Jorge Amado - Jubiaba

  • July 2020
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  • Words: 88,672
  • Pages: 142
Jorge Amado Jubiab�

A Matilde, lembran�a da viagem para recolher material Para Ann Martin, Sos�genes Costa, Oswald de Andrade, Jos� de Queir�s Lima, Ferreira de Castro, Graciliano Ramos e o preto velho Valentim.

Bahia de Todos os Santos e do Pai-de-Santo Jubiab� Boxe

A multid�o se levantou como se fora uma s� pessoa. E conservou um sil�ncio. O juiz contou: � Seis.. Por�m antes que contasse sete o homem loiro se ergueu sobre um bra�o, com esfor�o, e juntando todas as for�as se p�s de p�. Ent�o a multid�o se sentou novamente e come�ou a gritar. O negro investiu com f�ria e os lutadores se atracaram em meio ao tablado. A multid�o berrava: � Derruba ele! Derruba ele! O Largo da S� pegara uma enchente naquela noite. Os homens se apertavam nos bancos, suados, os olhos puxados para o tablado onde o negro Ant�nio Baldu�no lutava com Ergin, o alem�o. A sombra da igreja centen�ria se estendia sobre os homens. Raras l�mpadas iluminavam o tablado. Sol dados, estivadores, estudantes, oper�rios, homens que vestiam apenas camisa e cal�a, seguiam ansiosos a luta. Pretos, brancos e mulatos torciam pelo negro Ant�nio Baldu�no que j� derrubara o

advers�rio duas vezes. Daquela �ltima vez parecera que o branco n�o se levantaria mais. Por�m antes que o juiz contasse sete ele se levantou e continuou a lutar. Houve entre a assist�ncia pa lavras de admira��o. Algu�m murmurou: � O alem�o � macho mesmo... No entanto continuaram a torcer pelo negro alto que era campe�o baiano de peso pesado. Gritavam agora sem parar, desejosos de que a luta tivesse um fim, e que esse fim fosse com Ergin estendido no ch�o. Um homenzinho magro, cara chupada, mordia um cigarro apagado. Um negro baixote ritmava os berros com palmadas nos joelhos: � Der-ru-ba e-le. . . Der-ru-ba e-le... E se moviam inquietos, gritavam que se ouvia na Pra�a Castro Alves. Mas aconteceu que no outro round o branco veio com raiva em cima do negro e o levou �s cordas. A multid�o n�o se importou muito esperando a rea��o do negro. Realmente Baldu�no quis acertar na cara sangrenta do alem�o. Por�m Ergin n�o lhe deu tempo e o soqueou com viol�ncia atingindo-o no rosto, fazendo do olho do negro uma posta de sangue. O alem�o cresceu de repente e escondeu o preto que agora apanhava na cara, nos peitos, na barriga. Baldu�no foi novamente �s cordas, se segurou nelas, e ficou passivamente sem reagir. Pensava unicamente em n�o cair e se atracava com for�a �s cordas. Na sua frente o alem�o parecia um diabo a lhe martelar a cara. O sangue corria do nariz de Baldu�no, o seu olho direito estava fechado, tinha um rasg�o por baixo da orelha. Via confusamente o branco na sua frente, pulando, e ouvia muito longe os berros da assist�ncia. Esta vaiava. Viu o seu her�i cair e gritava: � D� nele, negro! Isso no princ�pio. Aos poucos a multid�o foi ficando silenciosa, abatida, vendo o negro apanhar. E quando voltou a gritar foi para vaiar. � Negro f�mea! Mulher com cal�a! A�, loiro! D� nele. Estavam com raiva porque o negro apanhava. Eles haviam pago os tr�s mil-r�is da entrada para ver o campe�o baiano dar naquele branco que se dizia �campe�o da Europa central�. E agora estavam assistindo era o negro apanhar. N�o estavam satisfeitos, moviam-se inquietos e ora vivavam o branco ora o vaiavam. E respiraram aliviados quando o gongo soou dando fim ao round. Ant�nio Baldu�no veio para o canto do ringue se segurando nas cordas. A� o homem magro que mordia o cigarro in�til cuspiu e gritou: � Onde est� o negro Ant�nio Baldu�no que derrubava brancos? Aquilo Ant�nio Baldu�no ouviu. Bebeu um gole da garrafa de cacha�a que o Gordo lhe oferecia e virou para a assist�ncia procurando o dono daquela voz. Voz que voltou met�lica: � Qued� o derrubador de brancos? Desta vez parte da multid�o acompanhou o homenzinho disse em coro: � Qued�? Qued�? Aquilo doeu a Baldu�no como uma chibatada. N�o sentia nenhum dos socos do branco mas sentia aquela censura dos seus torcedores. Disse ao Gordo: � Quando eu sair daqui dou uma surra neste sujeito. Marque ele. E quando soou o sinal de recome�ar a luta o preto se atirou em cima de Ergin. P�s um soco na boca do alem�o e em seguida um no ventre. A multid�o reconhecia novamente seu campe�o e gritou: � A�, Ant�nio Baldu�no! A�, Baldo! Derruba ele.. O negro baixo voltou a ritmar pancadas nos joelhos. O magro sorria. O negro continuava a dar e sentia uma grande raiva dentro de si. Foi quando o alem�o voou para cima dele querendo acertar no outro olho de Baldu�no. O negro livrou o corpo com um gesto r�pido e como a mola de uma m�quina que se houvesse partido distendeu o bra�o bem por baixo do queixo de Ergin, o alem�o. O cai da Europa central descreveu uma curva com o corpo e caiu com todo o peso. A multid�o, rouca, aplaudia em coro: � BAL-DO... BAL-DO... BAL-DO

O juiz contava: � Seis... sete... oito... Ant�nio Baldu�no olhava satisfeito o branco estendido aos seus p�s. Depois passou os olhos pela assist�ncia que o vivava procurando o homem que dissera que ele n�o era mais o derrubador de brancos. Como n�o o achasse sorriu para o Gordo. O juiz contava: � Nove... dez... Suspendeu o bra�o de Baldu�no. A multid�o berrava mas o negro s� ouvia a voz met�lica do homem do cigarro: � A� negro, voc� ainda derruba brancos. Alguns homens sa�ram pelo port�o largo e enferrujado. Por�m a maioria se lan�ou para o quadrado de luz, onde estava o tablado, e levantou nos ombros o negro Ant�nio Baldu�no. Um estivador e um estudante seguravam numa perna e dois mulatos na outra. Levaram assim o negro at� o mict�rio p�blico instalado no largo que era onde os lutadores mudavam a roupa. Ant�nio Baldu�no vestiu a roupa azul, bebeu um trago de cacha�a, recebeu os cem mil-r�is a que tinha direito e disse aos admiradores: � O branco era fraco. . . Branco n�o se ag�enta com o negro Ant�nio Baldu�no... Eu c� sou � macho. Sorriu, apertou o dinheiro no bolso da cal�a e se dirigiu para a pens�o da Zara, onde morava Zefa, cabrocha de dentes limados que viera do Maranh�o. Inf�ncia remota

Ant�nio Baldu�no ficava em cima do morro vendo a fila de luzes que era a cidade embaixo. Sons de viol�o se arrastavam pelo morro mal a lua aparecia. Cantigas dolentes eram cantadas. A venda de Seu Louren�o Espanhol se enchia de homens que iam conversar e ler o jornal que o vendeiro comprava para os fregueses da pinga. Ant�nio Baldu�no vivia metido num camisol�o sempre sujo de barro, com o qual corria pelas ruas e becos enlameados do morro, brincando com os outros meninos da mesma idade. Apesar dos seus oito anos, Ant�nio Baldu�no j� chefiava as quadrilhas de molecotes que vagabundavam pelo Morro do Capa-Negro e morros adjacentes. Por�m de noite n�o havia brinquedo que o arrancasse da contempla��o das luzes que se acendiam na cidade t�o pr�xima e t�o long�nqua. Se sentava naquele mesmo barranco � hora do crep�sculo e esperava com ansiedade de amante que as luzes se acendes sem. Tinha uma vol�pia aquela espera, parecia um homem esperando a f�mea. Ant�nio Baldu�no ficava com os olhos espichados em dire��o � cidade, esperando. Seu cora��o batia com mais for�a enquanto a escurid�o da noite invadia o casario, cobria as ruas, a ladeira, e fazia subir da cidade um rumor estranho de gente que se recolhe ao lar, de homens que comentam os neg�cios do dia e o crime da noite passada. Ant�nio Baldu�no, que s� fora � cidade umas poucas vezes, assim mesmo �s pressas, sempre arrastado pela tia, sentia �quela hora toda a vida da cidade. Vinha um rumor l� de baixo. Ele ficava ouvindo os sons confusos, aquela onda de ru�dos que subia pelas ladeiras escorregadias do morro. Sentia nos nervos a vibra��o de todos aqueles ru�dos, aqueles sons de vida e de luta. Ficava se imaginando homem feito, vivendo na vida apressada dos homens, lutando a luta de cada dia. Seus olhinhos mi�dos brilhavam e por mais de uma vez ele sentiu vontade de se largar pelas ladeiras e ir ver de perto o espet�culo da cidade �quelas horas cinzentas. Bem sabia que perderia o jantar e que a surra o aguardaria na volta... Mas n�o era isso o que o impedia de ir ver de perto o barulho da cidade que se recolhia do trabalho, O que ele n�o queria perder era o acender das luzes, revela��o que era para ele sempre nova e bela. Eis que a cidade j� se envolve quase completamente nas trevas.

Ant�nio Baldu�no n�o enxerga mais nada. Vinha um vento frio com a escurid�o. Ele nem o sentia. Gozava voluptuosamente os ru�dos, o barulho que aumentava cada vez mais. N�o perdia um s�. Distinguia as risadas, os gritos, as vozes dos b�bados, as conversas sobre pol�tica, a voz arrastada dos cegos pedindo uma esmola pelo amor de Deus, o barulho dos bondes carregados de pingentes. Gozava devagarinho a vida da cidade, Um dia teve uma emo��o enorme que o arrepiou todo. Chegou a ficar em p�, tremendo de prazer. � que distinguiu choro, choro de mulher e vozes que consolavam. Aquilo subia como um tropel por dentro dele, o arrastava numa vertigem de gozo. Choro... Algu�m, uma mulher, chorava na cidade que escurecia. Ant�nio Baldu�no escutou o choro doloroso at� que se extinguiu com o ru�do de um bonde que passava arranhando nos trilhos. Ant�nio Baldu�no ainda ficou com a respira��o suspensa vendo se conseguia ouvir mais alguma coisa. Por�m deviam ter levado a mulher para longe da rua, pois ele n�o escutou mais nada. Neste dia n�o quis jantar e n�o correu � noite pelas ruas com os companheiros. Sua tia dissera: � Esse menino viu coisa... Isto � sonso como o n�o- sei-que-diga... Dias bons, tamb�m, aqueles em que sentia a campainha da assist�ncia badalando na cidade. Era sofrimento que existia embaixo e Ant�nio Baldu�no, menino de oito anos, gozava aqueles peda�os de sofrimento como o homem goza a mulher. Mas as luzes que se acendiam purificavam tudo. Ant�nio Baldu�no se envolvia na contempla��o das fileiras de l�mpadas, mergulhava os olhos vivos na claridade e sentia vontade de agradar os outros negrinhos do Morro do Capa- Negro. Se algu�m se aproximasse dele naquele instante ele o acariciaria sem d�vida, n�o o receberia com os belisc�es costumeiros, n�o diria palavr�es que cedo aprendera. Passaria sem d�vida a m�o sobre a carapinha do companheiro de brinquedos, recostaria ao peito do amigo. E talvez sorrisse. Mas os garotos estavam correndo pelo morro e n�o se lembravam de Ant�nio Baldu�no. Ele ficava vendo as luzes. Distinguia vultos que passavam. Mulheres e homens que passeavam talvez. Por detr�s, no morro, violas repinicavam, negros conversavam. A velha Lu�sa gritava: � Baldo, vem jantar.... Menino imposs�vel. Sua tia Lu�sa fora-lhe pai e m�e. De seu pai Ant�nio Baldu�no apenas sabia que se chamava Valentim, que fora jagun�o de Ant�nio Conselheiro quando rapazola, que amava as negras que encontrava a cada passo, que bebia muito, bebia valentemente e que morreu debaixo de um bonde num dia de farra grossa. Coisas que ele ouvia da tia quando esta conversava com os vizinhos sobre o finado irm�o. Ela conclu�a sempre: � Era um negro bonito de encher a boca d��gua. Tamb�m brig�o e cachaceiro como ele s�. Ant�nio Baldu�no ouvia calado e fazia do pai um her�i. Com certeza vivera a vida da cidade na hora em que as luzes se acendem. Tentava �s vezes reconstituir a vida de seu pai com os peda�os de aventuras que ouvia a velha Lu�sa contar. A imagina��o se perdia logo em atos de coragem her�ica. Ficava olhando o fogo, imaginando como seria seu pai. Tudo o que ouvia contar de grande e rocambolesco julgava logo que o pai fizera a mesma coisa ou coisa melhor. Quando ele e os outros negros do morro iam brincar de quadrilha, e o interrogavam sobre quem queria ser, ele, que n�o fora ainda ao cinema, n�o queria ser Eddie Polo, nem Elmo, nem Maciste. � Quero ser meu pai... Os outros faziam pouco: � O que foi que teu pai fez? � Muita coisa. � Ele n�o levantou um autom�vel com um bra�o s� como Maciste. � Ele suspendeu um caminh�o... � Um caminh�o? � E carregado. � Quem foi que viu, Baldo? � Minha tia viu... Pergunte a ela. E se n�o gostou diga ou d� seu jeito. V�rias vezes brigou pela mem�ria her�ica do pai que n�o conhecera. Em verdade

ele brigava pelo pai que imaginava, aquele que amaria se conhecesse. Da m�e, Ant�nio Baldu�no n�o sabia nada. Andava solto pelo morro e ainda n�o amava nem odiava. Era puro como um animal e tinha por �nica lei os instintos. Descia as ladeiras do morro em louca disparada, montava cavalos de cabo de vassoura, era de pouca conversa mas de largo sorriso. Cedo chefiou os demais garotos do morro, mesmo os bem mais velhos do que ele. Era imaginoso e tinha coragem como nenhum. Sua m�o era certeira na pontaria do bodoque e seus olhos faiscavam nas brigas. Brincava de quadrilha. Era sempre o chefe. E muitas vezes se esquecia que estava brincando e brigava seriamente. Sabia todos os nomes feios e os repetia a todo momento. Ajudava a velha Lu�sa a fazer o munguz� e o mingau de puba que ela vendia � noite no terreiro. Levava o ralo, trazia os apetrechos, s� n�o sabia ralar coco. Os outros meninos no princ�pio levaram na tro�a dizendo que ele era cozinheira, mas se calaram no dia em que Ant�nio Baldu�no rebentou a cabe�a de Zebedeu com uma pedrada. Apanhou da tia e n�o conseguiu compreender por que apanhava. Por�m perdoava rapidamente as surras que a velha lhe aplicava. Tamb�m poucas correadas o atingiam pois ele era agil�ssimo e ficava que nem um peixe escorregando das m�os da tia, se furtando das chicotadas. Aquilo era at� um divertimento, um exerc�cio do qual muitas vezes ele sa�a rindo, vencedor, tendo conseguido que v�rias correadas n�o o atingissem. Apesar de tudo a negra Lu�sa dizia: � Este � o homem da casa A velha era conversadeira e envolvente. Os vizinhos vinham conversar com ela, ouvir as hist�rias que ela contava, hist�rias de assombra��es, contos de fadas e casos da escravid�o. Por vezes contava ou lia hist�rias em versos. Tinha uma que come�ava assim: �Leitores que caso horr�vel vou aqui vos relatar me faz o corpo tremer e os cabelos arrepiar pois nunca pensei no mundo existisse um ente imundo capaz de seus pais matar�. Era a hist�ria da filha maldita, caso que os jornais haviam relatado com grandes t�tulos e um poeta popular, autor de ABC e de sambas, rimara para vender a duzentos r�is no mercado. Ant�nio Baldu�no adorava esta hist�ria. Ficava pedindo para a velha contar de novo e fazia berreiro quando n�o era atendido. Gostava tamb�m de ouvir os homens contar casos de Ant�nio Silvino e Lucas da Feira. Nestas noites n�o ia brincar. Uma vez perguntaram: � Quando voc� crescer o que � que vai ser? Ele respondeu prontamente: � Jagun�o... N�o sabia de carreira mais bela e mais nobre, carreira que requeresse mais virtudes, saber atirar e ter coragem. � Voc� precisa � de ir para a escola � diziam. Ele perguntava a si mesmo para qu�. Nunca ouvira dizer que jagun�o soubesse ler. Sabiam ler os doutores e os doutores eram uns sujeitos moles. Ele conhecia o Dr. Ol�mpio, m�dico sem clientela que de vez em quando subia o morro � procura de clientes que n�o existiam, e o Dr. Ol�mpio era um sujeito fraco, magro, que n�o ag�entava um tabefe bem dado. Tamb�m sua tia mal sabia ler e no entanto era respeitad�ssima no morro, ningu�m mexia com ela, ningu�m tirava prosa. Quando a dor de cabe�a a atacava, quem era besta de conversar com a velha Lu�sa? Essas dores de cabe�a da velha negra atemorizavam Ant�nio Baldu�no. De vez em quando sua tia era atacada, ficava como doida, berrava, os vizinhos acudiam e ela botava para fora dizendo que n�o que ria diabo nenhum ali, que fossem para o inferno. Um dia Ant�nio Baldu�no ouviu duas vizinhas que estavam conversando quando o

ataque pegou a velha Lu�sa. Uma negra velha dizia: � Ela tem dor de cabe�a � de levar essas latas fervendo toda noite pro terreiro. Vai esquentando a cabe�a. � Qual o qu�, Sinh� Rosa! Aquilo � o esp�rito, n�o t� vendo logo? Esp�rito e dos bons. Dos que andam perdidos sem saber que j� morreram. Andam vagando procurando um corpo de vivente pra se meter dentro. Esp�rito de condena do, Jesus Cristo me perdoe. As outras apoiavam. Ant�nio Baldu�no � que ficava numa grande d�vida e num grande medo. Temia as almas do outro mundo. Mas n�o compreendia por que elas iam habitar a cabe�a de sua tia. Nestes dias Jubiab� vinha � sua casa. Ant�nio Baldu�no ia cham�-lo a mando de Lu�sa. Chegava na porta pequena da casa baixa e batia. A voz vinha de l� de dentro perguntando quem era. � Tia Luisa t� pedindo pra pai Jubiab� ir l� em casa que ela est� atacada. E sa�a correndo. Tinha um medo doido de Jubiab�. Se escondia atr�s da porta e pela greta ficava espiando o feiticeiro que vinha, a carapinha branca, o corpo curvo e seco, apoiado num bast�o, andando devagarinho. Os homens paravam para cumprimentar. � Bom dia, pai Jubiab�... � Nosso Senhor d� bom.dia... Ia passando e aben�oando. At� o espanhol da venda baixava a cabe�a e recolhia a b�n��o. Os garotos desapareciam da rua quando viam o vulto centen�rio do feiticeiro. Diziam baixinho: � Jubiab� vem a�. E disparavam na carreira para se esconder nas casas. Jubiab� trazia sempre um ramo de folhas que o vento balan�ava e resmungava palavras em nag�. Vinha pela rua falando sozinho, aben�oando, arrastando a cal�a velha de casimira em cima da qual o camisu bordado se oferecia ao capricho do vento como uma bandeira. Quando Jubiab� entrava para rezar a velha Lu�sa, Ant�nio Baldu�no corria para a rua. Mas j� sabia que a dor de cabe�a da velha passaria. Ant�nio Baldu�no n�o sabia o que esperar de Jubiab�. Respeitava.o mas com um respeito diferente do que tinha pelo Padre Silvino, por sua tia Lu�sa, pelo Louren�o da venda, por Z� Camar�o e mesmo pelas figuras lend�rias de Virgulino Lampi�o e Eddie Polo. Jubiab� passava encolhido pelos becos do morro, os homens o ouviam com respeito; recebia cumprimento de todos, e em sua porta paravam, de vez em quando, autom�veis de luxo. Um dia um menino disse a Baldu�no que Jubiab� virava lobisomem. Outro afirmou que ele tinha o diabo preso numa garrafa. Da casa de Jubiab� vinham em certas noites sons estranhos de estranha m�sica. Ant�nio Baldu�no se remexia na esteira, ficava inquieto, parecia que aquela m�sica o chamava. Batuque, sons de dan�as, vozes diferentes e misteriosas. Lu�sa l� estava com certeza com sua saia de chita vermelha e de an�gua. Ant�nio Baldu�no nestas noites n�o dormia. Na sua inf�ncia sadia e solta, Jubiab� era o mist�rio. Eram bem gostosas as noites do Morro do Capa-Negro. Nelas o moleque Ant�nio Baldu�no aprendeu na sua inf�ncia muita coisa e principalmente muita hist�ria. Hist�rias que homens e mulheres contavam reunidos em frente � por ta dos vizinhos nas longas conversas das noites de lua. Nas noites de domingo, quando n�o havia macumba na casa de Jubiab� muitos se reuniam no passeio da velha Lu�sa, que como era dia santificado n�o ia vender o seu mingau. Nas outras portas, outros grupos conversavam, tocavam viola, cantavam, bebiam um gole de cacha�a que sempre havia para os vizinhos, mas nenhum era t�o grande como o que se reunia na frente da porta da velha Lu�sa. At� Jubiab� aparecia em certos dias e tamb�m contava velhos casos, passados h� mui tos anos, e misturava tudo com palavras em nag�, dava conselhos e dizia conceitos. Ele era como que o patriarca daquele grupo de negros e mulatos que morava no Morro do Capa-Negro em casas de sopapo, cobertas com zinco. Quando ele falava todos o escutavam atentamente e aplaudiam com a cabe�a, num respeito mudo. Nessas noites de conversas Ant�nio Baldu�no abandonava os companheiros de corridas e de brincadeiras e se postava a ouvir. Dava a vida por

uma hist�ria, e melhor ainda se essa hist�ria fosse em verso. Era por isso que ele gostava tanto de Z� Camar�o, um desordeiro que vivia sem trabalhar e que at� j� era fichado na pol�cia como malandro. Z� Camar�o tinha duas grandes virtudes para Ant�nio Baldu�no: era valente e cantava ao viol�o hist�rias de cangaceiros c�lebres. Tocava tamb�m coisas tristes, valsas e can��es, nas festas dos casebres do Morro do Capa-Negro e em todas as outras festas pobres da cidade, nas quais era elemento indispens�vel. Era um mulato alto e amarelado, eternamente gingando o corpo, que criara fama desde que desarmara dois marinheiros com alguns golpes de capoeira. Havia quem n�o gostasse dele, quem o olhasse com maus olhos, por�m Z� Camar�o passava horas e horas ensinando aos garotos do morro o jogo da capoeira, tendo uma paci�ncia infinita com eles. Rolava no ch�o com os moleques, mostrava como se aplicava um rabo-de-arraia, como se arrancava o punhal da m�o de um homem. Era amado pela garotada que o queria como a um �dolo. Ant�nio Baldu�no gostava de andar com ele, de ouvir o desordeiro contar casos da sua vida. E como j� era o melhor aluno de capoeira que ria tamb�m aprender viol�o. � Voc� me ensina, Z� Camar�o? � Deixa estar que eu ensino. Levava recados para as namoradas de Z� Camar�o e o defendia quando falavam mal dele: � � meu amigo. Por que n�o vai dizer na frente dele? Tem medo, ta�. Z� Camar�o era dos certos na conversa em frente � porta da negra Lu�sa. Vinha gingando o corpo no seu jeit�o malandro e ficava de c�coras pitando um cigarro barato. Ouvia os casos, as hist�rias, as discuss�es, sem falar. Por�m quando algu�m contava um caso que impressionava os ouvintes, Z� Camar�o descansava o cigarro atr�s da orelha e falava: � Hum! Hum! Isso n�o � nada comparado com um causo que passou-se comigo. E vinha uma aventura, uma hist�ria cheia de detalhes para que ningu�m duvidasse da sua veracidade. E quando via nos olhos de algum dos assistentes um sinal de d�vida o mulato n�o se alterava: � Se duvida, seu mano, pergunte a Z� Fortunato que estava comigo. Sempre havia algu�m que estivera com ele. Sempre uma testemunha ocular que n�o o deixava mentir. E em todas as coisas de barulho que aconteciam na cidade, Z� Camar�o estava metido pelo que ele dizia. Se conversavam sobre um crime ele interrompia: � Eu estava bem pertinho... E contava a sua vers�o na qual ele tinha sempre um papel saliente. Mas quando era preciso, brigava de verdade. Que o dissesse o Louren�o da venda que tinha na cara dois talhos de navalha. N�o quisera ele, espanhol sujo!, botar Z� Camar�o para fora da sua venda? As cabrochas que ouviam as conversas olhavam para ele. Gostavam do seu jeito de desordeiro, da sua fama de corajoso, do modo imaginoso que ele tinha para contar um caso fazendo compara��o com elas e com coisas delas, o sorriso, os olhos, a boca vermelha, e gostavam especialmente de v�-lo cantar ao viol�o com sua voz cheia. No meio das conversas quando algu�m acabava de contar um caso e todos ficavam silenciosos uma cabrocha lembrava sempre: � Cante pra gente, Seu... � Ora, a conversa t� t�o boa, mo�a � ele se fazia modesto. � Deixe disso, Seu Z�, cante... Mas eu deixei o viol�o em casa... � N�o tem nada... Baldo vai buscar... Ant�nio Baldu�no j� estava correndo rumo ao casebre onde Z� Camar�o morava. Mas este fazia-se rogar: � Hoje n�o tou com a voz boa... Me desculpe, mo�as. Agora todos pediam: � Cante, Z� Camar�o. � T� bom, vou cantar uma coisa s�... Mas cantava muitas, tiranas, cocos, sambas, cantigas saudosas, can��es tristes que enchiam os olhos d��gua, e ABC aventurosos que deliciavam Ant�nio Baldu�no:

�Adeus Saco do Lim�o lugar onde eu nasci Eu vou preso pra Bahia levo saudades de ti� Era o ABC do cangaceiro Lucas da Feira, um dos her�is prediletos de Ant�nio Baldu�no: �Entusiasmado eu carreguei pompa e muita grandeza pois no meu rancho eu tinha bote de rap� � princesa. Fui preso para a Bahia fizeram grande fun��o Mas eu desci a cavalo e os guardas de p�s no ch�o�. Faziam coment�rios baixinho: � Foi um danado esse Lucas. � Dizque tinha uma pontaria cruel. � Dizque era um homem bom... � Bom? � S� roubava rico... Pra ir buscar o dinheiro dos pobres... �Homem pobre nunca roubei pois n�o tinha o que roubar mas os ricos de carteira a nenhum deixei escapar.� � N�o tava dizendo? � Macho bom de verdade. �Mulatas de bom cabelo cabrinhas de boa cor crioulinhas s� por debique branquinhas n�o me escapou.� A� Z� Camar�o passava os olhos doces por sobre o grupo de cabrochas e sorria o seu melhor sorriso. Elas o admiravam como se ele fosse o pr�prio Lucas da Feira. Os homens soltavam gargalhadas. Depois vinha a fidelidade do cangaceiro � sua palavra e o seu hero�smo fanfarr�o: �N�o digo quem � meu s�cio nem me conv�m a dizer se hoje me vejo perdido n�o deito os outros a perder. A grande tela redonda em toda aquela redondeza me chamavam capit�o capit�o sou com grandeza�. Por�m tinha uma hora em que a voz de Z� Camar�o era mais cheia e os seus olhos mais doces. Era quando cantava a letra U: �u � letra vogal com a, e, i, o, tamb�m Adeus Caldeir�o da Feira adeus tamb�m mais algu�m�. Olhava para a sua preferida e naquele momento ele era Lucas da Feira, o cangaceiro, o assassino, que no entanto amava algu�m. Terminava debaixo de aplausos: �Zombei de mo�os e velhos zombei tamb�m de meninos hoje chegou o meu dia vou cumprir o meu destino�. Vinha mais um samba. Bem saudoso, cantado com a voz mais triste de Z� Camar�o: �Vou-me embora desta terra que s� tem mulher malvada...

vou-me embora desta terra levando uma saudade... As mulheres gostavam: � t�o bonito. � Triste de fazer d�. Uma mulher de barrig�o, gr�vida de muitos meses, contava a outra a sua hist�ria, sobriamente: � Enquanto eu era bonita ele gostava de mim. N�o havia presente que n�o me desse. Disse at� que ia casar no padre e no juiz. � No juiz e no padre? � Sim, minha filha.. . Homem quando quer enganar � pior que o Sujo... �Prometeu um mund�o de coisas... Eu feito besta acreditei nele... Levamos por a� uma vida ordin�ria... Me encheu desse jeito... Tive que trabalhar e amarelei, perdi a cor, ele foi embora com uma cabrocha vagabunda que vivia abrindo os dentes pra ele..� � Por que voc� n�o faz feiti�o pra ele voltar? � Pra qu�? Estou cumprindo o meu destino... O destino � Deus quem d�. � Pois olhe: eu se fosse voc� fazia feiti�o pelo menos para dar doen�a na bicha que levou seu homem... Ent�o v� l�... Uma mulher leva meu homem e fica assim... Igual a nada? Fica n�o, meu amor... Botava feiti�o, dava lepra nela e ele voltava direitinho... E com pai Jubiab� que bota t�o bem, feiti�o t�o forte. � Pra qu�? Destino � coisa feita l� em cima � apontava para o c�u. � A gente j� vem com o seu para o mundo, tem de cumprir... Esse que est� aqui dentro � mostrava a barriga enorme � j� tem o dele prontinho. A velha Lu�sa apoiava: � Tem raz�o, minha filha. � isto mesmo. A conversa generalizava: � Pois olhe: voc� conhece Gracinha, uma morena que mora no Guindaste dos Padres? Uma mulherzinha conhecia: � N�o � uma sem dentes, feia como uma jararacu�u? � Essa mesmo... Pois olhe: com aquela cara toda tomou o homem de Ricardina que � um mulher�o... Feiti�o forte que Jubiab� fez. � O feiti�o ela fez na cama � riu um mulato. � Dizque tamb�m que Balbino morreu foi de feiti�o, � Foi nada... Aquele morreu foi de ruim que era... Ruim como as cobras. Um negro velho gordo, que raspava a sola do p� com um canivete, contou em voz baixa: � Vosmec�s sabem o que ele fez com o velho Zequiel? Pois foi coisa de arrepiar o cabelo... Vosmec�s sabem que o velho era homem direito... Homem s�rio at� ali. Eu conheci ele muito, trabalhamo junto de pedreiro. Um homem direito... N�o havia dois na terra. Mas um dia teve a m� sorte de defrontar com Balbino... O coisa-ruim se meteu de amigo do velho s� pra levar a filha dele. Vosmec�s se lembram da Rosa. Eu bem me lembro... Era a cabrocha mais linda que eu olhei com esses olhos que a terra h� de comer. Pois Balbino se meteu de namoro com ela, s� falava em casar. A mulher gr�vida disse: � Igualzinho ao que Roque fez comigo. � Chegaram a acertar o dia... Mas n�o v� que uma noite o velho Zequiel foi trabalhar. Nesse tempo ele estava no cais do porto... Tinha um vapor pra carregar... Balbino com a parte de noivo entrou pela casa adentro, levou a Rosa pra mostrar o enxoval que estava guardado no quar to do velho. Derrubou ela na cama e ela disse que gritava e n�o queria. De formas que ele deu nela at� que a deixou toda rebentada mesmo cheia de sangue que nem assassinada. E ainda teve a calma para abrir a mala do velho e tirar o dinheiro que tinha l�, a mis�ria de cinq�enta mil-r�is que era para a festa do casamento. Quando o velho chegou virou do�do. A� Balbino, que n�o era mesmo homem, s� tinha era garganta, ficou com medo do velho. Passou escondido at� que um dia reuniu mais dois e pegaram o Zequiel no escuro. Deram no velho de matar... Nem foi preso... Dizque tinha prote��o de gente

alta. � Dizque mesmo... Um dia um soldado deu nele e prendeu ele. Sabem que aconteceu? Balbino foi solto, o soldado comeu cadeia. � Dizque ele vivia dizendo onde tinha candombl� pra pol�cia fechar. Ningu�m havia reparado a chegada de Jubiab�. O macumbeiro falou: � Mas ele morreu de morte feia. Os homens baixaram a cabe�a, bem sabiam que eles n�o podiam com Jubiab� que era pai.de.santo. � Morreu de morte feia. Nele o olho da piedade vazou. Ficou s� o da ruindade. Quando ele morreu o olho da piedade abriu de novo. Repetiu: � O olho da piedade vazou. Ficou s� o olho da ruindade... Ent�o um negro troncudo chegou para perto de Jubiab�: � Como �, pai Jubiab�? � Ningu�m deve fechar o olho da piedade. � ruim fechar o olho da piedade... N�o traz coisa boa. Disse em nag� ent�o e quando Jubiab� falava nag� os negros ficavam tr�mulos: � �j� �nun f� ti ik�, li �k�. De s�bito o negro se jogou aos p�s de Jubiab� e contou: � Eu j� fechei o olho da piedade, gente... Um dia eu fechei o olho da piedade... Jubiab� olhou o negro com os olhos apertados. Os outros, homens e mulheres, se afastaram. � Foi um dia l� no sert�o alto. Estava tudo seco. Boi morria, homem morria, tudo morria. A gente fugiu, a gente era um bocado, mas foi tudo ficando pelo caminho. Depois s� era eu e Jo�o Janj�o. Um dia ele me carregou nas costas que eu j� n�o podia mais com as pernas... Ele tinha o olho da piedade bem aberto e a gente tinha a garganta seca. O sol era ruim, gente... Cad� �gua naquele mund�o sem fim? Ningu�m sabia, n�o... Um dia a gente arranjou numa fazenda uma caba�a d��gua pra continuar a viagem. Jo�o Janj�o ia com ela, s� dava �gua de ra��o. A gente ia morto de sede. Foi quando a gente encontrou outro homem, um branco que j� estava quase morrendo de sede. Jo�o Janj�o quis dar �gua, eu n�o deixei. Mas eu juro que s� tinha um restinho, nem dava pra eu e ele... E ele ainda queria dar para o homem branco... Ele tinha o olho da piedade bem aberto... Mas o meu sede tinha secado. Tinha ficado somente o da ruindade... Ele quis dar �gua eu briguei com ele... E na raiva eu matei ele. Ele tinha me levado um dia todo nas costas... E o negro ficou olhando o negrume da noite No c�u brilhavam estrelas in�meras. Jubiab� estava com os olhos fechados. � Ele tinha me levado nas costas um dia todo... Ele tinha o olho da piedade bem aberto... Eu quero tirar ele da minha frente e n�o posso... Ele est� ali, bem ali, olhando pra mim... Passou a m�o nos olhos querendo afastar qualquer coisa. Mas n�o conseguia e olhava fixo. � Me levou um dia todo nas costas... Jubiab� repetiu monotonamente: � � ruim vazar o olho da piedade. Traz desgra�a... Ent�o o homem levantou e desceu o morro levando a sua hist�ria. Ant�nio Baldu�no ouvia e aprendia. Aquela era a sua aula proveitosa. �nica escola que ele e as outras crian�as do morro possu�am. Assim se educavam e escolhiam carreiras. Carreiras estranhas aquelas dos filhos do morro. E carreiras que n�o exigiam muita li��o: malandragem, desordeiro, ladr�o. Havia tamb�m outra carreira: a escravid�o das f�bricas, do campo, dos of�cios prolet�rios. Ant�nio Baldu�no ouvia e aprendia. Um dia um homem chegou de viagem e se aboletou na casa de Dona Maria, uma mulata gorda que diziam estar enriquecendo � custa dos clientes de Jubiab�. O homem vinha consultar o macumbeiro por causa de uma dor antiga e martirizante que tinha na perna direita. Os m�dicos j� haviam desistido h� muito. Falavam nomes complicados e davam rem�dios caros. E o homem indo para tr�s, a perna cada vez

pior, ele sem poder trabalhar de tanta dor. Ent�o resolveu fazer a viagem s� para vir consultar o pai-de-santo Jubiab� que curava tudo na sua macumba do Morro do Capa.Negro. O homem vinha de Ilh�us, a cidade rica do cacau, e quase destrona Z� Camar�o do lugar de honra que ocupava ante Ant�nio Baldu�no. � que o homem, tendo se curado radicalmente em duas sess�es na casa de Jubiab�, veio no domingo conversar na porta da velha Lu�sa. Todos o tratavam com grande defer�ncia, pois contavam que ele era homem de dinheiro, homem que enriquecera no sul do Estado e que dera um conto de r�is a Jubiab�. Vestia boa roupa de casimira e at� uma carta que chegara para Sinh� Ricardina levaram para ele ler. Por�m ele disse: � Eu n�o sei ler, dona. Era de um irm�o dela que estava morrendo de fome no Amazonas. O homem de Ilh�us deu cem mil-r�is. Assim todos ficaram calados quando ele chegou para o grupo que estava na porta de Luisa. � Se sente � vontade, Seu Jeremias � Lu�sa oferecia uma cadeira com a palhinha furada. � Obrigado, dona. E como o sil�ncio continuasse: � Estavam conversando de qu�? � Pra falar a verdade � respondeu Lu�s Sapateiro � a gente estava aqui falando na fartura que h� na sua zona. No dinheir�o que um homem pode ganhar l�. O homem baixou a cabe�a e s� ent�o viram que ele tinha a carapinha quase branca e grandes rugas no rosto. � N�o � tanto assim... Se trabalha muito e o ganho � pouco. � Mas o senhor mesmo � homem de muitas posses... � Nada. Tenho uma rocinha e h� trinta anos que estou naquela zona. J� tomei tr�s tiros. L� ningu�m est� livre de uma trai��o. � Os homens l� s�o valentes? � mas ningu�m ouviu Ant�nio Baldu�no. � Pois olhe que j� havia muito homem aqui que queria ir com o senhor. � Os homens de l� t�m coragem? � Ant�nio Baldu�no insistiu. O homem passou a m�o na carapinha do pretinho e falou para os outros: � L� � uma terra braba... Terra de tiro e de morte... Ant�nio Baldu�no estava com os olhos fixos no homem, esperando que ele contasse as coisas daquela terra. � L� se mata para fazer aposta... Os homens apostam como � que um viajante vai cair: se do lado direito, se do canhoto. Casam dinheiro... E atiram s� pra ver quem ganha a aposta. Olhou para os outros querendo ver o produzindo. Baixou a cabe�a e continuou: � Tem um negro l� que j� pintou o diabo... Jos� Estique... Negro valente que s� vendo. Coragem chegou ali e parou... Mas tamb�m malvado como ele s�... Uma peste em figura de gente. � Jagun�o? � N�o � jagun�o porque � fazendeiro rico... Z� Estique tem um mund�o de fazendas, um nunca acabar de p�s de cacau... Mas um n�mero de mortes ainda maior. � Nunca foi preso? O homem espiou piscando os olhinhos: � Preso? � sorriu... � Ele � rico... O seu sorriso era um coment�rio sarc�stico. Os outros se olharam admirados. Mas logo compreenderam e continuaram a ouvir silenciosamente o homem de Ilh�us. � Sabem o que ele faz? Ele entra em Itabunas montado, e quando passa por um gra�do salta e diz: abra o bolso que eu quero mijar dentro... N�o tem homem que n�o abra... Z� Estique tem pontaria boa de verdade. Uma vez entrou em Itabunas e encontrou uma mo�a branca, filha do intendente. Sabe o que fez? Mo�a, segura aqui que eu quero mijar... �E era pra mo�a segurar nas coisas dele...� � E ela segurou? � Z� Camar�o ria em gargalhadas altas. � Que jeito ela tinha, coitadinha.

Agora os homens todos riam e simpatizavam com Z� Estique. E as cabrochas baixavam o rosto envergonhadas. � Matou, furtou; fez mal a um mundo de mo�as. Tinha coragem como doido. � J� morreu? � Morreu nas m�os de um gringo fraquinho de l�... � Como foi? � Um gringo apareceu por l� podando ro�a de cacau. At� ele chegar ningu�m podava as ro�as. Ele fez dinheiro, comprou uma rocinha... A� pegou e foi pra terra dele. Mas ele ia era casar. Voltou com uma branca t�o alva, que at� parecia uma boneca dessas de porcelana. �A rocinha do gringo era pertinho da fazenda de Jos� Estique. �Um dia Estique passou e viu a gringa estendendo roupa no quaradouro. Pegou e disse pra Nicolau. � Quem � Nicolau? � O gringo... Pegou e disse pra ele: deixa essa boneca a�, mo�o, que de noite eu venho buscar ela. O gringo ficou com muito medo e foi contar pra um vizinho de ro�a. O vizinho disse que ele ou deixava ou morria porque Z� estique n�o era homem de duas palavras. Disse que vinha buscar, vinha mesmo. N�o tinha mais tempo pra fugir, e fugir pra onde? O gringo voltou que n�o podia mais. N�o queria dar a mulher t�o bonita que ele tinha ido buscar na terra dele. Mas ent�o tinha que morrer e Z� Estique ainda por cima ficava com a mulher. � O que foi que ele fez? � a assist�ncia n�o se continha mais. S� Z� Camar�o sorria como se conhecesse uma hist�ria mais impressionante que a do homem de Ilh�us. � De noite Z� Estique veio... Saltou do cavalo e, em vez de encontrar a mulher, encontrou mas foi o gringo atr�s de um pau com um machado desta idade. Abriu a cabe�a do negro meio a meio... - Uma morte desgra�ada. Uma mulher disse: � Merecia... Bem feito. Outra se benzeu amedrontada. E o homem de Ilh�us se demorou contando hist�rias e mais hist�rias de mortes e tiros da sua terra her�ica. E quando ele foi embora, curado, Ant�nio Baldu�no sentiu uma tristeza de quem se separa de uma namorada. � que, nas conversas das noites de lua do Morro do Capa-Negro, o moleque Ant�nio Baldu�no ouvia e aprendia. E antes de ter dez anos ele jurou a si mesmo que um dia havia de ser cantado num ABC, e as suas aventuras seriam relatadas e ouvidas com admira��o por outros homens, em outros morros. A vida do Morro do Capa-Negro era dif�cil e dura. Aqueles homens todos trabalhavam muito, alguns no cais, carregando e descarregando navios, ou conduzindo malas de viajantes, outros em f�bricas distantes e em of�cios pobres: sapateiro, alfaiate, barbeiro. Negras vendiam arroz-doce, munguz�, sarapatel, acaraj�, nas ruas tortuosas da cidade, negras lavavam roupa, negras eram cozinheiras em casas ricas dos bairros chiques. Muitos dos garotos trabalhavam tamb�m. Eram engraxates, levavam recados, vendiam jornais. Alguns iam para casas bonitas e eram crias de fam�lias de dinheiro. Os mais se estendiam pelas ladeiras do morro em brigas, correrias, brincadeiras. Esses eram os mais novinhos. J� sabiam do seu destino desde cedo: cresceriam e iriam para o cais onde ficavam curvos sob o peso dos sacos cheios de cacau, ou ganhariam a vida nas f�bricas enormes. E n�o se revoltavam porque desde h� muitos anos vinha sendo assim: os meninos das ruas bonitas e arborizadas iam ser m�dicos, advogados, engenheiros, comerciantes, homens ricos. E eles iam ser criados destes homens. Para isto � que existia o morro e os moradores do morro. Coisa que o negrinho Ant�nio Baldu�no aprendeu desde cedo no exemplo di�rio dos maiores. Como nas casas ricas tinha a tradi��o do tio, pai ou av�, engenheiro c�lebre, discursador de sucesso, pol�tico sagaz, no morro onde morava tanto negro, tanto mulato, havia a tradi��o da escravid�o ao senhor branco e rico. E essa era a �nica tradi��o. Porque a da liberdade nas florestas da �frica j� a haviam esquecido e raros a recordavam, e esses raros eram exterminados ou perseguidos. No morro s� Jubiab� a conservava, mas isto Ant�nio Baldu�no ainda n�o sabia. Raros eram os homens livres do morro:

Jubiab�, Z� Camar�o. Mas ambos eram perseguidos: um por ser macumbeiro, outro por malandragem. Ant�nio Baldu�no aprendeu muito nas hist�rias her�icas que contavam ao povo do morro e esqueceu a tradi��o de servir. Resolveu ser do n�mero dos livres, dos que depois teriam ABC e modinhas e serviriam de exemplo aos homens negros, brancos e mulatos, que se escravizavam sem rem�dio. Foi no Morro do CapaNegro que Ant�nio Baldu�no resolveu lutar. Tudo que fez, depois, foi devido �s hist�rias que ouviu nas noites de lua na porta de sua tia. Aquelas hist�rias, aquelas cantigas tinham sido feitas para mostrar aos homens o exemplo dos que se revoltavam. Mas os homens n�o compreendiam ou j� estavam muito escravizados. Por�m alguns ouviam e entendiam. Ant�nio Baldu�no foi destes que entenderam. Havia uma mulher chamada Augusta das Rendas que vivia no morro e morava pegado � casa de Lu�sa. Chamavam-na das Rendas porque ela passava o dia fazendo rendas que vendia, aos s�bados, na cidade. Quando pensavam que ela estava olhando para uma determinada coisa, ela estava era com os olhos perdidos no c�u, numa coisa invis�vel. Era das ass�duas na macumba de Jubiab� e, se bem n�o fosse negra, gozava ante o pai-de-santo de um grande prest�gio. Dava tost�es a Ant�nio Baldu�no, tost�es que ele gastava comprando queimadas, ou fazendo vaca para comprar uma carteira de cigarro vagabundo, de sociedade com Zebedeu. Inventavam hist�rias sobre a vida de Augusta, pois ela aparecera um dia no morro sem dizer de onde vinha nem pra onde ia. Ficou. Ningu�m sabia nada da sua vida. Mas, como ela tinha aquele olhar perdido e um riso triste, imaginavam coisas sobre ela, hist�rias de infelicidades amorosas, de aventuras tristes. Ela mesma, quando lhe perguntavam algo sobre sua vida, dizia somente: � Minha vida � um romance... � s� escrever... Quando estava vendendo rendas (e ainda contava os metros por um processo muito rudimentar: juntando a renda e a m�o direita por baixo do queixo e estendendo o bra�o esquerdo) n�o raro se atrapalhava: � Um... dois... tr�s...� parava zangada e agitada � vinte o qu�... Quem foi que disse que � vinte? Eu ainda estou em tr�s... Olhava para a freguesa e explicava: � Ele me atrapalha que a senhora n�o imagina... Eu estou contando direito, ele come�a a contar no meu ouvido depressa que faz medo. Quando eu ainda estou em tr�s de j� est� em vinte.... Eu n�o posso com ele. E fazia s�plicas: � V� embora que eu quero vender minhas rendas direito... V� embora... � Mas quem � ele, Sinh� Augusta? � Quem �, t� a�... Quem pode ser? E esse malvado que vive me acompanhando. Nem depois de morto deixa de me perseguir. Outras vezes o esp�rito resolvia se divertir e ent�o enlinhava as pernas de Augusta. Ela parava no meio da rua e com uma paci�ncia imensa come�ava a tirar as linhas que ele tinha passado nas suas pernas. � O que � que est� fazendo, Sinh� Augusta? � perguntavam � N�o est� vendo? Estou tirando as linhas que aquele desgra�ado p�s nas minhas pernas para eu n�o poder andar e n�o vender as minhas rendas... Ele quer que eu morra de fome... E continuava a tirar as linhas invis�veis. Mas se lhe perguntavam alguma coisa sobre quem teria sido aquele esp�rito, Augusta nada dizia. Ficava olhando ao longe e sorria seu sorriso triste. E as mulheres diziam: � Augusta � pancada porque sofreu muito... Vida triste a dela... � Mas o que foi que ela teve? � Cala a boca. Cada qual sabe da sua vida. Foi Augusta das Rendas quem primeiro viu o lobisomem que apareceu no morro. Era por uma noite sem lua, quando a escurid�o dominava nos becos enlameados do morro e s� raros fif�s brilhavam nas casas. Noite assombrada, noite para ladr�es e assassinos. Augusta vinha pela ladeira quando ouviu, no mato, um ronco de estremecer. Olhou e viu os olhos de fogo do lobisomem. At� n�o acreditava muito em hist�rias de lobisomem e mulas-de-padre. Mas daquela vez ela tinha visto com os seus olhos. Largou o cesto onde levava as rendas e disparou numa carreira at� a

casa de Lu�sa. Contou a novidade com grandes gestos de espanto, a voz ainda engasgada, os olhos desta vez esbugalhados, as pernas tremendo da carreira. � Beba um gole d��gua � ofereceu Luisa. � � bom pra passar o susto... � agradecida. Ant�nio Baldu�no ouviu e tratou de espalhar a not�cia. Dentro em pouco todo o morro sabia que aparecera um lobisomem e na noite seguinte mais tr�s pessoas viram o monstro: uma cozinheira que voltava do trabalho, Ricardo tamanqueiro e Z� Camar�o, que jogara o punhal no bicho que deu uma grande gargalhada e se meteu nos matos. E nas noites que se seguiram os demais moradores do morro foram vendo a assombra��o que ria e fugia. E o medo tomou conta do morro, fechavam-se cedo as portas, as pessoas n�o sa�am � noite. Z� Camar�o prop�s que fizessem uma batida para pegar o bicho, por�m poucas pessoas tiveram coragem. S� mesmo o negrinho Ant�nio Baldu�no exultou com a proposta e escolheu pedras pontiagudas para o seu bodoque. As not�cias do lobisomem continuavam: Lu�sa viu sua sombra num dia em que voltara mais tarde, Pedro levara uma carreira do bicho. O morro vivia inquieto e s� se falava naquilo. At� um homem do jornal apareceu e tirou fotografias. De tarde saiu a not�cia, dizendo que n�o tinha lobisomem nenhum, que era inven��o do pessoal do Morro do Capa-Negro. Seu Louren�o da venda comprou o jornal mas ningu�m acreditou no que ele dizia porque tinham visto o lobisomem e lobisomem foi coisa que sempre existiu. Os meninos comentavam o caso nos intervalos das carreiras: � Mam�e me disse que � menino ruim que vira lobisomem... Menino que faz maldade. � �, sim. Crescem as unhas, depois vira lobisomem numa noite de lua grande. Ant�nio Baldu�no se entusiasmou: � Vamos virar lobisomem? � Vira voc� que quer ir para o inferno. � Voc� � uma besta, um mofino. � Por que voc� n�o vira? � Pois vou virar, pronto. Como �? Havia um menino que sabia como era e contou: � Voc� deixa crescer as unhas, o cabelo, n�o se lava mais, toda noite vai ver a lua. Fa�a malcria��o pra sua tia. Quando for ver a lua fique de quatro p�s... � Quando voc� tiver de quatro p�s me chame que eu meto.. � Eu meto � o bra�o em voc�... Sua m�e est� em casa por que n�o mete nela? O outro menino se levantou. Ant�nio Baldu�no foi dizendo. � N�o gostou d� seu jeito. � Pois dou mesmo � e largou a m�o na cara do negrinho. Rolaram pelo ch�o. A garotada torcia. O menino era mais forte que Ant�nio Baldu�no, por�m este era o melhor aluno de Z� Camar�o e derrubou logo o outro. E s� pararam de brigar quando Seu Louren�o da venda pulou o balc�o e desapartou: � Parece que n�o t�m pai. O garoto foi para um canto e Ant�nio Baldu�no com a roupa rasgada perguntou ao que sabia como era que se virava lobisomem: � � preciso mesmo andar de quatro p�s? � � sim, pra se acostumar... � E depois? � Depois vai virando... Vai ficando cheio de cabelos, come�a a dar pinotes como cavalo, a cavar a terra com as unhas. Chega um dia, est� lobisomem. Sai correndo pelo morro, assombrando a gente. Ant�nio Baldu�no se virou para o menino que tinha brigado com ele: � Quando eu virar lobisomem o primeiro que eu pego � voc�... Foi saindo. Mas do meio do caminho voltou para perguntar: � E para desvirar como �? � Ah! Isso n�o sei, n�o... De tarde, o menino que tinha brigado com ele se chegou e disse: � Olhe, Baldo, voc� devia come�ar era pegando o Joaquim que disse que voc� era fundo de futebol. � Ele disse mesmo?

� Juro � Por Deus? � Por Deus. � Ent�o ele me paga. O outro deu um peda�o de cigarro a Ant�nio Baldu�no e fizeram as pazes. Ant�nio Baldu�no tentou virar lobisomem. Fez malcria��o � velha Lu�sa, levou duas boas surras, deixou crescer as unhas e n�o cortava mais a carapinha. Nas noites de lua ia para o fundo da casa e ficava de quatro, andando assim de um lado para outro. E n�o vierava. Ia se desiludindo, j� andava aborrecido com as pilh�rias dos garotos que todos os dias perguntavam quando era que ele virava lobisomem, quando pensou que n�o era bastante mau para virar o bicho. Resolveu ent�o fazer uma maldade muito grande. Passou v�rios dias matutando o que faria, quando, uma tarde, viu Joana, uma pretinha mimada, brincando com as bonecas. Tinha muitas que Seu Eleut�rio trazia, feitas de pano, �bruxas� pretas e brancas, �s quais dava nomes de conhecidos. Fazia vestidos para elas e passava o dia brincando na porta de casa. Realizava batizados e casamentos daqueles bonecos todos, e eram dias de festas para a garotada do morro. Ainda se lembravam da festa que Joana dera quando batizara a Iracema, uma boneca de porcelana, que seu padrinho lhe ofertara no dia de seu anivers�rio. Ant�nio Baldu�no foi se aproximando com o plano j� formado. E chegou com a voz amiga e doce: � O que � isto, Joana? � Minha boneca est� namorando. � � bonita... Quem � o namorado?... O namorado era um polichinelo de pernas bambas. � Voc� quer ser o padre? Ant�nio Baldu�no queria era pegar o polichinelo. Mas Joana disse que n�o e fez um biquinho de choro. � N�o pegue que eu conto a mam�e... V� embora... Ant�nio Baldu�no ado�ou mais a voz, sorriu, baixou os � Deixe, Joana. Deixe eu pegar nele. � N�o, que voc� quer quebrar. � E segurou o boneco contra o peito. Ant�nio Baldu�no se assustou como um ladr�o pegado em flagrante. Como ela teria adivinhado? Sentiu medo e quis recuar. Mas Joana fazia novamente o biquinho de choro, as l�grimas estavam a saltar dos olhos e ele n�o resistiu. Ficou como cego, como alucinado, atirou-se em cima dos bonecos e rebentou quantos p�de. Joana ficou ali mesmo parada, chorando sem gritos. As l�grimas pingavam, escorriam pelo rosto, se metiam na boca. Ant�nio Baldu�no ficou espiando, tamb�m parado, mas achando Joana bonita com os olhos chorando. De repente a pretinha olhou as bonecas rebentadas e se largou num choro alto, cheio de gritos. Ant�nio Baldu�no, que antes estava com pena e achava ela bonita, ficou com raiva. Ficou encostado, gozando o choro. Podia ter fugido e talvez se escondesse a tempo de evitar a surra, porque a velha Lu�sa, quando a raiva passava, achava gra�a e n�o batia mais. Por�m ficou encostado gozando na sua raiva aquele choro sincero. S� saiu dali arrastado. Apanhou da porta de Joana at� a cozinha de casa. Neste dia nem pretendeu furtar o corpo �s chicotadas. Ainda tinha diante dos olhos a figura de Joana, as l�grimas caindo, entrando pela boca. Depois ficou amarrado no p� da mesa e aos poucos o gozo foi acabando. Ent�o, como n�o tinha o que fazer, ficou brincando de matar formigas. Um vizinho disse: � Menino judeu... Esse acaba criminoso. N�o virou lobisomem. Por�m foi obrigado a lutar com uns dois garotos e a rebentar a cabe�a de um terceiro para conseguir recuperar o seu prest�gio entre os moleques do morro. Prest�gio que ficara seriamente abalado com ele n�o ter conseguido se transformar em assombra��o. Tamb�m o outro lobisomem desapareceu, depois que Jubiab� fez uma reza forte na for�a da lua cheia, de cima do morro, acompanhado de quase todos os habitantes. Rezou com um ramo de folhas, mandou que o bicho fosse embora, depois jogou o ramo na dire��o em que o lobisomem fora visto e a assombra��o voltou para o lugar de onde viera e deixou em paz os moradores do

Morro do Capa-Negro. Nunca mais o lobisomem voltou. Mas ainda hoje se fala dele nas conversas do morro. Jubiab�, que ningu�m sabia quantos anos carregava no costado e que morava no Morro do Capa-Negro muito antes de l� haver qualquer outro daqueles habitantes, explicou a hist�ria do lobisomem: � Ele j� apareceu muitas vezes. J� fiz ele ir embora um bocado de vez. Mas ele volta e tem de voltar enquanto n�o pagar os crimes que cometeu aqui embaixo. Ele h� de voltar muitas vezes ainda. � Quem � ele, pai Jubiab�? � Ah! oc� num sabe... Pois ele � senhor branco que era dono de uma fazenda. Isso foi nos tempos passados, ns tempos da escravid�o de negro. A fazenda dele ficava bem aqui onde n�s mora agora. Bem aqui. Oc�s n�o sabe por que esse morro chama do Capa-Negro? Ah! oc�s n�o sabe... Pois � porque esse morro era fazenda desse senhor. E ele era homem malvado. Gostava que negro fizesse filho em negra para ele ganhar escravo. E quando negro n�o fazia filho ele mandava capar negro... Capou muito negro... Branco ruim... Por isso esse morro � do Capa-Negro e tem lobisomem nele. O lobisomem � senhor branco. Ele n�o morreu. Era ruim demais e uma noite virou lobisomem e saiu pelo mundo assustando gente. Agora ele vive procurando o lugar da casa dele que era aqui no morro. Ele ainda quer capar negro. � Deus t�esconjure. � Ele que venha me capar que ele vai ter � Z� Camar�o ria. � Negro que ele capou era av�, bisav� de n�s... Ele procura n�s pensando que ainda somos escravo dele. � Mas negro n�o � mais escravo. � Negro ainda � escravo e branco tamb�m � atalhou um homem magro que trabalhava no cais. � Todo pobre � ainda escravo. Escravid�o ainda n�o acabou. Os negros, os mulatos, os brancos baixaram a cabe�a. S� Ant�nio Baldu�no ficou com a cabe�a erguida. Ele n�o ia ser escravo. N�o era muito popular no morro o negrinho Ant�nio Baldu�no. N�o que fosse pior que os outros. Brincava com eles, jogava como eles futebol com bola feita de bexiga de boi, ia espiar as negras mijarem no areal que ficava por detr�s da Baixa dos Sapateiros, furtava frutas nos tabuleiros, fumava cigarros baratos, dizia palavr�es cabeludos. Por�m n�o era por estas coisas que n�o gostavam dele. N�o gostavam porque era quem pensava todas as maldades que os garotos faziam no morro; sa�am da cabe�a dele todas as id�ias de brincadeiras esquisitas, de molequeiras inconfess�veis. N�o fora dele a id�ia de irem todos os moleques do morro assistir � festa do Bonfim? Sa�ram por volta das tr�s horas da tarde e at� as tr�s da manh� ainda n�o haviam chegado. As m�es corriam aflitas de casa em casa, algumas choravam, os pais sa�ram a procurar. Para os meninos � que a aventura foi admir�vel: andaram a cidade quase toda, gozaram a festa at� o fim, brincaram ate cansar e s� se lembraram de voltar quando j� n�o ag�entavam mais de sono. Haviam furtado tabuleiros de negras que vendiam doces, tinham beliscado muita coxa de mo�a, tinham brigado tamb�m. Quando voltaram, j� dia claro, iam amedrontados na certeza da surra. E diziam aos pais: � Foi Baldu�no quem me chamou... Por�m neste dia a velha Lu�sa n�o bateu em Baldu�no. Alisou a cabe�a do sobrinho, dizendo: � Eles foram porque quis, n�o �, meu filho? Tamb�m Jubiab� gostava de Ant�nio Baldu�no. Falava com ele como se ele fosse um homem. E o pretinho ia tomando amizade ao macumbeiro. Respeitava-o porque ele sabia tudo e solucionava todas as quest�es entre os homens do morro. E curava todas as doen�as e fazia feiti�os fortes e era livre, n�o tinha patr�o nem hor�rio de trabalho. Noite alta, certa vez, gritos dolorosos de socorro espantaram a paz do morro. As casas se abriram, homens e mulheres sa�am para a rua com os olhos meio fechados de sono. Era na casa de Leopoldo. Mas os gritos j� tinham acabado, apenas vinham gemidos baixinhos. Correram para l�. A porta de t�bua de caix�o estava aberta, a

tramela rebentada, e dentro Leopoldo estrebuchava com duas facadas no peito. O sangue fazia po�a em redor. Leopoldo se suspendeu e depois caiu para n�o levantar mais. Saiu uma golfada de sangue pela boca e algu�m meteu na sua m�o uma vela acesa. Falavam em voz baixa. Uma mulher come�ou a rezar uma ora��o de moribundos. E a casa se encheu aos poucos. Era a primeira vez que algu�m entrava na casa de Leopoldo. Ele n�o queria ningu�m l�. Homem de poucas rela��es, n�o tinha intimidade, e desde que se mudara para o morro, nunca visitara ningu�m. S� uma vez foi � casa de Jubiab� e passou l� muitas horas. Mas ningu�m soube o que ele disse ao pai-de-santo. Trabalhava de carpina e bebia muito. Quando bebia na venda de Seu Louren�o ficava ainda mais sorumb�tico e dava sem motivo socos no balc�o. Ant�nio Baldu�no tinha medo dele. E com mais medo ainda ficou quando o viu morto com duas facadas no peito. Nunca se soube quem foi o assassino. Por�m, um ano depois, certo dia Baldu�no estava correndo pela ladeira quando um homem de cal�a rasgada e chap�u furado, cara de doente, se aproximou e perguntou: � � menino, mora aqui um sujeito chamado Leopoldo? Um negro alto, s�rio. � J� sei... N�o mora mais, n�o senhor. � J� se mudou? � N�o. Morreu... � Morreu? De qu�? � De facada. � Assassinado? � Foi, sim senhor. Olhou o homem: � O senhor era parente dele? � Quem sabe? Me diga, qual � o caminho da cidade? � O senhor n�o quer ir l� em cima saber mais nada? Titia pode lhe dizer... Eu lhe mostro a casa onde Seu Leopoldo morava... Agora � de Seu Zeca... O homem tirou da cal�a rota quinhentos r�is e deu a Baldu�no. � Olha, garoto: se ele n�o estivesse morto, morria hoje... E desceu a ladeira sem esperar resposta. Ant�nio Baldu�no desceu correndo atr�s do homem: � O senhor n�o quer saber o caminho da cidade? Mas o homem nem olhou para tr�s. Ant�nio Baldu�no n�o contou este encontro a ningu�m de tanto medo que ficou. E em sonhos a imagem do homem de chap�u furado o perseguiu muito tempo. Parecia que ele vinha de muito longe e estava cansado. Ant�nio Baldu�no pensou que o olho da piedade daquele homem tinha vazado. Um, dois, tr�s anos se passaram naquela vida do morro. Os habitantes eram os mesmos, a vida a mesma. Nada mudava. S� as dores de cabe�a de Lu�sa aumentavam. Agora haviam passado a ser quase di�rias, pegando a negra logo que ela voltava da venda noturna, do munguz� e do mingau. A negra ficava gritando, botava os vizinhos para fora, vinha Jubiab� e cada vez demorava mais para curar as dores de Lu�sa. A velha andava esquisita; chegava da rua furiosa, berrando, zangando por tudo, batia em Baldu�no por qualquer nada que ele fazia, e depois quando a dor melhorava pegava no sobrinho, botava no colo, catava cafun� na carapinha, chorava baixinho, pedia perd�o. Ant�nio Baldu�no vivia apalermado, sem entender. Achava a tia incompreens�vel, com aqueles acessos de raiva e de carinho. E nas brincadeiras, de quando em vez, parava para pensar na tia, na dor de cabe�a que a estava matando. Sentia que em breve a perderia e isso confrangia o seu pequeno cora��o, que, no entanto, j� estava t�o cheio de amor e de �dio. A tarde tinha sido sombria, cheia de nuvens negras. Com a noite veio um vento grosso, pesado, que apertava os homens no pesco�o e assoviava nos becos. Enquanto as luzes n�o acenderam, o vento dominou a cidade, correu com os moleques pelas ladeiras, visitou as mulheres do Beco das Flores e do Beco de Maria Paz, levantou nuvens de p�, invadiu casas e quebrou moringas. Quando as luzes acenderam caiu uma chuva violenta, um temporal como h� muito n�o havia. Os fif�s apagavam, n�o se ouviam vozes nas casas. O morro se fechou nos casebres. Lu�sa estava se preparando

para sair. Ant�nio Baldu�no matava formigas num canto da sala. A tia pediu: � Ajuda aqui, Baldu�no. Ele ajudou a botar uma lata em cima do tabuleiro, que Lu�sa suspendeu e colocou na cabe�a. Passou a m�o no rosto de Ant�nio Baldu�no e se dirigiu para a porta. Antes de abrir a tramela, por�m, sacudiu com o tabuleiro e as latas no ch�o, num gesto de raiva, e gritou: � N�o vou mais. Ant�nio Baldu�no ficou mudo de espanto. � Ah! Ah! N�o vou mais, quem quiser que v�. Ah! Ah! � O que �, tia? O munguz� corria pelos tijolos do ch�o. Lu�sa ficou mais calma e em vez de responder, come�ou a contar uma historia muito comprida de uma mulher que tinha tr�s filhos, um carpina, o outro pedreiro e o terceiro estivador. Depois a mulher ia ser freira e ela passou a contar a hist�ria dos tr�s filhos. Mas a hist�ria n�o tinha p� nem cabe�a. Apesar disto uma vez Ant�nio Baldu�no n�o p�de deixar de rir. Foi quando o carpinteiro perguntou ao diabo: � Cad� o seu chifre? E o diabo respondia: � Dei pra seu pai. Foi quando Lu�sa, que estava no melhor da hist�ria atrapalhada, olhou para as latas de munguz� e mingau. Deu um pulo e cantarolou: �eu n�o vou mais... nunca mais... nunca mais...� A� Ant�nio Baldu�no teve medo de novo e perguntou se ela estava com dor de cabe�a. Ela olhou para o sobrinho com uns olhos t�o estranhos que Ant�nio Baldu�no recuou at� detr�s da mesa. � Quem � voc�? Voc� quer roubar o meu mingau, moleque. Vou te ensinar. Correu atr�s de Baldu�no, que se despencou para a rua e s� parou na casa de Jubiab�. A porta estava apenas encostada, ele empurrou e foi entrando. Jubiab� estava lendo um velho livro quando ele entrou. � O que �, Baldo? � Pai Jubiab�... Pai Jubiab�... Nem podia falar. Respirou e come�ou a chorar. � O que �, meu filho? � Tia Lu�sa est� atacada. O temporal zunia l� fora. A chuva ca�a em grandes pingos. Mas Baldu�no n�o ouvia nada, s� ouvia a voz da tia a perguntar a ele quem era e os seus olhos estranhos, olhos que ele nunca tinha visto em pessoa alguma... E eles foram correndo sob o temporal, a chuva caindo, o vento zunindo. Iam silenciosos. Quando chegaram, a casa j� estava cheia de vizinhos. Uma mulher dizia a Sinh� Augusta das Rendas: � Isso � de carregar aquelas latas na cabe�a... Eu sei de uma mulher que tamb�m enlouqueceu por causa disto... Ant�nio Baldu�no come�ou novamente a chorar. Augusta discordava da vizinha: � Nada disto, comadre. O que ela tem � esp�rito e do bom. Vai ver como Jubiab� acaba com isso num instante... Lu�sa cantava em voz alta, soltava gargalhadas e estava com Z� Camar�o que apoiava tudo que ela dizia. Jubiab� se aproximou e come�ou a rezar Lu�sa. Levaram Ant�nio Baldu�no para a casa de Augusta. Mas ele n�o dormiu, e em meio ao temporal, ao ru�do do vento e da chuva, ouvia os gritos e as gargalhadas da sua tia. E solu�ava alto. No outro dia veio um carro do hosp�cio, dois homens pegaram a velha e a levaram. Ant�nio Baldu�no se agarrou a ela. N�o queria deixar que a levassem. Tentava explicar: � N�o � nada, n�o. � s� dor de cabe�a que ela tem. pai Jubiab� cura... N�o leva ela... Lu�sa cantarolava, indiferente a tudo.

