaria ela morta? Ou moribunda? Ou então a iconografia berniniana se refere a essa representação que, sob a forma de crônica, foi elaborada de sua agonia? Uma representação que transforma a santa, no momento em que ela está morrendo, numa encantadora jovem, quando na verdade ela é uma septuagenária de aspecto pouco cuidado." Trata-se da capela funerária do Cardeal Cor­ naro, comanditário de Bernini. Ela se organiza como um teatro, segundo a tradição barroca: os ancestrais de Cornaro, apoiados no balcão de dois camarotes, são os espectadores e os juízes da cena de êxtase da santa, como os teólogos que, durante toda sua vida, questionaram a fé de Teresa. Mística ou demônio, tal era a questão a que deviam responder os escritos redigidos por Teresa, sob a pressão renovada de seus confessores: ela descreve aí suas experiências ... Cf. Anexo IV desta Lição.

154

Lição 7 - 20 de fevereiro de 1973

Então aqui, para terminar, enfim, o que lhes proponho é que graças a este pequeno trilhamento que tento fazer hoje, algo seja frutífero, tenha êxito tout juste . . O que se tentava no fim do século passado, no tempo de Freud, justa­ mente, era reduzir essa coisa que não chamarei, de modo algum, de tagarelice, nem de falatório, todas essas jaculações místicas que são em suma, sim, que são, em suma o que se pode ler de melhor, hem! E bem no pé de página, nota: acres­ centar aí os Escritos de Jacques Lacan, porque são da mesma ordem . . . E agora, naturalmente, vocês todos vão estar convencidos de que eu creio em Deus. Eu creio no gozo d'A mulher, na medida em que ele é 'a mais', com a condição de que esse 'a mais', vocês coloquem aí uma cortina, até que eu o tenha bem explicado. Então, tudo o que eles procuravam, assim, aquele grupo de pessoas sérias em torno de qualquer um, de Charcot e dos outros, para explicar a mística, eram histórias de sexo . . Y Mas se vocês olharem de perto, não é isso, não é isso de modo algum. É talvez isso que nos faça perceber o que tem a ver com o Outro, esse gozo que se experimenta e do qual nada se sabe. Mas não será isso que nos põe no caminho da ex-sistência"? E por que não interpretar uma face do Outro, a face de Deus, pois foi por aí que abordei o assunto, há pouco, uma face de Deus como sustentada pelo gozo feminino, hem? Como tudo isso se produz, graças ao ser da significância, e como esse ser não tem outro lugar senão o lugar do Outro (Au tre), que eu designo com um O maiúsculo, vê-se o estrabismo do que se produz. E assim também, enfim, que se inscreve a função do pai, na medida em que é a ela que se refere a cas­ tração. Vê-se, então, que isso não faz dois Deus, mas também não faz um só. Em outras palavras, não foi por acaso que Kierkegaard42 descobriu a existência numa pequena aventura de sedutor. E se castrando, é renunciando ao amor, que ele pensa alcançá-la. Mas talvez, afinal de contas, por que não? Regina, também ela talvez 11 ex-sistisse" . Esse desejo de um bem, em segundo grau, que não fosse causado por um pequeno a, era talvez por intermédio de Regina que ele tinha essa dimensão. Por hoje, é o bastante. .

11

41

Lacan diz aqui "de foutre", um termo chulo para indicar o sexo, mas muito comum no francês coloquial. É o equivalente em português a 'fada' ou 'foder'. (N.T.)

42

KIERKEGAARD, S. La Reprise. Paris: Flammarion, 1990. 155

Anexo I

-

Sobre a meiose

Lição 7 20 de fevereiro de 1973 A meiose constitui uma das etapas da reprodução sexuada. É um processo de divisão, pelo qual as células-filhas têm metade dos cromossomos da célula­ mãe, ou seja, um cromossomo, no lugar de um par de homólogos. A meiose é uma divisão idêntica para os dois gametas (passa-se de 2n a n cromossomos, sem perda de material cromossômico), mas seus produtos não são iguais no caso da espermatogênese e da ovogênese. Na ovogênese, a meiose produz um ovótide com n cromossomos e dois glóbulos polares que vão invo­ luir. No caso da espermatogênese um espermatócito com 2n produz quatro células com n cromossomos. Ao contrário do que propõe Lacan, a meiose não é uma subtração. Quando ele fala de "certos elementos" subtraídos, estaria evocando os glóbulos polares involuídos da ovogênese? A questão permanece aberta.

157

Anexo li - Sobre a saída de Jacques Lacan de Sainte Arme Lição 7 20 de fevereiro de 1973 Lacan não aceita o fato de que tenha sido 'excluído' de Sainte Arme. Ele se explicou a respeito dessa saída no texto "La méprise du sujet supposé savoir": Esse lugar de Deus-Pai, aquele que designei como o Nome-do-Pai e que me pro­ punha a ilustrar no que devia ser meu décimo terceiro ano de seminário (décimo primeiro em Sainte Arme), quando uma passagem ao ato de meus colegas psica­ nalistas me forçou a pôr um fim nele, após sua primeira lição.l

No dia 13 de outubro de 1963, Lacan foi eliminado da lista dos didatas, por força da "Diretiva" de Estocolmo, contudo ele permanecia como membro da S.F.P. e, portanto, membro da I.P. A. Em 20 de novembro de 1963, pronunciou a única lição do seminário anunciado: Les-noms-du-pere. Na noite de 20 a 21 de novembro de 1963, Lacan escreveu a primeira carta a Louis Althusser, na qual lhe anunciava ter posto um fim em seu seminário: "Pus um fim nesse seminá­ rio, onde tentava, há dez anos, traçar as vias de uma dialética cuja invenção foi para mim uma tarefa maravilhosa." Graças à intervenção de Althusser, Lacan obteve de Fernand Braudel um cargo de mestre de conferência na École Pratique des Hautes É tudes e pôde fazer seu seminário na É cole Normale Supérieure, na sala Dussane (Cf. ROU­ DINESCO, É . Jacques Lacan. Paris: Fayard, 1993, p. 395) . A primeira lição do seminário Les quatre concepts de la psychanalyse ocorreu em 14 de janeiro de 1964, quando ele fala da "excomunhão" . Lacan retoma a Sainte Arme em 1971, para uma série de lições que se inti­ tularam: Le savoir du psychanalyste (inédito). No dia 3 de fevereiro de 1972 ele o formula assim: "Eu lhes disse que foi aqui que, a pedido de um de meus alunos, aceitei falar de novo este ano, pela primeira vez, desde 1963."

1

LACAN, J. "La méprise du sujet supposé savoir" . In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 337. 159

Anexo III - Sobre o Amor cortês Lição 7 20 de fevereiro de 1973 Lacan, nesse seminário de 20 de fevereiro de 1973, introduz o amor cortês a partir do grande Outro. Em 1960, particularmente na aula de 10 de fevereiro, ele apresenta o amor cortês como uma criação poética e, como tal, articulada à sublimação. Para abordar o estatuto do objeto do amor cortês, ele se serve então da anamorfose, uma invenção que surge três séculos depois do amor cortês (com Leonardo da Vinci, Dürer, Holbein). Lacan desenvolve assim as características do amor cortês: criação poética surgida na Idade Média (séculos XII-XIII), cantada em língua vulgar pelos tro­ vadores, tendo como objeto, como ideal, a Dama, sempre inacessível e repre­ sentando mais do que possuindo as virtudes cantadas pelo trovador. Mas é ela quem estabelece, de modo arbitrário, as provas que exige de seu servidor: lealdade, conduta exemplar, que devem trazer a este, como recompensa, a cle­ mência, a graça, a felicidade . . . de uma certa presença do outro, mas jamais o objeto cobiçado, sempre inacessível. Essa forma de sublimação, Lacan a considera em relação à estrutura: o objeto desse amor se apresenta sob a forma da privação, pois não há possibi­ lidade de cantar a Dama a não ser com o pressuposto de uma barreira, que a cerca e a isola. Está nisso o ponto central da sublimação, onde o que o homem demanda, o que não pode senão demandar, é ser privado de algo de real. A poesia cortês produz, segundo o modo da sublimação, um "objeto enlouque­ cedor", "um parceiro desumano". É então que Lacan utiliza a anamorfose para ilustrar esse amor. Pode-se salientar que, no que se refere ao amor cortês, Lacan passou, de 1960 a 1973, do registro da sublimação e da função narcísica, ao registro do gozo. - Pierre Rousselot S.J. é citado por Lacan, nessa mesma lição de 20 de feve­ reiro de 1973. Ele desenvolve a distinção entre a concepção física e a concepção 161

Encare

extática do amor, na tese que apresenta, em 1908, na Sorbonne, com o título: Pour l'histoire du probleme de l'amour au Moyen-âge. Paris: Vrin, 1981. Duas concepções do amor dividem os espíritos na Idade Média; podem ser cha­ madas de concepção física e concepção extática. Física, é claro, não significa aqui corporal: os defensores mais decididos dessa maneira de ver não olham o amor sensível senão como um reflexo, uma fraca imagem do amor espiritual. Físico sig­ nifica natural, e serve aqui para designar a doutrina daqueles que baseiam todos os amores reais ou possíveis na necessária propensão que têm os seres da natu­ reza para buscar seu próprio bem. Para esses autores, há entre o amor de Deus e o amor de si próprio uma identidade inata, embora secreta, que faz dele a dupla expressão de um mesmo apetite, o mais profundo e o mais natural de todos, ou, melhor dizendo, o único natural. Essa maneira de ver é, por exemplo, a de Hugues de Saint-Victor, em seu tratado

Sacramentis; é a de São Bernardo, em Diligendo deo;

ela encontra um apoio muito firme nas teorias neoplatônicas de Pseudo-Dionísio, o Areopagita. Foi, enfim, precisada e sistematizada por Santo Tomás de Aquino que, inspirando-se em Aristóteles, extrai daí o princípio fundamental, mostrando que a unidade (mais do que a individualidade), é a razão de ser, a medida e o ideal do amor; ele restabelece, com isso, a continuidade perfeita entre o amor de concu­ piscência e o amor de amizade. A concepção física poderia ainda ser chamada de concepção grecotomista. A concepção extática, ao contrário, está tanto mais presente num autor, quanto mais ele procura cortar todas as amarras que parecem unir o amor pelo outro às inclinações egoístas: o amor, para os que defendem essa escola, será tanto mais perfeito, tanto mais amor, quanto mais ele colocar o sujeito 'fora dele mesmo'. Por conseguinte, o amor perfeito e verdadeiramente digno desse nome requer uma real dualidade de termos: o modelo do verdadeiro amor não é mais, como para os autores precedentes, aquele que todo ser da natureza tem, necessariamente, por ele mesmo. O amor é, ao mesmo tempo, extremamente violento e extrema­ mente livre: livre, porque não se poderia encontrar para ele outra razão, senão ele mesmo, independente que é dos apetites naturais; violento, porque ele vai de encontro a esses apetites, porque os tiraniza, parece que só pode ser satisfeito pela destruição do sujeito que ama, por sua absorção no objeto amado. Sendo tal, ele não tem outro fim senão ele mesmo, tudo no homem lhe é sacrificado, até a feli­ cidade e até a razão. A concepção extática do amor foi exposta, com arte, fervor e sutileza infinitos por alguns daqueles místicos perdidamente dialéticos que foram as figuras mais originais do século XII; encontramo-la em Saint-Victor, na Ordem dos Cistercienses, na escola de Abelardo e alguns vestígios seus podem ser reco­ nhecidos na escolástica dos Franciscanos .

- Étienne Gilson, em sua obra La théologie mystique de Saint Bernard, refe­ re-se várias vezes à tese do Padre Rousselot: Pour l'histoire du probleme de l'amour

au moyen-âge. 1 62

Lição 7 - 20 de fevereiro de 1 9 73 - Anexo III

Analisando os textos de São Bernardo sobre a questão da "unidade do espí­ rito", Gilson diz o seguinte: "Poder-se-ia então dizer do homem que ele tende, de fato, pelo amor, a tornar-se invisível, pois essa imagem de Deus só será ple­ namente ela mesma quando não se puder ver nela nada além de Deus . . . " Essa conclusão remete à seguinte nota:

O Padre Rousselot bem viu que deve

ser assim em São Bernardo. Não há mais

suum, o ser é esvaziado de si mesmo; o homem que ama Deus se transportou ao

centro de tudo, ele não tem mais outras inclinações a não ser a do Espírito abso­ luto, ele deve amar, de todas as maneiras, o que é melhor; ele é como identificado à Razão pura. Deixemos de lado uma terminologia que faz do Deus charitas uma Razão pura; isso não passa de detalhes.

O que é importante é saber o que se entende por suum. Se

cometermos a imprudência de subentender aí a personalidade mesma do extático, seremos levados, como o Padre Rousselot, a opor a concepção dita " extática" à que ele chama de "grecotomista", e a destruir, além disso, a unidade do pensamento cisterciense. Se é o falso suum, o da dessemelhança que é eliminado, é claro que o mais extático dos amores não exclui nem a substância da parte enquanto tal, nem a inclusão do amor que a parte tem por si mesma, naquele que ela tem pelo todo. Ela só se ama, então, por Deus.

O que se deve acrescentar é que, nesse caso, as expres­

sões 'parte' e 'todo' só podem significar 'imagem' e 'modelo', observação que vale tanto para Santo Tomás quanto para São Bernardo. A oposição que se quer estabe­ lecer entre as duas escolas, sobre esse ponto, tem como primeiro resultado arruinar a coerência de uma e de outra; suas diferenças são reais, mas estão em outro lugar, e são incomparavelmente menos profundas do que teria sido aquela.1

1

GILSON, É. La théologie mystique de Saint Bernard. Paris: Vrin, 1934, p. 70. 1 63

Anexo IV - Teresa D' Ávila1 Lição 7 20 de fevereiro de 1973 Para sustentar e apoiar seu desenvolvimento sobre o gozo, Lacan propõe que se vá ver, em Roma, a estátua de Teresa D' Ávila, feita por Bernini (1598-1680). O testemunho escrito, deixado por Teresa D' Ávila em O livro da vida e em O castelo interior, interroga esse saber de que fala Lacan. Nesses textos, escritos a pedido de seus confessores e de alguns teólogos, ela tenta explicar a natureza de seus arrebatamentos, de seus êxtases, para que eles entendam que não se trata de uma obra do diabo. Esses textos também têm um fim pedagógico e de orientação religiosa para as irmãs de sua congregação. Teresa não é uma mulher letrada nem uma teóloga. Ela comunica suas experiências com a ajuda de metáforas e das imagens tiradas da vida de todos os dias, mas, sobretudo, com uma crença, com uma fé inabalável em sua ver­ dade: "O que eu sei bem, é que digo a exata verdade", e ela confia essa verdade ao saber dos homens da Igreja, os únicos que tinham o poder e o dever de con­ firmar ou de rejeitar a validade de seus dizeres. Teresa repete com frequência: "Eu me submeto, por tudo o que direi, ao jul­ gamento daqueles que me mandam escrever e que são homens de um grande saber. Se eu afirmar alguma coisa que não estiver em conformidade com o ensi­ namento da Santa Igreja católica romana, será por ignorância, e não por malícia: isso é certo" . Que pensar então dessa oposição saber/verdade? Eis a maneira pela qual ela comunica suas experiências místicas, em O livro da vida e em O castelo interior: Voltemos agora aos arrebatamentos, quando eles acontecem em condições ordiná­ rias. Muitas vezes meu corpo me parecia ter ficado leve ao ponto de não ter mais peso; por vezes eu não conseguia mais sentir, de certa forma, meus pés tocarem o chão. No momento mesmo do arrebatamento, o corpo muitas vezes fica como morto e numa total impotência; ele permanece na posição em que foi surpreen1

Avila 1515 - Alba de Tormes 1582. 1 65

Encare dido, de pé ou sentado, com as mãos abertas ou fechadas. É raro perder consciên­ cia. No entanto, aconteceu-me algumas vezes de perdê-la completamente; mas eu repito: só aconteceu raramente e por pouco tempo. Habitualmente, a consciência

que se tem não é bem nítida. ( . . . ) Não quer dizer que se perceba e se ouça quando o arrebatamento está em seu ponto culminante - chamo de ponto culminante o

ponto em que as forças são suspensas, devido a sua íntima união com Deus - pois então, a meu ver, não se vê, não se ouve, não se sente mais. ( . . . ) Essa transformação

total da alma em Deus dura pouco, mas enquanto ela dura, nenhuma força tem o sentimento de si mesma nem sabe o que se passa ali. Não convém, sem dúvida, que tenhamos conhecimento disso nesta vida terrestre; pelo menos, não apraz a Deus no-la dar: talvez não sejamos capazes de recebê-la. Eu falo pelo que eu experimentei.2

(. . . ) Graças tão elevadas fazem nascer na alma um desejo tão intenso de possuir plena­ mente aquele que a gratifica, que a vida para ela não é mais do que um martírio, mas um martírio delicioso. Sua sede da morte é inexprimível; por isso, é com lágrimas que ela pede continuamente a Deus para tirá-la desse exílio.

( ... ) O amor

tornou essa alma de uma sensibilidade tal que com a mínima coisa que venha inflamar seu fogo, ela alça voo. Assim, os arrebatamentos são contínuos nessa Morada, sem que se possa evitá-los mesmo em público, e as perseguições, as crí­ ticas logo chovem.3

2 D'ÁVILA, T., "Le livre de la vie". In: CEuvres completes. Paris: Les É ditions du Cerf, 1995, p. 147. 3

D'AVILA, T., "Le château intérieur" . In: CEuvres completes, op. cit., p. 1095. 1 66

Lição 8 13 de março de 1973

3:x

<J>x

3x


Vx

x

Vx

x

S(J,.) a

Depois do que acabei de pôr no quadro, vocês poderiam acreditar que sabem tudo. É preciso justamente evitar isso, porque vamos hoje tentar falar do saber, desse saber que, na inscrição dos discursos - aqueles que eu acreditei poder exemplificar-lhes como suporte do laço social - eu escrevi 52 para simbo­ lizar esse saber. Talvez eu consiga fazê-los perceber por que isso vai mais longe do que uma secundariedade, com relação ao significante puro, aquele que se inscreve com o 5 1 , por que isso é mais do que uma secundariedade, é uma desarticulação fundamental.1 De todo modo, já que tomei o partido de lhes dar o suporte dessa inscrição no quadro, vou comentá-la, brevemente, eu espero. Aliás, devo confessar-lhes que não a escrevi em nenhum lugar, não a preparei em nenhum lugar, ela não me parece exemplar senão, como de hábito, para produzir mal-entendidos. Entretanto, já que, em suma, a situação que resulta de um discurso como o analítico, que visa o sentido, é perfeitamente claro que eu só posso dar a cada 1

A Versão 1 traz aqui: "une désarticulation fondamentale" como foi traduzido acima; a Versão 2 traz aqui: "une des articulations fondamentales" ("uma das articulações fundamentais"), formas que têm pronúncia semelhante, em francês. A versão publicada (op. cit., p. 73) suplime esta frase e introduz aqui uma separação: Parte 1. (N.T.) 167

Encare

um de vocês o que, de sentido, vocês estiverem em vias de absorver, e isso tem um limite. 2 Isso tem um limite que é dado pelo sentido em que vocês vivem, e pode-se dizer que não é excessivo dizer que ele não vai longe. O que o discurso analítico faz surgir é justamente a ideia de que esse sentido é de semblant. Se ele indica, se o discurso analítico indica que esse sentido é sexual, só pode ser, justamente, eu direi, para dar a razão de seu limite. Não há última palavra em lugar nenhum, a não ser no sentido em que mot (palavra) significa motus ('nem uma palavra', 'silêncio')3 já insisti nisso. "Pas de réponse, mot" diz em algum lugar La Fontaine,4 se bem me lembro. O sentido indica muito precisamente a direção na qual ele fracassa. Isto posto, o que deve preservar vocês - até o ponto em que eu puder avan­ çar minha elucidação este ano - de compreender depressa demais o que é sus­ tentado por essa inscrição, a partir daí, isto é, tomadas todas as precauções que são de prudência, de cppÓVf]atÇ/ phronesis, como se exprime na língua grega - na qual muitas coisas foram ditas, mas ficaram longe, em suma, do que o discurso analítico nos permite articular - tomadas, pois, essas precauções de prudência, eis aproximadamente o que está inscrito no quadro: Relembramos os termos proposicionaís, no sentido matemático, mediante o que, quem quer que seja dos seres falantes se inscreve à esquerda, ou então à direita. Essa inscrição está dominada pelo fato de que, à esquerda, o que corres­ ponde a 'todo homem', é pela função dita ct>x que ele faz, como todo, sua inscri­ ção: V x . ct>x. Só que essa função encontra seu limite na existência de um x, pelo qual a função ct>x é negada: :3x . x. É o que chamamos de função do pai, de onde procede, em suma, por essa negação da proposição ct>x, o que funda o exercício do que faz suplência à relação sexual - na medida em que esta não é de modo algum inscritível - faz suplência a ela pela castração. O todo repousa então aqui sobre a exceção, colocada como termo sobre o que, esse ct>x, o nega integralmente. Ao contrário, do outro lado, vocês têm a inscrição daquilo que, para uma parte dos seres falantes (a parte mulher) e, da mesma forma, para qualquer ser 2 A versão publicada (op. cit., p. 74) tem outra pontuação para o período. (N.T.) 3

Em francês, mot (palavra) dá origem a motus, latinização de mo( que significa: 'silêncio', 'nem uma palavra' . (N.T.)

4 A forma exata é: "point de réponse, mot" ("nenhuma resposta, silêncio"), e se encontra na fábula "L'âne et le chien" ("O asno e o cão"). Ver em Les fables de Jean de La Fontaine, livro VIII, no site: www.jdlf.com/lesfablesjlivreviii/laneetlechien. (N.T.) 168

Lição 8

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13 de março de 1973

falante, como está formulado expressamente na teoria freudiana. A qualquer ser falante é permitido, quem quer que ele seja, provido ou não dos atributos da masculinidade - atributos que restam a determinar - provido ou não desses atributos, inscrever-se do outro lado. E o modo pelo qual ele se inscreve aí é justamente o de não permitir nenhuma universalidade, de ser esse 'não todo', na medida em que ele tem a escolha, em suma, de se colocar no x ou de não fazer parte dele. São essas as únicas definições possíveis da parte dita homem ou então mulher, para aquele que vem a se encontrar nessa posição de habitar a linguagem. Abaixo, sob a barra transversal, onde se cruza a divisão vertical do que é chamado impropriamente de humanidade, na medida em que ela se repartiria em identificações sexuais, vocês têm a indicação escandida daquilo de que se trata. Ou seja, no lugar do parceiro sexual, do lado do homem, desse homem que, certamente não para privilegiá-lo, de modo algum, eu inscrevi aqui com o S e com esse que o sustenta como significante - esse , que também se encarna no 51, por ser dentre todos os significantes aquele que, paradoxalmente, desempenhou o papel que, da função,5 no x, é justamente esse significante do qual não há significado que, quanto ao sentido (sens), simboliza seu fracasso. E o mi-sens, que é a indé-sens por excelência ou, se vocês quiserem a réti-sens.6 Esse S assim duplicado por esse significante do qual, em suma, ele nem mesmo depende, esse S nunca tem de lidar, enquanto parceiro, senão com esse a ins­ crito, como tal, do outro lado da barra. Não lhe é dado alcançar esse parceiro que é o Outro (Autre), com maiúscula, a não ser por intermédio disso: que ele é a causa de seu desejo. Mas a esse título - como o indica em outro lugar, em meus grafos, a conjunção apontada desse S e desse pequeno a - ele nada mais é do que fantasma (S O a). Esse fantasma constitui também, para esse sujeito, na medida em que ele está preso nele, como tal, o suporte do que é chamado expressamente, na teoria freudiana, de princípio de realidade. O que eu abordo este ano é muito precisamente aquilo que a teoria, a articu­ lação teórica de Freud, e muito precisamente o que em Freud é deixado de lado 5

Esta frase está suprimida na versão publicada (op. cit., p. 74) . A que traduzimos vem da Versão 1 ("a joué le rôle que, de la fonction ... ). (N.T.) "

6

A tradução não recupera, infelizmente, o jogo de palavras que Lacan cria a partir de sens (sen­ tido): mi-sens (meio sentido); indé-sens (por homofonia com indécence indecência); réti-sens (por homofonia com réticence reticência). (N.T.) =

=

1 69

Encare

expressamente, de uma maneira confessada, o was will das Weib? "o que quer a mulher?" que a teoria de Freud, como tal, expressamente confessa ignorar. Freud afirma que só há libido masculina. O que dizer disso, senão que um campo que, de todo modo, não é sem importância (se acha assim ignorado)?7 Aquele de todos os seres que, como se diz, por assumirem - se podemos dizer assim, e se é que esse ser assume o que quer que seja de seu destino - o que se chama impropria­ mente de . . . ('A' mulher), pois eu lhes lembro o que já assinalei na última vez, é que esse A de A mulher (La femme), a partir do momento em que ele só se enuncia por um 'não todo', não pode ser escrito, pois só existe aqui barrado: JÁ mulher (Lá femme). Esse Lá, expressamente, é o que tem relação, o que eu lhes ilustrarei hoje, pelo menos eu espero, com esse significante do grande Outro enquanto barrado, S(JÁV na medida em que esse lugar do Outro, ali, onde vem se inscrever tudo o que pode se articular do significante é, no seu fundamento, pela sua natureza, tão radicalmente o Outro, que é esse Outro que importa interrogar. Se ele não é simplesmente esse lugar onde a verdade balbucia, esse Outro merece, de algum modo, representar aquilo a que JÁ mulher tem relação, como na última vez eu lhes disse, de um modo de certa forma metafórico. Desde o início, do qual se articula o inconsciente, JÁ mulher - e certamente só temos disso testemunhos esporádicos, por isso os tomei em sua função de metáfora - tem fundamentalmente essa relação ao Outro por estar, na relação sexual, relacionada ao que se enuncia, ao que pode ser dito do inconsciente, radical­ mente o Outro. Ela é o que tem relação a esse Outro, e é isso que eu gostaria hoje de tentar articular mais de perto. E ao significante desse Outro, na medida em que, como Outro, ele só pode permanecer sempre Outro. Certamente, aqui só podemos proceder por um trilhamento tão difícil que não é possível apreen­ der nenhum.9 E é por isso que, me aventurando, como faço cada vez, diante de vocês, só posso aqui supor que vocês evocarão - e, para tanto, preciso lembrar­ lhes - que não há Outro do Outro. É por isso que esse significante, com esse parêntese aberto, marca esse Outro como barrado S(JÁ). 7

8

9

Este complemento, que falta nas Versões 1 e 2, é acrescentado na versão publicada (op. cit., p. 75). (N.T.) A língua portuguesa permite, por sorte, que essa relação de Lú femme ao A se faça na própria escrita: A mulher. (N.T.) As Versões 1 e 2 trazem a frase traduzida acima: " il (n')est possible d'en appréhender aucun" que foi inteiramente suprimida na versão publicada (op. cit., p. 75) . (N.T.)

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Como podemos abordar, conceber que essa relação ao Outro possa ser, em algum lugar, o que determina aquilo a que uma metade - pois grosso modo é essa a proporção biológica - a que uma metade do ser falante se refere? E, no entanto, o que está escrito no quadro, por essa flecha que sai desse A (Amulher) que não pode ser dito. Nada pode ser dito de A mulher. A mulher tem uma relação com esse S de A barrado S(A), por um lado e é já nisso que ela se des­ dobra, que ela é 'não toda', já que por outro lado ela pode ter essa relação com esse


1 71

Encare

ponto de vista de que se trata aqui, precisamos qualificar todos de gadgets, aos quais vocês são agora sujeitos, infinitamente mais longe do que pensam. Todos esses instrumentos, Deus meu, do microscópio à rádio-televisão, tornam-se ele­ mentos da existência de vocês. Isso é algo cujo alcance vocês não podem nem mesmo avaliar atualmente, mas não deixa de fazer parte do que eu chamo de discurso científico, na medida em que um discurso é o que determina, como tal, uma forma completamente renovada de laço social. A junção que não se faz é a seguinte: o que chamei há pouco de subversão do conhecimento é indicado pelo fato de que, até então, nada do conhecimento, é preciso dizê-lo, foi concebido, sem que nada do que se escreveu sobre esse conhecimento participasse - e não se pode nem mesmo dizer que os sujeitos da teoria antiga do conhecimento não o tenham sabido - sem que nada dessa teoria participasse, digo eu, do fantasma de uma inscrição do laço sexual. Os termos ativo e passivo, por exemplo, que dominam, pode-se dizer, tudo o que foi cogitado das relações da forma e da matéria, essa relação tão fun­ damental à qual se refere cada passo de Platão e, depois, de Aristóteles, com respeito, digamos, ao que é da natureza das coisas, é visível, é palpável a cada passo desses enunciados, que o que os sustenta é um fantasma, por onde se tenta suprir o que de modo algum pode ser dito - é isso que eu lhes proponho como dizer12 - ou seja, a relação sexual. O estranho é que, de todo modo, no interior dessa grosseira polaridade, aquela que da matéria faz o passivo, da forma, o agente que o anima, algo, mas algo de ambíguo passou, ou seja, essa animação não é nada mais do que esse pequeno a cujo agente anima o quê? Ele não anima nada, ele toma o outro por sua alma.13 Mas, por outro lado, se seguirmos o que progride, ao longo do tempo, da ideia de um ser por excelência, de um Deus que está bem longe de ser conce­ bido como o Deus da fé cristã14 pois, como vocês sabem, é o motor imóvel, a esfera suprema, na ideia de que o Bem é esse algo que faz com que todos os outros seres, menos seres do que aquele, não possam ter outro objetivo senão o de serem o mais ser que possam ser, aí está todo o fundamento da ideia do Bem nessa É tica de Aristóteles, sobre a qual não foi sem motivo que lhes lembrei 1 2 A versão publicada (op. cit., p. 76) suprime esta frase intercalada. (N.T.) 13 Em latim: alma

=

anima, o que permite jogar com a homofonia do verbo " anima". (N.T.)

14 A versão publicada (op. cit., p. 76) introduz aqui: "mas o de Aristóteles". (N.T.)

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que, não somente eu a havia tratado, mas os incitava a se referirem a ela, para entender seus impasses. Acontece, de todo modo, que esse algo - se acompanharmos o suporte dessas inscrições no quadro - revela-se que, de todo modo, é nessa opacidade do que na última vez designei expressamente como o gozo desse Outro, desse Outro na medida em que poderia sê-lo, se ela existisse, A mulher, é no lugar do gozo desse Outro que é designado esse ser mítico - mítico manifestamente em Aristóteles - do Ser Supremo, da esfera imóvel de onde procedem todos os movimentos, quaisquer que sejam: mudanças, gerações, movimentos, transla­ ções, aumentos etc. Como fazer para abordar, nessa ambiguidade, abordar em suma, interpre­ tando-o, interpretando-o segundo o que é nossa função no discurso analítico, ou seja, registrar, escandir o que pode ser dito como caminhando para o fracasso, na formulação da relação sexual, senão se conseguirmos dissociar isso:15 é enquanto seu gozo é radicalmente Outro que, em suma, A mulher tem mais relação com Deus do que tudo o que se pode dizer, seguindo a via do que manifestamente, em toda a especulação da antiguidade, só se articula como o Bem do homem. Em outros termos, se nós pudermos - o que é nosso fim, o fim de nosso ensina­ mento, na medida em que ele persegue o que se pode dizer e enunciar do dis­ curso analítico - dissociar esse pequeno a e esse grande A, reduzindo o primeiro ao que é do imaginário, e o outro, ao que é do simbólico. Que o simbólico seja o suporte do que foi feito Deus, está fora de dúvida; que o imaginário é o que é sustentado por esse reflexo do semelhante ao semelhante, é o que é certo. Como, em suma, esse pequeno a, por se inscrever logo abaixo desse S(A), nessa inscrição no quadro, pôde16 até certo termo, se prestar a confusão, e isso muito exatamente por intermédio da função do ser, é seguramente por isso que algo resta a ser descolado, cindido e, precisamente, nesse ponto em que a psicanálise é outra coisa e não uma psicologia. A psicologia é essa cisão ainda não feitaY 15 A versão publicada (op. cit., p. 77) suprime a frase acima. (N.T.)

1" Nas versões 1 e 2: "ait pu" (literalmente: "tenha podido") não parece se adequar à lógica da frase. Pode ter havido um corte na gravação. A versão publicada (op. cit., p. 77) traz aqui: "Et pourtant, a a pu prêter à confusion avec le S(JA.)" ("No entanto, a pôde se prestar a confusão com o S(!A.)") . (N.T.) 17 Nas Versões 1 e 2: "scission non encare faite". A versão publicada (op. cit., p. 77) traz aqui: "scis­ sion inaccomplie" ("cisão não cumprida") e introduz no texto uma separação: Parte 3. (N.T.)

