A PROBLEMÁTICA DO SUJEITO TRANSCENDENTAL E O ENSINO DE FILOSOFIA: uma abordagem fenomenológica Jean Leison Simão*
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I)
Introdução
Muito se fala, quando o assunto é o ensino de filosofia, na emancipação do sujeito. Mas que sujeito é esse? Certamente não deve ser aquele sujeito do iluminismo, uma instância superior, supra-histórica para além das vivências contingentes e, portanto, não auto-evidenciável. Tampouco, pode esse sujeito ser fruto de uma ininteligibilidade natural como nos empiristas, pois um sujeito que não pode se conhecer também não poderá se emancipar. Não obstante, após a crise do sujeito moderno e acessão das ciências, no final
do
século
XIX,
Edmund
Husserl
resgata
os
contra-sensos
da
modernidade e não medirá forças para resolvê-los, pretendendo legitimar o sujeito do conhecimento que necessariamente deve ser livre. Uma apresentação mais detalhada dessa problemática, assim como a resposta husserliana, é imprescindível para compreendermos de que maneira é possível um ensino de filosofia no nível médio com base na reflexão fenomenológica. Vejamos... II) Exposição do problema A filosofia – seja na universidade, seja nas escolas – historicamente vêm adotando, desde seus antecedentes europeus, duas perspectivas principais Jean Leison Simão: diplomado em filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em psicologia pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA) e atualmente mestrando em filosofia pela UFSM. Telefone: (55) 99357183; endereço: São Pedro do Sul - RS, Rua XV de Novembro, 690. Centro, CEP: 97400-000. *
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de ensino. Segundo Obiols, (Cf. 2002, p. 27 e ss.) ou o ensino assume um modelo cuja origem remonta à Idade Média, no qual aparece associado à teologia, sendo inclusive uma serva dessa; ou ele adquire um papel emancipador, como aconteceu pela primeira vez na época que circunscreve o iluminismo, em que o centro das discussões filosóficas se desloca de Deus para o homem, com o objetivo de fundamentar a sua liberdade para além de qualquer dominação de autoridade. Este último modelo de ensino é o mais amplamente adotado atualmente nos diversos lugares em que o ensino de filosofia se faz presente, e é nele que se irá centrar esta exposição. Descartes (séc. XVII) foi, sem dúvida, o filósofo que deu o passo inicial no assentamento das bases de um sujeito emancipado. Nas Meditações ele vai buscar uma certeza indubitável, absoluta, afastada de qualquer falsa opinião. Os sentidos para ele não fornecem essa certeza, uma vez que muitas vezes eles nos enganam. Assim, devemos ser prudentes em não confiar em algo que alguma vez já nos enganou. Nesse sentido, podemos duvidar que tudo que provém dos sentidos seja verdadeiro e não passe apenas de um sonho coerente. Por outro lado, o mesmo não se pode dizer daquele que duvida, ou seja, podemos duvidar de tudo que procede dos sentidos, mas não se pode duvidar do próprio ato de pensamento que é o duvidar. Descartes, ao pensar sobre o sujeito indaga-se da seguinte maneira: “Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente.” (1973, p. 103). O celebre exemplo do pedaço de cera pode ajudar a compreender a tese cartesiana. Para o filósofo francês, quando se aproxima um pedaço de cera ao fogo – o qual têm um determinado odor, uma determinada textura e forma, um determinado gosto, etc. – notamos que as suas qualidades sensíveis se alteram; no entanto a concepção dada pelo entendimento permanece, donde se pode concluir que a idéia da cera no meu espírito é mais verdadeira do que a cera dada pelos sentidos, e mesmo que essa cera fosse falsamente concebida num sonho; ou se quisemos,