Mordeu a m�o do enfermeiro e s� o soltou quando o trouxeram � for�a para a casa de Augusta. Ent�o todos foram muito bons com ele. Z� Camar�o veio conversar com ele, falar em viol�o e capoeira, Seu Louren�o da venda lhe deu caramelos, Sinh� Augusta dizia �coitadinho, coitadinho�. Veio tamb�m Jubiab� que amarrou uma figa no pesco�o de Ant�nio Baldu�no: � Isto � para voc� ser forte e corajoso... Eu gosto de voc�. Ficou uns dias na casa de Augusta. Uma manh�, por�m, ela o vestiu com a melhor roupa e o levou pela m�o. Ele perguntou para onde iam. � Voc� agora vai morar numa casa bonita. Vai morar com o Conselheiro Pereira. Ele vai lhe criar. Ant�nio Baldu�no n�o disse nada, mas pensou logo em fugir. Quando j� iam perto da ladeira encontraram Jubiab�. Ant�nio Baldu�no beijou a m�o do feiticeiro que disse: � Quando crescer venha c�. Quando tiver homem. Os meninos estavam todos parados na rua, espiando. Baldu�no deu adeus com tristeza. Desceu. L� de baixo ainda via a figura de Jubiab� sentado num barranco do morro, o camisu agitado pelo vento, folhas de ervas na m�o. Travessa Zumbi dos Palmares

Velha rua de casas sujas e de sobrados de cor indefinida. Vinha numa reta sem desvios. Os passeios das casas � que eram desencontrados, uns altos, outros baixos, alguns avan�ando para o centro da rua, outros medrosos de se afastarem da porta. Rua mal cal�ada de pedras desarrumadas, plantada de capim. O sil�ncio e o sossego desciam de tudo e subiam de tudo. Vinham do mar distante, dos montes l� atr�s das casas sem luz, das luzes mesmo dos raros postes, das pessoas, baixavam do ar sobre a gente e envolviam a rua e as criaturas. Parecia que a noite chegava mais cedo para a Travessa Zumbi dos Palmares que para o resto da cidade. Nem o mar que batia nas pedras, ao longe, acordava o sono da rua que seria uma velha solteirona � espera do noivo que partira para as capitais distantes e se perdera na confus�o dos homens apressados. A rua era triste. Uma travessa agonizante. A calma da rua pesava com um ar de agonia. Agonizava tudo em redor: as casas, o morro, as luzes. O sil�ncio era duro e fazia sofrer. A Travessa Zumbi dos Palmares agonizava. Como estavam velhas as casas, como saltavam as pedras do cal�amento! T�o velha como a negra anci� que morava na casa mais negra e dava, aos moleques, com gestos maternais, tost�es para comprar cocada, e passava o dia pitando um cachimbo de barro, murmurando palavras que ningu�m entendia. A rua encurvara e as casas ruiriam breve. O sil�ncio � de morte. Desce do morro, sobe as pedras. A Travessa Zumbi dos Palmares agonizava! Uma vez um casal de noivos veio ver uma casa para alugar! Casa confort�vel e quieta. A noiva disse, por�m: � N�o. N�o quero. Essa rua parece um cemit�rio... Dois sobrados na esquina, um defronte do outro. O resto da rua era formado por casinhas baixas, escuras, e um ou outro sobrado que j� tinha perdido a cor e nos quais morava uma legi�o de homens trabalhadores. Os sobrados da esquina, se bem antigos, eram, no entanto, grandes e formosos. No da direita morava uma fam�lia que tinha um desgosto muito grande, a perda de um filho que morrera assassinado. Viviam recolhidos, n�o apareciam nunca nas janelas,

que estavam eternamente trancadas, e traziam sempre luto fechado. Quando, por acaso, uma janela se abria, podia-se ver na sala de visitas um quadro enorme que era o retrato de um jovem loiro, fardado de tenente. Trazia um sorriso provocador nos l�bios finos e uma flor na m�o alva. O sobrado tinha uma varanda e nesta varanda uma mo�a loira vestida de preto. Lia um livro de capa amarela e jogava n�queis para Ant�nio Baldu�no. Todas as tardes vinha um mo�o bonito e passava em toda a extens�o da rua. Assoviava baixinho at� que a mo�a o via. Ent�o ela se levantava e vinha para o gradeado da varanda de onde ficava sorrindo. O rapaz elegante passava v�rias vezes, cumprimentava, sorria, e antes de ir embora tirava um cravo da botoeira e, ap�s beij�-lo, jogava-o na varanda. A mo�a o apanhava r�pida, um sorriso nos l�bios, o rosto escondido na m�o livre. Metia o cravo vermelho no livro de versos e dava um adeusinho com a m�o. O mo�o ia embora e voltava no outro dia. Ela jogava um n�quel para o negrinho que estava l� embaixo e que era a �nica testemunha desse amor. Defronte ficava o sobrado do comendador. Gansos passeavam no jardim florido e mangueiras cresciam na alameda que ficava ao lado da casa. O comendador comprara aquilo barato nos bons tempos, �uma verdadeira pechincha�, como dizia aos domingos depois que dava a volta no jardim e ia deitar no quintal ao fundo. Morava ali h� muitos anos, desde que come�ara a enricar, e talvez gostasse daquela casa velha de tantos quartos na travessa sem movimento. Ant�nio Baldu�no � que ficou espantado com o tamanho da casa. Nunca vira coisa igual. No Morro do Capa-Negro as casas eram pequenas, de barro batido, portas de caix�o, cobertas de zinco. Tinham duas divis�es apenas: a sala de jantar e o lugar onde dormiam. Mas o sobrado do comendador, n�o. Como era grande, quantos quartos tinha, alguns at� fechados, um quarto de h�spedes sempre mobiliado esperando algu�m que nunca vinha, salas enormes, cozinha bonita, a latrina melhor que qualquer casa do morro! Quando Augusta, das Rendas chegou com o negrinho, cansados ambos da caminhada longa do Morro do Capa-Negro at� a Travessa Zumbi dos Palmares, estavam almo�ando na casa do comendador. A comida de tempero portugu�s cheirava. O Comendador Pereira em manga de camisa presidia a familiar festa que era o almo�o. Quando Augusta entrou, levando pela m�o o negrinho, Ant�nio Baldu�no ergueu os olhos e viu logo Lindinalva. Na cabeceira da mesa o comendador era um portugu�s de grandes bigodes e grandes garfadas. Ao lado a esposa quase t�o gorda quanto ele. E Lindinalva numa cadeira direita da m�e, magr�ssima e sardenta, os cabelos vermelhos e a boca pequena, fazia o contraste mais rid�culo do mundo. Mas Ant�nio Baldu�no, que estava acostumado com as negrinhas sujas do morro, achou Lindinalva parecida com as figuras das folhinhas que Seu Louren�o distribu�a entre os fregueses pelo Natal. Ela era um pouco mais alta que o negrinho, se bem fosse mais velha tr�s anos. Ant�nio Baldu�no baixou os olhos e ficou espiando o assoalho envernizado, cheio de desenhos complicados. Dona Maria, a esposa, convidou: � Sente, Sinh� Augusta. � Estou bem, Dona Maria. � J� almo�ou? � Ainda n�o. � Ent�o venha. � N�o. Depois eu como na cozinha... � Augusta sabia o seu lugar e quanto havia de pura gentileza no convite. Quando o comendador acabou de mastigar a comida que tinha na boca, arriou o talher em cima do prato vazio e gritou para os fundos da casa: � Traz o doce, Am�lia! Enquanto esperava virou-se para Augusta: � Ent�o, Augusta? � Vim trazer o menino que falei com o senhor.

O comendador, a mulher e a filha olharam para Ant�nio Baldu�no. � Ah! � esse... Venha c�, Benedito � chamou o comendador. Ant�nio Baldu�no se aproximou medroso, concertando j� uma fuga das m�os gordas do homem. Por�m o comendador n�o lhe queria fazer mal algum. Perguntou: � Como te chamas? � Meu nome � Ant�nio Baldu�no... � � um nome muito grande. De agora em diante teu nome � Baldo. � No morro meu apelido era este... Lindinalva ria... � Baldo parece balde. Augusta falou para o comendador: � Ent�o o senhor fica sempre com ele para criar? � Fico, sim. � � uma caridade t�o grande que o senhor faz... O pobrezinho n�o tem pai nem m�e... S� tinha um parente que era a tia. Ficou doida, coitada. � Por qu�? � Acho que esp�rito que deu nela... Esp�rito dos brabos. N�o larga t�o cedo. Eu conhe�o muito desse neg�cio de esp�rito... Ant�nio Baldu�no fazia um biquinho de choro. O comendador alisou a sua carapinha e disse: � N�o tenha medo que ningu�m vai lhe comer. Dona Maria perguntou a Augusta: � Por falar em esp�rito, como vai voc� com o seu? � Ah! Dona Maria, nem me fale. Cada vez me persegue mais. Agora deu pra ficar b�bado e cai em cima de meu ombro. � um peso t�o grande que eu n�o ag�ento. J� vivo cansada. � Por que n�o vai a uma sess�o? � Ah! Eu vou sim. Todo s�bado vou. Pai jubiab� tira ele mas ele volta de novo. Sempre foi teimoso... � Mas isso � macumba. Voc� precisa ir � a uma sess�o de verdade. Na Ladeira S�o Miguel tem uma muito boa. � Nada, Dona Maria. Se pai Jubiab� n�o tira ele, quem � que vai tirar? E eu at� nem me importo. S� que ele me atrapalha muito. E agora deu pra beber. N�o t� vendo? Eu estou aqui mas estou t�o cansada que a senhora n�o imagina. Ele est� trepado no meu cangote, pesado que faz medo... Virou-se para o comendador: � Deus lhe paga, comendador, essa caridade que o senhor est� fazendo com o menino... Deus lhe paga dando sa�de a todos desta casa. � Obrigado, Sinh� Augusta. Agora leve o menino l� pra dentro e diga � Am�lia para dar comida a ele. E o comendador atacou o prato de doces de caju. Dona Maria acrescentou: � E voc�, Augusta, coma alguma coisa. Na cozinha Am�lia fez uns pratos bem avantajados para eles. E ficaram comendo os tr�s enquanto Augusta contava � cozinheira a hist�ria de Ant�nio Baldu�no com grande como��o. A cozinheira limpava as l�grimas no avental e Ant�nio Baldu�no, quando ouviu falar na loucura da tia, deixou de comer para solu�ar. Ap�s vender rendas Augusta se despediu de Ant�nio Baldu�no: � De vez em quando eu venho lhe ver. S� ent�o o negrinho compreendeu que estava separado do morro, que o haviam arrancado do lugar onde nascera e se criara, onde aprendera tanta coisa, e que o haviam jogado, a ele, o mais livre dos moleques do morro, na casa de um senhor. Desta vez n�o chorou. Ficou espiando a casa, pensando na fuga. Mas como Lindinalva veio cham�-lo para brincarem, ele se esqueceu de fugir. Construiu uma casa para o gato angor� que era a paix�o de Lindinalva, correu com ela pelo quintal, deu salto e subiu at� o galho mais alto da goiabeira para ir buscar as goiabas de vez que ela gostava. Ficaram amigos desde aquele dia. Depois vieram os aborrecimentos. Foi pegado fumando, tomou uma surra da cozinheira. Revoltou-se. Da tia ele n�o se importava de apanhar. Mas da cozinheira

n�o. Tamb�m quando soltava palavr�es, e os soltava a cada momento, Am�lia dava-lhe um tapa na boca com toda for�a. Ele foi ficando com �dio daquela portuguesa de cabelos compridos (fazia duas tran�as que ficava a admirar no espelho) e dava-lhe l�ngua quando ela estava de costas. No entanto o comendador era bom para ele. At� o botou na escola p�blica, uma que funcionava no Largo de Nazar� com uma professora ranzinza de palmat�ria em punho. Ant�nio Baldu�no chefiou as malandragens que os alunos da escola fizeram naquele ano. Cedo foi expulso como incorrig�vel. Am�lia disse a Dona Maria: � Negro � uma ra�a que s� serve para ser escravo. Negro n�o nasceu para saber. Mas Ant�nio Baldu�no j� sabia o suficiente. J� sabia ler perfeitamente um ABC de qualquer dos cangaceiros c�lebres e os crimes que os jornais noticiavam. E quando estava de bem com Am�lia era ele quem lia � noite, nos jornais, a hist�ria dos crimes que iam acontecendo pelo mundo. Assim ia correndo a sua vida, entre brincadeiras com Lindinalva a quem cada vez mais admirava, e brigas com Am�lia, que diariamente fazia queixa a Dona Maria das �molecagens deste negro sujo� e lhe dava, �s escondidas, surras ferozes. Tinha not�cias do morro por interm�dio de Augusta, que todo m�s vinha vender rendas a Dona Maria. Sentia saudades da vida solta do morro e voltava a pensar em fugir. Num domingo Jubiab� veio � casa do comendador. Conversaram na sala e ordenaram a Ant�nio Baldu�no que vestisse a roupa mais nova. Saiu com Jubiab�, tomaram um bonde e o negrinho foi revendo a cidade e aspirando com for�a o ar das ruas, a liberdade que estava gozando. Nem se lembrava de perguntar a Jubiab� para onde iam. Tamb�m ele confiava inteiramente no pai-desanto, que naquele domingo estava vestido com um fraque velho e trazia um chap�u rid�culo no alto da carapinha. Afinal saltaram do bonde, entraram por uma rua larga e arejada e penetraram num amplo port�o guardado por um homem fardado. Ant�nio Baldu�no pensou que ia ser soldado e riu. Gostaria de ser soldado, usar farda, passear com mulatas nos jardins p�blicos. Mas logo se desiludiu. N�o viu soldados no p�tio do casar�o que era cinzento, de janelas gradeadas como uma cadeia. Viu foi homens e mulheres, trajando todos uma roupa igual, que passeavam com ares apalermados, uns falando sozinhos, outros desenhando gestos no ar. E Jubiab� o levou para o lugar onde estava a velha Lu�sa que dizia com voz fraca: �eu n�o vou mais... nunca mais... nunca mais...� Ant�nio Baldu�no quase n�o a conheceu. Estava magra e ossuda, os olhos pulados para fora do rosto que andava chupado. Beijou a m�o da velha que o olhou com ar indiferente. � Titia, sou Baldu�no. � Sabe de uma coisa: os moleques querem roubar o meu mingau. Voc� veio para roubar, n�o foi? � foi se enfurecendo. Mas sorriu logo e continuou sua cantiga. �eu n�o vou mais... nunca mais... nunca mais...� Jubiab� o levou de volta. Baldu�no ainda ficou espiando o casar�o l�gubre que parecia cadeia. No bonde Jubiab� perguntou se ainda tinha a figa que lhe dera. Ant�nio Baldu�no puxou de dentro do pesco�o e mostrou. � T� bem, meu filho. Guarde sempre. D� sorte... Antes de saltar deu dez tost�es a Baldu�no. S� voltou ao hosp�cio uma vez. Foi novamente com Jubiab� para acompanhar o enterro da velha Lu�sa. Diante do caix�o, pobre e negro, encontrou quase todos os conhecidos do morro. Novamente foram todos muito bons para ele e lhe deram abra�os. Algumas pessoas choravam. Foram assim at� o cemit�rio, onde deram uma p� para Baldu�no atirar terra em cima do corpo. Depois o corpo da velha ficou l� e s� Ant�nio Baldu�no guardou com amor a sua lembran�a no seu pequeno cora��o que j� estava t�o cheio de �dio.

Foi no dia do enterro da velha Lu�sa que Jubiab� para distra�-lo contou, na volta do cemit�rio, a hist�ria de Zumbi dos Palmares. � O nome daquela rua � Zumbi dos Palmares, n�o �? � �, sim senhor... � Voc� n�o sabe quem foi Zumbi? � Eu n�o. � Baldu�no vinha triste, pensando mais uma vez em fugir, e a princ�pio prestou pouca aten��o � hist�ria, apesar de ser Jubiab� que estava contando: � Isso foi h� um mund�o de tempo... No tempo da escravid�o do negro. �Zumbi dos Palmares era um negro escravo. Negro escravo apanhava muito... Zumbi tamb�m apanhava. Mas l� na terra que ele tinha nascido ele n�o apanhava. Porque l� negro n�o era escravo, negro era livre, negro vivia no mato trabalhando e dan�ando.� � E por que vinham para c�? � Baldu�no j� estava interessado. � Os brancos iam l� buscar negro. Enganavam negro que era tolo, que nunca tinha visto branco e n�o sabia da maldade dele. Branco n�o tinha mais olho da piedade. Branco s� queria dinheiro e pegava negro pra ser escravo. Trazia negro e dava em negro com chicote. Foi assim com Zumbi dos Palmares. Mas ele era um negro valente e sabia mais que os outros. Um dia fugiu, juntou um bando de negro e ficou livre que nem na terra dele. A� foi fugindo mais negro e indo pra junto de Zumbi. Foi ficando uma cidade grande de negros. E os negros come�aram a se vingar dos brancos. Ent�o os brancos mandaram soldados pra matar os negros fugidos. Mas soldado n�o se ag�entava com os negros. Foi mais soldado. E os negros deram nos soldados. Ant�nio Baldu�no tinha os olhos abertos e tremia de entusiasmo. � A� foi um mund�o de soldados mil vezes maior que o n�mero de negros. Mas os negros n�o queriam mais ser escravos e quando viu que perdiam, Zumbi pra n�o apanhar mais de homem branco se jogou de um morro abaixo. E os negros todos se jogaram tamb�m... Zumbi dos Palmares era um negro valente e bom. Se naquele tempo tivesse vinte igual a ele, negro n�o seria escravo. Ant�nio Baldu�no, naquele dia em que morrera sua tia, encontrou um amigo para substituir a velha Lu�sa no seu cora��o: Zumbi dos Palmares. Ele foi da� em diante o seu her�i predileto. Tinha algumas consola��es aquela vida atrapalhada pelas encrencas de Am�lia. Havia em primeiro lugar Lindinalva que brincava com Ant�nio Baldu�no. Ele era capaz de passar horas e horas parado, olhando para o rosto de santa que ela possu�a. Depois tinha o cinema que foi para ele uma revela��o. E ao contr�rio de todos os meninos, sempre torcia nas fitas de cowboy pelo �ndio mau contra o mocinho branco, O sentido de ra�a e de ra�a oprimida ele o adquirira � custa das hist�rias do morro e o conservava latente. Tinha tamb�m Z� Camar�o que agora vinha ensinar viol�o a uns rapazes que moravam no sobrado velho do fim da rua e que tamb�m dava aulas a Baldu�no. O trabalho na casa do comendador n�o era grande: copeirava, lavava os pratos, ia �s feiras, fazia recados, O comendador at� pensava em lev�-lo para trabalhar na sua casa comercial. � Quero fazer alguma coisa por este negro � dizia. Este preto � esperto, esse diabo... Com as surras Ant�nio Baldu�no aprendera a ser dissimulado. Agora fumava escondido, dizia palavr�es em voz baixa, mentia descaradamente. Pois foi aquela id�ia do comendador de melhorar a sorte de Ant�nio Baldu�no, dando-lhe um emprego na sua casa comercial com ordenado e possibilidade de fazer alguma coisa na vida, que obrigou o negro a fugir. Nesta �poca Ant�nio Baldu�no j� tinha quinze anos e j� h� tr�s suportava o �dio de Am�lia. O caso que deu lugar � sua fuga passou-se assim: quando o comendador anunciou num domingo que no outro m�s Ant�nio Baldu�no come�aria a trabalhar no armaz�m, Am�lia teve um acesso de raiva. Ela tinha verdadeiras crises de ci�me, n�o podia compreender por que os patr�es protegiam aquele negro e queriam fazer dele gente. � Negro � ra�a ruim � repetia sempre. � Negro n�o � gente...

E come�ou a pensar um meio de desmoralizar completamente o molecote. Foi quando um dia viu Ant�nio Baldu�no sentado na escada da cozinha espiando com uns olhos religiosos para Lindinalva que, j� com dezoito anos, costurava na varanda. Bateu no ombro dele: � A�, hein, negro sem-vergonha! Olhando as coxas de Dona Lindinalva. Baldu�no n�o estava olhando coisa alguma, estava era recordando o tempo bom em que eram menores e ele e Lindinalva brincavam no quintal da casa. Mas se assustou como se estivesse de fato espiando as coxas da mo�a. Aquilo caiu nos ouvidos do comendador. Todos acreditaram. At� Lindinalva, que nunca mais olhou para Ant�nio Baldu�no sen�o com medo e com nojo. O comendador se era um homem bom, sabia na hora da raiva ser ruim. � Ent�o, moleque descarado, eu lhe crio como a um filho, lhe ajudo e voc� fica fazendo molecagem a�... Am�lia ajuntava: � Esse negro � safado que faz medo. Quando Dona Lindinalva ia tomar banho ele espiava pelo buraco da fechadura. Lindinalva saiu quase chorando. Baldu�no quis dizer que era mentira, mas como estavam acreditando em Am�lia n�o disse nada. Apanhou uma surra medonha, que o deixou estendido, o corpo todo doendo. Mas n�o era s� o corpo que do�a. Do�a-lhe o cora��o porque n�o tinham acreditado nele. E como aqueles eram os �nicos brancos que ele estimava, passou a odi�-los e com eles a todos os outros. No entanto nessa noite sonhou com Lindinalva. Ele a viu nua e acordou. Ent�o se lembrou dos v�cios que os moleques do morro praticavam e ficou sozinho. N�o, n�o ficou sozinho. Dormiu com Lindinalva que sorria para ele com seu rosto de figura de folhinha, e para ele abria as coxas alvas e lhe ofertava os seios duros de crian�a. E da� por diante, dormisse com que mulher dormisse, era com Lindinalva que o negro Ant�nio Baldu�no estava dormindo. Pela madrugada fugiu da Travessa Zumbi dos Palmares. Mendigo

Ant�nio Baldu�no agora era livre na cidade religiosa da Bahia de Todos os Santos e do pai-de-santo Jubiab�. Vivia a grande aventura da liberdade. Sua casa era a cidade toda, seu emprego era corr�-la. O filho do morro pobre � hoje o dono da cidade. Cidade religiosa, cidade colonial, cidade negra da Bahia. Igrejas suntuosas bordadas de ouro, casas de azulejos azuis, antigos sobrad�es onde a mis�ria habita, ruas e ladeiras cal�adas de pedras, fortes velhos, lugares hist�ricos, e o cais, principalmente o cais, tudo pertence ao negro Baldu�no. S� ele � dono da cidade porque s� ele a conhece toda, sabe de todos os seus segredos, vagabundeou em todas as suas ruas, se meteu em quanto barulho, em quanto desastre aconteceu na sua cidade. Ele fiscaliza a vida da cidade que lhe pertence. Esse � o seu emprego. Olha todos os seus movimentos, conhece todos os valentes da cidade, vai �s festas l�ricas, recebe e embarca os viajantes de todos os navios. Sabe o nome de todos os saveiros e � amigo dos canoeiros que pousam no Porto da Lenha. Come a comida dos restaurantes mais caros, anda nos autom�veis mais luxuosos, mora nos mais novos arranha-c�us. E pode se mudar a qualquer momento. E como � dono da cidade n�o paga a comida, nem o autom�vel, nem o apartamento. Solto na cidade velha de sobrados enormes ele a dominou e se tornou o seu dono. Os homens que passam n�o sabem disso, com certeza. Nem olham para o negrinho esfarrapado que fuma cigarro barato e traz um bon� em cima dos olhos. As mulheres

elegantes, que lhe d�o um n�quel, o evitam, para n�o se sujarem ao seu contato. Mas na verdade o negro Ant�nio Baldu�no � o imperador da cidade negra da Bahia. Um imperador de quinze anos, risonho e vagabundo. Talvez nem o pr�prio Ant�nio Baldu�no o saiba. Traz um bon� em cima dos olhos e fuma um cigarro barato. Uma cal�a de casimira preta rasgada e cheia de manchas, e um palet� enorme, herdado de algu�m muito mais alto que ele, palet� que no inverno � travesseiro e sobretudo, tal � a vestimenta do imperador da cidade. E aqueles outros negros que o rodeiam s�o seus s�ditos mais queridos, a sua guarda de honra. Guarda que n�o tem farda especial, veste trapos, cal�a chinelos abandonados nas latas do lixo, mas que sabe lutar como nenhuma outra guarda do mundo. O imperador tem uma grande figa amarrada no pesco�o. E ele e os moleques da sua guarda trazem escondidos no c�s da cal�a navalhas, punhais e canivetes. Ant�nio Baldu�no se adianta: � Uma esmola, pelo amor de Deus. O homem gordo mede o negro de cima a baixo com os olhos �vidos de um homem de neg�cios, abotoa o palet�, balan�a a cabe�a ironicamente: � Um peda�o de homem desse a pedir esmola! V� trabalhar, vagabundo... N�o tem vergonha... V� trabalhar... Ant�nio Baldu�no primeiro passa os olhos espertos pela rua. Est� muito movimentada. Ent�o diz: � Eu cheguei de fora, meu senhor... Vim me batendo por este sert�o de Deus que est� seco, sem um pingo de chuva. Estou aqui sem trabalho... Mas estou procurando... Quero um n�quel para tomar caf�... T� se vendo que o senhor � um homem direito... Espia o efeito do discurso. Mas o homem vai andando: � J� estou muito acostumado com essas mentiradas... V� trabalhar... � Juro pelo sol que t� nos alumiando que n�o � mentira. Vim debaixo de um sol�o de fazer medo... Se o senhor tem um trabalho eu pe�o... N�o tenho medo de trabalho... Mas desde ontem que n�o como... Estou aqui... caindo de fome. O senhor � um homem direito... O homem faz um gesto aborrecido, mete a m�o no bolso e joga um n�quel. � N�o me aborre�a mais... V� embora... Mas o negrinho ainda acompanha o homem. � que o charuto que ele fuma j� est� a mais de meio. E Ant�nio Baldu�no � doido por uma ponta de charuto. O homem vai pensando em tudo que o negro disse. Ser� ent�o verdade o que esses pedintes todos dizem pela cidade? O homem v� a cara zangada de todos eles. De repente tem medo, joga o charuto fora, abotoa o palet� novamente e entra num botequim para beber e criar coragem. Ant�nio Baldu�no se apossou da ponta de charuto e abre a m�o onde est� o n�quel jogado pelo homem. � uma prata de dois mil.r�is. O negro a atira para o ar, apara na m�o r�pida e sai correndo para junto dos outros que est�o conversando sobre futebol. � Adivinhe quanto, negrada... � Quinhentos r�is... Ant�nio Baldu�no ri �s gargalhadas altas: � Uma �gua... � Dois mil-r�is... � Caiu como um patinho. � Ant�nio Baldu�no faz um gesto de desprezo. � Eu c� sei cantar... Agora riem todos em risadas claras e soltas. Os homens que passam v�em apenas um grupo de meninos negros, brancos e mulatos, que mendigam. Mas na verdade � o imperador da cidade e a sua guarda de honra. Quando vinham grupos de mulheres elegantes, vestidas de seda cara, rostos pintados espalhando sorrisos, Ant�nio Baldu�no soltava um assovio especial e o grupo se juntava todo. Ficavam em fila. O Gordo desta vez ia na frente porque tinha uma voz triste de esfomeado. E uma cara parada de idiota. O Gordo botava as m�os no peito, fazia uma cara muito compungida e se dirigia ao grupo de mulheres. Parava diante delas, impedindo que continuassem o passeio, os negros as cercavam e

o Gordo cantava: �Esmola pra sete ceguinhos. Eu sou o mais velho, esse � o segundo, os outros est�o em casa, Papai � aleijado, Mam�e � doente, me d� uma esmola pra sete orf�ozinhos, s�o todos ceguinhos. O Gordo quando acabava estava quase chorando, muito contrito, uns olhos tristes, parecendo mesmo um ceguinho com seis irm�os ceguinhos, a m�e doente, o pai aleijado, sem ter comida na casa pobre. E n�o parava: �Esmola pra sete ceguinhos. .. Eu sou o mais velho...� Esticava o dedo para o que estava mais perto: �esse � o segundo...� No fim estendia as m�os gordas abrangendo o grupo e berrava: �...sete orf�ozinhos s�o todos ceguinhos...� Os outros faziam coro: �t�o todos ceguinhos...� O Gordo balan�ava as banhas e estendia a m�o suja, esperando a esmola que quase sempre vinha farta. As mulheres davam sempre, umas por piedade daqueles filhos da rua pensando nos filhos que estavam no aconchego das casas. Outras davam para se livrar do cerco dos moleques sujos que valiam como uma acusa��o. As mais corajosas pilheriavam: � Ent�o, como �... S�o sete e tem a� mais de dez... S�o �rf�os e t�m pai e m�e doente... Ceguinhos e v�em tudo... Como � isto? Eles n�o respondiam. Apertavam mais o cerco e o Gordo voltava a cantar a cantiga mon�tona: �Esmola pra sete ceguinhos. Nenhuma resistia. Os moleques iam se aproximando cada vez mais, e perto do rosto elegante e pintado das mulheres ficava o rosto sujo e feio dos meninos. E era horroroso quando todos abriam a boca para o coro. O Gordo parecia um professor e n�o parava a cantilena. As bolsas se abriam e as esmolas ca�am na m�o que o Gordo retirava do peito. Abriam o cerco e o Gordo agradecia: � A senhora vai ganhar um noivo bonito que vem num navio... Muitas sorriam, outras ficavam tristes. E nas ruas e becos estreitos ressoava a gargalhada dos moleques, gargalhada livre e feliz. Depois compravam ma�os de cigarros e bebiam tragos de pinga. Tinha um loiro. Era o mais mo�o. Talvez n�o tivesse ainda dez anos. Um rosto redondo de santo de andor, o cabelo encaracolado, as m�os ossudas, olhos azuis. Chamava- se Felipe e foi apelidado de Felipe, o Belo. N�o possu�a nenhuma hist�ria a n�o ser a que a m�e fazia a vida nos bord�is da Rua de Baixo, francesa velha que um dia se apaixonara por um estudante. Formado, ele fora para a Amaz�nia. O filho se perdeu na rua e a m�e no �lcool. No dia que ingressou no grupo houve frege grande. � que enquanto dormiam espremidos na porta de um arranha-c�u, deitados em folhas de jornal, o Sem Dentes quis arriar as cal�as de Felipe, o Belo. O Sem Dentes era um mulato forte de seus dezesseis anos. Cuspia por entre os cacos de dentes, fazendo um ru�do especial, e acertava este cuspe onde queria. Sua grande qualidade era esta. Pois o Sem Dentes, moleque malvado, abra�ou Felipe e come�ou a puxar-lhe as cal�as. Felipe se estrebuchou e gritou. Acordaram todos. Ant�nio Baldu�no esfregou os olhos e perguntou � Que frege � este? � Ele t� pensando que eu sou xibungo... Mas n�o sou n�o. � Felipe queria chorar.

� Por que voc� n�o deixa o menino em paz? � N�o � da sua conta. Eu fa�o o que quero... Acho ele um bombonzinho. � Pois olhe, Sem Dentes, quem bulir no menino bole comigo. � Voc� quer � comer o menino sozinho... Assim n�o est� direito. Ant�nio Baldu�no se virou para os outros garotos que estavam na d�vida. � Voc�s sabem que eu nunca quis comer ningu�m. Eu s� gosto de mulher. Se o menino fosse xibungo t� direito. Mas a� n�o ficava com a gente que a gente n�o quer fresco aqui... O menino � macho, ningu�m bole nele. � E se eu bulir? Ant�nio Baldu�no sentia que os moleques estavam todos do seu lado: � Pois bula... Levantou-se. O Sem Dentes tamb�m. Pensava que se vencesse Ant�nio Baldu�no chefiaria os moleques. Ficaram olhando um para o outro. � Bata � disse o Sem Dentes. Ant�nio Baldu�no arrumou o soco. O Sem Dentes vacilou mas n�o caiu. Se atracaram, a molecada torcendo. O Sem Dentes estava por baixo mas deu um jeito e se p�s de p�. Um soco de Ant�nio Baldu�no o p�s no ch�o novamente. Quando o Sem Dentes se levantou vinha com um canivete aberto, brilhando no escuro. � Covarde! N�o sabe brigar como homem... O Sem Dentes veio com o canivete, mas Ant�nio Baldu�no tinha aprendido capoeira com Z� Camar�o no Morro do Capa-Negro. Jogou as pernas, o Sem Dentes se estatelou no ch�o, o canivete voou longe. Ant�nio Baldu�no concluiu: � Se bulir no menino bole comigo... De outra vez tomo o canivete... O Sem Dentes dormiu sozinho numa porta. Felipe, o Belo, ficou definitivamente no grupo. Era especialista em velhas. Mal aparecia uma no princ�pio da rua, ele consertava o la�o da gravata velha que nunca abandonava, jogava fora a ponta de cigarro, metia as m�os nos bolsos furados, escondia a navalha e se aproximava muito triste. Falava baixinho: � Bom dia, senhora. Eu sou um menino abandonado, sem pai, sem m�e. N�o tenho ningu�m por mim... Tenho fome... Estou com tanta fome... Come�ava a chorar. Possu�a um talento especial para chorar na hora que queria. As l�grimas ca�am, solu�ava alto: � Fome... mam�e... a senhora tem filho... tenha pena... mam�e... Ficava lindo chorando, rostinho redondo e alvo cheio de l�grimas, os l�bios tremendo. N�o havia mulher que n�o dissesse: � Coitadinho... T�o pequenininho... J� sem m�e... Davam-lhe largas esmolas. Tr�s vezes foi convidado a morar em casas ricas de senhoras ricas. Mas amava a liberdade das ruas e permanecia fiel ao grupo onde j� era elemento respeitad�ssimo, pois dos mais eficientes. At� o Sem Dentes o tratava com respeito quando ele voltava de junto de uma velha: � Caiu um cinc�o... A gargalhada dos moleques estrugia pelas ruas, ladeiras e becos da cidade da Bahia de Todos os Santos e do pai-de-santo Jubiab�. O mais estranho de todos eles era, por�m, Viriato, o An�o. O apelido fora-lhe dado devido a ser baixinho, mais baixo mesmo que Felipe, apesar de tr�s anos mais velho. Baixote e pesad�o, possu�a uma for�a prodigiosa para a sua idade. Mesmo quando tomava banho dava a impress�o de sujeira e de mis�ria. Quando o grupo se formou j� ele mendigava atrav�s das ruas da cidade. A sua cabe�a chata metia medo. E para causar maior impress�o andava curvo, o que o fazia parecer mais baixo ainda e corcunda. Custava arrancar de Viriato uma palavra. E enquanto os outros riam em gargalhadas soltas ele apenas sorria. Mas n�o aborrecia ningu�m, nunca reclamava quando o grupo pouco fazia, e se contentava com o que havia para comer e com pontas de cigarros para fumar. Ant�nio Baldu�no gostava dele, sujeitava � sua opini�o muitas resolu��es, dava-lhe o maior prest�gio. Durante o dia Viriato, o An�o, pouco se movia com o grupo. Ficava parado na

Rua Chile, as pernas encolhidas, todo curvo, a cabe�a chata acachapada sobre o pesco�o. Estendia sem uma palavra o chap�u aos que passavam. Parecia fazer parte da porta onde se sentava como uma escultura tr�gica, um monstro de igreja. A sua f�ria era sempre gorda. Pelo fim da tarde se encontrava com o grupo e depositava nas m�os de Ant�nio Baldu�no o resultado do trabalho do dia. Depois de feitas as contas e de haver recebido a sua parte ia para um canto, comia, fumava, dormia. Acompanhava os outros nos passeios malandros pelas ruas da cidade, nas ca�adas a criadinhas nos areais, nas brigas, nas festas, sem nenhum entusiasmo. Acompanhava por acompanhar. Era o �nico, do grupo de moleques que mendigavam, que levava a s�rio a profiss�o. No fim da tarde Ant�nio Baldu�no se sentava no ch�o, reunia os moleques em torno de si, e ia recolhendo o dinheiro ganho durante o dia. Eles remexiam os bolsos das velhas cal�as, puxavam n�queis e algumas pratas e depositavam na m�o do chefe. � E voc�, Gordo, quanto? O Gordo contava o dinheiro: � Cinco mil e oitocentos. � E o Belo? Felipe atirava com um gesto de superioridade a sua f�ria: � Dezesseis mil-r�is. N�o era preciso chamar Viriato: � Doze e cem. Os outros iam chegando. O bon� de Baldu�no se enchia aos poucos de pratas e n�queis. Por �ltimo Ant�nio Baldu�no vasculhava os bolsos e juntava a sua f�ria. � Fiz pouco... Sete mil-r�is. Somava tudo, geralmente pelos dedos. Com a ajuda de Viriato fazia a divis�o: � Somos nove... Seis e seiscentos para cada um. E interrogava: � Est� certo, gente? Estava certo. Iam passando em frente a Baldu�no que dava a cada um o que lhe pertencia. Por vezes o troco faltava. � O Sem Dentes lhe d� quinhentos r�is. � Olhe l�... De outra vez voc� bateu tr�s toes meus... Iam comer e depois se estendiam pela cidade em correrias procurando mulatas para levar para o areal do cais, penetrando em festas pobres dos morros distantes, bebendo cacha�a nos botequins da Cidade Baixa. Um dia, no entanto, algo de anormal aconteceu. Quando Z� Casquinha ia entregar a sua f�ria sorria um sorriso enigm�tico. Ant�nio Baldu�no disse: � Tr�s mil-r�is... Z� Casquinha sorriu: � E mais isto... Jogou no bon� do negro um anel onde uma pedra brilhava � luz do poste. Uma pedra grande cercada por uma d�zia de pedrinhas. Ant�nio Baldu�no levantou os olhos e afirmou: � Voc� roubou isso, Z� Casquinha. � Juro que n�o... A mo�a me deu uma esmola e foi embora... Quando eu vi, esse anel�o estava junto de mim. Eu ainda corri atr�s mas n�o vi mais a mo�a. � Mentindo em cima de mim... Os moleques olhavam a pedra que passava de m�o em m�o. Nem ligaram para a conversa de Baldu�no e Z� Casquinha: � Conte como foi, Z�. � N�o tou mentindo, n�o, Baldo. Foi assim mesmo... � E voc� foi atr�s dela. � Isso � mentira mesmo... Mas o resto � verdade, eu juro... � T� direito. E agora o que � que a gente vai fazer com isso? Felipe riu: � Me d� pra mim... Nasci pra usar anel... Riram todos. Mas Ant�nio Baldu�no perguntou

� O que � que a gente faz disso? Viriato, o An�o, murmurou: � Prego. D� dinheiro muito... Felipe pilheriou de novo: � Fa�o uma roupa nova... � Basta ir buscar nas latas de lixo. � Mas no prego n�o pode, Viriato. O gringo n�o t� vendo que n�o acredita que o bruto seja de n�s... Chama a pol�cia, t� tudo na cadeia. � � mesmo. � Me d� pra eu usar � pediu Felipe. � N�o chateie... � Eu acho que o melhor � a gente guardar ele um bocado de tempo. Quando a dona j� tiver se esquecido dele a gente resolve. E Ant�nio Baldu�no amarrou o anel junto � figa que trazia no pesco�o. Ant�nio Baldu�no se aproximou do homem que estava de sobretudo no ver�o, O grupo ficou espiando da esquina: � Uma esmola pelo amor de Deus... � V� trabalhar, malandro. Desta vez a rua estava deserta. Ningu�m passava por aquele beco. E o homem de sobretudo ia apressado. Levava uma flor vermelha na lapela. Ant�nio Baldu�no se aproximou mais, O grupo tamb�m: � Me d� um n�quel... � Te dou mas � um tabefe aqui, moleque... O grupo veio pela frente: � O senhor � rico. Pode dar uma prata... O homem n�o disse mais nada, porque agora estava cercado pelo grupo. O rosto de Ant�nio Baldu�no estava bem perto do seu rosto. E o negrinho tinha uma m�o escondida. Apareceu uma navalha: � Uma nota... � Ladr�es, hein? � o homem teve coragem de dizer. � Come�am assim meninos, v�o longe. Ant�nio Baldu�no riu. Abriu a navalha. Os outros cercavam o homem de sobretudo. � Tomem, ladr�es. � Olhe que a gente pode se encontrar um dia... � Amanh� vou � pol�cia. Mas eles j� estavam acostumados com a amea�a e n�o ligaram. Ant�nio Baldu�no pegou os dez mil-r�is, guardou a navalha e o grupo todo abriu na carreira, se espalhando pelas ruas pr�ximas. Faziam estas viol�ncias quando estava pr�ximo o carnaval, a festa do Bonfim, as festas do Rio Vermelho. Um dia Rozendo caiu doente. Uma febre alta, delirava � noite, n�o comia nada. Na primeira noite ria, dizia: � N�o vai ser nada... Isso passa. Os outros o olhavam e riam tamb�m. Mas na segunda noite Rozendo come�ou a ter medo. Quando n�o delirava, ficava a gemer em voz baixa. E pedia aos outros: � Eu vou morrer... V�o chamar mam�e... Mam�e... Os outros espiavam sem saber o que fazer, inquietos, uma tristeza nos olhos alegres. Baldu�no perguntava: � Onde mora sua m�e? � Sei l�. Quando fugi morava no Porto da Lenha. Mas j� se mudou... Procure ela, Baldo... Procure, eu quero mam�e. � Vou procurar, Rozendo... Viriato era quem tratava do doente. Dava-lhe rem�dios estranhos que s� ele sabia. Arranjou, ningu�m sabia onde, um cobertor para estender na porta onde Rozendo dormia. E contava hist�rias ao doente, casos engra�ados, mais engra�ados ainda porque contados por Viriato, o An�o, que raramente falava e quase nunca ria. Viriato perguntou: � Como � o nome de sua m�e?

� Ricardina... � amigada com um carroceiro... � uma negra gorda, ainda mo�a, bem conservada. O doente se agitou falando da m�e: � Quero mam�e, quero ela... Eu vou morrer... � Deixe estar que eu e Baldo amanh� trazemo ela. Felipe chorava e desta vez suas l�grimas n�o eram fabricadas. O Gordo rezava, misturando peda�os de ora��es, e Ant�nio Baldu�no apertava a figa que trazia no pesco�o. No outro dia Baldu�no ficou com Rozendo no mais escuro da escada. Pensava em chamar Jubiab� � noite. Mas, pelo meio da tarde, Viriato, o An�o, trouxe uma preta gorda. Rozendo delirava e n�o a reconheceu. Ela se abra�ou com ele e o levou. Foram num autom�vel. Ant�nio Baldu�no perguntou: � Tem dinheiro, sinh� dona? � Pouco, mas d� com a ajuda de Deus... A� Ant�nio Baldu�no se lembrou do anel que trazia no pesco�o: � A gente d� isso pra Rozendo... Pro m�dico... Os outros olhavam com os olhos longos. A preta perguntou: � Voc�s roubaram isto? Voc�s s�o ladr�o? Meu filho estava com ladr�o? � A gente achou isso na rua... A negra pegou o anel. Ant�nio Baldu�no ainda perguntou: � A senhora quer eu levo Jubiab� em sua casa, ele cura Rozendo... � Voc� leva Jubiab�? � Levo sim. Ele � meu amigo... � Ah! leve, meu bem. Leve... Rozendo foi gritando no carro, dizendo que queria a m�e dele, que ia morrer. Ant�nio Baldu�no perguntou a Viriato: � Como foi que voc� encontrou ela? � O mais dif�cil � que ela n�o tava mais amigada com um carroceiro. Agora � um carpina... Ficou olhando a rua que se movimentava. De repente disse a Baldu�no: � E se eu ficar doente? Eu n�o tenho m�e, nem pai, nem ningu�m... Ant�nio Baldu�no botou a m�o no ombro de Viriato, o An�o. O Gordo tremia. Jubiab� foi e curou Rozendo. Numa manh� de muito sol o grupo apareceu para visitar o companheiro. Rozendo j� estava sentado numa cadeira que o padrasto constru�ra e riram muito recordando as aventuras do grupo. Rozendo contou que n�o ia mais mendigar, que agora ia ser um homem e trabalhar de carpina com seu padrasto. Ant�nio Baldu�no sorriu. Viriato, o An�o, ficou s�rio. O imperador da cidade come nos melhores restaurantes, anda nos autom�veis mais luxuosos, mora nos arranha-c�us mais novos. E sem pagar nada. Depois do meio-dia vai com seu grupo a um restaurante e diz qualquer coisa a um gar�om. Este bem sabe que n�o � neg�cio brigar com estes moleques. D� as sobras de comida embrulhadas em jornais. Certas vezes at� sobra comida que eles jogam nas latas de lixo. E velhos mendigos comem as sobras das sobra Fica a esperar que passe o autom�vel que lhe agrada. Porque o imperador da cidade n�o anda em autos vagabundos. Quando v� um bem luxuoso, ponga na traseira e viaja bairros inteiros. E se passa outro mais bonito, Ant�nio Baldu�no despede o primeiro, monta no segundo e continua seu passeio pela cidade que conquistou. E ele e a sua guarda de honra s� dormem nas portas dos mais novos arranhac�us, onde os empregados sabem que todos aqueles moleques t�m navalhas, punhais, canivetes. Isso quando n�o preferem dormir no areal do cais do porto, olhando os navios enormes, as estrelas no c�u, o verde mar misterioso. Moleque

O mar � a sua paix�o mais velha. J� de cima do Morro do Capa-Negro ele ficava a namor�-lo, estudando as varia��es do seu dorso que era azul, verde-claro e logo verde- escuro, tentado pela sua vastid�o e pelo mist�rio que ele percebia existir nos grandes navios que descansavam no cais, nos pequenos saveiros que a mar� balan�ava. O mar traz a seu cora��o um sossego que a cidade n�o lhe d�. No entanto da cidade ele � o dono e do mar ningu�m � dono. Vem v�-lo � noite. Quase sempre vem s� e se estende na areia alva do pequeno cais dos saveiros. Ali sonha e ali dorme o seu melhor sono de vagabundo. Certas vezes traz o grupo todo. Ent�o � para o grande cais dos transatl�nticos que se dirigem. V�o ver os homens que embarcam � noite, misteriosamente, levando sob o bra�o sobretudos e embrulhos; v�o ver os homens que trabalham na descarga dos navios. S�o negros e parecem formigas que levassem enormes fardos. Andam curvos como se em vez de sacos de cacau carregassem sobre as costas o seu pr�prio destino desgra�ado. E os guindastes, como monstros gigantescos que rissem dos homens, levantam fardos incr�veis que ficam balan�ando no ar. E rangem e gritam e andam sobre trilhos, guiados pelos homens de macac�o que est�o trepados dentro dos c�rebros dos guindastes. Ainda outras vezes Ant�nio Baldu�no vai acompanhado, mas n�o do grupo de moleques. � quando ele leva alguma pretinha da sua idade, ou pouco mais velha que ele, para dormir sem sonhar nas areias do cais do porto. Ent�o n�o vai ver nem a paz dos saveiros nem o mist�rio dos transatl�nticos e guindastes. Se dirige para cantos que somente ele e alguns negros conhecem, lugares de onde s� a vastid�o verde do mar � enxergada. Ant�nio Baldu�no gosta que o mar veja as suas amantes e saiba que ele, apesar dos seus quinze anos, j� � homem, j� derruba uma cabrocha na areia que � macia como um colch�o. Mas, sozinho ou acompanhado, ele olha sempre o mar como um caminho de casa. Do mar, ele tem certeza que lhe vir� um dia qualquer coisa que ele n�o sabe o que �, mas que espera. O que faltar� ao negrinho Ant�nio Baldu�no que tem apenas quinze anos e j� � imperador da cidade negra da Bah�a? Ele n�o sabe nem ningu�m sabe. Mas falta alguma coisa, que para ele achar ter� ou que cruzar o mar, ou que esperar que o mar lhe traga no bojo de um transatl�ntico, ou no por�o de um navio, ou mesmo preso ao corpo de um n�ufrago. Certa noite no cais os homens pararam de repente o trabalho e correram para a borda onde o mar batia. Havia uma lua clara e estrelas t�o brilhantes que nem se via a luz da l�mpada de um botequim que se chamava Lanterna dos Afogados. Os homens encontraram um palet� velho e um chap�u furado. Alguns negros ca�ram na �gua. Voltaram com um corpo. Fora um preto velho, um daqueles raros pretos de carapinha branca, que se jogara ao mar. Ant�nio Baldu�no ficou pensando que ele entrara pelo caminho de casa, que ele tamb�m vinha ao ca�s todas as noites. Por�m um estiva dor explicou: � � o velho Salustiano, coitado... Tava sem trabalho desde que saiu daqui das docas... Olhou pros lados, cuspiu com raiva. � Disseram que ele j� n�o dava conta do servi�os... J� n�o tinha for�a... Andava agora passando fome, cortando uma dureza. Coitado... Outro ajuntou. � � sempre assim... Matam a gente de trabalho e depois mandam embora. Quando a gente j� n�o pode fazer outra coisa sen�o se jogar no mar... Era um mulato magro. Um negro forte disse: � Comem nossa carne e depois n�o querem roer os ossos. No tempo da escravid�o, pelo menos, ro�am os ossos... Soou um apito e eles foram voltando aos fardos e aos guindastes Mas antes, algu�m cobriu o rosto do velho com o velho palet�.

E depois vieram mulheres e solu�aram. Os homens negros do cais do porto pararam o trabalho em outra ocasi�o. Desta vez a noite era sem estrelas e sem lua. Do viol�o de um cego na Lanterna dos Afogados vinham cantigas de escravo. Foi quando um homem trepou num caix�o e come�ou a falar. Os outros cercaram-no, foram chegando todos para perto. Quando Ant�nio Baldu�no e o seu grupo chegaram, j� o homem gritava apenas vivas a que a massa correspondia: � Viva! Ant�nio Baldu�no e os de seu grupo gritavam com for�a: � Viva! Ele n�o sabia o que estava vivando mas gostava de vivar. E ria porque tamb�m gostava de rir. O homem que estava em cima do caix�o e que pelo jeito era espanhol, jogou um punhado de pap�is que foram disputados. Ant�nio Baldu�no pegou um que deu ao estivador Ant�nio Caro�o que era seu amigo. Foi quando algu�m gritou: � L� vem a pol�cia... A pol�cia veio e agarrou o homem que discursava. Ele falava da mis�ria em que o povo vivia e prometia uma p�tria nova em que todos tivessem p�o e trabalho. Por isso foi preso e como os outros n�o compreendessem que fosse preso s� por isso, protestaram: � N�o pode! N�o pode! Ant�nio Baldu�no tamb�m gritava �n�o pode!� E esta era mesmo a coisa de que ele mais gostava. Afinal levaram o homenzinho, mas os outros guardaram os pap�is jogados e aqueles que n�o tinham conseguido pegar um tomavam o do companheiro emprestado. Era um grupo de m�os estendidas contra os soldados que levavam o orador. Um grupo de caras negras e fortes e as m�os estendidas lembravam um gesto de rebentar grilhetas. Vinham cantigas escravas da Lanterna dos Afogados. O apito tocava inutilmente. Um homem gordo de guarda-chuva e rosto rosado dizia: � Canalhas... Quem sabe se n�o ser� pelo corpo de um suicida que o mar indicar� a Ant�nio Baldu�no o caminho de casa? Ou pela pris�o de um homem que fala em p�o e o gesto de outros que protestam? Foram anos bons, anos livres, aqueles em que ele e seu grupo dominaram a cidade, mendigando nas suas ruas, brigando nos becos, dormindo no cais. O grupo era unido e os moleques se estimavam talvez. Apenas sabiam mostrar essa estima dando socos nas costas dos outros e dizendo nomes feios. Xingar com voz doce a m�e do companheiro era o maior carinho que qualquer daqueles negros risonhos sabia fazer Eram unidos, sim. Quando um brigava todos brigavam. E tudo que ganhavam era fraternalmente dividido entre todos. Tinham o seu amor-pr�prio e amavam a fama do grupo. Um dia esfacelaram outro bloco de moleques que pedia esmolas na cidade. Quando este bloco apareceu, chefiado por um negrinho de seus doze anos, Ant�nio Baldu�no procurou entrar em rela��es. Mandou ao terreiro, onde eles estavam, um emiss�rio. Foi Felipe, o Belo, que tinha l�bia. Por�m o menino nem p�de se aproximar. Foi escorra�ado miseravelmente, vaiado, e voltou com os olhos cheios de l�grimas de raiva. Contou tudo a Ant�nio Baldu�no: � Isso n�o foi porque voc� foi pra l� contar vantagem, Belo? � Eu nem cheguei perto... Eles foram logo xingando minha m�e... Mas eu pego um cara daqueles e rebento... � Ant�nio Baldu�no ficou pensativo: � Vou mandar o Gordo l�... O Sem Dentes se afrontou: � Mandar outro? Pra qu�? A gente deve ir � logo rebentando a cara deles... D� uma li��o... Eles v�m tirar nosso p�o e voc� ainda quer fazer paz... Nem devia ter mandado o Belo... A gente passou foi vergonha... Vamos logo l�... Os outros apoiavam: � O Sem Dentes falou direito... Vamos l�... Mas Ant�nio Baldu�no atalhou:

� Nada disso... Vou mandar o Gordo l�... Quem sabe se eles n�o t�o passando fome... Se eles quiser ficar s� com o peda�o da Baixa dos Sapateiros, eu deixo eles em paz... O Sem Dentes riu: � Parece que voc� t� com medo, Baldo... Ant�nio Baldu�no pegou na navalha, mas se conteve: � Voc� nem se lembra mais Sem Dentes do dia que a gente pegou voc� e Cici morrendo de fome na cidade de Palha... Se a gente quisesse podia tamb�m acabar com voc�s... Mas a gente n�o quis... O Sem Dentes baixou a cabe�a e ficou assoviando baixinho. N�o pensava mais nos negros que estavam no terreiro, e agora pouco lhe importava que Ant�nio Baldu�no acabasse com eles, ou os deixasse em paz. Pensava naqueles dias de fome, seu pai desempregado, bebendo nos botequins o dinheiro que a m�e arranjava lavando roupa. Se recordava da surra que levara no dia que se metera entre a velha e o pai quando este queria tomar o dinheirinho a pulso. E o choro da sua m�e... O pai que repetia: merda... merda. Depois a fuga. Os dias com fome na cidade. O encontro com Ant�nio Baldu�no e o grupo. E a vida de depois... Onde andaria sua m�e? E seu pai j� teria arranjado trabalho? Quando ele estava trabalhando n�o bebia nem batia na m�e. Era carinhoso e trazia presentes... Mas havia pouco trabalho e, desempregado, o velho matava as m�goas na garrafa de cacha�a. O Sem Dentes pensava nisso tudo. E sentiu um n� na garganta e um �dio terr�vel do mundo e dos homens. O Gordo foi em comiss�o, debaixo dos sorrisos de Felipe, o Belo. � Se eu n�o arranjei nada quanto mais voc�... Viriato, o An�o, murmurou: � Fale direito, Gordo. A gente n�o quer brigar... Quer � viver cada um pra seu lado... Ficaram esperando na Rua do Tesouro. O Gordo se benzeu e se dirigiu para o terreiro. Demorou a voltar. Viriato, o An�o, disse: � N�o estou gostando... O Belo riu: � Ele t� numa igreja rezando... Cici achava que ele estava acertando as coisas, mas todos estavam desconfiados que algo acontecera ao embaixador. E acontecera mesmo. Quando o Gordo voltou, chorava: � Me pegaram e me deram uma surra... E jogaram fora o santo que tava no meu pesco�o... � E voc� n�o fez nada? � Eles s�o uns cinq�enta e eu um s�... E o Gordo contou: � Eu cheguei l� eles tava tudo se rindo, gozando a carreira do Belo... Foram logo me xingando, me chamando de porco. L� vem o porco, era o que eles gritavam... � Ora, que vantagem... � disse Felipe. � Eles xingaram minha m�e... � Mas eu n�o me importei... Fui chegando e quis falar. Eles nem deram tempo. Me pegaram, eu dizia que era de paz... Me deixaram desse jeito... S�o mais de vinte... � T� bem. Eles querem brigar, vamos brigar e � agora mesmo... Se levantaram e iam alegres, apertando os canivetes, conversando sobre coisas as mais diversas. Os moleques que estavam no terreiro desapareceram para muito longe, depois da briga, se separaram com certeza, ficaram malandreando avulsamente, mas a verdade � que nunca mais apareceram em grupo. O grupo de Ant�nio Baldu�no voltou radiante, menos o Gordo, que n�o conseguira encontrar o santo que o Padre Silvino lhe dera. O Gordo era muito religioso. Foi por isso que o Gordo se benzeu e ficou todo tremendo naquele dia que Ant�nio Baldu�no viu Lindinalva. Nesse dia ele percebeu tudo e, se bem n�o dissesse nada a Ant�nio Baldu�no, se sentiu ainda mais ligado ao negro.

Eles estavam na Rua Chile, quando viram um casal. Se prepararam em fila, o Gordo na frente, e se dirigiram para o casal, que parecia de namorados. E casal de namorados d� sempre esmolas. O Gordo botou as m�os nos peitos e foi logo cantando: �Esmola pra sete ceguinhos. Cercaram o casal. Mas quando Ant�nio Baldu�no olhou, viu que era Lindinalva e um rapaz de anel vermelho no dedo. Um jazz tocava blues numa confeitaria. Lindinalva tamb�m enxergou Ant�nio Baldu�no e se apertou no peito do namorado com um gesto de medo e de nojo. O Gordo cantava, ningu�m percebia a cena. Ant�nio Baldu�no gritou: � Pare com isso... Vamos embora! Saiu correndo. Ficaram mudos de espanto. Lindinalva tinha os olhos fechados, O rapaz perguntou; � O que foi, querida? Ela mentiu: � Que coisa horrorosa esses meninos... O rapaz ent�o riu, superior. � Voc� � uma medrosa, querida... Jogou um n�quel para os garotos. Mas eles j� estavam longe, cercando Ant�nio Baldu�no que escondia o rosto nas m�os. Viriato, o An�o, perguntou: � O que �, Baldo? � Nada. Eu conhe�o aquela gente. O Sem Dentes voltou e apanhou o n�quel. O Gordo compreendeu tudo, se benzeu e depois ficou junto de Ant�nio Baldu�no contando hist�ria de Pedro Malazarte. O Gordo contava muita hist�ria e sabia contar muito bem. S� tinha que a hist�ria, por mais alegre que fosse, virava triste na boca do Gordo e ele metia sempre anjos e diabos no conto. Mas narrava bonito, inventava sempre, mentia muito e depois acreditava em todas as mentiras que contava. Viveram a mesma vida solta dois anos. Dois anos correndo pela cidade, assistindo partidas de futebol e lutas de boxe, brigando, penetrando no Cinema Ol�mpia, ouvindo as hist�rias que o Gordo contava sem notar que estavam crescendo, ficando homens, e que a cantiga que falava em sete ceguinhos n�o servia mais para eles que j� estavam uns negros fortes, enormes, derrubando mulatas no cais, malandreando na cidade religiosa da Bahia. Come�avam a fazer poucas esmolas e um dia foram presos como malandros e desordeiros. Um mulato de chap�u de palha e uns pap�is debaixo do bra�o, que era tira da pol�cia, juntou uns soldados e os levaram. Primeiro estiveram na delegacia, onde n�o lhes disseram nada. Depois foram levados para um corredor soturno. Penetrava um raio de sol por uma fresta. Eles ouviram a voz dos presos que cantavam. Vieram soldados e traziam chibatas de borracha. E eles foram espancados sem saber por qu�, pois nada lhes disseram. Ganharam assim a sua primeira tatuagem. Felipe, o Belo, ficou marcado na cara. O mulato que os prendera ria, puxando fuma�a de um cigarro. Os presos cantavam l� embaixo, ou l� em cima, ningu�m sabia onde. Diziam na sua can��o que l� fora havia liberdade e sol. E a borracha zunia nas costas dos moleques. O Sem Dentes gritava e xingava todo mundo. Ant�nio Baldu�no tentava dar pontap�s e Viriato, o An�o, mordia os l�bios com raiva. N�o adiantava o Gordo rezar, mas ele rezava em voz alta: � Padre nosso que estais no c�u... E a chibata zunia. At� que correu sangue do corpo dos moleques eles n�o pararam de bater. Os presos cantavam tristemente. Passaram oito dias na cadeia, foram fichados e enfim soltos numa manh� clara de muito sol. Voltaram para a vagabundagem da cidade. Mas demorou pouco essa volta. O grupo foi se dissolvendo. O primeiro a ir embora foi o Sem Dentes que ingressou numa quadrilha de batedores de carteira. De vez em quando eles o viam. Passava vestido de cal�a e palet�, cal�ado com uns sapatos velhos, um len�o amarrado no pesco�o, assoviando baixinho como era seu costume. Tamb�m Cici foi embora, e nunca souberam para onde. Jesu�no foi trabalhar numa f�brica, casou, teve um mund�o de filhos, Z� Casquinha engajou como

marinheiro. E Felipe, o Belo, morreu debaixo de um autom�vel. Era tamb�m uma manh� clara e Felipe estava cada vez mais lindo. Mesmo a marca de chicote que lhe ficara na cara lhe dava um ar aventureiro. Arranjara uma gravata nova e comemorava seu d�cimo terceiro anivers�rio. Os outros riam e brincavam. Foi quando no asfalto da rua brilhou qualquer coisa como um diamante. Baldu�no enxergou e disse: � Parece um brilhante... Felipe, o Belo, se alvoro�ou: � Ah! vou apanhar para usar no meu dedo. � meu presente de anivers�rio... � Correu para o meio da rua. Viriato ainda chegou a gritar para avisar da vinda do auto m�vel. Felipe olhou rindo e foi seu �ltimo sorriso. Ficou feito um monturo, um bolo de carnes que ainda gemia. Morreu com o sorriso que fizera agradecendo o aviso de Viriato. O rosto n�o fora atingido e era belo, radioso, rosto de pr�ncipe. O corpo foi levado para o necrot�rio. Veio uma mulher pintada e velhusca que dizia entre l�grimas: � Mon ch�ri... Mon ch�ri... E beijava o rosto de Felipe, o Belo. Mas ele n�o via mais nada e n�o sabia que era sua m�e que estava ali. N�o sabia tamb�m que o grupo se reuniu de novo para o seu enterro. Veio o Sem Dentes, veio Jesu�no, at� Cici veio ningu�m sabe de onde. S� n�o veio Z� Casquinha que era marinheiro e estava viajando. A m�e de Felipe e as mulher da Rua de Baixo levaram flores. E os moleques o vestiram com uma roupa de casimira, comprada a um turco que vendia roupas feitas a presta��o. Somente Viriato, o An�o, que cada vez estava menor e mais curvo, ficou mendigando. Os outros se distribu�ram pela cidade em of�cios diversos, oper�rios de f�bricas, trabalhadores da rua, carregadores do cais. O Gordo foi vender jornais porque tinha uma boa voz. Ant�nio Baldu�no voltou ao Morro do Capa-Negro, e ficou malandreando com Z� Camar�o, jogando capoeira, tocando viol�o nas festas, indo �s macumbas de Jubiab�. Ia ao cais todas as noites e ficava espiando no mar o caminho de casa. Lanterna dos Afogados

Quando Seu Ant�nio comprou a Lanterna dos Afogados � vi�va de um marinheiro que a montara h� muitos anos, ela j� tinha esse nome, e em cima da porta ostentava aquela tabuleta mal pintada, na qual uma sereia salva um afogado. O marinheiro que montara o botequim desembarcara um dia de um cargueiro e ancorara ali, naquela velha sala negra do sobrado colonial. Amara uma mulata escura que fazia arroz-doce para os fregueses e fornecia b�ia aos trabalhadores do cais do porto. Por que chamara ao botequim de Lanterna dos Afogados ningu�m sabia. Sabiam por�m que ele naufragara tr�s vezes e que correra o mundo todo. Antes de morrer casou com a am�sia para que ela pudesse herdar o j� afreguesado caf�. Ela o vendeu a Seu Ant�nio, que de h� muito estava de olho nele, devido ao ponto que era �timo. Ant�nio n�o gostava do nome do botequim. N�o via raz�o para aquele t�tulo esquisito. E dias ap�s a realiza��o do neg�cio, a tabuleta apareceu mudada. A nova trazia o desenho malfeito de uma caravela da �poca das descobertas portuguesas e por baixo um nome: �Caf� Vasco da Gama�. Por�m aconteceu que os fregueses olhavam espantados o novo nome do botequim e n�o entravam. Com aquela tabuleta nova e a limpeza que havia sido feita dentro da sala, eles n�o reconheciam o seu sujo porto de descanso, onde bebiam cacha�a e conversavam nas noites do cais.

Seu Ant�nio era supersticioso. E no dia seguinte foi buscar nos fundos da casa a velha tabuleta que voltou ao seu lugar. Guardou a que tinha uma caravela portuguesa para quando possu�sse um caf� no centro da cidade. Com a tabuleta de Lanterna dos Afogados, voltou tamb�m a mulata escura que fora amante do marinheiro e que continuou a fazer arroz-doce para os fregueses e b�ia para os estivadores e a dormir na mesma cama que antigamente. S� que agora dormia com um portugu�s conversador, em vez um marinheiro silencioso. Quando Seu Ant�nio montasse um caf� no centro da cidade e botasse nele o nome de Vaso da Gama e uma tabuleta com caravelas descobridoras, ela ficaria na Lanterna dos Afogados, fazendo arroz-doce para os fregueses, b�ia para os estivadores e dormiria na mesma cama com o novo propriet�rio. Os fregueses voltaram para a Lanterna dos Afogados. L� discutiam longos cruzeiros marinheiros loiros e negros. Mestres de saveiros conversavam sobre as feiras do Rec�ncavo para onde levariam os seus barcos cheios de frutas. Tocavam viol�o, cantavam sambas, contavam hist�rias de arrepiar nas noites imensas de estrelas. E mulheres desciam da Ladeira do Tabo�o para a Lanterna dos Afogados. Ant�nio Baldu�no, Z� Camar�o e o Gordo eram dos mais ass�duos. E at� Jubiab� aparecia �s vezes. Se no jogo da capoeira o negro Ant�nio Baldu�no fora o melhor disc�pulo de Z� Camar�o, no viol�o cedo ele bateu o mestre e se tornou t�o c�lebre quanto ele. Muitas vezes, quando andava pelas ruas da cidade nos seus passeios malandros, ele come�ava a bater no chap�u de palha uma m�sica que inventava e ia cantando uma letra, tudo tirado da sua cabe�a. Depois cantava o samba novo para os amigos do morro: �Vida de negro � bem boa, mulata... tem festa todos os dias baticum l� no terreiro morena para a folia...� Fazia sucesso nas festas: �Senhor do Bonfim � meu santo ele faz feiti�o forte, eu sou � malandro, mulata e voc� minha desgra�a...� N�o havia cabrocha que n�o se apaixonasse. Uma tarde um homem muito bem vestido apareceu no morro e perguntou por Ant�nio Baldu�no. Mostraram o negro que conversava num grupo. O homem se aproximou, raspando o ch�o com a bengala: � � voc� que � Ant�nio Baldu�no? Baldu�no pensou que fosse algu�m da pol�cia: � Por que pergunta? � N�o � voc� que faz sambas? � o homem apontava com a bengala. � Invento umas coisinha. � Quer cantar um para eu ouvir? � Se mal lhe pergunto, que interesse tem isso? � Pode ser que eu compre. Ant�nio Baldu�no estava bem preciso de dinheiro para comprar um sapato novo que vira na Feira de �gua dos Meninos. Foi buscar o viol�o e cantou v�rios sambas. O homem gostou de dois. � Quer me vender estes? � Para que o senhor quer? � Porque gostei... � Vendo. � Dou vinte mil.r�is pelos dois... � T� bem pago... Quando quiser mais... O homem fez Ant�nio Baldu�no assoviar as m�sicas e tomou nota num papel cheio de risquinhos. Escreveu as letras: � Depois eu volto aqui para comprar mais... Desceu com a bengala arrastando. Os moradores do morro ficaram olhando.

Ant�nio Baldu�no se estendeu na porta da venda e botou as duas notas de dez milr�is em cima da barriga nua. Ficou pensando no sapato novo que ia comprar e no corte de chita que levaria para Joana. O homem de bengala que adquirira os sambas disse de noite num caf� do centro da cidade: � Fiz dois sambas formid�veis. Cantou batendo os dedos na mesa. Os sambas depois apareceram em discos e foram cantados no r�dio, tocados ao piano. Os jornais diziam: �O maior sucesso deste carnaval foram os sambas do poeta An�sio Pereira, que s�o de enlouquecer�. Ant�nio Baldu�no n�o lia jornais, n�o ouvia r�dio, n�o tocava piano. Continuou a vender sambas ao poeta An�sio Pereira. Joana trazia os cabelos soltos, cabelos que ela espichava cuidadosamente, e os perfumava com um perfume que tonteava Ant�nio Baldu�no. Ele enfiava o nariz chato no cangote dela, suspendia o cabelo e ficava aspirando aquele perfume. Ela dizia rindo: � Tira o focinho do meu pesco�o... Ele ria tamb�m: � Que bodum gostoso... Jogava a negra de costas na cama. A voz dela vinha de longe: � Seu c�o... No dia em que apareceu com os sapatos novos, levando debaixo do bra�o o corte de chita para um vestido, Joana estava tamb�m cantando um dos sambas que ele vendera ao homem de bengala. Ant�nio Baldu�no disse: � Sabe de uma coisa, Joana? � O que �? � Vendi esse samba. � Vendeu como? � ela n�o sabia como se vendia um samba. � Apareceu um homenzinho no morro, e comprou dois sambas por vinte mil-r�is. Bem bom. � Mas para que ele queria? � Eu sei l�... Acho que ele � doido. Joana ficou pensando. Mas Ant�nio Baldu�no lhe deu o corte de fazenda: � Com o dinheiro comprei isto para voc�... � Que beleza! � Olhe a prosopop�ia de meu sapato novo... Ela olhou e se jogou no pesco�o de Ant�nio Baldu�no, que ria alto, satisfeito da vida, bem contente com o neg�cio que fizera. E enquanto cheirava o cangote de Joana, ela cantava o seu samba. Foi a �nica pessoa que cantou aquele samba sabendo quem em verdade o fizera. Ant�nio Baldu�no avisou: � N�s hoje vai � macumba na casa de Jubiab�. � dia do teu santo, meu bem. Iam � macumba e depois se estendiam no areal, onde se amavam raivosamente, Ant�nio Baldu�no vendo no corpo de Joana o corpo de Lindinalva. Apareciam sempre na Lanterna dos Afogados, se bem Joana n�o gostasse de ir l�. � Um lugar onde vai tanta vagabunda... S�o capazes de pensar que eu tamb�m sou. Joana copeirava numa casa da Vit�ria e morava num quartinho nas Quintas. Gostava de ir amar no cais, mas s� ia � Lanterna dos Afogados para satisfazer o capricho de Ant�nio Baldu�no. Quando iam os dois, ele ficava sozinho com a cabrocha numa mesa, bebendo cerveja, sorrindo pata os outros que cumprimentavam. Ele expunha a amante e depois sa�a rindo, piscando os olhos como a dizer que agora se dirigiam para o areal do cais. Quase todos os dias, por�m, Ant�nio Baldu�no ia era com o Gordo, com Joaquim com Z� Grand�o. Bebiam cacha�a, contavam aventuras, riam como s� os negros sabem rir. Na noite do anivers�rio do Gordo, Viriato, o An�o, apareceu. Tinha mudado muito nestes �ltimos anos. N�o que estivesse mais alto ou mais forte. � que estava andrajoso, vestido de molambos, apoiado numa bengala tosca.