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Encare

E então, para me repousar, vou me permitir, Deus meu, transmitir-lhes não digo propriamente ler para vocês, porque nunca estou certo de ler o que quer que seja - mesmo assim, ler para vocês o que há algum tempo eu escrevi, justamente sobre o quê? Escrevi somente de onde é possível que se fale de amor, pois, falar de amor, só se faz isso no discurso analítico ... E após a desco­ berta do discurso científico, como não sentir, ver, claramente, que é uma perda de tempo, muito exatamente uma perda de tempo, diante de tudo o que se pode articular de científico . . . Mas o que o discurso analítico traz, e é talvez isso, afinal, a razão de sua emergência num certo ponto do discurso científico, é que falar de amor é, em si, um gozo. O que se confirma seguramente por esse efeito, efeito tangível que, dizer não importa o quê - a própria norma do discurso do analisante - é o que leva ao Lustprinzip, o que leva a isso do modo mais direto, sem ter nenhuma neces­ sidade desse acesso às esferas superiores, que é o fundamento da ética aristo­ télica, como eu evocava há pouco, brevemente, na medida em que, em suma, ele não se funda senão da coalescência, senão da confusão desse pequeno a com o S de A barrado: S(AV8 Ele só é barrado, é claro, por nós. Isso não quer dizer que baste barrá-lo para que nada dele ' ex-sista'. E certo que, se por esse S(A) eu designo nada mais do que o gozo d' A mulher, com toda a certeza é porque é aí que eu aponto que Deus ainda não saiu de cena. Então, eis aproximadamente o que eu escrevia para vocês, eu lhes escrevia, em suma, a única coisa que se possa fazer de um pouco sério, a carta de amor. Os pressupostos psicológicos, graças aos quais tudo isso durou tanto tempo, pois bem, sou daqueles que não lhes conferem uma boa reputação. Não se vê, porém, por que o fato de ter uma alma seria um escândalo para o pensamento, se fosse verdade. Se fosse verdade, a alma não poderia ser dita - foi isso que eu lhes escrevi - senão pelo que permite a um ser, ao ser falante, para chamá-lo por seu nome, suportar o intolerável de seu mundo, o que a supõe estranha a ele, isto é, fantasmática. O que, essa alma, não a considera aí, nesse mundo, senão 18 Esta longa frase ficou problemática nas Versões 1 e 2, que trazem, na parte final: "en tant qu 'en somme 'elle' ne se fonde que de la coalescence... " (esse 'ela' remeteria, no caso, à ética aristotélica). Traduzimos acima a partir da audição da gravação, onde Lacan diz: "en tant qu'en somme 'il' ne se fonde que.. . (esse 'ele' remetendo au Lustprinzip). A versão publicada (op. cit., p. 78) suprime parte do parágrafo acima, e escreve a última frase da seguinte forma: "Le Lustprinzip, en effet, ne sefonde que de la coalescence du a avec le S(A)" ("O Lustprinzip, com efeito, não se funda senão pela coalescência do a com o S(A)").(N.T.)

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por sua paciência e sua coragem em enfrentá-lo, e tudo isso se afirma pelo fato de que, até nossos dias, ela, a alma, nunca teve outro sentido. Pois bem, é aí que o francês deve me trazer uma ajuda, não como acontece em 11 alíngua", algumas vezes, de homonímia, desse d'eux com o deux, desse peut com peu, il peut peu,l9 que de todo modo está ali para nos servir de alguma coisa e é aí que " alíngua" serve. A alma (l'âme), em francês, no ponto em que estou, não pode me servir senão para dizer que é o que se "alma" (ce qu 'on âme) : eu alma", tu " almas", ele " alma" (j'âme, tu âmes, il âme). Vocês veem que, no caso, só podemos nos servir da escrita, mesmo incluindo aí: jamais/j'âmais. 20 Sua existência, pois, a da alma, pode certamente ser questionada - é o termo próprio para se perguntar se isso não é um efeito do amor. Tanto é que, efetivamente, 11 a alma a(l)ma a alma" (l'âme âme l'âme), não há sexo nessa his­ tória, o sexo aí não conta. A elaboração da qual ela resulta é 11homensexual" (hommosexuelle),21 como é perfeitamente legível na história. E o que eu disse há pouco dessa coragem, da paciência para suportar o mundo, é o verdadeiro correspondente do que faz um Aristóteles chegar a isso, em sua busca do Bem: como não podendo ser feito senão admitindo-se que em todos os seres que estão no mundo - já há bastante seres internos, se posso exprimir-me assim - eles não podem, esse ser, orientá-lo para o ser maior, senão confundindo seu bem, seu bem próprio, com aquele mesmo do qual se irradiaria o Ser Supremo. Que no interior disso, ele nos evoque a cpvd.a/philia, como representando a possibilidade de um laço de amor entre dois desses seres, está bem aí o que, ao manifestar a tensão para o Ser Supremo, pode também se inverter, do modo como eu o exprimi, ou seja, que é pela coragem de suportar essa relação intolerável com o Ser Supremo que os amigos, os cpiÀ01/philoi, se reconhecem e se escolhem. O fora-sexo (hors-sexe) dessa ética é manifesto, a tal ponto que eu gostaria de lhe dar a ênfase que Maupassant lhe dá, enunciando, em algum lugar, esse estranho termo do Horla. 22 O Horsexe, esse é o homem sobre o qual a alma especulou. É isso. 11

19 Pares de homônimos, em francês: d'eux (deles)/ deux (dois); il peut peu (ele pode pouco) . (N.T.) 20 Série de palavras criadas, em francês, a partir de âme (alma), ou seja, o verbo " âmer", referência aímer (amar), e a nova grafia de jamais: "j'âmaís". Para o português, como não há homofonia perfeita, não vale o comentário final " só podemos nos servir da escrita". (N.T.) 21 Em francês, a diferença na escrita de hommosexuel, com mm, remete a homme (homem): "homensexual", sentido que se associa ao de homo (o mesmo, o semelhante) . (N.T.) 22 Le Horla, conto fantástico de Guy de Maupassant, escrito em 1887. Fala de um homem perse­ guido por uma presença invisível, uma 'coisa' apavorante, que bebia a água e o leite deixados 1 75

Encare

Mas acontece que as mulheres também são " almorosas", o que significa que elas " a lmam a alma". O que pode vir a ser essa alma que elas almam" no par­ ceiro que, no entanto, é hommo23 até não poder mais, situação da qual elas não se livrarão? Isso só pode, efetivamente, conduzi-las a esse termo último, e não é à toa que eu o chamo de uon:pta/ usteron com se diz em grego, histeria, ou seja, se fazerem de homem, como eu disse, serem por este fato "homensexuais", se posso me exprimir assim, ou horsexe (fora-sexo), elas também. É difícil, para elas, não sentirem desde então o impasse que consiste em que elas se " mesmam"24 no outro, pois afinal não há necessidade de se saber outro para ser como ele. Pois ali, de onde a alma vem a ser,25 diferencia-se dela, a mulher, e isso de origem, não é? A gente a diz mulher (" on la dít-femme/ díffâme").26 O que de mais notável restou das mulheres na história é, propriamente falando, tudo o que se pode dizer delas de infamante. É verdade que resta a homa de Camé­ lia, mãe dos Gracos.27 Mas é justamente o que para nós outros, analistas - não preciso falar de Camélia, da qual os analistas pouco se lembram - mas falem a um analista de uma Camélia qualquer e ele lhes dirá que isso não trará muito êxito para seus filhos, os Gracos"! Eles terão de se fazer de " gracos" até o fim de sua existência.28 11

11

ao lado de sua cama, durante a noite, movia objetos diante dele e que ele associou com a notí­ cia de algo estranho e amendrontador acontecido no Rio de Janeiro, de onde a ' coisa' podia ter vindo. A essa 'coisa' ele dá o nome de Horla. (N.T.) 23 A versão publicada (op. cit., p. 79) traz aqui a grafia homo, que remete apenas ao sentido de "o mesmo, o semelhante", não incluindo o sentido de homme (homem), como foi visto acima, na nota 20. (N.T.) 24 "Se mêment verbo criado por Lacan a partir de même (mesmo). (N.T.) 25

Há duas variantes desta frase. Nas Versões 1 e 2: "Puisque là, d'ou l'ame trouve à être " (tradução acima); na versão publicada (op. cit., p. 79): "Pour que l'âme fl·ouve à être... " ("Para que a alma venha a ser...") (N.T.)

26

Nesta forma criada por Lacan, "diffâme", é possível ler, em razão da homofonia: "dit femme" (diz mulher), " diffame" (difama), " âme" (alma) e "femme" (mulher), o que é impossível recupe­ rar na tradução. (N.T.)

...

27 Cornélia (189-110 a.C.), filha de Cipião, vencedor de Aníbal, casou-se com Tibério Semprônio Graco e teve dele dois filhos: Tibério e Caio. Letrada e culta, tida como modelo ideal da mãe romana, ficou viúva e dedicou a vida à educação dos filhos, no espírito de justiça. Foram elei­ tos tribunos sucessivamente, mas foram, ambos, assassinados. (N.T.)

e 2 trazem: "gracques", com minúscula, no sentido de ser 'como os Gracos', filhos de Cornélia. A versão publicada (op. cit., p. 79) traz aqui: "ils feront des craques", mas com essa

28 As Versões 1

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Era isso, o início de minha carta, era um divertimento (âmusement)! 29 Então, certamente, eu poderia ter feito ... eu fiz, aliás, mas não tenho tempo, sim, fiz uma nova alusão a esse amor cortês, a esse amor cortês onde, de todo modo, no ponto em que chegou, esse divertimento "homensexual" tinha caído na suprema decadência, nessa espécie de sonho mau impossível, dito da feu­ dalidade. Nesse nível de degenerescência política, é evidente que devia surgir alguma coisa, e essa alguma coisa era justamente a percepção de que a mulher. . . desse lado, havia algo que não podia mais funcionar d e modo algum. Então, a invenção do amor cortês não é, de todo, o fruto do que se tem o hábito de simbolizar, na história, com tese, antítese e síntese. Não há a menor síntese, bem entendido, nunca há. Tudo o que se viu, após o amor cortês, foi algo que brilhou assim, na história, como um meteoro que permaneceu comple­ tamente enigmático, e depois disso, o que se viu foi a volta de todo o bricabra­ que de um pretenso renascimento das antigas velharias. Sim, há aí um pequeno parêntese, é que quando um faz dois, nunca há volta, isso não resulta em fazer de novo um, mesmo um novo. A Aujhebung3° é ainda um desses lindos sonhos da filosofia. Muito evidentemente, se tivemos esse meteoro do amor cortês, foi evidentemente de um terceiro, caído de uma outra partição bem diversa, que veio esse algo, que devolveu tudo à sua futilidade primeira. Por isso, foi preciso outra coisa completamente diferente, foi preciso nada menos que o discurso científico - algo que não deve nada aos pressupostos da alma antiga - para que dele surgisse o que é a psicanálise, ou seja, a objeti­ vação de que o ser, por ser falante, passe ainda tempo a falar em pura perda, como eu lhes disse. Que passe ainda tempo a falar por esse ofício dos mais curtos - dos mais curtos, eu digo, pelo fato de que ele não vai mais longe do que o fato de estar ainda em curso,31 isto é, o tempo necessário para que isso ortografia, o sentido de craque em francês é 'mentira'. A grafia para 'craque', 'campeão', seria crack. (N.T.) 29 A grafia "amusement" supõe a junção de: amusement (divertimento) perde na tradução. (N.T.)

+

âme (alma), o que se

30

Palavra que pode ter sentidos opostos como 'supressão', 'conservação', como aparece em Hegel. No texto de Freud " A negação" (Die Verneinung), o termo Aujhebung der Verdriingung foi traduzido por Eduardo Vidal como 'suspensão do recalque' (Cf. Die Verneinung, "A nega­ ção". Revista da Escola Letra Freudiana n° 5. Rio de Janeiro: 1989, p. 10 e 20. (N.T.)

31

Notar a homofonia, em francês, entre court (curto) e cours (curso) . (N.T.) 1 77

Encare

se resolva, enfim - pois afinal é o que nos espera - para que isso se resolva, enfim, demograficamente. Fica bem claro que não é isso, de modo algum, que vai resolver as rela­ ções do homem com as mulheres. Foi esse o gênio de Freud, é que já que ele foi levado por essa virada, enfim, levou tempo, quero dizer, levou tempo para vir. Houve um Freud, é um nome que merece, não é? É um nome engraçado: Kraft durch freudige, é o som mais engraçado da santa farsa da história. A gente poderia, talvez, enquanto isso dura, ver aí uma pequena luz, uma pequena luz de algo que diria respeito ao Outro, na medida em que é com isso que tem a ver o A barrado de lA mulher.32 Há algo de essencial no que eu trago como complemento ao que foi bem visto pelas vias que isso esclareceria ver, o que foi visto só do lado do homem. Ou seja, que aquilo com que o homem tinha a ver, era com o objeto pequeno a, que toda sua realização dessa relação sexual conduzia ao fantasma, e vimos isso, é claro, a propósito dos neuróticos. Como os neuróticos fazem o amor? Foi daí que partimos. Sobre isso, é claro, não pudemos deixar de perceber que havia aí uma correlação com as perversões, o que vem apoiar meu pequeno a, pois o pequeno a, é ele que, quaisquer que sejam as ditas perversões, está pre­ sente como causa. Vimos primeiro isso, e já não foi pouco. O engraçado é que Freud as atribuiu primitivamente à mulher. É muito engraçado ver isso nos "Três ensaios" . É realmente uma confirmação, enfim, de que quando se é homem, se vê na parceira exatamente aquilo com que se sustenta a si mesmo, se posso exprimir-me assim, com que se sustenta narcisicamente. Felizmente, houve na sequência, por vezes, a ocasião de se perceber que as perversões, tal como são apreendidas na neurose - tal como se crê identificá-las - a neurose não é de modo algum isso. E o sonho, na neurose, e não a perversão, como eu entendo. Que os neuróticos não têm nenhuma das características do perverso, isso é certo, simplesmente, eles sonham com isso, o que é bem natu­ raL pois, sem isso, como alcançar o parceiro? Os perversos, começamos, de todo modo, a encontrar alguns deles, não é? Aqueles que Aristóteles não queria absolutamente ver, de modo algum?3 32 A versão publicada (op. cit., p. 80) traz aqui: "c'est à ça que la femme a à faire" ("é com isso que a mulher tem a ver"). (N.T.) 33

Como na versão publicada (op. cit.,p. 80): " ... qu'Aristote ne voulait voir à aucun prix" . As outras Versões trazem: ... qui ne voulaient absolument à aucun prix voir Aristote" ("que não queriam absolutamente, de modo algum ver Aristóteles"), que tem o sentido inverso. (N.T.) "

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Lição 8 - 13 de março de 1973

Vimos que há neles uma subversão da conduta, apoiada, se posso assim dizer, num saber-fazer, que está ligado inteiramente a um saber, e ao saber, Deus meu, da natureza das coisas, uma embreagem direta, se posso dizer assim, da conduta sexual, sobre - é preciso dizê-lo - o que é a verdade dessa conduta sexual, ou seja, sua amoralidade. Ponham 11 alma" aí, no início, se vocês quise­ rem: almoralidade" . Há uma moralidade - eis a consequência - uma moralidade da conduta sexual, que é o subentendido de tudo o que foi dito do Bem. Só que, à custa de dizer, de falar do bem, isso leva a Kant, onde a moralidade - em duas pala­ vras, desta vez - confessa o que ela é. E foi o que pensei que devia propor num pequeno artigo, II Kant com Sade", ela confessa que ela é Sade, a moralidade. Vocês escreverão Sade como quiserem, com S maiúsculo, para homenagear esse pobre idiota, que nos deu, sobre isso, escritos intermináveis; ou com um s minúsculo, para dizer que é, afinal de contas, a maneira dela de ser agradá­ vel, pois é uma antiga palavra francesa34 que quer dizer isso. Ou então, melhor ainda, com c cedilha 11 çade", ou seja, que a moralidade, de todo modo, é preciso dizê-lo, termina no nível do ça (isso), e isso é bastante curto. Em outras palavras, aquilo de que se trata é que o amor seja impossível, sim, e que a relação sexual se afunde no não sentido, o que não diminui em nada o interesse que devemos ter pelo outro.35 Isso porque, é preciso dizê-lo, a questão é a seguinte, no que constitui o gozo feminino: na medida em que ele não é todo ocupado pelo homem, e mesmo eu direi que, como tal, ele não o é de todo, a questão é saber justamente o que é do seu saber. Se o inconsciente nos ensinou tantas coisas, foi primeiro isso: em algum lugar, no Outro, isso sabe. Isso sabe, porque isso se sustenta justamente por esses significantes com os quais se constitui o sujeito. E aí que isso se presta a confusão, porque é difícil para quem alma" não pensar que tudo pelo mundo sabe o que tem a fazer. A esfera imóvel, com a qual se sustentava o deus aristo­ télico, que é pedida por Aristóteles para seguir seu Bem à sua imagem, se posso 11

11

34 O adjetivo sade representa a evolução do latim imperial sapidus, que significa " que tem gosto, sabor" e, no sentido figurado, " sábio e virtuoso", derivado do latim clássico sapere e que levou, por outro lado, através de uma forma popular, a sage (sábio). Esse adjetivo, que caiu em desuso no século XVII, foi usado no antigo e no médio francês, com o sentido próprio do latim, para qualificar o que é saboroso, agradável, falando das coisas, e encantador, gracioso, falando das pessoas. Dictionnaire Robert historique de la langue française. 35 A versão publicada (op. cit., p. 81) e a Versão 2 trazem aqui: Autre (Outro), com maiúscula. (N.T.) 1 79

Encare

assim dizer, é porque ela é suposta saber seu bem. Só que aí está justamente algo de que, afinal, a falha do discurso científico, eu não diria nos permite, nos obriga a prescindir. Não há necessidade nenhuma de saber o porquê daquilo de onde parte Aristóteles, no início ... Nós não temos mais necessidade nenhuma de imputar à pedra que ela sabe o lugar onde deve cair, para explicar os efeitos da gravitação. A imputação36 ao animal - isso é muito sensível em Aristóteles, no tratado "Da alma"37 - é essa ponta que faz do saber o ato por excelência de quê? - não se deve crer que Aristóteles estava tão por fora - de algo que ele vê como não sendo nada mais do que o corpo. Com a diferença que o corpo é feito para uma atividade, uma tw:pyaa/energeia, e que em algum lugar a entelechia38 desse corpo pode ser sustentada por essa substância que ele chama de alma. A análise, a esse respeito, se presta a confusão por nos restituir a causa final, por nos fazer dizer que, em tudo o que diz respeito, pelo menos, ao ser falante, a realidade é assim, isto é, fantasmática. Para que ela seja assim, seria preciso saber, de todo modo, se isso é algo que, de alguma maneira, possa satis­ fazer o discurso científico. Não é porque há animais que vêm a ser falantes - para quem, por habita­ rem o significante, resulta que sejam sujeitos dele e que tudo para eles esteja em jogo no nível do próprio fantasma, de um fantasma perfeitamente desarticulá­ vel, de um modo que dê conta de que eles sabem muito mais do que pensam, quando agem - não basta que seja assim para que tenhamos aí o começo de uma cosmologia. Essa é a eterna ambiguidade do termo inconsciente, não é? O inconsciente é suposto sob o pretexto de que no ser falante, há em algum lugar algo que sabe mais do que ele, e é claro, o que ele sabe tem limites, é claro, o ser do inconsciente. Mas enfim, esse não é um modelo aceitável do mundo. Em outros termos, não é porque basta que ele sonhe para...39 que ele veja aparecer esse 36 A versão publicada (op. cít., p. 81) traz aqui: "a imputação de uma alma ao animal". (N.T.) 37 ARISTOTE, De l'âme. Paris: Garnier-Flammarion, 1993. 38

Entelechia vem do baixo latim "estado de perfeita realização do ser", emprestado do grego de Aristóteles entelekheia "energia agente e eficaz", por oposição à matéria inerte. E um derivado de entelekhês "que tem seu fim em si". Dictionnaire Robert historique de la Zanguefrançaise.

39 A versão publicada (op. cit., p. 81) traz aqui: "A psicanálise, na medida em que sua possibi­ lidade provém do discurso da ciência, não é uma cosmologia, embora baste que o homem sonhe, para que ele veja aparecer ... " (N.T.) 1 80

Lição 8 - 13 de março de 1973

imenso bricabraque, esse guarda-móveis com o qual ele, particularmente, tem de se virar, o que faz disso seguramente uma alma, e uma alma eventualmente amável, quando algo se dispõe a amá-la. A mulher não pode amar no homem, eu disse, senão a maneira como ele enfrenta o saber pelo qual ele "alma", mas quanto ao saber pelo qual ele é, fica a questão. Fica a questão a partir disso, que há algo - se o que proponho tem fundamento - do qual não é possível dizer se desse algo, que é gozo, ela pode dizer alguma coisa, em outros termos, dizer o que ela sabe sobre isso. E é aí que lhes proponho, no final desta conferência de hoje, como sempre, eu chego à borda do que polarizava todo o meu tema, isto é, saber se pode ser formulada a questão do que ela sabe sobre isso. Não é uma questão bem diferente, ou seja, se esse termo do qual ela goza Uouit) para além de todo esse 'jogar' Uouer) que constitui sua relação com o homem, se esse termo que eu chamo de Outro (Autre), significando-o com o A barrado (.A), se esse termo sabe alguma coisa, porque é nisso que ela mesma está sujeita ao Outro, tanto quanto o homem. Será que o Outro sabe? Havia alguém, de nome Empédocles,40 do qual, como por acaso, Freud se serviu de vez em quando, como de um saca-rolhas. Havia alguém de nome Empédocles, de quem só sabemos três versos, mas do qual Aristóteles tira con­ sequências, quando enuncia que, em suma, para Empédocles, o Deus era o mais ignorante de todos os seres, e isso muito precisamente por não conhecer o ódio. Foi o que mais tarde os cristãos transformaram em dilúvios de amor, mas infe­ lizmente isso não cola, porque não conhecer o ódio é também não conhecer o amor. Se Deus não conhece o ódio, está claro, para Empédocles, que ele sabe menos sobre isso do que os mortais. De modo que se poderia dizer que, quanto mais o homem prestar-se, para a mulher, a confusão com Deus, isto é, com aquilo de que ela goza, menos ele odeia (iZ hait)jmenos ele é (il est) - com as duas ortografias41 - e nesse caso também, já que afinal não há amor sem ódio, menos ele ama.

40

Empédocles (483-430 a.C.), filósofo grego que concebeu uma cosmogonia fundada nos qua­ tro elementos, cujas relações são regidas pelo Amor (Eros) e pelo Ódio (Pólemon) . Morreu projetando-se na cratera do Etna. (N.T.)

41

Em francês: il hait/ il est (ele odeia/ele é) são perfeitamente homófonos. (N.T.) 181

Lição 9 20 de março de 1973

Imaginário

s

(i)

realidade

verdadeiro

<.{.l

Sunbólico

Real a

Eu gostaria bem de ter, de vez em quando, uma resposta, ou mesmo um protesto. Não tenho muita esperança, pois uma das pessoas que outrora me deu essa satisfação - é verdade que só lhe supliquei que cumprisse esse papel há cerca de meia hora - pediu-me para desistir. Mas se houvesse alguém, que, por acaso, do que eu disse na última vez e que me fez sair daqui, eu mesmo, digamos, bastante inquieto, para não dizer mais, e que à releitura revelou-se para mim mesmo perfeitamente suportável - este é o meu modo de dizer que estava muito bom - eu não ficaria descontente se alguém pudesse me dar o testemunho de ter ouvido alguma coisa do que eu disse. Bastaria que uma mão se erguesse, para que a essa mão, se posso dizer assim, eu desse a palavra. Vejo que ninguém se manifesta, de modo que preciso continuar. Não será talvez tão bom desta vez.1 Eu gostaria de partir de uma observação, de algumas observações, e as duas primeiras vão consistir em relembrar o se refere ao saber. E, depois, tentar fazer a junção com o que, para vocês, escreverei hoje, de bom grado: a "hainamoration",

1

A versão publicada (op. cit., p. 84) intoduz aqui uma separação: Parte 1. (N.T.) 183

Encare

que é preciso escrever: h.a.i.n.a.m.o.r.a. t.i.on.2 Foi o relevo, como vocês sabem, que a psicanálise soube introduzir, para aí situar a zona de sua experiência. De sua parte, é um testemunho, se posso dizer assim, de boa vontade. Se a haína­ moration, justamente, ela tivesse sabido chamá-la de outro termo que não este, híbrido, ambivalente, talvez tivesse tido mais êxito em despertar o contexto da época em que ela se insere. Talvez seja também modéstia, de sua parte. De fato, se terminei com algo, graças ao qual só pude abordar o que me havia polarizado durante toda a minha enunciação da última vez, eu enunciei, nesse último parágrafo, que havia alguém de nome Empédocles3 e assinalei que não foi sem razão que Freud dele se armou. Para Empédocles, Deus devia ser o mais ignorante de todos os seres - o que nos leva à questão do saber - e isto, muito precisamente, eu dizia, por não conhecer o ódio. Acrescentei que os cris­ tãos, mais tarde, transformaram esse não ódio de Deus numa marca de amor. E aí que a análise da correlação que ela estabelece entre ódio e amor nos incita a fazer esse lembrete, ao qual voltarei daqui a pouco, e que é exatamente este: não se conhece amor sem ódio. O que quer dizer que, se há conhecimento de alguma coisa, se esse conhecimento nos decepciona, conhecimento fomen­ tado ao longo dos séculos, o que faz com que precisemos renovar a função do saber, talvez seja porque o ódio não foi posto aí em seu lugar. É verdade que isso também não é o que parece mais desejável de se evocar, e foi por isso que terminei com esta frase: pode-se dizer que quanto mais o homem se presta a que a mulher o confunda com Deus, isto é, com aquilo de que ela goza - lembrem-se do meu esquema da última vez, não vou refazê-lo - menos ele odeia (hait) e, ao mesmo tempo, menos ele é (est) - equivocando com as duas ortografias, em francês.4 O que quer dizer que, nesse caso, da mesma forma, menos ele ama. Eu não fiquei muito satisfeito de ter terminado com isso, que é, contudo, uma verdade. E o que me fará hoje me perguntar, uma vez mais, sobre o que se confunde, aparentemente, do verdadeiro e do real, cuja noção eu apresentei, tal como ela se esboça na experiência analítica, e que, efetivamente, não deve ser confundido. 2

3 4

Hainamoration: junção de haine (ódio) e énamoration (enamoração), nova grafia proposta por Lacan, que mantém, em francês, a mesma sonoridade, introduzindo, no mesmo termo, amor e ódio. (N.T.) Cf. nota 40 da Lição 8. Hait (odeia)/ est (é) são perfeitamente homófonos, em francês. (N.T.)

1 84

Lição 9 - 20 de março de 1973

É claro que o verdadeiro se afirma corno visando o Real. Mas isso só está aí enunciado corno fruto de urna longa elaboração e, eu direi mais, de urna redução das pretensões à verdade. Por toda parte onde a vemos se apresentar, se afirmar ela mesma corno de um ideal, de algo de que a palavra pode ser o suporte, vemos que a verdade não é algo que se alcance tão facilmente. Eu diria que se a análise se afirma por urna presunção, é que dela possa se constituir um saber sobre a verdade. No esquema que lhes dei do discurso analítico, o pequeno a se escreve no alto, à esquerda, e é sustentado por esse S , o saber, na medida em que ele está 2 no lugar da verdade. É de onde ele interpela o S, ao qual se pede que diga não importa o quê, que deve levar à produção do S 1 , do significante com o qual se possa resolver o quê? Justamente, sua relação com a verdade. a

S,

--+

S S,

A verdade, digamos, para ir ao cerne da questão, é, de origem, áÀ�8aa/ aletheia, sobre a qual tanto especulou Heidegger. Emet, o termo hebraico, que, corno todo uso desse termo verdade, tem origem jurídica. Em nossos dias, pede-se ainda à testemunha que diga a verdade, nada mais que a verdade, e ainda por cima, toda, se puder. Corno é que ela poderia dizer toda a verdade sobre o que ela sabe? Mas o que é buscado e, justamente, mais do que em qual­ quer outro, no testemunho jurídico, o que é? É poder julgar o que se refere ao gozo e, eu direi mais longe, é que o gozo seja confessado e, justamente, porque ele pode ser inconfessável. E a verdade buscada é justamente aquela, mais do que qualquer outra, perante a lei que regula esse gozo. É também quanto a isso que, nos termos de Kant, é evocado o problema de saber o que deve fazer o homem livre, diante do tirano que lhe propõe todos os gozos em troca disso: que ele denuncie o inimigo, pois o tirano teme que seja ele quem lhe dispute o gozo. Corno não ver que a questão, aliás, que se evoca desse imperativo - que nada do que é da ordem do patos deve dirigir o testemunho do que é evocado - se ao homem livre se pede que ele denuncie o inimigo, o rival, se for verdade, deve ele fazê-lo?5 5

A passagem é de difícil compreensão nas Versões 1 e 2 e tentamos clareá-la, na tradução. A versão publicada (op. cit., p. 85) traz o que traduzimos a seguir: "Desse imperativo, que nada

1 85

Encare

Será que não se vê, só com a evocação desse problema, que se há algo que certamente nos inspira toda a reserva, aquela que temos todas,6 que temos todos, é que 'toda' a verdade é o que não pode ser dito? E o que só pode ser dito, com a condição de não levá-la até o fim, de só meio-dizê-la. Há outra coisa que nos amarra, no que se refere à verdade, é que o gozo é um limite. E algo que tem a ver com a própria estrutura, que evocavam, no tempo em que os construí para vocês, meus quadrípodes - é que o gozo não se interpela, não se evoca, não se persegue, nem se elabora senão a partir de um semblant. Mesmo o amor, como salientei na última vez, se dirige do sem­ blant? Ele se dirige do semblant e, da mesma forma, se é verdade que o Outro só se alcança abraçando o pequeno a causa do desejo, como eu disse na última vez, é igualmente ao semblant de ser que ele se endereça. Esse ser não é sem importância, ele é suposto a esse algo, a esse objeto que é o pequeno a. Mas não devemos encontrar aqui esse rastro, de que, enquanto tal, ele responda a um certo imaginário? Certamente, esse imaginário, eu o designei expressamente com o I, aqui isolado, do termo imaginário, e não é senão pelo revestimento da imagem de si, que vem envolver o objeto causa de desejo, que se sustenta, na maioria das vezes - esta é a própria articulação da análise - a relação objetai. Essa afinidade do pequeno a com esse revestimento é a articulação, é pre­ ciso dizê-lo, uma dessas articulações maiores que foram propostas pela psica­ nálise, e que para nós é o ponto de suspeição que ela introduz essencialmente. E aí que se distingue o que pode nos vir a dizer do Real, pois o Real, se vocês o tomarem tal como pensei ao longo do tempo, tempo que é o de minha experiência, o Real não poderia inscrever-se senão por um impasse da forma­ lização. Foi por isso que pensei poder desenhar seu modelo pela formalização do que é da ordem do páthos deve dirigir o testemunho, será preciso deduzir que o homem livre deva dizer a verdade ao tirano, mesmo lhe entregando, por sua veracidade, o inimigo, o rival?" (N.T.) ' Será que Lacan opõe aqui "toda a reserva . . . que temos toda (s)" (em francês o s não se pro­ nuncia), a "toda a verdade, que só pode ser meio-dita", ou será que ele fala aqui de "todas" as mulheres e "todos" os homens? (N. Versão 1) A versão publicada (op. cit., p. 85) traz aqui: " A reserva que nos inspira a todos a resposta de Kant, que é afirmativa, está ligada a que toda a verdade é o que não pode ser dito." (N.T.) 7

As duas Versões 1 e 2 trazem aqui "du semblant", como foi traduzido acima, enquanto a versão publicada (op. cit., p. 85) traz aqui " au semblant" ("ao semblant"). (N.T.)

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matemática, na medida em que ela é a elaboração mais avançada que nos foi dado produzir, a elaboração mais avançada da significância. De uma significân­ cia da qual, em suma - eu falo da formalização matemática - pode-se dizer que ela se faz ao contrário do sentido. Eu quase ia dizer 'em sentido contrário'.8 O "isso não quer dizer nada" no que diz respeito às matemáticas, é o que dizem, em nossos dias, os filósofos das matemáticas, mesmo sendo eles próprios mate­ máticos. Eu salientei bastante os Principia de RusselJ.9 E, no entanto, não se pode dizer que essa rede que foi levada tão longe, a da lógica matemática, precisamente, na medida em que, face ao que culminou com uma filosofia que foi bem forçada a sair de suas próprias trincheiras - o ponto culminante foi Hegel - não se pode dizer que, diante dessa plenitude dos contrastes dialetizados na ideia de uma progressão histórica, da qual nada nos atesta a substância, não se pode dizer que, diante disso, o que se enuncia por essa formalização tão bem feita que só se sustenta pelo escrito, ou seja, algo que não nos serve, que não nos serviria, se fosse preciso, no processo analítico, senão pelo que aí se designa: aquilo que retém os corpos invisivelmente? E se me fosse permitido dar uma imagem disso, eu a buscaria facilmente no que, na natureza, parece se aproximar mais do que faz com que o escrito exija, de certa forma, essa redução às dimensões, às duas dimensões da super­ fície e que, de uma certa maneira, se acha sustentado, na natureza, por algo que já encantava Spinoza, ou seja, o trabalho de texto que sai do ventre da aranha. A teia de aranha, função verdadeiramente milagrosa de se ver, de certa forma já se sustentava nisso. Naquele ponto opaco desse estranho ser, os "pareceres" j"pareseres" (paraftres/parêtres) da própria superfície, aquela que, para nós, permite o desenho do rastro desses escritos que são, afinal, o único ponto onde achávamos apreensíveis esses limites, esses pontos de impasse, de sem saída, que fazem entender o Real como se acedendo, do Simbólico, ao seu ponto mais extremo.10 8 À contresens, locução adverbial que significa: 'em sentido contrário', mas pode-se também ouvir aí o substantivo contresens (contrassenso). (N.T.) 9

10

Bertrand Russell, matemático e filósofo inglês (1872-1970) . Ele escreveu, em 1913, com Alfred North Whitehead, Principia mathematica. (N.T.) "

A versão publicada (op. cit., p. 86) traz aqui: ... ou saisir les limites, les points d'impasse, de sans­ ( ... onde apreender os limites, os pontos de impasse, de sem-saída, que mostram o real acedendo ao simbólico"). As Versões 1 e 2 trazem, como foi traduzido acima: ... ces points d'impasse, de sans-issue qui, le réel, le font entendre comme issue, qui montrent le réel accédant au symbolique"

"

"

187

Encare

É por isso que eu não creio ser inútil que, após um trabalho de elabora­ ção, cuja data não preciso lembrar aqui e agora, eu tenha chegado à escrita desse pequeno a, desse S do significante, do A enquanto barrado S(A) e do <1>. A própria escrita disso constitui o suporte que vai além da palavra (parole) que, no entanto, não sai dos próprios efeitos da linguagem. E onde se designa esse algo, centrando o Simbólico, algo que importa, com a condição, é claro, de saber servir-se dele. Mas servir-se para quê? Para reter uma verdade congruente. Não a verdade que tem a pretensão de ser toda, mas aquela, justamente, com a qual temos de lidar, a de um 'meio-dizer', a que evita chegar à confissão, confissão que seria o pior, a que se resguarda, desde a causa do desejo.U Ela o presume, esse desejo, inscrito por uma contingência corporal. Lembro­ lhes a maneira pela qual eu sustento esse termo: a contingência. Pode-se dizer que o falo, tal como na experiência analítica é abordado, como ponto-chave, ponto extremo do que se enuncia como causa do desejo, pode-se dizer que a experiência analítica cessa de não escrevê-lo.12 Ora, se eu chamo isso de contin­ gência, é na medida em que é aí que a experiência analítica encontra seu termo, e tudo o que ela pode produzir é esse S 1 , esse significante que, na última vez, vocês devem se lembrar ainda do rumor que consegui produzir, neste auditó­ rio, qualificando-o como o significante do gozo mesmo, o mais idiota e, como me fizeram notar, nos dois sentidos do termo: o gozo do idiota, por um lado, que tem aqui sua função de referência, e aquele também que é o mais singular. É nesse "cessa de não se escrever"13 que reside a ponta do que chamei de contingência. A contingência, se, como eu digo, ela se opõe ao impossível, é na medida em que o necessário é o que "não cessa de não . . . " - peço-lhes que me perdoem -, é o necessário que nos introduz aqui esse "não cessa", mas o "não cessa" do necessário é o "não cessa de se escrever" . Ora está bem aí a aparente s'accédant du symbolique à son point le plus extrême". Embora esta frase (confirmada com a audi­ ção da gravação) não seja muito clara, está assinalado aqui esse 'ponto mais extremo' como limite do acesso, em princípio impossível, do Real, a partir do Simbólico. (N.T.) 11 12

A versão publicada (op. cit., p. 86) introduz aqui uma separação: Parte 2. (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 86) traz o que foi traduzido acima " cesse de ne pas l'écrire", o que corresponde à contingência. As Versões 1 e 2 trazem: "ne cesse pas de I'écrire" ("não cessa de escre­ vê-lo") , que corresponde ao necessário. Lacan faz um lapso e só se corrige mais adiante. (N.T.)