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mesmo que ela seja imaginada, ainda assim podemos conceber que a idéia da cera presente à imaginação é verdadeira. Mas qual a origem dessas idéias? Descartes, na terceira meditação irá afirmar que elas têm a sua origem em Deus, que é concebido em meu espírito como uma idéia mais perfeita. É justamente nesse ponto que irão convergir muitas das críticas dos empiristas. Eles afirmarão que o pensamento de Descartes é altamente especulativo e conseqüentemente metafísico, e que qualquer proposta de ir além da experiência deve ser rejeitada. Hume (séc. XVIII), por exemplo, parte e permanece no sujeito das operações psicológicas. Para ele toda e qualquer ação ou operação da mente – julgar, amar, odiar, pensar, etc – são percepções. Há dois gêneros de percepção: Impressões e idéias. Sensações, paixões, emoções estão incluídas no primeiro gênero, que tem como principal característica a força e a violência com que penetram na mente humana. Assim, as impressões possuem um grau de vividez elevado, enquanto, as idéias, ao contrário, são lânguidas, são “pálidas imagens das impressões no pensamento e no raciocínio” (Tratado da Natureza Humana, p. 25). O sujeito de Hume não é transcendental. As ligações entre as impressões e as idéias se dão por meio de leis de associação, as quais se encontram na base de qualquer crença, a qual é provável, pois deriva do hábito da experimentação de um determinado evento. Assim, por exemplo, ao perceber que o sol nasce e se põe todos os dias até o presente momento, pode-se concluir – com uma probabilidade imensamente elevada – que ele continuará a nascer e se pôr nos dias seguintes. Essas leis de associação que estão na base da crença são leis da razão, que “[...] não é senão um maravilhoso e ininteligível instinto de nossas almas, que nos conduz por certa seqüência de idéias, conferindo-lhes qualidades particulares em virtude de suas situações e relações particulares” (Tratado da Natureza Humana, p. 212) [o grifo é nosso]. Ora, uma razão vista sob este ângulo conduz a idéia
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de um sujeito que não pode se emancipar, na medida em que é considerado como um ser natural, incapaz de se autoconhecer, pois a própria razão desse sujeito é ininteligível. Portanto, de um lado temos o sujeito transcendental cartesiano que se eleva para além da experiência; um sujeito capaz de sair do nível da experiência e se autodeterminar, mas que muito embora esteja fixado num ponto único de evidência absoluta que é o cogito, tem a sua base abalada ao fundar-se numa realidade metafísica e não evidenciável. De outro lado, temos o sujeito psicológico natural de Hume, que pode ser percebido na experiência, mas que não pode ir além, não sendo um sujeito livre e autodeterminável. Kant (séc. XVIII) tenta resolver esse dilema introduzindo a idéia de um sujeito lógico. Ele concorda com a visão de Hume e dos empiristas que só podemos ter acesso àquilo que provém da experiência, mas afirma também que é por meio de condições a priori da sensibilidade e do entendimento em geral que isso é possível. Essas condições fazem parte da estrutura de um sujeito transcendental que é pressuposto a partir de seu método criticista, mas que não pode ser evidenciado nos fenômenos. Ao contrário de Descartes, onde o sujeito transcendental é concreto, pois podemos ter a certeza indubitável que este é uma coisa pensante, o sujeito kantiano é abstrato, isto é, ele possui as condições para o conhecimento, mas essas condições, assim como ele mesmo, não podem ser conhecidos. (Cf. LYOTARD, 1986, p. 25 e ss.). Mas tanto o sujeito transcendental cartesiano quanto o kantiano são supra-históricos, ou seja, são sujeitos de uma razão universal independente de qualquer período histórico, e, portanto, livre de qualquer contingência. No entanto, ou esse sujeito é concebido por meio de um afastamento do plano sensível e convertido em uma especulação difícil de ser evidenciada como Descartes – assim como outros filósofos iluministas como Leibniz, Hegel, etc. –, ou ele é apenas pressuposto e não pode ser conhecido, sendo exigido como condição do pensar em geral como em Kant. Como emancipar
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um
sujeito
que
não
podemos
conhecer?