� Vim beber � sua sa�de, Gordo... O Gordo mandou vir cacha�a. Ant�nio Baldu�no perguntou: � Como v�o as coisas, Viriato? � Assim, assim... � Voc� est� doente? � N�o. Isso � para arranjar mais esmolas � e riu seu sorriso apertado. � Por que nunca mais voc� apareceu? � Por a�, sabe... Jogado... Nem vontade... � Me disseram que voc� tinha tado doente. � Estive mesmo, maleita braba... A assist�ncia me pegou... Passei o diabo. Se eu cair doente outra vez prefiro morrer na rua... Aceitou o cigarro que Joaquim oferecia: � Fiquei largado l�, sem ningu�m se importar com eu. Sabe como �? O Gordo n�o sabia, mas estava com medo. � De noite vinha a febre. Eu pensava que ia morrer... Me lembrava que n�o tinha ningu�m... Ningu�m pra me velar... Ficou calado. � Mas ficou bom � disse Baldu�no. � Bom, n�o. Maleita volta. Um dia destes morro na rua como um cachorro... O Gordo botou a m�o negra em cima da mesa em dire��o a Viriato: � Morre nada, mano... Joaquim tentou rir: � Vaso ruim n�o quebra... Mas Viriato continuou: � Voc� se lembra, Ant�nio Baldu�no, de Rozendo? Ele ficou doente mas teve a m�e dele que veio buscar ele. Foi at� eu que descobri ela. E Felipe, o Belo, quando morreu teve tamb�m a m�e dele que veio pro enterro. Trouxe aquelas flores e veio muita mulher... � Tinha uma com cada cox�o � atalhou Joaquim. � Todo mundo tem pai, tem m�e, tem uma pessoa. Eu n�o tenho ningu�m. Atirou para um canto o cigarro, pediu outro copo de pinga: � De que vale a vida da gente? Voc� se alembra da vez que a gente apanhou como cachorro na pol�cia? Pra que eles fez aquilo com a gente? A vida da gente n�o presta pra nada... A gente n�o tem ningu�m... O Gordo tremia. Ant�nio Baldu�no olhava para dentro do copo de cacha�a. Viriato, o An�o, se levantou: � Estou chateando voc�s... Mas eu fico s� e fico matutando... � J� vai? � perguntou Joaquim. � Vou pegar a sa�da do cinema. Saiu se arrastando na bengala, curvo, coberto de farrapos. � Ele j� se acostumou a andar assim � disse Joaquim. � Por que � que ele s� conversa coisas tristes? � O Gordo n�o sabia, mas tinha pena porque era muito bom. � Ele sabe mais do que a gente � afirmou Ant�nio Baldu�no. Na outra mesa um mulato de pastinha explicava a um negro: � Mois�s mandou parar o mar e atravessou com os crist�o todos... � Eu converso � para me divertir � falou Joaquim. O Gordo se queixou: � Ele n�o devia ter feito isso hoje que era dia do meu anivers�rio... � O qu�? � Contar coisa triste... Tirou toda a gra�a. � Nada. Vamos fazer uma farra na casa de Z� Camar�o. A gente arranja umas morenas � convidou Ant�nio Baldu�no. O Gordo pagou as despesas. Na outra mesa o mulato contava a hist�ria do Rei Salom�o que tinha seiscentas mu latas. � Macho bom � disse Antonio Baldu�no soltando uma gargalhada. Fizeram a farra, se entupiram de cacha�a, amaram umas cabrochas bem bonitas, mas n�o conseguiram esquecer Viriato, o An�o, que n�o tinha ningu�m para tratar da

sua maleita. Joana fazia cenas por causa de outras mulatas, que eram amadas igualmente por Ant�nio Baldu�no. Mulata que aparecesse na sua frente era mulata amigada com ele. Na for�a dos seus dezoito anos fortes e malandros criara um grande prest�gio entre as cabrochas da cidade, empregadas, lavadeiras, negrinhas que vendia acaraj� e abar�. Ele sabia conversar com elas e terminava sempre por lev�-las para o areal, onde se enroscavam sem sentir a areia que entrava pela carapinha. Ele as amava e n�o as via mais. Passavam pela sua vida como aquelas nuvens que passavam pelo c�u, e que serviam para ele fazer as compara��es com elas: � Os olhos de voc� de t�o pretos parecem aquela nuvem... � Xi! vai chover... � Ent�o vamos para casa... Eu sei um lugar onde a gente fica bem abrigado. Por�m Joana tinha aquele perfume no cangote. Se agarrava a ele, brigava quando sabia que o negro dera em cima de uma cabrocha qualquer, dizem at� que fez feiti�o para que ele n�o a abandonasse. Tinha amarrado numa cueca do amante penas de galinha preta, e uma farofa de azeite-de-dend� onde cinco vint�ns de cobre apareciam. P�s tudo isso na porta de Ant�nio Baldu�no numa noite de lua cheia. Na festa da casa de Arlindo, em Brotas, fizera um escarc�u danado, s� porque Ant�nio Baldu�no dan�ara algumas vezes com Delfina, uma mulata sarar�. Quisera dar na outra, chegou a arrancar o sapato do p�. Ant�nio Baldu�no ria alto, gozando a disputa das duas. Em casa Joana perguntou: � O que foi que voc� achou de bonito naquela peste? � Voc� t� com ci�me dela? � Eu? V� l�... Daquele couro... uma bruaca velha caindo de podre... N�o sei o que � que voc� viu nela. � Isso � que voc� n�o sabe... Ela tem seus segredos... Ant�nio Baldu�no ria e rolava com ela na cama cheirando o seu cangote perfumado. Lembrava-se de quando a conhecera. Fora numa festa no Rio Vermelho. Dera em cima dela de longe, tocando coisas no viol�o. Ela ficou toda ca�da. No outro dia, que era um domingo, se encontraram e foram � matin� do Ol�mpia. Ela lhe contara uma hist�ria muito comprida para provar que era donzela e ele acabara acreditando. Ficou desinteressado mas foi ao encontro marcado para quinta-feira porque n�o tinha o que fazer naquela noite. Ficaram passeando no Campo Grande, ele sem ter conversa porque ela era donzela e donzelas n�o interessam ao negro. Perto da hora de voltar para o emprego ela contou: � Olhe, eu vi que voc� � bonzinho mesmo e respeitador... Pois eu vou falar a verdade para voc�. Eu n�o sou donzela, n�o... � Ah! n�o �, n�o? � Foi meu tio, um tio que morava l� em casa. Faz tr�s anos. Eu estava sozinha, mam�e tinha ido trabalhar... � E seu pai? � Nunca conheci... Meu tio se aproveitou, me pegou e foi a pulso... � Que desgra�ado... � no fundo Ant�nio Baldu�no simpatizava com o tio. � Nunca mais conheci homem nesses tr�s anos... Agora gostei de voc�... Ant�nio Baldu�no desta vez estava conhecendo que era tudo inven��o da cabrocha, mas n�o disse nada. N�o deixou ela voltar para o emprego naquela noite, e, como n�o tinha para onde a levar, foi mesmo para o cais do porto, para diante dos navios e do mar. Depois alugaram aquele quartinho nas Quintas, onde diariamente Joana mentia e ciumava. O negro n�o acreditava mas come�ava a se aborrecer. Estava na Lanterna dos Afogados, certa noite de temporal, quando o Gordo entrou afobado. Joaquim, que conversava com Ant�nio Baldu�no, avisou: � L� vem o Gordo.. � Voc�s sabem o que aconteceu? � Os estivadores acharam um defunto no cais.

Aquilo era comum e eles n�o se impressionaram. Mas o Gordo acrescentou: � Era Viriato. � Quem? � Viriato, o An�o. Sa�ram correndo. L� estava na borda do cais. Um grupo de homens cercava o corpo. Devia ter passado uns tr�s dias na �gua, pois inchara e crescera. Os olhos muito abertos pareciam fitar o grupo. O nariz j� andava meio comido pelos peixes e sentia-se dentro do corpo siris que faziam um barulho esquisito. Pegaram o corpo e levaram para a Lanterna dos Afogados. Juntaram duas mesas e o botaram em cima. Os siris faziam barulho por debaixo da pele do cad�ver. Pareciam chocalhos tocando. Seu Ant�nio trouxe uma vela do balc�o para enfiar na m�o que j� n�o abria. Joaquim disse: � S� cresceu depois de morto. O Gordo estava rezando: � Coitado!... N�o tinha ningu�m por ele. Uns homens que bebiam cacha�a vieram ver. As mulheres olhavam e se afastavam com medo. Seu Ant�nio ainda segurava a vela, pois ningu�m tinha coragem de ir botar na m�o do defunto. Ant�nio Baldu�no pegou a vela e se aproximou do morto. Abriu a m�o grossa do afogado e meteu a vela dentro. Falou: � Ele era sozinho, gente... Ele tava procurando acertar com o caminho de casa e entrou pelo mar. Ningu�m entendia. Algu�m perguntou onde ele morava. Jubiab� que vinha chegando quis saber: � Boa noite pra oc�s todos. O que foi? � Ele tava, pai Jubiab�, procurando o olho da piedade. Mas ele n�o achou nunca e se matou. Ele n�o tinha nem pai nem m�e, nem ningu�m pra cuidar dele. Morreu porque n�o encontrou o olho da piedade. Ningu�m entendia mas tremeram quando Jubiab� disse: � �j� �nun f� ti ik�, �k�. O Gordo contava com muitos detalhes e de uma maneira muito triste a hist�ria de Viriato, o An�o, a um dos homens que bebiam cacha�a. Segundo o Gordo, uma vez Viriato vira tr�s anjos e uma mulher vestida de roxo que era sua m�e e o estava chamando para o c�u. A� se jogara na �gua. De repente, no meio de toda aquela gente, Ant�nio Baldu�no se sentiu s� com o cad�ver e teve medo. Um medo doido. Ficou tremendo, batendo os queixos. Se lembrou de todo mundo: sua tia Lu�sa que enlouquecera, Leopoldo que fora assassinado, Rozendo doente gritando pela m�e, Felipe, o Belo, debaixo do autom�vel, o velho Salustiano se suicidando no cais, o corpo de Viriato, o An�o, cheio de siris que chocalhavam. E pensou que eram todos eles muito infelizes, vivos e mortos. E os que nasceriam depois tamb�m. S� n�o sabia por que eram t�o infelizes. O temporal apagou a luz da Lanterna dos Afogados. Macumba

Foi feito despacho de Exu, para que ele n�o viesse perturbar a boa marcha da festa. E Exu foi para muito longe, para Pernambuco ou para a �frica. A noite ca�a pelos fundos das casas e era aquela noite calma e religiosa da Bahia de Todos os Santos. Da casa do pai-de-santo Jubiab� vinham sons de atabaque, agog�, chocalho, caba�a, sons misteriosos da macumba que se perdiam no pisca-pisca

das estrelas, na noite silenciosa da cidade. Na porta, negras vendiam acaraj� e abar�. E Exu, como tinham feito o seu despacho, foi perturbar outras festas mais longe, nos algodoais da Virg�nia ou nos candombl�s do Morro da Favela. Num canto, ao fundo da sala de barro batido, a orquestra tocava. Os sons dos instrumentos ressoavam mon�tonos dentro da cabe�a dos assistentes. M�sica enervante, saudosa, m�sica velha como a ra�a, que sa�a dos atabaques, agog�s, chocalhos, caba�as. A assist�ncia apertada em volta da sala, junto � parede, estava com os olhos fitos nos og�s que ficavam sentados em quadrado no meio da sala. Em torno dos og�s giravam as feitas. Os og�s s�o importantes, pois eles s�o s�cios do candombl�, e as feitas s�o as sacerdotisas, aquelas que podem receber o santo. Ant�nio Baldu�no era og�, Joaquim tamb�m, mas o Gordo ainda n�o o era e estava no meio da assist�ncia; bem junto de um homem branco e magro, calvo, que espiava a cena muito atento, procurando acompanhar a m�sica mon�tona com pancadas nos joelhos. Do outro lado um jovem negro de roupa azul estava envolvido pela m�sica e pelos c�nticos, esquecido de que tinha vindo observar. O resto da assist�ncia era formada por homens pretos, homens mulatos, que se apertavam de encontro a negras gordas, vestidas com an�guas e camisas decotadas e colares no pesco�o. As feitas dan�avam lentamente sacudindo o corpo. De repente uma negra velha que estava encostada parede da frente, perto do homem calvo, e que de h� muito tremia nervosa com a m�sica e com os c�nticos, recebeu o santo. Foi levada para a camarinha. Mas como ela n�o era feita na casa, ficou l� at� que o santo a abandonou e foi pegar uma negrinha mo�a que tamb�m entrou para o quarto das sacerdotisas. O orixal� era Xang�, o deus do raio e do trov�o, e como desta vez ele tinha pegado uma feita, a negrinha saiu da camarinha vestida com roupas do santo: vestido branco e contas brancas pintalgadas de vermelho, levando na m�o um bast�ozinho. A m�e do terreiro puxou o c�ntico saudando o santo: �Edur� d�min lonan � y�!� A assist�ncia cantou em coro. �A umb� k�� w� j�!� E a m�e do terreiro estava dizendo no seu c�ntico nag�: �Abram alas para n�s, que viemos dan�ar�. As feitas rodavam em torno dos og�s e a assist�ncia reverenciava o santo pondo as m�os para ele, os bra�os em �ngulos agudos, as palmas das m�os voltadas para o orixal�: � �k�! Todos gritavam: � �k�! �k�! Os negros, as negras, os mulatos, o homem calvo, o Gordo, o estudante, toda a assist�ncia animava o santo: � �k�! �k�! Ent�o o santo penetrou no meio das feitas e dan�ou tamb�m. O santo era Xang�, o deus do raio e do trov�o, e trazia contas brancas pintalgadas de vermelho sobre o vestido branco. Veio e reverenciou Jubiab� que estava no meio dos og�s e era o maior de todos os pais-de-santo. Deu outra volta dan�ando e reverenciou o homem branco e calvo que estava ali por convite de Jubiab�. O santo reverenciava curvando-se tr�s vezes diante da pessoa, depois a abra�ava, apertando-lhe os ombros, e punha a cara ora de um lado ora de outro da do reverenciado. A m�e do terreiro cantava agora: �Iya ri d� gl� � Afi d� si �m�n l�w� Afi il� si �m�n l�run.� e ela estava dizendo que: �A m�e se enfeita de j�ias,

Enfeita de contas o pesco�o dos filhos E p�e novas contas no pesco�o dos filhos...� E os og�s e a assist�ncia faziam o coro pronunciando uma onomatop�ia que indicava o ru�do das contas �que estavam todas a trincar�: ��mir� w�nr�n w�nr�n w�nr�n �mir�. Foi quando Joana, que j� dan�ava como se estivesse em transe, foi possu�da por Omolu, a deusa da bexiga. E saiu da camarinha vestida de roupa multicor, onde predominava o vermelhovivo, as cal�as parecidas �quelas velhas ceroulas, as pontas bordadas aparecendo sob a saia. O tronco estava quase nu, um pano branco amarrado nos peitos. E o tronco de Joana era perfeito de beleza, os seios duros e pontiagudos furando o pano. Mas ningu�m via nela a negrinha Joana. Nem Ant�nio Baldu�no via a sua amante Joana, que dormia sem sonhar no areal do cais do porto. Quem estava ali, de busto despido, era Omolu, a deusa terr�vel da bexiga. Da m�e do terreiro vinha a voz mon�tona saudando a entrada do santo: �Edur� d�min lonan � y�!� Sons de atabaque, agog�, caba�a, chocalho. M�sica que n�o mudava, que se repetia sempre, mas que excitava doida- mente. E o coro da assist�ncia: �A umb� k�� w� j�!� Reverenciavam o santo: � �k�! �k�! E Omolu, que dan�ava entre as feitas, veio e reverenciou Ant�nio Baldu�no. Depois reverenciou pessoas da assist�ncia que podiam entrar para a casa. Reverenciou o Gordo, reverenciou o estudante negro que era geralmente simpatizado, reverenciou o homem calvo, reverenciou Roque e v�rios outros. Agora todos estavam excitados e todos queriam dan�ar. Omolu vinha e tirava mulheres da assist�ncia para dan�ar. Ant�nio Baldu�no movia o tronco como se estivesse remando. Estiravam os bra�os saudando o santo. Um ar de mist�rio se espalhava pela sala e vinha de toda parte, dos santos, da m�sica, dos c�nticos e, principalmente, de Jubiab�, centen�rio e pequenino. Cantavam em coro outra can��o de macumba: ���l� biri � b�aj� gb� k� a p�hind�.� e estavam dizendo que �o cachorro quando anda mostra o rabo�. Tamb�m Oxossi, o deus da ca�a, veio para a festa da macumba do pai Jubiab�. Vestia de branco, verde e um pouco de vermelho, um arco distendido com a sua flecha, pendurado de um lado do cinto. Do outro lado conduzia uma aljava. Trazia daquela vez, al�m do capacete de metal com casco de pano verde, um espanador de fios grossos. E n�o � sempre que Oxossi, o deus da ca�a, o grande ca�ador, traz o seu espanador de fios grossos. Os p�s descal�os das mulheres batiam no ch�o de barro, dan�ando. Requebravam o corpo ritualmente, mas esse requebro era sensual e dengoso como corpo quente de negra, como m�sica dengosa de negro. O suor corria e todos estavam tomados pela m�sica e pela dan�a. O Gordo tremia e n�o via mais nada sen�o figuras confusas de mulheres e santos, deuses caprichosos da floresta distante. O homem branco batia com os sapatos no ch�o e disse para o estudante: � Eu caio j� na dan�a... Jubiab� era reverenciado pelo santo. Bra�os em �ngulos agudos saudavam Oxossi, o deus da ca�a. Havia quem apertasse os l�bios e m�os que tremiam, corpos que tremiam no del�rio da dan�a sagrada. Foi quando, de s�bito, Oxal�, que � o maior de todos os orix�s, e que se divide em dois � Oxodian, que � o mo�o, Oxoluf�, que � o velho, apareceu derrubando Maria dos Reis, uma pretinha de seus quinze anos, de corpo virgem e roli�o. Ele apareceu, Oxoluf�, Oxal� velho alquebrado, arrimado a um bord�o com lantejoulas. Quando saiu da camarinha vinha totalmente de branco e recebeu a sauda��o da assist�ncia que se curvou ainda mais � Ok�! Ok�! Foi s� ent�o que a m�e do terreiro cantou: �� inun �j� 1�� � l�, inun li a � l�. Ela estava avisando:

�O povo da feira que se prepare. Vamos invadi-la�. E a assist�ncia em coro: ��r� �j� � par� m�n, � inun �j� li a � l� �Povar�u, cuidado, entraremos na feira.� Sim, eles entrariam na feira, porque estavam com Oxal�, que � o maior de todos os orix�s. Oxoluf�, que era Oxal� velho, s� reverenciou Jubiab�. E dan�ou entre as feitas at� que Maria dos Reis caiu estremunhando no ch�o, assim mesmo sacudindo o corpo no jeito da dan�a, espumando pela boca e pelo sexo. Na sala estavam todos enlouquecidos e dan�avam todos ao som dos atabaques, agog�s, chocalhos, caba�as. E os santos dan�avam tamb�m ao som da velha m�sica da �frica, dan�avam todos os quatro entre as feitas ao redor dos og�s. E eram Oxossi, o deus da ca�a, Xang�, deus do raio e do trov�o, Omolu, deusa da bexiga, e Oxal�, o maior de todos, que se espojava no ch�o. No altar cat�lico, que estava num canto da sala, Oxossi era S�o Jorge; Xang�, S�o Jer�nimo; Omolu, S�o Roque e Oxal�, o Senhor do Bonfim, que � o mais milagroso dos santos da cidade negra da Bahia de Todos os Santos e do pai-de-santo Jubiab�. � o que tem a festa mais bonita, pois a sua festa � toda como se fosse candombl� ou macumba. Na sala tinham oferecido pipocas � assist�ncia e l� dentro foi servido xinxim de bode e de carneiro com arroz-de-hau��. Nas noites de macumba os negros da cidade se reuniam no terreiro de Jubiab� e contavam as suas coisas. Ficavam conversando noite afora, discutindo os casos acontecidos nos �ltimos dias. Mas naquela noite eles estavam meio encabulados por causa do homem branco que tinha vindo de muito longe s� para assistir � macumba de pai Jubiab�. O homem branco comera muito xinxim de bode e lambera os bei�os com o arroz-de-hau��. Ant�nio Baldu�no soubera que este homem fazia ABC e andava correndo o mundo todo No princ�pio pensara que ele fosse marinheiro. O Gordo afirmava que ele era andarilho. Fora aquele poeta que comprava os seus sambas quem lhe trouxe o homem branco. O homem queria ver as macumbas e o poeta disse que s� Ant�nio Baldu�no tinha prest�gio para conseguir que ele penetrasse na macumba de Jubiab�. Mas apesar dos elogios, Ant�nio Baldu�no n�o se sentira muito disposto a falar com Jubiab�. Isso de levar brancos, e principalmente desconhecidos, para as macumbas, n�o dava certo. Podia ser um pol�cia que ia s� para prender todo mundo. Uma vez tinham metido Jubiab� na chave, o pai-de-santo passara a noite l� e tinham levado Exu. Foi preciso que Z� Camar�o, que era fin�rio como ele s�, fosse buscar o Orix�-l� na pr�pria sala do delegado, nas barbas do soldado. Quando o malandro chegara com Exu debaixo do casaco foi uma festa. E houve uma macumba que durou a noite toda para desagravar Exu que estava furioso e poderia perturbar as outras festas depois. Era por isso que Ant�nio Baldu�no n�o queria levar o branco. E s� falou com Jubiab� quando o estudante negro, que se dava com ele, veio pedir: � Eu garanto pelo homem... � como se fosse eu. A� o negro quis saber toda a vida do branco. Quando soube que ele vivia correndo o mundo vendo as coisas todas, se entusiasmou. Quem sabe se um dia aquele homem n�o escreveria seu ABC? O branco se despediu depois de dizer a Jubiab� que aquilo fora a coisa mais bonita que ele j� vira. O estudante foi com ele e os negros como que respiraram. Agora podiam conversar, discutir suas coisas, falar no que gostavam, mentir � vontade. O Rosado falou para Ant�nio Baldu�no: � Voc� j� viu a tatuagem nova que eu fiz? � N�o. O Rosado era um marinheiro que passava na Bahia de quando em vez e que um dia trouxera not�cias de Z� Casquinha que navegava em mares distantes, e que at� j� falava l�ngua de gringo. O Rosado trazia as costas inteiramente tatuadas com nomes de mulheres, um vaso de flores, um punhal e um chicote. Ficou rindo, Ant�nio Baldu�no admirou com uma certa inveja:

� T� bonito... � Tem um americano no navio que tem um mapa nas costas. Uma beleza, rapaz... Ant�nio Baldu�no se lembrou do homem branco. Ele devia ver aquilo. Mas ele fora embora e parecia que ia fugindo porque os negros estavam com vergonha dele. Ant�nio Baldu�no vai mandar fazer uma tatuagem nas costas. Mas n�o sabe ainda o que vai mandar botar. Pelo seu gosto botaria o mar e o retrato de Zumbi dos Palmares. Tem um negro no cais que traz tatuado em toda a extens�o das costas o nome de Zumbi. Dami�o, um negro velho, sorri. � Oc�s quer ver costa marcada? Jubiab� faz um gesto para ele n�o mostrar. Mas ele j� arrancou a camisa e aparecem a costas. Todos v�em que a sua carapinha j� � branca. Nas costas est�o as marcas do chicote. Fora surrado nas fazendas, andara nos troncos no tempo da escravid�o. Ant�nio Baldu�no viu logo abaixo das chicotadas uma marca de queimadura: � Que foi isso, meu tio? Quando Dami�o compreende que ele fala da queimadura, fica de repente envergonhado e cobre as costas. Fica sem falar, olhando a cidade iluminada l� embaixo. Maria dos Reis sorri para Ant�nio Baldu�no. Tamb�m os velhos que foram escravos podem ter um segredo. Como Joana tivesse ido embora, sozinha, cheia de ci�mes, e Maria dos Reis tamb�m se retirasse para a casa de sua m�e, Ant�nio Baldu�no desceu com o Gordo e Joaquim. Levava o viol�o para fazer uma farra. Mas o Gordo foi logo embora, pois morava longe com a sua av�, uma velha octogen�ria, de cavanhaque, que h� muito tempo perdera a no��o da realidade e vivia num mundo diferente, contando casos que atrapalhava com outros, misturando as figuras, sem chegar jamais ao fim da hist�ria. Em verdade ela n�o era av� do Gordo coisa nenhuma. O Gordo � que tinha inventado aquilo com vergonha de ter recolhido e de sustentar aquela velha que antes andava solta na cidade. Mas fazia como se ela fosse sua av�, levando-lhe comida, conversando horas e horas com ela, se recolhendo cedo para que a velha n�o ficasse sozinha. �s vezes encontravam o Gordo com um corte de fazenda e pensavam que ele ia levar para alguma cabrocha faceira. � � pra minha av�, coitadinha... Ela gasta muita roupa porque se deita no ch�o sujo. J� est� caduca... � Ela � sua av� por parte de pai ou de m�e, Gordo? O Gordo se atrapalhava. Os outros bem sabiam que o Gordo nunca conhecera pai e m�e. Mas o Gordo tinha uma av� e muitos deles o invejavam. Depois que o Gordo se despediu, Ant�nio Baldu�no e Joaquim vieram descendo a Ladeira da Montanha, assoviando um samba. A ladeira estava deserta e silenciosa. Unicamente numa janela pobre, iluminada por um fif�, uma mulher estendia fraldas de rec�m-nascido. E ouviam a voz de um homem que falava dentro do quarto: � Filhinho... Filhinho... Joaquim disse: � Aquele amanh� vai dormir no trabalho... T� fazendo de ama-seca. Ant�nio Baldu�no n�o respondeu nada. Joaquim continuou: � N�o adianta... Pra qu�? � O qu�? � Nada... nada... Ant�nio Baldu�no perguntou: � Voc� j� reparou como o Gordo � bom? � Bom? � Joaquim n�o tinha reparado... � Bom, sim. � um sujeito bom. Ele tem o olho da piedade bem aberto. � Chegou a vez de Joaquim ficar calado. Logo ap�s soltou uma gargalhada: � � mesmo... O Gordo � um sujeito bom... � E de que voc� t� rindo? � Nada. � que agora eu vi que o Gordo � um sujeito bom. Continuaram a descida calados. Ant�nio Baldu�no revia a cena da macumba, o

homem calvo que viajara o mundo todo. O homem tinha ido embora, a verdade � que o homem tinha fugido. Ant�nio Baldu�no pensava que aquele homem fosse Pedro Malazarte. Mas ele tinha fugido quando vira que os negros estavam envergonhados. Lembrou-se de Zumbi dos Palmares. Se tivesse havido outro Zumbi, aquele negro velho n�o teria sido chicoteado. Seria um lutador. Ent�o n�o precisaria se envergonhar de homem branco. O homem sa�ra num gesto de solidariedade, e n�o voltaria jamais. Por�m, um dia aquele homem iria escrever o ABC de Ant�nio Baldu�no, um ABC her�ico, onde cantaria as aventuras de um negro livre, alegre, brig�o, valente como sete. Pensando nisso Ant�nio Baldu�no se alegrou de novo e riu: � Sabe de uma coisa, Joaquim? Eu acabo tirando o caba�o daquela negrinha... � De qual? � Joaquim se interessou vivamente. � Maria dos Reis. Ela t� toda ca�da pro meu lado... � Qual �? � Aquela que Oxal� pegou. Aquela novinha... � Aquilo � coisa fina, Baldo. Baldo, ela � noiva de um soldado do ex�rcito. Voc� vai se meter em funduras... � Quem disse... Ela t� caidinha pelo degas... Tenho nada com soldado. Chamo a morena nos peitos, isto sim... O soldado que se dane. � Joaquim bem sabia que Ant�nio Baldu�no amaria a mulata sem se importar com o soldado. Mas ele n�o gostava de barulho com soldado do ex�rcito e aconselhou: � Deixe a morena em paz, Baldo... Esquecera que Ant�nio Baldu�no quando morresse ia ser cantado num ABC e que todos os her�is de ABC amam donzelas com quem se amigam romanticamente pelo espa�o de uma noite e brigam com soldados do ex�rcito. Andaram a Cidade Baixa que estava dormindo. N�o encontraram ningu�m para fazer uma farra. A Lanterna dos Afogados estava fechada. Ningu�m pelas ruas, nem uma cabrocha para levarem para o areal. Nem uma venda onde bebessem um rabo-de-galo. Foram andando ao l�u, Joaquim abrindo a boca com sono. Entraram por um beco e viram, ent�o, um casal de mulatos que conversavam como namorados recentes. Joaquim avisou: � Uma mulata, seu mano... � Aquela, Joaquim, t� ali, est� comida. � T� com um macho, Baldo. � Voc� vai ver as minhas artes. E de um pulo Ant�nio Baldu�no se aproximou da mulata. Deu-lhe um empurr�o com for�a, a mulher caiu na rua. � Ent�o, sinh� cachorra, eu fico trabalhando e voc� vem se esfregar com um macho... Sem-vergonha, vai ver a surra que vai levar. � Virou-se para o mulato. Mas antes que dissesse alguma coisa este perguntou: � Ela � sua am�sia? Eu n�o sabia. � Minha am�sia? � minha mulher, casada no padre, ouviu? No padre... Avan�ava para o homem. � Eu n�o sabia. O senhor me desculpe... Ela n�o me disse nada. Saiu de costas e na primeira curva desapareceu. Ant�nio Baldu�no ria como um perdido. Joaquim que tinha ficado afastado, porque um homem � para um homem, se aproximou: � Deu certo, hein? Riram os dois em gargalhadas alegres que despertavam a cidade adormecida. Veio um riso do ch�o. Era da mulherzinha que se levantava. Uma mulata desdentada, bem clara, que nem valera a pena tanto esfor�o. Mas como n�o havia mesmo outra mulher o jeito que tiveram foi levar a desdentada para o areal. Ant�nio Baldu�no foi primeiro, depois foi Joaquim. � Ela n�o tem dente, mas � bem boa � disse Joaquim. � N�o pagou a pena � fez Baldu�no. Deitou no cais, pegou do viol�o e come�ou a tocar. Joaquim meteu os p�s na �gua. A mulher, que estava acabando de endireitar o vestido, chegou para perto deles e ficou cantando a cantiga que Ant�nio Baldu�no tocava ao viol�o. Primeiro

baixinho, mas logo depois em voz alta, e ela tinha uma voz bonita e esquisita, quase masculina. E encheu o cais com a sua voz, at� que os homens dos saveiros acordaram, os marinheiros apareceram na amurada dos navios e o dia clareou sobre o mar. Quando o dia clareou, naquela janela pobre do sobrado da Ladeira da Montanha, a mulher acordou o homem. Ele ia para uma f�brica distante e tinha que acordar cedo. Disse para a mulher apontando o filhinho: � Essa coisinha �-toa n�o me deixou dormir... Tou morto de sono. Sacudiu �gua na cara, olhou a manh� clara, bebeu o caf� ralo. A mulher avisou: � N�o tem p�o por causa do leire para a crian�a. O homem fez um gesto de resigna��o, beijou o filho, bateu no ombro da mulher, puxou um cigarro vagabundo: � Mande a b�ia ao meio-dia. Quando desceu, na manh� que estava ficando azulada, para a Ladeira da Montanha, em caminho da f�brica, se encontrou com Ant�nio Baldu�no e Joaquim que vinham com a desdentada atr�s. Baldu�no gritou: � Jesu�no, � voc�? Era Jesu�no que fora mendigo e moleque como eles. Estava quase irreconhec�vel de t�o magro. Joaquim riu: � Voc� t� malzinho, mano... � Nasceu um filhinho meu, Baldo. Quero que voc� seja o padrinho. Um dia lhe levo para conhecer minha patroa... Foi embora, ladeira abaixo, para a f�brica que ficava em Itapagipe. E ele tinha que ir a p� por causa do leite do filhinho. A mulher estendia fraldas na janela e tamb�m era magra e p�lida. Para ela n�o .tinha ficado nem p�o nem caf�. Lutador

A casa de Jubiab� era pequena mas bonita. Ficava num centro de terreno no Morro do Capa-Negro, um grande terreiro na frente, um quintal se estendendo nos fundos. A sala espa�osa ocupava a maior parte da casa. Uma mesa com um banco de cada lado, onde jantavam Jubiab� e as suas visitas, e uma cadeira espregui�adeira, virada para a porta do quarto em que o pai-de-santo dormia. Nos bancos, em redor da mesa, negros e negras conversavam. Estavam tamb�m dois espanh�is e um �rabe. Nas paredes retratos in�meros, emoldurados em conchas brancas e rosas, mostravam parentes e amigos do pai-de-santo. No nicho um orix�-l� negro confraternizava com um quadro do Senhor do Bonfim. O quadro representava o santo salvando um navio de um naufr�gio. Por�m, o �dolo era muito mais bonito, pois era uma negra de belo corpo, segurando com uma das m�os o seio pujante e bem-feito, num gesto de oferecimento. E era Ians�, deusa das �guas, que os brancos chamam Santa B�rbara. Jubiab� saiu do quarto, vestido num lindo camisu bordado nos peitos. O camisu se estendia at� aos p�s e ele n�o trazia outra roupa. Um negro se levantou da mesa e ajudou o pai-de-santo a se sentar. Os negros vieram e beijaram a m�o de Jubiab�. Tamb�m os espanh�is e o �rabe. Um dos espanh�is estava com o queixo inchado, um pano amarrado por baixo. Chegou para perto do pai-de-santo e disse: � Pai Jubiab�, yo estou com um dente danado pra doer. Caramba! N�o me deixa trabajar, nem hacer nada. Caramba! J� gastei um dinheir�o com o dentista e nada. N�o me resta nada a hacer!

Tirou o pano do queixo. Apareceu uma incha��o enorme. Jubiab� medicou. � Bote ch� de malva e reze assim: �S�o Nicodemos, sarai esse dente! Nicodemos, sarai esse dente! sarai esse dente! esse dente! dente!� Completou: � Vosmec� faz a ora��o na praia. Escreve na areia e vai apagando de cada vez uma palavra, n�o sabe? Depois vai pra casa e bota o ch�. Mas sem a ora��o n�o presta. O espanhol deixou cinco mil-r�is e foi aplicar o rem�dio. Depois veio um negro que queria fazer um despacho. Falou em voz baixa, pr�ximo ao ouvido de Jubiab�. O pai-de-santo se levantou e ajudado pelo negro penetrou no quarto. Voltaram minutos depois e no dia seguinte apareceu um feiti�o forte, farinha misturada com azeite-de-dend�, quatro mil-r�is em pratas de dez tost�es, dois vint�ns de cobre e um urubu novinho ainda vivo, na porta de Henrique Padeiro que pegou uma doen�a misteriosa e morreu dela tempos ap�s. Uma negra tamb�m queria um feiti�o, mas esta n�o falou em voz baixa nem entrou para o quarto. Foi dizendo: � Aquela sem-vergonha da Marta tomou meu homem. Eu quero que ele venha de novo pra casa. � A negra estava revoltada. � Eu tenho filhos, ela n�o tem... � Voc� arranje uns cabelos dela e traga que eu fa�o tudo � respondeu Jubiab�. E desfilaram ante o pai-de-santo todos aqueles negros que queriam fazer despachos. Alguns foram rezados com ramos de mastru�o. Era assim que a cidade se enchia na madrugada seguinte de coisas-feitas que entulhavam as ruas e das quais os transeuntes se afastavam receosos. Vinha muitas vezes gente rica, doutores de anel, rica�os de autom�vel. Quando Ant�nio Baldu�no entrou na sala, era um soldado quem estava falando com o pai-de-santo. Ele procurava falar baixo, mas estava emocionado e todos ouviram a sua voz: � ... parece que n�o gosta mais de mim... deu pra n�o ouvir o que eu digo... acho que t� embei�ada por outro... mas eu n�o quero, pai... eu quero ela pra mim... eu gosto dela... sou doido por ela... A voz do soldado estava chorosa. Jubiab� perguntou qualquer coisa e ele respondeu � Maria dos Reis. Ant�nio Baldu�no estremeceu e logo sorriu. Come�ou a prestar aten��o � conversa. Mas Jubiab� estava despedindo o soldado. � S� trazendo uns cabelos de sovaco dela e uma ceroula sua. Eu fa�o que ela nunca mais largue vosmec�... Fica amarrada como cachorro. O soldado saiu de cabe�a baixa, sem olhar para os presentes, procurando n�o ser visto. Ant�nio Baldu�no chegou para perto de Jubiab�, sentou no ch�o. � Parece que ele gosta mesmo dela. � Voc� conhece ela, Baldo? � N�o � aquela que Oxal� pegou na festa? � O soldado gosta dela, vai fazer despacho... Tome cuidado, Baldo... � N�o tenho caga�o de soldado... � Mas ele gosta dela... � Parece mesmo, gente... Ficou esgravatando o ch�o com um peda�o de pau. Andava pelos dezoito anos mas parecia ter vinte. Era forte e alto como uma �rvore, livre como um animal e possu�a a gargalhada mais clara da cidade. Largou Joana, nunca mais viu aquela desdentada que tinha uma voz masculina e cantava os seus sambas, n�o quis mais saber de cabrochas que iam para o areal. Rondava em companhia do Gordo a casa de Maria dos Reis. Fez um samba para ela, um samba que dizia assim: �Eu gosto � de voc�, Maria.

Voc� tem meu cora��o, eu fui malandro um dia mas agora � voc� quem me judia...� Esse samba ele n�o quis vender. Cantou numa festa em que ela estava, olhando para ela. O soldado j� andava desconfiado e n�o tinha ainda arranjado os cabelos do sovaco da noiva para levar a Jubiab�. Maria dos Reis se contentava em sorrir. Olhava para o soldado com os olhos tristes por que sabia que o soldado gostava dela e que por ela mataria um. Lembrava-se da carta que ele enviara para a sua madrinha, Dona Branca Costa, pedindo a afilhada em casamento. Ela guardara em casa, bem no fundo do ba�. Dizia a carta: �Exma. Sra. Dona Branca Sauda��es cordiaes Hoje e como nunca sinto-me transportado para um sincerio e confortavel paraiso ahonde para mim sorena inten��es intimas e favoravel pelias quaes obriga-me adeclarar-me sinceriamente a sua Exlla que amo com um amor puro e santo a tua estimada Maria. Amor que jamais se apagar�, e sim pella evolu��o dos tempos e conjuntamente com a vossa atten�iossima bondade far� duplicar eternamente entre n�s um amor nos � de conduzir aos paramos da verdadeira felicidade. E com estas intimas inten��es aproveito esta mas radiante oportunidade para pedir a V. Esclla. em casamento � tua gentil e encantadora Maria. Que sera aminha maior aventura possuir esta brilhantissima prenda do vosso confortavel cora��o. Pella quar esforcarei-me para muito breve dar a V. Eclla. e aos demais da vossa nobre familia esta Brilhantissima sartifa��o. Serto de que V. Exclla. n�o furtar-se-� ao meu pedido aguardo uma resposta favoravel. Retero-me aprezentando a V. Exlla. os meus protestos de ellevada estima e considera��es. Sub. O.S. Osorio, soldado do 19�. A madrinha n�o queria que ela casasse com um soldado, mas ela fez p� firme e ficou noiva, se bem tivesse de deixar a casa da madrinha, O cas�rio j� estava marcado para agosto, logo depois que ele pegasse as divisas de cabo que o capit�o j� lhe havia prometido, quando Maria dos Reis conheceu na macumba de Jubiab� o negro Ant�nio Baldu�no que era malandro e fazia sambas. Ele n�o mandara cartas, n�o falara em casamento. Lhe dera quando passavam para a sala de jantar na festa de Ribeirinho um cart�o assim: DOBRANDO ESTE CANTO DOBRANDO ESTE CANTO SER� O SIM SER� O N�O POR SI MINHA ALMA SOFFRE E FELIZ SERIA SE A SRTA. ACCEITASSE OS MEUS PROTESTOS DE AMOR. Devolvendo o cart�o intacto dar� uma esperan�a Escondeu o cart�o no seio. Fugiu para o quarto da mulher de Seu Ribeirinho, onde estavam os chap�us dos homens e o viol�o de Ant�nio Baldu�no. C�ndida fora com ela e viu o cart�o: � De quem �, mulher? � Adivinhe... � Sei l�... Pere a� que eu digo... � pensou. � N�o sei, n�o... � De Ant�nio Baldu�no... � Xi! Aquilo n�o � gente... � o sujo em figura de gente... N�o tem mulher que ele n�o pranche... Tome cuidado, dos Reis... � N�o sei por qu�. � E Os�rio? Os�rio era o soldado. Maria dos Reis ficou triste e em vez de dobrar o canto que dizia sim entregou o cart�o intacto. Para Ant�nio Baldu�no foi como se ela

tivesse dobrado o canto que dizia sim. Agora ia conversar com ela na porta da casa no fim de Brotas nos dias em que o soldado n�o aparecia. E o soldado s� aparecia nas quintas-feiras, s�bados e domingos. O resto da semana era de Ant�nio Baldu�no que j� sentira com as m�os o calor e a dureza daquele corpo virgem. Numa ter�a-feira houve festa do Cabula e Maria dos Reis foi com umas amigas. Encontraram Ant�nio Baldu�no no largo. O negro estava muito elegante de sapatos vermelhos e camisa vermelha. Fumava um charuto barato. Ficaram conversando. Numa barraca Ant�nio Baldu�no comprou um n�mero para ver a sorte de Maria dos Reis. Foram abrir o papel enroladinho e era o n�mero 41. O dono da barraca, um espanhol gordo, foi ver ao que correspondia. Gritou: � 41 � uma caixa de p�-de-arroz. Em cima vinha um papelzinho com uns versos. Era a sorte. �Vai haver muito choro, muita desgra�a, muita briga, tudo por causa de namoro s� por causa de intriga.� Ant�nio Baldu�no riu. Mas Maria dos Reis ficou triste: � E se Os�rio aparecesse, bem? Nem que fosse de prop�sito. Os�rio vinha fardado em dire��o ao grupo. Foi logo dizendo: � Eu j� tava desconfiado... Mas n�o queria dar cr�dito de verdade. Nunca pensei que voc� fizesse isso... A sua voz tinha aquele tom choroso de canto de igreja. Os�rio falou enquanto Maria dos Reis escondia o rosto nas m�os. As amigas riam, inquietas, dizendo �Seu Os�rio, n�o fa�a isso��. � D� seu jeito... � Baldu�no encolheu os ombros. O soldado abriu a m�o na cara de Ant�nio Baldu�no, mas o negro j� estava por baixo, as pernas batendo nas do soldado que caiu. Se levantou com o sabre na m�o. Ant�nio Baldu�no abriu a navalha: � Venha se � homem! � N�o tenho medo de macho... Maria dos Reis gritava: � Baldo, pelo amor de Deus... As amigas diziam: � Seu Os�rio... Seu Os�rio... � Eu n�o respeito farda � e Ant�nio Baldu�no foi arrancando o sabre do soldado que j� levava uma navalhada no rosto. Depois que desarmou o soldado largou a navalha e esperou Os�rio na escurid�o. Vinha gente, homens e guardas e mais soldados. Os�rio se atirou em cima de Baldu�no e recebeu um daqueles socos pesados do negro. Ficou estatelado no ch�o. Um gringo que apreciava a luta puxou Ant�nio Baldu�no: � V� embora que vem muito soldado a�. Bom soco... Depois eu quero encontrar com voc�... O negro levantou a navalha e abriu para os lados da casa de Maria dos Reis. Estava em tempo, pois de todos os cantos iam chegando soldados que ao ver o companheiro ferido come�aram a distribuir socos. E o barulho generalizou-se. Maria dos Reis escondeu Ant�nio Baldu�no no seu pr�prio quarto, sem que a m�e, que dormia, visse. E quando pela madrugada o negro saiu, o corpo da dos Reis ainda era macio e quente, mas n�o era mais virgem. Tinha sido melhor que Oxal�, o maior dos santos, Foi na Lanterna dos Afogados que dias ap�s, o negro Ant�nio Baldu�no encontrou o gringo que o ajudara a fugir. Ia entrando com o Gordo quando ouviu aquele psiu! Era o gringo: � Estou lhe procurando h� muito tempo. Desde aquele dia. Andei por todo o canto sem o achar. Onde se meteu? Puxava cadeiras, oferecia cigarros. Sentaram-se. Baldu�no agradecia:

� Se n�o fosse o senhor naquele dia, eu levava uma surra danada dos soldados. � Bom soco aquele... Belo soco... O Gordo que n�o tinha estado presente perguntou: � Que soco? � O que ele deu no soldado... Per la Madonna, que foi um belo soco. Pediu cerveja. � Voc� j� lutou boxe? � N�o. Eu sei � capoeira... � Pois voc� se quiser pode ser um campe�o... � Campe�o? � Per la Madonna, eu juro... Aquele soco... Formid�vel... Ficou olhando para as m�os enormes do negro. Apalpou os ombros, os bra�os de Ant�nio Baldu�no: � Um campe�o... um campe�o... Falava como quem tinha saudades de outros tempos. � Basta querer... Ant�nio Baldu�no queria. � Como? � Pode at� lutar no Rio depois e talvez na Am�rica do Norte... Bebeu o copo de cerveja: � Eu j� fui treinador, h� muito tempo... Fiz boxeadores que hoje s�o campe�es no mundo todo... Mas nenhum ag�entava aquele soco. Bonito. Quando sa�ram do botequim Ant�nio Baldu�no estava contratado por Luigi, o treinador, e o Gordo iria com eles como ajudante Sa�ram todos um pouco embriagados. No outro dia Ant�nio Baldu�no disse � dos Reis: � Agora n�o sou mais malandro... Sou jogador de boxe... Vou ser um campe�o... Depois vou para o Rio, para a Am�rica do Norte... � Voc� vai embora? � Lhe levo, meu bem. Era melhor que Oxal�, o maior dos santos. Os jornais anunciaram a primeira luta meses depois. Agora ele era Baldo, o negro. Luigi dava entrevistas e um jornal at� publicou um retrato de Ant�nio Baldu�no com o bra�o estendido para dar um soco, a outra m�o numa atitude de defesa. Maria dos Reis colou o retrato na parede do quarto. O advers�rio chamava-se Gentil, e dizia-se campe�o de peso pesado da armada. Na verdade era um estivador do cais do porto. No Largo da S� estavam todos os amadores das lutas de boxe e mais freq�entadores da Lanterna dos Afogados, inclusive Seu Ant�nio, os moradores do Morro do Capa-Negro, os amigos todos de Ant�nio Baldu�no. Primeiro entrou no tablado o juiz, um sargento do ex�rcito que estava � paisana. Falou: � Vamos ver uma luta braba. Pe�o ao p�blico muito respeito e aplausos. Chegou o Gordo trazendo um balde e uma garrafa. Veio tamb�m um amarelo com as mesmas coisas e ficou do outro lado. A� apareceu Ant�nio Baldu�no acompanhado de Luigi. O pessoal do morro, da Lanterna dos Afogados, dos saveiros e das canoas, gritou: � Ant�nio Baldu�no! Ant�nio Baldu�no! O juiz apresentou: � Baldo, o negro. Entrava o outro boxeur que era aplaudido pela assist�ncia: � Gentil, campe�o de todos os pesos da gloriosa armada � gritou o juiz. Palmas e gritos da assist�ncia. O pessoal do morro, dos saveiros e do botequim olhava o mulato com olhos ir�nicos: � Vai levar uma surra. Ant�nio Baldu�no tamb�m olhava o seu advers�rio e sorria. Luigi dava conselhos: � Soqueie com for�a. Na boca e nos olhos. Bem forte... O Gordo estava nervoso e rezava para que o amigo vencesse. Mas se lembrou que a luta de boxe era pecado e parou de rezar, amedrontado.

Soou um sinal e os lutadores avan�aram um para o outro. Atr�s a multid�o gritava. O negro Ant�nio Baldu�no foi desclassificado por ter aplicado um golpe de capoeira no meio da luta, que estava renhida, mostrando todas as grandes qualidades de Baldo, o boxeur. A assist�ncia n�o se conformou com o resultado, vaiou o juiz que saiu garantido pela policia. Os jornais publicaram o retrato de Ant�nio Baldu�no novamente, e um vendeu muito porque trouxe a sua biografia. Foi assim que descobriram que eram feitos por ele os sambas do poeta An�sio Pereira, fato que provocou esc�ndalo nos meios sociais e liter�rios da cidade. Concederam-lhe a revanche. Teve um grande p�blico e desta vez n�o foi aplaudido somente pelo pessoal do morro, dos saveiros, da Lanterna dos Afogados (Seu Ant�nio apostara vinte mil na vit�ria do negro) quando o juiz disse: � Baldo, o negro. Toda a assist�ncia vivou longamente. No quinto round o mulato Gentil n�o era mais campe�o da armada. Estava estendido no tablado, sem movi mentos. O Gordo enxugava o suor de Ant�nio Baldu�no. Depois foram todos beber na Lanterna dos Afogados os vinte mil que Seu Ant�nio ganhara. Quem viajou foi Maria dos Reis. Sua madrinha tivera outro filho e o marido que era funcion�rio p�blico foi transferido para o Maranh�o. Maria dos Reis foi com eles. Ant�nio Baldu�no teve saudades porque ela n�o lhe recordava Lindinalva p�lida e sardenta. Tomou um porre nessa noite e pensou em engajar como marinheiro olhando o navio que a conduzia. Ela levou o seu retrato com uma m�o estendida para dar um soco, sorrindo pela boca e pelos olhos. Derrubou todos os advers�rios que se interpunham entre ele e o campe�o da Bahia, um boxeur chamado Vicente, que deixara de lutar por falta de jogadores. Depois da apari��o de Ant�nio Baldu�no, por�m, com seus sucessivos triunfos, Vicente come�ou a treinar rigorosamente vendo no negro um perigo para o seu t�tulo. Uma semana antes j� a cidade estava cheia de cartazes. O desenho de dois homens que se soqueavam: VICENTE O CAMPE�O BAIANO DE TODOS OS PESOS x BALDO � O NEGRO EM DISPUTA DO CAMPEONATO BAIANO NO LARGO DA S� � DOMINGO Vicente deu uma entrevista aos jornais declarando que venceria no sexto round. Ant�nio Baldu�no respondeu, no dia seguinte, que no sexto round o campe�o baiano j� estaria dormindo no tablado. Trocaram-se desaforos e o p�blico se animou. Houve muita aposta e Ant�nio Baldu�no era o franco favorito. Antes do sexto round, Vicente dormia realmente no tablado e Baldo, o negro, era campe�o baiano de todos os pesos. Concedeu a revanche a Vicente. Venceu novamente. Luigi andava feito maluco e s� falava em vir para o Rio. Entabulara negocia��es com empres�rios da capital do pa�s. Ant�nio Baldu�no amava mulatas no areal, bebia na Lanterna dos Afogados, ia �s macumbas de Jubiab�, ria nas ruas da cidade a sua gargalhada clara. Apareceu por l� um campe�o carioca de boxe. Desafiou todo mundo, fez um barulho enorme. Acertaram uma luta com Ant�nio Baldu�no. Houve um grande interesse na cidade pelo choque dos dois campe�es. Na v�spera da luta Ant�nio Baldu�no conversava na Lanterna dos Afogados quando foi procurado pelo empres�rio do campe�o carioca. � Boa noite... � Boa noite... Ant�nio Baldu�no ofereceu cerveja. � Eu queria falar com voc� em particular.

O Gordo e Joaquim foram para outra mesa. � � o seguinte: voc� sabe, Cl�udio n�o pode perder... � N�o pode perder? � Pelo seguinte: ele est� me custando muito dinheiro. Se ele perder de voc� n�o pode lutar mais aqui... N�o �? � �... � Mas se ele ganhar luta de novo e luta com outros... Paga a despesa. � E da�? � Eu lhe dou cem mil-r�is para voc� perder. Depois voc� tem a revanche. Ant�nio Baldu�no levantou a m�o, mas a largou em cima da mesa. � Voc� j� falou com Luigi? � Luigi � um trouxa... Ele nem precisa saber disso. Sorriu: � E depois, antes da gente ir embora voc� tem a revanche... Est� bem? � O dinheiro est� a�? � Lhe dou depois da luta. � N�o. Eu n�o vou nisso. Se quiser dar hoje... � E se voc� n�o perder? � E se depois de eu perder e me esculhambar voc� n�o me pagar? Ant�nio Baldu�no tinha levantado. O Gordo e Joaquim espiavam da outra mesa. � N�o � preciso brigar � disse o empres�rio. � Sente... Olhou para o negro que emborcava o c�lice de cacha�a: � Acredito em voc�... Pegue aqui por baixo da mesa... Ant�nio Baldu�no pegou o dinheiro. Viu que era cinq�enta mil-r�is: � Voc� falou em cem!... � Dou os outros cinq�enta depois... � Assim n�o... � N�o tenho agora, � s�rio... � Se quiser � agora... Recebeu os cinq�enta que faltava e foi para a mesa do Gordo. Quando o empres�rio saiu, Ant�nio Baldu�no riu at� ficar com a barriga doendo. No dia seguinte, depois da luta e da sensacional derrota do campe�o carioca, o empres�rio veio procurar Ant�nio Baldu�no na Lanterna dos Afogados. Vinha com uma cara dos diabos: � Voc� � um tratante... Ant�nio Baldu�no ria. � Eu quero meu dinheiro... � Quem rouba ladr�o tem cem anos de perd�o... Vou aos jornais, vou � pol�cia... � V�... � Voc� � um ladr�o... Um ladr�o... Ant�nio Baldu�no botou tamb�m o empres�rio no ch�o. O pessoal do botequim, que n�o esperava essa nova luta, aplaudia. � Ele quis me comprar, gente... Me deu cem mil-r�is para eu perder para. aquele raqu�tico... Eu disse que perdia... � pra ele n�o querer comprar homem... Eu s� me vendo por amizade, gente... Agora vamos beber o dinheiro dele... A Lanterna dos Afogados ria. Ant�nio Baldu�no saiu e foi levar para a Zefa, uma cabrocha que viera do Maranh�o e trouxera um beijo da dos Reis para o amante (em vez de dar um dera muitos), o colar de contas vermelhas que comprara naquele dia com o dinheiro do empres�rio do campe�o carioca. Luigi falava seriamente em ir para o Rio. Sua carreira de boxeur terminou no dia em que Lindinalva ficou noiva. Nos jornais que anunciavam a sua luta com o peruano Miguez, Ant�nio Baldu�no leu a not�cia do noivado de �Lindinalva Pereira, filha do capitalista Comendador Pereira, desta pra�a, com o jovem advogado Gustavo Barreiros, rebento glorioso de uma das mais ilustres fam�lias baianas, poeta de versos rutilantes, orador primoroso�. Tomou um porre m�e, foi derrotado no terceiro round porque j� n�o podia

lutar, apenas recebia os socos que Miguez, o peruano, lhe aplicava. Correu que ele estava comprado. Ele n�o explicou a ningu�m o seu fracasso. Nem a Luigi que chorava nessa noite, arrancando os cabelos e praguejando, nem ao Gordo que olhava com aqueles olhos de quem espera sempre uma desgra�a. Nunca mais voltou ao tablado. Naquela noite fria da sua derrota, como n�o quisesse ir beber na Lanterna dos Afogados, foi para o Bar Bahia. Sentou numa mesa dos fundos com o Gordo e bebia silenciosamente quando um homem veio para eles e pediu que pagassem um trago. Baldu�no olhou: � Eu conhe�o esse sujeito... N�o sei de onde, mas conhe�o. O homem tinha os olhos vidrados e passava a l�ngua nos bei�os: � Um mata.bicho... Paga, camarada... Foi quando Ant�nio Baldu�no viu o talho que ele tinha no rosto: � Aquilo � obra minha... Ficou pensando, bateu a m�o na testa: � Voc� n�o � Os�rio? O Gordo acrescentou: � Um que era soldado... � �, eu j� fui sargento... Puxou uma cadeira e sentou: � J� fui sargento... � passava a l�ngua nos bei�os. � Um mata.bicho... Baldu�no ria. O Gordo tinha pena. � Depois veio uma mulher, uma mulher, ouviu? Bonita... Xi! bonita... S� vendo... Era minha noiva, viu... Eu tava esperando ser cabo... � Mas voc� n�o era sargento? � � isso mesmo; nem me lembro, eu acho que tava esperando ser capit�o. O capit�o tinha me prometido, ouviu... O capit�o... Me d� outro mata-bicho? Menino, traz outro mata-bicho que � o amigo aqui quem paga... Marcamos o cas�rio... Ia ser um fest�o... Ela era bonita... Bonita... Mas foi com outro... � E esse talho? � Ah! Foi o tal... Mas eu deixei ele com as tripas de fora... Ela era uma beleza... Beleza... � Era sim... � Voc� conheceu ela? � Voc� n�o se lembra? Beberam at� o fim da noite e sa�ram abra�ados, muito amigos, dando gargalhadas, esquecidos de Maria dos Reis e de que tinham sido soldado e boxeur. De repente o homem disse: � Voc� era o tal. E se afastou de Ant�nio Baldu�no. � Mas tamb�m perdi tudo... Se abra�aram de novo e foram cambaleando pela rua: � Ela era uma lindeza... Ant�nio Baldu�no confundia a negra Maria dos Reis com a branca Lindinalva. Cais

Grandes canoas im�veis sobre a �gua patada. Os saveiros, velas arriadas, dormiam na escurid�o. Assim mesmo davam id�ia de partida, de viagens por pequenos portos do Rec�ncavo com as suas grandes feiras. Mas agora os saveiros dormiam, os nomes pitorescos grava dos perto da proa: Paquete Voador, O Viajante sem Porto, Estrela da Manh�, O Solit�rio. Pela manh� sairiam r�pidos, atirados pelo vento, as velas soltas, cortando a �gua da ba�a. Iriam se abarrotar de verduras, de frutas, de tijolos, ou telhas. Correriam as feiras todas. Voltariam depois carregados de abacaxis cheirosos, O Viajante sem Porto � pintado de vermelho e corre como nenhum. Mestre Manuel dorme na proa. � um mulato velho que nasceu nos saveiros e morou sempre nos saveiros. Ant�nio Baldu�no sabe a hist�ria de todos estes saveiros e de todas estas canoas. Desde menino gosta de vir deitar aqui no areal do ca�s, a carapinha no travesseiro de areia, os p�s metidos dentro d��gua. A �gua � morna e gostosa, a estas horas da noite. Baldu�no, �s vezes, fica pescando, silencioso, o rosto se abrindo em sorrisos quando fisga um peixe. Por�m, em geral olha somente o mar, os navios, a cidade morta l� atr�s. Ant�nio Baldu�no tem vontade de sair, de viajar, de correr terras desconhecidas, de amar em areias desconhecidas mulheres desconhecidas. Miguez veio do Peru e lhe deu uma surra. Um navio apita no quebra-mar. Vai saindo iluminando a noite. � um navio sueco. Ainda h� pouco os marinheiros andavam pela cidade, bebendo cerveja nos bares, amando nos bra�os das mulatas da Barroquinha. Agora est�o no mar escuro, amanh� estar�o nalgum porto long�nquo com mulheres brancas ou amarelas. Um dia Ant�nio Baldu�no h� de engajar e correr mundo. Sempre sonhou com isso. Enquanto deitado na areia, olha os saveiros e as estrelas. O navio est� desaparecendo. A cidade estendia os bra�os das igrejas para o c�u. Do cais ele via as ladeiras, as casas velhas e enormes. As luzes brilhavam l� em cima e nuvens alvas corriam pelo c�u como bandos de carneiros. Pareciam tamb�m com os dentes de Joana. Ant�nio Baldu�no toda vez que arranja uma cabrocha diz a ela: � Seus dentes parecem nuvens... Mas agora que ele apanhou, que perdeu a luta, que cabrocha olhar� para ele? Andam dizendo que ele se vendeu. Ele se perdia olhando o casario negro da cidade. Havia uma estrela bem em cima da sua cabe�a. N�o sabia qual era, mas estava bonita, grande, brilhando num piscapisca. Ele nunca havia visto aquela estrela. A lua apareceu muito grande e derrubou pelos fundos das casas uma luz t�o esquisita que ele n�o conheceu mais a cidade. Pensou que era um marinheiro e havia chegado a um porto estrangeiro. Um porto long�nquo como estes que ele v� nos sonhos todas as noites. Porque todas as noites Ant�nio Baldu�no sonha que desembarca em terras de outros pa�ses. As nuvens corriam pelo c�u. Eram carneiros. Alvos, enormes carneiros. Na Cidade Baixa n�o havia ningu�m. Tamb�m era a primeira vez que ele sonhava assim acordado. A Bahia j� n�o era a Bahia e ele n�o era mais o negro Ant�nio Baldu�no, Baldo, o boxeur, que ia �s macumbas de Jubiab� e que apanhara de Miguez, o peruano. Que cidade seria aquela e ele quem seria? Para onde teria ido toda gente conhecida? Olhou para o porto e viu o navio. Naturalmente j� estava na hora de recolher, a bordo o esperavam. Olhou a roupa do marinheiro, fez um bamboleio com o corpo e disse em voz alta: � Vou para bordo. A� uma voz gritou: � Hein? Mas ele n�o ouviu e fitou de novo a cidade banhada pela luz alva da lua. Se lembrou da luta de boxe. De repente vieram l� de cima do morro uns sons de batuque. Uma nuvem escura cobriu a lua. Se apalpou, a roupa de marinheiro tinha desaparecido, ele estava metido na cal�a branca com camisa de listras vermelhas. O tant� aumentava no morro. Vinha como uma s�plica, como um grito de ang�stia.

Ele viu, ent�o, que a cidade era novamente a Bahia, bem a Bahia, que ele conhecia toda, ruas, ladeiras e becos, e n�o um porto perdido de uma ilha perdida na vastid�o do mar. Era a Bahia onde de apanhara. Agora n�o olhava mais as estrelas, nem as nuvens. N�o enxergava mais bandos de carneiros no c�u. Para onde teriam ido os saveiros que fugiram para longe dos olhos de Ant�nio Baldu�no? Apenas ouvia. Eram sons de batuque que desciam de todos os morros, sons que do outro lado do mar haviam sido sons guerreiros, batuques que ressoavam para anunciar combates e ca�adas. Hoje eram sons de s�plica, vozes escravas pedindo socorro, legi�es de negros de m�os estendidas para os c�us. Alguns daqueles pretos que j� tinham a carapinha branca guardavam nas costas marcas de chicote. Hoje as macumbas e os candombl�s enviavam aqueles sons perdidos. Era como uma mensagem a todos os negros, negros que na �frica ainda combatiam e ca�avam, ou negros que gemiam sob o chicote do branco. Sons de batuque que vinham do morro. Se dirigiam tamb�m angustiosos e confusos, sons religiosos, sons guerreiros, sons de escravos, a Ant�nio Baldu�no que estava e tendido na areia do cais. Os sons lhe entravam pelos ouvidos e buliam com o �dio surdo que vivia dentro dele. Ant�nio Baldu�no se rojava na areia desesperado. Nunca tivera uma ang�stia tamanha. �dio que se revolvia dentro dele. Via filas de negros, via aquele marcado nas costas que ele conhecera na casa de Jubiab�. Via m�os calosas, batendo no ch�o, via negras terem filhos mulatos de senhores brancos. Via Zumbi dos Palmares transformar o batuque de escravos em batuque de guerreiros. Jubiab�, nobre e sereno, dizendo conceitos ao povo escravo. Via a si pr�prio se levantando contra o homem branco. Mas ele perdera a luta, tomara uma surra de Miguez, como um vendido. Mas n�o via nada porque voltou a claridade perturbadora da lua e os sons morriam nas ladeiras, nos becos sem ilumina��o, nas ruas cal�adas de pedra. Com os �ltimos sons de batuque e o brilho atordoante do luar, ele se achou diante do rosto sardento e branco de Lindinalva. Estava linda e sorria. Fazia desaparecer o batuque e o �dio. Ant�nio Baldu�no passou a m pelo rosto para afastar a vis�o que o acovardava e olhou fixo para o outro lado. Enxergou novamente as luzes dos saveiros e Mestre Manuel que andava pelo cais. Mas no meio das luzes estava Lindinalva bailando. Tudo porque ele perdera a luta e estava desmoralizado. Fechou os olhos e quando os abriu s� conseguiu ver a luz da triste, da pequena l�mpada da Lanterna dos Afogados. Uma toada triste vem do mar

A luz da Lanterna dos Afogados brilha como um convite. Ant�nio Baldu�no deixa o cais, levanta-se da areia que o acaricia e se dirige em grandes passadas para o botequim. A l�mpada de poucas velas mal ilumina a tabuleta que traz o desenho de uma mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros. Por cima uma estrela pintada com tinta vermelha derrama sobre o corpo virgem da sereia uma luz clara que a torna misteriosa e difusa. Ela retira da �gua um suicida. E por baixo o nome: �LANTERNA DOS AFOGADOS� De dentro vem um grito: � � voc�, Baldo?

