LIÇÕES DE UM DEBATE DE MESTRES Um olhar sobre a tarefa da filosofia a partir do debate HabermasGadamer Itamar Luís Hammes*
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Considerações Introdutórias Mesmo que vivamos um momento privilegiado, onde a filosofia se tornou disciplina
obrigatória
nas
escolas
de
ensino
médio
do
Brasil,
as
interrogações e dúvidas sobre a tarefa da filosofia são uma constante. Sem querer entrar numa discussão sobre métodos e conteúdos mais apropriados ao estudo da filosofia, o presente texto pretende extrair algumas lições sobre a tarefa filosófica presente no debate HabermasGadamer1. A nosso ver todo o debate gira, em última instância, em torno da tarefa da filosofia no mundo contemporâneo2. Enquanto Gadamer insiste na experiência hermenêutica, no papel da tradição e afirma que a hermenêutica ultrapassa o domínio de controle da metodologia científica (1977, p. 23), Habermas percebe nisto uma negligência da subjetividade, Mestre em Filosofia - UNILASALLE/Canoas, URI/Erechim. Fone: 051 99558865 - Rua José W. Thomas, S/N – Bairro Medianeira, Arroio do Meio, RS – Cep 95940-000 - Caixa Postal 012. 1 Um debate de mestres que aconteceu na segunda metade do século passado. De um lado Habermas, herdeiro da teoria crítica, autor da Lógica das Ciências Sociais e preocupado com as condições de um diálogo livre de dominação e violência. De outro, Gadamer, discípulo de Heidegger, interessado em temas como a dialética platônica, Hegel, questões ligadas à arte e ao romantismo alemão. Em sua obra mestra Verdade e Método reflete sobre as condições históricas e filosóficas da compreensão e interpretação. 2 No essencial os textos encontram-se reproduzidos numa obra coletiva intitulada Hermeneutik und Ideologiekritik (Frankfurt, 1971), que recolheu também os contributos de Apel, Bormann, Giegel e R. Bubner. Aí se reuniram os seguintes textos: Zu Gadamers Wahrheit und Methode (Análise de Habermas da obra mestra de Gadamer, Verdade e Método); Rhetorik, Hermeneutik und Ideologiekritik (resposta de Gadamer aos comentários feitos por Habermas a Wahrheit und Methode em Zur Logik der Sozialwissenschaften); Der Universalitätsanspruch der Hermeneutik (texto que Habermas escrevera para a Festschrift em honra de Gadamer: Hermeneutik und Dialektik, Tübingen, 1970); e, por fim, uma Replik de Gadamer. *
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uma contraposição entre experiência hermenêutica e conhecimento metódico (1987, p. 14), e uma falta de reconhecimento do papel crítico e metódico da filosofia3. O debate pode ser reconstruído a partir dos quatro pontos críticos que Habermas percebe na “autocompreensão ontológica” (1987, p. 14) da hermenêutica de Gadamer: 1) na pretensão de Gadamer de “contrapor abstratamente a experiência hermenêutica ao conhecimento metódico como um todo” (Habermas, 1987, p. 14); 2) na pretensão de Gadamer de “transformar a intelecção da estrutura preconceitual da compreensão numa reabilitação do preconceito como tal” (Habermas, 1987, p. 16); 3) na
pretensão
de
Gadamer
em
absolutizar
o
fator
linguagem
no
acontecimento da tradição, tal como fora fundamentado na terceira parte de Verdade e Método (Habermas, 1987, p. 21); 4) na pretensão da hermenêutica filosófica de ser apenas descrição daquilo que é, ou acontece, sem o auxílio de um “princípio regulativo” (Habermas, 1987, p. 64). Estas críticas de Habermas são o ponto de partida do debate entre os dois filósofos. Podemos dizer que eles são os pontos que dividem e aproximam os autores e podem ser apresentados como situações alternativas
dentro
das
quais
o
debate
acontece:
1)
Experiência