Ele
é
livre
de
qualquer
determinação? Como posso ter evidências disso? Essas questões permaneceram em aberto durante o iluminismo, o que ajudou a fortalecer a tese empirista, que vai ser retomada numa vestimenta nova das ciências naturais do século XIX. A filosofia como pretensão de saber sobre a totalidade, tal como era concebida durante o iluminismo, agora cai em descrédito e quanto muito lhe é atribuída uma função de explicitar os métodos das ciências particulares. Assim, o professor que pretende adotar o modelo de ensino baseado na emancipação do sujeito, não poderá tomar por base nenhum dos sistemas do iluminismo, a não ser que possa esclarecer quem é o seu sujeito. Deverá a filosofia ser ensinada na escola como as demais ciências, isto é, ser antes uma assimilação e uma repetição passivas de resultados acadêmicos do que uma reflexão que almeja a liberdade do sujeito? Poder-se-ia resolver esse problema se pudéssemos, de alguma forma unir a tese empirista com a tese do sujeito transcendental, de maneira que esse último pudesse ser evidenciado na experiência. Mas como buscar algo de incondicionado, ou seja, para além dos sentidos, na própria esfera condicionada
que
é
a
da
experiência?
Como
um
sujeito
pode
ser
condicionado e incondicionado ao mesmo tempo? Na era contemporânea (final do séc. XIX e começo do XX), a fenomenologia de Husserl retomará o projeto iluminista da busca de um sujeito livre, com vistas a resolver esse problema. Husserl identifica o sujeito condicionado com o sujeito incondicionado. Esse pode ser conhecido por uma mudança de orientação a partir de um método de reflexão rigorosa. Sua empresa – pelo menos
nos
seus
trabalhos
iniciais
como
Idéias
relativas
a
uma
fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica (as Idéias I) – vai em direção a um conhecimento apodítico e necessário, uma filosofia primeira, que era idealista; mas não como os outros idealismos da tradição, pois esse pretendia começar do zero, sem tomar nenhuma filosofia da tradição como
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certa – como em Descartes – mas apenas tomando como certo aquelas evidências que podem se apresentar em carne e osso, para usar uma expressão que lhe é comum. Aos poucos, em suas investigações ele irá perceber que não se pode ir para além da vida, isto é, para um sujeito transcendental afastado de suas vivências. Como afirma Lyotard (1986), esse sujeito transcendental aos poucos vai assumindo o caráter de Leben (a vida) e a reflexão husserliana, irá conduzir antes ao lebenswelt – o mundoda-vida – o mundo vivido pré-reflexivamente, isto é, pré-categorial e antes de
qualquer
predicação
(Cf.
p.
39).
O
resultado
da
reflexão
é
o
incondicionado, o eidos, a essência, como verdade absoluta. Trata-se – como diz Husserl em um de seus últimos trabalhos (crise da humanidade européia e a filosofia) – de um aprofundamento, uma retomada infinita do eidos pela consciência. Tal tarefa é um empreendimento infinito; não pode ser, portanto, a de apenas um homem, senão de muitos que devem estar empenhados numa constante dialética.
O método fenomenológico traduz
assim, uma volta às vivências mesmas (ou fenômenos); podemos dizer uma volta às vivências que estão aí, no cotidiano, tal como elas se apresentam. III) O sujeito husserliano e suas vivências Para
Husserl,
tanto
Descartes
quanto
Hume
definem
a
razão
extrinsecamente. Enquanto para Descartes o fundamento das idéias é Deus, para Hume as idéias se originam da experiência; assim, as idéias não são verdadeiramente definidas em si mesmas e sua origem encontra-se fora delas. Não obstante, Husserl também reconhece contribuições importantes desses dois filósofos. Em Descartes, ele reconhece o Cogito como evidência absoluta e em Hume – e nos demais empiristas – o esforço de deixar-se guiar pelas coisas mesmas, dadas pela experiência, e evitar qualquer preconceito da tradição. No entanto, ele afirma que a evidência dos