13 As Versões 1 e 2 trazem aqui também "não cessa de se escrever", o lapso continua. Cf. nota 12. (N.T.) 1 88

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necessidade, a que nos leva a análise da referência ao falo. O "não cessa de não se escrever" que eu disse há pouco, por lapso, é o impossível, o impossível tal como eu o defino, que não pode se escrever em caso algum. E nisso que eu designo o que é da relação sexual. Ela "não cessa de não se escrever" . Mas a cor­ reção que, por esse fato, ela nos permite trazer à aparente necessidade da função fálica é que é, realmente, enquanto modo do contingente que o "não cessa de se escrever" deve se escrever, "cessando", justamente, " de não se escrever". É como contingência, contingência na qual se resume tudo o que se refere ao que, para nós, submete a relação sexual a não ser, para o ser falante, senão o regime do encontro fortuito. É nesse sentido que se pode dizer que, pela psicanálise, o falo, reservado na antiguidade aos Mistérios, "cessou de não se escrever", nada mais. Ele não entrou no "não cessa", no campo do qual dependem, por um lado, a necessidade e, mais acima, a impossibilidade. Portanto, aqui, o verdadeiro dá testemunho de que, prevenindo-se como ele o faz, contra o imaginário, ele tem muito a ver com a a-natomia.14 Afinal de contas, esses três termos que eu inscrevo com o pequeno a, com o S de A barrado: S(A) e com o
Encare

exemplo, é motivada por esse olhar, tal como o defini nos Quatro conceitos funda­ mentais da psicanálise, 15 como representando um dos quatro suportes que fazem a causa do desejo. E, pois, numa dessas "graficizações" - para não falar de grafo, já que grafo é um termo que tem um sentido muito preciso na lógica matemática - nessas "graficizações" que se mostram essas correspondências que fazem do Real um aberto entre o semblant, que resulta do Simbólico, e a realidade, tal como ela se sustenta no concreto da vida humana, no que conduz os homens, no que os faz ir em frente, sempre pelas mesmas vias, no que os faz ainda (encare) produzir outros homens, no que faz com que, para sempre, o ainda por nascer (encare à naftre) não dê nada mais do que o encorné.16 Do outro lado, esse pequeno a que, por estar no bom caminho, afinal de contas, nos faria tomá-lo por ser, em nome disso: ele é, aparentemente, alguma coisa, mas que afinal não se resolve senão por seu fracasso, justamente por não poder se inscrever17 de modo algum completamente, na abordagem do Real. A verdade, então, a verdade é isso, só que não se alcança nunca, a não ser por vias tortuosas. A verdade - que habitualmente somos levados a invocar - é preciso simplesmente lembrar, para não se enganar, que não se deve crer que já se está mesmo no semblant. E que antes do semblant, pelo qual, efetiva­ mente, tudo se sustenta para se relançar no fantasma, que antes disso, deve ser feita uma distinção severa do Imaginário e do Real. Não se deve crer que esse semblant, sejamos, de alguma forma, nós mesmos que o sustentemos. Nós não somos nem mesmo semblant. Somos, eventualmente, o que pode ocupar seu lugar e fazer reinar aí, o quê? Aquilo que, seguramente, para nos limitarmos a este imediato de hoje, nos permite dizer que, afinal de contas, o analista, em todas as ordens de discurso que são aquelas, em todo caso, que se sustentam atualmente - e esta palavra, atualmente, não é pouca coisa, se dermos ao ato seu pleno sentido aristotélico - de todos os discursos que se sustentam atual­ mente, é realmente o analista que, pondo o objeto a no lugar do semblant, está 15

LACAN, J. Le séminaire, livre Seuil, 1973.

XI,

Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris:

16 Pode-se ouvir aí encore-né (ainda nascido) ou encomé (que tem cornos, chifrudo/ chifrado). (N.T.) 17 A versão publicada (op. cit., p. 87) traz aqui: " de ne pouvoir se soutenir dans l'abord au réel" ("por não poder se sustentar na abordagem do real"). (N.T.)

190

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na posição mais conveniente para fazer o que é justo fazer, ou seja, interrogar, interrogar como saber o que se refere à verdade.18 O que é o saber? É estranho que, com exceção de Descartes - e não é sem razão que ele está no limiar da ciência moderna, não é o único, mas mesmo assim ele está ali - é estranho que antes de Descartes a questão do saber nunca tenha sido formulada. E que tenha sido preciso, de certa forma, que a psicanálise viesse nos anunciar que há saber que não se sabe e que é, propriamente falando, um saber que se sustenta pelo significante, como tal. E que um sonho não introduz a nenhuma experiência insondável, a nenhuma nústica, que isso se lê no que se diz dele e que se poderá mesmo ir mais longe, tomando os equívocos no sentido mais anagramático da palavra. E nesse ponto da linguagem, onde um Saussure se per­ guntava se mesmo nos versos saturninos, onde ele encontrava as mais estranhas pontuações de escrito, isso era ou não intencional, é aí que Saussure, de certa forma, espera por Freud. É aí que se renova a questão do saber. Se vocês se dispuserem a perdoar aqui algo que irei buscar num registro bem diverso, o das virtudes inauguradas pela religião cristã, vocês verão que isso não é inoportuno, pois será preciso que venhamos a falar da dita religião. Existe ali uma espécie de efeito tardio de brotar, de germinar da caridade. O que pôde ter algum parentesco, alguma afinidade com o que, no gênero desse animal que é falante, participa do dom, como se diz? Eu não vejo isso em nenhum lugar, a não ser nesse dom de Freud, de nos ter dito que o incons­ ciente tinha ao menos esse pequeno grau de abertura, graças ao qual o sofri­ mento19 podia ser dito; que havia aí algo que, verdadeiramente, e não como fora dito até então, o transcendia. Nada além do que essa linguagem que ela habita, essa espécie, e que, dessa linguagem, ela viria, em suma, a ter, no que se refere à sua vida cotidiana, suporte mais razoável do que podia parecer, ou seja, que essa busca vã de uma sabedoria "inatangível"20 e sempre fadada ao fracasso, já havia disso ali. 18

A versão publicada (op. cit., p. 88) introduz aqui uma separação: Parte III. (N.T.)

19

Em francês: la misere, que tem um sentido mais abrangente (sofrimento, infortúnio, adversi­ dade, desgraça) do que sua tradução literal em português 'miséria', que remete mais a penú­ ria, indigência, pobreza extrema. (N.T.)

20

A versão publicada (op. cit., p. 88) traz aqui inatteignable (inatingível) . As Versões 1 e 2 trans­ crevem o que Lacan diz: "inatteingible" junção de inatteignable (inatingível) + intangible (intan­ gível), o que permitiu o neologismo em português, como traduzimos acima. (N.T.) 191

Encare

Mas então, será preciso dar toda essa volta para formular a questão do saber, sob a forma " o que é que sabe?" Será que se dão conta de que é o Outro, com maiúscula, tal como o defini no início, como nada além desse lugar onde o significante se estabelece, e sem o qual nada nos indica que não haja em nenhum lugar uma dimensão de verdade, dit-mansion, em duas palavras: a residência do dito, o dito pelo qual o saber estabelece o Outro como lugar? O estatuto do saber implica, como tal, que j á há saber e, no Outro, que ele é para ser tomado (à prendre), é por isso que ele é feito de aprender (apprendre). O sujeito resulta de que ele deva ser aprendido (appris), esse saber, e mesmo avaliado (mis à prix), ou seja, é seu custo que o avalia, não como valor de troca, mas como de uso. O saber vale exatamente na medida em que ele custa beau­ coup (muito) - escrevam beau-cout (belo custo) - porque se tem de deixar aí a própria pele, pois é difícil. Difícil de quê? Pois bem, menos de adquiri-lo do que de gozar dele.21 No gozar, sua conquista, a desse saber, se renova a cada vez que esse saber é exercido, o poder que ele dá permanecendo sempre voltado para o seu gozo. É estranho que isso nunca tenha sido ressaltado, que o sentido desse saber esteja inteiramente aí, que a própria dificuldade de seu exercício seja o que realça a de sua aquisição. É porque a cada exercício essa aquisição se repete, que não se coloca como questão qual dessas repetições, qual delas deve ser posta como primeira, no que foi aprendido. E élaro que há coisas que se difundem e que parecem bem funcionar como pequenas máquinas - chamam isso de computadores. Que digam que um com­ putador pense, tudo bem, mas que ele saiba, quem vai dizer isso? A fundação de um saber é o que acabo de dizer, é que o gozo de seu exercício é o mesmo que o de sua aquisição. E ássim, pois como vocês veem, aí se encontra de modo seguro, mais seguro do que no próprio Marx, o que se refere a um valor de uso, já que também em Marx, ele só está ali para fazer o ponto ideal com relação ao valor de troca, no qual tudo se resume. E, justamente, falemos desse aprendido/ a preço (appris/à prix)22 que não se baseia na troca. Do saber de um próprio Marx, já que acabo de evocá-lo, pois bem, 21

22

Neste parágrafo Lacan joga com a homofonia, que se perde, na tradução, entre à prendre/ apprendre , e appris/ à prix, além de beaucoup/beau coíit, como foi traduzido acima, soletrando, a cada vez, para obter o efeito que só se lê no que se escreve. (N.T.) Variação mencionada pela Versão 2. (N.T.) 1 92

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do saber de um próprio Marx, na política, que não é pouca coisa, pois bem, não se faz "commarxe", se vocês me permitirem, da mesma forma que do de Freud não se pode fazer fraude'. Basta olhar para ver que, por toda parte onde não são encontrados, esses saberes ... Não tê-los feito entrar na pele, através de duras experiências ... Pois bem, isso logo cai, isso não se importa, nem se exporta. Não há informação que permaneça, senão na medida de um formado pelo uso'. Assim se deduz, pelo fato de que o saber está no Outro, que ele não deva nada ao ser, a menos que este tenha veiculado sua letra. Donde resulta que o ser possa matar, onde a letra reproduza, mas não reproduza nunca o mesmo, nunca o mesmo ser de saber. Penso que vocês sentem aí, quanto ao saber, a função que eu dou à letra. É aquela, a respeito da qual eu lhes peço que não escorreguem depressa demais para o lado das pretensas mensagens. E aquela que faz a letra análoga a um gérmen, gérmen que - se estivermos na linha da física molecular, da fisiologia molecular - devemos tão severamente separar dos corpos, junto aos quais ele veicula vida e morte, conjuntamente. Marx e Lênin... Freud e Lacan não são acoplados no ser. E pela letra que eles encontraram - encontraram no Outro - que, como seres de saber, eles pro­ cedem, dois a dois, num Outro suposto. O novo que há em seu saber é que não está suposto que o Outro saiba alguma coisa disso. Não, bem entendido, o ser que aí fez letra, pois foi do Outro que ele fez letra, à sua custa, à custa de seu ser, Deus meu, e para cada um, não de nada . . . Mas também não de muito ... Para dizer a verdade,23 esses seres, de onde se faz a letra,Z4 eu vou lhes fazer sobre eles uma pequena confidência. Não creio, apesar de tudo o que puderam dizer, por exemplo, de Lênin, que o ódio (la haíne) nem o amor (l'amour), que a hainamoration, que isso tenha realmente sufocado algum deles. Não me venham com histórias a respeito da Sra. Freud, sobre isso tenho o testemunho de Jung. Ele dizia a verdade, e esse era mesmo seu erro: ele só dizia isso. Aqueles que conseguem fazer esse tipo de rejeições de ser, encare, são antes aqueles que participam do desprezo (méprís), que eu lhes farei escrever desta 1

1

23 A versão publicada (op. cit., p. 90) traz aqui outra pontuação: "para dizer a verdade" está no final do parágrafo anterior. (N.T.) 24 A versão publicada (op. cit., p. 90) traz aqui: d'oii se fait la lettre, como foi traduzido acima. A transcrição encontrada nas Versões 1 e 2 não parece fazer muito sentido: d'oii se fait à la lettre (de onde se faz ao pé da letra). (N.T.) 1 93

Encare

vez: méprix25 - já que hoje eu me divirto com o appris/ à prix e com o resto. Isso dá Uniprix/6 estamos no tempo dos supermercados, então é preciso saber o que se é capaz de produzir, mesmo em termos de ser. Sim, o que atrapalha é isso, é que o Outro, o lugar (le lieu), como eu lhes disse, não saiba nada. Não se pode mais odiar Deus, se ele próprio não sabe nada, nada do que acontece, notadamente. Quando se podia odiá-lo, podia-se acreditar que ele nos amava, pois ele não nos retribuía. Isso não era aparente, embora em certos casos tenham forçado isso. Enfim, como estou chegando ao cabo desses discursos que tenho a coragem de prosseguir diante de vocês, eu gostaria - já que é uma ideia que me vem e que, afinal de contas, é uma ideia sobre a qual eu refleti um pouquinho, não é? É que o Cristo, em suma, cujo infortúnio é explicado por uma ideia de salvar os homens, eu acho que era mais de salvar Deus que se tratava, devolvendo, enfim, um pouco de presença, de atualidade, a esse ódio de Deus, sobre o qual, é claro, nós somos, e por isso mesmo, um tanto apáticos. E por isso que eu digo que a imputação do inconsciente é um fato de caridade incrível. Eles sabem, eles sabem, os sujeitos! Mas enfim, apesar disso, eles não sabem tudo (ils ne savent pas tout) . No nível desse pas tout ('não todo' / 'não tudo'), só resta o Outro a não saber, é o Outro que faz o pas tout, na medida em que ele é a parte do "pas savant du tout" ("do que não sabe absolutamente nada"), nesse pas tout. Então, momentaneamente, é claro, pode ser cômodo torná-lo responsável por aquilo a que leva a análise, da maneira mais confessada, só que ninguém o percebe: é que, em suma, se o desejo, a libido é masculina, pois bem, a que­ rida mulher, é justamente de onde ela é toda, isto é, de onde o homem a vê, e somente daí, que ela pode ter um inconsciente, não é? E para que isso lhe serve? Bem, isso lhe serve, como todos sabem, para fazer falar o ser falante, aqui reduzido ao homem, ou seja - não sei se vocês observaram bem isso, na teoria analítica - para existir apenas como mãe. Ela tem efeitos de inconsciente, mas seu inconsciente, no limite em que ela não é responsável pelo inconsciente de todo o mundo, isto é, no ponto em que o Outro, com quem ela está relacionada - o grande Outro - faz com que ela não saiba nada, porque ele, o Outro, isso 25

26

Forma de escrita proposta, por homofonia, em francês, entre prís/príx (preço), o que permite associar a ideia de 'preço' a 'desprezo' (mépris) e a 'aprendido' (appris). (N.T.) Nome de uma cadeia de supermercados, na França. (N.T.)

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é muito claro, sabe menos ainda, por ser muito difícil sustentar sua existência, pois bem, não se pode dizer que tudo isso dê a ela a melhor parte. Na última vez eu brinquei, como me permito, com o equívoco um pouco forçado entre il hait/il est (ele odeia/ele é) . Eu não gozo com isso, senão para levantar a questão que ele seja digno da tesoura. É justamente disso que se trata na castração. Que o ser provoque o ódio como tal, isso, digamos, não está excluído. Porque se toda a questão de Aristóteles foi conceber o ser como sendo aquilo pelo qual os seres menos seres participam do mais alto dos seres, é formidável que Santo Tomás tenha conseguido reintroduzir isso numa tradição cristã que, bem entendido, por ter-se difundido entre os gentios, enfim, era obrigada a se ter formado inteiramente aí, de modo que bastava puxar um cordão para que aquilo funcionasse outra vez. Mas enfim, será que se dão conta de que na tradi­ ção judaica o corte não passa do mais perfeito ao menos perfeito, que o menos perfeito é simplesmente o que se deve saber radicalmente imperfeito e que só tem de obedecer estritamente, sem hesitar, se ouso exprimir-me assim, àquele que traz um nome, Jeová, aliás, com alguns outros nomes, nos que o cercam, que não são excluídos como tais, mas este fez a escolha de seu povo e não há como ir contra. Será que ali não se descobre que, bem melhor do que l'être hai'r é le trahir,27 eventualmente? E disso, evidentemente, os judeus não se privaram, eles não podiam resolver isso de outra forma. Sobre esse assunto do ódio, nós estamos tão sufocados, que ninguém per­ cebe que um ódio, um ódio sólido dirige-se ao ser, ao próprio ser de alguém que não é, forçosamente, Deus. Ficamos então - e é bem por isso que eu disse que o pequeno a é um semblant de ser - ficamos com a noção - e é aí que a análise, como sempre, é um pouco claudicante - ficamos com o ódio ciumento, aquele que jorra da jalouissance,Z8 aquele que s'imageaillisse29 do olhar, em Santo Agostinho, quando ele observa o garotinho. Ele está ali como terceira pessoa e observa o menininho que, pallidus - enfim, ele empalidece, ao observar, sus­ penso à mama, o conlactaneum suum.3° Felizmente, é o gozo substitutivo pri27 Por homofonia, em francês, entre l'être hai'r (o ser odiar) e le trahir (traí-lo). (N.T.) 28 29

Junção de jalousie (ciúme) + jouissance (gozo). (N.T.) Outra palavra forjada por Lacan a partir de: image (imagem)+ jaillir Qorrar). (N.T.)

30 É uma citação de Santo Agostinho (Confessiones Liber I caput 7), que aparece completa no texto de 1948 sobre "L'agressivité en psychanalyse" . In: Ecrits, op. cit., p. 114: " Vidi ego et exper-

1 95

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meiro, na enunciação freudiana, o desejo evocado por uma metonímia, que se inscreve por uma demanda suposta dirigida ao Outro, desse núcleo do que chamei de Ding em meu artigo, em meu seminário sobre A ética da psicanálise, "A Coisa freudiana" . O próximo mesmo, que Freud se recusa a amar além de certos limites, não é? A criança olhada o tem, o pequeno a. Será que ter o a é sê-lo? Eis a questão com a qual eu os deixo hoje. E se vocês quiserem ler daqui até a próxima vez que nos encontrarmos, ou seja, se bem me lembro, no dia 10 de abril, o artigo que escrevi sobre a Bedeutung des phallus,31 sobre a significação do falo, se vocês quiserem lê-lo, verão a que leva a última questão com a qual eu os deixo.

tus sum zelantem parvulum: nondun loquebatur et íntuebatur pallidus amaro aspectu conlactaneum suum." ("Vi, com meus olhos e conheci bem uma garotinho tomado pelo ciúme: ele ainda não falava e já contemplava, pálido, com uma expressão amarga, seu irmão de leite!"). (N.T.) 31

LACAN, J. "La signification du phallus" . In: Écrits, op. cit., p. 685. 196

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10 de abril de 1973 Introdução e comentários de Jacques Lacan Intervenções de Jean-Claude Milner e François Récanati Introdução de ]. Lacan

Eu não lhes falo muito do que é publicado, quando se trata de algo meu, sobretudo porque, de modo geral, preciso esperar bastante para que, para mim, o interesse daquilo se distancie. No entanto, não seria nada mau que, para a pró­ xima vez, que será no dia 8 de maio - não antes, pois no dia 17 deste mês estare­ mos em plenas férias de Páscoa - vocês lessem algo que intitulei "L' étourdit" ,1 que parte da distância que há do dizer ao dito. Que só haja ser no dito, isto é uma questão que deixaremos em suspenso. E certo que só há dito do ser, mas isso não impõe a recíproca. Por outro lado, meu dizer é que só há inconsciente do dito - isso é um dizer. Como dizer? Aí está a questão: não se pode dizer de qualquer maneira, esse é o problema de quem habita a linguagem, ou seja, o de todos nós. Foi por isso mesmo que hoje, e a respeito dessa hiância que eu quis expri­ mir um dia, distinguindo da linguística o que faço aqui, isto é, a "linguisteria", ou seja, o que se funda no que acabo de enunciar inicialmente e que é garantido - que só podemos tratar do inconsciente a partir do dito, e do dito do analisante - foi por essa referência que pedi a alguém, a um linguista, a quem sou reconhecido por ter aceitado, que viesse aqui hoje, diante de vocês. E estou certo de que vocês tirarão proveito disso, no que se refere atualmente à posição do linguista. Não posso nem mesmo indicar o que não pode deixar de lhes interessar num tal enunciado, que alguém me escreveu, a respeito de um artigo publicado em algum lugar, que há, na posição do linguista, algo que se desloca. E o que eu quis hoje que alguém lhes informasse, e ninguém é mais qualificado para isso do que aquele que lhes apresento: Jean-Claude Milner, um linguista. 1

LACAN, J. "L' étourdit" . In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 449. 1 97

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Intervenção de Jean-Claude Milner2 Gramática, sempre houve, houve antes dos modernos e haverá sem dúvida depois de nós. Quanto à linguística, é outra coisa, se entendermos por linguística o que se deve entender, algo de bastante preciso, ou seja, um campo, um discurso que considera a linguagem como objeto de ciência. Que a linguagem, pouco importa o nome, que a linguagem seja objeto de ciên­ cia é uma proposta que nada tem de trivial e, de certo ponto de vista, é até mesmo altamente inverossímil. Entretanto, uma disciplina se constituiu em torno dessa hipótese e sabe-se, de modo geral, a que preço e por que vias essa disciplina se constituiu. Historicamente, e de um ponto de vista sistemático, o ponto de partida foi o curso de linguística de Saussure, que articula a linguística como ciência, em torno de certo número de proposições encadeadas. Dessas proposições, vou tomar três, digamos, para resumir a primeira abordagem da linguística consi­ derada como ciência. A primeira dessas proposições é que a linguagem, enquanto objeto da lin­ guística, só tem como propriedades as que se deduzem analiticamente de sua natureza de signo. Essa proposição pode ser analisada em duas subproposi­ ções. A primeira é que a linguagem não tem propriedades específicas com rela­ ção a outros sistemas de signos. A segunda é que a noção de signo é essencial à linguística. Em outras palavras, pode-se definir a linguística como o modelo geral de toda teoria dos sistemas significantes. A segunda grande proposição, que se encadeia à primeira, é que as proprie­ dades de todo sistema de signos podem ser descritas por operações bastante simples, essas operações sendo elas mesmas justificadas pela própria natureza do signo, essencialmente sua natureza de ser bifacial e de ser arbitrário. Por exemplo, dentre essas operações, uma que é bem conhecida é a comutação. Essas operações não têm nada de específico da linguagem, elas poderiam ser aplicadas e foram aplicadas a outros sistemas. A terceira proposição é que o conjunto das propriedades da língua e, por­ tanto, o objeto da linguística, esse conjunto que se pode chamar de estrutura é constituído, de certa forma, do mesmo tecido que os dados observáveis. Essa estrutura não tem nada que seja oculto, nada que seja secreto, ela se oferece à 2

MILNER, J.-C. Arguments linguistiques. Paris: Mame, 1973, p. 179.

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observação e as operações do linguista não fazem senão elucidar, explicitar o que está copresente nos próprios dados. Essas três proposições deram origem a um tipo bem conhecido de linguís­ tica, a linguística estrutural. É um fato importante que essas três proposições, todas elas, tenham sido refutadas. Dito de outra forma, no próprio movimento da linguística considerada como ciência, uma outra hipótese, uma outra teoria do campo foi proposta, articulada igualmente por três proposições, que contra­ dizem as que acabo de enunciar. Começarei pela última. A primeira proposição da nova teoria se opõe à terceira que enunciei anteriormente: para analisar uma língua, precisamos da intervenção de relações abstratas que não estão forçosamente representadas nos próprios dados. Em outras palavras, não há uma única estrutura que esta­ ria copresente nos dados, mas há pelo menos duas estruturas, uma que é obser­ vável e que é chamada estrutura de superfície e a outra, ou várias outras, que não são observáveis, como a estrutura dita profunda. Segunda proposição articulada, que se opõe à segunda proposição estru­ turalista: essas duas estruturas - estrutura de superfície e estrutura profunda ­ são ligadas entre si por operações complexas, em todo caso, complexas demais para serem tiradas da própria natureza do signo, por exemplo, o que em geral é chamado de transformações. E a primeira proposição estruturalista encontra oposição na terceira propo­ sição transformacional, transformacionalista: essas transformações são especí­ ficas da linguagem. Dito de outra forma, nenhum sistema conhecido apresenta operações do tipo das transformações, ou ainda: há propriedades específicas da linguagem. Um corolário que eu não explicito, cujas razões eu não explicito, é que a noção de signo, como tal, não é de modo algum necessária à linguística. Pode-se perfei­ tamente desenvolver a linguística, como ciência, sem fazer uso da noção de signo saussuriana, da noção de significante em oposição ao significado, o que, digamos entre parênteses, toma algo cômica uma asserção recente, segundo a qual é do lado da linguística que se deve voltar para compreender a noção de significante. Essa mudança no interior da linguística tem todas as aparências exteriores do que foi chamado de remanejamento (refonte), ou seja, a passagem de certa configuração do campo de uma ciência para outra configuração desse campo, essa segunda configuração integrando a primeira e apresentando-a como um

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caso particular de sua própria análise. E assim, a linguística estruturalista é refutada pela linguística transformacional, mas ao mesmo tempo é integrada nela, pois aparece como um caso particular, mais restritivo, da linguística trans­ formacional. Portanto, essa passagem de uma linguística a uma outra, longe de poder ser qualificada como uma dificuldade ou uma crise, o fato de que esse tipo de remanejamento seja possível parece mais uma prova de que a linguística está bem integrada no campo das ciências. Aí está, grosso modo, a apresentação mais corrente que se pode fazer do sistema da linguística. O que vou tentar mostrar é que, na realidade, a situação é bem diferente. Primeiramente, há dificuldades, hoje, no campo da linguística e essas dificuldades não se apresentam como sinais precursores de um remane­ jamento, ou seja, como sinais precursores de uma nova figura da linguística que integrasse a precedente, mas como sinais de uma dificuldade de fundo, o que habitualmente é chamado de crise, e tentarei mostrar-lhes, por último, o cerne, o princípio dessa crise. Vou então considerar sucessivamente alguns problemas de interferência, de antinomia, que são recobertos pela linguística dita transformacional. A primeira seria a antinomia... como dizer? a possibilidade de interpretar de duas maneiras diferentes a oposição da estrutura de superfície à estrutura de profundidade. Para apresentar o problema de modo simples, podemos considerar que, para uma gramática transformacional, o dado a ser explicado é, digamos, um conjunto de frases consideradas como pertencentes a um conjunto bem for­ mado. Por exemplo, tomo um exemplo inteiramente abstrato: uma frase posi­ tiva, assertiva, ativa, será ligada e classificada no mesmo conjunto que a versão negativa dessa mesma frase, no mesmo conjunto que a versão interrogativa dessa mesma frase, no mesmo conjunto que a versão passiva dessa mesma frase. Temos então um conjunto, podemos nos perguntar sobre a maneira pela qual o conjunto será construído, mas enfim, temos os dois. Pois bem, esse conjunto, podemos admitir que, se é bem formado, ele se justifica por uma propriedade comum a todos os elementos do conjunto, operação muito simples. Questão: essa propriedade comum seria uma realidade ou um Jlatus voei? Dito de outra forma, a interpretação dessa proposição: há uma propriedade comum aos conjuntos, às frases do conjunto, que pode ter uma versão realista ou uma versão nominalista. Se adotarmos a interpretação realista, isso significa

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que temos uma realidade, que essa propriedade comum é uma realidade, essa realidade é de tipo "linguageiro", linguístico, ou seja, a propriedade comum a todas as frases do conjunto será representada sob a forma de uma estrutura lin­ guística, essa estrutura estando evidentemente qualificada para ser a estrutura profunda das frases pertencentes ao conjunto. A partir dessa estrutura, bastará construir certo número de regras, transformações que permitirão obter então, a partir da estrutura comum, por uma série de operações diferentes, este ou aquele elemento diferenciado do conjunto inicial. Outra interpretação, interpretação nominalista, neste caso: não há nenhuma realidade que represente a propriedade como tal, só há como realidade a classe que pôde ser construída, a classe de frases que puderam ser construídas e, desse ponto de vista, o sistema transformacional não tem mais estrutura inicial sobre a qual ele terá de operar modificações. Segunda divergência possível com relação às próprias transformações, digamos, ao conjunto da gramática dita transformacional: tomando uma trans­ formação ou qualquer asserção gramatical, da teoria gramatical, podemos con­ siderá-la seja em extensão, seja em intenção. Por exemplo, em extensão, uma transformação consiste num par de frases que afirmamos estarem ligadas, por exemplo: a frase ativa e a frase passiva, e a transformação não será nada mais do que o par que se pôde construir: frase ativa - frase passiva. Se adotarmos o ponto de vista intencional, pois bem, a transformação não se reduz ao par de frases, mas torna-se uma propriedade desse par, que não se confunde com o próprio par. Essa oposição, essa divergência pode acarretar um certo número de diferenças perfeitamente sensíveis na teoria. Tomemos, por exemplo, uma estrutura como existem muitas nas línguas, onde a presença de um elemento pode ser prevista a partir da presença de um outro. Por exemplo, em francês, não há artigo que não seja seguido, de perto ou de longe, enfim, ime­ diatamente ou não, por um substantivo. Em outras palavras, quando se diz de uma estrutura que ela comporta um artigo, diz-se a mesma coisa que quando se diz que ela comporta um artigo seguido de um substantivo, evidentemente. Dito ainda de outro modo, a classe das sequências que comportam um artigo é idên­ tica à classe das sequências que comportam um artigo mais um substantivo. Numa abordagem extensional, toda expressão que tenha a mesma exten­ são que uma outra expressão pode livremente substituir essa outra expressão. No caso particular, isso quer dizer que uma expressão do tipo estrutura que

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comporta um artigo poderá substituir livremente uma estrutura que comporte um artigo mais um substantivo. Mas na abordagem intencional, não é necessariamente verdadeiro que duas expressões que tenham a mesma extensão sejam substituíveis. Por exem­ plo, para tomar um exemplo de Quine, entre a propriedade " ser um animal marinho vivendo em 1940" e a propriedade "ser um cetáceo vivendo em 1940", a extensão poderá ser a mesma, admitamos, mas nem por isso é evidente que as duas proposições sejam as mesmas e sejam substituíveis uma pela outra, preservando a sinonímia dos enunciados. Por conseguinte, no caso que nos ocupa, pode muito bem haver uma dife­ rença entre a propriedade ser analisável num artigo e a propriedade ser ana­ lisável entre artigo mais substantivo. E pode-se perfeitamente imaginar regras que serão corretamente apresentadas segundo uma dessas proporções e não o seriam segundo a outra dessas proporções. Jacques Lacan: - Mamífero! Jean-Claude Milner: - Sim, é isso ... Mamífero, sim! Para ser completo, seria preciso acrescentar os pinípedes aos cetáceos. Há dois subgrupos entre os ani­ mais mamíferos marinhos. Em outras palavras, também aí existe uma bifididade, uma clivagem entre duas interpretações possíveis da noção de transformação. Em geral, as teorias linguísticas combinam o ponto de vista intencional sobre as transformações e o ponto de vista realista com relação à estrutura profunda. E a que adota o ponto de vista extensional com relação às transformações adota o ponto de vista nomi­ nalista sobre a estrutura profunda. Não me deterei neste fato, ele certamente não se deve ao acaso, tomarei simplesmente a situação tal como ela é. Temos, portanto, duas possibilidades para a teoria linguística transfor­ macional: por um lado, ser intencional realista, por outro lado, ser extensional nominalista. Se adotarmos o ponto de vista extensional nominalista, a estrutura pro­ funda torna-se simplesmente uma classe, as regras da gramática sendo pura­ mente extensionais, são elas também puramente classes. Dito de outra forma, as demonstrações dessa teoria consistirão simplesmente em encontrar procedi­ mentos de construção das classes bem formadas. E teremos demonstrado uma tese nessa gramática se tivermos encontrado o procedimento construtivo, efe­ tivo, que permita mostrar que a classe visada é bem formada, é exaustiva, etc.