hermenêutica ou conhecimento metódico?; 2) “Preconceitos” ou ênfase na reflexão racional?; 3) Linguagem como um aspecto entre outros da vida social, como o trabalho e o poder, ou como aspecto universal da vida humana?; 4) Descrição ou crítica? (Lang, 1981, p. 102). Em nosso texto não apresentaremos a totalidade do debate. Limitamosnos a apresentação dos dois primeiros pontos ou tarefas da filosofia: 1) a filosofia enquanto questionamento de uma racionalidade instrumental que A respeito do debate, em nosso meio intelectual, precisamos considerar os trabalhos de Álvaro Valls, especialmente a tradução dos textos de Habermas ao português; de Ernildo J. Stein, em especial o artigo: Dialética e Hermenêutica, uma controvérsia sobre o método em Filosofia, publicado como anexo da obra de Jürgen Habermas. A obra de Jean Grondin, Hermenêutica: introdução à hermenêutica filosófica, especialmente a última parte. O trabalho de Josef Bleicher conhecido como Hermenêutica Contemporânea, especialmente a terceira parte. 3
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absolutiza o ideal metódico do conhecimento; 2) a filosofia enquanto questionamento de um pensar a-histórico e promotora da consciência histórica. Inerente a apresentação dos temas perceberemos como os parceiros do debate – sem chegar a um acordo definitivo – aprenderam através dos argumentos do outro, vendo-se levados a detectar, na sua própria concepção, um potencial ainda não explorado. Cabe salientar ainda, que o texto procura resgatar no debate aquela experiência de humildade e finitude em que os parceiros reconhecem não contar com a exclusividade de pretensão de verdade da fala ou a última palavra. Ambos os filósofos estão conscientes de que cada fala deve ser exposta à interpretação e, nessa perspectiva, jamais esgotam a amplitude de seus sentidos possíveis. Eles sabem, na verdade, estar sempre correndo o risco de perder algo de vista, quando acreditam ter chegado a uma verdade inquestionável. A Filosofia enquanto questionamento de uma racionalidade que absolutiza o ideal metódico das ciências Habermas,
ao
analisar
a
obra
de
Gadamer,
percebe
uma
certa
desvalorização da hermenêutica em sua pretensão de ultrapassar o domínio de controle da metodologia científica. Para Habermas, a crítica à falsa autocompreensão objetivística das ciências não pode levar a uma contraposição entre experiência hermenêutica e conhecimento metódico, afinal este continua sendo o chão das ciências hermenêuticas. Afirma Habermas: A reivindicação que a hermenêutica legitimamente faz valer contra o absolutismo, também cheio de conseqüências práticas, de uma metodologia geral das ciências da experiência não dispensa de todo o trabalho da metodologia - e será, como temos de temer, ou produtiva nas ciências, ou simplesmente não será (1987, p. 14).
Habermas analisa também duas afirmações de Verdade e Método. A primeira que aparece no prefácio da segunda edição desta obra, em que
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Gadamer afirma que sua intenção não era desenvolver um sistema metódico, um sistema de regras, uma metodologia. Seu objetivo era filosófico: “não se trata do que nós fazemos, nem do que nós deveríamos fazer, mas o que está em questão é o que acontece conosco para além de nosso querer e fazer” (Gadamer, 1977, p. 10). E a segunda, que se encontra como tese conclusiva do debate que Gadamer desperta a partir do conceito de clássico: “a compreensão não deve ser pensada tanto como uma ação da subjetividade quanto como o entrar num acontecer da tradição, no qual o passado e o presente estão em contínua mediação” (Gadamer, 1977, p. 360). Para Habermas, a primeira afirmação encontra sua fundamentação na segunda, isto é, que a história da efetuação (Wirkungsgeschichte) ou a tradição é, enquanto substancialidade, um acontecer da verdade que nos sobrevêm além do nosso querer e fazer. Estas frases demonstram, para Habermas, que Gadamer fundiu as tradições ainda vivas e a investigação hermenêutica num único ponto. Entretanto, isso não é possível, uma vez que a reflexão hermenêutica se realiza contra a decrescente pretensão de validade das tradições, de modo que é neste contexto que Habermas mostra como a hermenêutica filosófica pode esclarecer pela reflexão e pela
razão
a
relação
com
a
tradição.