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empiristas não é adequada para a busca de um conhecimento apodítico e necessário, uma vez que é probabilística e não absoluta. Por outro lado, mesmo aceitando o cogito como evidência intelectiva (einsicht), Husserl irá criticar Descartes por predicar existência ao Sujeito, ou seja, irá criticar a definição de sujeito como uma coisa pensante, como uma res cogitans. Essa predicação da existência também está presente em Hume, assim como em todos os filósofos da tradição a partir de Galileu, conforme a tese defendida na Crise da humanidade européia. Para ele há um preconceito na tradição filosófica, a saber, a separação entre esfera subjetiva – interna – e mundo objetivo – externo. A esfera subjetiva é apenas um devir de vivências onde não podemos ter conhecimento algum, enquanto a esfera objetiva é aquela que se encontra, por assim dizer, atrás das vivências subjetivas, da qual podemos ter conhecimento graças ao rigor da lógica e da matemática. Isso não quer dizer, propriamente, que se pode atribuir concepção de sujeito transcendental dos modernos (Descartes, Kant) o atributo de subjetivo, na medida em que a intenção desses filósofos era de buscar um sujeito transcendental, que não se encontra na experiência, o qual deveria ser um sujeito racional do conhecimento. Por isso, para ter acesso a ele temos antes que definir o que é razão. Para Husserl, a separação do sujeito transcendental da esfera subjetiva, como em Descartes, assim como a separação nos empiristas de um mundo da experiência objetivo de um subjetivo, o qual nada mais é do que um efeito daquele, é fruto de uma atitude que ele define como atitude natural. Os
seres
humanos,
portadores
de
habitualidades,
estão
orientados
naturalmente para esse mundo, isto é, eles estão interessados num mundo que para eles é uma coisa que possui predicado de existência. Ora, conceber algo que está além daquilo que aparece – as vivências (ou fenômenos) – é um julgamento prévio que deve ser investigado. Entretanto, o que não se pode fazer é negar que as coisas possuem predicado de existência, assim como não se pode negar a evidência
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intelectiva do cogito. E é do cogito em orientação natural que ele irá partir, isto é, sua meditação se faz em primeira pessoa em atitude natural, evitando qualquer tese proveniente da tradição construída sobre essa orientação. Nas Idéias I (1949) Husserl afirmará: Começamos nossas meditações como homens da vida natural, representando, julgando, sentindo, querendo ‘em atitude natural’. Isto quer dizer que nos colocamos a claro por simples considerações, que o melhor que levamos a cabo é em primeira pessoa. (§ 27)
É em primeira pessoa que conheço um mundo que me faz face, um mundo que se estende infinitamente no espaço e no tempo, “um mundo de valores e bens, um mundo prático” (§ 27). Cada objeto que atualmente me faz face está ora entrelaçado, ora rodeado de horizontes de indeterminação. Por exemplo, podemos voltar atenção para uma outra face de um objeto qualquer percebido, obtendo assim uma outra representação que está conexa com aquela; e dessa passar a uma outra que também está em conexão com as outras duas, e assim por diante, formando um contorno central do objeto “na” consciência. Mas não é só na atitude natural que o objeto faz face (gegenstand) a uma consciência. Husserl, ao lado dessa atitude, irá colocar a atitude aritmética, que também tem seus horizontes indeterminados. Numa consciência dirigida à vida natural, a atitude aritmética permanece como um fundo, e não como horizonte, na medida em que os números não estão em conexão com o mundo percebido, mas são universais construídos a partir de objetos singulares da atitude natural. Doravante, se é possível uma atitude aritmética, então não estamos tão-somente presos à atitude natural e somos capazes de transcendê-la, isto é, conceber um mundo ideal. Como isso é possível?