� Sou eu mesmo, Joaquim! L� est�o numa das mesas sebentas o Gordo e Joaquim. Joaquim grita da mesa, as m�os postas em cima dos olhos para ver melhor � luz vacilante do poste: � Entra. Jubiab� est� aqui. Na sala pequena, quase envolta na escurid�o, cinco ou seis mesas onde canoeiros, mestres de saveiros e marinheiros bebem. Copos grossos cheios de cacha�a. Um cego toca num viol�o mas ningu�m o ouve. Numa mesa marinheiros alvos e loiros, alem�es de um cargueiro que carrega no porto, bebem cerveja e cantam embriagados. Duas ou tr�s mulheres, que nesta noite desceram da Ladeira do Tabu�o para a Lanterna dos Afogados, est�o com eles. Riem muito mas t�m um ar espantado, pois n�o entendem a can��o. Os marinheiros est�o abra�ados e beijam as mulheres. Embaixo da mesa in�meras garrafas de cerveja vazias. Ant�nio Baldu�no passa junto deles e cospe. Um marinheiro levanta um copo, Ant�nio Baldu�no se prepara para brigar. Num canto o cego geme no viol�o e ningu�m o escuta. Ant�nio Baldu�no se lembra que Jubiab� est� no botequim, baixa o bra�o, e vai se sentar junto do Gordo e de Joaquim. � Cad� Jubiab�? � Est� l� dentro com Seu Ant�nio rezando a mulher dele. Seu Ant�nio � um portugu�s velho, amigado com uma mulata com cara furada de bexiga. Um garoto p�lido serve as mesas, correndo. Cumprimenta Ant�nio Baldu�no: � Boa noite, Seu Baldo. � Traz uma pinga. O Gordo est� atento � can��o dos marinheiros: � � bonito... � E voc� entende? � N�o, mas me bole c� dentro. � Lhe bole? � Joaquim n�o entende. Mas Ant�nio Baldu�no entende e j� n�o sente vontade de brigar com os alem�es. Agora ele gostaria � de cantar com os marinheiros e rir com as mulheres. Bate os dedos na mesa e assovia. Os marinheiros est�o cada vez mais b�bados e um deles j� n�o canta. Arriou a cabe�a em cima da mesa. O cego toca viol�o num canto na escurid�o. Ningu�m o ouve, exceto o garoto p�lido que serve o botequim. Entre as carreiras com copos de cacha�a ele espia o cego com admira��o. E sorri. Mas de longe, do escuro do mar, vem uma voz que canta. Apesar das estrelas n�o se v� de quem �, nem de onde vem, se das canoas, se dos saveiros, se do forte velho. Mas vem do mar esta toada triste. Uma voz forte, longe. Ant�nio Baldu�no espia. Tudo negro em redor. S� h� luz das estrelas e no cachimbo de Mestre Manuel. Os marinheiros j� n�o cantam, as mulheres j� n�o riem, o cego parou de chorar no viol�o para tristeza do garoto p�lido que serve o botequim. Jubiab� voltou para a mesa e Seu Ant�nio para o balc�o. O vento, que invade o botequim como uma car�cia, traz a tristura da voz. De onde vir� ela? O mar � t�o grande e t�o misterioso que n�o se sabe de onde vem essa velha valsa triste. Mas � um negro que est� cantando. Porque s� os negros cantam assim. Mestre Manuel est� mudo. Ser� que ele pensa na carga de sapotis que seu saveiro vai pela madrugada receber em Itaparica? N�o. Ele ouve a toada da valsa. Ele se volta para o lado de onde parece vir a voz que enche o mist�rio do mar. O Gordo est� com os olhos perdidos. Naturalmente a valsa bole com ele. Ele e todos se voltam para o lado do mar: De onde vir� a voz do negro? �Senhor, da� tr�guas aos meus ais...� Ser� que ele est� no forte velho e � um velho soldado? Ser� que ele est� numa canoa e � um campon�s mo�o que vende laranjas na Feira de �gua dos Meninos? Ser� de um canoeiro que est� na sua canoa no Porto da Lenha? Vir� de um r�pido saveiro a sua voz, de um marinheiro negro que esqueceu a amada num porto distante? �Senhor, dai tr�guas aos meus ais... Mata-me esta dor De eu n�o v�-la mais...� De onde vir� a toada triste que atravessa os saveiros, as canoas, o quebra-

mar, o cais, a Lanterna dos Afogados, a ba�a toda, e que vai se perder nas ladeiras da cidade? O Gordo bem v� que Ant�nio Baldu�no ouve nervoso. Ele pensa em Lindinalva e julga que o preto canta unicamente para ele que est� t�o s�. Mas o negro canta para todo o mundo, n�o � s� para Ant�nio Baldu�no. Canta para o Gordo, para o Mestre Manuel, para os marinheiros alem�es, para todos os negros dos saveiros e das canoas, para todos os alvos marinheiros dos navios suecos, para o mar tamb�m. As luzes da cidade brilham no morro. Ainda h� pouco vinha do morro um baticum de candombl�s e macumbas. Por�m, agora a cidade est� longe e o brilho das estrelas est� muito mais perto deles que as l�mpadas el�tricas. Ant�nio Baldu�no v� a brasa do cachimbo de Mestre Manuel. A voz do negro vem para dentro dele, de repente se afasta, foge pelo mar afora. Mas volta e fica vibrando no botequim. Uma tristeza baixa sobre tudo: �T�o s� que hei de fazer mais do que gemer... mais do que gemer...� N�o falam. Os marinheiros alem�es escutam. Jubiab� estende as m�os na mesa. O Gordo est� tremendo e Ant�nio Baldu�no v� Lindinalva, branca, p�lida, sardenta, nas �guas, no c�u, nas nuvens, no copo de cacha�a, nos olhos do garoto t�sico que serve o botequim Aquela lua amarela descambou de novo sobre a Lanterna dos Afogados. A voz que vem em surdina trazida pelo vento. O Gordo treme. Mestre Manuel fuma devagar. A voz parou no botequim e gira com a brisa: �At� que de mim tenha d� volve o teu olhar o teu sagrado amor para mim...� Foi embora a toada triste, O cego a procura com os olhos sem luz. Jubiab� resmunga palavras que ningu�m ouve. Joaquim pergunta: � Tem um cigarro, mulato? Fuma em grandes tragadas. Os marinheiros bebem cerveja. As mulheres t�m os olhos puxados para o mar. Jubiab� estira as pernas magras e espia a noite. A lua amarelou tudo, prateou o mar e o c�u. Mas eis que volta a velha valsa. A voz do negro est� perto, muito mais perto: �MATA-ME ESTA DOR DE EU N�O V�-LA MAIS�. A voz se aproxima cada vez mais. Mestre Manuel volta ao cachimbo que brilha como uma estrela. Um saveiro atravessou o mar l� ao longe. Vai silencioso tamb�m ouvindo a toada triste que vem com o vento. Ant�nio Baldu�no tem vontade de dizer: � Boa viagem, amigos... Por�m, fica calado, ouvindo. A voz foi embora levada pelo vento. Voltou em surdina, baixinho: �de eu n�o v�-la mais...�. A lua entrou pelo botequim. Os marinheiros ouvem como se entendessem a valsa do negro. As mulheres que agora entendem n�o riem mais. Joaquim fala: � De que vale voltar? O Gordo se assustou: � O que foi que voc� disse? Ant�nio Baldu�no diz para Jubiab�: � Pai Jubiab�, eu hoje tive um sonho esquisito, deitado no areal. � O que foi que voc� sonhou? Jubiab� est� murcho e pequenino na cadeira. O Gordo pensa em quantos anos ter� Jubiab�. Cento e quantos? Ant�nio Baldu�no est� forte e enorme. N�o diz qual foi o sonho, mas fala: � Vi aquele negro com as costas marcadas, pai Jubiab�... A voz canta bem no botequim:

�Senhor �T�o s� que hei de fazer mais do que gemer mais do que gemer...� Ant�nio Baldu�no fala: � ... gemendo, pai, gemendo... Aquele negro chicoteado nas costas... Eu vi no sonho... Estava horroroso. Eu tenho vontade de bater naqueles marinheiros. O Gordo se espanta: � Por qu�? � O negro malhado... malhado... Jubiab� se levanta na cadeira. Est� com o rosto enrugado aberto em �dio. Todos o ouvem: � Aconteceu h� muito tempo, Baldo... � O qu�? � A hist�ria que eu estou contando... O pai de seu pai era menino. �Numa ro�a de um senhor branco e rico l� no Corta-M�o... Uma toada triste, uma velha valsa que um negro canta n�o se sabe onde, domina tudo: �dai tr�gua aos meus ais...� Jubiab� est� contando: � A gente era um mont�o de negros... A gente tinha desembarcado e n�o sabia a fala do senhor branco... Foi h� muito tempo isso... L� em Corta-M�o... � O que foi que teve? � Senhor Leal n�o tinha feitor... Mas tinha um casal de gorilas, uns macac�es negros, amarrados numa corrente enorme. O senhor chamava o macho de Catito e a f�mea de Catita. O macho andava com um copo amarrado na corrente e um chicote na m�o... Era o feitor. Que foi feito da velha valsa triste que n�o enche mais cora��o destes negros, que os deixa sozinhos com a hist�ria de Jubiab�? Onde est� a voz do negro que cantava? Agora s� o cego geme no viol�o e todos o ouvem. O menino p�lido e t�sico recolhe num prato de flandres moedas para o cego que � seu pai. Um homem diz: � N�o dou, n�o. O velho n�o sabe tocar. Por�m, todos o olham com tais olhos que ele bota um n�quel no prato: � Tava brincando, meu bem. A voz de Jubiab�: � A macaca Catita matava galinhas, andava pelas casas. O macaco levava n�is pra ro�a e sentava no cepo. Quando negro n�o trabalhava ele surrava negro. �s vezes surrava sem motivo. Ele matou negro com o chicote... As luzes tremem na Lanterna dos Afogados. O cego toca um baticum no viol�o. � Senhor Leal gostava de soltar Catito em cima das negras.... Catito matava elas pra gozar nelas... Um dia o senhor soltou Catito em cima de uma negra nova, casada com um negro novo. Senhor Leal tinha visitas... O Gordo est� tremendo todo. Volta ao longe a toada triste... Cessa o viol�o do cego que conta os n�queis recolhidos. � Catito se jogou em cima da negra e o negro em cima de Catito... Jubiab� olha ao longe a noite. A lua est� amarela. � Senhor Leal atirou no negro que j� tinha dado duas facadas no macaco... A negra tamb�m morreu. Ficou um bocado de sangue no lugar. As visitas ficou tudo rindo muito alegre. Menos uma mocinha branca, que ficou doida de noite vendo o macaco e o negro... A valsa triste canta perto. � Mas de noite um irm�o do negro matou Senhor Leal. O irm�o do negro eu conheci. Foi ele quem me contou a hist�ria. O Gordo est� junto de Jubiab�. O cachimbo de Mestre Manuel brilha como uma estrela. No escuro do mar uma voz canta uma toada triste: �Mata-me esta dor de eu n�o v�-la mais. A voz canta alto, sonora, saudosa.

Jubiab� diz: � Eu conheci o irm�o... Ant�nio Baldu�no segura o punhal na altura do peito. ��j� �nun f� ti ik�, li �k�

Jubiab� dizia: � �j� �nun f� ti ik�, li �k�. Sim, Ant�nio Baldu�no be� sabia que o olho da piedade j� vazara e que ficara somente o olho da ruindade. Na noite misteriosa do cais, cheia de m�sicas diversas, ele quis soltar a sua gargalhada alta, que era o seu grito de liberdade. Mas ele a havia perdido. Estava desmoralizado. J� n�o era imperador da cidade, j� n�o era Baldo, o boxeur. Agora a cidade o apertava como corda no pesco�o de suicida. Diziam que ele tinha se vendido. E o mar batendo nas pedras, os navios que sa�am iluminados, os saveiros que partiam com uma lanterna e um viol�o valiam como chamados irresist�veis. Ali estava o caminho de casa. Viriato, o An�o, entrara por ele, por ele entrara o velho Salustiano, outros entraram tamb�m. No peito de Ant�nio Baldu�no estavam tatuados um cora��o, um L enorme e um saveiro. Pegou o Gordo e fugiu pelo mar num saveiro. Ia procurar nas feiras, nas cidades pequenas, no campo, no mar, a sua gargalhada, o seu caminho de casa.

Di�rio de um negro em fuga Saveiro

O Viajante sem Porto corta a �gua que reflete as estrelas. Ele � todo pintado de vermelho e traz uma lanterna que espalha em torno uma luz amarela como a luz da lua que apareceu nesse momento, saindo de uma nuvem. Gritam de outro saveiro que atravessa a ba�a:

� Quem vem l�? � Boa viagem! Boa viagem! A estrada do mar � larga. As �guas passam murmurando. Um peixe salta na luz da lanterna. Mestre Manuel vai no leme. O Gordo vai sem compreender. Ant�nio Baldu�no est� estirado no saveiro olhando o espet�culo do mar. Do por�o vem um cheiro de abacaxis maduros. Passa um vento suave e uma estrela clara brilha no c�u. Na cabe�a do negro Ant�nio Baldu�no aparece um samba que vem se bater nos seus joelhos em palmadinhas compassadas. Agora vai assoviando e em breve encontrar� novamente a sua gargalhada perdida. O samba vai saindo e fala em mulher, em malandragem, em negro livre, nas estrelas do c�u, na estrada larga do mar. Pergunta: �Aonde vai parar essa estrada, Maria?� E diz: �As estrelas dos teus olhos est�o no c�u.. o barulho do teu riso est� no mar... voc� est� na lanterna do saveiro�... Falava assim o samba. Dizia mais que o negro Ant�nio Baldu�no amava somente duas coisas: malandragem e Maria. Malandragem na l�ngua que ele fala quer dizer liberdade. E Maria quer dizer mulata. Onde ir� parar essa estrada? Para Mestre Manuel, que � um velho marinheiro, ela n�o tem mist�rios. � Aqui � avisa ele � � onde o mar ama o rio... Terminou a barra. Entraram no rio Paragua�u. Nas margens, velhos castelos feudais, ru�nas de engenhos de bang��, de riquezas passadas, t�m sombras descomunais, parecendo fantasmas. Bem diz o Gordo: � Parece mula-de-padre. Esse barulho que a �gua faz agora � o amor do mar e do rio. � o barulho que vem da mata J� atr�s deve ser de alguma amante de padre, que morreu e virou mulasem-cabe�a e anda vagando por esses matos escuros que cobriram os t�mulos dos negros escravizados. O saveiro corre suavemente na �gua mansa do rio. No leme Mestre Manuel fuma cachimbo. Aponta as coroas negras de pedra. A estrada n�o tem mist�rios para ele. Ant�nio Baldu�no acabou de cantar o seu samba que o Gordo j� sabe de cor. Ele acha que � o samba mais bonito que Ant�nio Baldu�no j� fez, pois fala em mulher, em malandragem, em estrelas. Pede: � N�o venda mais samba, Baldo. O negro ri. O saveiro vai pelo rio, correndo: � Ningu�m se pega com ele � diz Mestre Manuel acariciando o barco como se acariciasse uma mulher. Vem um vento que empina as velas e refresca os homens. Do por�o sobe um cheiro de abacaxis maduros. Mestre Manuel possui saveiro h� muitos anos. Ant�nio Baldu�no era menino e foi naquela �poca que o conhecera e ao Viajante sem Porto. No entanto muito antes Mestre Manuel j� viajava com o seu saveiro pelos portos do Rec�ncavo, levando frutas para as feiras, trazendo tijolos e telhas para as constru��es da cidade nova. Aparenta trinta anos. Ningu�m lhe dar� os cinq�enta que traz no costado. Todo ele � de uma cor s�, um bronze escuro, e � dif�cil dizer se Mestre Manuel � branco, negro ou mulato. � um marinheiro cor de bronze, isso sim, um marinheiro que raramente fala, e que � respeitado em toda a zona do cais do porto da Bahia, da Feira de �gua dos Meninos, dos botequins do cais, dos botequins de todos os pequenos portos onde p�ra o seu saveiro. O Gordo corta o seu sil�ncio com uma pergunta: � Voc� j� salvou afogado, mestre? Mestre Manuel abandona o cachimbo, estira as pernas: � Um dia de temporal, na boca da barra, um saveiro virou. O vento apagou as lanternas todas. Foi um dia terr�vel, parecia dia de Ju�zo...

O Gordo se certifica que a noite em que v�o est� clara e amiga. � Eu vinha navegando tamb�m nesta noite, me ag�entando no temporal. Minha lanterna tamb�m tinha se apagado e ningu�m enxergava tiquinho na frente dos olhos. Ant�nio Baldu�no gosta da vida dos mestres de saveiro. Sorri. Mas Mestre Manuel est� s�rio. Puxou uma fuma�a do cachimbo � A gente via luz da Bahia. Parecia bem pertinho, mas estava longe cada vez mais: A gente nunca chegava pra perto dela. Nessa noite o mar andava brabo, tinha brigado com o rio. Fez uma cara s�ria: � � ruim quando o mar est� zangado com o rio...D� em tempestade... � E o saveiro? Mestre Manuel parecia ter esquecido o saveiro: � Ia levando uma fam�lia que vinha das festas de Cachoeira. Eles tinha pressa em chegar e n�o ficaram para o navio que s� tinha no outro dia. Os jornais falavam nisso... Puxou outra fuma�a: Eles tinha pressa e ficou tudo no mar... A gente s� salvou os corpos. Assim mesmo, dois nunca ningu�m encontrou. O Viajante sem Porto vai r�pido, todo virado de um lado, contornando o rio que � cheio de curvas, se abrindo de repente em bacias, se fechando depois em canais estreitos. � Me lembro da �gua que fazia gluglu junto do saveiro virado. Mestre Manuel imitava a �gua: � Gluglu... parecia que estava comendo alguma coisa. � N�o tinha uma mulher gritando pelo noivo? Nem o anjo da guarda dos afogados? � perguntou o Gordo que tremia. � Tava tudo morto quando a gente chegou. � Nem o anjo da guarda tinha escapado � riu Baldu�no.. � Afogado n�o tem anjo da guarda. A m�e-d��gua leva tudo que ela � mesmo uma tenta��o. O Gordo havia inventado o neg�cio do anjo e da noiva mas afirmou que tinha visto nos jornais � Mas voc� n�o tinha nascido ainda. � Ent�o foi de outra vez... Voc� n�o assistiu? O Gordo pensa que � uma estrela nova e grande que est� brilhando um pouco atr�s. Grita na alegria da descoberta � Olhe que estrela nova e bonita... � minha, � minha... � Ele est� com medo que algu�m a roube, a tome dele que a descobriu. Os outros olham. Mestre Manuel escarnece: � Estrela nada. Aquilo � o Paquete Voador que vem vindo... Ele tava em Itaparica quando a gente passou, vem a� pra pegar a gente... Quer pegar carreira com voc�. � Mestre Manuel agora est� falando com o Viajante sem Porto e o acaricia Olha os companheiros. � O barco corre, Guma � bom no leme... Mas com este ningu�m se pega, v�o ver. O Gordo est� triste porque perdeu a sua estrela. Ant�nio Baldu�no pergunta: � Como � que voc� sabe que � o Paquete Voador, Manuel? � Pela luz da lanterna. Mas a luz � igual a todas as lanternas dos saveiros e Ant�nio Baldu�no s� n�o pensa como o Gordo que ela � uma estrela nova porque se move a todo o momento. Por�m, duvida que seja o Paquete Voador. Pode ser qualquer um dos r�pidos saveiros do porto. Fica esperando. O Gordo olha o c�u para ver se descobre outra estrela que substitua a que ele perdeu. Por�m, as que brilham j� s�o todas conhecidas e todas j� t�m dono. O saveiro se aproxima. Mestre Manuel vai devagar, esperando. � mesmo o Paquete Voador. Guma grita: � Vamos pegar uma carreira, Manuel? � Pra onde voc� vai? � Maragogipe..

� Eu vou pra Cachoeira mas a gente corre at� Maragogipe... T� valendo cinc�o... � T� valendo. Ant�nio Baldu�no aposta tamb�m. Guma pega do leme: � Vamos. Os saveiros v�o inteiramente de lado e o Paquete Voador ganha dist�ncia. Baldu�no avisa: � Olhe os meus dez mil que est�o no fogo, Manuel. O mestre sorri: � Deixa ele correr. Grita para o fundo: � Maria Clara! A mulher que dorme e sonha, desperta e aparece. Mestre Manuel apresenta: � Minha patroa... A surpresa deles � t�o grande que n�o dizem nada. Ela tamb�m est� calada e mesmo que fosse feia, seria bela assim em p� no saveiro que se inclina, o vestido levantado pelo vento, os cabelos voando. Um cheiro de mar se mistura ao cheiro de abacaxis. O cangote dela, os l�bios dela � pensa Ant�nio Baldu�no � devem cheirar a mar, a �gua salgada. E sente um desejo repentino. O Gordo pensa que ela � um anjo da guarda e quer rezar uma ora��o. Por�m, ela n�o � nada disso; � a mulher de Mestre Manuel que avisa: � Tou correndo com Guma. Cante uma can��o... A can��o ajuda o vento e ajuda o mar. S�o segredos que s� um velho marinheiro sabe, segredos que se aprendem no conv�vio do mar. � Vou cantar o samba que aquele mo�o estava cantando. Est�o todos penetrados dela. Ningu�m sabe se ela � bela ou feia, mas todos a amam nesse momento. Ela � a m�sica que compra o mar. Est� de p� e seus cabelos esvoa�am abandonados ao vento. Canta: �Aonde vai parar essa estrada, Maria... O Viajante sem Porto corre fazendo um ru�do na �gua. J� se v� novamente o Paquete Voador que � um ponto luminoso na noite �As estrelas dos teus olhos est�o no c�u... Aquilo branco � a vela do Paquete Voador que est� mais perto. �O barulho do teu riso est� no mar... Aonde ir�o eles nessa carreira louca? N�o se bater�o numa coroa de pedras negras e n�o ir�o dormir no fundo do mar? Mestre Manuel vai de olhos fechados no leme. Ant�nio Baldu�no estremece gozando a mulher que canta. Para o Gordo ela � um anjo. E ele reza. �Voc� est� na lanterna do saveiro. Passam junto da lanterna do Paquete Voador, Guma sacode um embrulho de dinheiro dentro do Viajante sem Porto. Quinze mil-r�is. Mestre Manuel mete os cinco no bolso da cal�a e grita: � Boa viagem, Guma. Boa viagem. � Boa viagem � a voz vem l� de tr�s. Ant�nio Baldu�no pega os dez mil-r�is que ganhou: � Compre um vestido pra ela, Manuel. Foi ela que ganhou.. �A estrada do mar � larga, Maria. Ant�nio Baldu�no pensa onde andar� o homem branco e calvo que naquele dia apareceu na macumba de jubiab�. Onde ele estar�, onde estar� o homem que Ant�nio Baldu�no julga ser Pedro Malazarte, o aventureiro? � preciso que ele n�o esque�a essa viagem de saveiro, quando escrever o ABC do negro Ant�nio Baldu�no valente e brig�o, que ama a liberdade e o mar. Mestre Manuel entregou o leme a Ant�nio Baldu�no agora que o rio � largo. Foi com a mulher para o fundo do saveiro. Est�o escondidos atr�s da camarinha. Mas se ouvem os ru�dos dos corpos no amor. V�m gemidos em voz baixa, s�plicas de beijos. Vem uma onda alta que cobre os aman tes. Eles riem entre beijos. Nesse momento estar�o molhados e o amor ainda ser� melhor. Ant�nio Baldu�no imagina jogar o saveiro sobre as pedras do rio. Morreriam

todos e os gritos e beijos se extinguiriam no mar. O Gordo, que perdeu nessa noite uma estrela e um anjo, fala: � Ele n�o devia ter feito isso. Cheiro doce de fumo

Cheiro doce de fumo! Cheiro doce de fumo! Invade as largas narinas do Gordo que entontece. O saveiro ficou no porto unicamente os dias das feiras das cidades vizinhas: Cachoeira e S�o F�lix. Depois partiu para outros portos pequenos, Maragogipe, Santo Amaro, Nazar� das Farinhas, Itaparica, levando Seu Manuel e a mulher que cantava durante a noite e cheirava a mar. Abriu as velas e partiu na manh� saudosa. Valia como uma despedida Ant�nio Baldu�no e o Gordo ficaram na cidade velha de Cachoeira, medindo o comprimento das ruas numa vagabundagem for�ada. Sentiam a cidade pelo cheiro. Era aquele cheiro adocicado de fumo que vinha de S�o F�lix defronte, das f�bricas brancas que tomavam quarteir�es inteiros e que eram gordas como os seus donos. Cheiro que tonteava, que fazia pensar em coisas distantes, que obrigava o Gordo a contar longas hist�rias inventadas ou repetidas. Nas f�bricas de charutos n�o havia trabalho. Ali quase s� mulheres p�lidas e macilentas, mulheres de olhos compridos, fabricavam charutos caros para fins de banquetes ministeriais. Os homens n�o tinham jeito, possu�am as m�os grossas demais para aquele trabalho que, no entanto, era pesado e dif�cil. Na tarde chuvosa do dia da chegada, eles atravessaram o rio Paragua�u que separava as cidades. No fundo a ponte enorme. O Gordo ia contando uma hist�ria, que o Gordo nascera mesmo para poeta e se soubesse escrever e ler poderia ganhar a vida fazendo ABC e hist�rias em versos. Mas o Gordo nunca fora a escola e se contentava em narrar com a sua voz baixa e sonora os casos que ouvia, as velhas lendas que aprendera na cidade, e as hist�rias que inventava quando bebia. Se n�o fosse a sua mania de meter os anjos em todas as hist�rias, ainda seria melhor. Mas o Gordo era muito religioso tamb�m. A canoa evitava as pedras. O rio estava seco e homens de cal�as arrega�adas e dorsos nus pescavam o jantar, o Gordo ia contando: � Ent�o Pedro Malazarte, que era um bicho sabido, disse ao homem: �� um rebanho enorme de porcos... tem mais que quinhentos... que quinhentos que nada... tem � mais de mil... dois mil... tr�s mil... de tantos que tem at� j� perdi a conta...� O homem de panela s� via os rabos enterrados na areia. Era um mundo de rabos pretos que o vento remexia. Eles ficava tudo bulindo que nem que tivesse porco mesmo, vivo de verdade, enterrado na areia. E Pedro Malazarte foi dizendo: �e esses porcos s�o m�gicos... Quando eles obra sai � dinheiro. � tudo nota de cinco mil-r�is... Quando v�o crescendo s� sai nota de dez e at� de conto de r�is eles bota quando j� t�o velho. Eu troco tudo isso por sua panela...� � E o homem n�o desconfiou? � interrompeu o canoeiro. � Nada, o homem era um tolo e estava com os olhos cheios dos porcos. Pegou e trocou a panela com carne e feijoada pelo rebanho. Pedro Malazarte avisou: �Vosmic� deixe eles enterrados at� de manh�. De manh� eles sai e v�o obrar dinheiro�. E o homem ficou esperando que os porcos aparecesse. Passou a tarde, passou a noite, passou o outro dia e at� hoje o homem est� l� esperando... Se quiser � s� ir ver.. O canoeiro ria, Ant�nio Baldu�no queria agora ouvir a aventura da panela. Amava as hist�rias de Pedro Malazarte, malandro que sabia enganar os demais e levava uma vidinha gozada. Imaginava-o vivo, correndo o mundo, sabendo coisas de

todos os pa�ses, pois at� no c�u Pedro Malazarte j� fora levar dinheiro para o marido da vi�va rica que estava passando mis�ria num hotel vagabundo do para�so. E tinha quase certeza que aquele homem calvo que aparecera na macumba de Jubiab� n�o era outro sen�o Pedro Malazarte, disfar�ado. Aquele homem n�o correra o mundo todo e n�o vira todas as coisas? � Eu penso na minha cabe�a que aquele homem careca que foi na macumba de pai Jubiab� era Pedro Malazarte. � Quem? � o Gordo n�o se lembrava. � Naquele dia que Oxal� pegou dos Reis... � Ah! J� sei... Mas n�o era n�o. Aquele branco era andarilho e escrevia ABC. Eu sei a hist�ria dele... Ele fugiu um dia num cavalo alaz�o da fazenda do pai dele, que era criador de cavalos, e correu o mundo todo no seu cavalo alaz�o, escrevendo os ABC dos homens mais corajosos que encontrou, das mulheres mais malvadas que viu... � Ele vai escrever meu ABC... � O seu? � O homem mais valente que ele j� viu foi o negro Ant�nio Baldu�no. Eu sou � macho para qualquer um... Ele mesmo me disse... O Gordo ficou admirando o amigo. Ant�nio Baldu�no trazia dois punhais embaixo do casaco, um de cada lado. A canoa encostou na lama do cais. Das f�bricas vem esse cheiro que entontece. Os homens que pescavam est�o se recolhendo e conduzem peixes para o jantar magro. Das f�bricas sai ao mesmo tempo um apito fino, prolongado. � o fim da jornada do dia. Ant�nio Baldu�no foi para arranjar uma mulher, uma mulata a quem amar no meio das oper�rias das f�bricas. E ficou na esquina, rindo a sua gargalhada para as hist�rias do Gordo, esperando a passagem das mulheres. Mas eis que elas saem e s�o tristes e cansadas. Elas v�m tontas daquele cheiro doce de fumo que j� se impregnou nelas, que est� nas suas m�os, nos seus vestidos, nos seus corpos, nos seus sexos. Saem sem alegria e s�o muitas, � uma legi�o de mulheres que parecem todas doentes. Algumas fumam charutos baratos, depois de terem fabricado charutos car�ssimos. Quase todas mastigam fumo. Um homem loiro conversa com uma mulatinha que ainda n�o perdeu a cor nas f�bricas. Ela ri e ele murmura: � Lhe melhoro de condi��o. Ant�nio Baldu�no diz ao Gordo: � Aquela � a �nica que � com�vel... Mas j� est� com o gerente. As mulheres passam silenciosas como se estivessem b�badas do cheiro de fumo, entram pelas ruas estreitas que j� escurecem e rumam para os becos sem ilumina��o do fundo da cidade. V�o tristes assim, conversando em voz baixa, ainda com medo das multas por causa das conversas nas f�bricas. Passa uma gr�vida, a barriga estendida para a frente, e adiante p�ra e beija um homem que traz peixes na m�o. Agora seguem de bra�o e ela conta a multa que sofreu por que parou num momento que a barriga pesava e do�a. De repente diz: � E os dias que eu vou perder quando tiver o menino... Quantos dias... A sua voz � tr�gica e angustiada. O homem baixou a cabe�a e fechou as m�os. Ant�nio Baldu�no ouviu e escarrou. O Gordo est� tremendo. Passam as mulheres das f�bricas de charutos. V�em-se os grandes cartazes com os t�tulos. E num botequim um an�ncio: � os melhores charutos do mundo... Para banquetes, jantares, almo�os. Passam as mulheres que fabricam os charutos. V�o tristes que ningu�m diria que v�o para o lar, para o marido, para os filhinhos. O Gordo disse: � Parece acompanhamento de enterro. A mulatinha bonita vai com o alem�o. A mulher gr�vida chora no bra�o do marido. No hotel de Cachoeira, que � c�modo e mesmo suntuoso, mo�os alem�es bebem u�sque e jantam jantares feitos especialmente para eles. Mulheres vieram da Bahia para dormir com esses mo�os loiros e simp�ticos. S�o filhos dos donos daquelas f�bricas de onde sa�ram as mulheres oper�rias. Conversam em meio �s bebidas e

falam na salva��o da Ale manha pelo hitlerismo na pr�xima guerra mundial que eles vencer�o. E quando a bebida tiver subido para as cabe�as, cantar�o hinos guerreiros. Uma crian�a interrompe o jantar e diz: Uma esmola que minha m�e est� morrendo. Mas a lua cheia, que saiu dos morros e est� sobre o rio, n�o � vista pelos loiros alem�es. Na beira do rio os maridos das oper�rias cantam ao viol�o e as mulheres apresentam crian�as � lua: �B�n��o dindinha lua Tome bebezinho pra voc� e me ajude a criar�. No fim da tarde chuvisquenta o canoeiro chegou para perto de Ant�nio Baldu�no e do Gordo: � Ent�o camarada... N�o vai boiar... � N�s vai, sim... � Se quer ir boiar l� em casa... E comida de pobre... S� tem peixe, mas se come e � oferecido de boa vontade. Virou-se para o Gordo: � Voc� conta uns casos pra minha velha ouvir. Ela deve t� chegando da f�brica... Tenho cinco meninas e dois meninos... Sorri esperando a resposta. Entram por um beco que vai dar numa rua enlameada que lembra a Ant�nio Baldu�no o Morro do Capa-Negro. Dentro das casas brilha a luz vermelha dos fif�s. Crian�as brincam nas portas fazendo bonecos e bois com o barro preto do massap�. � � aqui � diz o canoeiro. As paredes s�o sujas de fuma�a. Um quadro com Senhor do Bonfim, um viol�o pendurado. Um garoto dorme estendido numa cama de t�buas. Ter� tr�s meses quando muito. Acordou com o beijo do homem e estendeu as m�ozinhas, rindo com a boquinha negra. Um que mal est� andando se agarra �s saias da m�e. J� possui a barriga estofada como os outros que est�o fazendo bonecos de barro l� fora. O canoeiro faz as apresenta��es: � Dois amigos. Este aqui � aponta o Gordo � sabe contar hist�ria que � uma beleza... Voc� vai ver. A mulher masca fumo. Tem os bei�os arrebitados e uma cara amarela de quem sofre maleita. Pega os peixes que o homem traz e vai para a cozinha. Ouvem a sua voz chamando os filhos. Ant�nio Baldu�no pegou o viol�o. O Gordo pergunta: � A vida aqui � dif�cil? � Trabalho � dif�cil, �... Aqui s� tem trabalho pra mulher, os homens ficam pescando, ou arranjando uns vint�ns com as canoas. � E as patroas ganham bem? � Nada... Que bem... E ainda tem as multas, tem as faltas por causa das crian�as, doen�as, e ficam logo velhas, acabadas... A gente corta fino aqui, seu mano... � � triste... � Triste? � o homem ri. � Tem gente que passa fome que � uma beleza... Quando uma mulher sai de uma f�brica, n�o arranja emprego na outra. Eles t�m uma combina��o... E n�o � todo dia que tem peixe, n�o. Um rapaz negro est� na porta, silencioso. Aprova com a cabe�a. O Gordo se sente culpado de ter puxado aquela conversa triste: � Mas Deus vai ajudando.. � Dando doen�a, s� se for assim. Minha patroa tem esse quadro a� mas eu at� nem acredito mais... J� curti fome dura. Uma noite nem comida pro mais pequeno que era aquela � mostra uma mulatinha de cinco anos � n�o tinha. Deus se esqueceu dos pobres. A mulher apareceu na porta do fundo e cuspiu uma saliva escura: � N�o diga heresia, homem. Deus castiga. O rapaz da porta fala: � Mas no meu cora��o eu n�o acredito tamb�m. S� da boca para fora. Quer saber?

Pois o alem�o cachorro t� dando em cima da Mariinha... Fala que melhora ela... Onde t� Deus? O Gordo reza em voz baixa. Pede a Deus que n�o deixe o alem�o levar Mariinha e que n�o fa�a faltar comida na mesa do canoeiro. Ant�nio Baldu�no sabe que o Gordo est� rezando e que � in�til. Diz: � Pode ser heresia, minha gente... Mas a vontade que esse negro que est� aqui tem � matar os brancos todos... Matava e n�o tinha pena. O peixe est� servido na mesa. O rapaz negro desapareceu e meses depois foi condenado a trinta anos porque matou o alem�o que deixou Mariinha com um filho e sem emprego. A comida � pouca para tantas bocas e os garotos reclamam mais. A luz vermelha do fif� torna as sombras enormes. O Gordo contou a hist�ria da panela de Pedro Malazarte e as crian�as dormiram. Uma delas ainda traz fechado na pequena m�o negra um boneco de barro, aleijado de um bra�o. E no seu sonho o boneco preto de barro � uma boneca loira de lou�a que diz �mam�e� e fecha os olhos para dormir. Sa�ram para o lado do rio. Os homens cantam � lua cheia. Mulheres de vestido remendado andam na amurada. O rio passa e desaparece embaixo da ponte. O Gordo canta a Cantiga do Vilela que Ant�nio Baldu�no acompanha ao viol�o. Os homens est�o todos atentos � luta hist�rica do cangaceiro Vilela com o �alferes negreiro�. A cantiga � her�ica. O alferes foi um her�i; Vilela foi mais her�ico ainda: �O Alferes foi valente E de valente enforcou-se! Mais valente foi Vilela: Morreu, foi santo e salvou-se � Bonito � fala um homem. Nunca vi dizer que jagun�o virasse santo � atalha uma mulherzinha magra. � Tem muito jagun�o que merece ser santo mesmo... � o homem que explica bate os dedos na amurada do cais. � Voc�s j� viu jagun�o roubar pobre? Jagun�o � pobre como a gente... Jagun�o tem cora��o como a gente... Jagun�o... eu gosto de jagun�o. � T�esconjuro, sujo! Parece que n�o viu o que eles fizeram com o Coronel Anast�cio... Deixou o homem sem as orelhas... sem o nariz... at� as coisas dele arrancou... Ficou parecendo um bicho, Deus me perdoe... Riem se lembrando de como ficara o homem. Mas o que est� batendo na amurada do cais diz: � Mas vosmec� n�o se lembra do que o Coronel Anast�cio fez com as filhas do Sim�o maneta... Eram quatro, ele n�o deixou uma... Papou todinhas... O velho ficou feito doido... Mais tivesse e mais o coronel chamava aos peitos. Jagun�o � quem vinga a gente... Virou-se para o Gordo: � Cante outra modinha, camarada. Mas foi Ant�nio Baldu�no quem passou a cantar sambas e modinhas que fizeram as mulheres tristes. Do sino da igreja v�m as batidas das nove horas. � Vamos ao samba da casa do Fabr�cio, minha gente? � convida um negro forte. Vai um grupo. Os demais se dirigem para as casas ou ainda demoram no cais olhando a lua, o rio, a ponte, cinema que eles t�m. Fabr�cio recebia os convidados com o copo de cacha�a na m�o: � N�o quer matar o jejum? Todos queriam e o copo passava de boca em boca, um copo grosso que Fabr�cio enchia conscienciosamente at� trans bordar. O canoeiro apresentava Ant�nio Baldu�no e o Gordo: � Dois amigos... � V� entrando... V� entrando... A casa � dos amigos � e distribu�a grandes abra�os. Eles foram entrando. Um mulato de bigodinho tocava harm�nica Os pares rodopiavam pela sala. Ant�nio Baldu�no n�o sentiu o cheiro caracter�stico de

negro. At� ali, no bairro distante, o cheiro doce de fumo dominava. Os pares rodavam, o homem da harm�nica se abaixava e se levantava e no fim da m�sica, de t�o excitado, ele tocava de p� e dan�ava tamb�m, ro�ando os pares que passavam ao alcance da sua m�o. Quando a m�sica parou o canoeiro gritou: � Meu povo, esse negro aqui toca viol�o como um santo... E esse gordo sabe cada hist�ria linda. Ant�nio Baldu�no disse ao Gordo: � Eu estou pensando na minha cabe�a que vou arranjar mulher aqui... Foi l� dentro beber cacha�a com o dono da casa e quando voltou, ante a insist�ncia das negras, tocou ao viol�o seus melhores sambas que o Gordo cantou. O homem da harm�nica estava ressentido mas n�o dizia nada, Quanto Ant�nio Baldu�no acabou disse pra ele: � Vamos tomar um trago, mano? Voc� toca bem de verdade... � Eu arranho... Voc� � um bamba... Indicou mulheres para Ant�nio Baldu�no: � Aquela ali topa... Olhe aqui, a minha mulata tem uma amiga... Por que voc� n�o topa com ela? O homem voltou a tocar harm�nica. Agora toda a sala rodava. Os p�s batiam no ch�o, os umbigos batiam nos umbigos, as cabe�as se tocavam, estavam todos embriagados, uns de cacha�a, outros de m�sica. Ouvia-se um baticum que os homens acompanhavam com as m�os. Os corpos se uniam pelas cinturas e depois se soltavam, giravam sozinhos e voltavam a se encontrar, barriga com barriga, sexo com sexo. � A�, meu bem. O baticum continuava, os homens dos instrumentos estavam entre os dan�arinos, a sala estava de cabe�a para baixo, estava de lado, de repente estava certa, logo depois n�o estava mais, eles estavam era no teto. Os fif�s ainda atrapalhavam mais. Dan�avam sombras tamb�m e elas dan�avam na parede, gigantescas, espantosas. O ch�o desaparecera, os p�s n�o sentiam mais, s� se sentia o corpo que era tocado e trazia uma fa�sca de desejo. As mulheres eram de mola, quebravam o corpo todo no mexido, as ancas aumentavam, as n�degas remexiam sozinhas, como se tivessem uma vida � parte do corpo. Dan�avam os homens, as mulheres, as sombras e a luz do fif�. Desaparecera a sala, desaparecera a luz, n�o se via mais nada. S� ficara o baticum, o cheiro doce do fumo e os umbigos que se encontravam, Desapareceu tamb�m o desejo, desapareceu tudo, e agora � pura dan�a. Ant�nio Baldu�no escreveu na areia do rio um nome: Regina. A mulher que estava a seu lado, deitada no cansa�o do amor, sorriu satisfeita e beijou o negro. Mas veio uma onda pequena e apagou o nome que tinha sido escrito com a ponta do punhal. Ant�nio Baldu�no soltou a sua gargalhada que estremeceu tudo. A mulher teve raiva e chorou. M�o

O campo de fumo se estendia pelo morto e parecia n�o ter fim. Primeiro era aquela plan�cie que depois subia pelo morro e descambava l� atr�s, campo verde inacab�vel, de plantas baixas, de folhas largas O vento balan�ava as folhas e, se n�o fosse a sacola protetora de pano, espalharia as sementes do fumo numa planta��o in�til. As mulheres que estavam curvadas colhendo as folhas com gestos cansados levantaram o corpo e se agitaram. Foram as �ltimas a largar o trabalho e uma delas era velha e enrugada, enquanto a outra, que fumava um charuto de cinq�enta r�is, era uma mulherona mo�a e forte, Os homens j� iam adiante e pareciam todos corcundas. Conduziam montes de folhas de fumo que dependuravam na frente das

casas, resguardando do sol muito forte e da chuva. As folhas que j� estavam secas cediam lugar �s folhas rec�m-chegadas que faziam aquela cortina em frente das casas dos trabalhadores. Existiam quatro casas em bloco, formando um quadrado no centro do qual os homens se reuniam para conversar e tocar viol�o. A mulher velha entrou numa das casas onde o companheiro prestava aten��o ao feij�o que cozinhava. A mo�a ficou tirando dois dedos de prosa com os homens que estavam no �terreiro�, que era como eles chamavam o quadrado que ficava entre as casas. O Gordo estava com saudades da av� e falava: � Ficou sozinha, com Deus somente... Quem d� comida a ela. � Deixa estar que ela n�o morre de fome, n�o... � N�o tou falando nisso � o Gordo se atrapalhava. � Eu estou dizendo... A mulher botou as m�os nas cadeiras para ouvir mais comodamente: � Entonce o que �? � N�o sabe? Ela est� velha e acabada. . . S� come dando na boca... A mulher riu, os homens fizeram pilh�rias: � Isso parece mais uma mulata que voc� tem... Esse neg�cio de dar comida na boca... � bonita? � Juro que � minha av�... Juro... Ela n�o tem mais dente e j� anda pancada... Outros homens iam chegando. Ant�nio Baldu�no se estendeu no meio do terreiro, a barriga nua para cima: � Tou cansado, gente... O Gordo perguntou: � N�o � verdade que eu tenho uma av�? Ela n�o come dado por mim na boca? Os homens riram. A mo�a atalhou: � Tua mulher � t�o velha assim, Gordo, que voc� chama ela de av�? Vieram gargalhadas que aumentaram a confus�o do Gordo: � Juro. .. Juro... � beijava os dedos em cruz. � Manda buscar ela pra c�, Gordo. Eu dou comida na boca dela, me caso com ela... � Ela � minha av�, juro.. � N�o faz mal... Mesmo velha serve... Ant�nio Baldu�no se levantou em cima do bra�o: � Eu t� maginando aqui dentro � batia na cabe�a � que voc�s s�o tudo uns bestas... o Gordo tem uma av�, � mesmo... E o Gordo tem um anjo da guarda... O Gordo tem coisa que ningu�m tem... O Gordo � bom, voc�s n�o sabe... O Gordo se atrapalhava. Os homens estavam calados e a mo�a olhava agora com espanto. � O Gordo � bom, a gente � ruim... O Gordo... Ficou olhando as planta��es de fumo que se perdiam de vista. Ricardo murmurou: � Mesmo velha eu comia... Mas a mulher, antes de entrar na casa, chegou para perto do Gordo e pediu: � Voc� reza pra mim? Reza pro anjo fazer Ant�nio arranjar uns cobres pra gente ir pras fazenda de cacau. � Olhou as folhas de fumo. � L� tem dinheiro de fazer medo... Ricardo disse: Esse ano o trabalho est� pesado... A safra � grande e Seu Zequinha n�o bota mais gente... Nem sei como botou voc�s dois... � A gente tava quase morto de fome em Cachoeira. Por isso a gente veio... � Para ganh� dezt�es por dia... Um jumento zurrou no campo. Ant�nio Baldu�no disse pro velho que vinha da casa comendo: � Cumprimenta teu pai, velho, que est� reclamando... � E tu n�o pede a b�n��o a teu av�? Olha, que eu conheci tua m�e... Riram. Ant�nio Baldu�no baixou a voz: � Deixe l� que Sinh� Totonha � um peda�o... � Se meta com ela pra ver... Ant�nio tem quatro morte no costado... Ele n�o

brinca nem erra fogo... � Eu sei � que tou seco... Dois meses sem mulher... O velho riu. Ricardo olhou com raiva: � Voc� ri porque � casado... Tem mulher... Pode ser um couro mas � mulher... E eu que j� faz quase um ano que n�o vejo uma �gua na cama... � Tou rindo n�o � disso, n�o. Quando eu vim para essas bandas colher fumo j� era assim. Eu passei uma dureza... At� que peguei a Celeste que vivia a� quase menina... Hoje t� um couro mas naquele tempo era uma tenta��o... Negro dava em cima que nem urubu em carni�a. Mas tudo tinha medo do velho Jo�o que era feroz. Ele tinha dito que negro que roubasse a filha dele tava morto. Mas, homem, eu n�o via cheiro de mulher fazia dois ano... Disse que morrer era besteira, que a gente s� morre quando chega o tempo. Numa noite tava um chuvisquinho eu chamei a Celeste para conversar. O velho tava dentro de casa, limpando a repeti��o. Ainda falou comigo, se rindo... Eu n�o tinha ainda medo, tive naquela hora... Mas Celeste j� vinha, eu n�o pude mais. Ali mesmo, nuns mato que tinha perto, derrubei a bicha. Os homens estavam com os olhos baixos. Ant�nio Baldu�no riscava o ch�o com um punhal. Ricardo batia as m�os uma na outra impaciente... O velho continuou: � Fazia dois ano que eu n�o sabia o que era mulher... Ela ficou com o vestido todo rasgado... Eu fugi por esse mato de Deus, esperando o velho pra me matar. � E depois? � No outro dia tomei coragem, fui l� falar com o velho Jo�o... Ele tava limpando a repeti��o e quando me viu encostou a bicha no ch�o. Eu sabia que ele me matava, mas eu queria andar com a Celeste de novo... Peguei e disse a ele tudo. Falei que queria casar, que era um homem direito e trabalhador... A� o velho fechou a cara, eu pensei que tivesse chegado minha hora. Mas ele n�o fez nada, s� disse: �Isso tinha que acontecer... Aqui n�o tem mulher e homem precisa de mulher. Leve ela pra sua casa mas se case com ela�. Eu fiquei sem acreditar e Jo�o disse ainda: �Gostei que voc� veio contar tudo. Homem faz � assim�. Depois chamou a Celeste e mandou que ela fosse comigo. E ficou limpando a repeti��o. Mas quando eu sa� eu juro que ele tava chorando... Os homens ficaram calados. O vento balan�ava os p�s de tabaco, as folhas largas lembravam sexos estranhos de mulheres. Ricardo engoliu em seco e disse: � N�o sei como a gente pode trabalhar sem ter mulher... Aqui s� tem essas duas casadas... � E a filha de Sinh� Laura? � Eu casava com ela se ela quisesse... � disse Ricardo. Ant�nio Baldu�no enfiou o punhal na terra. Um negro alto afirmou: � Um dia eu chamo ela aos peitos, ela deixe ou n�o deixe... � Mas � uma menina de doze anos � se espantou o Gordo. Os montes atr�s, cobertos de neblina. A estrada de ferro que passava longe. De vez em quando um trem que apitava com mulheres que davam adeus nas portinholas. A estrada onde os homens passavam levando sacos de frutas para as feiras, conduzindo burros carregados, levando bois para vender em Feira de Santana. Ora seguravam sacos enormes com as m�os calosas, ora tangiam os burros ou conduziam os bois. Passavam enormes boiadas, os vaqueiros cantando tristemente: � Ouuuuuu booiiiii. E as m�os que se abaixavam para a terra, m�os grandes e calosas que colhiam as folhas cheirosas de tabaco. As m�os se baixavam e se levantavam num certo ritmo sempre igual. Pareciam pessoas que choravam. E aquele trabalho dava uma dor nas costas, dor fina e prolongada que ficava pela noite adentro, magoando. Zequinha passava olhando o servi�o, dando ordens, brigando. Montes de folhas de fumo se juntavam e, quando a tarde vinha, as m�os dos homens haviam ganho dez tost�es que eles n�o viam, porque j� deviam ao patr�o quantias desconhecidas. Com as m�os calosas e feias acenavam adeuses aos trens que passavam apitando. Na casa de taipa moravam quatro: Ricardo, o negro, Filomeno, Ant�nio Baldu�no e o Gordo. Filomeno s� falava em tiros e mortes, isso quando falava, porque geralmente estava calado ouvindo. Ricardo tinha em cima das t�buas em que dormia, colado na parede, o retrato de uma atriz de cinema, toda nua, com um leque apenas

cobrindo o sexo. Havia pregado o retrato na parede com muito cuidado, retrato que lhe dera o filho do patr�o, h� uns tr�s anos, quando viera � fazenda. E colocava o fif� de tal jeito que a luz vermelha dava bem em cima da atriz que parecia nua como um convite. O Gordo tinha um santo em cima da cama, santo que �trocara� por quinhentos r�is nas festas do Bonfim. Ant�nio Baldu�no juntava nos p�s do jirau a figa que Jubiab� lhe dera e os punhais que trazia no cinto, O negro Filomeno n�o tinha nada. Vinham para o terreiro ap�s o jantar e eles que n�o tinham cinema, nem teatro, nem cabar�s, tocavam viol�o e cantavam ao desafio. As m�os brutas dos homens negros tiravam das cordas sonoridades que enchiam de alegria e de tristeza os camponeses todos das planta��es de fumo. Cantavam cantigas tristes, sambas alegres, e no desafio Ricardo era perito. As suas m�os corriam pelas cordas do viol�o e n�o eram mais aquelas m�os calosas da enxada e da terra. Eram m�os de artista, r�pidas e certas, que levavam ao cora��o dos homens a hist�ria de amores e de lutas. As m�os que antes davam o p�o, davam agora a alegria na terra sem mulheres. Os viol�es repinicavam noite afora e era o cinema, o teatro, o cabar�. As m�os r�pidas corriam pelas cordas e a m�sica se espalhava entre as planta��es de fumo que, � luz da lua, apresentavam aspectos estranhos. Quando o sil�ncio baixava sobre tudo, quando n�o se ouvia mais o som das violas e os homens j� estavam estirados nos jiraus, o fif� apagado, Ricardo olhava o retrato da atriz nua com um leque cobrindo o sexo. Estava com os olhos fitos nela e eis que ela se move. Por�m agora est� vestida e eles n�o est�o mais nas planta��es de fumo. Est�o numa grande cidade, numa cidade que Ricardo nunca viu, cidade iluminada, cheia de autom�veis e de avenidas, maior que Cachoeira e S�o F�lix reunidas. Deve ser a Bahia e talvez seja at� o Rio de Janeiro. Passam mulheres loiras, mulheres morenas e todas sorriem para Ricardo que est� elegante, vestido de casimira, com uns sapatos vermelhos como os que ele vira numa loja de Feira de Santana. As mulheres riem e todas o querem, mas ele est� com a atriz que conheceu num teatro e que se dependura no bra�o dele de uma maneira que ro�a os seios no seu peito. Agora v�o cear num restaurante chique, de mulheres decotadas, onde bebem vinhos caros. Ele j� beijou repetidas vezes a mulher que sem d�vida o ama, pois consente que ele lhe machuque os seios e suspenda por baixo da mesa o seu vestido de seda. Mas, agora, ela est� novamente no quadro, com o leque em cima do sexo, porque o jirau est� balan�ando muito e Ant�nio Baldu�no se moveu na sua cama de t�bua, no outro lado da sala. Ricardo espera com raiva que tudo fique calmo de novo. Puxa a coberta esburacada at� o queixo. Volta com a mulher ao restaurante para, logo depois, tomarem um autom�vel e se deixarem ficar num quarto onde h� cama e perfumes. Ele a despe devagarinho gozando os seus encantos um a um. Pouco lhe importa agora que o jirau ranja e que Ant�nio Baldu�no se mova. N�o, n�o � a sua m�o calosa que ele tem em cima do sexo. � o sexo alvo da atriz loira, que n�o est� com vestido nem com leque e que ama Ricardo, trabalhador das planta��es de fumo. Acorde quem quiser, porque ele n�o est� fazendo nada de mais, est� amando uma mulher bonita, de seios duros e de ventre redondo. A sua m�o � uma mulher. A atriz voltou para o quadro, o sexo tapado com o leque. Na estrada brilha a luz de um fif� que ilumina as planta��es de fumo. Ricardo deita a cabe�a sobre as t�buas do jirau e dorme. Num domingo Ricardo disse que ia pescar nas �guas do rio. Tinha comprado uma bomba e com ela esperava matar muito peixe. Convidou os outros. Somente o Gordo se resolveu a ir. Conversaram o caminho todo. Na margem do rio ele tirou a camisa, o Gordo se deitou na relva. As planta��es de tabaco se estendiam l� atr�s. Passava um trem. Ricardo preparou a bomba e acendeu a mecha. Sorria. Estendeu as m�os para a frente, mas antes que jogasse a bomba ela estourou levando-lhe as m�os e os bra�os, encharcando o rio de sangue. Ricardo olhou os cotos dos bra�os e era como se houvesse se suicidado. Sentinela

Arminda, a filha de Sinh� Laura, que ao terminar o trabalho corria pelos campos a sua meninice de doze anos, n�o corre mais e trabalha com o rosto angustiado. At� uma vez pediu licen�a a Zequinha para ir em casa. � que, h� uma semana, Sinh� Laura est� estendida em cima de uma cama, inchando com uma doen�a desconhecida. Antes Arminda era alegre e tomava banho no rio, nadando como um peixe, excitando os homens com o espet�culo do seu corpo de menina. Agora apenas trabalha porque se n�o trabalhar morre de fome. Na ter�a-feira nem no trabalho apareceu. Totonha, que veio da casa da doente, avisou: � A velha esticou as canelas... Os homens pararam o trabalho por um minuto. Um disse: � J� estava na idade... � Est� inchada que nem um boi... Faz at� medo... � Que doen�a mais esquisita. � Ningu�m me tira que aquilo foi esp�rito ruim... Zequinha vinha chegando. Os homens se curvaram de novo sobre as folhas de fumo. Totonha falou com ele e depois avisou: � Eu vou ficar com a menina. De noite tem senti nela... O negro Filomeno segredou para Ant�nio Baldu�no: � Quem me dera ser eu. Sozinho com ela, era um Deus nos acuda. O Gordo bebeu um trago de cacha�a porque tinha muito medo de defunto. E, na hora do almo�o, ficaram relembrando hist�rias de defuntos conhecidos, contando casos de doen�as e de mortes. O negro Filomeno n�o falava. Estava com um plano na cabe�a. Pensava em Arminda, na frescura da sua carne mo�a Os fif�s pareciam andar. A luz vacilante se aproximava da casa de taipa. N�o se viam as pessoas. Somente aquela luz vermelha que bruxuleava e mudava de lugar como uma alma penada. Na porta, Totonha recebia as visitas que vinham fazer a sentinela da morta. E distribu�a abra�os e recebia p�sames como se fosse parente de Sinh� Laura. Estava com os olhos �midos e narrava os sofrimentos da defunta: � Coitada, gritava tanto... Tamb�m com aquela doen�a danada... � Aquilo era esp�rito... � Deu de inchar, ficou com a barriga estofada... � Agora descansou... Uma mulher se benzeu, O negro Filomeno perguntou: � E Arminda? � T� l� dentro chorando... Coitadinha, ficou sem ningu�m no mundo... Ofereceu cacha�a que todos tomaram. No �nico c�modo da casa dois bancos se alinhavam ao lado de uma parede. Alguns homens e mulheres, de p�s descal�os e cabe�as descobertas, velavam a morta. Do outro lado da sala uma cadeira velha onde Arminda sentada chorava um choro sem l�grimas, intercalado de solu�os altos. Tinha os olhos tapados com um len�o vermelho. Os rec�m-chegados foram at� onde ela estava e apertaram-lhe a m�o sem que ela se movesse. N�o diziam palavra. E no meio da sala, estendido em cima de uma mesa, que era nos dias comuns cama e mesa de jantar, estava o cad�ver, inchado, parecendo querer estourar. Uma coberta de chit�o, de grandes flores amarelas e verdes, cobria o corpo, deixando do lado de fora o rosto enrugado com a boca torcida e os p�s enormes e achatados de dedos abertos. Os homens ao voltar espiavam o tosto da morta e as mulheres se

benziam. Uma vela estava colocada perto da cabe�a da defunta e despenhava a sua luz ba�a sobre o rosto parado, ainda torcido numa express�o de sofrimento. E aqueles olhos parados pareciam olhar fixamente os homens e as mulheres, que agora estavam todos sentados nos bancos e cochichavam. Uma garrafa de cacha�a passou de m�o em m�o. Bebiam pelo gargalo em grandes tragos. Dois homens sa�ram para fumar l� fora. Zequinha chegou e passou a m�o na cabe�a de Arminda. Ent�o come�aram as ora��es puxadas pelo Gordo: �Senhor, tomai essa alma�. Os presentes respondiam em coro: �Orai por ela�. A garrafa de cacha�a corria pela roda. Bebiam pelo pr�prio gargalo. A vela brilhava sobre o rosto da morta, que cada vez inchava mais. O coro vinha como um lamento: �Orai por ela�. Ant�nio Baldu�no levantou os olhos e espiou Arminda. Ela chorava no outro lado da sala. Mas o rosto inchado da defunta impede que ele veja direito. Tamb�m o negro Filomeno olha para a �rf�. Ant�nio Baldu�no bem v� que os olhos do negro est�o pousados nos seios de Arminda que sobem e descem com os solu�os que lhe sacodem o colo. E Ant�nio Baldu�no tem raiva. Murmura para o vizinho: � Miser�vel do negro nem respeita os mortos. Mas ele tamb�m olha os seios que se movimentam por baixo do vestido. De repente, o negro Filomeno desvia o olhar e espia as pessoas que est�o na sala. Ele est� com medo, todos est�o vendo. De que ser� que tem medo o negro Filomeno?, pensa Ant�nio Baldu�no. E olha quase risonho o decote do vestido de Arminda. A luz do fif� bate em cima do come�o dos seios. E quer entrar... Sim, a luz do fif� quer entrar pelos seios de Arminda como uma m�o. L� est� ela tentando... Ant�nio Baldu�no segue a cena com os olhos brilhantes. Afinal, parece que a luz conseguiu entrar pelo decote. Naturalmente agora est� amassando os seios que sobem e descem. Ant�nio Baldu�no sorri e quase murmura: � Conseguiu, a peste... Mas agora ele tamb�m retira o olhar e est� tremendo. Pois n�o � que a morta fixou nele os olhos parados com uma express�o de �dio? Ant�nio Baldu�no olha o ch�o, espia as m�os grossas, mas sente que o olhar raivoso da defunta o acompanha. Pensa: � Por que o diabo desta velha n�o toma tento com o peste do Filomeno que quer comer a filha dela? Se recorda que ele tamb�m tem m�s inten��es e foge do olhar da velha. Olha para o Gordo cuja boca se abre e se fecha cantando as rezas de defuntos. Quer ver se pensa numa mosca entrando na boca Gordo. Mas a morta est� olhando para ele e Filomeno est� espiando os seios de Arminda. � Diabo de velha que ainda t� tomando conta da filha... N�o j� morreu... � Hein? � fez o vizinho... � N�o disse nada... O Gordo est� cantando. Ant�nio Baldu�no repete como todo mundo: �Orai por ela� Aquela mosca � capaz de entrar na boca do Gordo. Ia entrando, o Gordo fechou a boca. L� vai ela de novo. Parou no nariz. Est� esperando que o Gordo abra novamente a boca. � agora. Mas a mosca levantou v�o e foi pousar em Arminda, no outro lado, O negro Filomeno se remexeu na cadeira. Ant�nio Baldu�no fica imaginando como ser�o os seios de Arminda fora do vestido. Olhe que bicos grandes que eles t�m. Chegam a formar uma bola no vesti do. A mosca est� sentada bem em cima de um deles, exatamente no esquerdo. Ela n�o usa porta-seios, est� logo se vendo. Os seus seios ser�o duros e carnudos... Por que ser� que ela chora? � pensa Ant�nio Baldu�no... Tem uns olhos grandes, pestanudos. Com o solu�o que agitou seu peito o seio quase pula fora do vestido. E a mosca fugiu. Foi pousar em cima do rosto da defunta. Como ela inchou! Quase n�o cabe mais na mesa. E o rosto ent�o est� enorme, a pele esverdeada e os olhos esbugalhados. Mas por que ela olha para Ant�nio Baldu�no? O que � que ele est� fazendo? Ele nem est� olhando para Arminda.