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Inversamente, na outra hipótese, a versão intencional nominalista,3 a estru­ tura profunda é uma estrutura real e, além do mais, é uma estrutura oculta. Para reconstituí-la somos obrigados a nos apoiar em indícios fornecidos pela observação. Por outro lado, as transformações são formuladas em termos de propriedades, essencialmente a partir do seguinte enunciado, do seguinte prin­ cípio: duas frases estarão em relação de transformação se elas tiverem as mes­ mas propriedades. Será preciso então toda uma série de raciocínios, mostrando que tal propriedade está bem representada em duas frases, que essa proprie­ dade é a mesma nos dois casos, que, por outro lado, o fato de que essa proprie­ dade seja a mesma é um argumento suficiente para combinar as duas frases por meio de uma transformação, etc. Em outras palavras, a forma da demonstração será não da ordem da cons­ trução das classes, mas da ordem da argumentação, a partir de indícios ou a partir de redes. Num caso, o tipo de certeza será, pois, da ordem das enumera­ ções exaustivas, no outro caso, será da ordem das razões combinadas da força relativa dos indícios, etc . . . Conclusão: d a mesma forma que não h á uma interpretação unívoca das noções fundamentais da linguística, não há tipo único de demonstração e de certeza. No entanto, será que se pode manter que sobre a noção de propriedade da linguagem - vimos que ela era singular na teoria transformacional - será que se pode dizer que há acordo? O problema tem importância na medida em que, se admitirmos que a linguagem tem propriedades específicas, o objeto da linguís­ tica será evidentemente descobrir essas propriedades específicas, e não pode haver outras. Portanto, se ficar claro que sobre a noção de propriedade da lin­ guagem há ambivalência, ambiguidade, seremos levados a concluir que não há noção unívoca do objeto da linguística. Pois bem, de fato, pode-se efetivamente mostrar que há ambivalência da própria noção de propriedade. Tomemos o exemplo das transformações. E uma especificidade, admita­ mos, dos sistemas linguísticos serem articuláveis em termos de transformações. Pois bem, existe uma interpretação segundo a qual se pode dizer: o que me garante que é uma propriedade é justamente que se possa imaginar, a priori, toda uma série de sistemas formais não providos de transformações, ou seja, a priori, nada me impede de representar um sistema por transformações, mas de 3

Sem dúvida, um lapso de Milner. Ler aqui: realista. 203

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fato, é assim, há transformações em nomes. A noção de propriedade fica então ligada ao 'é assim', ao indedutível a priori e ao observável a posteriori. Esta é, em particular, a posição de Chomsky, e aqueles que praticam os raciocínios, enfim, as argumentações, as discussões da gramática do tipo chomskiano reconhece­ rão muito frequentemente argumentos do tipo: não há nenhuma razão a priori para que tal estrutura esteja presente nas línguas, ora, ela está presente nelas, portanto, tenho uma propriedade, e tendo uma propriedade reconhecível por esse critério, que ela é indedutível a priori, alcancei a tese última de minha teoria e alcancei meu objeto. Mas pode-se imaginar uma interpretação inteiramente diferente que dirá: pois bem, não há nenhuma razão para não aplicar o princípio de razão ao fenô­ meno que foi descoberto, por exemplo, a existência das transformações, e que procurará dizer: pois bem, se há transformações nas línguas, isso está ligado a sua essência, qualquer que seja essa essência, por exemplo, a de serem instru­ mentos de comunicação, ou, por exemplo, a de representarem situações objeti­ vas, ou qualquer essência que se possa imaginar desse ângulo. Pouco importa o detalhe, o que é importante é que numa interpretação desse gênero, o critério de uma propriedade não é que ela seja indedutível a priori, mas que ela seja, ao contrário, dedutível a partir de um princípio fundamental que articulasse, que formulasse a própria essência da língua tomada como tal. Vocês veem que, nesse caso, há duas teorias linguísticas inteiramente dife­ rentes e que o objeto da linguística não se formulará do mesmo modo. Num caso, o objeto da linguística será registrar, procurar descobrir todo o conjunto das propriedades de certa forma inexplicáveis, a priori, das línguas, proprie­ dades que podem ser simplesmente registradas como dadas. No outro caso, o objeto da linguística será tentar reduzir o conjunto das propriedades que pude­ ram ser descobertas, objetivamente, a uma essência da linguagem, qualquer que seja sua definição. Pois bem, ao que me parece, quando numa teoria há divergência sobre o objeto, divergência sobre a natureza das demonstrações, sobre a natureza da certeza, há manifestamente algo que está em questão. Pois bem, se observarmos o que acontece, perceberemos que, para escolher entre as diversas interpreta­ ções, a cada momento da ambivalência, das ambivalências sucessivas, o lin­ guista, os linguistas não têm outro princípio - em todo caso que se possa reco­ nhecer - que sua própria visão do mundo. Eles escolherão, por exemplo, sobre

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o último ponto, a hipótese do inexplicável a priori, ou, ao contrário, do explicável a priori, unicamente em função de sua concepção do princípio de razão. E assim por diante, relativamente à escolha entre o nominalismo e o realismo, muitas discussões dessa ordem se reduzem simplesmente a uma seleção em termos de visão do mundo: o que eu prefiro, o nominalismo ou o realismo? Ou: o que eu prefiro, a extensão ou a intenção? Isso pode ser encoberto por um certo número de asserções sobre a natureza da ciência, que deve ser mensurável ou não mensu­ rável etc., pouco importa, o fundo é sempre uma questão de visão do mundo. Parece-me que é possível propor, sem inverossimilhança, a tese de que quando, num campo pertencente à ciência, a seleção entre teorias concorrentes se faz em termos de visão do mundo, pode-se chamar isso de uma crise. Pois bem, essa crise poderia simplesmente ser constatada, contudo, parece-me que seu núcleo, seu princípio fundamental pode ser articulado mais precisamente. Algo está em causa neste momento no sistema da teoria linguística, o que põe em questão sua própria natureza de ciência. Entre a passagem, digamos, na passagem do saussurismo ao transformacionalismo, que se baseia, como vimos, em inversões de proposições, havia algo que eu não descrevi, que permaneceu intangível, foi o que eu poderia chamar de modelo do sujeito sintáxico. O que é esse modelo? Pois bem Saussure o descreve de modo muito simples, é uma relação de dois termos entre o locutor e o interlocutor. O esquema saussuriano é bem conhecido: temos um ponto de partida que é A, um ponto de chegada que é B. O próprio desse modelo é que um interlocutor só funciona como tal, no sis­ tema, se ele provar que tem a capacidade de ser, por sua vez, um locutor, num outro momento do sistema. Em outras palavras, temos dois termos que são simétricos e diferentes, mais ou menos como a mão direita e a mão esquerda, mas que, como a mão direita e a mão esquerda, de certo ponto de vista, são homogêneos. E pode-se falar do interlocutor ou do locutor linguístico, no sin­ gular, tendo como propriedade distintiva de se reduplicar na realidade, na rea­ lidade dos corpos, da mesma forma que se pode falar da mão, no singular, que todos sabem tem a propriedade de se reduplicar no corpo humano. Pois bem, essa passagem, enfim, essa estrutura, esse modelo é absolutamente o mesmo no chomskismo. Aliás, a referência que Chomsky faz a Saussure é explícita, sobre esse ponto, e pode-se mostrar de modo bastante simples que, fora de tal modelo, a integração da linguagem à ciência, ao campo da ciência, é absoluta­ mente impossível.

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A questão que se coloca não é tanto saber o que se exclui, quando se propõe tal modelo, pois afinal praticamente pode-se mostrar em todos os discursos científicos que eles pagam um certo preço, que é o preço de sua cientificidade. O problema não está aí, o problema é saber se, no próprio movimento de sua exploração positiva do campo dos fenômenos da linguagem, portanto, apoian­ do-se, pois, no que torna possível essa exploração positiva e, portanto, esse modelo, a linguística não é levada a ser confrontada com dados que são pro­ priamente inexplicáveis, impossíveis de se elucidar, se continuarem a se apoiar nesse modelo. Dito de outro modo, o ponto é saber se no próprio movimento de sua exploração científica, a linguística não encontra meio de dissolver o que havia tornado possível essa exploração científica. Pois bem, sem entrar em detalhes, parece ser exatamente essa a situação. Em outras palavras, pode-se mostrar, seria possível mostrar que a linguís­ tica - e é nesse momento que isso acontece, simplesmente pelo movimento de sua exploração sintáxica, portanto, a mais positiva possível - é colocada na posição de fenômenos incontornáveis e dos quais a pura sintaxe - a sintaxe fundada na formalização, se ouso dizer, no formalismo - não pode dar conta se ela continuar a colocar dois sujeitos absolutamente simétricos, absolutamente homogêneos um ao outro, um dos quais será o locutor e o outro, o interlocutor. Para uma ilustração desse gênero de problema, remeto-os ao livro recente de Ducrot, Dire et ne pas dire,4 que mostra com evidência que há toda uma série de fenômenos perfeitamente identificáveis em termos positivos, identificáveis em termos de estrutura gramatical, de palavras, de coisas perfeitamente registrá­ veis através de dados, que todos esses fenômenos não podem ser compreendi­ dos se não forem estabelecidos pelo menos dois sujeitos, heterogêneos um ao outro, um dos quais exerce sobre o outro o que Ducrot chama de uma relação de poder, um exercício de poder. Dito de outra forma, o ponto da crise é que, para continuar a exploração que ela necessita fazer, por sua própria definição, isto é, como integração da linguagem ao campo das ciências, a linguística agora está a ponto de pagar um preço que lhe é impossível pagar, porque se ela o fizer, na verdade é sua própria desconstrução como ciência que começará. Como, o que dizer para concluir? Pois bem, algo assim: está próximo o dia em que a linguística - e isso já está presente em Ducrot - começará a se perceber 4

DUCROT, O. Dire et ne pas dire. Paris: Hermann, 1972.

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como contemporânea da psicanálise, mas não é evidente que, uma vez chegado esse dia, a linguística esteja ainda aí para vê-lo. Jacques Lacan: - Bem... Eu ficaria muito feliz de concentrar hoje as inter­ venções que eu possa desejar. Penso que François Récanati vai querer, já que em suma o orador que o precedeu ficou dentro de limites bem estreitos, com essa intenção ... Eu ficaria feliz de saber o que ele pode trazer hoje como contribuição.

Intervenção de François Récanati5 Eu não comentarei o que acaba de ser dito. Penso que é necessário certo tempo de meditação. Mas parece-me evidente que o que foi apresentado aqui como concepção do mundo, regulando de certa maneira o destino atual, isto é, não a evolução do que se apresenta como ciência, como a linguística, essas escolhas que devem ser feitas entre, de um lado, nominalismo e realismo e, do outro lado, dois princípios de razão, ou melhor, um princípio que é a 'indedu­ tibilidade' a priori e o outro, o velho princípio de razão, isso tem a ver, de certa maneira, com o que se pode chamar de "linguisteria" . Mas num 1úvet de certa forma, em que são essas escolhas que se constituem como objetos, na medida em que se articulam. E, de certa maneira, o que eu vou dizer aqui - que não estava previsto para se articular ao que acaba de ser dito - terá, contudo, certa relação com a possibilidade dessas escolhas, com o funcionamento de algo como justamente a indedutibilidade a priori funcionando como princípio de razão. Isso aparecerá talvez sozinho, eu não procurarei mostrá-lo particularmente. De um modo geral, assinalo que isso vai estar ligado ao que Lacan desenvol­ veu nestes últimos tempos, a respeito do 'não toda' e do gozo feminino, e que, mais particularmente, trata-se de uma questão que eu gostaria de colocar. Para isso, vou tratar de ilustrá-la, o que não deixa de ser arriscado, na medida em que, precisamente, trata-se do modo de figuração possível de uma relação, e essa ilustração que tratarei de dar, talvez um pouco metaforicamente, de certa maneira se sobrepõe um pouco ao fato mesmo dessa figuração que eu espero. Vou primeiramente traçar um esquema:

5

A quem agradecemos por ter concordado em reler seu texto e verificar sua pontuação. 207

Encare

ESQUEMA 1 existência

excêntrica à verdade

necessário

impossível

3:x . r!J x

3x .


recusa

indecidível

Vx . w x

objeto

a

Vx .


possível

ESQUEMA 2 ....__

1

3:x . x

l

Vx . r!J x -----� a ( Vx . r!J x )

__..

S(,f{)

Sim, tenho outro, mas ele virá um pouco mais tarde. Então, a pergunta que fiz ao Dr. Lacan e que vou ilustrar aqui é precisamente esta: como articu­ lar a relação entre a função pai, por um lado, a função pai como sustentando a universalidade da função fálica no homem, e, por outro lado, o gozo femi­ nino suplementar que se caracteriza por esse 1m � S (A) constituindo o que se poderia chamar de a " inuniversalidade", ou melhor, a "inexaustividade", e não é exatamente o mesmo sentido, da mulher em relação ao , bem como sua posição no desejo do homem sob a espécie do objeto a. Como figurar esses dois termos, cuja vesguice, como disse Lacan, é que eles se conjugam ambos no lugar do Outro? Como se pode figurá-los? E, por outro lado, é possível que efetivamente - é mais ou menos a mesma coisa que a pri­ meira questão - eles sejam dois? Se é que, se Regina tinha um Deus, talvez ele 208

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não fosse o mesmo, certamente não o mesmo de Kierkegaard, mas, por outro lado, disse Lacan, também não é certo que se possa dizer que fossem dois. Vou situar aqui alguns marcos, não exatamente para a abordagem desta questão que eu coloco, mas mais precisamente para a abordagem que eu queria evitar. Na medida em que, tratando-se do 'não toda', creio que há duas manei­ ras de considerá-lo, e precisamente urna dessas maneiras é completamente silenciosa, pois, logo de início, de certa forma, há um silêncio, não se trata mais da questão. E a outra dessas maneiras evacua de certa forma o problema, e é a maneira que evacua que vou lembrar inicialmente, através de certos marcos, para mostrar que ela deixa inteiramente intacta a questão do gozo feminino. Vocês se lembram que aquele "existe um x que diz não, tal que não phi de x" (:lx . x) é o que permite que se sustente o universal "para todo x phi de x" (Vx . x), a mulher estando plenamente na função , ou seja, "não existe x que diga não a phi de x" (::Jx . x) e isso implica que a mulher se situe com relação a outra coisa que não o limite do universal mas­ culino, que é a função pai: "existe x tal que não phi de x" (:lx . , a mulher só pode se inscrever corno 'não toda'. Mas esse "existe x tal que não phi de x" (:lx . x) está na posição de uma alteridade radical com relação a , numa posição desligada, certamente é urna existência necessária, mas ela se coloca também necessariamente fora do campo coberto por <1>. Na função pai, a função , na medida em que é sobre ela que incide a nega­ ção, é esvaziada por não poder mais se indiciar por nenhuma verdade lógica. No lado oposto, no "não existe x tal que não phi de x" (::Jx . x), a função é mais do que preenchida, ela ultrapassa, e o jogo do verdadeiro e do falso, da mesma maneira, torna-se impossível. Nos dois casos que eu queria assinalar como sendo os dois casos de exis­ tência, a existência está numa posição excêntrica com relação ao que em tem valor regulador, isso é, a função de verdade que pode se investir aí. 209

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O que está em jogo, eu disse, entre "existe x tal que não phi de x" (3x . x) e, por outro lado, "não existe x tal que não phi de x" (:3x . x), é a existência, e a existência se coloca nesse duplo desligamento com relação a <1>. A existência sai certamente da contradição entre os dois, entre a função pai e entre o que talvez se pudesse chamar de função virgem, ou seja, "não existe x tal que não phi de x" (:3x . x). Ambos se caracterizam por sua inessencialidade com relação a . Um não pode se inscrever em , o outro não pode deixar de se inscrever em . De um lado, o necessário, " existe x tal que não phi de x" (3x . x), do outro, digo que aí é o impossível para ir mais depressa, na verdade have­ ria uma variante a acrescentar: "não existe x tal que não phi de x" (3x . x). O impossível é antes o que ocorre entre os dois, e "não existe x tal que não phi de x" (3x . x) poderia se chamar a impotência, se esse termo não tivesse já servido para outros fins. A disjunção entre os dois é radical. Ambos não estão desligados um do outro, mas ambos estão desligados com relação a , e os dois desligamentos estão, eles próprios, em discordância. De forma alguma eles são comensuráveis. Pode-se até dizer mais: enquanto A mulher (Lrt femme), sempre com esse A bar­ rado permanecer definida por esse "não existe x tal que não phi de x" (3x . x), ela se situará entre zero e um, entre centro e ausência, e não será enumerável. Ela não pode de modo algum ligar-se ao Um do " existe x tal que não phi de x" (3x . x), nem mesmo do modo já torcido com que o "para todo x phi de x" (\ix . x), por que não chamá-la de zero? Portanto, nem mesmo do modo torcido pelo qual o zero se liga aí, isto é, pelo que eu chamei de recusa (déni) .6 É aqui que preciso situar, olhando o esquema acima, a verdade que não há relação sexual, mas a razão pela qual eu disse isso, era para marcar que a exis6

Déni, démenti e désaveu são as três palavras eventualmente usadas, em francês, para traduzir a Verleugnung freudiana. Déni significa "eu me recuso a reconhecer isso, eu nego isso"; démenti significa "isso não é verdade"; désaveu significa " eu não disse isso, não fiz isso". Em 1975 (Cf. "Conclusions des journées de 1975 sur le cartel". In: Lettres de l' E.F.P. Paris: E.F.P. , n° 24, p. 247) Lacan diz que embora tivesse aprovado anteriormente o termo désaveu, não foi ele quem o propôs. Ele considera mais apropriado para traduzir a Verleugnung o termo démenti. Em português, podemos traduzir como a seguir: déni (recusa); démenti (desmentido) e désaveu (renegação). No presente texto, que não é de Lacan, optamos por traduzir por 'recusa' o termo déni, usado por J.C Milner aqui e no esquema da p. 208. (N.T.)

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tência só se afirma em relação a nessa alteridade. E o fato de que um e outro, existência e alteridade sejam dissociáveis a esse ponto implica os desvios que vão se seguir, notadamente o destino do desejo do homem. Se examinarmos agora as relações verticais entre as fórmulas, e retomando essas marcas que eu disse, zero e Um, o Um do existe x tal que não phi de x (:::J x . x) permite, por sua necessidade, que o para todo x phi de x (Vx . x) se constitua como possível, digamos a título de zero. Não acontece absolutamente a mesma coisa do outro lado, apesar da sime­ tria aparente, pois, do ouh·o lado, é do "não existe x tal que não phí de x" (:3x . x) que se origina "não todo x phi de x" (Vx . x). Ora aqui, é antes o "não existe x tal que não phi de x" (3x . x) que desempenha o papel do indeterminado, isto é, do zero, antes de sua constituição pelo Um, ou seja, de uma espécie de não zero, de não exatamente zero. E desse ponto de vista, é o "não todo x phí de x" (Vx . x) que desempenharia, no condicional, o papel do Um, isto é, a possibilidade, a abertura de algo como uma suplementaridade, de um Um a mais possível. Mas, é claro, esse pseudo Um a mais se afunda imediatamente na indeterminação do "não existe x tal que não phi de x" (3x . x), que não é sustentado por nenhuma existência, que nenhum suporte, nenhum dizer-que­ não vem sustentar. Enquanto nenhum x vier negar phi de x para A mulher, o Um a mais do qual o 'não todo' se sente portador permanece fantasmático. Nenhuma pro­ dução é possível a partir do "não existe x tal que não phi de x" (3x . x), mas apenas uma circulação do indeterminado inicial. Entre os dois termos, "não existe x tal que não phi de x" (3x . x) e "não todo x phí de x" (\fx . x), há o indecidível. O indecidível em questão se cris­ taliza do seguinte modo: a mulher não se aproxima do Um, ela não é o Um, o que não implica que ela seja o Outro. Numa palavra, ela está numa relação indecidível com o Outro barrado (A), ela não é nem o Um nem o Outro, com duas maiúsculas. O 'não toda' é sustentado pelo 'não Um' . Já que "não existe x tal que não phi de x" (3x . x), isso não quer dizer outra coisa senão 'não Um' . E o todo homem, o \ix . x, que é sustentado justamente pelo Um, pela existência desse Um, do "existe x tal que não phi de x" (::Jx . x), o todo homem se serve de A mulher enquanto 'não toda' para ter precisamente relação com o Um, ou melhor, relação com o Outro, segundo um procedimento inteiramente particular.

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Já que o Um é banido de seu todo no tempo que o constitui, ele considera os dois corno antinômicos, repetindo urna negação, ao passo que essa negação recai sobre o que eu chamarei de um complexo, ou seja, o complexo da existên­ cia e da alteridade, e sempre ela se vê deslocada com relação ao enfoque do Vx. Através do 'não toda' de A mulher, ele crê encontrar o Outro, quando de modo algum se podem identificar as duas negações do Um. Pois, de um lado, é a existência necessária do Um que funda, que delimita o espaço de Vx, enquanto do outro lado, é a inexistência, é a negação da existência do Um que sustenta o indecidível da relação de .A mulher com o Outro barrado (A). É aqui que se situa a relação imaginária do homem com a mulher. O homem, corno Vx, está na luta constituinte com a alteridade da existência do Um. Vimos que os dois são indissociáveis. Repetindo o desligamento consti­ tutivo do "existe x tal que não phi de x" (3x . . Isto quer dizer que uma rela­ ção está a ponto de se estabelecer entre esse 'todo' e esse 'não toda', mas entre 'todo' e 'não toda', entre o 'todo homem' e o 'não toda' de .A mulher há urna ausência, há uma falha que é, nomeadamente, a ausência de qualquer existên­ cia que sustente essa relação. O homem só apreende A mulher no desfile dos objetos a, ao cabo do qual supostamente só se encontra o Outro. Isso quer dizer que é após o esgotamento da relação com A mulher, ou seja, após a ressorção impossível dos objetos a, que o homem supostamente alcança o Outro, e conse­ quenternente, A mulher torna-se o significante do Outro barrado S(.A), do Outro barrado enquanto barrado, isto é, desse percurso infinito. O fantasma de Dom Juan - eu só o cito pelo que vem depois - ilustra muito bem essa busca infinita e, do mesmo modo, seu hipotético termo, ou seja, precisamente o retorno de uma estátua, do não deveria ser senão estátua para sempre, e o castigo imediato para o autor do despertar. Eu tinha formulado uma pergunta, de certa forma subsidiária, ao dr. Lacan, a respeito da relação entre o gozo de Dom Juan, apresentado assim e, por outro lado, a função constituinte do que ele chamou de gozo do idiota, ou seja, a masturbação. Nesse desenvolvimento que acabo de resumir, certamente está em questão o ' não toda', mas foi mais precisamente da função desse 'não toda' no imaginá­ rio masculino, se posso me exprimir assim, que se tratou. Contudo, minha ques212

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tão inicial, que eu mantenho, era sobre a relação entre o gozo feminino suple­ mentar e a função pai, do ponto de vista d'/A mulher, o que, de certa maneira, suscita antes de tudo outra questão: Haverá um ponto de vista d' /A mulher? O que levanta ainda outra: Pode-se falar de perspectivas, em psicanálise? Haverá aí pontos de vista? E, particularmente, o que dizer do imaginário na mulher, já que sua relação com o grande Outro só aparece como privilegiada do ponto de vista do homem, que a considera como o representando, se é que ele não os confunde, ambos? Talvez esta questão seja, é claro, aquela que não tem resposta, o que, se fosse decidível, seria certamente frutuoso, no sentido de que se poderia ao menos detectar as respostas que são falsas . .A mulher como 'não toda', como vimos, é o significante do complexo: exis­ tência, Um, Outro, Outro barrado (.A), é claro, para o homem. A tríade do desejo do homem pode assim se escrever com o triângulo semiótico, e esse é o meu terceiro esquema. ESQUEMA 3 primeiro efeito

V x .

x -- a

d e significação termo excluído

(Vx . x)

-a -a,1

a. _____.

S(JA )

:Jx . x

Se tomei este esquema, foi porque vocês se lembram, eu espero, do que ele sustenta. Portanto, não terei de voltar a isso e poderei me contentar com certo número de alusões, não que eu transporte os termos do problema para a configuração semiótica para ver aí, de certa forma, o que fica estabelecido como problemática, com relaf ão ao gozo feminino. Mesmo assim, quer o falar de alguém que pode ser chamado de semiótico, digamos que é um dos mais importantes teóricos modernos da arbitrariedade do signo, quero falar de Berkeley.7 O que ele diz? Que há linguagem, isto é, sig­ nificantes, que têm efeitos de significado. Ora, a partir do momento em que eles têm efeitos de significado, o que não é de modo algum evidente para Berkeley, 7 George Berkeley (1685-1753), filósofo irlandês. Entre outras obras, publicou o Ensaio sobre uma nova teoria da visão, em 1 709, e Teoria da visão, em 1733, que aparentemente é chamada, mais adiante, por François Récanati de "Tratado sobre a visão". (N.T.) 213

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esses significantes - quando Berkeley diz significante, enfim, quando ele não diz, mas eu digo em seu lugar, isso quer dizer qualquer coisa, etc. -, a partir do momento em que têm efeitos de significado, eles são obrigados a estender sua existência a outros lugares que não a cena do significado. A evacuação material dos significantes permite que os significados continuem sua ronda. A cadeia dos significados é o efeito, ainda segundo Berkeley, do encontro fortuito entre a cadeia dos significantes, por um lado, e, por outro lado, certa­ mente não a cadeia dos significados, pois se vê que ela é originária desse encon­ tro, mas antes o que se poderia chamar de sujeitos, ou seja, o que, a partir desse encontro, se torna sujeitos, e que até então eram apenas significantes como os outros. A partir do momento em que significantes encontram sujeitos, isto é, que há produção de sujeitos por um choque de significantes, estes são deslo­ cados, os sujeitos são deslocados com relação à existência, que é a existência material dos significantes. Eles cessam de participar da vida material dos signi­ ficantes, para entrar no campo do significado, isto é, para serem sujeitados aos significantes que, como vimos, tornaram-se excêntricos e inacessíveis a eles. A perda dos significantes para o sujeito delimita o espaço do que Berke­ ley chama de significação, significação que se universaliza. Do ponto de vista universal da significação, a evacuação do significante para seus efeitos é algo absolutamente necessário, é um a priori do campo da significação. Mas do ponto de vista do próprio necessário, isto é, do significante, nada é mais contingente, nada é mais supletivo do que a própria significação. Do ponto de vista da necessidade intrínseca do significante, a significação é mesmo impossível, esta é a palavra empregada por Berkeley, ou seja, ela não tem relação alguma com a razão interna do significante. Mas essa impossibilidade se realiza mesmo assim. Da mesma forma, diz Berkeley, na primeira página do seu "Tratado sobre a visão",8 a distância é imperceptível e, contudo, ela é percebida. A distância é imperceptível, isso quer dizer que nada no significante dis­ tância' nos leva9 à significação dessa distância, isto é, à exclusão interna do sujeito a esse significante, o significante distância' . Nada nos leva a isso. A distância é imperceptível e, contudo, ela é percebida. Como compreender isso, senão à maneira de Berkeley, segundo um esquema triádico? 1

1

8 9

Cf. nota 7. Em francês, "rien ne naus mene", que Récanati escreve numa só palavra, como Lacan o faria, "nousmêne", para evocar a palavra noumene (númeno). (N.T.)

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Do ponto de vista da significação como dada, o desligamento diretivo do significante é algo de necessário, do ponto de vista do próprio significante, sua expansão em significação é absolutamente impossível. Existe aí uma disjunção, à qual Lacan nos habituou, a do 'não sem' (pas sans), isto é, não o um sem o outro, mas o outro sem o um. Vocês se lembram que o exemplo que era dado dessa terceira figura da disjunção era "a bolsa ou a vida", isto é, não há um sem o outro, mas o outro em o um. Essa figura que Berkeley isolou admiravelmente, ele a chama de arbitrarie­ dade, é a arbih·m·iedade dos signos que não é outra, diz ele, senão a arbitrm·ie­ dade divina. Mais ainda: a arbitrariedade dos signos é uma prova, para Berke­ ley, da existência de Deus, é mesmo a prova fundamental de seu sistema. Algo é impossível e, no entanto, é efetivo. Isso significa que a conjunção da impossi­ bilidade e da realidade efetiva, que é o espaço humano, é uma manifestação da Providência. E inteiramente providencial que essas duas coisas divergentes se reúnam mesmo assim, e que a interpretação dessa relação segundo o esquema triádico, isto é, dois termos colocados aqui e essa interpretação infinita, ina­ cessível em seu termo, conduza a Deus. Mas também, e por razões evidentes, o homem não pode de maneira alguma levar ao seu termo essa interpretação infinita que seria uma transgressão de seu espaço, já que ele mesmo é originá­ rio, de certa forma, do movimento de convergência desses dois termos postos, no início, como separados. Tudo o que ele pode fazer é idealizar um ponto de convergencia e formar com isso o que Berkeley chama de uma ideia de Deus. Encontramos-nos agora diante de um sistema quaternário que é o clássico sistema quaternário do signo, de que eu já havia falado. Os quatro termos estão aí: o significante material de um lado, o significado do outro lado, a ideia de Deus, e Deus. O significante - eu resumo um pouco as posições de Berkeley - é o material, o ser pontual da coisa bruta. O significado é a apropriação distanciada do mate­ rial idealizado, correlativo do desligamento-limite da perda do significante, é a linguagem, a linguagem compreendida em seus efeitos, é claro, a temporali­ dade oposta à pontualidade. Deus é a pontualidade temporal, a temporalidade condensada, é a eternidade, a eclosão superior das contradições. Ouanto à ideia de Deus, é o significante da eternidade, isto é, a renúncia à linguagem pela linguagem, é o enfoque temporal da eternidade. É o instante místico da graça, a repetição da renúncia ao significante, em renúncia a essa mesma renúncia. É

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uma recusa da temporalidade que é apresentada como se ela não existisse. Isso quer dizer que o enfoque linguageiro da eternidade se pretende ausente da eter­ nidade representada, tudo estando, é claro, bastante presente para que esta, ou seja, a eternidade representada, valha como pseudotransgressão, como o prova suficientemente que se goze desse instante místico, desse instante superior da graça. Ora, o instante da graça é muito exatamente a representação, do ponto de vista temporal da linguagem, da pontualidade perdida do significante. O universal da linguagem e da significação não se sustenta mesmo senão por essa tradução malograda do pontual, incessantemente recomeçada. É aqui que se resolve o paradoxo do impossível ao realizado, e ele se resolve de um modo que marcou a filosofia moderna e que se deve em parte a Berkeley, em parte igualmente a Locke. O pontual ou o significante não pode ter relação com o que seria o temporal ou o significado. Essa relação, na medida em que eles não têm nada em comum, é impossível. Mas eles podem ter uma relação com essa própria relação. Ora, o que é essa relação, senão a impossibilidade? Isso quer dizer que as figuras ima­ ginárias da mística são apenas, assim, a série-limite das representações perver­ sas desse impossível que a linguagem reveste, ou seja, desse buraco que passa entre o universal da significação e a corporalidade fechada do significante. O Outro barrado (A) aparece, pois, como o ponto de convergência da série das figuras da ausência do Um existente, a série da deriva, de certa forma, da função pai, a derivação infinita de seus efeitos, a partir de uma ruptura inicial. O trajeto do místico em direção a Deus é, pois, o esgotamento impossível do que já passa entre o universal e a existência excluída que o funda, entre o zero e o Um. Ora, é claro que é aí - já que eu falo de zero e de Um, para vocês perceberem a analogia - é bem aí, é claro, que o místico encontra A mulher, como significante, justamente, desse 'não toda' que sustenta sua busca. Mas vê-se que isso não mudou estritamente nada nesse novo desenvolvimento, e que a questão se coloca de novo, como inicialmente, ou seja, o que é então esse gozo feminino suplementar, à parte o significante desse fatum masculino? Pode-se tomar a questão por um outro viés, considerando talvez algo que já abordamos da mística e isso vai nos servir, quero falar de Kierkegaard e de sua história com Regina. Talvez Regina também tivesse um Deus, nos diz Lacan, que teria sido diferente do de Kierkegaard. E claro que não é Kierkega­ ard que nos dirá isso, mas tomando de certa forma a posição dele, posição que desenvolveu longamente, poderemos ver o lugar que ele reserva a Regina e 216

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esse lugar não é tão errôneo quanto parece. É preciso, diz Kierkegaard, situar-se na perspectiva temporal, ou então na perspectiva eterna. Essa distinção tem seus efeitos na própria temporalidade, isto é, na vida social, com relação ao que ele chama de massa. Ou se é um simples indivíduo e se reconhece como participante da massa, da ordem estabelecida, e graças a esse reconhecimento evita-se ser confundido com ela, ou se é o que Kierkegaard chama de diferentes nomes: gênio, indivíduo particular, ou indivíduo extraordinário e então se tem o dever, diante da eternidade, de dizer não à massa, à ordem estabelecida, pois é somente por intermédio desses gênios que fazem sua história, que a massa permanece em relação com a eternidade. A genialidade se apresenta como a repetição do ato de Cristo, pelo qual ele se separou da massa, ou ainda a repe­ tição do ato de Kierkegaard que, é o que deixa transparecer, ao transgredir a lei do noli tangere matrem, teria provocado Deus a manter o olhar incessantemente sobre ele e assim a particularizá-lo. O indivíduo extraordinário está numa relação pessoal com Deus. Ora, Kierkegaard pensava ter recebido de seu pai essa relação, que ele devia assumir pela genialidade. Ora, está precisamente aí, para ele, a explicação da ruptura do noivado com Regina. E que se ele tivesse se casado com Regina, diz ele, após o casamento ele teria sido forçado a fazer Regina entrar no segredo dessa relação pessoal com Deus, e isso seria trair essa relação, ou então, a não fazer nada disso, o que seria trair a relação do casal com Deus. Diante desse paradoxo, Kierkegaard decidiu romper, de todo modo, e a genialidade de Regina foi tê-lo recriminado por isso justamente em nome - o que lhe era permitido - do Cristo e do pai de Kierkegaard, o que significa que havia aí um duplo impasse do qual era impossível Kierkegaard sair. O que é mostrado por toda essa história é que, provavelmente, não há dois deuses, o de Regina e o de Kierkegaard, mas pelo menos, há, somente para Kierkegaard, dois caminhos a seguir, e a oposição é a do dois a um, ou seja, para Kierkegaard há dois caminhos a seguir, não para Regina. Os dois caminhos para Kierkegaard são: ou colocar-se na posição de excluído, dizer não ao 'todo x' e viver como se ele já estivesse morto, já sujeito da eternidade, ou então bus­ car Deus na relação imediata, por intermédio de seu semelhante. Espero que isso lhes lembre alguma coisa. O importante nesse dilema é, sobretudo, que Kierkegaard censura Regina por não se submeter a ele, ou seja, por não escolher na alternativa que ele pro-

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põe como sendo a da ética ou da estética. Ora, essa escolha, vê-se isso lendo, por exemplo, a biografia de Kierkegaard, é simplesmente estar ou não estar em . Compreende-se bem que tal dilema não se tenha colocado para Regina que, como mulher, está aí sem estar. Dito de outra forma, aí também há o silêncio. Quando Kierkegaard fala do Deus de Regina, ele crê que ela já fez a escolha da estética contra a ética. Ele diz que, para ela, Deus é uma espécie de avô compla­ cente e bastante benevolente, quando, de fato, essa escolha não se coloca, pois ela está aquém ou além dessa escolha, que se coloca somente para Kierkegaard. A questão que Kierkegaard levanta e que depois dele eu repetirei ao Dr. Lacan é: haverá uma alternativa para A mulher, e qual seria ela? A escolha passa entre o saber e o semblant, entre ser ou não ser histérica? A disjunção que passa entre o homem e a mulher, entre o todo e o 'não todo' corre o risco de permanecer - enquanto não tiver sido determinada a relação imaginária da mulher com o Outro, e o lugar do homem nessa relação - em singular analogia com o que eu chamei de terceira figura da disjunção, a disjunção de "a bolsa ou a vida" . Ou seja, não há relação do homem com o Outro sem o 'não toda' da mulher, mas, em contrapartida, há um gozo feminino suplementar, relação privilegiada com o Outro, um gozo pessoal de Deus.