A
reflexão
potencializa
a
compreensão. A razão clarifica a gênese da tradição da qual nasce a reflexão, sacudindo assim o dogmatismo da práxis. Na verdade, Habermas teme que o rumo ontológico da hermenêutica filosófica de Gadamer acabe afastando-a do debate sobre questões do método nas ciências. Gadamer responde a este questionamento que jamais pensou numa aguda oposição entre experiência hermenêutica e conhecimento metódico, entre verdade e método. O que ele questionava era a pretensão moderna de exclusividade da consciência de método, a tese dogmática de que fora do método não poderia existir nenhuma verdade. É por isto que as ciências do espírito foram o ponto de partida da análise, porque “convergem com experiências que não afetam ao método nem à ciência, mas que se situam fora da ciência, como a experiência da arte e a
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experiência da cultura marcada por sua tradição histórica” (Gadamer, 1992, p. 231). A experiência hermenêutica perpassa todas as experiências e, neste sentido, não é objeto de estranhamento metódico, mas “[...] que precede a este ao reservar a ciência suas questões e possibilitar assim a aplicação de seus métodos” (Gadamer, 1992, p. 231). Gadamer insiste na validade da experiência hermenêutica nas ciências e nos seus métodos, como também nas ciências sociais de Habermas. Para Gadamer, a metodologia objetivista moderna distanciou as ciências do mundo social e humano. Não é intenção da reflexão hermenêutica modificar esta metodologia. Nem poderia. O que ela pretende, ao revelar as pré-compreensões que guiam as ciências, é “liberar novas dimensões problemáticas e favorecer indiretamente o esforço metodológico (...) para seu próprio progresso e das cegueiras e abstrações” (Gadamer, 1992, p. 240). O verdadeiro investigador da natureza sabe perfeitamente que a sua área cognitiva é muito particular no conjunto da realidade humana, por isso que o investigador necessita tanto mais da reflexão hermenêutica sobre os pressupostos e os limites da ciência. Na perspectiva de Gadamer também a metodologia objetivista das ciências sociais se distanciou do mundo social e humano. Preocupada exclusivamente com o progresso, a planificação, a organização e o desenvolvimento, a metodologia objetivista possibilitou inumeráveis funções que “determinaram por assim dizer do exterior, a vida de cada indivíduo e de cada grupo. O engenheirosociólogo encarregado do funcionamento da máquina social parece, de algum modo, separado da sociedade à qual, todavia, não cessa de pertencer” (Gadamer, 1992, p. 240). Para Gadamer, a distanciação dissolve a relação de pertença, com isso desembaraçando a ciência de toda a referência ética. A hermenêutica filosófica, na visão de Gadamer, não pretende ser um método ou reivindicar uma determinada legitimação filosófica. Ela pretende muito mais “retificar uma autocompreensão” (1992, p. 247). A hermenêutica filosófica também “não critica o método científico como tal, por exemplo, a investigação da natureza ou da análise lógica, mas a
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justificação de métodos deficientes em aplicações” (Gadamer, 1992, p. 247). É nesta perspectiva que a hermenêutica reivindica a universalidade: “[...] a compreensão e o acordo não significam primária e originalmente um comportamento com os textos formado metodologicamente, mas que são a forma efetiva de realização da vida social, que em última formalização é uma comunidade de diálogo” (Gadamer, 1992, p. 247). A filosofia enquanto questionamento de um pensar a-histórico e promotora da consciência histórica A segunda alternativa criada no debate a partir da crítica de Habermas gira em torno do conceito de preconceito. Gadamer havia advertido o pensamento iluminista para a inevitabilidade de preconceitos no processo de
compreender.
compreensão
e
Os
preconceitos
comunicação.