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Até aqui podemos entender o conceito de consciência tal como foi concebido outrora por Brentano, que foi mestre de Husserl. Para Brentano “Toda a consciência é consciência de um objeto”, ou seja, toda a consciência (que é sinônimo de razão) é intencionalidade, visa intencionalmente um objeto. Entretanto mesmo Brentano não escapa da dicotomia subjetivo-objetivo, e conseqüentemente da atitude natural. Eis que Husserl tem a brilhante intuição do a priori universal a partir da concepção de intencionalidade brentaniana. Parafraseando San Martin (1987): Husserl nota que se toda a consciência é consciência de um objeto, todo o objeto somente é objeto para uma consciência. Mais do que uma nova conceituação de intencionalidade, Husserl vê no a priori universal da consciência uma via para escapar da tese natural da existência do mundo e ir a origem mesma de todo o conhecimento, a saber, os fenômenos tais como eles nos aparecem em pessoa na esfera subjetiva. Com efeito, o sujeito do qual Husserl parte é o sujeito das vivências, atual e situado num mundo circundante (umwelt) e, portanto, não supra-hitórico como nos modernos. Partir dos fenômenos tais como eles aparecem é uma maneira de ter uma evidência absoluta e indubitável, tal como aquela do cogito cartesiano. Todas aquelas modalidades do cogito, a saber, conceber, negar, duvidar, imaginar perceber e muitas outras, são modalidades da consciência. O método que Husserl utiliza para se desconectar da atitude natural e ir aquilo
que
aparece,
os
fenômenos,
é
o
da
Epoché
ou
redução
fenomenológica. Tal método de reflexão consiste numa postura ativa de colocar entre parênteses a tese natural da existência do mundo. Colocar entre parênteses não significa negá-la como Descartes, pois não temos o poder de aniquilar o mundo que faz face. Ao efetivar a epoché somos conduzidos ao fluxo de fenômenos subjetivos. Ali podemos perceber em pessoa que o objeto (gegenstand) percebido na percepção é de uma modalidade fenomênica diferente de um objeto imaginado dado pela
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imaginação, ou de um objeto desejado dado no ato de desejar, etc. se nos deixamos deslizar pelas silhuetas (abschattungen) sem atentar para a unidade
do
objeto.
Assim,
esses
objetos
estão
presentes
enquanto
imanentes à consciência, isto é, essa tem o caráter de doadora de sentido para seus objetos. Estamos aqui não mais na consciência simplesmente interessada no mundo, mas numa consciência absoluta, nos atos intencionais eles mesmos. Mesmo aí podemos notar que o eu, o mundo e os objetos desse mundo, todos eles reduzidos a minha consciência, anunciam uma unidade que permanece no fluxo das vivências. Posso eu ter acesso a essa unidade nela mesma? Se Husserl insiste na idéia de um sujeito livre e capaz de ter conhecimento de si e do mundo – e de fato pretende – a resposta deve ser afirmativa. Mas de que maneira? IV) Visão de essência e comunidade filosófica Cada ato de consciência específico apresenta uma realidade imanente (reel), mas essa unidade que pode ser identificada no fluxo das vivências não é, ela mesma, algo de imanente no fluxo das vivências, mas sim transcendente. Essa unidade é aquilo que é invariável no fluxo. Como podemos ter acesso a ela? Segundo Husserl, ao dirigirmos a nossa atenção para essa unidade invariável
no
fluxo
de
vivências,
e
variarmos
em
livre
imaginação
conservando a sua estrutura, poderemos ver o eidos ou a essência do objeto. A visão de essência (wessenschau) se dá quando percebemos qual é esse núcleo invariável e que constituí, por assim dizer, a estrutura universal do objeto, sem a qual não podemos identificá-lo no ato da percepção. Assim, passamos de uma maneira passiva e habitual de ver o objeto para uma ativa, sem sair do condicionamento. Isso porque o ato de refletir não deixa de ser um ato intencional. A reflexão é uma intencionalidade sobre a intencionalidade e é através dela que podemos transformar o nosso condicionamento sofrido de maneira passiva, num condicionamento vivido
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ativamente. É dizer, não saímos fora das vivências do cotidiano, mas podemos constantemente ressignificá-las por meio da atualização da reflexão. Não obstante, através dessa reflexão podemos também nos evidenciar. Nas Palavras de Husserl: [...] se variarmos nosso mundo fático em livre fantasia, transformando-o em qualquer mundo concebível, então inevitavelmente variamos a nós mesmos com ele; nos convertemos em uma subjetividade possível, cujo mundo circundante seria em cada caso o mundo pensado, como mundo de suas experiências possíveis, de uma vida prática possível.” (1949, p. 54).