Comentários de Jacques Lacan Que horas são? Sim, resta-me um quarto de hora, não sei o que posso fazer nesse quarto de hora, e penso que essa é uma noção ética, não é? A ética, como vocês talvez possam entrever, afinal, ou pelo menos aqueles que me ouviram falar outrora da ética ... Sim, a ética, é claro, tem a maior relação com o fato de habitarmos a linguagem, como eu dizia há pouco ao caro Jean-Claude Milner, em tom de confidência. E depois, desenvolvida por um outro autor que eu ree­ vocarei numa outra ocasião, a ética é da ordem do gesto. Quando se habita a linguagem, há gestos que se fazem, gestos de saudação, de prosternação, even­ tualmente, de admiração, quando se trata de um outro ponto de fuga, o Belo. O que eu dizia implica que isso não vai além. Faz-se um gesto e depois se conduz como todo o mundo, ou seja, como o resto dos canalhas. No entanto, enfim, há gesto e gesto, e o primeiro gesto que me é literalmente ditado por essa referência ética deve ser o de agradecer primeiramente a Jean­ Claude Milner, pelo que ele nos deu, enfim, do ponto presente da falha que se abre na própria linguística. E talvez, afinal de contas, isso justifique certo número 218

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de condutas que não devemos talvez, eu falo por mim, senão a certa distância em que estávamos dessa ciência em ascensão, quando ela pensava poder se tornar uma ciência. Certamente, a referência que buscamos aí era para nós de extrema urgência, pois de todo modo é muito difícil não perceber que, no que diz respeito à técnica analítica, se o sujeito que está diante de nós não diz nada, isso é uma dificuldade, no mínimo, inteiramente especial. O que nos indicou, em particular, Jean-Claude Milner, com respeito à dife­ rença radical, foi a que tentei lhes mostrar, no ano passado, escrevendo "alíngua" (lalangue) numa só palavra, foi o que propus dessa forma, com a junção dessas duas palavras, é exatamente por meio disso que eu me distingo. E isso me parece ser uma das numerosas luzes projetadas por Jean-Claude Milner, pelo que eu me distingo do estruturalismo, e, nomeadamente, na medida em que ele integraria a linguagem à semiologia. Como o indica o livrinho que eu lhes pedi que lessem, intitulado Titre de la lettre,10 é realmente de uma subordinação desse signo em relação ao significante que se trata, em tudo o que eu propus. Não posso esten­ der-me sobre isso, mas estejam certos de que voltarei ao tema. E preciso também que eu use este tempo para prestar homenagem a Fran­ çois Récanati, que me provou, certamente, com sua intervenção, que eu fui bem ouvido. Pode-se ver isso em tudo o que ele propôs como questões de ponta, que são aquelas que ainda me ficaram, neste fim de ano, por desenvolver, em outras palavras, por fornecer-lhes o que tenho desde agora como resposta, não é? Que ele tenha terminado com a questão de Kierkegaard e Regina é absolutamente exemplar, e como eu só tinha feito uma breve alusão a isso, foi bem de autoria dele. Não se pode ilustrar melhor, eu penso, no ponto em que estou desse desen­ volvimento que faço diante de vocês, não se pode ilustrar melhor, enfim, esse efeito de ressonância, que é simplesmente que alguém compreenda do que se trata. E pelas questões que ele me propôs, certamente, serei ajudado no que tenho a lhes dizer posteriormente. E lhe pedirei seu texto, eu lhe digo desde já, para que eu possa muito precisamente me referir a ele, quando eu puder lhe responder. Que ele se tenha referido a Berkeley, em contrapartida, não havia nenhuma indicação disso no que enunciei diante de você e é bem por isso que eu lhe fico ainda mais reconhecido, se fosse possíveL pois para lhes dizer tudo, eu tive o cuidado, recentemente, de conseguir uma edição originaL imaginem que sou 10

LACOUE-LABARTHE, P. , NANCY, J. L. Le titre de la Lettre. Une lecture de Lacan. Paris: Galilée, 1973 e 1990. 219

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também bibliófilo, mas tenho esse tipo de bibliofilia que só os livros que tenho vontade de ler eu tento conseguir no original. Revi nessa ocasião, domingo último, esse - não sei muito bem corno isso se pronuncia em inglês - esse Mínute phílosopher, Alcifron,U corno é chamado. Enfim, se Berkeley não tivesse sido um alimento meu antigo, provavelmente muitas coisas, inclusive minha desenvol­ tura para me servir das referências linguísticas, não teriam sido possíveis. Restam-me ainda dois minutos. Eu gostaria ainda de dizer alguma coisa sobre o esquema que, infelizmente, Récanati teve de apagar há pouco. É ver­ dadeiramente essa a questão, enfim, ser histérica ou não. Há Um ou não? Em outros termos, esse 'não toda', numa lógica que é a lógica clássica, parece impli­ car a 'ex-sistência' do Um, que faz exceção. De modo que seria aí que veríamos o surgimento em abismo, e vocês verão por que o qualifico assim, o surgimento dessa 'ex-sistência', dessa ao-menos-uma 'ex-sistência' que, diante da função
Autor grego do século II ou começo do século III de nossa era, que escreveu textos de ficção, cartas de pescadores, camponeses, mendigos, etc. que relatam e criticam a sociedade de seu tempo. Lacan se refere aqui à obra de Georges Berkeley: Alciphron, or The minute philosopher, de 1732. (N.T.)

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Lição 10 - 10 de abril de 1973

Ora, a partir do momento em que vocês estão diante de um conjunto infi­ nito, vocês não poderiam estabelecer que o 'não todo' comporta a 'ex-sistência' de alguma coisa que se produza de uma negação, de uma contradição. Vocês podem, a rigor, estabelecê-lo como de uma existência inteiramente indetermi­ nada. Só que se sabe, pela extensão da lógica matemática, aquela que é qualifi­ cada precisamente de intuicionista que, para estabelecer um 'existe', é preciso também poder construí-lo, ou seja, saber encontrar onde está essa existência. É nesse pé que me apoio para produzir esse afastamento na linha supe­ rior do que coloco como 'ex-sistência', muito bem qualificada por Récanati de excêntrica à verdade. É entre o existe x simples (3x) e o não existe x (::Jx) que se situa a suspensão dessa indeterminação entre uma existência que se encontra por se afirmar e A mulher que, pode-se dizer, não se encontra, o que é confir­ mado pelo caso de Regina. E, para terminar, eu lhes direi algo que vai constituir, como é o meu modo, um certo enigma. Se vocês relerem, em algum lugar, o que eu escrevi com o nome de "La chose freudienne" ,12 entendam aí o seguinte: só há uma maneira de poder escrever, sem barrar o artigo 'a' de que lhes falava há pouco A mulher - e poder escrever a mulher sem ter de barrar o 'a', é no nível em que a mulher é a verdade. E é por isso que ela só pode ser meio-dita. -

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LACAN, J. "La chose freudienne" . In: Écrits, op. cit., p. 401. 221

Lição 11 8

de maio 1973

Eu penso em vocês. Isso não quer dizer que eu os pense. Talvez alguém aqui se lembre de que falei de uma língua, na qual se diria - se for verdade o que me relatam de sua forma - "eu amo a você", no que ela se modela, melhor do que qualquer outra, pelo caráter indireto desse golpe1 que se chama o amor. 'Eu penso em vocês' é já fazer objeção a tudo o que poderia ser chamado de ciências humanas, dentro de certa concepção da ciência. Não aquela que se tem há apenas alguns séculos, mas aquela que, com Aristóteles, se definiu de certa maneira. Daí resulta que seja preciso nos interrogar sobre o fundamento, o princípio do que nos trouxe o discurso analítico, por que vias pode passar essa ciência nova que é a nossa. Isso implica que eu formule, primeiro, de onde partimos. De onde parti­ mos, é do que nos dá esse discurso analítico, ou seja, do inconsciente. É por isso que lhes darei/ primeiro, algumas fórmulas talvez um pouco densas, relativas ao que se pode dizer do inconsciente, e justamente tendo em vista essa ciência tradicional que nos leva a fazer esta pergunta: como uma ciência ainda (encare) - depois do que se pode dizer do inconsciente - ainda é possível? Eu já lhes anuncio que - por mais surpreendente que isso possa lhes parecer, de início, mas vocês verão que não é - isso me levará hoje a lhes falar do cristianismo.3 O inconsciente . . . - eu começo pelas minhas fórmulas difíceis, que suponho devam ser assim - o inconsciente . . . - tudo o que desenvolverei hoje vai tornar isso mais acessível, mas eu dou aqui minhas fórmulas - "o inconsciente não é que o ser pense", como está, contudo, implicado no que dizem dele, isso na ciência tradicional. "O inconsciente é . . . " - depois de dizer o que ele não é, digo o que ele é - " ... é que o ser, falando ... " - quando é um ser que fala - " ... é que o

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Em francês: cette atteinte11 ('golpe', 'ferida', 'injúria', 'ultraje' ... ), ação do verbo atteindre" (atingir, 'alcançar', 'tocar', mas também 'golpear', 'ferir', 'abalar' ...) . (N.T.) A versão

publicada (op. cit., p. 95) traz aqui: je limerai (eu limarei) . (N.T.)

A versão

publicada (op. cit., p. 95) introduz aqui a separação: Parte 1. (N.T.) 223

Encare

ser, falando, goze" . E eu acrescento: "e não queira saber nada, mais nada disso." E acrescento que isso quer dizer: "não saber nada de nada." 4 E para pôr logo na mesa uma carta, pela qual eu poderia fazê-los esperar um pouco: não há desejo de saber, não há esse famoso Wissentrieb, que Freud aponta em algum lugar. Aí Freud se contradiz. Tudo indica, é esse o sentido do inconsciente, não só que o homem já sabe tudo o que ele tem a saber, mas que esse saber é perfeitamente limitado a esse gozo insuficiente, que constitui que ele fale. Vocês veem bem que isso comporta uma questão sobre o que é essa ciência efetiva que possuímos bem sob o nome de Física. Em que essa nova ciência concerne ao Real? O erro da ciência que eu qualifico de tradicional, por ser aquela que nos vem do pensamento de Aristóteles, esse erro, eu disse, é implicar que o ser pense, que o pensamento (la pensée) sej a tal que o pensado (le pensé) 5 seja à sua imagem, isto é, que o ser pense. Para dar um exemplo que lhes seja mais próximo, adiantarei que o que torna o que chamamos de 'relações humanas' suportáveis não é o fato de pensar nelas. E foi nisso, em suma, que se fundou o que se chama comicamente de "beha­ viorismo" : a conduta, no seu dizer, poderia ser observada de tal modo que ela se esclarece por seu fim. E foi nisso que se esperou fundar as ciências humanas, envolver todo comportamento, não estando aí suposta a intenção de nenhum sujeito. De uma finalidade colocada como objeto desse comportamento, nada mais fácil - esse objeto tendo sua própria regulação - do que imaginá-la no sis­ tema nervoso. O problema é que ele não faz nada mais do que injetar aí tudo o que se elaborou filosoficamente, aristotelicamente, sobre a alma. Nada mudou. O que se percebe pelo fato de que o behaviorismo não se distinguiu, que eu o saiba, por nenhuma revolução da ética, isto é, dos hábitos mentais. O hábito "funda-mental" sendo que um objeto serve para um fim, ele se fundamenta ­ o que quer que se pense a respeito, isso está sempre ali - em sua causa final, a qual é viver, no caso, ou mais exatamente sobreviver, isto é, adiar a morte e dominar o rival. 4 5

A versão publicada (ap. cit., p. 95) suprime os comentários intercalados nesse parágrafo. (N.T.) A Versão 1 traz aqui: le penser (o pensar). A Versão 2 e a versão publicada (op. cit., p. 96 ) tra­ zem: le pensé (o pensado). (N.T.)

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Como vocês veem, é claro que o número de pensamentos implícitos numa tal concepção do mundo, Weltanschauung, como se diz, é propriamente incal­ culável. E sempre da equivalência do pensamento (la pensée) e do pensado (le pense)6 que se trata. O que é mais evidente, desse modo de pensar a ciência tradicional, é o que se chama seu classicismo, o reino aristotélico da classe, ou seja, do gênero e da espécie, dito de outra forma, do indivíduo considerado como especificado. É também a estética que resulta daí e a ética que se ordena a partir daí. Eu a qualificarei de um modo simples, simples demais, e com o risco de fazer vocês verem sangue, é o caso de dizê-lo, mas seria um erro ver isso depressa demais. De todo modo, vou dizer minha fórmula: o pensamento está do lado do manche7 e o pensado do outro lado. O que se lê: já que o manche é a palavra, só ele explica e dá razão e nisso, o behaviorismo não sai do clássico. É dit-manché - a ser escrito como eu escrevi dit-mension - Le dimanche de la vie,9 como diz Queneau, não sem revelar, ao mesmo tempo, seu ser de embrute­ cimento, não evidente, à primeira vista. Mas o que eu ressalto é que esse Diman­ che foi lido e aprovado por alguém que, na história do pensamento, sabia um bocado sobre isso. Seu nome é Kojeve, que aplaudiu esse Dimanche de la vie, reconhecendo nele nada menos do que o saber absoluto, tal como ele nos é prometido por Hegel.10 Como alguém percebeu recentemente, eu me alinho - quem me alinha, será ele ou serei eu? finura da língua - eu me alinho mais do lado do barroco. É uma referência tirada da história da arte. Como a história da arte, do mesmo modo que a história e a arte têm a ver não com le manche, mas com la manche,11 ou seja, com a arte da prestidigitação, antes de continuar, é preciso que eu diga o que entendo por isso: o sujeito "eu" não sendo mais ativo no 'eu entendo' do que no 'eu me alinho' mais do lado do barroco. 6

Cf. nota 5.

7 O substantivo masculino le manche significa 'cabo' de instrumento ou ferramenta: faca, vassoura, enxada, e a expressão "du côté du manche" quer dizer: "do lado mais forte" . (N.T.) 8 9

10 11

Jogo de palavras entre dit (dito), dimanche (domingo) e manche, cf. nota 7. (N.T.) QUENEAU, R. Le dimanche de la vie. Paris: Gallimard, 1995. A versão publicada (op. cit., p. 97) insere aqui uma separação: Parte 2. (N.T.) "Faire la manche recolher dinheiro após apresentar algum número de prestidigitação ou de música na rua, nos cafés, no metrô etc. (N.T.) 225

Encare

E é o que vai me fazer mergulhar na história do cristianismo. Vocês não esperavam por isso e, contudo, eu vou fazê-lo, pronto! O barroco é, no início, a historieta, a pequena história de Cristo, quero dizer, o que conta a história de um homem. Não se impressionem, foi ele mesmo quem se designou como o Filho do Homem, o que contam quatro textos ditos evangélicos, por serem, não tão boa nova quanto bons anunciadores para sua espécie de nova.12 Isso pode também ser entendido assim, e me parece mais apropriado. Eles escrevem de um modo tal, que não há um só fato que não possa ser ali contestado. E Deus sabe que, naturalmente, (as pessoas) entraram ali de cabeça,B não se privaram disso. Mas esses textos não deixam de ser o que está no âmago da verdade, da verdade como tal, inclusive o fato que eu enun­ cio, que só se pode dizê-la pela metade. E uma simples indicação, não é? Esse êxito extraordinário implicaria que eu tomasse os textos e lhes desse aulas sobre os Evangelhos. Vocês podem ver aonde isso nos levaria! Isso para lhes mostrar que eles só podem ser abordados mais de perto à luz das categorias que tentei extrair da prática analítica, nomeadamente o Simbó­ lico, o Imaginário e o Real. Para nos limitarmos à primeira, eu enunciei que a verdade é a dit-mention/4 no início, a dit-mention propriamente dita, a menção do dito. Nesse gênero, os Evangelhos, não se pode dizer melhor, não se pode dizer melhor da verdade, é daí que resulta que eles sejam Evangelhos. Não se pode mesmo fazer funcionar melhor a dimensão da verdade, isto é, empurrar melhor a realidade para o fantasma. Afinal, o que se seguiu demonstrou suficientemente - pois deixo os tex­ tos, limitando-me ao efeito - que essa dit-mention se sustenta. Elél inundou o que chamamos de mundo, restituindo-o à sua verdade de imundície. Isso quer 12

Evangelho vem do grego euangelíon (boa nova), através do latim evangelium. Cf: Novo Dicioná­ rio Aurélio. (N.T.) 1 e a versão publicada (op. cit., p. 97) trazem aqui: "on a foncé dans la muleta" (pano vermelho usado nas touradas para provocar o touro), expressão que, embora não seja muito comum, teria esse sentido figurado traduzido acima. A leitura encontrada na Versão 2 é bem diierente: "on a foncé dans la boulette", este último termo sendo usado na linguagem familiar, sinônimo de bévue (mancada, gafe, engano). (N.T.)

13 A Versão

14

Esse jogo de palavras que Lacan usa em várias ocasiões aparece com as grafias dit-mension (na versão publicada (op. cit., p. 97), dit-mention (na Versão 1), dit-mansion (na Versão 2.), reme­ tendo, respectivamente, a 'dimensão do dito', a 'menção do dito' e a 'mansão do dito'. (N.T.)

226

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dizer que ela levou adiante o que o romano/5 pedreiro como ninguém, havia fundado com um equilíbrio milagrosamente universal, com, além do mais, banhos de gozo, que é o que simbolizam suficientemente aquelas famosas ter­ mas, das quais nos restam alguns pedaços desmoronados. Não podemos fazer a menor ideia, no que se refere ao gozar, enfim, de até que ponto aquilo era o máximo! O cristianismo descartou tudo isso na abjeção considerada mundo. É assim que não é sem uma afinidade íntima com o problema do verdadeiro que o cristianismo subsiste. Que ele seja a verdadeira religião, como pretende, não é uma pretensão excessiva e tanto mais que examinando o verdadeiro de perto, é o que se pode dizer dele de pior. Em particular que, nesse registro, o da ver­ dade, quando se entra, não se sai mais. Para menorizar16 a verdade, como ela merece, é preciso ter entrado no dis­ curso analítico. O que o discurso analítico desaloja põe a verdade em seu lugar, mas não a abala. Ela é reduzida, mas indispensável, tudo está nisso, e nada prevalecerá contra essa consolidação. Salvo o que subsiste das sabedorias - mas que não se confrontaram com isso. O taoísmo, por exemplo, ou outras doutri­ nas da salvação, para as quais a questão não é de verdade, mas de via, como indica o nome tao. De via, se elas conseguirem prolongar alguma coisa que se assemelhe a isso. E verdade que a historieta de Cristo, segundo todas as aparências e como eu enunciei claramente - tendo até mesmo como efeito que há pessoas que são gentis, elas fazem como os cães, apanham a bola para mim e a trazem de volta, trouxeram-na de volta -, a historieta, como eu dizia então, apresenta-se não como empreendimento para salvar os homens, mas para salvar Deus. É preciso reconhecer que, para aquele que se encarregou desse empreendimento, Cristo, nomeadamente, para aqueles que forem inteiramente surdos, não é? Pois bem, ele pagou o preço, é o mínimo que se possa dizer. E o resultado, é de se espantar que ele pareça satisfazer. Pois que Deus seja três, indissoluvelmente, isso é de natureza, porém, a nos fazer prejulgar que a conta um, dois, três preexista a ele. 15 16

Alusão ao apóstolo São Paulo, que era romano, a quem se atribui a construção do cristianismo. (N.T.) Lacan usa (nas três versões que consultamos) o verbo 'minoriser', que é raro em francês, como este 'menorizar', que traduzimos, com o sentido de 'tornar menor', em lugar do que seria mais comum nas duas línguas: minimiser (minimizar), que tem também o sentido pejorativo de 'subestimar', 'dar pouca importância', o que não é o caso aqui. (N.T.) 227

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De duas coisas, uma, ou ele só leva em conta o a posteriori da revelação crística e é seu ser que recebe um golpe, ou se o três lhe é anterior, é sua unidade que é atingida. Daí torna-se concebível que a salvação de Deus seja precária, entre­ gue, em suma, à boa vontade dos cristãos. O divertido, evidentemente - eu já lhes contei isso, mas vocês não ouviram - o divertido é que o ateísmo só seja sustentável pelos clérigos ... É muito mais difícil entre os leigos, cuja inocência na matéria permanece total. Lembrem-se daquele pobre Voltaire: era um cara esperto, ágil, astucioso, extraordinaria­ mente saltitante, mas perfeitamente digno de entrar ali, vocês sabem, no depó­ sito17 ali em frente, no Panthéon. Freud, felizmente, nos deu uma interpretação necessária, que 'não cessa de se escrever', como eu defino o necessário, uma interpretação necessária do assassinato do filho, como fundador da religião da graça. Ele não o disse exata­ mente assim, mas marcou bem que era um modo de denegação/8 o que cons­ titui uma forma possível da confissão da verdade. É assim que Freud re-salva o pai, no que ele imita Jesus Cristo, modestamente, sem dúvida. Ele não se empenha muito nisso, mas contribui, com sua pequena parte, como o que ele é, ou seja, um bom judeu, não totalmente inteirado. Isso é excessivamente difun­ dido . . . E preciso que sejam reagrupados para que eles tomem o freio nos dentes. Quanto tempo isso vai durar? Porque há, contudo, alguma coisa, Deus meu, que hoje eu não gostaria mais de abordar, com respeito à essência do cristianismo. Vocês hoje vão penar com isso, e então é preciso que eu retome o que disse acima.19 A alma - é preciso ler Aristóteles, vocês sabem, é uma boa leitura - é evi­ dentemente a isso que leva o pensamento do manche. 20 É tanto mais necessário, ou seja, não cessando de se escrever, que o que ele elabora ali, o dito pensamento em questão, são pensamentos sobre o corpo. O corpo, isso deveria surpreender 17

18

Lacan usa aqui o termo "vide-poches", certamente pejorativo, para falar ironicamente do Pathéon (onde repousam os homens ilustres), pois designa o recipiente na parte inferior da porta do carro ou em qualquer 1ugar, destinado a "esvaziar os bolsos". Cabe lembrar que o seminário de Lacan tinha lugar, na época, na Faculdade de Direito, "ali em frente" ao Pan­ théon. (N.T.) Em francês, Lacan diz: dénégation. (N.T.)

19 A versão publicada (op. cit., p. 99) insere aqui uma separação: Parte 3. (N.T.) 20

Cf. nota 7. (N.T.)

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mais vocês. De fato, é exatamente isso que surpreende a ciência clássica. Como isso pode funcionar assim? Ou seja, ao mesmo tempo um corpo - o de vocês, ou qualquer outro, aliás, corpo que se move, é a mesma coisa, vocês estão no mesmo ponto - é preciso, ao mesmo tempo, que isso baste .... Alguma coisa me fez pensar assim, a pequena síndrome que eu vi sair de minha ignorância, e que me foi lembrada: que se por acaso as lágrimas secassem, o olho não funcio­ naria mais muito bem. E o que eu chamo de milagres do corpo, isso j á se sente imediatamente. Suponham que a glândula lacrimal não secretasse mais, não produzisse mais lágrimas, vocês teriam problemas, é claro. E, por outro lado, é um fato que ela choraminga - e por que diabos? - quando corporalmente, imaginariamente ou simbolicamente alguém lhe pisa no pé. Você é 'afetado', é como chamam isso. Que relação pode haver entre esse choramingar e o fato que implica em se proteger de um imprevisto, ou seja, o fato de cair fora (se barrer)?21 Esta é uma fórmula vulgar, mas diz bem o que ela quer dizer, porque coincide exatamente com o sujeito barrado, do qual vocês ouviram aqui alguma conso­ nância. O sujeito se barre, com efeito, como eu disse, e mais frequentemente do que quando é sua vez. Constatem aí, somente, que há toda vantagem em unificar a expressão para o Simbólico, o Imaginário e o Real, como - eu digo isso entre parênteses - como o fazia Aristóteles, que não distinguia o movimento da CrJ..Ãoiwmcjalloiosis. A mudança e a moção no espaço eram - para ele, mas ele não sabia - que o sujeito se barra. Evidentemente, ele não possuía as verdadeiras categorias, no entanto, sentia bem as coisas. Em outros termos, o importante é que tudo isso funcione o suficiente para que o corpo subsista, salvo acidente, como se diz, externo ou interno. Isso quer dizer que o corpo é tomado pelo que ele se apresenta ser, um corpo 'fechado', como se diz. Quem não vê que a alma nada mais é do que sua identidade suposta a ele mesmo (a esse corpo), com tudo o que se pensa para explicá-lo? Resumindo, a alma é o que se pensa a respeito do corpo, do lado do manche. 22 E nos tranqui­ liza pensar que ele pense, da mesma forma, daí a diversidade das explicações: quando ele é suposto pensar secreto, ele tem secreções, quando é suposto pen­ sar concreto, ele tem concreções, quando é suposto pensar informação, ele tem 21

22

Em francês, o verbo barrer tem o sentido habitual de "barrar", mas na forma pronominal, se barrer, é usado, na linguagem popular, no sentido de 'cair fora', 'se mandar' . (N.T.) Cf. nota 7. 229

Encore

hormônios, ou então ele se aplica ao A.D.N.,23 Adonai, Adônis, enfim, tudo o que vocês quiserem ... Tudo isso para levá-los ao que eu anunciei, contudo, no início, sobre o sujeito do inconsciente, pois eu não falo unicamente assim, à toa. É realmente curioso que não tenha sido questionado na psicologia que a estrutura do pensa­ mento repouse na linguagem, a qual linguagem, está aí toda a novidade desse termo 'estrutura': os outros, qualificados com essa etiqueta, fazem disso o que quiserem, mas eu, o que ressalto é que a linguagem comporta uma inércia con­ siderável. O que se vê, ao comparar seu funcionamento com esses signos que chamamos de matemáticos, "maternas", unicamente pelo fato de que eles se transmitem integralmente. Não se sabe absolutamente o que eles querem dizer, mas eles se transmitem. De todo modo, eles só se transmitem com a ajuda da linguagem, e é o que faz toda a claudicação da coisa. Que haja algo que funde o ser, é certamente o corpo. Sobre isso, Aristóteles não se enganou. Ele separou muitos deles, um por um, na história dos animais, mas não conseguiu, leiam-no bem, fazer a junção disso com sua afirmação. Trata-se do que ele afirma. Vocês, naturalmente, nunca leram De anima, apesar das minhas súplicas, mas o que ele afirma é que o homem pensa ' com' - instru­ mento, hem? - 'com' sua alma. Ou seja, como acabo de lhes dizer, eu poderia resumir isso rapidamente, os mecanismos, os mecanismos supostos com que se sustenta seu corpo. Naturalmente, prestem atenção, somos nós que estamos às voltas com os mecanismos, por causa da nossa Física, mas nossa Física, aliás, é uma Física j á indo para a garagem... Quero dizer, porque houve a Física quântica e desde então, os mecanismos estão fora! Mas, enfim, em Aristóteles que não entrou nos desfiladeiros do mecanismo, isso quer dizer simplesmente isso, era o que ele pensava. Então, "o homem pensa com sua alma" quer dizer que o homem pensa com o pensamento de Aristóteles, no que o pensamento está, natural­ mente, do lado do manche.24 E evidente que se tinha tentado, contudo, fazer melhor que isso. Há ainda outra coisa, antes da física quântica, há o energetismo e a ideia de homeostase. Mas tudo isso nos levaria... Sim, nos levaria a isso, que o inconsciente é outra coisa bem diferente. E eu estreitei a coisa em torno do que enunciei de início, ou 23

Sigla usada, em francês, para

24

Cf. nota 7. (N.T.)

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D.N.A. (N.T.)

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seja, o que chamei de inércia na função da linguagem, o que faz com que toda palavra (parole) seja essa energia ainda não presa numa energética, porque essa energética não é cômoda de se medir... Para extrair dali não quantidades, mas cifras, e que sejam escolhidas de um modo completamente arbitrário, dá-se um jeito para que reste sempre em algum lugar uma constante, pois é esse o fun­ damento da energética. Pois bem, não é cômodo. Quanto à inércia, em questão, somos forçados a tomá-la no nível da própria linguagem. Que relação pode haver entre a articulação que constitui a linguagem e um gozo que se revela ser a substância do pensamento, que faz desse pensamento tão facilmente refletido no mundo pela ciência tradicional, aquele que faz com que Deus seja o Ser Supremo e que esse Ser Supremo não possa ser, segundo Aristóteles, nada mais do que o lugar de onde se sabe qual é o Bem de todos os outros. Disso resulta alguma coisa. Alguma coisa que não tem muita relação com o pensamento, se nós o considerarmos, antes de tudo, como dominado por essa inércia da linguagem. Não é muito surpreendente que não se tenha sabido como estreitar, cer­ car, fazer guinchar o gozo, servindo-se do que parece melhor para sustentar o que chamo de inércia da linguagem, ou seja, a ideia da cadeia, dos pedaços de barbante, isto é, dos pedaços de barbante que formam círculos e, não se sabe como, se prendem uns aos outros. Eu já lhes falei disso uma vez e tentarei, é claro, fazer melhor, a respeito de uma lição sobre a qual eu mesmo me espanto, à medida que avanço em anos, que as coisas do ano passado me pareçam de há cem anos. Foi então no ano passado que tomei como tema a fórmula que pensei poder sustentar com um nó bem conhecido, que se chama nó borromeano, a fórmula: "eu te peço que recuses o que te ofereço, porque não é isso" . Esta é uma fórmula cuidadosamente adaptada ao seu efeito, como todas aquelas que eu profiro. Vejam em 11 L'étourdit", eu não disse: "o dizer fica esquecido, etc ... ", eu disse: que se diga" . Da mesma forma eu não disse 11 por­ que é só isso", eu disse "porque não é isso!". É o grito pelo qual se distingue o gozo obtido do gozo esperado: é onde se especifica o que se pode dizer na linguagem. A negação tem toda a aparência de vir daí, mas nada além disso. A estrutura, por se ligar aí, não demonstra nada senão que ela é do próprio texto do gozo, na medida em que, ao marcar de que distância ele falta, aquele (gozo) de que se trataria, se fosse isso, ela não apenas o supõe, aquele que seria isso, ela sustenta um outro. 11

231

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Aí está. Essa dit-mention, e aí eu me repito, mas estamos num campo em que, justamente, a lei é a repetição. Essa dit-mention25 é o dizer de Freud, é até mesmo a prova da existência de Freud - dentro de certo número de anos, será preciso uma prova ... Há pouco eu o aproximei, assim, de um coleguinha, eu o aproximei de Cristo. Bom, evidentemente, é preciso também ter a prova da existência de Cristo, ela é evidente, é o cristianismo. O cristianismo, de fato, como vocês sabem, se agarrou nisso. Enfim, por enquanto, temos os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,26 aos quais eu os remeto, pois farei uso deles, como fiz outrora uso desses escritos sobre o que eu chamo de 'a deriva'/7 para traduzir Trieb, a deriva do gozo. Sim. Tudo isso, em suma, tudo isso, eu insisto, é propriamente o que foi colabado28 durante toda a antiguidade filosófica pela ideia do conhecimento. Graças a Deus, Aristóteles era bastante inteligente para isolar no intellect-agent aquilo de que se trata na função do Simbólico. Ele simplesmente viu que era ali, no Simbólico, que o intelecto devia agir. Mas ele não era bastante inteligente, não o suficiente, não tendo gozado com a revelação cristã, para pensar que uma palavra, mesmo que fosse a dele, para designar esse vou<; que só se sustenta pela linguagem, dissesse respeito ao gozo que, no entanto, se designa em sua obra, metaforicamente, por toda parte. Porque toda essa história da matéria e da forma, o que é tudo isso, o que isso sugere como velha história relativa à copulação? Isso lhe teria permitido ver que não é isso, de modo algum, que não há o menor conhecimento! O mínimo que se possa dizer é que os gozos, que sustentam seu semblant, são algo como o espectro da luz branca. Com a única condição que se veja que o gozo de que se trata está fora do campo desse espec­ tro. Trata-se de metáfora. E é preciso colocar, de tudo o que é do gozo, é preciso colocar a falsa finalidade como respondendo ao que não é senão pura falácia de um gozo que seria apto29 à relação sexual. E a esse título, todos os gozos não 25

Cf. nota 14. (N.T.)