possibilitam,
Habermas
para
questiona
Gadamer,
esta
a
pretensão
gadameriana de reabilitar o preconceito. Para ele, em vez de insistir tanto com a força do preconceito, seria mais importante perseverar com a força da reflexão racional. Para entender a posição de Gadamer sobre o preconceito precisamos recorrer a Verdade e Método, em que o autor afirma que o preconceito não significa “juízo falso, mas que nele reside a possibilidade de ser avaliado positiva e negativamente” (1977, p. 337). Gadamer explica a importância do preconceito na compreensão. Quando nos colocamos diante de um texto, não podemos evitar nossa pré-compreensão: temos opiniões prévias que fazem parte do modo pelo qual lemos um texto, ouvimos uma palestra, lemos uma carta, dialogamos com alguém. “O que me é dito por alguém, em diálogo, por carta, em um livro ou seja como for, encontra-se em princípio sob a pressuposição de que o que é exposto é sua opinião e não a minha, da qual eu tenho de tomar conhecimento, sem precisar compartilhá-la” (1977, p. 334). Esta pressuposição é um problema em relação à compreensão, pois eu posso permanecer submetido ao poder de minhas opiniões prévias, sem
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poder nem mesmo percebê-las. “Se elas motivam mal-entendidos, como seria possível chegar sequer a percebê-los face a um texto em que não houver contra-objeções de um outro? Como se pode proteger um texto previamente frente a mal-entendidos?” (1977, p. 335-336). O leitor que quer compreender um texto deve, mesmo sabendo que está determinado pelas suas próprias opiniões prévias, estar de algum modo aberto, receptivo à alteridade do texto. Essa receptividade “não pressupõe nem neutralidade com relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos” (1977, p. 336). Não se trata de assegurar-se contra a tradição “que faz ouvir sua voz a partir do texto” (1977, p. 336), mas de “manter afastado tudo o que possa impedir alguém de compreendê-la a partir da própria coisa. São os preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição” (1977, p. 336). Sem reconhecer este caráter preconceituoso de toda compreensão não é possível estar aberto à alteridade. Para Gadamer, há um preconceito da Aufklärung (Iluminismo): “O preconceito contra os preconceitos enquanto tais, e, com isso, a despotencialização da tradição” (1977, p. 337). Para a Aufklärung, somente a fundamentação e a garantia do método conferem ao juízo sua dignidade. Neste sentido, a crítica da Aufklärung se dirige em primeiro lugar “contra a tradição religiosa do cristianismo, portanto, a Sagrada Escritura” (1977, p. 338). A tendência geral do Iluminismo é não deixar valer autoridade alguma e decidir tudo diante do tribunal da razão. Assim, a tradição escrita, a Sagrada Escritura, assim como qualquer outra informação
histórica,
não
podem
valer
por
si
mesmas.
Antes
a
possibilidade de que a tradição seja verdade depende da credibilidade que a razão lhe concede. A fonte última de toda a autoridade já não é a tradição, mas a razão. A hermenêutica, nesta perspectiva, para Gadamer, deve partir da idéia de que “toda existência humana, mesmo a mais livre, está limitada e condicionada de muitas maneiras (...). E, se isto é assim, então a idéia de uma razão absoluta não é uma possibilidade da
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humanidade histórica” (1977, p. 343). A razão somente existe como real e histórica, isto significa simplesmente: “a razão não é dona de si mesma, pois está sempre referida ao dado no qual se exerce” (1977, p. 343). Na visão de Gadamer “antes de que nós nos compreendemos a nós mesmos na
reflexão,
nós
estamos
compreendendo
já
de
uma
maneira
autoevidente na família, na sociedade e estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante.” (1977, p. 344). Habermas
percebe
com
bons
olhos
esta
relação
do
sujeito
que
compreende com a situação histórica. Questiona, no entanto, a tentativa gadameriana de reabilitar o conceito de preconceito a partir da estrutura prévia
da
preconceitos
compreensão verdadeiros
de
Heidegger. somente
Habermas
por
causa
pergunta da
se
há
antecipação
hermenêutica. Analisa também a idéia gadameriana de que a autoridade está fundamentada sobre o conhecimento e não sobre a obediência ou ainda que a autoridade seja portadora de conhecimento. Esta afirmação de Gadamer “não coincide com a hermenêutica, mas quando muito com sua absolutização” (Habermas, 1987, p. 16). Habermas esclarece sua discordância usando o exemplo da relação pedagógica que se estabelece entre educador e educando no ato da aprendizagem quando se parte do preconceito da tradição. “A pessoa do educador legitima aqui preconceitos que são inculcados (eingebildet) no educando com autoridade, e isto quer dizer, como quer que o encaremos: sob potencial ameaça de sanções e com perspectivas de gratificações” (1987, p. 16). Para Habermas, a afirmação de Gadamer de que conhecimento coincide com autoridade, significa dizer que a tradição legitima os preconceitos transmitidos (ou impostos) às novas gerações. Com isso, a reflexão torna-se impotente. “O preconceito
de
Gadamer
em
favor
do
direito
dos
preconceitos
documentados pela tradição questiona a força da reflexão, que entretanto se confirma pelo fato de que ela pode também rejeitar a pretensão das tradições” (1987, p. 17-18). Contra o acento de Gadamer no poder da autoridade e da tradição, Habermas, no sentido do idealismo alemão, insiste na força da reflexão que destrói a substancialidade naturalística da
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tradição. “A substancialidade se esvai na reflexão, porque esta não apenas ratifica, mas também rompe ou derruba poderes dogmáticos” (1987, p. 18).