O negro Filomeno sim que n�o tira os olhos dela. Ent�o por que a morta n�o o larga, n�o o deixa sossegado, olhando para onde quiser? E como est� inchada, disforme. A mosca sentou em cima do nariz. Ser�o bagas de suor que brilham no rosto da defunta? Naturalmente ela quer ora��o. Ant�nio Baldu�no, em vez de estar rezando com os outros, est� � espiando a filha dela. E o negro faz coro: �Orai por ela� Foi gozado porque ele disse t�o alto que assustou Filomeno que repetiu tardiamente �Orai por ela�. N�o era a hora. O Gordo j� estava dizendo outra coisa. passa a garrafa de cacha�a. Ant�nio Baldu�no tomou um gole grande e tentou espiar novamente Arminda. Mas a morta est� implicando com ele. Agora incharam tanto os olhos que quando Baldu�no espia n�o consegue ver mais que metade do rosto de Arminda. V� bem, v� muito bem mesmo, os olhos da defunta que o acompanham com �dio. Ser� que ela adivinhou que ele vai pedir �gua � Arminda s� para que ela v� com ele para a outra sala, onde ele poder� agarr�-la? Os mortos sabem tudo. Ela j� soube com certeza e n�o o larga mais. Ele est� vendo o rosto medonho da velha morta. Ningu�m tem um rosto daquele. O rosto de Arminda � risonho. Mesmo quando ela est� chorando, como agora, tem um rosto alegre. Por que ser� que existem pessoas assim? O rosto da defunta est� verde e cheio de bagas de suor. Est� pegajoso. Ant�nio Baldu�no esfrega as m�os uma na outra, querendo se livrar da vis�o. Espia para o teto. Mas sente que os olhos da morta est�o fitos nele. Ficou muito tempo espiando as traves e as telhas pretas. De repente baixou a vista e olhou os seios de Arminda. Sorriu satisfeito: tapeou a velha morta. Mas foi pior, foi muito pior: ela ficou com a boca torcida de raiva, esbugalhou ainda mais os olhos. Tem uma mosca pousada na sua boca. Parece uma ponta de cigarro, preta da saliva. Ant�nio Baldu�no tenta acompanhar as ora��es. E quando pensa que a morta n�o est� mais olhando para ele, abre a boca para pedir �gua a Arminda. Mas l� est�o os olhos da defunta bem postos em cima dos seus, num ar de desafio. Reza de novo. Bebe cacha�a. Quantas vezes j� teria passado por ele a garrafa? Essa est� no finzinho. Quantas ter�o ainda que abrir? Numa sentinela se gasta muita cacha�a... E agora que a morta n�o est� espiando, Ant�nio Baldu�no se levanta devagarinho, circunda a mesa onde est� o cad�ver, toca no ombro de Arminda: � Venha me dar um gole d��gua. Ela se levanta. V�o para o quintal, no fundo onde est� uma tina d��gua e um caneco. Arminda se curvou para encher o caneco e pelo decote do vestido Ant�nio Baldu�no v� os seios. Ent�o segurou nos bra�os da menina e girou com ela que ficou de frente para ele, olhando-o espantada. Mas ele n�o v� nada a n�o ser aquela boca e aqueles seios que est�o na sua frente. Vai apertar o abra�o e a sua boca se dirige para a boca de Arminda, que ainda n�o compreende, quando os olhos da defunta chegam e se colocam entre os dois. A velha Laura deixou seu lugar em cima da mesa e se meteu entre eles. Ela est� tomando conta da filha. Os mortos sabem tudo e ela sabia o que Ant�nio Baldu�no pretendia fazer. Est� ali entre os dois olhando o negro. Ele solta Arminda, p�e as m�os nos olhos, derruba o caneco com �gua e entra na sala como um cego. A morta inchou ainda mais na mesa. O negro Filomeno ri como quem compreendeu a id�ia de Ant�nio Baldu�no ao pedir �gua. Ele vai fazer o mesmo com certeza. Que besta � pensa Baldu�no � ele est� julgando que vai levar alguma vantagem. Quando chegar l� encontra a finada espiando para ele. A finada sabe de tudo, ela adivinha tudo... Por�m os olhos da morta n�o acompanharam Filomeno. Ser� que ela vai deixar aquele negro imundo tocar em Arminda? Ele se levantou e pediu �gua a Arminda e a morta n�o fez nada. Ant�nio Baldu�no murmura para o rosto impass�vel: � V�! V�! N�o est� vendo aquilo? N�o est� vendo? Aquele negro � malvado. Mas a morta n�o atende ao aviso. Parece at� que ela est� rindo. Ouve-se um ru�do l� dentro. Arminda volta para a sala e agora chora um choro diferente. O vestido est� machucado no lugar dos seios. O negro Filomeno entra sorrindo. Ant�nio Baldu�no torce as m�os com raiva, levanta e diz alto para o Gordo: � Voc� n�o disse que ela � uma menina de doze anos? Cad�? Cad� a morta que n�o

fez nada... Zequinha diz: � T� b�bado.. Algu�m cerra os olhos da morta. Fuga

No cinto, por baixo do palet�, Ant�nio Baldu�no traz dois punhais. Zequinha correu para cima dele com a foice na m�o. Se atracaram e rolaram no barro duro da estrada. Zequinha caiu e a foice voou longe. Quando ele se levantou e correu novamente para Ant�nio Baldu�no, viu o punhal na m�o do negro. Parou irresoluto. Ficou calculando o golpe. Depois deu um pulo. Ant�nio deu um passo para tr�s, a sua m�o se abriu e o punhal caiu. Zequinha riu com os olhos e r�pido como um gato se abaixou para apanhar a arma do inimigo. E enquanto ele se abaixa, Ant�nio Baldu�no tira do cinto o outro punhal que finca nas costas de Zequinha. Ant�nio Baldu�no traz sempre dois punhais no cinto... E a sua gargalhada assusta os homens mais que a luta, que a punhalada e o sangue. Era de noite e o negro ganhou o mato. Abre caminho pelo mato. Corre entre as �rvores que se fecham. H� bem tr�s horas que ele corre assim como um c�o perseguido pelos garotos malvados. No sil�ncio do mato os grilos se fazem ouvir. Corre sem rumo, perdido, varando o mato, com os p�s doidos evitando as estradas, se rasgando nos espinhos. A sua cal�a de mescla est� lanhada de cima a baixo. Ele nem viu quando ela se rasgou. E o mato sem fim se estende na sua frente. N�o v� nada na escurid�o. Agora p�ra. Ouve ru�dos de matos quebrados. Quem vem l�? J� o perseguir�o? Fica atento, a m�o na navalha, �nica arma que lhe resta. Est� atr�s de uma �rvore e � dif�cil que seja visto. Sorri pensando que o perseguidor que passar primeiro dormir� para sempre. A navalha est� aberta em sua m�o. E r�pido como uma vis�o passa na frente um habitante daqueles matos. Que bicho teria sido? Ant�nio Baldu�no n�o o reconheceu sequer e ri do medo que teve. Continua a caminhada, abrindo caminho com as m�os. Cai sangue do seu rosto. O mato � implac�vel para com os que o violam. Um espinho rompeu o rosto do negro Ant�nio Baldu�no. Mas ele n�o v� nada, n�o sente nada. Sabe apenas que deixou um homem ca�do nas planta��es de fumo. E nas co�stas deste homem estava um punhal que era seu, que fora manejado pela sua m�o. Ant�nio Baldu�no n�o tem remorsos do que fez. Zequinha foi o �nico culpado. Foi ele quem fez tudo para aquela briga. Ele o perseguia muito. Aquilo tinha que acontecer... E se ele n�o viesse com a foice na m�o, Ant�nio Baldu�no n�o puxaria o punhal. O mato � ralo mais adiante. Atrav�s das folhas o negro v� as estrelas que brilham. O c�u est� claro. Farrapos de nuvens brancas correm. Se estivesse ali uma mulata, Ant�nio Baldu�no diria que os dentes dela se pareciam com as nuvens brancas do c�u. Ele p�ra e admira o c�u da noite estrelada. Senta. Est� numa clareira e n�o se recorda mais da briga. Se dos Reis estivesse ali... Mas dos Reis foi com uma fam�lia para S�o Lu�s do Maranh�o. Foi pelo mar, num navio negro cheio de luzes. Se ela estivesse ali eles se amariam no sil�ncio do mato. O negro olha as estrelas. Quem sabe se dos Reis n�o est� olhando estas mesmas estrelas? Estrela est� em todo lugar. Ser�o as mesmas? � pensa Ant�nio Baldu�no. Dos Reis est� vendo esta estrela e Lindinalva tamb�m. Quando pensa em Lindinalva se aborrece. Por que est� pensando nela? Ela � branca, tem sardas no rosto, e n�o d� ousadia a um negro como ele. � melhor pensar em Zequinha, estendido no barro com um punhal nas costas, que pensar em Lindinalva que odeia o negro. Se ela soubesse que ele estava

fugido, sem d�vida contaria a pol�cia. Dos Reis o esconderia, mas Lindinalva n�o. Ant�nio Baldu�no abre os l�bios grossos num sorriso porque se lembra que Lindinalva n�o sabe de nada e n�o poderia denunci�-lo. Fica irritado contra as estrelas que o fazem pensar em Lindinalva. Viriato, o An�o, tinha raiva das estrelas. Uma vez lhe dissera. Quando? Ant�nio Baldu�no n�o se recordava. Viriato quase que s� conversava sobre a sua tristeza de ser sozinho. E um dia entrou pelo caminho do mar, como aquele outro velho que foi retirado da �gua numa noite em que os homens do cais carregavam um navio sueco. Ser� que Viriato encontrou sua casa? O Gordo diz que quem se mata vai para o inferno. Mas o Gordo � maluco, n�o sabe o que diz. Ant�nio Baldu�no est� com saudades do Gordo. O Gordo tamb�m n�o sabe de nada, n�o sabe que ele matou Zequinha com uma punhalada nas costas. Fazia j� quinze dias que o Gordo se fora, cheio de saudades da av� que n�o tinha na Bahia quem lhe desse comida na boca. O Gordo � muito bom, � incapaz de dar uma punhalada em algu�m. Nunca foi homem para uma briga. Ant�nio Baldu�no se lembra perfeitamente dos dias de inf�ncia mendigando na Bahia. O Gordo sabia pedir esmolas como nenhum. Mas para brigar n�o servia. Felipe, o Belo, ria dele. Era bonito Felipe, o Belo. Quando ele morreu debaixo do autom�vel, no dia do seu anivers�rio, todo mundo chorou. O seu enterro pareceu enterro de rico. As mulheres da Rua de Baixo levaram flores. Uma francesa velha chorava. Era a m�e de Felipe. E tinham vestido nele uma roupa bonita de casimira e tinham posto uma gravata nova. Felipe devia ter ficado contente. Ele era elegante, gostava de uma gravata... Ant�nio Baldu�no brigou por causa dele uma vez. Sorri ao se recordar do fato. Fora uma surra bonita que dera no Sem Dentes. Sem Dentes tamb�m viera com um canivete em cima dele e ele n�o puxara arma nenhuma. Com Zequinha ele puxara o punhal. Agora ele est� certo que n�o gostava de Zequinha, que implicara com aquela cara desde o primeiro dia. E se n�o fosse ele que o apunhalasse, outro o apunhalaria. O negro Filomeno tamb�m tinha uma sede danada em Zequinha. E tudo aquilo por causa de Arminda. Para que Zequinha se amigou com ela? Eles tinham chegado antes. Na noite da sentinela Ant�nio Baldu�no s� n�o a levou para casa porque a morta n�o o largava com aqueles olhos inchados. E o negro Filomeno n�o tinha amassado os peitos dela? Ent�o para que Zequinha se meteu e levou a menina? Era uma menina de doze anos, o Gordo sempre disse. Uma menina de doze anos. O Gordo queria dizer que ela n�o era mulher ainda, que fazer aquilo com ela era uma malvadez. Mas Zequinha fez, bem que merecia uma punhalada... � verdade que se ele n�o fizesse o negro Filomeno faria ou mesmo Ant�nio Baldu�no. Sim, ele sabe que n�o foi por isso que cravou o punhal nas costas de Zequinha. Ela era uma menina de doze anos... Mas ele matou o capataz foi porque ele ficou com ela quando o negro a queria no seu jirau. Ela tinha doze anos mas j� era mulher... J� seria mesmo? E se o Gordo tivesse raz�o? Se ela fosse uma menina e aquilo uma malvadez? Ent�o Zequinha n�o faria mais, porque estava estendido no barro com um punhal nas costas. Por�m de que valeu? Agora o negro Filomeno j� a levou para casa, com certeza. Essa � a lei das planta��es de fumo. Mulher � bicho raro e quando uma fica sem homem encontra logo outro que a leva para casa. A n�o ser que ela prefira ir para as ruas de mulheres da vida em Cachoeira, em S�o F�lix, em Feira de Santana. A� sim que seria uma malvadez. Porque ela � uma menina de doze anos e todos a querer�o. Depois ela ficar� velha e tomar� cacha�a, n�o lavar� mais os cabelos, seus seios murchar�o, ter� doen�as ruins, ter� quarenta anos no dia que completar quinze. Talvez tome veneno. Outras se jogam no rio nas noites escuras... Era melhor que ela ficasse com Zequinha, colhendo fumo nos campos. Mas Zequinha est� apunhalado... Ant�nio Baldu�no ouve vozes atrav�s do mato. Se aproxima mais para ouvir. Ainda � um ru�do indistinto. Ser�o homens que passam na estrada? Mas a estrada est� longe, est� do outro lado, o que existe ali � uma simples picada. Ant�nio Baldu�no se aproxima mais. Agora ouve. Os homens est�o pr�ximos, separados dele apenas por uma fita de mato. S�o os homens da fazenda. Est�o todos com repeti��es e fumam sentados na picada. Est�o atr�s do negro Ant�nio Baldu�no que apunhalou o capataz. E n�o sabem que o negro est� ali junto deles, quase rindo. Por�m treme quando ouve os homens dizerem que ele est� cercado na capoeira e que ou morrer� de fome, ou sair� para ser preso. Ant�nio Baldu�no se afasta vagarosamente, evitando os ru�dos, e se

interna novamente no mato. Do outro lado tem a estrada. Mas nela haver� homens tamb�m como em volta de toda a capoeira. Ele est� cercado, est� acuado como um c�o danado. Ou morrer� de fome, ou ser� preso como assassino. Os grilos irritam com o seu ru�do. Na casa de Zequinha est� havendo sentinela. E o negro Filomeno � pensa Ant�nio Baldu�no � o negro Filomeno estar� ali armado de repeti��o ou estar� na sentinela olhando para Arminda pronto para lev�-la para casa. Se ele pudesse apunhalar tamb�m o negro Filomeno... Mas ele est� cercado como um c�o danado, est� acuado na capoeira e come�a a sentir fome e a sentir sede... Os p�s est�o do�dos da caminhada. Ele poderia ter dado uma surra unicamente em Zequinha. Pois ele n�o era Baldo, o boxeur? N�o derrubara tantos outros no Largo da S� na Bahia?.. Sim, ele poderia ter derrubado Zequinha a socos. Mas ele viera com uma foice. O homem n�o briga de foice e trai��o se paga com trai��o... Por isso puxara o punhal e o deixara cair para cravar o outro nas costas de Zequinha. E quem ganhara com tudo isso fora Filomeno, que agora devia estar na sentinela olhando para Arminda... Ele mataria Filomeno se pudesse ir at� a casa de Zequinha. O cad�ver estaria estendido no jirau com a ferida nas costas. Filomeno p�s, com certeza, seu punhal no cinto e depois por� Arminda na sua casa. Ele devia ter matado era Filomeno. Agora estava acuado na capoeira, cercado de todos os lados. Se n�o fosse a sede que sentia tudo iria bem... Mas a sua garganta est� seca. N�o lhe importam os p�s do�dos, o rosto que sangra rasgado pelos espinhos, a roupa retalhada, S� lhe importa a garganta que arde de sede. Gostaria de comer tamb�m. Naquele mato n�o tem frutas. N�o � �poca de goiabas, as goiabeiras n�o t�m um s� fruto. Uma cobra passa silvando. Os grilos fazem um ru�do insuport�vel. Agora ele n�o v� mais as estrelas que o mato � cerrado. E a sede aumenta. Fuma. Felizmente os cigarros e os f�sforos estavam no bolso da cal�a. Que horas ser�o? Meia-noite talvez, talvez seja mais tarde. O cigarro faz esquecer a sede e a fome. Desde quando ele fuma? Nem se recorda mais. Ainda no Morro do Capa-Negro ele j� fumava. Apanhou por causa disto. Se sua tia Lu�sa o visse agora, que diria? Ela dava.lhe surras mas gostava dele. Enlouqueceu, coitada, de tanto carregar mingau e munguz� para vender no terreiro. Na frente da sua casa, no morro, homens se reuniam para conversar. Um dia veio aquele ho mem de Ilh�us que contou hist�rias de jagun�os corajosos. E hoje Ant�nio Baldu�no estava acuado como se fosse tamb�m um jagun�o c�lebre. Se o homem de Ilh�us o visse com certeza o admiraria tamb�m e juntaria a sua hist�ria �quelas que contava pelas noites adentro. Ele tamb�m quisera ter um ABC. Pensava que aquele homem calvo, que aparecera na macumba de Jubiab�, escreveria um dia o seu ABC. O Gordo disse que a vida do homem calvo era escrever os ABC dos homens mais corajosos que conhecia e que para isso vivia correndo o mundo montado num cavalo alaz�o. Ant�nio Baldu�no j� merecer� um ABC? Ele n�o o sabe. Talvez que o homem de Ilh�us conte um dia a sua hist�ria a homens e meninos de outro morro que o admirar�o e pensar�o em ser como ele. Ah! mas se ele sair desta capoeira, onde est� cercado por homens armados de repeti��o, merecer� ser cantado num ABC. Quantos ser�o os perseguidores? Se vieram todos da fazenda fazem mais de trinta. Mas n�o vieram todos com certeza. O negro Filomeno n�o veio, ficou l� com Arminda, dizendo mentiras, prometendo coisas. Ele conhece aquele negro... Negro que quase n�o fala � negro ruim... Aperta a navalha. Com aquela arma somente, ele atacaria Filomeno se o visse agora. Diriam isso tamb�m no seu ABC. Somente com uma navalha atacou e matou um jagun�o que trazia uma repeti��o. Atira fora o cigarro in�til. Diabo, a garganta est� seca, o est�mago arde, e sente uma dor violenta no rosto. Passa a m�o e toca na ferida feita pelo espinho. Agora que o sangue deixou de correr ela est� doendo. � um talho grande, lanhou todo o seu rosto. Tamb�m seus p�s sangram, as m�os est�o em feridas. E a sede que o tortura, os homens que o cercam, os grilos que fazem ru�do... V� novamente as estrelas agora no mato ralo. Se ainda houvesse �gua. Se chovesse... Mas n�o h� nuvens negras no c�u. Somente farrapos de nuvens brancas que o vento carrega. E a lua que saiu, a grande lua alva que est� bonita como nunca. Que vontade que ele tem de estar no cais da Bahia com o seu viol�o, com aquela mulher que tinha uma voz masculina, cantando uma valsa, uma coisa bem velha que falasse em amor... Depois rolariam na areia do cais, os corpos

embolados... Ah! como era bom. Aquela estrela parece a lua da Lanterna dos Afogados. Beberia um trago, ouviria a m�sica do velho cego que canta ao viol�o, conversaria com o Gordo e Joaquim. Talvez at� Jubiab� aparecesse e ele lhe pediria a b�n��o. Pai Jubiab� tamb�m n�o sabe que ele est� acuado na capoeira. N�o sabe que ele matou Zequinha. Mas Jubiab� compreenderia e passaria a m�o na sua cabe�a e depois falaria em nag�. N�o, ele n�o diria que o olho da piedade vazou, que ficou somente o olho da ruindade... Por que ele havia de dizer isso? Ant�nio Baldu�no ainda tem bem aberto o olho da piedade. Matou Zequinha, matou... Mas foi porque ele estava andando com uma me nina de doze anos... Uma menina, n�o era mulher feita... Que pergunte ao Gordo se quiser. Uma menina, t�o menina que a m�e quando morreu tomava conta dela... Pergunte ao Gordo, se quiser... Mas � in�til mentir a pai Jubiab�. Ele sabe tudo, que ele � pai-de-santo e tem for�a junto a Oxal�... Sabe tudo como a velha defunta... N�o, ele matou porque queria Arminda para ele... Ela tinha doze anos, mas j� era mulher... O Gordo n�o entende destas coisas... Como � que algu�m pode acreditar no Gordo... O Gordo n�o entende nada de mulheres, o Gordo s� entende de rezas. E depois o Gordo � muito bom, n�o tem olho da ruindade. Pai Jubiab� deve � fazer um feiti�o para matar o negro Filomeno... O negro Filomeno � ruim, ele vazou tamb�m o olho da piedade... Um feiti�o para matar ele, um feiti�o forte que tenha cabelo de sovaco de mulher e penas de urubu... Por que ser� que pai Jubiab� balan�a a cabe�a? Ah! ele est� dizendo em nag� que Ant�nio Baldu�no tamb�m vazou o olho da piedade... Ele est� dizendo, sim... Ant�nio Baldu�no puxa a navalha com a garganta seca de sede. Se Jubiab� repetir ele o matar� tamb�m. E depois passar� a navalha no pr�prio pesco�o. V�, no c�u azul, o negro velho. N�o � a lua, n�o. � Jubiab�. Ele est� repetindo, ele est� repetindo... E Ant�nio Baldu�no se precipita de navalha em punho e quase bate nos perseguidores que est�o conversando na estrada. Jubiab� desapareceu. Baldu�no tem sede. E volta correndo para o mato cerrado, onde n�o v� a lua, n�o v� as estrelas, n�o v� o cais da Bahia com a Lanterna dos Afogados. Se estira no ch�o, estende as m�os para o lado onde est� a estrada: � Amanh� eu mostro se n�o fujo... Eu sou � macho... O rosto d�i e ele tem sede. Mas quando cerra os olhos dorme logo e n�o tem sonhos. Acorda com os passarinhos que trinam. Olha tudo em redor e n�o compreende como se encontra ali e n�o num jirau nas planta��es. Mas a sede que aperta a sua garganta e o talho que d�i no rosto lembram-lhe os fatos da v�spera. Ele est� acuado numa capoeira, ele matou um homem na v�spera. E est� com sede, uma sede doida. O rosto inchou durante a noite. Passa a m�o no talho: � Espinho venenoso Ainda essa porcaria... Fica de c�coras pensando no que fazer. Talvez tenham deixado pouca gente no cerco durante o dia... O rosto d�i. Tem sede. Sai de mansinho, evitando outros espinhos e evitando de fazer barulho. Agora com a claridade do dia se orienta melhor. A estrada est� � sua direita. Mas ele se dirige para a picada onde deve ter menos gente. Se n�o fosse a sede ele n�o se importaria. N�o sente fome agora. S� que o est�mago est� doendo. Mas � suport�vel. A sede � que � ruim, parece que aperta a garganta como uma corda. N�o, ele precisa passar nem que seja para ser preso. J� n�o pode de sede. Pode lutar at� que lhe d�em um tiro que acabe com aquilo. Engra�ado � que ningu�m gostava de Zequinha e todos gostavam dele, Mas o patr�o mandou, com certeza, e quem n�o for cercar o criminoso ser� despedido do trabalho... Se tiver gente na picada vai haver briga... Ele vai morrer mas levar� um: � Um vai com eu. Ri t�o alto que parece alegre. E est� alegre, sim, porque resolveu acabar com aquilo e lutar pela vida. A coisa que ele mais ama � brigar. S� agora � que o sente. Nasceu para brigar, para matar e um dia morrer de um tiro nas costas, de uma punhalada no peito, de uma navalhada talvez. Os que voltarem contar�o que ele morreu como um homem macho de verdade, com a navalha na m�o. E quem sabe se n�o contar�o aos filhos e aos amigos a hist�ria do Ant�nio Baldu�no, que foi mendigo, boxeur fazedor de sambas, desordeiro, que matou um homem por causa de uma menina,

e que morreu na frente de vinte, mas se defendendo? Quem sabe? Depara com a po�a de �gua, bebe em grandes goles e lava a ferida do rosto. �gua! �gua! E ele que nunca tinha reparado como a �gua era gostosa! Melhor que cerveja, melhor que vinho, melhor mesmo que cacha�a. Que o cerquem agora, que o deixem acuado como um c�o. Que lhe importa! Tem �gua para beber e para lavar a ferida do rosto que d�i e est� inchado. Se estira � beira da po�a, e descansa confiante, sorridente, feliz. Durante a noite, com a escurid�o, ele n�o vira as po�as de �gua. S�o v�rias. �gua barrenta, suja, mas gostosa como qu�. Passa muito tempo deitado, matutando. Quando fugir para onde ir�? Poder� entrar pelo sert�o, se acoitar numa fazenda, tratar de bois. Tem tanto assassino por a�... Se o perseguissem muito entraria num bando de cangaceiros e iria viver aquela vida que ele sempre admirou. O pior � que agora est� sentindo fome. Talvez encontre alguma fruta como encontrou �gua. Sai pelo mato examinando as �rvores. N�o encontra nada. Mas pelo correr do dia talvez mate um animal e o coma. Ele tem f�sforo, far� fogo. N�o, n�o far� fogo que isso chamaria a aten��o dos homens que est�o na estrada a tocai�-lo. Lembra-se ent�o de ver se ficaram muitos. Toca a m�o no rosto que cada vez d�i mais. Est� feio aquilo. Com certeza era espinho venenoso. Pai Jubiab� sabe rem�dios milagrosos para feridas assim. S�o folhas, folhas do mato. Ali deve ter destas folhas. Ele olha o ch�o. Mas quais servir�o? S� pai Jubiab� sabe, que ele sabe tudo... Chega perto do mato que o separa da picada. Espia. L� est�o os homens. Est�o todos, nenhum foi trabalhar... O patr�o est� mesmo disposto a liquidar o negro Ant�nio Baldu�no. Deu folga aos trabalhadores. Eles comem carne-seca e conversam. Ant�nio Baldu�no volta devagar. Botou a navalha no cinto novamente. Vai pensativo mas de repente ri: � Comigo n�o levam vantagem... O pior � n�o ter o que comer. E de noite ficar sozinho. Ele nunca teve medo de ficar sozinho. Mas hoje ele n�o quer. Fica pensando besteiras, vendo os mortos conhecidos, vendo pai Jubiab�, os lugares por onde andou e vendo Lindinalva. Se ele n�o visse Lindinalva n�o tinha nada. Fica tamb�m pensando em Arminda que deve estar amigada com o negro Filomeno. Mas o negro n�o tem culpa. Se ele n�o ficar com Arminda outro qualquer ficar�. N�o h� mulheres nas planta��es de fumo. Por isso era que Ricardo agitava tanto o jirau durante as noites. Como se arranjar� ele agora que n�o tem m�os? Vive em Cachoeira pedindo esmola. Ter� mulher? Quem sabe se n�o ter� uma que trate dele... Ele bem que merecia, era um mulato bom, camarada para tudo... Se ele estivesse na fazenda estaria cercando Ant�nio Baldu�no? Tem uma n�voa em frente aos seus olhos. Isso � fome, ele j� ouviu dizer. E sai desesperado em busca de comida... Quando a noite chegou ele fumava o �ltimo cigarro e quase n�o via na frente dos olhos. O rosto inchado do�a de enlouquecer. Anda para o lado das po�as d��gua cambaleando como um b�bado. Est� com o almo�o da v�spera, pois nem havia jantado na hora da briga. Vai cambaleando e v�o com ele muitos conhecidos. Onde foi que ele � viu aquele homem magro que est� gritando: � Qued� Baldo, o derrubador de brancos? Est� gritando e est� rindo. Onde foi que ele o viu? Agora se recorda. Foi naquela luta de boxe contra um alem�o que ele batera. Sorri. J� uma vez aquele homem disse isso e no entanto ele vencera o branco, o deixara estendido no tablado. Poder� atravessar o cerco tamb�m e alcan�ar a liberdade. Mas por que � que o Gordo est� rezando a ora��o de defunto? Ele n�o morreu ainda... Por que ent�o todos respondem? �Orai por ele.� Por que respondem? N�o v�em que aquilo faz mal ao negro Ant�nio Baldu�no que est� com fome e traz no rosto um talho feio onde os mosquitos pousam? Continuam. Ant�nio Baldu�no deitou junto de uma po�a d��gua. Bebeu. Depois ficou olhando o cortejo que o acompanha. Estende as m�os. Est� pedindo que eles se afastem, que o deixem morrer em paz. � V�o embora! V�o embora! Eles n�o v�o. A velha Laura, m�e de Arminda, chegou neste momento. Veio com os

olhos inchados, o corpo inchado, a l�ngua de fora. Ficou rindo dele. � V� para o inferno! V� para o inferno! Levanta. V�o todos atr�s dele. At� o Gordo que era t�o seu amigo. Jubiab� diz que ele vazou o olho da piedade. � verdade sim, � verdade. Mas que o deixem em paz que j� vai morrer e quer morrer como um homem e assim n�o pode, e assim n�o pode. Rezam as ora��es de defuntos... Ele trope�a numa raiz e cai. Deixou-se ficar estendido. E quando se levanta traz uma resolu��o no olhar. A estrada est� � sua direita. Marcha para l� a p�s firmes. Vai ereto como se n�o tivesse fome, como se h� dois dias n�o estivesse sem ver vivos, vendo fantasmas somente, e leva a navalha na m�o: � Um vai com eu... Por�m a sua apari��o s�bita na estrada p�e os homens at�nitos. Ele ainda tem for�a para derrubar um que est� na sua frente. E atravessa o grupo com a navalha brilhando na m�o. Desaparece na escurid�o. Ouvem-se tiros ao acaso. Vag�o

� J� tava criando bicho. O velho tratava do rosto de Ant�nio Baldu�no, que inchara com o talho e aparecia disforme e vermelho como uma ma��. Botou em cima da ferida ervas misturadas com terra. Jubiab� faria o mesmo. � Obrigado, meu velho... Voc� � bom... � Vai fechar num instante. Essa folha � santa, faz milagre... O negro chegara ali extenuado da corrida pela mata que margeava a estrada, fugindo das planta��es de fumo. O velho morava num casebre imundo, perdido no mato, com uns p�s de mandioca na frente. Deu-lhe comida, deu-lhe cama, tratou da ferida e depois explicou que Zequinha n�o morrera por um triz, mas que o patr�o queria pegar Baldu�no para dar uma surra que ficasse para exemplo. Ant�nio Baldu�no riu: � Comigo fia fino, meu tio... Eu tenho o corpo fechado... Bebeu um caneco de �gua: � Agora vou me botar no mundo Se um dia puder lhe pago, meu velho. � Se botar no mundo pra qu�? Assim o talho n�o seca, homem de Deus... Pode se arriar... Fique acoitado aqui... Ningu�m desconfia, eu sou homem pacato... Ant�nio Baldu�no ficou tr�s dias esperando o talho fechar. Comia da carne do velho, bebia a sua �gua, dormiu no seu jirau Despede-se do velho: � Voc� � bom... Toma o leito da estrada de ferro. Quando chegar a Feira de Santana arranjar� um caminh�o que o levar� para a Bahia. E vai feliz por causa da aventura que teve, da luta que sustentou, do cerco que furou. Ele � invenc�vel... � o homem mais corajoso daquelas bandas. Ali no c�u est�o as estrelas que foram testemunhas de como ele lutou. E se os homens que o cercavam n�o tivessem ficado apalermados com a sua coragem ele levaria um consigo para as estrelas, para o grande c�u azul. Brilharia l� com a sua navalha na m�o... Seria visto por dos Reis, pela mulher de voz masculina, por Lindinalva, e possivelmente seria descoberto pelo Gordo que sempre quis ter uma estrela... Enganaria Mestre Manuel que havia de pensar que era

a luz de um saveiro que queria pegar corrida com o Viajante sem Porto... Ouviria Maria Clara cantar seus sambas. Tudo isso aconteceria se os homens n�o tivessem ficado bestificados quando ele apareceu na estrada com a navalha na m�o e um talho no rosto. Cairiam em cima dele e ele levaria um. Talvez furassem todo o seu corpo com tiros... Mas os homens que morrem lutando e que levam um consigo viram estrelas no c�u e t�m um ABC na terra que canta os seus feitos... Ele seria uma estrela vermelha com uma navalha na m�o. Jubiab� sempre disse que os homens corajosos viram estrelas... E o negro Ant�nio Baldu�no solta a sua gargalhada que silencia os grilos e assusta os animais nas tocas. Um cheiro de folhas se espalha na noite silenciosa. Passa um vento que anuncia chuva. As folhas se dobram e exalam perfume. Mais adiante na estrada h� qualquer coisa negra e uma lanterna que brilha. Vozes de homens discutem. � um trem que parou. Naturalmente leva para Feira de Santana os passageiros do navio que chegou hoje em Cachoeira vindo da Bahia. Os homens examinam uma roda. Ant�nio Baldu�no contorna pelo outro lado e chega perto de um vag�o de carga. Se a porta estiver aberta ir� de trem. Empurra a larga porta com toda a for�a e ela cede. Est� aberta, sim. Pula como pulam os animais, r�pido e sutil. Fecha a porta por dentro e s� ent�o nota que amedrontou uns vultos que se escondem no fundo do vag�o entre os rolos de fumo: � U�, gente... Eu sou de paz... Tamb�m n�o gosto de pagar passagem. E ri. A mulher estava gr�vida. A barriga ainda n�o estofara muito mas se notava perfeitamente a gravidez. Um dos dois homens era velho e segurava um bord�o. Fumava quase dormindo. Na escurid�o do carro quando a brasa do cigarro iluminava, o bord�o parecia uma cobra pronta para o bote. O outro vestia cal�as de soldado e um palet� velho de casimira. N�o tinha barba mas tentava ostentar um bigode com raros fios que nasciam em cima do l�bio. Passava constantemente a m�o no bigode imagin�rio enquanto conversava. �Um menino�, pensou Ant�nio Baldu�no. O trem estava parado, era por isso que eles se conservavam em sil�ncio. Houvera um desarranjo qualquer, coisa comum naqueles trens. E eles h� meia hora que se conservavam em sil�ncio esperando que o trem partisse. As vozes poderiam ser ouvidas l� fora e o chefe do trem havia de encrencar com aqueles viajantes clandestinos. O velho abriu o olho e disse a Ant�nio Baldu�no quando ele falou: � Cala o bico, negro, se quiser viajar... Se n�o jogam a gente a� na estrada. E mostrou com os olhos a mulher gr�vida. Ant�nio Baldu�no ficou pensando se ele seria o marido ou pai dela. A idade era de pai, mas bem que podia ser marido. Calcule aquela mulher com a barriga grande andando a p� para Feira de Santana. Paria antes de chegar l�... E o negro riu baixinho. O rapaz com cal�as de soldado olhava para ele. E torcia o bigode. Parecia n�o estar muito satisfeito com o aparecimento de Ant�nio Baldu�no. Foi quando ouviram vozes que se aproximaram. Era o chefe do trem que explicava aos passageiros de primeira classe o atraso: � Um desarranjo tolo... Agora vamos embora... � Mas perdemos quase uma hora... � Isso acontece em qualquer estrada... � Esta � uma esculhamba��o... Logo depois um apito, fino, prolongado e doloroso anunciou a partida. Mesmo escondido no vag�o de portas fechadas Ant�nio Baldu�no deu adeus. � Deixa saudades? � perguntou o velho. � S� se for das cobras � riu o negro. Mas baixou a cabe�a e falou sem olhar ningu�m: � Uma menina... Uma menina mesmo... � Bonita? � fez o rapaz torcendo o bigode. � Cutuba, menino... Parecia at� da cidade... � E voc� deixou ela? � Ela era de outro... E ele n�o morreu... � Eu sei de um homem que roubou uma mulher � contou o velho. � Eu sei de um que deu uma facada noutro por causa de uma bruaca... Depois passou dois dias com fome escondido no mato... � Ant�nio Baldu�no contava sua pr�pria hist�ria.

� Com medo? � Cala a boca, menino... Tu sabe de nada... Ele tava mas era cercado de todo jeito... Se quer ver se ele � homem ou n�o te atira em cima de mim. � Entonce... foi voc�?... � e o rapaz olhou com mais respeito. A mulher guardava sil�ncio. Mas, quando ela gemeu, o velho disse: � Bem que o homem disse que isso era uma esculhamba��o... Se na primeira classe � assim, pobre de n�s que viaja de favor, escondido. � Eu paguei dois mil-r�is ao rapaz das malas pra me p�r aqui � gemeu a mulher. � Quando eu era soldado viajava de primeira classe e gratuites � vangloriou.se o rapaz. � De primeira? � Ant�nio Baldu�no duvidava. � De primeira, sim senhor... Entonce voc� n�o sabe que soldado tem regalia... Voc� mora nesse cu-de-judas, n�o sabe de nada... � Eu n�o sou daqui n�o, faxineiro... Eu tou aqui � de passeio... S� pra me divertir... Eu nasci foi na Bahia. Voc� j� ouviu falar num lutador chamado Baldo? Pois � esse seu criado... � Ah! � voc�? Eu vi voc� brigar com Chico Moela... � Foi uma surra boa, n�o foi? � o negro sorriu. � Foi braba, foi... E eu n�o paguei entrada... Soldado tem regalia. � E por que voc� largou a farda? � Terminou meu tempo... E depois... O velho abriu o olho: � O que foi que teve? � Um cabo... S� porque tinha uma dragona... Cabo e merda � a mesma coisa... Mas ele pensava que n�o... � Embirrou com voc� � o velho apoiava o bra�o no bast�o. � Foi mesmo... A mulata gostava era de mim. Ele pegou fez intriga, eu s� vivia na chave... Tudo pra eu n�o sair nos dias de folga... V� ver como t� a cara dele... � Tou gostando de voc�, menino. .. Quantos anos voc� tem? � Dezenove... � Tu n�o viu nada ainda, menino... Eu tou cansado da vida � amargurou-se o velho. � Cansado, meu pai, por qu�? � interrogou Ant�nio Baldu�no. � Menino, eu j� fui tudo, eu j� corri isso tudo. Aqui todo mundo conhece Augusto da Cerca... Da Cerca por causa de uma briga que eu tive... O que foi que ganhei?... Doen�a s�... Mais nada... O ex-soldado ofereceu cigarros. Ant�nio Baldu�no acendeu um. Na luz do f�sforo viu o rosto da mulher que espiava o c�u pela frincha da porta. Ela tinha um ar cansado de quem j� viveu muito. O velho continuava a falar: � Eu j� tive muito gado que trazia para Feira de Santana... Um mund�o de gado de encher o olho... J� tive ro�a de fumo antes dos alem�es vir para aqui... J� tive terra... Muita coisa, mesmo... Parou. Parece que est� dormindo, mas volta a falar com a voz abafada: � Eu j� tive at� fam�lia... Parece?... Nem parece... Mas eu tive duas filhas que at� botei no col�gio. Era umas gracinha... Tomaram tudo, ouviu... Tudo. O gado se foi... Um branco botou feiti�o numa, carregou com ela nem sei pra onde... A outra vive a� em Cachoeira, parecendo uma doida com os cabelos cortados, fazendo a vida... Essa eu sei onde t� e a outra? A mulher desviou os olhos da porta: � Vosmec� tem muita raiva das mulheres da vida? � Umas perdidas... Tudo de cabelo cortado e vermelh�o na cara... � Vosmec� n�o sabe o que � a vida delas... Vosmec� n�o sabe nada... O que � que vosmec� sabe? O velho ficou atrapalhado. Ent�o o ex-soldado falou: � Eu j� tive uma amante que era mulher da vida. Ela fazia a vida at� meianoite, depois eu ia pra casa dela e ficava at� de manh�... Era bom... � E voc� por que t� falando?

� Eu n�o tava dizendo nada... � N�o tava... � fez a mulher com raiva. � Voc�s falam sem saber... Fala por falar... Eu que estou aqui s� n�o morri de fome nesta vida porque Deus n�o quis. Ant�nio Baldu�no ficou espantado dela estar gr�vida. Mas n�o perguntou nada. O velho abriu os olhos e disse: � Eu n�o digo nada, Deus me perdoe. E mesmo se n�o fosse minha filha de que � que vivia? � ela que me sustenta... E ela me respeita muito, isso sim... Quando eu vou l� bota os homens para fora... Se ela n�o tivesse cortado o cabelo A mulher riu. Ant�nio Baldu�no falou: � A vida de pobre � vida desgra�ada... Pobre � mesmo que escravo... O ex-soldado contou: � Eu conheci um cabo que dizia o mesmo... � Era o que tomou sua mulher? � N�o. Era outro. E Rom�o n�o tomou ela, n�o... Ela gostava era de mim... � Mas andava era com o outro... � riu Baldu�no. � Voc� n�o conheceu ela... Era bonita de verdade... N�o tinha mulher que chegasse perto dela... O trem parou numa esta��o. O sil�ncio voltou ao vag�o. Homens caminhavam perto, do lado de fora. Algu�m disse: �adeus, adeus E outra pessoa: �d� lembran�as a Josefina�. Perto cochichavam: � Voc� vai se esquecer. Era uma voz do�da de mulher. Um homem protestava que n�o, que n�o esqueceria. � N�o v� deixar de escrever... Um beijo e o apito da m�quina cortando as despedidas. Agora o ru�do das rodas nos trilhos. O ex-soldado explicou: � A m�quina est� dizendo �vou com Deus, vou com o Diabo�. Olhe s� como � igualzinho... � Parece mesmo... � Foi minha m�e que me disse quando eu era de colo. Outra m�quina, uma grande que carregava muito carro, fazia diferente. Era assim: �caf� com leite, p�o com manteiga�. Igualzinho, n�o �? Ficou se recordando. � Voc� tem m�e? � perguntou a mulher. � Vou ficar com ela... Ela chorou quando eu engajei... Voc� sabe como � mulher... A velha pensa que eu ainda sou menino... � e retorcia um bigode que n�o existia. � Tudo � o mesmo � disse a mulher. � Voc� viu � se dirigia a Ant�nio Baldu�no � aquela que tava na esta��o pedindo ao homem para escrever? � Eu ouvi conversando... Nunca mais ela v� ele... Eu tamb�m � e calou-se. � O qu�? O velho abriu os olhos. � Nada... Besteira... � come�ou a assoviar uma m�sica. � Esse mundo � ruim � cuspiu o velho com raiva. � N�s nasce pra sofrer. � A vida � boa, velho... Voc� fala porque t� incongruado... � o ex.soldado riu. � A vida � boa pra quem tem dinheiro � afirmou a mulher. � Ent�o tu tem uma m�e? � perguntou Ant�nio Baldu�no virando-se para o soldado. � Eu nunca vi minha m�e. Minha tia maluqueceu... E o Gordo tem uma av�... � Quem � esse Gordo? � Um sujeito que voc� n�o conhece. Um sujeito bom.. � Bom? � escarneceu o velho. � N�o h� ningu�m bom... Quem � que � bom nesse mundo. � O Gordo � bom... Mas o velho parecia dormir novamente. Foi a mulher quem respondeu: � Tem gente boa, sim... Pobre � que � desgra�ado de nascen�a... A pobreza faz a gente ruim. O trem vai r�pido. O ex-soldado se estendeu no vag�o. Ele est� espiando o rosto da mulher. Ela est� muito envelhecida e a barriga j� est� feia.

Mas assim mesmo Ant�nio Baldu�no percebe o sorriso nos seus l�bios. Ela olha o c�u pela frincha da porta: � � a pobreza, sabe?... � por isso que eu n�o amaldi��o ele... Ele me deixou de barrig�o. � Seu marido? � perguntou o ex-soldado, gentil. � Eu sou mulher da vida... Nunca fui casada... � Pensei. � O que � que ele podia fazer? Ele n�o tinha dinheiro mesmo... Como � que ia criar o filho... Fugiu de noite como um ladr�o... Deixou as coisas todas l� em casa... E eu sei que ele gostava de mim... � Fugiu? Quando viu que voc� ia parir? � Foi... Eu tinha deixado a vida para morar com ele, sabe... Eu ficava lavando roupa, a gente at� parecia casada... Ele era bom... Era bom mesmo... Podia estar num altar... � Voc� gostava dele um peda�o... � � verdade que eu tou dizendo... Era um santo... Um dia eu falei muito alegre que ia ter um filho... Ele ficou assim feito besta com a cara no ar... Depois riu muito, me beijou... Era tudo t�o bom... � Eu tenho uma namorada na minha terra � falou o ex-soldado. � Ela � uma tenta��o. N�s vai se casar um dia destes. Quem o visse agora diria que ele estava morto. Com os olhos fechados, a boca sorrindo, o belo rosto redondo feliz como o de um morto. A mulher balan�ou a cabe�a. Ela viveu muito com certeza porque tem um ar de cansado no rosto ainda jovem. E agora ela tem pena do ex-soldado. Ele � t�o bonito e viveu t�o pouco. Ele vai casar... Mas Ant�nio Baldu�no perguntou: � E depois?... Ela continua: � Foi porque ele era pobre... Mal a gente vivia num buraco... O dinheiro, dele, junto com o que eu ganhava lavando roupa, n�o dava... Foi por isso. Ela est� com pena do ex-soldado que levantou a cabe�a no bra�o e escuta ansioso. � Ele numa noite arribou. Eu nem vi... Deixou as coisas todas, soube que fugiu para n�o ver depois o menino passar fome. � E agora? � Dizque ele t� em Feira de Santana trabalhando. Eu vim pra junto dele. O soldado est� triste. Ele agora pensa em dinheiro para sustentar a mulher quando casar e os filhos depois: � Mas ela � t�o bonita... E depois eu trabalho. N�o tenho medo de trabalho. A mulher o anima: � �, sim... Mas ele est� duvidando, todos v�em. Ant�nio Baldu�no diz � mulher: � Eu vou ser padrinho de seu filho... � Eu fiz uma touca para ele... Uma velha deu uns cueiros velhos... E s� o que ele tem... J� nasce sofrendo... O ex-soldado falou: � � melhor n�o casar... T�o bonita... Aqui � a Esta��o de S�o Gon�alo. Saltam passageiros. A cidade dorme cheia de jardins. O barulho do trem acordou uma crian�a numa casa pr�xima. Ouve.se o choro. A mulher sorri, feliz. � Agora vai ser bom para voc� � diz Baldu�no � vai ter um... De noite chora... � Quero que seja menino. Com o apito do trem que parte o velho acordou: � Tem gente boa, sim... Eu tava mentindo... Minha filha � boa... Eu tou falando de Maria... Zefa, n�o.. Ela � ruim... Nunca deu not�cia... Quem sabe se morreu? Mas Maria � boa, me d� dinheiro... S� que briga porque eu bebo... Mas eu bebo � por causa da Zefa, que n�o sei onde est�... Maria � boa... E o velho descamba novamente a cabe�a e volta a dormir. O ex.soldado fala para a mulher.

� � pancada, t� se vendo... Entonce voc� quer um menino? Eu tamb�m quero um menino quando casar... Dizque tem homem que sofre as dores quando a mulher pare... Est� novamente feliz e olha a mulher sem nenhum desejo. Seu cora��o est� puro e ele pensa com uma ternura imensa em Maria das Dores que est� em Lapa a esper�lo. Sorri porque pensa na surpresa dela ao v�-lo. Que pena que o bigode n�o houvesse crescido mesmo... Est� t�o pequeno ainda... Ela no primeiro momento n�o o reconheceria... � Ser� que ela vai me conhecer? � Quem? � se espanta Ant�nio Baldu�no. � Nada. Tou pensando... O velho acordou. Treme de frio. Volta o vento que anuncia temporal. Envolve o trem que balan�a nos trilhos. � Essa desgra�a acaba virando com a gente � fala Ant�nio Baldu�no. � Pobre tem que sofrer... Uns nasce pra gozar: s�o os ricos. Outros pra sofrer: s�o os pobres. Isso � assim desde o princ�pio do mundo. Agora � o ex-soldado quem dorme feliz. Ronca surda- mente. N�o ouve o vento que passa assoviando. � Vai ter chuva grossa... � o velho se arrastou at� a porta por onde espia. � Eu vim de um lugar, meu tio, onde o povo era muito desgra�ado... Ganhava dezt�o por dia... � Nas ro�as de fumo? � Ali mesmo, velho.. � Tu n�o sabe, negro... Eu sou velho aqui... J� vi coisa de arrepiar... Quer saber? � h� um brilho estranho nos seus olhos e ele afasta o bord�o para se levantar. � Pobre � t�o infeliz que quando merda der dinheiro, cu de pobre aperta. Ant�nio Baldu�no riu. O velho n�o se equilibra e rola em cima dos fardos de fumo. A mulher acode: � Se machucou? O soldado ronca. A mulher ficou pr�xima de Ant�nio Baldu�no e diz em voz baixa: � Eu n�o disse s� pra ele n�o ficar triste... � aponta o ex-soldado. � Mas pra falar direito eu nem sei por que foi que Romualdo foi embora. Talvez por causa de pobreza mesmo... Eu � que penso assim... Uma mulher l� de junto disse que ele foi por causa de outra, uma tal Dulce... E se foi? � alteia a voz. � Mas n�o foi, n�o. Ele n�o ia me deixar assim. O soldado dorme feliz como um morto. � Assim... Com um filho na barriga... Mas para que foi embora?... Ant�nio Baldu�no risca um f�sforo e na luz v� que a mulher chora, sacudindo os ombros. O negro fica confuso, procura o que dizer e murmura: � N�o se importe. .. Vai ser um menino.. Circo

O encontro com Luigi fora inteiramente casual. Ant�nio Baldu�no passara o resto da noite vagando pela cidade. O ex-soldado tomara logo a estrada para Lapa, o velho tinha onde ficar e a mulher foi procurar uma amiga. Pela manh� Ant�nio Baldu�no tratou de arranjar um caminh�o que o levasse � Bahia, de gra�a. Chegou para perto de um que carregava e foi dizendo ao chofer como quem n�o queria nada:

� Vai pra Bahia, mano? � Vou sim � respondeu o chofer que era um mulato esguio e sorridente. Quer mandar uma encomenda? � Quero mas � mandar esse negro que t� aqui � e batia no peito rindo. � Xi! Que a Bahia t� danada de boa agora com as festas, rapaz... Ant�nio Baldu�no acocorou junto do chofer, aceitou o cigarro: � Eu ando com uma saudade, mano... Faz quase um ano que vim embora... O chofer cantou: �A Bahia � boa terra, ela l� e eu aqui..� � N�o diga... A Bahia � boa mesmo... Tou seco pra voltar. � Quer ir hoje no caminh�o? Eu vou depois da b�ia... � Mas � que tou limpo, rapaz... � As mulheres gastou as economia... � riu o chofer. � Quem sabe? � e Baldu�no piscou o olho. � N�o tem nada... Eu tou sem ajudante... Voc� vai no lugar dele. � T� certo. � Se eu tiver de fazer for�a voc� ajuda... Que hora sai mesmo? � Depois da b�ia... Uma hora, hora e meia. � Ent�o at� j�... � Para onde vai? � Vou ver os amigos. � Uma hora aqui... � T� certo... Ant�nio Baldu�no ficou passeando pela cidade. N�o tinha nenhum amigo a visitar mas n�o queria que o chofer soubesse que ele n�o ia almo�ar. Por�m, jantaria na Bahia, ou com o Gordo ou com Joaquim ou mesmo com Jubiab�. Ia pensando nestas coisas e no meio de arranjar um cigarro quando ouviu um grito: � Per la Madonna! � Baldo. Voltou.se. Na sua frente estava Luigi com uma roupa muito sovada e os raros cabelos: � Luigi... Luigi pegou nos seus ombros, virou-o em torno de si e disse alegre: � Magn�fico... � Que � que voc� t� fazendo aqui, Luigi? � Ventos maus, menino... Ventos maus... � Que diabo � que tem o vento com isso? � Depois que voc� desistiu da carreira, Baldo, nunca mais as coisas correram bem para mim... Olhava o negro com tristeza: � Uma carreira t�o bonita que voc� estava fazendo. Uma pena... Largou de repente sem dizer para onde ia... � Fiquei danado com aquela surra... � Besteira... Besteira... Qual � o lutador que n�o apanha uma vez?... Demais voc� estava b�bado como um porco... � Mas que diabo voc� t� vendo aqui, Luigi? Tem algum lutador novo? � Lutador? Nunca mais aparece um como voc�... Ant�nio Baldu�no riu satisfeito e deu um soco no peito de Luigi. � Nunca mais... Agora estou com um circo... � Circo? � Um neg�cio desgra�ado. . . Nem lhe conto. Entraram num botequim. Luigi pediu caf�. Ant�nio Baldu�no disse: � Pede uns cigarros pra mim... Tou a nenhum, Luigi... Sabia que com Luigi podia conversar francamente. Lembrou-se de qualquer coisa e disse: � Voc� foi o �nico que n�o me apareceu quando eu estava cercado na mata, quase morto.

� Mas se eu n�o sabia, menino... Como foi?... � Nada... Eu tava era com fome e quase morto. Vi todo mundo, sabe, Luigi... Vi todo mundo que vinha me aporrinhar cantando coisa de defunto... S� voc� n�o veio... Luigi ainda n�o tinha compreendido direito. Ant�nio Baldu�no narrou a briga com Zequinha, a fuga pela mata, as vis�es. Falou sombriamente, sem detalhes, porque estava doido para saber do neg�cio do circo: � Que neg�cio � este? Luigi balan�ou a cabe�a tristemente: � Um neg�cio da desgra�a... Quando voc� foi embora, eu fiquei sem ter o que fazer... � Ficou na m�o.. � Isso mesmo. Foi quando apareceu por l� um circo... Grande Circo Internacional. De um patr�cio meu, chamado Giusepe... Fez dinheiro na Bahia. Mas ele tava muito atrapalhado, devendo o que n�o tinha. Eu peguei, entrei para s�cio... Um s�cio desgra�ado... Temos andado por todos os buracos... Per la Madonna! O circo n�o d� nada... Tem um despes�o cachorro... Dinheiro n�o entra. Est� quase falido. Luigi abanou as m�os e contou detalhes. Ant�nio Baldu�no disse: � T� o diabo... Mas Luigi mirava-o novamente e falava: � Mas eu tenho uma id�ia que � capaz de mudar as coisas... Preciso de voc�. � De mim, velho? Eu nunca fui artista de circo. � Tamb�m n�o era jogador de boxe e eu te fiz... Sorriam ambos relembrando os tempos passados. E quando se levantaram da mesa do caf�, Ant�nio Baldu�no estava contratado pelo Grande Circo Internacional como lutador. O negro passou junto do chofer e avisou: � N�o me boto mais para a Bahia, mano. � As mulher n�o deixa... � riu o chofer. � Quem sabe? � e o negro piscou o olho. O contrato verbal que fizera com Luigi afirmava que ele teria casa, comida e dinheiro quando houvesse dinheiro. Mas dinheiro era coisa que n�o fazia falta ao negro Ant�nio Baldu�no. A tabuleta ainda estava estendida no ch�o. Lia.se em grandes letras azuis: �GRANDE CIRCO INTERNACIONAL� E ao lado da tabuleta Giusepe dormia como um porco. Luigi avisou: � T� b�bado... Anda sempre assim... Empurrou-o com o p�. Ele murmurou palavras incoerentes: � Pe�o sil�ncio... � hora do salto mortal... Uma palavra e o grande trapezista... perder�... a.... vida... Homens abriam buracos no ch�o. Outros montavam as arquibancadas. Trabalhavam todos, artistas, empregados, mata-cachorros. Luigi levou o negro Ant�nio Baldu�no para sua barraca. E a primeira coisa que o negro viu foi o seu retrato em posi��o de lutador como sa�ra num jornal da Bahia. Luigi arriou-se em cima da cama (que n�o passava de um div� que tamb�m entrava em cena com o Homem-Cobra) e continuou a explicar a Ant�nio Baldu�no: � Cinco contos pra quem ganhar... N�o aparece ningu�m, voc� vai ver... � Mas tem que ter luta sen�o o pessoal fica danado... � Mas quem disse que n�o tem? A gente contrata um sujeito qualquer por vinte mil-r�is. N�o falta quem queira. Voc� d� uma surra mestre. � E se aparecer um sujeito metido, disposto mesmo a brigar?. � Aparece nada... � E se aparecer? Luigi apontou o retrato na parede: � Voc� n�o � mais lutador, rapaz? Ant�nio Baldu�no fez que sim com a cabe�a. Passou a m�o sobre o retrato, assoviou. Luigi comentou: � Voc� j� tem saudades? Ent�o est� envelhecendo...

� Naquele tempo eu n�o tinha esse talho no rosto... � Isso � bom pra impressionar. Batiam na porta. Luigi abriu. Era uma mulherzinha que viera reclamar o sal�rio atrasado de m�s e meio: � Assim n�o trabalho... N�o conte comigo amanh�... � Amanh� voc� recebe, mulher de Deus... � Todo dia isso, todo dia isso �Amanh� voc� recebe...� H� dois meses que n�o ou�o outra coisa... Tou cansada... N�o conte comigo amanh�.... � Mas amanh� recebe mesmo... Voc� n�o sabe o que vai acontecer... � Virou para Baldu�no: � Esta � Fifi, a trapezista... Ela est� um pouco zangada... A mulherzinha olhou para o negro. � Este aqui � o c�lebre Baldo... Voc� j� ouviu falar nele com certeza... A mulher nunca tinha ouvido mas balan�ou a cabe�a dizendo que sim. Luigi falava depressa para impressionar a mulher: � Pois �... O maior lutador do Brasil... No Rio n�o teve homem que se ag�entasse com ele... Chegou hoje da Bahia que eu mandei contratar... Tomou um autom�vel, se bateu para aqui... A mulher desconfiava: � Com que dinheiro voc� contratou este fen�meno, Luigi? Est� me cheirando que � falso... Como coisa que eu j� n�o vi este negro guiando um caminh�o aqui... Olhe aqui, rapaz, se voc� deixou o caminh�o pensando que vai ganhar dinheiro est� enganado... Dinheiro � coisa que n�o tem aqui... Deu um repel�o no corpo e se dirigiu para a porta. Mas Ant�nio Baldu�no foi mais r�pido e pegou-lhe no bra�o, com raiva: � Pere a�, dona... Eu sou lutador mesmo... Fui campe�o baiano de todos os pesos. T� vendo aquele ali na parede? � esse seu criado... A mulher olhou e se convenceu: � Se � assim... Mas por que veio se meter aqui? Aqui n�o tem dinheiro... � Vim para servir um amigo... � bateu no ombro de Luigi � um amigo certo... � Ah! s� se for assim... � E amanh� voc� vai ver dinheiro a rodo... A mulher se confundia em desculpas: � Tem um chofer que � ver sua cara... Igualzinho... Da porta ainda sorriu. Ant�nio Baldu�no olhou para Luigi: � Aquela conversa de Rio n�o pegou, mano... Luigi redigia o an�ncio para circular no dia seguinte. Baldu�no lia por cima dos ombros: � Meu nome eu quero em letras bem grandes. Aquelas deste tamanho. E abria os bra�os mostrando o tamanho. Giusepe quando ficava bom dos porres tornava-se ativo e resoluto. Parecia que ia salvar tudo, resolver a situa��o dif�cil do circo, pagar os sal�rios dos artistas e dos mata-cachorros. Mas a sua atividade ficava nos gestos, nas palavras que ele gastava com largueza: � Vamos ver isso! Isto n�o anda! Esse galinheiro j� devia estar de p�. Eu que me afobe. Sem mim isso n�o vai para diante! E quando um artista reclamava: � Tamb�m voc� s� sabe pedir dinheiro... E a arte n�o vale nada? No meu tempo a gente trabalhava pela arte, pelos aplausos, pelas flores. Flores, est� ouvindo? Flores... Eram as mo�as que jogavam flores. Len�os bordados... Eu podia ter uma cole��o se quisesse... Mas eu n�o ligo para estas coisas. Naquele tempo se pensava na arte. Um trapezista era um trapezista... Virava-se para Fifi: � Uma trapezista era uma trapezista... A trapezista ficava com raiva. Ele continuava: � Hoje o que � que se v�? Uma trapezista como voc�, que at� d� para a coisa, s� fala em dinheiro, como se as palmas n�o valessem nada. � Eu n�o como palmas... � Mas � a gl�ria... Nem s� de p�o vive o homem. Foi Cristo quem disse.

� Cristo n�o era trapezista... � Hoje... No meu tempo, n�o... Palmas, flores, len�os, len�os, compreendeu, tudo isso tinha o seu valor... Voc� quer dinheiro, n�o �? Pois bem, amanh� ter� seu dinheiro... Pagarei tudo... Tudo... Mas terminava sempre pedindo: � Voc� sabe, Fifi, que a gente t� mal... Que � que eu posso fazer, desgra�ado de mim... Eu sou um artista velho... Corri a Europa toda... Eu tenho os �lbuns l� na barraca... Agora estou aqui mas me conformo... Voc� pensa que eu tenho dinheiro? S� tenho d�vidas... Tenha paci�ncia, Fifi. Voc� � uma menina boa.. � Mas, Giusepe, eu n�o tenho mais roupa. O saiote verde j� est� uma vergonha. N�o posso aparecer mais com ele... � Garanto que o primeiro dinheiro que arranjar � para voc�. E sa�a para dar ordens in�teis, reclamar contra o servi�o atrasado, olhar tudo que Luigi tinha feito, discordar de tudo e terminar num botequim, contando aos desconhecidos, que pagavam cacha�a, as suas gl�rias de trapezista. Naquela noite, quando voltava cambaleando para a barraca do circo, depois de ter marcado com um carv�o a testa de v�rios meninos para que entrassem de gra�a no espet�culo, encontrou Ant�nio Baldu�no que aparentava. olhar as estrelas enquanto espiava para a barraca onde estava Rosenda Rosed�, a bailarina negra, o n�mero de maior sucesso do Grande Circo Internacional. Era que � luz da vela, ele vira a negra que come�ava a mudar de roupa e mostrava umas costas que nem veludo, O negro cantava um dos seus sambas de maior sucesso: �Minha mulata � de veludo. Chega at� a arrepiar. Quando viu que Giusepe vinha fez que olhava as estrelas. Qual seria Lucas da Feira? Uma vez haviam lhe mos trado a estrela que Zumbi dos Palmares tinha virado. Mas ela n�o est� brilhando aqui. S� brilha na Bahia, nas noites de macumba, quando os negros festejam Oxossi, o deus da ca�a. Ele toma conta dos negros, brilha quando eles est�o alegres, se apaga quando eles est�o tristes. Teria sido o Gordo quem lhe contou aquela hist�ria? N�o, foi pai Jubiab�, numa noite no cais. Se fosse o Gordo ele botaria um anjo na hist�ria. Pai Jubiab� � que sabia coisas de Zumbi dos Palmares e de outros negros grandes e valentes. Bem que ele pode dar outra espiada, agora, para a barraca de Rosenda Rosed�, porque Giusepe vem cambaleando tanto que n�o chegar� t�o cedo. Mas n�o � que ela desapareceu e apagou a luz? Se n�o fosse Giusepe � aquele b�bado! � ele a teria visto nua. Era um peix�o... Podia n�o haver dinheiro, mas enquanto ela ficasse no circo Ant�nio Baldu�no ficaria... Que negra bonita... Aquilo na Lanterna dos Afogados seria um sucesso danado. Ficariam todos de queixo ca�do. Giusepe chegou. Quando quis cumprimentar o negro, quase perde o equil�brio. � Estou cansado... Esse trabalho aqui me mata. Trabalho como um cachorro... � T� se vendo... Ele passou. Levou perto de meia hora para chegar � sua barraca. � � capaz de tocar fogo na barraca quando riscar o f�sforo para acender a vela � pensa Ant�nio Baldu�no que se aproxima. Mas ele j� acendeu a vela e agora est� sentado perto de uma mesinba de p� rebentado. Em cima est�o uns livros ricamente encadernados, mas estragados pelo tempo. A curiosidade absorve o negro que espia como um ladr�o. Que haver� naqueles livros para Giusepe acarici�-los com tanto amor? Est� fazendo o mesmo que o negro faz com a carne das coxas das mulatas. Passando a m�o muito de leve, com cuidado, luxuriosamente. Mas ele se virou e Ant�nio Baldu�no viu os olhos. Tem sujeitos que quando bebem ficam assim tristes. Outros ficam alegres, riem e cantam... Mas tem os que ficam tristes e d�o para chorar. Giusepe � dos que ficam tristes. Ant�nio Baldu�no n�o resiste e entra na barraca de Giusepe que ficou triste de tanto beber. Foi na It�lia e era na primavera. Aquele ali no �lbum, o de bigod�es, era seu pai. Toda a sua fam�lia tivera circos. Na fotografia mais velha, a que est� amarelada pelo tempo, aparece o seu av� fardado. N�o era general, n�o... Era dono de um circo... O Grande Circo Internacional... Mas naquele tempo era um circo de verdade... S� le�es tinha para mais de trinta. Vinte e dois elefantes... Tigres...

Todos os bichos... � Bebi uns tragos, mas n�o estou mentindo, n�o... Ant�nio Baldu�no acredita. Os bigodes de seu pai faziam sucesso. Ele era menino e assim mesmo se lembrava. Quando o velho subia no trap�zio parecia que o circo vinha abaixo de tantas palmas. Um del�rio. Tamb�m os saltos que ele dava de trap�zio para trap�zio, o salto-mortal dado no ar, tr�s voltas sem segurar em nada... Era de fazer os cora��es pararem. Sua m�e andava no arame. Vestia de azul e parecia uma fada... Ia com a sombrinha japonesa, se equilibrando. Ele era de uma fam�lia de gente de circo. Herdou tudo quando o pai morreu. S� le�es tinha n�o sei quantos. Cavalos ensinados. Pagava uma fortuna de sal�rio a artistas. Os mais famosos da Europa... � E todos recebiam no s�bado. Nunca nenhum se atrasou. Um dia o rei, o pr�prio rei, viera ao seu circo. Que dia aquele... Ant�nio Baldu�no n�o estava acreditando, com certeza, porque o estava vendo ali, b�bado e mal vestido. Mas ele fora aplaudido pelo rei... O rei s�, n�o. Toda a fam�lia real que estava num camarote de luxo. Foi em Roma e era na primavera. Quando ele apareceu, que coisa, meu Deus. Nunca se viu coisa igual. � Pensei que as palmas n�o acabavam mais. Estava ali no �lbum o seu retrato naquele tempo. Vestido de casaca, sim. Era como ele entrava na arena. Depois tirando a roupa aos poucos. A casaca, as cal�as, o peito duro. Ficava vestido com uma roupa de meia, assim como estava naquela outra fotografia. E era bonito. Nem parecido com hoje... Hoje est� um esqueleto. Mas naquele tempo as mulheres se apaixonavam. Houve uma que era condessa. Loira. Cheia de j�ias. Marcara uma entrevista com ele. � E voc� chamou aos peitos? � o negro se interessava. � Um cavalheiro n�o conta estas coisas. O rei estava l� no seu camarote de luxo. Toda a fam�lia real. Ele deu o duplo salto.mortal e � pode n�o acreditar � o rei n�o se conteve e levantou.se para aplaudir. Que noite aquela... Tamb�m R�soleta estava bonita como nunca estivera. E quando pulou com ele foi um sucesso... Ela vendia o retrato dos dois aos espectadores, aquele retrato que estava bem no meio da p�gina do centro do �lbum e no qual se via uma mulher em atitude de quem agradece as palmas, a m�o segura por um homem vestido de uma esp�cie de roupa de banho. Olhando bem se via que o homem era Giusepe. � Um mulher�o... � falou Ant�nio Baldu�no. � Era minha mulher... Ela vendia aquele retrato aos espectadores e n�o havia quem n�o comprasse. Pois n�o era primavera e ela t�o linda como as flores da primavera? Era uma flor da primavera e todos os romanos queriam uma lembran�a da esta��o que se ia. Ficavam com o retrato dela. Naquele outro retrato ela estava em cima do cavalo com uma perna levantada. Era J�piter o nome daquele cavalo e valia um bom dinheiro. Ficou com um credor da Dinamarca numa das vezes que o circo andara l�. Aquele retrato de Risoleta em cima do cavalo fora tirado poucos dias antes dela cair. Andava t�o bonita naquela primavera, t�o mo�a que ningu�m diria que ia acontecer aquela coisa est�pida. Giusepe nunca pensara sequer que aquilo pudesse se dar. � Pois ela caiu. Tinha tanta gente naquela noite no circo que parecia um mar. Eles eram o grande sucesso daquela primavera. Todos falavam em I Diavoli, nome por que eram conhecidos. Quando Risoleta aparecia na rua as mulheres paravam para v�-la. Imitavam os seus vestidos, que ela sabia ser elegante, n�o era bonita somente no circo, pulando no trap�zio. Os homens viviam doidos por ela. Eles eram o sucesso da primavera que estava florida em Roma. Naquela noite tinha muita gente no circo. Este retrato � dela vestida com trajes de sair. Giusepe olha o retrato. Caminha at� a cama e traz uma garrafa de cacha�a. � Pinga de Santo Amaro, hein? � riu Baldu�no. Assim Giusepe est� bebendo demais. N�o tira os olhos da mulher. Tamb�m Ant�nio Baldu�no v� que ela tinha o rosto triste de mulher presa. Giusepe bem sabia que ela n�o gostava daquela vida de circo, que aspirava a andar na sociedade, bem

vestida, elegante, fazendo furor entre os homens. Mas quem diria que ela ia cair naquela noite? N�o haviam quebrado nenhum espelho... Eles entraram na arena, foi aquele mundo de palmas. Ela cumprimentou sorrindo e subiram. No princ�pio tudo correu bem. Mas no salto mortal... Nunca tinha acontecido aquilo. O trap�zio balan�ou menos... Ela n�o alcan�ou as pernas de Giusepe para se segurar. Ficou uma posta de carne no ch�o. Quando Rex, o le�o, pegou John, aquele domador ingl�s, e o estra�alhou, n�o ficou t�o feio. Porque Risoleta tinha virado uma posta de carne sem rosto, sem bra�os, sem nada. Ele n�o sabe como n�o caiu tamb�m, como teve for�as para descer. L� fora era primavera e passavam casais. Depois o palha�o disse que ele tinha feito de prop�sito porque soubera que ela tinha um amante. Chegaram a fazer um inqu�rito que resultou em nada... Desde esse dia come�ou a decad�ncia do Grande Circo Internacional. � Dava um romance � afirmou Baldu�no � bastava escrever... Vou contar ao Gordo. � Mas voc� acredita que ela tivesse um amante?... Disseram, mostraram ele, mostraram cartas dele para ela que estavam no meio das coisas dela... Mas era mentira, n�o era? Gente de circo � ruim... Voc� n�o se fie em gente de circo. � gente invejosa... Ela l� podia ter um amante!... Eles tinham era inveja do sucesso que ela fazia. O que me d� raiva e me faz beber � pensar que ela podia ter mesmo um amante. Tinha as cartas. Mas ela era t�o boa. Gostar daquela vida n�o gostava, n�o. Mas n�o era mulher para ter amante. Mas tinha as cartas. Falava em encontros... Eu s� queria ela viva para me dizer que era mentira, que era tudo inveja. Voc� n�o acha que era? Ser� que ele vai chorar? Apertou a cabe�a nas m�os e cerrou os olhos. Agora � Ant�nio Baldu�no quem vira a garrafa de cacha�a e bebe um trago enorme. L� fora est� uma noite de primavera tamb�m. � E o palha�o o que �? � � ladr�o de mulher... � Olha a negra na janela... � Com cara de panela... O palha�o Bol�o vai montado de costas num jumento. No fundo da cidade o circo a domina. Cheio de bandeiras, com dois an�ncios na porta. De noite a m�sica tocar� ali e negras vender�o cocada. A cidade s� fala no circo, nos artistas, na negra que dan�a quase nua e principalmente no negro Baldo que desafia os homens de Feira de Santana. Os homens na grande feira comentam. Luigi esperou a segunda-feira para estrear. � que neste dia h� feira de gado e v�m homens de toda a redondeza vender os seus bois. O palha�o est� atravessando o Largo da Feira: � Hoje tem espet�culo? � Tem, sim senhor... Os meninos, que vieram das fazendas trazer rapadura e requeij�o para vender, olham com inveja os moleques da cidade que acompanham o palha�o e entrar�o de gra�a no circo. Um campon�s diz a outro: � Xi. Eu gosto de circo que me acabo... � J� vi um, menino, um chamado Europeu que era batuta... � Dizque esse � bom... � Que � grande �... Se o palha�o for de verdade... � Eu vou dormir aqui s� pra ir... � Dizque n�o tem mais lugar. T� tudo vendido. Moleques combinavam entrar por baixo do pano. O palha�o continuava a sua passeata gloriosa por entre os camponeses. Das casas comerciais os empregados espiavam. No meio da feira o palha�o parou e pediu sil�ncio: � Respeit�vel p�blico Baldo, campe�o mundial de luta livre, boxe e capoeira, que veio do Rio de Janeiro expressamente (carregava no expressamente) para trabalhar no Grande Circo Internacional, ganhando tr�s contos por m�s, casa, comida e roupa lavada. � Upa! � murmurou um campon�s. � ... tem o prazer de desafiar qualquer homem desta her�ica cidade para uma luta na arena do circo nesta noite, ou durante a estada do circo. Se houver um

homem que ven�a Baldo, o circo dar� a este her�i a quantia de cinco contos de r�is. Cinco contos de r�is � repetia gritando. � E Baldo aposta mais um conto como n�o perder�. N�o h� quem aproveite esta oportunidade? Adianto ao respeit�vel p�blico que dois homens j� foram ao escrit�rio do circo para desafiar o grande campe�o Baldo, que aceitou os desafios. Quem quiser lutar � s� aparecer no Grande Circo Internacional esta noite. As lutas terminar�o com a morte de um dos lutadores. Com a morte. E, como se n�o estivesse cansado do discurso, continuou o seu passeio pela cidade, montado de costas, o jumento empacando de quando em vez, ele fazendo que ca�a, se segurando no rabo do animal, fazendo a cidade toda rir, fazendo o mesmo discurso onde havia gente reunida. Toda a cidade comentava a luta de morte que haveria e j� se sabia que um chofer, um empregado no com�rcio e umcampon�s gigantesco estavam dispostos a aceitar o desafio de Baldo, o gigante negro, e a disputar os cinco contos. A cidade anoiteceu nervosa. Quando o campon�s entrou, um rapaz que fazia piadas no galinheiro gritou: � Jos�, do casal de guaribas que voc� encomendou, o macho j� chegou � e apontou o campon�s. Todo mundo riu. O campon�s quis se zangar mas acabou rindo tamb�m. Um gigante, aquele campon�s de alpercatas e de bord�o. Ele se ria porque pensava nos cinco contos que ia ganhar lutando com aquele tal de Baldo. Na ro�a ele derribava �rvores com poucas machadadas e carregava troncos enormes atrav�s de enormes dist�ncias. E quando se sentou tinha um sorriso vitorioso, se bem fosse modesto e desconfiado. Entravam negros carregando cadeiras que eram para as fam�lias que vinham para os camarotes. O circo n�o tinha cadeiras. Os espectadores traziam. � � por isso que eu s� venho pro galinheiro... � mais barato e a gente n�o tem que trazer nada. S� o corpo. � L� vem o empregado do juiz.. O negro entrou, colocou as cadeiras no camarote e foi l� fora buscar mais e depois se aboletou na arquibancada. Vaiavam um sujeito que foi para um camarote: � A�! Chico Peixeiro. De camarote, hein? Quem foi Naninha... Fora era lindo de luzes e de cores. A tabuleta do circo � Grande Circo Internacional � brilhava em vermelho, azul e amarelo, as l�mpadas piscando. Negras de an�gua e colares vendiam pipocas, acaraj�s, mingau, e munguz�. Todo o largo estava iluminado pela luz do circo. Moleques rondavam os lugares por onde podiam entrar de carona. Um homem vendia caldo de cana e um negro sorveteiro s� queria era acabar logo a vasilha de sorvete para poder entrar pro galinheiro tamb�m. E dava grandes risadas antegozando o palha�o que era mesmo brincalh�o. O povo comprimia-se na bilheteria da geral, onde Luigi esfregava as m�os de contente. E as velhas da cidade est�o espantadas com aquele movimento na terra pacata que dorme �s nove horas. � que o circo revolucionou tudo, o circo � a novidade, � viagem, s�o as feras dos outros pa�ses, � a aventura. Negros inventam hist�rias sobre os artistas. Eis que vem a m�sica. Agora est� dobrando a Rua Direita e j� se ouve o som da marcha carnavalesca. No circo todos se levantam. Os que est�o nos bancos mais altos da geral espiam por cima do pano. Os moleques que est�o na porta do circo correm e acompanham a Euterpe 7 de Setembro que vem garbosa, marcial, vestida de verde e azul. Seu Rodrigo da farm�cia � um bicho na flauta, O pist�o atira sons que ficam vibrando no ar e v�o se bater na cabe�a de Ant�nio Baldu�no que foge da barraca e vem olhar a m�sica. Banda bonita. Est�o bem vestidos como o diabo! Aquele que vai ali de costas � o maestro. Ant�nio Baldu�no bem que trocava o seu lugar de lutador pelo homem magro que vai de costas dirigindo a Euterpe 7 de Setembro. Mas � bonito de verdade, pensa o negro. Como todas as mulatas olham para ele! Todo o povo. Ele � bem um her�i da cidade, uma gl�ria de Feira de Santana. Como o flautista tamb�m. S�o conhecidos de todos e cumprimentados por todos. O juiz tira o chap�u para eles e os rapazes do banco quando querem fazer uma farra