Assim obtemos o eidos ego, e se variarmos uma dessas possibilidades, que não
estão
presentes
efetivamente,
poderemos
conceber
o
ego
transcendental, um ego para além de qualquer estrutura particular eidética. Embora o Husserl das Idéias I possua um caráter Idealista, conquanto admita que a fenomenologia deva se preocupar unicamente com a verdade eidética – estando, com isso, também o sujeito transcendental afastado das vivências – no final de seu trabalho ele passa a uma postura de vitalistahistórico e sustenta que não se pode se afastar por completo daquele mundo circundante historicamente sedimentando. O conceito de verdade não é mais estático, mas está em movimento, e cabe ao filósofo não mais obter uma verdade axiológica, que uma vez descoberta deve ser aceite em todas as épocas, mas sim visar um aprofundamento dessa verdade. A um nível superior de uma fenomenologia eidética ou estática que desvela o eidos, Husserl vai colocar uma fenomenologia genética ou dinâmica, que mostra o eidos numa perspectiva histórica, isto é, não o definindo mais como verdade estática, mas uma verdade que por essência é morfológica (HUSSERL, 1992, p.49). A fenomenologia dinâmica ocupa-se assim da gênese da passividade onde o eu não participa de maneira ativa, ao passo que na fenomenologia eidética há uma participação do eu.
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Quando eu ativamente vario um objeto qualquer – por exemplo, a vivência intencional da democracia – eu obtenho um eidos – a essência da democracia; mas quando eu, estando em posse de vivências novas sobre esse mesmo objeto, efetivo uma nova intuição de essência, ocorre que poderei obter um eidos diferente do que havia intuído antes. Nesse sentido, esta essência vem a completar a outra obtida antes, essa modificação do eidos é algo que posso obter por comparação, no entanto não tenho poder, isto é, não sou eu quem leva a cabo tal modificação. Ela transcorre passivamente no plano da fenomenologia genética. Disso depreende-se que os eidos não devem se afastar por completo das vivências, senão estar em constante dialética com essas, para que possam ser constantemente aprofundados. Daí também a importância da atividade filosófica ser um trabalho em comunidade, e não um feito isolado. A presença de um outro é também a presença de outras vivências, e conseqüentemente, a presença da abertura de uma crítica ao saber até então estabelecido. Numa comunidade filosófica “[...] cada um trabalha com o outro e pelo outro, exercendo uma crítica construtiva em benefício mútuo, e na qual se cultivam os valores puros e incondicionais da verdade como bem comum” (HUSSERL, 1996, p.71). Essa comunidade deve, necessariamente propagar-se, transmitindo esse tipo de interesse, com vistas a incorporar outros não-filósofos. Assim a propagação da filosofia não se restringe a um grupo de profissionais, a uma comunidade, a uma nação, etc. “mas ocorre para além desse circulo de profissionais como movimento de educação cultural” (ibid, p.72). E mais adiante Husserl acrescenta: “Deve-se levar em conta também que a filosofia surge de uma atitude crítica universal contra tudo tradicionalmente préestabelecido e não é detida em sua propagação pelas barreiras nacionais” (ibid, p.72). Isto significa que a atividade filosófica somente ganha sentido num constante refazer-se. Se através da reflexão intuímos as essências, é através dos atos
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intencionais, cujo significado é doado por essas essências, que podemos obter não somente uma evidência intelectiva do eidos, como também corrigilo, caso seja necessário. Alguém poderia objetar dizendo que com esse tipo de filosofia não se chega a lugar nenhum. E por um lado, realmente não se chega, pois a filosofia não tem a pretensão de chegar a um lugar, se identifica esse lugar a um conhecimento acabado, aceito por todos e não criticável. Isso porque a consciência é sempre uma abertura para o mundo, e se esse mundo não fosse transcendente, a consciência deixaria de ser o que é, e nós não passaríamos de uma natureza fechada em si. Por outro lado, se entende esse lugar por uma nova visão de mundo, então podemos notar, se fizermos uma retrospectiva, que houve uma ressignificação daquele mundo que tínhamos antes. Qual o resultado? Uma maior emancipação do sujeito frente