Diante
do
ponto
de
partida
hermenêutico
de
que
todo
o
conhecimento está baseado na tradição, Habermas afirma que o “direito da reflexão exige a auto-restrição do ponto de partida hermenêutico. Aquele direito requer um sistema de referência que ultrapasse o contexto de tradição enquanto tal só então a tradição pode ser também criticada” (1987, p. 18-19). Para Habermas, identificar simplesmente a investigação hermenêutica com a continuação da tradição é acentuar unilateralmente a participação e diálogo em detrimento do distanciamento e da crítica. Na reflexão crítica podemos tanto rejeitar como aceitar as pretensões de validade da tradição. Para Habermas, a reflexão deve partir da falta de convergência entre autoridade e conhecimento: a reflexão não trabalha na faticidade das normas herdadas sem deixar marcas; ela trabalha depois, pois só podemos, segundo Habermas, voltar-nos sobre as normas internalizadas quando aprendemos a segui-las cegamente por imposição de coerção externa. Enquanto [...] a reflexão recorda aquele caminho da autoridade, no qual as gramáticas dos jogos de linguagem foram exercitadas dogmaticamente como regras da concepção do mundo e do agir, pode ser tirado da autoridade aquilo que nela era pura dominação, e ser dissolvido na coerção sem violência da intelecção e da decisão racional (1987, p. 18).
Habermas invoca a tradição crítica da Aufklärung para afirmar, contra a absolutização dogmática da tradição, a superioridade da reflexão. Não é que Habermas negue a relação entre ser e compreender estabelecida por Gadamer. Qualquer comunicação entre homens é processo de tradução, de fusão de horizontes, uma incorporação do estranho ao que é próprio. Habermas aceita a importância da hermenêutica, mas critica sua pretensão de universalidade, pois falta a ela o trabalho da crítica da ideologia.
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Gadamer recusa-se em aceitar a depreciação habermasiana, no sentido do iluminismo moderno, dos conceitos de autoridade e tradição, bem como a contraposição
destes
conceitos
em
relação
à
razão.
Na
verdade
encontramo-nos na base da crítica às premissas da reflexão temática. Afirma Gadamer: Minha tese é – e creio que seja a conseqüência necessária de nosso condicionamento pela história da efetuação e finitude – que a hermenêutica nos ensina a considerar suspeitosa e dogmática a oposição entre uma tradição viva ‘natural’ e a apropriação reflexiva da mesma. Detrás disto esconde-se um objetivismo dogmático que segue deformando o conceito de reflexão (1992, p. 232).
Um pouco mais tarde, ainda no mesmo texto, contra Habermas afirma Gadamer: “se trata em todo o caso da pretensão de ver algo perceptível e não de uma ‘crença básica’ quando eu descarto entre autoridade e razão a antítese abstrata da ilustração emancipatória e afirmo sua relação essencialmente ambivalente” (1992, p. 236). Gadamer acentua aqui, mais uma vez, a partir da estrutura prévia da compreensão de Heidegger, os conceitos intercalados de autoridade e conhecimento, que ele já tentou fundar sobre o título de A reabilitação de autoridade e tradição de Wahrheit und Methode. Gadamer acusa Habermas de usar um conceito simplificado de crítica e de elaborar um antagonismo abstrato entre tradição e reflexão. Para Gadamer, “a reflexão sobre uma pré-compreensão mostra-me algo que de outro modo aconteceria às minhas costas. Algo, mas não tudo. Porque a consciência da história da efetuação tem inevitavelmente mais de ser que de
consciência”
inevitavelmente
(Gadamer, desconta
ou
p.
239).