26

FREUD, S. "Ires ensayos de teoría sexual". In: Obras completas, vol. VIL Buenos Aires: Amor­ rortu Editores, 1987.

27

Deriva: "Desvio de um navio, de um avião, em relação à sua rota, sob o efeito dos ventos e das cor­ rentes". Ficar à deriva: sem rumo ao sabor dos ventos. Cf. Dictionnaire Nouveau Petit Robert. (N.T.)

8 2 29

Termo médico usado por Lacan: solapado, aluído. (N.T.) Lacan diz " apte" na gravação. As Versões 1 e 2 e a versão publicada (op. cit., p. 102) transcre­ vem: "adéquate" (adequado). (N.T.)

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passam de rivais da finalidade que haveria, se o gozo tivesse a menor relação com a relação sexuaP0 Vou acrescentar uma pincelada a mais sobre Cristo, porque é uma perso­ nagem importante. E depois, porque isso vem aqui para comentar o barroco, e não é à toa que dizem que meu discurso participa do barroco. Vou lhes fazer uma pergunta: que importância pode ter, na doutrina cristã, que Cristo tenha uma alma? Essa doutrina só fala da encarnação de Deus num corpo, e que é preciso que a paixão sofrida nessa pessoa tenha feito o gozo de uma outra. Não há nada que falte ali, especialmente alma. O próprio Cristo, ressuscitado, vale por seu corpo e seu corpo é o meio pelo qual a comunhão com sua presença é in-corpo-ração,31 pulsão oral, com a qual a esposa de Cristo, a Igreja, como é chamada, se contenta perfeitamente, não tendo nada a esperar de uma copulação . . . E m tudo o que s e abateu, dos efeitos d o cristianismo, especialmente sobre a arte - e é esse meu contato com esse barroquismo, do qual aceito estar revestido, não é? - vejam o testemunho de alguém que volta de uma ' orgia' de igrejas na Itália. Tudo é exibição de corpos que evocam o gozo, só falta a copulação e, se ela não está presente, não é sem razão. Ela está tão fora de campo quanto está na realidade humana, que ela sustenta - que ela sustenta, porém, com os fantasmas de que é constituída. Em nenhum lugar, em nenhuma área cultural essa exclu­ são se confessou de maneira mais nua. Eu direi um pouco mais - e não creiam que meus dizeres, eu não os dose para vocês - irei até o ponto de dizer-lhes que em nenhum lugar, como no cristianismo, a obra de arte, como tal, revela-se de modo mais patente pelo que ela é, desde sempre e por toda parte: obscenidade. A dit-mension32 da obscenidade, é por aí que o cristianismo reaviva a reli­ gião dos homens. Não vou lhes dar uma definição da religião, porque não há história da religião como também não há história da arte. As religiões são como as artes, uma lixeira, não têm a menor homogeneidade. Há, contudo, alguma coisa nesses utensílios que se fabricam, disputando a primazia . . . Trata-se da urgência, para esses seres que, por natureza, falam, 30

Em francês, nas três versões que consultamos: "le moindre rapport avec le rapport sexuel". Cf. sobre a tradução de rapport e relation, a nota 32 da lição 1 . A versão publicada (op. cit., p. 102) introduz aqui uma separação: Parte 4. (N.T.)

31 Em francês: in-corps-poration. (N.T.) 32 Cf. nota 14. (N.T.) 233

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urgência que constitui que eles cheguem ao jogo amoroso de maneiras excluídas do que eu poderia chamar, se fosse concebível - no sentido que dei há pouco à palavra alma, ou seja, o que faz com que isso funcione - excluídas do que seria a alma da copulação. Se eu ousar sustentar com essa palavra o que, ao levá-los a isso, efetivamente - se isso fosse a alma da copulação - seria elaborável pelo que eu chamo de física que, no caso, nada mais é do que isso: um pensamento que pode ser suposto ao pensar.33 Há aí um buraco e esse buraco se chama o Outro, pelo menos foi assim que pensei poder denominá-lo. O Outro, enquanto lugar onde a palavra (parole), por ser depositada -prestem a atenção nas ressonâncias -funda a verdade e, com ela, o pacto que faz suplência à inexistência da relação sexual, na medida em que ele seria pensado, pensamento pensável. Em outras palavras, o discurso não seria reduzido anãopartir-lembrem-se dotítulo deumdosmeusseminários- senão dosemblant.34 Que o pensamento só aja no sentido de uma ciência sendo suposto ao pensar, isto é, que o ser seja suposto pensar, é isso que funda a tradição filosófica a partir de Parmênides. Parmênides estava errado e Heráclito tinha razão, é isso que se depreende do fato de que Heráclito35 enuncie em algum lugar: otn:E M:ya oÓTE xpurrTa, "ele não confessa nem esconde", UÀÀ.a Of]paiva, " ele significa", reme­ tendo ao seu lugar o próprio discurso do manche, com que ele chama: ó &váÇ oó TO IJOVTEIÓv ÉoTÀ TÓ É v LlEÀq:Joiç, "o príncipe" - o manche - "que vaticina em Delfos" .36 O mais inverossímil, a história louca, aquela que, quanto a mim, faz o delí­ rio de minha admiração, eu me curvo até o chão, quando leio Santo Tomás, porque é incrivelmente bem feito. Para que a filosofia de Aristóteles tenha sido reinjetada por Santo Tomás no que se poderia chamar de ' consciência cristã', se isso tivesse um sentido, é algo que pode ser explicado porque ... Enfim, é como para os psicanalistas . . . Os cristãos têm horror37 do que lhes foi revelado, e eles têm toda a razão! 33

A Versão 2 traz aqui: pensé (pensado). (N.T.)

34

LACAN, J. Le séminaire, livre XVIII, D'un discours qui ne serait pas du semblant. Paris: Éditions du Seuil, 2006.

35

Lacan se engana, quando diz aqui Parmênides. Trata-se de Heráclito, como traz a versão publicada (op. cit., p.103) . As outras versões h·azem o que diz Lacan: Parmênides.

36

HÉRACLITE. In: Les présocratiques. Paris: Gallimard, Bibliotheque de la Pléiade, p. 167 B XCIII.

37

Lacan grita "horreur!".

234

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Essa hiância inscrita no próprio estatuto do gozo, enquanto dit-mension do corpo, isso no ser falante, é o que reaparece com Freud, através desse teste - eu não digo nada a mais - que é a existência da palavra (paro/e). Onde isso fala, isso goza. O que não quer dizer que isso saiba alguma coisa, porque, de todo modo, até segunda ordem, o inconsciente não nos revelou nada sobre a fisiologia do sistema nervoso, não? Nem mesmo sobre o funcionamento da ereção, ou das ejaculações precoces . . . Para terminar com essa história d a religião verdadeira, apontarei, contudo, enquanto ainda é tempo, que Deus só se manifesta pelas Escrituras, que são ditas 'santas'. Elas são santas em quê? No que não cessam de repetir o fracasso - leiam de todo modo Salomão, que é o mestre dos mestres, é o senti-maltre . . 38 um tipo no meu gênero - o fracasso das tentativas de uma sabedoria de que o mestre39 seria o testemunho. Tudo isso não quer dizer, meus caros amigos, que não tenha havido coisas, de tempos em tempos, graças às quais o gozo - sem contar com isso não pode­ ria haver sabedoria - pôde se acreditar ter vindo para esse fim, de satisfazer o pensamento do ser. Mas eu acrescento: esse fim só foi satisfeito ao preço de uma castração. No taoísmo, por exemplo, vocês certamente não sabem o que é, muito pou­ cos o sabem, enfim, eu o pratiquei - pratiquei os textos, evidentemente - no taoísmo, e o exemplo disso é patente na própria prática do sexo, é preciso reter a ejaculação4° para ficar bem. O budismo, é claro, é o exemplo trivial por sua renúncia ao próprio pensamento, porque o que há de melhor no budismo é o zen e o zen consiste nisso, em lhe responder com um latido,41 meu caro amigo. .

38

De senti (sentido/ sentimento) metre (centímetro). (N.T.)

+

39

Forma encontrada na Versão 2. A Versão 1 e a versão publicada (op. cit., p. 104) trazem aqui: être (ser) em lugar de maftre (mestre), palavras com sonoridade semelhante. Como vimos ante­ riormente, Lacan joga com essas duas palavras. Cf. nota 15 da lição 6. (N.T.)

40

Lacan diz: "foutre", que é um termo popular, no francês, para 'esperma', mas usual em várias outras expressões, de modo que perde um pouco, a nosso ver, o caráter chulo e grosseiro que teria sua tradução literal em português para "esporro", sobretudo dito diante de uma plateia. (N.T.)

41

Tradução literal do francês aboiement, que remeteria ao koan, espécie de frase curta, breve his­ tória absurda ou paradoxal, uma espécie de provocação, com que o mestre zen busca surpre­ ender o discípulo e despertá-lo ou colocá-lo num estado receptivo. Flecher cita uma passagem de um texto traduzido por Paul Demiéville, primeiro professor de chinês de Lacan, que ilustra

maítre (mestre), por analogia com a palavra homófona centi­

235

Encare

É o que há de melhor quando se quer, naturalmente, sair desse negócio infernal, como dizia Freud. É mais provável que a fabulação antiga, a mitologia, como vocês chamam isso, ou como Claude Lévi-Strauss também a chamava, a mitologia da área mediterrânea, entre outras, é justamente aquela em que não se pode tocar, por­ que é a mais abundante e, sobretudo, porque tiraram tanto 'caldo' dela, que não se sabe mais de que lado abordá-la. Pois bem, essa mitologia chegou tam­ bém a alguma coisa, a algo no gênero da psicanálise. . . Vocês compreendem, esses deuses, havia deles aos montes, bastava encontrar o certo e isso fazia esse truque, esse truque contingente ... o que faz com que às vezes, após uma aná­ lise, cheguemos a que cada um transe convenientemente com sua cada uma ... Eram, contudo, deuses, isto é, representações um pouco consistentes do Outro. Porque, naturalmente - deixemos de lado a fraqueza da operação analítica há uma coisa muito singular, é que isso é tão perfeitamente compatível com a crença cristã que, desse politeísmo, nós vimos o renascimento, na época desig­ nada pelo mesmo nome. Digo-lhes tudo isso porque, justamente, estou voltando dos museus e, em suma, a Contra-Reforma ... Ah! A Contra-Reforma era voltar às origens e o Bar­ roco é a ostentação disso, é a regulação da alma pela escopia corporal. Será pre­ ciso que uma vez, enfim, não sei se algum dia terei tempo de falar da música, nas margens. Mas falo apenas do que se vê em todas as igrejas de Roma,42 em tudo o que se pendura nas paredes, tudo o que desmorona, tudo o que delícia, tudo o que delira, não é? Enfim, o que chamei, há pouco, de obscenidade, mas exaltada. Eu me pergunto, em primeiro lugar, para alguém que viesse dos confins da China, que efeito lhe poderia causar essa enxurrada de representações de mártires. E eu diria que isso se inverte, essas representações são, elas próprias, mártires - vocês sabem que mártir quer dizer testemunha - mártires de um sofrimento mais ou menos puro. Isso foi nossa pintura, até que se fizesse o vazio, começando seriamente a se ocupar de 'quadradinhos'. o que poderia ser esse 'latido': "Um monge perguntou qual era a grande ideia do budismo. O mestre fez: khât. O monge se inclinou. O mestre disse: "Aí está alguém que se mostra capaz de sustentar a discussão". E Demiéville precisa que esse khât era "uma espécie de eructação" . (Cf. FLECHER, C. "Lacan, koanalyste ? Analyste, quoi!" no site: www.lacanchine.com/FG07.html, onde há outros artigos sobre o tema). (N.T.) 42 A Versão 2 e a versão publicada (op. cit., p. 105) trazem aqui: "da Europa" . (N.T.) 236

.o 1 1 - 8 de maio de 1973

Mas há, depois, uma redução da espécie humana, não é? É o que motiva, provavelmente, que esse nome humaine ressoe como humeur malsaine,43 há um resto que dá: malheur,44 infelicidade. Essa redução é o termo pelo qual a Igreja entende levar a espécie justamente até o final dos tempos. E ela está tão fundada na hiância própria à sexualidade do ser falante, que corre o risco de ser pelo menos tão fundada, digamos - pois eu não quero, contudo, desesperar de nada - pelo menos tão fundada quanto o futuro da ciência (L'avenir de la science),45 que é o título, como vocês sabem, que deu a um de seus livros aquele outro padreco que se chamava Ernest Renan e que era, também ele, um servidor ardente da verdade. Ele só exigia uma coisa, mas isso era absolutamente primordial, sem isso, seria o pânico: era que ela não tivesse nenhuma consequência. A economia do gozo, isso é algo que não está ainda ao alcance de nossa mão, contudo, é importante, haveria um pequeno interesse que chegássemos lá. Mas para lhes dizer o que se pode ver disso, a partir do discurso analítico, é que talvez tenhamos uma pequena chance de encontrar algo, de vez em quando, por vias essencialmente contingentes... E é por isso que, se meu discurso de hoje não fosse algo de absolutamente, de inteiramente negativo, eu recearia ter entrado no discurso filosófico. Mas mesmo assim, há uma via, pois já vimos algumas sabedorias que duraram um bocado de tempo. Por que não encontra­ ríamos, com o discurso analítico, algo que desse uma ideia de um truque pre­ ciso? E afinal, o que é a energética, senão também um truque matemático? Este não será matemático, é por isso mesmo que o discurso do analista46 se distingue do discurso científico. Enfim, essa chance, vamos colocá-la sob o signo da boa sorte, ainda (encare).

43

Em francês assonância entre humaine (humana) e humeur malsaine ( humor malsão) . (N.T.)

44

A redução de que fala Lacan é uma operação literal, que ele fabrica a partir de "humeur mal­ saine", tirando mal-eurjmalheur (infelicidade), resta hum-aine com o s que cai: 'hum' eur mal s 'aine' (humana).

45

RENAN, E. L'avenir de la science. Paris: Garnier-Flammarion, 1995.

46

A Versão 2 e a versão publicada (op. cit., p.105) trazem aqui: discours de l'analyse (discurso da análise). (N. T.) 237

Lição 12 15 de maio 1973

Avisaram-me esta manhã, enquanto eu estava trabalhando, no último momento de meu trabalho, que no dia 12 de junho a sala estaria ocupada com exames orais. De todo modo, eu não tinha a intenção de me encontrar com vocês no dia 12 de junho por ser a terça-feira de Pentecostes. No dia 19 de junho os exames continuarão, portanto, não posso prever se poderei continuar no dia 19 o que enuncio este ano. Façam como quiserem, tentem a sorte, façam uma petição, enfim, o que acharem melhor. E este o ponto. E evidente que, como só fui avisado esta manhã, não pude preparar as coisas de modo a fazer hoje a conclusão, se é que em algum desses anos houve propriamente uma conclusão, pois forçosamente o que lhes enuncio não pode senão permanecer, até certo ponto, em aberto. Não é um privilégio. As coisas, cada ano, ficam em aberto sobre certo número de pontos, em suspenso. Aliás, é sobre isso que terei hoje de me estender amplamente.1 Sonhei esta noite que, quando eu chegava aqui, não havia ninguém. Donde se confirma o caráter de desejo (vreu) 2 do sonho. Embora, bem entendido, como 1

O dois parágrafos acima foram suprimidos, parcialmente, na Versão 2 e integralmente na versão publicada (ap. cit., p. 107) .

2

A tradução do termo Wunsch, introduzido por Freud, tem causado controvérsias em várias línguas, pela dificuldade de se encontrar uma equivalência exata. No francês, Lacan men­ ciona a impropriedade de se traduzir Wunsch por désir e propõe a palavra va;u (como acima), que ele associa a 'concupiscência', em seu texto "La direction de la cure" (1958). In: Ecrits, op. cit., p. 620. Outros preferem: souhait e o verbo souhaiter, como Laplanche, J. e outros. In: Traduire Freud. Paris: P.U.F., 1989, p. 143, onde inclusive é citada a proposta de Lacan. Em português, contudo, temos menos opções. Como nos mostra o dicionário, a palavra 'desejo' tem um amplo leque de significações, cobrindo os termos va;u, souhait e désir: "1. aspiração humana de preencher um sentimento de falta ou incompletude; querer, vontade; 1.1. Psican. Segundo S. Freud, moção psíquica que procura restabelecer a situação da primeira satisfação; 2. expectativa consciente ou inconsciente de possuir (um objeto) ou alcançar (determinada situação que supra uma aspiração do corpo ou do espírito); ambição, exigência; 2.1. ambição incontrolada ou excessiva; cobiça, sede; 3. atração física, etc.". Por sua vez, o termo 'voto', que seria a tradução literal de va;u, exprime preferencialmente: "1. promessa solene feita à divindade, aos santos etc.; 2. oferenda que visa pagar essa promessa; 3. obrigação a que o

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Encare

eu tinha trabalhado no meio da noite, eu estivesse bastante indignado, porque me lembrava, também no meu sonho, de ter trabalhado até as quatro e meia da manhã. Estava indignado que aquilo tudo não servisse para nada. Mas ainda assim, era a satisfação de um desejo, ou seja, que a partir de então, só me restava ficar na folga.3 Eu vou dizer, é minha a função, vou dizer uma vez mais, porque eu me repito, vou dizer uma vez mais o que é do meu dizer, e que se enuncia "não há metalinguagem" . Quando eu digo isso, falo aparentemente da linguagem do ser, à parte, bem entendido, que, como assinalei na última vez, o que eu digo é o que não há. O ser é, em outras palavras,4 o não-ser não é. Há ou não há.5 Para mim, isso é apenas um fato de dito. Supõe-se o ser a certas palavras: 'indivíduo', por exemplo, ou 'substância'. Isso é feito mesmo para dizer isso: que se supõe o ser ao indivíduo, entre outras coisas. Essa palavra 'sujeito', que eu emprego - vocês verão, pois eu voltarei a isso - ganha, é claro, um acento bem diferente, pelo fato do meu discurso. Para dizer tudo, eu lhes previno, eu me distingo da linguagem do ser. Isso implica que possa haver ficção de palavra,6 quero dizer, a partir da palavra. E como alguns talvez se lembrem, foi daí que parti quando falei da ética. Não é porque escrevi coisas que fazem função de formas da linguagem, que asseguro o ser da metalinguagem. Pois esse ser, seria preciso que eu o apresentasse como subsistindo por si, por si só, a linguagem do ser. indivíduo se compromete voluntariamente, como o voto de castidade; 4. expectativa ou desejo íntimo e sua manifestação, como o caso de 'votos de restabelecimento' e de 'Feliz Natal'; além de voto eleitoral, etc." Diante disso, optamos por manter, em português, a palavra 'desejo' e, entre parênteses, se for o caso, a palavra correspondente em francês ou alemão. Cf. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. (N.T.) 3 4

5

6

A versão publicada (op. cit., p. 107) introduz aqui uma separação: Parte 1. Em francês, na Versão 1: "autrernent dit". A Versão 2 e a versão publicada (op. cit., p. 107) tra­ zem aqui: cornrne on dit (como se diz). (N.T.) Referência a Parmênides (séc. IV /V a. C), filósofo pré-socrático. Restam fragmentos de sua obra: Sobre a natureza, cuja primeira parte trata da 'verdade' (alétheia) e a segunda da 'opinião' (dóxa). Um de seus fragmentos diz que o ser é e não é possível que ele não seja. E o caminho da certeza, pois ele acompanha a verdade. A outra via é que o ser não é e, necessariamente, o não-ser é. Essa via é uma vereda estreita onde não se pode nada aprender. (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 107) traz aqui: "fiction de rnot" ("ficção de palavra"). Pela pro­ núncia, não há diferença entre esse singular e o plural "fiction de rnots", como encontramos nas Versões 1 e 2. Mantemos o singular, porque a palavra é constitutiva da questão. (N.T.)

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Lição 12 - 15 de maio de 1973 A formalização matemática é nosso objetivo, nosso ideal, porque só ela é 'materna', ou seja, é capaz de se transmitir integralmente. A formalização mate­ mática é 'escrito', e é nisso que vou tentar avançar hoje. Ora, ela só subsiste, essa formalização matemática, se eu empregar, ao apresentá-la, a língua que eu uso. É aí que está a objeção: nenhuma formali­ zação da língua é transmissível sem o uso da própria língua. É pelo meu dizer que essa formalização, ideal metalinguagem, eu a faço 'ex-sistir' . É assim que o simbólico não se confunde, longe disso, com o ser, mas que ele subsiste como 'ex-sistência' do dizer. Foi o que salientei no texto chamado "L' étourdit" . Foi o que salientei dizendo que o simbólico só sustenta a ' ex-sistência'. Eu lembrei isso a vocês, na última vez, foi uma das coisas importantes que eu disse nesse exercício que fiz, como de costume, mais ou menos para lhes chamar a atenção, fazê-los ouvir, mas seria talvez importante, mesmo assim, que vocês não se esquecessem do essencial. O essencial, eu o lembrei uma vez mais a respeito do inconsciente - o inconsciente7 se distingue entre tudo o que foi produzido até então de discurso - é que ele enuncia isso, que é o cerne de meu ensinamento, que eu falo sem o saber. Eu falo com meu corpo, e isso, sem o saber. Eu digo, portanto, sempre mais do que sei.8 É aí que chego ao sentido da palavra sujeito, nesse outro discurso.9 O que fala sem saber me faz 'eu' (je), sujeito do verbo, é certo, mas isso não basta para me fazer ser. Isso não tem nada a ver com o que sou forçado a pôr no ser: saber suficiente para se manter, mas nem uma gota a mais. E é o que até então foi chamado de forma. Em Platão, a forma é esse saber que preenche o ser. A forma não sabe nem diz nada, ela é real, como acabo de dizer, no sentido de que ela mantém o ser em seu bojo, mas até a borda. Ela é o saber do ser, o discurso do ser supõe que o ser saiba e é isso que o mantém. Há relação de ser10 que não se pode saber. É ela, cuja estrutura eu interrogo em meu ensinamento, na medida em que esse saber, que eu acabo de dizer 7

8

9 10

A versão publicada (op. cit., p. 108) traz aqui: l'analyse (a análise). As Versões 1 e 2 trazem o que Lacan repete: l'inconscient (o inconsciente) . (N.T.) A Versão 1 traz aqui "plus que je n'enseigne" (mais do que eu ensino), por homofonia com "plus que je n'en sais", o que foi traduzido acima, encontrado na Versão 2 e na versão publicada (op. cit., p. 108). (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 108) traz aqui: "no discurso analítico". (N.T.) Em francês: "Il y a rapport d'être". (N.T.) 241

Encare

impossível, é por aí interdito/interditado (ínterdít). É aqui que jogo com o equí­ voco, que nos diz, desse saber impossível, que ele é censurado, proibido. Ele não o é, se vocês escreverem convenientemente esse 'inter-dito'. E que ele é dito entre as palavras, entre as linhas, e é isso que se trata de enunciar11: a que espécie de Real ele nos permite o acesso. Trata-se de mostrar aonde vai sua for­ malização, essa metalinguagem que não há, e que eu faço 'ex- sistir'. O que não pode ser demonstrado sugere algo que pode ser dito de verda­ deiro sobre o sujeito, por exemplo, entre outras coisas, algo de indemonstrável. E assim que se abre essa espécie de verdade, a única que nos é acessível e que se refere, por exemplo, ao 'não-saber-fazer'. Eu não sei como lidar - por que não dizê-lo? - com a verdade, nem com a mulher, pois já disse que uma e outra, pelo menos para o homem, são a mesma coisa, causam o mesmo embaraço. Acontece que, por acidente, tenho gosto tanto por uma como por outra, apesar de tudo o que dizem a respeito. Essa discordância do saber e do ser é o que é nosso tema.12 Isso não impede que se possa dizer também que aí não há discordância, quanto ao que conduz o jogo, segundo meu título deste ano, Encare. É a insuficiência do saber pela qual estamos ainda (encare f en corps)13 tomados, e é por aí que esse jogo do Encare se conduz, não que sabendo mais ele nos conduzisse melhor, mas haveria talvez melhor gozo: acordo entre o gozo e seu fim. Ora, o fim do gozo - é o que nos ensina tudo o que Freud articula do que ele chama, inconsideradamente, de pulsão parcial - o fim do gozo está desvinculado daquilo a que ele conduz, ou seja, a que nós nos reproduzamos. O eu (je) não é um ser, é um suposto ao que fala. O que fala só tem a ver com a solidão, no ponto da relação que eu só posso definir dizendo, como o fiz, que ela não pode se escrever. Essa solidão de ruptura do saber, não somente ela pode se escrever, mas é mesmo o que se escreve por excelência, o que de uma ruptura do ser deixa rastro. Foi o que eu disse num texto, certamente não sem imperfeições, que chamei de Líturaterre.14 "A nuvem da linguagem - eu me 11

12

A versão publicada (op. cit., p. 108) traz aqui: de dénoncer (de denunciar), em lugar de d'énoncer (de enunciar), como foi traduzido acima. São homófonos. (N.T.) Lacan diz: 'notre sujet', e pelo duplo sentido desse termo em francês (sujeito/tema), pode-se pensar também, nesse caso, no 'sujeito lacaniano'. (N.T.)

13 Homofonia entre encare (ainda) e en corps (em corpo). (N.T.) 14

LACAN, J. "Lituraterre". In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p.ll.

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Lição 12 - 15 de maio de 1973

expressei metaforicamente - faz escrita".15 Quem sabe se o fato de podermos ler esse riachos, que eu olhava, voltando do Japão, sobre a Sibéria, como rastros metafóricos da escrita, não está ligado lier (ligar) e lire (ler) têm as mesmas letras, prestem atenção - não está ligado a algo que vai além do efeito de chuva, que não tem nenhuma chance de ser lido, como tal, pelo animal. Isso está bem mais ligado a essa forma de idealismo que eu gostaria de fazer entrar em suas cabeças. Certamente não aquele do qual fala Berkeley, a ser vivido num tempo em que o sujeito tivesse adquirido sua independência não que tudo o que conhecemos seja representação - mas antes esse idealismo ligado ao impossível de inscrever a relação sexual entre dois corpos de sexo diferente. É por aí que se faz a abertura pela qual é o mundo que vem a fazer de nós seu parceiro. É o corpo falante, na medida em que ele só pode conseguir repro­ duzir-se graças a um mal-entendido sobre seu gozo ... E isso quer dizer que ele só se reproduz graças a um malogro do que ele quer dizer, pois o que ele quer dizer - como bem diz o francês, son sens, seu sentido - que é seu gozo efetivo é malogrando nisso, isto é, trepando ... Pois é justamente isso que ele não quer fazer, a prova é que, quando é deixado sozinho, ele sublima o tempo todo, com todas as forças: ele vê a Beleza, o Bem, sem contar o Verdadeiro ... E é ainda aí, como acabo de dizer, que ele está mais perto daquilo de que se trata, mas a verdade é que o parceiro do outro sexo continua o Outro . . . E, pois, com esse malogro que ele consegue ser ainda (encore/en corps) reproduzido, sem nada saber do que o reproduz, notadamente. É isso que em Freud é perfeitamente sensível - é claro que isso não passa de palavreado, mas não podemos fazer melhor - ele não sabe se o que o reproduz é a vida ou a morte. Eu não disse "o que ele reproduz", eu disse: "o que o reproduz",l6 é preciso separar. Sim, contudo, eu preciso dizer o que há de metalinguagem e em que ela se confunde com o rastro deixado pela linguagem. É por aí que ele17 retoma à reve­ lação do correlato da língua, esse saber a mais do ser, sua pequena chance de ir ao Outro, sobre o qual eu assinalei, porém, na última vez - este é outro ponto -

15 Em francês: "La nuée du langagefait écriture" . Sobre a tradução de écriture por 'escrita', cf. nota 26 da lição 4. (N.T.) 16 17

Aqui, Lacan soletra, para que não paire dúvida (ce qui , q.u.i, l.e.). (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 110) traz aqui: le sujet (o sujeito) . As outras versões trazem: il (ele), o que se ouve na gravação. (N.T.) 243

Encare

essencial - que esse saber a mais é paixão da ignorância e que, justamente, é disso que ele não quer saber nada. Do ser do Outro, ele não quer saber nada. É por isso mesmo que as duas outras paixões são as que se chamam: o amor que, ao contrário do que a filosofia elucubrou, não tem nada a ver com o saber, e o ódio, que é realmente o que tem mais relação com o ser, o que se aproxima mais dele, o que eu chamo de 'ex-sistir'. Nada concentra mais ódio do que esse dizer, onde se situa o que eu chamo de 'ex-sistência'. A escrita é um rastro onde se lê um efeito de linguagem. Quando vocês rabiscam alguma coisa, algo de que certamente eu também não me privo, pois é com isso que preparo o que tenho a dizer, é notável que seja preciso se assegurar com o escrito. Isso não é a metalinguagem, embora se possa fazer com que ela exerça uma função semelhante, mas que não deixa de ser, com relação ao Outro, onde a linguagem se inscreve como verdade, não deixa de ser inteiramente secundário. Porque nada do que eu poderia lhes escrever no quadro, das fórmulas gerais que, no ponto em que estamos, ligam a energia à matéria, por exemplo, a última fórmula de Heisenberg, nada per­ manecerá de tudo isso, se eu não o sustentar com um dizer que é o da língua e com uma prática que é a de pessoas que dão ordens em nome de um certo saber. Então, quando vocês rabiscam, como se diz, é sempre sobre uma página e com linhas, e assim nos vemos imediatamente mergulhados na história das dimensões.18 Como o que corta uma linha é o ponto, e o ponto tem zero dimensão, a linha será definida como tendo uma. Como o que corta a linha é uma superfície, a superfície será definida como tendo duas. Como o que corta a superfície é o espaço, o espaço terá três. Contudo, é aí que adquire seu valor o pequeno signo que escrevi ali em cima, quero dizer, aquele que é preciso distinguir do que escrevi abaixo. Eles são separados. Vocês podem notar que é algo que tem todas as características de escrita, poderia também ser uma letra. Só que, como vocês escrevem cursiva­ mente, não lhes vem à mente a ideia de interromper a linha antes que ela encon­ tre outra, para fazê-la passar por baixo, para supô-la passando por baixo, porque na escrita trata-se de coisa muito diferente do espaço com três dimensões.19 18 19

A versão publicada (op. cit., p. 110) introduz aqui uma separação: Parte 2. (N.T.) As notas de que dispúnhamos não reproduziam os desenhos dos nós. Utilizamos então os desenhos da versão publicada pelas Editions du Seuil, exceto o nó da Fig. 6, que está errado

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Lição 12 - 15 de maio de 1973

Figura 1 Esta linha cortada aqui, como eu disse, quer dizer que ela passa sob a outra. Aqui é por cima, porque é a outra que está interrompida. É o que pro­ duz, embora aqui só haja uma linha, o que se distingue do que seria um simples aro, um aro de barbante, se isso existisse. Isso se distingue, no sentido de que, embora haja um só barbante, ele faz um nó.20 De todo modo, é bem diferente, essa linha, da definição que demos há pouco com relação ao espaço, ou seja, em suma, um corte, o que faz um buraco, um interior, um exterior da linha. Esta outra linha, este barbante, como o chamei, não se encarna tão facil­ mente no espaço. A prova é que o barbante ideal, o mais simples, seria um toro. E levou-se muito tempo para perceber, graças à topologia, que o que se fecha num toro é algo que não tem absolutamente nada a ver com o que se fecha num cubo.21 Não se trata de cortar um toro, pois o que quer que façam com a superfície de um toro, vocês não farão um nó. Mas, em compensação, com o lugar do toro, como isso o demonstra, vocês podem fazer um nó. Com isso, permitam-me dizê-lo, o toro é a razão, é o que permite o nó. Por isso, o que lhes mostro, esse toro retorcido, é a imagem mais simples, mais seca que posso dar do que evoquei outro dia como a Trindade, uma e três, num só lance.

na versão do Seuil. Utilizamos o nó certo, restabelecido por Pierre Soury e Michel Thomé em Chaínes et noeuds, Deuxieme partie, texte 58, p. 4. 20A versão publicada (op. cit., p. 110) introduz aqui: "pois esta escrita representa a planificação (mise-à plat) de um nó". (N.T.) 21A versão publicada (op. cit., p. 111) e a Versão 2 trazem aqui: dans une bulle (numa bolha). (N.T.) 245

Encare

Figura 2 De todo modo, é refazendo três toros - com o pequeno truque que lhes mostrei com o nome de nó borromeano - que vamos poder operar, dizer alguma coisa sobre o uso do primeiro nó. Naturalmente, alguns não estavam aqui quando eu falei do nó borromeano, no ano passado, por volta de fevereiro. Vamos tentar hoje fazê-los sentir a importância dessa história, e o que ela tem a ver com a escrita, na medida em que eu a defini como o que a linguagem deixa como rastros. O nó borromeano consiste nisso, que lidamos aí com o que não se vê em nenhum lugar, ou seja, com um verdadeiro aro de barbante. Porque, imaginem vocês, quando traçamos um barbante, nunca conseguimos que sua trama junte as duas pontas. Para vocês terem um aro de barbante, é preciso que façam um nó, nó de marinheiro, de preferência (risos na sala). Não vejo o que isso tem de engra­ çado, bom! Ah! Façamos um nó de marinheiro, e se vocês pensam que é fácil, tentem vocês mesmos. Isso sempre cria certo embaraço. Enfim, apesar de tudo, tentei esses dias me habituar a fazê-lo e não há nada mais fácil do que errá-lo. Aqui está! Graças ao nó (aplausos), vocês têm aqui um aro de barbante.22 O problema que traz o nó borromeano é o seguinte: como fazer, depois de terem feito seus aros de barbante, para que algo como vocês estão vendo ali no alto, ou seja, um nó, para que esses três aros fiquem presos juntos, e de tal modo que, se vocês cortarem um, eles fiquem todos livres, os três, o que não é pouco? Pois o problema é fazer com que, com qualquer número de aros de barbante, quando vocês cortarem um, todos os outros, sem exceção, fiquem então livres, independentes. 22 A versão publicada (op. cit., p. 112) acrescenta aqui: "Naus allons en faire deux autres" ("Vamos fazer dois outros"). (N.T.) 246

Lição 12 - 15 de maio de 1973

Vejam, por exemplo, este caso (Fig. 3), que eu já pus no quadro no ano passado:

Figura 3: Nó borromeano Naturalmente, como eu fiz um pequeno erro, não ficou inteiramente satis­ fatório, mas vai ficar. Nada mais fácil, nessa ordem, do que cometer um erro. Ah! Ainda um erro meu! Tal como vocês o veem ali, tal como o veem inscrito ali, é fácil de ver que, como esses dois aros são construídos, de tal modo que não estão enodados um ao outro, é unicamente pelo terceiro que eles ficam presos, o que, curiosamente, eu não consegui reproduzir com meus aros de barbante. Mas graças a Deus tenho ainda outro meio de fazê-lo, além de reproduzir o que faço no quadro, isto é, além de errá-lo. (À sua assistente): "Abra-me, por favor, aquele ali." Vou logo lhes dar o meio, de modo completamente racional e compreensível. . . Aqui está, pois, um aro de barbante, ali está outro. Vocês devem passar o segundo dentro do pri­ meiro e depois dobrá-lo assim (Fig. 4):

Figura 4 247

Encare

Depois, bastará pegar o segundo com um terceiro aro, para que os três fiquem enodados, e enodados de tal modo que basta evidentemente seccionar um dos três, para que os dois outros fiquem livres (Fig. 5) .