às forças da tradição historicamente sedimentadas. Assim, a fenomenologia não pretende ser um sistema, como a querem muitos dos filósofos modernos. Dessa forma, a fenomenologia torna viável uma crítica a si mesma, visando não separar a reflexão da práxis humana. V) Fenomenologia e Ensino Cabe agora levantar a seguinte questão: Como se aplica o método fenomenológico numa situação de ensino, em especial, para aqueles que não são professores de filosofia e cursam o ensino médio? Obiols (2002) irá propor um modelo de ensino formal, ou seja, independente em princípio de qualquer corrente filosófica. Nesse modelo Obiols coloca lado a lado o processo de aprendizagem filosófica e o processo de ensino filosófico. Em linguagem pedagógica, a aprendizagem filosófica compreende conceitos, procedimentos e atitudes que desenvolvam a aprendizagem da filosofia e do filosofar. Por outro lado, o processo de ensino filosófico abrange as seguintes estratégias didáticas: 1) um início concreto (motivação e colocação do
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problema filosófico), 2) Desenvolvimento abstrato (discussão do problema e análise de textos filosóficos e da história da filosofia) e 3) Encerramento concreto (síntese, aplicação e avaliação). (Cf. OBIOLS, p. 119 e ss). A nossa proposta é pensar sobre o processo de ensino de Obiols especificamente no contexto do ensino médio – em relação com o paradigma fenomenológico; por esse motivo, nossa análise não vai se deter no processo de aprendizagem. Vejamos então cada uma dessas estratégias de ensino para em seguida relacioná-las com o método de reflexão fenomenológica. O
primeiro
momento
tem
como
principal
objetivo
provocar,
causar
perplexidade nos alunos em relação ao problema em questão. Assim, o professor pode utilizar-se de vários recursos onde apareçam o problema, tais como: historietas, filmes, textos jornalísticos ou de literatura, etc. com a finalidade de envolver o estudante com o problema. Já o segundo momento do processo de ensino – o do desenvolvimento – visa sondar diferentes soluções para o problema proposto. Elas podem ser buscadas em trechos de textos filosóficos, sem desprezar também a história da filosofia. Associadas as possíveis soluções, deve aparecer a discussão de argumentos entre os estudantes, sejam eles apresentados oralmente ou por meio de rascunhos. Por fim, o terceiro momento tem por objetivo recapitular e avaliar conscientemente a aprendizagem. O que se pretende é fazer uma síntese da aprendizagem com vistas a ponderar sobre novos significados dados à problemática, assim como sobre novas questões que podem permanecer em aberto. Os três momentos não estão completamente separados e devem ser vistos dentro do processo de ensino como um todo. Além disso, o modelo de Obiols é emancipatório, e o próprio autor afirma isso. Mas, qual o sujeito que se pretende emancipar? Certamente não deve ser aquele sujeito do iluminismo, supra-histórico afastado do cotidiano das vivências, e conseqüentemente sendo incapaz de se evidenciar. Ele necessariamente deve ser um sujeito
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concreto, estar envolvido nesse mundo sedimentado das tradições, mas não se afastar desse mundo, senão – durante o processo reflexivo – voltar-se constantemente a ele para compreendê-lo e se compreender melhor, pois é no ato de reflexão que o sujeito pode se ver livre. E essa reflexão deve apresentar a si mesma, em carne e osso, o objeto refletido, e não por meio da busca de uma causa exterior que não pode ser evidenciada. Tal é a proposta da fenomenologia husserliana. Para adaptá-la ao modelo do processo de ensino de Obiols, devemos em primeiro lugar nos preocupar com a terminologia. Devemos não utilizar o termo que qualifica como “abstrato” o segundo momento do processo que é o do desenvolvimento, na medida em que a atividade filosófica em fenomenologia é toda ela concreta. Expliquemos: a abstração é um termo que, em fenomenologia, pressupõe a construção de uma tese que se fundamenta na tese da existência do mundo preconcebida, isto é, na atitude natural; por esse motivo, em vez de desenvolvimento abstrato, utilizaremos o termo desenvolvimento reflexivo. Ressalva feita, o modelo de Obiols transposto para o processo de atividade reflexiva fenomenológica seria o seguinte: 1) Etapa de