Quando
desconsidera
uma
o
sujeito
reflete
multiplicidade
de
conceitos, juízos, princípios e critérios. Não pode colocar tudo em questão ao mesmo tempo. Portanto, a crítica é necessariamente parcial e feita desde um ponto de vista particular. Se o ponto de vista crítico se submete, por sua vez, à reflexão, isto haverá de fazer-se inevitavelmente desde outro ponto de vista e sobre a base de outras pressuposições que
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se darão, por sua vez, por descontadas. Visto a esta luz, conclui Gadamer, o conceito habermasiano de crítica é dogmático; atribui à reflexão um poder que esta somente poderia ter se aceitássemos as premissas de Hegel. É verdade, concede Gadamer, que a apelação à tradição não é um argumento, pois “a tradição não é nenhuma garantia, ao menos quando a reflexão exige uma garantia. Porém este é o ponto decisivo: Aonde exige? Em todo lugar? A isto oponho a finitude da existência humana e a essencial particularidade da reflexão” (Gadamer, p. 236). A reflexão não está menos historicamente situada, não é menos dependente do contexto que outros modos de pensamento. Ao desafiar a herança cultural, o intérprete a está pressupondo e prosseguindo. Gadamer nega também que a hermenêutica possa contrapor-se, sem mais, à reflexão crítica como a renovação da autoridade tradicional se contrapõe à dissolução desta. Afirma Gadamer: O que se debate é se a reflexão dissolve sempre as relações substanciais ou se pode também assumi-las explicitamente. (...). Que a tradição como tal seja a única razão de validade dos preconceitos – afirmação que Habermas me atribui – contradiz minha tese de que autoridade descansa no conhecimento. Quem tem alcançado a maioridade pode, sem estar obrigado, assumir por conhecimento o que havia admitido por obediência (1992, p. 236).
A hermenêutica não implica uma cega sujeição à tradição. Também entendemos quando nos desfazemos dos preconceitos que distorcem a realidade. Afirma Gadamer: “Então, é aí que melhor compreendemos” (Gadamer, p. 235). Porém, para Gadamer, isto não significa que somente entendemos quando
desmascaramos
a falsa
consciência, erros ou
enganos, pois o ponto de divergência não é aceitarmos ou rejeitarmos uma pretensão de validade dada. A questão é, muito mais, como nos fazermos
conscientes
e
como
avaliarmos
as
pré-compreensões
e
preconceitos. Isto não é algo, argumenta Gadamer, que se pode fazer de uma só vez, em um supremo ato de reflexão. É precisamente o tratar de
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entender outros pontos de vista, o tratar de chegar a um entendimento com outros, quando minha própria estrutura de preconceitos, assim como a deles, se torna perceptível. A reflexão não é algo que se opõe à compreensão. É um momento integral na tentativa de entender. Separála, como Habermas faz, é uma “confusão dogmática”. Considerações conclusivas Se retomarmos os argumentos até aqui empreendidos no debate, de ambos os lados, tanto de Habermas como de Gadamer, podemos ressaltar que aconteceram alguns mal-entendidos, correções, mas principalmente ambos aprenderam que em sua filosofia havia um potencial ainda não explorado. Cabe assinalar, em primeiro lugar, que este debate resgata para a filosofia aquela experiência de humildade e finitude em que os parceiros reconhecem não contar com a exclusividade de pretensão de verdade da fala ou a última palavra. Ambos os filósofos estão conscientes de que cada fala deve ser exposta à interpretação e, neste sentido, jamais esgotam a amplitude de seus sentidos possíveis. Eles sabem, na verdade, estar sempre correndo o risco de perder algo de vista, quando acreditam ter chegado a uma verdade inquestionável. Este argumento comprova-se nas palavras de Habermas e Gadamer: Talvez sob as atuais circunstâncias seja mais urgente apontar para os limites da falsa pretensão de universalidade da crítica do que para os da pretensão de universalidade da hermenêutica. Mas, na medida em que se trata da clarificação de uma questão de direito, também esta última pretensão necessita de crítica (Habermas, 1987, p. 69). Mas com este acréscimo eu não quero ficar com a última palavra. Gadamer é o primeiro a acentuar o caráter aberto do diálogo. Dele todos nós podemos aprender a sabedoria fundamental hermenêutica de que é uma ilusão achar que alguém possa ficar com a última palavra (Habermas, 1987, p. 85). O diálogo que está em curso não se subtrai a qualquer
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fixação. Mau hermeneuta é o que crê que pode ou deve ficar com a última palavra (Gadamer, 1977, p. 673).