convidam o flautista para ir com eles e pagam bebidas e o tratam de igual para igual contanto que ele leve a sua flauta. Mas Giusepe arranca Ant�nio Baldu�no da contempla��o da banda de m�sica. O negro vai para a barraca levando no cora��o a vontade de dirigir uma euterpe. A 7 de Setembro vai entrando no largo do circo. Vem cercada de gente importante, c�nscia do seu prest�gio. Na porta do Grande Circo Internacional o maestro d� uma ordem e todos os m�sicos param. Na geral, nas cadeiras, nos camarotes, na barraca dos artistas, tamb�m, todos est�o ouvindo o dobrado que a euterpe executa na porta do circo. E todos pensam que � divino e que Feira de Santana tem, sem d�vida, a melhor banda de m�sica de todo o Estado. Acabado o dobrado entram no circo e v�o se instalar por sobre a porta num tablado que ali est�, especialmente para eles. Agora que a m�sica j� chegou os espectadores reclamam o in�cio do espet�culo que est� tardando. � Palha�o! Que saia o palha�o! A crian�ada grita, gritam os homens e at� o juiz j� consultou o rel�gio e disse para consorte: � Passam cinco minutos da hora. A pontualidade � uma grande virtude. Mas a consorte n�o se impressiona, que ela j� se cansou dos conceitos do marido. No camarote vizinho, um grupo de empregados no com�rcio, que fizeram uma vaca, comentam a luta. � Ser� de morte mesmo? � A pol�cia n�o deixa. � Mas disse que esse Baldo � um bicho. Agripino viu o negro brigar na Bahia com um alem�o. Disse que � um touro. Batem os p�s na geral. Gente da geral � mal-educada � pensam os rapazes do com�rcio. Quem j� viu espet�culo come�ar na hora? Gente da geral � mal-educada. Mas n�o � por m� educa��o que eles est�o batendo os p�s. Os mo�os do com�rcio n�o sabem. Eles batem os p�s, gritam e reclamam, porque assim se divertem mais. Circo sem piadas no galinheiro, sem gritos, sem reclama��es n�o presta. Pois se aquilo � o melhor do circo. Ficar com a garganta rouca de tanto gritar, os p�s doendo de tanto bater nas t�buas do galinheiro. Uma negra reclama: � V� beliscar as coxas da que pariu. H� um princ�pio de sururu ao lado esquerdo. Bolinar mulher casada d� nisso. Um homem caiu do galinheiro. Mas levantou logo e voltou para o seu lugar debaixo de uma vaia tremenda. Na arena aparece Luigi vestido com o fard�o de Giusepe que encornou num porre m�e. O sil�ncio baixou sobre o circo. � Respeit�vel p�blico O Grande Circo Internacional agradece a vossa presen�a no seu espet�culo de estr�ia e espera que os seus grandes artistas mere�am os vossos gentis e benevolentes aplausos. Luigi for�ava o seu sotaque italiano. Assim impressionava melhor. Os matacachorros entraram, estenderam um tapete velho e furado que atravessava a arena de lado a lado e ent�o houve a apresenta��o da companhia que foi um del�rio. Primeiro entrou Luigi que trazia pela m�o o cavalo Furac�o com uns arreios que brilhavam. Depois entrou Fifi, a trapezista, e os aplausos redobraram. Vestia um saiote de pano verde e mostrava as coxas aos olhos �vidos dos negros, dos empregados no com�rcio e do juiz. Cumprimentou suspendendo mais um palmo do saiote. Eles s�o capazes de rebentar as arquibancadas de tanto aplauso. O palha�o Boi�o entra fazendo piruetas: � Boa noite para todos oc�s, minha gente, Gargalhadas. A bombacha � azul com estrelas amarelas e uma lua vermelha nas n�degas: � Estou vestido de c�u e de todas as estrelas. Vestido que uma fada me deu. � t�o engra�ado o palha�o!... O Homem-Cobra parece mesmo uma cobra naquela roupa pegada ao corpo cheia de coisas que brilham. A roupa contorna o seu corpo e ele � assexuado, parece uma menina, parece um menino, e os homens dizem piadas. Mas pedem sil�ncio em altos brados. O homem que come fogo tem cabelos ruivos. O grande equilibrista Robert encanta as mulheres com a sua casaca sovada. Pelo nome ele � franc�s e tamb�m pelo cabelo bem alisado em cima da cabe�a, aberto no meio, um encanto. Atira beijos com as m�os que s�o recolhidos nos seios das donzelas

rom�nticas. Uma solteirona velha suspira. �Sujeito bonito�, murmura algu�m na geral. Juju quase passa despercebida porque todos olham para o macaco, para o urso. O le�o est� na jaula ao fundo e urra lugubremente. L�gubre e ferozmente. Uma mulher explica a outra que n�o gosta de vir ao circo porque tem medo que o le�o se solte. Le�o da nervoso nela. Juju � meio velha, tem rugas que a pintura n�o encobre mais, por�m, ainda assim, � dona de um corpo bem-feito. Rosenda Rosed� vem vestida de baiana: � Boa noite, meu povo... Corre em volta do circo, saltando, suspendendo a saia que faz a roda e que volteando com o vento parece at� o pano do circo. Os homens esquecem Juju, Fifi, o grande equilibrista Robert, o urso, o le�o, e at� o palha�o, para s� verem a negra Rosenda Rosed� que est� vestida de baiana e sacode as ancas num remelexo. Os olhos est�o cheios de lux�ria. Os empregados no com�rcio esticam os corpos para a frente no camarote. O juiz botou os �culos. A sua mulher diz que � uma imoralidade. Os negros na geral est�o roucos de tanto gritar. Rosenda conquistou o p�blico. S� n�o aparece Baldo, o gigante negro, que l� dentro segura Giusepe b�bado que quer a pulso cumprimentar o p�blico. Reclamam a presen�a do negro: � Que saia o lutador, que saia o lutador. � T� se escondendo? Luigi explica que Baldo, o gigante negro, o grande lutador, campe�o mundial de boxe, luta livre e capoeira, est� dando os �ltimos treinos e s� aparecer� no momento da luta que vai sustentar contra os campe�es daquela her�ica cidade. A companhia se retira e come�a o espet�culo com Juju e o seu cavalo. O cavalo Furac�o corre em galopes pela arena. Juju traz um chicote na m�o e veste culote. Os peitos enormes apertados na blusa. Pula no cavalo. Vai em p� em cima das ancas do animal. Para ela � como se estivesse num autom�vel. D� um salto em cima de Furac�o. Aplausos. Faz outras piruetas e se retira entre palmas. � J� vi coisa melhor � diz um homem que � examinado com admira��o porque � viajado. Ele conta que esteve na Bahia e no Rio. � Isso � porcaria. Os homens que est�o com vontade de aplaudir ficam encabulados. Mas depois perdem o medo e batem palmas com for�a. � que, depois da banda tocar um samba, o palha�o entrou dando cambalhotas. Discutiu com Luigi, pegou a mala aberta (via-se uma cueca que aparecia), o bengal�o e quis se retirar. Depois que fez umas m�gicas, Luigi perguntou: � Voc� esteve na escola, Bol�o? � Se estive... Levei dez anos na jumentalidade... Eu sou formado em burro, ouviu? � o p�blico ria de se acabar. � Ent�o me diga: em quantos dias Deus fez o mundo? � Eu sei... � Ent�o diga. � Eu sei mas n�o digo, pronto, que eu n�o quero. � Voc� n�o sabe. � N�o sei... Quem lhe disse que eu n�o sei... Quem foi que eu vou dar uma surra nele. E foi assim, dizendo estas coisas, que o palha�o fez toda aquela gente feliz na noite da estr�ia do circo. Os empregados no com�rcio riam, o juiz ria, os negros da geral gargalhavam. S� o homem viajado achava que aquilo tudo era uma porcaria e os dez tost�es jogados fora. Mas ele tinha perdido a pureza, h� anos, nas grandes cidades onde fora estudante, antes do pai morrer e ele ter que pegar no metro da casa do Seu Abdula. O macaco dan�ou. O urso bebeu uma garrafa de cerveja. O Homem-Cobra era assexuado e se torcia todo. Dava nervoso. Botava a cabe�a nos p�s, virava o corpo para o lado, metia os p�s na boca, ficava deitado em cima de uma caixa pequena s� com o ventre que era de mulher, as pernas nas costas, a cabe�a tamb�m. Trabalhava bem, mas irritava os homens porque n�o tinha sexo definido e eles ficavam angustiados sem saber se o deviam amar, pensar nele como em uma mulher, ou se deviam aplaudi-lo como se aplaude um homem macho. S� nos olhos do homem viajado

brilhava uma luz estranha e criminosa. O Homem- Cobra agradeceu com seu rosto de anjo, jogou beijos como Robert, o grande equilibrista, curvou-se como Fifi, a trapezista c�lebre. As mulheres recolheram os beijos, os homens os cumprimentos. S� o homem viajado deixou o seu lugar porque o espet�culo estava acabado para ele. Levou a sua mis�ria no cora��o e nos olhos e n�o dormiu. O grande equilibrista Robert n�o estr�ia esta noite. As mulheres se entristecem. Em compensa��o ali est� Rosenda Rosed�, a incompar�vel. A INCOMPAR�VEL ROSENDA ROSED� SE NOS APRESENTA ORGULHOSA EM FORMID�VEL TORMENTA EMOCIONAL ATINGINDO O �UREO PORTO DA SUA CARREIRA NO TABLADO A tormenta emocional � um maxixe emocionante. Ser� que por debaixo da larga saia da baiana ela n�o tem roupa nenhuma? Parece que n�o porque mostra as coxas at� ao meio e n�o se v� pano algum. Em cima dos peitos traz colares de contas multicores. Faz grandes XX com as pernas. A mulher do juiz acha que decididamente � uma imoralidade e que a pol�cia n�o devia permitir. O juiz n�o concorda, cita a Constitui��o e o C�digo, diz que a mulher n�o � civilizada e n�o quer conversa, quer � espiar as coxas de Rosenda Rosed�, a incompar�vel. Mas agora todos t�m coisa melhor para olhar. Ela rebola as ancas... Desapareceu toda, s� tem ancas. As suas n�degas enchem o circo, do teto at� a arena. Rosenda Rosed� dan�a. Dan�a m�stica de macumba, sensual como dan�a religiosa, feroz como dan�a da floresta virgem. Ela est� mostrando o corpo todo mas o seu corpo � um segredo para os homens, porque mal aparece, a saia o cobre, o esconde. Eles est�o irritados e fixam a vista, mas � in�til. A dan�a � r�pida demais, � religiosa demais e eles s�o dominados pela dan�a. N�o os brancos que continuam nas coxas, nas n�degas, no sexo de Rosenda Rosed�. Mas os negros sim. Eles est�o nos movimentos, na cad�ncia da dan�a ritmada e religiosa de macumba, maxixe brabo, e pensam que ela est� possu�da por um santo. Ela atinge o �ureo porto da sua carreira quando descansa as n�degas nas pernas e recebe a manifesta��o estrondosa da assist�ncia que est� de p� e n�o ouve o dobrado que a banda come�a a executar. E ela dan�a de novo a sua �trag�dia emocional�, maxixe emocionante, dan�a religiosa dos negros, macumba, deuses da ca�a e da bexiga, a saia voando, os seios saltando sob os colares para os olhos do juiz. As pernas e n�degas dos negros dan�am na geral que amea�a vir abaixo. Atingiu o �ureo porto da sua carreira no tablado. O juiz se levantou para aplaudir. Parece at� o rei com Giusepe. Rosenda tira de debaixo da saia flores, p�talas de rosa, que joga na cabe�a calva do juiz. Uma id�ia de Luigi. O momento � de emo��o. Ela atingiu o �ureo porto da sua carreira no tablado. E quando o espet�culo acabar vir� um negro de alpercatas e apanhar� uma daquelas p�talas de rosa que conserva o perfume do sexo de Rosenda Rosed� e a levar� junto do cora��o para as planta��es de fumo. O palha�o entra de novo e novamente os homens riem e se acalmam. Depois aparece Luigi que anuncia: � Respeit�vel p�blico! Baldo, o gigante negro, que conheceis de nome, desafia qualquer homem desta cidade para uma luta que termine com a morte. A empresa d� cinco contos de pr�mio ao vencedor e Baldo aposta um conto de r�is na sua vit�ria. H� um sussurro na multid�o. Luigi sai e entra com o negro Ant�nio Baldu�no que traz sobre o corpo musculoso uma pele de tigre que � pequena para ele e lhe tolhe os movimentos. Cruza os bra�os sobre o peito e olha os espectadores com um olhar de desafio. Ele sabe que Rosenda est� espiando e quer que apare�a um homem para lutar de verdade. Ela vendeu retratos e na barraca contou os n�queis. Depois disse a ele que ia ver a luta. Por�m, agora n�o aparece nenhum homem disposto a lutar com ele. Luigi explica ao respeit�vel p�blico que os dois homens que haviam vindo ao escrit�rio da empresa n�o apareciam. E se n�o aparecesse ningu�m Baldo lutaria com o urso. Mas mal acabara de falar, o campon�s que parecia um guariba se levantou e caminhou meio encabulado para a arena: � � verdade este neg�cio dos cinco contos?. � Verdade verdadeira � disse Luigi espantado.

O campon�s tirou as alpercatas, a camisa, e ficou somente de cal�a. Luigi olhou para Ant�nio Baldu�no. O negro sorriu dizendo que estava bem. Trouxeram um colch�o para o meio da arena e Ant�nio Baldu�no tirou a pele de tigre e ficou somente com uma sunga no sexo. O talho do seu rosto brilhava � luz das l�mpadas. Os homens aplaudiam o campon�s. Luigi se dirigiu novamente ao p�blico pedindo um homem que entendesse de luta para ser o segundo juiz. Apareceu um dos empregados no com�rcio. Conversou com Luigi combinando as condi��es. O italiano explicou ao p�blico: � A luta s� terminar� com morte ou com a desist�ncia de um dos lutadores. Fez as apresenta��es: � Baldo, o gigante negro, campe�o mundial de boxe, luta livre e capoeira, o desafiante. Perguntou alguma coisa ao campon�s: � Totonho da Rosinha, que aceitou o desafio. Ant�nio Baldu�no veio apertar a m�o do advers�rio. Mas este pensou que j� era come�o da luta e quis se atracar com o negro. Luigi deu explica��o e a coisa correu bem. Ficaram ambos em cima do colch�o olhando um para o outro. Rosenda Rosed� olhava l� de tr�s o negro Ant�nio Baldu�no. N�o havia cinco contos, n�o havia nem sal�rio, mas havia o corpo quente de Rosenda, a incompar�vel. E Baldu�no se sentiu feliz. Se conseguisse ser chefe da euterpe estaria completamente feliz. O empregado no com�rcio contou: � Um... dois... tr�s... O campon�s veio em cima de Baldu�no que ficou correndo em volta do colch�o. A multid�o vaiou o negro. Rosenda fez um muxoxo para todo mundo. Mas de repente Baldo se virou e acertou um soco no rosto de Totonho. Foi o mesmo que nada. O campon�s nem pareceu sentir. Veio atr�s do negro novamente e levou uma rasteira. �Aqui s� capoeira�, pensou Baldu�no. Se jogou em cima do campon�s ca�do e soqueou a sua cara. Mas Totonho prendeu as pernas nas costas de Ant�nio Baldu�no e o virou. Ficou por cima. Mas foi quando Ant�nio Baldu�no viu que o advers�rio era canja. Ele n�o sabia sequer soquear, s� tinha for�a bruta. Quando se levantaram o negro acertou v�rios socos no campon�s que n�o sabia se livrar. Correram assim em volta do colch�o at� que Totonho pegou Ant�nio Baldu�no pela cintura, suspendeu.o no ar e soltou o negro no ch�o com toda a for�a. O negro se estatelou. Levantou com raiva. At� ali ele estava brincando, mas agora ficara com raiva. Derrubou o campon�s com um golpe de capoeira, pegou-lhe o bra�o e torceu rudemente. O advers�rio estava preso nas suas pernas e Baldo torcia-lhe o bra�o. A multid�o aplaudiu. O campon�s soltou um berro, desistiu da luta e dos cinco contos. Saiu entre vaias, pegando no bra�o que parecia quebrado. Ant�nio Baldu�no cumprimentou e se retirou debaixo de palmas. � O negro � bom mesmo... L� dentro perguntou a Rosenda � Gostou? Ela estava com os olhos �midos de entusiasmo. Um mata-cachoro veio com uma tabuleta onde se lia: �INTERVALO� Os homens sa�ram e foram beber caldo de cana. A banda executou dobrados e marchas. Robert era um dos sargentos, Ant�nio Baldu�no o outro. O grande equilibrista ficava elegant�ssimo na sua farda de sargento franc�s, Por�m, a de Ant�nio Baldu�no ficava pequena que fora feita para o engolidor de espadas que trabalhara no circo anos atr�s. Apertava o negro todo e o sabre ficava rid�culo de t�o pequeno. Mas se fosse isso s�, tudo estaria bem. O pior � que Fifi queria receber os seus sal�rios atrasados antes de come�ar a segunda parte, na qual seria representada a c�lebre pantomina Os tr�s sargentos. Luigi ainda n�o fizera as contas das despesas for�adas do circo e n�o queria pagar, a n�o ser no dia seguinte. Fifi n�o ia nisso: � Ou paga agora ou n�o entro em cena... Ela fazia o papel do terceiro sargento e ficara bela de roupa de homem.

Vermelha de raiva, esticava o dedo, amea�ando. E fardada de sargento, berrando, gritando, acabou fazendo Luigi ter um ataque de riso: � A farda tomou conta de voc�... Voc� est� pensando mesmo que � sargento. � N�o deboche, ouviu? Giusepe veio b�bado l� de dentro falando em arte, em palmas e chorou. Luigi pediu a Fifi que esperasse, que ele ia fazer as contas e pagaria essa noite mesmo. Que n�o demorasse a continua��o do espet�culo. Ouvisse: o p�blico, l� dentro, j� reclamava, batia os p�s, impaciente. Luigi puxava os raros cabelos, num quase desespero. Rosenda Rosed� se comoveu: � Deixa de ser estraga-prazeres, mulher. O espet�culo hoje correu t�o bem. Fifi sabia disto, sabia. E n�o gostava de ser estraga-prazeres tampouco. Sim, o espet�culo correu bem, foram muitos os aplausos, havia muita gente na plat�ia. Todos estavam satisfeitos e ela tamb�m. Mas junto do seu seio estava a carta da diretora do col�gio. E ela devia ser forte, devia resistir, devia brigar. Fazia dois meses que n�o pagava o col�gio da filha. Se n�o pagasse dentro de dez dias, a diretora mandaria a menina de volta para junto dela. E ela n�o queria sua filha no circo. Isso n�o. Devia ser forte, tinha que ser forte. Mas n�o pode espiar para os olhos de Luigi que roga. Luigi sempre fora bom para ela, a ajudara mesmo. Mas se ela n�o exigisse, ap�s o espet�culo deixaria para o outro dia, no outro dia apareceriam as despesas for�adas e a menina viria se bater ali, e adeus todos os seus planos, todos os seus sonhos, acalentados durante estes longos quatro anos em que pagara com tanto sacrif�cio o col�gio de Elvira. Quando a filha nasceu ela acabara de ler Elvira, a morta virgem. Agora nem dinheiro para comprar romances ela tinha. Mandava tudo para a diretora do col�gio e assim mesmo mal dava. J� estava no fim. Se ela n�o fosse forte, se n�o resistisse, cairiam todos os seus castelos, alimentados � custa de tanto sacrif�cio. A cidade era pequena, menor ainda que Feira de Santana. Cadeira de professora de primeira classe � dif�cil de conseguir. Mas casa nesses lugares � barata. Teria um jardinzinho na frente onde ela cultivaria flores, cravos que eram a sua paix�o, e onde haveria um banco para ler os seus velhos romances de capas amarelas. A escola funcionaria na pr�pria casa. Elvira ensinaria �s crian�as e ela ajudaria a filha nos trabalhos dom�sticos, faria a comida, arrumaria a casa, botaria flores, cravos vermelhos, na mesa da professora. Seria uma av� para as crian�as que aprenderiam com Elvira as primeiras letras. Conheceria toda a gente da cidade. Ningu�m saberia que ela fora artista de circo, cantora nos teatros vagabundos de variedades, marafona nos dias maus. Os cabelos brancos lhe haviam de dar um ar maternal de senhora boa e pobre. Seria uma velhice feliz. Faria rendas � ainda se recordar�? � para os vestidos das garotinhas mais novas. Seria amada por todos e principalmente por Elvira. Quando a velhice baixasse completamente sobre ela, Elvira a deitaria no colo e alisaria a sua cabe�a como ela fazia com as crian�as. A casa teria um jardim na frente com cravos vermelhos. Mas para isso tudo era preciso ser forte, passar por m�, por estraga-prazeres. E, rubra de pudor, mostrou a carta da diretora do col�gio, desvendou o seu segredo. Luigi ficou comovido, botou as m�os em seus ombros e prometeu: � Eu lhe garanto, Fifi, que depois da representa��o lhe pago. Nem que tenha que ficar sem dinheiro para a comida do le�o. O p�blico assoviava, vaiava os mata-cachorros, consultava rel�gios. A pantomina come�ou. Tinha uma hora que Ant�nio Baldu�no beijava Rosenda Rosed�. O negro n�o sabia o seu papel direito, nunca dera para decorar as coisas, mas na hora do beijo se recordava perfeitamente. Sorria, piscava o olho para Rosenda que aparentava n�o dar pela coisa. Mas quando chegou a hora, o negro estalou um beijo na cara da dan�arina e disse-lhe no ouvido: � Na boca � que � gostoso... A pantomina fez muito sucesso. Giusepe deve estar na sua barraca a rever aquele �lbum de fotografias. Robert fora para o cabar� local para arranjar uma mulher de gra�a com o seu cabelo alisado. Fifi escrevia uma carta � diretora do col�gio pedindo desculpas pelo atraso do pagamento e enviando o dinheiro dos dois meses. � luz da vela que

aparecia na barraca distante, Ant�nio Baldu�no via Luigi fazendo contas. Coitado, andava atrapalhado com aquele circo. Por mais sucesso que fizesse, as coisas j� estavam t�o encravadas que n�o havia santo que salvasse. Por que ser� que Rosenda demora tanto para mudar a roupa? Ele a espera encostado na porta do circo, a tabuleta de luzes apagadas bem por cima da sua cabe�a. O le�o urra. Deve ser fome. O le�o anda magro, s� tem ossos. O urso ainda � feliz porque bebe, todas as noites em que trabalha, uma garrafa de cerveja. Luigi j� andou pensando em substituir a cerveja por �gua. Encheria a garrafa... Tapeou os espectadores mas n�o enganou o urso que se recusou a beber. O n�mero fora um fracasso. Ant�nio Baldu�no gozara quando Rosenda lhe contara aquela hist�ria. Ela demora a se vestir. Rosenda Rosed�, que nome esquisito... Ela se chama mesmo Rosenda. O Rosed� � que foi inven��o do Luigi. Mulata despachada aquela, muito capaz de ir �s fu�as de qualquer um. Falava dif�cil, contava casos dos morros do Rio, Morro da Favela, Morro do Salgueiro, descrevia as festas de clubes de l�, o Ameno Jasmineiro, as Caprichosas da Estopa, o L�rio do Amor. Tinha um jeito elegante de rebolar as ancas quando caminhava, coisa mesmo de carioca. A verdade � que Ant�nio Baldu�no gosta da negra. Ela � cheia de besteiras, de vaidades, se furtando sempre na hora em que Ant�nio Baldu�no pensa que a tem �s m�os, mas ele est� gostando dela um peda�o. Ser� que ela acabou de se vestir? Por que fechou a luz e abre a cortina que serve de porta? Apareceu na claridade da luz: � Tava lhe esperando... � A mim? Gentes, quem houvera de dizer. Sa�ram passeando. Ele contando as suas aventuras por este mund�o afora, ela escutando atenta. Ele se entusiasma quando conta a fuga atrav�s do mato, o cerco furado, os homens espantados dele aparecer com uma navalha na m�o. Ela se encosta nele. Os seus seios est�o tocando no bra�o do negro. � Noite bonita � diz ele. � Quantas estrelas... � Negro valente quando morre vai ser estrela no c�u... � Eu ainda quero dan�ar num teatro grande de verdade... Como os do Rio... � Pra qu�? � Gosto de dan�ar. Quando eu era menina juntava os retratos de artistas de teatro. Papai era portugu�s e tinha uma venda. O cabelo de Rosenda Rosed� � espichado a ferro. Fica liso parecendo cabelo de branca. Fica mais liso at�. � Eta, negra cheia de bobagem... � pensa Ant�nio Baldu�no. Mas como sente os seus seios no bra�o, diz que ela dan�ando � mesmo cutuba. � Voc� n�o viu? O pessoal parecia maluco... Era s� palma... Ela se encosta mais. Ele convence: � Eu gosto de um maxixe bem dan�ado... � Eu quis entrar pro teatro.. . Um homem que morava perto de l� de casa conhecia um porteiro do Teatro Recreio. Mas papai n�o deixou. Ele queria me casar com um caixeiro que ele tinha, um maroto fedorento. � Mas voc� n�o se amarrou? � Eu sou l� besta! Eu n�o gostava mesmo dele, n�o t� vendo? Um portuga... Ficou como quem queria dizer qualquer coisa. Ant�nio Baldu�no perguntou: � O que �? � Depois veio Emanuel. Papai dizia que era um vagabundo, sem eira nem beira. �E era mesmo. N�o tinha do que viver. Assim como voc�, malandro... Se engra�ou de mim, a gente dan�ou no Ameno e foi aquela desgraceira. O velho ficou danado, por causa do tal do portuga que gostava de mim um peda�o. Disse que eu era uma amaldi�oada e me botou no olho da rua.� � O que foi que voc� fez? � Primeiro fiquei no morro com Emanuel. Mas quando ele vinha pingado, gostava de dar em mulher. Logo da primeira vez eu arrumei minha trouxa e pulei fora. Depois andei roendo um osso. Trabalhei de cozinheira, de copeira, de ama-seca. Foi um palha�o de um circo no Rio que me meteu nesta vida. Pegamos um namoro, acabamos

amigados. Um dia faltou uma artista, uma espanhola que ia dan�ar de castanholas, e eu entrei no lugar dela. Se voc� tivesse l� ia ver o sucesso. Mas me aborreci do palha�o e entrei para outro circo. Vim acabar neste. T� a�. Ant�nio Baldu�no s� soube responder: � � mesmo. � Mas um dia eu entro pra um teatro de verdade. Assim mesmo negra. Que � que tem? Na Europa tem uma negra que os brancos vive atr�s. Uma patroa que eu tive me contou. � Eu j� ouvi falar. � Pois entro... Voc� ainda vai ver muita gente falar nesta negra. Ant�nio Baldu�no sorri: � Voc� at� parece a lua! � Por qu�, meu Deus? � Parece que est� perto mas est� longe da gente. � Eu estou t�o perto de voc�... O negro apertou a cintura de Rosenda Rosed�. Mas ela corre para a barraca. Agora est� no cabar� triste da cidade. Hoje tem mais gente por causa do espet�culo do circo. Sen�o todo mundo teria ido dormir �s nove horas quando batesse o sino da igreja. Robert est� numa mesa, muito elegante, olhando uma mulher que dan�a. Ant�nio Baldu�no se senta. Robert interroga: � Tamb�m veio arranjar mulher? � N�o. Vim beber um trago... As mulheres s�o poucas e quase todas aquela para quem Robert espia � uma velha Est�o espalhadas pelas mesas e sorriem para os homens. � Por que voc� n�o chama a mulher para a mesa? � Estou pronto. Mas no canto est� a virgem. Por que ser� que aquela id�ia se aboletou na cabe�a de Ant�nio Baldu�no? Ele j� bebeu esta noite mas n�o se recorda de ter ficado b�bado com dois c�lices de cacha�a. Por que, ent�o, pensa que a mulher de cabelos lisos e rosto p�lido � virgem? Ela est� num canto sem ver nada, sem olhar para ningu�m, distante do cabar�, dos freq�entadores, do copo de bebida que est� na sua frente. Se o Gordo estivesse ali Ant�nio Baldu�no pediria que ele inventasse uma hist�ria de menina abandonada, sem anjo da guarda, nem ningu�m no mundo. E se fosse Jubiab� quem estivesse ali ele pediria ao pai-de-santo para fazer feiti�o contra o homem que est� explorando a virgem, que a obriga a vir para o cabar� e a beber aquelas bebidas. Ant�nio Baldu�no olha para Robert que pisca para a velha. Bem que pode n�o ser virgem... Mas quem � que n�o conhece logo que ela � virgem e que um homem a explora? Ela est� no cabar�, bem na mesa do canto, mas os seus olhos n�o est�o olhando para nada, est�o perdidos para al�m da janela. Ela pensar� nos irm�os sozinhos, pequenos, na m�e doente. O pai j� morreu. Ser� por isso que ela est� aqui? Ela veio vender a sua virgindade esta noite para comprar rem�dios. Pois a m�e n�o est� doente, quase � morte e sem m�dico, sem um �nico vidro de rem�dio? Ant�nio Baldu�no pensa em ir at� ela e tem vontade de oferecer dinheiro. Em verdade est� sem um n�quel, mas furtar� de Luigi. Um empregado no com�rcio a tirou para dan�ar. � um tango. Ela vai vender a virgindade a quem der mais dinheiro. Por�m, que entende ela de dinheiro? E capaz de nem receber nada e a m�e morrer. Tudo � in�til. Sua m�e n�o se salvar�, os irm�ozinhos morrer�o tamb�m de maleita, pois as barrigas s�o enormes e os rostos p�lidos. Um homem vir� � por que n�o Robert, o equilibrista? � e a explorar�, vender� o seu corpo virgem e mo�o na feira. Vender� aos camponeses, aos choferes, a todos os homens. E ela se apaixonar� pelo flautista, Robert lhe dar� surras, ela morrer� um dia tuberculosa como a m�e. E n�o ter� filha que se prostitua para arranjar dinheiro com que comprar rem�dio. Mas n�o � que ela vai sair com o em pregado no com�rcio? N�o, o negro Ant�nio Baldu�no n�o consentir�. Ele ir� roubar o dinheiro de Luigi, dinheiro que � para a comida do le�o, mas n�o deixar� que ela perca a virgindade. Se atira para a frente e encosta a m�o no ombro do rapaz: � Solte ela.

� V� se meter em sua vida. A mulher tem os olhos distantes. � Ela � donzela, voc� n�o sabe? Ela t� vendo se salva a m�e que vai morrer. Mas n�o adianta. O rapaz empurra o negro com a m�o... Ant�nio Baldu�no, de t�o b�bado que est�, cai por cima de uma mesa. Chora como uma crian�a. O rapaz sai com a mulher que l� fora diz: � A cacha�a daquele deu pra me achar donzela. Mas por que � que o rapaz est� rindo? Ela tamb�m quer rir, quer rir muito da cacha�a do negro, mas n�o pode, tem um n� na garganta. Uma ang�stia repentina a toma toda e ela, sem explica��es, abandona o homem que ainda ri sem compreender, e vai sozinha para o seu quarto, onde dorme um sono de virgem do qual n�o acordar� mais porque tomou cianureto. No cabar� Ant�nio Baldu�no cada vez mais b�bado canta entre aplausos e toma a velha de Robert, o equilibrista. Sai um princ�pio de barulho com o dono do cabar� porque eles n�o t�m com que pagar as bebidas. Ao voltar para o circo entra na barraca de Rosenda Rosed�, que foi para isso mesmo que ele bebeu tanto. Luigi vive de l�pis em punho fazendo contas. E le�o berra tanto na sua jaula n�o � de ferocidade que t�o manso como o cavalo Furac�o. Ele berra assim � de fome, porque nem dinheiro para a sua comida o circo tem. N�o adianta Luigi fazer tantas contas. H� dois dias que Giusepe n�o bebe, porque nem para uma pinga ele arranja dinheiro e ningu�m lhe fia mais. E para Giusepe a vida � triste sem cacha�a. A cacha�a o transporta ao passado, traz para junto dele aquelas a quem ele amou e que j� morreram. Sem bebida ele tem que tomar conhecimento das dificuldades do circo, da falta de dinheiro que torna os artistas brutos e pregui�osos. Nunca mais o circo pegou uma enchente como a da noite de estr�ia. Esses quinze dias em Feira de Santana t�m sido maus. Em dois espet�culos o circo deu todos os n�meros e em dois espet�culos toda a popula��o veio ao circo, S� na outra segunda.feira ainda houve gente: alguns camponeses que ficaram da -feira. Assim mesmo poucos porque n�o havia luta e eles gostavam era de luta. N�o tinha aparecido mais nenhum advers�rio para Ant�nio Baldu�no. N�o valera a pena a empresa aumentar para dez contos o pr�mio ao vencedor, e Baldo, o boxeur, apostar dois contos na sua vit�ria. A fama do negro correra pela redondeza e ningu�m queria passar pela vergonha de apanhar. Agora Ant�nio Baldu�no suspendia marombas nos espet�culos pouco freq�entados do circo, lutava com o urso que se deixava vencer com a maior facilidade, e terminou acompanhando Rosenda Rosed� ao viol�o. Para ele pouco importava que existisse ou n�o dinheiro. Havia Rosenda. N�o pensava noutra coisa. As noites passadas com Rosenda pagavam bem a ma�ada de suportar os porres de Giusepe, o sil�ncio de Robert, as queixas de Bol�o que vivia se lastimando da vida. �Que abandonara o curso no segundo ano, tinha tirado at� boas notas no exame, a n�o ser em direito civil que passara com simplesmente 4 por persegui��o do professor, que n�o gostava dele desde a vaia na aula. O pai de Bol�o parecia rico, toda a gente dizia que ele estava cheio do burro do dinheiro. O velho gastava como um homem de posses: morava numa casa de aluguel caro, piano para a filha, professores de franc�s e ingl�s, projetos de viagem � Europa. Era card�aco e disso ningu�m falava, nem ele sabia. Morreu de repente quando atravessava a rua. Foram ver, s� tinha deixado d�vidas. Fora assim que o Bol�o terminara, usando o apelido que lhe tinham posto no col�gio, no picadeiro de um circo vestido de azul com estrelas amarelas e uma lua vermelha nos fundilhos.� Repetia aquela hist�ria diariamente para terminar dizendo sempre: � Podia ter me formado. Me metia na pol�tica que sempre dei pra coisa e hoje era capaz de estar deputado. Fifi resmungava que a sorte � Deus quem d�. Ant�nio Baldu�no escapava para a barraca de Rosenda onde esquecia Bol�o, Fifi que queria ter uma velhice risonha, Giusepe que queria morrer, Luigi que fazia contas e Robert que n�o dizia nada nem reclamava o sal�rio. Para o circo viajar para Santo Amaro venderam o cavalo Furac�o e parte das

t�buas das arquibancadas. Luigi fazia contas. Ningu�m queria comprar o le�o e o le�o comia muito. Uma noite Robert desapareceu ningu�m sabe para onde. Luigi pensou que ele tivesse roubado algum dinheiro, do pouco que o italiano tinha guardado na barraca para as despesas do dia seguinte. Mas Robert n�o levara nada. Devia ter ido no navio que partira naquela noite para a Bahia. Apareceu um homem para lutar com Baldu�no, foi vencido no primeiro round e foi � custa desta luta que o circo se locomoveu para Cachoeira, passando novamente por Feira de Santana em dois caminh�es. Quando chegara ocupara sete e assim mesmo por sovinice de Luigi que apertara tudo para caber tanta coisa em t�o poucos carros. Agora iam em dois caminh�es e chegava com sobra. Giusepe se recordava que quando viajaram para a Fran�a possu�am uma verdadeira frota, pois tinham dois barcos e por terra iam trinta e quatro carros enormes que levavam o pessoal. Giusepe bebeu e faz toda a viagem pensando nos grandes dias do Grande Circo Internacional. Luigi deposita esperan�as em Cachoeira e S�o F�lix. S�o duas cidades vizinhas e S�o F�lix possui duas f�bricas de charutos. Talvez at� ele arme o circo em S�o Felix. Mas � interrompido por Fifi que pergunta como ir� mandar dinheiro para o col�gio da filha este m�s. Luigi encolhe os ombros: � Nem sei como se vai comer. Bol�o conta mais uma vez ao Homem-Cobra a sua vida. O Homem-Cobra ouve indiferente. No outro caminh�o Ant�nio Baldu�no e Rosenda Rosed� riem �s gargalhadas. Ant�nio Baldu�no pega do viol�o e canta um samba que come�a assim: �A vida � boa, mulata. F�fi pensa que n�o, Bol�o tamb�m, Giusepe chora, Luigi se irrita. Somente o Homem-Cobra vai indiferente. Armaram o circo em S�o F�lix. Circo � divertimento de gente pobre e S�o F�lix uma cidade de oper�rios. Apareceu um homem para lutar com Ant�nio Baldu�no. Era um negro que j� fora marinheiro. A luta foi vastamente anunciada. Luigi esfregava as m�os uma na outra, satisfeito da vida, e j� ouvia sem se irritar os sambas de Ant�nio Baldu�no. O palha�o correu a cidade, os homens comentaram, as mulheres riram. Na noite da estr�ia a frente do circo estava iluminada, veio a orquestra com os moleques atr�s, pretas venderam munguz� na porta. As pessoas importantes trouxeram cadeiras e chegou muita gente de Cachoeira. Primeiro entrou Fifi (como a companhia estava reduzida, sem Robert e sem o cavalo Furac�o, Luigi n�o fez apresenta��es) que andou no arame. Depois o palha�o divertiu os espectadores. Veio Rosenda Rosed� e dan�ou. Desta vez Ant�nio Baldu�no n�o a acompanhou ao viol�o porque ele esta noite era Baldo, o gigante negro. Juju apresentou o macaco e o urso. L� em cima estavam trap�zios. Fifi faria outro n�mero para encher o espet�culo. Estava na hora e os mata-cachorros prepararam os trap�zios que ficaram balan�ando no ar. Todos olhavam para cima. Fifi apareceu de saiote verde, cumprimentou e subiu. Experimentava o trap�zio quando uma figura invadiu o picadeiro vestida com uma roupa sovada de casimira e andando como b�bado. Era Giusepe. Luigi se precipitou atr�s dele, mas como a multid�o aplaudia pensando que fosse outro palha�o, deixou-o correndo pela arena e gritando para os espectadores: � Ela vai cair! Ela vai cair! O p�blico ria. E riu ainda mais quando ele afirmou: � Eu vou salvar a pobrezinha. Ningu�m conseguiu agarr�-lo mais. Subiu pela corda com uma agilidade que ningu�m acreditaria poss�vel nele, soltou o outro trap�zio. Fifi do outro lado olhava assombrada, sem saber o que fazer. Os espectadores n�o percebiam nada. Luigi e dois mata-cachorros subiam para o trap�zio. Giusepe deixou que eles se aproximassem e quando os sentiu bem perto voou com o trap�zio, se soltou no ar, deu o mais belo salto-mortal de toda a sua carreira e procurou com as m�os aflitas o outro trap�zio. Caiu no picadeiro e as suas m�os angustiadas, procurando o trap�zio, pareciam dar adeus. Mulheres desmaiavam, pessoas corriam para a porta, outras se aproximavam do corpo. As m�os pareciam dar adeus.

�ABC de Ant�nio Baldu�no� Inverno

O inverno lavou tudo. Lavou at� as manchas de sangue que ficaram no lugar onde foi o picadeiro do Grande Circo Internacional. Luigi vendeu as t�buas da arquibancada, o pano grande, o macaco a um dos alem�es das f�bricas, distribuiu o dinheiro pelo pessoal e declarou o circo dissolvido. Juju partiu para a cidade de Bonfim por onde andava outro circo... Talvez arranjasse trabalho... Antes de partir disse aos outros: � Nunca vi um circo t�o sem dinheiro... Mas eu gostava dele... Luigi juntou o le�o e Fifi e foram peregrinar pelas cidades do interior, fazendo de barrac�es teatros, cobrando quinhentos r�is de entrada. O Homem-Cobra deu um espet�culo em seu benef�cio no teatro local e desapareceu. Ant�nio Baldu�no pensava que se ele fosse para as planta��es de fumo seriam capazes de o tomar como a uma mulher. Ele �s vezes parecia uma dama, outras vezes parecia um adolescente. Mas � que o negro n�o vira em Cachoeira um homem que um dia apreciara a estr�ia do circo em Feira de Santana. Um homem viajado, j� estivera no Rio e na Bahia, e que se retirou do circo mal acabara o n�mero do Homem-Cobra. Fugira num autom�vel. S� depois � que se soube que a pol�cia procurava aquele homem que furtara todo o dinheiro de uma loja onde era empregado. Na divis�o das coisas que Luigi n�o conseguira vender, o urso coubera a Ant�nio Baldu�no e a Rosenda. Rosenda nem percebera que aquilo tinha sido combinado entre Ant�nio Baldu�no e Luigi. O negro falou: � A gente n�o pode dividir o bicho... Para vender, a gente n�o acha quem d� um mil-r�is de mel coado por ele. � O que � que a gente faz? � A gente leva ele pra Bahia. Tou pensando na minha cabe�a que a gente pode ganhar dinheiro com ele na Feira de �gua dos Meninos.. � Ou no teatro... � arriscou Rosenda. � Tamb�m � o negro apoiava porque n�o quer discutir. No cais souberam que o saveiro de Mestre Man chegaria dois dias depois. Esperaram o Viajante sem Porto. Mas o inverno batia nas �guas do rio. Chuvas grossas enfarruscavam a face das �guas. O rio descia caudaloso e trazia troncos que arrancara nas planta��es, cad�veres de animais, e passou at� uma porta que a �gua tirara de uma habita��o. As coroas de pedras haviam desaparecido e os homens n�o entravam mais pelo rio para buscar o peixe do almo�o. O rio estava trai�oeiro e roncava como um animal dos matos. Grupos ficavam a espi�-lo de cima da ponte e ele passava embaixo como uma serpente. De cima vinha cheiro doce de fumo. O rio j� engolira dois saveiros nesse inverno. Havia uma oper�ria enlutada numa das f�bricas. Caem grandes cargas-d��gua durante a noite. N�o h�, por conseq��ncia, raz�o para Rosenda Rosed� sair esta noite da pens�o de Dona Raimunda e inventar esta

hist�ria de passeio. Foi para Cachoeira com certeza. Ela queria era deix�-lo ali como uma besta, tomando conta do urso, que andava impaciente com a chuva que desabava no telhado, com o ru�do do rio, com o cheiro de fumo. N�o podem deixar o urso sozinho, isso � verdade. Mas para que este passeio de noite? � e o negro Ant�nio Baldu�no bate a m�o fechada na mesa. Se ela pensa que ele � burro, que n�o entende, est� enganada. Ela pensa que ele n�o viu aquele alem�o atr�s deles a noite em que Giusepe morreu? Nunca mais deixara de segui-los, de procurar conversa, de dizer coisa. Por duas vezes Ant�nio Baldu�no quisera interrog�-lo, perguntar o que ele queria. Agora se lembrava bem que uma tarde dissera a Rosenda: � Eu vou perguntar a este gringo se ele nunca me viu... Rosenda achou que n�o valia a pena, que era besteira brigar, que com certeza o gringo nem estava olhando para eles. E o arrastou dali. Mulher quando quer tapa os olhos da gente. Mas agora ele estava com os olhos bem abertos e compreendia. Ela sa�ra para se encontrar com o branco. Andariam por qualquer parte, ela abrindo as coxas para ele. Negra sem-vergonha aquela! Que era gostosa era mesmo, mas ele n�o era homem de ser enganado assim. Sempre se gabara de largar as suas amantes e Rosenda queria brincar com ele. Onde andaria? Teriam se metido num hotel? Era bem capaz, que o gringo era sujeito de dinheiro. Mas ele os pegaria e daria uma li��o. A chuva bate no telhado. Valer� a pena sair para procur�-los? Talvez seja melhor ficar em casa e trancar a porta do quarto. Ela que durma na rua. Por�m, mal formula este pensamento, sente falta do corpo esguio e quente de Rosenda. Demais, ela quando dorme com um homem � como se dan�asse. Sabe coisas aquela negra! Ant�nio Baldu�no sorri. A noite � fria, a chuva cai com viol�ncia. Um gato se enrosca nas suas pernas procurando calor. A cama velha � macia. Bom colch�o o daquele quarto. Em muita pens�o cara n�o tem um colch�o assim. E Rosenda em que cama estar� com o gringo? Talvez seja um colch�o duro. Ela merecia uma surra. N�o vale a pena, um homem matar outro por causa de uma vagabunda como Rosenda. Ele esfaqueou Zequinha mas Arminda era uma menina de doze anos, que nada sabia da vida. Aquele negro, que h� poucos dias foi condenado a dezoito anos de pris�o, matou um gringo, mas Mariinha era donzela e noiva do negro. Ele devia era dar uma surra no alem�o e largar Rosenda por a�. Mas como est� frio! Bota o gato no colo. O bichano fica satisfeito, esfrega a cabe�a nas suas pernas. Assim ele n�o sair� para procur�-los. O urso est� inquieto. Talvez ele tenha medo da chuva, talvez tenha saudades de algu�m. Mas urso l� pode ter saudades? Coitado daquele urso... H� quantos anos n�o v� uma f�mea? Ant�nio Baldu�no n�o pode passar uma semana sem ter mulher � ri com satisfa��o. Talvez o urso seja capado. Vai examinar. O animal se encolhe zangado. N�o � capado nem � macho. � f�mea, isso sim. Que ir� fazer com aquele urso na Bahia?. Bom seria solt�-lo no Morro do Capa-Negro. Pensariam que era um lobisomem. A chuva melhorou. Ele se levanta. Ir� procurar Rosenda. Sacode o gato longe. Mas Rosenda Rosed� acaba de entrar e vem rindo, os dentes brancos � mostra. Repara logo na cara zangada de Ant�nio Baldu�no. Vem rindo para o negro. � T� zangado, benzinho? Foi o urso? � Voc� faz de besta, negra. Ent�o pensa que eu n�o sei que voc� foi se encontrar com aquele gringo? � Que gringo, meu Deus? Ser� verdadeira esta surpresa que se estampa no seu rosto? Mas Baldu�no pensa que mulher � bicho ruim e trai�oeiro. Toda vez que ele pensa em mulher ruim se lembra de Am�lia, a empregada da casa do comendador. Am�lia mentia cinicamente, com a mesma cara de quem est� a dizer a maior verdade do mundo. Bem que Rosenda pode estar mentindo para cima dele com aquela cara inocente: � Ent�o onde era que voc� tava? � A gente nem pode ir dar um dedo de prosa na casa de uma vizinha, gentes? � Vizinha... � � s� ir perguntar � mulher de Seu Zuca. Eu tava l�... Ela conheceu uns parentes meus que teve por estas bandas. O urso impacientava-se cada vez mais. Ant�nio Baldu�no agora sente pouca vontade de discutir. Est� disposto a aceitar todas as desculpas. O que ele quer �

deitar no colch�o fofo tendo junto de seu corpo o corpo quente de Rosenda. A chuva aumentou novamente e escorre pelos telhados. Tem. uma goteira no meio do quarto que vai fazendo um buraco no ch�o de barro batido, O urso andava em volta da corrente. Rosenda o agarra, passa a m�o na sua pele. Mas o urso continua impaciente. De nada valem as car�cias de Rosenda. Ant�nio Baldu�no, estirado na cama, pensa num meio de fazer as pazes. Ele quer � Rosenda junto dele, o corpo junto do seu, o ventre dan�ando encostado � sua barriga. Talvez amanh� lhe d� uma surra e a abandone. Por�m, hoje n�o. Ele precisa dela, do seu corpo, da sua quentura. O pior � que j� brigou e n�o pode fazer as pazes assim de repente. Ela ainda est� zangada e agrada o urso. Ele n�o sabe como come�ar. Fecha os olhos mas ela n�o vem para a cama. E no entanto chove l� fora, o vento passa na rua zunindo, entra pela frincha da porta. Ser� que ela n�o sente esse convite? Ela est� muito zangada. Talvez tenha raz�o. Bem que ela podia estar com a vizinha, aquela mulher de Seu Zuca que sabe da vida de todo mundo. Ela tira o vestido. O vestido n�o est� molhado. Se ela tivesse ido longe, se tivesse ido com o gringo, volveria encharcada, com certeza. Ele ficou sozinho, come�ou a pensar besteira. O gato se enroscou nos seus p�s e faz um calor gostoso. Mas o resto do corpo esta abandonado ao frio. A chuva bate no telhado. Ele se lembra de uns versos que o Gordo sabe. Falam da m�sica da chuva no telhado e de uma mulher que chega pela madrugada. Ele n�o tem bem certeza se ela vinha a cavalo ou a p�. Caiu a combina��o de Rosenda Rosed� e agora os seios da negra encheram o quarto. � s� o que v�em os olhos de Ant�nio Baldu�no. Poucas donzelas ter�o os seios que ela tem, eretos e duros. Ant�nio Baldu�no atira o cigarro fora. E fazendo um esfor�o enorme diz: � Voc� sabe que este urso � uma ursa? � O qu�? � O urso � f�mea, negra. Os seios se despencam sobre o peito. E no cen�rio da chuva e do frio, do vento que zune na rua, Rosenda dan�a unicamente para ele. Empurra com o p� o gato que sai miando. O Viajante sem Porto entrou no cais debaixo do aguaceiro. Maria Clara prepara um caf� para eles. Partir�o logo noite, mal o saveiro esteja carregado. O urso fica amarrado no por�o. Mestre Manuel d� not�cias do Gordo que voltou a vender jornais e enterrou a av�. Jubiab� continua vivo a fazer feiti�os e a prestigiar macumbas. Joaquim � visto diariamente na Lanterna dos Afogados com Z� Camar�o. Ant�nio Baldu�no quer not�cias de todos os conhecidos e tamb�m da cidade, do cais, dos navios que chegam e partem. Novamente ele vai para o mist�rio do mar. Quando ele fugiu (tinha apanhado uma surra tremenda do peruano Miguez) n�o sabia rir mais. Andava com a cabe�a atravancada com as hist�rias de Jubiab�, com a vergonha da surra que tomara, com o fim da sua carreira de boxeur, com o noivado de Lindinalva. Agora sabia rir de novo e iria com certeza gostar das hist�rias tr�gicas de Jubiab�. Porque na sua fuga de dois anos vira muita mis�ria. A sua gargalhada tem hoje um tom cruel. E no seu rosto h� um talho. Foram os espinhos da noite do cerco. Mestre Manuel pergunta pela hist�ria daquele talho. Maria Clara fica espiando no fundo. Ant�nio Baldu�no conta e pensa no mar, nos guindastes do cais, nos navios negros que partem na noite. Foi numa noite assim de temporal que Viriato entrou pelo mar adentro. Os siris habitaram o seu corpo e chocalhavam. Tamb�m o velho Salustiano foi procurar no mar o caminho de casa. E uma mulher que se jogara na �gua com uma pedra no pesco�o? O saveiro balan�a nas �guas em cima das coroas de pedra. Hoje ningu�m v� as coroas. As �guas taparam tudo e Mestre Manuel n�o cederia o leme a ningu�m. Seria r�pido. O saveiro bateria numia coroa, acabaria a conversa entre Maria Clara e Rosenda Rosed�. (Maria Clara tem os cabelos em desordem atirados pelo vento e deles vem um perfume de mar. Talvez ela nunca tenha habitado numa casa, talvez seja filha do mar.) O cachimbo de Manuel se apagaria. E as �guas do rio cobririam tudo que o rio est� cheio e chega a fazer ondas como se fosse o mar. Mas Mestre Manuel n�o cede o leme a ningu�m. O vento sacode as �rvores nas margens. Muito ao longe brilha a lanterna de outro saveiro. Na escurid�o dos matos os vagalumes piscam. O vento carrega o saveiro que voa sobre as �guas como uma lancha a

gasolina. Neste momento, no meio do temporal, eles est�o bem perto da morte. Um desvio do leme e eles se jogar�o sobre as coroas de pedra que est�o invis�veis. Ant�nio Baldu�no vai de papo para o ar, pensando estas coisas. No c�u n�o v� nenhuma estrela, somente nuvens negras e carregadas correm a�oitadas pelo vento. De Maria Clara vem este cheiro de maresia. E o mar est� pr�ximo. O saveiro est� chegando na boca da barra. As margens do rio v�o ficando para tr�s, os povoados dormem sem luz. Ant�nio Baldu�no pensa que afinal a vida � besta, que n�o vale a pena viver. Viriato, o An�o, sabia destas coisas. E a estrada do mar � larga. Hoje � larga e revolta. O dorso verde do mar se agita. Tamb�m � um convite. Ele, negro valente e decidido, desde crian�a pensava em ter um ABC que contasse aos outros negros a sua hist�ria cheia de lances de coragem. Se ele fosse engolido agora pelas �guas, n�o contariam a sua hist�ria. Um negro valente n�o se mata, a n�o ser para n�o se entregar � pol�cia. E um homem de vinte e seis anos ainda tem muito que viver, ainda tem que brigar muito para merecer um ABC. Mas o mar � um convite. Ali est� o caminho de casa. Vem de Maria Clara um cheiro de maresia. Ela fala no mar, conta casos acontecidos com mestres de saveiros, hist�rias de naufr�gios e de mortes. Fala em seu pai que foi pescador e desapareceu numa jangada no meio de um temporal. Dela vem o cheiro do mar. Nela o mar est� sempre presente, � amigo e inimigo e j� se incorporou nela. No negro Ant�nio Baldu�no nada se incorporou. J� foi tudo e n�o � nada. Sabe que luta e que precisa lutar ainda mais. Por�m, tudo isto aparece muito esfuma�adamente dentro dele. A sua luta � uma luta perdida. Ele o sente nos nervos que afrouxaram. Como se desse socos no ar. E agora o mar o chama, como na vinda o chamavam os l�bios de Maria Clara. Mestre Manuel aponta. Ao fundo aparecem as luzes da Bahia. O vento voa em redor das suas cabe�as. E traz todo o perfume de mar que est� no corpo de Maria Clara. As luzes da Bahia fa�scam como uma salva��o. Rosenda Rosed� ficou na casa do Gordo. Jubiab� veio de noite e eles beijaram a sua m�o, O negro velho se acocora a um canto. A luz do fif� bate em cheio na sua cara enrugada. Na casa do Gordo n�o tem luz el�trica. O Gordo sorri na alegria de rever o amigo. Todos ouvem as hist�rias de Ant�nio Baldu�no. O urso dorme a um canto. E resolvem que no dia seguinte ir�o todos para a Feira de �gua dos Meninos, para ver se ganham algum dinheiro com o trabalho do urso. Descem para a Lanterna dos Afogados, onde se embriagam. Depois Ant�nio Baldu�no leva Rosenda Rosed� para o areal e a ama diante do mar. Mas ela se queixa da areia que d�i no seu corpo e que se meteu no seu cabelo alisado a ferro. O negro ri com gosto. O vulto dos guindastes no cais. A Feira de �gua dos Meninos come�a na noite do s�bado e se estende pelo domingo at� ao meio-dia. Por�m, na noite de s�bado � que � bom. Os canoeiros atracam as suas canoas no Porto da Lenha, os mestres de saveiros deixam os seus barcos no pequeno porto, homens chegam com animais carregados, as negras v�m vender mingau e arroz doce. Bondes passam perto, cheios de gente. Todo mundo vem � Feira de �gua dos Meninos. Uns v�m para comprar mantimentos para a semana, outros v�m pelo prazer do passeio, para comer sarapatel, para tocar viol�o, para arranjar mulher. A Feira de �gua dos Meninos � uma festa. Festa de negro, com m�sica, violas, risadas e brigas. As barracas se estendem em filas. Por�m a maior parte das coisas n�o est� nas barracas. Est� em grandes cestos, em ca�u�s, em caix�es. Camponeses de chap�u largo de palha, sentados ao lado, conversam animadamente com os fregueses. Ra�zes de macaxeira e de inhame, montes de abacaxis, laranjas e melancias. Tem todas as esp�cies de banana na Feira de �gua dos Meninos. Tem de tudo na feira. Um homem que tira sorte com um periquito. Custa duzentos r�is cada sorte. Rosenda Rosed� tirou a sua. Dizia o seguinte: �SORTE N�o confies em pessoas que te adulam porque tudo � falso. �s ainda ingenua por julgares a todos por ti. Tendes um bom cora��o e n�o julgas ninguem m�u. Mas tudo isso n�o inspira muito cuidado porque nascestes n�uma boa estrella. A sua mocidade ser� uma correnteza de amores e ter�s no amor muitas desaven�as. Casar�s por fim com um rapaz a quem menos import�ncia dar�s no principio e por fim tomar� posse no teu cora��o, que ser� o unico que amar� a vida inteira com verdadeiro affecto.

Dar�s luz a 3 lindos beb�s, os quaes criar�s com muito cuidado e te trar�o verda deira paz ao cora��o. Viver� 80 annos. Ter�s sorte na Loteria com o n. 04554. � S.U.O� Rosenda riu, Ant�nio Baldu�no avisou: � Voc� vai parir tr�s vezes. � Uma cigana disse que eu ia ter oito filhos. E que ia fazer uma viagem grande. A viagem j� fiz. Vim do Rio pra Bahia. Ela acertou. Mas Ant�nio Baldu�no pensa no peda�o da �sorte� em que diz: �a sua mocidade ser� uma correnteza de amores e ter�s no amor muitas desaven�as�. Decididamente ele est� enrabichado pela negra. At� parece que ela fez mandinga com pai Jubiab�. Jubiab� n�o veio � feira. Ainda � cedo para ele. Hoje � s�bado e vai muita gente procurar o pai-de-santo. Gente que sofre. Uns, doentes que querem rem�dios para o corpo: feridas, tuberculose, lepra, mol�stia da vida. Jubiab� vai distribuindo folhas e rezas. Outros v�m porque sofrem trai��o de mulher, ou porque desejam uma mulher que n�o d� ousadia, v�m em busca de feiti�os fortes, de mandinga, de coisafeita. No domingo as ruas amanhecem cheias de mandinga. Pai Jubiab� protege amores, acaba amores, arranca mulher de cabe�a de homem, bota homem na cabe�a de mulher. Sabe segredos de gra�dos, sabe da vida dos pobres, o que � que ele n�o sabe na sua casinha do Morro do Capa-Negro? Mais tarde ele vir� arrimado ao bord�o. J� curou gente, j� acertou os neg�cios de muitas pessoas. Chegar� ali onde eles param agora. O Gordo j� chegou com o urso. Ant�nio Baldu�no atrapalha sempre a vida do Gordo. O Gordo est� muito bem, vendendo os seus jornais quando Baldu�no chega e arranja outro neg�cio. Ele larga os jornais, segue o amigo. De repente tudo acaba e o Gordo volta a apregoar jornais com sua voz sonora e triste. Agora est� com esse urso pra cima e pra baixo. N�o princ�pio ele tinha medo do urso. Mas depois se acostumou com o bicho e, como sua av� j� morreu, � todo carinhos com o urso que tem comida farta mesmo que o Gordo fique com fome. O urso est� ali amarrado pelo focinho, pronto para ganhar a vida. Camponeses se re�nem em redor do Gordo que inventa uma hist�ria para o urso. Mas ele se encontra com uma dificuldade: urso ter� anjo da guarda? Ele nunca ouviu dizer. Mas hist�rias sem anjos perdem a gra�a e o Gordo resolve dar um anjo ao urso, quando Baldu�no chega e repete o que ouvia Luigi dizer acerca do le�o: � Esse monstro que t� aqui, respeit�vel p�blico, foi pegado nas selvas africanas. � tr�s vezes assassino, j� matou tr�s denodados domadores. (Se lembra palavra por palavra do discurso que Luigi repetia todas as noites.) � um assassino... Pois ele ir� trabalhar e todos podem observ�-lo por�m com cuidado. N�o se esque�am que ele j� matou tr�s... O Gordo olha para o focinho do urso e descobre que ele tem uns olhos meigos de crian�a e � incapaz de matar quem quer que seja. N�o � direito que Baldu�no o chame de assassino. Mas o urso est� andando de cabe�a para baixo e o grupo aumenta em torno. Rosenda l� a m�o dos homens. Eles gostam porque ela faz uma c�cega engra�ada que d� uma comich�o no corpo. Rosenda sabe ganhar dinheiro. Diz rindo para um mulato pachola: � Tem uma cabrocha que est� doidinha por voc�... O mulato sorri para Rosenda. Bem que podia ser ela mesma. Ela vai guardando os n�queis de cruzado. O Gordo recolhe dinheiro para o urso no chap�u de palha. Ant�nio Baldu�no, muito elegante com sapatos vermelhos e camisa vermelha, faz o elogio do bicho. A feira se movimenta em redor deles. Um autom�vel est� parado na rua. Engui�ou. O chofer se mete debaixo do carro a procurar o motivo da encrenca. Um homem explica ao grupo. � N�o estou dizendo? M�quina n�o vale de nada... O cavalo Fogoso nunca encrencou. Voc�s j� viram um cavalo encrencar? Antes ele estava contando a hist�ria do cavalo Fogoso que seu cunhado possu�a. Ele � contra o cavalo motor. Faz a apologia do cavalo animal, do carro de boi. Citava a B�blia. Jubiab� ouve encolhido. Os outros cortam a conversa com sinais de aprova��o. Quando Jubiab� chegou eles contaram o dinheiro que tinham ganho � cinq�enta e nove mil-r�is, uma fortuna � e ficaram se divertindo na feira que est� animada. O urso vai atr�s deles. Em frente � barraca onde Joaquim bebe, eles todos

param. E ficam ouvindo o homem que contava a hist�ria do cavalo Fogoso: � E naquele tempo, quando n�o tinha aquilo � aponta o auto encrencado � os homens viviam muito... Matusal�m viveu novecentos anos... T� na B�blia... � T� mesmo � ap�ia um mulato claro e velho. � Todo mundo vivia duzentos anos, trezentos. Cem ent�o era besteira. Veja na B�blia... � Dizque papagaio vive mais de cem anos... O homem olhou zangado para o aparteante. Mas quando viu que era Rosenda fez um sorriso. � Vivia mesmo. No� viveu n�o sei quanto tempo. Naquele tempo era carro de boi. Bebeu a pinga. O mulato claro apoiou: � Era, sim. O mulato queria provar que tamb�m tinha conhecimentos. Um negro apoiava com a cabe�a. Estava admirando o homem que citava a B�blia. � Um homem sa�a de casa num carro de boi, sabia que chegava onde queria ir. Agora um sujeito sai num bicho destes � apontava o auto desmoralizado � e fica no meio do caminho... Falta gasolina. Em carro de boi nunca faltou gasolina. � por isso que hoje os homens morrem meninos. M�quina n�o � inven��o de Deus. � coisa do diabo. O mulato claro apoiou. O homem continuou: � No tempo do carro de boi mulher dava � luz com cem anos... � T�, nisso eu n�o acredito. Me desculpe, mas mulher parir com cem anos n�o me entra... � declarou Ant�nio Baldu�no. Todos riram, menos o mulato claro. � Pois est� na B�blia... � fez o homem. Mas n�o havia jeito de Ant�nio Baldu�no acreditar. �Mulher parir com cem anos? � N�o, ele n�o ia nisso. Aquele homem estava fazendo eles de besta, bobeando todo mundo com aquelas hist�rias. E ele vai abrir a boca para dizer isto mesmo, quando Jubiab� fala: � No tempo do carro de boi tinha negro com fome. Hoje tamb�m tem. Pra negro � a mesma coisa. O mulato velho ap�ia: � Ah! Isso � mesmo � e alarga o conceito � para pobre. Mas a feira est� vivendo atr�s deles e, enquanto Jubiab� conversa com o homem que odeia os autom�veis (ele agora est� contando a hist�ria de uma doen�a que sofre h� muitos anos), saem pela feira, sem rumo definido, parando nas barracas, conversando com os camponeses, comendo coisas. Um homem b�bado olha Rosenda e diz: � Eta! Mulata batuta... Ant�nio Baldu�no se ofende mas Rosenda n�o o deixa � N�o est� vendo que o homem t� b�bado? � E ele n�o est� vendo que voc� vai com um macho? N�o, o homem n�o est� vendo nada que ele bebeu muito em todas as barracas onde tem cacha�a. Mas soube ver Rosenda, soube ver que ela � uma cabrocha bonita. J� afastado Ant�nio Baldu�no ainda tem vontade de voltar e interrogar o homem. Mais adiante sai um barulho. Jubiab� vem dizer que vai embora. Atr�s dele segue o homem que odeia os autom�veis e que agora tem uma grande confian�a de se curar com as rezas de Jubiab�. O barulho aumentou no outro lado da feira. Ant�nio Baldu�no nota que o Gordo n�o est� com eles. Pergunta: � Qued� o Gordo? � Deve estar a� com o urso. Joaquim s� tem olhos para Rosenda. Se ela n�o estivesse amigada com Baldu�no bem que ele lhe passaria uma cantada. Ele sabe l� onde anda o Gordo. � Aquela briga � com o Gordo � diz Ant�nio Baldu�no que se afastou um pouco. � Com o Gordo? � Rosenda se espanta. Ant�nio Baldu�no e Joaquim correm. Rosenda apressa os passos. O Gordo se defende das pancadas de um sujeito que puxa a corrente do urso. Os homens em torno gritam: � Deixa... Deixa ver.