motivação e colocação do problema: fenomenologicamente devemos partir das vivências elas mesmas. Assim, para motivar o problema devemos, não só fazer uso dos recursos acima citados, como também partir das próprias vivências dos alunos. Neste contexto, é imprescindível a relação de textos, filmes, entre outros, com as vivências dos alunos. Para retomar um exemplo já citado, se o objeto de discussão é o conceito de Democracia, não basta somente buscar modelos em jornais, na literatura ou em obras cinematográficas, mas sim na própria vida do sujeito. As vivências não só poderiam ser procuradas em relação do individuo com a cidade, o estado ou com o país, mas até mesmo num âmbito mais restrito do cotidiano, como quando uma mãe pergunta a seus
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filhos o que eles gostariam para o café da manhã, ou quando um professor pergunta aos alunos como esses pretendem ser avaliados. 2) Desenvolvimento reflexivo: a reflexão começa quando colocamos entre parênteses as crenças estabelecidas sobre o objeto de discussão e começamos a analisar o que há de comum naquelas vivências tidas por nós. Uma vez obtida a unidade de nosso objeto, basta variarmos na imaginação para descobrir o eidos, o incondicionado donde as vivências ganham os seus sentido. O colocar entre parênteses, assim como a intuição eidética, necessariamente são feitas em primeira pessoa, isso não quer dizer que não se possa compartilhar os resultados. Ao contrário, a interação deve ser estimulada para que a reflexão se torne mais rica, seja essa interação feita com outros alunos e com o professor, seja ela feita, por meio de textos, com os filósofos. Retomando o exemplo acima sem nos estendermos, quando suspendemos as teses do senso comum sobre a democracia, que estão assentadas sobre a atitude natural, e dirigirmos nossa atenção apenas para os casos em se vive ela intencionalmente, podemos notar uma unidade invariável nas vivências, a saber, “que é um tipo de governo onde o cidadão exerce o poder”, “que implica liberdade”, “que implica conflito de interesses”, etc. Em seguida, ao variarmos em livre fantasia essas situações em que se vive democraticamente, poderemos complementar o sentido da democracia por meio da visão de essência. Frisamos novamente, que esse eidos não é definitivo, mas que está aberto ao aprofundamento. 3) A etapa de avaliação corresponde a retomada das outras duas. O objetivo é fazer com que o sujeito perceba o quanto ele se emancipou da autoridade da tradição e o quanto significativo se tornou o objeto que antes era irrefletido.
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VI) Últimas palavras: Portanto, a reflexão fenomenológica de Husserl foi uma das primeiras a empreender uma solução para a problemática do sujeito moderno. No entanto, não se pode dizer que ela deu uma resposta peremptória, pois não é a sua proposta, e muito menos de qualquer pensamento que pretende ser filosófico e não incidir em dogmatismo ou em ceticismo. Com efeito, o professor de filosofia que pretenda emancipar os seus alunos dos preconceitos da tradição, antes deve estar envolvido com a problemática filosófica e se perguntar se realmente é possível emancipar-se destes preconceitos, e de que maneira. A sua relação com a reflexão filosófica e com os problemas, e com pensadores de sua predileção, influenciam direta ou indiretamente o seu modo de ensinar filosofia. E é importante que a reflexão filosófica do docente não esteja dissociada de sua prática de ensino, uma vez que esse outro a quem dirigimos o nosso discurso, inevitavelmente também nos motiva a lançar luz numa nova perspectiva, aprofundando o nosso conhecimento filosófico. Referências Bibliográficas DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973. HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Trad. Déborah Danowski. São Paulo, Editora UNESP, 2001. HUSSERL, Edmund. Ideas Relativas a una fenomenología pura y una filosofía fenomenológica. Trad. José Gaos. Mexico, Fondo de Cultura, 1949. ___________. El artículo “fenomenologia” de la enciclopédia británica. In: Invitación a la fenomenologia, Barcelona, 1992. ___________. A Crise da Humanidade européia e a Fenomenologia. Trad. Urbano Zilles. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
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