Em segundo lugar o debate serviu para esclarecer que a hermenêutica filosófica procura liberar dimensões ou trazer à tona experiências ou verdades que não são afetadas necessariamente pelo método, como a experiência da arte, da história e da linguagem. A reflexão hermenêutica não pretende criticar o método científico, como, por exemplo, a investigação da natureza ou análise lógica, mas a justificação de métodos deficientes em aplicações. Neste sentido, ela pretende retificar uma autocompreensão falsa. Revelar as pré-compreensões que guiam as ciências, liberar novas dimensões problemáticas e assim favorecer o esforço metodológico. Habermas concorda com esta crítica na medida em que também ele percebe como positiva a destruição da auto-suficiência objetivística das ciências do espírito, uma vez que o seu domínio objetivo está estruturado pela tradição. Em terceiro lugar o debate mostra que sempre compreendemos a partir dos preconceitos que se gestaram na história. Compreendemos, portanto, a partir de expectativas de sentido que provêm da tradição. Esta tradição não está a nosso dispor. Ao contrário, somos nós que estamos sujeitos a ela. Portanto, a tradição é a instância a partir da qual a compreensão é possibilitada. Ela nos condiciona sem que possamos elevá-la plenamente à consciência. Tenhamos ou não consciência disto, ela nos influencia e torna possível o conhecimento, nossas valorações, nossas tomadas de posição. É por essa razão que a hermenêutica é essencialmente uma reflexão sobre a atuação da história na compreensão. Somente uma compreensão que descobre sua própria historicidade pode ser considerada crítica. É assim que a hermenêutica questiona a pretensão a uma verdade absoluta. A verdade é sempre finita e histórica. O ser histórico nunca pode simplesmente
transformar-se
em
transparência
plena.
Em
outras
palavras, o sentido de uma afirmação nunca se esgota no dito, sempre existe algo não dito que precisa ser esclarecido.
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Além disso, os parceiros puderam revisar algumas de suas posições. Gadamer pôde elaborar o potencial crítico do diálogo hermenêutico. Segundo o autor, a hermenêutica filosófica aspira a um “saber de reflexão crítica” (1992, p. 242), para conquistar mais liberdade para as pessoas, seja corrigindo equívocos objetivistas ou mesmo rompendo traços absolutistas ou violentos inerentes à tradição. A hermenêutica crítica é solicitada também para defender uma linguagem compreensível diante da lógica dos enunciados que mede a linguagem segundo falsos princípios da lógica. Habermas também recebeu um estímulo para chegar, de um certo modo, ao diálogo reconhecido. Cresce significativamente o interesse pela linguagem. De Gadamer podia ser aprendido que, no diálogo, em princípio devia ser alcançada a compreensão universal. Enfim, o debate reforça a crítica a uma racionalidade desencarnada, excessivamente apegada às ciências positivas e ao ideal absolutista de método. Procura resgatar uma racionalidade que se desenvolve no modo de ser linguagem, posicionada, que amplia o rigor e torna o pensamento mais radical. Um pensamento [...] que precede e acompanha o pensamento objetivista e que, ao mesmo tempo, seja capaz de pensar os níveis nunca inteiramente recuperáveis da práxis cotidiana. Práxis esta que guarda em seu seio os momentos mais importantes da experiência da arte, da filosofia, das ciências humanas e da história (Stein. In: Habermas, 1987, p. 130).
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GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. Traduzido para o espanhol por Ana Agud Aparicio e Rafael de Agapito. Salamanca: ediciones Sígueme, 1977. Tradução de: Wahrheit und Methode. __________. Verdad y Metodo II. Traduzido para o espanhol por Manuel Olasagasti. Salamanca: ediciones Sígueme, 1992. GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Traduzido por Benno Dischinger. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999. Tradução de: Einführung in die philosophische Herrmeneutik. HABERMAS, J.. Dialética e Hermenêutica: Para a crítica da hermenêutica de Gadamer. Traduzido por Álvaro L. M. Valls. Porto Alegre: L&PM, 1987. HABERMAS, Jürgen. La lógica de las ciencias sociales. Traduzido para o espanhol por Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Editora Tecnos, 1996. Tradução de: Zur Logik der Sozialwissenschaften. LANG, Peter Christian. Hermeneutik, Ideologiekritik, Asthetik. Über Gadamer und Adorno sowie fragen eines aktuellen Asthetik. Königstein: Verlag Anton Hain Meinsenheim, 1981. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993. STEIN, Ernildo. Dialética e Hermenêutica: Uma controvérsia sobre Método em Filosofia. In: HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica: Para a crítica da hermenêutica filosófica. Tradução e apresentação de Álvaro L. M. Valls. Porto Alegre: L&PM, 1987. ______. Aproximações sobre Hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.