Figura 5 Suponham, caros amigos, que eu retire este aqui. Vocês querem o último? Mas é exatamente a mesma coisa, pela simples razão de que aquele que eu lhes representei como dobrado, e que tem duas orelhas, nas quais passa o terceiro, é absolutamente simétrico do outro lado, ou seja, com relação ao terceiro, ele tem também duas orelhas que o primeiro prende. Não é só isso - não pensem que sejam inúteis todas essas pequenas confu­ sões, isso não é tão familiar que a maneira pela qual sou levado a explicá-lo, com os desacertos, justamente, não seja o que possa fazer isso entrar na cabeça de vocês. Porque é preciso que eu lhes mostre, afinal, só assim isso pode entrar. ..23 Depois da primeira dobra vocês podem, com o terceiro aro - com a con­ dição aqui de fazer um nó - fazer uma nova dobra. E com este, um quarto, que é como o primeiro sendo acrescentado, vocês veem que o nó continua tão verdadeiro com quatro do que com três e que basta cortar um desses aros para que todos os outros fiquem livres entre si. Vocês podem pôr um número abso­ lutamente infinito, isso será sempre verdadeiro (Fig. 6). 24 23

Os dois parágrafos acima foram suprimidos na versão publicada (op. cit., p. 113). (N.T.)

24 A versão publicada (op. cít., p. 113) traz aqui uma longa explicação que não consta das duas outras versões e substitui os quatro parágrafos seguintes dessas versões: "A solução é, pois, absolutamente geral e a enfiada tão longa quanto vocês quiserem. Nessa cadeia, qualquer que seja seu comprimento, um primeiro e um último se distinguem dos outros elos - enquanto os aros medianos dobrados têm, todos, a forma de orelhas, como vocês veem na Fig. 6, os extremos, ao contrário, são aros simples. Nada nos impede de confundir o primeiro e o último, dobrando um e prendendo-o no outro. A cadeia então se fecha (Fig. 6). A ressorção dos dois extremos em um deixa contudo um rastro - na cadeia dos medianos, os fios são confrontados dois a dois, enquanto no lugar onde a cadeia se fecha no aro simples, único agora, quatro fios 248

Lição 12 - 15 de maio de 1973

Figura 6: Nó borromeano de 13 aros Contudo, essa história torna simples o nó borromeano, nesse sentido de que aqui, por exemplo, vocês podem perceber perfeitamente que são as duas partes desse elemento que fazem a orelha, esta e esta, e que, em suma, puxan­ do-o com o outro, é este aro que se dobra em dois. Aqui e aqui são as duas orelhas, e aquele círculo, deixemos aquele que nesta ocasião - mas unicamente nesta ocasião - podemos chamar de primeiro, que permanecerá no estado de círculo, o que sustenta o primeiro aro dobrado.· Com esta intuição sensível, de certo modo, da função dos aros, vocês podem constatar que basta cortar qualquer um deles, seja um do meio ou um das extre­ midades, para que todos esses aros dobrados sejam liberados ao mesmo tempo. A solução é, pois, absolutamente geral. Isso não quer dizer que, para um número qualquer de aros de barbante, possamos fazer uma disposição tão relativamente elegante, por sua relativa simetria, quanto a que fiz no quadro, ou seja, que esses três aros estejam estrita­ mente, uns com relação aos outros, de uma forma equivalente. Será certamente mais complicado e assim que chegarmos a quatro, isso nos mostrará frequente­ mente efeitos de torção, que não nos permitirão mantê-los no estado de aros. Contudo, o que quero, nesta ocasião, que vocês percebam é que partindo dos aros estamos diante de algo que não se distingue senão por ser o Um. É muito precisamente por isso, aliás, que um verdadeiro aro de barbante sem nó é muito difícil de fazer. Mas é, certamente, a mais eminente representação de

de cada lado são confrontados com um, o do círculo. Este rastro pode certamente ser apagado - vocês obterão então uma cadeia homogênea de aros dobrados." (N.T.) 249

Encare

algo que é sustentado apenas pelo Um, e muito precisamente nesse sentido de que isso só contém um buraco. 25 E por que eu fiz intervir, no passado, o nó borromeano? Foi muito precisa­ mente para traduzir a fórmula: "Eu te peço" o quê? " que me recuses" o quê? " o que te ofereço", ou seja, algo em relação àquilo de que se trata, e vocês sabem o que é, ou seja, o objeto a. O objeto a não é nenhum ser, o objeto a é o que supõe de vazio uma demanda. E afinal de contas, é só definindo-a como situada pela metonímia, isto é, pela pura continuidade assegurada do começo ao fim26 da frase, que podemos ima­ ginar o que pode ser um desejo que nenhum ser sustenta, quero dizer, que é sem outra substância além daquela assegurada pelos próprios nós. E a prova é que, enunciando esta frase: "eu te peço que recuses o que te ofereço", eu só pude motivá-la com esse "porque não é isso" de que falei, e que retomei na última vez. E que quer dizer que, no desejo de toda demanda, não há senão o pedido desse algo que, com relação ao gozo, seria satisfatório, seria a Lustbe­ friedigung, satisfação suposta no que se chama, também impropriamente, no discurso psicanalítico, de pulsão genital, aquela onde se inscreveria uma rela­ ção que seria a relação plena, a relação inscritível, do Um com o que permanece irredutivelmente o Outro. Foi sobre isso que insisti: o parceiro desse "eu" (je) que é o sujeito, sujeito de toda frase de demanda, seu parceiro não é o Outro, mas sim esse algo que vem substituí-lo, sob a forma dessa causa de desejo que eu pensei poder diver­ sificar, e não sem razão, em quatro, na medida em que ele se constitui diversa­ mente, segundo a descoberta freudiana, pelo objeto da sucção, da excreção, do olhar e também da voz. É enquanto substitutos do Outro que esses objetos são reclamados, são feitos causa do desejo. Como eu disse há pouco, parece que o sujeito se representa os objetos ina­ nimados muito precisamente em função de que não há relação sexual. Só os corpos falantes, como eu disse, têm uma ideia do mundo como tal. E quanto a isso, pode-se dizer que o mundo, o mundo como tal, o mundo do ser cheio de 25 A versão publicada (op. cit., p. 113-114) suprime os quatro parágrafos acima e introduz aqui uma separação: Parte 3. (N.T.) 26 A

versão publicada (op. cit., p. 114) traz aqui: "du commencement à la fin de la phrase" ("do começo ao fim da frase"). Lacan diz: "du commencement au début de phrase. . . " ("do começo ao início... ", como transcreve a Versão 1. Engano? (N.T.)

250

Lição 12 - 15 de maio de 1973

saber, não passa de um sonho, um sonho do corpo, na medida em que ele fala. Não há sujeito do conhecimento, há sujeitos que se dão correlatos no objeto a, correlatos de palavra de gozo, enquanto gozo de palavra.27 O que elas prendem, senão outros uns? Pois como eu lhes disse há pouco, essa "bilobulação", essa transformação dos aros de barbante em orelhas pode ser feita de modo estri­ tamente simétrico, o que é mesmo o que acontece assim que se chega ao nível de quatro, isto é, se os dois aros que meus dedos representam na extremidade destes estivessem em função, haveria quatro. Para dizer tudo, a reciprocidade entre o sujeito e o objeto a é total. Para todo ser falante, a causa de seu desejo, quanto à estrutura, é estritamente equivalente, se posso dizê-lo, à sua dobradura, ao que chamei de sua divisão de sujeito. Isso nos explica que, durante tanto tempo, o sujeito tenha podido crer que o mundo sabia tanto quanto ele: é que ele é simétrico, é que o mundo, o que chamei na última vez de "o pensado" (le pense), é o equivalente, é a imagem em espelho do pensamento (la pensée).28 Por isso, na medida em que o sujeito fantasia, não houve, até o advento da ciência mais moderna, nada além de fantasma, quanto ao conhe­ cimento. E foi isso que permitiu essa escala de seres, pela qual estava suposto num ser, dito Ser Supremo, o que era o bem de todos. O que é também o equivalente disso: que o objeto a pode ser dito, como seu nome o indica, (a)sexuado, e vocês sabem que o Outro só se apresenta para o sujeito sob uma forma (a)sexuada. Isso quer dizer que tudo o que foi o suporte, o suporte substituto, substi­ tuto do Outro, sob a forma do objeto do desejo, tudo o que se fez dessa ordem é (a)sexuado. E é muito precisamente nisso que o Outro, como tal, permanece na doutrina - não sem que possamos avançar um pouco mais - permanece na teoria freudiana como um problema, expresso no que Freud repetia: "O que quer a mulher?" A mulher sendo, nesse caso, o equivalente da verdade. É por isso que essa equivalência que eu produzi se justifica. Será que não podemos, contudo, encontrar - por essa via do que eu dis­ tingui como o Um, a ser tomado como tal, no sentido de que não há nada mais 27

Nas três versões: "Il n'y a pas de sujet connaissant, il y a des sujets qui se donnent des corrélats dans l'objet petit a, corrélats de parole jouissante, en tant que jouissance de parole". (N.T.)

28

Existe aqui uma divergência nas três versões: a Versão 2 traz o que traduzimos:"le penséjla pensée" ("o pensado/ o pensamento"); a Versãol traz "le penserf la pensée" ("o pensar/ o pensa­ mento") e a versão publicada (op. cit., p. 115) traz: "la penséej la pensée" ("o pensamento/ o pen­ samento"). A dificuldade se deve, naturalmente, à homofonia. Cf. nota 5 da lição 11. (N.T.) 251

Encore

nessa figura do aro de barbante, que tem, no entanto, seu interesse, por nos oferecer esse algo com que sem dúvida tem a ver a escrita, a exigência que eu produzi sob o nome de nó borromeano - encontrar uma forma, essa forma sus­ tentada por esse suporte mítico que é o aro de barbante? Mítico, eu disse, pois não se faz aro de barbante fechado, este é um ponto muito importante. Qual é essa exigência que eu enunciei sob o nome de nó borromeano?29 É muito precisamente isso que distingue o que encontramos na linguagem, na língua corrente, e que é sustentado pela metáfora muito difundida da cadeia. Ao contrário dos aros de barbante, elementos de cadeia podem ser feitos, isso se faz, isso se forja. Não é difícil imaginar como isso é feito: o metal é torcido até o momento em que se pode soldá-lo, e a cadeia é assim algo que pode ter sua função, para representar o uso da língua. Sem dúvida, não é um suporte simples, seria preciso, nessa cadeia, fazer elos que fossem se prender a outro elo um pouco mais adiante, com dois ou três elos flutuantes intermediários, e compreender também por que uma frase tem uma duração limitada. Ora, tudo isso, a metáfora não pode nos dar. E, porém, impressionante que, tomando os suportes de aros de barbante que eu lhes disse, havia, contudo, no que eu lhes tornei sensível, um primeiro e um último. Esse primeiro e esse último eram aros simples que atravessavam, furavam, se posso dizer assim, os dois, o que eu chamo - vejam a dificuldade de falar dessas coisas - de 'lobos de orelhas' dos aros dobrados. Eram, pois, dois nós simples que afinal eram levados a fazer algo como o começo e o fim da cadeia. Fica o seguinte: é que esses dois aros iniciais e terminais, nada nos impe­ diria de confundi-los. Ou seja, tendo-os cortado, tendo cortado o que é imagi­ nário, basta desfazê-los, fazer passar um só prendendo os quatro lobos, assim resumidos num caso em que só há dois, mas a situação seria exatamente a 29 Este parágrafo se apresenta um tanto confuso nas Versões 1 e 2, mas tentamos traduzi-lo acima. A versão publicada (op. cit., p. 115) traz outra redação: "Est-ce que ça vaus éclaire l'intérêt qu'il y a à partir du rond de ficelle ? Le dit rond est certainement la plus éminente représentation de l'Un, en ce sens qu'il n'enferme qu'un trou. C'est d'ailleurs en quoi un vrai rond de ficelle est tres dif­ ficile à fabriquer. Le rond de ficelle dont j'use est même mythique puisqu'on ne fabrique pas de rond de ficelle fermé" ("Será que isso lhes esclarece o interesse que há em partir do aro de barbante? O dito aro é certamente a mais eminente representação do Um, no sentido de que ele só circunda um buraco. É, aliás, por isso que um verdadeiro aro de barbante é tão difícil de fabricar. O aro de barbante que uso é mesmo mitico, pois não se fabrica aro de barbante fechado."). (N.T.)

252

Lição 12 - 15 de maio de 1973

mesma se houvesse um número infinito deles. Uma coisa a ser notada: nós terí­ amos, contudo, nesse caso, uma diferença. Não é por termos conjugado os dois últimos nós que todas as articulações seriam as mesmas, pois aqui eles são con­ frontados dois a dois. Há, portanto, quatro fios para fazer o nó, enquanto aqui, tomando meu círculo único, vocês teriam o suporte desse círculo e quatro fios para passar, o que daria uma confrontação não de dois a dois, que são quatro, mas de quatro a um, que são cinco. E, portanto, poderíamos dizer que, mesmo o que seria então o terceiro elemento - pois aqui vocês só têm dois elementos o terceiro elemento, em sua relação topológica, não teria, com os dois outros, a mesma relação que os dois outros entre si. E como tais, à simples inspeção dos nós em função, o terceiro elemento se distinguiria dos outros. Penso ter dito o suficiente sobre a simetria das relações do primeiro e do segundo, pois o último, eu o chamei de terceiro. Essa simetria se mantém ainda, se vocês unificarem o terceiro aro com qualquer um dos dois outros. Simples­ mente, vocês terão assim uma figura como esta, a que confronta um simples aro com o que eu chamo de oito interior.

Figura

7 - Oito interior

Vocês terão tido assim o desvanecimento30 do Outro, mas ao preço do sur­ gimento de algo que é o oito interior que, como vocês sabem, é no que eu sus­ tento a banda de Moebius. Em outras palavras, aquilo que, num estrito suporte dessa via que tento trilhar para vocês, da função do nó, se exprime pelo oito interior. Aqui só posso lhes dar um começo disso, porque ainda tenho de adian­ tar alguma coisa que me parece capital, antes de deixá-los. Se lhes dei a solução 30

Há uma divergência de entendimento aqui, enh·e as duas versões que nos servem de base. A Versão 2 traz aqui: évanouissement (desaparecimento), como foi traduzido acima e confirmado pela gravação, e a Versão 1 traz: épanouissement (desenvolvimento) . A versão publicada (op. cít., p. 115) suprime o parágrafo. (N.T.) 253

Encore

dos nós borromeanos por essa enfiada de cadeias dobradas sob a forma desses aros que voltam a ser totalmente independentes se vocês cortarem um só, para que isso pode servir? 31 Ao contrário do que vocês veem na linguagem, ou seja, o que lhes é muito simplesmente materializado, e também não é muito difícil de encontrar um exem­ plo disso, e não sem razão, na psicose. Lembrem-se do que povoa alucinatoriamente a solidão de Schreber: Nun will ich mich ..., o que eu traduzo: "Agora eu vou me ... " é um futuro. Ou então: Sie sollen niimlich .. "Vocês devem quanto a vocês ... Essas frases interrompidas, que chamei de mensagem de código, essas frases interrompidas deixam em suspenso não sei que substância. Para que pode nos servir essa exigência de uma frase, qualquer que ela seja, que seja tal que tendo seccionado o Um, ou seja, tendo retirado o Um de cada um desses elos, todos os outros, com isso, fiquem livres? Não será esse o melhor suporte que possamos dar daquilo pelo qual procede essa linguagem que chamei de matemática? O próprio da linguagem matemática - uma vez que ela esteja suficiente­ mente estrita, quanto a suas exigências de pura demonstração, é muito precisa­ mente isso: tudo o que se propõe com ela, não tanto no comentário falado, mas no manejo das letras, supõe que basta que uma não se sustente, para que todo o resto, todo o resto das outras letras, não só não constituam por seu ordena­ mento nada de válido, mas se dispersem. E é muito precisamente nisso que o nó borromeano pode nos servir de melhor metáfora quanto a uma exigência que é a seguinte: é que nós não procedemos senão do Um. O Um engendra a ciência, não no sentido de que qualquer coisa se meça por ele, ao contrário do que pensam, não é o que se mede na ciência que é importante: o que constitui o nervo original, o que distingue a ciência moderna da ciência da reciprocidade entre o vovs e o mundo, entre o que pensa e o que é pensado, é justamente essa função do Um. Na medida em que o Um só está ali, podemos supor, para representar j ustamente que o Um é só, que o Um não se enoda verdadeiramente a nada do que se assemelhe ao Outro sexual. E o contrário da cadeia entre Uns, que são todos feitos da mesma maneira, por não serem nada além de Um. Quando eu disse: Y a d' l' Un, e insisti, bati o pé nisso como um elefante, durante todo o ano passado, vocês podem ver (o caminho) que eu trilho e a que os introduzo. .

31 A versão publicada (op. cit., p. 115) suprime os três parágrafos acima. (N.T.)

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"

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Como então, em algum lugar, situar corno tal a função do Outro? Corno situá-la, se até um certo ponto, é simplesmente com os nós do Um que se sus­ tenta o que resta, quando isso se escreve, de toda linguagem? Corno estabelecer urna diferença, pois é claro que o Outro não se adiciona ao Um, o Outro só se diferencia dele? Se há alguma coisa pela qual ele participa do Um é que, longe de se adicionar, aquilo de que se trata com relação ao Outro - corno eu já disse, mas talvez vocês não tenham ouvido - é que o Outro é o Um-a-menos. É por isso que em toda relação do homem com uma mulher, aquela que está em ques­ tão, é sob o ângulo de Uma-a-menos que ela deve ser tornada. Eu já lhes havia indicado isso, um pouco, a respeito de Don Juan, mas bem entendido, só urna pessoa, creio eu, minha filha, nomeadamente, se apercebeu disso.32 Contudo, para simplesmente começar hoje o que eu poderia lhes dizer ainda, vou lhes mostrar algo. Pois não basta ter encontrado urna solução geral do problema para um número infinito de nós borrorneanos, seria preciso ter o meio de mostrar que é 'a única' solução. Ora, chegamos a este ponto: até hoje não há nenhuma teoria dos nós. O que isso quer dizer? Isso quer dizer, muito precisamente, que ao nó não se aplica, até o dia de hoje, nenhuma formalização matemática - fora algumas pequenas fabricações, de pequenos exemplos corno os que lhes mostrei - que permita prever que urna solução, a que acabei de dar, não é simplesmente urna solução 'ex-sistente', ela é necessária, ela não cessa de se escrever, corno eu digo para definir o necessário. Ora, basta que imedia­ tamente eu lhes mostre algo que vou escrever no quadro, porque vocês não sabem o trabalho que me dá pôr tudo isso no papel, de um modo que ponho à disposição de vocês, e que será também fotografado num próximo artigo, mas que exige um certo . . . Basta que eu lhes faça isto:

Figura 8 32 A versão publicada (op. cit., p. 116) introduz aqui uma separação: Parte 4. (N.T.)

255

Encare

Eu acabo de passar dois desses aros um dentro do outro, de tal modo que eles fazem aqui não urna dobra, como lhes mostrei há pouco, mas simplesmente um nó de marinheiro. Corno eles são, por isso mesmo - pois eu acabo de fazê­ los fechados - perfeitamente separáveis um do outro, vocês devem pensar que, simplesmente - o que me é perfeitamente possível - se eu fizer com um círculo que se segue o mesmo nó de marinheiro, basta que eu aproxime daqueles um outro, aqui eu posso fazer a mesma coisa com um terceiro aro. Terei de novo um nó de marinheiro. Pouco importa que ele esteja face a face com o primeiro ou que ele esteja estritamente na fila, isto é, que o que passa adiante, passe tam­ bém adiante do seguinte.

Figura 9 Posso fazer um número infinito deles e mesmo fechar o círculo que isso fará, fechá-lo simplesmente. Quanto ao último, ele certamente não será separá­ vel, será preciso que esse último, eu o passe entre os dois da ponta do que eu já tiver construído, e que o passe fazendo um nó. Não introduzindo-o, corno acabo de fazer com esses dois. De todo modo, essa é outra solução tão válida quanto a primeira, pois se eu seccionar qualquer um daqueles que já estiverem dispostos assim, todos os outros ficarão livres ao mesmo tempo, e contudo não será o mesmo tipo de nó. Eu lhes passei eventualmente, há pouco, quanto ao nó que lhes mostrei que, do mesmo modo, havia naquele aro, ao qual eu juntei o primeiro e o último, alguma necessidade de urna diferença e, na realidade, não é assim. Pois observem que quando acabei de lhes mostrar os outros, ou seja, o que chamei de tomada de

256

2 - 15 de maio de 1973

forma do nó de marinheiro, vocês podem ver muito bem que mesmo o último, este último do qual eu disse que a confrontação era de um a quatro, e que ao mesmo tempo havia cinco fios, mesmo o último, eu posso fazê-lo exatamente semelhante a todos aqueles, não há nenhuma dificuldade nisso. E assim terei resolvido, sem introduzir nenhum ponto privilegiado, a questão do nó borromeano, para um número x, e também para um número infinito de aros de barbante. Será que não está nessa possibilidade a diferença, já que também não há nenhuma analogia topológica entre uma e outra dessas maneiras de enodar os aros de barbante? Será que é nessa topologia diferente, uma que podemos exprimir aqui com relação aos nós de marinheiro como uma topologia de tor­ ções, digamos, com relação às outras, que seriam simplesmente de flexões? Será que podemos usar isso, pois não seria contraditório prender isso num nó de marinheiro. É muito fácil de fazer, façam a prova. Muito exatamente, eis a maneira como a coisa se dobra, se prende ao nó de marinheiro. Onde colocar o limite desse uso dos nós para chegar à solução que é a seguinte: a secção de qualquer um dos aros de barbante acarreta a liberação de todos os outros, ou seja, nos dá o modelo do que se refere a essa formaliza­ ção matemática, aquela que substitui a função de um número qualquer de Uns pelo que chamamos de letra. Porque a formalização matemática não é outra coisa. Que vocês escrevam que alguma coisa, a energia33 seja mv2/2, o que isso quer dizer? Isso quer dizer que qualquer que seja o número de Uns que vocês ponham sob cada uma dessas letras, vocês estarão submetidos a certo número de leis que são as leis de grupo, tais como a adição, a multiplicação, etc. Eis a questão que eu levanto e que é feita para lhes anunciar, se possível, o que eu espero, o que posso eventualmente lhes transmitir com relação ao que se escreve. O que se escreve, em suma, o que isso seria? As condições do gozo. E o que se conta, o que isso seria? Os resíduos do gozo! Pois do mesmo modo, esse a, a-sexuado, não será por conjugá-lo com o que ela tem de mais­ de-gozar sendo Outro, só podendo ser dita Outro, que a mulher o oferece sob a espécie do objeto a? O homem crê criar - podem crer que não lhes digo isso por acaso - ele crê, crê, crê, bom! Ele cria, cria, cria a mulher! Sim! 33 A Versao 1 traz aqui: l 'énergie (a energia). A Versão 2 e a versão publicada (op. cit., p. 118) h·a­ zem l'inertie (a inércia). Esta parte não consta da gravação de que dispomos. (N.T.) 257

Encare

Na realidade, ele a põe a trabalhar, mas ao trabalho do Um. E por isso esse Outro, na medida em que aí se inscreve a articulação da linguagem, isto é, a verdade, o Outro deve ser barrado, barrado por aquilo que qualifiquei há pouco como o Um-a-menos. O S(A), é o que isso quer dizer. E é por isso que chegamos a levantar a questão de fazer do Um algo que se sustente, ou seja, que se conte sem ser. Só a matematização alcança um Real e é nisso que ela é compatível com nosso discurso, discurso analítico, um Real que precisamente se evade, que não tem nada a ver com o que o conhecimento tradicional sustentou, ou seja, não o que ele crê, a realidade, mas sim o fantasma. O Real é o mistério do corpo que fala, é o mistério do inconsciente.

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Anexo I - Respostas de Jacques Lacan a questões de J.-A. Miller em 22 de outubro de 19731 Lição 12 15 de maio de 1973

Transcrevo aqui as respostas de Jacques Lacan a algumas perguntas que lhe fiz quando do estabelecimento do texto desta lição (J.-A. Miller) .

É notável que uma figura tão simples como a do nó borromeano não tenha servido de ponto de partida para - uma topologia. Há, de fato, várias maneiras de abordar o espaço. A captura pela noção de dimensão, isto é, pelo corte, é a caracterologia de uma técnica da serra. Ela vai se refletir na noção do ponto, da qual se diz tudo dizendo que é qualificar de um, o que tem, como é dito claramente, zero dimen­ são, isto é, o que não existe. A partir, ao contrário, de aros de barbante, o que resulta disso é uma amar­ ração do nó, no cruzamento de duas continuidades que uma terceira vem pren­ der. Não se sente que essa amarração poderia constituir o fenômeno inicial de uma topologia? Este é um fenômeno que tem a particularidade de não ser localizável em nenhum ponto. Considerem somente o nó borromeano - salta aos olhos que se podem enumerar três "lugares" - essa palavra entre aspas - onde os aros que fazem o nó podem vir se prender.

1

In: LACAN, J. Le séminaire, livre XX, Encare. Paris: É ditions du Seuil, 1975, p. 119. 259

Encare

Figura 10 Isso supõe, em cada caso, que os dois outros lugares venham se resumir aí. Isso quererá dizer que só há um? Certamente que não. Um ponto tri­ plo, embora a expressão se empregue, não poderia de modo algum satisfa­ zer a noção de ponto. Esse ponto não é feito aqui da convergência de três linhas. Nem que seja pelo fato de que há dois diferentes - um direito e um esquerdo. Fico surpreso que pareça bem admitido que não poderíamos, por urna mensagem dita informativa, fazer chegar ao sujeito suposto pela linguagem a noção de direita e esquerda. Reconhece-se, é claro, que a distinção dessas noções, podemos certamente comunicá-la, mas a partir daí, corno especificá-las? Isso me parece, ao contrário de certa argumentação, perfeitamente possível, e justamente ditado por urna planificação, que é inteiramente concebível a partir da experiência do nó, se o nó for realmente, corno eu penso, um fato lógico. A planificação (la mise-à plat), notem bem, é coisa diferente da superfície. Ela supõe outra dit-mension, diferente da continuidade implícita no espaço. E é por isso que me sirvo dessa escrita da palavra, que consiste em designar a menção do dito, o que só é permitido pela "alíngua" que eu falo - mas não é feito para que eu me prive disso, enquanto falo. Muito pelo contrário, haja vista o que penso a respeito - se ouso dizê-lo. Em outras palavras, o importante não é que haja três dimensões no espaço. O importante é o nó borrorneano, e a razão pela qual acedemos ao Real que ele representa para nós. A ilusão de que não poderíamos transmitir nada a seres transplanetários, sobre a especificidade da direita e da esquerda, sempre me pareceu feliz, na medida em que ela funda a distinção do Imaginário e do Simbólico.

260

Lição 12 - 15 de maio de 1973 - Anexo I

Mas a direita e a esquerda não têm nada a ver com o que apreendemos disso esteticamente, o que quer dizer - na relação que funda nosso corpo - de seus 'dois' lados aparentes. O que o nó borromeano 'demonstra', não é que ele seja feito de um aro de barbante, e que baste que outro aro se dobre como duas orelhas para que um terceiro, prendendo seus dois elos, não possa se desprender por causa do primeiro - é que desses três aros, qualquer um pode funcionar como primeiro e último, o terceiro funcionando então como mediano, ou seja, como orelhas dobradas (Fig. 4 e 5). A partir daí, deduz-se que qualquer que seja o número de medianos, isto é, de orelhas duplas, qualquer um desses medianos pode funcionar como pri­ meiro e último, os outros se acoplando a eles, com sua infinidade de orelhas. Essas orelhas são assim feitas, não de uma confrontação de 1-2, 2-1, mas, no intervalo desses dois, de uma confrontação 2-2 repetida tantas vezes quantos aros houver, menos três, ou seja, o número de aros do nó borromeano. No entanto, é claro que o laço privilegiado do primeiro aro com o segundo e do penúltimo com o último continua valendo, a introdução do primeiro e do último no elo central produz aí singulares enovelamentos. Pode-se, contudo, dispensando-se disso, reencontrar a disposição inicial. Os nós, em sua complicação, são feitos para nos fazer relativizar as preten­ sas três dimensões do espaço, fundadas somente na tradução que fazemos de nosso corpo em um volume de sólido. Não que ele não se preste a isso anatomicamente, mas aí está toda a questão da revisão necessária - ou seja, da razão pela qual ele toma essa forma - aparen­ temente, ou seja, para nosso olhar. Indico aqui onde poderia entrar a matemática da amarração, ou seja, do nó. Tomemos um cubo e decomponhamo-lo em oito, 23, pequenos cubos, empi­ lhados regularmente, cada um tendo, como lado, metade do primeiro cubo. Retiremos os dois pequenos cubos escolhidos por terem por vértices dois dos vértices diametralmente opostos do grande cubo. Há então duas maneiras, e somente duas de acoplar, por uma face comum, os seis pequenos cubos restantes.

261

Encare

Figuras 11 e 12 Essas duas maneiras definem duas disposições diferentes de acoplar três eixos contínuos segundo, digamos, as três direções do espaço, distinguidas, jus­ tamente, pelas coordenadas cartesianas.