Ant�nio Baldu�no atravessa o grupo, bota a m�o no ombro do Gordo: � O que � que ele quer? � Quer enfiar o charuto no nariz do urso. � S� para ver o que � que ele faz... � ri o homem, mostrando o charuto aceso. O homem tem uma cicatriz no queixo e o bigode ralo em cima do l�bio. � Ele tem uma cara t�o engra�ada. Vou botar... Riem em redor. Ant�nio Baldu�no morde a m�o. Joaquim est� por detr�s do homem, que ouve o que lhe dizem os dois mulatos. O homem de charuto resmunga: � Que nada... Besteira... Vou botar. � Pode botar � diz Ant�nio Baldu�no. O homem se aproxima do urso. Levanta o charuto. O urso recua. Mas agora o charuto est� junto do focinho do bicho e o Gordo vai gritar. O homem se estende no ch�o com o soco de Baldo, o boxeur. Os dois mulatos que estavam por detr�s do homem avan�am para o negro. Mas um deles fica nas m�os de Joaquim e o outro recebe na boca do est�mago o p� de Ant�nio Baldu�no. O Gordo quer dar uma pancada no homem do charuto que est� se levantando. Mas acerta na cara de um negro que n�o tem nada com a hist�ria e que revida. O irm�o do negro tamb�m entra na briga. Mestre Manuel, que vendia abacaxis, aparece, com ele v�m mais tr�s. � Ant�nio Baldu�no quem est� brigando, ent�o ele briga tamb�m. E os tr�s rapazes que o acompanham entram com ele no barulho. V�rios homens entram para desapartar e ficam metidos na briga. Um soldado puxa um sabre. Mas de que vale um sabre contra tantas navalhas que brilham? Um guarda apita inutilmente na rua. Ant�nio Baldu�no soqueia com for�a um sujeito que ele n�o sabe quem �, um sujeito que n�o tinha nada a ver com o neg�cio, que s� entrou para desapartar. O homem do charuto bate num dos que entraram de seu lado. O Gordo se afastou com o urso e aprecia a cena, Rosenda Rosed� morde os homens que atacam Baldu�no, est� com o vestido rasgado e tem na m�o uma navalha que tirou da meia. Toda a Feira de �gua dos Meninos briga. Briga por brigar, sem saber a causa, pelo prazer f�sico de se atracar com outro, e de rolar na areia trocando socos. Os negros esqueceram tudo, as ra�zes de inhame, os montes de tangerina, os abacaxis, e os beijus. Querem agora � brigar, que brigar � bom como cantar, como ouvir uma hist�ria, como mentir, como contemplar o mar da noite do cais. O Gordo furta uma garrafa de cerveja para o urso. Algu�m grita: � L� vem a cavalaria. R�pido como come�ou, o barulho acaba. Os homens voltam �s suas barracas, os seus montes de frutas e beijus. A cavalaria n�o encontra mais nada, apenas um pouco de sangue no local. Um homem tapa o talho que tem no rosto com um len�o. As navalhas desapareceram. E os negros riem satisfeitos porque nesta noite j� se divertiram. O homem do charuto diz a Ant�nio Baldu�no � Foi um turumbamba dos diabos. Oferece cerveja, alisa a cabe�a do urso. A chuva cai molhando os negros. Crioul�u

O Liberdade na Bahia ficava na Rua do Cabe�a, num segundo andar servido por uma escada estreita. � uma sala ampla, cadeiras em redor das paredes para as damas, um estrado onde ficava o jazz. H� ainda um p�tio de cimento com mesas, onde � servida a bebida, pois � rigorosamente proibido beber na sala de baile. Ao lado a latrina, O quartinho onde as damas arranjam o cabelo � bem pequeno, mas tem um espelho grande, um banquinho para elas se sentarem. Tem tamb�m um pente e uma lata

de brilhantina. Nos dias dos grandes bailes � quando o carnaval se aproxima ou se aproximam as festas do Bonfim � a sala fica engalanada com flores e com fitas de papel de todas as cores. Mas agora o que est� pr�ximo � o S�o Jo�o e do teto pendem bal�es in�meros e in�meras bolas cheias de vento. Vai ser uma festa de arrocho a de S�o Jo�o. O Liberdade na Bahia tem tradi��es a zelar e o seu baile de junho reunir�, sem d�vida, toda a criadagem das casas mais ricas, todas as mulatas que vendem doces na rua, os soldados do 19, os negros que est�o espalhados na cidade. � o crioul�u mais c�lebre da cidade. Na Bahia n�o s�o muitos os crioul�us. Os negros preferem ir dan�ar nas macumbas a dan�a religiosa dos santos e s� v�m aos crioul�us nos dias de grande baile. Mas o Liberdade na Bahia conseguiu o apoio de Jubiab� que ficou sendo presidente honor�rio e assim prosperou. Demais tinha um jazz do barulho, que se formara ali, mas que andava ganhando dinheiro nas festas da cidade. Festa de gente rica sem o Jazz dos 7 Can�rios n�o prestava. E os negros at� j� vestiam smoking. Por�m, eles davam tudo era na festa do Liberdade na Bahia. N�o havia dinheiro que fizesse o jazz tocar em outra festa nos dias em que o crioul�u dava baile. Ali eles dan�avam, vestiam uma roupa qualquer, estavam entre amigos e havia discursos. O Liberdade na Bahia andava no auge e tinha tradi��es a zelar. Preparava-se o baile de S�o Jo�o. Toda vez que Ant�nio Baldu�no via o Jazz dos 7 Can�rios pensava em ser maestro de uma banda de m�sica ou de um jazz. De uma banda de m�sica seria melhor porque os seus componentes v�o fardados e o maestro vai na frente, de costas, com uma batuta na m�o. Ant�nio Baldu�no amava as cores vistosas, as fardas rutilantes dos maestros de bandas de m�sica. Os homens do jazz vestiam uma roupa qualquer ou envergavam (nas festas ricas) smokings que n�o tentavam o negro. Assim mesmo, na falta da banda de m�sica ele se contentaria com ser o chefe do jazz, aquele que canta e sapateia. H� muito tempo que ele n�o fazia um samba. Tamb�m, nas planta��es de fumo, ele n�o tinha tempo para nada. Por�m, agora, mal voltara para a Bahia, fizera dois sambas que at� no r�dio tinham sido cantados e, mais do que isso, fizera o ABC de Zumbi dos Palmares, onde cantava a vida que imaginava para o seu her�i. Pelo seu ABC nascera na �frica, brigara com le�es, matara tigres e, um dia, enganado pelos brancos, entrou num navio que o trouxe escravo para as planta��es de fumo. Mas ele n�o gostava de apanhar, fugiu, lutou junto com outros negros, matou muitos soldados e para n�o se deixar prender se jogou de uma montanha abaixo: ��frica onde eu vi a luz eu me alembro de ti vivia solto, ca�ando comendo fruta e cuscuz. Palmares onde eu briguei Lutei contra a escravid�o Mil pol�cias aqui veio e nenhuma n�o voltou. Zumbi dos Palmares ent�o do morro abaixo se jogou dizendo: meu povo, adeus, vou morrer porque escravo eu n�o sou�. O Gordo decorara logo o ABC e o recitava nas festas acompanhando ao viol�o. Ant�nio Baldu�no procurou aquele poeta que lhe comprava os sambas para ver se ele queria ficar com o ABC. Mas o poeta s� quis os dois sambas, disse que o ABC n�o valia nada, que os versos estavam quebrados e outras coisas que Baldu�no n�o entendia. O negro se zangou porque achava o ABC muito bonito e, depois de ter recebido trinta mil-r�is pelos dois sambas, disse um bocado de desaforos ao poeta que n�o reagiu. Com a alma leve Ant�nio Baldu�no se retirou e cantou o ABC para Rosenda e Jubiab� que o acharam uma beleza. Jubiab� arranjou com Seu Jer�nimo do mercado que o ABC sa�sse na Biblioteca do Povo (colet�nea das melhores poesias sertanejas, trovas populares, hist�rias, modinhas, recitativos, ora��es, receitas �teis, anedotas, etc., ao pre�o de duzentos. r�is). Saiu junto com a Hist�ria do boi misterioso e com O caboclo e o rec�m-nascido e depressa foi decorado pelos

estivadores do ca�s, pelos mestres de saveiros (que o levaram para os cegos das cidades do Rec�ncavo), pelos malandros da cidade, por todos os negros. Agora Ant�nio Baldu�no s� pensava em entrar para o Jazz dos 7 Can�rios. Era s�cio do Liberdade na Bahia mas n�o aparecia muito por l�. Tinha sempre festas aonde ir e no Liberdade na Bahia a bebida era paga e b�ia n�o havia. S� mesmo por. causa de uma mulata ele se abalava para o clube onde Seu Juv�ncio, o secret�rio, um negro gordo que era tamb�m mestre-sala, lhe dizia invariavelmente: � At� que enfim, Seu Baldu�no, deu essa honra ao clube. Parece que despreza a gente. N�o desprezava nada. Mas no Liberdade na Bahia n�o podia dan�ar agarrado que era proibido, n�o podia ficar conversando com a dama no meio da sala, n�o se admitia gente b�bada. Tudo isso desagradava ao negro que n�o sabia se conter, que apertava as negras na dan�a, que muitas vezes ficava b�bado. Lembra-se bem da primeira vez que fora ao clube. Fazia muito tempo. Mal entrara tivera uma briga com Seu Juv�ncio. O jazz estava tocando num entusiasmo delirante. Por sinal que era um dos seus sambas, dos primeiros que vendera ao poeta. Ele tirou uma mulata para dan�ar (a Isolina, com quem andava de namoro). Come�aram a dan�ar pela sala e o negro apertou a mulata. Foi o que bastou para. Seu Juv�ncio se meter: � Isso n�o pode... � Seu Juv�ncio era um mestre-sala muito rigoroso. � Que � que n�o pode? � Isso aqui n�o � lugar para molecagem. � Quem � que est� fazendo molecagem? � O senhor com esta dama. Baldu�no mandou a m�o na cara do secret�rio. Formou barulho, mas Jubiab� se meteu e desapartou. Seu Juv�ncio explicou que tinha que manter a moral do clube. Se fosse permitir molecagem ali, as fam�lias n�o viriam mais e que haviam de dizer os pais das mo�as donzelas que confiavam no clube? N�o importava que ningu�m se gostasse. Isso n�o. Ele l� tinha nada com a vida dos outros! Mas dentro do clube, n�o. Ali queria respeito e muito respeito. Ali n�o era casa de mulher-dama. Era uma sociedade recreativa e dan�ante. Isso sim. Ant�nio Baldu�no achou que ele tinha raz�o e fizeram as pazes. O negro continuou a dan�ar e a beber. Acontece que o Gordo veio tamb�m e ficaram muito alegres. Mas quase � uma hora da manh� um sargento do ex�rcito come�ou a dan�ar muito escandaloso com uma branca. Seu Juv�ncio reclamou a primeira vez, o sargento nem ligou. Seu Juv�ncio reclamou de novo. Na terceira vez disse que o sargento n�o podia continuar dan�ando. O sargento empurrou Seu Juv�ncio. Ant�nio Baldu�no se meteu, apoiando Seu Juv�ncio, derrubou o sargento que saiu desmoralizado, amea�ando. Depois foi beber uma cerveja com o secret�rio. Mas n�o � que o sargento voltou com uma turma de soldados? E saiu um barulho feio. Foi uma pancadaria medonha. Houve quem se trancasse na latrina e at� tiros os soldados dispararam. A festa acabou com cabe�as quebradas e gente na cadeia. Ant�nio Baldu�no conseguiu escapar. Ficou c�lebre no Liberdade na Bahia e quando aparecia, Seu Juv�ncio fazia muita festa, mandava descer cerveja. Mas a verdade � que ele preferia as festas do Morro do Capa-Negro, das ruas de Itapagipe, do Rio Vermelho, aos bailes do Liberdade na Bahia. No carnaval, sim, � que gostava do clube porque sa�a vestido de �ndio, com penas vermelhas e verdes, cantando can��es de macumba. No carnaval era bom. Mas no S�o Jo�o ele preferia ir para a festa que Jo�o Francisco dava na sua casa, no Rio Vermelho, com uma fogueira enorme na Porta, um mundo de bal�es, foguetes, muita canjica e licor de Jenipapo Mas esse ano teria que ir ao Liberdade na Bahia, pois Rosenda Rosed� fizera um vestido de baile e queria estrear na festa do clube. Era vaidosa aquela mulatas Ele bem preferia ir � festa de Jo�o Francisco. Ant�nio Baldu�no vinha pensando que Rosenda Rosed� estava ficando insuport�vel. Queria mandar nele. Um dia destes ele dava-lhe um pontap� e a botaria para fora de casa. A negra vivia querendo coisas, fizera vender o urso para comprar um vestido de baile (podia comprar � presta��o a um turco), naquele dia pedira um colar que vira numa casa da Rua Chile por doze mil-r�is. Ele sa�ra para comprar mas se encontrara com Vicente e deu dez mil-r�is para o enterro de Clarimundo, que morreu debaixo de um guindaste no cais do porto. O sindicato ia

fazer o enterro mas os estivadores queriam arranjar algum dinheiro para a vi�va e andavam fazendo uma coleta. Iam levar uma coroa tamb�m. O pobre morrera debaixo do guindaste, aquela bola de ferro batera na sua cabe�a (ele carregava um fardo e n�o podia olhar para cima), e deixava a mulher com quatro filhos pequenos. Ant�nio Baldu�no deu os dez mil-r�is e ficou de falar com Jubiab� para ver se o pai-desanto conseguia arranjar mais alguma coisa para a mulher. Baldu�no conhecera muito o negro Clarimundo, sempre risonho, cantando, e que casara com uma mulata clara. �Uma t�bua�, como dizia Joaquim. Um bom companheiro, que desapertava um amigo quando estava com dinheiro. Agora tinha morrido, a mulher ia viver do que os outros dessem. De que valia trabalhar, viver debaixo dos fardos carregando os navios? Depois morria e deixava os filhos sem ter de que viver. O velho Salustiano pegara e se jogara na �gua. E foi de tanto pensar nestas coisas que Viriam, o An�o, se matara numa noite de temporal. Ant�nio Baldu�no n�o gosta de pensar nestas coisas. Ele gosta � de rir, de tocar viol�o, de ouvir as hist�rias bonitas do Gordo, as hist�rias her�icas de Z� Camar�o. Mas hoje ele est� aborrecido porque vai perder a festa de Jo�o Francisco. Tem que ir com Rosenda ao baile do Liberdade na Bahia. Antes passar� na casa de Clarimundo que � no meio do caminho. Ir� ver o morto que foi seu amigo. O melhor era n�o ir a festa nenhuma, era ficar fazendo sentinela ao morto. Ia falar com pai Jubiab� para que o feiticeiro fosse encomendar o cad�ver. � bem capaz de Jubiab� estar em sua casa, conversando com o Gordo. A casa do Gordo fica perto do Morro do Capa-Negro e de vez em quando Jubiab� desce para conversar. Jubiab� n�o envelhece. Quantos anos ele ter�? J� deve ter passado dos cem. Tamb�m sabe tanta coisa. Jubiab� aumenta a ang�stia que de quando em vez toma Ant�nio Baldu�no. Jubiab� diz umas coisas que ficam dentro do negro e o fazem pensar no mar onde Viriato se jogou, onde o velho Salustiano esqueceu a fome dos filhos. Ant�nio Baldu�no pensa que n�o � o mesmo, que n�o � t�o alegre como antigamente. Agora pensa coisas tristes. E ali mesmo, na rua, o negro ri alegremente, alto. Transeuntes se voltam espantados. O negro continua a rir. Mas compreende que est� rindo mais para irritar os outros que por alegria. Continua a andar com o passo mole apressado. Parece at� que est� correndo. Por�m, quando chega a casa j� ficou calmo, e pensa na roupa branca que vai botar no baile da noite. � Meu colar, benzinho? Ant�nio Baldu�no olha para a mulata com uma cara desconsolada. S� agora se lembrou do colar de Rosenda. Tamb�m dez mil-r�is ficaram com Vicente para a mulher do Clarimundo. A prata de dois mil-r�is est� no bolso. Rosenda faz um ar desconfiado: � Voc� n�o trouxe meu colar? � Voc� sabe quem morreu? Mas n�o adianta porque Rosenda n�o conhece Clarimundo. � Eu tanto queria e voc� n�o trouxe... S� de ruindade... Depois diz que gosta de mim. Mas deixe estar... � v�spera de S�o Jo�o e todo mundo est� alegre na rua. Ant�nio Baldu�no gostaria tamb�m de estar alegre. Os homens passavam por ele com as fisionomias risonhas e as casas de fogos estavam cheias de fregueses. Todos se preparavam para uma noite feliz. Soltariam traques e estrelinhas. Os negros s� conversavam sobre a festa de Jo�o Francisco e sobre o baile do Liberdade na Bahia. No entanto Ant�nio Baldu�no n�o pode ficar alegre esta noite. Clarimundo morreu e ele s� pensa no estivador. Rosenda est� implicando, fazendo-se de besta. N�o responde �s perguntas da negra que come�a a chorar. Vai at� a porta. Na casa de Osvaldo levantam uma fogueira. Vai ser enorme. No sobrado de fronte, mo�as procuram o retrato do noivo numa bacia cheia d��gua. Todos est�o alegres hoje. S� ele est� triste, est� aborrecido. Tamb�m a vi�va de Clarimundo deve estar chorando Mas ela tem um motivo. Perdeu o marido. Mas ele n�o tem motivo algum a n�o ser o aborrecimento de Rosenda, Assim mesmo isto era besteira. Podia dar um pontap� nela e ir � festa de Jo�o Francisco. Ela anda muito chata. Ant�nio Baldu�no sai da porta. Rosenda chora no quarto e diz que n�o vai mais, O negro pega o chap�u e vai para a casa de Jubiab�, avisar o pai-de-santo da morte de Clarimundo.

Quando voltou, depois de ter conversado com Jubiab� e o Gordo (o Gordo partiu logo para o vel�rio), encontrou Rosenda de cara amarrada mas se preparando para o baile. � Sabe, Rosenda, a gente tem que passar um minuto na casa de Clarimundo � Quem � Clarimundo? � perguntou ela amuada. � Um estivador que morreu hoje. Foi pro enterro dele que dei o dinheiro do colar. � E o que � que a gente vai fazer l�? � Ver a mulher dele, coitada. � Assim de vestido de festa? � O que � que tem? Por�m, Rosenda est� furiosa com o neg�cio do colar e fica resmungando que n�o est� direito ir na casa de um morto com vestido de baile. Enquanto isso vai se aprontando. Ant�nio Baldu�no toma o caf�. As palavras de Rosenda v�m do quarto. � Visitar defunto... Quem j� viu? Ela bem que merecia uma surra... Mulata vaidosa! Queria ir de colar para a festa, o pesco�o enfeitado de contas azuis. Um colar de doze mil-r�is... Dez tinham ido para a vi�va de Clar�mundo. Os outros dois estavam no seu bolso. Davam para uma cerveja. Um colar no pesco�o de Rosenda ficava bonito. Mas vermelho ficava mais bonito que azul. Ant�nio Baldu�no gosta � de vermelho. Aquela negra sabia ser mulher. Em cima de uma cama n�o havia coisa melhor. Mas fora dali era besta, cheia de chiqu�s, de dengues. Uma negra dengosa. Gostava que lhe catassem cafun�. E vivia falando em entrar para o teatro sem querer se empregar como copeira. Que n�o nascera para aquilo, era o que dizia. O caf� esfriou. E al�m disso estava ralo. Caf� s� bem forte para prestar. Nem caf� Rosenda faz direito. A mulher de Clarimundo � que fazia um caf� gostoso. Se ela n�o arranjar um homem � capaz de passar fome. Os tempos est�o ruins e lavar roupa n�o sustenta casa de ningu�m. Demais ela n�o ag�enta. � t�o magra... A voz de Rosenda vem do quarto, irritada: � Voc� quer ir ou n�o? � Por qu�? � Nunca mais vem mudar a roupa. Que hora quer chegar? Ainda vai passar em casa de defunto. Que desprop�sito, meu Deus. Visitar defunto de vestido de baile. Nunca vi em minha vida se dizer. Ant�nio Baldu�no veste o branco, mas, como vai passar na casa de Clarimundo, n�o p�e a gravata vermelha. Sai aborrecido da vida. Rosenda tamb�m. V�o afastados como se n�o se conhecessem. Sobem bal�es para o c�u. Acenderam a fogueira na casa de Osvaldo. Estouram traques e busca-p�s. Clarimundo n�o ver� mais os bal�es deste S�o Jo�o! Na sua porta, nesta data, nunca deixou de arder uma grande fogueira, nem de espocar foguete. Os amigos vinham beber vinho de jenipapo e cacha�a. Ant�nio Baldu�no veio muitas vezes. Soltavam busca-p�s que corriam atr�s dos transeuntes descuidados. Certa vez fizeram subir um bal�o colossal, de seis metros, em forma de zepelim, que tinha tr�s bocas. Fora uma beleza. Um jornal deu o retrato no dia seguinte. A sala ficava cheia. Hoje tamb�m ela est� cheia mas a fogueira n�o arde na porta. Estendido no caix�o, Clarimundo tem os olhos fechados. Os bal�es passam no c�u. Clarimundo n�o os v�. N�o v� a fogueira da casa de Osvaldo. Nos outros anos eles apostavam para ver quem fazia fogueira maior. Este ano a de Osvaldo foi maior porque na casa de Clarimundo s� tem a vela que arde ao lado do defunto. A cara ficou irreconhec�vel. A bola de ferro do guindaste amassou a cabe�a do estivador, rebentou os ossos, acachapou tudo aquilo. Hoje, soltaram um bal�o em forma de zepelim tamb�m. Todos correm para as janelas para ver. Vai cheio de luzes atravessando o c�u azul. S� Clarimundo n�o v� porque o guindaste o matou no trabalho do cais. Os outros estivadores est�o ali. O sindicato vai fazer o enterro. Daqueles que est�o ali, muitos v�o ao baile do Liberdade na Bahia. Jubiab� � que n�o ir�, pois est� encomendando o morto. Na m�o tem folhas que balan�am. O Gordo tamb�m n�o ir�, com certeza O Gordo vai ficar velando Clarimundo, ajudando Jubiab� na encomenda��o. Passam bal�es na noite. Clarimundo,

negro Clarimundo, esta noite n�o tem fogueira na frente de tua casa. Mas o negro Ant�nio Baldu�no tomar� um porre por causa da tua morte. E de agora em diante olhar� os guindastes como inimigos. A voz da mulher de Clarimundo � resignada e como que liberta de uma opress�o: � Isso tinha de acontecer. Toda vez que ele sa�a eu pensava que ele voltava nos bra�os, morto pelos guindastes... A filha mais velha, de dez anos, chora encostada na mesa. O menor, de tr�s anos, espia os bal�es que passam no c�u. Jubiab� encomenda o morto. Ant�nio Baldu�no tomar� um porre esta noite. Vem a m�sica de um samba de uma casa pr�xima. Invade a casa do defunto. O Liberdade na Bahia est� com o sal�o repleto. Gargalhadas vibram no ar. Um cheiro de suor enche a sala, mas ningu�m o sente. O Jazz dos 7 Can�rios est� delirante. Os pares quase n�o podem se mover na sala. Seu Juv�ncio deixou as fun��es de mestre-sala para vir dizer a Ant�nio Baldu�no: � At� que enfim deu essa honra ao clube... Seu Juv�ncio est� de roupa azul. Baldu�no apresenta Rosenda que veio de vestido verde de baile. Ficam na entrada at� que a m�sica acaba. Os pares se soltam na sala e eles entram. As mulatas apontam para Rosenda Rosed�. O vestido verde faz sucesso. Os negros est�o todos olhando para ela. Rosenda diz a Ant�nio Baldu�no: � Parece que nunca viram gente... Mas em verdade est� satisfeita, toda risonha. Se ela tivesse vindo com o colar � que estaria bonita de fato. Ant�nio Baldu�no ficou vaidoso com a entrada da negra. Todos est�o olhando para eles e cochicham. Rosenda Rosed� quando caminha balan�a as n�degas como se dan�asse um samba. Param no meio da sala, bem debaixo das luzes. Rosenda vai at� a camarinha para arranjar o cabelo esticado a ferro. Negros v�m falar com Ant�nio Baldu�no. Joaquim j� est� meio b�bado: � A coisa t� boa, seu mano... J� andei bebendo por a�... � Eu tava pensando que voc� ia pra festa de Jo�o Francisco. � E vou mesmo... Mas primeiro vim dar um pulo aqui, para ver as coisas. Isso t� bom. A mulata t� cutuba, hein? � Rosenda? Quer ela pra voc�? � N�o gosto de resto dos outros... Os negros riem. Um pergunta a Ant�nio Baldu�no quando arranjou aquele talho no rosto. O negro mente, inventando a hist�ria de uma briga com seis homens. Zefa est� no baile e espia Ant�nio Baldu�no. Ele se aproxima e ela se queixa dizendo que �parece que n�o conhece mais os pobres�. Rosenda sai da camarinha e sorri. Os dentes s�o alvos. Zefa olha com inveja: � L� vem tua patroa. Rosenda se senta junto de Zefa no lugar onde estava Ant�nio Baldu�no, que foi beber um trago, l� dentro, com Joaquim e Seu Juv�ncio. A dan�a est� demorando porque os m�sicos est�o bebendo um copo de cerveja. Mas de repente explode na sala a m�sica de uma marcha carnavalesca. Da mesa Ant�nio Baldu�no espia. S�o muitos os pares. N�o vale a pena dan�ar esta vez. Olha os sapatos vermelhos e novos. Se se metesse na dan�a pisariam os seus sapatos no vos. Joaquim acha os sapatos muito bonitos. Ant�nio Baldu�no diz que vai buscar Rosenda para beber uma cerveja. Quando se levanta, v� a negra dan�ando com um branco. Vira-se para Joaquim: � Quem � aquele cara? Qual? � Que est� dan�ando com Rosenda. � � Carlos, um chofer. Metido a brig�o... Onde foi que j� se viu uma dama, que vem acompanhada para um baile, dan�ar com um desconhecido sem falar com o cavalheiro que a trouxe? Aquilo n�o est� direito. Rosenda est� bobeando ele. Ela ficou danada com o neg�cio do colar e agora quer irritar o negro. Zefa n�o foi dan�ar. Vem para a mesa deles, aceita cerveja: � Tua mulata t� cutuba, Baldo, Olha como t� rindo para o branco. Seu Carlos � um danado... Joaquim tira Zefa para dan�ar. Zefa foi rindo, rindo de Ant�nio Baldu�no. Todos pensam que ele est� enrabichado por Rosenda, que ela fez feiti�o para

prender o negro. Ant�nio Baldu�no pede cacha�a ao gar�om, um capenga que anda com uma perna de pau. Na mesa vizinha um homem quer brigar com todo mundo. As negras dan�am na sala. O jazz se acaba de tanto entusiasmo. Rosenda est� dan�ando. Carlos fala no seu ouvido. Isso � proibido. Por que � que Seu Juv�ncio n�o reclama? Ant�nio Baldu�no pensa: � Ser� que estou com dor-de-corno? Que mulata bonitinha a que ficou sem dan�ar junto daquela velha gorda. Tem uma cara que � um primor. Uns peitinhos pequenos. Rosenda passa perto da janela e ri. Por que � que Ant�nio Baldu�no n�o pode pensar na mulatinha? Pede mais cacha�a. Tudo por causa daquele colar. Mas ele havia de n�o dar o dinheiro a Vicente para a mulher de Clarimundo? Clarimundo morreu debaixo do guindaste. O colar era azul. Se ainda fosse vermelho! Rosenda passa outra vez se rindo. Ele acaba desfeiteando o chofer. Querem se rir dele? Parece que n�o conhecem o negro Ant�nio Baldu�no. Sente o contato da navalha que est� no c�s da cal�a. Fica um lapo bonito na cara de um. Demais o colar azul n�o ficaria bonito com o vestido verde. Outro copo de cacha�a. Se fosse um colar vermelho... Amanh� a mulher de Clarimundo come�ar� a lavar roupa. Trabalho desgra�ado. E ela � magra, acaba ficando tuberculosa. Rosenda merece uma surra. Nunca nenhuma negra fez aquilo com ele. A sala est� cheia. As negras de vestido de baile dan�am como mulheres elegantes. Poucas mulheres se vestem t�o bem como a negra Joana. Mas hoje Rosenda est� mais bonita. O chofer vai satisfeito, exibindo o par. O dinheiro do colar ele deu a Clarimundo. O jazz p�ra mas as palmas o obrigam a recome�ar. Na mesa vizinha um homem quer brigar seja com quem for. Baldu�no se volta: � Tou com voc�, mulato. � Obrigado, patr�cio... N�o v� que ningu�m se mete comigo... E reclama contra o gar�om, reclama do companheiro de mesa. � Eu hoje fa�o um frege aqui. Ant�nio Baldu�no bem que podia pedir a Jubiab� que fizesse um feiti�o para Rosenda ficar caidinha por ele. Um negro canta no jazz. �Mulata, tu me desprezaste...� Mas ele n�o gostava de mulher arranjada com feiti�o. E pouco se importava que Rosenda fosse embora. O que n�o admitia era um desrespeito daqueles. Ent�o ele a trazia e ela ia dan�ar com outro sem lhe dar satisfa��o. Queria bobear o negro. As negras se rebolam no ritmo da marcha. Um preto velho conta uma hist�ria do outro lado. O homem que quer brigar interrompe com apartes. Um cheiro de suor se espalha. Um sujeito quer convencer uma mulata de sair com ele Naturalmente o chofer est� pedindo a mesma coisa a Rosenda. Ela ri. Baldu�no se levanta. O dinheiro fora para a mulher de Clarimundo. Chega junto do chofer, puxa o bra�o de Rosenda: � Venha dan�ar comigo. O chofer se ofende: � Esta dama est� comigo. � Quem trouxe ela foi eu. Esse vestido foi eu quem deu. Ela queria um colar mas eu dei o dinheiro para a mulher de Clarimundo, que o guindaste matou. Puxa Rosenda que fica indecisa, com medo. Ela bem sabe que o negro Ant�nio Baldu�no gosta de brigar. Mas o chofer � que n�o est� disposto a ceder a dama. A m�sica acaba e eles ficam no meio da sala discutindo. Seu Juv�ncio vem dizer que n�o � permitido ficar no meio da sala parado. O chofer se amola: � V� embora... Joaquim se aproxima: � O que � que h�? Rosenda pega no bra�o de Joaquim: � Baldo quer brigar s� porque eu estava dan�ando com este rapaz. N�o deixe, n�o, Seu Joaquim. Agora quase todos est�o olhando para eles. O homem b�bado que queria brigar p�e os pr�stimos � disposi��o de Ant�nio Baldu�no: � Precisa de mim, patr�cio? Seu Juv�ncio diz que � uma besteira e pede m�sica ao maestro. Vem um fox.

Ant�nio Baldu�no pega Rosenda. O chofer diz: � A gente se encontra. Rosenda fica dengosa. Agora que Baldu�no a conquistou de outro, novamente ela fica terna e se aperta nos seus bra�os. O negro pensa que se ela estivesse com um colar vermelho no pesco�o ficaria mais bonita. O homem que queria brigar conseguiu formar um barulho ao fundo. O chofer est� na porta espiando. Desapartaram o barulho. A dan�a continua. Seu Juv�ncio bate palmas na sala. Este fox parece m�sica de defunto de t�o triste que �. Clarimundo morreu e n�o ver� mais bal�es de S�o Jo�o. Quando acabam de dan�ar Ant�nio Baldu�no se aproxima do chofer: � Olhe, eu s� queria era lhe mostrar que voc� n�o tomava mulher minha. Agora pode ficar com ela, que eu n�o quero esse couro nem pra me tocar bronha. O crioul�u se despeda�a na dan�a. E o negro termina a noite regendo o Jazz dos 7 Can�rios. O maestro ficou b�bado de cair. O chofer desapareceu com Rosenda. O crioul�u cheira a suor, os negros riem, se despeda�am no maxixe. Romance da Nau Catarineta

Lindinalva lia na varanda poesias de amor, romances rom�nticos. Gostava da Nau Catarineta. �L� vem a Nau Catarineta Que tem muito que contar.� A Nau Catarineta podia lhe trazer um noivo, quem sabe. Uma vez um menino que pedia esmolas dissera que seu noivo viria no bojo de um navio cortando os mares. Ela o espera. E enquanto espera l� na varanda romances rom�nticos, poesias de amor. Depois do casamento da mo�a do sobrado defronte, a Travessa Zumbi dos Palmares perdeu o que lhe restava de poesia. Nunca mais o rapaz cruzou a rua e atirou cravos na varanda. Os noivos foram morar numa rua movimentada e o sobrado fechou completamente as suas janelas, encobrindo o retrato do jovem militar que matara com a sua morte toda a alegria daquela fam�lia. Lindinalva se entristeceu quando eles se casaram. Ela ficava nos jardins do comendador a olhar o namoro da vizinha, e no cravo que o rapaz jogava para a namorada ela tinha uma parte. Aquele namoro era o motivo rom�ntico da rua. Depois casaram e Lindinalva que nunca conversara com a vizinha se sentiu mais isolada, mais solit�ria. Am�lia envelhecia na cozinha. Um ano depois de Ant�nio Baldu�no ter fugido, Lindinalva chorou a morte da m�e. O comendador vi�vo se dividia entre os neg�cios e amores f�ceis que arranjava. Dera de beber (desgostoso, diziam os vizinhos) e Lindinalva vivia abandonada no casar�o, onde os gansos haviam morrido e as flores murchavam. Lindinalva lia a hist�ria da Nau Catarineta e despetalava rosas. Um dia seu noivo chegaria num navio. Lindinalva sonhou tanto com isso que n�o teve surpresa quando soube que Gustavo (Dr. Gustavo Barreira, advogado, das melhores fam�lias da capital) chegara h� pouco do Rio trazendo uma carta de bacharel e uma vontade decidida de fazer fortuna. Foi advogado do comendador num neg�cio e assim conheceu Lindinalva. As sardas do rosto, se n�o deixavam Lindinalva ser bonita, a tornavam esquisita. E o corpo magro de seios altos e pontudos tentava os olhos do advogado, O noivado correu risonho e a Travessa Zumbi dos Palmares adquiriu nova vida. Andavam de passeio de bra�o dado e ele dizia coisas rom�nticas. Do grande sobrado defronte as papoulas se debru�avam no muro para ver os namorados. Papoulas vermelhas, carnudas como l�bios. Ele disse uma vez:

� As papoulas convidam ao pecado... � e a beijara. O vento balan�ava as papoulas. Lindinalva era t�o feliz que esquecera o negro Ant�nio Baldu�no com quem sonhava nas noites de pesadelo. Sonhava agora com o noivo, com uma casinha, um jardim com papoulas, muitas papoulas vermelhas como pecados. O comendador faliu (as mulheres comeram a casa � diziam os comerciantes). O noivo foi de uma dedica��o rara. Trabalhou muito mas n�o conseguiu nada. O comendador passou a viver nas casas das mulheres mais baratas da vida e o noivo vinha ver Lindinalva toda a tarde. Um dia se mudaram do sobrado que ficou para os credores. Foram morar muito longe e era o noivo quem sustentava a casa. Num dia de temporal dormiu l�. O comendador andava na casa das mulheres. A porta do quarto de Lindinalva estava apenas encostada. Gustavo entrou. Ela se escondeu no len�ol. Sorrindo. Por�m Lindinalva n�o pensou que tudo mudasse assim t�o de repente. Dormiram juntos v�rias vezes e no princ�pio tudo era muito bom. Noites doces de amor, beijos que magoavam os l�bios, m�os que machucavam os seios como se desfolhassem papoulas. Mas aos poucos foi se afastando, se queixando dos neg�cios que n�o prosperavam, das dificuldades do casamento pr�ximo que foi adiado tr�s vezes. O comendador morreu na casa de uma mulher da vida. Os jornais deram. Gustavo se sentiu ofendido com aquilo, declarou que a sua carreira estava irremediavelmente comprometida e no dia do enterro n�o apareceu. Dias depois enviou duas notas de cem mil-r�is. Lindinalva mandou dizer que queria v�-lo. Passou-se uma semana e ele veio. Veio t�o sombrio e com tanta pressa que ela n�o chorou nem disse que estava gr�vida. Cantiga de amigo

Foi Am�lia quem disse a Ant�nio Baldu�no que Lindinalva estava na vida. Am�lia ficara maternal e terna desde que a desgra�a se abatera sobre a casa do comendador. Fora pai e m�e para Lindinalva. Mas, quando se mudaram, Lindinalva fez quest�o que ela procurasse outro emprego, que n�o os acompanhasse. Ela bem que quisera ir. Mas Lindinalva n�o deixara, se zangara mesmo. Am�lia tivera que ir para a casa de Manuel das Almas, portugu�s rico que possu�a uma confeitaria na cidade. Por esta �poca Ant�nio Baldu�no andava pelas planta��es de fumo. Quando Lindinalva dera � luz fora Am�lia quem a ajudara. Abandonara o emprego para vir ficar com a menina, que era como ela chamava Lindinalva. Fora dela o dinheiro para o parto, ela fora enfermeira dedicada e boa. T�o boa que Lindinalva n�o sentia humilha��o. Gustavo, que casara com a filha de um deputado, mandara cem mil-r�is para a crian�a e um pedido angustioso de sil�ncio. Lindinalva respondeu que ele podia ficar descansado que ela nunca revelaria nada. Novamente fez Am�lia procurar um emprego. E aceitou um convite de Lulu, uma caftina que possu�a a pens�o mais cara da cidade, para ir fazer a vida na Pens�o Monte Carlo. Ant�nio Baldu�no ouviu tudo isso de cabe�a baixa, passando a m�o no talho da cara. A noite l� fora era chuvosa. A crian�a, um menino forte como o pai e triste como a m�e, seguiu Am�lia. Lindinalva naquela noite fez a sua estr�ia na Pens�o Monte Carlo com um vestido de baile bem decotado. Lulu lhe havia dado instru��es: pedir bastante bebida e bebida cara. Procurar de prefer�ncia os gordos coron�is que vinham das planta��es de cacau, de fumo, de cana-de-a��car. Ela tinha um tipo esguio de virgem que devia agradar aos velhos. E que explorasse o mais que pudesse. Era a vida.

A m�sica era uma valsa lenta quando ela entrou na sala da pens�o. No seio levava a chave do quarto que devia entregar ao homem que a convidasse para a mesa. Com aquela chave abririam os segredos do seu corpo... Lindinalva n�o est� com vontade de chorar. A m�sica � que � triste. Pares se arrastam pela sala. Ainda � cedo e n�o tem muita gente na pens�o. Apenas duas mulheres est�o ocupa das numa mesa de rapazes que bebem cerveja. Lindinalva senta-se numa mesa de mulheres... Uma loira explica: � � a novata. As mulheres olham com indiferen�a para Lindinalva. S� a mulata que bebe um c�lice de cacha�a pergunta: � O que � que voc� veio fazer aqui? A m�sica se arrasta com tristeza. A voz de Lindinalva � N�o encontrei trabalho. Uma francesa oferece cigarros: � Quem me dera que o Coronel Pedro viesse hoje. Preciso de dinheiro. A mulata espia o c�lice e de s�bito solta uma gargalhada. As outras n�o se preocupam, pois j� est�o acostumadas com as maluquices de Eunice. Mas Lindinalva se assusta. Por que a m�sica � t�o triste? Bem que podiam tocar um samba alegre. Da rua vem um ru�do confuso de vozes e de bondes. Um ru�do de vida. A pens�o parece um cemit�rio onde houvesse m�sica. � o que Eunice est� dizendo: � N�s tamos mortas e n�o sabemos. A vida acabou para a gente. Mulher.dama � quase defunto. A francesa espera o Coronel Pedro. Ela precisa de dinheiro, recebeu uma carta dos parentes que est�o numa prov�ncia da Fran�a. O irm�ozinho est� quase morto. E pedem que ela, que vai t�o bem com a casa de modas no Brasil, mande mais algum dinheiro. Ela bate os dedos na mesa: � Casa de modas... Casa de modas... Eunice emborca o c�lice: � Tudo morta... Tudo... Cemit�rio. � Estou bem viva... � retruca uma morena nova. � Essa Eunice tem cada id�ia... � e sorri. Lindinalva olha para ela. � quase uma crian�a. Uma crian�a alegre de cabelos morenos. A loura � que � velha, tem rugas e um ar long�nquo de quem vive em outras paragens. A m�sica da valsa se extingue. Dois sujeitos entram na pens�o e pedem misturas complicadas. A menina morena vai ficar com eles. Pegam nas coxas dela, pedem mais bebidas, falam coisas no ouvido. Lindinalva sente uma tristeza imensa e uma vontade imensa de acariciar a menina morena. Eunice pede um cigarro. Ser� que ela tamb�m tem pena da menina morena? � Mulher-dama � escarradeira de todo mundo... � Eunice pensa que est� sorrindo. Agora � um tango que a orquestra toca. Fala em amor, em abandono, em suic�dio. Entram homens ricos da cidade. Aquele comerciante Lindinalva conhece. Uma vez, quando os neg�cios do comendador iam pr�speros, ele almo�ou na sua casa. O comendador acabou assim nas pens�es alegres e morreu no quarto de uma mulher. Quantas mulheres dali tinham conhecido o comendador? Quantas teriam se rido dele? Quantas o esperariam para pedir dinheiro? Agora Lindinalva espera tamb�m um comendador que lhe traga dinheiro, que gaste bebidas para que Lulu fique satisfeita e n�o a bote para fora, O tango fala em abandono. Na pens�o, Lindinalva n�o quer se recordar do filho. Nesse momento ele estender� os bracinhos para Am�lia. Quando ele disser �mam�e� ser� para Am�lia. Quando ele sorrir, Lindinalva n�o estar� presente. Os dois rapazes cochicham com a menina morena. Que ser� que eles prop�em? Ela diz que n�o. Mas o dia est� mau, tem pouca gente na pens�o. Eles insistem e ela vai com os dois para o quarto. Eunice cospe com for�a. Ela est� com raiva. Lindinalva tem vontade de chorar. Lulu sorri e mostra Lindinalva aos comerciantes. Diz qualquer coisa em voz baixa. Eunice avisa: � Chegou sua vez... Aquele Lindinalva conhece. Comeu na mesma mesa onde comiam sua m�e e seu pai. Com aquele ela n�o quer ir. Prefere qualquer outro, prefere mesmo o negro Ant�nio

Baldu�no. Mas o homem a chama com o dedo gordo. A menina morena n�o vai com dois? Lindinalva se levanta. Lulu faz com a m�o que ela se apresse. Eunice ergue o c�lice de cacha�a: � � sua estr�ia... A francesa faz um gesto com a m�o. Que importa? Todas elas est�o mortas, o tango est� dizendo, Eunice j� disse. Ela n�o � mais Lindinalva, a p�lida Lindinalva que corria no Parque de Nazar�. Ela est� morta, seu filho est� com Am�lia. Quando passa por Lulu, a caftina avisa que pe�a champanha. A menina morena volta do quarto com um ar espantado e l�grimas nos olhos. Os dois rapazes riem e trocam impress�es. Lindinalva pede champanha. Depois no quarto, o comerciante (comera em sua casa) pergunta o que � que ela faz al�m do normal. Mas est�o todas mortas, j� morreram todas. Eunice bebe mais cacha�a, o tango solu�a. Foi assim a recep��o de Lindinalva. Cedo ficou velha para as pens�es caras. Os homens ricos n�o v�o mais com ela. Agora sua boca conserva sempre um travo amargo de cacha�a. Eunice j� foi para a Rua de Baixo onde mulheres cobram cinco mil-r�is. Hoje � Lindinalva que ir�. Alugou o quarto na mesma casa que Eunice. Durante o dia foi ver o filho no quartinho onde Am�lia mora. Gustavinho est� lindo, os grandes olhos vivos, a boca carnuda como aquela flor vermelha de que Gustavo falava. Lindinalva nem se recorda o nome. Agora sabe palavras feias em franc�s e toda a g�ria das mulheres da vida. Mas o menino diz �mam�e, mam�e�, e ela se sente pura como uma virgem. Conta hist�rias ao filho, hist�rias que ouvira de Am�lia noutros tempos, quando ela era Lindinalva. Na casa onde vai morar a mulher disse que seu nome seria Linda de agora em diante. Conta ao filho a hist�ria de Maria Borralheira e fica feliz, muito feliz. (Que bom se o mundo acabasse naquele momento, se todos morressem.) Ficam na sala atr�s das janelas semi-abertas. Homens passam na rua e elas chamam. Uns entram, outros dizem piadas, alguns passam apressados e levam embrulhos. Eunice est� b�bada dizendo que j� morreu, que todas est�o no inferno. A polaca velha se queixa da sua falta de sorte. Na v�spera n�o arranjara homem. Hoje tampouco. Talvez tenha que ir para a Ladeira do Tabu�o onde as mulheres cobram mil e quinhentos, fazem tudo, e morrem depois. Lindinalva est� longe dali, est� com o filho no quarto pobre de Am�lia. Este sorri e diz �mam�e�. Vontade doida de beijar os l�bios carnudos do filho, de continuar a contar durante toda a vida a hist�ria de Maria Borralheira. A dona da pens�o bota uma vitrola para tocar na sala de jantar. Os peitos moles de Eunice aparecem sob a combina��o. Ela chama os homens da janela. Gustavinho quando ficar rapaz talvez passe nessas ruas. Quando isso se der, Lindinalva j� ter� morrido e ele n�o a encontrar� atr�s das janelas a chamar homens. De Lindinalva ele guardar� a recorda��o de uma mo�a simples e bonita que contava hist�rias de Maria Borralheira. Eunice est� dizendo que est�o todas mortas. A polaca pede dois mil-r�is emprestados. Um rapaz de cabeleira atende ao chamado de Lindinalva. Eunice diz: � Boa sorte, Linda � e suspende um c�lice imagin�rio. No quarto o rapaz pergunta que nome ela tem, quer saber de toda sua vida, diz que � poeta, recita versos (conta a doen�a da m�e que est� no sert�o, diz que ela � linda como as ac�cias, compara os seus cabelos aos trigais, promete fazer um soneto sobre ela). A vitrola se desespera num samba na sala de jantar. O rapaz gosta � de um tango bem rom�ntico. Pergunta a opini�o de Linda sobre pol�tica � E uma nojeira, n�o �? Foi assim a recep��o de Linda. Lindinalva desceu v�rias ladeiras. Foi ficar bem perto da Cidade Baixa, foi ficar na Ladeira do Tabu�o. Da Ladeira do Tabu�o as mulheres s� sa�am ou para o hospital ou para o necrot�rio. De qualquer maneira sa�am de autom�vel: ou na assist�ncia ou no carro vermelho dos cad�veres. Na Ladeira do Tabu�o as toalhas nas janelas e caras negras nas portas Lindinalva tinha ido ver Gustav�nho que convalescia de sarampo. Ele estirou os bra�os e sorriu na alegria de rever a m�e: � Mam�e, mam�e. Depois faz uma cara s�ria e pergunta:

� Quando � que tu vem morar com a gente, mam�e? � Mam�e vem, filhinho, um dia destes. � Quando voc� vier vai ser bom, mam�e. Lindinalva passou junto do velho elevador que liga as cidades Baixa e Alta. Sorriu para o sorriso do condutor de bonde e seguiu para o n�mero 32, onde alugara o quarto. Gustavinho precisava engordar. Com o sarampo, emagrecera. Empurrou a porta colonial, pesada, com uma argolona. O n�mero 32 estava escrito com tinta azulclara, um n�mero muito grande. Gritaram l� de cima: � Quem �? Lindinalva foi subindo as escadas sujas. Tinha os olhos quase fechados, o peito arfava. Passara a noite pensando. A princ�pio tentara dormir mas quando conciliou o sono teve pesadelos horr�veis, onde via mulheres sifil�ticas de dedos enormes, todas juntas na porta de um hospitalzinho min�sculo. Carregavam um carro de assist�ncia... N�o, n�o era um carro de assist�ncia... Era o corpo do comendador que morrera na casa de uma mulher da vida... E depois era o corpo de Gustavinho que morrera de sarampo... De repente acabou tudo e ficou o negro Ant�nio Baldu�no dando grandes gargalhadas de gozo, com uma nota de cinco mil-r�is e uns n�queis na m�o. Acordou suada, bebeu �gua. Noite horr�vel da sua vida. Lindinalva agora n�o pensava. Afinal era o destino... O destino era assim mesmo. Para uns, bom, para outros, miser�vel. Cada pessoa j� nasce com o seu destino, ele n�o vem na Nau Catarineta. O destino dela era destino ruim, que jeito ela podia dar? Subia as escadas condenada. Na v�spera a mulata que alugava os quartos do quinto andar fora franca: � Daqui, meu amor, ou para a assist�ncia ou para o buraco. Olhou o c�u pela janela: � J� vi sair tantas... Lindinalva sobe as escadas com o olhos distantes. Onde andar� aquela Lindinalva que ria e brincava no Parque de Nazar�? Ela vai curvada e as suas faces magras levam l�grimas que rolam. Lindinalva chora, sim... Caem l�grimas dos seus olhos, l�grimas que lavam a sujeira da escada. Lindinalva vai curva, o rosto sardento e branco escondido no bra�o. Deslizam l�grimas pela sua face triste. Lindinalva tem um filho e gostaria de viver para ele. Mas da Ladeira do Tabu�o as mulheres s� saem para o cemit�rio. No quinto andar uma mulher diz a outra: � � a Sardenta que vem chegando. Nada de conversas porque a pobre vem chorando... Essa voz que fala tem uma piedade ardente. Foi assim a recep��o da Sardenta. Guindastes

Ir�o para a Lanterna dos Afogados, para o cais onde a noite � bonita. Saem da Baixa dos Sapateiros e descem a Ladeira do Tabu�o. Finalmente o Gordo descobriu uma estrela que nunca tinha visto: � Espie... Uma estrela nova. Aquela � minha. O Gordo ganhou uma estrela e vai satisfeito. Jubiab� diz que as estrelas s�o os homens valentes que morrem. Hoje deve ter morrido um homem valente, um homem que mere�a um ABC, pois o Gordo descobriu uma estrela nova. Joaquim procura uma

mas n�o encontra. Ant�nio Baldu�no pensa em quem teria morrido esta noite. Tem gente valente em toda parte. Quando ele morrer brilhar� no c�u tamb�m. O Gordo descobrir� ou talvez seja descoberto por uma crian�a, por um moleque da rua que pe�a esmolas e tenha uma navalha no c�s da cal�a. Eles gostam de passear assim pelas ruas desertas quando a lua � cheia e ilumina a cidade com a luz amarela. N�o anda ningu�m pelas ruas, as casas t�m as janelas fechadas, os homens dormem. Eles s�o novamente donos da cidade como no tempo em que mendigavam. S�o os �nicos homens livres da cidade. S�o malandros, vivem do que aparece, cantam nas festas, dormem pelo areal do cais, amam as mulatas empregadas, n�o t�m hor�rio de dormir e de acordar. Z� Camar�o nunca trabalhou. J� est� come�ando a envelhecer e sempre foi malandro, desordeiro conhecido, tocador de viol�o, jogador de capoeira. Ant�nio Baldu�no foi o seu melhor disc�pulo. E foi al�m do mestre. Foi tudo na vida. At� trabalhador nas planta��es de fumo, jogador de boxe e artista de circo. Por�m vive � de fazer um samba de quando em vez e de cant�-lo nas festas dos negros da cidade. Joaquim trabalha tr�s, quatro dias por m�s, quando tem vontade. Carrega malas para outros carregadores que est�o com muito servi�o. O Gordo vende jornais quando Baldu�no n�o est� na Bahia. Baldu�no chega, tudo acabou-se. Vai atr�s do negro naquela vida gostosa de n�o fazer nada, de viver � solta pela cidade que dorme. Ant�nio Baldu�no pergunta: � A gente vai ancorar na Lanterna dos Afogados? � Vai, sim... A Ladeira do Tabu�o � silenciosa a estas horas da noite. O servi�o do velho elevador j� terminou e a torre se debru�a sobre a cidade. Nas janelas mais altas brilham luzes. S�o as mulheres da vida que voltaram da rua e que despacham os �ltimos homens. Joaquim assovia um samba. Eles v�o calados. S� o assovio de Joaquim corta o sil�ncio. Ant�nio Baldu�no vai pensando no que Am�lia lhe contou, na hist�ria de Lindinalva. Agora ela deve estar sem orgulho e ele na hora que quiser poder� possu�-la. Ela n�o � mais a sua patroa, a filha rica do comendador, � uma mulher da vida que est� na Ladeira do Tabu�o e se vende aos homens por qualquer dois milr�is. Como as coisas mudam! No dia que ele quiser subir� as escadas do sobrado onde ela est� e a ter� nos seus bra�os. Basta pagar uma prata. Ele se recorda da fuga da Travessa Zumbi dos Palmares. Se Am�lia n�o houvesse inventado aquelas mentiras ele continuaria com o comendador, vendo em Lindinalva uma santa, trabalharia na casa comercial, talvez impedisse a fal�ncia do patr�o. Teria sido um escravo. Am�lia tinha feito um bem em querendo fazer um mal. Ele era livre e at� podia possuir Lindinalva na hora que quisesse. Era sardenta e tinha um rosto de santa. Ele nunca a olhara com olhos de desejo. Mas desde que Am�lia inventou que ele a espiava quando ela tomava banho, Ant�nio Baldu�no n�o possuiu outra mulher. Dormisse com quem dormisse era com Lindinalva que ele dormia. Mesmo dormindo com Rosenda Rosed�. Ele dera Rosenda ao chofer. Agora ela andava dan�ando num cabar� barato, fazendo a vida tamb�m, e j� mandara pedir dinheiro emprestado. Rosenda era mulata vaidosa, estava tendo a paga. Lindinalva n�o era vaidosa mas ficara com �dio dele. Tivera a sua paga tamb�m. Andava na Ladeira do Tabu�o onde vivem as mulheres mais baratas e mais gastas da cidade. Ele podia possu�-la no dia que quisesse. Ent�o por que n�o fica alegre, por que se entristece e n�o olha mais o espet�culo da lua cheia? Ele n�o esperou toda a vida que chegasse o dia de possuir Lindinalva? Ent�o por que n�o sobe at� o quinto andar do sobrado n�mero 32 da Ladeira do Tabu�o e n�o bate na porta do quarto de Lindinalva? Ali est� o sobrado. Eles v�o passar defronte. A rua dorme no sil�ncio e ouve-se apenas o assovio do Joaquim. Que vento frio vem do mar e faz Ant�nio Baldu�no tremer? Da porta do 32 uma mulher sai de s�bito, os cabelos soltos. Mal ela aparece na porta, Ant�nio Baldu�no tem certeza que � Lindinalva. Mas � um trapo humano, uma figura que perdeu o nome na Ladeira do Tabu�o. Rosto sardento e encovado, as m�os finas tremendo, os olhos saltados e brilhantes. O vento sacode os cabelos da mulher. Ela p�ra diante dos homens, agita os bra�os e torce as m�os em gestos de s�plica: � Dois mil-r�is para beber uma cerveja... Dois mil- r�is por amor de sua m�e. Os homens est�o mudos de espanto. Ela pensa que eles n�o v�o dar:

� Ent�o um cigarro... Um cigarro... H� dois dias que n�o fumo. Joaquim estende o cigarro. Ela o aperta nos dedos magros e ri. � Lindinalva, sim. Por isso Ant�nio Baldu�no treme como se tivesse febre. Um vento frio vem do mar. Com a chegada da mulher um terror profundo o invadiu. Ele treme, ele est� com medo, quer correr, fugir dali para o fim do mundo. Mas est� preso ao solo olhando o rosto sardento e descarnado de Lindinalva. Ela n�o o reconhece nem o v�, sequer. Fuma o cigarro e pergunta com voz doce, voz que recorda aquela outra Lindinalva que corria no Parque de Nazar� e brincava com o negrinho Baldo: � E a cerveja? Voc�s v�o me dar, n�o v�o? Ant�nio Baldu�no consegue tirar os dez mil-r�is do bolso. Entrega � mulher que ri e solu�a. E tremendo de medo, tremendo de pavor, sai a correr ladeira acima e s� tem descanso na casa de Jubiab�, chorando junto ao pai-de-santo que o acaricia como no dia em que Lu�sa enlouqueceu. Quando o pavor passou (e durou dias) ele voltou � casa de Lindinalva. No quarto, onde a cama de casal tomava o maior espa�o, Lindinalva se acaba. Am�lia cont�m as l�grimas. Ele entra devagar, como lhe recomendou a prostituta que solu�a na porta. Am�lia n�o se admira de o ver. Bota o dedo na boca num sinal de sil�ncio. E vem para junto dele, que pergunta: � Doente? � aponta Lindinalva com o dedo. � Morrendo. Com a morte que se aproxima ela tornou a ser a mesma Lindinalva da Travessa Zumbi dos Palmares. Seu rosto est� sereno e belo. Seu rosto sardento, rosto de santa. As m�os que tocavam piano e machucavam as rosas s�o as mesmas. Nada resta da Lindinalva da Pens�o Monte Carlo, da Linda da Rua de Baixo, da Sardenta da Ladeira do Tabu�o. Ela agora � novamente a filha do comendador que morava na casa mais bonita da Travessa Zumbi dos Palmares e esperava um noivo na Nau Catarineta. Mas ela se move e aparece outra Lindinalva. Esta Ant�nio Baldu�no n�o conheceu. Mas Am�lia sabe qual �. � a noiva de Gustavo, � a amante de Gustavo, � a m�e de Gustavinho. Um rosto risonho de senhora jovem. Ela murmura qualquer coisa. Am�lia se aproxima e pega-lhe na m�o. Ela est� dizendo que quer o filho, que o tragam que ela vai morrer. Am�lia volta chorando. Ant�nio Baldu�no pergunta: � E o doutor? � N�o p�de fazer mais nada... Disse que agora � esperar a morte. Mas Ant�nio Baldu�no n�o se conforma. Tem uma inspira��o. � Vou buscar pai Jubiab�. � Passe em minha casa e traga a crian�a. E ele que veio ali para se vingar, para a possuir e depois jogar dois mil.r�is no seu leito... Veio para insult�-la, para dizer que branca n�o vale nada, que um negro como ele faz o que quer. Agora vai buscar pai Jubiab� para ver se a salva. Se ela ficar boa ele desaparecer�. Mas se ela morrer, que poder� ele fazer na vida? N�o lhe restar� outro caminho se n�o o caminho do mar por onde entrou Viriato, o An�o, que tamb�m n�o tinha ningu�m no mundo. S� ent�o Ant�nio Baldu�no compreende que se Lindinalva morrer ele ficar� s�, sem nenhum motivo para viver. Volta com o menino. Jubiab� n�o estava. Ningu�m sabia por onde ele tinha ido e Ant�nio Baldu�no o procurou inutilmente. Amaldi�oou o velho feiticeiro. A crian�a vem pela sua m�o e se d� bem com ele. Tem o nariz de Lindinalva. As mesmas sardas na cara. Pergunta muita coisa, quer saber de tudo. Ant�nio Baldu�no explica e se admira da paci�ncia que tem. Carrega o menino na escada. Am�lia avisa, abafando os solu�os: � Entre... Ela est� morrendo. Ant�nio Baldu�no deposita a crian�a junto � cama. Lindinalva abre os olhos: � Filhinho... Quis sorrir, se torceu numa careta. A crian�a fica com medo e come�a a chorar. Am�lia a afasta depois de Lindinalva beijar-lhe as faces. Ela queria beijar os l�bios carnudos do filho, os l�bios que eram de Gustavo. Mas n�o pode. Agora chora e tem pena de morrer. Ela que pediu a morte tantas vezes. Pressente que h� mais algu�m no quarto. Pergunta a Am�lia:

� Quem �? Am�lia fica confusa, sem saber se deve dizer. Mas Ant�nio Baldu�no se aproxima com os olhos baixos. Se um dos amigos o visse agora talvez n�o compreendesse por que ele est� chorando. Lindinalva procura sorrir quando o reconhece: � Baldo... Fui ruim com voc�... � Deixe disso... � Me perdoe. � N�o diga isso... N�o fa�a eu chorar... Ela passa a m�o na carapinha do negro e morre dizendo: � Ajude Am�lia a criar meu filho, Baldo... Olhe por ele. Ant�nio Baldu�no se joga nos p�s da cama como um negro escravo. Ele quer que o caix�o seja branco, como um caix�o de virgem. Mas ningu�m o compreende, nem Jubiab� que sabe tanta coisa. O Gordo s� concorda porque � muito bom, mas no fundo est� espantado porque nunca viu caix�o de prostituta ser branco. Apenas Am�lia parece compreender: � Voc� gostava muito dela, n�o era? Eu fiz intriga. Andava com ci�mes dos patr�es gostarem tanto de voc�. H� vinte anos que eu estava com eles. Eu criei a menina. Ela merecia um destino melhor... T�o boazinha. Ent�o Ant�nio Baldu�no estende as m�os e explica com aquela voz pesada que tem de quando em vez: � Ela era virgem, gente... Eu juro que era... Ningu�m teve ela... Ela n�o foi de ningu�m... Vivia disso mas n�o se dava... S� eu que tive ela... S� eu, gente... Quando eu andava com uma mulher tava com a cabe�a nela... Quero um caix�o branco para ela. Sim, ningu�m a possuiu porque todos a compraram. S� o negro Ant�nio Baldu�no, que nunca dormiu com ela, a possuiu e de todas as formas, no corpo virgem da dos Reis, nas ancas que dan�avam de Rosenda Rosed�. S� ele a possuiu no corpo de todas as mulheres que dormiram com ele. Na maravilhosa ventura de amor do negro Ant�nio Baldu�no e da branca Lindinalva esta foi branca, preta e mulata, foi tamb�m aquela chinesinha do Beco de Maria Paz, foi gorda e magra, teve uma voz masculina certa noite no cais, mentia como a preta Joana. Mas ela n�o pode ir vestida de virgem, Ant�nio Baldu�no. Am�lia est� explicando que ela amou Gustavo, que a possuiu de verdade, sem a comprar. Mas Ant�nio Baldu�no n�o quer escutar e pensa que aquilo � outra intriga de Am�lia para o afastar de Lindinalva. Para ajudar o filho de Lindinalva o negro Ant�nio Baldu�no entrou para a estiva no lugar de Clarimundo que o guindaste matara. Ia ter uma profiss�o, ia ser escravo da hora, dos capatazes, dos guindastes e dos navios. Mas se n�o o fizesse s� lhe restaria entrar pelo caminho do mar. As sombras enormes dos guindastes aparecem no mar. E o mar verde e oleoso chama o negro Ant�nio Baldu�no. Os guindastes fazem escravos, matam os homens, s�o inimigos dos negros e aliados dos ricos. O mar faz libertos. Ser� um mergulho s� e ter� tempo para soltar sua gargalhada. Mas Lindinalva acariciou sua cabe�a e pediu que ele tomasse conta do seu filho. Primeiro dia da greve

Ant�nio Baldu�no passara a noite descarregando um navio sueco que trazia material para a estrada de ferro e que nas noites seguintes seria abarrotado de cacau. Carregava um molho pesado de ferros, quando, ao passar junto de Severino, um mulato magricela, este lhe disse: � A greve do pessoal dos bondes rebenta hoje.

Aquela greve era esperada h� muito. Por diversas vezes o pessoal da companhia que dominava a luz, o telefone e os bondes da cidade tentara se levantar em parede pedindo aumento de sal�rio. Chegaram a fazer uma greve anteriormente, mas foram tapeados com promessas que ainda estavam por se cumprir. E agora, h� oito dias que a cidade esperava amanhecer sem bondes e sem telefone. Mas a greve n�o rebentava, sempre adiada. Por isso Ant�nio Baldu�no n�o ligou muita import�ncia ao aviso de Severino. Logo depois, por�m, ouvia um negro alto dizer: � A gente devia aderir, ficar com eles. Os guindastes depositavam no cais enormes rolos de ferro. Os negros iam debaixo deles para os armaz�ns, parecendo monstros estranhos, e ainda assim conversavam. O apito do capataz dava ordens. Um branco passou o bra�o na testa e sacudiu longe o suor: � Ser� que eles conseguem alguma coisa? Voltaram correndo para junto dos rolos de ferro. Severino murmurou enquanto suspendia o fardo: � O sindicato deles tem dinheiro para ag�entar a greve... Saiu correndo com o fardo. Ant�nio Baldu�no levantava peda�os de trilhos: � Todo m�s vai dinheiro pro sindicato. O sindicato tem de ag�entar. O apito do capataz mandava a turma abandonar o tra balho. A turma do dia estava � espera e substituiu imediatamente a que sa�a. Os materiais para a estrada de ferro continuam a andar para o armaz�m das docas. Os guindastes rangiam. Saem em grupos e na porta Ant�nio Baldu�no se recorda de um homem que foi preso ali quando fazia um discurso. Ele era moleque de rua mas se lembrava perfeitamente. Gritara, e com ele o grupo todo, protestando contra a pris�o do homem. Gritara porque amava gritar, vaiar a pol�cia, jogar pedra em soldado. Hoje ele precisa de gritar novamente, como no tempo em que corria solto pela rua e n�o via os guindastes inimigos prontos a lhe rebentarem a cabe�a. Ant�nio Baldu�no vem sozinho pela rua. Tomou um copo de mingau de puba no terreiro. Junto da negra, homens conversavam sobre a greve. Ant�nio Baldu�no sai cantando coisas de Lampi�o: �Minha m�e me d� dinheiro pra comprar um cintur�o pra fazer uma cartucheira pra brigar pra Lampi�o�. Um conhecido grita: � Al�, Baldo! O negro faz um gesto com a m�o e continua a cantar: �A mui� de Lampi�o quase morre de uma dor porque n�o fez um vestido da fuma�a do vapor�. Agora canta em surdina, entre dentes: �� Lamp, � Lamp, � Lamp, � Lamp, � Lamp, � Lamp, Lampi�o�. Com a greve que paralisou os bondes a cidade ficou festiva. Tem um movimento desconhecido hoje. Passam grupos de homens que conversam animadamente. Rapazes empregados no com�rcio caminham rindo, gozando a cara do patr�o que n�o poder� reclamar o atraso da chegada. Uma mocinha atravessa a rua apressada com medo de alguma coisa. A cidade est� cheia de condutores de bonde, de oper�rios das oficinas da companhia. Discutem com calor. Ant�nio Baldu�no sente inveja deles porque est�o fazendo alguma coisa (daquelas coisas que Ant�nio Baldu�no gostava de fazer) e o negro n�o tem nada para fazer nesta manh� de tanto sol. Os grupos passam. V�o todos para o sindicato que fica numa rua ali atr�s. Baldu�no segue sozinho pela rua deserta. Ouve o ru�do das conversas na outra rua. Parece que algu�m est� fazendo um discurso no sindicato Ele tamb�m � do sindicato dos estivadores. Por sinal que j� lhe falaram em ser candidato � diretoria. Devem saber que ele � um negro valente. Mas um homem loiro, que mastiga um cigarro e que amanheceu b�bado, se atravessa na sua frente:

� Tu tamb�m vai fazer greve, negro? Tudo por culpa da Princesa Isabel. Onde j� se viu negro valer de nada? Agora o que � que se v�? Negro faz at� greve, deixa os bondes parados. Devia era entrar tudo no chicote, que negro s� serve para escravo... Vai pra tua greve, negro. Os burros n�o livraram essa cambada? V� embora antes que eu te cuspa, filho de c�o. O homem cospe no ch�o. Ele est� b�bado mas Ant�nio Baldu�no o empurra com for�a e ele se estatela no cimento. Depois o negro limpa as m�os e come�a a pensar no motivo por que este homem insulta assim os negros. A greve � dos condutores de bondes, dos oper�rios das oficinas de for�a e luz, da companhia telef�nica. Tem at� muito espanhol entre eles, muito branco mais alvo que aquele. Mas todo pobre agora j� virou negro, � o que lhe explica Jubiab�. Do terreiro vem um rumor de brigas. S�o os trabalha dores das padarias que aderiram � greve. E os entregadores de p�o derrubaram os cestos na rua. Os moleques caem em cima e at� criadas de casas ricas v�m apanhar p�o de gra�a. V�o encontr�-lo no quarto de Am�lia, de gatinhas no ch�o, brincando com Gustavinho: � Eu sou o lobisomem... Se levanta de um pulo. Severino bota a m�o no seu ombro e avisa: � A gente precisa de voc�, Baldu�no. � Que �? � o negro pensa logo em brigar. � O sindicato vai se reunir. O negro Henrique enxuga o suor da cara. � Deu trabalho pra lhe achar. Eles est�o olhando o menino branco que est� sentado no ch�o. Ant�nio Baldu�no explica meio confuso: � � meu filho. � A gente quer aderir � greve... A gente precisa do voto de voc�. Ele deixa Gustavinho com o Gordo e sai rindo, alegre, porque tamb�m vai fazer a sua greve. No sindicato h� uma barulheira horr�vel. Todos falam ao mesmo tempo e ningu�m se entende. A diretoria toma assento � mesa e pede sil�ncio. Um sujeito p�lido diz a Baldu�no: � Tem pol�cia aqui. Mas Baldu�no n�o v� nenhum soldado. O p�lido explica: � Disfar�ado. Severino faz um discurso. N�o s�o somente os oper�rios da Circular que est�o passando fome. Tamb�m eles, das docas, n�o t�m o que comer. E demais t�m um dever de solidariedade para com os oper�rios da Circular. S�o todos irm�os. Eles devem aderir � greve. Os discursos se sucedem. Um dos capatazes (um homenzinho vermelho que nas horas de folga jogava dados com eles na Lanterna dos Afogados) recita um discurso dizendo que aquilo tudo era besteira, que n�o via motivos para greve, que tudo estava muito bem. Mas � aparteado e vaiado. O negro Henrique bate a m�o na mesa e diz; � Eu sou um negro burro e n�o sei palavras bonitas. Mas sei que tem homens aqui que t�m filhos com fome e mulher com fome. Aqueles galegos que dirigem os bondes tamb�m est�o com fome. A gente � negro, eles s�o brancos, mas nesta hora tudo � pobre com fome... Foi votada a ades�o � greve. A vit�ria foi dada pelo voto de Ant�nio Baldu�no. S� depois se descobriu que votaram contra pessoas que nem eram da estiva, quanto mais do sindicato. Foi redigido um manifesto. E foi designada uma co miss�o para levar aos oper�rios em greve a solidariedade dos estivadores. Ant�nio Baldu�no fazia parte desta comiss�o e ia alegre porque ia brigar, entrar em barulho, gritar, fazer todas as coisas de que ele gostava. �COMPANHEIROS DA CIRCULAR Os estivadores reunidos em assembl�ia, no seu sindicato de classe, resolveram aderir ao movimento grevista dos seus companheiros da Companhia Circular. V�m assim trazer o seu apoio incondicional aos grevistas na luta pelas reivindica��es. Os companheiros da Circular podem contar com os estivadores. Pelo aumento de

sal�rios! Por oito horas de trabalho! Pela aboli��o das multas! a) A Diretoria.� Ant�nio Baldu�no leu o manifesto entre aplausos. Os condutores de bondes se abra�avam. J� os padeiros haviam aderido. Agora eram os estivadores. A greve seria, sem d�vida, vitoriosa. Estavam parados todos os servi�os de bondes e telefone. � noite n�o haveria luz el�trica. Os oper�rios haviam enviado � alta dire��o da companhia um memorial com suas pretens�es. A diretoria declarara que n�o concordava e recorrera ao governo. Por falta de energia el�trica n�o circularam jornais. Havia muita gente na rua e grupos de oper�rios eram encontrados em todas as esquinas, conversando. Passavam patrulhas de cavalaria. Corriam boatos de que a Circular estava contratando os desempregados a peso de ouro para que furassem a greve. Um advogado � Dr. Gustavo Barreira � presidente de uma associa��o de oper�rios procurou o governador e conversaram longamente sobre o assunto. Ao voltar declarou no sindicato que o governo achava justas as pretens�es dos oper�rios e que ia entrar em entendimentos com a dire��o da companhia. Houve muita palma. O jovem advogado estendia as m�os e parecia j� colher os votos que o haviam de eleger deputado. Severino disse em voz alta: � Tapea��o. Ant�nio Baldu�no j� estava cansado de ouvir tanto discurso. Mas gostava. Aquilo era uma coisa nova para ele, uma das coisas que amaria fazer. Mas era bom. Ele tinha a impress�o de que naquele momento eram donos da cidade. Donos de verdade. Eles n�o queriam, n�o havia luz, nem bondes, nem telefone para os namorados, o navio sueco n�o descarregaria os trilhos para a estrada de ferro nem carregaria os sacos de cacau que enchiam o armaz�m 3. Os guindastes estavam parados, vencidos pelos inimigos que eles sempre mataram. E os donos daquilo tudo, os homens que mandavam neles, se escondiam medrosos, sem coragem de aparecer. Ant�nio Baldu�no sempre tivera um grande desprezo pelos que trabalhavam. E preferiria entrar pelo caminho do mar, se suicidar numa noite no cais, a trabalhar, se Lindinalva n�o lhe houvesse pedido que tomasse conta do filho. Mas agora o negro olhava com um outro respeito os trabalhadores. Eles podiam deixar de ser escravos. Quando eles queriam, ningu�m podia com eles. Aqueles homens magros que vieram da Espanha e viviam nos estribos do bonde cobrando passagens, aqueles negros herc�leos que carregavam fardos no cais ou manejavam as m�quinas nas oficinas de eletricidade eram fortes e decididos e tinham a vida da cidade nas m�os. No entanto passam rindo, mal vestidos, os p�s no ch�o muitas vezes, e ouvem insultos dos que se acham prejudicados com a greve. Mas eles riem porque agora sabem que s�o uma for�a. Ant�nio Baldu�no tamb�m descobriu isto e foi como se nascesse de novo. O homem do sobretudo se levantou da mesa do bar e interpelou o oper�rio: � Por que esta greve? � Pra melhorar o sal�rio... � Mas de que � que voc�s precisam? � De dinheiro... � Querem ser ricos tamb�m? O oper�rio ficou meio atrapalhado. Na verdade ele nunca pensara em ser rico. Queria era mais dinheiro para que a mulher n�o reclamasse tanto, para poder pagar uma visita do m�dico (a filhinha estava doente), para comprar outra roupa que aquela estava no fio. � Voc�s querem muita coisa. Onde se viu oper�rio precisar de tanta coisa?... O oper�rio estava confuso. Ant�nio Baldu�no chegou para perto deles. O homem de sobretudo continuava a falar: � Quer um conselho? Deixe desta besteira de greve. Isso s�o sujeitos que querem perturbar a ordem... Inventam coisas. Voc� vai acabar perdendo o emprego e esse dinheiro que ganha. Quer muito, acaba n�o tendo nenhum. O oper�rio se lembrou da mulher reclamando, do filho doente. Baixou a cabe�a. Ant�nio Baldu�no insultou o homem de sobretudo: � Quem lhe pagou para voc� contar esta hist�ria?