Figuras 13 e 14 Para cada um desses três eixos, os dois cubos vazios, ou seja, extraídos em primeiro lugar, permitem definir de modo unívoco a inflexão que podemos impor a eles.. É aquela exigida pela amarração no nó borromeano. Mas ainda há mais. Podemos exigir a queda do privilégio que constitui a existência do primeiro e do último círculo - não importa quais possam exercer esse papel - no nó borromeano, ou seja: que esse primeiro e esse último no dito nó sejam constituídos de um redobramento com a mesma estrutura do elo cen­ tral - dito de outra forma, que o vínculo 2-2 seja aí unívoco. É a figura 9. O inextricável que disso resulta, para toda tentativa de planificação, con­ trastará felizmente com a elegância da planificação da apresentação original. E, no entanto, vocês constatarão que nada é mais fácil do que isolar de novo dois aros, na mesma posição dita do primeiro e do último, no nó original. Desta 262

Lição 12 - 15 de maio de 1973 - Anexo I

vez, qualquer um satisfazendo de modo absoluto, pois desapareceu o privilé­ gio que, como eu dizia, complica muito a disposição dos elos intermediários, quando se trata do nó borromeano original, mas levado a um número de mais de quatro. Com efeito, nesse caso, esses elos não são mais feitos da simples dobra de um aro, o que representávamos com a imagem de duas orelhas, mas de uma dobra tal que quatro fios do elo conexo são presos pelos aros que isolamos com os termos primeiro e último, mas não de modo equivalente, um desses dois prendendo-os simplesmente, o outro, por isso definível como diferente, pren­ dendo esses quatro fios com uma dupla volta. Em toda parte, no elo central, os quatro fios permitem certo número de entrecruzamentos típicos e suscetíveis de variações. Resumindo, esses elos têm um comprimento quatro vezes menor do que o dos aros extremos. Concluo disso que o espaço não é intuitivo. Ele é matemático - o que todo o mundo pode ler na própria história da matemática. Isso que dizer que o espaço sabe contar, não muito além do que nós - e com razão -, pois só vai até seis, nem mesmo sete. E por isso que Jeová se distinguiu com sua férula da semana. E claro que a contagem popular vai até dez, mas é porque se conta nos dedos. Depois foi preciso descontar, com O, ou seja, foi um erro - não se deve contar a partir de nada que seja do corpo aparente, nem da motricidade animal. O curioso é que a ciência só se tenha desprendido disso à custa de um sistema 6x10, ou seja, sexagesimal - vejam os babilônios. Para voltar ao espaço, ele parece bem fazer parte do inconsciente - estrutu­ rado como uma linguagem. E se ele conta até seis, é porque só pode reencontrar o dois pelo três da revelação. Uma palavra ainda (encare) - não é preciso inventar nada. Eis o que nos ensina a revelação do inconsciente. Mas não há nada a fazer - é a invenção que nos instiga. Pois o que é preciso é nos desviar do Real, e do que significa a pre­ sença do número. Uma palavra, para terminar. Pôde-se observar que a homogeneização dos elos 'extremos' não é a mesma coisa que sua junção ponta a ponta, o que singu­ larmente não tem outro efeito sobre a cadeia que o de deixá-los independentes, praticamente com o número de elos que ele reduz de um. 263

Encare

Que resultado, pois, esperar da cadeia original de três elos, quando tam­ bém se opera nela? Sua redução a dois elos, ficando claro que sua ruptura resul­ tará seguramente da secção de qualquer um deles. Mas qual vai ser seu enrolamento?

Figura 15 Será o de um anel simples e de um oito interior, aquele com o qual simbo­ lizamos o sujeito - permitindo assim reconhecer, no anel simples, que aliás se interverte com o oito, o signo do objeto a - ou seja, da causa pela qual o sujeito se identifica ao seu desejo.

264

Lição 13 26 de junho 1973

Graças a alguém que se dispõe a fazer a 11 escovação" do que eu lhes digo ele está ali, na primeira fila - recebi há quatro ou cinco dias a "trufa escovada"1 de minhas elocuções aqui, refiro-me às deste ano. Isso me interessava porque, afinal, com esse título Encare, eu não estava certo de estar no terreno que prepa­ rei durante vinte anos, pois, justamente, o que ele dizia era que isso podia durar encare muito tempo. Relendo-o, achei que não estava tão mal assim e, especialmente, por ter partido de algo que me parecia um pouco magro para o primeiro de meus semi­ nários deste ano: que 11 o gozo do Outro não é o signo do amor" . Era um ponto de partida. Um ponto de partida ao qual poderei talvez voltar hoje, fechando o que eu abrira então. De fato, falei um pouco do amor.2 Mas o ponto pivô do que enunciei este ano diz respeito ao saber, sobre o qual acentuei que seu exercício só podia repre­ sentar um gozo. Esta era a chave, o eixo central. É sobre isso que eu gostaria de contribuir hoje, com uma espécie de reflexão sobre o que se faz de 'tateante', no discurso científico, com relação ao que pode ser produzido de saber.3 Vou diretamente àquilo de que se trata. O saber é um enigma. Um enigma que nos é presentificado pelo inconsciente, tal como ele se revelou pelo discurso analítico e que se enuncia mais ou menos assim: para o ser falante, o saber é o que se articula. Poderíamos ter-nos apercebido disso há um bom tempo, pois, afinal, ao traçar os caminhos do saber, não fazíamos nada mais do que articular toda espécie de coisas que, durante muito tempo, se centraram no ser, ficando evidente que nada é, senão na medida em que se diz que isso é. 1

2 3

Esta metáfora faz alusão ao procedimento de "escovar a trufa", para retirar dela qualquer resíduo de terra, antes de usá-la na culinária, evocando, sem dúvida, a preciosidade desse condimento e, por conseguinte, deste seminário de Lacan, "escovado" (estabelecido) por J.A. Miller. (N.T.) A Versão 2 traz aqui "da mulher". (N.T.) A versão publicada (ap. cit., p. 125) introduz aqui uma separação: Parte 1. (N.T.)

2 65

Encare

Eu chamo isso de 5 (5 deux). É preciso saber ouvir isso: será mesmo ' deles' 2 (d'eux)4 que isso fala? Porque, afinal, se partimos da linguagem, é geralmente enunciado que a linguagem serve para a comunicação. Comunicação a res­ peito de quê? É preciso se perguntar. A respeito de quais 'eles'? A comunicação implica a referência. Só que, há algo que fica claro, eu tomo aí as coisas pelo lado do estudo científico da linguagem: a linguagem é o esforço feito para dar conta de algo que não tem nada a ver com a comunicação, e é o que chamo de alíngua" (lalangue).S Alíngua" serve para outras coisas, que não a comunica­ ção. Foi o que a experiência do inconsciente nos mostrou, na medida em que ele é feito de "alíngua", que eu escrevo, como vocês sabem, numa só palavra, para designar o que nos interessa, a cada um de nós, com relação ao que, para nós, é a língua dita materna, e dita assim não sem razão. A comunicação, por sua vez, se quiséssemos aproximá-la um pouco do que se exerce, efetivamente, no gozo de alíngua", seria porque ela implica algo, ou seja, a réplica, em outras palavras, o diálogo. Mas como eu articulei expressa­ mente em outra ocasião, não especialmente este ano, não há nada menos garan­ tido que 11 alíngua" sirva primeiro, e antes de tudo, para o diálogo. Eu pude assim recolher, de passagem - porque acontece de me chegarem às mãos coisas de que ouvi falar, há muito tempo - chegou-me, pois, às mãos, um trabalho, um livro importante de alguém chamado Bateson,6 sobre o qual me haviam enchido os ouvidos o bastante para me irritar um pouco. Porque, na verdade, isso vinha de alguém que tinha sido tocado pela graça de certo texto meu, que ele havia traduzido, acrescentando alguns comentários, e que pensou ter encontrado, no Bateson em questão, algo que ia sensivelmente mais longe do que eu achei que devia enunciar sobre o inconsciente, o inconsciente, eu disse, estruturado como uma linguagem. Não é tão mau assim, esse Bateson. Logo será traduzido, graças a Deus, isso permitirá ver até que ponto ele se insere admiravelmente no que eu digo a respeito do inconsciente, do qual esse autor, por não saber que ele é estruturado como uma linguagem, demonstra não ter senão uma ideia bastante medíocre. Mas é preciso dizer que há coisas que ele 11

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4 5 6

Há uma homofonia, em francês, entre 52 (que se lê: S deux ) e est-ce d'eux (será deles ?). (N.T.) Sobre a tradução de lalangue, cf. nota 13 da Lição 7. BATESON, G. Perceval le fou, autobiographie d'un schizophrene. Mayenne: Payot, 1976.

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Lição 13

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26 de junho de 1973

forjou, com bonitos artifícios, e que ele mesmo chama de "metálogos" .7 Nada mau, na medida em que, como ele próprio diz, esses metálogos" comporta­ riam, se acreditarmos nele, alguma espécie de progresso interno, dialético, que consistiria justamente em só se produzir por interrogar a evolução do sentido de um termo. Ele realiza esse artifício, é claro, como sempre se fez, em tudo o que se chamou de diálogo - diálogos platônicos, entre outros - isto é, fazer o interlocutor suposto dizer tudo o que, em suma, motiva a própria questão do locutor, ou seja, encarnar no outro a resposta que já está ali. E exatamente nisso que o diálogo, o diálogo clássico, cujo exemplo mais belo é o legado de Platão, é exatamente nisso que o diálogo clássico se demonstra não ser um diálogo. Se eu disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estrutu­ rado, é exatamente porque a linguagem, de início, não existe. A linguagem é o que se tenta saber com relação à função de alíngua" . E bem assim que o discurso científico a aborda, só que o difícil, para ele, é realizar isso plenamente,8 pois o inconsciente é o testemunho, o testemunho de um saber, enquanto ele escapa, em grande parte, ao ser, que dá a ocasião de perceber até onde vão os efeitos de "alíngua" . Com efeito, é verdade, com efeito, esse ser responde por todo tipo de afetos que ficam enigmáticos, o que resulta dessa presença de alíngua", pois no que se refere ao saber, ela articula coisas que vão muito mais longe do que tudo o que ele mesmo sustenta, a título de saber enunciado. A linguagem, sem dúvida, é feita de "alíngua", é uma elucubração de saber sobre a própria "alín­ gua" . Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua" . O que se sabe fazer com "alíngua" ultrapassa, em outros termos, e muito, aquilo de que se pode dar conta a título da linguagem, mas suscita a mesma questão que é suscitada pelo termo linguagem, está na mesma via. Só que vai muito mais longe, antecipa sobre a função da linguagem. Alíngua" nos afeta, de início, por tudo o que ela comporta de efeitos, que são afetos. E se podemos dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem é, muito preci­ samente, porque esses efeitos de alíngua", que já estão ali como saber, como 11

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"Um metálogo é uma conversa sobre um tema problemático. Essa conversa deve ser tal que os participantes não discutem apenas sobre o problema, a estrutura da conversa como um todo é também referente ao mesmo tema problemático". In: BATESON, G. Metálogos. Buenos Aires: Editorial Tiempo contemporáneo, 1969. A versão publicada (op. cit., p. 126) acrescenta aqui: "car il méconnaft l 'inconscient" ("pois ele ignora o inconsciente". (N.T.) 267

Encare

saber que não tem nada a fazer, vão muito além de tudo o que o ser, o ser que fala é suscetível de articular como tal. E por isso mesmo que o inconsciente - uma vez que eu o sustento aqui por seu deciframento - só pode se estruturar como uma linguagem, uma linguagem sempre hipotética, com relação ao que o sustenta, ou seja, "alíngua". Foi o que fez, há pouco, com que eu pudesse, a partir de meu S (S deux), formular uma 2 questão, e perguntar: será deles (est-ce d'eux)9, efetivamente, que se trata na lin­ guagem? Em outras palavras: a linguagem será somente comunicação? O des­ conhecimento deste fato, que surgiu através do discurso analítico, emprestou àquilo de que vou fazer hoje o pivô de minha questão sobre o saber, emprestou a isso o seguinte: que nos bas-fonds da ciência, tenha surgido esse fingimento10 que consiste em indagar como o ser pode saber o que quer que seja_ll E cômico ver como essa interrogação pretende ser satisfeita. Tomarei como exemplo o seguinte: já que o limite - eu o estabeleci de início - é feito de haver seres que falam, pergunta-se o que pode ser o saber daqueles que não falam. Pergunta-se isso. Não se sabe por que se pergunta isso e, no entanto, pergun­ ta-se. E faz-se um pequeno labirinto, para ratos, graças ao qual se espera estar no caminho do que seja um saber. O que acontece então? Esperava-se estar nesse caminho, porque se espera que o rato vá mostrar que capacidade ele tem para aprender. Aprender o quê? O que lhe interessa, é claro, e supõe-se que o que lhe interessa - suposição que não é absolutamente infundada - deva ser .. Y já que o tomam, esse rato, não como ser, mas exatamente como corpo, o que supõe que ele seja visto como unidade, como unidade rato. Não se pergunta absolutamente o que pode sustentar o ser do rato, embora desde sempre se tenha tido a ideia de que o ser devia conter uma espécie de plenitude que lhe fosse própria, pois foi daí que se partiu, na primeira abordagem do que se referia ao ser, ou seja, de que o ser era um corpo. Havia-se elucubrado toda uma hierarquia, toda uma escala dos corpos, e tinha-se partido dessa noção que cada qual devia saber o que o mantinha no ser. Em outras pala­ vras, não se tinha ido mais longe do que essa ideia, de que ele é mantido ali por alguma coisa que devia ser seu bem, que devia lhe dar prazer. 9 10

Cf. nota 4. (N.T.) Em francês: grimace ('fingimento', 'falsa aparência', 'dissimulação'). (N.T.)

11 A versão 12 A

268

publicada (op. cit., p. 127) introduz aqui urna separação: Parte 2. (N.T.)

frase fica incompleta nas Versões 1 e 2. (N.T.)

Lição 13 - 26 de junho de 1973

Mas como pôde acontecer, o que houve como mudança no discurso, para que de repente se interrogasse esse ser sobre o meio que ele teria de se superar, ou seja, de aprender mais do que ele precisa em seu ser, para sobreviver como corpo? Graças à montagem do labirinto e a alguns acessórios, ou seja, o labi­ rinto não leva somente ao alimento, mas a alguma coisa como um botão ou uma válvula, cujo truque o sujeito suposto desse ser precisa descobrir, para alcançar seu alimento. Em outras palavras, transforma-se a questão de saber em questão de aprender. Será que um rato, não mais considerado em seu ser, mas em sua unidade - pois tudo vai levar ao apertar de um botão, e é a mesma coisa tratan­ do-se do reconhecimento de algum traço, pelo qual se conceberá que então o ser é suscetível de reagir, quer se trate de um traço luminoso ou de um traço de cor, e se constatará que, após uma série de ensaios e erros, trials and errors - é como vocês sabem que isso é chamado, isso ficou em inglês, considerando aqueles que seguiram essa via relativa ao saber - calcula-se a taxa de trials and errors, em quanto tempo essa taxa vai começar a diminuir o suficiente para que se registre que a unidade rato é capaz de aprender alguma coisa. O que só é proposto secundariamente, como questão, é a que eu formulo, isto é, se a unidade rato, em questão, vai aprender a aprender. É aí que está a verdadeira mola dessa experiência: será que um rato, depois de ser submetido a essa prova, ou depois que ela cessou, ao ser colocado diante de uma prova da mesma ordem - veremos daqui a pouco o que é essa ordem - será que ele vai aprender mais depressa? O que se materializa facilmente por um decréscimo do número de tentativas necessárias para que o rato saiba como tem de se com­ portar em tal montagem. Chamamos de montagem o conjunto do labirinto e das válvulas e botões que funcionam nessa ocasião. É claro que a questão foi levantada tão poucas vezes, embora o tenha sido, é claro, que nem se pensou em interrogar a diferença que há, conforme aquele que ensina o rato em questão a aprender seja ou não o mesmo experimentador. Em outros termos, o que é deixado de lado é isso: se o que se propõe ao rato como tema, para demonstrar suas faculdades de aprender, surge da mesma fonte ou de duas fontes diferentes. Pois se nos reportarmos ao fato de que o experimentador - é bem evidente que ali, é ele quem sabe alguma coisa, é com o que ele sabe que ele inventa a montagem do labirinto, dos botões e das válvulas - se ele não fosse alguém para quem a relação com o saber estivesse fundada numa certa relação que é, como eu disse, por que não repetir, de habitação ou de coabitação com " alíngua", é claro que não haveria essa montagem. 2 69

Encare

E tudo o que a unidade rato aprende, nessa ocasião, é a dar um sinal, um sinal de sua presença de unidade. Quer seja o botão ou outra coisa, o apoio da pata sobre esse sinal, seja botão ou válvula, que essa válvula seja reconhecida, e só o é por um sinal, é sempre fazendo um sinal que a unidade alcança aquilo que permite concluir que há aprendizagem. Mas essa relação é, em suma, de exterioridade, de uma exterioridade tal que nada confirma que possa haver compreensão do mecanismo ao qual leva o apertar do botão. Como não enten­ der que a questão é importante, da mais alta importância, que é a única que contaria, ou seja: se nos sucessivos mecanismos o experimentador pôde cons­ tatar não só que o rato encontrou o truque, mas que ele aprendeu - única coisa que conta - a maneira de fazê-lo, que ele aprendeu o que deve pegar.13 E claro que, eu diria, a coerência, a simbiose que tal experiência realiza, se levarmos em conta o que se refere ao saber inconsciente, não pode deixar de ser interrogada a partir disso: o que é preciso saber é como a unidade rato responde ao que não foi cogitado, a partir de nada, pelo experimentador.14 Em outros termos, não se inventa uma composição labiríntica qualquer, o fato de que isso venha do mesmo experimentador ou de dois experimentadores diferentes merece ser interrogado, e nada do que eu pude recolher até agora dessa literatura implica que seja nesse sentido que a questão tenha sido formulada. Mas o interesse desse exemplo não se limita a esse fato, a esse fato de inter­ rogação, que deixa inteiramente intactos, e diferentes,l5 o que se refere ao saber e à aprendizagem. O que se refere ao saber suscita questões e expressamente a de como isso se ensina.16 E bem claro que a questão de como isso se ensina, ou seja, a noção de uma ciência inteiramente centrada nisso, num saber que se transmite, que se trans­ mite integralmente, foi ela que produziu, no que se refere ao saber, essa tria13

Aqui há duas variantes, dois entendimentos, em razão da hornofonia: "ce qui est apprendre" ("o que é aprender"), na Versão 1, e " ce qui est à prendre" ("o que se deve pegar"), na Versão 2 e na versão publicada (op. cit., p. 129). (N.T.)

14

A versão publicada (op. cit., p. 129) acrescenta aqui: "mais à partir de lalangue" ("mas a partir de 'alíngua'"). (N.T.)

15 A Versão 1 traz aqui: intacts et différents, como traduzido acima. A Versão 2 traz: intact et différé (intacto e diferido) e a versão publicada (op. cit., p.129) traz: intactes et distinctes (intactas e distintas). (N.T.) 16

A versão publicada (op. cit., p. 129) introduz aqui urna separação: Parte 3. (N.T.)

2 70

Li

de junho de 1973

gem, graças à qual se constituiu um discurso que se chama científico. Ele se constituiu, mas não sem numerosas desventuras. Se este ano eu relembrei onde ele pôde surgir, certamente não foi sem que isso fosse suposto, Jingere, Jinga. Newton diz: nan Jinga, ele crê poder dizer: Hypateses nan Jinga, eu não suponho nada. E não foi por acaso que, este ano, especifiquei que foi exatamente a partir de uma hipótese, ao contrário, que tudo girou. A famosa revolução, que não é de modo algum copernicana, mas newtoniana, influiu nisso: substituir um "isso gira" por um " isso cai" . Foi a hipótese newtoniana como tal, quando ele a reconheceu no "isso gira" astral dos ciclos, e marcou que era a mesma coisa que cair. Mas para constatá-lo, o que uma vez constatado permite eliminar a hipótese, foi preciso, primeiro, que ele a formulasse, essa hipótese. A questão de introduzir um discurso científico relativo ao saber é interro­ gá-lo onde ele está, e esse saber, onde ele está, isso quer dizer no inconsciente, na medida em que é no berço de "alíngua" que esse saber repousa. Eu assinalo que o inconsciente, eu não entro nisso, não mais do que Newton, sem hipótese. A hipótese de que o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que cons­ titui o que chamo de sujeito de um significante, o que enuncio sob essa fórmula mínima: "um significante representa um sujeito para outro significante". Em outras palavras, eu reduzo a hipótese, segundo a fórmula mesma que a substan­ tifica, a isso: a hipótese é necessária ao funcionamento de "alíngua" . Dizer que há um sujeito não é nada mais do que dizer que há hipótese. A única prova que tenhamos de que o sujeito se confunda com essa hipótese, e que seja o indivíduo, o indivíduo falante que o sustente, é que o significante se torne signo. O significante, em si mesmo, não é definível senão por uma diferença, uma diferença de outro significante. E a introdução, como tal, da diferença no campo, que permite extrair de "alíngua" o que se refere ao significante. Mas a partir daí - e porque há o inconsciente, ou seja, " alíngua", na medida em que é da coabitação com ela que se define um ser chamado ser falante - que o signifi­ cante pode ser chamado a constituir signo. E ouçam isso como quiserem, seja a palavra signe, signo, seja o inglês thing, a coisaP O significante, se de um sujeito enquanto significante ele constitui o suporte formal, ele alcança algo de diferente, na medida em que o afeta. Um outro, que não o que ele é, muito cruamente, como significante, um outro é feito sujeito, ou pelo menos passa por sê-lo. É por isso que ele é, e somente para o ser falante, 17 Pela semelhança sonora entre as duas palavras: signejthing. (N.T.)

2 71

Encare

que ele vem a ser, como ente, algo do qual o ser está sempre alhures, como o mostra o predicado. O sujeito nunca é senão pontual e evanescente, ele só é sujeito por um significante e para outro significante. É aqui que precisamos voltar a isso: que, afinal de contas, por uma escolha que não se sabe o que a guiou, Aristóteles tomou o partido de não dar outra definição do indivíduo senão o corpo. O corpo enquanto organismo, enquanto o que se mantém como Um, e não enquanto o que se reproduz. É impressio­ nante ver que entre a ideia platônica e a definição aristotélica do indivíduo como fundando o ser, a diferença é propriamente aquela em torno da qual ainda estamos: a questão que se apresenta ao biólogo, ou seja, como um corpo se reproduz. Pois é bem disso que se trata em qualquer tentativa da química dita molecular: como é que combinando certo número de coisas num banho único, algo vai se precipitar, fazendo com que uma bactéria, por exemplo, se reproduza como tal? O corpo, então, o que é isso? É ou não é o saber do Um? O saber do Um se revela não vir do corpo. O saber do Um, por pouco que se possa dizer dele, vem do significante Um, pois o significante Um, será que ele vem do fato de que o significante, como tal, não seja senão um entre outros, referido, como tal, a esses outros, e como sendo sua diferença com relação a esses outros? A questão está tão pouco resolvida até agora que eu fiz todo o meu seminário do ano passado para interrogar, ressaltar esse Há Um (Y a d'l'Un).18 O que quer dizer Há Um? O que quer dizer Há Um é o que a articulação significante permite perceber, é que de Um entre outros - e trata-se de saber se é qualquer um - levanta-se um SI' um essaim,l9 um enxame de significantes, um enxame zumbindo, ligado a isso: que esse Um de cada significante, com a questão "será deles (est-ce d' eux)20 que falo?", esse 51 que eu posso escrever, de início, por sua relação com 5 : 5 ...... 5 , pois bem, é isso que é o enxame. E 2 2 1 vocês poderão acrescentar aqui quantos quiserem, é o enxame de que falo.

18

Sobre a tradução de Y a d'l'Un, cf. nota 24 da Lição 1 .

19

Homofonia, em francês, entre 51 (lê-se: esse un ) e essaim (enxame) . (N.T.)



Como já mencionado na nota 4: 52 / est-ce d'eux são homófonos. (N.T.)

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O significante, como mestre, ou seja, enquanto ele assegura a unidade, a unidade dessa copulação do sujeito com o saber, é isso o significante-mestre. E é unicamente em alíngua11, na medida em que ela é interrogada como lingua­ gem, que se depreende - e não em outro lugar - a existência daquilo que, não foi sem razão que o termo stoikeion, m:OLxc'iov, elemento, surgiu de uma linguís­ tica primitiva. Não é sem razão que o significante Um não é um significante qualquer, ele é a ordem significante, pois ele se instaura do envolvimento21 pelo qual toda a cadeia subsiste. Li recentemente o trabalho de alguém que se interroga a respeito do que ela toma como uma relação, a do 51 com o 5 , ou seja, relação de representação. 2 O 51 estaria 'em relação' com o 5 na medida em que ele representa um sujeito. 2 A questão de saber se essa relação é assimétrica, antissimétrica, transitiva ou outra, ou seja, se o sujeito se transfere do 5 a um 5 e assim por diante, é uma 2 3 questão a ser retomada, a ser retomada a partir do esquema que eu dou aqui. O Um encarnado em alínguall é algo que justamente permanece indeciso entre o fonema, a palavra (le mot), a frase ou mesmo todo o pensamento. É disso que se trata no que eu chamo de significante-mestre, é do significante Um. E não foi sem razão que em nosso penúltimo encontro eu trouxe aqui, para ilus­ trar isso, o pedaço de barbante, pois ele faz esse aro, um aro que eu comecei a interrogar sobre seu nó possível com um outro. Não irei mais longe hoje, por­ que devido a uma questão, em suma, externa, questão de nossa acolhida aqui, já que fomos privados de um desses seminários, é algo que eu retomarei mais adiante, eventualmente. 22 11

11

O importante aqui, para virar a página, o importante do que revelou o dis­ curso psicanalítico consiste nisso, que alguns se admiram de não perceber por toda parte: é que esse saber que estrutura, por urna coabitação específica, o que é do ser que fala, esse saber tem a maior relação com o amor. Pois o que sustenta todo amor é precisamente isso: uma certa relação entre dois saberes inconscientes. Se enunciei que a transferência é o sujeito suposto saber que a motiva, isso é apenas um ponto de aplicação inteiramente particular, especificado pelo que está aí pela experiência, e peço-lhes que se reportem ao texto do que enunciei 21 A

ser entendido como 'ação de envolver', sem qualquer conotação de 'envolvimento emocio­ nal'. (N.T.)

22

A versão

publicada (op. cít., p. 131) introduz aqui uma separação: Parte 4. (N.T.) 2 73

Encore

aqui sobre a escolha do amor. Foi em meados deste ano que o fiz. Se falei de algo a esse respeito, foi, em suma, do reconhecimento, do reconhecimento atra­ vés de sinais, sempre pontuados enigmaticamente, da maneira pela qual o ser é afetado, enquanto sujeito, por esse saber inconsciente. Se é verdade que não há relação sexual, é porque simplesmente, o gozo - o gozo do Outro tomado como corpo - esse gozo é sempre inadequado, perverso, de um lado, na medida em que o Outro se reduz ao objeto a, e eu direi louco, do outro lado, na medida em que se trata da maneira enigmática pela qual se estabelece esse gozo do Outro como tal. Será que não é pelo enfrentamento desse impasse, dessa impossibilidade, definindo como tal um Real, que é posto à prova o amor, já que do parceiro, ele só pode realizar o que chamei - por uma espécie de poesia, para me fazer entender - o que chamei de coragem, diante desse destino fatal? Será mesmo de coragem que se trata ou dos caminhos de um reconhecimento? De um reconhecimento cuja característica não é talvez senão isso: que essa relação dita sexual, que se tornou aí relação de sujeito a sujeito - do sujeito, na medida em que ele não é senão o efeito do saber incons­ ciente - reconhecimento da maneira pela qual essa relação de sujeito a sujeito cessa de não se escrever? Esse "cessar de não se escrever", como você veem, não é uma fórmula que propus ao acaso. Se me agradou o necessário como o que não cessa de não se escrever,23 perdão, o que "não cessa de se escrever", no caso - o necessário não é o Real, é o que "não cessa de se escrever", o deslocamento dessa negação nos coloca, de passagem, a questão da negação, quando ela vem tomar o lugar de uma inexistência. Se a relação sexual responde a isso que eu digo que, não somente ela "não cessa de não se escrever", é disso mesmo, no caso, que se trata, se ela "não cessa de não se escrever", é que existe aí impossibilidade, é também que alguma coisa também não pode dizê-lo, ou seja, que não há exis­ tência, no dizer dessa relação. Mas o que quer dizer, o que quer dizer negar isso? Haverá, de alguma forma, legitimidade em substituir por uma negação a apreensão experimentada da inexistência? Esta é também uma questão que teremos de abordar. A palavra 'inter-dição' quererá mais 'dizer', será mais 'permitido'? É o que, de imediato, também não poderia ser decidido. 23

Esse é um lapso que Lacan corrige imediatamente e do qual fala algumas linhas adiante. A título de lembrete: o necessário: "não cessa de se escrever"; o impossível: "não cessa de não se escrever"; o possível: "cessa de se escrever"; o contingente: "cessa de não se escrever". (N.T.)

2 74

Lição 13

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Mas a apreensão da contingência, tal como já a encarnei nesse "cessa de não se escrever", ou seja, em algo que, pelo encontro de sintomas, de afetos, do que em cada indivíduo marca o rastro de seu exílio - não como sujeito, mas como falante - de seu exílio dessa relação, será que isso não quer dizer que é somente pelo afeto que resulta dessa hiância que alguma coisa, em qualquer tempo em que se produza o amor/4 que alguma coisa pode variar üúinitamente quanto ao nível desse saber, que alguma coisa se encontra que, por um instante, pode dar a ilusão de "cessar de não se escrever'? Ou seja, a ilusão de que alguma coisa não só se articule, mas se inscreva no destino de cada um, pela qual durante um tempo, um tempo de suspensão, esse algo que 'seria' a relação encontre, no ser que fala, seu rastro e sua via de miragem? O que nos permitiria, essa implica­ ção, de confirmá-la?25 Certamente isso, que o deslocamento dessa negação, ou seja, a passagem em que há pouco eu me enganei, num lapso ele mesmo bem significativo, ou seja, a passagem da negação "cessa de não se escrever" ao "não cessa de se escrever", a necessidade substituindo essa contingência, está bem aí o ponto de suspensão ao qual se apega o amor. Todo amor, por só subsistir pelo " cessar de não se escrever", tende a fazer passar essa negação ao "não cessa, não cessará de se escrever" . E é esse efetivamente o substituto que, pela via da existência não da relação sexual, mas do inconsciente, que dela difere - por essa via faz o destino e também o drama do amor. Tendo em vista a hora a que chegamos, que é aquela em que normalmente eu desejo me despedir de vocês, não levarei as coisas mais longe. Não levarei as coisas mais longe, salvo para indicar que o que eu disse do ódio é algo que não pertence ao mesmo plano em que se articula a tomada do saber inconsciente. Mas, no que se refere ao sujeito, sobre o qual, vocês podem notar, não pode ser que ele não deseje não saber muito sobre esse encontro eminentemente contin­ gente. Que ele saiba mais, um pouco mais sobre isso, que desse sujeito ele vá ao ser que está preso ali, a relação do ser, do ser ao ser, mas que esteja bem longe dessa relação de harmonia com que, desde sempre, não se sabe bem por quê, nos poupa, nos conforta uma tradição onde é muito curioso constatar a convergênVersão 2 traz aqui: "dans tout temps" ("em qualquer tempo em que se produza o amor") . A versão publicada (op. cit. p. 132) suprime a frase. (N.T.)

24 A

Versão 1 traz aqui "de la conforter", com o sentido que traduzimos acima. A Versão 2 traz aqui: la confronter (confrontá-la). A versão publicada (op. cit., p. 1 32) suprime a frase. (N.T.).

25 A

2 75

Encare

cia de Aristóteles, que só vê aí o gozo supremo, com o que a tradição cristã nos reflete dessa tradição mesma como beatitude, mostrando aí seu emedamento em algo que verdadeiramente não é mais do que uma apreensão de miragem. O encontro do ser como tal, é bem aí que pela via do sujeito, o amor vem a abordar, quando ele aborda... Eu fiz expressamente essa pergunta: será que não é aí que surge o que faz do ser, precisamente, algo que só se sustenta por se malograr?26 Se falei de rato, há pouco, era disso que se tratava, não foi sem razão que o rato foi escolhido. Foi porque o rato (rat) se rasura (rat-ure), faz-se facilmente uma unidade. E depois, por um lado, eu já vi isso numa época em que eu tinha um porteiro, quando morava na Rue de la Pampe. Ele nunca errava (ratait)27 o alvo, ele tinha pelo rato um ódio igual ao ser do rato . . . A abordagem d o ser, não será a í que reside o que e m suma s e revela ser o extremo do amor, o verdadeiro amor? O verdadeiro amor desemboca no ódio, seguramente, não foi a experiência analítica que fez essa descoberta, a modula­ ção eterna dos temas sobre o amor traz suficientemente o reflexo disso. Então, eu me despeço. Será que lhes digo até o ano que vem? Vocês vão notar que eu nunca, 'nunca' lhes disse isso, e eu noto hoje, é disso que se trata, eu noto hoje que nunca lhes disse isso. Mais exatamente, levo ao conhecimento de vocês essa observação, porque eu sempre me privei de fazê-la, por uma sim­ ples razão, é que eu nunca soube, e já faz vinte anos que articulo essas coisas para vocês, eu nunca soube se continuaria no próximo ano. Ah, isso faz parte de meu destino de objeto a. Então, afinal, nesses vinte anos, eu fechei o ciclo, após dez anos, pois me haviam, em suma, retirado a palavra. E acontece que, por razões nas quais havia uma parte de destino e também, de minha parte, uma parte de inclinação para agradar alguns/8 continuei durante dez anos ainda. Será que continuarei no próximo ano? Por que não parar aqui o Encare? O que há de admirável é que ninguém jamais duvidou que eu continuaria encare. Que eu faça essa observa­ ção relança, contudo, a questão. Poderia acontecer que, afinal, a esse Encare eu acrescentasse um "é o bastante" . 26

11

Em francês: de se raterll. Perde-se na tradução a homofonia entre rater (malograr, dar errado) e rat (rato). (N.T.)

27 Há aqui, em sequência, uma homofonia que se perde um pouco na tradução: rat (rato), rature (rasura) e rater (errar o alvo). (N.T.) 28 Em francês: 11 à quelqu un" . A versão publicada (op. cit., p. 133) traz aqui: alguns). A gravação é pouco audível nesse ponto. (N.T.) 2 76

11 à

quelques uns" (a

Lição 13 - 26 de junho de 1973

Pois bem, deixo-os fazerem suas apostas, porque afinal de contas, há mui­ tos que acreditam me conhecer e que pensam que encontro nisso uma infinita satisfação narcísica. Ao lado do trabalho que isso me dá, devo dizer que isso me parece pouca coisa. Façam suas apostas, e depois, qual será o resultado? Isso quererá dizer que aqueles que tiverem adivinhado certo, que eles me amam? Pois bem, é justamente esse o sentido do que acabo de lhes enunciar hoje: saber o que o parceiro vai fazer não é uma prova do amor.

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