� Voc� � um dos tais, n�o �? � Sou � muito homem para lhe meter a m�o no focinho.. � Sabe com quem est� falando? � Nem quero saber... Para que saber se a cidade era deles? Hoje ele podia dizer o que quisesse porque eles mandavam na cidade. � Pois eu sou o Dr. Malagueta, ouviu? � M�dico da Circular, n�o �? Quem disse isso foi Severino que se aproximava. Vinham com ele v�rios outros oper�rios. O negro Henrique era gigantesco. O homem de sobretudo dobrou a esquina. O oper�rio que conversara com ele se reuniu ao grupo. Severino explicou: � Rapaz, greve � como esses colares que a gente v� nas vitrinas. � preso por uma linha. Se cortar a linha caem todas as contas. � preciso n�o furar a greve. O oper�rio chamava-se Mariano: fez que sim com a cabe�a. Ant�nio Baldu�no foi com eles para o sindicato dos trabalhadores da Circular esperar a solu��o da confer�ncia do governo com os diretores da companhia. Na mesa da diretoria do sindicato um negro acabava um discurso. � Meu pai foi escravo, eu tamb�m fui escravo, mas n�o quero que meus filhos sejam escravos. H� homens sentados e muitos est�o em p� porque n�o h� mais lugares vagos. Uma delega��o de padeiros vem prestar seu apoio aos grevistas e l� um manifesto incitando todo o proletariado � greve. �Greve geral�, gritam na sala. Um investigador de pol�cia fuma. Est� encostado na porta e n�o � o �nico. Mas nem prestam aten��o a ele. Agora fala um rapaz de �culos. Diz que os oper�rios s�o uma imensa maioria no mundo e os ricos uma pequena minoria. Ent�o por que os ricos sugavam o suor dos pobres? Por que esta maioria trabalhava estupidamente para o conforto da minoria? Ant�nio Baldu�no bate palmas. Tudo aquilo � novo para ele e o que est�o dizendo � certo. Ele nunca o soube, por�m sempre o sentiu. Por isso nunca quisera trabalhar. Os ABC diziam tamb�m aquelas coisas mas n�o diziam t�o claramente, n�o explicavam. Como nas noites do Morro do Capa-Negro ele ouvia e aprendia. O rapaz desceu da cadeira de onde falou. O negro que falara antes fica bem junto de Ant�nio Baldu�no que o abra�a: � Eu tamb�m tenho um filho e n�o quero que ele seja escravo... O negro que discursava sorri. Est� falando um representante dos estudantes, O sindicato dos estudantes de direito estava solid�rio com os grevistas. Dizia no seu discurso que todos os oper�rios, os estudantes, os intelectuais pobres, os camponeses e os soldados se deviam unir na luta contra o capital. Ant�nio Baldu�no n�o o entendeu muito bem. Mas o negro que discursou lhe explica que capital e ricos querem dizer a mesma coisa. Ele ent�o ap�ia o orador. De repente sente vontade de subir numa cadeira e falar tamb�m. Ele tamb�m tem o que dizer, ele j� viu muita coisa. Fura pela sala e trepa numa cadeira. Um oper�rio pergunta a outro: � Quem �? � Um estivador... Um que j� jogou boxe... Ant�nio Baldu�no fala. Ele n�o est� fazendo discurso, gente. Est� � contando o que viu na sua vida de malandro. Narra a vida dos camponeses nas planta��es de fumo, o trabalho dos homens sem mulheres, o trabalho das mulheres nas f�bricas de charuto. Perguntem ao Gordo se pensarem que � mentira. Conta o que viu. Conta que n�o gostava de oper�rio, de gente que trabalhava. Mas foi trabalhar por causa do filho. E agora via que os oper�rios se quisessem n�o seriam escravos. Se os homens das planta��es de fumo soubessem, tamb�m fariam greve. Quase � carregado. N�o tomou ainda perfeito conhecimento do seu triunfo. Por que o aplaudem assim? Ele n�o contou nenhuma hist�ria bonita, n�o bateu em ningu�m, n�o fez um ato de coragem. Contou somente o que viu. Mas os homens aplaudem e muitos o abra�am quando ele passa. Um investigador o fita procurando n�o esquecer aquela cara. Cada vez Ant�nio Baldu�no gosta mais da greve. O rapaz de �culos se retira e um investigador o segue. Do pal�cio do governo

telefonam para o sindicato. � o Dr. Gustavo Barreira avisando que a confer�ncia se prolongar� at� a noite quando ter�o possivelmente uma solu��o. � Favor�vel? � pergunta o secret�rio do sindicato. � Honrosa... � responde o Dr. Gustavo do outro lado do fio. Os sinos batem seis horas. A cidade est� �s escuras. Primeira noite da greve

A noite � bela, n�o h� nuvens no c�u que est� azul e cheio de estrelas. Parece uma noite de ver�o. No entanto os homens se recolhem e n�o sair�o nesta noite a passear. � que a cidade est� �s escuras, nem uma limpada brilha nos altos postes pretos. At� a limpada da Lanterna dos Afogados se apagou. O cais nunca esteve t�o silencioso. Os guindastes dormem porque nesta noite os estivadores n�o vir�o trabalhar. A marinhagem do navio sueco se estende pelas casas das mulheres da vida. Tamb�m nas ruas da cidade n�o h� movimento. Os homens ficam receosos quando a luz falta. Dentro das casas a luz vermelha das lamparinas aumenta as sombras. E a luz ba�a das velas lembra sentinelas de mortos queridos. Ant�nio Baldu�no se recorda das planta��es de fumo enquanto caminha na rua. Um homem passa encostado na parede. Segura a carteira por cima do palet�. Quem o visse diria que ele vai segurando o cota��o. A cidade � envolvida pelos sons de batuque que v�m da macumba de Jubiab�. Hoje esses sons de batuque soam aos ouvidos do negro Ant�nio Baldu�no como sons guerreiros, como sons de liberta��o. A estrela que � Zumbi dos Palmares brilha no c�u claro. Um estudante certa vez se riu do negro Ant�nio Baldu�no e disse que aquela estrela n�o era estrela, era o planeta V�nus. Mas ele ri do estudante porque sabe que aquela estrela � Zumbi dos Palmares, negro valente que morreu para n�o ser escravo, � Zumbi que brilha no c�u e v� o negro Ant�nio Baldu�no lutando para que Gustavinho n�o seja escravo. Aquele dia de greve fora dos mais bonitos da sua vida. T�o bonito como a fuga atrav�s do mato furando o cerco dos capangas. T�o bonito como o dia em que ganhou o campeonato de boxe, derrubando Vicente. Mais bonito at�. Ele agora sabe por que luta. E vai assim depressa para avisar todos os negros que est�o na macumba de pai Jubiab�. Vai avisar a todos; ao Gordo, a Joaquim, a Z� Camar�o, a Jubiab�. Ele n�o compreende por que Jubiab� ainda n�o lhe ensinara a greve, JubIab� que sabia tudo. Zumbi dos Palmares, que � o planeta V�nus, pisca para ele do c�u. Ser� que Exu, Exu, o diabo, est� perturbando a festa? Ser� que se esqueceram de fazer o despacho de Exu, se esqueceram de envi�-lo para bem longe, para outro lado do mar, para a costa d��frica, para os algodoais da Virg�nia? Exu est� teimando em vir � festa. Exu quer que cantem e dancem em sua homenagem. Exu quer sauda��o, quer que Jubiab� se incline para ele e diga: � �k�! �k�! Quer que a m�e do terreiro pe�a passagem para o santo: �Edur� d�mim lonan � y�!� Quer que a assist�ncia repita em coro; �A umb� k�o w� J�!� Exu n�o vai embora. � a primeira vez que aquilo acontece numa macumba de Jubiab�. Os sons do batuque escorregam pela ladeira e v�o morrer l� embaixo nos becos da cidade grevista. As feitas dan�am. Os og�s olham espantados. Ant�nio Baldu�no penetra de manso na festa. Ele � og� e toma seu lugar dentro do c�rculo das feitas que dan�am. E com a sua presen�a Exu vai embora. O Gordo diz que a festa � de Oxossi. Mas antes que o deus da ca�a venha dan�ar no corpo de uma

feita, Ant�nio Baldu�no fala; � Meu povo, voc�s n�o sabe nada... Eu tou pensando na minha cabe�a que voc�s n�o sabe nada... Voc�s precisam ver a greve, ir para a greve. Negro faz greve, n�o � mais escravo. Que adianta negro rezar, negro vir cantar para Oxossi? Os ricos manda fechar a festa de Oxossi. Uma vez os pol�cias fecharam a festa de Oxal� quando ele era Oxoluf�, o velho. E pai Jubiab� foi com eles, foi pra cadeia. Voc�s se lembram, sim. O que � que negro pode fazer? Negro n�o pode fazer nada, nem dan�ar para santo. Pois voc�s n�o sabem de nada. Negro faz greve, p�ra tudo, p�ra guindastes, p�ra bonde, cad� luz? S� tem as estrelas. Negro � a luz, � os bondes. Negro e branco pobre, tudo � escravo, mas tem tudo na m�o. � s� n�o querer, n�o � mais escravo. Meu povo, vamos pra greve que a greve � como um colar. Tudo junto � mesmo bonito. Cai uma conta, as outras caem tamb�m. Gente, vamos pra l�. E Ant�nio Baldu�no sai sem ver os que os acompanham. O Gordo vai com ele, Joaquim e Z� Camar�o tamb�m. Jubiab� estende as m�os e diz: � Exu pegou ele... No sindicato ainda n�o t�m nenhum resultado da confer�ncia no pal�cio. Severino repete para quem quiser ouvir: � Tapea��o. N�o est� vendo que aquele doutor � um amarelo? Outros defendem. Ele � um advogado e sabe muito. A estas horas ele se bater� pelo direito dos oper�rios explorados. Um fiscal de bonde faz um discurso elogiando o Dr. Gustavo. H� apoiados e vaias. No sal�o do pal�cio se realiza a confer�ncia. Mas n�o chegam a uma conclus�o. Gustavo pede em lindas tiradas orat�rias que os oper�rios sejam satisfeitos nas suas pretens�es: � N�o pe�o, exijo... Fala em humanidade, em homens que passam fome, que trabalham dezoito horas por dia, que morrem tuberculosos. Lembra o perigo da revolu��o social se este estado de coisas continuar. Os homens que representam a companhia (um americano mo�o e um senhor velho que � advogado da companhia e fora parlamentar noutros tempos) n�o cedem no entanto. O mais que podem fazer, declara o velho advogado, � ceder em cinq�enta por cento nas reivindica��es dos oper�rios Assim mesmo por amor ao povo, para que a cidade n�o fique privada dos bondes, da luz, do telefone. Para os oper�rios a solu��o ser� �tima, declara. Mas dar tudo o que eles pedem, n�o. � melhor entregar de uma vez a companhia a eles. E os acionistas? Os oper�rios s� pensam em si, n�o se recordam dos estrangeiros que confiaram na nossa gente e empregaram seu dinheiro em empresas no Brasil. Que n�o dir�o eles? Dir�o que foram furtados pelos brasileiros e isto com certeza n�o � honroso para o nome do pa�s. (O americano ap�ia com a cabe�a e com yes.) Ele n�o quer acreditar que o Dr. Gustavo Barreira, que � um homem culto e inteligente (Gustavo se inclina), possa pensar t�o impatrioticamente, que queira ver o nome do pa�s arrastado � lama no estrangeiro. Que os oper�rios n�o pensem nisso, � justo. S�o uns ignorantes que j� t�m mais que o devido e que s�o arrastados pelas inven��es de homens alheios ao meio. Ele n�o quer se referir � frisa bem � ao Dr. Gustavo Barreira, cuja honestidade conhece e cujo talento admira. (Gustavo se inclina novamente e murmura: �Eu nunca pensaria. Minha honra est� acima de qualquer suspeita�.) A companhia, para n�o deixar o povo na falta de coisas essenciais � sua vida, concederia cinq�enta por cento do aumento pedido pelos oper�rios. Al�m disso, nada feito. Chegara a hora do jantar. E a confer�ncia termina sem resultados. O governador se retira. O americano oferece o autom�vel para conduzir Gustavo. O advogado da companhia fala: � Vamos jantar juntos e de barriga cheia discutiremos melhor... Como � confort�vel aquele Hudson, pensa Gustavo ao recostar no autom�vel entre o americano e o advogado. O americano oferece charutos. V�o algum tempo em sil�ncio. O autom�vel � macio, o chofer fardado. Correm colados aos trilhos. O advogado pergunta ao americano: � E aquela id�ia sua, Mister Thomas? � Ah! Yes...

O advogado explica a Gustavo: � Veja o que � coincid�ncia, doutor... Ainda h� dias fal�vamos no senhor � Yes, yes � faz o americano, puxando uma fuma�a do charuto. � Eu j� me sinto cansado, estou velho. � N�o diga isto. � N�o digo que ainda n�o advogue, isso n�o. Mas o servi�o da companhia � muito pesado para mim, Estivemos pensando, eu e Mister Thomas, em convidar algu�m para ocupar o lugar de segundo advogado da companhia. A companhia comporta bem dois advogados. E pensamos no senhor... N�o, n�o pense que � para lhe agradar. N�o, senhor... (Gustavo suspende o gesto que dizia que a sua consci�ncia n�o permitia cambalachos e afirma que n�o iria nunca pensar que o Dr. Guedes o quisesse comprar. N�o era capaz de pensar tal coisa.) A companhia pensou no senhor, digo melhor dizendo que Mister Thomas e eu (Gustavo agradece) pensamos, devido �s suas liga��es com os sindicatos de trabalhadores da companhia. O senhor � advogado dos oper�rios. Representaria na companhia o pensamento daqueles humildes trabalhadores. Seria uma liga��o entre o operariado e a companhia. Os interesses dos oper�rios seriam entregues ao senhor. O senhor � mo�o, tem uma bela carreira na sua frente. O Parlamento o espera. O pa�s espera muito do seu talento. Veja bem que os intuitos da companhia s�o os mais nobres poss�veis. Muita gente pensa que a companhia n�o se interessa pela sorte dos oper�rios. Engano... A prova de que a companhia se interessa pela sorte dos seus oper�rios est� a�: convida o paladino deles para ser advogado da casa. Assim os oper�rios ter�o na pr�pria diretoria um defensor. E que defensor!... Por a� o senhor pode ver a boa-f� com que a companhia age. O autom�vel � macio. Zule�ka vive pedindo um auto m�vel. Com a companhia na m�o ele chegar� ao parlamento na pr�xima legislatura. O americano � pr�tico: � Os honor�rios s�o de oito contos por m�s, doutor. Mas Gustavo protesta que esta quest�o de dinheiro o interessa pouco, que s� lhe interessa defender os oper�rios que podem ser excessivos, ele n�o diz o contr�rio, mas que t�m as suas raz�es. Se aceitar ser� para ser uma sentinela avan�ada dos direitos dos oper�rios. � claro que n�o ap�ia excessos, isso � claro. Quando finda o jantar o Dr. Guedes diz: � Pois pode levar a boa nova aos oper�rios, doutor. Que aquelas crian�as (sim, s�o umas simples crian�as � afirma Gustavo � f�ceis de contentar) voltem amanh� ao trabalho. Ter�o cinq�enta por cento de aumento e devem isto � irradiante simpatia do Dr. Gustavo. Quando ele sai o americano cospe: � J� vi sujeitos nojentos. O velho Guedes ri e pede champanha para comemorar o fim da greve � Por conta da companhia, hein?.. Um autom�vel para a mulher, reputa��o, uma casa em Copacabana, possivelmente uma fazenda de cacau. Cinq�enta por cento de aumento era muita coisa. Cem por cento como queriam os oper�rios era exigir demais. Al�m disso se pede cem para conseguir dez. Ele conseguira cinq�enta para os oper�rios. Uma vit�ria, sim senhor. E ainda impedira que o nome da p�tria fosse enxovalhado no estrangeiro. No sindicato o negro Ant�nio Baldu�no faz o seu terceiro discurso do dia s� para que o filho do Dr. Gustavo Barreira n�o seja escravo como ele �, como s�o todos os negros e brancos oper�rios do cais, das padarias, da companhia de bonde, luz e telefone. Mariano entra em casa de cabe�a baixa. Quando ele saiu a mulher ainda n�o sabia que a greve tinha sido declarada. E s� � noite ele teve coragem de voltar para casa, de rever os olhos febris da mulher zangada, os olhos mortos da filha doente. Mal ele entra a mulher grita: � Voc� est� metido nisso, Mariano? � Em qu�? � Olha a criancinha querendo se fazer de inocente. Tou falando desta maldita greve... Voc� est� metido nisso, n�o est�? � Maldita por qu�, Guilhermina?... A gente quer ganhar mais, a gente quer ter

um pouco mais de dinheiro. � rem�dio para Lila que eu quero. . . Maldita, n�o vejo por qu�... � Quer dinheiro? Voc�s quer mas � malandrear, n�o fazer nada, ficar b�bado pela rua, chegar em casa de madrugada. Pensa que eu n�o conhe�o voc�s? Pensa que voc� me engana? Fica por a� vadiando e depois vem com esse verso em cima de mim... Quer rem�dio para Lila... Se voc� estivesse trabalhando direito, sem se meter nestas coisas, j� era fiscal, j� estava ganhando mais... Greve � coisa de dem�nio, Padre Silvino diz todo dia. Isso � coisa que o dem�nio mete na cabe�a dos doidos como voc�... Se voc� n�o andasse se metendo nestas coisas j� estava fiscal. Mariano ouve sem replicar. Quando a mulher termina e bota as m�os nas cadeiras esperando, Mariano apenas pergunta: � E Lila como vai? � E Lila como vai? � ela arremeda. � Vai no mesmo, como � que podia ir? Voc� pensa muito na sorte dela, se metendo em greves. Preferia que Deus me matasse que ver meu marido assim metido em inven��o do diabo. Se afasta de Mariano como se ele fosse o pr�prio dem�nio. O oper�rio vai at� a cama e olha a filha. Ela est� doente dos intestinos, o m�dico disse que foi terra que ela comeu. Nos dias que ele passou desempregado quase n�o havia comida em casa. � capaz do Dr. Gustavo resolver tudo com a companhia esta noite e amanh� eles voltar�o ao trabalho. Poder� pagar outra consulta ao m�dico. Trar� rem�dios da farm�cia. E se n�o resolver? Se a greve durar oito, dez dias? A� ser� tr�gico, faltar� a comida, a menina morrer� por falta de rem�dios. Ele n�o quer que Lila morra. Mesmo quando Guilhermina est� terr�vel, Lil� sorri para ele e beija seu rosto barbado. Mas a greve, Mariano, � um colar de contas ligado por um fio. Caindo uma conta, caem todas. Ele ouve a voz de Severino e afasta o pensamento ruim. Beija a filha. De longe, na rua, ainda escuta a voz zangada de Guilhermina. O negro Henrique palita os dentes com uma espinha de peixe. Bota o filho no colo e pergunta � J� sabe a li��o d�amanh�, ti��o? O negrinho ri e, botando o dedo no nariz garante que sabe na ponta da l�ngua. Erc�dia vem da cozinha e avisa: � Amanh� vai ser arraia de novo. � Enquanto tiver arraia, t� tudo bom, negra. Henrique ri com o pretinho. N�o � que o ti��ozinho sabe todas as li��es, consegue at� fazer contas? � T� um bicho, hein, Erc�dia? A negra sorri. O filho quer que ele conte uma hist�ria. O negro Henrique diz � Um preto batuta fez um discurso no sindicato dizendo que os filhos da gente n�o ia ser mais escravo... Ti��ozinho n�o vai mais ser escravo. � A greve ganha? � Ora, se ganha! Quem � que pode com a gente? T� ali, t� ganha, voc� vai ver. T� bonito... Tem um negro Baldu�no que fala que � uma beleza. Conta � mulher os fatos do dia. Os seus m�sculos de gigante aparecem sob a camisa de listras. Depois pega o filho, p�e em p� diante de si: � Ti��o, voc� n�o vai ser mais escravo... Voc� vai ser governador, ti��o. A gente � muito, eles s�o poucos. A gente acaba governando eles. Bate contin�ncia ao futuro governador. Ri em gargalhadas, certo de sua for�a, da raz�o da greve que est� fazendo. A negra Erc�dia sorri para o marido com ternura: � Amanh� tem arraia de novo... O dono da Padaria Dois Mundos, um espanhol baixote, conta os fatos do dia. A mulher estendida numa cadeira de balan�o ouve em sil�ncio. A filha martela um samba com os dedos. O dono da Padaria Dois Mundos narra a hist�ria da greve, os principais fatos do dia. O candeeiro tem a luz vacilante. Miguel termina de contar e cerra os olhos. A mulher pergunta da cadeira de balan�o: � Mas a padaria est� dando, n�o est�, MigueI? � Est�, sim. Com esses dias de greve vai haver algum preju�zo mas o lucro compensa.

� Ent�o eu acho que eles t�m raz�o. Eles passam uma mis�ria horrorosa. � T�m, sim. Eu por mim dava o aumento. J� disse na associa��o. Os outros, o Ruiz das Panifica��es, � que n�o querem. O Ruiz, ent�o! Parece que n�o se contenta com nada aquele homem... Eu por mim dava. A filha interrompe: � Pra que dar, papai? Seu Ruiz tem raz�o... a gente precisa de tanto dinheiro. Eu quero uma barata, um r�dio... O senhor me prometeu... N�o se lembra mais? Agora quer dar para esses pretos sem-vergonha. � Quem quer tudo fica sem nada, minha filha � responde Miguel. A mulher pensa que a filha j� nasceu numa casa confort�vel, n�o veio, como ela e o marido, das f�bricas de Madri, na terceira classe de um navio, n�o passou fome nunca. Quer um auto, um r�dio, quanta coisa mais. Os negros querem t�o pouco. Repete para o marido: � Se bata pelo aumento, Miguel. Seu Ruiz � um avarento, s� sabe amealhar dinheiro. A filha sonha com a baratinha que cortou a rua. O namorado se aproxima da janela: � Eu sou pela greve. Porque assim, s� com a lua, voc� ainda � mais bonita. Quando ela tiver a baratinha n�o precisar� namorar com um caixeiro de armarinho, ouvir frases rom�nticas. Namorar� um estudante, um acad�mico, e ir� �s festas elegantes. O Dr. Gustavo Barreira salta do t�xi e sobe de dois em dois os degraus da escada do sindicato. Fazem sil�ncio quando ele entra. Senta � mesa no lugar que o presidente lhe cede. Pede a palavra. � Senhores, como vosso advogado trabalhei toda a tarde junto aos diretores da Companhia Circular. Testemunha melhor do meu trabalho e do meu esfor�o honesto � a grata nova que vos trago. Senhores, serei conciso. O caso foi solucionado completamente... (Os ouvintes se projetam para a frente. Assim ouvem melhor.) gra�as aos esfor�os empregados pelo vosso humilde patrono. Ap�s discutirmos toda uma tarde chegamos � conclus�o de que o caso ficaria perfeitamente liquidado, com honra para ambas as partes, se todos cedessem um pouco (ouve-se um zunzum na sala). � De um lado a companhia sa�a da sua intransig�ncia que chegava ao ponto de n�o admitir nenhum entendimento com os oper�rios enquanto eles se conservassem em greve, e n�o s� entrara em entendimentos como chegara com ele, orador, a um acerto. Os oper�rios cederiam em cinq�enta por cento das suas exig�ncias e a companhia satisfaria os outros cinq�enta por cento come�ando as novas tabelas a vigorar no dia seguinte. � Isso � pol�tica de advogado ou de oper�rio? � interrompeu Severino. � Essa � a melhor pol�tica... � Dr. Gustavo sorri seu sorriso mais caricioso � � a pol�tica de conquistar aos poucos aquilo que n�o pode ser conquistado de um s� golpe. Se derdes ouvidos aos agitadores profissionais a luta ser� perdida para v�s, pois se extremardes demasiado ela se voltar� contra v�s como um punhal de dois gumes, pois a fome bater� � vossa porta, a mis�ria habitar� o vosso lar. � O sindicato tem dinheiro para garantir a greve. � Mesmo que ela se eternize? � Ela tem que acabar que a cidade n�o pode ficar sem luz e sem bonde. Eles t�m que dar o que a gente quer! N�o vamos desanimar, companheiros! O Dr. Gustavo est� rubro de c�lera: � Voc� n�o sabe o que diz. Eu sou um advogado, entendo destas coisas. � A gente � que sabe de quanto precisa para n�o morrer... � Bonito, negro � ap�ia Baldu�no. Um rapaz pede a palavra. Come�aram a bater palmas mal ele aparece na mesa. � Quem �? � pergunta Ant�nio Baldu�no ao negro Henrique. � � um oper�rio das oficinas. Se chama Pedro Corumba. Um homem escreveu o ABC da fam�lia dele que passou o diabo em Sergipe. Eu j� li... Ele � um lutador velho, Grevista velho. J� fez greve em Sergipe, no Rio, em S�o Paulo. Eu conhe�o ele. Depois lhe apresento. � Quando eu saio de casa digo a meus filhos: voc�s s�o irm�os de todas as

crian�as oper�rias do Brasil. Digo isso porque posso morrer e quero que meus filhos continuem a lutar pela reden��o do proletariado. Companheiros, a gente est� sendo tra�da. Essa n�o � a primeira vez que eu fa�o uma greve. Eu sei o que � trai��o. Oper�rio n�o pode acreditar em ningu�m que n�o seja oper�rio mesmo. Os outros tapeiam, enganam. Esse que est� aqui � aponta o Dr. Gustavo � � um amarelo, Quem sabe se j� n�o tem um emprego na companhia, se n�o lhe deram dinheiro?... O Dr. Gustavo bate na mesa, protesta, diz que o orador o est� insultando e que ele � capaz de reagir. Mas os oper�rios t�m os olhos em Pedro Corumba que continua: � Companheiros, a gente est� sendo tra�da. A gente n�o pode aceitar esta proposta da companhia. Assim eles pensam que a gente est� fraco, amanh� tira o aumento e deixa a gente na m�o. A gente come�ou tem que levar at� o fim. Eu prefiro morrer a abandonar a greve que j� come�ou. A gente vai vencer. A gente tem que vencer. O proletariado � uma for�a e se souber se conduzir, se souber dirigir a sua luta, conseguir� o que quiser. Companheiros, tudo dentro da nossa proposta. Nada de tapea��es. Abaixo Gustavo Barreira e a Companhia Circular! Viva o proletariado! Viva a greve! � Viva! � a multid�o tem os olhos abertos. Mariano sorri, o negro Henrique mostra os dentes. Ant�nio Baldu�no fala: � Os estivadores concordam com o que disse o companheiro Corumba. Eles n�o est�o com o seu caso ainda resolvido. Eles apoiaram a greve dos oper�rios da Circular e esperam que estes os ap�iem. Eles n�o querem tapea��o. Querem que as suas propostas sejam aceitas como est�o e n�o pela metade. Prop�e que Gustavo Barreira, que os estava traindo, seja expulso da mesa. Se Ant�nio Baldu�no soubesse que ele fora o amante de Lindinalva ele n�o sairia vivo desta sala. O advogado se retira garantido pelos investigadores. Uma vaia o acompanha pela escada. Por�m pedem sil�ncio. Severino fala e avisa que agora a luta vai ser mais cruel, mais dif�cil, pois os inimigos ir�o dizer que eles � que n�o querem acordo. Prop�e que se lance um manifesto � popula��o. L� o manifesto que j� redigiu e que � aprovado. O manifesto explica que eles foram tra�dos mas que sustentar�o a luta at� o fim e que s� voltar�o ao trabalho quando a companhia aceitar as condi��es pedidas desde o primeiro momento. Um sujeito moreno pede para ser ouvido. Ele � contra a continua��o da greve. Acha que se deve aceitar o aumento de cinq�enta por cento. J� vai servindo. Quem quer muito de uma vez, acaba perdendo tudo. O Dr. Gustavo tinha raz�o. Qual � a for�a que oper�rio tem? Oper�rio n�o tem for�a nenhuma. A pol�cia podia acabar a greve na hora que quisesse. � Como? Como? � Ora, se podia. Eles deviam se dar por felizes com o aumento. Prop�e que a assembl�ia aprove a termina��o da greve e um voto de louvor ao Dr. Gustavo. Vozes gritam: � Vendido, vendido! Traidor, traidor! Outros pedem que ou�am o orador. V�rios oper�rios, Mariano entre eles, est�o quase concordando com o rapaz moreno. Cinq�enta por cento j� � alguma coisa. Depois podem perder tudo e ser� muito pior. Quando o rapaz desce, ganha alguns aplausos. Mas Ant�nio Baldu�no grita mesmo do lugar onde est�. � Gente, o olho da piedade de voc�s j� secou. Ficou somente o da ruindade? Voc�s parece que nem se lembram da gente que apoiou voc�s. Os estivadores, os trabalhadores da padaria. Se voc�s querem ser tra�dos, sejam. Cada um � dono de sua cabe�a. Mas se voc�s s�o t�o burros que querem perder tudo para ganhar uma porcaria, eu garanto que rebento a cabe�a do primeiro que passar naquela porta. E eu fico na greve at� vencer! Severino sorri. Mas v�rios se impressionam com o discurso de Baldu�no. O Gordo que nunca viu uma coisa assim est� tremendo. O negro que falou de tarde discursava novamente. Mostra que houve trai��o, que eles foram vendidos. Pedro Corumba fala tamb�m, cita exemplos das greves de S�o Paulo e do Rio quando confiaram em promessas de advogados que se diziam amigos do proletariado. Mas a assist�ncia est� indecisa, os homens conversam entre si e os que aceitam a proposta conquistam

adeptos. O presidente vai p�r em vota��o Aqueles que concordam com a continua��o da greve se levantem. Os que acham que devem aceitar a proposta da companhia, se conservem sentados. Por�m, antes que a vota��o seja feita, um jovem oper�rio invade o recinto e grita: � O companheiro Ademar foi preso quando saiu daqui de tarde. E a companhia est� alugando gente para furar a greve. P�ra e toma f�lego: � E dizque a pol�cia vai obrigar os padeiros a entregar p�o amanh�. Ent�o a assembl�ia se levanta toda e vota pela continua��o da greve com os bra�os estendidos, os punhos fechados. Segundo dia da greve

Para que dormir nesta noite t�o bonita? O negro Ant�nio Baldu�no n�o vai dormir. Passa o resto da noite na companhia do Gordo e de Joaquim pregando manifestos pela cidade, o manifesto que Severino redigiu e que explica os motivos da continua��o da greve. Todos os postes t�m manifestos. Tamb�m nos muros do Ramos do Queir�s, da Baixa dos Sapateiros, pregaram manifestos. Um grupo chefiado pelo negro Henrique foi para os lados do Rio Vermelho. Eles v�o para a Estrada da Liberdade, outros seguem para a Cal�ada, outros est�o na Cidade Baixa. A cidade se enche de manifestos e todos sabem as raz�es por que os oper�rios continuam em greve. A companhia n�o � geralmente simpatizada e os pequenos comerciantes v�m de marinete para os seus neg�cios e olham os oper�rios com simpatia. A companhia fez espalhar o boato de que se a greve vencesse os pre�os das passagens nos bondes, as assinaturas de luz e telefone subiriam. Mas o golpe falha, apenas traz maior animosidade contra a companhia. O tempo continua claro conservando o bom humor da popula��o. E este bom humor � aliado dos oper�rios. Ant�nio Baldu�no (quanta coisa ele aprendeu naquele dia e naquela noite!) explica a greve ao Gordo e a Joaquim. E se espanta de Jubiab� n�o saber coisas de greve. Jubiab� sabia coisas de santos, hist�rias da escravid�o, era livre mas nunca ensinara a greve ao povo escravo do morro. Ant�nio Baldu�no n�o compreendia. Dos lados da Ladeira do Pelourinho vem um barulho, uma agita��o. Homens passam correndo. Do sindicato ouvem o ru�do de um tiro. Algu�m que entra diz: � A pol�cia quer obrigar os padeiros a entregar p�o. Sa� um grupo do sindicato. Mas o barulho j� se desfez e no ch�o jazem cestos onde estavam os p�es envelhecidos que os donos de padaria queriam obrigar os cesteiros a entregar. Um cesteiro que est� com o olho arroxeado de uma pancada explica: � Veio at� soldado de cavalaria. Mas a gente n�o entregou mesmo. Um outro avisa que a Padaria Galega vai mandar entregar o p�o dormido. Conta que eles foram contratar desempregados dando o duplo do sal�rio. Demais, garantiam o emprego para o resto da vida. Um forneiro velho grita: � A gente n�o deve deixar. Tem muita gente nas janelas da Ladeira do Pelourinho. E do sindicato dos oper�rios da Circular chegam a todo momento novos grupos. Vozes aplaudem o forneiro: � Vamos mostrar a eles que n�o se deve furar greve.. Ant�nio Baldu�no convida: � A gente rebenta a cara deles. � Nada disso � diz Severino. � Vamos l� e explicamos para eles que n�o devem servir de instrumento contra os oper�rios como eles. N�o � preciso barulho. � Mas para que tanto discurso quando a gente podia rebentar logo a cara destes amarelos?

� Eles n�o s�o amarelos... Eles n�o sabem de nada. N�s vamos explicar... � Severino sabe o que est� dizendo. Ant�nio Baldu�no cala. Aos poucos ele vai aprendendo que na greve n�o � um homem que manda. Na greve eles todos fazem um corpo s�. A greve � como um colar... Mas n�o sente tristeza de n�o ser o chefe da greve. Todos s�o chefes. Obedecem ao que est� certo. Aquela luta � diferente da que ele sustentou em toda a sua vida. Mas desta que resultou? Resultou ele escravo aos guindastes, olhando o mar como um caminho. Na luta da greve, n�o. Eles iam perder um pouco da escravid�o, ganhar mais alguma liberdade. Um dia fariam uma greve ainda maior e n�o seriam mais escravos. Jubiab� tamb�m n�o sabe nada desta luta... Os homens que v�o entregar os p�es n�o devem saber tamb�m. Severino tem raz�o. N�o adianta dar pancada. Adianta � convencer. E o negro segue o grupo para a Padaria Galega que fica na Baixa dos Sapateiros. Os cesteiros v�o saindo. Parecem figuras de carnaval com aqueles cestos na cabe�a. Severino come�a a falar trepado num poste ao qual se agarra com uma das m�os. Explica aos homens que devem ser solid�rios com os seus irm�os que pedem aumento. Que n�o devem servir aos interesses dos patr�es. Que n�o devem entregar aquele p�o, que n�o devem trair a classe a que pertencem. � Mas a gente n�o tem trabalho... � diz um deles. � E por isso vai tomar o lugar dos outros? � justo que voc� v� tomar o lugar de um companheiro que est� lutando pelo bem de todos? � uma trai��o. .. Um cesteiro arria o cesto de p�o. Outros acompanham. A massa grita de entusiasmo. Mesmo os mais recalcitrantes, aquele que dera o aparte, um que tem fam�lia a sustentar, largam os cestos ante o entusiasmo da multid�o. Dois que querem sair para entregar os p�es s�o impedidos pelos pr�prios companheiros. E entre os gritos de �viva a greve� v�o todos para o sindicato dos padeiros. Mas, pela tarde, a coisa foi ficando feia para o lado dos padeiros. Foi o Gordo, que tinha ido comer e se demorara muito, quem trouxera a not�cia. O dono das Panifica��es Reunidas havia mandado buscar forneiros e amassadores em Feira de Santana. Tinha feito os homens virem de autom�vel e no dia seguinte j� haveria p�o, pois agora mesmo de tarde os homens come�ariam a trabalhar. Houve um come�o de p�nico entre os padeiros. Homens foram enviados aos sindicatos dos oper�rios da Circular e dos estivadores. Se as Reunidas conseguissem botar p�o na rua a greve dos padeiros podia ser dada como terminada e os grevistas teriam perdido, al�m do aumento pedido, o pr�prio emprego. E isso afetaria grandemente a greve dos oper�rios da Circular e dos estivadores. Vencidos os padeiros a greve perdia um dos bra�os. Seria muito mais f�cil contra os restantes. Come�aram a chover os discursos no sindicato dos padeiros. Enquanto isso havia um com�cio na Pra�a Castro Alves pedindo a liberta��o do oper�rio preso na v�spera. No meio do com�cio algu�m falou no caso dos padeiros, no furo que as Reunidas pretendiam fazer na greve. O com�cio tomou a� um car�ter mais violento e desceram todos para o sindicato dos padeiros. Do sindicato dos estivadores j� ia gente. O Gordo passou pelo dos oper�rios da Circular para avisar. No sindicato dos padeiros (a sala era pequena para tanta gente) falaram os representantes dos trabalhadores das padarias, dos estivadores, dos condutores de bonde, dos estudantes. Falou tamb�m um oper�rio de uma f�brica de sapatos que entraria em greve geral mal a situa��o exigisse. Cada vez chegava mais gente ao sindicato. Severino falou rouco, j� quase sem voz. Foi lan�ado um manifesto concitando os oper�rios � greve geral e ficou resolvido que iriam impedir o trabalho dos padeiros vindos de Feira de Santana. As Panifica��es Reunidas eram tr�s grandes padarias. Uma ficava na Baixa dos Sapateiros, a outra no Corredor da Vit�ria e a terceira numa rua do centro. Os grevistas se reuniram em tr�s grandes grupos e foram para a frente das padarias. Apenas Severino e uns poucos foram entrar em entendimentos com os oper�rios de algumas f�bricas e com os choferes de marinetes e de autom�veis de pra�a. Preparavam a greve geral. A Companhia Circular e a companhia que explorava as docas n�o queriam sequer entendimentos com os grevistas. S� tomariam conhecimento das suas propostas quando eles voltassem ao trabalho. Os donos de padaria

procuravam furar a greve. Foi f�cil impedir que os oper�rios contratados para as panifica��es do Corredor da Vit�ria e do centro da cidade trabalhassem. Eles tinham vindo com promessas formid�veis, mas de come�o Ruiz, o propriet�rio, se negara a pagar metade do trabalho adiantado como prometera. Dissera que s� no dia seguinte, o servi�o feito, pagaria. Com apelos ao sentimento de solidariedade e com a certeza, que se lia no rosto dos grevistas, que n�o deixariam os outros trabalharem, os rec�m-vindos consentiram em voltar para Feira de Santana num autom�vel. E se foram dando vivas � greve. Por�m nas Reunidas da Baixa dos Sapateiros a coisa foi diferente. Quando os grevistas chegaram a pol�cia j� se encontrava guarnecendo a padaria. Investigadores se envolviam entre os oper�rios, a m�o no rev�lver. O grupo ficou parado na rua esperando que os contratados chegassem. Quando o caminh�o que os trazia desembocou na rua, um oper�rio se postou na sua frente, impedindo-o de continuar a marcha. Imediatamente outro trepou num poste e come�ou um discurso mostrando aos padeiros de Feira de Santana qual a situa��o e o que os patr�es queriam fazer. A rua estava cheia. Homens que n�o tinham nada com o caso paravam para ver em que dava aquilo. Um disse ao companheiro: � Aposto que eles voltam.. � Cinc�o como ficam... Meninos e meninas que brincavam num beco pr�ximo correram para apreciar o espet�culo. Achavam aquilo divertido como Ant�nio Baldu�no achara divertida a pris�o daquele agitador no ca�s do porto muitos anos atr�s. Gritavam quando os oper�rios gritavam. E se divertiam imensamente. Trepado no poste o oper�rio continuava o seu discurso. Os padeiros de Feira de Santana escutavam e alguns estavam convencidos de voltar. De repente choveu bala. Os investigadores atiravam, a cavalaria investiu contra os oper�rios. Houve correria, gente pisada, luta de homem contra homem. Ant�nio Baldu�no j� derrubara um quando viu o Gordo correndo na sua frente com os olhos esbugalhados e as banhas da cara balan�ando. O oper�rio continuava o seu discurso mesmo entre balas. Ant�nio Baldu�no agora v� o Gordo que levanta o cad�ver de uma negrinha baleada e sai gritando pela rua: � Onde � que est� Deus? Qued� Deus?... Os padeiros de Feira de Santana voltaram no mesmo caminh�o. Estendidos na Baixa dos Sapateiros ficam dois grevistas. Um est� morto mas o outro ainda pode sorrir. Quem � aquele negro que vai assim de bra�os estendidos pelas ruas calmas ou movimentadas da cidade? Por que ele blasfema, por que chora, por que pergunta onde est� Deus? Por que ele leva os bra�os assim estendidos para a frente como se carregasse alguma coisa e passa sem ver nada, sem reparar nos homens e mulheres que reparam nele, sem olhar a vida que se movimenta em torno, sem ver o sol que brilha? Para onde ele vai alheio a tudo? Que levar� ele nos bra�os, que coisa ser� essa que ele balan�a com tanto carinho? Que coisa ser� essa que olhos humanos n�o v�em e que ele aconchega ao peito suavemente? Que querer� esse negro gordo de olhos tristes que passa pelas ruas da cidade nas horas de maior movimento? Ele repete a todos que passam perto de si a mesma pergunta angustiada: � Onde est� Deus? Onde est� Deus? Sua voz � desolada e tr�gica. Quem � esse homem que impressiona todos que passeiam na cidade? Ningu�m sabe. Os oper�rios que fizeram a greve sabem que � o Gordo que enlouqueceu quando viu a bala do rev�lver de um investigador matar uma negrinha em frente de uma das padarias das Panifica��es Reunidas no dia de um com�cio. Sabem que ele carregara o cad�ver da pretinha at� a casa de pai-de-santo Jubiab� e que fora todo o tempo repetindo aquela mesma pergunta: � Onde est� Deus? Ele era muito religioso e enlouqueceu. Agora anda com os bra�os estendidos como se ainda levasse a pretinha baleada. N�o faz mal a ningu�m, � um louco manso. Por�m nem mesmo estes sabem de tudo. Eles n�o sabem que desde o dia do com�cio

o Gordo carrega aquela pretinha certo que de um momento para outro Deus se lembrar� dela, mostrar� que � bom e a colocar� em p�, a brincar com as outras crian�as na Baixa dos Sapateiros. Nesse dia o Gordo deixar� de repetir a sua pergunta, baixar� as m�os e seus olhos n�o ser�o mais tristes. Mas se ele soubesse que ela tinha morrido, que seu caix�o pobre fora enterrado h� muito, ent�o, ele morreria tamb�m porque at� o olho da piedade de Deus, que � do tamanho do mundo, teria secado. Ent�o ele n�o acreditaria mais e morreria desgra�ado. Por isso � que ele vai assim como um louco manso, de bra�os estendidos, aconchegando ao peito o corpinho magro da crian�a negra que morreu no com�cio. N�o importa que os homens n�o vejam o pequeno corpo baleado. Ele pesa nos bra�os do Gordo e ele sente a sua quentura quando o encosta ao cora��o. Segunda Noite de Greve

A cidade perdera aquele tom festivo. Desde o primeiro tiroteio que os boatos invadiram a cidade e aos poucos o movimento das ruas foi diminuindo. As marinetes corriam mas levaram raros passageiros, e estes, assim mesmo, se recolhiam a casa medrosos de brigas, de balas perdidas: � Bala n�o leva endere�o. Dentro das casas, o ambiente entre as fam�lias era de quase terror. O encontro entre padeiros grevistas e a pol�cia na Baixa dos Sapateiros assumia propor��es tremendas. Davam dezoito mortos, dezenas de feridos. Corria que os sindicatos iam ser atacados e os grevistas dissolvidos a bala. As senhoras tremiam e passavam trancas nas portas enquanto acendiam as velas e os candeeiros dentro de casa. A cidade estava intranq�ila. Faltou o jantar na casa de Cl�vis. Ele ficara de trazer qualquer coisa da cidade e Helena esperou por toda a tarde. Ele n�o apareceu. Corriam os boatos mais desencontrados. Quando ela soube do tiroteio na Baixa dos Sapateiros correu � rua. Mas foi informada que Cl�vis n�o estava no momento do barulho, tinha sido do grupo que fora fechar a panifica��o do Corredor da Vit�ria. Voltou mais descansada e continuou a esperar o marido. Os filhos eram tr�s, corriam pela porta, brincando de picula. Que iria dar �s crian�as para comer? O fog�o parado esperava in�til na co zinha. N�o havia nada. At� a farinha terminara naquele dia. J� para o almo�o ela pedira comida �s vizinhas e prometera pagar quando o marido voltasse, porque as pobres tamb�m precisavam, pois os homens que moravam naquele beco ou eram empregados de padaria ou estivadores e andavam em greve. Helena estava envergonhada. Que faria das crian�as? Mandaria pedir mais comida? Eles estavam em greve e os homens diziam que era necess�rio que uns ajudassem os outros. Ela n�o era contra a greve, n�o. Achava que eles tinham raz�o, que o sal�rio era muito pequeno e n�o dava. Eles estavam no seu direito de pedir mais, deixar de trabalhar at� que os patr�es aumentassem o sal�rio. Mas temia os dias que iam se seguir. N�o havia mais comida em casa, nas dos vizinhos faltaria logo e onde � que o sindicato arranjaria dinheiro para sustentar tanta gente? Se a greve demorasse mais alguns dias, a fome os derrubaria. Chega � janela. Na casa vizinha aparece Erc�dia: � Seu Cl�vis j� chegou, Helena?

� Ainda n�o, Sinh� Erc�dia... � � capaz de n�o vir... Henrique me disse que eu n�o esperasse... A greve t� braba hoje e os homens precisam estar na rua. A negra sorria. � Acho que vou jantar sem ele.. Sorriu novamente. Mas por que Helena n�o sorri, n�o acha gra�a? Ela est� chorando. Erc�dia sa� e entra na casa da vizinha: � O que �, Helena? O fog�o est� parado na cozinha. A negra alisa a cabe�a da outra: � N�o se importe, menina, deixe de besteira. L� em casa tem arraia que chegue. E depois eles ganham a greve e a gente tem mais dinheiro. Helena sorri entre l�grimas. Ap�s acomodar as crian�as, que ficaram dormindo, Helena bota um xale nos ombros e toma o caminho da Gra�a, onde mora Dona Helena Ruiz, esposa do patr�o de seu marido. Ela fora lavadeira de Dona Helena, que era uma senhora sempre preocupada em fazer bem aos pobres e que a chamava sem nenhuma besteira de �xar�. � Veja l�, xar�. Quero esta roupa bem alva. Apesar de riqu�ssima, Dona Helena continuava a tomar conta da sua casa. Dizia que quem n�o tem nenhuma ocupa��o se ocupa com pensamentos ruins. E se bem tivesse muitas festas a que ir, cinemas a assistir, passeios a dar, arranjava sempre tempo para zelar pela casa. O marido rogava que entregasse aquilo �s criadas, que n�o estragasse seus vinte e dois anos risonhos, mas ela n�o dava ouvidos: � Se eu entregar isso a empregadas voc� nunca mais ter� uma roupa que preste. E demais eu gosto. O marido a beijava no rosto e depois iam ao cinema muito unidos. Ele lhe contava os neg�cios, falava orgulhoso da prosperidade das Panifica��es Reunidas (pretendia abrir mais uma em Itapagipe), ela sorria satisfeita do marido que Deus lhe dera. Ele dizia: � Voc� � quem me d� coragem. Se n�o fosse voc� n�o sei o que seria de mim. Fora por interm�dio de Dona Helena que Cl�vis arranjou o emprego na padaria. A lavadeira pedira � patroa, no outro dia Cl�vis tivera o lugar. A lavadeira ia. � casa da patroa (fazia dois anos que n�o a via, desde que Cl�vis se empregara) pensando nisso tudo. Ser� que Dona Helena se recorda da xar�? Dona Helena est� na sala fazendo um bordado. O marido toma banho l� em cima, pois chegou da rua suado, depois de passar o dia todo em confer�ncias, providenciando homens para trabalhar nas panifica��es. Mal sabe que a lavadeira est� a� e quer falar, Dona Helena manda que ela entre. Larga o bordado que fazia � luz do candeeiro (o marido j� reclama: voc� estraga sua vista, Helena...) e sorri para a mulher que tem os olhos no ch�o. � Ent�o, xar�, nunca mais veio nos ver? � Ocupada, Dona Helena. Os meninos n�o d�o tempo para nada. � Sabe que nunca mais tive uma lavadeira como voc�, xar�? Helena sorri meio encabulada. Dona Helena se recorda que ela veio falar: � O que � que voc� quer? Helena n�o sabe como come�ar. Agita as m�os, se atrapalha. Dona Helena pergunta: � O que � que voc� tem? Aconteceu alguma coisa com os meninos? ou com seu marido? � Acontecer n�o aconteceu, Dona Helena... � a greve. � Ah! A greve... Ruiz tamb�m anda aborrecido com esta greve. � Mas � s� ele querer... Dona Helena n�o sabe de nada. A lavadeira conta a vida do beco, os homens ganhando uma mis�ria na padaria, sustentando as fam�lias com este sal�rio de fome, os filhos doentes. Com a greve, greve justa para pedir uns tost�es a mais, as fam�lias estavam sem ter o que comer. Os seus filhos s� tinham comido naquele dia porque uma vizinha se compadecera. Mas tinha meninos passando fome. Dona Helena se agita num assombro. Sua voz � dolorosa: � Meninos passando fome? N�o � poss�vel, meu Deus...

Passando fome, sim. E uma pretinha morrera num tiroteio esta tarde. Ainda fora feliz. As outras em casa pediam comida e choravam: � Se isto demorar a gente tem que pedir esmolas. E os homens querem t�o pouco! Dona Helena se levanta emocionada. Com certeza Ruiz n�o sabe disso. Se ele soubesse desta situa��o j� teria aumentado os sal�rios dos seus oper�rios. � Ele � t�o bom... Dona Helena leva a lavadeira � cozinha. Faz um farnel para ela. Do que h� de melhor. E ainda lhe d� vinte mil-r�is em dinheiro. Quando a mulher sai, curva como uma escrava e chorando como uma escrava, Dona Helena lhe diz: � V� descansada, xar�. Agora mesmo vou falar com Ruiz. Ele ignora estas coisas. Mas eu vou contar e ele aumenta logo os homens. Voc� vai ver. Ele � t�o bom. Ant�nio Ruiz, o propriet�rio das Panifica��es Reunidas, veste a camisa de seda quando a mulher entra no quarto. Olha espantado para o rosto dela: � O que � que voc� tem, minha filha? Se aproxima e beija novamente a esposa. � Est� triste? Por que n�o vai ao cinema hoje? Ri: � A greve n�o deixa amorzinho ter cinema... � � sobre a greve mesmo que eu quero falar com voc�, Ruiz. � Est� metida em pol�tica, filhinha? No outro quarto dorme a filha do casal entre bonecas num ber�o de fadas. Dona Helena se recorda das crian�as que passam fome nos becos: � Voc� precisa concordar com os homens e dar o aumento... O marido se volta num salto. � Hein? � a sua voz tem uma brutalidade que Dona Helena n�o conhece. Mas ele se arrepende e diz com voz doce: � Voc� n�o sabe nada dessas coisas, meu amor. � Quem foi que lhe disse que eu n�o sei? Sei mais do que voc�... (Dona Helena tem diante dos olhos o quadro das crian�as esfomeadas.) Sei de coisas que voc� n�o sabe. E narra ao marido, com emo��o, o que lhe contou a sua lavadeira Helena. Por fim sorri vitoriosa: � Eu n�o lhe disse que sabia coisas que voc� n�o sabia? Sua mulherzinha anda informada. � Mas quem foi que lhe disse que n�o sei disso? � Voc� sabe... sabe... e... Bateram muito em Dona Helena. Deram-lhe marteladas na cabe�a, deram-lhe tanto que ela perdeu a voz. O marido se aproxima: � O que � isso, Lena? Eu sei, sim. � E n�o faz nada? N�o aumenta estes homens? Concorda com esse crime? � Que crime, Lena? � o espanto de Ruiz n�o � fingido. � Que crime? � Dona Helena vai de espanto em espanto. � Ent�o voc� acha que n�o � um crime deixar esses homens, essas mulheres, essas crian�as, Ruiz, crian�as passarem fome. � Mas, minha filha, eu n�o digo nada. Desde o princ�pio do mundo que � assim... Sempre houve pobres e ricos... � Mas, Ruiz, s�o criancinhas passando fome... Voc� j� pensou em Leninha passando fome? � horr�vel, meu Deus... Ruiz anda de um lado para o outro, agitado: � Para que voc� se mete nisso? Voc� n�o entende disso... � E voc� que � t�o bom... Parecia... � Eu sou igual aos outros. Nem pior nem melhor. H� um sil�ncio no quarto. Ouvem a respira��o forte que vem do quarto vizinho. Ruiz explica: � Voc� sabe o que � que eles querem? � Querem t�o pouco... � Mas � preciso n�o dar nada. Se a gente der hoje esse aumento, amanh�,

querer�o outro, depois mais outro, e um dia querer�o as padarias. � Sei � que tem crian�as com fome. E eles ganham mesmo uma mis�ria. Voc� nunca me falou que sabia destas coisas. E eu n�o sabia. Se eu soubesse... Ruiz se irrita: � Se soubesse o que � que fazia? Voc� l� sabe de nada. Eu estou defendendo o seu autom�vel, a sua casa, o col�gio de Leninha. Voc� acha que eu devo trabalhar para esses canalhas? � Mas eles querem t�o pouco, Ruiz. N�o � poss�vel que voc� goste de ver o sofrimento alheio. � Eu n�o gosto de nada. Mas aqui n�o � quest�o de sentimentalismo. � coisa mais s�ria. Eu n�o sou eu, n�o tenho nada com meus sentimentos. Eu sou o patr�o, tenho que defender meus interesses. Se a gente ceder o p�, amanh� eles querer�o a m�o... Voc� quer ficar sem autom�vel, sem casa, sem criadas para Leninha? Eu estou defendendo isso tudo, estou defendendo o que � nosso, nosso dinheiro... Defendendo o seu conforto! Anda pelo quarto. P�ra diante da esposa: � Ent�o voc� pensa, Lena, que eu sinto prazer em saber que tem gente passando fome? N�o sinto, n�o. Mas na guerra como na guerra... A respira��o da filha vem do outro quarto. Crian�as passando fome, crian�as sem ter o que comer, chorando pelo jantar. E o marido ali achando tudo t�o natural. O marido que ela sabe que � bom, incapaz de fazer mal a uma formiga. Deve haver qualquer mist�rio nisso tudo, mist�rio que ela n�o entende. Mas as crian�as est�o passando fome. Quer dizer que se Ruiz n�o houvesse prosperado, seria Leninha quem estaria passando fome. Roga ao marido, entre l�grimas, que conceda o aumento. � � imposs�vel, minha filha, imposs�vel. A �nica coisa que n�o posso lhe fazer. E tenta explicar novamente que ali � uma guerra, que se ele der o p� eles tomar�o a m�o, um m�s depois querer�o outro aumento: � Hei de sujeit�-los pela fome... Vem para junto da esposa e estende a m�o para alisar os seus cabelos: � N�o chore, Lena... Passa os bra�os em torno dela. Crian�as est�o esfomeadas nos becos. � N�o se aproxime de mim... Voc� � um miser�vel... N�o se aproxime. E fica solu�ando, fica desgra�ada, com piedade de si, com piedade do marido e com inveja dos grevistas. E murmura no seu choro: � Crian�as com fome... Crian�as com fome. Cl�vis ficou foi ouvindo os discursos no sindicato. A greve tomou um car�ter novo depois dos tiroteios. Os homens est�o agitados e querem reagir. D� trabalho cont�-los. S�o lan�ados manifestos exigindo a liberdade imediata para os grevistas presos. Correm not�cias as mais desencontradas. Certa hora um oper�rio entra correndo na sala e avisa que a pol�cia vem atacar o sindicato. Todos se preparam para reagir. Mas fora rebate falso. Em todo caso o ataque � esperado a qualquer momento. �s nove horas da noite o caso dos estivadores � resolvido com a vit�ria dos grevistas. Por�m, em sess�o realizada no seu sindicato, eles declaram que continuar�o a parede at� que sejam solucionadas as quest�es dos padeiros e dos oper�rios da Circular. E v�o todos para o sindicato dos �ltimos levar a sua resolu��o. Em meio aos discursos estoura uma not�cia. A pol�cia prendera v�rios oper�rios e queria obrig�-los a trabalhar debaixo de pancadas. O sindicato est� agitado como um mar. Saem todos. V�o comiss�es conferenciar com os choferes das marinetes e dos carros de pra�a. Outros v�o se entender com os oper�rios de f�bricas diversas. Um grupo grande marcha para os escrit�rios da Companhia Circular para fazer uma manifesta��o de desagrado. Os �nimos est�o exaltados ao m�ximo. S�o dez horas da noite. Em frente aos escrit�rios da companhia est� parado um autom�vel. � o Hudson do diretor, um americano que ganha doze contos por m�s. E ele vem de charuto na boca, descendo as escadas. O chofer prepara o carro. Ant�nio Baldu�no, que vem no grupo de grevistas, grita:

� Vamos prender ele, pessoal. Assim a gente tamb�m tem um preso. O diretor � cercado. Os guardas que garantiam o pr�dio correm. Ant�nio Baldu�no o agarra por um bra�o e rasga a roupa branca. Gritam da multid�o: � Lincha! Lincha! Ant�nio Baldu�no levanta o bra�o para descarregar o soco. Mas uma voz se faz ouvir. � Severino quem fala: � Nada de bater no homem. N�s somos oper�rios e n�o assassinos. Vamos lev�-lo para o sindicato. Ant�nio Baldu�no baixou o bra�o com raiva. Mas ele compreende que aquilo � necess�rio, que a greve n�o � feita por um, mas por todos. E entre gritos o americano � levado para o sindicato dos oper�rios da Circular. A not�cia da pris�o do americano corre r�pida pela cidade. A pol�cia quer que ele seja solto. O consulado americano se move. Os grevistas exigem que sejam postos em liberdade todos os presos pol�ticos. E que n�o obriguem os oper�rios a trabalhar. �s onze horas os que estavam presos aparecem no sindicato. Dizem que o c�nsul americano pedira que a pol�cia os soltasse com medo que os oper�rios matassem o diretor da companhia. Este vai em paz depois de ouvir alguns dichotes. No sindicato reina o maior entusiasmo. Ant�nio Baldu�no diz ao negro Henrique: � Esse foi assim... Mas se aquele Dr. Gustavo cair em minhas m�os, ah!... E esfrega as m�os, satisfeito da vida. A greve � uma coisa boa. Meia hora depois � lido entre palmas um manifesto: Os choferes de marinetes e autos de pra�a, os oper�rios de duas f�bricas de tecidos, os de uma f�brica de cigarros se declarar�o em greve no dia seguinte se a quest�o dos padeiros e dos oper�rios da Circular n�o for resolvida esta noite. Pedro Corumb� come�a um discurso assim: � Os oper�rios unidos podem dominar o mundo... Ant�nio Baldu�no abra�a um sujeito que nunca viu. No pal�cio do governo, � meia-noite, os representantes da Circular e dos donos de padarias comunicam � comiss�o de grevistas que resolveram conceder o que eles pedem. As novas tabelas vigorar�o do dia seguinte em diante. A greve est� terminada com a vit�ria integral dos grevistas. Ant�nio Baldu�no vai para a casa de Jubiab�. Agora olha o pai-de-santo de igual para igual. E lhe diz que descobriu o que os ABC ensinavam, que achou o caminho certo. Os ricos tinham secado o olho da piedade. Mas eles podem, na hora que quiserem, secar o olho da ruindade. E Jubiab�, o feiticeiro, se inclina diante dele como se ele fosse Oxoluf�, Oxal� velho, o maior dos santos. Hans, o marinheiro

Ant�nio Baldu�no aperta no bolso da cal�a os cento e vinte mil-r�is que ganhou esta tarde jogando no jacar�. A noite se estende pouco a pouco sobre a cidade. H� alguns dias as luzes n�o se acendiam. A greve paralisara tudo. Tudo, n�o. Porque � pensa Ant�nio Baldu�no � a sua vida � que estava paralisada. Com a greve ele enxergava outra estrada e voltara a lutar. Passou-se mais um m�s. No entanto, ainda hoje, ele vai cantando baixinho um samba intitulado A vit�ria da greve que apareceu no dia seguinte ao triunfo dos oper�rios. Ant�nio Baldu�no vai cantando e se recordando dos acidentes daqueles dois dias: �Um sindicato de oper�rios se levantou em greve para aumentar os seus sal�rios aderiu todas as classes para refor�ar E houve uma forte corrente Contra a Circular�

A letra � de Perm�nio L�rio. Canta-se com a m�sica de � de amargar. Foi vendido copiosamente na cidade, e no dia seguinte ao do t�rmino da greve, era s� o que se cantava nas ruas onde os bondes novamente circulavam. A greve fora novamente para o negro Ant�nio Baldu�no uma verdadeira revela��o. A princ�pio ele a amara como luta, como barulho e briga, coisas de que gostava desde crian�a. Por�m, aos poucos, a greve come�ou a tomar para o ex-boxeur um aspecto novo. Era qualquer coisa mais s�ria que barulho, que briga. Era uma luta dirigida para um fim, sabendo o que queria, uma luta bonita. Ali na greve todos se amavam, se defendiam e lutavam contra a escravid�o. A greve merecia um ABC. N�o basta o samba que Ant�nio Baldu�no canta enquanto pensa: �N�o teve iuz e tamb�m n�o teve p�o Ficou mudo o telefone sem ter comunica��o Durante a greve n�o houve jornal tamb�m n�o teve bonde para nenhum ramal�. Verdade tudo aquilo que o samba dizia. Aqueles homens, que Ant�nio Baldu�no sempre desprezara como escravos incapazes de reagir, paralisaram toda a vida da cidade. Ant�nio Baldu�no pensava que ele e os seus malandros, desordeiros que viviam de navalha em punho, � que eram livres, fortes e donos da cidade religiosa da Bahia. E esta sua certeza fizera que ele ficasse triste e quase suicida quando teve que trabalhar nas docas. Mas agora ele sabe que n�o � assim. Os trabalhadores s�o escravos mas est�o lutando para se libertar. Bem que o samba diz: �As fabricantes pararam um instante at� que os oper�rios sa�ssem triunfantes agora reina grande alegria Viva os oper�rios da nossa Bahia�. Ele julgara que a luta, luta aprendida nos ABC lidos nas noites do morro, nas conversas em frente � casa de sua tia Lu�sa, nos conceitos de Jubiab�, na m�sica dos batuques, era ser malandro, viver livre, n�o ter emprego. A luta n�o � esta. Nem Jubiab� sabia que a luta verdadeira era a greve, era a revolta dos que estavam escravos. Agora o negro Ant�nio Baldu�no sabe. � por isso que vai t�o sorridente, por que na greve recuperou a sua gargalhada de animal livre. Canta os dois �ltimos verses do samba em voz t�o alta que assusta a p�lida prostituta que parece uma virgem e que na janela da velha casa da Ladeira da Montanha rega um vaso de flores. A noite desceu e a lua sobe do mar junto das estrelas. O Gordo andar� na Rua Chile, de bra�os estendidos, a perguntar onde est� Deus. Zumbi dos Palmares � que brilha no c�u. Para os homens brancos, � V�nus, o planeta. Para os negros, para Ant�nio Baldu�no, � Zumbi, o negro que morreu para n�o ser escravo. Zumbi sabia aquelas coisas que s� agora Ant�nio Baldu�no aprendera. Os saveiros dormem. Apenas o Viajante sem Porto sai de lanterna acesa, carregado de abacaxis. Maria Clara vai em p� cantando. Dela vem um cheiro poderoso de mar. Ela nasceu no mar, o mar � seu inimigo e o seu amante. Ant�nio Baldu�no tamb�m ama o mar. Sempre viu no mar o caminho de casa. E quando Lindinalva morreu, ele que pensava que seu ABC j� estava perdido, que nada mais faria, quis entrar pela estrada do mar para ser feliz como um morto. Por�m os homens do cais, os homens do mar, lhe ensinaram a greve. O mar lhe mostrou o caminho de casa. E ele olha para o mar verde, amarelado pela lua. De muito longe vem a voz de Maria Clara. �A estrada do mar � larga, Maria...� Um velho no cais deserto toca realejo. A m�sica vem em surdina e se espalha pelos saveiros, pelas canoas, pelos transatl�nticos, pelo grande mar misterioso de Ant�nio Baldu�no. Se n�o fosse a greve o mar engoliria o seu corpo numa noite em

que a lua n�o brilhasse. Se n�o fosse a greve ele teria desistido de ser cantado num ABC, de ver Zumbi dos Palmares brilhando como V�nus. Um vulto passa ao longe. Ser� Robert, o equilibrista, que desapareceu misteriosamente do circo? Mas pouco importa. A m�sica do realejo � plangente. A voz de Maria Clara se sumiu no mar. Mestre Manuel ir� ao leme. Ele sabe todos os segredos do mar. E amar� Maria Clara � luz da lua. As ondas do mar molhar�o os corpos e assim o amor ainda ser� melhor. A areia alva do cais prateada com a lua. A areia alva do cais onde o negro Ant�nio Baldu�no amou tantas mulatas que eram todas Lindinalva, a sardenta. Se n�o fosse a greve o seu corpo de afogado seria depositado na areia e os siris chocalhariam como chocalharam no corpo de Viriato, o An�o. Brilha a luz de um saveiro. O vento levar� at� ele a melodia do realejo que o velho italiano toca? Um dia � pensa Ant�nio Baldu�no � hei de viajar, hei de sair para outras terras. Um dia ele tomar� um navio, um navio como aquele holand�s que est� todo iluminado, e partir� pela estrada larga do mar. A greve o salvou. Agora sabe lutar. A greve foi o seu ABC. O navio vai largar. Os marinheiros souberam da greve, contar�o em outras terras que aqueles negros lutaram. Os que ficam d�o adeuses. Os que v�o limpam l�grimas. Por que chorar quando se parte? Partir � uma aventura boa, mesmo quando se parte para o fundo do mar como partiu Viriato, o An�o. Mas � melhor partir para a greve, para a luta. Um dia Ant�nio Baldu�no partir� num navio e far� greve em todos os portos. Nesse dia dar� adeus tamb�m. Adeus, minha gente, que eu .j� vou. Zumbi dos Palmares brilha no c�u. Sabe que o negro Ant�nio Baldu�no n�o entrar� mais pelo mar para a morte. A greve o salvou. Um dia ele dar� adeus e agitar� um len�o do tombadilho de um navio. A m�sica do realejo chora uma despedida. Mas ele n�o dar� adeus como estes homens e mulheres da primeira classe, que d�o adeus para os amigos, para pais e irm�os, para esposas chorosas, para noivas tristes. Ele dar� adeus como aquele marinheiro loiro que est� no fundo do navio e agita o bon� para a cidade toda, para as prostitutas do Tabu�o, para os oper�rios que fizeram a greve, para os malandros que est�o na Lanterna dos Afogados, para as estrelas onde est� Zumbi dos Palmares, para o c�u e a lua amarela, para o velho italiano do realejo, para Ant�nio Baldu�no tamb�m. Ele dar� adeus como marinheiro. Adeus para todos, que ele fez a greve e aprendeu a amar a todos os mulatos, todos os negros, todos os brancos, que na terra, no bojo dos navios sobre o mar, s�o escravos que est�o rebentando as cadeias. E o negro Ant�nio Baldu�no estende a m�o calosa e grande e responde ao adeus de Hans, o marinheiro. �ABC DE ANT�NIO BALDU�NO�

�Este � o ABC de Ant�nio Baldu�no Negro valente e brig�o Desordeiro sem pureza mas bom de cora��o. Conquistador de natureza furtou mulata bonita brigou com muito patr�o ........................... ........................... morreu de morte matada mas ferido a trai��o.� (do ABC de Ant�nio Baldu�no) O ABC de Ant�nio Baldu�no, trazendo na capa vermelha um retrato do tempo em que o negro era jogador de boxe, � vendido no cais, nos saveiros, nas feiras, no Merca do Modelo, nos botequins, pelo pre�o de duzentos r�is, a camponeses mo�os,

marinheiros alvos, a jovens carregadores do cais do porto, a mulheres que amam os camponeses e os marinheiros e a negros tatuados, de largo sorriso, que trazem ou uma �ncora, ou um cora��o e um nome gravado no peito. Pens�o Laurentina (Concei��o da Feira), 1934. Rio de Janeiro, 1935. ?? ?? ?? ??

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